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A PSICANÁLISE ÀS VOLTAS COM A PESTE

A PSICANÁLISE ÀS
VOLTAS COM A PESTE

PSICANÁLISE, BIOPOLÍTICA E A PANDEMIA DE CORONA VÍRUS

Organizadores
Eliane Costa Dias
Enzo Cléto Pizzimenti
Maria Lívia T. Moretto
Patrícia Burgos O. Leite
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia de Capa: Elizabeth McDaniel

A Editora Fi segue orientação da política de


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de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


DIAS, Eliane Costa; PIZZIMENTI, Enzo Cléto; MORETTO, Maria Lívia T.; LEITE, Patrícia Burgos O.
(Orgs.)

A psicanálise às voltas com a peste: psicanálise, biopolítica e a pandemia de corona vírus


[recurso eletrônico] / Eliane Costa Dias; Enzo Cléto Pizzimenti; Maria Lívia T. Moretto; Patrícia
Burgos O. Leite (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

222 p.

ISBN: 978-65-5917-594-9
DOI: 10.22350/9786559175949

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Psicanálise; 2. Biopolítica; 3. Pandemia; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 150
Índices para catálogo sistemático:
1. Psicologia 150
Agradecemos às autoras e autores que, a partir do nosso convite, produzi-
ram os trabalhos contidos neste volume. Agradecemos às pesquisadoras e
pesquisadores do Laboratório de Pesquisa Psicanálise, Saúde e Instituição
pela parceria na aposta em uma série de encontros que se configurou co-
mo importante espaço de reflexão sobre os impasses vivenciados no
enfrentamento da pandemia de corona vírus. Agradecemos, por fim, a
Eloisa Maranhão, pela generosidade e atenção no trabalho de revisão e di-
agramação da presente publicação.

Dedicamos esse trabalho às trabalhadoras e trabalhadores que atuaram no


enfrentamento da pandemia de corona vírus.
SUMÁRIO

PREFÁCIO 11
UM NOVO GIRO: A PSICANÁLISE DIANTE DA REALIDADE PANDÊMICA EM UM
MUNDO DIGITALIZADO
Ivan Ramos Estevão

APRESENTAÇÃO 17
1 19
HIPÓTESE SOBRE O CANSAÇO DA E NA PANDEMIA DE COVID-19
Maria Lívia Tourinho Moretto

2 35
PSICANÁLISE, BIOPOLÍTICA E A PANDEMIA DE COVID-19
Eliane Costa Dias

3 48
ATENDIMENTO PSICANALÍTICO ON-LINE: DA INTERROGAÇÃO DO DISPOSITIVO
CLÍNICO À CONSTRUÇÃO DE NOVOS SABERES
Wilian Donnangelo Fender

4 69
ATENDIMENTO ON-LINE COM CRIANÇAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: MUDANÇA DE
SETTING É MUDANÇA DE TRABALHO?
Marina Belém Lavrador
Laura Carrasqueira Bechara

5 86
AS FONTES DE MAL-ESTAR E A PANDEMIA: UMA EXPERIÊNCIA EM ENFERMARIAS
COVID-19
Amanda Sant'Anna
Luisa Moraes
Marcos Brunhari
Mariana Rabello
Priscila Mählmann
Vinicius Darriba
6 102
ACHAR PALAVRA: DO COMPARTILHAR AO DIZER NA EXPERIÊNCIA DE PSICÓLOGOS
HOSPITALARES DURANTE A COVID-19
Alyne Lopes Braghetto Batista
Layla Raquel Silva Gomes
Marcus Vinícius Rezende Fagundes Netto
Maria Lívia Tourinho Moretto
Paula Maia Peixoto Camargo
Thaís da Silva Pereira

7 120
“NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM”: SOBRE UMA POSSÍVEL REPOSTA DA
PSICANÁLISE PARA A ABORDAGEM DO SOFRIMENTO NAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE
Mayra Moreira Xavier Castellani
Maria Lívia Tourinho Moretto

8 142
TENSÕES E TENTAÇÕES DE (NEM) TUDO COMPREENDER: A PANDEMIA, OS
IMPOSSÍVEIS E SEUS TRATAMENTOS NA SAÚDE MENTAL
Enzo Cléto Pizzimenti
Ivan Ramos Estevão

9 158
REFORMA PSIQUIÁTRICA, PSICANÁLISE E CRISE: O LOUCO FRENTE À PESTE
Luciano Elia

10 179
SOBRE LOUCOS E VAGA-LUMES: UMA EXPERIÊNCIA NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
DURANTE A PANDEMIA PELA COVID-19
Larissa Guazzi Arenales

POSFÁCIO 195
A PANDEMIA E O INFAMILIAR: UMA RELEITURA DA TEORIA DA IDENTIFICAÇÃO
Marcelo Veras

REFERÊNCIAS 215
PREFÁCIO
UM NOVO GIRO: A PSICANÁLISE DIANTE DA
REALIDADE PANDÊMICA EM UM MUNDO
DIGITALIZADO
Ivan Ramos Estevão 1

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde de-


clarou o estado de disseminação do coronavírus no mundo: pandemia!
Já bem antes disso, se acompanhava o avanço da doença com reações
muito variadas das pessoas, das cidades, estados e países. Especialistas
debatiam, analisavam dados, faziam diagnósticos e prognósticos sobre
as formas de contágio, os modos de alastramento, os sintomas, as con-
sequências e as sequelas. Mais que isso, no entanto, fundamental: qual
a possibilidade de morrer ao ser contaminado? E as análises eram con-
flitantes, ambíguas, contraditórias...
Estávamos no instante de ver, diante do invisível de um vírus que
apontava para o furo no saber científico, e que nos colocava mundial-
mente na presença do Real da morte. E devíamos decidir, rápido, o que
fazer: trancar-nos em casa; tentar impedir a entrada do vírus em nos-
sos lares (assombrados pela tentativa, em vão, do príncipe do conto de
Edgar Alan Poe, “A máscara da morte rubra” 2); usar máscaras; lavar as
mãos; limpar, tudo, o máximo que desse. Essa era uma opção... Não nos

1
Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, professor do programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, membro do Laboratório de
Psicanálise e Sociedade do Instituto de Psicologia da USP.
2
Poe, E. A.: “A máscara da Morte Vermelha” in Contos de imaginação e mistério. São Paulo: Tordesilhas,
2012, trad. C. A. Leite.
12 • A psicanálise às voltas com a peste

ajudava os desatinos dos líderes, que tentavam fazer uso político da


situação, ou que estevam temerosos com as consequências da pande-
mia em termos de sua popularidade, e que tomavam medidas e faziam
pronunciamentos com informações equivocadas, ampliando os efeitos
desamparadores que a pandemia, em si, já produzia.
Entre o dia 11 de março, uma quarta-feira, e a segunda-feira se-
guinte, dia 16, muitas decisões foram tomadas. Esse foi o intervalo que
estabeleceu o tempo de entender, mesmo que com informações falto-
sas, números ainda por levantar, dados a serem trabalhados... Mas, no
dia 16 de março, pessoas, instituições, empresas, estados, governos já
haviam decidido que o isolamento era uma forma importante e possí-
vel de se lidar com a pandemia. A China e, depois, a Itália nos davam
indícios dos horrores da pandemia que poderiam vir – e vieram. Mas
daí se escancaravam algumas questões do lado dos psicanalistas: quais
os efeitos do isolamento e da pandemia, que a Psicanálise poderia tra-
tar, e de que forma?
A Psicanálise já era um saber constituído quando houve tragédias
globais anteriores: os psicanalistas viveram a Primeira Guerra Mundi-
al, logo depois a pandemia de gripe espanhola; e, ainda, a Segunda
Guerra Mundial, além de diversos outros momentos importantes de
conflitos, mortes e doenças regionais, não obstante, impactantes. Fe-
nômenos mentais foram conceituados e pensados à luz destas
tragédias, além de se ampliarem os modos de tratamento. Note-se a
neurose de guerra 3, variação da neurose traumática que tem as vivên-
cias violentas de guerra como seu desencadeante, e que permitiu a
Freud pensar os sonhos traumáticos, que escapam da regra inicial de

3
Freud, S. (1917): “A fixação no trauma, o inconsciente” in Obras completas, volume 13. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014, trad. S. Tellaroli.
Ivan Ramos Estevão • 13

que todo sonho é uma realização de desejo. Esse caminho que culmi-
nou em uma nova teoria do trauma, e uma reformulação da ideia de
repetição, abriu uma das trilhas para sustentar a controversa concep-
ção freudiana de pulsão de morte 4.
Também, a guerra trouxe à tona as questões dos fenômenos de
massa e de grupo, como o experimento de grupo realizado por Bion na
Segunda Guerra, que é, posteriormente, elogiado por Lacan como o
avanço pós-freudiano à teoria dos grupos 5.
Em março de 2020, a Psicanálise está consolidada de outra forma
em relação ao pós-Segunda Guerra: disseminou-se por vários países;
os psicanalistas criaram e fortaleceram Escolas de formação que estão
amadurecendo e aumentando o alcance da Psicanálise em intenção e
em extensão; há, já, um quadro interessante, de diversas orientações,
dialogando entre si; além de ser um campo de estudo e pesquisa con-
sagrado em várias universidades. A Psicanálise é tida, por muitos,
como um instrumento valoroso e potente de tratamento do sofrimento
humano que está presente nos consultórios; mas, cada vez mais, para
além dele: é uma realidade nas instituições de saúde mental, nos hos-
pitais, nas escolas, na rede de saúde pública e privada de vários países,
e adentra o campo do debate político, social e cultural. No Brasil, está
sendo popularizada cada vez mais, e o debate para torná-la acessível
está aceso (como, bem, Freud preconizava).
Nesse sentido, a Psicanálise comparece como um recurso impor-
tante no combate ao Coronavírus e suas consequências, seja no
sofrimento mental ou físico que ele engendra. Mas isso exigiu um novo

4
Freud, S. (1920): “Além do princípio de prazer” in Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014, trad. P. C. L. de Souza.
5
Lacan, S. (1947): “A psiquiatria inglesa e a guerra” in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Trad.
V. Ribeiro.
14 • A psicanálise às voltas com a peste

giro na história da Psicanálise. Esse livro trata justamente desse giro,


essa nova volta que, em um movimento espiralado, ressitua o ato ana-
lítico e a teoria que dele advém, em outro ponto. A Psicanálise se vê às
voltas com a realidade pandêmica em um mundo digitalizado.
No 16 de março, as clínicas foram repensadas de uma vez. Se a
ideia do atendimento on-line estava engatinhando – mas, claramente,
vinha ganhando contornos maiores – ali surge a temporalidade do
Kairós, o momento oportuno para que ela se firme. Da noite para o dia,
como numa asserção da certeza antecipada, os psicanalistas passaram
a fazer, maciçamente, atendimentos on-line. Precisou-se, primeiro,
agir, para depois pensar; e, com isso, uma miríade de perguntas foram
lançadas: qual o lugar da transferência, do olhar daqueles que estavam
deitados nos divãs, nas análises on-line? Mais que isso: e as análises
infantis? E os adolescentes?
Questões mais técnicas foram postas: para os lacanianos, como
efetuar corte da sessão? Há livre associação se não há privacidade, com
o receio de que parentes, cônjuges e amigos escutem a sessão no quar-
to ao lado? Sessões feitas andando na rua, no banheiro, no carro
estacionado na garagem começaram a se tornar comuns e cabia pensar
o que isso tem de efeito naquelas análises.
Pontos que, até então, estavam estabelecidos entre os psicanalis-
tas de diversas abordagens, são colocados em dúvida: e o corpo
presente do analista? Como fazer o pagamento das sessões que não no
clássico “em dinheiro, por sessão”?
Mas, mais que isso, a pandemia se configura como um fator global
de encontro com o Real pela via da doença e da morte. O horror do
aumento dos contágios, das mortes, das previsões desencontradas e
muitas vezes catastróficas, e do não-saber que ficava no ar, em vários
Ivan Ramos Estevão • 15

momentos sem ser dito, mas vivido no tensionamento do corpo. Aos


poucos, outra pandemia começa: a de sofrimento mental. Se a lotação
dos hospitais foi se tornando uma realidade, até o ápice em que pesso-
as passaram a morrer sem poder ser atendidas, entubadas sem serem
sedadas, começou a lotação das clínicas psicanalíticas: todo dia alguém
pedia uma indicação de analista e a cada vez mais difícil encontrar
colegas para indicar, pois já não tinham mais horários.
Isso vai se tornando um efeito secundário da pandemia, que Mo-
retto aborda bem no seu artigo neste livro: o cansaço. Se já estávamos
nos tornando uma sociedade do cansaço, agora isso assume outro pa-
tamar e afetava brutalmente os agentes de saúde, os psicólogos e os
psicanalistas, e a população em geral. Mesmo assim, a Psicanálise não
recua: abrem-se frentes de atendimento em diversos grupos que ofer-
tam a escuta para quem procura. A ideia de emergência, mas
principalmente de urgência, ganha mais estofo entre os psicanalistas.
Se escuta nas enfermarias, nos hospitais, nas casas, nas ruas, uma
escuta que permite dar um lugar ao sofrimento que advém com o en-
contro do Real pandêmico.
Conceitos conhecidos da Psicanálise vêm em nosso auxílio para
poder sustentar essa escuta: o que os psicanalistas ouvem, diz respeito
ao aspecto da temporalidade que se altera, muitas vezes congelando-se
e apontando para a dimensão imaginária da ideia de futuro. O Real é o
próprio presente, o momento atual, que, no isolamento, para alguns se
converteu em um “dia da marmota”, obliterando as possibilidades
futuras que servem de suporte diante da angústia; escutam, também, a
dimensão do sofrimento presente nas formas do traumático, do luto e
da morte; escutam os modos de loucura de cada um, que se converte
em sofrimento diante do desamparador pandêmico; mais ainda, escu-
16 • A psicanálise às voltas com a peste

tam as modalidades de aflição psíquica que são amplificadas pelas


formas de gestão política e social da atualidade.
Escuta o sujeito do inconsciente, e lhe permite produzir formas
outras de existência, modos outros de poder dizer do seu sofrimento e
de operar com o furo que o Real faz em suas certezas imaginárias.
Furos, esses, que a pandemia escancara. Nos diversos textos, encon-
tramos a retomada das formas de sofrimento enumeradas por Freud
em “O Mal-Estar na Cultura”: o desamparo diante das forças naturais
(pandemia); o padecimento do corpo (doença); o laço social (a gestão
social e política). A pandemia coloca toda essas formas em destaque.
Ao longo dos seus capítulos, esse livro apresenta o resultado de
todo um esforço de psicanalistas em dar um destino às produções que
a pandemia incitou, sendo um acervo para se pensar o tempo pós-
pandêmico. Neste sentido, pensa-se o laço social na pandemia, a Psi-
canálise on-line, a Psicanálise nas instituições, e o que pode a
Psicanálise diante da gestão política que assola o país e, em parte, do
mundo. Nisso, o livro se converte em um momento de concluir que,
sabemos, abre para um novo instante de ver.
APRESENTAÇÃO
Eliane Costa Dias

Em março de 2020, a chegada da pandemia de corona vírus alterou,


drasticamente, o cotidiano da existência no mundo, acarretando inten-
sos efeitos no campo da saúde pública, das relações sociais e
intersubjetivas, da vida política e econômica das nações. Como psicana-
listas e pesquisadores, nos confrontávamos com o desafio de identificar
e tentar compreender o que estava sendo vivido e, ao mesmo tempo,
com a necessidade, talvez urgência, de contornar os impasses e forjar
respostas, invenções, tentativas de soluções para dar continência ao
sem-sentido que nos colocou diante de uma situação de sofrimento
generalizado, ainda que cada pessoa sofra de modo singular.
Quais as contribuições da psicanálise para a abordagem da pande-
mia e de seus efeitos? Qual o lugar do psicanalista em meio à crise e à
urgência subjetiva evocadas por essa contingência? O que está sendo
gerado a partir da gestão dessa pandemia?
Questões que tocam diretamente o eixo central de investigação e de
atividades do Laboratório Psicanálise, Saúde e Instituição (LABPSI-USP) -
um Laboratório de pesquisa coordenado pela profa. Titular Maria Lívia
Tourinho Moretto, junto ao Departamento de Pós-Graduação do Institu-
to de Psicologia da USP e que tem como principal linha de pesquisa a
articulação entre a psicanálise, o campo da saúde e as instituições.
Essa publicação reúne uma coletânea de artigos que refletem as
respostas propostas pelo LABPSI-USP frente à condição de isolamento
18 • A psicanálise às voltas com a peste

social que o enfrentamento da epidemia impôs, configurando um espaço


de discussão e reflexão sobre as questões e os impasses vivenciados no
enfrentamento da epidemia de Covid-19, seja na linha de frente dos
serviços de saúde encarregados da assistência à população afetada, seja
na continuidade da prática clínica em psicanálise, atravessada pela “es-
colha forçada” pelo dispositivo de fala virtual.
Momento de formalizar e transmitir a experiência e o que dela po-
demos extrair de ensino. Momento de concluir que relança questões e
nos coloca novamente no instante de ver e no tempo de compreender, a
vida e as relações que se definem após esse duro encontro com o real.
1
HIPÓTESE SOBRE O CANSAÇO DA E NA PANDEMIA
DE COVID-19
Maria Lívia Tourinho Moretto 1

INTRODUÇÃO

Do ponto de vista psicológico, a pandemia de Covid-19, anunciada


pelo diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Sr. Tedros Adha-
nom Ghebreyesus, no dia 11 de março de 2020, é um acontecimento que
tem funcionado como uma espécie de marco simbólico na vida de mui-
tas pessoas, no sentido que representa um corte na linha do tempo de
suas vidas, produzindo um antes e um depois da pandemia.
Por ser um acontecimento disruptivo, em vários sentidos, pode
produzir diversas e complexas consequências, em diferentes âmbitos.
Nas instituições de saúde é significativo o aumento da demanda ende-
reçada aos profissionais da Saúde Mental – psicólogos, psicanalistas e
psiquiatras – em função do aumento expressivo de manifestações de
sofrimento intenso em situações extremas e da evidência de indicado-
res de sintomas no âmbito da Saúde Mental (Faro et al, 2020; Dantas,
2021).
Nota-se, assim, a importância de produzirmos subsídios teórico-
clínicos para que os profissionais de saúde ampliem, eles próprios,
suas possibilidades de construção de estratégias de cuidado e de au-
tocuidado, especialmente em situações de sofrimento intenso em

1
Psicanalista, Professora Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Coordenadora do Laboratório de Pesquisas “Psicanálise, Saúde e
Instituição” (LABPSI) do IPUSP, e-mail: liviamoretto@usp.br
20 • A psicanálise às voltas com a peste

situações extremas (tais como desastres, catástrofes e pandemias),


considerando o potencial traumático de tais situações (Fundação Os-
waldo Cruz, 2020).
Esse capítulo tem o objetivo de apresentar uma parte do trabalho
dos pesquisadores do Laboratório de Pesquisas “Psicanálise, Saúde e
Instituição” do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (LABPSI-USP), por mim coor-
denado, trabalhando como psicanalistas nos hospitais brasileiros, no
contexto da pandemia do Covid-19, dando ênfase à abordagem psica-
nalítica do sofrimento de pacientes, seus familiares e dos próprios
profissionais das equipes de saúde, especialmente em situações nas
quais o sofrimento se manifesta sob a forma de cansaço.
Para tanto, partiremos de uma breve contextualização da situação
atual da pandemia no Brasil, uma vez que adoecer no Brasil não é a
mesma coisa de adoecer em qualquer outro país que considere a saúde
pública como um bem coletivo. Na sequência, apresentamos a diferen-
ça conceitual entre sofrimento e sintoma, ressaltando a importância
de tal diferença para a formação dos profissionais de saúde, uma vez
que a não diferenciação pode levar ao processo de patologização do
sofrimento e, consequentemente, à medicalização do mesmo, o que
não equivale, necessariamente, ao seu tratamento.
A partir dessa diferença proposta, ressaltamos que a escuta, fren-
te a situações potencialmente traumáticas, é um elemento potente na
abordagem do sofrimento, especialmente quando se faz a diferença
entre simpatia e empatia no campo da Saúde.
Considerando que a pandemia do Covid-19 é um acontecimento
disruptivo e, enquanto tal, exige um esforço psíquico extraordinário
para “acomodar” esse fato na vida das pessoas, sustentamos o princi-
Maria Lívia Tourinho Moretto • 21

pal argumento desse trabalho: a partir da hipótese de que o cansaço é


uma das formas de manifestação do sofrimento e que, para tratar des-
se sofrimento intenso, que se expressa pela via do cansaço, e evitar que
ele se transforme em sintoma, é fundamental que, no tratamento des-
se problema, consideremos a importante diferença entre cansaço
como excesso de trabalho e cansaço como trabalho psíquico com o
excesso pulsional na busca de elaboração psíquica.
Espera-se, ao final, que o trabalho represente uma contribuição
original para a compreensão da diferença entre essas duas hipóteses e,
consequentemente, um avanço no campo das intervenções clínicas
possíveis na direção do tratamento do problema aqui apresentado.

1. A PANDEMIA DO COVID-19 NO BRASIL

A título de contextualização: o Brasil é um país de dimensões con-


tinentais, com uma área de 8.516.000 km², com cerca de 212,6 milhões
de habitantes, e que, desde o início da pandemia, até fevereiro de 2022,
ultrapassou o número de 645 mil mortos em função da doença (Minis-
tério da Saúde, 2022). O país é governado por um presidente que
menospreza publicamente a gravidade da doença; desconfia aberta-
mente das pesquisas científicas; defende a ineficácia das vacinas e
retardou, até quando pôde, o início da vacinação no país; incentiva os
brasileiros a saírem de casa sem máscara; se coloca contra o distanci-
amento social, e que vai, ele próprio, para as ruas, sem máscara,
promover aglomeração (The Lancet, 2020). Apesar de tudo isso, até o
presente momento, 72,2% da população brasileira está totalmente va-
cinada e 28,6% receberam uma dose de reforço (University of Oxford,
2022).
22 • A psicanálise às voltas com a peste

Estamos entrando no terceiro ano da pandemia, e a análise desse


contexto temporal nos ajuda na compreensão do problema, do ponto
de vista psicológico. Digamos que o primeiro ano, o tempo do anúncio
da pandemia e da constatação de sua força devastadora, corresponde
ao que temos chamado de “tempo da surpresa”, tempo no qual o cará-
ter disruptivo da pandemia se tornaria evidente, e assim, o Covid-19 se
impôs como uma realidade dura, cobrando de todas as pessoas um
posicionamento para enfrentá-la.
Sem que o “tempo da surpresa” tivesse se concluído, impôs-se,
imediatamente, por recomendação explícita das autoridades sanitárias
mundiais, o confinamento e o distanciamento social como únicos mei-
os eficazes para o enfrentamento da pandemia naquele momento, o
que corresponde ao que temos chamado de “tempo da renúncia”, que
se caracteriza por uma série de sacrifícios que cada pessoa se propôs a
fazer em troca de segurança, o que nem sempre correspondeu a con-
forto, para muitos.
É certo que o confinamento e o distanciamento social não ficam
sem consequências. Mas se seus efeitos podem ser mensurados no
âmbito do controle da pandemia, nem sempre é fácil mensurá-los no
campo da Saúde Mental, especialmente em situações nas quais as pes-
soas referem-se ao confinamento como uma experiência de punição e
de privação pessoal, e não como uma experiência privilegiada de pro-
teção comunitária.
Nesse “tempo da renúncia”, a grande maioria dos profissionais de
saúde brasileiros não recuou diante da difícil tarefa de enfrentar um
“inimigo desconhecido”. A maior parte renunciou à convivência com a
própria família, em nome de protegê-la da alta possibilidade de con-
taminação, ainda que essa renúncia fosse da ordem do sacrifício.
Maria Lívia Tourinho Moretto • 23

O aumento expressivo do número de hospitalizações significou,


em diversos momentos, o colapso da capacidade do Sistema de Saúde
para atender às demandas da população, uma vez que o número de
doentes que precisava de internação hospitalar ultrapassou em muito
a capacidade de leitos, tanto nos hospitais públicos quanto nos hospi-
tais privados (Noronha et al., 2020).
A crise sanitária em si, o aumento indefinido e crescente das ho-
ras extras de trabalho, junto à gravidade dos casos atendidos, ao
desespero de pacientes e familiares, ao medo da contaminação e ao
medo de contaminar os seus próprios familiares foram elementos que
contribuíram, significativamente, para a sobrecarga física e emocional
dos profissionais da equipe de saúde (Teixeira et al, 2020).
Não é difícil compreender que, na pandemia, a demanda ao traba-
lho dos psicólogos tenha aumentado tão significativamente, tanto
quantitativamente quanto com relação às demandas de abordagem do
sofrimento de pacientes, familiares e da sobrecarga emocional dos
próprios profissionais de saúde, eles próprios em sofrimento também
(Capoulade e Pereira, 2020).
As diversas Rodas de Conversa que fizemos para escutar os dife-
rentes profissionais da saúde nos fizeram atentar, também, para a
dimensão sociopolítica do sofrimento deles. Um dos recursos psíquicos
mais importantes para o enfrentamento de qualquer situação de crise
é a busca por referências simbólicas com função de orientação. É nesse
sentido que, em crise, buscam-se pessoas, grupos e/ou instituições que
inspiram admiração e respeito, justamente porque confiar é um ato, de
resistência, que tranquiliza.
Numa situação de pandemia, recorre-se, em sofrimento, a autori-
dades sanitárias de um país. Mas, e quando nessa busca, o que se
24 • A psicanálise às voltas com a peste

encontra é um discurso que nega esse sofrimento, um discurso que


menospreza a dor? E quando, diante do aumento expressivo do núme-
ro de contaminações por um vírus que mata, o que se encontra é um
discurso que menospreza a gravidade da doença, ao mesmo tempo que
banaliza a morte? E quando, frente a mais de cinco milhões de pessoas
enlutadas pela perda de seus entes queridos para a Covid-19, o que se
encontra é o desprezo ao processo coletivo do luto?
Em um contexto de crise sanitária, no qual os indivíduos recor-
rem às autoridades e nelas encontram um discurso que divide, e não
que une, um discurso que fomenta afetos como o ódio, como o ressen-
timento, um discurso que rompe com o pacto social de coletividade e
culpa os próprios indivíduos, seja pelo seu sucesso, seja pelo seu fra-
casso, encontramos uma sociedade cuja tendência é, num primeiro
momento, perder a força para a promoção de cuidados preventivos e,
em última instância, diante das mortes sucessivas e crescentes, perder
a força para a necessária elaboração de seus lutos. E nós sabemos que,
sem elaboração de lutos, teremos uma sociedade melancólica, sem
força para a luta, o que, em última instancia, produz o esgarçamento
no tecido social (The Lancet, 2020).
Vivemos no Brasil um movimento negacionista que, muito mais
do que negar a Ciência, é um movimento político de produção delibe-
rada de ignorância (Leonel, 2020), que sustenta a oposição obscena
entre vida e economia. É nesse contexto que temos nos ocupado das
demandas de cuidado, vindas dos profissionais da Saúde, nos hospitais
brasileiros, pois nesse processo de luta contínua pela sustentação do
discurso científico, na defesa pela vida, embora exaustos e sobrecarre-
gados, eles permanecem incansáveis, no sentido de fazerem valer a
noção de saúde como um bem coletivo, e no avanço da realização de
Maria Lívia Tourinho Moretto • 25

pesquisas científicas de excelência e alta relevância para o mundo


(Zimerman et al, 2020).

2. SOFRIMENTO, SINTOMA E ESCUTA

A primeira vez que eu entrei em um hospital para trabalhar, ain-


da como estagiária no curso de Psicologia, foi no ano de 1984. Eu posso
afirmar, com segurança, que ao longo desses quase 37 anos, ininter-
ruptos, trabalhando nos hospitais, que nunca vi nada parecido com o
que aconteceu nos hospitais brasileiros a partir de março de 2020. A
pandemia nos colocou, portanto, diante de uma situação de sofrimento
generalizado, ainda que cada pessoa sofra de modo singular.
Há o sofrimento dos que aderiram ao confinamento e sentem, em
seus corpos, os efeitos desse confinamento prolongado. Há os que
sofrem porque precisaram sair para trabalhar e saíram tomados pelo
pavor de se contaminar e morrer. Há os que sofrem porque adoece-
ram; há o sofrimento dos familiares dos que adoeceram; há os que
sofrem porque perderam seus queridos, sem ter direito à despedida.
Há o sofrimento dos familiares dos profissionais de saúde, que, do meu
ponto de vista, ainda têm recebido pouca atenção dos pesquisadores.
Há o sofrimento dos profissionais de saúde, sobre o qual nos ocupamos
neste trabalho. E há, também, o sofrimento dos profissionais psicólo-
gos que trabalham em hospital (sim, os psicólogos também sofrem...
por quê ficariam de fora?), que foi objeto de nossa pesquisa no Projeto
“Achar Palavra” 2, desenvolvido no período de 2020-2021, em parceria

2
O projeto “Achar Palavra” teve início a partir da demanda de psicólogos hospitalares atuantes na
pandemia do Covid-19, para quem oferecemos um espaço virtual em que pudessem, eles mesmos,
falar e compartilhar conosco suas experiências de trabalho; o que sabem, o que não sabem e,
principalmente, suas dificuldades frente à complexidade das situações clinico-institucionais no
26 • A psicanálise às voltas com a peste

entre o LABPSI-USP e a Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar


(SBPH).
Qual a diferença entre sofrimento e sintoma, e por que essa dife-
rença nos interessa (Moretto, 2019)?
Ao tentar definir sofrimento, Freud (1930/1974) afirma, no texto
“Mal-estar na civilização”, que o sofrimento é derivado de três fontes:
do próprio corpo (por meio do processo de adoecimento e/ou de deca-
dência do corpo), do mundo exterior (que pode se voltar contra nós
com forças de destruição esmagadoras e impiedosas), e da relação com
os outros homens (supondo que esta última seja a mais penosa, entre
as três fontes mencionadas).
É curioso como, em tempos de pandemia, a definição de Freud é
potente e, nela, essas três fontes parecem se sobrepor. Pessoas adoe-
cem de uma doença que pressupõe, de partida, um risco à vida;
estamos todos submetidos a um vírus brutal, desconhecido, que, ao se
alastrar, alastra também pavor e tensão, sem que se saiba, ao certo,
como vencê-lo; e a pandemia põe em xeque todas as relações entre os
homens, especialmente lembrando-lhes as vantagens e desvantagens
das noções de individual e de coletivo.
O sofrimento, então, para além de uma reação aos acontecimen-
tos, é uma experiência que expressa a posição do sujeito na relação
consigo mesmo, com o mundo externo e com os outros homens (Mo-
retto, 2019). Lacan (1965-1966/2018), ao tentar delimitar o campo de
intervenção da Psicanálise, supõe que há uma verdade no sofrimento,
mas a verdade do sofrimento é o sofrimento ele mesmo.

contexto da pandemia. Inscreveram-se, no Projeto, 1824 psicólogos hospitalares, de hospitais públicos


e privados, de diferentes cidades brasileiras, de todas as regiões do Brasil.
Maria Lívia Tourinho Moretto • 27

Já o sintoma, na concepção freudiana, é uma construção do apare-


lho psíquico que visa à resolução de um conflito intrapsíquico, é uma
formação de compromisso; portanto, traz uma verdade cifrada que
exige interpretação para ser “resolvida” (Freud,1917/1974). Nesse senti-
do, diferentemente do sintoma, o sofrimento não tem uma estrutura
de metáfora a ser decifrada, e a verdade do sofrimento depende de ele
ser contado e reconhecido numa relação (Lacan, 1966/1998), o que de-
finiria a própria atividade do psicanalista.
O sofrimento tem a característica de se transformar, na medida
em que é contado, que é reconhecido, que é escutado. O mesmo não
acontece com o sintoma, necessariamente (Dunker, 2015). A clínica nos
indica, com frequência, que a forma pela qual escutamos as pessoas faz
com que elas valorizem o que dizem. Nesse sentido, a falta de uma
figura de alteridade capaz de reconhecer o sofrimento diminui, signi-
ficativamente, a chance dele ser tratado (Moretto, 2019).
Fato é que, se a verdade do sofrimento é o sofrimento ele mesmo,
o sofrimento não reconhecido, silenciado, tende a se tornar sintoma,
esse que traz consigo uma verdade a ser decifrada. Isso não está disso-
ciado do que indicam as pesquisas: no âmbito da pandemia do Covid-
19, o aumento significativo do sofrimento é acompanhado do aumento
expressivo de sintomas no campo da Saúde Mental (Gaudenzi, 2021).
Nota-se, assim, a importância de instrumentalizarmos os profis-
sionais de saúde com relação à temática do sofrimento em situações
extremas, uma vez que diminuir o sofrimento na instituição de saúde
não é uma tarefa individual, e exige reflexão coletiva. É preciso escutar
o sofrimento antes que ele evolua para se transformar em sintomas, às
vezes, mais difíceis de tratar.
28 • A psicanálise às voltas com a peste

Eis a importância do trabalho da escuta na abordagem do sofri-


mento. Mas vale lembrar que o fato de dar voz às pessoas não é o que
define o modo pelo qual elas serão escutadas (Moretto, 2019). Então,
que trabalho é esse que, por meio da escuta, transforma sofrimentos?
Quais são as condições que alguém precisa ter para escutar os outros?
Como é que sabemos que está havendo escuta?
Dunker e Thebas (2019), em um interessante trabalho que indica
como escutar as pessoas pode transformar vidas, indicam que, para
que sejamos bons escutadores, ou seja, se realmente queremos escutar
o outro, precisamos: 1) estar em dia com a diferenciação entre “eu” e
“outro”; e 2) abrir mão e recuar do exercício de poder inerente ao nos-
so papel na hierarquia institucional. A escuta começa pela suspensão
dos mandos, dos saberes prévios, da antecipação de sentido. O saber
está do lado de quem fala.
Quando realmente nos dispomos a escutar o outro, o sofrimento
aparece. Tanto o de quem fala, quanto o de quem escuta. Então, preci-
samos, antes de tudo, sermos capazes de reconhecer nossas
fragilidades, entendendo que esse reconhecimento é o que nos faz
capazes de reconhecer, também, nossos alcances e nossos limites.
Mas se queremos que as coisas andem melhor e se resolvam com
mais brevidade, principalmente em situações de urgência e emergên-
cia (Calazans e Bastos, 2008) – nas quais precisamos mais de calma do
que pressa para agir com assertividade –, então é preciso que escute-
mos, uns aos outros, de forma empática.
Nesse contexto, faz parte de nosso trabalho, na vertente da for-
mação dos profissionais de saúde, que criemos oportunidades para
discutirmos, refletimos e exercitarmos a escuta empática, que é dife-
rente da escuta simpática, uma vez que esta última é aquela que nos
Maria Lívia Tourinho Moretto • 29

permite escutar sentindo como o outro (pela vertente da identifica-


ção), e, a primeira, é aquela que nos permite escutar sentindo com o
outro (pela vertente da diferenciação, pois, para escutá-lo, preciso me
diferenciar dele de tal modo que lhe transmita algo do tipo: “pode falar
que eu te escuto, pois há um lugar para você em mim.”) (Dunker e The-
bas, 2019).

3. O TEMPO DO CANSAÇO: HIPÓTESE CLÍNICA E INTERVENÇÕES

Em todas as oportunidades que fomos demandados a escutar os


diferentes profissionais de saúde nos hospitais, abrimos espaços de
fala compartilhada para escutá-los.
Nesses espaços de fala, compartilhado, diagnosticamos dificulda-
des; ofertamos suporte teórico e instrumental; construímos e/ou
aperfeiçoamos protocolos; construímos estratégias de gestão de servi-
ços; estratégias de cuidado aos pacientes/familiares; e estratégias de
autocuidado.
Em um primeiro momento, os profissionais de saúde usufruíram
desse espaço, sobretudo, como um lugar de acolhimento, muitas vezes
referindo sentirem dificuldades para achar palavras que definissem o
que estavam experimentando no contexto da pandemia (isso tem rela-
ção com a escolha do título do Projeto “Achar Palavra”, citado
anteriormente).
No início, era evidente como o ineditismo da situação de intenso
sofrimento, no hospital, exacerbou a já conhecida dificuldade de ma-
nejar os aspectos da subjetividade na cena institucional (que,
habitualmente, era atenuada pelos encaminhamentos de pacientes aos
serviços de Psicologia do hospital), exigindo deles um posicionamento
30 • A psicanálise às voltas com a peste

diferente do habitual, uma vez que estavam, eles próprios, em sofri-


mento, também. Para muitos, isso significou uma experiência de
sobrecarga de trabalho que se sobrepunha a uma sobrecarga de afetos,
acompanhada de muita angústia.
Em diversas situações, foi preciso pedir que se acalmassem, lem-
brando-lhes que “se acalmar” é algo que ninguém pode fazer pelo
outro, a não ser eles mesmos. Na sequência, foi necessário trabalhar-
mos juntos a importância do autocuidado – que alguns confundiam
com egoísmo – antes mesmo de pensar em construir estratégias de
cuidado para pacientes e familiares. O primeiro passo para o autocui-
dado deveria ser, naquela situação, o reconhecimento do próprio
sofrimento e, mais ainda, o reconhecimento dos efeitos desse sofri-
mento sobre o próprio corpo, exausto.
Logo após, acolhidos num espaço de fala e tendo assegurado um
lugar de escuta, passamos a trabalhar a partir da possibilidade de que
todo profissional de saúde deveria ser capaz de reconhecer o benefício
dessa experiência (de ser escutado) para quem está em sofrimento. E
passamos a refletir, juntos, sobre a possibilidade (ou não) de cada um
deles considerar sua disponibilidade para se oferecerem como figura
de alteridade/lugar de escuta para seus próprios pacientes em sofri-
mento, ainda que essa função fosse apenas o primeiro passo para que,
junto conosco, possamos criar estratégias de cuidado compartilhado
em rede interdisciplinar.
Mas, à medida em que o tempo foi passando, as pessoas foram
aderindo menos às restrições sanitárias e a pandemia foi aumentando,
e a sobrecarga dos profissionais de saúde foi se agravando, de modo
mais preocupante. Se em um primeiro momento da pandemia, foi o
“tempo da surpresa” e logo depois o “tempo da renúncia”, na sequência
Maria Lívia Tourinho Moretto • 31

veio o “tempo do cansaço”, acompanhado da ilusão de libertação no


pós-vacina, ainda que todos estivessem devidamente advertidos de que
a principal função das vacinas não é a de impedir a transmissão do
vírus. De fato, a capacidade psíquica de renúncia e sacrifício não é
elástica nem corresponde, necessariamente, ao princípio de realidade
imposto pela pandemia.
No final do ano de 2021 e no início de 2022, o mundo teve que en-
frentar uma nova onda da pandemia, em função do surgimento da
variante Ômicron, com menor letalidade, mas altíssimo poder de con-
taminação. É importante notarmos que o surgimento da Ômicron não
foi suficiente para fazer com que as pessoas, exaustas, voltassem a
investir no “pacto coletivo da renúncia”, e a maior parte das pessoas
que se infectou com a Ômicron sabe que fez um movimento deliberado
de abrir mão do sacrifício do isolamento. E o cansaço das pessoas, de
modo geral, não fica sem relação com a sobrecarga e o cansaço dos
profissionais das equipes de saúde.
O momento atual exige atenção redobrada quando o tema é o can-
saço e a sobrecarga. Essa é a palavra que aparece com mais frequência,
atualmente, nos espaços clínicos e nas Rodas de Conversa entre profis-
sionais de saúde. Quando as pessoas se cumprimentam, ali onde
habitualmente a resposta à clássica pergunta “Como vai você” era a
habitual e esperada “Vou bem, mas trabalhando muito...”, hoje a res-
posta que vem, mesmo entre pessoas que mantém, entre si, uma
relação mais formal, é “Estou cansado, estou sobrecarregado”.
Sim, as pessoas se sentem muito cansadas, sobrecarregadas, e não
se trata exatamente de uma sobrecarga corporal; no entanto, elas re-
duzem seus movimentos ao mínimo possível, vencidas por um torpor e
um desânimo que, para serem bem tratados, não devem ser confundi-
32 • A psicanálise às voltas com a peste

dos com sinais de depressão, mas é um sentimento que reduz a vida a


uma sobrevida, e cria situações nas quais o desejo de permanecer imó-
vel, isolado afetivamente, se esconde por trás de um discurso de
cuidado por meio do isolamento social.
Com efeito, quem não perdeu a vida para a pandemia do Covid-19
sobreviveu a ela, pelo menos por enquanto. Mas isso faz com que as
pessoas estabeleçam uma relação empobrecida com a vida, como se ela
fosse suficiente, ainda que não satisfatória. Investe-se menos em rela-
ções, trabalha-se o mínimo necessário e o futuro é algo incerto e
adiado indefinidamente, porque o que ronda o presente é a morte, e é
preciso, como nos disse um dos profissionais de saúde, “ficar quieto,
silencioso e atento o tempo todo, porque a morte está à espreita”.
Seria essa uma pandemia de cansaço? Vale notar que, nesse con-
texto, não se trata de um cansaço em relação a isso ou àquilo, como
afirma o poeta Álvaro de Campos no verso: “O que há em mim é sobre-
tudo cansaço. Não disto nem daquilo, nem sequer de tudo ou de nada:
cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço”. Trata-se “apenas” de can-
saço (Pessoa, 1944).
Estamos habituados a pensar no cansaço como excesso de traba-
lho, o que nos direciona para as hipóteses diagnósticas de “burnout” e,
como tentativa terapêutica nesses casos, ressalta-se a importância da
revisão de jornadas de trabalho e estilo de vida.
É claro que estamos de acordo com a necessidade e a importância
dos ajustes institucionais que zelam pelos direitos e pela saúde dos
trabalhadores em situações de desastres e emergência. É claro que as
jornadas de trabalho precisam ser revistas e adequadas, e sustentamos
a importância disso em trabalho que escrevemos recentemente, que
tem como alvo os psicólogos hospitalares, e tem como título “Saúde
Maria Lívia Tourinho Moretto • 33

Mental e Atenção Psicossocial na pandemia Covid-19: orientações


às/aos psicólogas/os hospitalares” (Schmidt et al, 2020).
Mas, para além de entendermos o cansaço como excesso de traba-
lho, proponho, aqui, que consideremos a hipótese do cansaço como
trabalho com o excesso, no sentido pulsional do termo. O excesso é
aquilo que é da ordem do afeto, mas que circula no corpo sem inscrição
na linguagem. É, na letra freudiana, o que traumatiza, se repetindo
insistentemente (exaustivamente?), pedindo elaboração. É, na letra
lacaniana, o que é da ordem do Real, que não cessa de não se inscrever
no campo da linguagem e afeta o corpo (Moretto, 2019).
A vantagem clínica da consideração dessa hipótese está no campo
da intervenção. Do que se trata esse cansaço, essa sobrecarga? Como se
trata desse cansaço, dessa sobrecarga? Ora, não é um cansaço que pede
descanso. Não se trata, tão somente, de diminuir jornada de trabalho,
meditar, fazer exercícios físicos e tudo o mais que, nós sabemos, tem
um valor inestimável na construção de um estilo de vida saudável.
Nesses casos, tais medidas talvez sejam necessárias, mas é certo
que não são suficientes. A morte sempre está à espreita, mas cotidia-
namente, felizmente, encontramos jeitos criativos de recalcar tal
lembrança. Mas quando “a morte está à espreita”, e não conseguimos
esquecer disso, aí está a sobrecarga, o excesso. Daí a hipótese de que
esse cansaço está mais para o trabalho com o excesso do que para o
excesso de trabalho. Esse cansaço, essa sobrecarga, vem do trabalho
psíquico ininterrupto de ficar atento, todo o tempo, tomando conta
dela, vigiando ou velando a morte, para que ela não chegue tão perto.
Essa não nos parece ser uma boa estratégia: assim, Tânatos vence Eros.
Para tratar desse cansaço, dessa sobrecarga, que faz do nosso
corpo o palco da luta travada entre pulsão de vida e pulsão de morte, é
34 • A psicanálise às voltas com a peste

preciso retomarmos os pactos coletivos de confiança na vida. Mas eles


são trabalhosos, e, se estamos exaustos, não o fazemos. Trata-se, do
ponto de vista clínico, por meio da construção de vínculos de confian-
ça, de criar possibilidades para que o sujeito (re)construa saídas para a
vida; trata-se de construir espaços de fala e de escuta onde se possa
viver mais (e morrer menos), falar mais (e calar menos), se movimen-
tar mais (menos imobilidade), desejar mais (mais Eros, menos
Tânatos), amar mais, trabalhar mais e, na melhor das hipóteses, se
cansar mais, em nome de uma vida bem vivida.

