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Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal Ano 6, Nº 25

Fotografia: Pedro Nunes

Processo penal e democracia por Múltiplos Olhares com


Glauco Giostra "O contraditório: Juliana Tonche P. 29
valor e limite" P. 27

ISSN 2675-2689 (Impresso) ISSN 2675-3189 (Online)


Ano 6 - N.º 25,
Fevereiro/2023
Boletim Revista do Instituto ISSN: 2675-2689 (impresso)
Baiano de Direito Processual Penal ISSN: 2675-3189 (online)

EXPEDIENTE Ilustração Lirismos Insurgentes


Conselho editorial Natalie Jamile
Ana Cláudia Pinho, Elmir Duclerc Selo Trincheira Democrática
e Vinícius Romão Túlio Carapiá (ilustração)
Comitê editorial
Jonata Wiliam Sousa, Thaís Salles, Liana
Lisboa, Anna Luiza Lemos, Flávia Pinto, Liz Avenida Tancredo Neves, n. 620, Caminho das
Rocha, Marcelo Marambaia e Reinaldo Santana Jr. Árvores, CEP 41.820-020, Condominio Mundo
Plaza, Torre Empresarial, 5º andar, sala
Coordenação da edição 510, Salvador - Bahia
Thaís Salles Periodicidade: Bimestral
Edição Impressão: Impactgraf
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Bianca Vatiele Ribeiro
http://www.ibadpp.com.br/
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@ibadpp

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O Instituto Baiano de Direito Processual Penal é uma associação civil sem fins econômicos
que tem entre as finalidades defender o respeito incondicional aos princípios, direitos
e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal. O IBADPP promove o debate
científico sobre o Direito Processual Penal por meio de publicações, cursos, debates, semi-
nários, etc., que tenham o fenômeno criminal como tema básico.

Lara Teles, Liz Rocha, Marcelo Marambaia e


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Ações perante os Tribunais - Coordenador Geral:


Maurício Saporito; Coordenadora Adjunta:
Diretoria Executiva Mariana Madera; Membras(os): Jacinto Coutinho,
Rafaela Alban, Caio Hita, Luis Colavolpe e
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Secretária Geral: Fernanda Ravazzano Relações com as Instituições - Coordenadora
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Luiz Gabriel Batista Neves, Mariana Madera, Nogueira; Coordenadora Adjunta: Karen Baraúna;
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Cursos - Coordenadora Geral: Lavinie Eloah; Observatório da Equidade - Firmiane Venâncio;


Coordenadoria Adjunta: Luciana Monteiro; Charlene Borges; Cleifson Dias; Marinho Soares;
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Eventos - Coordenador Geral: Ismar Nascimento;
Publicações - Coordenadora Geral: Thaís Coordenadora Adjunta: Amanda Quaresma;
Salles; Coordenadora Adjunta: Liana Lisboa; Membras(os): Carolina Neres, Karla Oliver,
Membras(os): Anna Luíza Lemos, Flávia Pinto, Luciana Silva e André Maia
Carta da diretoria
Em 01/01/2023 foi empossada a Diretoria Executiva da Gestão 2023-2024, inaugurando mais um ciclo no
Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

Sob a presidência de Lucas Carapiá, a vice-presidência de Thaize Carvalho, a tesouraria de Gustavo Brito, e
secretaria-geral de Fernanda Ravazzano e Jonata Wiliam, o Instituto segue na sua perene missão institucio-
nal de defender o Estado Democrático de Direito, desenvolver o processo penal crítico, fomentar a pesquisa
acadêmica e fortalecer os vínculos com as demais instituições que atuam no sistema de justiça.

Carregando a responsabilidade de dar seguimento ao excelente trabalho já prestado e que alçou o Instituto ao
atual patamar, apresentamos as pessoas que estarão à frente dos Departamentos do Instituto neste ano.

Com os nossos cumprimentos,

Lucas Carapiá
Thaize de Carvalho
Fernanda Ravazzano
Jonata Wiliam
Gustavo Brito
Diretoria Executiva | Gestão 2023-2024

Diretoria Executiva IBADPP - Gestão 2023-2024: Jonata William, Thaize de Carvalho, Lucas Carapiá, Gustavo
Brito, Fernanda Ravazzano.

Departamentos Nomeados

Bianca Nogueira Bruno Valverde Ismar Barbosa Lavinie Eloah


Comunicação Assessor da Presidência Eventos Cursos

Mauricio Saporito Mônica Antonieta Thaís Salles


Ações perante os Tribunais Relação com as Instituições Publicações
EDITORIAL
Passo a Passo, Verso a Verso

(Cantares - Joan Manuel Serrat, 1969)1 usa a lógica contra a lógica, repudia a moralidade em
nome da moralidade, transforma a mentira em uma
Caminante, son tus huellas verdade coletiva, alimentando a criação e a propaga-
El camino y nada más ção de informações não confiáveis ou não condizen-
Caminante, no hay camino tes com a realidade – as indesejadas fake news.
Se hace camino al andar A literatura distópica, de que é exemplo a obra
1984, tem, aliás, lançado relevantes debates em torno
Aponte a câmera
Al andar se hace camino do celular para o de questões atuais, diante da crescente incapacidade
Y al volver la vista atrás QR Code e clique de as pessoas conseguirem discernir uma realidade
no link que vai
Se ve la senda que nunca surgir na tela.
empírica de uma realidade inventada, ainda que essa
Se ha de volver a pisar seja facilmente verificável, diante, justamente, do uso
de táticas de viés autoritário, como a do “duplipen-
Democracia: palavra doce proferida nos úl- samento”, que deliberadamente promovem cegueira
timos anos por copiosos lábios, contendo signifi- social e alienação intelectual.
cantes próprios e desconectados ao que tal mode- Outra obra do mesmo gênero, Fahrenheit 451,
lo deveria representar. Lábios marcados por poder de autoria de Ray Bradbury, denuncia o avanço da “so-
ácido e amargo, que criticaram manifestos em de- ciedade da desinformação”, fomentada pelo desprezo
fesa do Estado de Direito e ignoraram ritos, dizen- às pessoas que conheçam de literatura, filosofia, ci-
do, paradoxalmente, que dessa maneira estariam ência, cultura: em resumo, de tudo o que provoque
agindo democraticamente; que engrossaram na senso crítico sobre o que as cerca. A verdade, despre-
práxis o coro das violências simbólicas (e muitas ocupada em condizer com a Verdade,2 torna-se, nesse
outras) contra as minorias e, ao se omitirem no contexto, indiscutivelmente aquela (re)inserida ou (re)
comando de sua voz, causaram a morte, a pro- formulada nos meios de comunicação de massa pe-
pagação de doenças, a desnutrição e o aumento los detentores do poder. Assim é que os livros, fontes
de pessoas em situação de vulnerabilidade social primárias da arte escrita, não possuem outro destino
e econômica, enquanto discursavam afirmando senão a fogueira, senão o queimar, para que nada mais
atenção aos direitos de todos e todas e o acolhi- registrem nem testemunhem sobre o que há de ser
mento a pautas de representatividade. Como se o desdito no amanhã caso se torne desinteressante e
hálito oferecesse sugestivamente refresco, mas a contradiga novos argumentos autoritários.
saliva transferisse veneno. Interessante que estórias de aparente ficção
Essa capacidade de defender simultaneamen- publicadas há mais de sete décadas guardem seme-
te duas ideias opostas, tendo consciência da contra- lhança com acontecimentos de um Brasil recente.
dição mas se fazendo acreditar em ambas, consiste Há pouco mais de um mês, atos antidemocráticos
no “duplipensamento”, termo cunhado por George açoitaram as sedes dos Três Poderes em Brasília,
Orwell em sua obra 1984. Ao duplipensar, o sujeito quando, além da depredação dos prédios públicos,
“manifestantes” atentaram contra obras históri-
ca e simbolicamente importantes. Ao quebrarem,
1
Em tradução livre: “Andarilho, o caminho são as suas pe-
amassarem e arranharem a escultura Bailarina, de
gadas e nada mais; andarilho, não existe caminho, o cami-
Victor Brecheret, e ao esfaquearem em sete pontos
nho se faz ao andar / Ao andar, você constrói o caminho e
ao olhar para trás você vê a trilha que nunca deverá pisar
de novo”. Essa canção-protesto, inspirada em estrofes do 2
Nas palavras de Jacinto Coutinho (2022), Verdade, com “V
poema Campos de Castilla (1912), do poeta sevilhano An- maiúsculo”, é a verdade em sua totalidade, ao passo que verda-
tonio Machado, inspirou o título desse editorial. de, com “v minúsculo” é apenas uma parte daquela totalidade.
não-lineares o painel Mulatas, de Di Cavalcanti, os ravelmente influenciam ou influenciarão os nossos
reacionários endossaram um indefensável discur- próprios caminhos.
so de ódio contra as mulheres e, mais detidamente, Nesta edição do Boletim, trazemos artigos
contra as mulheres pretas. E mais: ao se apropria- que tratam sobre a necessária revalidação da de-
rem da réplica da Carta Magna de 1988, exprimi- mocracia e o seu papel na defesa dos direitos, e
ram o impulso em furtar, de forma arbitrária, os nos fazem ponderar em que medida situações a
direitos e as garantias constitucionalmente asse- priori execráveis podem incitar valiosos debates
gurados às pessoas que não integram o seu grupo em torno de pautas inadiáveis, v. g., a da redução e
ideológico, como se o clube da humanidade3 não da humanização do cárcere (“Por um legado menos
fosse para todas e todos. punitivista do 8 de Janeiro”, de Marcelo Semer; e
A despeito do alvoroço que temporariamente “O direito penal consensual e o desafio do desencar-
causaram nas rotinas das instituições, os atos acima ceramento”, por Simone Schreiber) e a da recons-
citados firmaram um relevante capítulo na história trução de um Poder Judiciário mais inclusivo e re-
da democracia brasileira, pois visibilizaram a exis- presentativo (“Entre a resistência e a reconstrução:
tência de um delírio coletivo alimentado por atos de qual o papel do Poder Judiciário após períodos au-
duplipensamento e de fomento a afetos negativos toritários?”, de Adriana Cruz e Clara Mota). Ainda
engendrados por um tanatogoverno, exigindo da so- sobre os atos antidemocráticos, Marina Cerqueira
ciedade civil um refletir mais atento e uma postura desponta a possível responsabilização penal dos
mais proativa ao combate do autoritarismo. agentes que com eles contribuíram ainda que in-
Parece-nos que a evitação dessa grave ma- diretamente, por meio da instigação, cumplicidade
nipulação sociocognitiva e da aguda desordem in- ou omissão imprópria (“Os atos antidemocráticos
formacional dela consequente deve considerar, so- que abalaram o Brasil e o mundo no dia 08 de Janei-
bretudo, o poder da arte da linguagem. Ainda que ro de 2023: o que a Teoria do Domínio do Fato tem
inevitavelmente o tecido social possua, em sua tra- a nos dizer?”).
ma, inúmeros fios ideológicos que orientam a sua A relevância e a atualidade do tema levaram à
densidade, o fortalecimento da democracia implica inserção de uma coluna especial, nesta edição, cha-
em admitirmos a necessidade de dialogarmos aber- mada Processo Penal e Democracia. Nela, brindamos
tamente sobre os seus reais valores, para que, a partir o leitor com um texto de Glauco Giostra (“O contra-
de bases sólidas, consigamos refletir sobre as nossas ditório: valor e limite”), que evidencia a indesejada
verdades, quase verdades e ilusões da verdade, e em possibilidade de os “achados cognitivos” serem ma-
que medida elas podem afetar a nossa própria huma- nipulados e, mesmo em contraditório, subsidiarem
nidade, o do semelhante e o do distinto. uma “injustiça baseada na sinceridade”.
É por meio da formação do pensamento ana- Já na coluna Múltiplos Olhares, a entrevista-
lítico e crítico que adquirimos alguma bagagem para da Juliana Tonche é questionada sobre o avanço da
não nos fazermos reprodutores automáticos de dis- justiça restaurativa no Brasil e a pertinência de seus
cursos autoritários, de clichês e de verdades prontas, processos dialogais no desenvolvimento de uma
mas é, inicialmente, por meio do diálogo que conse- agenda de democratização política e no combate ao
guimos expor os nossos pontos de vista, conhecer os uso de estratégias neoliberais autoritárias.
do outro e admitir a existência de visões plurais que Se a democracia segue um caminho salgado, de
podem ampliar os nossos horizontes e transformar, muita luta, lágrimas e suor, que o diálogo, o respeito
em contínuo, a maneira como enxergamos a realida- à diversidade e a defesa intransigente dos direitos de
de e nos comportamos no mundo. todas e todos sejam os sais que a preservam. Passo a
Inserir uma epígrafe em língua estrangei- passo sedimentaremos a sua estrada, verso a verso
ra em um editorial que se propõe a versar sobre a realinharemos as curvas de eventual linguagem que
democracia brasileira tem, afinal, certo papel nessa destoe dos seus significantes.
compreensão e aceitação do distante e do distinto Que os artigos desta Trincheira incitem quem
em sua totalidade: a leitura do que nos é suposta- os leia à contínua busca pelos percursos dialógicos
mente diferente, após eventual estranhamento, tem – nunca mansos nem leves, mas fundamentais– à fir-
o potencial de lançar reflexões sobre o que se pode meza da nossa democracia. Boa leitura!
captar e aprender a partir da análise de histórias,
olhares e sentidos dos mais variados, e que inexo-
Thaís Salles
3
Sobre o tema, cf. Ailton Krenak (2019).
REFERÊNCIAS

