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ISSN 2675-2689 (Impresso)

ISSN 2675-3189 (Online)


BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ANO 4, Nº 17
EDIÇÃO ESPECIAL DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
OUTUBRO DE 2021
Ações perante os Tribunais:
Diretoria Executiva
Mariana Madera (coordenadora-chefe), Rafael
Presidente: Vinícius Assumpção Santana, Rafaela Alban, Caio Hita e Ismar
Vice-Presidente: Lucas Carapiá Araújo Nascimento Jr.
Secretário: Thiago Vieira Tecnologia da Informação: Thiago Vieira
Secretária Adjunta: Thaize de Carvalho (coordenador-chefe), Daniela Portugal
Tesoureira: Gabriela Andrade Cursos: Diana Furtado (coordenadora-chefe),
Conselho Consultivo Igor Santos, Fernanda Furtado, Tiago Freitas
Saulo Mattos, Lorena Machado, Renato Schindler, Pesquisa: Ana Luiza Nazário (coordenadora-
Luiz Gabriel Batista Neves, Luciana Monteiro chefe), Bruno Rigon, João Pablo Trabuco, Karla
Conselho de Representação Nacional: Marina Oliver, Luiza Guimarães
Cerqueira, Antônio Vieira, Elmir Duclerc Diálogos: Misael Bispo França (coordenador-
chefe)
Departamentos Grupo de Estudos em Feminismos e Processo
Coordenação Geral de Departametos: Brenno Penal: Charlene Borges (coordenadora-chefe)
Brandão Observatório da Equidade: Charlene Borges,
Publicações: Jonata Wiliam (coordenador-chefe), Ana Luiza Nazário, Saulo Mattos, Firmiane
Lara Teles, Liana Lisboa, Anna Luiza Lemos, Bruno Venâncio
Moura, Mônica Antonieta, Flávia Pinto Assessoria da Diretoria: Daniel Soares

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tem entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias fun-
damentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate científico sobre o
Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, seminários, etc., que tenham o
fenômeno criminal como tema básico.

BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL, ANO 4 - N.º 17,
OUTUBRO/2021, ISSN: 2675-2689 (IMPRESSO)/ ISSN 2675-3189 (ONLINE)

EXPEDIENTE O IBADPP agradece a todos que colaboraram


Conselho editorial para esta edição do boletim, em especial aos
Ana Cláudia Pinho, Elmir Duclerc chargista Suzarte (@artedesuzart) e aos foto-
e Vinícius Romão gráfos João Machado (@joaomachadoart) e
Comitê editorial Roberto Lemos, que, gentilmente, cederam
Jonata Wiliam Sousa da Silva, suas artes para esta publicação.
Lara Teles, Liana Lisboa, Anna
Luiza Lemos, Bruno Moura, Mônica Avenida Tancredo Neves, n. 620, Caminho
Antonieta Magalhães da Silva, das Árvores, CEP 41.820-020, Condominio
Flávia Silva Pinto Mundo Plaza, Torre Empresarial, 5º andar,
Coordenação da edição sala 510, Salvador - Bahia
Bruno Moura, Gabriela Andrade, Periodicidade: Bimestral
Liana Lisboa, Jonata Wiliam Impressão: Impactgraf
Edição
Luara Lemos CONTATO
Projeto Gráfico e Diagramação
Bianca Vatiele Ribeiro http://www.ibadpp.com.br/
Fotografia da Capa
Roberto Lemos publicacoes@ibadpp.com.br
Selo Trincheira Democrática
@ibadpp
Túlio Carapiá (ilustração)
Editorial
Transgredir é preciso
Cena 01: manifestantes vão às ruas com as co- desrespeito à autoridade, a ignorância da pátria”, de
res da bandeira nacional no dia 07 de setembro de modo que não poderia ser solucionado com “a ideia
2021. Em seus cartazes, pedem, dentre outras pautas ingênua de construir abrigos” (TJ/SP, 1971).
antidemocráticas, intervenção militar e fechamento Alguns anos depois, foi promulgado o novo Có-
do Supremo Tribunal Federal. digo de Menores de 1979, consolidando a Doutrina da
Cena 02: alunos de um Colégio Militar em Belo Situação Irregular, que escancarava de vez a quem se
Horizonte, com idades entre 11 e 18 anos, passam mal destinava: crianças e adolescentes pobres, que preci-
após ficarem horas embaixo do sol em treinamento savam estar sob um controle rígido de um conjunto
para receber o atual ministro da Defesa, general Wal- de normas jurídicas (BATISTA, 2003). Neste cenário, a
ter Braga Netto. Segundo notícia veiculada no dia 10 política criminal como solução no âmbito da infância
de setembro também deste ano, “[a]s crianças e ado- passou a ocupar um lugar de destaque na Doutrina da
lescentes teriam sido obrigadas a ficar por mais de 3 Segurança Nacional, a juventude pobre entrou no rol
horas de pé, embaixo de sol forte, e proibidas de ir ao de inimigos internos que deveriam ser neutralizados
banheiro ou beber água” (LONGO, 2021, online). em defesa do Estado e, ao mesmo tempo em que o
Corta. sistema educacional brasileiro foi afetado com a in-
As duas cenas, que parecem ter saído dos li- trodução de elementos curriculares que reforçavam
vros de História do Brasil, ocorreram há poucos dias os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, “a
e são simbólicas de um militarismo que insiste em se educação das crianças e dos adolescentes sob a tute-
firmar nesta terra brasilis, fazendo-nos lembrar que, la do sistema Funabem/Febem passou a ser feita se-
em um país que não viveu sua justiça de transição e gundo os preceitos do militarismo, com ênfase na se-
que jogou os crimes de Estado para debaixo do tapete gurança, na disciplina e na obediência” (SILVA, 2004).
da anistia, há sempre um quê de 1964 a nos rondar. A intensificação do tratamento correcional a
Se, na política, o fantasma de 1964 tem provocado um crianças e adolescentes, carregado de paternalis-
continuum de rupturas nas instituições democráticas mo, foi feita sob o discurso da imposição de padrões
desde o golpe de 2016, especificamente no âmbito da comportamentais aos meninos pobres e consistia,
Infância e Juventude – tema central desta edição es- em última análise, na mera obediência a um mode-
pecial – ele representa um permanente obstáculo à lo de sociedade posto. Hierarquia e disciplina foram
concretização do projeto de sociedade pensado para o pretexto para a institucionalização de milhares de
nossas crianças e adolescentes tanto pela Constitui- crianças e adolescentes em locais que eram verda-
ção de 1988, quanto pelo Estatuto da Criança e do deiros depósito de seres humanos, sem cuidado, pro-
Adolescente. teção ou afeto; pelo contrário, foram, muitas vezes,
É preciso relembrar que, em 01 de dezembro cenário de diversos abusos com quais esses sujeitos
de 1964, em pleno Regime Militar, foi promulgada a precisariam conviver para o resto de suas ainda tão
Lei 4.513, que criou a Fundação Nacional do Bem-Es- curtas vidas.
tar do Menor (FUNABEM). Apesar da aparente neu- Apesar da ruptura paradigmática que se deu
tralidade burocrática, a criação da FUNABEM estava com a Constituição de 1988 e o ECA, ainda não nos
intrinsecamente relacionada à Doutrina da Seguran- desvencilhamos da herança menorista e militarista,
ça Nacional, formulação teórica da Escola Superior cotidianamente presente nas práticas daqueles que
de Guerra que embasava o novo pacto político-so- deveriam assegurar direitos. Nos gabinetes e salas de
cial imposto e que norteou as ações dos governos audiência, adolescentes são julgados ao arrepio de
militares durante todo o período ditatorial. Isso fica garantias processuais sob a justificativa do caráter
evidente nas palavras de seu primeiro presidente, pedagógico e não punitivo das medidas socioeduca-
o médico Mário Altefender, segundo o qual “o pro- tivas. O interrogatório é o primeiro ato processual,
blema do menor, diretamente ligado ao problema da porque não haveria acusação; o direito ao silêncio
família”, tinha como agravantes “a explosão demo- não é assegurado ao adolescente, porque assumir a
gráfica, o problema da saúde, a deficiente alimenta- culpa faz parte da função educativa do processo in-
ção, a migração, o subemprego, a falta de religião, o fracional; o recurso não tem efeito suspensivo, por-
que a imediatidade é princípio da justiça juvenil. O espírito crítico dos jovens, entendendo ser esse um
Estado-juiz-pai tudo pode. O adolescente-represen- imperativo para a formação emancipatória de qual-
tado-filho tudo deve obedecer. quer ser humano. Educação deve presumir liberdade.
De igual modo, o castigo como elemento cen- Portanto, é imperativo combater o discurso falacioso
tral de educação ainda persiste no senso comum e ir- de que é preciso prender para educar. A socioedu-
radia efeitos para a responsabilização infracional, co- cação não pode justificar a privação de liberdade de
locando cinicamente o cárcere como um “bem” que adolescentes pobres, considerando os efeitos nefas-
se faz ao adolescente. Nas unidades socioeducativas, tos do cárcere precoce para a formação de pessoas
a disciplina rígida imposta pelos uniformes, celas, fis- em desenvolvimento. O rigor excessivo com os filhos
calização constante e rotina militarizada assume o da pobreza desconsidera que a transgressão é quase
controle dos corpos juvenis travestida de garantia de sinônimo de adolescência, pois, em verdade, a res-
direitos para a construção de um futuro melhor. Se ponsabilização infracional não é mera correção como
a superlotação sempre foi a justificativa apresenta- anuncia, mas, sim, uma seletividade perversa que tem
da para a não concretização de uma socioeducação por fim apenas o controle da sociedade. Acreditar na
qualificada dentro das unidades, mais de um ano de- juventude é a única opção de resistência diante da
pois da decisão de mérito no Habeas Corpus coletivo opressão que castra vidas e interrompe gerações.
nº 143988/ES, que determinou a ocupação taxativa O sonho de um futuro possível está sendo dis-
dos centros socioeducativos, aquela socioeducação putado no hoje, todos os dias, nas unidades de in-
continua sendo um projeto não realizado. Indaga-se, ternação, nas casas de acolhimento ou do outro lado
portanto, qual a desculpa utilizada para este projeto, do vidro do carro trabalhando nas sinaleiras. Como
que não o apego a uma concepção menorista e mili- afirmava Paulo Freire (1984, p. 96): “[a] educação é um
tarizada de se lidar com a infância e juventude? ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode
Nas ruas, a militarização da vida submete temer o debate. A análise da realidade. Não pode fu-
crianças e adolescentes das periferias desse país a gir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.
baculejos cotidianos com as bençãos do sistema de
justiça. Em pleno século XXI, manifestações identi- Bruno Moura, Gabriela Andrade e Liana Lisboa.
tárias da juventude viram “atitude suspeita” e sofrem
o estigma da criminalização, mantendo-se a mes- REFERÊNCIAS
ma lógica que, em 1890, tornou a capoeira, ao lado
LONGO, Ivan. Colégio Militar de BH faz alunos passarem
da “vadiagem”, crime apenado com até seis meses de
mal com treinamento para receber Braga Netto.
prisão. Assim, o rolezinho que ocupa os espaços proi-
Disponível em <https://revistaforum.com.br/brasil/
bidos das cidades desiguais, as roupas afrontosas, as colegio-militar-de-bh-faz-alunos-passarem-mal-com-
músicas que denunciam opressões, o jeito de falar – treinamento-para-receber-braga-netto/amp/>. Acesso
signos da resistência teimosa de uma juventude que em 14 de out. de 2021.
insiste em ser e existir, apesar de tudo – viram caso TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. TJ/
SP. Anais da X Semana de Estudos sobre Problemas de
de polícia, especialmente quando manifestados por
Menores. São Paulo: TJ, 1971.
corpos negros, como a ladainha que entoava que “a
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e
liberdade verdadeira já corria nos quilombos, onde se juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rena-
lutava a capoeira”1. van, 2003.
Parece necessário, mais do que nunca, evocar SILVA, Roberto da. A construção do direito à convivência
as lições do centenário Paulo Freire. Não há como familiar e comunitária no Brasil. In: DA SILVA, Enid Rocha
Andrade (Coord.). O direito à convivência familiar e comu-
pensar num tratamento para infância e juventude
nitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil.
sem respeitar individualidades. É preciso valorizar o
Brasília: IPEA/CONANDA, 2004.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade, Rio
1
Mestre Toni Vargas. Ladainha: “Dona Isabel que História de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
é Essa”.
SUMÁRIO

5 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO: DA ABSOLUTA INDIFERENÇA À ABSOLUTA PRIORIDADE:


CRIANÇAS PRIVADAS DE LIBERDADE CONTINUAM SENDO PRETAS, POBRES E PERIFÉRICAS

7 ELAS NO FRONT COM MARIANA CHIES-SANTOS, DEBORA PICCIRILLO E MARIA GORETE


MARQUES DE JESUS: TRÁFICO DE DROGAS COMO PIOR FORMA DE TRABALHO INFANTIL E O
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: POSSIBILIDADES DE AVANÇOS

10 LIRISMOS INSURGENTES

10 ATO DE LIBERDADE
11 UM POUCO DA MINHA VIDA, UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA

13 ARTIGOS

13 HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 143.641 E SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: VIOLAÇÕES À DECISÃO E


À DUPLA CAMADA DA ABSOLUTA PRIORIDADE

15 SOBRE A APLICAÇÃO IMEDIATA DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: O


NEOMENORISMO COMO ÓBICE PARA EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS

17 JUSTIÇA JUVENIL PR’ALÉM DO DEBATE DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

19 SENTENCIAMENTO ANTES DA JUNTADA DO RELATÓRIO INTERPROFISSIONAL NO PROCESSO


PENAL JUVENIL

21 O AVANÇO DA PEC 32/2019 E AS LIÇÕES DA HISTÓRIA: SOBRE LUTAR CONTRA PEC’S “NEFANDAS”

23 A TORTURA NOSSA DE CADA DIA

26 ESCUTE ESSE CONSELHO!

28 APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA JUVENIL: UM NOVO E


OBJETIVO DIVERSION NO BRASIL

30 DIREITO PENAL DO INIMIGO E DELINQUÊNCIA JUVENIL: COMO A MÍDIA CONTRIBUI COM A


ESTIGMATIZAÇÃO DO ADOLESCENTE INFRATOR

32 O PODER DISCRICIONÁRIO DO JUIZ DA INFÂNCIA COMO FERRAMENTA PARA EXTINÇÃO DE


MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM CASOS DE TORTURAS CONTRA ADOLESCENTES PRIVADOS DE
LIBERDADEQUEM É O FORAGIDO NO PROCESSO PENAL?

35 MÚLTIPLOS OLHARES COM RUTE FIÚZA

37 MEMORIAL DE 80 ANOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE


PROCESSO PENAL NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL

40 IBADPP REALIZA
Fotografia de João Machado (@joaomachadoart)
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Mayara Silva de Souza

Da absoluta indiferença à absoluta prioridade:


crianças privadas de liberdade continuam
sendo pretas, pobres e periféricas

Em que pese o Estatuto da Criança e do faz importante pontuar que se tratam sobretudo
Adolescente (ECA) considere criança a pes- de princípios constitucionais, e na classificação
soa com até doze anos de idade incompletos, e do professor José Afonso da Silva, seriam “prin-
adolescente aquela entre doze e dezoito anos cípios jurídico-constitucionais”, uma vez que são
(BRASIL, 1990), a Convenção Americana sobre os informadores da ordem jurídica nacional (2012,
Direitos da Criança, promulgada pelo Brasil por p. 93).
meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de Um olhar atento para os sistemas de pro-
1990, estabelece que todo ser humano com me- teção de crianças e adolescentes, mais que ne-
nos de 18 anos de idade é considerado criança; cessário, é urgente para dar luz no campo te-
em igual acepção a Carta Africana dos Direitos órico às violências e violações sistemáticas que
e do Bem-estar da Criança (1990) e a Conven- atravessam as crianças brasileiras, em especial
ção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das àquelas que são negras, pobres, periféricas,
Crianças (1996). Neste sentido, o presente arti- marginalizadas e privadas de liberdade. Estas úl-
go compreende como criança toda pessoa em timas são especialmente atravessadas por múl-
privação de liberdade com menos de 18 anos de tiplas violações ao serem inseridas no sistema
idade. socioeducativo, e, além de não receberem pro-
Atualmente, o Brasil adota em sua Consti- teção integral, ainda são marginalizadas e crimi-
tuição Federal (1988), no caput do artigo 227, a re- nalizadas, diminuindo suas expectativas já quase
gra da absoluta prioridade, determinando ser de inexistentes.
responsabilidade coletiva das famílias, da socie- Importante destacar que, embora o Bra-
dade e do Estadoo cuidado, a proteção, a defesa sil tenha caminhado social e politicamente, ao
e a garantia do melhor interesse para crianças. longo de toda sua história, do modelo da abso-
O parágrafo terceiro do mesmo artigo destaca luta indiferença em 1830 à absoluta priorida-
que a proteção especial também deve abranger de em 1988, passando neste período por mo-
a garantia de pleno e formal conhecimento da mentos de rupturas e avanços significativos,
atribuição de ato infracional, igualdade na rela- as condições dadas às crianças negras, pobres
ção processual e defesa técnica por profissional e periféricas merecem especial destaque, uma
habilitado, e estabelece como princípios a brevi- vez que a história já nos mostrou, e nos mostra
dade, a excepcionalidade e o respeito à condição diariamente, que os corpos negros são os cor-
peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando pos alvos das violações e violências de direitos
da aplicação de qualquer medida privativa da li- desde a mais tenra infância, e, ao alcançar a
berdade. adolescência, quando não suas vidas, seus so-
Comumente vemos a referência aos princí- nhos são interrompidos, e, junto com eles, suas
pios para aplicação e execução das medidas so- possibilidades de transformação. Esse cenário
cioeducativas vinculadas ao ECA e à Lei Federal se torna ainda mais grave quando submetidos ao
nº 12.594 de 2012 (Lei do SINASE). No entanto se sistema socioeducativo.

