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O QUE É A PSICANÁLISE?

Texto escrito pelo psicanalista Tiago Ravanello,


Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ com
pós-doutorado em Psicologia Clínica na USP.

A psicanálise já havia se tornado razoavelmente conhecida na


década de 1920, sobretudo na Europa, quando a Enciclopédia Bri-
tânica solicitou ao próprio Sigmund Freud, enquanto criador e
principal propagador do método, a escrita de dois verbetes expli-
cando o que seria a psicanálise (e, ainda, a teoria da libido). Veja-
mos então, nas palavras de Freud, o que seria a psicanálise e, a
partir disso, tentaremos aprofundar a definição e compreender o
que gera tanta confusão na apreensão do termo, nos limites de
sua prática e no que concerne a sua aplicabilidade:
“PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para inves-
tigação de processos mentais que são quase inacessíveis por
qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investiga-
ção) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma cole-
ção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas,
e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.”
(FREUD, 1923/2006, p. 253).
Analisando detalhadamente a citação de Freud, podemos dizer
que sua definição inicial é a de pensar a psicanálise como um
método duplo de investigação. Dito de outra forma, a psicanálise
seria um método de pesquisa e um método de tratamento que é
derivado de um modo de pesquisa, ou ainda, em sua face de tra-
tamento clínico implica a coincidência entre a investigação como
um modo de promoção do cuidado à saúde mental. Enquanto
método de pesquisa, a psicanálise teria como pressuposto funda-
mental a tese de que o inconsciente determina nossos modos de
ser, nossas escolhas e nossos meios de repetição que repercutem
tanto nas nossas características pessoais quanto no nosso com-
portamento. Logo, tudo o que dizemos, as formas como agimos
e, inclusive, nossas decisões conscientes seriam diretamente in-
fluenciadas por uma outra lógica de pensamento, que chamamos
de inconsciente. Por ter (ou ser) outra lógica de pensamento, o
inconsciente não pode ser compreendido como apenas a falta de
consciência, como se fosse um pensamento que obedecesse as
mesmas regras porém que ocorreria sem o auxílio ou fora do al-
cance da consciência. Se bem entendido, é justamente por isso
que a psicanálise, em suas diferentes vertentes, não utiliza o con-
ceito de “subconsciente” (para evitar uma má compreensão de
uma dupla consciência, ou de uma consciência por baixo da cons-
ciência).
Contudo, se esse pensamento não segue as mesmas regras,
se ele não se organiza da mesma forma, ele precisa portanto de
outros meios para ser abordado. É nesse sentido que, antes de
tudo, a psicanálise se oferece como um meio de pesquisa e inves-
tigação, ou, mais especificamente, como um método de escuta.
Para o psicanalista, a utilização do método psicanalítico implica
“escutar” algo, seja um fenômeno social que é determinado por
elementos discursivos que precisam ser pesquisados, que não se
mostram em sua superfície consciente; seja um objeto da cultu-
ra, que implica em várias linhas de associações que se estendem
para além de uma face superficial; seja um sofrimento ou sinto-
ma, que se repete em suas formas de determinação para além do
que pode ser compreendido pela consciência.
QUAL A RELAÇÃO ENTRE PESQUISA E PSICANÁLISE?