COUTINHO, Jacinto. Ou o Brasil acaba com as fake news, ou as KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São
fake news acabam com o Brasil. Coluna Ponto e Contraponto. Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Boletim Trincheira Democrática– Instituto Baiano de Direito
Processual Penal (IBADPP). Ano 5, n. 24, dez. 2022, p. 4-5.

Indicações da Edição:

O livro “Como conversar


O curta-metragem O podcast Foro de Teresina.
com um fascista: reflexões
"Democracia e Amor", Não perca o episódio “#235:
sobre o cotidiano autoritário
de Rubens Rewald. O golpe camuflado”
brasileiro”, de Márcia Tiburi.
SUMÁRIO

9 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO POR MARCELO SEMER


POR UM LEGADO MENOS PUNITIVISTA DO 8 DE JANEIRO

11 ELAS NO FRONT COM SIMONE SCHREIBER


O DIREITO PENAL CONSENSUAL E O DESAFIO DO DESENCARCERAMENTO

14 LIRISMOS INSURGENTES

ARTIGOS

16 OS ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS QUE ABALARAM O BRASIL E O MUNDO NO DIA 08 DE JANEIRO DE 2023: O


QUE A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO TEM A NOS DIZER?

18 ENTRE A RESISTÊNCIA E A RECONSTRUÇÃO: QUAL O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO APÓS PERÍODOS AUTORITÁRIOS?

21 O EMPREENDEDORISMO DE SUZANE VON RICHTHOFEN E A DIALÉTICA PERVERSA SOBRE O DIREITO AO


TRABALHO E RESSOCIALIZAÇÃO DO APENADO

23 NOTAS SOBRE A NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA DA AUTORIDADE POLICIAL PELOS SERVIÇOS DE SAÚDE E A


ILUSÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES

25 JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CRIMES DE GÊNERO: OS PERIGOS DE UM MODELO PACIFICADOR

27 COLUNA PROCESSO PENAL E DEMOCRACIA

29 MÚLTIPLOS OLHARES COM JULIANA TONCHE

32 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Marcelo Semer

Por um legado menos


punitivista do 8 de Janeiro
Nenhuma sociedade passa incólume por tem a possibilidade de nos sugerir, de forma abso-
uma tentativa de golpe com tamanha violência e lutamente paradoxal, um legado menos punitivis-
terror como o 8 de Janeiro. ta ao 8 de Janeiro.
As cenas de vândalos depredando o Supre- Chegam a ser hilárias as reclamações de que
mo, o Congresso e o Planalto, arrancando as ca- os golpistas, à espera de serem ouvidos pela Polícia
deiras, esfaqueando, jogando ao chão e pichando Federal, diziam-se privados de direitos que mais se
as obras de arte, e até defecando nas repartições, acomodavam com passageiros em férias aguardan-
vão demorar para sair da memória coletiva. Tanto do aviões em atraso - inclusive com a ampla liber-
mais que ainda convivemos com a desconfiança de dade que tiveram de permanecer com as câmeras
que elas tenham sido compartilhadas por incen- de seus telefones celulares. É certo que, em grande
tivos, conivências e omissões de autoridades de medida, fizeram mau uso dessa liberdade para pro-
vários escalões, inclusive militares. dução de notícias falsas, como mortes inventadas
Não se vê como questionável o fato de que para supostamente aumentar a comiseração.
o Ministério da Justiça esteja preparando, como Mas o fato é quando mais se aproximam do
anuncia, um pacote repressivo, sobretudo, pela sistema prisional, mais tomam contato com as re-
lacuna que a edição do tipo de terrorismo, apro- alidades inexpugnáveis, como a superlotação car-
vado em 2016, acabou causando. Naquela época, cerária, banhos em água fria, precariedade na dis-
era pleno de sentido limitar ao máximo a criação posição à assistência jurídica ou sanitária. Isso não
do tipo penal, não apenas porque não tínhamos deve nos comover pelo fato de que, enfim, aque-
história com o terrorismo, como havia a ambição les que cansaram de apregoar o sistema prisional
reacionária de utilizar o tipo penal para a crimina- como um “hotel cinco estrelas” ou “privilégios
lização do movimento social, o que efetivamente para a vagabundagem”, tenham caído na real de
era preocupante. que, tal como a massa carcerária, também estarão
Anos de negacionismo, teorias da conspi- sujeitos a insalubridades diversas.
ração e torrentes de fakes nos alertaram, tardia- Não deve nos comover mais o fato de que
mente, é verdade, que quando a extrema-direita os mais conservadores, enfim, despertaram para
cresce, terrorismo e política passam a gozar da a realidade, apenas porque ela os atinge em seus
mesma ambiência gramatical. O livro “Tambores próprios corpos. E seria indesculpável se o cárce-
à distância. Viagem ao centro da extrema-direita re acabasse sendo humanizado quando se torna
mundial”, de Joe Mulhall, recentemente lançado acessível à classe média, como se corpos pobres
no Brasil pela Editora Leya, é um bom contributo a e pretos tenham sofridos décadas e décadas sem
esta compreensão. que conseguissem chamar a atenção da sociedade.
A chegada da prisão dos tradicionais defen- Mas, ainda que fosse por essa situação oblí-
sores da violência policial, aderentes ao estandar- qua, ou seja, pelo fato de os reacionários não se
te do “bandido bom é bandido morto”, no entanto, sentirem suficientemente à disposição para con-

9
Coluna: Ponto e Contraponto

Coluna
traditar as premissas e as consequências dessas Esse pode ser exatamente o momento de
circunstâncias, e agissem pensando, mais uma resgatar esse débito histórico para com um siste-
vez, em benefícios pessoais, penso que esta é uma ma penal racional, uma arquitetura prisional mais
importante oportunidade para que os históricos humanizada e até mesmo a garantia de direitos
apelos de redução e humanização do cárcere se- tanto tempo esquecidos. Que melhor momento é
jam, enfim, implementados sem tanta oposição. esse para, enfim, assegurar de uma vez por todas o
Quem não se lembra da virulência com esse direito de voto ao preso provisório, por exemplo?
conservadorismo atuou contra o auxílio-reclusão, Não devemos dar aos que tentaram golpear
as saídas temporárias ou os indultos de pena - em o Estado nenhuma vantagem nem protagonismo.
regra, aliás, com expressiva contribuição dos gabi- Mas podemos aproveitar um momento de menor
netes de produção de fake news e discursos de ódio? contrariedade política a tantos direitos que jamais
Quanto desprezo para com a saúde prisio- se avançam, ainda que por motivos menos nobres.
nal, quanta dificuldade para a educação aos de- O governo tratará de cobrir as lacunas que
tentos, quanto repúdio ao sistema progressivo de um evento como o 8 de Janeiro costuma exibir;
cumprimento da pena, continuamente assacado mas, eleito com o acúmulo de lutas pela conten-
por demagogos de vários matizes - o mais recente ção de sistemas penais rígidos, seletivos e descui-
ataque embutido, inclusive, dentro da Lei Anticri- dados, deveria também se preocupar em aprovei-
me, que culminou como a cereja no bolo de uma tar essa janela de maior aceitação para impor, por
gestão, marcada pelo retrocesso e pela imperícia, lei e por políticas públicas, um sistema mais hu-
do ex-ministro Sérgio Moro. mano a todos.

MARCELO SEMER

Desembargador do TJSP e escritor. Mestre em Direito Penal e Doutor em


Criminologia pela Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, de
Sentenciando Tráfico. O papel dos juízes no grande encarceramento (Ed. Tirant
Lo Blanch); Princípios Penais no Estado Democrático de Direito (Tirant Lo
Blanch); e Paradoxos da justiça: Judiciário e Política no Brasil (Contracorrente).

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

10
Coluna

ELAS
NO FRONT
u
do desencarceramento
Por Simone Schreiber

Na segunda-feira passada (20/02/2023), e simples. As denúncias não surtem qualquer efei-


recebi uma mensagem de voz em um grupo de to, ninguém se sensibiliza, nada muda. E desabafa:
Whatsapp do qual participo como membro da As- para que serve a lei de execuções penais se nin-
sociação Juízes para a Democracia. Trata-se de guém cumpre essa porcaria de lei?
grupo integrado por diversos coletivos dedicados Diante dessa realidade, já constatada pelo
à questão da situação do sistema carcerário bra- STF em inúmeros precedentes, dentre eles a ADPF
sileiro, dos direitos fundamentais das pessoas en- 347, e também pela Corte Interamericana de Direi-
carceradas e à pauta do desencarceramento. tos Humanos, o que fazer? O desencarceramento
Nessa mensagem, Dona Tereza, coordenado- é a única resposta. A adoção de políticas de de-
ra e mobilizadora social da Associação de Amigos e sencarceramento, tanto a nível legislativo quanto
Familiares de Pessoas em Situação de Privação de pela construção de jurisprudência comprometida
Liberdade de Minas Gerais (Instagram: @donatere- com a libertação de pessoas. É preciso questionar
za e @gafppl_mg), relatava que naquele fim de se- a prática judiciária que fomenta o sistema viola-
mana o procedimento de revista dos familiares dos dor. Todos os atores que atuam no sistema de jus-
presos na Penitenciária Pio Carneiro, em Pato de tiça devem pensar em como agir estrategicamen-
Minas, fora “adoecedor”. Uma menina de dez anos, te para impedir o ingresso e facilitar a retirada de
levada para visitar o pai pela avó, tinha sido obri- pessoas do sistema prisional.
gada a se despir e dar diversas voltas de cócoras É nesse contexto que se deve pensar o di-
completamente nua pela sala de inspeção. reito penal consensual. O modelo consensual vem
sendo apresentado como uma solução para me-
Foi uma coisa que destruiu essa menina. lhorar a eficiência do sistema punitivo, ao argu-
Vai ser mais um preso abandonado pela mento de que muitos crimes ficam impunes, já
família no sistema prisional, porque a
que o sistema de justiça penal está sobrecarrega-
mãe dela disse que não volta mais. A fa-
mília não tem coragem de fazer denún- do e não opera de forma eficaz. A superação do
cia formal, porque se houver a denúncia, processo penal disputado atende a reclamos de
colocam a vida do preso em risco. A cada economicidade. Eficiência e pragmatismo são pa-
denúncia que o familiar faz, o preso so- lavras de ordem, nos aponta ZILLI (2022, p. 51). A
fre uma represália, é deslocado para um solução milagrosa vem com a aplicação da puni-
local mais distante da família, para que a
ção acordada pelas partes, dispensando-se o pro-
família não volte a visitá-lo.
cesso e a atividade cognitiva do juiz na construção
Dona Tereza se emociona e diz ter perdido da solução justa para o caso penal.
as esperanças. Para ela, as violações sistemáticas No Brasil, o modelo consensual foi imple-
de direitos dos presos são fruto de crueldade pura mentado progressivamente desde a edição da Lei