5
Coluna: Ponto e Contraponto

Coluna
A absoluta prioridade consiste em asse- a naturalização da falta de respeito às crianças
gurar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à em privação de liberdade no Brasil. Pelas mes-
educação, ao lazer, à profissionalização, à cul- mas razões, não é possível afirmar que adoles-
tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à centes no sistema socioeducativo estão a salvo
convivência familiar e comunitária, além de co- de toda forma de negligência, discriminação, ex-
locá-los a salvo de toda forma de negligência, ploração, violência, crueldade e opressão.
discriminação, exploração, violência, crueldade Portanto, a pergunta que pesquisadores do
e opressão. Portanto, é de fácil constatação a campo assertivamente fazem se torna cada vez
limitação da doutrina da proteção integral para mais importante e necessária: são as/os adoles-
as crianças inseridas do sistema socioeducativo, centes que estão em conflito com a lei ou é a lei
uma vez que, segundo o Levantamento Anual do que segue em conflito com as/os adolescentes
Sinase (2017), 36 adolescentes não tiveram o seu negros, pobres e periféricos ao longo de toda a
direito à vida assegurado, vindo a óbito durante história do Brasil?
o atendimento socioeducativo. No que diz res-
peito à alimentação e educação, o Relatório de REFERÊNCIAS
Missão Conjunta no Ceará, Distrito Federal, Pa-
raíba e Pernambuco do Mecanismo Nacional de BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de
Prevenção de Combate à Tortura (2019) aponta 1988.
que estes não são direitos assegurados às ado- _______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.
lescentes em privação de liberdade e destaca 8.069, de 13 de julho de 1990.
que o mesmo cenário já foi identificado em rela- _______. Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca-
ção aos meninos em iguais condições. tivo. Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012.
No que tange ao respeito, de acordo com o _______. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria
artigo 17 do ECA, “o direito ao respeito consiste Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Levan-
na inviolabilidade da integridade física, psíqui- tamento anual SINASE 2017. Brasília: Ministério dos Direi-
ca e moral da criança e do adolescente, abran- tos
gendo a preservação da imagem, da identidade, Humanos, 2019.
da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos RODRIGUES, Ellen. A justiça juvenil e a responsabilidade
espaços e objetos pessoais”. Neste sentido, as penal do adolescente: rupturas, permanências e possibili-
denúncias já encaminhadas à Comissão Intera- dades. 1 ed. Rio de Janeiro, Revan, 2017.
mericana de Direitos Humanos (CIDH), da Orga- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Po-
nização dos Estados Americanos (OEA), revelam sitivo. 35ª edição. Ed. Malheiros Editores, 2012.

MAYARA SILVA DE SOUZA

mestranda em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). Possui graduação


em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), e pós graduação em
Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento de São Paulo e
em Gestão Pública pelo Insper. É pesquisadora no Núcleo de Justiça Racial e
Direito na Faculdade de Direito da FGV São Paulo. Co-coordena o grupo de
trabalho de juventudes da Comissão Política Criminal e Penitenciária da Ordem
dos Advogados do Brasil da Seccional de São Paulo (OAB-SP) e é membra da
Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos
Advogados do Brasil da Seccional de São Paulo (OAB/SP).

6
Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Tráfico de drogas como pior forma de trabalho
infantil e o controle de convencionalidade:
possibilidades de avanços
Por Mariana Chies-Santos, Debora Piccirillo
e Maria Gorete Marques de Jesus

O Brasil ratificou a Convenção nº 182 da Contudo, pesquisas têm demonstrado que


Organização Internacional do Trabalho1, que muitos tribunais ainda restringem seus entendi-
trata da proibição das piores formas de trabalho mentos, enquadrando casos envolvendo crian-
infantil e a ação imediata para sua eliminação. ças e adolescentes no tráfico de drogas em seus
Dentre as piores formas de trabalho infantil está aspectos criminais. É importante, assim, obser-
a utilização de crianças - aqui entendidas como var como os/as juízes/as têm decidido sobre
sujeitos até os 18 anos incompletos - no tráfi- essa temática e em que medida eles/as pode-
co de drogas. Como definido pelo Decreto nº riam acionar a Convenção para aplicar medidas
3.597/2000, em seu art. 3º “a utilização, recruta- protetivas nos casos de adolescentes que estão
mento ou a oferta de crianças para a realização envolvidos no mercado de drogas ilícitas. Ain-
de atividades ilícitas, em particular a produção da não há, infelizmente, muitos trabalhos ob-
e o tráfico de entorpecentes” é uma das piores servando essa questão no campo do Direito2. A
formas de trabalho infantil. Isso significa dizer presente proposta, portanto, visa ao aprofunda-
que, ao ratificar tal tratado, o Estado brasileiro mento da questão do controle de convenciona-
além de incorporar a normativa em seu ordena- lidade como um dispositivo fundamental para a
mento jurídico interno, ressalta a importância aplicação dos tratados internacionais de direitos
de tal violação de direito. humanos, sobretudo aqueles que dizem respeito
Considerando que a Convenção nº 182 da à proteção integral de crianças e adolescentes.
OIT trata de forma ampla e geral sobre direitos
humanos de crianças e adolescentes, é de se es- As decisões dos/as juízes/as e importância do
perar que o Poder Judiciário acione o contro- controle de convencionalidade
le de convencionalidade admitindo o caráter de
supralegalidade da convenção - já discutido em A Resolução nº 182 da OIT é uma ferra-
caso similar pela Suprema Corte brasileira, nos menta jurídica poderosa para garantir direitos
autos do Recurso Extraordinário nº 466.343. Nes- de crianças e adolescentes brasileiros/as, em
se sentido, a Convenção da OIT - juntamente com especial daqueles/as historicamente desprivi-
a Convenção Internacional dos Direitos da Crian- legiados e vulneráveis que estão envolvidos no
ça de 1989 - traz parâmetros para a interrupção mercado de drogas ilícitas. Pesquisas realizadas
da vitimização e criminalização de adolescentes no Brasil apontam que os/as adolescentes que
pela prática de atos infracionais análogos aos cri- realizam tais atividades são em sua maioria de
mes previstos na Lei Federal nº 11.343/06. 2
Ver o trabalho da magistrada Karla Aveline Oliveira (2020),
1
Isso ocorreu por meio dos Decretos nº 3.597/2000 e que investiga a questão do tráfico de drogas como pior
nº 6.481/2008, analisados no contexto do Decreto nº forma de trabalho infantil, ressaltando o racismo que orienta
10.088/2019. muitas das decisões dos/as magistrados/as.

7
Coluna: Elas no front

famílias vulneráveis, vivem em bairros marcados vez que nossa carta política assegura local de
por altos índices de violência urbana e policial, prestígio aos tratados internacionais de direitos
em um continuum de exploração da sua mão de humanos5 (Chaves e Sousa, 2016).
obra em trabalhos informais pouco remunera- Ao abordar os casos desses/as adolescen-
dos e de alto risco (Dowdney, 2003; Fefferman, tes pelo prisma do trabalho infantil em uma de
2008; Pereira Júnior e Beretta, 2020). O trabalho suas piores formas, o sistema de justiça dará os
no mercado ilícito é, portanto, o extremo desse primeiros passos em direção a uma compreensão
continuum de exploração e risco, com jornadas mais completa do envolvimento de adolescentes
de trabalho de mais de 12 horas, plantões, além no mercado de drogas ilícitas, e permitindo en-
de contato com substâncias tóxicas que pre- contrar soluções, pela via da aprendizagem, que
judicam o seu desenvolvimento, e a exposição darão frutos a longo prazo, ao invés da solução
constante à violência armada, seja entre grupos pela via da internação, que não altera as condi-
criminosos ou entre facções e forças policiais ções sociais do/a adolescente e o/a coloca em
(Galdeano e Almeida, 2018). um mundo de vulnerabilidades durante e após a
No entanto, juízes/as têm decidido de for- execução da medida socioeducativa.
ma diversa ao estabelecido pela Convenção nº 182
da OIT. De acordo com estudos3 realizados a par-
5
Embora a Convenção nº 182 da OIT não esteja coberta pelo
art. 5º, §3º da Constituição de 1988, já que ratificado antes da
tir de jurisprudência que trata da justiça juvenil
Emenda Constitucional nº 45/2004, houve decisão do STF
e, especificamente, sobre julgamento de adoles- reconhecendo o caráter de supralegalidade dos tratados de
centes em casos análogos aos crimes previstos direitos humanos ratificados anteriormente à EC 45/2004,
na Lei Federal nº 11.343/2006, a medida de inter- notadamente no julgamento do RE nº 466.343.
nação ainda é uma das mais aplicadas pelos/as
magistrados/as4. Os principais argumentos uti- REFERÊNCIAS
lizados pelos/as magistrados/as são a gravidade
do tráfico de drogas e concepções menoristas e CHAVES, D. G.; SOUZA, M. T. C. O Controle de Convenciona-
tutelares do tipo de encaminhamento a ser dado lidade e a autoanálise do poder judiciário brasileiro. Revista
a esses jovens (Feitosa e Souza, 2018). da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 1, jan./
O controle de convencionalidade, por- abr. 2016, p. 87 – 113.
tanto, aparece como ferramenta necessária e CORCIOLI FILHO, R. L. Voluntarismo judicial a internação de
urgente que está à disposição dos/as magis- adolescentes por tráfico de drogas no TJSP. Revista brasilei-
trados/as brasileiros/as. Isso porque, os/as ra de ciências criminais, n. 142, p. 341-372, 2018.
chama à responsabilidade na construção de DOWDNEY, L. Crianças do tráfico: um estudo de caso de
uma sociedade que veja adolescentes a quem crianças em violência armada organizada no Rio de Janei-
se atribui a prática de atos infracionais aná- ro. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003.
logos aos crimes previstos da Lei Federal nº FEFFERMANN, M. O cotidiano dos jovens trabalhadores do
11.343/06 como sujeitos de direitos, a quem se tráfico. Segurança Urbana e Juventude, v. 1, n. 2, 2008.
destina proteção e prioridade absoluta. Enten- FEITOSA, G. R. P.; SOUZA, A. P. de. Justiça juvenil, guerra
dido como a compatibilização entre o ordena- às drogas e direitos humanos: a efetividade do princípio
mento jurídico interno de um país e os tratados da excepcionalidade da medida socioeducativa de inter-
de direitos humanos ratificados por este mesmo nação. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 19, n.2,
país, o controle de convencionalidade, no limite, p.449–474, 2018.
é o respeito à própria Constituição de 1988, uma GALDEANO, A. P.; ALMEIDA, R. (Coord.) Tráfico de dro-
gas entre as piores formas de trabalho infantil: merca-
3
Ver Feitosa e Souza (2018), Corcioli Filho (2018), Neiva
dos, famílias e rede de proteção social. São Paulo: CE-
(2019) e Rodrigues e Fraga (2020).
4
É importante frisar que isso acontece mesmo com a BRAP, 2018.
Súmula nº 492# do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que NEIVA, S. A. A medida de internação e o tráfico de drogas
estabelece que tal conduta não apresenta violência ou praticado por menores no DF: análise da jurisprudência do
grave ameaça à pessoa, não sendo possível a aplicação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT.
art. 122, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 2019. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Ci-
nesses casos. Súmula 492, na íntegra: “[...] ato infracional
ências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília,
análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz
obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa Brasília, 2019.
de internação do adolescenteTERCEIRA SEÇÃO, julgado OLIVEIRA, K. A. Racismo institucional, trabalho infantil no
em 08/08/2012, DJe 13/08/2012. narcotráfico e a magistratura sul-rio-grandense: branqui-

8
Coluna: Elas no front

tude brasileira em silêncio [livro eletrônico] Porto Alegre: In: Processos de subjetivação no serviço social 4 [recurso
Ed. da Autora, 2020. eletrônico] / Organizadora Thaislayne Nunes de Oliveira.–
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Conven- Ponta Grossa, PR: Atena, 2020.
ção sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil RODRIGUES, L. B.; FRAGA, P. C. P. O julgamento de adoles-
e ação imediata para sua eliminação. 1º de junho de 1999. centes varejistas do tráfico de drogas no Brasil: uma análise
Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/ de processos judiciais. Revista Latinoamericana de Ciencias
WCMS_236696/lang--pt/index.htm>. Sociales, Niñez y Juventud, v.18, n.2, p. 1-21, 2020.
PEREIRA JUNIOR, L. A.; BERETTA, R. C. S. O trabalho infantil
e o tráfico de drogas: uma relação de violação de direitos.

DEBORA PICCIRILLO

Bacharela em Ciências Sociais, aluna do Departamento de Pós-Graduação em


Sociologia da USP, nível mestrado, e pesquisadora do Núcleo de Estudos da
Violência (NEV-USP).

MARIA GORETE MARQUES DE JESUS

Doutora e Mestra em Sociologia pela USP, Bacharela e Licenciada em Ciências


Sociais pela USP, pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de
Sociologia da USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP
(NEV-USP).

MARIANA CHIES-SANTOS

Doutora em Sociologia pela UFRGS e Mestra em Ciências Criminais pela


PUCRS. É pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência
(NEV-USP) e Coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude
do IBCCRIM.

9
Ato de liberdade
Cada um traz consigo O quanto ainda sonham E até mesmo o respeito
Traços de um passado Na mente, lembranças E por mais que pareça
Alguns são marcados por perdas E memórias que jamais improvável
Que lhes fizeram revoltados Vão esquecer Privados em muitos casos
No percurso violência, ódio, rancor A saudade aperta Conhecem o afeto e o apreço
Raridade é confiar em alguém E as lágrimas já não podem No combate ao racismo
Ou demonstrar afeto, amor conter E sistema falido
Muitos não tiveram infância Nesse mar de tristeza Eu estou munido de arte
Amadureceram desde cedo As vezes a única saída Poesia é instrumento
Sem estrutura familiar Se encontra numa pequena ilha De transformação
E traumatizados por inteiro Nada traz mais felicidade E ato de liberdade.
É difícil manter o equilíbrio Do que receber depois de um
E o otimismo nessas condições tempo ______
Ou até mesmo falar em razão A visita da família Texto produzido e inspirado
Se nem puderam expressar suas O abraço de um pai nas inúmeras histórias dos
emoções O amor de uma mãe jovens, que acompanhei
De onde vieram desconhecem O sorriso de uma filha durante as oficinas de escrita
políticas públicas Faz desaparecer naquele criativa de poesia, que
A única mão estendida foi do crime instante ministrei nas unidades de
Não livro de auto-ajuda A frustração e a solidão atendimento socioeducativas
E a sociedade julga Da medida socioeducativa da FUNDAC - BA.
Cumprindo bem o seu papel Sentenciados eles
É mais fácil encarcerar compreendem
Do que prevenir pra que esse jovem O sentido real de causa e
Não se torne um réu efeito
As paredes em volta Quando percebem
Abrigam corpos e histórias Que só depois de privados
Que talvez nunca venham à tona São garantidos alguns direitos
Mas por mais que estejam privados O acesso à saúde, cultura,
Não deixam de dizer ao mundo educação escola

Evanilson Alves
Poeta, escritor, e educador social

10
Lirismos Insurgentes

pouco da minha história


Um pouco da minha vida, um

ão Vam os lá N ess a Via je qu e até hoje eu fico me Perguntando:


Ent e força
paz com o foi qu e eu fiz tud o isso da onde eu tive coragem
- Ra já fiz?
fa ze r e pas sar por tud o qu e eu já passei e fazer tudo que eu
pra
pr a
a Resposta ta..
até então não tenho Minha Própri ee-
a esc olh a tem su as Co nse qu ênc ias, na Minha vida não foi dif
Como tod
Ret orn o não Fa lha e qu and o é o Retorno se você não for fixo
rente: a Lei do do as consequências dos seus própri
os
Fo rte , ac ab a não Su por tan
e de mente
atos. e.
M inh a vid a Tot alm ent e Tra nquila, levava tudo Normalment
Eu Tin ha
qu alq uer um Ou tro , ma s com uma Diferença: a Responsabi-
Um jovem Como e aju dar a mãe a alimentar os
o de tra ba lha r, de ter qu
lidade desde de ced
Irmãos e etc. s ou tro s jov em que eu Observava, porque
Isso me dif ere nci av a de alg un e
me nte um jov em tin ha qu e est ud ar se formar, ir pra faculdade
na Minha
se su ste nta r, e não Tra ba lha r pra sustentar a Família. Não
trabalhar pra alg uém vai morrer por fazer isso,
e iss o é err ad o e Qu e va i
estou falando qu
orri, tô aqui até hoje.
pelo Contrário: eu fiz e não M ias e as
toda escolha tem suas Consequênc
Como eu havia falado no início:
Minha foi um Pouco Salgada. aí eu não
eu comecei a trabalhar e desde
Eu tinha apenas 13 anos quando
soube que era ter infância. ora do e entre outras Coisas que
um ani ver sár io com em
Tipo: eu nunca tive i Cr ian do Revolta, e a Revolta Cria
nd o na M ent e e va
só vai se acumula
im.
Ódio, e o ódio cria Rancor, enf ar em tudo no Trabalho, na
e eu fa zi a com ece i a des and
De tudo isso qu e oque
tav a me ca nsa nd o da qu ilo : Trabalhar de segunda a sábado
escola
va ao me nos pra com pra r um
u ma a Roupa, então tudo isso foi se
ganhar não da
Tornando Insuportável pra mim. quele
ei em um pon to da M inh a vid a que não dava mais pra viver da
Chegu
tav a bem e tip o fa zi a o qu e fazia e não era o Suficiente.
eitoo.. Eu não
jjeit tra balho e um estudo tudo que eu
N ão tin ha nad a, ape nas um
Nunca era.
tinha, mas sei lá, como eu ffa leii tava já se cansando de tudo.
ale
ma is Tra ba lha r peg uei a Ú ltim a parcela do mês entreguei a
Decidi não ir dia nte as coisa foi ficando um
lho e não fu i ma is. Da í em
farda do traba tin uei a estudar, mas também não
s em alg un s sen tid o: con
pouco mais fácei
exausto de tudo.
Queria levar Mais a sério tava de vid a. De uma Vida Normal de paz
qu e eu dec idi r M ud ar
Então foi aí e. Comecei a me envolver, e foi aí
de Co rre ria e mu ita ati vid ad
pra uma Vida
is fácies em alguns Sentidos.
que as coisas foram ficando ma ar com nada fazia e acontecia
o qu e eu qu eri a sem se imp ort
Eu vivia do jeit
11
Lirismos Insurgentes

sem ter m
edo de N
comecei a ada. Tav
fazer co a na Me
passando isas horr lhor fase
. íveis e ca , vamos D
Fiz 13 an da Vez ia izer assi
o s P i o r m, então
coisa ia R á pido; se p a n do e os te eu
fluindo. assaram mpos fora
me enrola De dois anos m
ndo Mai acordo com que e eu já ta
va c
Grande C s e eu
onsequênc Mais e as cois ia fazendo e plan om 15 anos e as
seria ta i a e
nto assim a que nem eu me s só ia se tornand jando e eu só ia
Logo log . smo imag o na verd
o e u fiz 16 an i n a v a q u ade uma
nem de N o e as con
i s e tava s equências
mais Ma nguém. Imagino Causando
. Eu n
ld fic
o Melho ade, mais Ganân ando Mais velh ão Tinha Medo
r ali, pr de nada
nada pra a mim ta cia, E por fim eu o, e com Mais
va Bom tava Na Am
mim
Mas o i , tudo oque eu q : eu tinha o que pior. Pra bição,
mim era
ser huma nimigo é Traiço ueria não
f a l tava
eu queria
, n ã o faltava
no eir
que eu qu se acha Insatisf o, e sempre tá la nada.
er ei nç
cena, ma ia, não faltava n to de tudo. Foi aí ando, fazendo co
ss ad onde eu J m que o
umas Sit eu fui e fiz nã a, nem eu mesmo á t a v a co
uações d o imagin s
Então eu essa a ne ei que ia ei o Por que eu f m tudo
gatividad iz aquela
dade não
fui fiz,
Venci, só e não é M dar errado, até p
uito Bem or que em
ainda”. E durava muito até alegria...
G a s t ar o conq V i n d a .
por fim e p
u fui e for esse ditado: “ ui
passou u
ns dias A iz o que o que vem stado com Facili-
Tá tranqu í Imagin tinha que fácil vai
i l o e i c o m i go mesmo s e r f e i t o . fiquei Cmais fácil
dias eu F não vai d :
u á em n almo, não
complicad i percebendo que a ada não e fiquei
a pra mi s coisa i
havia pa m, Mas a acabar tranquilo. Depois d
s T á fazendo e alguns
belo dia sado alguns Dias mbem não
i m a ginava ia f i c a n d o
me acord
pela Ma
nhã, eu a e Tal então não ser preso um pouco
and cabo dei mu Por que
Pronto: T o sem ter direto a de sair, recebi a ita Importância, já
rês Viatu n a d a. P o l í cia na M e n um
Rendido D ra Na M inha Cas
dia em d e n t ro de i n h a port a,
iante já s casa não tinha m a e eu ia fazer
daí em di e ai Mais o
ante tudo iniciava mais um s como eu fazer que?
guida eu Mudou: Ciclo da nada, ent
fui conde F Minha V ão
Medida nado pra iquei alguns dias ida. Fui daquele
So des na Delega p
tir em alg cioeducativa e fi cer pra Salvador cia, e log reso, e
umas Coi q , oe
Esse foi sas. A pr uei 2 anos nessa B onde eu vim Cump m se-
um Breve ivaç rinc rir u
texto de u ão de liberdade d adeira e deu pra R ma
m pedaço eix ef
da Minh a qualquer um D le-
a história oente.

Observaç
ão: O tex
dade e co to foi ma
ntando co ntido na
m pequena forma env
s alteraçõ iada, pre
zando pela
es autoriz autentici-
adas pelo
autor.
12
Artigos

HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 143.641 E SISTEMA SOCIOEDUCATIVO:


VIOLAÇÕES À DECISÃO E À DUPLA CAMADA DA ABSOLUTA PRIORIDADE
Por Débora S. Rocha Pontes, Ana Claudia Cifali e Pedro Hartung

Por força da Constituição Federal de 1988, dignidade, à liberdade e à convivência familiar e


crianças e adolescentes devem ter assegurados comunitária, entre outros; bem como os direi-
seus direitos fundamentais e a prevalência de tos da mulher gestante em privação de liberda-
eu seu melhor interesse com absoluta prioridade, de (art. 8º, §10º, ECA). Logo, o HC é um exemplo
am devendo ser respeitados e efetivados sempre contundente de que, na maioria das vezes, para
em primeiro lugar, em conformidade com o ar- proteger os direitos das crianças, é necessário
as tigo 4º do ECA. proteger seus cuidadores, sobretudo no con-
Sob essa égide constitucional de eficácia texto brasileiro de mães solo, harmonizando os
a irradiante e em observância à legislação ordi- direitos das mulheres aos direitos das crianças.
a nária, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, Isso, pois, a separação entre gestantes ou
s pela relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, mães e suas crianças de até 12 anos de idade leva
em histórica decisão do HC nº 143.641/SP, ga- ao desenvolvimento de crianças sem a funda-
rantiu a milhares de mulheres gestantes, lactan- mental presença materna ou, ainda, em outro
tes ou com filhos menores de 12 anos ou com sentido, à sua institucionalização conjunta em
deficiência, a substituição do cumprimento da estabelecimentos gravemente impróprios para
prisão provisória por prisão domiciliar (STF, HC sua permanência, violando seus direitos consti-
143641/SP, j. 20/02/2018). tucionalmente protegidos.
Nesse momento, a pedido do Instituto Ala- Nesse sentido, severos impactos são cau-
na, em sua participação como amicus curiae, sados à saúde de crianças e adolescentes pelo
a decisão foi estendida para adolescentes em estresse tóxico advindo da institucionalização
cumprimento de medida socioeducativa de in- ou da separação entre mãe e criança, envolven-
ternação provisória nas mesmas condições. A do sofrimento grave, frequente ou prolongado.
fim de operacionalizar a decisão, há também a Isso pode impactar o cérebro e aumentar o risco
Recomendação 62/2020 do CNJ, atualizada pela de doenças físicas e mentais (HARVARD UNI-
Recomendação 91/2021. VERSITY, 2014, p. 2), de prejuízo especialmente
Tais casos gozam de dupla camada da ab- gravoso na primeira infância (SANTOS; PORTO;
soluta prioridade: os direitos fundamentais de LERNER, 2015).
ambos, da adolescente mãe ou gestante e da Ademais, o Relatório do Mecanismo Nacio-
criança, devem ser efetivados em primeiro lugar. nal de Prevenção e Combate à Tortura expõe a
Assim, o STF fez valer a regra da prioridade ab- insalubridade de muitas instituições estaduais
soluta, insculpida no art. 227 da CF, no Estatuto de execução de medidas socioeducativas (BRA-
da Criança e do Adolescente, no Marco Legal da SIL, 2018). A manutenção da internação provisó-
Primeira Infância, que alterou o art. 318 do CPP, ria de adolescentes é violação ainda mais grave à
na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com suas vidas e das crianças, sobretudo dada a pan-
Deficiência e na Lei Brasileira de Inclusão. demia de Covid-19.
Destacado esse recorte, o HC revela uma Portanto, não há dúvidas acerca da impor-
interseção complexa de direitos fundamentais, tância da decisão do STF no HC nº 143.641/SP.
que visou assegurar os direitos tanto da adoles- Contudo, a despeito das previsões legais e da re-
cente privada de liberdade quanto das crianças. cente decisão, seguem ocorrendo no sistema so-
Pode-se mencionar o direito à vida, à saúde, à cioeducativo violações massivas. É o que revela
Para ler ouvindo: o Relatório de Pesquisa “Avaliação da Dimensão
Entidades do SINASE”: em 2019, a possibilidade de
permanência da adolescente mãe com seu filho re-
Invisível
cém-nascido tinha média nacional 0,91 de 3 pon-
BaianaSystem
tos possíveis, e 1,50 de 2 pontos na existência de
condições para o atendimento pré-natal de ado-
lescentes. Como resultado, o Brasil pontuou 2,41
de 5, com a nota mais baixa sendo a da região sul:

13
Artigos

1,50 de 5 (UFRGS, 2020, p. 42-43). Além disso, in- BRASIL. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
tensificam as vulnerabilidades de adolescentes em Tortura (MNPCT). Relatório Anual 2017. Brasília, DF, 2018.
privação de liberdade as desigualdades de sexo, HARVARD UNIVERSITY. Excessive Stress Disrupts the
raça, classe, etc., como em eventual gestação. Architecture of the Developing Brain. Cambridge: Harvard
Em face disso, preocupado com a efetivação University, 2014. Disponível em <http://developingchild.
da decisão do HC, o Instituto Alana, organização harvard.edu/wp-content/uploads/2005/05/Stress_
da sociedade civil que tem como missão honrar a Disrupts_Architecture_Developing_Brain->. Acesso em
criança, vem monitorando sistematicamente sua 25 ago. 2021, 16:35.
implementação nas unidades socioeducativas de SANTOS, DANIEL D.; PORTO, JULIANA A.; LERNER, RO-
todo o país por meio da Lei de Acesso à Informa- GÉRIO (Coord. Comitê Científico do Núcleo Ciência pela
ção. Os dados coletados, somados à pandemia de Infância). O Impacto do Desenvolvimento na Primeira In-
Covid-19, alertam para a urgência de garantir o fância sobre a Aprendizagem. São Paulo: Fundação Maria
direito de adolescentes mães e gestantes e crian- Cecília Souto Vidigal, 2015.
ças privadas de liberdade, bem como advertem UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Cen-
para o flagrante descumprimento da decisão do tro de Estudos Internacionais Sobre Governo (CEGOV). Re-
STF no HC e seus fundamentos. latório de Pesquisa: Avaliação da Dimensão Entidades do
Por fim, não há dúvidas da necessidade de SINASE. Porto Alegre: CEGOV, 2020.
avançar nos trabalhos realizados pela Comis-
são Permanente Interinstitucional criada pelo DÉBORA STEFANI
CNJ para fiscalizar e monitorar continuamente ROCHA PONTES
a aplicação da lei e da decisão no sistema socio-
educativo para sua efetivação igualitária, sem Graduanda na Faculdade de
que haja uma aplicação discriminada por força Direito da Universidade de
de marcadores sociais da diferença. São Paulo (USP) e estagiária
Ainda, são necessárias pesquisas e parâ- do Instituto Alana.
metros dedicados à aplicação ao sistema socio-
educativo e suas particularidades, considerando ANA CLAUDIA CIFALI
a dupla prioridade absoluta dos casos.
Com isso, será possível um avanço no Advogada no Instituto Ala-
sonho de ver concretizado este projeto de so- na. Mestre em Cultura de
ciedade que escolheu priorizar crianças e ado- Paz, Conflitos, Educação e
lescentes, e que a música “Invisível” de Baia- Direitos Humanos pela Uni-
naSystem em seus versos “você já passou por versidad de Granada (UGR),
mim/e nem olhou pra mim/acha que eu não Mestre e Doutora em Ciências Criminais pela
chamo atenção (acha)/engana o seu coração”, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
não seja mais uma denúncia, mas o retrato de do Sul (PUCRS).
um passado distante no qual direitos de crian-
ças e adolescentes foram invisibilizados e vio- PEDRO AFFONSO
lados pelo poder público. D. HARTUNG

REFERÊNCIAS Advogado, Diretor de Políti-


cas e Direitos da Criança no
BAIANASYSTEM. Invisível. Salvador: Máquina de Louco, Instituto Alana, Doutor em
2017. Suporte (3min15seg). Direito do Estado pela USP
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus nº - Universidade de São Paulo e pesquisador em
143641/SP. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, Bra- Direitos da Criança.
sília, DF, publicado em 09 out. 2018.

14
Artigos

SOBRE A APLICAÇÃO IMEDIATA DA MEDIDA


SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: O NEOMENORISMO
COMO ÓBICE PARA EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS
Por Arthur Lira e Hugo Leonardo

O complexo normativo que rege os direi- liberdade julgamento do recurso de apelação,


tos da criança e do adolescente no Brasil possui tendo em vista que o paciente foi sentenciado à
nitidamente caráter progressista e emancipató- medida socioeducativa de internação pela prá-
rio. Isso ocorre em virtude da constitucionali- tica de ato infracional análogo aos crimes pre-
zação destes direitos (SPOZATO, 2013, p. 47) e vistos no art. 157, §2º, I do Código Penal e art.
do surgimento do Estatuto da Criança e do Ado- 16, IV, da Lei 10.826/03. Todavia, em nenhum
lescente, com o objetivo de introduzir a doutri- momento o adolescente foi apreendido em fla-
na da proteção integral e romper com as velhas grante, tampouco teve a internação provisória
características da tutela menorista presente no decretada pela autoridade judiciária compe-
Código de Menores de 1979. tente. Logo, em apertada síntese, o paciente
Entretanto, existem no ordenamento su- pleiteava que a aplicação imediata da medida
pracitado margens para discricionariedade, ten- socioeducativa de internação estava em desa-
do em vista que alguns dos dispositivos normati- cordo com o entendimento da 5ª Turma do STJ,
vos são abertos, o que possibilita interpretações no julgamento do Habeas Corpus 219.263 – PA,
diversas. Considerando esse fato, Flora Sartorelli que partilhava do entendimento da possibili-
e Hamilton Gonçalves perceberam que, por ve- dade de execução da medida automática após
zes, essa abertura hermenêutica é utilizada com sentença condenatória, desde que confirman-
o intuito de flexibilizar orientações legais sob a do a internação provisória concedida anterior-
ótica punitiva e repressora, seguindo as antigas mente.
concepções menoristas (2017, p. 262). A Ministra Maria Thereza de Assis Moura,
Ou seja, apesar do esforço do legislador em relatora do HC 348.360-SP, em seu voto, defen-
romper com a concepção menorista e de valorar deu a impossibilidade, no caso em análise, da
a proteção integral, o sistema de justiça juve- aplicação imediata da medida socioeducativa de
nil ainda enfrenta dificuldades de adaptação ao internação, tendo em vista que esta seria restri-
novo modelo. O não tratamento do adolescente ta aos casos em que o adolescente tivesse sido
como sujeito de direitos é uma das caracterís- internado provisoriamente, durante o procedi-
ticas deste movimento. Assim, percebe-se que mento de apuração de ato infracional. O voto da
tais características “ainda são uma permanência relatora foi acompanhado pelos Ministros Jorge
histórica da Justiça Juvenil Brasileira, e consis- Mussi, Reynaldo Soares da Fonseca e Felix Fis-
tem no maior óbice à efetivação emancipatória cher. Merecem destaque alguns argumentos
da doutrina de proteção integral” (SOUZA; FER- suscitados pelo Min, Reynaldo Soares da Fon-
RAZ, 2017, p. 262), objetivo maior do Estatuto da seca, ao observar que a decisão de aplicar ime-
Criança e do Adolescente. diatamente a medida socioeducativa extrapola o
Cumpre relacionar esse problema referido entendimento firmado pelo Supremo Tribunal
com o debate acerca do julgamento do Habeas Federal no HC 126. 292/ SP, que possibilitou a
Corpus 348.360-SP, realizado pelo Superior Tri- execução provisória da pena tão somente após
bunal de Justiça no ano de 2016, que, por cinco acórdão condenatório em julgamento de recur-
votos a quatro pela denegação da ordem, pas- so de apelação1. Sendo assim, a corte estava ofe-
sou a permitir a execução imediata de medida recendo tratamento mais gravoso para o ado-
socioeducativa de internação, mesmo diante da lescente que aquele conferido pelo Sistema de
interposição do recurso de apelação. Justiça Criminal comum.
A decisão supracitada tornou-se um pre- As divergências em relação aos posiciona-
cedente importante, no campo da execução mentos supracitados partiram do voto do Mi-
de medidas socioeducativas. O remédio cons- 1
O entendimento foi alterado após o Supremo Tribunal
titucional levado para julgamento no Superior Federal reconhecer a constitucionalidade do art. 283 do
Tribunal de Justiça buscava, liminarmente e no Código de Processo Penal, através do julgamento das
mérito, a concessão do direito de aguardar em Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54.