CONCLUSÃO

Espera-se que o trabalho represente uma contribuição original


para todos os profissionais de saúde interessados em atualizarem-se a
respeito das formas de manejo possível do sofrimento, facilitando seu
acesso a material instrucional de qualidade e fomentando espaços de
formação, para que os profissionais de saúde tenham oportunidade de
refletir e ampliar seu engajamento nas práticas de cuidado e de au-
tocuidado, em consonância com as características sócio-político-
culturais do país em que atuam.
2
PSICANÁLISE, BIOPOLÍTICA E A PANDEMIA DE
COVID-19
Eliane Costa Dias 1

Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar, em seu ho-
rizonte, a subjetividade de sua época. (Lacan, 1953/1998) 2

A pandemia do novo coronavírus é um acontecimento global que


afetou a vida e a rotina diária de cada ser humano no planeta, produ-
zindo transtornos no campo da saúde coletiva e alterações nos laços
sociais, cujos impactos para o futuro ainda estão por se definir. Um
acontecimento que introduz a dimensão da contingência, convocando
diferentes campos do saber humano à produção de conhecimentos e de
possíveis respostas.
Dois anos já se passaram desde as primeiras notícias de que algo
começava a se disseminar e a tomar o mundo que conhecíamos, de
uma forma súbita e impensada. Ainda sob o impacto do instante de
ver, começamos a tecer um tempo de compreender, propondo leituras
e hipóteses sobre o que poderemos extrair d’isso tudo: a pandemia, o
medo do contágio, o isolamento, a multiplicação das mortes, a angús-
tia e a incerteza generalizadas, a imersão cada vez maior no campo do
virtual, os posicionamentos individuais e coletivos diante das políticas
de enfrentamento da crise.

1
Psicanalista, membro da EBP/AMP, doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP,
membro do Laboratório Psicanálise, Saúde e Instituição do IP/USP (LABPSI-USP), coordenadora do
Observatório de Gênero, Biopolítica e Transexualidade da FAPOL.
2
Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, p. 322.
36 • A psicanálise às voltas com a peste

Quais as contribuições e a posição da Psicanálise na abordagem da


pandemia e de seus efeitos?
Em O mal-estar da civilização (1930/1988), Freud desenvolve a tese
de que, da perspectiva da Psicanálise, a origem do sofrimento humano
reside no fato de que o homem, como ser-de-cultura, se constitui ir-
remediavelmente marcado pela oposição entre pulsão e civilização,
pelo antagonismo e a tensão permanente entre as exigências do ins-
tinto e as restrições impostas pela civilização, para que perdure a vida.
Em sua releitura da tese freudiana, Lacan afirma que a constitui-
ção do sujeito humano é resultado da entrada do vivente em uma
ordem simbólica (campo da fala e da linguagem) que o antecede. Na
aula de 19 de fevereiro de 1974, do Séminaire 21: Le non-dupes errent
(1973-74/inédito), Lacan conclui que o traumatismo primordial (trou-
matisme) reside no fato de que a imersão na ordem simbólica
corresponde a uma perda fundamental em gozo, instaurando um furo
estrutural que ele nomeia com o aforismo “Não há relação sexual”. A
partir deste fato estrutural e constituinte, todo falasser é confrontado
à exigência de forjar uma solução para articular, para enodar o real do
gozo excluído que insiste, a imagem do corpo próprio (Imaginário) e o
campo do significante e das significações (Simbólico); encontrar a
melhor solução possível para a oposição e a tensão entre o gozo, que
está no campo da pulsão, e o desejo, que está no campo do Outro e
submetido às leis simbólicas da linguagem, numa criação singular que
lhe permita ocupar posição na realidade e na existência. Sintetizando,
com Lacan entendemos que o sofrimento psíquico do falasser tem a
ver com a necessidade de encontrar defesas contra o Real, modos de
saber-fazer com real do gozo, essa dimensão da existência humana que
Eliane Costa Dias • 37

escapa à ordem simbólica, permanecendo, portanto, como uma experi-


ência fora do sentido, irrepresentável e mobilizadora de angústia.
Da perspectiva da Psicanálise Lacaniana, então, podemos ler a
pandemia de coronavírus como um fenômeno que configura, para cada
sujeito e para o coletivo da humanidade, um momento de encontro
com o Real.

PANDEMIA: UM ENCONTRO COM REAL

Segundo Bassols (2020), a pandemia de coronavírus instaura um


acontecimento que pode ser tomado como paradigmático das relações
com o real no século XXI e que permite, além disso, uma oportunidade
de precisarmos, um pouco mais, que o real de que se ocupa a Psicanáli-
se não é o real da Ciência.
Na experiência disruptiva da pandemia, o sujeito contemporâneo
encontra-se duramente afetado pelo real da natureza e pelo real da
pulsão: “a lei da natureza e o real do gozo parecem ser o anverso e o
reverso do mesmo fato traumático para o sujeito de nosso tempo”
(Bassols, 2020, np). Até a Antiguidade, a natureza enquanto desconhe-
cido, mas com uma ordem e uma regulação próprias, correspondia a
uma experiência do real; a natureza e o real estavam em contiguidade,
se sobrepondo, até certo ponto. Entretanto, desde a passagem para a
Modernidade, a Ciência vem se ocupando cada vez mais dos fenômenos
da natureza, extraindo suas leis de ocorrência, passíveis de decifração
e previsão. Um dos efeitos da ciência moderna foi, precisamente, o de
separar a natureza do real pulsional (Miller, 2014).
O real de que se ocupa a Psicanálise no século XXI é um real sepa-
rado da natureza, resto de uma natureza que estava ordenada por uma
38 • A psicanálise às voltas com a peste

lei, divina ou não, científica ou não. O real como marca e efeito da


emancipação do humano, da desnaturalização do falasser. O real como
a dimensão da experiência humana que escapa à ordem simbólica, ex-
sistindo e insistindo como uma busca paradoxal de satisfação que “não
cessa de não se inscrever” (Lacan, 1972-73/2008, p. 155), sem sentido,
imprevisível, impossível de ser simbolizada.
Com Lacan, entendemos que todo falasser habita um campo exis-
tencial em que Real, Simbólico e Imaginário se enlaçam. No entanto, a
contingência pode fazer vacilar esse enlaçamento, fazendo irromper o
Real, ali onde estava a realidade. Como sugere Brousse (2020), encon-
tramos no conceito freudiano de “estranho mais familiar”
(Unheimliche) a melhor forma de apreender essa experiência singular
de franqueamento da realidade e do sentido, onde o sujeito se percebe
desalojado tanto de seu modo pulsional de gozar como do Outro – sua
referência de sentido e de posição no laço social, até então.
A experiência do momento atual nos dá um testemunho sem pre-
cedentes, na esfera individual e coletiva, de diferentes registros desse
franqueamento:

 Do real do tempo – o imprevisível da pandemia põe em jogo um real


que atravessa o tempo cronológico, introduzindo um tempo lógico: al-
go que não cessa de se escrever... até que se escreve. “O problema não é
mais se um dia você poderá se contagiar – estima-se que deverá atin-
gir pelo menos 70% da população –, mas quando será e quando deixará
de não dar sinais sintomáticos no corpo” (Bassols, 2020, np);
 Do real do espaço – a exigência do confinamento e do distanciamento
seguro entre os corpos abalou as relações cotidianas com o espaço, al-
terando, senão comprometendo, os limites entre dentro/fora,
privado/público;
Eliane Costa Dias • 39

 Do real de “ter um corpo” – corpo que irrompe como um Outro para o


sujeito, envolto em uma experiência de estranhamento que é, sempre,
meio paranoica;
 Do real da solidão de todo falasser, esteja ou não em companhia de
semelhantes;
 Do real do sem sentido – a constatação de uma natureza desordenada
e imprevisível, de um real que não volta mais ao mesmo lugar, é fonte
de angústia intensa. E, neste ponto, nos deparamos com um dos efei-
tos mais imediatos desse encontro com o desconhecido – a inflação de
sentido, a tentativa de amenizar a angústia recobrindo o inominável
com doação de sentido. Uma busca incessante por sentido que, supor-
tada pela tecnologia e pelo campo das relações virtuais, tem favorecido
tanto o acesso à informação e à solidariedade como a circulação de
fake news e de discursos conservadores e totalitários.

Um momento de encontro com o Real que, para além do impacto


sobre a saúde e a subjetividade de cada um, mobiliza posições e respos-
tas sociais, políticas, econômicas e éticas cujas consequências a médio
e longo prazo ainda estão se definindo.

PANDEMIA E BIOPOLÍTICA 3

Frente à pandemia de coronavírus, todos os governos ao redor do


mundo, de todos os tipos de regimes e estilos, foram levados a tomar
medidas drásticas de gestão da população, ancoradas no apelo ao su-
posto saber do discurso da Ciência e seus comitês. Uma gestão da
pandemia que nos remete à lógica da biopolítica.
Não cabe, aqui, retomar a complexidade do conceito de biopolíti-
ca. Destaco, apenas, que a noção de biopolítica, forjada por Foucault

3
Parte do conteúdo deste subitem encontra-se desenvolvido no artigo: Dias, E. C. (2021). Uma nova
normalidade: qual vida a partir da pandemia de covid-19? Carta de São Paulo, ano 28, n°2, agosto/2021,
p. 87-95
40 • A psicanálise às voltas com a peste

nos anos 1970, ganha cada vez mais potência e atualidade, configuran-
do uma das marcas que definem a contemporaneidade e
apresentando-se como um dos termos mais eficazes para pensar a
abordagem dessa pandemia.
Foucault (1999; 2008) chega aos conceitos de biopoder e biopolíti-
ca ao localizar na história (mais precisamente, na virada do século
XVIII para o XIX) o aparecimento de um poder disciplinador e norma-
tizador que já não se exercia sobre os corpos individualizados (no
modelo do panóptico), mas se concentrava na figura do Estado e, cada
vez mais, no discurso da Ciência, exercido a título de uma política que
pretendia administrar, para o bem coletivo, a vida e o corpo, não mais
dos indivíduos, mas das populações.
No entanto, a lógica dessa política de garantir mais e melhores
meios de sobrevivência a uma dada população traz consigo, de maneira
necessária, a exigência contínua da morte em massa de outros corpos:
toda biopolítica, intrinsecamente, é também uma tanatopolítica.
Em sua análise desse tempo de enfrentamento da pandemia, Éric
Laurent (2020b, p.40) constata que, desde o início da disseminação da
Covid-19, os tratamentos políticos da pandemia partiram em busca de
medidas, de modelos que possibilitassem definir “uma biopolítica fun-
damentada em uma certeza cifrada”.
Na busca por um sujeito suposto saber cifrar a pandemia, vimos
surgir modelos estatísticos como os da Universidade Johns Hopkins e
do Imperial College de Londres, que visavam uma modelização da pro-
pagação da epidemia. As estatísticas e os gráficos continuam se
multiplicando: número de infectados, número de óbitos, ocupação de
leitos hospitalares, eficácia dos protótipos de vacina disponíveis, por-
centagens de vacinados.
Eliane Costa Dias • 41

No entanto, a disseminação do vírus pelo mundo revelou séries de


números heterogêneas, difíceis de homogeneizar e, principalmente,
difíceis de previsibilidade. Como nos lembra Laurent, Lacan sempre
desconfiou dos modelos da Ciência, afirmando que não passariam de
artifícios imaginários na tentativa de aceder ao real (Lacan, 1974-75,
inédito, citado por Laurent, 2020b).
Como aconteceu com as cifras, as respostas à pandemia não fo-
ram unificadas. Muito rapidamente, surgiram diferenças notáveis
entre os modos de gestão das populações afetadas pelo vírus. Respos-
tas políticas e coletivas particulares, que se configuraram como
variações em torno de duas grandes estratégias iniciais:

1. Atenuação – visando não a interrupção da transmissão do vírus, mas


seu controle, a fim de obter, o mais rapidamente possível, uma imuni-
dade da população que leve a um declínio do número de casos quando
a proteção coletiva for alcançada, a chamada imunidade de rebanho;
2. Contenção – visando evitar a transmissão do vírus de uma pessoa a
outra, ainda que exigindo medidas radicais que implicassem o confi-
namento da maior parte da população e o uso de técnicas de testagem
em massa e de vigilância digital.

A pandemia, portanto, provocou um pandemônio de respostas em


que cada um fez o que pôde com a abundância ou a escassez de seus
meios, a confiança dada aos cidadãos ou ao governo, o hábito das epi-
demias e a aceitação, ou não, de imunizantes (Laurent, 2020b).
De fato, qualquer que seja a solução escolhida, quaisquer que se-
jam as instituições fazendo as análises de dados, que se contenha
muito ou que se deixe infectar muito, que a adesão aos imunizantes
disponíveis seja maior ou menor, isso não é uma questão de princípios
e ética, mas uma questão pragmática. A base fundamental do cálculo
42 • A psicanálise às voltas com a peste

deve ser os recursos, em termos de leitos hospitalares e de UTI, de que


dispõe cada sistema de saúde; e o poder de negociação na comerciali-
zação globalizada de insumos, medicamentos e vacinas.
O gerenciamento da fratura aberta pela pandemia nos remete,
portanto, a outra dimensão do Real como impossível de suportar – as
“escolhas irresolúveis” (Laurent, 2020a, np) – escolhas não previsíveis
pelos comitês de ética e que definirão o devir, ou seja, o pós-pandemia:

• Ao nível pessoal – no modo como cada um interpreta e responde às


medidas de segurança restritivas e aos protótipos de imunização e tra-
tamento;
• Ao nível da Medicina – na forma como os profissionais de saúde, fren-
te à carência de recursos disponíveis, escolhem as vidas que deixam de
ser salvas;
• Ao nível das decisões políticas – nos investimentos em recursos de
prevenção e de tratamento da infecção, assim como na definição de
critérios de acesso aos mesmos. Além disso, as medidas de restrições,
fundadas certamente na Ciência, determinam um porvir que será
marcado pela instalação, cada vez maior, de dispositivos de vigilância
e controle.

Enfim, as decisões tomadas hoje, da esfera privada à esfera públi-


ca e coletiva, determinam um amanhã: “(...) será preciso, também, que
cada um de nós contribua para elucidar como as práticas de restrições
coletivas com as quais consentimos, devem ser elaboradas a fim de que
permaneçam suportáveis” (Laurent, 2020a, np).

TODA BIOPOLÍTICA É IMUNOLÓGICA

No artigo Aprendiendo del vírus, publicado no jornal espanhol El


País em 28/03/2020, o filósofo Paul B. Preciado (2020), retomando o
Eliane Costa Dias • 43

trabalho do filósofo italiano Roberto Espósito, analisa as relações entre


a noção política de “comunidade” e a noção biomédica de “imunidade”.
Segundo o autor, comunidade e imunidade compartilham a mes-
ma raiz, munus. Em latim, o munus era o tributo que alguém devia
pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum
(com) munus (dever, lei, obrigação, mas também oferenda): um grupo
humano estreitamente unido por uma lei e por uma obrigação comum,
mas também por um presente, por uma oferenda. O substantivo immu-
nitas é um vocábulo que deriva da negação do munus. No direito
romano, a immunitas era uma dispensa ou um privilégio que exonerava
alguém dos deveres societários que são comuns a todos. Aquele que foi
exonerado estava imune. Enquanto o démunis (desmunido) era aquele a
quem se havia retirado todos os privilégios da vida em comunidade.
Preciado conclui que toda biopolítica é imunológica, na medida
em que supõe uma definição de comunidade e o estabelecimento de
uma hierarquia entre aqueles corpos que estão isentos (aqueles que
são considerados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como
potencialmente perigosos e que serão excluídos em um ato de prote-
ção. E enuncia sua hipótese: “Conte-me como sua comunidade constrói
sua soberania política e eu lhe direi quais as formas que suas epidemi-
as tomarão e como você as enfrentará.” (Preciado, 2020, np)
Esse é o ponto em que os textos de Laurent e o de Preciado con-
versam e inquietam. Se Laurent nos mostra que as decisões do
momento atual definem um porvir, Preciado argumenta que o enfren-
tamento da pandemia, que terá consequências para o amanhã, não tem
a ver com o vírus em si, mas com o jogo de forças políticas e sociais
que o antecede em cada comunidade. Uma epidemia não faz mais do
que materializar, intensificar e estender a toda a população as formas
44 • A psicanálise às voltas com a peste

de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no


território nacional e em suas fronteiras.
Antes da Covid-19, antes do vírus, já estávamos passando por uma
profunda transformação social e política:

• Na Modernidade, passamos de uma sociedade oral para uma sociedade


escrita, de um modo de produção feudal para um modo de produção
industrial, de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida pe-
lo saber da Ciência;
• Na Contemporaneidade, estamos passando de uma sociedade escrita
para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma
economia imaterial (dos mercados globalizados), de uma forma de
controle disciplinar e arquitetônico para formas de controle midiáti-
co-cibernéticas.

Discutindo o papel das ciências sociais neste movimento de leitu-


ra e de enfrentamento da atual pandemia, Bringel e Pleyers (2020, p.
10) destacam que a pandemia de coronavírus não acontece em qual-
quer espaço-tempo:

Vem num momento histórico de esgotamento dos recursos naturais e de


emergência climática e do meio ambiente, em que o capitalismo mostra a
sua face mais predatória. É também uma época de retrocessos democráti-
cos e de direitos e de desconfiança e rejeição dos sistemas políticos.
Vivemos em sociedades marcadas por profundas desigualdades (tanto no
Norte como no Sul do globo) e com os serviços públicos desmantelados por
décadas de neoliberalismo que, para além da economia, também impregna
fortemente as subjetividades individuais e coletivas.

Em relação ao futuro da pandemia, nas palavras de Preciado


(2020, np): “É no contexto desta mudança, da transformação das for-
mas de entender o que é a comunidade, que será definido o que é
Eliane Costa Dias • 45

imunidade, os que terão direito a ela e os que serão definidos como


desmunidos. Isso se torna uma estratégia política.”
A meu ver, o acirramento das fronteiras na Europa e na América,
a violência dos êxodos populacionais das últimas décadas e o trata-
mento dispensado aos milhões de refugiados ao redor do mundo, a
força do grito de ordem Black Lives Matter, que movimentou o mundo
ainda sob o impacto da pandemia, nos dizem d’isso.

UMA NOVA NORMALIDADE?

O que está sendo gerado a partir da gestão dessa pandemia?


Do ponto de vista político, corremos o risco da Covid-19 legitimar
e estender essas práticas estatais de biovigilância e de controle digital,
normalizando-as e fazendo-as, mesmo, “necessárias” para manter
uma certa ideia de segurança; nos países de Terceiro Mundo, nas de-
mocracias não tão bem consolidadas, o risco da proliferação de
discursos conservadores e autoritários e de um recrudescimento do
fascismo.
A gestão política da Covid-19 pode estar desenhando, ainda, os
contornos de uma nova subjetividade:

O sujeito neoliberal que a Covid-19 fabrica não troca bens físicos, nem tro-
ca moedas, paga com cartão de crédito. (...) Não se reúne nem se coletiviza.
É radicalmente indivíduo. (...) Seu corpo orgânico se oculta para poder
existir por trás de uma série indefinida de mediações, uma série de próte-
ses tecnológicas que lhe servem de máscara: a máscara do endereço de
correio eletrônico, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Insta-
gram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um
teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, um domicílio a
que a Amazon pode enviar seus pedidos. (Preciado, 2020, np)
46 • A psicanálise às voltas com a peste

Fabián Fajnwaks (2020) sugere que a nova normalidade passa por


uma renovação do laço social. Por um lado, a possibilidade de que a
experiência de vulnerabilidade imposta pelo coronavírus venha refor-
çar o laço social, através de uma tomada de consciência que sustente
ações coletivas para preservar a vida de todos.
Por outro lado, essa nova normalidade impõe “um laço social de
um metro de distância; um laço social paradoxal, onde o que une um
corpo a outro é a distância que deve ser mantida para não se contami-
nar.” (Fajnwaks, 2020, p. 57). Uma renovação paradoxal do laço social
que pode vir a normatizar os movimentos segregativos e o ódio à dife-
rença dos corpos. “O ser falante encontra, dessa maneira, uma parte de
si mesmo que lhe retorna a partir do corpo do próximo, o que o torna
duplamente nocivo: por ser portador do vírus e por ser veículo de sua
parte de gozo opaca.” (Ibidem, p. 59)

QUAL O LUGAR E O FAZER POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE?

Se a Ciência se ocupa, com sua máxima competência, do vírus e do


organismo por ele invadido, a Psicanálise se ocupa dos efeitos desse
encontro com o Real. Não propriamente da experiência da doença,
mas da experiência de assujeitamento, do sujeito (um a um) e do cole-
tivo, a um desconhecido que, no fundo, é unheimlich, o estranhamente
familiar. Como propõe Bassols (2020), a Psicanálise pode se ocupar e
tratar da dimensão de sintoma dessa experiência. E dos discursos que
tentam dar conta de sua irrupção na realidade.
Na vertente da clínica, Laurent (2016) nos diz que a posição da
Psicanálise é justamente o avesso da biopolítica, ou seja, a de tomar a
dimensão do corpo que escapa às tecnociências: o corpo na sua relação
Eliane Costa Dias • 47

com o que há de mais singular no humano enquanto ser-falante, o


corpo na sua relação com o desejo e com o gozo.
Sustentar o inconsciente como política exige, à Psicanálise, man-
ter-se êxtima à política das identidades, à mercantilização da escuta, à
produção incessante de bolhas de sentido. Uma política do inconscien-
te que envolve, portanto, uma política do sintoma e uma política do
corpo. Num momento em que as referências simbólicas estão tão aba-
ladas, sustentar uma ética que visa salvaguardar a singularidade como
o que se opõe à alienação e à morte do Sujeito.
No campo dos discursos, nosso desafio é sustentar um dizer que
não entre na série das lives. Um dizer que possa incluir o real, mas sem
tamponá-lo com sentidos, com conclusões apressadas. Um discurso
que possa abrir questões, que possa transmitir o saber da Psicanálise
sobre o mal-estar da cultura e, ao mesmo tempo, transmitir algo do
desejo que nos causa nesse discurso.
Como sustentar o desejo do analista quando estamos, nós mes-
mos, tão afetados e imersos nesse encontro com o real?
Como psicanalistas, que possamos estar à altura da subjetividade
de nossa época. Porque já não se trata da sobrevivência da Psicanálise.
Trata-se da sobrevivência da dignidade, melhor dizendo, da dignidade
que restará à Humanidade que sobreviverá a esse momento histórico.
3
ATENDIMENTO PSICANALÍTICO ON-LINE: DA
INTERROGAÇÃO DO DISPOSITIVO CLÍNICO À
CONSTRUÇÃO DE NOVOS SABERES
Wilian Donnangelo Fender 1

Quando a pandemia do novo coronavírus se tornou uma certeza


mundial, a necessária passagem da rotina dos consultórios para os
telefones, smartphones e computadores (que chamaremos aqui de
atendimentos on-line), intensificou as dúvidas acerca da possibilidade
de se manter a prática clínica psicanalítica neste novo formato. Dúvi-
das que, rapidamente, desembocaram na esperança de que, logo, tudo
pudesse voltar ao normal. Neste presente trabalho, no entanto, gosta-
ríamos de pensar os atendimentos on-line para além de uma
modificação temporária. Partimos da ideia de que eles são uma reali-
dade de nossa época, apenas catalisada pela pandemia do novo
coronavírus. Pretendemos tomar a prática clínica psicanalítica on-line
não como deficitária em relação a uma prática psicanalítica “oficial”,
mas como uma nova modalidade prática a ser pensada e considerada.
Para tal, propomos a postura de um investigador que, para conhe-
cer o objeto a ser estudado, o observa e o descreve de maneira
imparcial, para então formular questões e construir a teoria que lhe
cabe. Ora, a princípio, esta postura é desejável a todo psicanalista,
tanto na clínica com seus pacientes, quanto em sua atuação na pólis. A
essa postura, damos o nome de método clínico psicanalítico. É a partir

1
Psicólogo e Psicanalista. Doutorando e Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da
USP (IPUSP). Membro do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição do IPUSP
Wilian Donnangelo Fender • 49

dela que um psicanalista pode construir algum saber sobre os casos


on-line.
Ao nosso ver, o eixo de discussão em que se insere a modalidade
do atendimento on-line é o do campo prática psicanalítica, o que nos
leva a um método e suas técnicas correspondentes. Se, por método,
entendemos uma relação direta entre o meio e a finalidade – como,
por exemplo, a cura pela fala (talking cure) – a técnica está associada
aos instrumentos e ferramentas utilizadas para chegar aos objetivos
deste método (Dunker, 2011, pp. 37-38).
Na história da Psicanálise, uma mudança metodológica determi-
nante foi a passagem do método catártico para o método da talking
cure (cura pela fala), que teve o divã como um de seus representantes
técnicos importantes. A partir daí, observamos diversas inovações
técnicas e experimentos técnicos praticados pelos analistas das dife-
rentes escolas. A técnica ativa e sua elasticidade, de Ferenczi (1928), e o
tempo lógico e variável das sessões de Lacan (1945) são apenas dois
exemplos de técnicas que fugiram ao padrão e que, até hoje, recolhe-
mos seus efeitos. Não à toa, para Roudinesco e Plon (1998) a história da
Psicanálise pode ser contada pela história de suas inovações técnicas.
Também Birman (2014), ao aproximar as inovações técnicas de Feren-
czi e Lacan, marca que tais inovações só foram possíveis devido à
transgressão de qualquer postulado técnico fixo.
As mudanças e adaptações da técnica sempre possibilitaram, à
Psicanálise, enfrentar as dificuldades com que se deparou. Para Roudi-
nesco e Plon (1998) tais inovações técnicas mostraram que, longe da
Psicanálise permanecer cristalizada em uma doutrina monolítica,
soube modificar sua prática ao longo dos anos, enfrentando a concor-
rência das outras psicoterapias, mas também “enfrentando as
50 • A psicanálise às voltas com a peste

transformações radicais em relação à demanda, e do desejo dos anali-


sandos” (p. 751).
Ou seja, quando falamos em técnica psicanalítica essa está, neces-
sariamente, a serviço de sua ética, e subordinada à política do
tratamento. S. Freud parece ter reconhecido isso após alguns anos da
prática clínica, quando em seu texto Sobre o início do tratamento (Freud,
1913), nas primeiras linhas, declara que diante de tamanha diversidade
dos materiais psíquicos dos pacientes, seria inviável uma padronização
técnica, salvo a regra da associação livre por parte do paciente. De fato,
nunca houve um texto de Freud que falasse de uma obrigatoriedade do
divã, do número de sessões, do tempo das sessões, do local das sessões,
etc., enquanto regra. É, inclusive, interessante pensar sobre a neutra-
lidade do analista, recomendada por S. Freud, quando sabemos, hoje,
das inúmeras esculturas que haviam em seu consultório, ou de seus
belos tapetes persas.
Além disso, sem a possibilidade de inovações técnicas, a Psicaná-
lise não teria se estabelecido nos hospitais, nas escolas, nas clínicas de
rua, nas triagens de enormes filas de espera das clínicas-escolas de
universidades, etc. Do ponto vista da técnica, então, consideramos que
o tema da modalidade do atendimento on-line traz, consigo, a questão
fundamental do que é preciso fazer e saber sobre esta modalidade,
para sustentar a Psicanálise e sua prática.
Para isso, a seguir, inicialmente descreveremos alguns elementos
suscitados a partir de nossa própria experiência clínica com essa mo-
dalidade, procurando estabelecer breves diálogos com interlocutores
ocultos, a fim de reproduzir algumas críticas que têm sido levantadas
sobre o tema, no meio psicanalítico. Em seguida, discutiremos esses
elementos do ponto de vista teórico, de forma a enfatizar o que consi-
Wilian Donnangelo Fender • 51

deramos ser essencial para que uma prática como a nossa se mante-
nha, seja qual for a modalidade.

O QUE NOS DIZ O ATENDIMENTO ON-LINE?

APARELHOS E INTERNET

Impossibilitados de atender no consultório, foi preciso, em pri-


meiro lugar, pensar como continuar atendendo os casos. Neste
aspecto, não houve muita hesitação; as chamadas de vídeo, utilizando a
Internet, entraram automaticamente como primeira opção, muitas
vezes substituindo o telefone. Ou seja, não necessariamente fomos
recorrer à conectividade virtual para nos salvar – como pensam alguns
–, ela já nos atravessava, e atravessava nossos atendimentos, há algum
tempo: agendávamos sessões pelo Whatsapp, disponibilizávamos um
perfil profissional em um site de atendimentos, recebíamos pagamento
por transferência bancária, etc., muito antes da pandemia. A ideia de
Lacan (1953/1998, p. 322): “que antes renuncie a isso, portanto, quem
não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua épo-
ca”, ao referir-se aos psicanalistas e sua prática, não poderia ser mais
importante neste momento. Para Levy (2010, p. 47): “É virtual toda
entidade ‘desterritorializada’ capaz de gerar diversas manifestações
concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contu-
do, estar, ela mesma, presa a um lugar ou tempo em particular”. Ou
seja, a virtualidade é uma dimensão da realidade. Pode ser entendida
como aquilo que existe em potência, como devir, que precisa de um
campo de forças para se atualizar.
Nesse sentido, mais do que questionar se é possível uma Psicaná-
lise pela Internet, deveríamos estar nos perguntando sobre a
52 • A psicanálise às voltas com a peste

viabilidade de acesso a ela por parte de nossos pacientes, de forma que


essa transição para os atendimentos on-line não se transforme em
ferramentas de exclusão, em saúde mental. Como discute Levy (2010,
pp. 244-245) em Cibercultura, é inevitável que qualquer inovação tecno-
lógica produza seus excluídos. Invenção da escrita, telefone, Internet.
Todos esses avanços comunicacionais os produziram. Isso não deve ser
argumento para impedir seus usos e seus progressos, mas deve servir
de aprendizado para os novos avanços. Na contramão desse alerta,
pudemos conferir, até o presente momento, interessantes projetos que
têm sido criados na situação pandêmica, utilizando-se do on-line como
ferramenta importante para atendimento psicológico e gratuito. Em
alguns destes, temos participado como supervisor clínico: Projeto de
Atendimento psicológico on-line, no Instituto de Psicologia da Univer-
sidade de São Paulo; Programa Autoestima pela Univesp e Secretaria
da Saúde do Estado de São Paulo. No entanto, cabe ressaltar que ofere-
cer serviços on-line não resolve a exclusão, na medida em que muitos
não têm acesso, ou informação suficiente, para realizar os atendimen-
tos nesse formato.

PRIVACIDADE DAS SESSÕES

A impossibilidade do encontro no consultório trouxe, também,


outra questão fundamental: a privacidade para a realização da sessão.
Parece-nos uma questão, muitas vezes, esquecida, ou, pelo menos, não
pensada com frequência no campo psicanalítico, salvo discussões so-
bre a publicação dos casos clínicos que acabam abordando a
privacidade em termos de sigilo. Arriscamos dizer que, acerca dos
“problemas” e “limites” de um atendimento on-line, esse é um dos mais
Wilian Donnangelo Fender • 53

centrais. Em nossa experiência, os pacientes que optaram por não


continuar neste novo formato, foram aqueles que disseram, muitas
vezes com pesar, não conseguir um momento de privacidade. Em casa
ou no trabalho, as falas eram as mesmas: “sempre ter alguém por per-
to”, ou “medo de que alguém escute”. Ainda que, para alguns casos,
pudesse soar como algo a ser trabalhado nas sessões – como uma re-
sistência do analisante –, é preciso considerar que, para muitos casos,
isso não se aplica. Bairros perigosos, dificuldades de locomoção, são
algumas razões para essa dificuldade.
Seria possível uma análise transcorrer sob a dúvida de que al-
guém, principalmente próximo afetivamente, possa sempre estar
escutando? Goldberg e Akimoto (2021) relatam casos em que pessoas,
fazendo a sessão de modo on-line, muitas vezes eram interrompidas,
por pessoas próximas, com comentários sobre a sessão. Não obstante,
de nossa experiência com atendimento clínico em enfermaria de hos-
pital, temos que a maioria das pessoas que querem atendimento se
incomoda com a proximidade de outras pessoas, mesmo desconheci-
das. É possível, sim, que alguém não se incomode e, inclusive, fale para
o outro – que não o analista – ouvir. Isso configuraria uma sessão,
entretanto? Uma fala dirigida a uma plateia? Cremos que não.
Alguns pacientes que moram com outras pessoas, mas que opta-
ram por continuar, depois de alguns meses encontraram maneiras de
sair de casa, indo a parques, aos carros estacionados na garagem, salas
isoladas em seus trabalhos etc., dizendo que “hoje preciso falar algo
que faz tempo que não falo”. Ou seja, ainda que certo comportamento
“paranoico” seja digno de nota e interpretável, isso muitas vezes só é
possível no a posteriori. Afinal, na direção contrária do que muitos
pensam e dizem, a Psicanálise não prevê comportamento, nem lê men-
54 • A psicanálise às voltas com a peste

tes. Porém, é importante, neste contexto pandêmico e on-line, ficarmos


atentos a falas que solicitam um retorno ao consultório, reclamam da
modalidade etc. Por vezes, ainda que o sujeito não o saiba, isso pode
indicar uma fala ou um tema que, pela impossibilidade de uma total
privacidade, não vem à tona. Certamente, uma questão semelhante
poderia ser colocada em relação ao consultório. Quem garante que não
há ninguém atrás da porta da sala do analista? A chance é menor, con-
tudo, que do outro lado esteja seu pai ou sua mãe, por exemplo.

PALAVRAS DE MENOS E PALAVRAS DEMAIS

Definida a Internet, os aparelhos digitais e o local privativo para


possibilitar o atendimento on-line, novas preocupações surgem. Pro-
blemas de conexão e a qualidade dos aparelhos (imagem e som) são
pontos essenciais para que o atendimento possa transcorrer. Depois de
alguns meses de experiência, sabemos que uma palavra ou outra é
interrompida com uma falha na conexão, uma ligação recebida ou uma
queda de Internet. Esse é ponto, inclusive, bastante citado nas publica-
ções sobre o tema, como parte dos desafios e limites. No entanto, em
relação a estes aspectos, vale considerar se fenômenos análogos não
ocorrem nos consultórios. Um avião que passa, um barulho de pessoas
no hall, celulares que tocam, etc. Palavras se perdem, outras, inevita-
velmente, são valorizadas. Discutiremos adiante essa questão em
termos do que se entende por escuta em Psicanálise e como é possível
pensar a escuta psicanalítica, hoje. Ouvir tudo, não é o mesmo que
escutar.
Se algumas palavras são perdidas, outras são emitidas mais fre-
quentemente. Observamos em alguns casos maior necessidade de
Wilian Donnangelo Fender • 55

emitir alguns sons, palavras, interjeições, a fim de “marcar presença”.


Ainda hoje, quase um ano e meio de atendimentos on-line na pande-
mia, longos período de total silêncio em uma sessão, apenas por áudio,
provocam nos analisantes certa aflição: “Oi, ainda está aí?”. No entan-
to, um paciente deitado no divã, da mesma maneira, poderia pensar
que o analista, após longo silêncio, dormiu, por exemplo. Quais os cri-
térios, aqui, para identificar a presença do analista? E, acima de tudo,
de qual presença aqui falamos?

RESISTÊNCIA COM O ATENDIMENTO ON-LINE E NO ATENDIMENTO ON-LINE

De maneira geral os analisantes se propuseram a continuar suas


análises e se espantaram com o fato de que é completamente possível
fazer uma sessão por meio de algum aparelho eletrônico. Outros, que
estavam para iniciar suas análises e em razão da pandemia posterga-
ram pelo fato de que seria on-line, quando começaram, expressaram
suas impressões positivas acerca da viabilidade. O que seria isso que de
alguma forma mostra ao paciente ressabiado a potência clínica e tera-
pêutica de uma sessão?
Muitos comentários críticos em relação aos atendimentos on-line
recaem sobre as possíveis resistências dos analisantes que, agora à
distância e dependentes de um aparelho, encontrariam muitas manei-
ras para resistir: a bateria que acaba, a Internet que não pega, a viagem
que não possibilitará privacidade etc. Novamente, entretanto, seria
importante olhar esses fenômenos como fenômenos análogos aos que
ocorrem nos consultórios e que, agora, em novo cenário, tomam nova
forma. A resistência, tal qual encontramos na obra freudiana, é fenô-
meno intrínseco à transferência (Freud, 1912/2010; 1913/2010). Ou seja,
56 • A psicanálise às voltas com a peste

se há transferência, no consultório e no on-line, haverá resistência.


Cada modalidade com suas características, contudo.

PEDIR IFOOD E PEDIR ATENDIMENTO

Esse tema nos leva a outra característica interessante dos apare-


lhos digitais: a grande facilidade para conseguir o que se quer em
poucos minutos, através dos aplicativos de serviços. Refeições e mer-
cados são pedidos do sofá, muitas vezes por preguiça. Como entram
nesta nova lógica, de aquisição de serviços, os serviços psicológicos e
psicanalíticos? Lembremos que, acerca desta tendência mundial, ob-
servamos recentemente a criação de serviços digitais de atendimento
psicológico realizados por robôs (softwares). Um programa de compu-
tador, por exemplo, (Woebot, lançado em 2017) interage com um ser
humano e procura dar algum direcionamento ou solução ao sofrimen-
to relatado. Ou seja, deveríamos considerar que esta lógica pode estar
atravessada nos pedidos de atendimento psicológico e psicanalítico
agora sediados na Internet e não nos consultórios? Como a lógica da
hiperconectividade, inclusive de serviços, afeta nossa prática? O que
implica o paciente poder realizar um atendimento do mesmo sofá em
que pede sua comida?
Muito tem sido dito em relação à facilitação, para os analisantes,
para a realização de suas análises. Uma análise, nessa perspectiva,
precisaria ser difícil, custosa, cara ao paciente: o paciente precisa pa-
gar caro. Os atendimentos on-line deixaram a análise mais fácil? Onde
se fundamenta essa lógica? Em nossa prática, não pudemos, ainda,
verificar a confusão entre um aplicativo de serviço e nosso trabalho,
salvo aqueles pacientes que sempre nos demandaram como serviços a
Wilian Donnangelo Fender • 57

serem prestados. No entanto, este parece ser um tema promissor para


pesquisas futuras, em conexão com os questionamentos acerca de
como se paga uma análise.
Associado a isso, outro ponto negativo, por vezes comentado, está
relacionado ao uso do tempo anterior ao início da sessão, seja na ida
para o consultório, seja à espera na sala de espera. Este tempo teria um
caráter ritualístico e seria essencial para que a análise se inicie: nele, o
paciente começa a organizar o material a ser levado, se desliga dos
assuntos e das tarefas às quais estava imerso para daí, então, começar
sua análise. Não queremos deixar de lado a satisfação possível com
essa ritualística, nem sua possível função. Em certos casos, elas podem
ser produtivas.
No entanto, gostaríamos de propor uma reflexão que leva em
conta as transformações subjetivas de uma época – sejam elas apre-
sentadas aos indivíduos a fórceps, ou não. Consideramos, a partir de
nossa experiência prática com a modalidade on-line, que a eliminação
deste tempo pode ser lida como uma vantagem, àquele que deseja vis-
lumbrar de perto a subjetividade de seu paciente. Nunca estivemos tão
perto da rotina de nossos pacientes, suas brigas familiares, sua angús-
tia. A eliminação do tempo pré sessão pode nos colocar em contato
direto com seus conflitos psíquicos mais rotineiros, dando-nos novos
caminhos para a construção do caso. Por que haveríamos de querer
uma sessão em que os pacientes estejam desligados totalmente de sua
rotina? Isso é possível?
Em relação a estes dois pontos, surge-nos uma problematização,
fundamental, ocasionada pelo choque consultório/on-line. Certa ten-
dência à busca de sessões ideais. Isso nos parece estar associado a uma
tentativa imaginária de consistência e garantias, em relação ao nosso
58 • A psicanálise às voltas com a peste

objeto de trabalho e à nossa prática. O contexto pandêmico parece ter


aumentado a frequência de pacientes que clamam não terem o que
dizer nas sessões, nos dizendo que a vida não tem mudado muito, para
além de rotina de casa e trabalho - como se tais pensamentos não fos-
sem dignos de análise. “Nada de interessante para contar hoje”. De
fato, a pandemia nos impediu de diversas maneiras. Porém, um paci-
ente que interrompe seu tratamento, pois pouco tem acontecido de
diferente em sua vida, estaria em análise? Estaria ele imerso na regra
fundamental, que nada tem a ver com o relato dos acontecimentos?

CORPO

Depois de certo tempo em entrevistas preliminares, um analisan-


te nos pergunta, durante a sessão: “Percebi, esses dias, que nunca nos
vimos pessoalmente desde o começo das sessões. Mal sei como é seu
consultório. Em algum momento vamos nos ver? Precisamos nos ver,
afinal?” Confessamos, no entanto, que não foi possível responder. Não
porque isso responderia a uma demanda do analisante, mas, sim, por
não ter certeza da resposta. Já, há uma ou duas décadas, temos notícia
de relações amorosas que se passam inteiramente pela Internet. Afetos
que são criados e alimentados sem que dois nunca tenham se visto
fisicamente. Sabemos, também, sobre a surpresa que ocorre quando de
um encontro, onde, até então, apenas o virtual habitava. O que se pas-
sa?
A problemática da busca de uma consistência, imaginária, isso
nos leva a outro ponto que tem sido bastante discutido desde o início
da pandemia e a intensificação dos atendimentos on-line: a necessida-
de da presença física dos corpos nas sessões psicanalíticas. Muito tem
Wilian Donnangelo Fender • 59

sido discutido acerca dessa temática, e os argumentos contra e a favor


são diversos. É preciso o corpo para que uma análise se dê? Como fi-
cam os gestos que não conseguimos ver na tela do celular? O que é um
corpo em Psicanálise? Retomaremos, adiante, o tema do corpo em
Psicanálise de maneira breve, como parte de nossa discussão. Porém,
vale aqui um comentário sobre algo que temos observado. Muitas ve-
zes, quando o “corpo” não está na tela, mas se faz presente para o
analisante durante a sessão – mão que treme, um frio na espinha ou
na barriga – o analisante nos fala sobre, em meio às suas associações.

CANSAÇO DO ANALISTA

Se, até então, abordamos aspectos do analisante ou da relação


analítica, resta-nos, por fim, descrever algumas impressões gerais
acerca do analista neste novo formato. Inicialmente, poderíamos dizer
que toda essa mudança, na maneira de atender nossos pacientes, tam-
bém nos afetou. Pode-se dizer que o cansaço redobrado foi inevitável:
o uso de telas, os problemas de conexão e de qualidade de som e ima-
gem, as interrupções das sessões por conta da privacidade, os novos
tempos de silêncio, a necessidade de marcações de presença, os novos
formatos de resistência, o novo timing das intervenções e cortes por
conta da instabilidade de conexão, são apenas alguns exemplos do
quanto foi preciso uma adaptação. Foi inevitável ter olhares atentos e
reflexão redobrada acerca de alguns novos fenômenos. Entretanto,
isso também nos mostra que, talvez, estivéssemos um tanto quanto
acomodados, em nossas poltronas e suposições de saber, em relação ao
nosso trabalho.
60 • A psicanálise às voltas com a peste

Por outro lado, ao longo do tempo, observadas essas diferenças de


formato, foi também possível, ao menos em nossa experiência, habitu-
armo-nos e, quiçá, experimentarmos maior relaxamento para a escuta.
Uma posição mais confortável na poltrona, uma calça menos apertada,
um snack de nossa própria geladeira, fizeram-nos menos cansados e,
possivelmente, mais relaxados para a escuta, apesar da maior quanti-
dade de trabalho para uns. Ou seja, o quanto nos perguntamos, no dia a
dia de nossa prática, se estamos, ou não, em condições favoráveis à
escuta de outrem? Sabemos o quão difícil é atender com dor, com fo-
me, sem contar as preocupações e aflições de nossa vida pessoal.
Idealmente, no momento dos atendimentos, deixamos isso de lado.
Porém, quanto conseguimos e quanto nos iludimos?
A escuta, enquanto contrapartida da regra fundamental, faz-se
outra regra fundamental para a Psicanálise: é preciso poder escutar.
Quanto mais, melhor. O que é escutar mais e melhor? Certamente não
falamos de quantidade.