11
Coluna: Elas no front

n.° 9.099/95, que encontra fundamento no art. fundamentais que caracteriza nossas polícias, e a
98, I, da CF88. Posteriormente, diversos diplomas estrutura ainda deficitária das defensorias públicas.
legais previram o instituto da delação premiada, Mas, apesar da necessidade de se pensar
culminando com a Lei n.° 12.850/13, que introdu- criticamente o modelo consensual e, especifica-
ziu o acordo de colaboração premiada como meio mente, o ANPP, deve-se aplicar tal instituto a par-
de obtenção de provas para apuração de crimes tir da perspectiva antes apontada, considerando
atribuídos a organizações criminosas. E finalmen- sua potencialidade de reduzir o encarceramento
te, no âmbito da reforma de 2019, o art. 28-A do de pessoas acusadas da prática de crimes. Quanto
CPP instituiu o acordo de não persecução penal ao papel do juiz no controle da legalidade do acor-
(ANPP), ampliando sensivelmente o campo de do, dois pontos devem ser destacados: além da
aplicação das soluções negociadas no processo verificação da voluntariedade do investigado e do
penal brasileiro, já que tal instituto se aplica a um respeito às formalidades legais, o juiz deve rejei-
número considerável de crimes. tar a homologação do acordo quando não houver
Embora as tentativas de aprovar a imposi- justa causa para a ação penal. A presença de justa
ção de penas privativas de liberdade no âmbito do causa é condição sem a qual não se pode instar o
processo negocial até hoje não tenham logrado investigado a se submeter ao acordo. A confissão
êxito, tendo sido rejeitada em boa hora tal propos- exigida para a elaboração do acordo (de constitu-
ta veiculada no chamado pacote anticrime, o fato cionalidade duvidosa, diga-se de passagem) não
é que o discurso de inevitabilidade de expansão substitui a produção de elementos informativos
do modelo consensual diante da falência do siste- suficientes para eventual ajuizamento da ação, até
ma penal tradicional encontra eco no Congresso porque, sendo o caso de arquivamento do proce-
Nacional. No substitutivo apresentado ao PL 8.045 dimento investigatório, o Ministério Público não
pelo Deputado João Campos, em 26/04/2021, há deve propor o ANPP (art. 28-A CPP) (VASCON-
previsão de julgamento antecipado do mérito no CELLOS, 2022, p. 187).
procedimento sumário (art. 325, III), cabível para Em segundo lugar, embora o juiz não pos-
crimes cuja sanção máxima não ultrapasse 8 anos sa se substituir ao promotor de justiça na decisão
(art. 326, § 1º, II), quando as partes acordarem a sobre o oferecimento do acordo no caso concre-
confissão dos fatos e a aplicação de pena priva- to, caso estejam presentes os requisitos legais
tiva de liberdade (art. 342, II). A pena poderá ser para seu oferecimento, a recusa injustificada do
substituída ou ter a execução suspensa pelo juiz, parquet em fazê-lo esvazia a justa causa para o
contudo tal não é impositivo (art. 344, II e III)1. ajuizamento da ação penal. É nesse sentido a li-
Não é preciso muito esforço para perceber ção de Marcos Zilli (2022, p. 58-59), para quem o
o risco da adesão acrítica ao modelo consensual investigado tem direito à solução consensual, caso
como solução para todos os males do processo estejam presentes seus requisitos, não podendo a
penal brasileiro, pois a tendência é a imposição de posição adotada pelo MP a respeito ser totalmen-
penas à população mais vulnerável, inclusive pri- te arbitrária e não sindicável.
vativas de liberdade, sem que lhes seja assegurado E finalmente, embora não seja essa a atual
o devido processo legal, o contraditório e a ampla orientação do STJ2, deve-se partir para a adoção
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, da solução negociada em etapas avançadas do
como dita a Constituição. Tal modelo repousa na processo, e não apenas antes do ajuizamento da
falsa premissa de que as partes que estão sentadas ação, incluindo-se o momento posterior à pro-
à mesa de negociação são iguais, e de modo isonô- lação de sentença condenatória e também do
mico exercem sua vontade de forma livre, infor- próprio acórdão condenatório de segundo grau,
mada e desembaraçada. com o propósito preciso de substituir eventual
Nada mais enganoso. Basta pensarmos no pena privativa de liberdade aplicada pela solu-
perfil socioeconômico e no baixo nível de instru- ção negociada. Explica-se: ainda que o CPP pre-
ção da imensa maioria das pessoas atingidas pelo veja a realização do ANPP antes do oferecimen-
sistema de justiça penal, considerando-se ainda o to da denúncia, não é estranha ao ordenamento
racismo estrutural que permeia o sistema, a cultu-
ra de violência e de violação sistemática de direitos 2
Há divergência entre as Turmas do STF sobre a aplica-
ção do ANPP a processos iniciados antes da vigência da
1
Disponível em https://www.camara.leg.br/proposico- Lei n.° 13.964, estando a questão afetada ao Plenário no HC
esWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490263. 185983/DF, ainda não julgado.

12
Coluna: Elas no front

brasileiro a ideia de que soluções negociadas que o instituto que se analisa aqui visa justamente
podem ser apresentadas tardiamente, em situa- a não persecução penal, ou seja, a ideia é evitar a
ções específicas. Por exemplo, tal ocorre quan- própria persecução penal em juízo.
do o juiz opera a desclassificação do tipo penal Tais argumentos são relevantes. Contudo, o
inicialmente apontado na denúncia, inclusive que se propõe é ampliar o propósito da solução
no âmbito do Tribunal, quando daí decorrer a negociada, visando especificamente a substitui-
possibilidade de apresentação de proposta de ção de penas privativas de liberdade impostas por
suspensão condicional do processo (art. 383, soluções negociadas, permitindo-se por essa via
§1°, do CPP)3. alternativas à prisão, inclusive para hipótese de
Ora, se a solução negociada se apresentava penas privativas de liberdade superiores a 4 anos
possível antes do ajuizamento da ação penal, por de reclusão (art. 44 do CP). O que se propõe aqui
que não adotá-la ao final, quando o réu já vislum- para reflexão não é ampliar as hipóteses objeti-
brar mais claramente a possibilidade de ser sub- vas de cabimento do acordo, mas sim flexibilizar
metido a uma pena privativa de liberdade? Por que o marco temporal, viabilizando-se soluções ne-
proporcionar ao autor do fato a oportunidade do gociadas pós condenação, de modo a se pensar o
acordo apenas quando está inserido em um cená- instituto não só a partir da lógica da economici-
rio inicial ainda incerto e tendo que renunciar à dade e aumento da eficiência do sistema punitivo,
sua defesa? Dir-se-á que o firmamento de acor- mas também da lógica do desencarceramento de
do após o acórdão de segundo grau se antagoniza pessoas. A realidade dos cárceres brasileiros deve
com a ideia de reduzir a sobrecarga da justiça, pois atuar como um vetor fundamental na interpreta-
todos os atos processuais já foram realizados. E ção das leis penais e processual penais.

3
Nessa linha, diverge-se do posicionamento externado REFERÊNCIAS
em precedentes de ambas as Turmas do STJ no sentido
de que o patamar de pena mínima considerado para ve- VASCONCELLOS. Vinícius Gomes de. Acordo de não
rificação do cabimento do ANPP em tráfico de drogas não persecução penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
deve levar e conta a incidência do art. 33, § 4º, da Lei n.° ZILLI, Marcos. A Justiça Disputada e a Justiça Consensual.
11343/06 quando a minorante for reconhecida apenas na
Os modos de solução do conflito penal. Enredos e
sentença ou acórdão. O argumento veiculado pelo STJ é de
que, não obstante a previsão do 28-A, § 1º, CPP, para que o Intersecções. Proposta para uma tipologia. in SALGADO.
réu fizesse jus ao ANPP a minorante deveria estar descri- Daniel de Resende. KIRCHER. Luis Felipe Schneider.
ta na denúncia (AgRg no AREsp 2059445/SP; AgRg no HC QUEIROZ. Ronaldo Pinheiro de. Justiça Consensual.
770846). Tal orientação, contudo, desconsidera que a pena Acordos criminais, cíveis e administrativos. São Paulo.
justa é aquela alcançada após a prolação da sentença e não Editora Podivm. 2022.
se pode deixar ao arbítrio do MP a decisão sobre incluir
na denúncia causa específica de redução de pena, hipó-
tese que, por sinal, dificilmente ocorre, já que a denúncia,
tratando-se de uma petição de acusação, raramente inclui
narrativas que favoreçam os acusados e pleitos de incidên-
cia de atenuantes ou causas de diminuição de pena.

Simone Schreiber

Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Profes-


sora Associada de Direito Processual Penal da UNIRIO. Doutora em Direito
Público pela UERJ. Associada da Associação Juízes para a Democracia.

13
Lirismos Insurgentes

PELOS CANTOS DA CIDADE (ESTOU EU)

O caminho que traçam os passarinhos


ao voar por aí
é um presságio
da imensidão do mundo
que não veremos.

A liberdade é um privilégio que não temos,


apesar de muito tolos
nossos acasos bobos
não nos deixam mentir:
estamos perdidos.

Mas não falemos de prisões,


nem de pássaros,
nem de ouvires.
O carnaval que passou foi novo para toda
a gente
e a voz que planta a semente
esqueceu no beco a voz de Mariene.

Castro Alves morreria de vergonha.


Eu estou morto.
Agora cante por aí!
Axé axé axé

~
JOAO PABLO TRABUCO
Autor dos livros Abioto Sertanejo
(Ed. Caravana, 2021) e Ainda
Há Vida (Ed. Folheando, 2022), advogado,
professor e mestre em Direito pela UFBA.
Lirismos Insurgentes

VERDADE SEM TÍTULO


As pessoas dizem
“A minha verdade”
Mas na verdade
Não existe Verdade
Existe uma versão
Da realidade
Realidade?
Ilusão.

Iuri Moradillo
Advogado, fotógrafo.
Artigos

Os atos antidemocráticos que abalaram o Brasil


e o mundo no dia 08 de Janeiro de 2023: o que a
Teoria do Domínio do Fato tem a nos dizer?
Por Marina Cerqueira