15
Artigos

nistro Rogerio Schietti Cruz, que fez uma alerta dimento socioeducativo – considerando que a
para os perigos em condicionar a execução da referida decisão possibilita a execução de medi-
medida socioeducativa ao internamento provi- da socioeducativa sem culpa formada.
sório, visto que poderia haver uma execução an-
tecipada da punição e uma predisposição da au- REFERÊNCIAS
toridade judiciária em utilizar a medida cautelar
antes do processo. O segundo ponto apresenta- BABINI, Erica Machado; SANTOS, Hugo Leonardo Rodri-
do pelo ministro foi que, em virtude do objetivo gues; SERRA, Marco Alexandre de Souza Serra. Permanên-
da ressocialização e da natureza pedagógica da cias históricas na criminalização da infância: observações
medida, esta deve ser executada de imediato. sobre as consequências do neomenorismo no sistema de
Inclusive, utilizou o argumento de que se deve justiça juvenil Brasileiro. Direito público, v. 16. Porto Alegre:
proteger o adolescente, como se a privação da Síntese, 2019.
liberdade fosse algo benéfico para qualquer in- SOUZA, Flora Sartorelli Venâncio; FERRAZ, Hamilton Gon-
divíduo. Ademais, com essa opinião, defendeu çalves. A responsabilidade do judiciário brasileiro no en-
o início do cumprimento da medida sem culpa carceramento em massa juvenil: um estudo de caso do HC
formada. 346.380- SP, STJ. Revista brasileira de ciências criminais,
O precedente firmado pelo Superior Tri- v. 129. São Paulo: Revista dos tribunais, 2017.
bunal de Justiça, por meio do julgamento do SPOZATO, Karyna Batista. Direito penal de adolescentes:
Habeas Corpus comentado, é um óbice para a elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva,
efetivação da proteção integral do adolescente, 2013.
tendo em vista que a decisão retrata a mitiga-
ção da garantia fundamental da presunção de ARTHUR DE
inocência no Sistema de Justiça Juvenil. Além SOUSA LIRA
disso, rompe com a perspectiva da proteção in-
tegral, estabelecida no Estatuto da Criança e do Advogado. Pós-graduando
Adolescente. em Direito Processual Penal
Ademais, o que fica bastante claro com o pelo Círculo de Estudos pela
julgamento é a indubitável permanência de prá- Internet (CEI). Graduado
ticas menoristas na Justiça Juvenil brasileira em direito pelo Centro Universitário Tiradentes -
(BABINI; SANTOS; SERRA, 2019. p.18). Nesse sen- Unit/AL.
tido, observa-se a presença da ideologia meno-
rista, como metarregra ainda vigente no sistema HUGO LEONARDO
de justiça juvenil (SOUZA; FERRAZ, 2017, p.276), RODRIGUES SANTOS
consubstanciada em um conjunto de interpre-
tações judiciais correntes, as quais desvirtuam Professor efetivo da
o ideário da proteção integral, por aplicarem as Universidade Federal de
mesmas diretrizes políticas da tutela menoris- Alagoas. Doutor e mestre
ta. Desse modo, permite-se (legitima-se) uma em direito pela Universidade
violação da presunção de inocência – garantia Federal de Pernambuco.
fundamental e princípio reitor de um processo
penal democrático, aplicável também no proce-

16
Artigos

JUSTIÇA JUVENIL PR’ALÉM DO DEBATE


DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Por Flora Sartorelli Venâncio de Souza

O debate público sobre o modelo brasileiro O que vemos nas práticas de muitos tri-
de responsabilização de adolescentes e jovens bunais é, de fato, uma preponderância de uso
adultos é inegavelmente centrado nas inúmeras de critérios tipicamente penais para respon-
propostas de redução da maioridade penal e au- sabilizar adolescentes que cometam atos in-
mento do tempo de internação. fracionais. Assim, ganha relevo fatores como
Sempre que este tema volta à tona, nor- a gravidade do ato e a reincidência, e perdem
malmente em torno de pautas legislativas, importância o princípio da proteção integral,
grande parte da advocacia criminal, entre vá- da condição peculiar de desenvolvimento, ou
rios outros atores, se mobiliza para dizer não mesmo as condições socioeconômicas e cultu-
às propostas, reafirmando a necessidade de rais de cada um. Os princípios da proporciona-
manutenção da justiça juvenil nos moldes do lidade e da culpabilidade, que deveriam atuar
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de forma limitadora do poder punitivo, são usa-
ou seja, como justiça especializada dotada de dos na justiça juvenil para justificar a punição/
racionalidade própria. responsabilização.
Apesar da louvável defesa do sistema ins- Diante disso, é de se perguntar: qual é, de
tituído pelo ECA, fato é que poucos atores do fato, a diferença da justiça juvenil em relação à
sistema de justiça criminal sabem dizer (i) como adulta, levando em consideração suas práticas?
a justiça juvenil se estrutura, incluindo os seus Se em um primeiro olhar, não há tanta diferen-
procedimentos; (ii) como é a sua dinâmica na ça assim, por que devemos continuar defen-
prática, seja pelo funcionamento das varas espe- dendo a existência de um sistema especializa-
cializadas, seja pelo funcionamento das institui- do? Para responder esta pergunta, ainda que
ções de cumprimento de medida. parcialmente, trarei dois pontos que entendo
Por conta desse desconhecimento, o de- principais.
bate gira muito em torno dos vícios amplamente Em primeiro lugar, temos que, apesar de
conhecidos da justiça criminal adulta, mas falha ainda utilizar a medida de internação (que mui-
em trazer argumentos em torno das qualidades to se assemelha à pena de prisão) como medida
da justiça juvenil. possível, a legislação que dá as bases da justi-
Essa questão ganha destaque se conside- ça juvenil estabelece um tempo relativamente
rarmos que já virou “senso comum” dizer que a curto para o cumprimento da medida privativa
justiça juvenil, apesar de previsão legal expres- de liberdade2.
sa em sentido contrário (Lei do SINASE), pode Essa é principal implicação legislativa do
ser mais punitiva e discricionária do que a jus- princípio da brevidade trazido pelo ECA, que
tiça dos adultos. Também é amplamente difun- traz uma limitação clara e não contornável ao
dido o fato de a medida de internação não se poder punitivo, centrado no reconhecimento
diferenciar da pena de prisão em muitas insti-
tuições pelo país. 1
Entre 1996 e 2014, de acordo com dados da SDH e do
E, de fato, é possível dizer que a forma DEPEN, o número de adolescentes privados de liberdade
de pensar a justiça juvenil está se aproximando cresceu de 4.245 para 24.628, um aumento de 480%. Em
período semelhante, de 1995 a 2014, o número absoluto
cada vez mais da racionalidade penal adulta,
de adultos privados de liberdade subiu de 148.800 para
sendo verdadeiramente colonizada por uma 607.700, um aumento de 308%. Considerando que esses
racionalidade retributiva (PIRES, 2006). De dados não incluem adolescentes em meio aberto, ao
acordo com esse entendimento, os mesmos mesmo tempo em que incluem adultos em regime aberto
fenômenos de recrudescimento penal da jus- ou em medida de segurança com tratamento ambulatorial,
tiça dos adultos estariam sendo replicados na a diferença pode ser ainda mais significativa.
2
E é justamente pelo entendimento de que este tempo
justiça dos jovens, ocasionando, por exemplo,
seria demasiadamente curto, simbolizando uma resposta
o aumento do encarceramento juvenil, maior estatal insuficiente à criminalidade juvenil, que tantas
dos que os níveis verificados no encarcera- propostas de redução da maioridade penal foram
mento adulto1. formuladas desde a promulgação do ECA.

17
Artigos

dos efeitos deletérios de longos períodos de Esse artigo é um convite para se pensar
privação de liberdade. a defesa da justiça juvenil pr’além do combate
Em segundo lugar, o ECA oferece uma às propostas de redução da maioridade penal.
quebra interessantíssima na lógica de corre- Há um outro grande desafio em jogo: impedir
lação necessária entre crime e pena que foge a adultificação da justiça juvenil e buscar a rea-
em muito da lógica penal tradicional. Na justiça firmação de uma racionalidade não punitiva na
juvenil não há obrigação de punir. Ou seja, não justiça dos jovens.
há uma pré-correlação entre infração e medida
a ser imposta, o que faz com que atos infracio- REFERÊNCIAS
nais graves não precisem necessariamente re-
ceber a medida mais gravosa3. PIRES, Alvaro Afonso Penna de Oliveira. Responsabilizar
A importância do princípio da não obri- ou punir? A justiça juvenil em perigo. In: SLAKMON, Ca-
gatoriedade presente na justiça juvenil permite therine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz
reflexões sobre um outro sistema de respon- (org.). Novas direções na governança da justiça e da segu-
sabilização pela prática de crimes. Esse é o seu rança. Brasília: Ministério da Justiça, 2006.
grande mérito e é por isso que deve ser defendi- SOUZA, Flora Sartorelli Venâncio. Entre leis, práticas e
do. Ao menos formalmente, ele abre portas para discursos: justiça juvenil e recrudescimento penal. São
se pensar estratégias além da privação de liber- Paulo: IBCCRIM, 2019.
dade. Assim, também está de acordo com toda a
base principiológica da justiça juvenil. FLORA SARTORELLI
VENÂNCIO DE SOUZA
3
No dia-a-dia dos tribunais, vemos poucos casos em
que o juiz deixa de responsabilizar casos com atos Mestre em Direito Penal na
infracionais graves com medidas de internação por tempo Universidade do Estado do
prolongado. Também vemos casos, não tão frequentes,
Rio de Janeiro, com estágio
em que delitos leves são responsabilizados com medidas
de pesquisa no Instituto
desproporcionais por fatores como condição social e
familiar do adolescente. Contudo, há exceções em que a Max Planck de Estudos sobre o Crime, Segurança
não obrigatoriedade é aplicada – afinal, são permitidas por e Direito (Freiburg/Alemanha). Coordenadora-
lei – e, ao menos na cidade do Rio de Janeiro, a média de adjunta do Departamento de Infância e Juventude
tempo de internação é relativamente curta (SOUZA, 2019). do IBCCRIM. Autora da monografia “Entre
Aqui falo pensando principalmente nos casos de São Paulo
Leis, Práticas e Discursos: Justiça Juvenil e
e Rio de Janeiro, localidades nas quais tive a oportunidade
Recrudescimento Penal”, publicada pelo IBCCRIM
de conduzir pesquisas empíricas sobre o funcionamento
das varas de execução socioeducativa. em 2019. Advogada.

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Artigos

SENTENCIAMENTO ANTES DA JUNTADA DO RELATÓRIO


INTERPROFISSIONAL NO PROCESSO PENAL JUVENIL
Por Giancarlo Silkunas Vay

O art. 186, §4º, do ECA, à semelhança ao nal e sua violação viola diretamente a Constitui-
art. 400 do CPP, apresenta-se como verdadei- ção, razão pela qual a nulidade a ser declarada é
ro roteiro procedimental a ser observado pela in re ipsa, sendo anacrônico o debate entre nuli-
autoridade judiciária quando da realização da dades relativas e absolutas.
audiência em continuação. Assim, ouvidas as Mas para além, é possível verificar no voto
testemunhas arroladas na representação e na relator no HC 407.051 o argumento de que é
defesa prévia, cumpridas as diligências e juntado “pacífica a jurisprudência no sentido de que o
o relatório da equipe interprofissional, será dada juiz não se vincula ao relatório polidimensional
a palavra ao representante do Ministério Públi- apresentado pela equipe técnica da instituição
co e ao defensor, sucessivamente, pelo tempo em que internado provisoriamente o menor em
de vinte minutos para cada um, prorrogável por situação conflituosa com a lei em virtude do
mais dez, a critério da autoridade judiciária, que, princípio do livre convencimento judicial moti-
em seguida, proferirá decisão. Nesse sentido, a vado”.
previsão da juntada do relatório da equipe in- Deixando de lado a impropriedade da uti-
terprofissional, tem natureza de uma verdadei- lização do termo “menor” pela chamada “Corte
ra condição de procedibilidade para o ato final Cidadã”, mesmo passadas décadas da entrada
do processo, qual seja, o sentenciamento. Logo, em vigor do ECA e da doutrina da proteção in-
cumprida a providência de número 1, cumpridas tegral – ainda que isso diga muito sobre quem
as de números 2 e 3, será dada a palavra às par- fala –, percebe-se o equívoco no entendimento
tes para as alegações finais e, então, o senten- apresentado, na medida em que a lei impõe não
ciamento. que o juiz acate o teor do relatório interprofis-
Ocorre que, diferentemente do que a lógi- sional, mas que ele seja previamente juntado ao
ca aponta, o STJ não reconhece a nulidade, nos processo. Apenas isso.
processos penais juvenis, quando sentenciados Sobre o livre convencimento motivado do
sem a juntada do mencionado relatório. O argu- juiz, deixo de me manifestar neste momento sob
mento contido no julgamento que costuma ser pena de me estender demasiadamente, mas in-
mencionado e observado – quase que de forma dica-se ao leitor que tome conhecimento do que
sacralizada, como argumento per si – nos casos Lenio Luiz Streck1, por todos, trata a respeito.
que então se sucederam (por todos: HC 420.472 O que é relevante para este debate é que, ao se
na 5ª Turma; HC 397.957 na 6ª Turma) é o de que dispensar a juntada do relatório interprofissio-
não se pode decretar nulidade se não compro- nal antes do sentenciamento, está a se sonegar
vado o prejuízo (HC 295.176). do acervo probatório importante documento
Para além da simplicidade do argumen- que se presta a trazer informações valiosas so-
to, que, em verdade, não enfrenta em nada o bre o adolescente, principalmente para fins de
mérito da causa – não se chega a afirmar qual justificação da aplicação da medida extrema de
seria a consequência caso provado o prejuízo, internação, nos termos do art. 122, § 2º, do ECA,
nem como a defesa poderia demonstrar o pre- em razão dos princípios constitucionais de bre-
juízo daí advindo, já que a aplicação de medida vidade, excepcionalidade e respeito à condição
socioeducativa de internação, por si só, pare- peculiar de pessoa em desenvolvimento, quan-
ce não convencer os r. Ministros –, esquece-se do da aplicação de qualquer medida privativa da
que processo é forma e forma é garantia, sendo liberdade a adolescentes (art. 227, § 3º, V) e até
impossível cogitar, em um Estado Democrático mesmo do art. 118, caput, do ECA.
de Direito, que o Estado possa ferir as garantias Ao se sonegar essas informações do ma-
individuais sob o pretexto – alegado e justifica- gistrado, temos a perda da chance em influir
do por ele mesmo, sem possibilidade de revisão no convencimento da autoridade judiciária e,
por outrem – de que violação houve, mas ela não assim, oportunizar uma visão mais holística do
prejudica o réu. O devido processo legal, ao que caso, com maiores características do caso em
consta, permanece tendo previsão constitucio- concreto, sobretudo no que diz respeito às con-

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Artigos

dições pessoais do adolescente e sua capacidade Para os adolescentes, contudo, o Princí-


pio da Condição Peculiar de Pessoa em
de cumprir a medida (art. 112, § 1º, do ECA; art. 16
Desenvolvimento impõe que a preven-
e 17.1.b das Regras de Beijing). ção especial das medidas se realize por
Viola-se, portanto, o direito à produção intermédio de projetos educativos e pe-
probatória, algo que, no caso dos adolescentes, dagógicos, em atendimento às necessi-
em virtude da motivação particular do porquê se dades pessoais e ao fortalecimento dos
aplica uma medida mais restritiva de direitos em vínculos familiares e comunitários de
cada jovem.
detrimento de outras, não bastando a mera gra-
vidade ou a presença dos permissivos do art. 122 Dessa forma, ainda que o entendimento
do ECA, interessa sobremaneira à própria auto- predominante dos Tribunais Superiores seja o
ridade judiciária no desempenho de sua função. de que o magistrado não está atrelado à conclu-
De se destacar que o ECA, inspirado na são do relatório técnico, isso não afasta a obri-
Convenção Internacional dos Direitos da Crian- gatoriedade de sua juntada para que os técnicos
ça, especificou o sistema de responsabilização que acompanham o adolescente possam influir
juvenil, trazendo como principal diferença em no convencimento do magistrado que, diga-se,
relação ao processo de responsabilização de deve ser motivado, não bastando um mero exer-
adultos que, além da natureza sancionadora, cício solipsista de vontade.
característica das penas, as medidas socioedu-
cativas apresentam, também, uma face de inte- REFERÊNCIAS
gração social, em vista da condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento dos adolescentes. SPOSATO, Karina Batista. Direito Penal de Adolescentes:
Assim, a medida socioeducativa jamais elementos para uma teoria garantista. São Paulo, Ed. Saraiva,
pode ser mera retribuição de um injusto, de- 2013
vendo ir além, sendo seu principal componen-
te o caráter integrador, respeitando-se, des- GIANCARLO
sa maneira, os adolescentes como sujeitos de SILKUNAS VAY
direitos e, atentando-se, principalmente, para
seu desenvolvimento como pessoa. É necessá- Mestrando em Direito pela
rio, portanto, que a abordagem seja individuali- Universidade Presbiteriana
zada para cada jovem, observando-se as pecu- Mackenzie. Pós-graduado em
liaridades que carregam consigo. Nessa linha é Direito Penal e Criminologia
a doutrina de Karina Sposato (2013, p.151), a qual pelo ICPC. Defensor Público do Estado de São Paulo
afirma: Membro da diretoria do IBDCRIA-ABMP.

