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Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal Ano 6, Nº 26

Elas no Front com Andremara


dos Santos: "Um manifesto?
Ou, os desafios nossos de
cada dia para o combate à
violência em razão da raça
e do gênero" P. 10

Múltiplos Olhares com


Hédio Silva Jr. P. 33

Apresentamos a nova coluna


fixa: "Processo Penal e
Democracia" P. 13

Fotografia de Capa
Moisés Dantas

ISSN 2675-2689 (Impresso) ISSN 2675-3189 (Online)


Ano 6 - N.º 26, Maio/2023
ISSN: 2675-2689 (impresso)
Boletim Revista do Instituto Baiano ISSN: 2675-3189 (online)
de Direito Processual Penal

EXPEDIENTE Fotografia de Capa


Moisés Dantas
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EDITORIAL
Entre voos e prisões, os desafios de um antirracismo ético

Inscrito em letra firme canto, a sua palavra, para entoar direitos e não se sub-
o grito rompe um silêncio abissal meter a arbitrariedades perpetradas contra si. Há sete
denuncia dores antigas anos, também no aeroporto de Salvador, foi a vez de o
que atravessaram séculos ator Érico Brás se confrontar com o sistema racista e
e se instalaram indagar o tratamento grosseiro que ele e a sua esposa
em internas senzalas recebiam de um tripulante, quando ambos foram con-
siderados uma ameaça e expulsos do voo3.
(Rupturas - Neide Almeida, 2018) Casos de discriminação semelhantes ao de Sa-
mantha e ao de Érico, aliás, acontecem, rotineiramen-
No último 28 de abril, uma cena deplorável re- te, em todos os ambientes de convívio social, como
percutiu nas mídias e nas redes sociais1: Samantha, em lojas, restaurantes, mercados, aviões, sob o simu-
professora jovem e negra, foi expulsa de uma aero- lado pretexto de segurança ou mesmo sem justificati-
nave, no aeroporto de Salvador, após a sua recusa em va alguma, embora sejam costumeiramente naturali-
despachar uma mochila que, segundo testemunhas, já zados e invisibilizados, revelando que, para o racismo,
havia sido adequadamente acomodada com a ajuda de pouco ou nada importa se a pessoa possui diploma de
outros dois passageiros. A professora, abordada quan- pós-graduação ou se ocupa um papel cultural de des-
do já aguardava, em seu assento, a decolagem do voo taque no país4,pois a cor de sua pele chega antes.
atrasado há mais de uma hora, teria, nas palavras da Corroborando o aforismo de Florestan Fernan-
tripulação, “resistido” aos procedimentos e “colocado des, para quem “o brasileiro não evita, mas tem vergo-
em risco” a segurança do voo ao guardar o seu arti- nha de ter preconceito”5, estudos revelam que a maio-
go pessoal em um local que supostamente obstruía ria dos brasileiros não se considera racista, e muitos
a passagem. Logo se seguiu o debate em torno da nem sequer reconhecem a existência dessa forma de
conduta dos tripulantes, que nem mesmo haviam se discriminação no país6. O mito da democracia racial é
empenhado a ajudar a professora a encontrar espaço confrontado, no entanto, com esta questão bem-pos-
para o seu item: se racista, se misógina, se autoritária. ta: as dificuldades experienciadas pelo povo negro e o
Exige nenhum esforço desvendarmos os fatores tratamento, com frequência, preconceituoso e violen-
que estão imbricados em uma decisão, visivelmente to que lhe é direcionado evidenciam as feridas sociais
antidemocrática e desumana, que objetiva humilhar,
segregar e expulsar pessoas racializadas2 de um am-
biente ocupado, predominantemente, por pessoas 3
Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/
brancas, em especial quando usam a sua voz, o seu nid/ator-baiano-erico-bras-e-expulso-de-voo-durante-confu-
sao-em-salvador/>. Acesso em: 30 abr. 2023.
4
É dizer, ainda que ostentem uma boa condição socioeco-
1
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/maquia- nômica ou ocupem alguma posição de poder, as pessoas
vel/mpf-abre-investigacao-por-racismo-em-caso-de-mu- não brancas, particularmente as negras e as indígenas no
lher-negra-expulsa-de-voo>. Acesso em: 30 abr. 2023. Brasil, são tratadas de forma desigual às pessoas brancas
2
A racialização é um processo que classifica uma pessoa na mesma situação e sofrem os efeitos da discriminação
ou um grupo a partir de sua raça, naturalizando a sua pre- racial sobre as suas chances de vida.
sença ou a sua ausência em determinados espaços sociais. 5
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/25/
O termo costuma ser associado às pessoas não brancas, caderno_especial/2.html>. Acesso em: 30 abr. 2023.
que são vistas como “o outro”, o ser racial, a partir do dis- 6
Pesquisa realizada pelo PoderData (2021) constatou que
curso hierarquizante produzido pela branquitude, que, a 14% dos brasileiros afirmam não existir preconceito contra
seu turno, coloca as pessoas brancas como o modelo, o negros e negras no Brasil, ao passo em que 53% dos entre-
padrão socialmente aceito. vistados negam ser racistas.
que vitimizam a sua pele e, também, o seu avesso, a o crescimento exponencial da população carcerária
sua identidade e as suas crenças. feminina nos últimos anos, como, principalmente,
Samantha, instada pela mídia a pronunciar- para os índices alarmantes de mulheres negras colo-
-se sobre as arbitrariedades que sofreu, revelou, de cadas nesses espaços de privação de liberdade.
pronto, as feridas causadas em sua subjetividade: Tratando sobre as questões que permeiam a
afirmou demasiado abalo emocional diante do ocor- guerra às drogas, Carolina Neris e Isabela de Santa-
rido e questionou se o seu corpo fora um “alvo fácil” na (em A invisibilidade e a demonização do usuário de
para ser retirado da aeronave, mesmo depois de o crack: o inimigo agora é outro!) explicitam a política de