INTERROGAR O DISPOSITIVO PARA CONSTRUIR NOVOS SABERES

Foi inevitável observar, desde o início da pandemia, certa aversão


à modalidade on-line. É possível que certo “preconceito” com a modali-
dade on-line, tenha sido fomentado pelo constante caráter de exceção
que essa modalidade adquiriu historicamente. Sabemos que a prática
das sessões à distância ocorre muito antes da pandemia do novo coro-
navírus, tendo seus primeiros relatos em 1951 (Scharff, 2011), onde
pacientes acamados eram, muitas vezes, atendidos por telefone, ex-
cepcionalmente. Além disso, a literatura pré pandemia do novo
coronavírus, em quase sua totalidade, também tende a abordar o tema
Wilian Donnangelo Fender • 61

dos atendimentos on-line como uma “alternativa” ao atendimento em


um setting padrão, oficial, mesmo de autores que argumentam a favor
desta modalidade, como é o caso de Fink (2006) e Scharff (2011).
Acreditamos que qualquer insistência de uma Psicanálise “ofici-
al”, em detrimento de variações de sua prática clínica, está mais
afinada com um determinado exercício de poder, enquanto autorita-
rismo, do que com a ética psicanalítica. Lacan (1958/1998) já alertava os
psicanalistas de sua época para que, diante da dificuldade em susten-
tar autenticamente uma prática, não recaíssem no uso autoritário do
poder, como regras rígidas impostas a seus pacientes. Em acordo com
o autor, acreditamos que qualquer fortaleza técnica impede aquilo que
de mais rico a Psicanálise pode fornecer, a saber, a inventividade, a
criatividade e a liberdade.
Como vimos ao longo do texto, muitas críticas que são direciona-
das ao atendimento on-line recaem sobre as “diferenças” em relação ao
consultório, sem se darem conta de que a diferença apontada, nada
mais é do que uma nova versão de fenômenos já, antes, observados. Os
analistas, mais do que ninguém, deveriam estar advertidos do impre-
visto inerente a qualquer prática humana. É preciso que estejamos
atentos para que uma comparação, superficial, com um atendimento
dito “padrão”, não nos feche os olhos e os ouvidos. Qualquer tentativa
de aproximação e comparação impedirá o analista de observar os fe-
nômenos próprios a essa modalidade e, dessa forma, o impossibilitará
de inventar novas soluções para as novas dificuldades. Isso vale para
todos os pontos que acima apresentamos: novas resistências, novas
maneiras de presença, novas maneiras de se relacionar com meios de
comunicação, e novo modo de pensar o corpo. Para cada um desses
62 • A psicanálise às voltas com a peste

pontos, é preciso cuidado, escuta, reflexão, construção, como nos pede


cada sessão com nossos analisantes.
De certo, não trataremos de todas essas problemáticas, o que será,
inclusive, cada vez mais necessário em nosso meio. No entanto, que-
remos propor que sustentar, autenticamente, a prática psicanalítica,
envolve saber responder a questão: o que significa, fundamentalmente,
praticar a Psicanálise com nossos pacientes?
O termo dispositivo tem sido usado, amplamente, para definir a
disposição dos meios que visam um determinado fim (Moretto, 2016).
Dispositivo psicanalítico, assim, aqui participa da ideia de método,
como apresentamos no início do texto. Ao realizar uma investigação
sobre o termo, Checcia (2010) enfatiza que, apesar da concepção de
poder associada a este termo na Filosofia e na Ciência, a Psicanálise
lacaniana o utiliza com abordagem diversa. Para o autor, um dispositi-
vo psicanalítico é composto por elementos heterogêneos que se
entrecruzam num jogo de forças múltiplo e sujeito a mudanças, tais
como: a associação livre, a transferência, o diagnóstico, o silêncio, a
interpretação, o tempo da sessão, e o pagamento. Estes, organizam as
estratégias e táticas subordinadas à política da direção do tratamento.
Percebamos que a maioria destes elementos, descritos pelo autor, de-
cantam também a partir de nossas observações iniciais sobre o
atendimento on-line, sob outros ângulos. A modalidade prática do
atendimento on-line questiona o dispositivo psicanalítico tal qual o
entendíamos – ou não - até então.
Na prática, sabemos que esses elementos não precisam estar to-
dos sempre presentes, e em todas as sessões. Uma sessão pode não ter
uma formulação diagnóstica, nem necessariamente uma interpreta-
ção, por exemplo, e, ainda assim, não sair do dispositivo psicanalítico.
Wilian Donnangelo Fender • 63

Porém, o que um analista não pode deixar de considerar, em qualquer


variação de sua prática?
Tomemos uma das definições da regra fundamental exposta por
Freud (1913/2010) em Sobre o início do tratamento. Neste texto, o autor
indica que essa regra solicita ao paciente que fale tudo que venha à
cabeça, sem censura, como se contasse a um passageiro, sentado na
poltrona ao lado de um trem, como a paisagem através da janela se
transforma. Essa fala do paciente dirigida ao analista possui um ponto
que deve ser diferente de uma conversa normal, já que não requer um
fio condutor. A ideia de transformação e da não necessidade de uma
coesão entre as ideias relatadas nos aponta para um ponto crucial em
nosso trabalho: o conteúdo do que o paciente nos diz não é o principal.
Não é isso que se escuta. O mais importante é, exatamente, essa trans-
formação, essa não coesão marcada pela falta de um fio condutor.
Isso não quer dizer que o conteúdo, que nos trazem em sessão
nossos analisantes, não importa – sabemos dos efeitos terapêuticos do
simples ato de fala para um outro disposto a escutar. Porém, não é
apenas aí onde opera um psicanalista.
Pressupor mecanismos arbitrários que “preparem” o analisante
para falar livremente – um consultório, sem barulho e cheiroso, o
trajeto do analisante antes da sessão, um tempo para que ele se desli-
gue do trabalho, etc. – ou achar que é preciso tudo ouvir, tal qual um
datilógrafo que digita todas as palavras no papel, não considera que é a
partir da transformação dos temas que temos acesso ao inconsciente.
É neste entre que podemos também pensar algumas das contribuições
de J. Lacan para a clínica psicanalítica, na medida em que o sujeito do
inconsciente está exatamente entre dois significantes. Observamo-nos
na definição do significante; em outras palavras: o significante é aqui-
64 • A psicanálise às voltas com a peste

lo que representa um sujeito para outro significante (Lacan, 1960/1998,


p. 833). A termo, isso significa que seria importante o analista decan-
tar, do discurso do analisante, os significantes que contam. Contar,
aqui, tem o sentido numérico, de somar-se, mas também o sentido
narrativo, de quem conta uma história. Não nos cabe, agora, desenvol-
ver este ponto, porém, é importante a formulação da questão: como
identificar um significante?
Quanto refletimos acerca do material trazido pelos pacientes nas
sessões? O “fale mais”, muitas vezes satirizado, é realmente necessário
em todos os casos, ou observamos, por vezes, a ausência de um analis-
ta que deixa de escutar esse entre? Um dos textos em que Freud
(1912/2010) nos descreve a tarefa da escuta do analista é em Recomen-
dações ao médico que pratica a Psicanálise. O autor nos apresenta a
ideia, a partir da discussão retórica com um analista iniciante, e com
pessoas leigas, que, por sua vez, julgariam muito difícil um analista
reter na memória todo o material de todos seus pacientes. A solução
que nos apresenta o autor, neste texto, é uma técnica que denominou
de “atenção flutuante”. Ao aplicá-la a tudo que se ouve, sem querer
notar nada em especial nos conteúdos que são ouvidos, o analista se
previne da fadiga de atenção – que seria impossível manter ao logo de
todo um dia – e, mais importante ainda, evita selecionar pontos espe-
cíficos no material trazido em sessão pelo analisante, muitas vezes
mais relacionados à expectativa e inclinação do próprio analista.
Enfatizemos, aqui, a importância dada pelo autor para a elimina-
ção de qualquer expectativa e inclinação por parte do analista. Isso vai
na direção contrária de qualquer tentativa de uma condição ideal para
que uma sessão psicanalítica ocorra. Não estaríamos observando nes-
sas exigências todas – fortalecidas pela passagem ao atendimento on-
Wilian Donnangelo Fender • 65

line – muito mais a neurose dos analistas em relação à sua prática, do


que uma impossibilidade de dar seguimento ao trabalho analítico?
A técnica da atenção flutuante está em estreita conexão com a re-
gra da associação livre pelo analisante. Porém, sabemos que não é
sempre que observamos, em nossa clínica, um paciente associar livre-
mente. Curioso seria, na verdade, se aquele que nos procura passasse a
associar livremente logo nas primeiras sessões. É preciso, além de
apresentar a regra da associação livre, conduzir o analisante nesta
empreitada. É o que nos fala Freud (1913/2010), ao recomendar que,
quando o discurso do analisante se encerra, possamos o relançar. De
certa forma, é preciso dar os primeiros passos com o analisante para
que ele, posteriormente, possa seguir. É o que também nos fala Lacan
(1958/1998, p. 592), ao propor que a direção do tratamento “consiste,
em primeiro lugar, em fazer com que o sujeito aplique a regra analíti-
ca”.
Essa dificuldade não se apresenta apenas naqueles que ainda não
conhecem a regra psicanalítica fundamental. Ela é dada, também, pela
dificuldade intrínseca ao processo de falar livremente. Deixar-se levar
pelo fluxo de seus pensamentos, sem receio do destino final, é extre-
mamente raro. Nem mesmo pacientes em análise há algum tempo o
fazem todas as vezes. Lacan (1958/1998), ao tratar o tema em Direção do
tratamento e princípio de seu poder, argumenta que uma fala livre, uma
fala plena, é penosa: “nada mais temível do que dizer algo que possa
ser verdadeiro” (Lacan, 1958/1998, p. 622).
Ou seja, para localizar um significante de um sujeito em sua rela-
ção com outro significante, é preciso algumas condições especiais, mas
essas condições são a associação livre e a escuta sob atenção flutuante,
não uma sessão livre de imprevistos e na qual o paciente leva um ma-
66 • A psicanálise às voltas com a peste

terial preparado. Outra condição, é que isso seja feito sob transferên-
cia.
Abordar o conceito de transferência no escopo deste nosso traba-
lho requer um recorte. É um conceito que foi se desenvolvendo na obra
de Freud e, depois, também em J. Lacan, à altura do Seminário, Livro
11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, onde Lacan
(1964/1998) a toma como uma mise en acte (atualização/encenação) da
realidade do inconsciente. Ao trabalhar o conceito, o autor acaba por
aproximar o conceito de transferência dos de repetição e de pulsão. É
dada, então, a conexão entre os conceitos fundamentais. Uma pulsão
que se repete em direção ao analista (transferência), nos indica que o
analista faz parte do inconsciente do analisante: “a presença do analis-
ta é, ela própria, uma manifestação do inconsciente” (Lacan, 1964/1998,
p. 125).
O mesmo é válido para a parte do analisante. Anos antes, em Dire-
ção do tratamento, Lacan (1958/1998, p. 602) afirma, categoricamente,
que é importante evitar o rompimento da relação transferencial; po-
rém, “quando se confunde a necessidade física da presença do paciente
na hora marcada com a relação analítica, comete-se um engano”. Ou
seja, quando falamos de presença, em Psicanálise, não estamos nos
referindo a ela enquanto presença física, corpos presentes.
A maior parte das críticas direcionadas ao atendimento on-line
argumentam, exatamente, a favor dessa presença física dos corpos. É o
que podemos observar em uma entrevista dada por Marie Helene
Brouse (2016) em que afirma que a “hiperconectividade implica uma
desconexão da palavra com o corpo”; ou em textos mais recentes, pu-
blicados durante a pandemia, como o de Solano-Suarez (2020): “o
corpo do analista, na sessão analítica, é o instrumento de um discurso
Wilian Donnangelo Fender • 67

sem palavras que dá corpo ao ato analítico e condensa, no semblante, o


gozo fora do sentido do analisante”.
Martinez (2016) recolhe argumentos semelhantes, de alguns auto-
res lacanianos, para mostrar que todos se apoiam em algumas ideias
presentes em um texto de Miller (1999/2010). Neste texto, uma confe-
rência que data de 30 anos, época em que as videoconferências
começavam a ocupar algum espaço no meio comunicacional, J.A. Miller
argumenta que é preciso que o analista coloque o corpo na sessão, pois
este corpo teria, em si, uma parte de um gozo não simbolizado, na
leitura que faz da obra lacaniana.
Não nos cabe, neste momento, realizar uma discussão aprofunda-
da sobre o corpo em Psicanálise, seu estatuto real, simbólico e
imaginário, o que vemos como necessário, e muito bem-vindo, en-
quanto pesquisas futuras. Principalmente, em sua articulação com os
atendimentos on-line. Porém, queremos destacar que, de acordo com a
pesquisa realizada por Martinez (2016), a inviabilidade de uma análise
ocorrer de maneira on-line, na perspectiva de Miller, está relacionada
com a ideia de que o corpo presentifica o Real, deixando de lado que o
Real do corpo surge a partir da articulação significante.
Ou seja, o corpo imaginário, enquanto consistência, pode não es-
tar presente na sessão on-line, mas, na medida em que este é efeito de
uma articulação significante e que o Real é produto desta, a análise
seria viável. Corre-se o risco, entretanto, de que tal leitura pode, de
alguma maneira, desconsiderar a importância do imaginário, em sua
amarração com os outros registros.
68 • A psicanálise às voltas com a peste

LONGE DE CONCLUIR

Vejamos que o tema do corpo, bem como todos os outros temas,


aqui abordados, a partir do atendimento on-line, requerem maior de-
senvolvimento. Acreditamos, porém que, para o escopo deste trabalho,
o que expusemos acerca de cada um deles, e suas relações, cumpre a
função desejada: retomar os alicerces do dispositivo psicanalítico para
sustentar que o atendimento on-line não só não impede a prática da
clínica psicanalítica, como também questiona o dispositivo psicanalíti-
co em seus fundamentos, nos convocando à reflexão, à inventividade e
ao exercício autêntico de uma prática.
Parte das críticas à modalidade on-line procura focar em uma ga-
rantia de um trabalho psicanalítico oficial, e, assim, deixa de lado a
essência de alguns conceitos psicanalíticos fundamentais. Sabemos
que S. Freud e J. Lacan não pensaram suas práticas considerando a
modalidade virtual, on-line e à distância. Assim, suas proposições não
consideraram as especificidades desse formato. No entanto, seria ne-
cessário ter essa garantia, esse aval dos mestres? O que estamos
propondo, neste trabalho, vai exatamente na contramão de alguma
garantia: é preciso que a garantia venha do próprio método psicanalí-
tico, e não ao contrário. A formulação mais precisa seria: qual o poder
que podemos extrair do dispositivo psicanalítico de tratamento? Este
poder está na lógica da clínica construída por Freud.
Encerramos com uma passagem que extrai a essência do método
psicanalítico. Lacan (1958/1998, p. 624) nos diz:

O analista, no entanto, dá sua presença, mas creio que, a princípio, ela é ape-
nas a implicação de sua escuta, e que, esta, é apenas a condição da fala. Aliás,
por que exigiria a técnica que ele a fizesse tão discreta, se assim não fosse?
4
ATENDIMENTO ON-LINE COM CRIANÇAS EM TEMPOS
DE PANDEMIA: MUDANÇA DE SETTING É MUDANÇA
DE TRABALHO?
Marina Belém Lavrador 1
Laura Carrasqueira Bechara 2

INTRODUÇÃO

Com a notícia de que a pandemia da Covid-19 chegava ao Brasil, no


primeiro semestre de 2020, nos vimos atravessados por um aconteci-
mento sem precedentes, articulado com aspectos políticos e sociais e que
tinham, necessariamente, efeitos subjetivos importantes de considerar-
mos nas nossas práticas. Nesse contexto, nós, psicanalistas atuantes na
clínica, em consultório e em instituições, nos defrontamos com a ques-
tão: como continuar os atendimentos, então, remotamente? Os pacientes
iriam concordar em dar seguimento aos atendimentos com essa mudan-
ça de setting? O que essa mudança implicaria no tratamento? Havia novas
questões a serem pensadas sobre a clínica, nesse momento?
Quando o paciente é adulto, podemos considerar que a fala e a es-
cuta, de alguma maneira, apesar das diferenças, podem ser
preservadas via plataformas de comunicação. Ainda assim, nos defron-
tamos com novos desafios, que, em cada caso, se evidenciaram de um
jeito. A falta de privacidade de alguns para realizar as sessões, o retor-

1
Psicóloga e Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP).
Membro do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição do IPUSP. Membro da equipe clínica do
Lugar de Vida - Centro de Educaçao Terapêutica.
2
Psicóloga e Psicanalista. Doutoranda e Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da
USP (IPUSP). Membro do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição do IPUSP.
70 • A psicanálise às voltas com a peste

no de pacientes para a casa de parentes próximos, distanciamento de


casais que não moravam juntos, pais que precisavam, então, cuidar dos
filhos em tempo integral, para citar alguns exemplos.
O atendimento remoto fez com que nos perguntássemos e nos de-
frontássemos com mudanças que diziam respeito ao corpo – imaginário,
simbólico e real – e à linguagem. Qual seria o estatuto dos objetos da
pulsão, como a voz e o olhar, nesse novo dispositivo? Como pensar nas
imagens que apareciam nas telas, do paciente e do analista, e nas vezes
em que essa imagem funcionava como um espelho, para um paciente?
Qual o estatuto da linguagem nesses dispositivos? Havia mudanças nas
possibilidades de fala, de silêncio e de intervenções do analista?
Outras questões importantes são relativas ao que é da ordem do
público e do privado, e evidenciaram limites, muitas vezes, de ordem
social. Pacientes que não têm acesso à Internet, ou não têm possibilida-
de de um espaço privativo de atendimento na própria habitação. Como
escutar uma mulher vítima de violência doméstica, quando ela estava
confinada em casa, muitas vezes junto com o marido agressor? Como
escutar adolescentes que moravam com seus pais e dividiam quarto
com outros irmãos? Mesmo nos casos de adultos que contavam com
condições de privacidade e acesso à rede da Internet, ainda assim não
nos livramos de resistências diversas, fosse do paciente, fosse do ana-
lista ou, ainda, da própria conexão da Internet que, por vezes, falhava.
Por sua vez, diante dessa grande mudança de cenário, uma clínica
que traz sua especificidade nos indagou ainda mais: a clínica com cri-
anças. Atendemos crianças, tanto no consultório como em uma
instituição de saúde mental privada, o Lugar de Vida – Centro de Edu-
cação Terapêutica; e, diante da notícia da necessária quarentena, nos
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 71

perguntamos, como provavelmente outros diversos psicanalistas de


crianças: e agora? Como ficariam os atendimentos das crianças?
De nossa parte, o primeiro pensamento, naquelas primeiras se-
manas de quarentena, foi de que seria impossível seguir atendimentos
de crianças pela via remota. Ou, ao menos, o das crianças menores. Ao
mesmo tempo, em nenhum dos casos em atendimento, era pertinente
uma interrupção do trabalho por tempo indeterminado. Como fazer
então? Seria possível continuar? Que trabalho poderíamos realizar?
Seria necessário seguir, apenas, com a escuta de pais?
Sabemos que esses atendimentos são construídos pelo e com o
corpo das crianças em relação com os corpos dos analistas, de uma
maneira bastante diferente do atendimento de adultos ou, até mesmo,
de adolescentes. Nos atendimentos de crianças, a ideia de que o analis-
ta se oferece com o próprio corpo se faz bastante clara. Se o sujeito do
inconsciente se faz presente na clínica de crianças, tanto quanto na de
adultos, certamente há diferenças teóricas e técnicas a se considerar
nessas análises.
Com as crianças, a enunciação se faz presente não apenas pela via
da fala diretamente endereçada, em associação livre, ao analista, mas
sim por outras vias. Pacientes, muitas vezes, bastante enérgicos que
fazem com que seus atendimentos sejam ocupados com o brincar e
com a fantasia particular de cada um. Diferentemente do adulto que
fala e, talvez, atue sobre isso, a criança brinca – e se não brinca, nos
atentamos particularmente para isso, é um sinal importante para a
construção da direção de tratamento. Claro, podemos abrir um parên-
teses sobre as diferenças entre as crianças, de acordo com sua posição
na linguagem. O brincar, aqui, é genérico; na sequência, falaremos
72 • A psicanálise às voltas com a peste

sobre o estatuto do brincar, de acordo com a singularidade de cada


criança, cada posição no laço, e em cada estrutura clínica.
Como estabelecer as principais vias de expressão de linguagem da
criança, o brincar, o desenhar, o movimentar, com outro tipo de pre-
sença que implicava em uma distância física?
Lacan dizia que a resistência é, sobretudo, resistência do analista.
A provocação que o autor realiza no texto “A Direção do Tratamento e
os Princípios do seu Poder” (1958/1998) nos parece fundamental de ser
pensada, no que concerne ao atendimento de crianças pela via remota.
Certamente, a oferta de atendimento on-line implicou um luto, no
sentido de deixar cair um certo ideal do que se pode operar nos aten-
dimentos presenciais – não só do paciente, mas, também, do analista.
Por sua vez, o sujeito do inconsciente insiste em se fazer aparecer, seja
remotamente, seja presencialmente.
Dessa maneira, foram as próprias crianças – analisantes – que
nos mostraram que era importante, e possível, seguir o seu trabalho de
análise, nos surpreendendo, “sabendo fazer” com a situação inédita e
nos relembrando, então, que as condições para uma análise ocorrer
não são o setting, um espaço físico, a presença desses ou aqueles brin-
quedos em uma caixa lúdica etc. Mas sim, fundamentalmente, o
desejo! Por parte do analisante, por parte do analista.
A partir de algumas primeiras experiências clínicas, em que al-
gumas crianças – menos resistentes que seus analistas – nos
mostraram o desejo em seguir suas análises, e da troca com colegas e
pares que trabalham com crianças, nas quais escutamos relatos e sur-
presas parecidas, foi possível um reposicionamento em relação àquela
primeira sensação de impossível. Sair da angústia para seguir susten-
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 73

tando a posição de analista, ofertar a escuta, e seguir o trabalho não


com algumas, mas com a maioria das crianças que atendemos.
A troca com os colegas, a construção de uma rede, e a manuten-
ção dos laços com os outros analistas foram fundamentais. A passagem
da ideia de que o atendimento on-line de crianças era quase impossível,
para o surpreender-se com o possível que se apresentava, ocorreu não
só conosco, mas com outros analistas, e os relatos clínicos de uns e
outros – nos espaços de supervisão, nas equipes de trabalho, nas rodas
de conversa entre equipes institucionais etc. – deram estofo para se-
guir os trabalhos de análise, mesmo com as restrições da pandemia.
Claro, é necessário cuidado com generalizações. Houve casos em
que não se fez possível, ou indicada, uma continuidade por via remota.
Casos mais desafiadores que outros. Casos em que não foi simples
atravessar resistências, e, para além disso, nos quais o remoto dificul-
tou a persistência do laço transferencial e o seguimento do trabalho.
Vale acrescentar, também, que neste capítulo abordamos o que
experienciamos nos primeiros dois meses de quarentena no Brasil. Na
ocasião, não tínhamos, ainda, a dimensão do prolongamento que a
pandemia teria no país. Assim, tratamos aqui do atendimento remoto
de crianças, suas possibilidades e seus alcances, diante de uma situa-
ção que, até então, se colocava como temporária e emergencial.
É importante explicitar que verificamos um esgarçamento de tais
possibilidades, e a inflagem de um sofrimento psíquico de crianças e
de suas famílias, conforme a situação pandêmica e de isolamento soci-
al prolongou-se, indefinidamente, nos meses seguintes; o que, pouco a
pouco, nos levou a sustentar o retorno de atendimentos presenciais de
crianças, em boa parte dos atendimentos. Além disso, os fragmentos
clínicos, citados neste capítulo, são todos de atendimentos que já havi-
74 • A psicanálise às voltas com a peste

am se iniciado anteriormente ao isolamento social – não abordaremos


aqui, portanto, a discussão acerca dos atendimentos de criança nos
quais o laço com o analista já se iniciou pela via remota.
Feito tal adendo, o que verificamos nesses primeiros meses de
quarentena, é que não era a idade da criança, a estrutura clínica, ou
nenhum outro fator, a priori, que indicava, ou não, a possibilidade de
seguimento de trabalho pela via remota, ou levava à decisão pela sua
não indicação, mas, sim, aspectos que diziam respeito ao absolutamen-
te singular de cada caso, cada sujeito e cada família. Da mesma
maneira, a construção de um novo setting e as estratégias inventadas
para seguir analisando crianças nesse momento, só foram possíveis
considerando tais particularidades, a partir do que se apresentou para
nós, na clínica. Considerando a posição de cada criança, na transferên-
cia estabelecida com o analista, e a posição de cada casal parental ou
demais adultos envolvidos no tratamento da criança. Mas, se pararmos
para pensar, é assim em Psicanálise: só podemos atuar, ler, intervir,
considerando o a posteriori!
A Psicanálise é, em si, uma pesquisa (Nogueira, 2004), e a constru-
ção de teoria, em Psicanálise, ocorre a partir da clínica. No momento
em que nos encontrávamos, a necessidade de que os atendimentos
ocorressem imperativamente pela via remota, imprimiram uma limi-
tação real nos nossos atendimentos, que levaram à experimentação de
uma clínica diferente da que já estávamos habituados. Trata-se de um
momento de construção, de não recuar diante desse contexto, e tam-
pouco desconsiderá-lo, mas construir, costurar e teorizar sobre os
tratamentos, possíveis, de crianças, com a introdução desse novo set-
ting de atendimento.
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 75

Assim, o que queremos compartilhar, neste texto, inclui alguns


extratos clínicos em torno da nossa experiência no primeiro mês de
atendimento on-line de crianças, e, a partir dele, levantar algumas
primeiras questões teóricas que construímos, ainda em um instante de
ver e princípio de tempo de compreender, acerca desta prática. Mais
uma vez consideramos, ao sustentar esse texto, a importância de que
nós, psicanalistas, possamos construir uma rede e um saber comparti-
lhado, de modo a ter em vista a ética da Psicanálise e traçar os
possíveis, diante de tempos tão frágeis como os que vivemos.
Vale apontar que falamos do lugar de analistas de crianças que
atendem em consultório e em instituição privada, de modo que abor-
daremos casos nos quais o seguimento, por alguma via remota, foi, em
si, possível no que concerne às condições materiais, não sem resistên-
cias. É fundamental a advertência de que existem outros desafios
concernentes aos atendimentos às populações vulneráveis que não
têm acesso, por questões referentes às condições sociais e políticas do
nosso país, ao atendimento por meio de tecnologias, como é o caso de
grande parte dos usuários dos serviços públicos de saúde, como CAPS,
UBS, Hospitais Públicos e organizações não governamentais (ONGS).

A TRANSFERÊNCIA, O DESEJO DO ANALISTA E O ESTATUTO DO CORPO


NOS ATENDIMENTOS VIRTUAIS.

A partir de quais operadores podemos sustentar a oferta de uma


continuidade do atendimento de crianças pela via remota? Certamen-
te, pelos mesmos de sempre: a transferência e o desejo de analista.
Leda Bernardino (2004) discute em seu texto “O desejo do psicanalista
e a criança”, as especificidades do desejo de analista na clínica com
crianças. Não se trata, evidentemente, de um texto sobre atendimen-
76 • A psicanálise às voltas com a peste

tos on-line. Parece que essa não era uma questão que se colocava para
os analistas antes de vivermos uma pandemia. Mais uma vez, perce-
bemos que o analista atua de acordo com o real e com as contingências
de seu tempo histórico.
A experiência de atendimento remoto com as crianças nos primei-
ros meses de quarentena explicitou, em primeiro lugar, que havia uma
continuidade possível quando a transferência da criança, e de seus pais,
com o analista se mantinha, e desse modo, a criança-sujeito podia seguir
endereçando suas questões ao analista, e os pais seguiam apostando em
um trabalho, autorizando tal continuidade da análise da criança. Claro,
há particularidades a serem consideradas, que vacilam com a transfe-
rência nesse novo setting. Mas como e por que a transferência se
manteve? Como pensar a transferência, considerando as mudanças que
a separação física e a necessidade da mediação da tela e do dispositivo
virtual impõem ao encontro que ocorre remotamente – no que concerne
ao corpo, e à linguagem? São questões de pesquisa que nos parecem
fundamentais, e para as quais ainda não temos respostas, mas sim al-
gumas constatações clínicas que nos apontam “pistas” para pensá-las.
O que fomos percebendo no atendimento de crianças que já tinham
estabelecido uma transferência com o dispositivo analítico, foi a inven-
ção, nesse novo setting, de maneiras de continuar o trabalho de análise
que vinham realizando presencialmente. O setting on-line inaugurou
novidades que foram exploradas pelos pequenos pacientes como, por
exemplo, brincadeiras com a imagem, uso do chat, brincadeiras de tirar
fotos etc., mas comumente o que percebemos é que eles “deram seu
jeito” de seguir o que vinham construindo presencialmente.
O endereçamento de certos materiais que diziam respeito ao tra-
balho psíquico do paciente persistiu em direção ao analista, ainda que
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 77

ele estivesse agora aparecendo e sendo escutado pela via de um dispo-


sitivo móvel ou pelo computador. Uma criança de cinco anos e outra de
seis anos escolheram nas primeiras sessões remotas um livro ou uma
história para contar à analista. As escolhas não foram arbitrárias, mas
sim precisas em relação às questões que estas pacientes destinavam ao
espaço de análise. O que aponta para essa transferência que transcen-
de a materialidade de um espaço físico ou dos próprios corpos. Por
vezes, os pacientes crianças se deslocavam e desapareciam de vista do
analista, mas ainda assim continuavam a contar ou a brincar, supondo
e confiando na presença e na escuta que o analista sustentava.
Certamente, os atendimentos on-line imprimiram também novi-
dades importantes de se considerar acerca do estatuto do corpo – e na
análise de crianças, como já ressaltamos, o encontro entre os corpos de
analista e de analisando é aspecto fundamental do trabalho e dos jogos
que se estabelecem sob transferência. Como ficaram as questões rela-
tivas ao corpo, nos atendimentos remotos?
Instituiu-se uma distância entre os corpos, que agora se juntavam
sob outras contingências, e as crianças nos deram então notícias, como
alguns pacientes adultos, de que tal diferença era percebida, bem como
de que havia certa “disjunção” entre a imagem que aparecia na tela,
chapada, em duas dimensões, e seu analista. Nomeavam tal diferença,
cada uma na sua posição subjetiva, demonstrando que havia algo novo
em jogo na transferência e relativo ao corpo, mas também demons-
trando que a transferência se mantinha.
Assim, um paciente, de sete anos, perguntou, em um de seus pri-
meiros atendimentos remotos: “Laura, você é a mesma Laura de
sempre? Sua voz está diferente”. Outra paciente, uma menina com
78 • A psicanálise às voltas com a peste

entraves na constituição subjetiva 3 e dificuldades de endereçamento


da fala, surpreendeu ao afirmar, demonstrando espanto, no início de
uma sessão em que atendeu a ligação de Skype junto com a sua mãe:
“Você parece a Marina!”. Ou seja, podemos nos perguntar, o que se
perde, mas o que se sustenta por meio desses atendimentos remotos?
Passados os primeiros encontros que traziam um estranhamento,
parte de algo muito novo e inusitado, algumas crianças e nós mesmas
tivemos a chance de nos reinventar e ocupar esse espaço. Ainda que
percebêssemos oscilações entre as semanas, vimos alguns pacientes
driblarem a tecnologia, possibilitando a criação de jogos, inclusive, de
presença e ausência.
Uma paciente de cinco anos sugeriu uma brincadeira de esconde-
esconde dos brinquedos, ela se escondia ou escondia uma boneca e
pedia para que a analista fechasse os olhos e, depois, falasse onde
achava que a paciente ou a boneca estava. Depois, era a vez da analista
se esconder… ou seja, ainda que a brincadeira não passasse pelo toque
do corpo, o corpo comparecia na medida em que podia ser falado, dito
e, inclusive, procurado em um jogo de presença-ausência.

ATENDIMENTO DE CRIANÇAS EM TEMPOS DE “PESTE”: OFERTANDO A


POSSIBILIDADE DE QUE TAMBÉM ESSES SUJEITOS PUDESSEM ENCONTRAR
PALAVRAS, NOMEAÇÕES E REALIZAR CONSTRUÇÕES SIMBÓLICAS PARA
BORDEJAR A ANGÚSTIA COM A QUAL NOS DEFRONTAMOS.

Assim como nós, adultos, estávamos tomados, receosos e preocu-


pados com a situação que a pandemia no contexto brasileiro imprimia,

3
Termo utilizado para designar crianças cuja constituição subjetiva encontra-se comprometida por
diferentes fatores, e que se encontram “em risco de evolução em direção às psicopatologias graves da
infância” (Kupfer, Pesaro, Bernardino, Merletti, 2017, p.36), como o autismo, a psicose infantil, os
retraimentos relacionais e as depressões na infância.
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 79

é importante considerar a existência do sofrimento psíquico que a


pandemia e o isolamento produziram, desde o princípio, nas crianças.
Elas também foram submetidas às mudanças repentinas e que altera-
ram profundamente suas rotinas, o que, para algumas crianças, foi,
inclusive, extremamente desorganizador. Essa consideração, que leva
em conta a presença de sujeito nas crianças, justificou a importância
de se garantir um espaço de atendimento a elas, nesse momento.
A análise tornou-se, também, espaço de elaboração das crianças
sobre o que estava acontecendo, o que era a pandemia. Um garoto de 7
anos aproveitou sua análise para contar histórias sobre o tempo atual
e, diferentemente do atendimento presencial, permitiu que a analista
escrevesse o que ele estava contando, para que ela pudesse ler junto
com ele. Uma das histórias criadas foi sobre o “coronavírus” e o “reino
onde o vírus era o rei”. Em sua história, a única coisa que podia salvar
esse reino era o “papai-do-céu”, maneira que o garoto encontrou para
nomear algo que percebia escapar às escolhas dos adultos que estavam
à sua volta.
Outro fragmento surgiu na fala de um paciente de 2 anos e 11 me-
ses: “Marina, eu estou na minha casa, não posso ir até a quadra, porque
os bichinhos invisíveis não podem me pegar, mas...”. O paciente repe-
tiu essa frase, com variações, algumas vezes à analista, olhando para a
tela, no seu primeiro atendimento remoto e primeira semana de qua-
rentena, sempre com esse “mas” e reticências no final; em nossa
leitura, indicando a persistência do real e do sem-sentido nas tentati-
vas de dar sentido ao que estava vivendo, e à sua angústia.
Para outra paciente, de 10 anos, o que era vivido por todos foi
nomeado enquanto “mistério”. Outra paciente, de 5 anos, repetia o
quanto sentia falta de sua escola, “seu lugar preferido do mundo”. E
80 • A psicanálise às voltas com a peste

ainda, em uma primeira sessão remota, uma paciente de 9 anos cons-


truiu um cenário “de terror”, onde apagou as luzes do lugar que estava
e fez a câmera ficar girando e girando. São exemplos clínicos que enri-
quecem nossa leitura sobre os efeitos da pandemia nas crianças.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES BREVES SOBRE OS ATENDIMENTOS DE


CRIANÇAS COM ENTRAVES ESTRUTURAIS NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA.

A submissão ao atendimento on-line também permitiu, em alguns


casos, constatações clínicas, até então impossíveis em contexto típico,
trazendo elementos que, inclusive, contribuíram para averiguar o
estatuto do Outro para a criança, e relançar hipóteses diagnósticas
acerca de sua posição na linguagem. Nos casos de crianças com entra-
ves estruturais na constituição psíquica, isso se evidenciou quando
notamos diferenças, por exemplo, no suscitado pelo atendimento por
vídeo: para algumas, ele era de ordem persecutória, enquanto, para
outras, podia-se constatar um apaziguamento promovido nesse dispo-
sitivo da presença invasiva do adulto ou outro humano.
Observamos crianças com hipótese diagnóstica de autismo, que
nas sessões presenciais nunca paravam de se movimentar e ativamen-
te evitavam o analista, seu olhar e sua voz, mas que, diante da tela,
demandavam a presença do outro, podendo-se sustentar a hipótese de
que a tela funcionava como um “anteparo” para essas crianças (Becha-
ra et al., 2021).
A presença frequente dos pais, em muitos desses casos em que a
criança ainda não tinha condições de realizar o atendimento sozinha,
possibilitou outra forma de atendimento, em conjunto com os cuida-
dores. Em um deles, a analista passou a nomear, observando as
atividades cotidianas realizadas pelos pais com o filho no ambiente
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 81

familiar, as trocas prazerosas realizadas entre eles (Bechara et al., no


prelo). Assim, a analista pôde sublinhar as significações dadas pelos
pais nos momentos de cuidado com a criança, como as refeições, a
hora do banho, a hora das atividades escolares, o que foi fundamental
na direção de tratamento desse caso.
Em outro atendimento, houve a possibilidade de aproveitar o no-
vo setting para tratar do lugar embaraçado dos dispositivos virtuais na
constituição subjetiva de uma criança (Bechara et al., 2021). Tratava-se
de um menino que apresentava entraves na sua constituição psíquica e
impasses na fala, desde muito pequeno: quando chegou ao tratamento,
apresentava, de um lado, recusa da demanda veiculada na voz dos
outros humanos, e ausência de uma demanda própria endereçada, na
linguagem, aos outros, e, de outro lado, apresentava uma fala, embora
muitas vezes colada nos vídeos que assistia no YouTube e em desenhos
animados de televisão.
Na ocasião de início da pandemia, este paciente já se encontrava
em outra posição no laço e em relação à demanda, mas a fixação nos
dispositivos eletrônicos e no conteúdo ali oferecido persistia, em al-
guma medida. Por sua vez, no atendimento remoto, a presença da
analista era da ordem do “ao vivo”, impossível de ser retomada e repe-
tida posteriormente, como era o caso dos desenhos animados ou
vídeos da Internet (Bechara et al., 2021). Nas primeiras sessões remotas,
esse menino parecia “assistir” ao atendimento como assistia outros
conteúdos no celular; porém, foi marcante a sessão em que reconheceu
a analista do outro lado da tela, como se dando conta de sua presença,
e gritando seu nome muitas vezes, eufórico. Iniciaram-se então, via
dispositivo virtual, importantes jogos de presença e ausência. Nesse
atendimento, uma importante direção de tratamento, já no presencial,
82 • A psicanálise às voltas com a peste

era a sustentação de tais brincadeiras, que perpassam o campo pulsio-


nal e constitutivo do sujeito.
No dia seguinte a essa marcante sessão, por sua vez, esse garoto
solicitou aos pais para ver a analista da mesma maneira que solicitava
pelos seus desenhos animados preferidos, e foi possível, assim, ir ma-
nejando esse lugar dos dispositivos eletrônicos com ele, uma vez que o
imediatismo de assistir ou ver o que existe enquanto arquivo do celu-
lar, do computador, não existe no encontro on-line com o analista. Era
preciso esperar o horário e o dia da sessão, ainda que ele tivesse des-
coberto, como outros pacientes, um “novo canal” para falar com sua
analista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos primeiros dois meses de “experimentação”, algo foi conclusi-


vo: foi possível dar continuidade aos atendimentos de crianças, talvez
não em todos os casos, mas em boa parte. Afirmamos isso, principal-
mente, pelas invenções e possibilidades que as próprias crianças foram
criando. Algumas, por meio de novos enredos e disparadores, outras,
adaptando suas brincadeiras e seguindo brincando dos mesmos jogos
que realizavam antes presencialmente, agora com os brinquedos de
casa e compartilhando com o analista, por meio da voz e da imagem.
Interessante pensar que, em termos de função, a escuta como privile-
giada, nesse momento, pode se preservar. Ainda que, algumas vezes, as
crianças “nos esquecessem” imaginariamente, deixando os celulares
ou computadores e continuando seu endereçamento fora do que a tela
podia captar, contavam com a presença do analista.
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 83

Submetidos ao distanciamento social que se colocou, então, como


imperativo sanitário emergencial, e não podendo nos deslocar de nos-
sas casas, foi fundamental sustentar tais atendimentos, de modo que
isso não implicasse na interrupção ou suspensão completa de nosso
trabalho, e na ausência do analista nesse momento, tão inusitado e
delicado, no dia a dia das crianças e de suas famílias. Se não era possí-
vel o encontro presencial, pudemos criar novas formas para sustentar
o laço e a transferência dos pacientes em trabalho. Inclusive, conside-
ramos que isso é parte da responsabilidade do analista, como plus da
transferência.
Em grande parte dos atendimentos, as famílias se dispuseram e se
implicaram na construção do novo setting de trabalho, o que demons-
tra que a transferência e o sujeito do inconsciente resistem à
pandemia. As crianças nos surpreenderam quanto ao uso da tecnolo-
gia, e os atendimentos, tanto individual quanto em grupo, no caso da
instituição, continuaram. Cada caso com sua respectiva estratégia,
alguns com diminuição do tempo de atendimento, outros com a trans-
formação do atendimento individual em um atendimento conjunto
com os pais, outros com o aumento da frequência. Às vezes, com a
inclusão de um novo dispositivo, por exemplo, a escuta de pais que,
nesse momento, precisaram de um espaço a mais de escuta, diante do
desafio de estar o tempo todo com os filhos.
Por sua vez, vale retomar que, conforme citado, abordamos, nesse
capítulo, o vivenciado nos primeiros meses de isolamento social e de
quarentena, durante os quais o atendimento remoto ainda se colocava
como uma realidade temporária e emergencial. É essencial frisar que,
com o prolongamento da pandemia e do modo específico como ela foi
vivenciada no contexto brasileiro, novos aspectos vieram à tona, que
84 • A psicanálise às voltas com a peste

nos levaram a reconsiderar as estratégias de intervenção com as cri-


anças.
Assim, se de um lado consideramos crucial compartilhar tais
constatações clínicas articuladas naquele momento inicial, de outro, o
que o prolongamento da quarentena e do distanciamento social evi-
denciou, nos meses seguintes, foi a importância dos encontros
presenciais na infância, na clínica e para além desta. Especificamente
no caso das crianças pequenas, notamos que o isolamento social e a
impossibilidade de estabelecimento de uma alternância entre campo
familiar e campo social (na infância, representado pela função funda-
mental das escolas e creches) ocasionou no aparecimento de uma série
de formas de sofrimento psíquico e sintomas que levantam um alerta
que deve ser considerado pelos analistas de crianças nos tempos atu-
ais. Ainda que este não seja o tema deste capítulo, achamos importante
mencionar a quantidade de novas procuras de atendimento que viven-
ciamos com o prolongamento da quarentena, com o aumento
exponencial de queixas como agressividade, atrasos na linguagem,
apatia, compulsão alimentar na infância, dentre outras.
Além disso, em alguns casos de crianças que nos primeiros meses
mostraram possibilidades de seguimento via remota, inclusive citados
nesse capítulo, em um segundo momento o prolongamento da quaren-
tena levou ao esgarçamento do laço transferencial e da possibilidade
de trabalho. Houve crianças pequenas ou com entraves estruturais em
sua constituição que pareciam não mais reconhecer, depois de oito,
dez meses de quarentena, o seu analista na tela, bem como crianças
para quem a presença dos pais nos atendimentos ou as perdas de fron-
teira entre o campo familiar e o coletivo proporcionaram novos
quadros psicopatológicos ou inflaram os sintomas já existentes, dentre
Marina Belém Lavrador; Laura Carrasqueira Bechara • 85

outros. Foram casos nos quais se fez necessário algum retorno presen-
cial em um segundo momento da pandemia. Esses efeitos, coletados
em um segundo tempo da pandemia de Covid-19 no Brasil, somente
reforçam, por sua vez, a importância do encontro de corpos e da possi-
bilidade da criança de habitar o laço social para além do campo
familiar, podendo estar na escola e em companhia de outros crianças,
para sua constituição psíquica e emergência como sujeito. Considera-
mos, então, que há riscos imensuráveis envolvidos em propostas
políticas circulantes atualmente, como propostas de homeschooling e
outros projetos de desmonte à Educação.
5
AS FONTES DE MAL-ESTAR E A PANDEMIA: UMA
EXPERIÊNCIA EM ENFERMARIAS COVID-19
Amanda Sant'Anna 1
Luisa Moraes 2
Marcos Brunhari 3
Mariana Rabello 4
Priscila Mählmann 5
Vinicius Darriba 6

O texto escolhido para propor uma interlocução com nossa expe-


riência no Hospital Geral, diante da pandemia de Covid-19, não poderia
ser diferente. Escrito em 1929, “O Mal-estar na Cultura” foi fruto de
diversos acontecimentos pregressos na vida de seu autor. Desde o fim
da Primeira Guerra Mundial, Freud pôde repensar sua teoria, sobre o
princípio do prazer, a partir das neuroses traumáticas dos soldados
que conseguiram retornar para suas casas. Em sua vida pessoal, havia
lidado com a angústia de ter três filhos convocados para lutar nos
combates. Havia tido a sorte de ser de uma das poucas famílias que não
perdeu membros nas batalhas, porém essa sorte logo se dissipou nos

1 Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional


– Modalidade Residência Hospitalar. IP-UERJ. (2021)
2 Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Especialista em Psicologia Clínica Institucional –
Modalidade Residência Hospitalar. IP-UERJ. Psicóloga do Ambulatório Pós-COVID-19 do HUPE.
3 Professor Adjunto do Departamento de Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ. Membro do
Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ.
4 Psicóloga do Instituto de Psicologia da UERJ, Preceptora da Residência em Psicologia Clínica
Institucional.
5 Psicóloga. Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar. IP-
UERJ. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ.
6 Professor Associado do Instituto de Psicologia da UERJ, Coordenador da Residência em Psicologia
Clínica Institucional. Membro do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ.
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 87

anos pós-guerra. Junto à escassez de mantimentos alimentícios, e à


precária assistência à saúde, a gripe espanhola, causada pelo vírus
influenza, reduziu drasticamente a densidade da população mundial.
Assim como a Covid-19, pouco se sabia sobre esse “inimigo invisí-
vel” e, ainda com os efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial,
novamente a humanidade se viu desamparada. Se Freud conseguiu
escapar da perda de familiares durante os combates, não teve a mesma
sorte com a gripe espanhola. Grávida de seu terceiro filho, Sophie, tida
como a filha favorita de Freud, foi internada no hospital por complica-
ções na gravidez e, lá, contraiu influenza, que causou sua morte por
pneumonia grave. Em um cenário similar ao enfrentado por tantas
famílias durante a pandemia de Covid-19, Freud não pôde se despedir
de sua filha, pois não havia transportes disponíveis na Viena pós-
guerra.
Nos anos seguintes, o austríaco ainda descobriu e sofreu as com-
plicações de um câncer de laringe, perdeu um neto e amigos próximos,
além de observar e sofrer toda movimentação política que resultaria
na Segunda Guerra Mundial. Esses fatos não passaram despercebidos
na construção de sua teoria e em sua prática, e são evidenciados pelas
discussões que Freud decidiu realizar desde então. No texto “O Mal-
estar na Cultura”, o autor aborda o conflito entre as exigências da pul-
são e as restrições impostas pela cultura, levantando, assim, as
questões suscitadas pela busca da felicidade e do prazer em face aos
paradoxos da satisfação. Buscaremos retomá-las no contexto de nossa
prática na dita “linha de frente” do combate à pandemia atual.
88 • A psicanálise às voltas com a peste

1. O PROGRAMA DE URGÊNCIAS SUBJETIVAS E A COVID-19

O “Programa para atendimento às situações de urgências subjeti-


vas” foi criado a partir da constatação da falta de um dispositivo
pronto a acolher as situações que necessitavam de um atendimento
psicológico, mais imediato, no hospital. O objetivo inicial era acolher
pessoas em situações de crise, hospitalizadas por diversos motivos,
bem como seus acompanhantes. A presença do psicólogo, neste mo-
mento, visa a abertura de um espaço, para que se crie uma forma de se
haver com o insuportável, em uma oportunidade de singularização do
cuidado. Por via desse posicionamento, desdobra-se a experiência de
hospitalização e de adoecimento, em uma produção de saber por parte
do sujeito.
Em março de 2020, mês de início das atividades do Programa de
Urgências Subjetivas, a equipe – composta por residentes de Psicolo-
gia, supervisores e preceptora – foi surpreendida pelo aumento rápido
do número de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus no Brasil,
e especificamente, no Rio de Janeiro, local de nossa atuação. Por solici-
tação da Comissão de Crise do Hospital Universitário Pedro Ernesto da
Universidade do estado do Rio de Janeiro, começamos a atuar direta-
mente no setor Covid-19, que, naquele momento, estava sendo
organizado, e veio a contar com cinco enfermarias e cinco Centros de
Terapia Intensiva (CTIs) naquele ano, totalizando cerca de 130 leitos.
Fomos reconhecidos em nossa importância para esse cenário que pe-
gou a todos desprevenidos, e foi preciso, em razão disso, que
repensássemos nosso Programa. O pedido da Comissão de Crise foi que
nos aproximássemos das famílias que tinham seus membros interna-
dos no HUPE, seja acolhendo suas angústias, seja estando presente no
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 89

momento da notícia de óbito, e posterior reconhecimento do corpo.


