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A PERSPECTIVA SOCIOCRÍTICA
Resumo:
Quando fundamentada na Educação Matemática Crítica e na Educação Crítica de Paulo Freire, a
perspectiva sociocrítica da modelagem matemática tem como cerne a transformação social para a
emancipação humana constituída como práxis emancipatória, de modo que não se recaia em verbalismo
nem em ativismo. O presente ensaio teórico tem o objetivo de delinear o fazer em uma atividade de
modelagem matemática, tendo em vista as categorias essenciais da práxis. A estruturação teórica vem
indicar que, diante das relações dialéticas das categorias teoria, prática, teleologia e causalidade da práxis,
a modelagem matemática é determinada nesta como teoria, como reprodução ideal do movimento real do
objeto, sendo que a teoria contém em si a necessidade da prática ulterior que determina a adequação do
modelo. Conclui-se que atividades de modelagem propostas dentro da perspectiva sociocrítica
emancipadora devem culminar com uma prática, característica analisada em um cenário de modelagem.
Introdução
1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática (PECEM) da
Universidade Estadual de Londrina.
2
Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática
(PECEM) da Universidade Estadual de Londrina.
XII CNMEM – Conferência Nacional sobre Modelagem na Educação Matemática
Modelagem Matemática em Tempos Pandêmicos: desafios, perspectivas e valores.
Porto Alegre – RS, 24 a 26 de agosto de 2023.
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se pode ler em Barbosa (2001), Almeida e Silva (2010), Araújo (2008, 2009), Forner e
Malheiros (2020) e em Malheiros, Souza e Forner (2021), e que propõe o foco da
atividade de modelagem matemática como sendo as discussões reflexivas nela gestadas,
criando a possibilidade de uma reação às situações sociais problemáticas, conforme
aponta Skovsmose (2001). Embora sejam estas discussões reflexivas, bem como as
possibilidades que delas decorrerem uma reação, um elemento necessário quando se
propõe um viés sociocrítico para a modelagem e se tem em vista o objetivo da
emancipação humana, principalmente no que diz respeito à determinação de uma prática
transformadora, algumas categorias da práxis social podem ser vislumbradas no
desenvolvimento de atividades de modelagem matemática.
Assim, no presente texto, é apresentado primeiramente um breve histórico da
caracterização de uma perspectiva sociocrítica para a modelagem matemática desde o
foco nas discussões reflexivas de Barbosa (2001) até a sua mais recente aproximação da
práxis por Forner e Malheiros (2020) e Malheiros, Souza e Forner (2021), destacando-se,
em seguida, o papel da práxis para a Educação Crítica de Freire (2021). Posteriormente,
delineia-se o que é a práxis, iniciando-se pelo seu modelo, pela sua protoforma, que é a
categoria de trabalho em Marx (1996, 1999, 2011). Em seguida, avança-se para a práxis
determinada não somente pela realidade natural, mas também pela realidade social,
conforme a exigência de se tomar a realidade em sua totalidade, consoante a algumas
proposições marxianas3. Sob esse prisma, analisa-se uma atividade de modelagem
matemática já relatada na literatura (SILVA, 2005). Por fim, propõe-se a modelagem
matemática como momento teórico da práxis regido por um momento prático ulterior,
ponderando-se implicações para o que se reconhece como ciclo do desenvolvimento de
uma atividade de modelagem.
3
O termo “marxiano” refere-se às formulações de Marx, enquanto o termo “marxista” refere-se às
formulações de seus intérpretes.
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“[...] inserção crítica e ação são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma
realidade que não leve a esta inserção crítica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade
objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro” (FREIRE, 2021, p. 53).
5
“[...] ser racional é identificado com dominar a matemática. [...]. Se isto pudesse ser identificado apenas
como parte de um processo perverso de aculturação, através do qual se elimina a criatividade essencial ao
ser [verbo] humano, poderíamos dizer que essa escolarização é uma farsa. Mas, na verdade, é muito pior,
pois na farsa, uma vez terminado o espetáculo, tudo volta ao que era. Na educação, a realidade é substituída
por uma situação falsa, idealizada e desenhada para satisfazer os objetivos do dominador. A experiência
educacional falseia situações com o objetivo de subordinar” (D’AMBROSIO, 2002, p. 75).
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“A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma” (MARX, 2013, p. 157).
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Mantem-se a palavra media conforme referência original. Entretanto, na língua brasileira a conjugação
correta do verbo mediar é, neste tempo e pessoa verbal, medeia.
8
“O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às
ilusões desprovidas de fantasia das robisonadas do século XVIII. [...] Quanto mais fundo voltamos na
história, mais o indivíduo, e por isso, também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como
membro de um todo maior [...].” (MARX, 2011, p. 39-40).
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tomar a práxis para além da relação entre homem e natureza na direção da totalidade da
realidade.