impasse ter sido resolvido7. A pergunta retórica, que extermínio adotada pelo Estado em face das pessoas
inclui a representação de um corpo feminino racia- socialmente vulnerabilizadas, e destacam a importân-
lizado no debate, inevitavelmente, ainda eleva a gra- cia da luta contra a institucionalização do racismo e
vidade das feridas ao patamar da interseccionalidade de outros marcadores sociais da diferença, no siste-
entre a raça e o gênero, que gera uma onda colos- ma penal, em prol da garantia dos direitos básicos e
sal de violência em face das mulheres negras, já que fundamentais de toda a população. Noutro prisma, Ri-
elas, além de experienciarem o racismo, sofrem com cardo Cathalá (em Reflexões acerca da imparcialidade
o sexismo, com o machismo, com a misoginia, com no julgamento de processos da lei de drogas no Brasil)
o patriarcado supremacista branco8 – que também propõe a análise elementar dos argumentos morais e
atinge os homens negros, mas em outra medida –, ou políticos que marcam o poder discricionário do julga-
seja, com o entrelaçamento de múltiplas opressões. dor e podem afastá-lo, indevidamente, da tomada de
Cenários como os acima trazidos retroali- decisões pautadas em valores democráticos.
mentam, continuadamente, a necessidade de uma Já na coluna Ponto e Contraponto, Rodrigo
discussão urgente no que se refere ao “caldo de Ríos conduz as leitoras e leitores a um olhar crítico
cultura” que, ainda hoje, sustenta o racismo, tanto sobre a implementação do juiz de garantias no Chile,
que repercutiu, direta ou indiretamente, em artigos quando destaca a urgência na adoção, pelo julgador,
publicados nesta edição. de medidas ativas contra arbitrariedades e desigual-
Na coluna Elas no Front, Andremara dos Santos dades, com vistas ao desenvolvimento de um proces-
contesta a eficiência e a eficácia de um manifesto em so penal contraditório e acusatório que efetivamente
atenção ao dia da luta contra a discriminação racial e salvaguarde os direitos de todas e todos.
ao dia das mulheres, ambos memorados em março, se Esta edição também marca um acontecimen-
desacompanhado de um debate amplo a respeito dos to muito estimado: a transposição da coluna Pro-
meandros que envolvem as violências geradas pelo cesso Penal e Democracia, então ocasional, como
sexismo e pelo machismo, e nos convoca à assunção permanente. A importância da coluna reside na
de posturas combativas a essas violências (Um mani- contínua necessidade de se repensar criticamente
festo? Ou, os desafios nossos de cada dia para o com- os caminhos já trilhados pelo processo penal, as di-
bate à violência em razão da raça e do gênero). reções que estão ao seu alcance e outras que pre-
Na coluna Múltiplos Olhares, Hédio Silva Júnior cisam ser reformuladas, no intuito de que funcione
aponta alguns caminhos possíveis para a evitação e o como instrumento democrático. Na presente edi-
combate ao racismo e à intolerância contra as práti- ção, os colunistas, Ana Cláudia Pinho, Adriana Cruz,
cas religiosas do povo negro, levantando questões re- Rivana Ricarte, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
lativas ao fundamentalismo religioso e à legitimação e Luiz Gabriel Batista Neves, por meio do texto Um
conferida ao status quo conservador, em regra pau- reforço da democracia constitucional: limites e vín-
tado na negação do outro e na repulsa à diversidade. culos do processo penal, apresentam, em multilen-
Caroline Bispo, por sua vez, em O encarcera- tes, o cenário que atravessa o poder punitivo e o
mento negro feminino no Acre: taxas de um silencia- processo penal na atualidade, assim como a meto-
mento, conduz o nosso olhar pelo sistema de justiça dologia pensada para se debater, ao longo das pró-
brasileiro, ao narrar suas experiências à frente da ximas edições, os campos teóricos e/ou práticos
Associação Elas Existem, e clama atenção tanto para nos quais o processo penal deve ser compreendido,
para abraçar um modelo democrático, mais espe-
rançoso e justo, bem como romper com um passado
7
Disponível em: <https://www.metro1.com.br/noticias/cida-
escravocrata, racista e patrimonialista.
de/135756,apos-ser-expulsa-de-voo-por-negar-despachar-
-notebook-professora-se-pronuncia-fiquei-bastante-abala- É premente que o debate a respeito do ra-
da>. Acesso em: 30 abr. 2023. cismo seja ampliado a cada dia, inclusive entre os
8
Sobre o tema, cf. bell hooks (2019). não negros, e principalmente entre os brancos, pois
essa luta, em direção à inadiável ruptura com um REFERÊNCIAS
sistema anti-humanitário, que coloniza pensamen-
tos, liberdades e vivências, transpassa a subjetivi- ALMEIDA, Neide. Nós - 20 poemas e uma oferenda. São
dade coletiva e, portanto, não é, nem deve ser, uma Paulo: Ciclo Contínuo, 2018.
responsabilidade exclusiva da população negra. HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação.
Por isso, mais do que uma leitura atenta dos Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.
artigos, desejamos ao público desta edição que se PODERDATA. 79% acham que há racismo no Brasil, mas
insira e se mantenha em um lugar de escuta ativa só 39% se consideram preconceituosos. Pesquisa. 2021.
acerca das violências indevidamente presentes no Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/79-
sistema de justiça brasileiro e na sociedade como acham-que-ha-racismo-no-brasil-mas-so-39-se-
um todo; que compreenda os entornos e os efeitos consideram-preconceituosos/. Acesso em: 30 abr. 2023.
nefastos do racismo; que descolonize o seu pensa-
mento; que identifique e denuncie comportamentos
racistas; e que, sobretudo, adote, permanentemen-
te, posturas condizentes a um antirracismo ético.
Dores antigas, ainda atuais, não podem atra-
vessar novos séculos. Avante!