O dia 08 de Janeiro de 2023 ficará, para nio da ação, compreendido como autoria direta ou
sempre, registrado na memória do Brasil e do imediata, b) o domínio da vontade, isto é, a autoria
mundo: manifestantes bolsonaristas radicais in- mediata ou indireta, além c) do domínio funcional
vadiram a sede dos três poderes da República e do fato, é dizer, a coautoria (GRECO; LEITE, 2014).
depredaram parte do patrimônio público nacio- A autoria direta é exercida por aquele que
nal, por meio de condutas manifestamente con- executa, diretamente, a conduta típica, ou seja, o
trárias à ordem democrática. verbo-núcleo do tipo, ao passo que a autoria me-
As investigações já estão em curso, mas ain- diata se dá quando o autor se vale de outrem, por
da permanecem reflexões e dúvidas sobre os pos- coação, por erro, ou por domínio dos aparatos
síveis crimes praticados, bem como o alcance da organizados de poder do Estado, para executar
responsabilidade penal daqueles que, embora não o crime. Por fim, mas não menos importante, o
tenham executado diretamente determinados cri- domínio funcional é a manifestação da coautoria,
mes, poderiam estar, em tese, envolvidos. isto é, quando todos assumem a figura central do
Pois bem. A fim de colocar luzes nesta ques- acontecer típico por meio de distribuição de tare-
tão, é fundamental tecer, ainda que sucintamente, fas (GRECO; LEITE, 2014).
algumas considerações sobre concurso de pesso- Por outro lado, será considerado partícipe
as, bem como sobre a teoria do domínio do fato, aquele que exerce uma contribuição secundária na
que tem sido utilizada pela jurisprudência brasi- empreitada criminosa, seja prestando um auxílio
leira, como foi o caso da ação penal 470, de com- material, o que se chama de cúmplice, seja auxilian-
petência do Supremo Tribunal Federal. do moralmente, isto é, instigando o autor a praticar
Como se sabe, o Código Penal brasileiro, ao determinado fato ilícito (GRECO; LEITE, 2014).
tratar do tema atinente ao concurso de pessoas1, Realizadas tais breves, mas importantes,
adotou a teoria monística ou unitária, isto é, não considerações, cumpre-se indagar: quais seriam
cuidou de estabelecer diferença entre autoria e par- os possíveis crimes praticados por aquele grupo
ticipação, de modo que “quem, de qualquer modo, de manifestantes radicais bolsonaristas? Seria
concorre para o crime, incide nas penas a este co- possível a responsabilização de agentes públicos?
minadas, na medida de sua culpabilidade”. Conclui- Em caso afirmativo, por qual(is) crime(s)?
-se que, desde que respeitados os demais requisi- Os tipos penais que têm incidência diante
tos, todos serão responsabilizados pelo(s) mesmo(s) daqueles gravíssimos atos que tentaram conturbar
crime(s). Mas a questão é: quem será considerado o Estado de Direito e impor a vontade pelo uso da
autor e quem será o partícipe? Qual(is) requisito(s) força, são aqueles previstos nos artigos 359-L (abo-
que define(m) a autoria e a participação? lição violenta do Estado Democrático de Direito),
Nesse sentido, a fim de propor uma diferen- 359-M (golpe de Estado), ambos inseridos no Código
ça entre autor e partícipe, a doutrina e a jurispru- Penal pela Lei n.° 14.197/2021, que revogou a Lei de
dência pátrias têm se valido da teoria do domínio Segurança Nacional – Lei n.° 7.170/1983; 288 (asso-
do fato, defendida por Claus Roxin. ciação criminosa); 155, parágrafo 4º, I (furto qualifi-
De acordo com o referido professor, será cado: com destruição ou rompimento de obstáculo à
considerado autor quem atua com o domínio do subtração da coisa); 163, III (dano qualificado: contra
fato, ou seja, aquele que assume a figura central o patrimônio da União); 286 (incitação ao crime), to-
do acontecer típico (Zentralgestalt des tatbestand- dos do Código Penal. Registre-se que, na hipótese
maBigen Geschehens) (GRECO; LEITE, 2014, p. 25), de condenação, as penas, se somadas, podem al-
manifestando-se, pois, de três formas: a) o domí- cançar mais de 30 (trinta) anos.
A Lei n.° 13.260/2016 (que disciplina o ter-
rorismo), não tem incidência no caso, haja vista
1
Artigos 29 e seguintes do Código Penal. que o seu artigo 2º, ao definir terrorismo, excluiu

16
Artigos

a prática de atos por razões políticas, encerrando, ca para eventual futura ação penal, a correta apli-
pois, a discussão sobre a possibilidade de se atri- cação da teoria do domínio do fato, assim como a
buir a tais atos a qualificação jurídica de terroris- compreensão crítica da omissão, deve servir para
mo. Como se sabe, “o princípio da legalidade dos melhor fundamentar as posições assumidas por to-
crimes e das penas responde, ainda que num plano dos aqueles que, de alguma maneira, estão envolvi-
formal e retórico, a uma exigência de segurança ju- dos na prática dos referidos atos antidemocráticos.
rídica e de controle do exercício do poder punitivo” Uma nota, contudo, é fundamental: o pro-
(QUEIROZ, 2016, p. 77). blema que a referida teoria se propõe a solucionar
Ora, já foi possível identificar muitos daque- é o de diferenciar autor de partícipe. “Em geral,
les autores diretos, mas, com as investigações em como já se insinuou, não se trata de determinar se
curso, que, certamente, oferecerão lastro probató- o agente será ou não punido, e sim se o será como
rio mínimo para oferecimento de peça acusatória autor, ou como mero partícipe” (GRECO; LEITE,
pelo Ministério Público, poderão alcançar aqueles 2014, p. 22). Outra nota, de igual modo, também:
que, embora não tenham executado diretamente “Há delitos cuja autoria se determina com base
as citadas condutas típicas, assim o fizeram por em outros critérios, que não a ideia de domínio do
meio de instigação, cumplicidade ou, até mesmo, fato” (GRECO; LEITE, 2014, p. 31), como é o caso
por omissão imprópria, cuja autoria é regida por dos delitos de dever, de mão própria e culposos
critérios distintos do domínio do fato. (GRECO; LEITE, 2014).
Dito mais claramente, aqueles, inclusive O Brasil e toda comunidade internacional
eventuais autoridades públicas, que prestaram seguirão atentos aos desdobramentos das inves-
alguma contribuição secundária, seja instigando, tigações e, respeitadas as regras do due process of
seja oferecendo algum auxílio material, poderão law, exigirão a responsabilidade penal de todos os
ser responsabilizados, como partícipes, de tais envolvidos: autores, instigadores e/ou cúmplices,
graves atos. além daqueles que, podendo e devendo agir, omi-
Mas não é só. Há outra questão interessante: tiram-se diante da barbárie.
se, por hipótese, com a avançar das investigações, A Democracia vencerá!
reste comprovada eventual omissão por parte de
determinados funcionários públicos, eles devem
responder pela omissão, propriamente dita, como, REFERÊNCIAS
por exemplo, por prevaricação (retardar ou deixar
de praticar ato de ofício…), tipificado no art. 319 do ASSIS, Augusto; GRECO, Luís; LEITE, Alaor; TEIXEIRA,
Código Penal, ou seria possível a responsabiliza- Adriana. Autoria como domínio do fato: estudos introdu-
ção pela prática daqueles atos como se tivessem tórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasi-
atuado de forma comissiva? leiro, 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
Com efeito, o art.13, parágrafo 2º, do Código QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 12 ed. rev.,
Penal, ao tratar da omissão penalmente relevante, ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016.
estabelece que o dever de agir para evitar o resul- TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. Marcial
tado incumbe aos garantidores, isto é, aqueles que Pons, 2012.
possuem uma relação especial de proteção com
o bem jurídico. Nesse sentido, tais sujeitos, desde
que respeitados os demais requisitos, respondem MARINA CERQUEIRA
pela omissão imprópria, ou seja, respondem pelo
resultado, visto que a omissão é equiparada jurídi- Mestra em Direito Públi-
co-penalmente à ação (TAVARES, 2012). co pela UFBA, Doutoranda
É dizer, “o exercício de determinadas fun- em Ciências Jurídicas pela
ções ou serviços públicos, ainda que não regula- Universidade Autónoma de
mentados, ou mesmo regulamentados de forma Lisboa (UAL), Professora
genérica, pode configurar aos seus ocupantes uma de Direito Penal de graduação e pós-graduação,
posição de garantidor” (TAVARES, 2012, p.330), ra- servidora do Ministério Público da Bahia, com
zão pela qual seria possível a responsabilização atuação na assessoria especial criminal da Pro-
como se tivessem atuado comissivamente. curadoria-Geral de Justiça, ex-presidenta e atual
Sem dúvida, após uma investigação criminal conselheira do IBADPP.
profícua, capaz de oferecer suficiente base empíri-

17
Artigos

Entre a resistência e a reconstrução:


qual o papel do Poder Judiciário após
períodos autoritários?
Por Adriana Cruz e Clara Mota

Nos últimos anos, o Brasil se viu diante da a conformação de uma justiça democrática.
acelerada erosão dos seus pilares constitucionais, O existir e resistir das juízas e juízes duran-
o que foi chamado pela Ministra Cármen Lúcia de te emergência de riscos à democracia no Brasil se
“cupinização institucional”1 e por Vieira, Glezer deu tanto por uma agenda de defesa democrática
e Barbosa (2023) de “infralegalismo autoritário”2. ostensiva quanto pelo julgamento de temas am-
Com maior ou menor ênfase, estudiosos apontam bientais, sanitários, direitos indígenas, garantias
que coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) um e direitos individuais, dentre outras frentes. O
papel de resistência a esse processo de ataque à Poder Judiciário, mais especialmente a Suprema
Constituição de 1988, seja garantindo o processo Corte, pronunciou-se sobre propaganda eleitoral
eleitoral, seja defendendo-se de múltiplos ataques. e fake news (ADI 7261), sobre atos antidemocráti-
E o que vem agora? Haverá um movimento cos e suas repercussões (Inq. 4781), lidando ainda
judicial ativista de reconstrução? com consequências graves da pandemia de CO-
A partir de um breve inventário sobre a atu- VID-19. Vieira, Glezer e Barbosa (2023) fazem um
ação do Poder Judiciário nesse passado recente, resumo da postura do STF:
buscamos refletir sobre essa questão central para
Identificamos que, após uma primeira
etapa marcada por uma retórica mais
1
Cf. notícia “Cármen Lúcia fala da ‘cupinização’ institucional do conciliadora, o STF passou a se mostrar
meio ambiente”. Disponível em: https://www.migalhas.com. cada vez mais preocupado e disposto a
br/quentes/362907/carmen-lucia-fala-da-cupinizacao- controlar atos do governo e repelir a es-
institucional-do-meio-ambiente. Acesso em: 15.02.2023. calada de ataques e ameaças de Bolso-
2
O processo de “infralegalismo autoritário” é, para os naro e seus apoiadores ao próprio STF e
referidos professores, um método que “privilegiou a seus ministros. Quanto mais Bolsonaro
implementação de uma agenda populista e autoritária por intensificava seus ataques, mais respon-
meio da edição de decretos, nomeações e ações no âmbito sivo se mostrava o STF.
administrativo, orçamentário e burocrático, amparadas por Durante o primeiro ano de governo,
pressões parainstitucionais sobre agentes públicos e voltadas o STF interferiu pouco nos atos de
para a erosão ou neutralização de diversos direitos e valores Bolsonaro. Já a partir de dezembro
estabelecidos pela Constituição de 1988”. de 2019, começou uma inflexão nessa