Em nossas discussões durante as supervisões, apontamos, também,
para a importância do contato com a família pelo paciente em isola-
mento no hospital. Daí surgiu, então, a proposta das Visitas Virtuais,
que abordaremos mais à frente.
Com a finalidade de organizar nosso trabalho, entrevistamos os
chefes de cada enfermaria e CTI Covid-19 para que apurássemos as
demandas e entendêssemos os fluxos, protocolos e possibilidades de
presença para as psicólogas. Encontramos setores mais receptivos, e
outros mais céticos, a respeito do que poderíamos oferecer diante
daquele cenário, que tomava proporções nunca antes enfrentadas pela
grande maioria dos profissionais de saúde. De forma retroativa, vie-
mos a entender que nosso crédito inicial, na construção desse novo
trabalho, foi de refletir junto aos médicos, enfermeiros e técnicos de
enfermagem sobre a esquecida condição humana dos pacientes em
isolamento compulsório. Ao questionarmos sobre certos assuntos, a
equipe foi convidada a analisar sua atuação, que poderia se tornar
automática devido à grande carga de atividade. Diante do aumento de
casos, horas a mais de trabalho, medos e angústias pessoais, dentre
outros fatores, foi preciso apontar para os efeitos negativos de se estar
isolado e a importância de ter alguém com a função de aproximar o
paciente daquilo que lhe é conhecido. Essa função pôde ser exercida
pelas psicólogas.
Também, entendemos como essencial participar de palestras edu-
cacionais sobre Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e
contaminação, pesquisamos iniciativas já existentes com pacientes em
isolamento, e buscamos as orientações de nossos órgãos regulatórios.
Dialogamos com a Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do
90 • A psicanálise às voltas com a peste

HUPE e pensamos práticas de acolhimento aos funcionários, pacientes


e familiares. Após diversas reuniões, nasceu o Projeto PsiCovid-19.
Inicialmente, dividimo-nos entre enfermarias e CTIs, sendo as psicó-
logas responsáveis pelos atendimentos nas enfermarias e os
psiquiatras pelas chamadas de vídeo nos CTIs. Com a gradativa dimi-
nuição de setores Covid-19 e o aperfeiçoamento do trabalho, a
responsabilidade por ambos, enfermarias e CTIs, passou a ser apenas
das psicólogas.
Com a rotina definida, demos início ao trabalho, que se mantém
até então. No início do dia checamos, pelo sistema virtual do hospital,
os pacientes internados no setor Covid-19 e seus respectivos prontuá-
rios. Avaliamos, a partir das informações descritas pelos outros
profissionais, o estado clínico do paciente e a possibilidade - ou não -
de realizar a vídeo-chamada com a família. Esse processo de avaliação
clínica, com certeza, é um dos aspectos derivados do trabalho durante
a pandemia, que tivemos que aperfeiçoar. Pela linguagem biomédica
presente nos prontuários, é necessário que se compreenda a evolução e
prognóstico clínico do paciente, a fim de julgar se a emoção de uma
Visita Virtual com a família não poderia ter uma repercussão negativa
em seu estado de saúde. Como as complicações fisiológicas do novo
Coronavírus ainda permanecem incertas, um ponto que tivemos muito
cuidado é de não desestabilizar um paciente em uma situação frágil.
Esse cuidado, também, nos foi muito pedido pela equipe médica e,
diversas vezes, apontado pelos próprios pacientes, que nos diziam “não
estarem prontos” para “fortes emoções”.
O início de nossa atuação, entretanto, não foi sem angústia. Afi-
nal, o mundo já estava informado da alta transmissibilidade do Covid-
19. Porém, como indica Freud (1929/2020, p. 333), ao reconhecermos
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 91

que nunca teremos o domínio total da natureza, ao invés dessa afirma-


ção ter efeito paralisador, ao contrário, “indica a direção de nossa
atividade’’.

2. MAL-ESTAR EM TEMPO DE PANDEMIA

O poder superior da natureza, conforme afirma Freud


(1929/2020), consiste em uma das três fontes de sofrimento humano,
pois “pode voltar sua raiva contra nós com suas forças descomunais,
implacáveis e destrutivas’’ (1929/2020, p. 321). Se o humano estava
desavisado dessa impotência perante a natureza, e julgava alcançar
felicidade devido ao progresso das ciências e sua aplicação técnica, a
Covid-19 veio desapontá-lo. Com mais de três milhões de mortos no
mundo, o vírus permaneceu fazendo suas vítimas. Quando Freud nos
advertiu sobre as três fontes de mal-estar, ele sublinhou que o sofri-
mento provindo da relação com os outros talvez seja o mais penoso de
todos. Complementou, ainda, que tendemos a encará-lo como um
acréscimo gratuito, embora seja tão inevitável quanto os demais. Dian-
te de tamanha possibilidade de sofrimento, a tarefa de evitá-lo ganha,
muitas vezes, primazia em relação à de obter prazer. Freud enumera
métodos, utilizados há séculos, que visam evitar o desprazer e os dife-
rencia, de acordo com essas fontes para as quais são voltados.
Contra o sofrimento que pode advir do laço com o outro, Freud
afirma que o caminho mais imediato seria o do isolamento voluntário,
mantendo-se à distância do outro. A isso, que nomeia “felicidade da
quietude” (Freud, 1929/2020, p.322), Freud aproximou a estratégia de
certas filosofias orientais, que se dá através da tentativa de domínio,
ou mesmo aniquilamento, das pulsões por parte do Supereu. Ainda
92 • A psicanálise às voltas com a peste

nesse sentido, de querer eliminar de forma radical o sofrimento ori-


undo da realidade, busca-se romper todas as relações com ela. Assim, o
eremita rejeita o mundo, pois este pode ser fonte de muito sofrimento.
Freud salienta, também, a possibilidade de afastar o sofrimento
pelo deslocamento da libido, através da produção de prazer por meio
de trabalho psíquico e intelectual, seja através da arte, da fantasia ou
da ciência. Desse modo, a busca de satisfação em processos psíquicos
mostra-se como uma alternativa a tornar-se totalmente refém do
mundo externo. Outra possibilidade que leva em conta a flexibilidade
libidinal, e que visa, também, certa independência ao que Freud chama
de Destino, vai na via contrária, pois, ao invés de buscar se desligar dos
objetos mundanos, obtém satisfação através de um relacionamento
emocional com eles. Essa atitude psíquica, que visa satisfação em amar
e ser amado, tem sua origem no fato de que o prazer sexual é o respon-
sável por proporcionar a mais intensa e mais antiga experiência de
satisfação, fornecendo um modelo, o qual se busca repetir. O problema
desse método, e o que o faz ser abandonado por outros, tais como os
relatados, é que “nunca estamos tão desprotegidos contra o sofrimento
do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do
que quando perdemos o objeto amado ou o seu amor” (Freud, 1929, p.
429).
Ressaltamos esses pontos pois os consideramos extremamente
relevantes para pensarmos o trabalho da Psicologia, no hospital, em
tempos de pandemia de Covid-19. Freud, ao indicar a via do laço amo-
roso e a do isolamento como duas vias opostas de satisfação, a
primeira pela via do prazer e a segunda pelo evitamento do mal-estar e
da vulnerabilidade, nos faz questionar sobre o sofrimento que está em
jogo no isolamento forçado que o tratamento hospitalar impõe aos
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 93

pacientes internados. Se ele pensa na reclusão como uma forma de


evitar o sofrimento, certamente não está se referindo ao isolamento
compulsório que o tratamento de uma doença como essa coloca. Freud
nos aponta que a relação com o outro é uma dimensão primordial e
constitutiva do sujeito, seja pela via da ligação ou da tentativa de desli-
gamento.
Ao serem internados, os pacientes infectados pelo vírus precisa-
vam se desfazer de todos os seus pertences, e nem mesmo seus
celulares eram permitidos em um primeiro momento da pandemia,
por risco de contaminação. Além disso, pelo mesmo motivo, as visitas,
no hospital, também foram suspensas. Desse modo, apesar de o hospi-
tal geral não se enquadrar como uma das instituições totais
trabalhadas por Goffman, no seu livro Manicômios, prisões e conventos
(1961/2013), por conta do alto contágio do vírus e do corte nas relações
com o mundo externo, exigido para o tratamento, as longas interna-
ções se assemelharam, parcialmente, ao que é descrito pelo autor.
Podemos pensar nessa aproximação na medida em que essas institui-
ções controlam a totalidade da vida dos que se encontram lá reclusos
ou internados, inclusive nos aspectos mais íntimos de suas existências,
uma vez que as atividades cotidianas, muitas vezes, são expostas aos
olhares dos outros – no caso, pacientes e profissionais das enfermarias
–, e reguladas por uma mesma norma institucional. Esse fechamento
em relação ao resto da sociedade, a rotina rígida e a uniformização dos
internos deixam pouco espaço para as singularidades, para o desejo, e
para as histórias de vida de cada um em suas diferenças.
Diante da ausência de referências conhecidas, e do esvanecimento
dos limites entre o eu e o outro, a própria noção espacial e temporal
muitas vezes se tornava turva, de modo que diversos pacientes não
94 • A psicanálise às voltas com a peste

sabiam onde estavam, ou como foram parar lá, e nem mesmo há quan-
to tempo estavam internados. Além dos fatores relatados, relacionados
à fragilidade dessa dimensão narcísica, abalada pela mudança na rela-
ção com os outros, o ambiente asséptico, o longo período de internação
e, às vezes, também, de intubação, o uso de remédios fortes, quadros
de delirium e de rebaixamento da consciência também contribuíam
para o sofrimento real que advém da falta que o espelho do outro fa-
miliar promove, quando se estilhaça.
Dessa forma, a oferta de escuta e de atendimento, estabelecendo
uma referência a esses pacientes, tão desterritorializados, foi o pri-
meiro passo que tomamos. No sentido do que Freud aponta sobre a
possibilidade do trabalho psíquico, enquanto modo de satisfação, dar a
palavra em meio a tamanho desterro subjetivo, foi permitir, ao reme-
morar, reconstruir e historicizar o trajeto daquele sujeito até o
momento atual, dar lugar à sua singularidade. O objeto do tratamento
da Medicina no hospital, nesse caso, era o vírus e o corpo orgânico,
sem considerar, de saída, essa outra dimensão. Ao se escutar o sujeito,
contudo, abre-se uma via para se tratar esse outro tipo de sofrimento
que não sobrevém estritamente do corpo, e que se atualiza a cada situ-
ação traumática, dando-lhe a possibilidade de elaborar, nomear e criar
uma narrativa própria sobre aquele período de internação, muitas
vezes difícil. Além disso, cria-se a oportunidade de se endereçar a al-
guém. Em nossa experiência, pudemos perceber como os quadros ditos
de delirium, ou de confusão leve, se beneficiaram especialmente dos
atendimentos e das chamadas de vídeos com a família. Para esses paci-
entes que experimentam uma confusão mental, a regularidade de
nossa presença, levando a possibilidade de elaborarem algo pela fala, e
a aproximação – mesmo que virtual – com as pessoas amadas e já co-
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 95

nhecidas, auxiliou no tratamento de seus quadros. Para realizarmos


esses atendimentos, fizemos um crachá com fotos de nossos rostos,
nomes e função, para que os pacientes, e a própria equipe, nos reco-
nhecessem por baixo de tantos EPIs (máscara N-95, faceshields, touca,
capote, propé, luva e pijama cirúrgico).
Quanto aos pacientes que passaram pelo CTI, escutamos, de mui-
tos, o quão traumático foi a vivência de terem visto muitas pessoas
morrendo perto deles, e como era assustador pensar que poderiam ser
os próximos. Ao terem visto a morte a tão curta distância, muitos saí-
ram de lá repensando a vida, e no que fariam a partir de então, em
uma perspectiva de recomeço. Talvez, nesse ponto, seja interessante
notarmos que essa dimensão especular com o próximo, além de cons-
tituir o sujeito, o invade de forma, muitas vezes, devastadora, na
medida em que ver o que acontece ao paciente do leito ao lado pode ser
o prenúncio de uma certeza antecipada do que pode acontecer ao pró-
prio sujeito. Contudo, a proximidade em relação à morte, para muitos,
relançou a pergunta quanto ao que move o desejo em vida, marcando
uma ruptura, e exigindo a elaboração quanto a isso.

3. MORTE, CORPO, LUTO

Nosso trabalho nas enfermarias de Covid-19, nos seus diversos


âmbitos, mostrou-nos, mais uma vez, a importância do laço, e por que
não dizer da transferência, fazendo frente à pandemia, à morte e à
pulsão de morte, como Freud indica também em “Por que a Guerra?’’
(1933/2020).
Não é novidade que o cenário instalado pela pandemia tenha sido
comparado, por muitos, a um contexto de guerra e, talvez por isso, ao
96 • A psicanálise às voltas com a peste

ler os textos em que Freud trata do tema, temos a impressão de ser-


mos, nós, o público ao qual ele se dirige. Guardando as devidas
proporções, parece, mesmo, que alguns fatores lembram esse cenário
que a maioria de nós só conheceu através dos livros de história: tendas
montadas do lado de fora de hospitais, escassez de recursos, número
elevado de óbitos, dentre tantos outros fatores possíveis de compara-
ção. Nessa guerra, o inimigo não veste farda, e a ameaça não vem
através de bombas. E, quanto ao campo de guerra, poderíamos compa-
rá-lo ao chão dos hospitais? No Hospital Universitário Pedro Ernesto,
presenciamos parte dos efeitos trazidos pela instalação do cenário da
pandemia e, traçando uma analogia com o que Freud já indicava em
"Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte" (1915/2020):
nesses momentos nos deparamos com o inevitável da guerra, a morte.
Freud assinalava que um dos fatores que gerava sentimento de
alienação no mundo, antes belo e familiar, agora interrompido pela
guerra, era a relação que sua geração travava com a morte. Freud
(1915/2020, p. 117) argumenta que, antes, se tratava da morte como algo
natural, inevitável, e completa que havia uma tendência de afirmar
que "a morte seria a saída necessária para qualquer vida, que cada um
de nós deve à natureza uma morte e teria de estar preparado para
pagar essa dívida”. Em contrapartida, notou que, na realidade, mostra-
va-se uma "tendência inconfundível de deixar a morte de lado, de
eliminá-la da vida" (p. 117). Adiante, nesse mesmo texto, analisando as
diferentes posturas dos sujeitos diante da morte, atesta que essa ten-
dência, antes citada, que ele nomeia como "cultural-convencional", é
confrontada quando o morto é um próximo. Nesse caso, Freud ressalta
que "enterramos com ele as nossas esperanças, pretensões, prazeres
(...)" (p.119). Novamente, passado um século, talvez estejamos testemu-
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 97

nhando, devido ao contexto, a acentuação dessas atitudes perante a


morte. A morte assinala a radicalidade da “decadência e dissolução” do
corpo, referida por Freud (1929/2020, p. 321) como uma das três fontes
do mal-estar. Para isso, escolhemos dois fragmentos de casos, acom-
panhados durante o primeiro semestre da instalação da pandemia.
Uma enfermeira da equipe de hematologia solicitou que compare-
cêssemos na enfermaria, porque um de seus pacientes, pela previsão
clínica, viria a óbito naquele dia. A demanda era que acompanhásse-
mos a mãe desse paciente, porque ela não queria ver o filho naquele
estado terminal. Demanda ratificada, também, pelos familiares do
paciente, o qual se encontrava com o nível de consciência bastante
rebaixado e já não respondia a nenhum estímulo externo. Do lado de
fora, a mãe estava acompanhada de alguns de seus familiares e do líder
religioso de sua comunidade. A mãe do paciente ficou apreensiva com
a aproximação da psicóloga de nossa equipe e, logo, revelou que temia
que ela estivesse trazendo más notícias. O líder religioso, dirigindo-se
à psicóloga, interpelou:

- Estou conversando com ela aqui. Ela está muito abalada e não quer subir,
mas a mãe precisa estar ao lado do filho. Precisamos crer no milagre e a pre-
sença dela, lá, pode ajudar.
- Ela tem que subir? Em que a presença dela pode reverter o quadro de seu fi-
lho?, perguntou a psicóloga.

Diante dessa pequena intervenção, a mãe pôde falar de sua an-


gústia ao ver seu filho naquelas circunstâncias. Relatou que, nas
últimas semanas, esteve ao seu lado, mas que não queria vê-lo naquele
momento.
98 • A psicanálise às voltas com a peste

- Ele já não está mais lá. Eu sei que vou perder meu filho, mas não quero guar-
dar a imagem dele sofrendo, não quero vê-lo sem vida.

Ao retornar para a enfermaria, sem a mãe do paciente, a psicólo-


ga se encontrou com o pai e os irmãos do paciente. Todos em volta de
seu leito e em silêncio, como se velassem o corpo que lutava para dar
seus últimos suspiros. Após alguns instantes, sua irmã dirigiu-se à
psicóloga dizendo:

- É muito triste que a imagem que eu vou guardar dele é desse sofrimento. A úl-
tima lembrança é sempre a que fica, né?
- Se você está dizendo que essa é uma última lembrança, é porque existem mui-
tas outras, né? Me fala um pouco mais do seu irmão.

Ela conta que o paciente era o caçula; que há poucos anos eles ha-
viam perdido um outro irmão para a mesma doença; que, naquela
semana, o paciente comemoraria seu aniversário; que ele acabara de
comprar um videogame que eles costumavam jogar juntos; e então,
lamenta não poder viver esses momentos. Diante desse lamento, o
outro irmão, que até então se mantinha em silêncio, irrompeu dizen-
do:

- Não fala essas coisas. A gente tem que ser forte. Ele não pode escutar isso.
Ele pode piorar.
- Pode piorar o quadro dele?, questionou a psicóloga.
- Pois é, cara. Ele tá indo. A gente tem que aproveitar que ele ainda está aqui,
disse a irmã.
- Tem alguma coisa que você gostaria de dizer para o seu irmão?, perguntou a
psicóloga.

O irmão, aproximando-se mais do leito, como quem cochichava,


começou a dizer que sentiria muita falta dele, que estava muito difícil
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 99

de vê-lo naquela situação. A irmã e o pai o acompanharam também,


dizendo suas últimas palavras para o paciente. Poucos minutos depois,
o paciente veio a óbito.
Outra cena chamou a atenção, ainda nas primeiras semanas em
que o hospital começou a receber os pacientes acometidos pelo Covid-
19. A pedido do Serviço Social, fomos chamados para acompanhar uma
família que tinha acabado de receber a notícia do falecimento de um
paciente. Logo após a notícia do falecimento, a família foi informada
que um de seus membros deveria ir até o necrotério para fazer o reco-
nhecimento do corpo. A filha mais nova do paciente se disponibilizou
para fazer o reconhecimento, enquanto a família aguardava do lado de
fora junto à psicóloga. Passado pouco tempo, a filha do paciente retor-
nou e confirmou que aquele corpo era de seu pai. Muito abalada,
dirigiu-se à psicóloga dizendo:

- Será que minha família vai acreditar em mim? Ele está tão diferente, tão
emagrecido. Eu sei que é ele, mas só eu sei. Só eu vi! Não tem nem foto pra
mostrar. Estamos há um mês sem vê-lo. E daqui ele sai e vai direto ser en-
terrado. Nunca mais ninguém vai ver.

Nesse caso, como em muitos outros, a cerimônia fúnebre não pô-


de ser realizada por conta da possibilidade da transmissão do vírus. Foi
ali, do lado de fora do necrotério, que a família se despediu de seu ente
querido enquanto lamentavam não poder ve(la)r seu corpo. As vinhe-
tas dos casos expostos foram escolhidas porque retratam, de maneira
paradoxal, a questão do corpo e da morte. Na primeira vinheta, apesar
de poder ter acesso, a mãe do paciente escolheu não ver o corpo de seu
filho, diferente da segunda vinheta, em que foi vetada esta possibilida-
de de escolha à família. O corpo próprio, uma das fontes de sofrimento
100 • A psicanálise às voltas com a peste

elencadas por Freud (1929/2020, p. 321), “não pode nem mesmo pres-
cindir da dor e do medo como sinais de alarme”. Se concordarmos com
Freud (1915/2020, p. 123) quando afirma que para cada um de nós a
morte é irrepresentável, logo podemos acreditar que a morte de um
próximo atualiza, no sujeito, a realização de sua própria decrepitude;
afinal: “cada uma dessas pessoas amada era um pedaço de seu próprio
e amado Eu".
Após discutirmos em supervisão algumas dessas situações, come-
çamos a consolidar a oferta de estarmos presentes, também, nas
comunicações de notícias difíceis. Ao acompanhar um médico em co-
municação de óbito, a caminho de estar com a família, ele relatou que,
apesar de terem os protocolos para seguir, é sempre muito angustiante
ter que dar essa notícia a algum familiar. O protocolo ao qual ele se
referia era o Spikes, sigla em inglês que reúne uma série de condutas,
orientadas para o médico, no momento da notícia. Em sua fala, o mé-
dico parecia denunciar a limitação dos protocolos diante da irrupção
da morte. De fato, o que presenciamos nos últimos meses, acompa-
nhando tantos momentos de fim de vida, é que os protocolos, tentativa
de garantir alguma previsibilidade, e que tem seu lugar na prática em
saúde, são insuficientes para dar conta da condição mais imprevisível
do humano. O sujeito, tal como a Psicanálise o interpela, em sua rela-
ção com a morte, não é abarcado pelos protocolos.
A partir da instalação da pandemia no Rio de Janeiro, em Março
de 2020, presenciamos uma inundação das três fontes de mal-estar no
ambiente hospitalar. Diante da atualização das dificuldades da relação
com o outro, da ratificação da decadência do corpo e das invasões da
natureza, vimo-nos convocados a lançar mão de alguns artifícios, para
sobreviver ao naufrágio. A radicalidade do mal-estar, acentuado pela
A. Sant'Anna; L. Moraes; M. Brunhari; M. Rabello; P. Mählmann; V. Darriba • 101

pandemia, levou-nos a novos desafios e à necessidade de invenção de


outras frentes de trabalho, desde a realização das chamadas de vídeo,
ao acompanhamento de notícias difíceis e o acolhimento aos familia-
res. Se o “sentimento oceânico”, vivenciado na experiência religiosa
do interlocutor de Freud (1929/2020, p. 306), é uma das formas para
lidar com o desamparo fundamental, berço do mal-estar, a Psicanálise
se depara com o trabalho de sempre reinventar novas vias de não su-
cumbir à tamanha inundação.
6
ACHAR PALAVRA: DO COMPARTILHAR AO DIZER NA
EXPERIÊNCIA DE PSICÓLOGOS HOSPITALARES
DURANTE A COVID-19
Alyne Lopes Braghetto Batista 1
Layla Raquel Silva Gomes 2
Marcus Vinícius Rezende Fagundes Netto 3

Maria Lívia Tourinho Moretto 4


Paula Maia Peixoto Camargo 5
Thaís da Silva Pereira 6

“A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar. Mas eis que chega a roda
viva e carrega o destino pra lá.” (Roda Viva, Chico Buarque)

DA CRISE À QUESTÃO: A PANDEMIA E SEUS IMPACTOS INICIAIS

A pandemia da Covid-19 teve início em 29/12/2019, quando os ca-


sos começaram a surgir em Wuhan, na China. No Brasil, as atividades
do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE-Covid-
19), foram iniciadas em 22/01/2020, com o Plano de Contingência Naci-
onal, para nortear as ações do Ministério da Saúde na resposta “à

1 Mestranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Membro


do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
2 Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Membro
do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
3 Doutorando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universida de São Paulo; Membro do
Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
4 Professora Titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Presidente da Sociedade
Brasileira de Psicologia Hospitalar, Coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da
Universidade de São Paulo.
5Mestranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Membro do
Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
6
Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Membro
do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 103

possível emergência de saúde pública” (SAÚDE, 2020, p. 5). Façamos


uma marcação na palavra “possível”, pois até àquele momento, não
havia como prever qual seria a realidade brasileira da pandemia.
Orientado pelas experiências externas, era esperado um número
crescente de internações de casos de média e alta complexidade, que,
por sua vez, provocaria alterações na rotina hospitalar, ainda impreci-
sas, que possivelmente poderiam afetar toda a experiência de
adoecimento e internação dos pacientes. Algo se anunciava e carregava
uma série de angústias e expectativas, que indicavam que o hospital
seria o cenário principal desta emergência.
Das nossas telas, vimos cidades ao redor do mundo chorando seus
mortos. Relatos de profissionais de saúde testemunhando a dor daque-
les que morriam sozinhos, sem despedida, sem velório.
Inevitavelmente esse horror nos atingiria… e atingiu. A pandemia
reuniu aquilo que Freud (1930/1996) apontou como as três fontes de
sofrimento: o próprio corpo, o mundo exterior, e a relação com outros
seres humanos. Em sua radicalidade, a pandemia vem denunciando a
impossibilidade do homem controlar o mal-estar oriundo da relação do
sujeito com a morte, com o corpo e com os laços.
As alterações, na rotina hospitalar, começaram a ocorrer com a
imposição de novas regras e protocolos de biossegurança, que restrin-
giram a presença de familiares como acompanhantes e limitaram a
quantidade de visitas, em uma tentativa de isolamento ou distancia-
mento social que os protegessem. Esta modificação tornou a utilização
de dispositivos tecnológicos necessária para a comunicação entre paci-
ente-família e família-equipe, acrescentando dificuldades ao processo
de cuidado.
104 • A psicanálise às voltas com a peste

Ora, esses impactos na rotina hospitalar, inevitavelmente, afetam


a prática clínica e a organização do trabalho da Psicologia Hospitalar.
Com Moretto (2019), sabemos que a entrada do psicólogo no campo da
saúde exige dele não apenas clareza do contexto no qual está inserido,
como domínio de suas ferramentas de trabalho, e objetividade meto-
dológica no planejamento e na execução de suas atividades. Nesse
sentido, uma questão se impõe: Com o estremecimento dos saberes, da
rotina hospitalar e das metodologias, até então utilizados, como sustentar
a lógica do cuidado, que visa a subjetividade, em meio à uma pandemia?

DA QUESTÃO AO VERBO: "ACHAR PALAVRA"

É neste hiato que o Projeto Achar Palavra foi criado. A partir da


aposta na possibilidade de um encontro entre questões, decidimos
inaugurar um espaço para conhecer as principais preocupações dos
psicólogos hospitalares no momento da pandemia e, a partir disto,
construir um trabalho onde, de alguma maneira, pudéssemos “Achar
Palavra” para esta experiência.
Inicialmente, idealizado por Layla Raquel Silvia Gomes, também
autora deste capítulo, fez eco e cresceu em uma parceria interinstitu-
cional entre o Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da
Universidade de São Paulo (Labpsi-USP), coordenado pela Professora
Titular Dra. Maria Lívia Tourinho Moretto, co-autora deste trabalho, e
a Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH). Essa parceria
resultou na legitimidade do projeto e em seu alcance nacional. Até o
momento, temos 1840 psicólogos hospitalares inscritos, representando
todas as regiões do Brasil, sendo cerca de 45% do Sudeste; 24% do Nor-
deste; 14% do Sul; 7% do Centro-Oeste; e 4% do Norte.
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 105

De modo a acompanhar a dinâmica dos acontecimentos, estabele-


cemos (1) uma agenda de trabalho fixa de encontros on-line,
inicialmente duas vezes na semana e, posteriormente, semanal; (2)
grupos nas redes sociais, como um espaço contínuo, possibilitando a
comunicação entre os participantes, que se auxiliam em questões pon-
tuais, compartilham documentos e modelos técnicos de seus serviços e
instituições, bem como referenciais teóricos; e (3) uma pasta coletiva
de documentos e artigos técnicos e científicos, alimentada pelos pró-
prios participantes e administrada pelos coordenadores do projeto.
Perpassemos, agora, cada um desses aspectos do projeto.

1) Foram realizados 52 encontros, em quatro etapas de trabalho, de Mar-


ço de 2020 a Julho/2021, com média de participação de 80 profissionais
nos encontros. Em cada etapa, a proposta foi ajustada ao momento da
emergência. Inicialmente, dois encontros semanais, para escuta dos
profissionais, diagnóstico situacional e presença da SBPH e referên-
cias da área, a fim de sedimentar conhecimentos fundamentais para a
atuação frente aos problemas levantados. No segundo momento, en-
contros semanais de acompanhamento da experiência,
compartilhamento da realidade dos profissionais, buscando abranger
a amplitude das características institucionais, abrindo a palavra, de
modo livre, a psicólogos dos serviços públicos, serviços privados e
hospitais com um único profissional psicólogo. Mantendo a frequência
semanal, os encontros passaram a ter uma estrutura teórica que apre-
sentasse conceitos fundamentais para articulação Psicanálise e
Instituições de Saúde. O compartilhamento das experiências seguiu de
modo livre, provocado pelas discussões teóricas. E a cada três encon-
tros, propomos o espaço de Conversações Clínicas, no qual um
profissional apresentava uma situação clínica-institucional e comen-
tários eram feitos pelos coordenadores do projeto e pelos outros
psicólogos presentes. Por fim, os encontros passaram a ser quinzenais,
com o objetivo de que os profissionais participantes expusessem pro-
106 • A psicanálise às voltas com a peste

jetos desenvolvidos durante a pandemia. Neste momento, as Conver-


sações Clínicas eram disparadoras para as discussões da práxis.
Apresentaram 12 representantes de instituições de diferentes regiões
do Brasil.
2) Atualmente, são quatro grupos em Whatsapp, reunindo, aproximada-
mente, 200 inscritos em cada. Desde o início, este espaço foi
fundamental para trocas constantes entre os psicólogos hospitalares.
Esclarecimento de dúvidas pontuais, compartilhamento de textos,
modelos e documentos técnicos, desdobramento em grupos e projetos
de especificidade clínica, suporte emocional e colaboração.
3) A pasta técnica, criada a partir dos documentos e textos compartilha-
dos nos grupos, somou-se à pasta criada em parceria com o
Cepedes/Fiocruz e deu acesso, aos psicólogos hospitalares, ao material
técnico e científico.

Para ingressar no projeto, era necessário ser psicólogo hospitalar


atuante e responder “Qual sua maior preocupação profissional neste
momento da pandemia Covid-19?”. Para fins de análise, as respostas
foram catalogadas em oito categorias, sendo elas:

(a) contaminação/segurança: 19%;


(b) profissionais de saúde/equipe: 34%;
(c) pacientes e familiares: 19%;
(d) aperfeiçoamento em emergência: 3,5%;
(e) futuro/social: 7,5%;
(f) estrutura/instituição: 10%;
(g) óbito/luto: 5%; e
(h) atendimento on-line: 1,2%.

DO VERBO AO TEMPO: COMPARTILHANDO O NÃO SABER E O SABER

Naquilo que concerne à dinâmica do trabalho, percebemos, no a


posteriori, que o projeto Achar Palavra se deu conforme os tempos lógi-
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 107

cos propostos por Lacan (1945), em seu texto O tempo lógico e a asserção
da certeza antecipada.
O primeiro tempo, instante de ver, se inicia com a chegada da pan-
demia ao Brasil, o encontro com a vulnerabilidade do corpo e dos
saberes técnico-científicos diante de uma ameaça invisível, e que esca-
pa a padrões pré-determinados, naquilo que concerne à maneira como
afeta e ameaça o corpo. Assim, enquanto alguns pacientes se contami-
navam e tinham sintomas leves, outros precisavam ser hospitalizados
em Unidades de Terapia Intensiva e, muitas vezes, iam a óbito. Como
nos alerta Lacan (1945), diante do instante de ver, do Real que se im-
põe, o sujeito precipita uma compreensão. Em nosso caso, o ato foi a
resposta possível.
Uma enfermeira, que sempre trabalhou em enfermaria de pacien-
tes oncológicos, é realocada na UTI, após fazer um treinamento on-
line. Afinal, treinamentos presenciais estavam proibidos, dada a con-
traindicação de qualquer tipo de aglomeração. Assim, em seu primeiro
dia, se viu auxiliando a equipe a fazer uma entubação que, no caso do
paciente com Covid-19, tem suas especificidades. “Quando vi, já estava
lá! Entubando! Sem saber muito bem o que estava fazendo…” – relata.
Após o plantão, já no refeitório do hospital, começa a ser invadida por
lembranças do procedimento e não consegue almoçar.
Ora, essa pequena vinheta clínica nos mostra o potencial traumá-
tico a que foram, e continuam a ser, expostos os profissionais de saúde
que, convocados a se haverem com acontecimentos clínicos inéditos e
pacientes em extremo sofrimento, muitas vezes não têm tempo de
elaborar, pela via simbólica, o sofrimento e a angústia decorrentes
dessas situações. Dessa forma, a precipitação do momento de compre-
108 • A psicanálise às voltas com a peste

ender se precipita em ações rápidas, urgentes e mudos, que não são


tonalizados pela potência criativa da palavra.
Moretto (2019) nos dá uma indicação clínica importante, ao afir-
mar que um acontecimento difícil, na vida do sujeito, pode tornar-se
um acontecimento traumático, caso o sofrimento seja silenciado ou
desconsiderado. Por outro lado, havendo espaço para a criação de nar-
rativas e compartilhamento de experiências, o sofrimento encontra
reconhecimento e legitimação e, com isso, o acontecimento difícil pode
se tornar uma experiência subjetiva.
Assim, nos hospitais, os psicólogos foram convocados a criarem
formas de intervenção que pudessem oferecer espaço de escuta para os
profissionais de saúde. Rodas de conversa, atendimentos individuais
ou em grupos nos departamentos de saúde do colaborador, grupos
temáticos e psicoeducativos foram as alternativas encontradas para
acolher e reconhecer o sofrimento dos profissionais de saúde.
O psicólogo hospitalar, por sua vez, também estava nos hospitais
quando eclodiu a pandemia e, assim como os outros profissionais de
saúde, teve que lidar com uma situação sem precedentes, que, eviden-
temente, trouxe sofrimento e angústia. Assim, em um primeiro
momento, o projeto Achar Palavra, tornou-se um espaço de comparti-
lhamento de experiências, de angústias vivenciadas e de invenções
possíveis, frente ao não-saber imposto pela pandemia e seus efeitos.
Achar palavras, portanto, foi o necessário neste instante de ver, de se
deparar com o horror, com o medo e com a insegurança.
Assim, o projeto possibilitou que, em um segundo momento, por
meio de discussões teóricas, fosse possível, a posteriori, formalizar algo
da atuação dos psicólogos que, naquele momento de urgência, se deu
de forma, por vezes, até mesmo intuitiva. Isso fez com que o ato pu-
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 109

desse encontrar apoio na palavra para que, no terceiro tempo – mo-


mento de concluir –, as propostas de intervenção e as ações desses
psicólogos pudessem ser apresentadas de uns para os outros, articu-
lando a prática à teoria e, com isso, dando contorno técnico e
metodológico ao ato “precipitado” do início da pandemia.
Com o passar do tempo, a crescente internação dos casos de adoe-
cimento por Covid-19 impôs dificuldades em organizar e conciliar a
assistência psicológica aos pacientes e familiares internados por ou-
tras formas de adoecimento. As alterações no formato de atendimento
(presencial x on-line), os novos desafios impostos à comunicação entre
equipe-família-paciente, o cuidado em relação ao fim de vida neste
contexto, dentre outras particularidades, representavam a preocupa-
ção do grupo em relação ao cuidado com os pacientes e seus familiares.
A imposição de um isolamento físico, dentro do hospital, teve
consequências na experiência de adoecimento, gerando sentimentos
de solidão e desamparo, tanto dos pacientes quanto de seus familiares,
desde os que vivenciavam a gravidade e a terminalidade, quanto aque-
les que viram a experiência de gestação e nascimento atravessada pela
impossibilidade da presença física de familiares e amigos neste mo-
mento e, em alguns casos, provocando o isolamento temporário em
relação ao próprio bebê.
O medo da contaminação atravessava todas estas questões, tanto
com relação à segurança do atendimento presencial, com dúvidas rela-
cionadas à utilização e disponibilização de equipamentos de segurança
individual (EPIs), quanto à contaminação, adoecimento e possíveis
perdas de colegas profissionais de saúde.
Um dos debates mais frequentes no projeto foi a visita virtual,
que, com a pandemia, tornou-se algo tão presente como nunca, no
110 • A psicanálise às voltas com a peste

hospital; porém, apresenta-se como uma questão de discordância com


a gestão médica de muitas instituições, desde a forma como realizar
essa visita, termos de consentimento e até a autorização delas. De
qualquer modo, a possibilidade de visitas virtuais é um benefício para
pacientes e familiares. No entanto, para que ocorra, passa por muitas
discussões. Para pacientes entubados, a possibilidade de visita virtual é
uma questão ainda mais complexa, não sendo realizada em muitas
instituições. O parecer nº 131.045/20 divulgado pelo Conselho Regional
de Medicina de São Paulo, em abril de 2021, que não autorizava visitas
virtuais a pacientes entubados, também causou debates. Em alternati-
va a isso, muitos recorreram à apresentação de áudios enviados por
familiares, por exemplo.
O boletim médico e a possibilidade do psicólogo passá-lo à família
também traz debates, visto que os familiares podem fazer perguntas
sobre o quadro do paciente que somente o médico pode responder;
muitos argumentam que essa é uma função médica, no entanto, houve
relatos de psicólogos que assumiram esta responsabilidade dentro das
equipes, realizando a comunicação do boletim médico diretamente aos
familiares. Entretanto, em sua maioria, os psicólogos fizeram o acom-
panhamento psicológico em todas as etapas da comunicação: 1.
Discussão prévia com a equipe médica; 2. Presença enquanto a comu-
nicação era realizada pelo médico responsável; e 3. Suporte psicológico
posterior à comunicação realizada pelo médico responsável.
Os acompanhamentos de lutos também foram muito discutidos,
já que as perdas, em diversos níveis, foram acontecimentos centrais na
pandemia, tornando-se ainda mais complexos. Em muitos casos, as
visitas virtuais transformaram-se em cerimônias de despedida; em
outros, essa despedida limitou-se ao momento do reconhecimento,
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 111

que, dadas as circunstâncias, passou a ocorrer no momento da retirada


do corpo junto à funerária, com o suporte da Psicologia. Segundo pro-
tocolo do Ministério da Saúde, é permitido apenas um familiar para
reconhecimento em casos de óbito por Covid-19.
Com o estabelecimento do projeto, foi possível observar algumas
destinações para estas preocupações. As reuniões temáticas, com a
presença da SBPH, ofereceram diretrizes para a atuação do psicólogo
hospitalar, com a presença de convidados professores universitários e
importantes nomes da Psicologia Hospitalar no Brasil, e tiveram im-
portante função simbólica para o grupo. Esta primeira etapa
desempenhou uma função técnica do projeto, oferecendo sustentação
e estímulo para o reencontro com seus saberes e percursos sobre como
abordar o sofrimento, e produzir ou criar adaptações e estratégias na,
e a partir da, experiência compartilhada.
Os encontros virtuais se configuraram como espaço para a pala-
vra circular entre os participantes, que puderam contar seus projetos
de cuidado, desenvolvidos em cada instituição. O acesso à experiência
dos colegas, mediado pelos coordenadores, levou à constatação de
semelhanças, tanto nas características institucionais quanto nas an-
gústias suscitadas pela pandemia, mobilizando a criação de estratégias
coletivas de enfrentamento, e o resgate de um saber-fazer da psicolo-
gia hospitalar.
Se, por um lado, este acesso apaziguou a angústia frente ao des-
conhecido, viu-se o risco de exclusão da subjetividade, caso houvesse
uma tentativa de replicação das práticas, desconsiderando a história
prévia de cada instituição, cada profissional e cada caso. Em oposição à
tendência de generalização e adesão a protocolos rígidos, o projeto
apostou na possibilidade de cada um dizer sobre sua experiência e ins-
112 • A psicanálise às voltas com a peste

crevê-la em sua história de maneira singular, ressaltando a atenção


aos efeitos subjetivos de cada caso, para definir a direção de tratamen-
to, reconhecimento e abordagem do sofrimento.