Thaís Salles

Indicações da Edição:

O curta-metragem "Dois O livro “O Pacto da O podcast “Educação e


Estranhos", dirigido por Travon branquitude”, de Cida Bento Relações Étnico Raciais”
Free e Martin Desmond Roe (disponível no Spotify)

O curso “Letramento racial, ensino jurídico e advocacia antirracista”, ministrado


pela professora Mabel Freitas e pelo professor Cleifson Dias, na Esa Bahia.
SUMÁRIO

7 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO POR RODRIGO RÍOS


JUIZ DE GARANTIAS NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL CHILENO

10 ELAS NO FRONT COM ANDREMARA DOS SANTOS


UM MANIFESTO? OU, OS DESAFIOS NOSSOS DE CADA DIA PARA O COMBATE À VIOLÊNCIA EM RAZÃO DA RAÇA
E DO GÊNERO

13 COLUNA PROCESSO PENAL E DEMOCRACIA


UM REFORÇO DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL: LIMITES E VÍNCULOS DO PROCESSO PENAL

16 LIRISMOS INSURGENTES

ARTIGOS

18 10 ANOS DA LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA: ENTRE AVANÇOS E RECUOS, A IRRACIONALIDADE DO SISTEMA


DE JUSTIÇA CRIMINAL

20 REFLEXÕES ACERCA DA IMPARCIALIDADE NO JULGAMENTO DE PROCESSOS DA LEI DE DROGAS NO BRASIL

22 A INVISIBILIDADE E A DEMONIZAÇÃO DO USUÁRIO DE CRACK: O INIMIGO AGORA É OUTRO!

24 A PROBLEMÁTICA DO EXCESSO DE UTILIZAÇÃO DAS PRISÕES CAUTELARES COMO MEIOS DE ANTECIPAÇÃO


DE PENA

26 PERFIL CRIMINOLÓGICO DO HOMEM ENVOLVIDO COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: A ESTRUTURA PATRIARCAL E


A NORMALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

28 PASSADO, PRESENTE E FUTURO NA SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRA

31 O ENCARCERAMENTO NEGRO FEMININO NO ACRE: TAXAS DE UM SILENCIAMENTO

33 MÚLTIPLOS OLHARES COM HÉDIO SILVA JR.

36 WALKIE-TALKIE
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Rodrigo Ríos

Juiz de garantias no sistema


processual penal chileno
A reforma do sistema processual penal chi- em seu trabalho de assegurar os direitos do im-
leno está intimamente ligada ao retorno da de- putado e demais envolvidos no processo penal. A
mocracia no país, após 17 anos de ditadura militar concretização desta função acompanha uma série
(1973-1990). Um marco adicional nesse caminho é, de controles que o juiz de garantias deve realizar
sem dúvida, a ratificação da Convenção Americana na fase de instrução e na fase intermédia de pre-
de Direitos Humanos no ano de 1990, 21 anos após paração do julgamento oral. Controles que visam
sua assinatura. É por isso que a década de 1990 salvaguardar os direitos e garantias do imputado,
constituiu o período em que se forjou e se con- essencialmente do trabalho de investigação que o
solidou essa ideia de deixar para trás um sistema Ministério Público dirige e que é materialmente
processual penal absolutamente contrário ao de- executado pela polícia.
vido processo e incompatível com os parâmetros Essa competência material do juiz de ga-
de um estado democrático de direito. rantias reflete o poder que esse sujeito proces-
A reforma chilena é particular, também, pe- sual tem dentro dos parâmetros de um modelo
las características do antigo sistema. Era um siste- processual penal de tendência acusatória. Pri-
ma altamente inquisitorial, com um procedimen- meiro, porque deve ser o controlador do traba-
to essencialmente escrito (processos e decisões), lho investigativo do Ministério Público todas as
com um protagonismo excessivo da figura do juiz vezes que os direitos do imputado forem priva-
do crime, que desempenhava as funções de inves- dos, restringidos ou perturbados na primeira
tigar, acusar e resolver, com todas as implicações fase do processo criminal. É nessa fase inicial
negativas que isso acarretava. que se verificam as principais violações ao devi-
É este contraste que também permite com- do processo legal e que exigem, em contrapar-
preender melhor o sucesso inicial da reforma chi- tida, um protagonismo dos juízes de garantias
lena a partir do ano 2000, dada a mudança radical para sancioná-las processualmente.
que implicou a implementação de um modelo que Do ponto de vista do contraditório, o pa-
era a antítese do anterior. Com a reforma nasce- pel do juiz de garantias é fundamental no dire-
ram o Ministério Público, a Defensoria Penal Públi- cionamento de todas as audiências que se reali-
ca e, dentro do Judiciário, os juízes de garantias e zam nas duas primeiras fases do processo penal,
os tribunais de julgamento oral. E é neste contex- dando-se preferência à aplicação da oralidade e
to que a figura do juiz de garantias se posicionou da publicidade como forma de discussão e reso-
como sujeito processual essencial e fundamental lução de conflitos de relevância penal, deixando
para dar vida e sentido a este novo processo penal a decisão final, proferida na fase oral, para um
contraditório e acusatório. tribunal colegiado completamente diferente,
Pois bem, qual é a principal função do juiz marcando, assim, uma das mudanças mais pro-
de garantias no modelo chileno? A essência do pa- fundas na cultura jurídica chilena, acostumada
pel que o juiz de garantias deve desempenhar está por quase 100 anos a um procedimento essen-