18
Artigos

conduta. O STF passou a reagir de for- Ao longo da nossa prática profissional


ma mais robusta ao presidente e seus
e trabalhos teóricos, temos defendido que a
apoiadores mais radicais. Essa mudan-
ça de postura coincidiu com a escalada persistência da baixa participação de mulhe-
de ameaças e acusações do presidente res, negras, negros e indígenas, na justiça do
contra os demais poderes, a instaura- nosso país, é elemento que atravessa a crise
ção de inquéritos para investigar de- de legitimidade judicial. Essa face do proble-
núncias do então ministro da Justiça ma começou a ser enfrentada pela Resolução
contra Bolsonaro e a atitude negacio-
n.º 203/2015, do Conselho Nacional de Justiça
nista e negligente de Bolsonaro duran-
te a pandemia de Covid-19. (CNJ), que regulamentou a política de cotas nos
concursos do Poder Judiciário, instituída pela
A resistência não foi exclusiva da cúpula e Lei n.º 12.990/14 e declarada constitucional
esteve longe de ser uma tarefa fácil. É sabido que pelo STF na ADC 41. Em 2022, o CNJ voltou a
líderes autoritários têm como um dos seus prin- se debruçar sobre tema e, acolhendo sugestões
cipais objetivos o de exercer controle sobre o Po- do Relatório de Atividade Igualdade Racial no
der Judiciário. Por meio dessa manobra, buscam Judiciário, fruto de grupo de trabalho integra-
sobretudo afunilar a competição eleitoral, perse- do majoritariamente por juízas e juízes negros,
guindo opositores3. Assim, a dinâmica de ataque editou a Resolução n.° 457, que estabeleceu a
autoritário e resistência judicial tem se repetido obrigatoriedade das bancas de heteroidentifi-
em outras democracias. cação e outras disposições, com o escopo de
As eleições brasileiras foram realizadas no tornar mais efetivo o mecanismo de acesso.
contexto de intensas ofensas às instituições judi- A abordagem mais direta da questão de gê-
ciais, culminando na criminosa destruição do pré- nero, especialmente em sua dimensão intersec-
dio do Supremo Tribunal Federal no último dia 08 cional, encontra-se em aberto. A Resolução n.º
de janeiro. Ao se entrincheirar na defesa da demo- 255 do CNJ, que institui a política nacional de in-
cracia e do processo eleitoral, o Poder Judiciário centivo à participação feminina no Poder Judici-
transformou-se em alvo preferencial. A instituição ário, representou um avanço importante, porém,
tem a chance de sair desse desafio mais forte. parece-nos inadiável endereçar os problemas de
De partida, nesse duro contexto, ao pensar desenvolvimento nas carreiras, que hoje nos apre-
a guinada em direção à reconstrução, enquanto se sentam um cenário de decréscimo de mulheres
refazem espaços físicos e simbólicos do Poder Ju- em geral nas Cortes de 2º Grau e Tribunais Su-
diciário, sugerimos alguns caminhos em direção a periores e ausência quase absoluta de mulheres
um ethos judicial mais democrático e inclusivo. Nas negras e indígenas.
palavras de Zaffaroni (1994), “um poder judiciário A formação permanente dos quadros e a qua-
deteriorado conspira contra uma democracia”. lidade da jurisdição prestada também têm sido ob-
Consideramos que esse momento deve ter jeto de atenção dos órgãos judiciais. Como Adriana
como ponto de partida a promoção da equidade Cruz (2011) já teve oportunidade de registrar:
e diversidade nas instituições judiciais brasileiras.
A diferença e a desigualdade, analisadas A construção de um Judiciário inclusivo
não só, mas especialmente, sob os marcadores de depende, portanto, do reconhecimen-
to de que o Direito está estabelecido a
raça, gênero e classe, são aspectos estruturantes
partir de uma racionalidade que divide
da sociedade brasileira. as vidas que merecem ou não ser vividas.
Parece-nos que a incorporação das diferen- Os estudos do filósofo Achille Mbembe,
ças como força para fazer frente às desigualdades que desloca a noção de soberania das
que corroem o tecido social, a legitimidade do concepções tradicionais para defini-la a
Poder Judiciário e o bem viver das pessoas preci- partir do poder de matar e deixar viver,
são essenciais neste sentido.
sa ser efetivada sob as perspectivas interna e ex-
O sistema jurídico está estruturado para
terna, e materializada sob três eixos: aperfeiçoa- não reconhecer os sujeitos que não se en-
mento e aprofundamento das políticas afirmativas quadram no molde que é tido por universal.
para acesso aos cargos; formação qualificada dos
quadros; e atenção à qualidade da jurisdição pres- A educação judicial é, portanto, fundamental
tada à população em situação de vulnerabilidade. para esse momento de reconstrução. Conforme
defenderam Mota, Gomes e Santos (2019),
3
Ver LIÑAN (2021).

19
Artigos

mesmo que tenha representado um REFERÊNCIAS


ganho qualitativo em relação ao que
CRUZ, Adriana Alves dos Santos. Desafios para um Judici-
existia, a regulamentação vigente não
cuidou de transformar a exigência de ário inclusivo. In: SADEK, Maria Teresa et al. (Org). O Ju-
“humanística” em um saber contextua- diciário do nosso tempo: grandes nomes escrevem sobre
lizado, crítico e voltado à resolução de o desafio de fazer justiça no Brasil. Rio de Janeiro: Globo
problemas. É usual que os candidatos Livros, 2011. p. 171-177.
ao cargo de juiz sejam arguidos sobre MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado
ética numa perspectiva escolástica,
de exceção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
mas não saibam endereçar questões
sobre os desafios identitários e redis- MOTA, Clara; SANTOS, Pedro Felipe O.; GOMES, Maria
tributivos que fazem parte da realida- Tereza Uille. Concurso público para a magistratura: por-
de brasileira. que a idade mínima não é o verdadeiro problema. Portal
Jota Info, publicado em 21.05.2019. Disponível em: https://
A solução dos conflitos, tendo em conside- www.jota.info/carreira/concurso-publico-para-magis-
ração as desigualdades que os conformam e as tratura-por-que-idade-minima-nao-e-o-verdadeiro-pro-
assimetrias entre as partes envolvidas, não pode blema-21052019. Acesso em: 22 fev. 2023.
depender exclusivamente da sensibilidade das LIÑAN, Aníbal Perez. The role of Justice in the face
pessoas envolvidas no ato de julgar. Essa missão é of authoritarianism. Disponível em: https://dplf blog.
institucional e coletiva. com/2021/05/26/the-role-of-justice-in-the-face-of-au-
A Presidente do Supremo Tribunal Fede- thoritarianism/. Acesso em: 15.02.2023.
ral, na recente abertura do ano judiciário, ad- VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura
vertiu que 1.001 vezes poderia ser reconstruído Pereira. Supremocracia e infralegalismo autoritário: o com-
o prédio da Corte. Esse simbolismo deve trans- portamento do Supremo Tribunal Federal durante o governo
versalizar e impregnar o Poder Judiciário como Bolsonaro. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/
um todo. Que a reconstrução seja de todas as MhZGQpCF7MTNfVF5BFsvrnv/. Acesso em 18.01.2023.
nossas fundações, com inclusão, representati- ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Estructuras judiciales. Im-
vidade e democracia. prenta: Buenos Aires, Ediar, 1994.

ADRIANA CRUZ CLARA MOTA

Juíza federal e doutora em Di- Juíza federal e doutora em


reito Penal pela Universidade Direito Econômico pela
do Estado do Rio de Janeiro. Universidade de São Paulo.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

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Artigos

O empreendedorismo de Suzane Von Richthofen


e a dialética perversa sobre o direito ao trabalho
e ressocialização do apenado
Por Eveline Conceição Santos

As problemáticas relacionadas à ressocializa- Assim, Suzane von Richthofen é uma conde-


ção de egressos e presos em cumprimento de pena nada exercendo o seu direito ao trabalho, ao passo
não é recente. Do mesmo modo, as dificuldades que materializa a pretensão da Convenção Ame-
tangentes à profissionalização e inserção/reinser- ricana sobre Direitos Humanos quanto ao múnus
ção no mercado de trabalho por esses grupos não da pena privativa de liberdade, readaptando-se
soa como nenhuma novidade. Contudo, notícias socialmente. Ainda que as suas atividades não se
recentes envolvendo condenados por crimes na- deem mediante contratação por particular ou em-
cionalmente conhecidos reavivam o debate sobre presa, o caráter ressocializador se faz presente.
“até onde um condenado pode ir exercendo seu di- No entanto, o caso em testilha revela ainda
reito de trabalhar sem ofender o senso comum?”. a perspectiva discriminatória da dialética sobre
Nesse contexto, o caso de Bruno, condenado a reintegração social do apenado. Suzane causa
pela morte de Eliza Samudio, dividiu opiniões den- espanto porque acostumaram-se a encarcerar e
tro e fora da comunidade jurídica na ocasião em condenar aqueles que, historicamente, são mais
que foi empregado por um clube de futebol para vulneráveis, pretos e pobres, e que, conforme Le-
desempenhar a função de goleiro (BATISTA, 2022). vantamento Nacional de Informações Penitenciá-
À época, aqueles que se insurgiram contra a ocupa- rias (INFOPEN), compõem 61,7% da população car-
ção de Bruno, que cumpria pena em regime semia- cerária nacional e dos quais 75% sequer possuem
berto, diziam que a situação era um desrespeito à ensino fundamental completo (BRASIL, 2019).
família da vítima e à sociedade, sobretudo por con- Notadamente, a estes, quando conseguem
ta da remuneração considerável que ele receberia. trabalho fora das unidades prisionais, reservam-
Agora, os holofotes se voltam para Suzane -se apenas às ocupações de servilismo. Uma jo-
von Richthofen, condenada pelo homicídio dos vem branca que herda de sua avó R$ 1.000.000,00
pais junto aos Irmãos Cravinho. Beneficiada pela (um milhão de reais) para recomeçar e abre o seu
progressão no início de 2023, a jovem passou próprio negócio (SEPULVEDA, 2023) foge a regra
a cumprir pena em regime aberto e, ao deixar a de um sistema que se habituou a dizer “não” para
Penitenciária Feminina de Tremembé, constituiu egressos pretos, pobres e sem educação básica
um CNPJ como microempreendedora individual e que, por vezes, voltam a delinquir e alimentar o
inaugurou um e-commerce, batizado de Su Entre looping carcerário que já conhecemos.
Linhas, onde comercializa acessórios femininos Nessa esteira, a oportunidade de trabalhar
que produz artesanalmente. com dignidade gozada por Suzane merece ser vis-
Ocorre que a iniciativa de Suzane não foi ta não pelo crivo da moralidade, mas pelo da ra-
bem vista por muitos, pois, novamente, questio- zoabilidade, e estendida àqueles, àquelas e àquelxs
nou-se a razão de a garota condenada por um cri- cujos rostos se diferem do dela, mas que amargam
me atroz poder sair da penitenciária e abrir um mazelas há séculos e integram a maioria da popu-
micronegócio. E é a partir disso que chegamos lação prisional brasileira.
à essência da ideologia que sustenta estes argu- Com efeito, ainda que esta temática não al-
mentos: quem ela pensa que é para achar que tem cance a população de presos provisórios, ridicu-
esse direito? larizar ou maldizer o exercício de um direito ins-
A resposta é simples e se funda na Lei de tituído não apenas como preparo para reinserção
Execução Penal que, em consonância com as ga- social, mas para ressignificar o olhar do indivíduo
rantias sobre os direitos sociais dispostas no art. sobre as suas atitudes, habilidades e, principal-
6º da Constituição Federal, disciplina em seu art. mente, sobre si mesmo, é incorrer em excesso de
28 que “o trabalho do condenado, como dever so- crueldade na execução da pena (SANTOS, 2014).
cial e condição de dignidade humana, terá finali- Suzane von Richthofen, assim como o golei-
dade educativa e produtiva”. ro Bruno, inaugura uma era de precedentes que

21
Artigos

mitigam os lugares e as condições impostos a ape- Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José,
nados e egressos em seus processos de ressocia- Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. Disponível em ht-
lização. Desse modo, é importante que o Estado, tps://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.conven-
especialmente através do Judiciário e das Secreta- cao_americana.htm. Acesso em 08 fev. 2023.
rias de Administração Penitenciária, e a sociedade SANTOS, Carla Adriana da Silva. Ó pra í, prezada! Racismo
aprendam a lidar com estas novas narrativas para e sexismo institucionais tomando bonde no conjunto pe-
que, um dia, possamos testemunhar um ecossiste- nal feminino de Salvador. Dissertação (Mestrado) – Uni-
ma de reintegração social de fato funcional. versidade Federal da Bahia, 2014.
SEPÚLVEDA, Bruno. Suzane von Richthofen sai da prisão
com patrimônio milionário após cumprir pena por assas-
REFERÊNCIAS sinato dos pais. Canal Ciências Criminais, Porto Alegre,
16 jan. 2023. Disponível em: https://canalcienciascrimi-
BATISTA, João Ricardo. Bruno pode ser contratado como nais.com.br/suzane-richthofen-patrimonio-milionario/>.
goleiro? Moralidade x Legalidade. Canal Ciências Crimi- Acesso em 13 fev. 2023.
nais, Porto Alegre, 11 ago. 2022. Disponível em: https://
canalcienciascriminais.com.br/bruno-pode-ser-contra-
tado-como-goleiro/. Acesso em 02 fev. 2023. EVELINE SANTOS
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Levanta-
mento nacional de informações penitenciárias: período Advogada Criminalista. Gra-
de janeiro a junho de 2019. Depen, Brasília/DF, 24 jun. 2020. duada em Direito pela Univer-
BRASIL. Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei sidade Católica do Salvador.
de Execução Penal. Disponível em: https://www.planalto. Pós-graduada em Ciências
gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em 03 fev. 2023. Criminais (CERS).
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.