TEMPO DE COMPREENDER: ELABORAÇÕES ENTRE O SABER-FAZER E O


DESEJO DE SABER

Essa operação marca o segundo tempo lógico do projeto, tempo de


compreender, passado momento da urgência, da instalação do não sa-
ber, abre-se espaço para construção de narrativas singulares a partir
do que foi possível fazer, construir um saber a respeito. Há certa cro-
nicidade, o que era urgente vira rotina. Os profissionais foram
convocados, a partir da experiência, a colocaram algo de si para a cria-
ção de novos dispositivos de escuta ao sofrimento do sujeito, advindo
nas equipes de saúde, familiares, pacientes e do próprio psicanalista.
Destaca-se neste momento, a função clínica do projeto, na medida
que foi extraída deste movimento de suposição de um não saber, um
recuo frente ao desconhecido e o restabelecimento de uma suposição
de saber, para cada um, dentro do seu contexto. Ter no grupo, a repre-
sentatividade de instituições de localidades, tamanhos e
características diferentes, ter ali o encontro entre equipes de histórias,
tempos, quantidades e modos de trabalhar diversos, possibilitou iden-
tificação e conforto sobre algo de coletivo, compartilhado, sobre a
experiência.
É importante fazer uma observação preliminar sobre a especifici-
dade do momento no que diz respeito às mudanças necessárias
realizadas no contexto do Hospital Geral. Uma doença infectocontagi-
osa exige um cuidado, já realizado de forma pontual aos pacientes
dessa clínica, referente às medidas de proteção e isolamento. Diante do
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 113

contexto específico de pandemia da COVID-19, ou seja, de um contágio


generalizado, o hospital de forma geral teve que repensar os fluxos e
rotinas de atendimento.
As equipes de psicologia assumiram mudanças importantes para
auxiliar na construção de um dispositivo que fizesse frente às novas
demandas, incluindo novas formas de rodízio interno, reformulação
nos critérios de busca ativa e novas modalidades de atendimento.
Ocorreu alguma articulação da categoria em algumas instituições, a
fim de repensar os atendimentos aos pacientes e familiares, como
forma protetiva aos profissionais psicólogos ao introduzir a nova mo-
dalidade de atendimentos remotos. Ou seja, a entrada no leito pelo
psicólogo não se daria de forma imprescindível, como das equipes de
enfermagem, de fisioterapia e equipes médicas, podendo ser transpos-
ta ao contato virtual.
Traremos construções, que tem por intuito refletir não a perti-
nência dessas determinações, mas sim pensar os efeitos do trabalho a
partir dessas mudanças. O que há de consenso também é que, diante
do inédito dessa experiência, há um trabalho contínuo de analisar e
construir o serviço a partir dos impasses decorrentes dessa realidade.
O que podemos recolher é o efeito de uma aposta, sabendo que em cada
estágio da experiência de trabalho na pandemia foi se desenhando a
partir dos limites, mas também das possibilidades de intervenção.
Antes de nos atermos às questões do formato de atendimento,
gostaríamos de incluir uma questão importante relativa aos efeitos
dos casos de COVID-19 nas expectativas da instituição que configuram
novas demandas dirigidas ao psicólogo. De maneira mais objetiva,
essas demandas podem tomar uma forma protocolar de instituir ao
psicólogo a função de atender todos os pacientes afetados pela doença,
114 • A psicanálise às voltas com a peste

como, também, ser o responsável pelas visitas virtuais, que teriam


como objetivo garantir o contato do paciente com seu familiar.
Outro efeito recolhido da incidência dos casos de COVID-19 no
hospital geral se daria também, de que, para além de um fluxo deter-
minado ao psicólogo, haveria a expectativa de um saber prévio sobre
emergências. Façamos uma breve digressão: um hospital geral com-
porta uma multiplicidade de clínicas, o que pulveriza um certo saber
característico de psicólogos que trabalham em clínicas específicas,
para o psicólogo que se atém ao sofrimento advindo do adoecimento
de modo geral.
O que ocorre de maneira intensificada no contexto atual é que,
em um hospital não segregado pelas clínicas médicas, a especificidade
da clínica COVID-19 e a proporção de casos internados produzem uma
posição de se enveredar mais em direção a um saber sobre a doença, do
que o saber sobre o doente. Percebe-se que há demandas para orienta-
ção mais diretivas, que podem ser realizadas a partir de
imaginarizações do que seria ser acometido pela doença. Nesse sentido,
os atendimentos remotos teriam como objetivo também transmitir
mensagens de especialistas para contribuir com a permanência do
paciente em situação de internação.
Isso não quer dizer que não tenha especificidades da doença que
precisam ser levadas em consideração. Um paciente internado na Uni-
dade de Internação ou na Unidade de Terapia Intensiva é um paciente
muitas vezes sintomático, o que pode incluir falta de ar, febre, vômi-
tos, diarreia, dor de cabeça, dor no corpo. O paciente é atravessado por
uma experiência de prostração e fadiga, sendo a experiência mais crí-
tica a de insuficiência respiratória, que potencializa a angústia e,
muitas vezes, restringe a capacidade do paciente se comunicar. É im-
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 115

portante considerar que há, nessa clínica, uma variável orgânica que
incide diretamente na condição do paciente em se engajar na aborda-
gem de atendimento psicológico.
Nesse ponto é que as questões foram se construindo: é possível
um atendimento remoto no hospital? Como lidamos com a vertente
institucional da atuação do psicanalista na contribuição da construção
do caso clínico? Como sustentamos a clínica em tempos em que o
atendimento psicológico se caracteriza por orientações pré-definidas
em relação aos medos e a ansiedade? Como construir um modelo de
atendimento com paciente e familiar quando há privação de acompa-
nhamento como protocolo de segurança? Questões que nos
direcionaram cada vez mais ao cerne da ética psicanalítica, neste espa-
ço que pôde nomear e avançar, pela via do laço social, questões
inéditas aos psicólogos hospitalares.

EM TEMPO: CONCLUI-SE QUE TEMOS ALGO A DIZER

Um terceiro tempo, que anuncia sua chegada, como o momento de


concluir. O que (re)torna como questão é “qual o lugar do psicanalista
do hospital?”, questão que mobiliza falarmos sobre a ética da Psicaná-
lise e os diferentes discursos que compõem a instituição de saúde, bem
como discutirmos conceitos psicanalíticos que fundamentam a prática.
Torna-se importante um apontamento, já considerado de ante-
mão pelos psicanalistas que trabalham na área de saúde, a saber, que
não há psicólogo especialista equiparado às clínicas médicas, tampou-
co para a clínica do Covid-19; há um saber-fazer com o que a
especificidade dessa doença coloca de impasse para a atuação.
116 • A psicanálise às voltas com a peste

Até aqui temos duas consequências mais radicais do contexto de


coronavírus no hospital: um imperativo institucional de que o atendi-
mento aos pacientes Covid-19, por serem emergentes na internação,
são tomados como indicador suficiente para determinar um para-
todos a serem atendidos e um novo modelo de atendimento, sendo,
este, o atendimento remoto. Ora, sabemos que é preciso sempre se pôr
a escutar as demandas para que algo do nosso trabalho possa ser cons-
truído, não pela via da resposta direta, mas pela instauração de uma
via de contribuição ao trabalho que diz respeito à especificidade da
nossa abordagem.
Aqui, é importante marcar que, se há um psicanalista que assume
a função de psicólogo na instituição, essas determinações podem so-
frer certos tensionamentos.
Pensemos, agora, sobre os atendimentos remotos. O que determi-
na a mudança é o risco do contágio; logo, o psicólogo não ficaria só
restrito à entrada no quarto do paciente, mas, também, restrito ao
setor responsável pelo atendimento aos pacientes com diagnóstico de
Covid-19. Esse setor reúne todos os responsáveis pelo cuidado direto
do paciente, e, como sabemos, no hospital, todas as discussões que
implicam em intervenções são realizadas in loco, no setor. Tomando
isso em consideração, ao decidir pelo atendimento remoto, o psicólogo
não estaria só do lado de fora do leito do paciente, mas, também, do
setor e da relação contínua com a equipe multiprofissional.
Por mais extraterritorial que a Psicanálise seja, em relação à me-
dicina, é importante precisar que o lugar êxtimo do psicanalista na
instituição não diz respeito ao fora, mas, sim, de uma outra posição
dentro desse contexto. É importante que, de alguma maneira, o analis-
ta possa, ao mesmo tempo, de dentro, escutar e participar das
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 117

conjecturas enunciadas pelo sujeito e, também, preservar uma distân-


cia, um vazio na relação com a equipe, que não visa trazer orientações
ou respostas prontas de um contexto inédito, sustentando, portanto,
um não-saber que possibilita que as invenções sejam construídas no
trabalho entre vários profissionais.
É nesse ponto que podemos reconhecer que não se trata dos limi-
tes da modalidade do atendimento remoto em si, mas, sim, da
condição de instituirmos uma prática que preserve a relação do psica-
nalista nas construções e intervenções junto à equipe de saúde. O
efeito do trabalho do analista no hospital não é, exclusivamente, na
relação do paciente, e, sim, se estende às possíveis mudanças nas for-
mas em que a equipe entende o cuidado. Isso quer dizer, que o efeito
do trabalho ocorre a partir da possibilidade de recolocar a subjetivida-
de na discussão diária entre profissionais implicados.
Entendemos que, frente a um contexto que apontou, em um pri-
meiro momento, para um desmonte da estrutura do trabalho –
clínico-institucional – do psicanalista no hospital, por outro lado re-
forçou o fundamento básico para o trabalho na área da Saúde. A partir
disso, apostamos, não sem criatividade, nas possibilidades de seguir
operando nas intervenções que contemplem paciente, família e equipe.
Há barreiras, mas não intransponíveis.
Compartilhamos uma cena vivida no setor Covid-19. A equipe
chama o psicanalista, encarnado no psicólogo hospitalar, para dizer
que está preocupada com o enfrentamento do paciente, que parece
frágil e assustado com a doença. Para isso, este se pôs a escutar o paci-
ente, trazendo para a equipe um aspecto do que foi recolhido. O olhar e
reconhecimento de que o paciente não conseguia falar, a espera e sus-
tentação de um instante possível de troca, dado que o paciente se
118 • A psicanálise às voltas com a peste

punha a apontar ao cateter de O2. E a abertura para uma narrativa,


cadenciada e paciente, sobre o sofrimento advindo dessa experiência,
ao fazer reviver a morte recente de sua esposa, transplantada dos dois
pulmões, através da experiência, agora própria, daquilo que sua mu-
lher sempre sofreu: falta de ar.
A presença, a disponibilidade, o olhar e a escuta dos detalhes
marcam a possibilidade de trabalho em um contexto, tão extremo, de
urgências do paciente e, também, da equipe. Se há uma operação com-
partilhada e necessária para a intervenção no corpo, pela equipe de
saúde, há também um olhar atento e uma escuta dos detalhes, da cena,
do não-dito, ou até do que se encontra impossibilitado de ser dito, e os
efeitos disso pra o paciente e para a equipe. O analista não poderia
trabalhar apenas por uma via.
E foi pela via de apostar que "Achar Palavra" era modo de fazer
questão, quando pouco se podia dizer, debruçando-nos nas vivências
de um e de outro, que uma experiência compartilhada diante da pan-
demia pôde acontecer.
E foi no momento de concluir, em que se coloca em ato, radical-
mente singular, a invenção de um saber-fazer diante desse fato inédito
de nossa história, concretizado por meio das conversações clínicas,
como uma convocação a uma produção escrita de transmissão daquilo
que se deu, na prática, em articulação com a teoria, portanto, a passa-
gem do compartilhar para a possibilidade de um dizer.
Neste sentido, reconhece-se que o projeto adquire, também, uma
função científica, articulada às demais, que se deu tanto pela via de um
conhecimento que pôde ser compartilhado, quanto pela proposição de
um saber sobre o trabalho realizado por cada um durante a pandemia;
bem como, daquilo que se produz de saber sobre as narrativas de so-
Alyne Batista; Layla Gomes; Marcus Netto; Maria Moretto; Paula Camargo; Thaís Pereira • 119

frimento que se apresentaram neste momento, e as saídas encontra-


das, por cada profissional e equipe, em uma dimensão ética do
cuidado.
Do mesmo modo, para nós coordenadores, o momento de concluir
se apresenta pela via da produção de uma transmissão, como a que
está acontecendo aqui neste texto, que tenta localizar os efeitos de
supor que achar palavras, ali onde parecia ser impossível nomear, cri-
ando um espaço que possibilitasse a escuta, resultaria na possibilidade
de dizer.
7
“ NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM”: SOBRE UMA
POSSÍVEL REPOSTA DA PSICANÁLISE PARA A
ABORDAGEM DO SOFRIMENTO NAS INSTITUIÇÕES
DE SAÚDE
Mayra Moreira Xavier Castellani 1

Maria Lívia Tourinho Moretto 2

CENAS DA VIDA COTIDIANA: A PANDEMIA COMO EXPERIÊNCIA

Um enfermeiro, após um turno intenso de trabalho de 12 horas


em um hospital, volta para casa preocupado e exausto, atravessado
pelas experiências da sua prática profissional no cuidado com pacien-
tes recém diagnosticados para Covid-19. Era o momento inicial da
pandemia, quando o número de casos positivos estava em uma curva
crescente assustadora. Ao chegar, entra no elevador do seu prédio, e
um outro morador, que já estava dentro, o encara com desaprovação e
sai do elevador sem falar nada. Logo na entrada da sua casa, encontra
uma carta, assinada por alguns moradores do condomínio, dizendo
que ele não era mais bem vindo ali. A carta explicava que a sua profis-
são e seu contato diário com doentes de Covid-19 colocava a
vizinhança toda em risco de contágio para coronavírus e que, mesmo
ele usando máscara e tomando as medidas de prevenção necessárias,
os moradores não se sentiam mais à vontade de conviver com ele.

1 Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Membro do
Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo.
2 Professora Titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Presidente da Sociedade
Brasileira de Psicologia Hospitalar, Coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da
Universidade de São Paulo.
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 121

Uma psicóloga, formada há apenas dois anos, que trabalha em


uma Unidade Básica de Saúde, começa a receber inúmeros encami-
nhamentos de pacientes para atendimento psicológico individual, que
está sendo realizado tanto na modalidade presencial, para os casos
mais graves, quanto na modalidade on-line. Percebe que o aumento da
demanda se deve, principalmente, ao sofrimento psíquico causado pelo
confinamento, mas reconhece, em inúmeros casos, um sofrimento
prévio, que foi intensificado com a pandemia e as consequências do
isolamento social. A ameaça constante do adoecimento e o medo da
morte, frequentes queixas no discurso dos seus pacientes, são fonte de
angústia para ela, também. Ela se vê identificada e misturada com o
sofrimento dos seus pacientes, experienciando as mesmas dores que
eles, o que acaba causando um questionamento sobre sua capacidade
de ajudar e escutar. Ao mesmo tempo, numa linha paradoxal, sua
agenda de atendimentos está lotada, a demanda de atendimento psico-
lógico não para de crescer, na UBS, e ela é responsável por cuidar de
quem está sofrendo. Tem medo, se coloca em risco com o atendimento
presencial, mas decide que, como profissional de saúde da “linha de
frente”, não tem escolha de se ausentar nesse momento.
Um médico generalista, escalado para trabalhar no “covidário” de
um hospital que atende a classe alta da cidade de São Paulo, relata
sobre a intensidade da sua rotina profissional, não em tom de queixa, e
sim dando ênfase à importância de médicos e outros profissionais de
saúde poderem estar disponíveis na rotina de cuidado em tempos pan-
dêmicos, apesar do medo e das inseguranças relativas à doença. E,
então, o médico conta que ele mesmo já teve Covid-19 duas vezes. Na
primeira, foi mais difícil, porque além dos sintomas pesados, se depa-
rava com a incerteza da evolução do seu quadro de saúde, das
122 • A psicanálise às voltas com a peste

surpresas que o vírus desconhecido poderia causar. Na segunda vez, o


diagnóstico veio depois de um encontro familiar, quando teve contato
com os pais idosos que não via há meses. Foi uma surpresa ter positi-
vado, pois além de já ter se vacinado, não se sentia tanto em exposição
quanto na primeira vez. Ele conta que o abalo emocional nesse mo-
mento não veio por conta da sua doença, mas sim pela possibilidade de
ter infectado os pais. “Quando vi a faixa vermelha de positivo no teste,
a única coisa que passou pela minha cabeça foi meus pais. Senti medo,
muito medo do que podia acontecer com eles”. Os pais já estavam com
a primeira dose da vacina, e mesmo assim foram infectados. E o médi-
co, que naquele contexto estava no papel de filho, começou a se
questionar se deveria ter aceitado a realocação profissional durante a
pandemia, e a se culpar por não ter calculado os riscos que isso teria
aos seus familiares.
Essas três cenas, acima, servem de ilustração de uma problemáti-
ca que tem atingido milhares de profissionais, neste caso,
principalmente, os profissionais da saúde. São experiências de uma era
recente, quando o mundo descobriu uma nova patologia antes desco-
nhecida, que provocou uma desestabilização mundial generalizada,
tanto socialmente, quanto política e economicamente. Retratam o
tempo desses quase dois últimos anos, nos quais um diagnóstico, um
nome – Covid-19, vitimou e amedrontou milhões de pessoas – em ou-
tubro de 2021 já eram 21,7 milhões de casos e 605 mil mortes no Brasil 3,
provocando mudanças significativas nas formas de vida, inclusive no
que tange às relações com o outro, que passou a ser agente de possíveis

3
Disponível em: https://covid.saude.gov.br/
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 123

drásticos contágios, e figura a ser evitada e expulsa da intimidade do


dia a dia.
O contexto Covid-19 demarca bem suas particularidades, e traduz
um Real que invade o mundo sem avisar, na forma de um vírus facil-
mente transmissível, detentor de uma potência destrutiva e
ameaçadora da coletividade. Vale lembrar que a pandemia nos sensibi-
liza a todos, como indivíduos e profissionais, pois nos afeta em nossa
subjetividade e em nosso laço social. A necessidade do isolamento, do
afastamento dos corpos, fruto do pavor da contaminação, fabrica su-
jeitos intensamente afetados, com impactos físicos e emocionais,
encarando sentimentos de solidão e desamparo. Existe um horror do
inédito, vivenciado pela população em geral, ligado de forma assusta-
dora à morte, ao adoecimento grave e à urgência biopsicossocial, que
demanda a vários campos do saber, sobretudo àqueles da área da Saú-
de e, inclusive, a Psicanálise, a construção de alguma resposta para
apaziguar o mal-estar e o sofrimento em larga escala desenvolvidos.
Assim, se a questão do sujeito e das suas formas de sofrimento é tão
cara à Psicanálise, nos vemos convocados a nos debruçar atentivamen-
te à indagação: qual resposta possível, da Psicanálise, para a
pandemia?

POSIÇÕES DE UMA ÉTICA DO CUIDADO E SUAS ARTICULAÇÕES COM O


SOFRIMENTO SINGULAR

Neste cenário, o psicanalista, como integrante das equipes multi-


disciplinares nas mais diversas instituições de saúde, com sua escuta
atenta e diferenciada, participa de questionamentos trazidos pela con-
juntura da pandemia, envolvendo a problemática das ações frente às
(im)possibilidades do cuidar na área da saúde, que adentra a práxis dos
124 • A psicanálise às voltas com a peste

profissionais, em suas vertentes clínica e institucional. Tais profissio-


nais passam a encarar um movimento de transitar entre duas posições
possíveis frente ao cuidado: o cuidado de si e o cuidado do outro.
A separação dessas duas posições, muitas vezes não se sustenta de
forma tão nítida, pois elas se mostram enlaçadas, já que o cuidar de si
é fundamental para o desenvolvimento do cuidado do outro, e o cuida-
do do outro toca as percepções do que é cuidar de si. Nesse sentido,
existe a introdução de um cruzamento de lugares de árdua distinção,
denunciando uma mistura do que é pessoal-profissional ou, em outros
termos, dos lugares do que é ser paciente ou cuidador, uma vez que,
dialeticamente, o cuidador pode ser paciente e o paciente pode ser
cuidador. Por exemplo, vimos com as questões apresentadas nas cenas
cotidianas acima, que os medos e as inseguranças sentidos pelo indiví-
duo podem revelar as dificuldades tanto de um profissional, como de
diversos outros lugares subjetivos.
O posicionamento ético desses especialistas da saúde convoca es-
colhas pessoais relacionadas à formação profissional e a uma rotina na
qual a atividade profissional, com todas as suas complexidades, irrom-
pe no epicentro da vida. Aqui, vemos uma ética do cuidado, que mesmo
não sendo a mesma ética do cuidado que a da Psicanálise, ressalta a
responsabilidade, a atenção e o compromisso em relação ao sofrimento
do outro. Sofrimento, este, que intima a questão da saúde do corpo
biológico, tratando-se da Covid-19 e suas manifestações clínicas, mas
não só, já que se estabelece um diálogo com a forma subjetiva que cada
um, de forma singular, irá se afetar e irá ressignificar a pandemia
como acontecimento singular, compartilhado no laço social, o que
adentra o campo dos impactos no mundo psíquico, visão diferenciada
do saber da Psicanálise.
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 125

É possível abordar a questão do sofrimento nas instituições de


saúde através de dois caminhos, que se atravessam e intercruzam: por
um lado, a escuta do paciente e sua família; por outro, as experiências
da equipe multiprofissional. Nesse sentido, o sofrimento vai estar,
necessariamente, atrelado às vicissitudes do adoecimento e às reper-
cussões subjetivas para aqueles que o vivenciam, ou que cuidam dele.
Enfatizamos que tratar do sofrimento subjetivo não é a mesma coisa
que tratar do adoecimento; são olhares diferentes para objetos dife-
rentes; o primeiro, convoca o sujeito e precisa de um método
específico para tratar dele; já o segundo, mas não menos importante,
se detém ao mal-estar que o corpo grita diante das erupções dos sin-
tomas de uma doença.
As tramas, ilustradas nas cenas da vida cotidiana, indicam a per-
cepção de que todas as categorias de profissionais da área da saúde –
aqui representadas pelo enfermeiro, psicóloga e médico – demonstram
inquietações referentes a esse momento da atualidade da crise sanitá-
ria mundial. No entanto, precisamos enfatizar que o que será
suportável ou insuportável, diante desse acontecimento da pandemia,
será variável para cada um, de acordo com cada história singular. Se o
sofrimento psíquico será consequência do adoecimento por Covi-19, só
iremos ter notícias a partir da escuta do sujeito, da decisão do sujeito
destinar sua dor psíquica a quem possa escutá-la.
Nessa mesma perspectiva, vemos que a experiência do adoeci-
mento por Covid-19 – de seu próprio adoecimento, ou do outro, a
quem se presta cuidado –, seja enquanto paciente ou enquanto cuida-
dor, não se resume apenas à vivência ou ao cuidado de um corpo
biológico, comprometido, que recebe um diagnóstico, um tratamento e
um prognóstico, o que evidencia nossa premissa de que aquilo de que
126 • A psicanálise às voltas com a peste

se trata para o saber científico, provavelmente não irá coincidir com


aquilo de que se trata para o sujeito (Castellani, 2019), o que coloca, na
mesa, a antinomia entre a visão de saúde para a Medicina e para a
Psicanálise. Existe uma objetividade primordial, própria de um traba-
lho de cura de uma patologia identificada no corpo de um paciente,
que precisa ser acompanhada da ideia de que qualquer doença, o que
engloba a Covid-19, irá representar muitas outras coisas para cada um.
E precisamos estar atentos a isso, quando nos propomos este debate
das expressões de cuidado.
É absolutamente compreensível a articulação, indispensável, que
se estabelece entre o reconhecimento de uma doença e as atenções
referentes ao tratamento e ao prognóstico elucubrado, exigindo a par-
ticipação de vários agentes de cuidado. Esse reconhecimento vem na
forma de um diagnóstico, que é o passo inicial do tratamento. Porém, a
escuta psicanalítica nas instituições de saúde, nas suas vertentes clíni-
ca e institucional, indica que viver um processo de adoecimento
delineia uma experiência que ultrapassa, muito, o ato de receber ou de
dar uma notícia e participar de um tratamento.
Podemos reconhecer que todo adoecimento é um evento na vida
do sujeito, que tendo vivido uma sucessão de eventos anteriores, rece-
be um lugar de pertencimento. Sabemos, bem, que a cadeia de
representações identitárias não é só composta por doenças e signifi-
cantes convocados por elas, e sim por nomes plurais recebidos ao
longo de uma vida e atrelados por alguma significação inconsciente. O
momento de descoberta de uma doença vai ativar algo da fantasia do
sujeito, e abrir uma porta para que ele interprete o evento real, que
acaba de viver, a partir das suas condições subjetivas.
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 127

Seguindo essa ideia, convocamos as colocações de Moretto (2019),


que sugerem um percurso de passagem do acontecimento para a expe-
riência. Essa seria a direção da construção de uma narrativa do
indivíduo, para poder sair da posição de vivência do acontecimento,
entendido como fato, como ocorrência pontual, e ocupar uma condição
de elaboração da experiência como dimensão subjetiva do fato. Desse
modo, podemos dar o nome à apropriação do acontecimento de expe-
riência, aquele acontecimento “para chamar de seu”, pois da
experiência, só sabe dela quem por ela passa.
Para a autora, o adoecimento é um acontecimento de corpo –
aqui, corpo é, por ela, entendido como algo mais além do corpo puro
organismo do saber médico – e o novo da doença pode trazer desorga-
nização e jogar o sujeito no campo do não-saber e das incertezas.
Portanto, para que seja possível essa mudança de posição entre o acon-
tecimento e a experiência, e que uma operação de apropriação seja
efetiva, produzindo um saber singular do sujeito, é fundamental que
haja um trabalho psíquico, segundo Freud (1905[1996]), como se o paci-
ente fosse um escultor de si mesmo, dando forma à sua vida, vista
como sua obra mais importante. Esse trabalho envolve diversas estra-
tégias e inclui a direção de atribuir sentido ao que possa ser sem
sentido, dar palavras à falta delas, de tentar apaziguar a angústia, que
muitas vezes provém do acontecimento ainda como fato, sendo a via
da nomeação uma importante alternativa.
Em vista disso, indagações que nos auxiliem a facilitar a recons-
trução do lugar de cada sujeito (profissionais e pacientes) como autor
de sua própria história, e não puro efeito do adoecimento como fato da
medicina, são fundamentais. Ou seja, provocar e acompanhar a transi-
ção do sujeito, partindo do adoecimento para a experiência, irá
128 • A psicanálise às voltas com a peste

influenciar, diretamente, a maneira pela qual serão exercidas as posi-


ções do cuidado de si ou do cuidado do outro.
Então, nos indaguemos: Como escutar e tentar compreender esse
sofrimento psíquico relacionado ao adoecimento de Covid-19? O que
significa o impacto desse nome? O diagnóstico de Covid-19 se atrela a
outros autodiagnósticos da história do sujeito? Qual é a significação
que o sujeito atribui ao fato de ter essa doença? E quais são as repre-
sentações que o profissional de saúde constrói sobre cuidar de alguém
com Covid-19? Que marca essa doença faz no psiquismo do sujeito,
daquele que cuida e daquele que é cuidado? Como intervir, junto aos
profissionais de saúde, para favorecer a construção de novas alternati-
vas imbuídas de menos sofrimento, que visem as duas posições, já
mencionadas, frente ao cuidado no processo do adoecimento e do tra-
tamento? Essas questões podem funcionar de bússola para refletirmos
as estratégias de cuidado, tanto do paciente como dos profissionais de
saúde.
Levemos em conta que o inédito da pandemia é vivido na prática
cotidiana, provocando uma necessidade de mudança nas rotinas das
instituições de saúde (sobretudo nos hospitais), fazendo com que o
olhar para o sofrimento e as imprescindíveis respostas ao cuidado
deste, sejam prioridade de ação. Situações como a generalização da
gravidade dos casos, novos protocolos e regras de biossegurança, au-
mento do número de doentes, carga intensa de atendimentos,
necessidade de maior disponibilidade, aumento do número de mortos,
o drama das vagas e dos leitos, a incerteza da evolução dos casos, a
dúvida das medicações, como cuidar de casos Covid-19 e de todas as
outras especialidades ao mesmo tempo, as perdas, a necessidade de
revisão e adaptação de procedimentos de rotina, fazem com que os
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 129

profissionais de saúde se percebam imersos em um campo de desafios


diários com efeitos psíquicos importantes.
Assim, podemos reconhecer que esses desafios, e inúmeras outras
vivências na instituição de saúde, promovam o aparecer do sofrimen-
to, de uma urgência subjetiva, tanto do lado dos pacientes, que se
colocam como objeto dos saberes para o cuidado, como dos profissio-
nais, que se veem convocados a encontrar saídas e repostas no seu dia
a dia da práxis clínica e institucional. De fato, a presença do contato
com o sofrimento intenso, com a angústia, produz a necessidade de
reflexão, de nomeação e de construção de estratégias. Porém, como
sair do emaranhado das dificuldades e enxergar um passo, possível,
para o cuidado do sofrimento?
É razoável pensarmos que uma alternativa inicial é considerar-
mos a operação de compreensão de que (se) trata o fenômeno do
sofrimento, despertando uma importante diferenciação entre sofri-
mento, sintoma e mal-estar, pois tais conceitos, para a Psicanálise, não
se equivalem, necessariamente. Isso se mostra como um exercício de
caracterização teórica fundamental para a decisão dos manejos das
diferentes categorias de profissionais de saúde, e não só do psicanalis-
ta, tanto diante do paciente e sua família, quanto dos impasses
institucionais. Elucidar essa problemática pode evitar o risco de cair-
mos e nos aprisionarmos em dois extremos: ou a patologização do
sofrimento, ou um não reconhecimento deste. Ambas as posições cau-
sam impactos na abordagem clínica do sofrimento, e na lógica do
cuidado em saúde.
Para Dunker (2015), “sofrimento não é sintoma, e sintoma não é
mal-estar. Há sintomas que parecem absolutamente imunes ao sofri-
mento (...) Por outro lado, há formas de sofrimento que parecem
130 • A psicanálise às voltas com a peste

continuamente à espreita de um nome que enfim as capturará.” (p.


188).
Em outras palavras, um mal-estar pode, ou não, se transformar
em sofrimento, e um sujeito pode, ou, sofrer de seu sintoma; isso, por
si só, já reforça a diferença entre eles, mas ao colocarmos o sofrimento
em um lugar subjetivo estruturalmente central, nos deparamos com a
questão primordial: “de que esse sujeito sofre?”, que se define como
passo inicial para as decisões frente ao cuidado subjetivo. Com esse
foco, estaremos alertas em identificar quando um mal-estar se meta-
morfoseia em sofrimento, e perdemos menos tempo e esforço com a
tentativa do desaparecimento imediato de um sintoma, que insistirá
em reaparecer, pois o sujeito dele necessita, e só se livrará dele a longo
prazo, com uma escuta atenta do inconsciente.
O sofrimento pode chegar aos nossos olhos e à nossa escuta de di-
ferentes formas, mas é em sua narrativa singular que ele encontra o
endereçamento a quem esteja atento e receptivo para dele cuidar.
Como já mencionamos acima, existe uma clara articulação entre
sofrer e adoecer; e se o sofrimento fica reduzido ao sintoma da forma
de adoecimento, o profissional de saúde irá se concentrar em atuar na
abordagem do sintoma, e o sofrimento não será reconhecido. Isso por-
que, muitas vezes, vemos acontecer uma tendência, da equipe
multiprofissional, em proceder com o sofrimento psíquico como se
fosse um sintoma a ser decifrado e eliminado. Portanto, o modo como
um profissional compreende o sofrimento vai precisar suas ações para
(não) tratar dele (Moretto, 2019).
Fazer a diferença valer, sobretudo entre esses dois conceitos, a
saber, sintoma e sofrimento, na prática de uma equipe de saúde multi-
disciplinar, é poder sempre considerá-la nas problemáticas
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 131

apresentadas na rotina institucional, também nos casos mais sensíveis


que mobilizam todos os profissionais, levando em conta que, muitas
vezes, o psicanalista estará atento às sutilezas que os demais não esta-
rão, e poderá compartilhar suas leituras com o restante da equipe.
Nesse sentido, a lente do sofrimento, olhada pela Psicanálise, de-
ve enfatizar a transformação do adoecimento como fato, atrelado ao
corpo orgânico, com suas imagens sociais e econômicas, em história
do sujeito, narrada por ele e dirigida a um interlocutor. É imprescindí-
vel que haja o reconhecimento do sofrimento subjetivo, e não seu
tamponamento. Para que o sofrimento seja tratado, ele precisa ser
reconhecido como único, como parte da dinâmica psíquica de um de-
terminado sujeito. Ora, temos certeza de que o não reconhecimento
produz efeitos importantes, inclusive diante do (não) engajamento no
tratamento de alguma patologia, ou mesmo na produção de um caráter
traumático da experiência, pela indiferença do Outro.
Fazemos a aposta que tal interlocutor não precisa ser, necessari-
amente, um psicólogo, ou um profissional do dito campo da saúde
mental, nomenclatura que polemiza as contradições entre o psíquico e
o somático. Pode, muito bem, ser qualquer outro profissional de uma
equipe de saúde – médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais,
assistentes sociais etc. – que esteja aberto e interessado em disponibi-
lizar sua escuta atenta às dores do outro, considerando a ética do
cuidado, entendida pela Psicanálise, que abarca o sofrimento e a sin-
gularidade.
Tendo em consideração o contexto sensível da pandemia, que
evoca o lugar hegemônico do sofrimento subjetivo, apostar nos alcan-
ces da Psicanálise no terreno da saúde, apostar, especialmente, no
potencial da transmissão da ética do cuidado, em Psicanálise, às outras
132 • A psicanálise às voltas com a peste

áreas do saber, nos motivou a mobilizar uma resposta urgente aos


profissionais de saúde. Nosso objetivo era oferecer um espaço que
associasse as duas dimensões do cuidado, tanto impulsionando uma
multiplicação cuidadosa da escuta, interessada, de quem se oferece ao
outro em nítido sofrimento, quanto servindo de atmosfera de reflexão,
troca, criação, o que poderia se mostrar eficiente no autocuidado dos
profissionais de saúde. E, para nos acompanhar nesse caminho insti-
gante, chamamos a bela e impactante frase de Moretto (2019, p. 61):
“em tese, frente ao impossível, cabe o luto, frente ao possível, cabe a
luta”.

A URGÊNCIA DE UMA RESPOSTA: UM CURSO EM PARCERIA

O cenário, acima descrito, deixa nítido quão imprescindível se re-


vela a dedicação para o edificar de uma resposta que possa servir de
formação minuciosa, e amparo atento aos profissionais de saúde que
se percebem imersos na problemática do sofrimento intenso, nas ins-
tituições. Principalmente, se levarmos em conta o aumento dos
desafios frente à tentativa de resolução das novas manifestações de
sofrimento psíquico decorrentes dos efeitos da pandemia, que trouxe-
ram a eclosão de uma crise sanitária, social, política e econômica.
Assim, então, nasceu o Programa Autoestima, fruto de uma parceria
entre a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e o Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, com o apoio do Fundo Social,
do Sebrae-SP, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, da Univesp 4 e do
Cosems-SP 5.

4
Universidade Virtual do Estado de São Paulo
5
Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo “Dr. Sebastião de Moraes”
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 133

A justificativa da criação do programa se deu pela urgência em


responder à demanda de novos espaços de escuta e cuidado para uma
população que, antes desse evento, não se mostrava requerente de
ações desse tipo, já que uma consequência expressiva desse contexto
foi o aumento das queixas relacionadas ao sofrimento psíquico. Dessa
forma, passa-se a reconhecer que há uma necessidade imediata de
adotar novas estratégias, de se discutir abertamente sobre esse sofri-
mento e de proporcionar o benefício de conteúdos e informações de
promoção de saúde mental à população, em geral, e à categoria de
profissionais de saúde, mais exclusivamente.
Com essa parceria, diversos setores da sociedade se uniram para
viabilizar, de forma coletiva e solidária, esta oportunidade, criando o
Programa Autoestima,

que oferta conteúdos para a saúde mental da população, valorizando o


protagonismo do cidadão na busca por saúde mental, qualificação para as
equipes do SUS para o cuidado em saúde mental, além de um espaço onde
os serviços de forma viva e dinâmica compartilham suas ações, ampliando
o repertório e diversificando as práticas de cuidado e promoção em saúde
mental 6.

Como mencionado acima, foi então, a partir desse programa, que


o profícuo acordo entre a Secretaria de Estado da Saúde do Estado de
São Paulo e o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo foi
desenvolvido, com o objetivo de cuidar de quem cuida, de oferecer
espaço de escuta e de reflexão para a criação de novas estratégias e
novos dispositivos clínicos às equipes de saúde da rede de Atenção
Psicossocial do Sistema Único de Saúde. Esse acordo colocou diversos

6
Disponível em: https://autoestima.sp.gov.br/
134 • A psicanálise às voltas com a peste

professores e técnicos como agentes de escuta, cuidado e transforma-


ção, na posição de educadores e supervisores de cursos de
aperfeiçoamento que oferecem um espaço duplo, tanto de formação
profissional como de cuidado de si.
Um dos produtos dessa parceria foi a elaboração, no segundo se-
mestre do ano de 2020, do curso de aperfeiçoamento Abordagem do
sofrimento nas instituições de saúde: modos de cuidar, que está, agora,
em sua terceira edição e é coordenado pela professora titular do Insti-
tuto de Psicologia Maria Lívia Tourinho Moretto. O curso foi
desenvolvido com enfoque equivalente ao do programa, mas com a
especificidade de convocar a visão da Psicanálise sobre o cenário pan-
dêmico atual, e as possibilidades de cuidado a partir de uma ética que
considera a subjetividade. Abaixo, apresentaremos uma descrição da
proposta, do objetivo e da modalidade do curso.

A PROPOSTA:

O curso de aperfeiçoamento Abordagem do sofrimento nas institui-


ções de saúde: modos de cuidar pretendeu ser uma resposta cuidadosa
ao aumento expressivo de situações de sofrimento intenso nas insti-
tuições de saúde, no contexto da pandemia da Covid-19. Notou-se a
importância de instrumentalizarmos os profissionais de saúde com
relação à temática do sofrimento em situações extremas, atualizando-
os com relação às formas de manejo possível, facilitando seu acesso a
material instrucional de qualidade e fomentando espaços de formação
para que os profissionais de saúde tenham oportunidade de aprender,
refletir e aprofundar tal tema, em consonância com as características
sociopolíticas e culturais brasileiras.
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 135

O OBJETIVO:

Proporcionar subsídios para a abordagem do sofrimento nas ins-


tituições de saúde, facilitando a compreensão e ampliando as
possibilidades de estratégias de cuidado, oferecidas tanto aos usuários
e seus familiares quanto aos próprios profissionais de saúde, dando
ênfase ao contexto da pandemia da Covid-19.

A MODALIDADE:

Este curso foi oferecido, na modalidade totalmente à distância


(EAD), aos profissionais de saúde do estado de São Paulo, que tiveram
acesso à plataforma on-line especialmente desenvolvida pela Univesp.
Essa escolha levou em conta o contexto da Pandemia Covid-19, que
inseriu a obrigatoriedade do afastamento social, e atendeu às orienta-
ções provenientes de comunicados e Resoluções da Reitoria e da Pró-
Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, que re-
gulam a situação de oferecimento de cursos não presenciais nesse
contexto. A forma como este curso foi concebido, segundo o programa
aqui apresentado, minimiza qualquer risco que venha reduzir a quali-
dade dos serviços oferecidos em decorrência da ampliação dos
profissionais a serem atendidos, que atuam e vivem em distintas cida-
des e territórios do estado de São Paulo.
As atividades do curso foram divididas entre parte teórica e parte
prática. Para a parte teórica, foram convidados vários professores,
especializados no cuidado em saúde mental, para abordarem diferen-
tes assuntos relacionados à questão do sofrimento nas instituições de
saúde. Eles perpassaram as seguintes temáticas: a abordagem do so-
frimento nas instituições de saúde; como escutar pessoas pode
136 • A psicanálise às voltas com a peste

transformar vidas; as interlocuções entre diagnóstico e sofrimento,


que influenciam a posição do profissional de saúde diante do cuidado
do outro e do cuidado de si; os ideais de saúde, em nossas práticas de
cuidado, que podem causar paralisia e produção de sofrimento; os
caminhos do cuidado, em Saúde Mental, de pessoas em situações de
desastres e pandemias; a abordagem das famílias em sofrimento na
pandemia; a produção institucional do sofrimento; o sofrimento soci-
opolítico e a saúde mental; as concepções e práticas de cuidado em
saúde com povos indígenas em sofrimento. As aulas aconteciam quin-
zenalmente.
Na parte prática, os alunos deveriam se disponibilizar a atender,
individualmente, pessoas da população em geral que procurassem a
plataforma para auxílio com questões relacionadas ao sofrimento psí-
quico. Os atendimentos foram realizados via plataforma digital do
Programa Autoestima, inteiramente on-line, e não existiu um estabele-
cimento prévio do número de encontros com cada paciente, mas foi
estipulado que a duração máxima dos atendimentos poderia seguir até
a finalização de cada edição do curso. O momento exato do encami-
nhamento a alguma instituição de saúde mental era decidido caso a
caso, ao longo do acolhimento com o paciente, em supervisão com o
grupo. A supervisão acontecia quinzenalmente, revezando com as da-
tas das aulas teóricas, em grupo de mais ou menos seis pessoas, e os
grupos eram mistos, contando com a participação de profissionais das
diversas categorias da saúde.

A DURAÇÃO:

Cada edição do curso tem duração de três meses e meio.


Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 137

Sua carga horária está dividida da seguinte forma: aula teórica –


18h; supervisão técnica – 18h; estudo – 16h; relatórios – 8h; estágio –
120h; totalizando 180 horas de atividades.