7
Coluna: Ponto e Contraponto

Coluna
cialmente escrito que não respeitava a impar- tias fundamentais. Como se vê, esta é uma discussão
cialidade do juiz. essencial e relevante pelo mérito dos argumentos e
Com o desenho anterior, está satisfeito o di- fundamentos que devem cercá-la.
reito de ser julgado por um juiz imparcial, ao me- O que está acontecendo na prática? Inves-
nos no âmbito do procedimento ordinário. Nesta tigações empíricas mostram que, em 66% dos ca-
estrutura foi instituída uma primeira audiência de sos analisados, os juízes de garantias não solicitam
controle de detenção, onde todos os réus detidos qualquer tipo de informação aos demais partici-
devem ser colocados à disposição do juiz de ga- pantes, confirmando uma passividade que tem le-
rantias no prazo máximo de 24 horas. É uma de- vado a inverter a essência dessa audiência de filtro
finição que visa o respeito pelos direitos de todos probatório a um verdadeiro corredor de provas,
os detidos, para que a sua situação seja conhecida com base em uma liberdade probatória mal com-
sem demora por um tribunal. O debate essencial preendida (DUCE, 2020).
que dá sentido a esta primeira audiência é a verifi- Como terceiro aspecto a observar e alertar,
cação, pelo juiz, se o procedimento que implicou a tem-se a definição do desenho do sistema chi-
detenção do imputado é legal ou ilegal. leno no dilema gestão vs. respeito de garantias.
O problema apresentado pelo sistema chi- Um dos maiores avanços e impactos da reforma
leno, neste ponto, é que deixou as hipóteses de processual penal foi o efetivo reconhecimento
ilegalidade da detenção totalmente desprovidas do direito à imparcialidade do juiz. No proces-
de sanção efetiva. Esta é uma das razões que so ordinário, a emissão da sentença definitiva é
pode justificar, entre muitos outros fatores, as entregue a um tribunal que só tem competência
baixas percentagens em que os defensores (pú- para a terceira fase do processo oral e, portan-
blicos e privados) solicitam aos juízes de garan- to, não intervém em quaisquer das discussões
tias as declarações de ilegalidade e a consequen- ocorridas nas fases prévias, que como já sabe-
te e perigosa passividade de muitos juízes na mos, são entregues à competência do juiz de
recolhida de informação de qualidade que lhes garantias. Esse aspecto positivo (imparcialidade
permita tomar uma decisão bem fundamentada. do juiz) decai na lógica dos processos especiais
As estatísticas médias a nível nacional indicam (abreviados, simplificados e monitórios), em que
que apenas 1% das resoluções proferidas pelos as sentenças definitivas (condenações ou absol-
juízes de garantias, nesta audiência, correspon- vições) são proferidas pelos próprios juízes de
dem às detenções ilegais (CEJA, 2017). Isso sem garantias, havendo, na grande maioria desses
dúvida é alarmante, pois está demonstrando que casos, acordos, entre o Ministério Público e as
esse primeiro controle do juiz de garantias está defesas, que determinam o reconhecimento de
falhando na prática, o que é comprovado pelas responsabilidade por parte dos acusados.
decisões que a Corte Suprema de Justicia ado- Por que esse ponto é relevante? Em pri-
ta posteriormente, uma vez concluído o pro- meiro lugar, porque, dos 100% dos casos que
cedimento, conhecendo e aceitando recursos entram no sistema, menos de 5% são levados à
de anulação, sendo o fundamento principal das fase de julgamento oral no âmbito do procedi-
referidas anulações o reconhecimento de ilega- mento ordinário. Assim, o percentual restante
lidades na origem da investigação1. majoritário dos processos é decidido em etapas
Como segundo ponto crítico, podemos citar a anteriores ao julgamento oral, que são de com-
passividade dos juízes de garantias e a burocracia em petência do juiz de garantias: procedimentos es-
que entrou a audiência principal da fase intermediá- peciais, saídas alternativas e arquivamento an-
ria, ou seja, a audiência de preparação do julgamento tecipado de processos pelo Ministério Público.
oral. Esta audiência é essencial no nível estrutural Isso denota uma tendência importante do sis-
do sistema processual penal chileno. É aqui que se tema processual penal chileno como um modelo
deve discutir e decidir quais provas serão levadas a mais orientado para o gerenciamento de casos,
julgamento e quais serão excluídas pelo juiz de ga- e onde os principais termos judiciais são obtidos
rantias, sendo um dos motivos da exclusão da prova por meio de acordos.
de maior peso, aquela obtida com violação de garan- Não se pretendeu, aqui, fazer uma revisão
exaustiva do sistema processual penal chileno,
1
Resultados obtidos nas auditorias anuais realizadas pela De- mas lançar um olhar sobre algumas questões
fensoria Pública Criminal, nos anos de 2018 a 2022, nas quais críticas que julgo pertinente destacar para uma
participei como auditor externo. melhor compreensão do sistema e para refle-

8
Coluna: Ponto e Contraponto

tir a dissociação que muitas vezes existe entre Se há algo que podemos extrair depois de 23
o plano normativo e sua aplicação prática. Isso anos de processo de reforma no Chile, é que uma
não significa ignorar que o papel desempenha- reforma legislativa não é suficiente por si só, pois,
do pelo juiz de garantias é fundamental dentro se essa transformação não for acompanhada por
de um sistema processual penal inserido em um uma mudança na percepção e convicção dos cida-
Estado Democrático de Direito, entretanto que dãos sobre o que é e o que deveria ser um sistema
exige como contrapartida, por parte daqueles penal, corre-se o risco de enveredar por um cami-
que o exercem, uma convicção e um grau de nho de deslegitimação constante das instituições
responsabilidade importante nas funções que que o compõem, com o perigo real de mais retro-
lhes foram confiadas. cessos do que avanços a curto prazo.