É justo que chamemos de psicanálise o uso do método que visa


escutar elementos inconscientes de fenômenos ou processos so-
ciais, em sua face individual ou coletiva, desde que seja orientada
por uma concepção de inconsciente como determinante em rela-
ção ao pensamento consciente. Isso nos dá uma visão do que se-
ria a pesquisa psicanalítica, mas não necessariamente do que se-
ria sua aplicação clínica, ou seja, da psicanálise como um método
de tratamento. Nesse caso, a investigação parte do mesmo prin-
cípio, mas com outra aplicabilidade e com uma ligeira mudança,
mas que faz toda a diferença: na investigação clínica, o analista
oferece sua escuta, mas a investigação depende de um proces-
so ativo de produção de material por parte do analisando. Freud
deu a esse processo o nome de “associação livre”. Esse trata-
mento, que faz coincidir a busca pela causalidade inconsciente
com o tratamento oferecido poderia ser compreendido como um
tratamento baseado na verdade e seus modos de transformação,
ou, dito de outra forma, num encontro trágico consigo mesmo, já
que defrontar-se com o desejo inconsciente implica também em
estar frente-a-frente com tudo aquilo que habita em nós e que
faz conflito com os aspectos éticos, estéticos e morais de nosso
eu. Ao associar livremente, o analisando ou analisanda se propõe
a suspender quaisquer formas de seleção de material, de julga-
mento ou escolha consciente sobre o que será dito, o que Freud
chamou de “regra de ouro” do método psicanalítico. O ou a psi-
canalista entra nesse jogo com uma contrapartida, que seria um
modo especial de escuta que denominamos “atenção flutuante”.
Se para o analisando a regra é falar o que vier à cabeça, para
o analista a regra seria diferente, Freud a resumiu como o de-
ver de “flutuar sem submergir”. Isso porque a escuta do analista
não se orienta necessariamente pelo sentido do que é dito, mas
pela intensidade dos afetos que marcam o que é dito. O/a ana-
lista, portanto, flutua no dizer do seu analisando pontuando as
lacunas, indicando as repetições, colocando questões que levam
o analisando ou analisanda a também defrontarem-se com a face
inconsciente de seu discurso.
Revisando a citação de Freud, podemos então dizer que exis-
te pesquisa em psicanálise que não é clínica, mas que não existe
clínica em psicanálise que não seja também um modo de pesqui-
sa. Da mesma forma, podemos concluir que quando falamos de
“psicanálise” estamos falando de um campo de atuação científi-
ca que abarca essas atividades de clínica e pesquisa e, em parte,
provem daí uma certa dificuldade de compreensão da separação
entre esses âmbitos da experiência, sobretudo no que diz respeito
à formação. O motivo disso é que pressupõe-se que o método de
pesquisa com base na disciplina psicanalítica possa ser exercido
por pesquisadores de outras áreas, sem uma formação específica
que lhes autorize a nomeação de psicanalistas. Porém, o mesmo
não é válido quando se trata da atuação clínica, que demanda-
ria a formação de um analista para o exercício da prática.
Segundo Freud, a formação do analista se daria através de um
tripé composto por estudo teórico, atendimentos supervisionados
e um percurso próprio de análise do/da analista. E é justamente
quando se trata de formação que podemos perceber o quanto o
campo da psicanálise é mais vasto do que supomos inicialmente:
muito embora tenhamos um ponto de partida comum na obra
de Freud, o que nos permite retornar a textos fundamentais e a
um arcabouço teórico em volta dos artigos sobre metapsicologia,
as diferentes interpretações, apostas epistemológicas e desen-
volvimentos teóricos apontam para psicanálises diversas a par-
tir de leituras que marcaram historicamente o campo. Assim, os
autores que chamamos de pós-freudianos recortam o universo
conceitual freudiano com critérios diferentes, amarrando a trama
conceitual através de estruturas diversas de compreensão e, por
consequência, de ação e de formação. Interpretar é uma ação di-
ferente se seguimos a leitura lacaniana, kleiniana, winnicottiana,
ferencziana e etc.. Se as ações não são as mesmas, os caminhos
da formação e os modos de reconhecimento da mesma também
não. Logo, quando falamos de “psicanálise” para se referir a uma
leitura ou decisão teórica, estamos fazendo uma concessão de
síntese do termo, já que, mais corretamente, a psicanálise é uma
disciplina que comporta e abarca versões por vezes contrárias ou
contraditórias (exemplo semelhante quando falamos em “a” filo-
sofia ou “a” ciência).

QUAIS OS CRITÉRIOS PARA DEFINIRMOS SE UMA PRÁ-


TICA É OU NÃO “PSICANÁLISE”?