O PÚBLICO-ALVO:

O curso é oferecido para as diversas categorias de Profissionais do


Sistema Único de Saúde da Rede de Atenção Psicossocial do estado de
São Paulo.
Desde sua primeira edição, o curso teve elevada procura pelos
profissionais, contando com uma lista de espera, considerável, em
todas as edições. O primeiro encontro do curso era destinado a uma
rodada de apresentações gerais, tanto dos professores quanto dos alu-
nos, e pudemos ver a vasta gama de trabalhadores da saúde que
estavam interessados em se aprimorar na abordagem do sofrimento.
Inclusive, tinham proveniência de diversos municípios do estado de
São Paulo, e tinham, como campo de atuação, diferentes aparelhos de
saúde, como as Unidades Básicas (UBS) e, até mesmo, a atenção mais
especializada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Neste mo-
mento inicial, era também realizada a divisão dos alunos em grupos de
supervisão, para o amparo da parte prática.
Acompanhando os alunos nesses dois diferentes contextos, pu-
demos reparar algumas temáticas mais sensíveis, que chamavam mais
a atenção e levantavam cenas de reflexões e debates. Algumas experi-
ências, relacionadas à rotina de trabalho das equipes fonte de
preocupações, foram: a responsabilidade por comunicar um diagnósti-
co positivo de Covid-19; impactos emocionais de lidar com a gravidade
dessa doença e com a impotência frente à impossibilidade de cura;
138 • A psicanálise às voltas com a peste

risco de contaminação; o trabalho e o vínculo em equipe; o não-saber


em relação ao manejo com o novo; o despreparo dos profissionais; o
atendimento do paciente e de seus familiares; a frequência dos óbitos;
colocar em risco o próprio ciclo familiar e afetivo; investimento na
formação profissional; a identificação com o sofrimento do outro a
quem se escuta; e muitos outros pontos.
Esses temas foram discutidos e trabalhados intensamente, mas o
objetivo não era, necessariamente, encontrarmos uma resposta final,
aplicável em larga escala, e, sim, a troca como estratégia de aprendiza-
do, levando em conta o singular de cada caso. Aliás, a questão da
resposta, da necessidade de uma resposta rápida e eficaz, nos envolveu
no detalhamento do que é, mesmo, responder ao outro, sobretudo se
responder quiser dizer ter um saber instantâneo sobre o outro. Muitos
profissionais se viam convocados a esse lugar de “respondedores”, em
um simpático trocadilho, àqueles que respondem diretamente às dores
do outro, ou seja, que sabem o que é melhor para o outro. Poder estar,
minimamente, advertido do incômodo desse pedido de resposta, e de
que o não-saber nos direciona muito mais para a aposta da construção
do que para a rapidez do instante da resposta, já foi um ganho funda-
mental para que os profissionais pudessem se reposicionar diante do
sofrimento do outro.
Além do mais, ouvir atentamente as questões dos companheiros
provocava um movimento de autoquestionamento, de revisão da pró-
pria prática. Quando o profissional se deparava com um não-lugar
diante do inédito, lugar esse de angústia, ele era invadido por dúvidas
e incertezas, e multiplicavam-se as indagações. Então, como construir
um novo saber? A transição do não-saber, como causador de medo e
insegurança, para o uso do não-saber como ferramenta para constru-
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 139

ções, para invenções no coletivo, na prática profissional em equipe é


feita em conjunto, de mãos dadas, possibilitando a extensão do cuida-
do.
Pudemos enfatizar, ao longo do curso, as estratégias coletivas de
enfrentamento das dores da pandemia, estruturando uma experiência
compartilhada que, paradoxalmente, se atentasse para o sofrimento
singular. Nessa lógica, o espaço oferecido funcionou, de um lado, como
ambiente de escuta, facilitando a produção de narrativas dos profissi-
onais e o achado de nomeações para as angústias sentidas, na direção
do autocuidado; de outro lado, deu oportunidade para a reflexão, para
as trocas potentes e substanciais entre os profissionais de saberes tão
distintos, para a formação e instrumentalização, elaborando novos
saberes que auxiliem na prática de todo dia, vertente essa que sustenta
a lógica do cuidado do outro.

UM TEMPO DE CONCLUIR: QUANDO A PSICANÁLISE SE OFERECE COMO


RESISTÊNCIA E CUIDADO

Fonte: Internet, 2020.


140 • A psicanálise às voltas com a peste

“Ninguém solta a mão de ninguém”, frase que ficou muito famo-


sa, vinculada à ilustração acima, e percorreu os sete cantos do nosso
país em uma época sombria, de incertezas e inseguranças em relação
ao futuro, diante do acontecimento político de 2018, a vitória de Jair
Bolsonaro à Presidência da República do Brasil 7. A mensagem, nas
entrelinhas da frase, é de união, resistência e luta, dando a entender
que, frente ao “inimigo”, ninguém estará sozinho, pois a violência se
combate conjuntamente. Sustenta uma ideia de que juntos seremos
fortes, e encontraremos um caminho que favoreça o compromisso e o
cuidado uns com os outros.
Recuperamos essa potente frase aqui, num lugar de destaque,
como título dos nossos escritos, pois é exatamente com essa lógica que
o curso Abordagem do sofrimento nas instituições de saúde: modos de
cuidar foi concebido: uma resposta de resistência e cuidado, face a face
com o inimigo Real que nos arrasou: a pandemia de Covid-19. Resis-
tência é criação, é aposta e dedicação a novas estratégias de cuidado. E
o cuidado é uma experiência na qual o sofrimento é reconhecido, escu-
tado. O sujeito é considerado no seu mais legítimo valor, e sua fala é,
essencialmente, endereçada ao outro disponível. Cuidado só se faz com
interesse, disponibilidade, olhar, escuta atenta. Essa é a ética de cuida-
do vista pela Psicanálise, que cabe tanto ao profissional de saúde
quanto ao paciente.
As diferentes abordagens teóricas e éticas são fundamentais para
compor o cuidado em saúde. Moretto (2019) defende que “um dos efei-
tos possíveis da interlocução do psicanalista com as equipes de saúde,
é a implicação dos demais profissionais de saúde no projeto dos cuida-

7
Histórico disponível em: https://www.hypeness.com.br/2018/11/por-tras-do-viral-de-onde-vem-a-
frase-ninguem-solta-a-mao-de-ninguem/
Mayra Moreira Xavier Castellani; Maria Lívia Tourinho Moretto • 141

dos com a vida, tornando a experiência do cuidado uma experiência


transdisciplinar.” (p.87)
Nesse sentido, a lógica fundamental para proporcionar uma coe-
rente abordagem do sofrimento é evidenciar o cuidado do outro e o
cuidado de si, porque não se cuida do outro sem ter a condição de cui-
dar de si, e lidar com nossos próprios afetos, suscitados pelas
experiências com as quais nos deparamos em nossas práticas, é um
fundamental trabalho de cuidado.
Para concluir, nossa intenção é que o curso proposto tenha se de-
senrolado como auxílio para os profissionais de saúde – no grupo dos
psicólogos, médicos, enfermeiros, TOs, assistentes sociais etc. – que se
inquietam com suas práticas e se disponibilizam a pensarem a aborda-
gem do sofrimento a partir de um novo lugar. Priorizamos, sobretudo,
o olhar para a subjetividade em cena, na tentativa de não silenciar o
sujeito diante do seu sofrimento e nem de cair na armadilha da patolo-
gização, deste, sem ser necessário, pois o cuidado, em Psicanálise, se
faz presente com a introdução insistente da singularidade.
8
TENSÕES E TENTAÇÕES DE (NEM) TUDO
COMPREENDER: A PANDEMIA, OS IMPOSSÍVEIS E
SEUS TRATAMENTOS NA SAÚDE MENTAL
Enzo Cléto Pizzimenti 1

Ivan Ramos Estevão 2

“Operou-se uma profunda modificação nos barulhos da cidade [...] O Rio tinha
segredo dos ruídos. Todos os rumores encontravam, aqui, seu paraíso. O bonde,
o automóvel, o mascate, o moderno camelô do centro da cidade [...] O baile fu-
nesto abafou todas essas vozes [...] apenas a tosse quebra o silêncio.
circunstante.”
O País, 20 ago. 1918.

Em 1918 o mundo acompanhou, sem qualquer perspectiva


possível de resposta à altura, um tipo de gripe invadir suas cidades,
Estados e nações, matando mais de 40 milhões de pessoas. Hoje, a
realidade é outra, ainda que o tratamento prescrito para o
enfrentamento aos efeitos da pandemia global de covid-19 no nosso
país tenha algo de semelhante ao estabelecido para lidar com a gripe
espanhola (que ocorreu há pouco mais de 100 anos) em terras
brasileiras, do ponto de vista do Poder Público. Silveira e Nascimento

1
Psicanalista. Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica e membro do Laboratório de Psicanálise,
Sociedade e Política, e do Grupo de Pesquisa de Orientação Lacaniana, vinculados ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Autor do livro “Psicanálise e Saúde Mental: tática,
estratégia e política na direção do tratamento” (Benjamin, 2021) e um dos organizadores e autor do
livro “Tática, estratégia e política da psicanálise” (Calligraphie, 2022).
2
Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL) e do Fórum
do Campo Lacaniano de São Paulo. Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo (EACH-USP) e do programa de pós-graduação do Instituto de Psicologia da
USP. Mestre e doutor em Psicologia Clínica pela USP. Coordenador do Laboratório de Psicanálise,
Sociedade e Política da USP.
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 143

(2018) afirmam que diante da população, naquele momento de 1918,


muitos líderes sustentavam narrativas como a de que o vírus que
aportava no Brasil não era nada mais que um resfriado ou uma gripe
sazonal.
Para apresentar algumas contribuições à abordagem do
sofrimento psíquico em sua relação com a recente pandemia no Brasil,
destacamos três pontos fundamentais. São eles:

I. A inexistência de quaisquer documentos que versem sobre


elaborações, problematizações e produções científicas acerca do
impacto na saúde mental da população brasileira ao longo da
pandemia de 1918 (mal nomeada de gripe espanhola).
II. A importância de psicanalistas, implicados com a pesquisa rigorosa e a
oferta de dispositivos de cuidados, assumirem posições propositivas,
com perguntas e desejo de transmissão, bem como abertura para
diálogos interdisciplinares na academia e nos equipamentos de saúde
público e privado.
III. A inexistência de disciplinas obrigatórias, em cursos de graduação em
psicologia, que dialoguem com o impacto e o cuidado possível a ser
ofertado para a população que atravessa ou atravessou desastres,
pandemias e guerras.

A importância de discutir esses três pontos pode ser sustentada a


partir de dados epidemiológicos como os apresentados no relatório da
OMS 3, de 7 de abril de 2022, possivelmente já defasado em decorrência
da constante evolução dos casos de morte, que apontam, mesmo com o
avançar da vacinação, para mais de 1 milhão de novos casos nas
últimas 24 horas, 490 milhões de casos confirmados e
aproximadamente 6,2 milhões de mortos em decorrência da covid-19.

3 Disponível em: https://covid19.who.int/. Acesso em: 9 ago. 2022.


144 • A psicanálise às voltas com a peste

No Brasil, segundo a OMS 4, neste mesmo período, são 27 mil


novos casos, mais de 30 milhões de casos confirmados e
aproximadamente 660 mil mortos. Esses números não devem ser
negligenciados uma vez que é necessário que sejam levados em conta
quando a discussão rumar para questões relativas ao impacto deste
cenário no sofrimento psíquico, bem como para a devida
responsabilização das autoridades.
Para além da importância de não negligenciarmos os mortos em
decorrência da pandemia de covid-19, sobretudo aqueles que foram
vitimados, também, por uma clara negligência do Poder Público, é
preciso retomarmos um pouco da história para discutir a nossa relação
com pestes como a que enfrentamos atualmente.
Em meados de 1969, a FDA (Food and Drug Administration),
principal autoridade sanitária estadunidense, afirmara que era o
momento de “fechar o livro sobre as doenças infecciosas”, na medida
em que a “guerra contra as pestes havia sido vencida”, para, poucos
anos depois, em 1980, deparar-se com o vírus da AIDS e – mais uma
vez – dar-se conta de como o suposto domínio da Ciência sobre a
natureza é dos maiores engodos humanos. Sobre isso, as autoras
afirmam:

O caráter epidêmico assumido pela aids e a ausência de expectativa de so-


brevivência para os infectados reeditavam, ao final do século XX, a
incerteza e a vulnerabilidade do homem diante da natureza e de suas ame-
aças. A utopia de habitar um mundo em que os micro-organismos
patógenos estivessem banidos foi substituída pela consciência da
precariedade das conquistas humanas diante de um Universo que se
revelava sempre surpreendente. Os limites da onipotência médico-

4 Disponível em: https://covid19.who.int/region/amro/country/br. Acesso em: 9 ago. 2022.


Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 145

científica também foram evidenciados pela subsistência de males (Silveira


& Nascimento, 2018, p. 288).

A pandemia que seguimos atravessando evidencia, de modo


contundente, os limites da capacidade de controle do ser humano
sobre a natureza e as expectativas de que a Ciência teria condições de
responder, de modo plenamente satisfatório, aos desafios que temos
enfrentado. À esteira dos limites daquilo que é possível controlar, tem-
se junto à Saúde Mental uma das dimensões afetadas nesse processo,
ainda insuficientemente abordada.
Duarte et al. (2020) destacam alguns aspectos fundamentais para
a apreensão da trama que corrobora para o aumento nos relatos de
intensificação de sofrimento psíquico, a saber: a quarentena, o
isolamento social, possíveis perdas econômicas, a crescente circulação
das chamadas fakenews e, é claro, a proximidade com a morte, de
maneira geral. Os autores salientam que, embora “o isolamento social
seja apontado como fonte de ansiedade e estresse na população, essa
não foi uma variável significativa”; enfatizam, ainda, a importância de
“aumentar o número de prestadores de serviços psicológicos e sociais
para atender as necessidades dos membros da comunidade”; e, por
fim, atentam para a importância da oferta de atendimentos, mesmo
que on-line, à população (Duarte et al., 2020, p. 8).
No que tange ao aumento no número de queixas e busca por
tratamento em saúde mental, destacamos a pesquisa realizada pelo
Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(IPUERJ), que aponta um aumento expressivo no número de
trabalhadores que apresentam quadros depressivos, de 4,2% para 8%, e
146 • A psicanálise às voltas com a peste

de ansiedade, de 8,7% para 14,9% no período da quarentena 5. Nessa


mesma linha, a busca por psicofármacos também disparou; estudos
apontam para um aumento de até 25% nessas vendas no primeiro
semestre de 2021. As queixas mais relatadas são crises de ansiedade,
dificuldade com sono, além do abuso de drogas lícitas (álcool,
hipnóticos e outros) e ilícitas, como substâncias sintéticas.
Em entrevista realizada em 2021, a diretora regional da OMS,
Clarissa Etienne, afirma que a crise de saúde mental, de alguma forma
ligada à pandemia, é um fato. Segundo ela, “A pandemia de covid-19
causou uma crise de saúde mental, na nossa região, em uma escala que
nunca vimos antes”, afirmando, por fim, ser urgente que o apoio no
que diz respeito às políticas e ações em saúde mental seja tomado de
maneira rigorosa e coordenada 6.
São variadas as fontes em que há dados que apontam de que
forma as manifestações de sofrimento psíquico e de apelos de cuidado
foram afetadas – o que, aliás, é corroborado por nossa experiência
clínica e participação em serviços de saúde nesse período.
Sustentamos, aqui, que tanto a inoperância estatal como o
aumento na busca por espaços em que a saúde mental é pautada e
investida, tanto em âmbito público como privado, são dados a serem
considerados como resposta à complexa chegada desse vírus em solo
nacional. Olhar para as experiências anteriores permite nos
perguntarmos sobre a possibilidade de fazer diferente. Além disso, o
aumento de queixas e expressões sintomáticas de sofrimento psíquico

5 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/05/09/estudo-indica-aumento-em-casos-


de-depressao-durante-isolamento-social. Acesso em: 9 ago. 2022.
6 Disponível em: https://portaldatropical.com.br/news/opas-alerta-para-desenvolvimento-de-
doencas-mentais-durante-a-pandemia. Acesso em: 9 ago. 2022.
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 147

tem apontado para um limite naquilo que o saber médico-científico


tem a oferecer.
É nessa medida que propôs aqui uma discussão capaz de
encampar o debate em torno dos possíveis efeitos que a covid-19
produziu no laço social, levando em conta a inoperância inerente ao
intento de discursos que tomam o humano sem que para isso levem
em conta suas idiossincrasias, o inconsciente, a subjetividade em sua
relação com o corpo que a ciência supõe compreender.
Depois de 102 anos da publicação do artigo de onde foi extraída a
epígrafe deste texto –escrito à esteira dos efeitos da epidemia de gripe
espanhola – nos perguntamos: como poderíamos, enquanto
pesquisadores e clínicos que tomam a psicanálise como método de
trabalho, propor uma reflexão capaz de contribuir para uma tomada
de posição capaz de incluir, a um só tempo, a subjetividade, os efeitos
que a resposta de nossos representantes têm junto à escalada no
sofrimento psíquico e aquilo que há de irredutível dado o nível de
exposição que ora vivemos frente à morte?
O que se tem verificado, seja em jornais e pesquisas, seja na
dificuldade nos encaminhamentos de pessoas que demandam por
cuidados em saúde mental, dada a alta demanda por estes, é, no
mínimo, um olhar mais cuidadoso para a forma como é possível
habitar o mundo em que vivemos, sem que para isso o sofrimento
psíquico seja o fim. Poderíamos incorrer num passo apressado demais,
afirmando que essa busca se deu, como num processo de causa e
efeito, a partir da pandemia de covid-19.
Entretanto, com Freud, temos a possibilidade de acompanhar a
construção da sutil e delicada relação que estabelecemos com a morte
no momento em que esta chega perto demais de nosso cotidiano,
148 • A psicanálise às voltas com a peste

afirmando tratar-se de uma que, naquilo que há de mais íntimo,


guarda algo de enganoso (Freud, 1915).
Nessa medida, constrói uma reflexão em que afirma o engodo que
é tratar a morte como se ela fosse, de fato, algo passível de ser
simbolizada, de ser digerida, mas a verdade, segundo Freud, é que

[…] costumávamos nos conduzir como se isso fosse diferente. Mostráva-


mos a tendência inconfundível de deixar a morte de lado, de eliminá-la em
vida. [...] É que a própria morte é irrepresentável, e sempre que fazemos
essa tentativa, é possível perceber que continuamos lá, afinal, como espec-
tadores. (Freud, 1917, p.117)

Sendo a morte algo impossível de ser simbolizado, ao se dar conta


de sua presença mais estreita, os efeitos disso que não se inscreve se
fazem mais evidentes e mais comuns, muitas vezes em formas de
sofrimento.
Além de colocar a morte em evidência, uma epidemia é – como a
guerra – um evento que interfere de maneira direta nos ordenamentos
sociais, na maneira como o ser humano vê e organiza sua circulação no
mundo, afetando também, em última instância, o modo como pode
amar e trabalhar. Destacamos esses dois significantes por se tratar de
um apontamento que Freud fez quando interrogado sobre o que seria,
para a psicanálise, uma pessoa saudável. Ele responde se tratar de
alguém capaz de amar e trabalhar.
Considerar o aumento de sintomas depressivos e ansiosos no
contexto de uma pandemia não é, portanto, isolar tais fenômenos ou
procurar respostas generalizantes. Antes, trata-se de rever uma
organização social mais geral e considerar que, talvez, a experiência da
pandemia nos obrigue a olhar para entraves no modo como tal
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 149

organização vem ocorrendo. Afinal, conforme apontam Silveira e


Nascimento (2018, p. 292), as pandemias “iluminam os aspectos
culturais – os valores, as crenças, os tabus – através dos quais os
homens dão sentido à vida”.
Nesse “iluminar” ou, se preferirmos, neste movimento de
desvelamento, o que irrompe é um sentimento de desilusão. Tal
irrupção, e consequente processo de desilusão, é abordada por Freud
nos seguintes termos:

Mas a guerra, na qual não queríamos acreditar, irrompeu e trouxe – a de-


silusão. [...] Ela se coloca para além de todas as restrições a que nos
obrigamos em tempos de paz, às quais chamamos de direito dos povos;
não reconhece as prerrogativas do ferido e do médico, a distinção entre a
parte pacífica e a parte combatente da população, nem as reivindicações
da propriedade privada. (Freud, 1915, p. 106)

Freud refere-se à guerra; entretanto, trazemos esse trecho para


tratar da pandemia, a fim de refletir sobre as respostas que
observamos serem oferecidas, respostas verificadas em nosso dia a dia,
quando parte da população atacava médicos e outros profissionais de
saúde. 7 Nas notícias, o que se verificou foi um misto de falta de
confiança nos cuidados tomados pelos profissionais no trânsito entre
suas casas e o trabalho, bem como um certo discurso que os tomavam
como parte do problema, sobretudo por aqueles que acreditavam se
tratar de uma invenção do Governo, ou qualquer outra fake news
veiculada.

7
Sobre os ataques e hostilidades, ver: https://www.bbc.com/portuguese/geral-51983987 ;
https://ctb.org.br/noticias/internacional/organismos-internacionais-alertam-para-violencia-contra-
enfermeiros/ ;
150 • A psicanálise às voltas com a peste

Rapidamente, aqueles que constantemente são convocados para o


lugar de cuidado e proteção, converteram-se nos grandes portadores
da peste. Ainda com Freud:

É assim que o cidadão do mundo civilizado, que mencionei anteriormente,


pode ficar desamparado no mundo que, para ele, se tornou estrangeiro;
sua grande pátria, desagregada; os bens comuns, devastados; os
concidadãos, divididos e rebaixados!” (Freud, 1915, p. 106)

Retornamos às justificativas que as historiadoras, já citadas,


apresentam para a resposta dada por nossos governantes em idos de
1918. Elas afirmam que a ausência de atitudes seria tributária do receio
de possíveis retaliações sociais, uma vez que, desde 1918, era sabido
que o principal meio de se diminuir o ritmo de uma epidemia era, tão
só, o isolamento e a quarentena.
Mais uma vez, retomamos Freud, que, ao escrever sobre a guerra,
parece descrever também a situação que atravessamos:

Mas outro sintoma de nossos concidadãos do mundo talvez tenha nos sur-
preendido e chocado não menos do que a queda, tão dolorosamente
sentida, de sua superioridade ética. Estou falando da falta de discernimen-
to que se manifesta nas melhores cabeças, sua obstinação, sua
inacessibilidade aos argumentos mais convincentes, sua credulidade acrí-
tica em relação às afirmações mais contestáveis. (Freud, 1915, p. 115)

Sobre esse movimento, resgatamos as proposições de outro


historiador, Rosenberg, que situa uma pandemia como uma
experiência dramatúrgica em que é possível discernir uma sequência
de atos que, imbricados, possuem a capacidade de elevar a tensão
social ao limite.
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 151

O primeiro momento desse evento seria uma gradual revelação,


situação na qual os participantes desse momento histórico identificam
os primeiros sinais que indicam a proximidade e/ou a presença de algo
que perturba o “normal”: a doença está se aproximando.
O segundo ato desse funesto espetáculo é aquele relativo à
retomada dos acordos que a sociedade estabelece, bem como as formas
com as quais é possível compreender o mal que invade os limites
territoriais e psíquicos, e também a maneira como serão orquestradas
as explicações e justificativas para a chegada da pandemia. Como
afirmamos acima, é possível verificar certa repetição no tratamento
dado às evidências – seja na chegada da gripe espanhola no país, seja
na maneira como o Estado brasileiro tem enfrentado a pandemia.
Estabelecido este panorama, seguimos, agora, mais próximos das
proposições psicanalíticas em relação ao encontro com a morte,
buscando examinar de que forma podemos pensar a chegada da
Psicanálise, como campo de investigação e tratamento, nos Estados
Unidos da América, e o tratamento dado às proposições freudianas,
bem como a chegada do novo coronavírus e a possibilidade de
transformação oriunda da necessidade de rever a maneira como se
conduz a vida a partir de um encontro premente com o real da morte.
É impossível negar a importância da chegada da Psicanálise nos
Estados Unidos da América, ainda que não concordemos com os
destinos dados às proposições freudianas por algumas das correntes
que se estabeleceram naquele país. Segundo Roudinesco, foi em solo
estadunidense que a Psicanálise e muitos psicanalistas importantes
foram acolhidos e salvos da perseguição nazista, sobretudo durante o
entreguerras (Roudinesco, 1998).
152 • A psicanálise às voltas com a peste

Na famosa viagem de Freud a Nova York, em 27 de agosto de 1909,


onde realizou cinco importantes conferências, a Psicanálise ganhou
alcunha de peste quando, em 1955, Lacan relatou ter ouvido, da boca do
próprio Jung, que “em 1909, ao aportar no continente norte-americano
para ali proferir suas cinco lições de psicanálise, Freud teria segredado
no ouvido de seu discípulo: ‘Eles não sabem que lhes trazemos a peste’”
(Roudinesco, 1998, p. 587).
Lacan retoma essa história não para corroborar a hipótese
freudiana de que sua doutrina poderia subverter a maneira como “os
americanos” tomavam suas vidas até então. Ao contrário, segundo
Lacan, a peste freudiana fora completamente transformada não em
uma disciplina subversiva, mas sim em mais um meio de adaptar o ser
humano às lógicas de consumo e produção (Lacan, 1955).
Para sustentar tal hipótese, Lacan demarca dois outros momen-
tos, posteriores a 1909, em que se verificou as muitas contingências
ligadas aos desvios junto às ressonâncias que a invenção freudiana
poderia produzido:

Estas parecem abafar-se nos surdos desmoronamentos do primeiro confli-


to mundial. Sua propagação recomeçou com a imensa dilaceração humana
em que se fomentou o segundo, que foi seu veículo mais potente. Sinal de
alarme do ódio e tumulto da discórdia, sopro aterrador da guerra, foi em
suas batidas que nos chegou a voz de Freud, enquanto víamos passar a di-
áspora dos que eram seus portadores e aquém a perseguição não visava
por acaso. (Lacan, 1955, p. 403)

Ao trazermos para a presente discussão esse mito relativo à


chegada do freudismo nos EUA, pretendemos refletir sobre as muitas
formas com as quais se pode relacionar – por conseguinte, fazer uso –
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 153

com uma teoria de maneira a torna-la artífice de um maior controle


social. Isso porque, ainda com Lacan:

A conjuntura era forte demais, a oportunidade sedutora demais, a


oportunidade sedutora demais para que não se cedesse à tentação
oferecida: abandonar o princípio para fazer repousar a função na
diferença [...] como não deslizar daí para tornarem-se administradores de
almas, num contexto social que lhes requer esse ofício? (Lacan, 1955, p.
404)

Aqui sublinhamos – e convocamos aqueles que nos leem – a


refletir sobre os caminhos que a Psicanálise pode assumir enquanto
campo e os riscos de, na atenção demasiada à demanda de “saúde
mental”, recair na oferta de novos ideais, fingindo poder deixar para
trás o que há de irredutível no humano.
Voltando às proposições freudianas, é entre 1914 e 1920, que
Freud produz os escritos sobre a metapsicologia, bem como alguns dos
mais importantes artigos sobre os efeitos que a guerra e a morte
produziriam naqueles que ficam em suas casas, aguardando e
recebendo notícias sobre esses eventos – como em Considerações
contemporâneas sobre a guerra e a morte (1915) –; e, posteriormente, a
partir do encontro com os combatentes regressos, sobre os efeitos que
a guerra e a morte teriam sobre os combatentes, e a maneira como o
inconsciente poderia tratar tais traumas – como em Mais além do
princípio do prazer (1920).
Nesse período, envolvido em questionamentos sobre a
participação da Psicanálise na coisa pública, Freud proferiu seu mais
importante discurso sobre a missão legada aos psicanalistas, caso estes
quisessem manter sua disciplina viva e pungente, de ter como
154 • A psicanálise às voltas com a peste

horizonte a proposição de formas de escuta para além do par poltrona-


divã, almejando, por fim, a inserção da Psicanálise em equipamentos
de saúde pública voltados à população geral.
O que podemos dizer sobre tudo isso?
Assim como quando Freud pondera sobre o luto, nós não estamos
lidando – apenas – com a morte dos entes queridos. Nós, brasileiros,
lidamos com a queda de um suposto ideal de nacionalidade, de coesão,
de avanço. O luto e a luta são muito mais complexos e amplos do que a
questão da pandemia no sentido de um espalhamento viral.
Estamos todos desiludidos. É preciso assumir isso. Uma análise
nos leva até aí. Frente à desilusão podemos, de alguma forma,
reposicionar-mos em relação à experiência do viver, em sua estreita
relação com a morte em vida.
A tendência a excluir a morte dos cálculos da vida traz, como
consequência, muitas outras renúncias e exclusões. A tendência de
supor que há uma continuidade lógica entre querer e desejar também
carrega, em si, um importante sofrimento psíquico.
Alguns estados depressivos e de ansiedade convergem aí. São,
ambos, campos de expressão do sofrimento psíquico que dão a ver essa
tentativa de calcular e controlar a maneira como a vida deve se dar. É
preciso, mais do que nunca, dizer da morte. É preciso apostar num
savoir-faire para além dos imperativos categóricos presentes em tantos
canais do YouTube, Instagram, coachs e afins.
Em última instância, é preciso assumir que a resposta nem
sempre vem de fora, e que o não-saber pode ser campo para a
invenção, e não para a coerção. Caso contrário, permaneceremos ali,
como se quiséssemos silenciá-los: a morte e o inconsciente – e
consequentemente, o sujeito.
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 155

A peste nos assola, como já assolou em 1918, e outras tantas vezes


mais. Tomemos, então, a Psicanálise e sua aposta naquilo que não tem
nome, como meio de se subverter relação do ser humano com a
maneira como circula e investe no mundo. Mas saibamos, também, da
capacidade que o discurso do capitalista e da Ciência têm de acolher,
de maneira a silenciar a dimensão mais subversiva da Psicanálise sob
pretextos dos mais diversos.
Faz-se necessário assumir que os discursos do capitalista e da Ci-
ência, tomados por muitos como mote de tratamentos possíveis para o
sofrimento psíquico, já apresentam suas soluções prêt-à-porter. Aos
analistas, como tão bem assinalado em diversos dos escritos de
Moretto (2006; 2019), por sermos profissionais da experiência, cumpre
afirmar e sustentar um lugar para o que de singular puder emergir
deste evento que nos atravessa de fora a fora.
Em 1955, Lacan afirmava que o deslizamento, realizado pelos
estadunidenses em relação aos preceitos freudianos, fora em direção a
“tornarem-se administradores de almas”, na medida em que o
contexto estadunidense, de alguma forma, exigia destes essa postura,
o que, para Lacan, só poderia se tratar do pior dos comodismos, a
saber, o comodismo intelectual, correlato à pior das corrupções, aquela
que tem como mote o oferecimento do melhor (1955, p. 404).
Estejamos atentos, então, às tentações de tudo compreender, a
fim de suportarmos a tensão do impossível para que, assim, nossas
escutas e apostas viabilizem o possível para cada um.
Parece-nos que não há nada melhor a fazer com a morte, desde
nossa posição de psicanalistas, que a oferta de um espaço – no tempo
possível – em que a tosse ceda lugar aos rumores da cidade, estando
todos advertidos de que o paraíso não existe.
156 • A psicanálise às voltas com a peste

À guisa de encaminhar algumas considerações, que entendemos


abrir campo para os artigos que virão a seguir, além de outras
conversas futuras, apresentaremos uma primeira aproximação dos
três pontos que destacamos no início do trabalho.
Para este intento traremos aqui, de forma preliminar, alguma
articulação possível com os três momentos do tempo lógico.
O instante de olhar, momento no qual se sustenta que há uma
questão posta (a impossibilidade de dissociar uma pandemia de um
correlato aumento no sofrimento psíquico da população que a
enfrenta), assumindo que, sim, uma pandemia como a que
atravessamos engendra, produz, intensifica e atualiza questões
singulares que devem ser levadas em conta por psicanalistas e
pesquisadores atentos às questões de seu tempo (Lacan, 1953/1998).
O segundo momento, aquele de compreender tal questão
(sofrimento psíquico decorrente do momento histórico que vivemos)
sem perder de vista a complexidade inerente e os diversos
determinantes e sobredeterminantes (inconscientes, logo, relativos à
constituição do sujeito e à história de cada um) que engendram as
manifestações mais diversas de sofrimento psíquico, sendo aquele em
que propostas serão gestadas e implementadas, na medida do possível,
em sua relação com o tempo. Sobre esta, trata-se, ainda, de um
momento em que urgência, emergência e ação se complexificam em
suas relações e imbricações. O simples fato de estarmos advertidos
quanto a isso já é um dado positivo, uma vez que se sabe, mais uma
vez, que o factível é o possível frente à possibilidade de cada um engen-
drar o seu tratamento num horizonte que tem como fundamento o
impossível.
Enzo Cléto Pizzimenti; Ivan Ramos Estevão • 157

Por fim, o momento de concluir sendo aquele em que mais do que


nunca se faz necessário um movimento em que serão apresentadas
formas de cuidado e atenção, bem como, a partir da sistematização das
invenções que as muitas frentes de cuidado puderem criar, a
possibilidade de oferta de espaços de formação e transmissão daquilo
que se apreendeu ao atravessarmos um momento tão pungente como
este.
9
REFORMA PSIQUIÁTRICA, PSICANÁLISE E CRISE: O
LOUCO FRENTE À PESTE
Luciano Elia 1

1. REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA: CIÊNCIA VERDADEIRA X


IDEOLOGIA CIENTIFICISTA

A sociedade contemporânea vive um grande paradoxo em sua re-


lação com a Ciência: Apesar de vivermos em uma época caracterizada
de forma excepcionalmente marcante pelo progresso científico e tec-
nológico, a contemporaneidade parece desconhecer radicalmente o
que é a Ciência. O que é e o que não é científico, hoje?
No campo das Ciências Sociais, sobretudo quando associadas à
área da Saúde, o mal entendido sobre cientificidade é quase total: as-
sistimos à afirmação categórica de crenças sem nenhuma base lógica
ou metodológica rigorosa, a ciência se banaliza, vulgariza, torna-se,
frequentemente, matéria de capa de veículos hebdomadários de mídia
(principalmente na seção de "saúde e comportamento"); enfim, tudo
pode ser dito sem nenhum controle de rigor e com uma confortável
hegemonia de poder, assegurado pelo capital, ao qual interessa, mais
que tudo, manipular a opinião pública, tornar a sociedade o mais acrí-
tica possível, para isso vestindo, impostoramente, o fardão da "ciência"
em nome da mais reles ideologia, que passa a ser espantosamente res-
peitada como se ciência fosse, o que, aliás, é um dos instrumentos mais

1 Psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, professor titular de Psicanálise do


Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas do Instituto de Psicologia da UERJ.
Luciano Elia • 159

eficazes da ideologia – fazer-se passar, mistificadoramente, por ciên-


cia verdadeira.
O melhor exemplo disso é o campo chamado Psi (Psicologia, Psi-
quiatria, Psicoterapias), o mais diretamente atingido pela ideologia
cientificista contemporânea, a ser rigorosamente distinguida da ver-
dadeira ciência, dentre as práticas clínico-sociais e políticas públicas
de Saúde Mental. Formulemos, neste ponto, algumas perguntas: Pode a
saúde, em particular a saúde mental, que envolve questões de grande
extensão e complexidade, ser concebida como um sub-campo da medi-
cina biológica? A ciência, nesta região da realidade, pode ser uma
ciência estritamente natural? Ora, se a ciência é o recurso da razão que
enfrenta o real; o real em jogo no campo da saúde mental, é um real
biológico? A ciência admite um reducionismo desta envergadura, ela,
cujo rigor lhe impõe estar à altura do campo fenomênico de que ela
trata?
Não é cientificamente sustentável que a loucura seja concebida
como um distúrbio intra-individual, endógeno, cerebral, neurológico,
bioquímico. A Psiquiatria, eminente campo das Ciências Médicas ao
qual cabe a imensa e honrosa tarefa de debruçar-se sobre a loucura,
não pode contentar-se com um reducionismo organicista. É preciso
que exista, no seio da Psiquiatria, lugar para as Ciências Sociais e His-
tóricas. Como admitir que não haja, incrustado no seio do saber e das
práticas da boa Psiquiatria, a dimensão do Social como exigência me-
todológica, conceitual e ética? Não há espaço, no campo epistêmico e
práxico da Psiquiatria, para o Inconsciente freudiano, como ordem
transindividual e de estrutura coletiva?
160 • A psicanálise às voltas com a peste

Seguindo a preciosa indicação de Karl Jaspers, grande psiquiatra,


pai da grande Psicopatologia Geral 2, verificamos que qualquer aborda-
gem séria, rigorosa (e, portanto, científica) da experiência da loucura
exige, requer, obriga a que se recorra, indissociavelmente, às duas
vertentes – a das ciências naturais e a das ciências culturais – sem o
que toda concepção e, portanto, também, qualquer intervenção con-
creta – clínica e social – estará condenada ao mais empobrecedor
reducionismo.
Nos últimos 30 anos, o Brasil passou por uma profunda transfor-
mação social, política e clínico-assistencial, em termos de Saúde
Pública, através do que se tornou conhecido como Reforma Psiquiátri-
ca Brasileira. Este processo comporta um complexo conjunto de
saberes e práticas articulados (Psiquiatria Clínica, Psiquiatria Social,
Saúde Coletiva, Saúde Pública, Psicanálise, Psicologia, História Política,
História Crítica, Direito Crítico, Filosofia, Esquizoanálise, Fenomeno-
logia, entre outros) que produziram uma profunda e consequente
transformação nas práticas de cuidado e assistência em saúde mental,
internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes do
mundo. Mais do que isso, ampliou, em muito, a compreensão e a exten-
são de um campo que, no passado, era coextensivo ao da saúde mental,
a saber, o da clínica psiquiátrica. A Reforma o redefiniu como campo da
atenção psicossocial, que, por sua vez, não apenas redefine radicalmen-
te o conceito de loucura, sofrimento psíquico e distúrbio mental, como

2
JASPERS, K.- Psicopatologia geral (1913), Rio de Janeiro, Livraria Atheneo, 1973, que introduziu a
famosa oposição entre as Naturwissenschaften (ciências da natureza), que operam pela via de erklären
(explicar), e as Kulturwissenschaften (ciências da cultura), que operam pela via da verstehen
(compreender). Jaspers foi levado a esta excursão epistemológica por força de seu encontro real com
a loucura, o que dá a medida da potência deste encontro. Sobre isso, é interessante observer que a
Psicanálise inaugura uma terceira margem para este rio: uma vertehen pela via do significante, não da
physis, mas da anti-physis, entretanto, materialista: o materialismo do verbo.
Luciano Elia • 161

inclui problemáticas como uso abusivo de drogas, vulnerabilidade


social, conflito com a lei, delinquência, sempre em uma perspectiva
contrária à da patologização excessiva, da judicialização e da crimina-
lização. Como poderia um campo com esta complexidade e poder de
transformação da realidade, ser considerado não-científico?
Afirmar que as práticas derivadas da Reforma Psiquiátrica Brasi-
leira não seriam científicas (e, sim, "ideológicas") e, portanto, sua
eficácia não poderia ser cientificamente comprovada, constitui um
lema, logo, um enunciado, ele próprio, ideológico e não científico. Não
se pode, por força do rigor metodológico exigido pela ciência, aplicar
critérios de verificação próprios de um campo a um outro, estrutural-
mente heterogêneo ao primeiro.
A Ciência não é una, mas diversa (como já afirmava o grande pio-
neiro da Epistemologia contemporânea, Gaston Bachelard 3) e cada
campo que a compõe apresenta especificidades conceituais e metodo-
lógicas, que precisam ser congruentes com os critérios de validação e
verificação que se lhe aplicam. A hegemonia de um desses campos
sobre os demais – como ocorre hoje em dia, movida pela aliança do
capital financeiro e do correlato domínio político – é um abuso de
ordem ideológica que precisa ser regulado e submetido a um constante
exercício de crítica política, intelectual e científica. A ideologia cienti-
ficista, obedecendo aos comandos do capital, pretende controlar e
manipular a sociedade inteira, convencendo-a (e nisso a grande mídia
é seu melhor instrumento) de que todo um amplo espectro de saberes
e práticas clínicas, sociais, psicossociais deve ser desqualificado como
"não-científico", sem comprovação e sem "evidências" de sua eficácia.

3
BACHELARD, G. – A formação do espírito científico (1934), Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 1996.
162 • A psicanálise às voltas com a peste

A Epistemologia crítica, que em meados do século XX atingiu


avanços extraordinários, que obrigavam a ciência, sobretudo as ciên-
cias humanas e sociais, a fazerem um esforço suplementar para
veicularem suas descobertas e verificações, está hoje extinta, silencia-
da pelo que Lacan designou como cópula da ciência com o capitalismo 4:
seus grandes operadores 5 morreram e não puderam deixar sucessores
que prosseguissem esse trabalho crítico, fundamental a qualquer posi-
ção mais salutar das práticas científicas.
Por outro lado, os operadores do campo da saúde mental que se-
guem os princípios éticos e os conceitos teóricos da Reforma na sua
práxis clínico-territorial quotidiana, nos Centros de Atenção Psicosso-
cial, nos Centros de Convivência, nas Unidades de Acolhimento, nas
Residências Terapêuticas, enfim, nos diversos dispositivos que com-
põem as redes do campo de atenção psicossocial, não cessam de
verificar a eficácia de sua práxis. Pacientes egressos de longas interna-
ções psiquiátricas, contados hoje, já, aos milhares, dão
permanentemente seu depoimento de como sua vida (pessoal, familiar,
social) mudou depois que passaram a ser tratados nos dispositivos
clínicos da Reforma, substitutivos aos manicômios. Crianças e adoles-
centes tratados em CAPSis (Centros de Atenção Psicossocial infanto-
juvenis), muitas vezes desde pequenos, apresentam mudanças impres-
sionantes no curso de seu desenvolvimento, e são numerosos os casos
de crianças autistas que chegaram a esses serviços ainda com pouca
idade, e passaram a fazer uso da fala, estabelecer laços sociais com
outras crianças e adultos, frequentar escolas. E cabe lembrar, de pas-

4
LACAN, J. – O Seminário, Livro XVII (O avesso da Psicanálise), 1969-70. Rio de Janeiro,
5
Citamos: Karl Popper, Thomas Kuhn, Phillipe Arìès, Georges Canguilhem, Irving Goffman, Gilles
Deleuze, Louis Althusser, Jacques Donzelot e, no limiar de uma nova metodologia, patamarizada com
outras, inclusive o método científico, a Arquelogia/Genealogia, Michel Foucault.
Luciano Elia • 163

sagem, que a medicação, nesses casos, quase sempre se limita ao con-


trole comportamental de impulsos, não tendo valor terapêutico algum:
são os recursos da clínica da atenção psicossocial que atuam e promo-
vem as mudanças. No plano do uso abusivo de drogas, são fartas as
experiências nas quais os usuários declaram que, finalmente, podem
falar de suas vidas, suas dificuldades, sua experiência, enfim, em vez
de serem tomados e tratados como meros consumidores de drogas, e
em um número impressionante de casos abandonam o uso das subs-
tâncias com poucas semanas de trabalho de clínica psicossocial.
Declaram, também, que as internações compulsórias, pelas quais even-
tualmente passaram, só pioraram a sua situação, pois "enquanto eu
estava internada, ninguém mudou a minha vida, então quando saio
enfio o pé na jaca" (sic – fala de uma usuária que passou quatro meses
internada compulsoriamente). Fala-se em "dependência química" sem
qualquer rigor na conceituação da categoria empregada e na validação
do "diagnóstico", pois que, na maioria dos casos de uso abusivo de
drogas em população de rua e em jovens de populações extremamente
pobres, uma análise real e rigorosamente científica da situação do
usuário, que leve em conta a complexidade dos fatores envolvidos,
sempre indicará vários tipos de dependência, exceto a química.
O que está em jogo em toda essa ideologia cientificista, portanto,
não é, de modo algum, a verdade científica nem a eficácia do trata-
mento. Lacan formulou a genial ideia de que a verdade tem estrutura de
ficção, por força de sua relação imanente com a linguagem. Em um de
seus escritos mais contundentes, Lacan evidencia que a ciência nada
quer saber da verdade como causa 6, e que, portanto, é preciso reintrodu-

6
LACAN, J. (1960/1998). A ciência e a verdade. In: Escritos, Rio de Janeiro, p. 874.
164 • A psicanálise às voltas com a peste

zir a problemática da verdade na consideração científica, o que só pode


ser feito através do Nome-do-Pai. No Seminário XVIII, uma referência
à ciência retoma, de modo bastante instigante, a questão da relação da
ciência com a verdade: Se a ciência tem, estruturalmente, uma relação
com a verdade (querendo ou nada querendo saber sobre isso), ela tem,
forçosamente, a estrutura de ficção. O traço diferencial que particula-
riza a ciência entre as práticas de produção (sempre ficcional) de
verdade, é a problemática da verificação 7. Uma ficção a ser verificada,
eis o que é a ciência, quando ela preza seu lugar no mundo. Hoje, a
ciência se despojou completamente da dimensão de ficção, foraclui a
questão da verdade e, portanto, não se ocupa mais de verificá-la. Em
curto circuito, antecipa ou, mais do que isso, retrai para a instantanei-
dade de uma temporalidade, em permanente síncope no “agora”, a
questão das “evidências”. Evidência sem nada a evidenciar, por um
processo de elaboração metodológica.
Os interesses da indústria de psicofármacos – uma das mais ren-
táveis do mundo, dos laboratórios, que premiam opulentamente, nos
chamados (pelos próprios médicos) “parque de diversões” 8, os médicos
que prescrevem psicofármacos além de determinado limiar de prescri-
ções (e quase todo médico, hoje, seja qual for sua especialidade,
prescreve psicofármacos sob os mais diversos pretextos "clínicos") –
pautam o que deve e o que não deve ser publicado em periódicos "cien-
tíficos", intervêm seletivamente em editais de concursos públicos
para docentes e pesquisadores, até mesmo em universidades "públi-
cas", definem critérios de editais de convênios de entidades da

7
Idem – O Seminário, Livro XVII – De um discurso que não seria semblante (1971), Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2009. Lição VIII (O homem, a mulher e a lógica, de 19/05/1971, p. 133.
8
Espaço dos grandes congressos de medicina, espaço reservado aos laboratórios que distribuem
computadores, tablets, celulares de última geração e vouchers de viagens cinematográficas.
Luciano Elia • 165

sociedade civil com a gestão pública, e acabam por comandar as políti-


cas públicas de um Estado que se faz refém do capital.