RODRIGO RÍOS

Professor de Direito Processual Penal nas Universidades Finis Terrae e Católica


del Maule, Chile. Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires,
Argentina. Mestre e advogado pela Universidade de Chile. Sócio do escritório
Picand & Ríos Abogados. Membro do Comité do Projeto Inocentes do Chile.

9
Coluna

ELAS
NO FRONT

u
Por Andremara dos Santos

Instada a escrever um manifesto por conta todas as suas formas, tanto na vida coti-
diana quanto no âmbito institucional.
da confluência do Dia Internacional da Mulher e do
A violência contra a mulher é um pro-
Dia Internacional de Combate à Discriminação Ra- blema grave e generalizado em todo o
cial, no mês de março, solicitei que o ChatGPT1 opi- mundo. Isso inclui abuso físico, sexual e
nasse sobre o tema, curiosa de como a inteligência psicológico, bem como assédio e violên-
artificial captaria e organizaria o grande acervo de cia doméstica. É importante criar um am-
textos produzidos pelo conhecimento humano, à biente seguro e acolhedor para as mulhe-
res, onde elas possam se sentir protegidas
sua disposição. Depois da geração e “regeneração”
e respeitadas em todos os momentos.
de vários textos, veio-me a seguinte resposta: Para combater a discriminação racial e
a violência contra as mulheres, é neces-
Como um modelo de linguagem artifi- sário que todos se envolvam e trabalhem
cial, não sou capaz de emitir opiniões juntos para mudar as atitudes e com-
ou manifestos. No entanto, posso for- portamentos prejudiciais. Isso inclui
necer informações sobre a importância educar as pessoas sobre a importância
de combater a discriminação racial e a da igualdade e do respeito pelos direitos
violência contra as mulheres. humanos, bem como garantir que haja
A discriminação racial é uma forma de leis e políticas que protejam as pessoas
preconceito que ocorre quando uma pes- contra a discriminação e a violência.
soa é tratada de forma diferente e injusta Em suma, é importante que todos traba-
com base na cor de sua pele, etnia ou ori- lhem juntos para promover a igualdade
gem nacional. Isso pode levar à exclusão e a justiça, independentemente da raça,
social, negação de oportunidades e até gênero ou qualquer outra característica
mesmo violência. É importante reconhe- pessoal. Todos devem ter direito a uma
cer e combater a discriminação racial em vida livre de discriminação e violência2.

O resultado conduz a algumas conclusões


1
Descrito por ele mesmo como “um modelo de linguagem inevitáveis, para além da convergência, cumula-
natural baseado na arquitetura GPT (Generative Pre-trai- tividade e interseccionalidade das duas temáticas
ned Transformer) desenvolvido pela Open AI, que é capaz em relação às mulheres negras, em especial, e às
de responder a perguntas e realizar tarefas de linguagem mulheres não brancas, em geral.
natural, como tradução, resumo de texto, geração de texto
e muito mais, treinado em um grande corpus de texto que
usa o aprendizado de máquina para gerar respostas con-
textualmente relevantes e coerentes com as perguntas e 2
OPEN AI. Disponível em: https://chat.openai.com/. Aces-
informações fornecidas”. so em: 22 abr. 2023.