IBADPP REALIZA

VEM AÍ

2ºDO IBADPP SEMINÁRIO REGIONAL

CIÊNCIAS CRIMINAIS E DEMOCRACIA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ


AUDITÓRIO DO CENTRO DE ARTE E CULTURA

Rodovia Jorge Amado, Km 16 - Salobrinho


Ilhéus, Bahia

Realização

22
Artigos

Notas sobre a notificação compulsória da auto-


ridade policial pelos serviços de saúde e a ilusão
da proteção dos direitos das mulheres
Por Mariani Bortolotti Fiumari

Em agosto de 2020, a comunidade jurídica gislativa de 20182, o fato de ser o crime de estupro
e médica recebeu com perplexidade a publicação processado mediante ação pública incondicionada
da Portaria n.º 2.282, de 27 de agosto de 2020, do não obriga a vítima, testemunhas, médicos ou qual-
Ministério da Saúde, que dispunha sobre o pro- quer outra pessoa a noticiá-lo à autoridade pública
cedimento de justificação e autorização do aborto (art. 5º e art. 27 do Código de Processo Penal). Isso
legal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). não significa que, chegando a notícia às autoridades
O documento passou a exigir dos médicos competentes, não serão elas obrigadas a investigar.
e demais profissionais da saúde a notificação da A inconstitucionalidade e a ilegalidade da
autoridade policial em casos de abortamento de portaria são evidentes quando colocados alguns
vítimas de estupro1, disposta no art. 1º (BRASIL, pontos em perspectiva:
2020a). O parágrafo único também obrigava a 1. O aborto seguro decorrente de violência
preservação de possíveis evidências da violência sexual é legal e direito da mulher que o procura,
sexual, a exemplo de fragmentos de embrião ou como autorizado no art. 128 do Código Penal. Não
feto, com o objetivo de identificar a autoria do são exigidos quaisquer documentos (boletim de
crime. Além disso, com o claro objetivo de cons- ocorrência, exame de corpo de delito) ou autori-
tranger e desestimular a interrupção de gestação zação judicial para a realização do procedimen-
decorrente de crime, o art. 8º obrigava a equipe to. A palavra da vítima deve ser acreditada pela
médica a “informar [à gestante] acerca da possi- equipe de saúde e considerada junto dos proce-
bilidade de visualização do feto ou embrião por dimentos médicos adequados (anamnese, exames
meio de ultrassonografia”. clínicos, idade gestacional, entrevistas com psicó-
A constitucionalidade da portaria fora logos e assistentes sociais etc.). Essa é, inclusive, a
questionada no STF por meio da ADI 6552 e orientação dada pelo próprio Ministério da Saúde
ADPF 737, mas, antes mesmo do pronunciamen- na cartilha com orientações jurídicas aos profis-
to judicial, o Ministério da Saúde substituiu o sionais da área (BRASIL, 2012, p. 68).
documento pela Portaria n.º 2.561, de 23 de se- 2. O sistema público de saúde deve ser local
tembro de 2020, retirando a disposição do art. de acolhimento, cuidado, proteção e informação
8º e mantendo a notificação compulsória à auto- daquelas que buscam atendimento médico, sobre-
ridade policial, bem como a preservação das evi- tudo em caso de violência. Não é função da equipe
dências do crime de estupro no art. 7º, incisos I médica operar como um braço do sistema de jus-
e II (BRASIL, 2020b). A notificação compulsória, tiça criminal, contribuindo de forma compulsória,
segundo o Ministério da Saúde, era justificada às vezes contra a vontade da própria vítima, com a
pelo fato de ser o crime de estupro processa- persecução penal. Faz parte dos princípios do SUS
do mediante ação penal pública incondicionada a preservação da autonomia da vontade das pesso-
com a promulgação da Lei n.º 13.718/2018, que
alterou o art. 225 do Código Penal. Nos termos 2
A alteração da lei retirou a autonomia da vítima adulta em
do regramento revogado (Lei n.º 12.015/2009), decidir dar início (ou não) à persecução penal sobre tema tão
para as vítimas maiores de 18 anos, o crime só íntimo quanto a sua liberdade e dignidade sexual. A alteração
era processado mediante representação. da forma de processamento não estimula, por si só, que mais
Apesar de poder-se lamentar a alteração le- vítimas notifiquem crimes sexuais às autoridades, sobretudo
quando sabem que estão sujeitas a tratamento revitimizante
pelos próprios agentes públicos. A título de comparação, o
1
A portaria tornou compulsória a notificação para vítimas crime de violação sexual contra vítimas maiores de 18 anos
maiores de 18 anos. Para vítimas crianças ou adolescentes a em Portugal é processado somente mediante representação
obrigação é prevista no ECA. (art. 178 do CP), assim como na Itália (art. 609-septies do CP).

23
Artigos

as na defesa de sua integridade física e moral, con- ler os deveres assumidos pelo Estado brasileiro na
forme previsão do art. 7º, III, da Lei nº 8.080/1990. proteção dos direitos das mulheres.
A Lei n.º 12.845/2013, inclusive, dispõe sobre o
atendimento imediato e obrigatório pelos hospitais
da rede SUS das vítimas de violência sexual e inclui REFERÊNCIAS
no art. 3º a facilitação do registro da ocorrência a
depender da vontade da vítima e a profilaxia da gra- ARTIGO 19. Acesso à informação e aborto legal: mapeando
videz. desafios nos serviços de saúde. São Paulo, 2019. Disponí-
A Organização Mundial da Saúde trata em vel em: < https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/
cartilha técnica sobre a necessidade de remoção files/2019/06/Acesso-a-Informa%C3%A7%C3%A3o-e-
dos obstáculos administrativos para a interrupção -Aborto-Legal_FINAL.pdf>. Acesso 14 fev. 2023.
da gravidez decorrente de violência sexual, pois a BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Por-
exigência de comunicação à polícia pode dissuadir taria nº 13, de 13 de janeiro de 2023. Brasília, 2023. Dispo-
a busca do atendimento médico e do procedimen- nível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta-
to seguro (OMS, 2013, p. 92-93). ria-gm/ms-n-13-de-13-de-janeiro-de-2023-457959944>.
Pode-se dizer com segurança que muitos Acesso 14 fev. 2023.
dos motivos pelos quais vítimas de crimes sexuais BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Porta-
não buscam a autoridade policial estão relaciona- ria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020. Brasília, 2020a. Dis-
dos ao medo de retaliação do agressor, à potencial ponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/por-
exposição do seu caso e, sobretudo, ao tratamento taria-n-2.561-de-23-de-setembro-de-2020-279185796>.
hostil e estigmatizante dos operadores do sistema Acesso 14 fev. 2023.
de justiça. Não são poucos os relatos de violência BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Por-
institucional e um deles, de repercussão nacional, taria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Brasília, 2020b.
provocou a promulgação das Leis n.º 14.242/2021 Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/
(Lei Mariana Ferrer) e n.° 14.321/2022 (TICIANELLI; portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814>.
FIUMARI; CANESIN, 2021). Acesso 14 fev. 2023.
3. Por último, o atendimento médico daque- BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos
la que busca o abortamento legal é revestido de agravos resultantes da violência sexual contra mulheres
sigilo por força do Código de Ética Médica (art. e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, 2012. Dis-
73 da Resolução CFM 2.217/2018) e do art. 207 do ponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco-
Código de Processo Penal, que impede médicos e es/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.
outros profissionais de testemunharem em razão pdf>. Acesso 14 fev. 2023.
da atividade exercida. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortamento segu-
Felizmente, em 13 de janeiro de 2023, o Mi- ro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde.
nistério da Saúde revogou a Portaria n.º 2.561/2020 2. ed. Genebra, 2013. Disponível em: <https://apps.who.int/
diante do evidente conflito com os princípios cons- iris/bitstream/handle/10665/70914/9789248548437_
titucionais, com as normas legais e com os compro- por.pdf?sequence=7>. Acesso 14 fev. 2023.
missos internacionais assumidos pelo Brasil (BRA- TICIANELLI, Marcos; FIUMARI, Mariani Bortolotti; CANESIN,
SIL, 2023). Permanecem, no entanto, os problemas Vinicius Bonalumi. Revitimização nos crimes de gênero: re-
ora suscitados em torno da Lei n.º 13.931/2019, que flexões sobre o atual panorama jurídico e rumos para evitá-la.
passou a exigir a notificação compulsória da auto- In: HAMMERSCHMIDT, Denise (Org.). Tratado dos direitos
ridade policial pelos serviços de saúde nos casos de das mulheres. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2022, p. 437-456.
violência contra as mulheres.
O novo posicionamento do Ministério da MARIANI FIUMARI
Saúde, contudo, não impede que hospitais se opo-
nham à realização do aborto seguro. Segundo da- Advogada. Professora de pro-
dos do relatório “Aborto legal” (2019), 65 hospitais cesso penal na graduação e
no país não realizam o abortamento nas hipóteses na pós-graduação em Direito.
autorizadas em lei. Mestra em Ciências Criminais
Essa realidade coloca em risco a vida de pela Faculdade de Direito da
mulheres (e meninas) que não encontram o aco- Universidade de Coimbra, com período de investi-
lhimento adequado, e deve ser fiscalizada mais de gação na Universidade de Pavia. Graduada em Direi-
perto pelo Ministério da Saúde a fim de fazer va- to pela Universidade Estadual de Londrina.

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Artigos

Justiça restaurativa em crimes de gênero: os pe-


rigos de um modelo pacificador
Por Michelle Karen Batista dos Santos

A justiça restaurativa (JR) surge nos anos plementação de projetos se deu especialmente no
de 1970 como um modelo radicalmente diferente campo da violência doméstica, a partir do ano de
de resolução de conflitos, inaugurando uma nova 2017, com protagonismo do Conselho Nacional de
forma de pensar o crime e a pena, e propondo um Justiça. Desde aquele ano, então, passou-se a dis-
deslocamento da vítima para o núcleo central do cutir amplamente sobre a aplicação da justiça res-
fazer justiça. taurativa nesses casos, especialmente pelo Poder
Nesse sentido, é conhecida como “um pro- Judiciário, ocorrendo, posteriormente, o desen-
cesso pelo qual as partes envolvidas em uma espe- volvimento de programas em Juizados de Violência
cífica ofensa resolvem, coletivamente, como lidar Doméstica e Familiar contra a Mulher em todo o
com as consequências da ofensa e as suas implica- país, tendo como principais unidades de referência
ções para o futuro” (MARSHALL, 1996, p. 37), tendo as inseridas no projeto Justiça para o Século 21, do
como valores obrigatórios o empoderamento dos Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
envolvidos e da comunidade, o respeito aos limi- (SANTOS, 2020).
tes legais, a escuta respeitosa, a igualdade entre as Apesar do contexto brasileiro, a aplicação
partes e a possibilidade de os envolvidos optarem da JR em crimes de gênero vem desenvolvendo
entre o processo judicial tradicional e o proces- suas potencialidades para além da violência do-
so restaurativo. Ainda, conforme a Resolução n.° méstica, havendo práticas promissoras em crimes
2002/12 da ONU, os programas de justiça restau- de violência sexual, feminicídio e em contextos de
rativa devem seguir os princípios da imparcialidade conflitos armados (AZKUE; ORELLANA; LANDALU-
do/a facilitador/a, da confidencialidade, da volun- ZE, 2017), bem como projetos destinados às mulhe-
tariedade das partes, da presunção de inocência, da res encarceradas. Nesse sentido, a potencialidade
razoabilidade e da proporcionalidade dos procedi- de suas práticas reside na capacidade de ampliar
mentos e das responsabilizações. as possibilidades de resolução satisfatória dos ca-
Por ser um modelo de justiça que pretende sos; promover uma responsabilização do agressor
alcançar as raízes dos problemas, dispõe de diver- a partir de uma perspectiva de mudança social;
sas práticas, com metodologias diferentes, obje- conceder um tratamento justo e adequado para as
tivando tratar cada caso a partir de suas especi- vítimas; propor a participação ativa dos envolvidos,
ficidades. Entre essas práticas têm-se os serviços atuando como protagonistas e não meros observa-
de apoio às vítimas, a mediação vítima-ofensor, as dores; ser um terreno fértil para o empoderamento
conferências restaurativas, os círculos de cons- dos envolvidos, inclusive da comunidade, e ser um
trução de paz, os comitês de paz, entre outras, de lugar seguro para se operar o reconhecimento da
forma que podem ser aplicadas em conjunto com vítima e de suas violências sofridas, bem como para
a justiça penal tradicional ou autonomamente, nas trabalhar com a conscientização acerca da violên-
fases pré-judicial, judicial e/ou pós-judicial. cia e desenvolver práticas de reparação.
Esse modelo de justiça chega ao Brasil no Contudo, os riscos também estão presen-
final da década de 1990, sendo que passou por um tes, afinal, a mulher vítima teria o que mediar? O
período revisionista e de amadurecimento no iní- que se pretende restaurar? Essas são questões que
cio do século XXI, marcando a consolidação de uma mobilizam oposições à justiça restaurativa no âm-
justiça restaurativa judicial (CNJ, 2018), pois se tra- bito dos crimes de gênero.
ta de uma política pública que hoje é desenvolvida Um dos principais riscos trata sobre o de-
majoritariamente no interior do Poder Judiciário. sequilíbrio de poder entre mulheres e homens que
No âmbito das violências de gênero, acre- por vezes é desconsiderado durante o processo
dita-se que o maior impulsionamento para a im- restaurativo, podendo contribuir para que a vítima