2. O GOLPE POLÍTICO-IDEOLÓGICO DE ATAQUE À CIÊNCIA E À POLÍTICA


NACIONAL DE SAÚDE MENTAL

O Brasil atravessa, indiscutivelmente, os mais terríveis tempos de


sua história. A eleição, em outubro de 2018, de um presidente de cu-
nho francamente fascista – que ostenta sua própria ignorância com
orgulho; incita à violência (tortura, assassinato político, combate ao
crime com o crime, aliança com facções criminosas); assume aberta-
mente posições de ódio aos que defendem a justiça social e os direitos
humanos; é misógino, machista, homofóbico e racista; aversivo à po-
breza, criminalizada e morta, diariamente, por forças policiais do
Estado e milícias aliadas; e que, além disso tudo, mas não sem a mais
íntima relação com tudo isso, combate a Ciência, a ponto de afirmar
que “a Terra é plana”; nega os terríveis riscos reais da pandemia mun-
dial da Covid-19, promovendo a morte de mais de 600.000 brasileiros,
dos quais um grande número estariam vivos caso o governo tivesse
adotado uma política responsável e cientificamente orientada no plano
sanitário.
É desta conjuntura autoritária e conservadora que a ABP – Asso-
ciação Brasileira de Psiquiatria – pretende aproveitar-se para lançar
um documento intitulado Diretrizes para um modelo de atenção integral
em Saúde Mental no Brasil – 2020 9, que serviu de base para o Ministério
da Saúde instituir um GT cuja finalidade é “rever a atual política de
saúde mental e a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial)”, “revogar as

9
https://www.polbr.med.br/ano21/Diretrizes_ABP.pdf
166 • A psicanálise às voltas com a peste

portarias que criam as equipes de Consultório na rua, Serviço Residen-


cial Terapêutico (SRT) e Unidades de Acolhimento (UA)”. Para a ABP,
essas práticas seriam “serviço social” e não “psiquiatria”. O GT propõe,
também, a criação de ambulatórios gerais de psiquiatria e o aumento
de leitos psiquiátricos.
A estultícia, em matéria de ciência, começa já nas primeiras li-
nhas do documento. Que entendimento conceitual, metodológico, ético
e clínico têm os autores desta “proposta” sobre seu próprio campo, a
Psiquiatria? Acaso consideram que a Psiquiatria é campo de tão escas-
sos recursos intelectuais e científicos, que a reduzem a uma prática
ambulatorial de administração de medicações e de confinamento em
hospícios? São apenas dois os termos-mestres desta “ciência”, com-
pondo o binômio encarceramento psicofarmacêutico?
Que espécie de base conceitual dá permissão a designar como
“serviço social” o Consultório na Rua, dispositivo fundamental de
atenção primária à população de rua, extensão máxima dos princípios
de acessibilidade, universalidade do acolhimento e integralidade do
cuidado que regem o SUS, Sistema Único de Saúde – e não de Assistên-
cia Social, que se chama SUAS e é seu parceiro de primeira hora, na
perspectiva científica da integração de ações de cuidado em rede? Que
espécie de “ciência” poderia haver em revogar a Portaria que cria os
SRTs, um dos dispositivos mais avançados, em todo o mundo, do Cam-
po da Saúde Mental – conceito cuja compreensão e extensão
(categorias epistemológicas que se aplicam a conceitos, mas que, tal-
vez, os integrantes da ABP desconheçam) ultrapassam a Psiquiatria,
que é apenas um dos campos científicos que integram o amplo espec-
tro de saberes e práticas que compõem o Campo da Saúde Mental, e
que, felizmente, tem representantes valiosos e indispensáveis a este
Luciano Elia • 167

campo, os psiquiatras críticos e conscientes de sua responsabilidade


científica e social?
Os SRTs respondem pela possibilidade de que pessoas com trans-
tornos mentais graves, e outros quadros marcados pelo esgarçamento
dos laços sociais que mantém o sujeito em sua condição de civilidade e
cidadania, possam viver, como todo mundo, em residências e não em
hospícios, já que sua condição psíquica é estável, persistente, crônica e
não episódica, mas que, ainda assim, geralmente atingem patamares
bastante razoáveis de estabilização, que lhes permitem viver residen-
cial e não manicomialmente, justamente se e quando são tratados,
cientificamente, pelos métodos que a ABP e o Ministério da Saúde
pretendem revogar, para que eles voltem a precisar passar sua vida em
manicômios, até à morte, sustentados pelos cofres públicos que já se
tornaram caixa do condomínio empresário-estatal desses manicômios.
O mote desta proposta de revogação da ciência é, portanto, claramente
ideológico, interesseiro e oportunista.
As Unidades de Acolhimento (UA) são a mediação necessária entre
o desprotegido espaço da rua – telhado de vidro da violência policial e
do crime organizado –, e os equipamentos de tratamento intensivo
efetivo, além de destinarem-se, também, àqueles que precisam cum-
prir um período de transição entre internações episódicas e
acompanhadas por equipes de atenção psicossocial e o retorno a resi-
dências familiares ou terapêuticas. As UA são, indiscutivelmente,
equipamentos de saúde. Negar isso é má-fé ou ignorância, e, prova-
velmente, a combinação das duas posturas.
E a RAPS, é a rede que integra uma plêiade de dispositivos, equi-
pamentos e serviços de base territorial e comunitária, articulação
necessária a um modelo que substitua definitivamente o manicômio
168 • A psicanálise às voltas com a peste

obsceno, clinicamente ineficaz, cientificamente acéfalo, eticamente


perverso e politicamente corrupto. Que motivo se pode ter para propor
revogar a RAPS, senão a mais rasteira impostura “científica”, na ver-
dade ideologia da pior espécie?
O governo que acolhe uma proposta como esta é o mesmo que,
enquanto não for deposto, impedido ou detido, seguirá destruindo
todas as políticas públicas de caráter social e aniquilando todos os
direitos humanos e sociais conquistados desde que a sociedade brasi-
leira pactuou a sua Constituição, de 1988, na reconstrução de sua
democracia combalida pela ditadura civil-militar instaurada em 1964,
pacto democrático que já era fruto de movimentos políticos importan-
tes, como a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica, a criação do
SUS e o Movimento da Luta Antimanicomial. O setor da Saúde foi o
carro-chefe da reação democrática nas décadas de 1970 e 1980, que se
estendeu, evidentemente, a outros setores sociais, como a Educação, a
Assistência Social, o Direito Crítico, os Direitos Humanos, entre ou-
tros.
É importante afirmar que todos esses movimentos só tiveram
êxito porque se alicerçaram na mais rigorosa cientificidade, entendida
como um modo de produção e de aplicação de conhecimento que co-
meça por definir recortes do real como seus objetos, e cria
metodologias que guardem, com esses recortes objetivados do real, a
mais rigorosa homologia, ou seja, que se mantenham à altura da com-
plexidade da realidade a ser tratada.
O campo da Saúde Mental é um desses recortes, de alta complexi-
dade, da Ciência. A verdadeira base científica do campo da Saúde
Mental precisa exibir características metodológicas que respeitem, que
estejam à altura da complexidade de seu campo, e que possam, portan-
Luciano Elia • 169

to, dar respostas eficazes aos problemas, questões, dificuldades pró-


prias ao recorte da realidade que elas têm, por função, de enfrentar:

a) Quadros clínicos marcados por extremo e agudo sofrimento psíquico;


crises capazes de desorganizar completamente a vida daquele que so-
fre de tais quadros, e de colocar sua própria vida em risco, por
autoextermínio ou outras formas de se colocar em risco de vida; perda
da capacidade para o trabalho socialmente convencional; enormes di-
ficuldades de relacionamento interpessoal, familiar e comunitário;
b) Uso abusivo e prejudicial de substâncias tóxicas, também acompanha-
das de elevado grau de sofrimento psíquico e danos físicos, prejuízo ou
perda de vínculos familiares, interpessoais e comunitários, além de
diversos prejuízos na vida profissional, quando ela existe;
c) Condições extremamente precárias de subsistência nas ruas, cujos fa-
tores determinantes são, sobretudo, as mais precárias condições
materiais, socioeconômicas; fome, desemprego, ausência de condições
de instrução e formação profissional, fatores que já desestruturavam
as configurações familiares das quais a população que vive nas ruas
procedem, sendo agravadas pela vida nas ruas.

No cenário de extrema pobreza da maioria numérica absoluta da


população brasileira, não é cientificamente difícil elaborar a hipótese
de que as situações acima descritas (que sequer são exaustivas na ca-
racterização do recorte objetivado do real que constitui o campo da
Saúde Mental), quando não são francamente determinadas por essas
condições sociais sub-humanas, são por elas, exponencialmente, agra-
vadas. Sim, admitimos que quadros clínicos do que tradicionalmente
se denominam as doenças mentais são multideterminados, e, portanto,
não podem ser cientificamente concebidos como efeito exclusivo de
condições sociais adversas – segregação, condições sub-humanas de
vida, diversos tipos de violência social, que vão desde a violência poli-
170 • A psicanálise às voltas com a peste

cial contra a população pobre, particularmente a população jovem e


negra que habita as favelas das grandes cidades, até a violência da
desassistência, da negligência do Estado, que mantém pessoas como
invisíveis, ou mesmo indesejáveis sociais. As ditas doenças mentais
ocorrem em todas as classes sociais e acometem pessoas que não vi-
vem nessas condições.
Entretanto, uma afirmação como esta, que constata um fato de
realidade localizado (a ocorrência de doença mental em diferentes
contextos sociais), não pode ser cientificamente utilizada como argu-
mento para desconsiderar o real em jogo: o efeito das condições de
segregação e desamparo social, radical, na produção da chamada doen-
ça mental. Se a população de um país como o Brasil vive, em sua
esmagadora maioria, em condições socialmente precárias, qualquer
pesquisa razoavelmente rigorosa e não tendenciosa identificará os
efeitos danosos dessas condições para a saúde mental dessa população.
O mais importante, contudo, não está do lado da determinação
causal, da etiologia, sempre complexa e multifatorial, mas dos modos
de tratamento que, se devem estar articulados com os fatores causais,
não lhes são coextensivos, porquanto os modos de tratamento cientifi-
camente verificados como mais eficazes devem ser aplicados a todos
os casos, sejam quais forem as condições sociais daquele que sofre. Tal
como o SUS, que não foi concebido para ser um sistema “para pobres”,
e sim “para todos”, os modos de tratamento em Saúde Mental são para
todos.
O Campo da Saúde Mental é constituído, cientificamente, por um
conjunto de saberes e práticas: ele é multidisciplinar por estrutura e
por força (estrutural, e não circunstancial) do recorte objetivo de real
que ele precisa enfrentar, e ao qual precisa dar respostas consequentes
Luciano Elia • 171

e eficazes. Fazem parte dele, como campos científicos componentes e


suas respectivas praxis: a Psiquiatria; a Saúde Coletiva; a Medicina
Social; a Psicologia; a Psicanálise; a Enfermagem em Saúde Mental; a
Assistência Social; o Direito, na forma da Criminologia Crítica; os Di-
reitos Humanos; a Terapia Ocupacional; a Praxisterapia; a
Musicoterapia; o Acompanhamento terapêutico; a Redução de danos;
lista à qual poderíamos adicionar campos de saberes mais específicos.
No plano do tratamento, tivemos, no Brasil, uma inovação tecno-
lógica bastante eficaz: a criação, entre as modalidades de atenção em
saúde, da Atenção Psicossocial. Talvez ainda não tenhamos tirado todas
as consequências desta invenção.
O campo estritamente sanitário é, modernamente, concebido em
níveis de atenção: primário, secundário, terciário e quaternário, num
eixo que vai do polo de maior amplitude e menor especialismo – aten-
ção primária em saúde – base da pirâmide que representa
graficamente este esquema, ao polo de maior especialismo e menor
amplitude, a atenção quaternária. A Atenção Psicossocial não deve ser
inserida nesta pirâmide, na qual ela sofre, incoercivelmente, empuxo
para o topo, o polo do especialismo e o enclausuramento no eixo da
verticalidade sanitária. Ela constitui, antes, uma modalidade de aten-
ção que, justamente, se define por não poder ser totalmente sanitária,
e talvez, mesmo, primordialmente sanitária. A clínica da atenção psi-
cossocial é necessariamente extra sanitária, extravasa a estrita
dimensão da saúde, envolvendo vários campos e setores da vida psí-
quica e social do portador de sofrimento psíquico extremo, do usuário
abusivo de drogas e dos que vivem nas mais diversas condições de
vulnerabilidade social.
172 • A psicanálise às voltas com a peste

É exatamente contra a potência científica e clínica (em termos


psicossociais) deste Campo da Saúde Mental que a Psiquiatria, em sua
vertente reducionista e organicista, associada aos propósitos de con-
trole comportamental da sociedade, vem erigindo sua ideologia
cientificista, que não consegue sustentar-se:

a) No plano de uma conceituação consistente: como sustentar que os


quadros designados como doença mental sejam efeitos diretos ou ex-
clusivos de disfunções ou sub-funcionamento neural, orgânico ou
bioquímico?;
b) No plano metodológico: as pesquisas partem de premissas biomédicas
que já encaminham viciosamente seus resultados, num abstracionis-
mo nominativo que recusa toda consideração realista-lógica do real;
c) No plano do tratamento: o tratamento é, basicamente, medicamento-
so, ambulatorial (em termos de consultas médico-psiquiátricas) e de
internação dos casos mais graves, o que acarreta privação de liberda-
de, quebra dos laços familiares, comunitários e sociais, afastamento da
vida da cidade, das atividades artísticas e de lazer. O que se propõe,
hoje, é a maquiagem de antigas práticas com roupagem “sofisticada” e
as vezes até mais “humana”, como a aplicação de eletroconvulsotera-
pia com recursos muito menos agressivos e, até, a intervenção
cirúrgica no lobo cerebral com precisão tecnológica padrão “século
XXI” e blindagem anestésica.

As práticas manicomiais são, em todo o mundo, aquelas que se


mostram comprovadamente ineficazes como tratamento, por isso são
prolongadas e reiteradas (em geral iniciam uma série interminável de
reinternações), não mudam em nada a condição psíquica do paciente,
pelo contrário, tendem a agravá-la, acrescentando aos traços da “do-
ença” novos traços de uma nova doença, esta verdadeira, produzida no
e pelo manicômio. Convenhamos que, de uma prática científica, pode-
Luciano Elia • 173

ríamos esperar modos de tratamento que produzissem verdadeiros


avanços, mais do que simples revestimentos de antigos métodos de
encarceramento e medicalização.

3. O LOUCO FRENTE À PESTE

Diante deste cenário, que procuramos descrever nas duas primei-


ras seções do presente escrito – traçando, na primeira, o mapa da
hegemonia ideológica no cientificismo contemporâneo e, na segunda,
suas consequências concretas, agravadas pela aliança do neoliberalis-
mo com o fascismo na política estatal brasileira de 2018 até hoje – cabe
perguntar o que é efetivamente louco em tudo isso, e qual é, verdadei-
ramente, a peste?
Temos, como cereja macabra de um bolo já excessivamente azedo,
a pandemia da Covid-19 que, no Brasil, encontrou como seu grande
aliado um governo cuja direção política, concretamente efetivada em
atos, decisões, medidas, portarias, leis, enfim, é a disseminação inten-
cional do vírus na população, como cientificamente demonstrado por
uma importante pesquisa realizada pela equipe do Cepedisa (Centro de
Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Públi-
ca da USP) e que é tema de um grande evento nacional promovido pela
Freduc (Frente em Defesa da Universidade e da Ciência) 10.
A peste, do ponto de vista do que, em Psicanálise, designamos pe-
lo termo pior – superlativo do adjetivo ruim, substantivado como um
quase-conceito (“o” pior), é a pandemia ou o governo brasileiro? Tra-

10
Seminário Nacional: Pandemia, ciência e direitos humanos: a política federal de disseminação da
COVID-19 no Brasil e de ataque à ciência em normas, atos e fatos, realizado no dia 27 de Agosto de
2021 em ambiente virtual, com a participação de vários programas de pós-graduação, laboratórios e
núcleos de pesquisa de todo o Brasil, apoio da FREDUC (Frente em Defesa da Universidade e da
Ciência) e do PUD (Psicanalistas Unidos pela Democracia).
174 • A psicanálise às voltas com a peste

zendo o referido superlativo para o nível comparativo, não teríamos


nenhuma dúvida em responder que o pior, ou a peste pior, é o governo,
mas penso que é importante dizer porque, e para isso recorreremos ao
bom e velho Freud.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud estabelece as três fontes do
inexorável sofrimento humano:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo,


condenado à decadência e à dissolução, e que não pode nem mesmo dis-
pensar a dor e a angústia como sinais de advertência; do mundo externo,
que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e
impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros hu-
manos. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais
penoso do que qualquer outro. 11

Penso que Freud considera a terceira fonte de mal-estar como a


mais dolorosa porque é, das três, a única em que o próprio sujeito está
implicado: ele não tem qualquer participação ou ingerência na inelutá-
vel decadência de seu corpo – podendo, no máximo, adiá-la e, mesmo
assim sem qualquer garantia, por hábitos de vida saudável – nem nas
intempéries da natureza, como uma pandemia. Mas no plano das rela-
ções com seus semelhantes, dentro do qual, se tomado na larga escala
da polis e da sociedade, está incluída a direção política do governo de
seu país (sobretudo, mas não exclusivamente, quando este governo foi
eleito, isto é, escolhido pelo povo), ele está necessária e estruturalmen-
te implicado, ainda que se mantenha na mais completa alienação
quanto a isso.

11
FREUD, S. – O mal-estar na civilização, 1930, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974, p. 95.
Luciano Elia • 175

Se o quase-conceito pior foi usado por Lacan tendo como referên-


cia o ruim da castração, querendo com isso dizer que, se a recusamos,
resta-nos o pior, estamos, indiscutivelmente, no pior, também no rigor
do verbo psicanalítico. Em outubro de 2018, o povo brasileiro – tanto os
que votaram em Bolsonaro quanto os que se omitiram do ato de votar
– escolheu o pior, recusou a castração. Há um fundamento psicanalíti-
co (não apenas político-ideológico ou militante-partidário) para não se
fazer essa escolha, mas a discussão dos fundamentos desta afirmação
exigiria maiores considerações que não cabem no âmbito do presente
escrito.
Pois o que nos importa, aqui, é demonstrar que a verdadeira peste
que vivemos é este governo, que tem a intenção de disseminar o vírus
da Covid-19 como uma estratégia política deliberada. A pandemia, por
se ter originado de um acidente natural, se liga precipuamente à se-
gunda fonte de mal-estar apontada por Freud, embora se conecte com
a primeira, pelas muitas doenças que se ligam à pandemia, designadas
em medicina pelo feio termo “comorbidades”. Mas a grande peste se
liga ao ato humano, do qual resultou um governo pestilento.
E como fica a loucura, diante da peste que lhe é infinitamente su-
perior em nocividade, morbidade, malignidade? Eu diria que as
consequências mais nefastas para a loucura estão na destruição das
políticas públicas brasileiras de Saúde Mental, que, em princípio,
são/eram muito avançadas, em que pesem as concessões que a Refor-
ma Psiquiátrica Brasileira, nisso acompanhando outros movimentos e
processos histórico-políticos do chamado período de transição demo-
crática (Constituição de 1988, Lei da Anistia, ECA, atraso na Comissão
da Verdade, entre outros), fez ao não combater mais radicalmente os
diferentes modos do autoritarismo do período de ditadura. No caso da
176 • A psicanálise às voltas com a peste

Reforma, diríamos que ela não dissolveu suficientemente a hegemonia


do paradigma médico na formulação de sua política, e deixou intacta a
formação universitária do médico que será o futuro psiquiatra nas
equipes de CAPS, por exemplo, onde, aliás, a maioria deles jamais che-
garão, mesmo seduzidos, como ocorre hoje, por salários
desavergonhadamente muito mais altos do que os de outros profissio-
nais de nível superior, que eles recusam...
Um sujeito louco já convive, de algum modo, com a “peste”. Até
mesmo por marcas históricas que, por alguma espécie de transmissão
simbólica, o afetam, eles sempre foram associados aos párias e segre-
gados sociais, os doentes, os delinquentes, os excluídos.
A Atenção Psicossocial, que está longe de ser uma modalidade de
atenção em saúde, e muito menos um nível de atenção (como as novas
formas de entendimento da própria Reforma, na RAPS, por exemplo, a
situam, ao promover sua inserção na pirâmide dos níveis de atenção
em saúde, como afirmado na primeira parte deste texto, com as conse-
quências ali indicadas) é uma invenção brasileira cujos efeitos sociais e
políticos, quando as políticas públicas a apoiam, vão muito além da
esfera estritamente sanitária e mesmo comunitária, subvertendo as
próprias relações de poder que se estabelecem entre a sociedade e seus
loucos. Concebida e praticada em determinada direção, e com rigor
teórico-clínico e político, a atenção psicossocial pode se constituir
como uma emancipação subjetiva e política do louco no espaço social, e
talvez seja justamente este o ponto de maior temor por parte da “ges-
tão” em saúde mental, por mais “politizada”, crítica e de vanguarda
que sejam seus operadores (os gestores, numa terminologia neoliberal
que “pegou” em todos os níveis e que contamina os pensadores mais
críticos, que falam de gestão de tudo e de todos, a mais modernamente
Luciano Elia • 177

sendo a “gestão de pessoas”). Trata-se, neste temor, de um processo


estrutural, discursivo, que não se combate simplesmente por posições
pessoais, suposta ou mesmo efetivamente, avançadas.
Assim, não penso que a peste, entendida como pandemia, seja
particularmente desestabilizadora para o louco. O louco, não digo for-
çosamente o psicótico, é alguém que está permanentemente ocupado,
trabalhando, sem trégua, folga e menos ainda férias: disso depende
que as condições para que ele esteja no laço social se mantenham está-
veis. Acredito que não corro o risco de parecer leviano quanto ao
sofrimento real que a pandemia tem causado a tanta gente, pelas mais
de 600 mil mortes (mais da metade das quais podendo não ter ocorri-
do, se tivéssemos uma verdadeira política governamental de
enfrentamento da pandemia), se eu disser que, para o louco, há “pan-
demia” o tempo todo. Ou melhor, há muitas psicodemias, que são
também sociodemias, não exatamente pan – mas multi – e ininterrup-
tas. Ele tem que se haver com alguma delas a cada dia de sua vida,
muitas vezes sucumbindo a alguma, e aí entramos na situação de crise,
ou conseguindo se manter em estabilidade por longos períodos. Em
todos os casos, os dispositivos da Saúde Mental, da Atenção Psicossoci-
al, são essenciais para acompanhá-lo nesse trabalho titânico, contínuo
e vital. Nossa responsabilidade é imensa, incalculável, para isso.
Por outro lado, se a pandemia não é, em si mesma, particular-
mente desestabilizadora para o louco, como propusemos, um governo
como o que temos é, tanto diretamente, pelo grau de degradação do
Outro que um louco capta como ninguém, quanto através da desmon-
tagem das vias que tínhamos conseguido pavimentar para que os laços
sociais possíveis a um louco pudessem se estabelecer: os diferentes
dispositivos e práticas de atenção psicossocial, de ações territoriais, de
178 • A psicanálise às voltas com a peste

laços sociais concretos, de “imixão” no tecido social, na cultura, nas


artes, enfim, no mundo que precisa ser, também, dos loucos. O mundo
precisa ser para todos, não só os normais, que não existem, mas são a
roupagem social dos neuróticos e perversos (os primeiros dominando
o laço social ampliado de modo esmagador).
Partindo desta constatação freudiana, reeditada nas palavras poé-
ticas de Caetano Veloso “de perto ninguém é normal” 12, podemos
construir uma série em escala descendente de amplitude de categorias,
cada uma contendo a seguinte: o mundo não poder ser, nem prioritari-
amente e menos ainda exclusivamente, dos ricos (poderosos ou
remediados) e, dentre esses, dos brancos, dos cisgêneros, dos heteros-
sexuais, dos homens. E ter evocado Caetano em Vaca profana me enseja
a seguir evocando este poeta do inconsciente, em parte da letra de
Estrangeiro: O certo é louco tomar eletrochoque/O certo é saber que o certo
é certo/ O macho adulto branco sempre no comando/(...) / Riscar os índios,
nada esperar dos pretos 13.
Desmontar o “certo” – eis o que temos a fazer. Vamos?

12
Veloso, C. Vaca profana (1986), apresentada por Caetano no álbum gravado ao vivo Totalmente
demais, de 1986 (Phillips), embora Gal Costa, a quem a composição foi por ele dedicada, a tenha
gravado antes, em 1984, no álbum Profana (Gravadora RCA, Sony Music).
13
Ibidem, Estrangeiro (1989), Gravadora Phillips.
10
SOBRE LOUCOS E VAGA-LUMES: UMA EXPERIÊNCIA
NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DURANTE A
PANDEMIA PELA COVID-19
Larissa Guazzi Arenales 1

“Coragem de viver os dias


sem falar de loucos
quando há qualquer louco
no infinito,
pedindo uma lembrança
e contei os seus dias de vida
nos meus sonhos.”
(Hilda Hist)

No ano de 2020, diante da pandemia pela Covid-19, o SUS e seus


trabalhadores foram, mais uma vez, convocados a dar provas de sua
plasticidade e eficácia. Naquele momento, eu atuava em dois serviços
de urgência psiquiátrica e em consultório particular. Tratarei, aqui, de
observações recolhidas do serviço de urgência psiquiátrica do Instituto
Raul Soares, fundado, em 1922, em Belo Horizonte. Palco de transições
importantes para a saúde mental, o Instituto Raul Soares é, hoje, um
hospital de ensino que conta com uma residência de psiquiatria de
mais de 50 anos (Campos, 2018). Se, por um lado, é um manicômio por
herança histórica, por outro, foi e é sítio de reformas, transições e
discussões sustentadas por seus servidores, residentes, preceptores e

1
Larissa Guazzi Arenales é psiquiatra e psicanalista. Trabalhou em diversas instituições do SUS e hoje
atua em consultório particular e na clínica/hospital-dia Freud Cidadão, em Belo Horizonte-MG. É
mestranda do programa de pós-graduação da Psicologia, na UFMG, na área de concentração Estudos
Psicanalíticos.
180 • A psicanálise às voltas com a peste

pacientes. Não se pode dizer que essa instituição, hoje, é representada


pelo mesmo tipo de cuidado que era ofertado nos tempos anteriores à
Reforma Psiquiátrica em Minas Gerais, sendo evidente, atualmente, a
significativa melhora de parâmetros de qualidade, como o número de
leitos por profissional, número de leitos por ala, vinculação ao ensino,
e atenção às necessidades singulares, dentro das possibilidades insti-
tucionais.
Uma breve contextualização sobre a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) de Minas Gerais e Belo Horizonte:
O município de Belo Horizonte conta com uma RAPS 100% aten-
dida pelos serviços substitutivos. Os Centro de Referência em Saúde
Mental (Cersam) e o Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP) oferecem
atendimento, às crises, 24 horas por dia, e contam com leitos de reta-
guarda em cada uma das suas oito regionais. Sendo assim, a saúde
mental do município de Belo Horizonte, hoje, declara autonomia em
relação ao hospital psiquiátrico, sustentando o tratamento aos casos
graves sem a necessidade deste recurso (Lobosque, 2003). A qual de-
manda, portanto, responde um hospital psiquiátrico em Belo
Horizonte?
Minas Gerais é composto por 853 municípios, somando mais de 21
milhões de habitantes, segundo estimativas do IBGE para o ano de
2020 2. Muitos destes municípios, como Belo Horizonte e outras cidades
da região metropolitana, contam com uma rede substitutiva robusta o
suficiente para assistir, de maneira satisfatória, aos seus usuários.
Mas, num Brasil de muitos Brasis, onde a desigualdade se mostra,
também, na disponibilidade de recursos em saúde mental, sabemos

2
Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/mg.html>. Acesso em 06 de jun. de
2021.
Larissa Guazzi Arenales • 181

como um dos grandes desafios da Reforma é fazer-se capilarizada o


suficiente para que atinja e beneficie seus interiores. Uma das funções
do plantão de um hospital estadual é receber os contatos dos profissi-
onais da saúde, que buscam o recurso da internação para os pacientes
que estão sob sua tutela em todo o estado de Minas Gerais. Paralela-
mente, recebemos notícias de seus [não] recursos disponíveis.
É empírico e evidente, a qualquer um que se dê a ocupar esta fun-
ção por um dia típico, a quantidade de casos graves e com atuações que
são índice de um alto grau de sofrimento para o paciente e para seus
familiares, que não encontram lugar de assistência. Contidos em ma-
cas por vezes durante dias, esperando uma vaga que muitas vezes não
vem, recebendo assistência de serviços que, ainda que façam seu me-
lhor, não estão preparados para prestar os cuidados de que
necessitam.
Desta forma, os leitos dos hospitais psiquiátricos, na presente da-
ta, são destinados, preferencialmente, para os usuários que não
dispõem de outras opções e necessitam da assistência. O Instituto Raul
Soares (IRS) é tombado desde 1991, sendo considerado um patrimônio
histórico. À época do início da pandemia, contava com 80 leitos psiqui-
átricos, sendo 55 masculinos e 35 femininos. É uma referência para
internações psiquiátricas de pacientes da região metropolitana, ou
interior de Minas Gerais, que não contam com leitos-noite de serviços
substitutivos ou outras pactuações possíveis (como leitos de hospital
geral ou convênios com municípios vizinhos). O IRS não é o único re-
manescente dos manicômios públicos do estado de Minas Gerais.
Dispomos, também, do Hospital de Barbacena e, até antes da pande-
mia, dispúnhamos do Hospital Galba Veloso, com 140 leitos, também
em Belo Horizonte.
182 • A psicanálise às voltas com a peste

Este era o cenário pré pandemia.


Mas, se um vírus e sua disseminação são capazes de nos atraves-
sar a todos com voracidade, se não por seus efeitos físicos, por seus
atravessamentos em nossa subjetividade e em nosso campo social,
quais seriam as especificidades destes atravessamentos, nos loucos
que frequentam os serviços do SUS? Poder falar sobre o louco frente à
peste, e não qualquer louco, o louco que circula nas cidades e usa os
dispositivos do SUS, me é um tema muito caro, e politicamente neces-
sário, nos dias de hoje. Tal iniciativa nos ajuda a pensar, se não nas
respostas, ao menos nas perguntas que precisamos fazer, e nos dá
notícias das invenções e pistas que podem advir a partir desta experi-
ência, sempre advertidos da desigualdade social que assola nosso país
e, portanto, da importância do SUS como um instrumento político
potente e necessário. Tempos sombrios? Talvez. De acordo com Agam-
ben, todos os tempos são, para quem os experimenta com um
verdadeiro espírito contemporâneo, obscuros. E alguém que vivencia
seu próprio tempo deveria se atentar não para as luzes, mas para as
sombras. Aquele que não se deixa cegar pelo clarão de uma época,
aquele que enxerga as trevas de seu período, que sabe que o escuro do
céu representa uma luz que se distancia infinitamente de nós (Agam-
ben, 2009).
A pandemia chegou como um facho de luz que nos deixou tempo-
rariamente cegos. Vivemos um período de medos e incertezas
generalizadas. A quantidade de Equipamentos de Proteção Individual
(EPI’s) era sabidamente insuficiente, e soubemos que os hospitais psi-
quiátricos estavam direcionando aquilo que tinham para os centros de
tratamento de Covid-19. Não tínhamos um serviço de triagem. Tive-
mos que adequar nosso espaço físico, nossos recursos humanos. Não
Larissa Guazzi Arenales • 183

podíamos mais manter as visitas presenciais, de forma a reduzir o


fluxo de pessoas pelo estado e pelo hospital. Os servidores estavam
adoecendo física e psiquicamente. Algumas licenças médicas, algumas
solicitações de demissões por parte de colegas queridos. Aqueles que
são pais ou mães, temerosos pela vida de seus filhos, isolavam-se den-
tro ou fora de casa, apartando-se, ou do trabalho, ou de suas famílias.
As escalas de plantão foram ficando cada vez mais desafiadoras.
Um facho de luz que nos deixou um tanto atônitos, até que pudés-
semos nos ver novamente a sós com nossas sombras e reconhecer a
importância das trevas, tal como Agamben. Georges Didi-Huberman,
em “A sobrevivência dos vaga-lumes” (2011/2020), também fará alusão
à importância das sombras, para que possamos interrogar o nosso
tempo. Mas, aqui, com uma nova imagem: a dos vaga-lumes como uma
forma de resistência, “uma luz para o pensamento”. A vida dos vaga-
lumes, ele diz, parecerá “estranha e inquietante, como se fosse feita de
matéria sobrevivente – luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes
esverdeada – dos fantasmas”. É quando cai a noite, no hospital, que se
veem os vaga-lumes. E foram em algumas destas noites que algumas
destas histórias foram escutadas, e serão aqui relatadas, bruxuleantes
e entremeadas por outros atravessamentos.

1. A Louca Sensata:
S. tem 68 anos. Faz tratamentos, há longa data, para Transtorno bipolar.
Chega à urgência, vestida com muitas cores, com sobreposição de roupas,
maquiagens fortes. Falava sem parar. Vinha acompanhada da filha. S. já
tinha uma trajetória de tratamentos longa o suficiente para perceber que
estava em crise e que necessitava de ajuda.
- Eu preciso de ajuda, eu não aguento mais! Eu não durmo nada! Me dá um
remédio, pelo amor de deus!
S. tinha também um saber sobre a situação:
184 • A psicanálise às voltas com a peste

- Aqui eu não fico! Essa doença tá pegando os velho tudo! Não vou ficar no
hospital!
Sua filha fica um tanto reticente quanto ao tratamento extra hospitalar.
Percebe que a mãe está bastante alterada e que não a ouve. Aponto a ela a
boa vontade de S. de tomar as medicações e a percepção sobre seu quadro
psíquico.
Aponto, também, a percepção sobre o momento, que me pareceu bastante
adequada.

Se S. era sensata, procurávamos nós, também, o sermos, diante


das vicissitudes que continuavam. Quando começam os primeiros si-
nais da necessidade de medidas contundentes para a contenção do
vírus, recebemos uma notícia inesperada e desorganizadora: o hospital
Galba Veloso fecharia as portas e os seus 140 leitos, de forma a acolher,
futuramente e após as adequações necessárias, leitos clínicos que pro-
porcionariam uma melhor gestão da saúde municipal e estadual diante
da crise sanitária.
A discussão sobre o fechamento do Hospital Galba Veloso é ampla
e anterior a este momento. De alguma forma, foi sustentada a perma-
nência de suas portas abertas até o início da pandemia, tanto por
verificar-se que havia uma demanda para este recurso, como por uma
luta dos trabalhadores, que apostavam neste dispositivo, sabendo que
o mesmo também é parte integrante do cuidado da RAPS 3.
Sabemos, por diversos motivos, o quanto as internações podem
ser vivenciadas como processos violentos e pouco resolutivos pelo
sujeito psicótico [e neurótico] que as busca. Sabemos, também, o quan-
to os municípios do interior são vulneráveis e ainda não têm os

3
Para mais informações, vide portaria número 3.088 de 23 de dezembro de 2011.
Larissa Guazzi Arenales • 185

serviços substitutivos de que necessitam. Criou-se, portanto, uma


lacuna.
Cabe colocar que, apesar de os pacientes terem sido internados
dentro das vagas existentes no hospital, eles, muitas vezes, estavam
extremamente desorganizados em seus sintomas, ou até mesmo orga-
nizados em seu modus operandi atípico, não entendendo ou não
concordando com medidas de distanciamento social e, tampouco, ade-
rindo a medidas como uso de máscaras ou higienização frequente das
mãos. Interná-los, neste momento, é uma decisão de grande responsa-
bilidade: isso implica definir pelos cuidados psíquicos como
primordiais e soberanos a outros cuidados, e assumir que o risco de
transmissão será exponencialmente exacerbado se houver casos in-
ternos em nossas enfermarias. Parte de nossos pacientes são idosos ou
mesmo portadores de doenças crônicas, fazendo parte do chamado
grupo de risco. Dividir com os pacientes e familiares o que se sabe e o
que não se sabe, de forma a tomar decisões compartilhadas, foi pri-
mordial no momento de definir, ou não, pela conduta da internação. A
presença de um psicanalista, neste momento, pode ter um efeito ime-
diato que é o de liberar a equipe de um efeito de doutrinação. Quando
cada um se responsabiliza pelo que sabe e pelo que não sabe, podemos
tomar decisões baseadas não em um denominador comum, mas em
uma pluralidade de saberes que contribuam para a construção das
respostas (Moretto, 2018).
Fechar um hospital psiquiátrico, neste momento, significou, além
de redução de leitos, reduzir o espaço físico total de que dispúnhamos
em termos de áreas de circulação possível para uma internação fecha-
da. Reduzir espaço físico significa aumentar aglomeração. Alguns
podem argumentar que, em não havendo aumento do número de leitos
186 • A psicanálise às voltas com a peste

do Instituto Raul Soares, não haveria maior aglomeração do que havia


antes. De acordo. Trata-se de uma constatação que se relaciona exclu-
sivamente à área física total disponível, e que deriva de uma certa
utopia da autora, que supôs que a redução de leitos em enfermaria,
neste momento, teria sido uma medida de segurança para os pacien-
tes, o que não pôde ser sustentado devido à necessidade, do estado, de
converter as vagas psiquiátricas em leitos clínicos e em manter todas
as vagas do instituto Raul Soares abertas, em função do alto valor que
estes leitos psiquiátricos adquiriram neste momento.
Na urgência, a demanda por atendimentos manteve-se. Cabe co-
locar que o hospital conta com uma ala de internação intermediária.
Leitos chamados de sala de observação, onde ficam os pacientes que
não necessitam de internação mas que, tampouco, têm condição de
alta imediata, sem alguma articulação prévia do caso com a rede de
saúde mental e/ou com algum familiar. Durante este período, a articu-
lação destes casos com os serviços substitutivos ou com outros
serviços de assistência vinculados à RAPS do interior foi menos possí-
vel, considerando que parte destes reduziu seus horários ou até
mesmo fechou, como medida de combate à Covid-19, ainda que provi-
soriamente. Isso aumentou o número de internações psiquiátricas. A
ameaça à vida, conjugada à desordem social e política deste momento
que vivemos teve, como um de seus resultados, um maior controle
sobre os corpos na forma da internação psiquiátrica. Este controle,
neste momento, vem também acompanhado de um risco biológico
sobre o qual pacientes e familiares mostram-se mais ou menos con-
cernidos. Um dos desafios que enfrentamos era conscientizar aqueles
que já acreditavam, delirantemente, ter consigo a cura, de que preci-
savam preservar a si e aos outros. Um curto-circuito lógico, diante do
Larissa Guazzi Arenales • 187

qual só nos resta, novamente, buscar a luz natural e caprichosa dos


vaga-lumes. Assim chegou J., buscando atendimento.

2. O curioso caso dos curandeiros da Covid-19:


J, de 50 anos, mora sozinha, no interior. Neste período, passou a ser vista
com mais frequência em igrejas, cada vez mais inflamada pelos cânticos
religiosos. Passou, também, a ser vista com a aparência mais desleixada,
não saía de casa e, quando finalmente recebe a visita de um familiar, todos
os seus pertences estavam embrulhados, prontos que estavam para serem
entregues à igreja, enquanto ela sairia pelo mundo e se dedicaria a uma
missão espiritual. J. estava muito tranquila. Estava certa de que teria cu-
rado a Covid-19. Os filhos resolveram trazê-la para perto, após este
desencadeamento psicótico – o que a faz perder o entusiasmo pela missão
e estreitar o entusiasmo pelos laços com os filhos. Mas, estavam preocu-
pados com sua não adesão às medidas sanitárias. Se ela tinha a cura, não
fazia sentido prevenir-se.
Atendo-a, faço as orientações necessárias, com uma especial recomenda-
ção: que ela aguarde a notícia oficial da cura da Covid-19 para que possa,
só a partir daí, reposicionar-se quanto a destoar, ou não, das medidas de
cuidado que toda a população vinha tendo. Ela aparentemente concorda.
Não tenho notícias da efetividade da intervenção.

Entre os psicóticos, alguns curandeiros da Covid-19 têm apareci-


do. Acho que já vi ao menos três – no último mês. Curiosamente, me
questiono sobre o fato de não ter visto nenhum delírio de contamina-
ção por Covid-19, e penso que os psicóticos estão um pouco mais
confortáveis do que os neuróticos neste momento. Eles parecem acre-
ditar que sabem o que fazer. Não encontram, não inscrevem algo da
castração final, que é a castração da morte. Enquanto isso, também nas
enfermarias, é do não-saber que partimos.
Foi criada uma enfermaria específica para acolher os pacientes
com suspeita de Covid-19 que aguardam a realização dos testes neces-
188 • A psicanálise às voltas com a peste

sários. Pactuações foram feitas com hospitais de referência, para aco-


lhimento dos casos positivos. Readequações foram feitas, em outro
momento, para manter os casos positivos em isolamento dentro do
próprio hospital, caso não houvesse sintomas respiratórios que de-
mandassem recursos específicos que não estivessem disponíveis.
Houve aquisição de testes rápidos, para uso interno nas enfermarias,
conforme protocolos clínicos. Quando da constatação de casos positi-
vos, houve isolamento da enfermaria, onde o caso foi constatado,
durante 14 dias, até a liberação para entrada de novos pacientes. Esca-
las para uso do pátio ou do espaço terapêutico – onde os pacientes
podem realizar atividades de sua escolha, acompanhados por terapeu-
tas ocupacionais e outros profissionais especializados – foram
pensadas e otimizadas. Foi encorajada a realização de oficinas tera-
pêuticas dentro das enfermarias, nos momentos em que as alas
estivessem com sua circulação isolada. As visitas foram suspensas
para reduzir a circulação de pessoas, sendo permitido o contato pelo
telefone da instituição. Os pacientes e familiares ficam mais angustia-
dos e desejosos por notícias.
Na busca de construir um ponto possível de invenção para a insti-
tuição, e também para cada caso, assim eram pensados os projetos
terapêuticos singulares, e assim foi pensado e construído junto a M.

3. A unção pelo pensamento:


M. estava no corredor da enfermaria feminina, no momento em que vou
atender uma intercorrência para a qual fui chamada. É comum, quando
entramos na enfermaria, que dois ou três pacientes – para o qual não re-
cebemos um chamado da supervisão de enfermagem – venham falar
conosco. M. me pergunta:
Larissa Guazzi Arenales • 189

- Doutora, eu conversei com a minha médica hoje. Eu falei pra ela, eu pre-
ciso pôr a mão nas pessoas para ungir elas, assim eu me sinto mais forte.
Ela me falou para eu ungir pelo pensamento. Você acha que eu vou ficar
mais fraca se eu ungir pelo pensamento?
- Não, M. Está correto. Pode ungir pelo pensamento que você continua for-
te. Tente não encostar nas pessoas por conta da Covid, OK?
M. tinha recebido uma intervenção muito acertada. Mas ainda estava pre-
cisando elaborá-la, e repetia sua pergunta pelos corredores. Cabe dizer
que ela não encostou em mim, e que não a vi encostando em outras pesso-
as, durante aquele pequeno espaço de tempo em que compartilhamos um
encontro.