10
Coluna: Elas no front

A primeira delas é que não é por falta de in- autoeducar, ou de procurar capacitação para, to-
formação que os dois temas permanecem como mando conhecimento do teor da Recomendação
problemas sociais mundiais na atualidade, a serem n.º 35 da CEDAW, da Convenção de Belém do Pará
enfrentados com excepcional atenção no nosso e da Lei Maria da Penha, analisar os casos do seu
país. É que, aqui, as instituições foram formata- dia a dia dentro de uma perspectiva de gênero,
das, desde o início, na desigualdade característica mesmo não atuando em um órgão especializado
do regime colonial e escravagista, cujos resíduos ou lidando diretamente com a matéria?
ainda estão entranhados nas nossas estruturas, Você, que se revoltou com o mais recente
apesar da estatura dos princípios da dignidade episódio de racismo no transporte público, na es-
da pessoa humana e da igualdade na Constituição cola, no supermercado, no restaurante, no banco,
Federal de 1988, que erigiu, como objetivo funda- na rua; ou, de outra parte, que acredita que é “mi-
mental do Brasil, a promoção do bem de todos, mimi” ou uma questão de “moda” o aumento das
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade reclamações, ocorrências e “queixas” de racismo;
e quaisquer outras formas de discriminação. ou que não se sente desconfortável em assistir ou
A segunda é que manifestos não são bastantes adotar atitudes ou tratamentos discriminatórios,
para alterar a situação das violências geradas pelo conhece o texto da Convenção Internacional so-
sexismo e pelo racismo, da qual a discriminação é bre a Eliminação de todas as Formas de Discri-
uma das facetas visíveis e auditáveis porque impe- minação Racial, o Estatuto da Igualdade Racial e
dem o acesso, criam distinção, exclusão, restrição a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
ou preferência em razão do sexo, raça, etnia, cor, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Into-
ascendência ou origem. É preciso o compromisso lerância? Tem conhecimento das alterações pro-
de todas e todos para virarmos essa chave. movidas pela Lei n.º 14.532/2023 na Lei Caó?
Até um modelo de linguagem artificial, in- O desafio, portanto, é múltiplo e plural: é
capaz de emitir opiniões e manifestos, pode infe- meu, seu, de todas as pessoas, e atende pelo nome
rir, a partir dos dados aos quais tem acesso, que a de educação, capacitação e formação continuada
desigualdade e a injustiça sociais são o substrato para a sociedade civil, estudantes e profissionais de
que alimenta e retroalimenta a violência contra todos as áreas e níveis. É necessário saber que tra-
as mulheres e a discriminação racial, autopoieti- tar pessoas com atitudes constrangedoras, humi-
camente. É preciso agir com efetividade e efici- lhantes, que causem vergonha, medo ou exposição
ência qualificada para combater a desigualdade indevida, em razão do gênero, cor, etnia, religião ou
consubstanciada pelo apagamento, invisibilização procedência, é proibido e punido por lei. E que não
(cada vez menos, felizmente) e descaso com os basta deixar de praticar condutas discriminatórias,
bens jurídicos, constitucionalmente protegidos, é necessário identificar essas situações para evitar,
que dizem respeito ao poder existir sem sobres- sempre, a impunidade e a revitimização.
saltos, sabendo-se um ser dotado de dignidade e
iguais direitos (nem mais nem menos) do que os
REFERÊNCIAS
outros seres humanos.
Diante disso, este texto propõe mais do que CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação Geral nº
a apresentação de um manifesto; ele pretende 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do Comitê
provocar reflexões e desafiar a sociedade em geral para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
– e, em especial, professores/as, estudantes, poli- Contra a Mulher (CEDAW). Brasília: CNJ, 2019.
ciais, delegados/as, advogados/as, procuradores/ BRASIL. Decreto n.º 65.810, de 8 de dezembro de 1969.
as, defensores/as públicos/as, promotores/as, ju- Promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação
ízes/as, servidores/as, seja do sistema de justiça de todas as Formas de Discriminação Racial, que foi aberta
criminal, seja de fora dele – à tomada de atitudes à assinatura em Nova York e assinada pelo Brasil a 07 de
que visem combater as violências perpetradas em março de 1966. Brasília, DF: Presidência da República, 1969.
razão da raça e do gênero, em seu cotidiano. _______. Decreto n.º 1.973, de 1º de agosto de 1996.
Você, que se sentiu tocada ou tocado pelo Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir,
último caso de feminicídio, lesão corporal, assé- Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher concluída
dio moral ou sexual, estupro, ameaça, extorsão, em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Brasília, DF:
cárcere privado ou qualquer outro tipo de violên- Presidência da República, 1996.
cia contra mulheres reportado nas mídias e redes _______. Decreto n.º 10.932, de 10 de janeiro de
sociais, é capaz de assumir o compromisso de se 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o

11
Coluna: Elas no front

Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas _______. Lei n.º 14.532, de 11 de janeiro de 2023. Tipifica
de Intolerância, firmado pela República Federativa do como crime de racismo a injúria racial, prevê pena de
Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Brasília, DF: suspensão de direito em caso de racismo praticado no
Presidência da República, 2022. contexto de atividade esportiva ou artística e prevê pena
_______. Lei n.º 11.340, de 23 de agosto de 2006. Cria para o racismo religioso e recreativo e para o praticado
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar por funcionário público. Brasília, DF: Presidência da
contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República, República, 2023.
2006. _______. Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os
_______. Lei n.º 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto da crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Igualdade Racial. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Brasília, DF: Presidência da República, 1989.

Andremara dos Santos

Juíza titular da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar da Comarca de Sal-


vador e Juíza Auxiliar do Gabinete da Ministra Cármen Lúcia, no STF. Membro
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher na vaga de notório conheci-
mento da questão de gênero e atuação pela promoção dos direitos das mu-
lheres (2018-2022). Doutoranda pela Universidade Nova de Lisboa em Direito
Constitucional. Mestre em Direito Econômico (1998) e em Segurança Pública,
Justiça e Cidadania (2015) pela Universidade Federal da Bahia.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

12
PROCESSO PENAL E

Um reforço da democracia constitucional:


limites e vínculos do processo penal
Quando, seu moço, nasceu meu rebento sobrevivência em uma sociedade que se pretenda
Não era o momento dele rebentar minimamente civilizada.
Já foi nascendo com cara de fome É também curioso que o primeiro texto da
E eu não tinha nem nome pra lhe dar nova coluna tenha sido do Professor Glauco Gios-
Como fui levando, não sei lhe explicar tra, explicando o valor e o limite do contraditório no
Fui assim levando ele a me levar Código de Processo Penal italiano, que serviu (não
E na sua meninice ele um dia me disse o mais atual, mas o CPP italiano de 1930, o chamado
Que chegava lá “Código Rocco”) de inspiração para o nosso, ainda
estruturado nas ideias de 1941, apesar das diversas
(Chico Buarque, O meu guri) reformas parciais que já sofreu até aqui.
No plano metodológico, a coluna buscará
Não é difícil imaginar por que mesmo um oferecer respostas a uma pergunta central: o
civilista como Pontes de Miranda, Professor da que é fundamental no campo teórico e/ou prá-
Cátedra de Direito Civil e Direito do Trabalho tico para o desenvolvimento de um processo
da Faculdade de Direito da Universidade Federal penal (compreendido como integrante do poder
da Bahia, logo percebeu que “[...] o processo cri- punitivo) que funcione em defesa da democra-
minal reflete, mais do que qualquer outra parte cia? Estamos cientes, mas devemos advertir que
do direito, a civilização de um povo” (MIRANDA, as(os) leitoras(es) não encontrarão respostas úl-
1979, p. 36), uma espécie de termômetro a medir timas, acabadas, ao longo dos textos que serão
a escala de temperatura democrática, orientado publicados a cada edição do Trincheira Demo-
pelo norte: “diga-me como anda o processo pe- crática, como se estivéssemos a revelar parte
nal de uma nação e eu te direi o nível de prote- a parte de uma “receita de bolo”. Democracia é
ção de sua democracia”, talvez uma das razões de um conceito tão complexo que não se tem como
existir do Instituto Baiano de Direito Processual definir precisamente. Pelas bordas, porém, é
Penal (IBADPP), que teve o tema “processo penal possível ter alguns pontos que necessariamente
e democracia”, em todos os seus Seminários Na- devem estar lá, nele. Um desses pontos está na
cionais, nas 10 (dez) edições já realizadas desde a “diferença”. E é assim porque ali se apoia a dig-
fundação (em 29 de março de 2011). nidade da pessoa humana: na diferença de cada
Esta nova coluna se conecta com a própria um; na sua singularidade. Por isso que o que tem
história do Instituto e da sua principal finalidade dignidade não tem preço. Somos singulares e
estatutária, sobre a qual se ergueram as raízes devemos ser tomados na nossa singularidade –
firmes deste pequeno (e afetuoso) dique de con- eis a questão central.
tenção, uma espécie de terra fecunda de ideias A estrutura analítica do direito (e do saber-
e ideais republicanos, mas que acaba sendo alvo -processual-penal) não tem o condão de ofere-
daqueles que são movidos por pretensões autori- cer uma única direção. Tal pretensão contribuiria
tárias, justamente pela capacidade de contribuir para alimentar os pontos cegos e fazer a roda girar
para pôr freios e limites ao poder de punir do Es- em torno de um “falso problema”, de que é possível
tado, sistema de contrapeso que é essencial para a encontrar certezas absolutas.

13
Coluna: Democracia

Foi por essa razão que a composição da quisitório, a ausência de uma reforma global do
equipe que ficará responsável por este espaço processo penal, a ausência de estruturas para as
tem uma Promotora de Justiça (Ana Cláudia Pi- investigações criminais e a educação jurídica em
nho, integrante do Ministério Público do Esta- completo declínio.
do do Pará), uma Juíza (Adriana Cruz, que atua É preciso um Processo Penal e um Direi-
na Justiça Federal no Estado do Rio de Janeiro), to Penal que sejam aplicados levando em conta
uma Defensora Pública (Rivana Ricarte, Defen- as vulnerabilidades e as assimetrias que definem
sora Pública Presidente da Associação Nacional os casos penais levados ao processo. A defesa da
de Defensoras e Defensores Públicos, com sede democracia pressupõe o respeito ao princípio da
em Brasília) e dois Advogados (Jacinto Nelson de dignidade humana em sua verticalidade mais ra-
Miranda Coutinho, situado no Estado do Paraná, dical, qual seja, a de respeito à pessoa sob julga-
e Luiz Gabriel Batista Neves, nascido na Bahia). mento em sua concretude e de atenção a todos os
São três mulheres e dois homens, duas pessoas atingidos pelo fato que entram em contato com o
autodeclaradas negras e três brancas. São profis- sistema de justiça, seja na qualidade de ofendidos
sionais com atuação em todas as regiões do país, ou de testemunhas.
de Norte a Sul. Acreditamos que somente assim é Assim, é essencial ter compreensão sobre
possível costurar os fios da teia de defesa de um qual a finalidade do processo penal em uma de-
processo penal democrático, mergulhados nas mocracia. É necessário alcançar condições de
nossas distintas subjetividades. possibilidade para esse entendimento que, por
Ferrajoli adverte que, recentemente, há em sua vez, passa pela dimensão garantista da pre-
curso um processo de desconstitucionalização sunção de inocência, como uma escolha polí-
do sistema político italiano. O ponto central des- tica (um princípio, pois), para além de simples
se movimento é criar uma única fonte de legi- baliza hermenêutica. Não resta dúvida de que
timação do poder político baseado no consenso a Constituição fez uma opção clara pela civili-
popular, que estaria apto a “legitimar todos os dade, e não pela barbárie. Nada, rigorosamente
abusos e para deslegitimar críticas e controles” nada, justifica um inocente preso (ou subme-
da Constituição e do constitucionalismo (FER- tido a quaisquer das constrições próprias do
RAJOLI, 2014, p. 13-14). É como colocar minas processo penal), ainda que, para isso, devamos
ao redor da democracia constitucional, movidos arcar com o ônus de que pessoas aparentemen-
pela intolerância, desrespeito às regras, rejeição te culpadas restem impunes.
e ataques a todas as agências, instituições, en- Uma vez bem compreendida essa lógica,
tes da sociedade civil organizada e suas garantias a função democrática do processo penal não
(sindicatos, parlamento, separação dos poderes, pode ser outra, senão o acertamento do caso
liberdade de imprensa, entre outros). penal, por meio da inegociável garantia dos di-
Em um tempo de fragmentos constitucio- reitos fundamentais da pessoa imputada. Im-
nais e de um constitucionalismo social na globa- porta muito mais o caminho, do que a linha
lização (TEUBNER, 2016), esse não é um proble- de chegada. O processo penal, portanto, não
ma somente da Itália. O Brasil vive graves fissuras é – numa democracia – meio de perseguição a
à sua democracia, assim como outros países do inimigos, tampouco instrumento de condena-
globo. Em nossa terra, a gestão da pandemia, as ção a qualquer custo. Fins, definitivamente, não
últimas eleições nacionais e episódios como o do justificam meios. Uma condenação ou uma ab-
8 de janeiro dão sinais de que cambaleamos para solvição importam menos do que as garantias
sobreviver em um regime republicano. Por aqui eficazmente asseguradas para se chegar a um
também experimentamos o ódio como política e ou outro resultado.
suas diversas faces: escola sem partido, a insistên- Na prática, caminhando se faz o caminho.
cia em um Brasil violento e de exceção, o discurso Isto é, precisamos avançar e contribuir para que
econômico da austeridade. esse modelo democrático de processo penal im-
No âmbito do poder punitivo e do processo pregne o sistema de justiça criminal país afora.
penal, assistimos a um crescimento assustador da Precisamos buscar esse ponto de inflexão, para
população carcerária, a produção de erros judi- que consigamos romper com nosso passado auto-
ciais baseados em condenações tão somente em ritário – marcado pela escravidão, pelo racismo e
provas dependentes da memória, o recrudesci- pelo patrimonialismo – a fim de construir um fu-
mento legislativo, a continuidade do sistema in- turo com mais esperança e justiça.