A práxis é a unidade dialética entre teoria e prática; a teoria, por sua vez,
compreende dois momentos. Um como uma modalidade peculiar de conhecimento entre
outras (como, por exemplo, a arte, o conhecimento prático da vida cotidiana),
distinguindo-se, todavia, dessas modalidades. A teoria, neste momento, corresponde à
[...] reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que
pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura
e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que constitui
propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e
verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto (NETTO, 2011, p.
21).
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“A questão de saber se cabe ao pensar humano uma verdade objetiva – não é uma questão de teoria, mas
sim uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o
poder, o caráter terreno de seu pensar. A controvérsia acerca da realidade ou não realidade do pensar – que
está isolado da práxis – é uma questão puramente escolástica.” (MARX, 2007, p. 27-28).
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Arquimedes utilizara o sistema de alavancas e polias para repelir invasores de Siracusa por meio do uso
de catapultas antes de utilizá-los para lançar ao mar um navio do rei Hiero (cf. BOYER, 1974).
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“Da sua tendência inerente a tornar-se independente da pesquisa dos meios na preparação e realização
do processo de trabalho se eleva, portanto, o pensamento cientificamente dirigido e procede mais tarde às
diferentes ciências naturais.” (LUKÁCS, 2018, p. 25). Tome ainda o exemplo de Arquimedes: “mesmo
quando lidava com alavancas e outras máquinas simples, ele estava muito mais interessado em princípios
gerais que em aplicações práticas” (BOYER, 1976, p. 89).
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Para Lukács (2018), a teleologia é uma categoria do pôr: implica o pôr de uma finalidade e, assim, uma
consciência que põe fins. Em uma perspectiva materialista, tal consciência só pode ser humana.
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próprio colégio, de modo que, para além das atividades na sala de aula, um conjunto de
tarefas e ações são realizadas por eles nos diferentes ambientes das instalações físicas.
A atividade diz respeito a uma modelagem matemática em que os próprios
estudantes abordaram na aula de Matemática o problema concernente ao acúmulo de
pratos no balcão de recepção de pratos para lavagem (chamado “lambe”) ao longo do
período das refeições. O problema é proposto pelos estudantes:
As refeições têm duração de uma hora. Três sinais sonoros são tocados
a fim de orientar os comensais com respeito ao horário; o primeiro sinal
quarenta minutos após o início das refeições, o segundo dez minutos
após o primeiro e o terceiro e último cinco minutos após o segundo. Em
geral os estudantes agem despreocupadamente até o segundo sinal, só
manifestando preocupação real de devolução dos pratos no terceiro
sinal. Este procedimento causa um acúmulo excessivo de pratos nos
minutos finais das refeições gerando alguma dificuldade para os
“lambistas” que se veem em apuros para dar conta do problema e evitar
o ‘congestionamento’. (SILVA, 2015, p. 74)
modelo na fase de validação, concluíram pela não eficiência da função para o estudo da
situação.
Dessa avaliação, seguiu-se uma mudança importante relativa às características da
situação. Primeiro, o processo de coleta de dados foi reavaliado. A partir da intervenção
do professor, os alunos passaram a ter clareza que o que deveriam contar não era a
quantidade de pratos que são depositados no “lambe” a cada 10min, mas a quantidade de
pratos já acumulados em cada tempo considerado. De fato, é justamente da quantidade de
pratos acumulados que se instaura a problemática da situação. Segundo, a característica
da situação levaria a considerar uma matemática em que, para a análise dos dados e
construção do modelo matemático, uma variável discreta seria adequada.
Considerando pn a quantidade de pratos acumulada em um instante n e a variação
da quantidade de pratos em cada unidade de tempo como (𝑝𝑛+1 − 𝑝𝑛 ), uma análise desses
dados leva a hipótese de que essa variação, no decorrer dos tempos observados, é
proporcional à quantidade de pratos já depositados em cada instante, ou seja, 𝑝𝑛+1 − 𝑝𝑛 =
𝑘𝑝𝑛
Por meio de um processo de recursão, foi obtido o modelo 𝑝𝑛 = 𝑝0 (𝑘 + 1)𝑛 . A
partir dos dados coletados, foram determinados os parâmetros 𝑘 e 𝑝0 , sendo obtido o
modelo 𝑝𝑛 = 69,9 ∙ (1,6)𝑛 . A validação do modelo, feita pela comparação dos dados
observados com os dados estimados, mostrou-se satisfatória, podendo-se usar o modelo
para as estimativas relativas ao acúmulo de pratos no “lambe” pretendidas pelos
estudantes. O pesquisador, então, questionou “alguma coisa que te surpreendeu ao fazer
o trabalho, alguma descoberta, alguma coisa que te chamou muita atenção?”, ao que foi
respondido:
A1 - Assim é... no caso.... A gente sabia que esse horário de pico existia,
mas eu não sabia que tinha um gráfico. Que tinha tipo, alguma coisa
que mostrasse, que provasse que isso realmente é verdade né, e... foi
aí que eu aprendi.