Assim como M, partimos do não-saber para, compartilhando


questões, pensar respostas.
Esta crise não tem lados positivos, mas certamente que ela não
deixa de ter seus desdobramentos. Ela nos tira do nosso equilíbrio e, a
partir disso, nos faz pensar na nossa relação com o inesperado. Em
uma situação como essa, “o que temos é um enorme caldeirão criativo
onde a crise social cria saberes, indaga a nossa prática e leva à sua
inserção no território da cidade.” (Broide, 2019, p. XVIII). Para atraves-
sá-la, precisamos pensar de que forma queremos, e podemos, chegar
do outro lado.
Se a urgência é, por excelência, o setor/local do inesperado, é
também o local onde há a maior necessidade dos cálculos, possíveis,
para que se tente lidar com algo do impossível. Medidas e protocolos
diários, e presença de gestão, são essenciais.
Se por um lado a RAPS – BH demonstra a existência de uma rede
historicamente forte e composta por muitos atores, com uma capaci-
dade impressionante de flexibilizar-se, capilarizar-se e de agir diante
190 • A psicanálise às voltas com a peste

da crise, isso é motivo para parabenizar e se orgulhar da nossa rede


substitutiva.
Mas, no geral, não temos motivos para comemorar. Enquanto ti-
vermos usuários dentro dos hospitais psiquiátricos, precisamos
pensar neles e na construção de seus projetos terapêuticos, e em seus
cuidados continuados. Até porque, ainda que seja sabido que não é o
psiquiatra, ou a sociedade, que inventou a loucura, outrossim, eles são
responsáveis pela maneira como ela se cristaliza nas instituições (Ma-
nonni, 1971).
A direção do tratamento não pode ser uma filosofia ou uma ideo-
logia, senão uma ética, guiada pela palavra e pelas construções dos
usuários. Freud, ciente que estava da necessidade de que a Psicanálise
atingisse todos os estratos sociais, comparando o direito à assistência
anímica à assistência cirúrgica, e constatando que a neurose não era
menos ameaçadora, à época, do que a tuberculose, faz também a se-
guinte colocação em “Caminhos da Terapia Psicanalítica (1919)”: “não
podemos aceitar a exigência de que a Psicanálise se coloque a serviço
de uma determinada visão de mundo filosófica (...) quero dizer que isso
é uma violência, mesmo que encoberta pelas mais nobres intenções”
(Freud, 1919, p.199)
Neste momento – em que vivemos muitos atravessamentos insti-
tucionais, políticos, sociais, situações graves que precisam e merecem
ser discutidas e elevadas a um estatuto de dignidade –, o trabalhador
precisará se fazer escutar e se fazer parte ativa na construção do pro-
cesso de trabalho. Dito isso, temos também de ter a clareza de nos
lembrar o motivo pelo qual as políticas são pensadas, que é o cuidado
para com o usuário. Isso para não deixar que estes atravessamentos
sejam, também, clínicos. Fazer Psiquiatria ou fazer Psicanálise sem
Larissa Guazzi Arenales • 191

política, isso não é possível. Mas o tempo nos dirá quais as consequên-
cias e os efeitos mais nefastos: se é fazer uma clínica supostamente
apolítica, ou se é fazê-la quase que, unicamente, baseada na política
(Barreto, 2017).
O louco do SUS, frente à peste, ele segue em um lugar que lhe é
muito familiar ao longo da história da loucura: tendo que batalhar por
seu estatuto de dignidade e de uma escuta diante de tudo isso que tem
acontecido.
O que poderia o analista fazer diante disso? Dar o lugar de sujeito
àquele que o procura, e não o de objeto. Procurar, no jogo de luz e
sombras, o que fulgura na clínica.
Neste momento que vivemos diante do Real da pandemia, o ana-
lista conta com os mesmos recursos que já contava: sua palavra e seu
ato. Cabe a nós pensar e discutir quais os obstáculos, limites e alcances
que cada dia de nosso fazer nos demandará. É quando a noite é mais
profunda, que somos capazes de captar um mínimo clarão (Huberman,
2014).

4. Sobre a insistência dos vaga-lumes e da escuta:


E foi assim, em uma noite profunda, que recebi B. Em trajetória de rua, ela
resolve fazer do Instituto Raul Soares um de seus pontos de passagem.
Vem pedir um alento, se poderia dormir no hospital, cansada do excesso
da droga, e sabe-se de quantos mais. Após escutá-la e checar seu prontuá-
rio, noto que ela estava sendo atendida no lugar errado, pois era
considerada moradora de Belo Horizonte e tinha uma vinculação com ou-
tro serviço de referência. Cabe colocar que, após o fechamento do Hospital
Galba Velloso, e com a consequente redução dos leitos de internamento
disponíveis pelo SUS, fez-se mais premente e houve maior cobrança para
que seguíssemos à risca os critérios de regionalização em nosso dia a dia.
Preparo-me para dar-lhe as orientações de encaminhamento quando, num
192 • A psicanálise às voltas com a peste

claro instante, reluz um pequeno esparadrapo em sua fossa cubital e eu,


quase que por curiosidade, lhe pergunto de que se trata.
- Ah, isso está aqui porque hoje eu fui estuprada e passei no hospital pra
tomar os remédios. Mas tá tudo bem.
Minhas palavras se dissolvem antes que saiam, de forma que decido que B.
foi ao lugar certo, o lugar em que poderia ser acolhida e escutada em seu
sofrimento.

No livro “A Peste”, de Albert Camus (1947), um cenário distópico


de doença e pestilência assola uma população. No plano de fundo, o
autor assistia à ocupação do país onde vivia pelo exército nazista, algo
que ele descreveria, em seus diários, sobre o dia da invasão da zona
livre da França pelos alemães: “como ratos!”. Lembremos que os roe-
dores são, também, o primeiro índice da peste na cidade literária, onde
a primeira vítima balbucia, em seu leito de morte, “os ratos”. Se os
bacilos da peste não dormem, tampouco o do totalitarismo; é preciso
ficar à espreita (Araújo, 2020). Quais as diferentes formas que se pode
contaminar e adoecer uma população, seja através de um microorga-
nismo qualquer, ou de uma política?
Ao investigarmos as mudanças das relações de poder ao longo da
história, temos a passagem de uma lógica do soberano, que determina-
va sobre a vida da população, para uma estratégia moderna de
agenciamento de poder sobre a vida, onde “fazer viver e deixar mor-
rer” vem a ser uma forma de que a própria sociedade, pelo
estabelecimento de suas normas e leis, trave uma guerra interna con-
tra os perigos que nascem em seu próprio corpo, “em defesa da
sociedade”. Estabelece-se, assim, uma biopolítica que controla os mais
diversificados aspectos da vida humana (Foucault, 1976).
Larissa Guazzi Arenales • 193

Nestes tempos em que a defesa da economia é colocada por al-


guns políticos como uma escolha contraposta à defesa da vida, alguns
pensadores têm considerado o momento atual da pandemia como um
tempo de necropolítica, enquanto oposta à biopolítica, onde a animo-
sidade deixa de tomar proporções tácitas e o deixar morrer vem
acompanhado com uma cota de satisfação dos sobreviventes, que as-
sim confirmam serem especiais e portadores de uma força
delirantemente organizada (Dunker, 2021).
Diante de tal cenário, o psicanalista insiste que, com sua virulên-
cia, pode sustentar a singularidade de um sujeito. Não se trata de
desconsiderar a necessidade de uma rede articulada de dispositivos de
intervenção, e nem de, ingenuamente, considerar que um único dispo-
sitivo [no caso, o psicanalítico] possa ser o suficiente, quando se está
diante de um indivíduo que não tem o seu estatuto, de sujeito de direi-
to, garantido. Situações complexas exigem criação e aperfeiçoamento
de abordagens teórico-práticas. Trata-se, sim, de reconhecer que,
mesmo quando as necessidades mais prementes se colocam, aparen-
temente, como anteriores à escuta, sabe-se que “é a impossibilidade
social de falar e elaborar violências, os excessos e as carências vividas
que produzem uma condição de excesso/falta de significações que
estrutura uma condição traumática para além do acontecimento vio-
lento por si só”. (Rosa et al., 2018, p. 117). Para Camus, “o que se
aprende no meio dos flagelos é que há nos homens mais coisas a admi-
rar que coisas a desprezar”. Para a Psicanálise, a ver o que essa
experiência coletiva vai precipitar. E, se o internamento foi ligado, em
suas origens, a uma reestruturação do espaço social e a práticas inu-
manas (Foucault, 1968/1976), sabemos que fechar um manicômio é um
194 • A psicanálise às voltas com a peste

ato político e ético. Novas práticas terão de ser fortalecidas e reinven-


tadas, para que se possa sustentá-lo com responsabilidade.
Com minha escrita e minha apreensão do processo que vivi até
aqui, durante este tempo de clínica com psicoses no SUS no período da
pandemia, tentei demonstrar que, mesmo diante de tantas luzes que
nos distraem e quase nos cegam, deixar-se refletir pelas luzes dos
vaga-lumes, pela preciosidade da clínica, ainda parece ser a melhor
opção. Em um claro contraponto com as luzes elétricas frias e poten-
tes, a clínica se faz iluminar, bruxuleante e viva, como que pela luz
destas criaturas pulsantes.
POSFÁCIO
A PANDEMIA E O INFAMILIAR: UMA RELEITURA DA
TEORIA DA IDENTIFICAÇÃO
Marcelo Veras 1

Não existe normal para o ser habitado pela palavra, pois a norma-
lidade será sempre uma ficção instável, tentando dar conta de um
impossível: as palavras não dizem tudo do corpo. É na memória das
diferenças que podemos melhor alojar a Psicanálise. Com a Psicanálise,
aprendemos que não há normalidade, pois não há vida sem sintoma;
mas, também, sabemos que quem determina o que é e não é normal é o
mestre da vez; e o sintoma tem uma relação de dupla face em sua rela-
ção com o discurso do mestre; fazemos sintoma quando o seguimos e
quando deixamos de seguir. Como a normalidade é uma curva, uma
curva de Gauss, sabemos que para definir uma normalidade precisa-
mos do tempo, tempo em que o Real deixa de não se escrever e afeta o
mundo dos viventes. Todo acontecimento novo, nesse sentido, é anor-
mal, pois ele irrompe bem ali, na rotina do calendário, em um instante
que não estava previsto. É na progressão dos discursos que a produção
de sentidos se faz. Portanto, foi necessário um tempo para compreen-
der o furo causado pela pandemia, a partir de janeiro de 2020. Sabemos
que quanto mais nos enveredamos pela trama dos discursos, mais nos
afastamos da verdade, fazendo valer a tese lacaniana, dos anos 1970, de
que o sentido é o Outro do Real.

1
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP).
196 • A psicanálise às voltas com a peste

Este texto sobre a covid é escrito quando, após o enigma inicial, já


possuímos alguma familiaridade com os novos semblantes, o que não
quer dizer que algo de profundamente infamiliar não permaneça tanto
em nossa prática clínica como em nossa vida política. Um ponto incon-
tornável é repensar a alteridade pós-covid, já que a pandemia
promoveu um novo giro na questão da alteridade e do Mal. O gozo do
outro, o modo de gozar do outro, quando não segue a normatização
fálica, é sempre considerado como o Mal.
Durante a pandemia, somente foi possível a politização das estra-
tégias de saúde quando o pensar na coletividade e o pensar na
liberdade individual foram identificados como modo de gozar, e não
como estratégia de sobrevivência. Por isso, os caminhos e descaminhos
do tratamento da pandemia não obedeceram aos critérios de falseabi-
lidade da ciência e sim, da política. Para além do aspecto universal que
a palavra pandemia pode evocar, tornou-se evidente que os modos de
enfrentamento da covid acentuaram os dispositivos de segregação do
mundo contemporâneo.
A segregação está na base da teoria lacaniana dos discursos. Para
Lacan, o preço a pagar pela fraternidade é a segregação do gozo do
outro, na sociedade. Ou seja, uma fraternidade é uma defesa coletiva
ao modo de gozar que lhe faz oposição. Essa teoria aparece claramente
no Seminário “O avesso da Psicanálise” 2. Para além do nome, é o regi-
me de gozo que está na base dos grupos sociais, o gozo do outro sendo
sempre um problema para o estabelecimento de vínculos.
Contudo, podemos dizer que alguns aspectos foram efetivamente
vividos de modo global. Algo novo irrompeu em escala planetária com

2
Lacan, J., Le Séminaire Livre XVII, L’Envers de la psychanalyse, Paris Seuil, 1991, p. 132
Marcelo Veras • 197

o advento da covid: subverteu-se, em parte o, comando do mundo pe-


las regras do capitalismo. O mundo parou de comprar; o matema
proposto por Jacques-Alain Miller, na conferência “Uma fantasia”,
para mostrar o sujeito contemporâneo determinado pelo objeto (a ->
$) 3, cedeu lugar ao mestre sanitário, que passou a determinar as novas
regras de organização da vida em comum, quer elas fossem acatadas
pelos governos ou não.
Iniciemos com um conceito que não faz parte do dispositivo cien-
tífico, a identificação. Em escala global, foi possível constatar a tensão
entre as orientações preconizadas pela Organização Mundial de Saúde,
que se apoiavam no trabalho dos cientistas, e os opositores do lock-
down e da vacina, ainda que estes dois últimos, tampouco, formassem
um grupo homogêneo. A divisão escancarou aquilo que Miller chamou
de mal-estar na identificação, fazendo valer um matema distinto do
matema proposto acima: I(A/, barrado). Ou seja, se antes o “déficit
significante do sujeito” encontrava uma resposta no Outro 4, chamada
de Ideal do eu, agora é o próprio Outro dos ideais que é dividido, fratu-
rado entre o mestre respaldado pelo pensamento ultraliberal,
individualista, e o mestre sanitário que busca uma resposta ao mal-
estar, pelo coletivo.
Em seu paroxismo, foi possível constatar o negacionismo como
rechaço, total, ao saber advindo da produção dos cientistas. O negacio-
nismo é um modo de recusa do saber científico que se propunha a ser
universal. Não deixa de ser curioso que, no momento civilizatório em
que o mundo buscou sua unificação pelos mercados comuns, o resulta-

3
Miller J-A, Uma fantasia, acessível em: http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=
Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
4
Miller J-A. Malaise dans l’identification, Revista Mental 39, página 152
198 • A psicanálise às voltas com a peste

do encontrado foi o aumento da segregação, como previu Lacan 5. O


negacionismo nada mais é do que uma das faces da segregação.
Assim, quando o Estado brasileiro se apoiou no discurso negacio-
nista para justificar suas ações, estivemos diante do pior. Lacan foi
premonitório quando tratou os campos de concentração como uma
amostra do que viria no futuro. Para além da memória do Holocausto,
algo do tratamento desse gozo anômalo pela segregação passou, defi-
nitivamente, a habitar o mundo atual. Um comportamento recente
evidenciado, sobretudo, durante a segunda onda da pandemia no Bra-
sil, mostra essa tese, ironicamente, pelo seu avesso. Respaldados pelo
pensamento negacionista, muitos decidiram romper o isolamento
social.
Assim, surgiram os campos de aglomeração. O que leva alguém a
querer participar de uma festa com 500, 1000 pessoas, mais ainda, em
pleno momento de expansão da segunda onda, no início de 2021? Ficou
comprovado o quanto essas aglomerações catapultaram os números de
casos após o verão, tanto no Brasil quanto em todo Hemisfério Norte.
É mais fácil compreender a lógica que promove as pequenas festas, em
que as pessoas querem encontrar seus amigos de turma, sua família,
seus colegas de academia. Mas ninguém consegue conversar com mais
de cinquenta pessoas em uma festa. Outro desejo, certamente, está em
jogo ao querer participar de um evento onde, sabidamente, não será
possível abraçar a todos.
É mais fácil organizar e isolar o Mal, quando temos a figura de um
líder; essa é a lógica bastante conhecida da Psicologia das massas,
freudiana. Com a taxa de infecção e o aumento das mortes, aglutinar-

5
Lacan, J. A. Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’école, Écrits.
Marcelo Veras • 199

se em plena segunda onda não era a mesma coisa que encontrar vinte
amigos; um novo fenômeno de massa está em jogo. Por mais que hou-
vesse a figura de um bufão dizendo que todos deveriam se aglutinar,
sem a teoria da identificação não é possível entender o que fez tantos
seguidores tornarem-se igualmente bufões.
Ser parte da massa, ao preço de brincar com a vida, fica mais fácil
quando abrimos mão do senso crítico e aderimos à lógica do "todo
mundo está fazendo". Fazer parte de um grupo que pensa igual é, sem-
pre, uma liberação do sentimento interno de vergonha. Implica na
manifestação maníaca descrita por Freud em seu texto de 1927, “O
humor”. Trata-se do triunfo diante da morte do pai. É preciso enten-
der a lógica que faz com que o desejo de ser rebanho em uma massa
supere o sentimento íntimo de vergonha, que temos quando transgre-
dimos a lei. E qual a lógica dessas aglomerações que se tornaram
campos de difusão na pandemia? Penso em algumas respostas que
trago aqui. Retomaremos a questão da identificação e o mal, mais
abaixo.

A PANDEMIA E AS REDES

O que é um vírus? Um ser que não é vivo. Um vírus afeta o real de


nosso corpo precisamente como esse nada de vida que se agrega ao
vivente e o ameaça. Lacan dizia que o furo no real é a vida, e o vírus
realizou esse furo; ele é o vácuo em torno do qual a vida se faz e se
desfaz.
Por outro lado, a invisibilidade do vírus também fez furo no ima-
ginário, pois ele não se agrega à imagem corporal. Per si, ele não
amputa, escarifica, deixa cicatrizes, ou seja, ele não deixa rastros posi-
200 • A psicanálise às voltas com a peste

tivos. Estar com um vírus, o que isso significa? Quando nos olhamos no
espelho, nós não o localizamos; é como se tivéssemos o pior em nós, a
alteridade mais ameaçadora, sem que pudéssemos extirpá-la. Poderia
dizer que ele é a menor escala do objeto "a" lacaniano, um resto "a
mínima" do que, em nós, não somos.
E, sem dúvidas, há o grande movimento barroco do Simbólico. É
quando a angústia da alteridade viral encontra os semblantes, os ro-
mances, as fabulações, os memes e teorias que tentam dar um
tratamento simbólico para esta angústia, tornando-a, preferencial-
mente, uma fobia. Assim, as necessárias exigências de proteção
trouxeram como efeito colateral oferecer um elemento fóbico ao que
era puro sentimento de angústia. Sabemos que a fobia é um dos trata-
mentos da angústia. Nosso álcool gel, nossas luvas e máscaras,
curiosamente criaram uma superfície que permitiu delimitar um
“dentro” e um “fora” do corpo, conferindo uma inédita miragem de
visibilidade ao real invisível do vírus. Fomos quase capazes de vê-lo
indo embora quando esfregávamos o álcool em nossas mãos.
Antes mesmo da covid, não faltaram telas de projeção nos ele-
mentos da cultura. Nesse sentido, o filme de Steven Soderbergh de
2011, “Contágio”, foi impressionantemente premonitório. Também
eram sinalizações o interesse crescente pelos zumbis e mortos-vivos,
em séries como Walking Dead, que atrelavam a epidemia ao modo de
viver do sujeito contemporâneo alienado ao consumo, trabalho exces-
sivo e tirania dos ideais de corpo perfeito e saudável. Esse conjunto de
circunstâncias ganhou notoriedade com a publicação, em 2010, do livro
“Sociedade do cansaço”, de Byung-Chul Han.
Com a pandemia, o movimento civilizatório atual, que busca o
máximo das experiências vividas em grupo, sofreu um revés. Por conta
Marcelo Veras • 201

do lockdown, voltamos para casa. A OMS nos pedia um confinamento,


um curioso exílio às avessas; ficamos presos no lugar onde deveríamos
ser mais livres, entre os nossos, com nossos livros e músicas, com
nossas memórias e nossos afagos. Neste momento, meu voto foi para
que a pandemia, que não fosse apenas um culto à pulsão de morte,
mas, principalmente, uma lição de vida. Mas, rapidamente, novos cir-
cuitos se refizeram com o auxílio das redes sociais. Tanto na vertente
do objeto – como a voz e o olhar –, quanto na vertente significante –
os novos códigos que a comunicação pelas redes exige –, ocorreu uma
subversão do espaço que chamamos de íntimo. É diferente fazer da
casa um portal, em via de mão-dupla; todos passamos a conhecer um
pouco da casa dos outros.
Esse momento de báscula, em que as mídias sociais se consolida-
ram como um portal para que as pessoas “saíssem” de casa – e não
apenas para colocar a própria imagem no espelho – promoveu um
quarto de giro no império narcísico introduzido pelas selfies e posta-
gens de si. Basta observar como despencou a quantidade de selfies. As
pessoas passaram a se mostrar mais normalmente, sem todos aqueles
filtros e hiperproduções, porque os valores do Ideal do eu tiveram que
ser repensados. Tornou-se mais importante falar das coisas do dia a
dia, das receitas, dos memes, ou seja, das diversas formas de persistir
no mundo confinado. Foi possível uma grande reinvenção da intimida-
de, tanto on-line, com as pessoas descobrindo novos usos para as redes
sociais, quanto off-line, com a maior quantidade de tempo para ficar
em casa. Em São Paulo, despencou a necessidade de grandes escritó-
rios, gerando uma crise imobiliária com a explosão do home office.
Isso marcou, profundamente, o modo como todos passaram a se
servir de seus smartphones. Surge, então, a figura do hiperconectado.
202 • A psicanálise às voltas com a peste

O hiperconectado é o sujeito que abre inúmeros portais ao mesmo


tempo, tornando insuportável o estar consigo mesmo. Existe, aí, um
componente aditivo. Se nada mudou do noticiário das 11h para o noti-
ciário das 12h, por que as pessoas ficam acompanhando? Não é mais
pela busca de informação. Para além dos objetos, é a própria conexão
que se transformou em objeto pulsional, pouco importando o conteúdo
dos aplicativos.

A IMPORTÂNCIA DOS JURAMENTOS

O mundo sempre será uma narrativa se defendendo do Real. Ob-


viamente, por estrutura, sempre acharemos que a nossa narrativa é a
menos delirante, até mesmo porque, se soubéssemos que ela é deliran-
te, não seria um delírio. Por isso, foi necessário dar uma trégua para os
delírios cotidianos que invadiram a política e pensar, seriamente, nos
que estiveram na linha de frente. Foi possível constatar como a saúde
mental, dos trabalhadores no front, foi abalada. Ouvindo inúmeros
pacientes que estavam nas UTIs, enfermarias ou centros de vacinação,
foi possível perceber que os profissionais que não podiam ficar em
casa, e que muitas vezes acabaram contaminando e perdendo seus
próprios familiares, na tentativa de salvar os outros, eram fortemente
motivados pelo compromisso. Surgiu, então, uma divisão entre os que
estavam nas ruas por negação e os que estavam nas ruas pelo jura-
mento. E o que podemos, psicanaliticamente, dizer do juramento?
Extraído da Linguística, Lacan pensou na subjetividade dos verbos
performativos. Aqueles verbos que, quando enunciados, já cumprem
sua ação em si. A grande inspiração vem do filósofo britânico John
Austin, com sua obra clássica: “Quando dizer é fazer”. O ato de jurar é
Marcelo Veras • 203

um dos melhores exemplos: quando eu juro, o ato já se cumpriu. Esse,


talvez, seja o maior diálogo que podemos ter com nosso Supereu.
Quando juramos, podemos, ou não, cumprir nosso juramento,
mas estaremos sempre em dívida com nosso ato, caso não o realize-
mos. Os diversos profissionais de saúde, que estavam na linha de
frente contra a covid, fizeram um juramento no dia em que se forma-
ram. Eles trabalharam em situações difíceis, muitas vezes sem
equipamentos corretos, sem poder voltar para casa, sob risco de con-
taminação por exposição direta, e tudo isso não foi por conta apenas
dos salários: eles tinham um compromisso com seus juramentos.
No mundo dos negócios, ou das grandes transações, não há espa-
ço para juramentos. Ninguém jura quando vai pedir um empréstimo ao
banco, ou quando compra no cartão de crédito. Tampouco os patrões
juram quando contratam seus empregados. O mundo das contas e dos
juros não comporta juramentos. Pois juramentos são um compromisso
com o Outro, e não com o gozo.
Quando muitos fizeram suas contas e profetizaram a crise eco-
nômica que viria após a pandemia, justificando, assim, a quebra, por
motivos banais, do lockdown, outros estavam no front salvando vidas;
mas, no fundo, estão salvando seus juramentos.

A POLARIZAÇÃO POLÍTICA E AS CRENÇAS

Retomo, aqui, a questão do Mal e o líder. Por que é necessário iso-


lar, no outro, o mal que nos inquieta? Essa inquietação, que tem sua
origem no mais íntimo de todo sujeito, assume formas de discurso
quando temos a miragem de localizá-la na voz de algum líder ou de um
grupo em uníssono, devido aos efeitos de massa. Segundo Freud, em
204 • A psicanálise às voltas com a peste

Psicologia das Massas, um líder não precisa ter um discurso que faça
sentido; ele precisa que sua voz ressoe no corpo e atinja esse núcleo
mais íntimo, muito além da razão. Encontramos, aí, a base da segrega-
ção, que prolifera sempre que substituímos a conversação entre os
pares, pela escuta sem direito à contestação do líder. Por que tantos
sacrificaram seu bom senso para seguir, incondicionalmente, a palavra
do líder? Assim, desenvolveu-se um mecanismo que converte uma
crença (na cloroquina, por exemplo, que é sempre uma aposta, uma
conjectura, uma hipótese) em certeza. O ser falante é o ser atravessado
pela linguagem do Outro. Desde muito cedo, já na teoria freudiana do
narcisismo, em 1914, aprendemos que nos formamos a partir dos obje-
tos, do outro, que investimos. Essa alienação à imagem não deve
ocultar que a essência do ser é o gozo incomunicável. Tudo o que fala-
mos pode ser refutado, dialetizado e repensado; mas, toda vez que
topamos com uma verdade inamovível, estamos no campo do gozo do
Um, gozo vivido na experiência única de cada existência. Esse foi um
dos grandes desafios para os últimos tempos.
Os debates sobre a condução da pandemia seguiram circuitos que
levaram a uma vertigem entre crença e verdade. Vale o adágio: mais
desconfiamos de nossas crenças e mais vamos à missa. Muitos se afer-
raram às suas crenças como último ponto de estofo de sua própria
existência. Ouvir o outro tornou-se impossível; coube ao outro que
discorda apenas o papel de espelhar o gozo mortífero que todos bus-
cam evitar. Está aí boa parte da gênese do negacionismo como modo de
existir. Há, contudo, um impedimento a projetar o gozo nas telas do
outro: é que um resíduo de opacidade do gozo, conectado ao real sem
semblantes, está no âmago da incomunicabilidade política.
Marcelo Veras • 205

O GOZO OPACO DA CERTEZA EM POLÍTICA

As palavras não aderem aos corpos de forma indelével. Para além


da função de comunicação, elas ressoam no corpo, nos dando substrato
de gozo, aquilo que Lacan chamou de Lalíngua. Ou seja, somos mais
afetados pelo fluxo das palavras do que pelos seus significados. Por
isso, “Psicologia das massas” e “Mal-estar na civilização” são textos tão
importantes. A teoria da identificação demonstrou que o amor ao líder
é hipnose pelo traço, muito mais do que pelos significados de seu dis-
curso. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que o uso da palavra
“mito” tenha sido usado por parte da população como traço, e não,
justamente, pelo que se inscreve após um processo histórico, um dis-
curso, um efeito. Um mito sem passado é apenas uma palavra
esvaziada de sentido, valendo mais por sua função de traço. E foi, jus-
tamente, na identificação ao mito, que o negacionismo encontrou seu
maior estofo.
Se seguimos com Freud, o uso da palavra mito como fundante de
um futuro (preocupante), e não como consolidação do passado, de-
monstra que ninguém saberá explicar, muito menos os que o utilizam,
o significado dessa nomeação. A decomposição que o próprio Freud faz
de sua teoria da identificação nos leva a pensar no traço unário como a
base da hipnose coletiva. É esse, precisamente, o ponto que venho me
interrogando. Para mim, a resposta deve estar na primeira das três
identificações, aquela que chamamos de identificação canibal, e que dá
um corpo de gozo ao sujeito: "einverleibung", incorporação, diz Freud.
O fracasso da política surge quando um grupo é configurado em
torno da certeza. Mas o Simbólico nunca nos dá certeza, as palavras
sempre nos enganam. A democracia é, por excelência, um modo políti-
206 • A psicanálise às voltas com a peste

co de lidar com a incerteza das palavras, das nossas e das dos outros.
Contudo, nem sempre foi assim; nos tempos em que o Outro era con-
sistente. era possível pacificar-se com as palavras de Deus. Descrentes
dos valores universais, e aspirados pelo gozo do objeto "a", que fez
ressoar cada vez mais forte a inutilidade de se passar pela palavra do
outro para gozar, esse gozo. Agora. se aferra à certeza irrefutável do
traço.
Não há ciência, política, arte ou retórica qualquer que possa de-
mover alguém de suas convicções, quando este sacrifica a lógica em
nome do gozo. A única certeza é que gozamos; por isso, apenas é possí-
vel democracia quando há cessão de gozo. O fanatismo, o
negacionismo, o racismo ou fascismo ganham sua força de negação do
outro na certeza do “mesmo”, um mesmo de gozo monótono e repetiti-
vo. Que forças potentes abalaram o modo de gozar no século XXI? A
resposta pode explicar o surgimento de novas crenças delirantes, que
podem ir desde a fabricação de um mito sem história a um remédio
que se torna pedra filosofal na cura da covid. Toda certeza, todo ódio
radical diz mais do gozo delirante do que da palavra do outro. Como
amar o outro mais do que a si mesmo?, perguntava Freud no Mal-
estar. Pessimismo freudiano? O sinthome lacaniano pode ser a respos-
ta, um outro modo de lidar com o gozo autista que nos habita.

DO LADO DOS CIENTISTAS 6

A reedição das tensões, cem anos depois, que levaram à revolta da


vacina, surgem com impressionante atualidade. A ciência não busca a
verdade, ao contrário, ela é um perpétuo sistema de destruição da

6
Devemos essa contribuição à Patrícia Veras, pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz – Bahia
Marcelo Veras • 207

verdade. É necessário, contudo, que ela ajude a construir estratégias,


definir políticas, construir protocolos. A ciência permite ler o real,
criar a partir de seus efeitos no mundo, mas ela é incapaz de barrar a
força disruptiva do real no mundo dos homens. Por isso, ela não pode
ser apropriada por aquele que se sirva dela para impor um discurso
totalitário, pois toda ciência tomada como verdade se torna uma pseu-
dociência. Poucas vezes os cientistas estiveram tão em evidência, e
foram tão respeitados ou rechaçados, como nesse período da pande-
mia.
Destacamos essa passagem de um texto publicado em 2012; veja-
mos onde estamos hoje, sobretudo após as lições da pandemia:

Atualmente, não temos a experiência, maturidade ou massa crítica para


avaliar se estamos gerando conhecimento real com esses grandes conjun-
tos de informações, ou se estamos, simplesmente, gastando bilhões de
dólares em tecnologia para obter pouca ou nenhuma informação realmen-
te útil. Mas este é, agora, o caminho de qualquer procedimento científico.
...É certo, portanto, que o pensamento científico em rede se tornou parte
de nossa realidade. Mesmo que estejamos no processo de reaprender como
fazer ciência, como flertar, analisar e criticar este pensamento em rede,
ele é certamente um caminho sem retorno. Uma nova era de conhecimen-
to científico começou e a comunidade científica está dividida entre dois
paradigmas 7.

Desde a época em que os cientistas passaram a trabalhar com sis-


temas integrados para responder a uma pergunta científica, as
chamadas “ômicas” 8, podemos dizer que muito evoluiu. Hoje o avanço
científico feito através das “ômicas” está consolidado. Ele foi funda-

7
Veras, Patrícia: Ce que la Science ne peut pas lire – Lacan Quotidien 253
8
Genômica, Transcriptômica, Proteômica e Metabolômica
208 • A psicanálise às voltas com a peste

mental para que a ciência atingisse, em tempo recorde, um saber apli-


cado à urgência da pandemia.
E do que se trata quando os cientistas falam de ômicas? Implica
em uma análise global das respostas de um organismo, ou de células,
frente a algum estímulo, como a respostas ao vírus, ou a uma doença,
sem que haja uma hierarquia dos saberes. Ou seja, o avesso da tentati-
va de politizar um resultado científico. Trata-se do estudo de todas as
proteínas de um organismo, a proteômica; do estudo de todos os ge-
nes, a genômica; da transcrição de todos os genes de uma célula, a
transcriptômica; dos metabolismos de uma célula, a metabolômica; e
por aí vai. Até os anos 2000, isso tudo era feito de modo não integrado.
Acontece que a busca da utilização dessas matérias de modo inte-
grado, em redes chamadas de neurológicas 9, produziram tantas
informações que evacuaram qualquer possibilidade de se encontrar a
verdade. Quem primeiro pensou nessa integração foi o matemático e
economista John Nash, ganhador do prêmio Nobel em 1994, e celebri-
zado no filme “Uma mente brilhante”.
As ômicas e a integração das ômicas geraram uma quantidade de
conhecimento gigantesco, já que todas as células do corpo passaram a
ser analisadas por redes complexas formadas pelos seus elementos,
sejam eles genes, proteínas, metabólitos etc.., que permitem, de modo
cada vez mais preciso, conhecer a resposta de um indivíduo singular
ou de um grupo muito específico de pessoas, e não apenas de todos os
indivíduos de uma mesma espécie. Como consequência, é totalmente
possível a identificação de tratamentos específicos para uma doença
ou agressão de uma pessoa única. Trata-se de uma medicina revoluci-

9
Não no sentido de que se está analisando os neurônios, mas de que são neurológicas por serem
baseadas em estudos de redes muito complexas
Marcelo Veras • 209

onária em que o tratamento será para X e não para Y, um tratamento


um a um, chamada de medicina de precisão 10. Não deixa de haver um
curioso espelhamento com o conceito do sinthoma lacaniano.
Contudo, o fascínio por essa nova medicina acende a batalha das
grandes empresas de biotecnologia para produzirem ferramentas que
possam vir a ser utilizadas na prática clínica. O primeiro desafio é
técnico: análises de integração de dados demandam sistemas compu-
tacionais poderosos e pessoal capacitado para unir estas informações e
traduzi-las para a prática clínica 11. Uma vez vencidas as questões téc-
nicas e que a medicina personalizada seja implantada, surge um novo
desafio: como e quando ela se tornará de acesso universal. Quem real-
mente poderá ter acesso a esses tratamentos? Assim, como é
formidável afirmar que o homem comum pode viajar e dar uma volta à
Terra, mas sem se interrogar sobre quantos dos bilhões de homens
comuns poderão realmente fazer essa viagem 12.
Trazendo essas reflexões para a covid, é possível perceber que o
volume de informações gerado pelas ômicas cria tamanha quantidade
de informações que se torna impossível pensar um tratamento para a
infecção de uma única pessoa. O macrófago de X é diferente do macró-
fago de Y, e por aí vai. Contudo, isso não é uma realidade para a saúde
pública, que mal consegue tratar os 2% da população que foram parar
em uma UTI, por conta da pandemia.

10
Patient-specific multi-omics models and the application in personalized combination therapy.
August John, Bo Qin, Krishna R Kalari, Liewei Wang, Jia Yu. Future Oncol. 2020;16(23):1737-1750. Doi:
10.2217/fon-2020-0119. Epub 2020 May 28.
11
The Need for Multi-Omics Biomarker Signatures in Precision Medicine. Michael Olivier, Reto Asmis,
Gregory A Hawkins, Timothy D Howard, Laura A Cox. Int J Mol Sci. 2019;20(19):4781. doi:
10.3390/ijms20194781
12
Precision Medicine and Global Health: The Good, the Bad, and the Ugly. Alexios-Fotios A. Mentis1,
Kleoniki Pantelidi, Efthimios Dardiotis, Georgios M. Hadjigeorgiou and Efthimia Petinaki. Front. Med.,
2018. https://doi.org/10.3389/fmed.2018.00067
210 • A psicanálise às voltas com a peste

O sonho da medicina de precisão vai, brevemente, se tornar reali-


dade, mas para muito poucos. Seria esse, mesmo, o caminho da
Ciência? A crise da pandemia mostrou essa diferença no acesso aos
serviços e acompanhamento dos mais ricos e dos mais pobres; mas
mostrou, também, os seus limites; mesmo com mais possibilidades de
tratamento, a mortalidade não poupou a divisão de classes. É curioso
que, apenas em aparência, a medicina de precisão se aproxima da Psi-
canálise, já que esta se dedica aos indivíduos um a um; mas a medicina
de precisão nada quer saber sobre os sujeitos reais, apenas de seus
corpos. Lembramos, aqui, o cenário retratado no filme Elysium, de
Neill Blomkamp, que mostra a população mais rica sendo levada para
uma estação orbital onde encontraria a medicina de precisão, enquan-
to todo o restante do planeta, a esmagadora maioria, continua
submetida às doenças ocupacionais e sem possibilidades de ter trata-
mentos coletivos eficazes.

DO LADO DOS PSICANALISTAS

Minhas incursões no mundo das notícias atestam que não esta-


mos preparados para a realidade. Era essa, em tese, a discussão entre
Candide e Pangloss: devemos percorrer as tragédias do mundo ou ficar
regando nosso jardim? Essa evocação não é minha, é de Freud, no seu
Mal-Estar na Civilização. Afinal, o que nos salva é a empatia ou a anes-
tesia?
Tal como em uma série da Netflix, é preciso antecipar alguns
elementos antes do fim do mundo. Corremos o risco, caso contrário,
do esquecimento do mundo que antecipava a pandemia. Um mundo em
Marcelo Veras • 211

que Marieles foram assassinadas, que Queiroz era mais invisível que o
vírus, que a ascensão do totalitarismo mundial era fato consumado.
Digo isso porque, lendo alguns jornalistas que respeito, entendi
que o mundo pós lockout não será um mundo das liberdades, mas tudo
será proibido. Isso, obviamente, deverá marcar uma nova lei do Supe-
reu. Antes, era a interdição vitoriana total do prazer; depois, o mundo
em que tudo era permitido, o importante era gozar. Se falo no passado,
é porque vejo que um novo modo de viver a pulsão se descortina.
Gozar deixa de ser um problema de alienação ou separação do ob-
jeto; talvez seja o declínio de uma função civilizatória marcada pelo
matema a -> $, escrito por Jaques-Alain Miller, como a fórmula para o
mundo capitalista atual.
Em respeito aos milhões afetados, não chamaria esse comentário
de triunfo do vírus. Acho importante, contudo, perceber a força da
natureza, rebelde ao saber científico e à política, como aquilo que nos
escapa. O que temos de melhor na predição, ainda se encontra no saber
científico. Ainda assim, tudo que se aprendeu, tudo do real que se tor-
nou discurso da Ciência, apenas mostrou que estamos muito longe de
pensar no triunfo da Razão sobre o Real. O problema não são as equa-
ções, mas os leitores.
Poderíamos supor Deus, mas, ainda nessa suposição, tampouco
estaríamos abrigados do vírus. Essas considerações não são de todo
minhas, são inspiradas na lição de 16 de janeiro de 2011 do curso de
Jacques-Alain Miller. Miller fala de um Um fundante que engendra a
Ciência: Há Um na natureza. O que mais nos assusta é que esse Real é
sem Lei. De nossa precariedade, nos perdemos tecendo discursos
quando o máximo que conseguiremos são matemas, letras e sinais do
alfabeto científico, desnudados do sentido.
212 • A psicanálise às voltas com a peste

Nessa lição do curso, encontrei apoio para uma reflexão insisten-


te: seria o discurso da Ciência, por acaso, causado pela pulsão de
morte? Será que a Ciência revela que o Real contem, em si, o programa
que destruirá a humanidade? Interrogação de Miller nessa lição. Sei
que muitos podem ler essas linhas como sendo pessimistas. Peço um
pouco de boa vontade, pois pretendo, ao contrário, mostrar como o
Real provoca uma fenda política na relação, precária, dos homens.
O curioso é que o vírus, mero real insensato, tornou-se o objeto a,
disputado como causa e rejeito, daquilo que a humanidade pode ter de
mais mesquinha: o sacrifício do outro em nome de seus ideais. Por
isso, creio ser tão importante afastar o saber científico dos ideais polí-
ticos.
O roteiro do fim do mundo exauriu. Hollywood é um grande Ou-
tro que desenha nossos afetos, definindo a trilha sonora e o modo que
o herói vai agir. Funcionou nos primeiros meses, tínhamos a cartilha
de como bons e maus, cientistas e governantes, profetas e apaixonadas
deveriam se comportar. Um Superego inflável foi rapidamente erigido
pela imprensa, pelos ideólogos, cientistas, economistas, religiosos, e
por aí vai. Nunca, antes, tivemos tantos especialistas em fim de mun-
do.
Acontece que o mundo não acabou. Aos poucos, todos foram se
dando conta de que o grande Outro da pandemia é barrado. O Real é
sem sentido, e por mais que queiramos fazer como os antigos egípcios,
antropomorfizar o insensato vírus, ele resta um enigma. Ou seja, ne-
nhum Outro vai nos salvar. Todos os personagens de “Covid, the
movie”, mostraram ser divididos, defensivos, às vezes fóbicos, diante
do Real.
Marcelo Veras • 213

O que sobra para o sujeito sem Outro? Agarrar-se a uma crença? A


um saber científico? Mas isso seria o avesso da Ciência, que somente
existe se não se apegar a uma verdade. Chega, então, o momento em
que todos, tal como na famosa foto do artista Yves Klein, estão no pon-
to de dar um salto no vazio. Sem Outro, o salto é perigoso. O concerto
de todas as crenças, de um lado ou de outro, é a solução que resta. Não
será a miragem do Outro que nos salvará, mas a capacidade de escuta
do outro. Isso tem um nome que ainda não inventaram melhor, demo-
cracia. O real não tem sentido, nenhum significante mestre é cobertor
suficiente para a pandemia.
O baiano Assis Valente nos deixou um legado, a música “E o mun-
do não se acabou”. Escrita em 1938, ganhou o mundo na voz de
Marlene, Carmem Miranda e Adriana Calcanhoto. Nesses últimos me-
ses, pensei muito nessa música. Como enfrentar um período tão difícil,
sem humor? Saindo aos poucos do silêncio, as cidades recuperam seus
ruídos, barulhos de carros, pessoas e, ah!, não poderia faltar, o barulho
do carro do ovo. Quantas vezes, em pleno momento de live, o autofa-
lante do carro do ovo disputava minha fala com uma promoção de ovos
de granja, sacos de laranja, tudo naquele som estridente. Como já falei
em outros textos, não acredito muito nessa história de novo normal,
prefiro normal aos pouquinhos, retomando a cidade com a mesma
comédia humana de sempre. Assis Valente nos salvou, com humor, de
muitos momentos em que a pandemia poderia levar ao desespero. Para
o próprio, a arte não lhe ajudou a contornar seu suicídio, ingerindo
formicida. Deixou um bilhete para o amigo Ary Barroso, pedindo que
esse pagasse dois meses de aluguel que devia.
Não saio desse período sem algumas perdas pessoais – amigos,
colegas, pessoas que sempre admirei –, assim como escutei muitas
214 • A psicanálise às voltas com a peste

perdas. No silêncio e na paralisia, o Brasil, em pouco tempo, perdeu,


também, muitos de seus ideais. O distanciamento dos corpos esvaziou
um pouco a libido que é tão necessária para resistir aos ventos totali-
tários, que sempre sopram mais fortes em crises globais. A privação
generalizada é uma porta fácil para justificar o injustificável. Enquan-
to parte do Brasil se recolhia, um hálito genocida matou mulheres em
violência doméstica, fez explodir a violência policial, queimou o verde,
e abafou o grito de Ailton Krenak denunciando a morte do seu povo.
Mas o mundo não se acabou, e retomamos as coisas do velho normal;
nós é que estamos diferentes. O sintoma que mais escutei nesse perío-
do de confinamento contrariou minhas expectativas. Pensei na
depressão, na tentativa de suicídio, na angústia ou mesmo no TOC de
lavar tudo muitas vezes. Mas o sintoma que mais ouvi foi a insônia. O
silêncio da noite no Brasil, sabendo que também é silêncio no Japão,
pode ser assustador. Nas madrugadas, o sono foi tenso, os dentistas
nunca constataram tantos casos de bruxismo, de pessoas que trancam
a mandíbula até quebrar os dentes, trancando a boca para dizer ao
outro “Eu existo, ou resisto”. Mas o mundo existe, e retoma aos poucos
seus barulhos.
Os psicanalistas também estão diferentes; não é mais possível
psicanalisar sem ouvir o carro do ovo.
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