25
Artigos

permaneça em situação de violência e dominação, no presente e no futuro (VERGÈS, 2020), de forma


em face do convívio com o seu agressor. Ainda, a que a narrativa utilizada para ensinar padrões de
JR estimula a participação da comunidade em seus respeitabilidade, na verdade, torna-se uma estraté-
procedimentos, o que no âmbito dos crimes de gê- gia de repressão da raiva e anulação das verdadei-
nero pode ser bastante perigoso, já que a violência ras raízes dos problemas sociais e políticos do país.
contra a mulher possui algum respaldo social. Ou- Por isso sempre se questionou a construção unila-
tro ponto é que há chances da banalização da vio- teral da JR pelo Poder Judiciário, pois eram claras
lência quando a gravidade dos fatos é relativizada, as chances de as instituições não permitirem que a
especialmente quando os programas se confundem brutalidade das estruturas de poder fosse explora-
com terapia de casal, voltados para a manutenção da nos procedimentos restaurativos.
da relação afetiva violenta, em uma profunda dinâ- O perigo do modelo pacificador reside aí: se
mica de justiça familista patriarcal. a justiça restaurativa estiver a serviço da privatiza-
Não se pode esquecer que a JR muitas vezes ção das violências, da revitimização, da pacificação
é vinculada à mobilização mundial pela construção neutralizadora e do afastamento da responsabiliza-
da cultura de paz, esta que tem como ideal a pro- ção dos agressores, ela estará contra as mulheres.
moção de sociedades pacíficas, para a promoção
do acesso à justiça a todos e construção de institui-
ções eficazes. Ainda, está relacionada à prevenção e REFERÊNCIAS
à resolução de conflitos violentos, baseando-se na AZKUE, Irantzu Mendia; ORELLANA, Gloria Guzmán; LAN-
solidariedade, no respeito e na liberdade, a partir DALUZE, Iker Zirion (eds.). Género y justicia transicional.
de práticas dialogais e negociais. Espanã: Universidad del País Vasco/Euskal Herriko Unibert-
Entretanto, na atualidade brasileira, a cul- sitatea, 2017.
tura de paz se ramifica em ideais individualizados CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório Ana-
e coletivos diversos, o que não apenas serve para lítico Propositivo. Justiça pesquisa direitos e garantias fun-
difundir seus objetivos, mas também para distorcê- damentais - pilotando a justiça restaurativa: o papel do po-
-los. Hoje já verificamos no Brasil um modelo de JR der judiciário. 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/.
que, atrelado à cultura de paz, tornou-se um forte Acesso em: 14 fev. 2023.
instrumento de pacificação que almeja a ausência MARSHALL, Tony. The evolution of Restorative Justice in
de conflitos, de forma a neutralizar questões estru- Britain. European Journal on Criminal Policy Research, v. 4,
turais da nossa sociedade, como são as múltiplas n. 4. Heidelberg: Springer, pp. 21-43, 1996.
violências sofridas pelas mulheres. SANTOS, Michelle Karen Batista dos. Orientação paradigmá-
De fato, um modelo de justiça restaurativa tica das práticas restaurativas no Brasil: a experiência dos
pacificador não necessariamente estará refletindo Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
a possibilidade de construção da justiça pelos su- 2020. 228f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) –
jeitos históricos. Ao contrário, quando a busca pela Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais, PUCRS.
paz significa impedir que as mulheres vítimas co- Porto Alegre, 2020. No prelo.
muniquem seus sofrimentos e suas dores, servin- VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo:
do para restaurar relações violentas baseadas em Ubu Editora, 2020.
estruturas patriarcais, machistas, sexistas e racis-
tas, é possível que o programa esteja distante dos MICHELLE DOS SANTOS
fundamentos críticos da JR e próximo de práticas
sistêmicas salvacionistas que buscam, incansavel- Mestra e Doutoranda em Ci-
mente, difundir ideias moralizantes sem atribuir ências Criminais pela PUCRS.
responsabilidade aos verdadeiros responsáveis. Assessora Jurídica do TJRS.
A corrente que sustenta que o mundo se Coordenadora Adjunta Esta-
transformaria se mudássemos de mentalidade, ser- dual do Instituto Brasileiro de
vindo a JR para a transformação da forma como nos Ciências Criminais (IBCCRIM). Integrante do Grupo
relacionamos com as pessoas, por vezes reflete uma de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e
concepção idealista das relações sociais que está Administração da Justiça Penal (GPESC/PUCRS).
bem distante do cotidiano violento em que muitas
mulheres e corpos feminizados estão submetidos
historicamente no Brasil. Justamente porque a pa-
cificação não politizada colabora com a dominação

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PROCESSO PENAL E

Por
Glauco Giostra

O contraditório: valor e limite1,2


A via epistemológica adotada pelo Código vi- procedimento e com qualquer método, desde que o
gente - como se sabe - tinha na prova declarativa único conhecimento testemunhal utilizável na sen-
seu ponto de inflexão. Afirmou-se um novo verbo tença permaneça aquele produzido em contraditório
processual: tendencialmente, a única prova confiá- perante o juiz da decisão. Isso pressupõe que a lem-
vel, o único tijolo utilizável para construir a sentença brança constitua uma espécie de achado arqueológico
deveria ser a prova formada em contraditório. Se- que jaz, inerte, no “porão” da memória; que o problema
gundo o precedente Código de 1930, no entanto, o seja apenas encontrá-la, usando a poderosa “tocha” do
fato histórico, como um mosaico estilhaçado, deixa contraditório e trazê-la ao apartamento da atualidade,
na realidade física e na percepção sensorial humana à disposição de quem lhe pedir notícias. A lembran-
marcas que cabe ao investigador encontrar (investi- ça, ao contrário, é matéria viva e perecível. Às vezes,
gação como busca de vestigia facti, ou seja, pegadas até, resultado de uma criação involuntária, propiciada
do fato). Não importa a técnica de aquisição desses por uma solicitação externa que, de modo subliminar,
«achados cognitivos»: quanto mais peças do mosai- induz a reelaborar aquilo que se viveu para conformá-
co forem recuperadas, mais fácil e confiável será a -lo a ela. O que o contraditório é capaz de garantir é a
tarefa do juiz que deve recompô-lo. Opção meto- sinceridade, não a veracidade das respostas: nenhum
dológica que seria certamente compartilhável se a exame cruzado (cross examination) conseguirá fazer
pessoa informada dos fatos fosse uma res loquens e referir fielmente o originariamente percebido por um
o seu produto narrativo não estivesse destinado a declarante que crê na verdade de sua falsa lembrança
mudar segundo quem, como, onde, quando a inter- que tomou o lugar daquela percepção.
roga. As ciências da mente há muito demonstraram O esquecimento e a memória - escreveu Borges
que a reevocação da lembrança é sensivelmente in- - são inventivos». Já a ação silenciosa de Cronos inad-
fluenciada pela técnica maiêutica: com a mudança vertidamente apaga um rosto, desfoca um detalhe,
do “fórceps” muda, às vezes inclusive de maneira confunde as palavras ouvidas, deleta um dado, desfaz
radical, a conformação do “feto” da memória. Con- uma sequência: a lembrança com o passar do tem-
cordou-se então que a melhor parteira da memória po se torna muitas vezes "inapresentável" e às vezes
seria a formação dialética da prova testemunhal. a razão, diligente, provê criativamente para recom-
Se o Código vigente retirou a ingenuidade epis- pô-la. Acontece, outras vezes, que entre o momento
temológica em que se baseava o anterior – isto é, a da percepção e o da reevocação do percebido, invisí-
irrelevância das modalidades de inquirição da teste- veis «neuro-sherpas» apanhem informações de fora,
munha – temo que ele próprio se baseie num pres- transportem-nas para o porão e misturem-nas com o
suposto não menos falacioso: o da inalterabilidade material cognitivo armazenado ali, transformando-o.
da memória. O atual sistema é construído, de fato, Com uma síntese grosseira poderíamos dizer que en-
em torno da ideia de que à fonte declarativa se pos- tre os fatores capazes de adulterar a lembrança seria
sa recorrer quem quer que seja em qualquer fase do útil distinguir: a passagem do tempo; os condiciona-
mentos endoprocessuais (sobretudo os «interrogató-
rios») e as sugestões externas (sobretudo midiáticas).
1
Texto da conferência (on-line) realizada na mesa 1 (Prova no
processo penal) do Seminário de Ciências Criminais da ESA A passagem do tempo. O princípio otimista da
da Bahia, em 16 de dezembro de 2022. concentração processual, justamente muito valoriza-
2
Tradução de Bruno Cunha Souza. Revisão de Jacinto do no tempo do “batismo” do código vigente, foi traído
Nelson de Miranda Coutinho. pela realidade. As instruções processuais contraditó-