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Artigos

O AVANÇO DA PEC 32/2019 E AS LIÇÕES DA HISTÓRIA:


SOBRE LUTAR CONTRA PEC’S “NEFANDAS”
Por Hamilton Gonçalves Ferraz

É difícil encontrar adjetivos que possam Carrancas)2. Ela ampliava o alcance da pena de
adequadamente descrever o horror dos tem- morte para escravos que matassem ou de qual-
pos que somos obrigados a suportar e resistir quer modo ferissem seus senhores, familiares e
no Brasil de 2021. De todos os horrores, porém, agregados, ao mesmo tempo em que previa um
poucos são tão covardes e mesquinhos quanto procedimento muito mais célere, sem possibi-
o avançar da Proposta de Emenda à Constitui- lidade de recurso em caso de condenação. Por
ção nº 32 de 2019, que propõe reduzir a maio- suas características avessas aos princípios libe-
ridade penal para 16 anos, rebaixando-a, ainda rais do Código Criminal, ela foi apelidada de “Lei
mais, para 14 anos, no caso da prática de “crimes Nefanda”.
definidos como hediondos, tortura, tráfico ilíci- Quase vinte anos depois da entrada em vi-
to de entorpecentes e drogas afins, terrorismo, gor desta Lei, o Imperador, respondendo a uma
organização criminosa, associação criminosa e solicitação do Presidente de Província da São
outros definidos em lei”. Paulo, emitiu em 12 de julho de 1852 o Aviso n.
É verdade que tramitam no Congresso 1903, o qual, dirimindo dúvida sobre o alcance da
Nacional incontáveis projetos de ampliação do Lei Nefanda em relação a escravos inimputáveis,
controle punitivo de adolescentes, seja pelo consolidou que “sendo as disposições do Art. 10 do
sistema penal adulto, seja pelo próprio sistema Codigo Criminal igualmente concebidas em ter-
de justiça juvenil. Contudo, atualmente, pare- mos gerais, e alêm disso fundadas nos principios
ce haver certa mobilização em favor da PEC de humanidade, claro estava que erão também
32/2019, uma vez que a Secretaria Nacional applicaveis aos escravos”.
da Juventude (SNJ), vinculada ao Ministério da É possível que esse Aviso tenha sido uma
Mulher, Família e Direitos Humanos, emitiu a pontualidade; porém, é igualmente possível a
Nota Técnica nº 132/2020, que ratifica aquela existência de casos de escravos menores de
proposição de emenda, e, em 28 de julho de idade condenados pela Lei, porque na prática, é
2021, o Presidente Bolsonaro nomeou como bastante provável a ocorrência de dificuldades
Ministro-Chefe da Casa Civil ninguém menos probatórias da menoridade, dificuldades essas
do que o Senador Ciro Nogueira (PP-PI), um que podem ter redundado na punição penal de
dos autores da PEC 32/2019. Além disso, um menores de 14 anos como se adultos fossem, ou
dos principais meios de mídia e jornalísticos que suas idades fossem deliberadamente eleva-
do país chegou a esboçar certo destaque à das por seus julgadores para este propósito.
discussão da maioridade penal – enfatizando, “Senhor, o crime não dorme; e este é de tal
claro, o lado da redução1. natureza que cumpre mais que nunca que o go-
O presente artigo não pretende revisitar verno o esmague, e não se deixe prender por aca-
a conhecida discussão da redução da maiorida- nhadas considerações de despesa ou política. O
de penal, mas sim revisitar a história e, a partir Brasil ameaçado reclama justiça e energia”. Essa
dela, oferecer certas chaves de leitura e possibi- citação, que, em um primeiro olhar, poderia ser
lidades de reflexão sobre um tema que encontra atribuída a falas de alguns dos parlamentares
antecedentes para muito além do período de re- subscritores da PEC 32, é, na verdade, do edi-
democratização pós-1988. torial do Aurora Fluminense, Jornal dos tempos
Uma coincidência da PEC 32/2019 é com do Império, de 27 de março de 1835 (BATISTA,
a chamada “Lei Nefanda” (Lei de 10 de junho de
1835), legislação penal de emergência do Im- 2
A Revolta das Carrancas, de 1833 (Minas Gerais) foi
pério confeccionada por razão das revoltas es- uma marcante e sangrenta insurreição de escravos em
cravas (mais especificamente, a Revolta das ricas fazendas do interior de Minas, em que não apenas
foram mortos os fazendeiros senhores, mas suas famílias,
1
Disponível em: <https://www.band.uol.com.br/noticias/ inclusive crianças pequenas. Sobre esta Revolta e seus
jornal-da-band/ultimas/reducao-da-maioridade-penal- desdobramentos, conferir ANDRADE, 2017.
proposta-esta-ha-28-anos-no-congresso-16364277> . 3
Sobre o Aviso 190 de 1852, JUNIOR, 1864, p. 222-223;
Acesso em 08 ago. 2021. TINÔCO, 1886, p. 25; SOUZA, 1872, p. 14; PESSOA, 1885, p. 38.

21
Artigos

2003, p. 191), e os destinatários eram tão certos BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Ja-
no contexto da Lei Nefanda quanto são hoje: jo- neiro: dois tempos de uma história. 2ª ed. Rio de Janeiro:
vens pobres, negros, periféricos, desviantes. Revan, 2003.
É emblemático que as principais e mais JUNIOR, Thomaz Alves. Annotações theoricas e práticas
reiteradas investidas pela redução da maio- ao Código Criminal, Tomo I. Rio de Janeiro: Francisco Luiz
ridade penal ocorram ao longo da vigência da Pinto & Cia., 1864.
Constituição de 1988, a mais generosa Carta PESSOA, Vicente Alves de Paula. Código Criminal do Impé-
de Direitos que o Brasil já teve. Entretanto, rio do Brazil comentado. 2ª ed. aumentada. Rio de Janeiro:
deve-se levar em conta as estruturas racistas Livraria Popular de A.A. da Cruz Coutinho, 1885.
do constitucionalismo e da democracia que PIRES, Thula. Cartas do Cárcere: testemunhos políticos
aqui se construíram reproduziram as perma- dos limites do Estado Democrático de Direito. In: FREI-
nências da colonialidade escravista, e, assim, TAS, Felipe (orgs.). Vozes do cárcere: ecos da resistência
naturaliza-se a manutenção, na larga zona do política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
não ser (na terminologia de Fanon), de gran- SOUZA, Braz Florentino Henrique de. Lições de Direito
de parte da população que o pacto político não Criminal. 2ª ed. Pernambuco, 1872. Obra consultada: Ed.
reconhece em seus próprios termos, herdan- fac. Sim. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
do-se hierarquizações de humanidade daquele TINÔCO, Antonio Luiz Ferreira. Código criminal do Impé-
sistema (PIRES, 2018, p. 191). rio do Brazil annotado. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial
Assim, diante do exposto, percebe-se que – Rua da Ajuda n. 75., 1886. Obra consultada: Ed. fac.-sim.
lutar contra a “nefanda” PEC 32/2019 - e todas as Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003.
demais PEC’s “nefandas” de redução da maioridade
penal – é lutar por mais do que uma garantia cons- HAMILTON
titucional; é lutar pela própria essência da Carta de GONÇALVES FERRAZ
1988, pois o art. 228, ao resguardar toda e qualquer
pessoa menor de 18 anos dos efeitos do sistema Professor de Direito Penal
penal brasileiro, qualquer que tenha sido o ato co- (UNESA), Doutor em Direi-
metido, consagra não só uma norma negativa, que to (PUC-Rio), Mestre em Di-
impõe limites ao poder de punir, mas, também, reito Penal (UERJ) e Bacharel
carrega implícito um programa político-criminal em Direito (UERJ). Pesquisador-líder do Grupo de
e constitucional positivo, que apresenta um proje- Pesquisa e Estudos em Ciências Criminais e Direi-
to de país e sociedade que, buscando romper com tos Humanos (GPECCRIM-DH). E-mail: ferraz.ha-
o passado, quer mais e melhor para suas crianças milton.hgf@hotmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.
e adolescentes, para além da exclusão, controle e br/4038462874056018
extermínio que o sistema penal (encarnação con-
creta da zona do não ser) oferece.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Marcos Ferreira de. A pena de morte e a revolta


dos escravos de Carrancas: a origem da “lei nefanda” (10 de
junho de 1835). Tempo, Niterói, v. 23,n. 2, p. 264-289, Maio,
2017.

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Artigos

A TORTURA NOSSA DE CADA DIA


Por Deise Benedito

Os gritos de George Floyd foram os mes- lência, tortura e maus tratos seja em qualquer
mos gritos dos seus antepassados africanos es- dimensão, na sociedade brasileira devemos re-
cravizados, remetidos durante o Tráfico Tran- visitar o passado colonial escravista.
satlântico aos Estados Unidos1. As condições A perpetuação da violência atravessa a
de transportes da “carga” eram terríveis, nos história da construção da sociedade brasileira,
porões dos Navios Negreiros, os jovens africa- desconhecendo a autonomia do sujeito e sua
nos eram acorrentados uns aos outros, e eram humanidade. Campos da violência, de Sílvia Lara
impostos a eles, durante a travessia no Atlântico, (1988), tem o grande mérito de tratar a violência
inúmeras punições físicas, bem como submeti- como algo que radica no centro da vida social no
dos a inúmeras privações, dentre elas a falta de Brasil escravista. Ela refere-se ao fato de que boa
espaço e de ar, a ausência de água potável, e no parte daquilo que instituía a possibilidade de um
que se refere à alimentação, quando alimenta- "campo" de negociação e conflito entre senho-
dos, a qualidade era péssima. res e escravos radicava na questão do exercício
A superlotação e as condições desumani- do castigo.
zantes levaram inúmeros africanos e africanas a Cabe destacar que a prática da tortura no
gritar no interior dos navios, a frase de George Brasil foi introduzida através da invasão dos por-
Floyd “Eu não Consigo Respirar”. tugueses em 1500 como meio de obter provas
Esta frase também ecoou no interior dos através da confissão, bem como forma de sub-
navios negreiros que aportaram nos Portos de meter os povos indígenas no processo de colo-
Salvador, Pernambuco e no Rio de Janeiro, du- nização. É possível constatar, através de regis-
rante mais de 300 anos durante o Tráfico Ne- tros históricos, a crueldade e a naturalização
greiro2. Ainda cabe destacar que os gritos “Eu dos castigos no cotidiano do período escravista
não consigo respirar” foram amplamente difun- no Brasil.
didos pelos povos indígenas, durante o processo Duas formas de punição eram mais co-
da escravização indígena3, uma vez que a única muns: o açoitamento público, para quem havia
mão de obra disponível para colonização era a sido julgado e condenado, e o chicoteamento
mão de obra indígena. Para se falar sobre vio- no calabouço, que substituiu o castigo privado
com o objetivo de controlar e punir as ações dos
1
No início de 1619, um navio com "nada além de 20 e poucos africanos aqui escravizados bem como também
negros" atracou no porto de Point Comfort, no Estado servir de exemplo para a obtenção da obediên-
americano da Virgínia. Esses africanos foram as primeiras cia visando a obtenção de um bom comporta-
vítimas do comércio de escravos nos Estados Unidos,
mento para outros aqui escravizados. O chicote,
há 400 anos. Em 1865, havia mais de 4 milhões de afro-
americanos em condição de escravidão.
o tronco, o pelourinho e o Pau de Arara eram os
2
O tráfico negreiro foi uma atividade realizada entre recursos mais comuns.
os séculos XV ao XIX. Os prisioneiros africanos eram Ainda no que diz a respeito a punições,
comprados nas regiões litorâneas da África para serem destaco o papel de Esperança Garcia4, mulher
escravizados no continente europeu e no continente negra escravizada que sabia ler e escrever e
americano. Essa migração forçada resultou na chegada de
que denunciou através de uma carta as práti-
milhões de cativos africanos ao Brasil.
3
A escravidão indígena foi a primeira tentativa da Coroa
cas de tortura e maus tratos pelo seu senhor
portuguesa de explorar a mão de obra no Brasil. Os
portugueses encontraram inúmeras dificuldades em 4
Mulher, negra, escravizada e provavelmente autora do
capturar indígenas para esse fim. Além destes conhecerem "primeiro Habeas Corpus" que se tem registro no Brasil.
muito bem o território, os padres jesuítas tornaram-se No texto, Esperança se queixa de uma série de maus
empecilhos para a escravidão, O primeiro ciclo econômico tratos praticados pelo administrador da fazenda em
da colônia foi o pau-brasil. Os índios retiravam as árvores que vivia. A carta foi documentada pelo historiador Luiz
das florestas próximas ao litoral e colocavam-nas nas Mott em 1979. Em ato de insurgência às estruturas que a
caravelas portuguesas em troca de espelhos e bugigangas desumanizavam, ela denunciava as situações de violência
que não tinham valor comercial para os portugueses, mas que ela, as companheiras e seus filhos sofriam na fazenda
chamavam a atenção dos nativos. Essa troca chamava-se de Algodões, região próxima a Oeiras, a 300 quilômetros da
escambo. futura capital, Teresina.

23
Artigos

junto ao governador do Piauí em 1770. Destaco Socioeducativo - SINASE6, e, ainda o surgimento


que durante todo o período da escravidão, a do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate
tortura era aceitável, visando sempre à manu- à Tortura, a prática de tortura e maus tratos se faz
tenção da ordem. presente nestes espaços, que são marcados pela
No Brasil, a prática da tortura foi proi- superlotação, maus-tratos, péssimas condições
bida com a Constituição de 1824, que, em seu de higiene, ausência de serviços de saúde asse-
artigo 179, previa a extinção das punições físi- melhando-se aos presídios brasileiros, idênticos
cas: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tor- aos porões de navios negreiros que atravessaram
tura, a marca de ferro quente e todas as mais o Oceano Atlântico por mais de 300 anos.
penas cruéis’’. Este artigo atendia às pessoas O tratamento dedicado aos adolescentes
consideradas na época parte do povo brasi- autores de atos infracionais configura um cená-
leiro, sendo estes: os membros da elite, ho- rio de crônica violência institucional. Nestes es-
mens brancos, bem nascidos, ricos. Por sua tabelecimentos, já ocorreram mortes de jovens
vez, era largamente aplicada aos povos indíge- adolescentes, a prática da tortura ocorre atra-
nas e africanos escravizados estes considera- vés de castigos, espancamentos, sem que haja
dos inadequados, despossuídos de direitos ou quantidade suficiente de agentes do Estado para
mesmo de humanidade. fiscalização, facilitando a prática corriqueira da
Foi apenas em outubro de 1886, dois an- tortura.
tes da Abolição da Escravatura, que o parlamen- Além do tratamento oferecido a adoles-
to brasileiro cria a lei que aboliu a aplicação da centes do sexo masculino ou feminino, que os/
pena de acoites em africanos e africanas escra- as desconsidera como uma pessoa em condição
vizadas. de humana, cabe destacar a superlotação, como
uma das formas mais cruéis de tortura e maus
A Tortura se Institucionalizou no Brasil? tratos, que ainda se encontra presente, mesmo
com uma diminuição a decisão proferida na limi-
As marcas da violência escravista no nar do Habeas Corpus (HC) coletivo 143.998/ES.
Brasil adentraram solenemente nas institui- O que observamos é a lógica punitivista,
ções voltadas para os cuidados de crianças e que é o fio que conduz a forma de tratamento
adolescentes. Em inúmeros estabelecimentos que deve ser oferecido a jovens que cometem
voltados para este fim, não foram poucas as atos infracionais, considerada a lógica correta
denúncias referentes à pratica de tortura de da socioeducação. São desconsideradas as ques-
maus tratos incluindo a superlotação nestes tões de gênero, raça, etnia, e negligenciada a
estabelecimentos. incorporação de parâmetros internacionais nas
Ao longo da história da institucionaliza- leis que garantam os direitos humanos das ado-
ção de crianças e adolescentes no Brasil, prin- lescentes privadas de liberdade, principalmente
cipalmente no Governo de Getúlio Vargas as- a questões específicas como fornecimento de
sim, pôs o Golpe de 1964, a Tortura e os Maus absorventes íntimos em quantidade suficiente,
Tratos e após atingiram o seu ápice durante o respeitando as diferenças de fluxo menstrual,
período da Ditadura Militar, em que inúmeras distribuição de água, o acompanhamento de
instituições, como FUNABEM – RJ e FEBEM SP agentes socioeducativas do sexo feminino em
foram alvos de inúmeras denúncias de violência
5
Criado em 1991 pela Lei nº 8.242, o Conselho Nacional
e maus tratos infringidos a adolescentes cus-
dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA é
todiados pelo estado, superlotação e rebeliões um órgão colegiado permanente, de caráter deliberativo
ocuparam os noticiários durante os anos 70, 80, e composição paritária. Integrante da estrutura básica do
90. Adentraram os anos 2000 e tais práticas de- Ministério dos Direitos Humanos, o Conanda é o principal
sumanizantes se perpetuam até os dias de hoje órgão do sistema de garantia de direitos.
nestes estabelecimentos.
6
SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.
De acordo com a referida legislação, entende-se por SINASE
Com o surgimento do ECA (Lei 8069/90),
o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios
que prevê um tratamento digno e humanizado a que envolvem a execução das medidas socioeducativas,
crianças e adolescentes, com especificidades ao incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais,
tratamento de jovens em conflito e mesmo com distritais e municipais, bem como todos os planos, políticas
o CONANDA5 - Conselho Nacional do Adoles- e programas específicos de atendimento a adolescente em
cente e com o Sistema Nacional de Atendimento conflito com a lei.