Se versões distintas são admitidas no interior do campo psica-


nalítico, quais seriam os critérios para que o movimento psicanalí-
tico tenha reconhecido determinadas releituras em detrimento de
outras? Em primeiro lugar, o campo psicanalítico parte do pres-
suposto de um aparelho psíquico dividido e em conflito (tan-
to interno quanto em relação à realidade ou aos outros). Logo,
não são admitidas como “psicanalíticas” versões holísticas ou
integrativas do sujeito, que visem a harmonia de um todo ou a
superação das divisões para a constituição de uma plenitude
do ser. Em segundo lugar, e em consequência disso, também é
fundamental que nesse processo de divisão, a prioridade seja
dada ao inconsciente. Dito de outra forma, faz-se necessário
que seja respeitada a tese freudiana do determinismo psíqui-
co e da sobredeterminação do inconsciente. Mesmo as decisões
tidas como conscientes se dão após os movimentos desejantes
do inconsciente e recortadas pelas censuras e defesas pré-cons-
cientes. Logo, em qualquer versão da psicanálise, repete-se o ato
fundador de Freud de descentramento do sujeito que reafirma
que o “eu não é senhor em sua morada”. Por fim, mas não menos
importante, a psicanálise é obrigatoriamente laica. Sua inserção
maior no campo do pensamento se dá na história de movimentos
científicos, que se asseguram de um método e que se localizam
no campo da linguagem intervindo em sujeitos no intervalo entre
o nascimento e a morte. Pressuposições ou hipóteses para além
ou aquém desse intervalo (a vida intra-uterina, vidas passadas, o
espiritual ou outras formas sacras ou transcendentais) não são
aceitas no interior da disciplina psicanalítica. Lembremos, como
exemplo maior, que a psicologia analítica de Carl Gustav Jung foi
criada justamente a partir da impossibilidade de inclusão no meio
psicanalítico de hipóteses que envolviam concepções integrati-
vas e/ou transcendentais.
Poderíamos dizer ainda que essas três premissas metodológi-
cas se desdobram em algumas orientações técnicas igualmen-
te importantes que seriam: a prevalência da fala como modo de
atuação, a impossibilidade de redução do psíquico ao orgânico e
o abandono da hipnose e da sugestionabilidade como meio te-
rapêutico. Vejamos esses três pontos de forma mais detalhada:
quando Freud afirma que a psicanálise constitui-se como uma
“cura através da fala”, uma “talking cure”, coloca-se em ação uma
aposta de que seu meio de ação será o da fala e que seu método
será organizado em torno de operações derivadas do campo da
linguagem. Assim, não são aceitas no campo (por serem contra-
ditórias ao método psicanalítico) abordagens que incluam ações
diretas sobre o corpo (exercícios de relaxamento, massagens, acu-
punturas, ervas medicinais e afins) ou sobre o ambiente (tarefas
designadas para a mudança de fatores do quotidiano, orienta-
ções do terapeuta dadas diretamente às pessoas que compõem
a rede de contatos do analisando ou a presença do analista no
convívio do analisando para fins terapêuticos). Em relação à im-
possibilidade de redução do psiquismo, a psicanálise trabalha ali-
nhada com uma orientação da concepção geral de clínica: cessa
a causa, cessa o efeito, logo, o tratamento deve ocorrer no mesmo
âmbito da causa. Por considerar os conflitos psíquicos na causa-
lidade dos sofrimentos e sintomas que são aptos ao tratamento
psicanalítico[1], a psicanálise tem por decisão metodológica evi-
tar a redução do psiquismo ao nível do funcionamento orgâni-
co, especialmente, o funcionamento cerebral. Isso não quer dizer
que a psicanálise não possa ser coadjuvante ou ter tratamentos
medicamentosos como uma estratégia clínica suplementar. No
entanto, suas teses obrigatoriamente não reduzem o psiquismo
à lógica do funcionamento neuronal ou a psicopatologia a uma
condição neurofisiológica. Em casos de trabalhos conjuntos, vale
a regra da interdisciplinaridade ou da multidisciplinaridade, sem
que haja necessidade de convergência das hipóteses causais (ou
mesmo diagnósticas).