A2 - A gente conseguiu justificar isso matematicamente. Então isso foi
surpreendente por que [sic] a gente pensou assim: essa situação é
totalmente fora do normal. Então a gente esperava que não houvesse
uma explicação matemática, mas havia. (SILVA, 2015, p. 81 – ênfase
adicionada)
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A certeza sensível, na qual o sujeito tem o objeto imediatamente diante de si, é, de fato, a mais pobre.
Quando tenta dizer o singular, afirma só o universal. (HEGEL, 2014).
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“O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso,
o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
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embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da
representação.” (MARX, 2008, p. 258-259).
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Processo comumente retratado como um ciclo composto por fases, quais sejam: inteiração,
matematização, resolução, interpretação, validação e comunicação de resultados (ALMEIDA; CASTRO;
SILVA, 2021, p. 386).
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Em determinada atividade, um carro havia saído da estrada, sendo projetado em uma casa em nível
menor, alcançando o piso superior desta. A pergunta “o carro estava acima do limite legal de velocidade”
permite simplificações estratégicas que geram um modelo mais próximo de uma situação ideal de
lançamento de projétil do que a pergunta “qual era a velocidade do carro quando atingiu a casa?” (ver
GALBRAITH; STILLMAN; BROWN, 2017, p. 88-89)
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Ainda, na práxis social, que tem como finalidade a transformação de uma outra
consciência na direção de esta pôr outras finalidades, a modelagem matemática adquire
um caráter sociocrítico, pois a sua validação ocorrerá em termos de tendências e
contradentências. Por exemplo, a estratégia de conscientização sugerida na atividade
apresentada exige não somente que os estudantes reflitam acerca do papel da matemática
para compreender o problema, mas também o papel da Matemática na interação social de
tal modo que, a partir da exposição de uma argumentação com um certo rigor matemático,
estes sejam convencidos a mudar seus comportamentos.
Cumpre ressaltar que não se quer relegar à modelagem matemática um papel
acessório; deve-se tomá-la em seu duplo aspecto de meio e de fim. Para o indivíduo
singular em seu trabalho igualmente singular, a modelagem enquanto conhecimento para
busca dos meios de realização de suas finalidades está dominada e regulada por estas.
Porém, para a sociedade enquanto sociedade, o desenvolvimento da modelagem
matemática como fundamento dos meios de se concretizar a finalidade torna-se até mais
importante do que a própria satisfação da necessidade, similarmente com o que acontece
com o desenvolvimento do conhecimento científico. Por um lado, se “na medida em que
o meio é algo superior do que os fins finitos da conformidade exterior a fins” e que “a
ferramenta se conserva, enquanto os gozos imediatos perecem e são esquecidos”
(HEGEL, 2018, p. 227-228), mais ainda o conhecimento necessário à construção da
ferramenta permanece como algo superior para a humanidade, determinando-se nessa
relação como um fim. Mas, por outro lado, “a satisfação da necessidade, na sociedade
considerada como totalidade, tem igualmente uma duração e uma continuidade”
(LUKÁCS, 2018, p. 23), que determina a modelagem matemática como meio. Na medida
em que aquelas necessidades são sempre esquecidas pelo desenvolvimento tecnológico e
social, as ferramentas respectivas não se mantêm quando as novas necessidades
demandem que outras causalidades sejam postas. Assim que, na história da sociedade,
algumas necessidades determinam algumas finalidades as quais exigem certos meios e
ferramentas, alterando-se as forças produtivas e o modo de produção material da vida
social, bem como toda a superestrutura cultural que emerge dessa infraestrutura, surgindo
daí novas necessidades a partir de novas consciências determinadas pelo novo ser social17.
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“Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência” (MARX, 1999, p. 52).
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Esse movimento dialético demanda que o conhecimento acerca da busca dos meios, do
qual a modelagem matemática é parte, esteja constantemente conectado à práxis social.
Portanto, até o aprendizado de “competências” de modelagem não pode ser desvinculado
da práxis social, sob pena de tornar-se socialmente estéril e que perguntas recorrentes
como “para que eu preciso aprender isso?” se tornem meramente retóricas.
Considerações finais
Referências
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
_______. Pedagogia do Oprimido. 77. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021.
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FRANKENSTEIN, M. Reading the World with Maths: Goals for Critical mathematical
Literacy Curriculum, Capturado em 25 de julho de 2004, Online. Disponível em
http://www.nottingham.ac.uk/csme/meas/papers/frankenstein.html.
LUKÁCS, G. Para a ontologia do ser social. t. II. vol 14. tradução de S. Lessa. Maceió,
AL: Coletivo Veredas, 2018.
_______. Para a crítica da economia política. tradução de E. Malagodi. São Paulo, SP:
Nova Cultural, 1999.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. tradução de M. Backes. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira, 2007.