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Artigos

unidades femininas, o respeito a privacidade a Cada Dia”, precedida pelo Extermínio da Juven-
orientação sexual e práticas religiosas. tude Negra e Indígena, que tem como desafio
Durante o período da pandemia da CO- maior, Resistir para Existir!
VID-19 foi possível observar o total despreparo
junto às instituições de privação de liberdade,
não só para os funcionários e funcionárias, mas REFERÊNCIAS
também a ausência de um plano de enfrenta-
mento à COVID-19. Com a proibição de visitas LARA, H. Silvia. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e
de familiares e também com a ausência de in- Terra, 1988.
formações, o isolamento imposto pela pandemia FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão:
tornou inviável ainda mais a esses adolescentes o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro.
a garantia de suas necessidades, incluindo ques- Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
tões referentes à sua saúde mental nestes locais,
assim como houve o incremento no nível de ten- DEISE BENEDITO
são e violência institucional.
Durante a pandemia da COVID-19, o si- Graduada em Direito,
lenciamento dos adolescentes atrás dos muros Mestre em Direito e
presos entre grades de ferro, o mesmo ferro que Criminologia pela UnB.
acorrentou seus antepassados, aliados à subno- Ex Perita do Mecanismo
tificação pelas mortes de COVID19 e tortura e Nacional de Prevenção e
outros maus tratos ratificou assim o “projeto ge- Combate a Tortura. Especialista em Relações
nocida brasileiro” (FLAUZINA, 2008). Étnico Raciais Segurança Publica.
Assim, presenciamos a “Tortura Nossa de

Respiro

Charge por: Suzart @artedesuzart

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ESCUTE ESSE CONSELHO!


Por Jalusa Silva de Arruda

Ao romper com a doutrina da situação ir- parâmetros mínimos procedimentais para evitar
regular, o Estatuto da Criança e do Adolescen- o alto nível de discricionariedade na execução
te (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ECRIAD) das medidas socioeducativas, bem como para
instituiu a doutrina da proteção integral, aboliu a gestão pedagógica, estrutura arquitetônica e
a institucionalização indiscriminada autorizada financeira, além de contemplar o monitoramen-
pelo Código de Menores (Lei nº 6.697, de 10 de to e a avaliação das unidades. Seis anos depois,
outubro de 1979) e criou as medidas socioeduca- o SINASE foi instituído legalmente pela Lei nº
tivas como respostas à prática de ato infracional. 12.594, de 18 de janeiro de 2012.
Entretanto, o ECRIAD ocupou-se do processo de Apesar da importância da Resolução nº
conhecimento e apresentou apenas ideias gerais 119 e da Lei nº 12.594/2012, e da primeira trazer
sobre a execução das medidas socioeducativas como uma das diretrizes pedagógicas do aten-
(SARAIVA, 2003; SPOSATO, 2013). dimento socioeducativo a diversidade étnico-ra-
As instituições que outrora integravam as cial e de gênero, a situação das meninas no siste-
Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor (FE- ma socioeducativo ainda não havia sido olhada
BEM) passaram a executar medidas socioeducati- “de perto”. Como estão em número significati-
vas sem significativas modificações. A continuida- vamente inferior que os meninos nas unidades
de de práticas alinhadas ao modelo tutelar, por sua e programas de atendimento socioeducativo, as
vez orientado por bases teóricas positivistas e cor- meninas estiverem por muito tempo imersas em
recionalistas, foi inevitável. A punição manejada um contexto de invisibilidade social, o que re-
pela pretensão de proteção não deixou de integrar verberou na baixa especialização do atendimen-
discursos e práticas tanto daqueles que aplicavam to em relação às suas demandas específicas.
as medidas como dos que as executavam. Volte- O desenvolvimento de pesquisas baseadas
mos um pouco para avançar mais adiante. nos estudos de gênero no sistema socioeducativo
No que diz respeito ao segmento infanto- foi, aos poucos, desvendando a realidade das me-
juvenil, a incidência política de movimentos so- ninas nas unidades e programas de atendimento
ciais e setores da sociedade civil ligados à defesa socioeducativo: atividades pedagógicas baseadas
dos direitos de crianças e adolescentes foi fun- em estereótipos de gênero; alta medicalização
damental nos debates da Assembleia Nacional sem acompanhamento multidisciplinar em saúde
Constituinte (1987-1988) que, por fim, se expres- mental; punições disciplinares motivadas por ma-
sou na redação do artigo 227 da Constituição Fe- nifestações de afetos; automutilações; violações
deral. O processo de redemocratização do país de direitos de meninas grávidas e mães durante
clamou por participação direta da sociedade na a internação; dentre outras violações de direito
vida política e a Constituição Federal a garantiu (CNJ, 2015; ARRUDA; KRAHN, 2020), muitas das
por meio da instituição de conselhos de direito quais ratificadas no documento Adolescentes pri-
ou conselhos de políticas públicas. vadas de liberdade: relatório de Missão Conjunta
Em relação às políticas públicas e a defesa no Ceará, Distrito Federal, Paraíba e Pernambuco.
dos direitos humanos de crianças e adolescentes, A Missão Conjunta foi deliberada pelo Mecanis-
foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da mo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura
Criança e do Adolescente (CONANDA), conforme (MNCPT) e pelo Comitê Nacional de Prevenção e
Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991. De lá para Combate à Tortura (CNPCT) e realizada em par-
cá, o CONANDA atuou na elaboração de normas ceria com o CONANDA.
gerais sobre a política nacional de atendimento Após consulta pública, o MNCPT recomen-
de crianças e adolescentes e fiscalização de ações dou que o CONANDA estabelecesse, por meio de
de execução e suas respectivas instituições. resolução, diretrizes para atendimento às adoles-
Um exemplo diz respeito ao ponto de centes privadas de liberdade no Sistema Nacional
abertura deste texto: a Resolução nº 119, de 11 de de Atendimento Socioeducativo (SINASE)1. Após
dezembro de 2006, que aprovou o Sistema Na- 1
O documento está disponível no link: https://www.gov.br/
cional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/abril/Recomendao_
Fruto de amplo debate, a Resolução nº 119 criou Diretrizes_PsCPP.pdf. Acesso em: 10 set. 2021.

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Artigos

ampla discussão, o texto da resolução foi apro- sociais de gênero, as meninas estão submetidas
vado na 292ª Reunião Ordinária do CONANDA, a modelos específicos de tratamento e punição
realizada em dezembro de 2020. apenas por serem mulheres jovens que, no sis-
Contudo, o Ministério da Mulher, da Fa- tema socioeducativo, também são, na maioria,
mília e dos Direitos Humanos (MMFDH) se ma- negras e pobres (ARRUDA, 2020). Quem haveria
nifestou expressamente contra o texto da reso- de insurgir-se contra norma que busca preve-
lução baseando-se em argumentos que beiram a nir violências e garantir direitos humanos de
desinformação2, e até o momento não publicou adolescentes e jovens privadas de liberdade?
o ato normativo. Afrontar as deliberações do CONANDA
Infelizmente, o CONANDA tem enfrenta- é por em xeque sua atuação como regente do
do arroubos autoritários. Não se pode esquecer sistema de garantia de direitos, é colocar na
que o Decreto nº 10.003, de 4 de setembro de berlinda a participação popular e a democra-
2019, tentou descaracterizar o CONANDA im- cia. Fortalecê-lo e colocar-se nas trincheiras
pondo-lhe significativo retrocesso institucio- para defendê-lo é defender o próprio Direito da
nal. Organizações da sociedade civil reagiram e Criança e do Adolescente.
protocolaram mandado de segurança ao mes- É preciso lutar.
mo tempo em que a Procuradoria Geral da Re- #EscuteEsseConselho
pública propôs Arguição de Descumprimento https://www.escuteesseconselho.org.br
de Preceito Fundamental (ADPF). Em fevereiro
deste ano, ao julgar a ADPF, o Supremo Tribunal REFERÊNCIAS
Federal (STF) declarou inconstitucional trechos
do decreto presidencial. ARRUDA, Jalusa Silva de. “Nos versos me seguro”: uma et-
A resolução que institui as diretrizes para nografia documental da trajetória de meninas na medida
atendimento às adolescentes privadas de liberdade socioeducativa de internação. 2020. 390 f. Tese (Doutora-
no Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca- do) - Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Facul-
tivo (SINASE) incide sobre a falta de regulamenta- dade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fede-
ção sobre gênero e sexualidade no atendimento ral da Bahia, Salvador, 2020.
socioeducativo e sobre as lacunas relacionadas à ARRUDA, Jalusa Silva de; KRAHN, Natasha Maria Wangen.
execução das medidas socioeducativas, de espe- Juvenile justice and punishment of girls in Brazil: knowled-
cial impacto sobre as meninas. Como exemplos, ge production and research perspectives. Oñati Socio-Legal
a resolução: didaticamente define adolescente Series, [S.L.], v. 10, n. 2, p. 257-290, 1 abr. 2020. Onati Inter-
privada de liberdade considerando as categorias national Institute for the Sociology of Law. http://dx.doi.
gênero e sexualidade em franca oposição à lógica org/10.35295/osls.iisl/0000-0000-0000-1056
cisheteronormativa; em decorrência do Habeas CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Dos espaços aos direitos:
Corpus 143.641, prevê a priorização da imposição a realidade na ressocialização na aplicação da medida socio-
de medida diversa da internação para adoles- educativa de internação das adolescentes. Brasília: Conselho
centes grávidas, puérperas e mães; orienta que, Nacional de Justiça, 2015.
no caso de identificação de prática de violência SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com
contra as meninas, o fato deve ser considerado a lei: da indiferença à proteção integral - uma abordagem
no processo de reavaliação da medida; e permite sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria
que adolescentes vivam seus afetos no decurso do Advogado, 2003.
do cumprimento da medida socioeducativa de in- SPOSATO, Karina Batista. Direito penal de adolescentes: ele-
ternação sem serem punidas por isso. mentos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva, 2013.
Ter resolução específica para as meninas
não pretende problematizar se elas são mais ou JALUSA SILVA
menos punidas do que os meninos, se sofrem DE ARRUDA
mais ou menos do que eles. Trata-se de reco-
nhecer que em razão dos padrões das relações Doutora em Ciências Sociais
pela Universidade Federal
2
Vide nota de repúdio publicada no sítio do MFMDH: https://
da Bahia (UFBA), Mestra em
www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/
d e z e m b r o/n o t a - d e - r e p u d i o - a - r e s o l u c a o - d o - Estudos Interdisciplinares
conanda-que-permite-relacoes-sexuais-em-unidades- Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA.
socioeducativas. Acesso em: 10 set. 2021. Professora do Curso de Direito da UNEB.

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APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO


PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA JUVENIL:
UM NOVO E OBJETIVO DIVERSION NO BRASIL
Por Tiago Brito Carvalho

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), Conforme comentários do próprio CNJ:


com origens na Resolução nº 181 de 2017 do Con-
selho Nacional do Ministério Público (CNMP), foi O Recurso a meios extrajudiciais, que
permite evitar um processo penal e im-
uma das inovações trazidas pelo Pacote Anticri-
plica, muitas vezes, o encaminhamento
me (Lei nº 13.964/2019), no artigo 28-A do Códi- para os serviços comunitários é comu-
go de Processo Penal (CPP), como um negócio/ mente aplicado, de forma oficial e ofi-
acordo jurídico extrajudicial celebrado entre o ciosa, em sistemas jurídicos. Esta prática
Ministério Público e o autor do delito, em que permite evitar as consequências negati-
este cumprirá condições e medidas não privati- vas de um processo normal na adminis-
tração da Justiça de menores (por exem-
vas de liberdade (como a reparação do dano e a
plo, o estigma de uma condenação e de
prestação de serviço à comunidade, por exem- um julgamento).
plo) e, em troca, o Ministério Público não denun- Em muitos casos, a não intervenção se-
ciará o infrator (LIMA, 2020, p. 274). ria a melhor solução. Assim, o recurso
É um exemplo de Justiça consensual (LO- a meios extrajudiciais desde o come-
PES JÚNIOR, 2020, livro digital), solucionando o ço, sem encaminhamento para serviços
(sociais) alternativos, pode constituir a
conflito fora do Poder Judiciário, além de uma
melhor resposta. É, assim, sobretudo
solução não-encarceradora, como uma via al- quando o delito não é de natureza gra-
ternativa de soluções de conflito de natureza ve e quando a família, a escola ou outras
penal. instituições de controle social informal já
De outro lado, o instituto do Diversion reagiram, ou estão em vias de reagir, de
está previsto no art. 11 das Regras de Pequim modo adequado e construtivo.
(Regras Mínimas das Nações Unidas para a Ad-
ministração da Justiça de Menores) como uma Portanto, o diversion abrange, por axiolo-
via alternativa e extrajudicial, atribuída à Polí- gia, o ANPP como um recurso extrajudicial para
cia, Ministério Público ou outro órgão que atue evitar um processo socioeducativo em delitos
com jovens em conflito com a lei para “11.2 (...) que não sejam graves.
arrolar tais casos sob sua jurisdição, sem ne- Malgrado esteja previsto apenas no CPP,
cessidade de procedimentos formais, de acordo permanecendo omisso no ECA, não há que se
com critérios estabelecidos com esse propósito falar em omissão ou silêncio intencional do le-
nos respectivos sistemas jurídicos e também em gislador, pois estudiosos e operadores do Direi-
harmonia com os princípios contidos nas pre- to Juvenil sabem que: 1) o tratamento conferido
sentes regras”. aos adolescentes não pode ser mais gravoso ao
Foi utilizado o termo em inglês no presen- tratamento dos adultos, conforme dispõe o art.
te artigo, pois algumas traduções em português 35, I, da Lei nº 12.594/2012) crianças e adoles-
restringiam o alcance interpretativo do instituto centes gozam de todos os direitos e garantias
ao traduzir o termo Diversion como Remissão, o dos adultos, conforme artigo 3º do Estatuto da
que poderia fazer crer que se trata tão somente Criança e do Adolescente e Regra 3.1 das Re-
da remissão ministerial do Estatuto da Criança e gras de Pequim.
do Adolescente (art. 126). O Conselho Nacional Certamente, o ANPP é mais vantajoso ao
de Justiça (CNJ), com exatidão, traduziu o ter- adolescente do que um processo judicial infra-
mo estrangeiro como “Recursos a meios extra- cional, conforme comentado pelo CNJ. Dessa
judiciais”. É a tradução mais próxima do sentido maneira, negar a referida benesse processual
do termo. Diversion significa Desvio, isto é, ao por ser adolescente é subverter a lógica da pro-
invés de seguir o procedimento comum de ins- teção integral do Direito da Infância e da Juven-
tauração de formal processo judicial diante de tude, tornando-a até mais gravosa que a fase da
um delito, “desvia-se” para outros rumos extra- indiferença, onde adolescentes e crianças eram
judiciais. tratados com mesmo rigor que adultos.

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Não se ignora as vozes da doutrina e da Ante o exposto, a ANPP é um instrumento


jurisprudência que afastariam a aplicação do de Diversion que deve ser ofertado aos adoles-
ANPP aos adolescentes, como já foi afastado à centes em conflito com a lei, ao lado da remissão
aplicação dos benefícios da Lei nº 9.099/95, sob ministerial (sendo este com cláusulas mais ge-
os argumentos da especialidade do procedimen- rais e abertas, no exame do caso concreto, para
to socioeducativo, ou ainda de que no processo sua concessão).
socioeducativo o viés não é punitivo, mas edu-
cativo e restaurativo. REFERÊNCIAS
O primeiro argumento é afastado pelas
normas supracitadas ao proibir tratamento mais AMIN, Andréa Rodrigues. Curso de Direito da criança e do
gravoso ao adolescente do que o dado ao adulto adolescente. Aspectos teóricos e práticos. MACIEL, Kátia
e ao conferir toda gama de direitos que o adulto Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). 4. ed. Rio de Janei-
já usufrui. Ademais, o artigo 152 do ECA prevê a ro: Lumen Juris, 2010.
aplicação subsidiária dos Códigos de Processo, BRASIL, CNJ. REGRAS DE PEQUIM - REGRAS MÍNIMAS
aplicando-se, por extensão, o disposto do art. DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ADMINISTRAÇÃO
28-A do CPP. DA JUSTIÇA DE MENORES - SÉRIE TRATADOS
O segundo argumento oculta um discurso INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS.
menorista em que o Estado deveria proteger os Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/
infantes, mesmo tolhendo garantias já previs- uploads/2019/09/2166fd6e650e326d77608a013a6081f6.
tas a todos (AMIN, 2010, p. 6), característico de pdf data de acesso: 20 de ago. 2021.
uma época em que o adolescente não era su- BRASIL. Código de Processo Penal. Brasília, DF, Senado
jeito de direitos, mas objeto de tutela, depen- 2021.
dendo do subjetivismo daqueles que acreditam BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF,
saber o que é melhor para aquela criança ou Senado 2021.
adolescente. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: vo-
Ademais, o ANPP coaduna-se com os prin- lume único / Renato Brasileiro de Lima – 8. ed. rev., ampl.
cípios da intervenção precoce, intervenção mí- e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
nima, proporcionalidade e atualidade, interesse LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal / Aury Lo-
superior da criança e do adolescente (ECA, art. pes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.
100, parágrafo único, IV, VI, VII, VIII), sendo fa-
cultativa sua aceitação ou não. TIAGO BRITO CARVALHO
Frise-se que, enquanto a remissão minis-
terial traz critérios subjetivos e abertos (ECA, Defensor Público do Estado
art. 126), o ANPP traz critérios mais objetivos da Bahia. Titular da 1ª DP de
para sua concessão. De outro lado, enquanto a Ribeira do Pombal - Criminal,
remissão ministerial pode ser concedida sem a Júri, Infância e adolescência.
acumulação de qualquer obrigação em contra- Especialista em ciências
partida, o ANPP tem na sua essência a exigência criminais pela Faculdade Guanambi. Especialista
de uma obrigação ao seu beneficiário, devendo, em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade
por tal razão, ser subsidiário à remissão minis- Damásio.
terial.