E O QUE DEFINE A PRÁTICA CLÍNICA DA PSICANÁLISE?

O último ponto destacado talvez seja o mais significativo den-


tre os três e demarca uma especificidade do tratamento psica-
nalítico: ele ocorre tendo a transferência como seu motor, o que
somente é possível ao preço do abandono não somente da hip-
nose e outras formas de sugestionabilidade, mas também, aban-
dono de um ideal de sujeito definido positivamente. A transferên-
cia estabelece um modo de vínculo baseado nos afetos que são
projetados na figura do analista a partir da suposição de saber
que é feita sobre ele. Por isso, além da psicanálise ser uma cura
através da fala, Freud a define também como uma transforma-
ção através do amor. Na cena analítica, não estamos destinados a
apenas rememorar os fatos de nossa história, mas a repeti-los, e é
justamente por ser uma experiência afetiva que seus efeitos ultra-
passam os limites da consciência e produzem efeitos inconscien-
tes. Mas isso só pode ocorrer através de um movimento específico
de abstinência e de trabalho sobre o eu do analista. Passar do seu
eu para o lugar do analista é uma operação que demanda um
cuidado especial destinado à contratransferência, ou seja, a for-
ma como o analista se coloca na cena transferencial envolve um
modelo de destituição de suas fantasias e interesses pessoais que
demanda formação, análise e supervisão. O lugar do analista que
nos é designado por Freud constitui-se ao preço do abandono de
formas diretas de influência que levariam o analisando a um lugar
específico construído nas miragens do analista a respeito do que
seria saúde, desenvolvimento, sucesso ou o que quer que o valha.
O desejo do analista não deve ser o de que o analisando torne-se
algo que componha uma cartilha de saúde ou normalidade: o de-
sejo do analista é desejo de análise, cabendo ao analisando fazer
disso a síntese que lhe for mais eticamente alinhada ao seu de-
sejo inconsciente. Logo, se a influência do analista tornar-se dire-
cionada a um resultado previamente escolhido, sua técnica será
sugestiva ao invés de analítica.
RECAPITULANDO

A psicanálise é uma disciplina no interior da racionalidade cien-


tífica que possui um método de clínica e pesquisa. Este método
é baseado na tese de que o sujeito é dividido e de que o incons-
ciente sobredetermina a consciência e o pré-consciente. Enquan-
to método clínico, sua ação é baseada na fala dirigida ao analista,
compondo uma cena transferencial que implica numa experiên-
cia tecida de afetos, sendo altamente transformativa justamente
por seu poder de influência sobre o inconsciente. Mesmo partindo
de teses fundamentais de Freud (a divisão do sujeito, seu descen-
tramento e sua laicidade), a psicanálise enquanto campo permite
variações, desde que não sejam contraditórias em relação ao mé-
todo e que sigam premissas técnicas constitutivas do seu modo
peculiar de investigação, tais como a prevalência das funções da
fala em seu modo de ação, a não redutibilidade do psiquismo a
outras formas de ser e o abandono da sugestão como intervenção
terapêutica.

[1] Note-se que com isso não estamos reduzindo todas as for-
mas de sofrimento à causalidade psíquica, apenas assumindo os
limites do método: a psicanálise se destina ao tratamento de fa-
tores psíquicos e, por isso, usa meios que objetivam ações sobre
o psiquismo. Isso não impede, no entanto, que ela esteja presen-
te e componha modos de intervenção em instituições que visam
tratamentos de causalidade orgânica (como hospitais, unidades
básicas de saúde ou clínicas médicas, por exemplo). Nestas, a psi-
canálise irá contribuir com a escuta e cuidado em relação aos fa-
tores psíquicos envolvidos ou decorrentes de condições ou abalos
à saúde orgânica. Exemplo disso é o sofrimento psíquico vivido
com a recepção de determinados diagnósticos ou com as dificul-
dades implicadas em tratamentos dolorosos, em limitações im-
postas pelas condições de saúde entre outras.
Referências Bibliográficas

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JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan.
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ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge
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