27
Coluna: Democracia

rias , e, então, a formação em contraditório da pro- as perguntas convencido de que está relatando o que
va, celebram-se há vários anos de distância dos fatos. percebeu, completamente inconsciente das reelabo-
Sendo o patrimônio mnêmico - como se dizia - ma- rações efetuadas com base em inputs externos.
terial perecível, cada vez mais frequentemente ocor- Parece, portanto, possível concluir que a visão
rem os «não me lembro». E com a mesma frequência estereoscópica do contraditório permite, sim, in-
essas “faltas” no tecido da memória são remendadas vestigar melhor no patrimônio mnêmico da pessoa
recorrendo-se impropriamente ao que a própria tes- informada sobre os fatos no momento em que é exa-
temunha havia declarado aos investigadores. São lidas minada, mas é impotente face às manipulações que
à testemunha as suas declarações prestadas à polícia ela possa ter sofrido com relação à sua conformação
judiciária ou ao Ministério Público e é-lhe perguntado original. O Código vigente não levou em conta a pos-
se reconhece o que afirmou, obtendo-se quase sem- sibilidade - cada vez mais frequente com o aumento
pre uma resposta do tipo «Claro, se eu disse isso, cer- exponencial das mídias - de que testemunhas since-
tamente será verdade». Prática claramente ilegítima ras e examinadas dialeticamente pudessem referir o
que tanto evoca a mortificante instrução processual falso: é um sistema fraco no que diz respeito à pers-
do antigo rito inquisitório. pectiva de uma injustiça baseada na sinceridade.
Condicionamentos endoprocessuais. A memó- A consciência do problema, sobretudo através
ria da testemunha sofre uma manipulação também da formação profissional dos protagonistas do pro-
em razão das perguntas que recebeu nas fases prece- cesso, constitui a premissa necessária, ainda que na-
dentes do procedimento. Há questões que intencio- turalmente não suficiente, para atenuar os seus efeitos
nalmente tendem a condicionar a resposta, quando negativos. Precauções específicas, para além da óbvia
não a sugeri-la; e elas, em particular, mesmo quando de reduzir ao máximo os tempos do processo, serão
não surtem o efeito desejado de imediato, vão depo- então cuidadosamente avaliadas e disciplinadas: a an-
sitar seu subtexto no porão mental do declarante, que tecipação do contraditório para a fase de investigação
sem perceber dificilmente poderá ignorá-lo no futu- quando a fonte testemunhal parece estar em risco de
ro. Essa sorrateira sugestão da pergunta que objetiva “suborno mediático”; a gravação em vídeo dos "interro-
tornar-se resposta resultará tanto mais condicionante gatórios", para que fiquem os vestígios dos condiciona-
quanto mais respeitável for a figura do interrogador mentos exercidos sobre a testemunha pelos interroga-
aos olhos do interrogado, que posteriormente opera- dores; um limite à reiteração dos “interrogatórios” da
rá inconscientemente toda possível reelaboração da testemunha antes que preste depoimento na instrução
lembrança para tentar não se desviar do que o inter- processual contraditória, e outras providências que se
rogador havia deixado entender fosse a «sua» verdade. certamente não poderão eliminar esta assintomática
Condicionamentos extraprocessuais. A me- “patologia” mnestica, certamente poderiam reduzir-
mória de uma testemunha é exposta não apenas -lhes sensivelmente as perniciosas consequências.
aos inputs internos ao processo, mas também a Não é possível aqui examinar as vantagens e
fatores exógenos. criticidades dessas e de outras soluções, já ficaría-
Sobretudo nos processos que mais interessam à mos muito satisfeitos se essas breves reflexões ti-
opinião pública, numa ensurdecedora batida multimi- vessem servido para nos alertar para o fato de que o
diática, alternam-se ou misturam-se: as entrevistas a contraditório na formação da prova é, sim, o melhor
conhecidos ou familiares do acusado ou da vítima; hi- instrumento para se aproximar da verdade, desde
ghlights de filmes elaborados pelos órgãos de polícia, que se não pense que seja um fim em si mesmo, que,
também através de uma montagem engenhosa, para isto é, o importante seja realizá-lo, desinteressando-
promover uma operação investigativa; entrevistas co- -se das possíveis “contaminações” anteriores sofri-
letivas dos órgãos de investigação; declarações presta- das pela fonte testemunhal. O risco é o de oferecer
das pelo investigado, pela vítima ou pelos seus advoga- ao comensal da Verdade alimentos maravilhosa-
dos; imitações fônicas de interceptações; reportagens; mente elaborados, mas perigosamente tóxicos.
coleta de boatos atuais no contexto social dos supos-
tos protagonistas do fato do crime. É difícil imaginar Glauco Giostra
que a pessoa informada sobre os fatos não acabe por
reelaborar inconscientemente sua própria lembrança Professore Ordinario di procedura
para conectá-la com o que vê e ouve a propósito deles. penale presso la Facoltà di Giuris-
Muitas vezes ela sofrerá uma espécie de inexpugnável prudenza dell’Università degli Studi
«suborno midiático», impermeável a todo contradi- di Roma ‘La Sapienza’.
tório, porque o sujeito examinado responderá a todas

28
Entrevista com: Juliana Tonche

Doutora em Sociologia pela USP, com período de


estágio de pesquisa no Departamento de Criminologia
da Universidade de Ottawa (Canadá), junto à Chaire
de Recherche du Canada en Traditions Juridiques et
Rationalité Pénale. Pós-doutorado em Sociologia pela USP
e em Ciências Sociais pela UFBA.

1
Podemos afirmar que houve um au- ção de conflitos e justiça restaurativa entre os
mento da produção acadêmica acer- anos de 2000 e 2019, quando identificamos que
ca da aplicação da justiça restaurativa houve um aumento considerável de trabalhos
no Brasil, principalmente nos últimos cinco na temática, em especial no segundo decênio.
anos? Se sim, a qual(is) fator(es) atribui esse Especificamente com relação à justiça restau-
crescente interesse pela temática? rativa, atribuo esse crescimento a um proces-
so contínuo de expansão e institucionalização
JULIANA TONCHE Podemos sim. Antes de pelo qual ela tem passado. Sem dúvidas, o fato
prosseguir com a resposta, gostaria de deixar de ter se tornado uma política judiciária, que
registrado o meu mais since- conta com o apoio do Conselho
ro agradecimento pelo convi- Nacional de Justiça (CNJ), faz
te feito para participar desta com que tenha cada vez mais
edição do Boletim. É um pra-
Há uma descrença visibilidade e chame a atenção
zer colaborar com o periódico, generalizada, e que de pesquisadores e profissio-
tratando de assunto da maior está bem respaldada nais. Outro motivo possível, e
relevância, como é o caso da que anda de mãos dadas com o
justiça restaurativa. Voltando
em dados que mostram primeiro, é o descontentamento
à pergunta, não poderia deixar a falência do modelo de parcela significativa dos pro-
de mencionar que realizei em atual de resposta aos fissionais que trabalham no sis-
data recente, juntamente com tema de justiça criminal, na área
a pesquisadora e professora da crimes, ainda centrado penal ou de segurança pública,
UFRJ, Kátia Sento Sé Mello, uma na punição e com com relação ao próprio traba-
pesquisa que aborda justamente lho que executam. Há uma des-
ênfase na pena de
esta questão . Fizemos um le-
1
crença generalizada, e que está
vantamento no banco de teses prisão [...] bem respaldada em dados que
e dissertações da CAPES sobre mostram a falência do modelo
a produção acadêmica nos temas da media- atual de resposta aos crimes, ainda centrado na
punição e com ênfase na pena de prisão, que
não está surtindo efeitos: não ressocializa, não
1
Os dados dessa pesquisa foram publicados em artigo: TONCHE,
J; MELLO, K. S. S. Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa pacifica a sociedade, não atende às necessida-
no Brasil: balanço de vinte anos de produção acadêmica. des básicas da vítima, entre outros prejuízos.
CONTEMPORÂNEA (ONLINE), v. 12, p. 347-371, 2022. Essa constatação leva a que muitos passem a

29
Entrevista: Múltiplos Olhares

buscar alternativas, como é o caso da justi- cação com o campo político, de maneira que é
ça restaurativa, e isso se reflete na produção possível argumentar que a justiça restaurativa
acadêmica sobre o tema. Além disso, menciono embaça essas fronteiras ao exigir maior enga-
brevemente outros achados interessantes de jamento social e compromisso com a mudança
nossa pesquisa e que merecem atenção: há uma por parte dos profissionais, que deixam de ser
predominância da produção sobre justiça res- meros aplicadores da lei. De maneira sucinta, o
taurativa na pós-graduação na área do Direi- que estou afirmando é que a justiça restaurati-
to; além disso, mais mulheres do que homens va fortalece a democracia. Por fim, deixo aqui
se interessam pela temática; e, por fim, indicado um caminho que também parece ser
a Bahia é um Estado que se destaca fren- bastante promissor na investigação de como a
te aos demais, sendo a UFBA responsável justiça restaurativa pode ser propulsora da de-
por uma parte considerável dos trabalhos. mocracia, que são as aproximações da justiça
restaurativa com a justiça de transição. Tudo
Na sua perspectiva, é possível falarmos em indica que o modelo restaurativo apresenta fer-
um processo de democratização política ramentas úteis na persecução de justiça,
através da justiça restaurativa? reparação, direito à verdade e à memória
que são objetivos da justiça de transição,
JULIANA TONCHE Eu tenho sustentado o ar- preocupada com a reconstrução de so-
gumento de que a justiça restaurativa está co- ciedades fraturadas.
nectada aos valores democráticos e aos Direitos
Humanos. É possível chegarmos Presenciamos, recentemente,
a essa conclusão observando o ensaio de um projeto político
algumas de suas principais ca- pautado no uso de estratégias
racterísticas: a justiça restau- Tudo indica neoliberais autoritárias. Neste
rativa propõe outros caminhos que o modelo contexto, a justiça restaurativa
para lidarmos com os conflitos, restaurativo detém repertórios para fazer
violências e crimes para além apresenta frente a essa racionalidade an-
da resposta punitiva usual, res- ferramentas úteis tidemocrática?
peitando a dignidade da pessoa na persecução de
humana; ela abre a possibilida- justiça, reparação, JULIANA TONCHE Excelente
de de participação de terceiros direito à verdade pergunta. Estamos saindo de
nos processos, estimulando o e à memória que um ciclo que foi muito peno-
diálogo e a autonomia dos gru- são objetivos so para o país, com contornos
pos e indivíduos; afora isso, tem ainda mais dramáticos para as
da justiça de
como foco as necessidades dos parcelas mais vulneráveis da
principais envolvidos, mas sem
transição [...] população. Foi um período de
perder de vista a restauração de retrocessos, de desmonte das
todo o tecido social. Contudo, não estou cer- políticas sociais e ambientais, que contou com
ta de poder afirmar que a justiça restaurativa um projeto político revisionista, genocida e de
daria conta sozinha de tocar processos de de- reforço aos discursos que se apoiam no puni-
mocratização política. De outro lado, entendo tivismo, na violência, nos ataques à democra-
que, se ela conseguir impactar as estruturas cia e aos Direitos Humanos. Então penso que
do nosso sistema de justiça criminal, já fará defender hoje um modelo de justiça que prega
bastante. Está bem documentado que o nosso a horizontalidade, o exercício da alteridade,
sistema de justiça, especialmente o seu ramo o diálogo, a reparação e a desconstrução dos
criminal, é reprodutor de desigualdades. Isso poderes estabelecidos é um ato de resgate da
acontece quando seleciona alvos preferenciais nossa humanidade. Por isso eu também tenho
de captura, quando viola garantias, encarcera tentado chamar a atenção para a necessidade
e estigmatiza grupos sociais. A justiça restau- de preservar as bases da justiça restaurativa,
rativa chega como uma possibilidade de mudar uma vez que o seu caráter mais flexível abre
esse quadro. Além disso, sabemos que o campo margem para que seja apropriada de maneiras
jurídico se pauta em uma suposta neutralida- indevidas, com risco de que o seu conteúdo
de do conhecimento específico e forte demar- inicial se dissolva. Ou seja, o perigo é que se

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Entrevista: Múltiplos Olhares

adeque tanto ao status quo que a justiça res- rar o regime de escravidão que deixou marcas
taurativa não consiga mais transformar essa profundas até hoje e a dificuldade de instau-
realidade, perdendo o seu potencial revolu- rar políticas de reparação que tentam con-
cionário. É preciso, portanto, sustentar a jus- tornar os efeitos perversos do racismo; não
tiça restaurativa enquanto uma alternativa ao esquecer do passado ditatorial e os entulhos
modelo atual de intervenção sobre o crime. autoritários que seguem ameaçando o regime
Entendo que, assim como outros espaços de democrático; atentar para as desigualdades

4
resistência, a justiça restaurativa é ex- com base no gênero e outros marcadores, que
tremamente potente, mas também (e vitimizam mulheres e grupos LGBT em todas
talvez justamente por isso) é vulnerável as regiões do país; trazer à lume a política de
às oscilações políticas, podendo se fra- guerra às drogas e o encarceramento em mas-
gilizar nesses contextos mais desafiadores. sa... enfim, a lista é longa! Se o campo nacio-
nal que trata da justiça restaurativa conseguir
É possível discutirmos a emergência de avançar nessas pautas, refletindo sobre como
uma justiça restaurativa eminentemente esse modelo de justiça pode cumprir um pa-
brasileira? pel relevante na superação desses problemas,
teremos a chance de começar a pensar em
JULIANA TONCHE Acredito que sim, mas só referenciais teóricos e exemplos de práticas
alcançaremos esse resultado se passarmos mais conectadas com a nossa realidade. Não
por uma etapa anterior de reconhecimento do se deixa de reconhecer as bases importadas
que foi a construção de nosso país e do que da justiça restaurativa; elas foram importantes
significa ser brasileira(o). É preciso olhar com e ajudaram a pavimentar um caminho que tem
cuidado para o genocídio praticado contra os sido exitoso, só não são suficientes para dar
povos originários e toda a perda humana e de conta das particularidades dos nossos confli-
conhecimentos que isso acarretou; conside- tos e das nossas violências.

Respiro

Charge por: Mahnaz Yazdani @mahnaz.yazdani

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O QUE REVERBEROU NAS REDES SOCIAIS

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