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DIREITO PENAL DO INIMIGO E DELINQUÊNCIA JUVENIL:


COMO A MÍDIA CONTRIBUI COM A ESTIGMATIZAÇÃO DO
ADOLESCENTE INFRATOR
Por Lívia Maria Alves Teixeira Lima

O sistema criminal, desde os seus precisam ser escondidos da sociedade porque


primórdios mais rudimentares, pauta-se em uma o Estado não sabe bem o que fazer com eles.
linha de agir inquisitorial. É o que percebemos, Zaffaroni, em seu livro Inimigo do Direito Penal
por exemplo, no livro “Martelo das Bruxas” (p.83) diz:
(Malleus Maleficarum), livro que serviu de base
para os julgamentos dos inquisidores da Igreja Neste longo período, toda teorização
Católica. A pós-modernidade se estabeleceu legitimadora do tratamento penal di-
após a 2ª Guerra Mundial, porém nada de ferenciado para inimigos ou estranhos
baseou-se em emergências, ou seja, em
novo conseguimos perceber na forma como
ameaças à própria sobrevivência da hu-
a sociedade enxerga aqueles que cometeram manidade ou sociedade, que assumiu o
atos criminosos. Quando falamos de menores caráter de guerras e, por conseguinte,
de idade infratores, o panorama é ainda mais reduziam o direito penal ao direito ad-
desanimador. ministrativo e as penas à coerção direta.
Desenvolvida pelo professor alemão
Gunther Jakobs, a teoria conhecida por Direito Segundo o Levantamento Anual do SINA-
Penal do Inimigo ou Direito Penal Máximo SE (2017), os atos infracionais análogos a crimes
vem ganhando cada vez mais força no sistema mais cometidos pelos adolescentes foram roubo
penal brasileiro, o que se verifica, por exemplo, e tráfico de entorpecentes. O SINASE (Sistema
no midiático caso da operação alcunhada de Nacional de Atendimento Socioeducativo) foi
Lava Jato. O inimigo da vez é o dito “criminoso instituído pela lei 12.594/12 que regulamenta a
do colarinho branco”, transformado aos olhos execução das medidas socioeducativas. Há tem-
do público em um ser abjeto que não merece pos o nosso país vive uma verdadeira guerra às
as garantias processuais e constitucionais do drogas, totalmente infrutífera e que só atinge as
“cidadão de bem”. classes menos favorecidas da população.
Juízes e representantes do Ministério Os adolescentes em conflito com a lei que
Público foram alçados a heróis nacionais estão cumprindo a mais grave das medidas so-
mesmo diante da flagrante ilegalidade dos cioeducativas, no caso a internação, desembo-
seus atos persecutórios, como, por exemplo, cam neste universo da criminalidade justamente
delações premiadas usadas como moedas de pelo total esquecimento dos agentes políticos e
troca para a liberdade dos investigados presos públicos para com esses jovens. Quando o Es-
preventivamente, conduções coercitivas tado falta, infelizmente o crime organizado que
desnecessárias (muito mais para demonstrar o comanda a comunidade vai se fazer presente na
poderio do Estado-juiz do que qualquer outra vida deste jovem, que tem no chefe do tráfico
coisa), ligações perigosas entre magistrados e uma referência, muitas vezes de natureza até
órgão acusador, entre outras inúmeras situações paterna, em face do abandono do seu genitor ao
de desrespeito ao devido processo legal e à nascer ou mesmo porque este não teve condi-
ampla defesa. ções de prover uma vida digna ao seu filho.
Não obstante, um inimigo eleito ad O papel da mídia é como uma “pá de cal”
infinitum é o adolescente que comete atos em todo este processo de criminalização do jo-
infracionais. O personagem central deste vem infrator. A criminologia midiática se re-
artigo é esquecido quando se trata dos direitos sume em uma verdadeira verborragia dos que
mínimos previstos na nossa Carta Magna. detém o poder da imprensa (canais de televi-
Entretanto, é sempre lembrado quando comete são, sites da internet, etc.), sedimentando na
um ato infracional (principalmente contra a sociedade o desejo pelo punitivismo puro e
vida), trazendo de forma sazonal e superficial simples, sem uma reflexão do que realmente
a discussão da redução da maioridade penal. leva os jovens infratores a cometerem os ilíci-
A urgência da punição estatal daqueles que tos. Programas policialescos nas principais re-

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Artigos

des de televisão do país se dedicam diariamente um papel que não é seu, de condenar e colocar
a mostrar e opinar sobre crimes (em sua maioria estigmas em adolescentes que já sofrem a marca
crimes contra a vida), exercendo de uma só vez de serem internados em estabelecimentos para
o papel do órgão investigador, acusador e julga- menores infratores (que possuem o mesmo défi-
dor, instando o telespectador a fazer o mesmo cit de estrutura que as penitenciárias para adul-
exercício de empreendedor moral, desejando tos). Desta forma, se verifica um duplo processo
impor sua própria moral e respeito em face dos de estigma que não se encerra depois do cum-
outsiders, sob supostas justificativas de cunho primento da medida socioeducativa, perduran-
humanitário e de observância da lei e da ordem do, infelizmente, até o fim da vida desse menor.
(BECKER, 2008, p. 161). O Estado e a sociedade não querem lidar
Inúmeros projetos de lei estão tramitan- com o problema dos menores infratores porque
do no Congresso Nacional visando alterar o ECA, é incômodo colocar em pauta o que leva esses
propondo endurecimento das medidas socioe- adolescentes a cometerem os atos infracionais.
ducativas ou mesmo a redução da maioridade É uma verdade enfadonha e indigesta para quem
penal para que a criança ou o adolescente res- deveria zelar pela infância e juventude brasileira.
ponda no sistema criminal comum. Esse recru-
descimento das leis só é pensado para a parcela REFERÊNCIAS
pobre da população.
A sociedade quer excluir do convívio so- GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo. In:
cial o adolescente infrator pobre, marginaliza- Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56. São Paulo.
do e que é invisível aos olhos do Estado, aquele Editora Revista dos Tribunais, 2005. Disponível em: fdc.br/
que furta, rouba e trafica para sobreviver; entre- Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista07/Docente/07.pdf
tanto, quando ocorre um fato grave cometido AMARAL, Augusto Jobim do; SWATEK, Tatiana das Neves.
por adolescente de classe média, o discurso é Criminologia midiática: um estudo sobre o “Cidade Alerta”
outro. Como, por exemplo, na chacina ocorri- (Rede Record de Televisão). In: Revista Eletrônica do Curso
da em uma escola particular localizada em um de Direito da UFSM, v.15, nº 01, Santa Maria/RS, 2020.
bairro de classe média alta em Goiânia, em 20 Disponível em: https://periodos.ufsm.br/revistadireito/
de outubro de 2017, perpetrada por um aluno de article/view/37902
14 anos. A mídia, desde logo, tratou o fato como ZAFFARONI, Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª edição.
uma tragédia influenciada pelo bullying sofrido Rio de Janeiro. Revan. 2007
pelo adolescente. Não que o bullying não seja Levantamento Anual do SINASE, 2017. Ministério da Mulher,
uma realidade que mereça atenção e medidas da Família e dos Direitos Humanos. Disponível em: https://
preventivas, mas por que somente um é vítima www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/crianca-e-
e o outro não? adolescente/LevantamentoAnualdoSINASE2017.pdf
Veja como dois adolescentes infratores são BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988.
tratados de forma totalmente discrepante pelos BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 – Estatuto da
meios de comunicação: o que furta um merca- Criança e do Adolescente.
do tem que ser punido severamente, o outro,
de classe média, é uma vítima de agressões psi- LÍVIA MARIA
cológicas que culminaram no cometimento do ALVES TEIXEIRA LIMA
ato infracional. O pobre que furta o mercado ou
trafica entorpecentes também não é vítima? É Graduada em Direito pela
sempre o carrasco, o inimigo? Universidade Católica de
Diante de todo esse cenário punitivista em Petrópolis (UCP); Pós-Gradu-
que o sistema penal brasileiro está submerso, in- anda em Direito Penal Econô-
felizmente podemos perceber a carga inquisido- mico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
ra que paira na mentalidade dos operadores do Gerais (PUC-MG); Advogada.
direito brasileiro. Além disso, a mídia incorpora

31
Artigos

O PODER DISCRICIONÁRIO DO JUIZ DA INFÂNCIA


COMO FERRAMENTA PARA EXTINÇÃO DE MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS EM CASOS DE TORTURAS CONTRA
ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE
Por Adriana Peres Marques dos Santos e Hugo Fernandes Matias

Inicialmente, sublinhe-se que, a partir das lação contra a tortura, o que inclui os adoles-
disposições da Declaração sobre Direitos da centes e os jovens privados de liberdade2.
Criança de 1959 e dos esboços da futura Con- Nessa senda, cabe anotar ainda oito fatores
venção sobre Direitos da Criança, o art. 227 da que reforçam a fragilidade da proteção de ado-
Constituição de 1988 trouxe os fundamentos da lescentes e jovens privados de liberdade contra
chamada proteção integral de crianças, adoles- a tortura em nosso país, a despeito da fartura
centes e jovens em nosso país, bem como esta- de normativa interna e internacional sobre o
beleceu o reconhecimento de que eles são su- tema, como visto. Em primeiro lugar, a aplica-
jeitos de direitos. E mais, trouxe o dever jurídico ção do aparelho repressivo do estado possui um
de sua proteção com absoluta prioridade pela hialino recorte de classe por vezes configuran-
família, pela sociedade e pelo Estado (ROSSATO, do verdadeira política pública para contenção
2011, p. 27). dos pobres (WACQUANT, 2003, p. 68). Ademais,
Além disso, a Carta de 1988 foi a primeira os casos de alegações de agressões e torturas
Constituição do Brasil a impor a tipificação do contra adolescentes e jovens por forças estatais
delito de tortura, art. 5º, XLIII, em reforço à já hoje podem ser considerados corriqueiros, até
importante cláusula geral de proteção contra a com certa naturalização por alguns setores da
tortura prevista no inciso III do referido artigo, sociedade brasileira. Em terceiro lugar, o baixo
o que se efetuou no âmbito da infância através número de Estados que contam com mecanis-
do antigo art. 233 do ECA, em 1990, bem antes mo de prevenção e combate à tortura. Quarto,
da Lei n.º 9.455/97. o déficit de defensoras e defensores públicos, o
Impende registrar que o Brasil é membro que, em muitos casos, impede a atuação da ins-
fundador do sistema de direitos humanos das tituição de forma efetiva em sede pré-processu-
Nações Unidas (ONU), tendo ratificado seus al, v.g., acompanhando o interrogatório policial,
principais tratados internacionais, como o Pac- ou ainda a sua presença constante em unidades
to de Direitos Civis e Políticos de 1966, a Con- e centros socioeducativos. Quinto, a ainda bai-
venção sobre Direitos da Criança e a Convenção xa adesão do Estado Brasileiro às disposições do
contra a Tortura, dentre outros1. chamado Protocolo de Istambul, que versa so-
Em âmbito regional, o Brasil é parte da bre regras e procedimentos das Nações Unidas
Organização dos Estados Americanos (OEA), para a realização de perícias em casos de tor-
tendo ratificado a Convenção Americana de Di- tura. Sexto, o reconhecimento de tortura, maus
reitos Humanos (CADH), bem como reconheci- tratos e agressões contra adolescentes e jovens
do a competência jurisdicional da Corte Intera- no Estado Brasileiro tem sido reiteradamente
mericana de Direitos Humanos. E mais, pouco efetuado por organismo internacionais como a
depois da promulgação da CRFB/88, o país ra- Comissão e Corte Interamericana de Direitos
tificou a Convenção Interamericana contra a Humanos, sem que as devidas e efetivas modi-
Tortura, em 20 de julho de 1989, demonstrando ficações estruturais internas sejam efetivamen-
seu compromisso com a proteção de sua popu- te implementadas. Sétimo, a ausência de dados
estatísticos compilados nacionalmente acerca
1
A Lei n.º 8.069/90 foi uma das primeiras leis no mundo dos casos de tortura no sistema socioeducativo,
editadas após a Convenção sobre Direitos da Criança, com elementos específicos acerca das repercus-
tendo funcionado como verdadeira interpretação nacional
sões administrativa, cível e criminal, bem como
das disposições do tratado. Somente em 2012, no entanto,
o Brasil promulgou a Lei n.º 12.594/12, que versa sobre as 2
Essa proteção foi reforçada pela mencionada Lei n.º
linhas gerais para a execução de medidas socioeducativas 9.455/97, embora a amplitude do sujeito ativo do crime,
no país, embora desde 2006 o país contasse com parâmetros abarcando particulares, venha colaborando para o
formulados pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança enfraquecimento de sua aplicação em relação às forças
e do Adolescente (CONANDA) a esse respeito. estatais.

32
Artigos

das políticas públicas adotadas para a superação reitos fundamentais de adolescentes e jovens
dessa situação de violência. E, por fim, a pouca em nosso país4.
efetividade em geral conferida pelo Poder Público Ademais, cabe frisar que a manutenção
para as recomendações do Mecanismo Nacional de adolescente ou jovens privados de liberdade
de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). com risco de repetição de atos de agressões ou
Diante desse contexto desalentador, enten- torturas, sem a construção de políticas efetivas
demos que o poder discricionário judicial de rea- para a superação de eventual situação estrutu-
valiação de medidas socioeducativas3, previsto no ral de violência, pode levar à configuração da
art. 42 da Lei do SINASE, pode servir de meio para privação de liberdade arbitrária ou ilegal, a teor
que o Estado-Juiz efetue verdadeiro controle de dos artigos 37, “b”, da Convenção sobre Direitos
convencionalidade no caso concreto envolvendo da Criança, bem como do art. 7º da Convenção
a integridade física e moral de adolescentes e jo- Americana de Direitos Humanos. Aliás, vale con-
vens privados de liberdade. Isso com o objetivo de signar que a Constituição de 1824 já proibia açoi-
assegurar a compatibilidade entre atos internos e tes, torturas, marcas de ferro quente e outras
os compromissos internacionais do Estado Brasi- formas de penas cruéis, art. 179, XIX.
leiro (RAMOS, 2017, p. 540) relativos à proteção de Assim sendo, fica patente que, apesar dos
sua população contra a tortura. avanços normativos na proteção de adoles-
Por isso, sustentamos que em casos centes e jovens contra a tortura no país, muito
de graves violações a direitos humanos por ainda há que se avançar, razão pela qual cabe
agentes estatais, através de atos de tortura aos operadores do direito a importante missão
a adolescentes e jovens privados de liberda- de construir alternativas processuais efetivas
de em unidades e centros socioeducativos, para a superação de um quadro estrutural de
pode o juiz competente, de ofício ou median- torturas e agressões em unidades socioeduca-
te provocação, reavaliar o cabimento da ma- tivas do país, a fim de que o Brasil possa cum-
nutenção da medida socioeducativa, nos ter- prir suas obrigações internacionais volunta-
mos do referido art. 42 da Lei n.º 12.594/2012. riamente firmadas.
E, caso confirmadas as agressões ou torturas,
pode extinguir a medida socioeducativa de
privação de liberdade, nos termos do art. 46, 4
Eis o conteúdo do referido item 6.1 da Regras de Beijing:
V, da mesma Lei do SINASE, sem necessidade Dadas as diferentes necessidades específicas dos menores
de aguardar eventual trânsito em julgado na e a diversidade de medidas possíveis, deve ser previsto
um poder discricionário suficiente em todas as fases do
esfera criminal. Trata-se de conferir absoluta
processo e a diferentes níveis da administração da Justiça
prioridade à proteção dos direitos fundamen- de menores, designadamente nas fases de instrução, de
tais violados pela prática da tortura. Nesse acusação, de julgamento e de aplicação e seguimento das
sentido, as disposições do item 6.1 das cha- medidas tomadas. (CNJ, 2016, p. 22).
madas Regras de Beijing, que embora versem
sobre princípios e boas práticas das Nações REFERÊNCIAS
Unidas, servem de guia para a construção de
soluções jurídicas visando à proteção de di- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de
Pequim: regras mínimas das Nações Unidas
3
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do para a administração da justiça de menores.
HC 189.014/ES, através de decisão proferida pela Ministra Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi.
Cármen Lúcia, registrou que as condições pessoais de Brasília: CNJ, 2016.
adolescente que ficou paraplégico enquanto aguardava
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos
o início de medida de internação deveriam ser levadas
em consideração pelo juízo competente, através de Humanos. São Paulo: Saraiva, 2017.
pronunciamento específico antes de qualquer adoção de ROSSATO, Luciano Alves. Tutela coletiva dos
providências executórias relativas à medida de privação de direitos de crianças e adolescentes. São Paulo:
liberdade. Tal decisão reforça a posição ora sustentada no Verbatin, 2011.
sentido da importância do exercício do poder discricionário WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova ges-
do juízo em face de situações envolvendo o cumprimento
tão da miséria nos Estados Unidos. Tradução
de medidas socioeducativas, o que salta aos olhos em
termos de importância quando se trata da temática da de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
proteção contra eventuais atos de tortura e agressões por WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâ-
forças estatais. neos. São Paulo: Malheiros, 2011.

33
Artigos

ADRIANA PERES HUGO


MARQUES DOS SANTOS FERNANDES MATIAS

. Bacharel em Direito pela Uni- . Mestre em Política Social pela


versidade do Estado do Rio de Universidade Federal do Esta-
Janeiro – UERJ. Pós-graduada do do Espírito Santo (PPGPS-
pela Escola da Magistratu- -UFES). Bacharel em Direito
ra do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Defensora pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janei-
Pública do Estado do Espírito Santo desde 2014. Co- ro (UNI-Rio). Coordenador do Comitê Estadual para
ordenadora da Infância e Juventude da DP/ES. Vice a Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito
Coordenadora do Comitê Estadual para a Prevenção Santo - CEPET (2018-2020). Coordenador de Direi-
e Erradicação da Tortura no Espírito Santo – CEPET. tos Humanos da DP/ES (2019-2020). Defensor Públi-
Integrante da Comissão da Infância e Juventude do co do Estado do Espírito Santo desde 2010.
CONDEGE.

Respiro

Charge por: Suzart @artedesuzart

34
ENTREVISTA

Múltiplos Olhares
a crise da superlotação dos presídios no Brasil,
com essa aprovação da maioridade o que será
que vai acontecer?
É dever do Estado fornecer acesso a uma edu-
cação de qualidade para os jovens, oferecendo
novas oportunidades de emprego e proteção.
Sabemos o quão vulnerável é um jovem negro
com um preconceito racial arcaico e genocida
das autoridades policiais.
A sociedade brasileira tem o dever de avaliar o
contexto socialmente. Estamos cansados de sa-
ber que a educação é o alicerce para o desenvol-
vimento humano e da sua vivência na sociedade.

É perceptível que é cada vez mais co-


mum mães enterrando os filhos no
Rute Fiuza contexto da periferia, invertendo-se
Integrante da Coalizão Negra por Direitos. Co- assim o próprio ciclo da vida. De que forma
ordenadora do Movimento mães de maio do a Sra. vê o papel das mães no processo de
Nordeste. Coordenadora do Coletivo de mães e busca por verdade em relação as histórias
familiares de vítimas do terrorismo do Estado. dos seus filhos? E de que maneira contar
Pesquisadora do Centro de Antropologia e Ar- essas histórias é importante para desnatu-
queologia Forense (CAAF). ralizar a violência institucional?

1
RUTE FIUZA O papel que as mães fazem é mui-
Alvo de grandes debates legislativos to importante. Tem milhares de mães que tive-
na seara dos direitos da criança e do ram a vida de seus filhos ceifadas pelas opera-
adolescente é a redução da maiorida- ções policiais deflagradas em periferias. Elas
de penal. Do ponto de vista da sra., qual a estão buscando pela verdade dos fatos, pedin-
importância deste debate para a socieda- do das autoridades respostas claras e procu-
de brasileira? rando justiça. Temos muitas mães que unem
as suas vozes carregadas pela dor e pelo sofri-
RUTE FIUZA Como defensora dos direitos hu- mento para mostrar e alertar a sociedade que
manos, sou totalmente contra a redução. É mui- isso não está certo.
to fácil identificar qual classe social será alvo A população periférica sempre foi e continua
número um caso a maioridade seja aprovada: A sendo marginalizada. Na favela moram pessoas
população negra e periférica desse país. de bem que estudam, trabalham e criam seus
Esse debate é de fundamental importância para filhos, preparando-os para um futuro que para
a sociedade brasileira, porém, infelizmente, boa muitos até julgam como incerto.
parte dela (de acordo com pesquisas já efetua- Nós, mães, lutamos pelo fim da violência policial
das) aprovam a maioridade penal. A maioria das nas favelas. Queremos que as autoridades en-
pessoas enxergam a proposta de maioridade pe- tendam que as vidas devem ser preservadas, que
nal como uma forma de reduzir a criminalidade. tem milhares de famílias que moram em suas ca-
Eu discordo totalmente afinal, ao invés de pu- sas nas periferias não por escolha, mas sim por
nir, porque não se implementa uma educação de necessidade. Quando contamos as histórias dos
qualidade para esses jovens? Seria muito mais nossos entes queridos, queremos mostrar de
eficiente. uma só vez que os nossos mortos têm voz. Que-
Além do mais, sabemos também que o sistema remos mostrar para as autoridades que os nos-
prisional brasileiro não tem nenhuma estrutu- sos filhos eram pessoas do bem que sonhavam
ra para reinserir o jovem na sociedade. Já temos por oportunidades e um futuro melhor.

35
Entrevista: Múltiplos Olhares

4
Diante da atual política de seguran- Como pode o Sistema de Justiça
ça pública, a Sra. acredita que há uma contribuir na prevenção e combate
compatibilidade das práticas em se- à tortura e no cumprimento das
gurança pública com a proteção integral práticas que busquem a preservação dos
da criança e do adolescente? E o que po- direitos e garantias dos adolescentes
deria ser proposto como política pública dentro do sistema socioeducativo?
para redução dos índices de violência con-
tra crianças e adolescentes em situação de RUTE FIUZA O sistema de justiça primeiramen-
maior vulnerabilidade? te deveria fazer uma intervenção no quadro de
profissionais que integra o sistema socioeduca-
RUTE FIUZA Essa compatibilidade nunca existiu tivo e atuar na reestruturação dos seus espaços
dentro da política de segurança pública. físicos. Inúmeros pareceres técnicos de peritos
Não adianta respeitar na íntegra essas políticas da Secretaria de Direitos Humanos foram feitos
se na prática tudo deixa a desejar. durante as visitas feitas em diversas unidades do
Um exemplo que eu posso dar é sobre o ECA, sistema.
Estatuto da Criança e do Adolescente, onde to- Desde as condições precárias dos alojamentos,
dos os direitos da criança e do adolescente me- das superlotações, da falta de preparo dos fun-
recem ser respeitados e preservados! Está na cionários e das agressões aos jovens sofridas
Constituição Federal. pelos policiais e instrutores. Infelizmente, tudo
E na prática? Algo realmente está sendo feito isso reflete bastante na reinserção desses jovens
pelo nossos jovens? na sociedade.
Tudo que está transcrito no Estatuto está ten- A estrutura dos ambientes dos alojamentos dei-
do uma maior relevância nesse cenário hostil xa muito a desejar. Quem consegue manter a sua
que vivemos? integridade física e mental confinado em um es-
Acredito que precisamos reforçar mais ainda os paço superlotado?
aspectos que norteiam as políticas públicas en- Isso é desumano. Aqueles jovens que estão sob
quanto a sua correta execução, propondo um custódia do Estado merece receber um trata-
extensivo trabalho de campo, tendo como foco mento digno. As medidas socioeducativas têm
principal as pessoas que vivem em estado de como objetivo de realocar o indivíduo no con-
vulnerabilidade social, e advertindo o Estado vívio social.
sobre a sua responsabilidade. A gente não pode O sistema de justiça tem o dever de investir na
tomar ações efetivas de combate ao racismo e reestruturação das unidades, provendo ativida-
a violência sem o total apoio do poder público. des para os adolescentes e colocando profissio-
Afinal de contas é obrigação do Estado garan- nais altamente qualificados e comprometidos
tir os direitos sociais no que tange à educação, com a reintegração dos mesmos.
moradia digna, trabalho, comida, saúde, segu-
rança e dentre outras.

36
Memorial de 80
Anos do Código
de Processo Penal

A aplicação do Código de
Processo Penal no procedimento
de apuração de ato infracional
Por Pedro Machado de Almeida Castro
e Rita Graciele Mezadre Garcia

A partir da Declaração dos Direitos da ção irregular vigente no Código de Menores de


Criança (1959) houve uma evolução no âmbito 1979, que considerava a criança e o adolescen-
internacional no que se refere aos direitos da te como “objeto do direito, e não sujeitos dele”
criança e do adolescente, marcada, especialmen- (SHECAIRA, 2015, p. 42). Com a edição do Esta-
te, pelo advento das Regras mínimas das Nações tuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990),
Unidas para a administração da Justiça da Infân- que regulamentou as normas constitucionais,
cia e da Juventude – Regras de Beijing (1985); da reconheceu-se a absoluta prioridade da criança
Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); e do adolescente pela condição peculiar de pes-
das Diretrizes das Nações Unidas para a Preven- soas em desenvolvimento e garantiu-se todos
ção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de Riad os direitos fundamentais inerentes à pessoa hu-
(1990) e das Regras das Nações Unidas para a mana. Desta forma, o ECA constitui um “sistema
proteção dos jovens privados de liberdade (1990). de garantias que reproduz no âmbito de uma Lei
Este avanço normativo resultou no reco- especial as garantias constitucionais fundamen-
nhecimento da criança e do adolescente como tais” (COSTA, 2005, p. 60).
sujeitos de direitos e na compreensão de que de- Com relação ao adolescente em conflito
vem ser observadas todas as garantias penais e com a lei, o ECA disciplinou o procedimento de
processuais penais para a responsabilização do apuração de ato infracional, impondo o respei-
adolescente em conflito com a lei. Deste modo, to ao devido processo legal e assegurando to-
“todo sistema de garantias construído pelo Di- das as garantias processuais. No entanto, o ECA
reito Penal como fator determinante de um Esta- não estabeleceu todas as garantias processuais,
do Democrático de Direito é estendido à criança já que, enquanto lei especial, tratou apenas das
e ao adolescente, em especial quando se lhe é normas específicas do procedimento e, atento
atribuída a prática de uma conduta infracional” à necessidade de complementação, instituiu em
(SARAIVA, 2016, p. 64). seu art. 152 a aplicação subsidiária das normas
No plano nacional, a Constituição Federal gerais previstas na legislação processual relativa
de 1988, nos artigos 227 a 229, estabeleceu a pro- ao tema, que se insere no âmbito do Código de
teção integral, substituindo a doutrina da situa- Processo Penal (CPP).

37
37
Memorial de 80 anos do Código de Processo Penal

Assim, o CPP consiste na legislação pro- ticipação das partes em igualdade de condições
cessual de caráter subsidiário que incide no (COSTA, 2005, p. 140-141). Isto se impõe por
procedimento infracional para assegurar a efe- efeito do art. 152 do ECA.
tivação de todas as garantias processuais aos Portanto, o silêncio da lei não pode ser
adolescentes. Ou seja, o devido processo legal considerado em desfavor do adolescente. O fato
no âmbito infracional abrange as normas do de o ECA não mencionar o juízo de admissibi-
ECA e do CPP (SEABRA, 2021, p. 277). Exemplo lidade da representação não significa que essa
desta fundamental aplicabilidade é a fase de de- análise seja discricionária. Como assevera Gui-
fesa prévia, tendo em vista a ausência de pre- lherme de Souza Nucci (2017, p. 649), “é evidente
visão, no ECA, de hipóteses de rejeição da re- deva existir o juízo de admissibilidade, deven-
presentação, de absolvição sumária ou de vícios do o juiz receber a representação, designando
que podem ensejar a declaração de nulidade de a audiência, ou rejeitando a peça inaugural, por
atos processuais. inépcia, falta de justa causa ou de qualquer con-
Observa-se, porém, que a previsão esta- dição da ação.”
tutária de aplicação subsidiária do CPP não é O fundamento para a não aplicação das
respeitada na prática judiciária e, muitas vezes, normas constantes no CPP reside na desconsi-
os juízes deixam de analisar questões suscitadas deração da natureza sancionatória das medidas
na defesa prévia por não constarem expressa- socioeducativas. Todavia, uma vez que os atos
mente do ECA1. Com efeito, a omissão norma- infracionais correspondem a condutas previs-
tiva não pode conduzir à redução dos direitos tas em lei como crime ou contravenção penal,
dos adolescentes. A legitimidade da medida so- não há como negar o caráter punitivo das me-
cioeducativa está condicionada à observância didas socioeducativas, especialmente em razão
de todas as garantias no processo infracional, das medidas de internação e semiliberdade, que
de modo que a inaplicabilidade das normas do restringem a liberdade do adolescente. Confor-
CPP somente se justificaria nos casos em que me sustenta Sérgio Salomão Shecaira (2015, p.
houvesse violação a normas e princípios espe- 244), “a medida socioeducativa é, tal qual a pena,
cíficos do ECA. Assim, considerando que a lacu- um ato de intervenção estatal na esfera de auto-
na se refere às garantias processuais dispostas nomia do indivíduo que tem evidente natureza
em normas gerais no CPP e não às regras es- de sanção.”
peciais do ECA, a aplicação de tal diploma legal Ao não se reconhecer a aplicação dos arti-
não é uma alternativa ao magistrado, mas um gos 395, 396-A e 397 do CPP, que fazem menção
direito do adolescente. às teses defensivas da resposta à acusação, se
Não se pode aceitar que prevaleçam en- atribuiria ao adolescente um tratamento mais
tendimentos arbitrários da época do Código de gravoso do que aquele imposto aos imputáveis,
Menores, na qual se ignorava os direitos do ado- na medida em que não seriam observadas todas
lescente. A disposição constante no art. 186, §3º as possibilidades de defesa para a aplicação da
do ECA, que aponta apenas o prazo para a apre- medida socioeducativa, tal como são garantidas
sentação da defesa prévia, é insuficiente para para a cominação da sanção penal no âmbito do
garantir o exercício do contraditório e da ampla processo penal. Assim como na esfera criminal,
defesa no processo infracional. A defesa técni- a imposição da sanção socioeducativa exige a
ca para ser efetiva precisa contrapor os argu- observância do princípio do devido processo
mentos da acusação, abordando a (in)existência legal e não pode haver diferença de tratamen-
do ato infracional, a formalidade da represen- to entre adultos e adolescentes na aplicação de
tação, a prova da materialidade e da autoria e, seus preceitos.
para isso, é preciso utilizar-se das disposições Ademais, pelo princípio do melhor inte-
expressas no CPP, de maneira a permitir a par- resse do adolescente, que constitui “norte para
a aplicação de todos os princípios e regras re-
1
Destacamos como paradigma o acórdão proferido pela 3ª ferentes ao direito da criança e do adolescen-
Turma Criminal do TJDFT, no Habeas Corpus nº 0711885- te” (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, 2019, p. 67),
66.2021.8.07.0000 (Rel. Des. Demétrius Gomes Cavalcanti,
a interpretação das normas jurídicas deve ser
julgamento: 10.06.2021, Dje: 17.06.2021), impetrado contra
decisão da Vara da Infância e Juventude do DF, que afastou
orientada pelo melhor interesse do adolescente,
a aplicação do CPP e não apreciou a preliminar de ilicitude o que pressupõe adequação ao modelo de in-
da prova alegada na defesa prévia. tervenção consagrado na ordem constitucional,

38
Memorial de 80 anos do Código de Processo Penal

que assegura o exercício efetivo dos direitos ao NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do
adolescente e reconhece sua condição de sujei- Adolescente comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
to do processo. ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA,
Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei
REFERÊNCIAS n. 8.069/90 - comentado artigo por artigo. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2019.
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente e responsabilidade
direito penal juvenil: como limite na aplicação da medida penal: da indiferença à proteção integral. 5. ed. Porto
socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
Advogado, 2005. SEABRA, Gustavo Cives. Manual de Direito da Criança e do
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça (3. Turma Criminal). Adolescente. 2. ed. Belo Horizonte: CEI, 2021.
Habeas Corpus nº 0711885-66.2021.8.07.0000. Relator: SHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistema de garantias e o direito
Des. Demétrius Gomes Cavalcanti. Brasília, 10 de junho de penal juvenil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
2021. Disponível em: https://bityli.com/3dlfJ. Acesso em: 16
de agosto de 2021.

PEDRO MACHADO DE ALMEIDA CASTRO

Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).


Presidente do Instituto da Advocacia Social – INAS. Advogado.

RITA GRACIELE MEZADRE GARCIA

Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra


(Portugal). Advogada.

39
IBADPP realiza

IX
Seminário
Nacional
do IBADPP
Processo Penal e Democracia

16 a 19 de novembro de 2021
Inscrições: seminario.ibadpp.com.br

40
http://www.ibadpp.com.br/
publicacoes@ibadpp.com.br

@ibadpp

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