14
Coluna: Democracia

A nossa retomada da democracia é recente, REFERÊNCIAS


carregamos a história do nascimento desse reben-
to, “que já foi nascendo com cara de fome”, mas, FERRAJOLI, Luigi. Poderes selvagens. Trad.
apesar de todas as mazelas, seguimos acreditando Alexander Araujo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014.
que “é o meu guri”. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de.
Democracia, Liberdade, Igualdade: os três cami-
nhos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1979.
TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitu-
cionais: constitucionalismo social na globalização.
São Paulo: Saraiva, 2016.

Adriana Cruz

Doutora em Direito Penal pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).


Professora da PUC-Rio, Juíza Federal no Rio de Janeiro.

Ana Cláudia Pinho

Doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da


UFPA, Promotora de Justiça no Estado do Pará.

Jacinto Nelson Coutinho

Doutor pela Universidade “La Sapienza” de Roma. Professor Titular da Universidade


Federal do Paraná (aposentado), Advogado e membro Emérito do IBADPP.

Luiz Gabriel Batista Neves

Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Fa-


culdade Visconde de Cairu, Advogado e Ex-Presidente do IBADPP.

Rivana Ricarte

Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Defensora Pública no Estado do
Acre, Presidente da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos do Brasil.

15
Lirismos Insurgentes

CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO


O carro importado parado em frente ao barraco
O motor ligado, os faróis apagados
Vidro abaixado, braço esticado, paga o combinado, em dinheiro trocado
Recebe 5 pinos e 8 baseados
Voz de abordagem, mãos para o alto
O vendedor, em pé, chinelo remendado, é flagrado, revistado,
enquadrado no tráfico
Tem o quarto revirado, a vida revirada, vai ser levado, conduzido,
etiquetado, preso, julgado
O comprador é usuário, está liberado
O crime equiparado a hediondo é ser pobre, preto ou pardo.

MARCELA PAMPONET
Graduada em Direito pela UFBA,
Especialista em Direitos Humanos
e contemporaneidade pela UFBA,
Mestranda em Segurança Pública,
Justiça e Cidadania pela UFBA e Juíza do TJBA titular da
Vara de Audiência de Custódia de Salvador.

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Lirismos Insurgentes

Puff, puff.
Certa noite, João, perdido no brilho de uma concha de retalhos que se formou, no
mar, pela lua, não percebeu um puff branco à sua frente e se esbarrou no móvel, esqueci-
do nas mediações da Urca. O ruído do puff atritando o asfalto incomodou a classe média
que, confortavelmente, assistia ao noticiário. Chateados, decidiram submeter João a jul-
gamento. Condenado a ficar parado, para sempre, diante do puff, a alguns centímetros
de distância, para gravar, no inconsciente coletivo, uma frase: a linha entre o certo e
errado é quase nada, cuidado!
Após a extinção da pena, pela morte, João seria embalsamado e colocado na mes-
ma posição. Durante o cumprimento da condenação, ele apenas enxergava – o que lhe era
permitido –, mas os carcereiros-monitores não sabiam que o preso, também, era capaz
de sentir: via uma árvore e um muro grafitado. A Administração Penitenciária descobriu.
Cortaram a árvore e pintaram o muro de branco.

ISMAR NASCIMENTO JR.


Mestre em Direito Penal e Liberdades Públicas pela UFBA.
Doutorando em Direito pela UNB. Professor universitário. Advogado
(2011-2023). Publicitário. Servidor público no TJBA.

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Artigos

10 anos da lei de organização criminosa: entre


avanços e recuos, a irracionalidade do sistema
de justiça criminal1
Por Misael Neto Bispo da França

Em agosto de 2023, completam-se 10 anos manutenção dos privilégios de classe.


desde a sanção da Lei n.° 12.850/2013, apelidada Mais uma vez, como em toda política criminal
de “nova lei de organização criminosa”, um impor- eficientista, a “nova” lei de organização criminosa ra-
tante instrumento na tentativa de combate à ma- tificou a irracionalidade inerente ao sistema de justi-
crocriminalidade, notadamente aquela de caráter ça criminal, impactando diretamente na principiolo-
transnacional, incluindo o narcotráfico, a corrup- gia norteadora de um processo penal de garantias e,
ção sistêmica e o tráfico internacional de pessoas. assim, no próprio sistema acusatório, expressão de
A Lei de 2013 vem na esteira da Lei n.° obediência aos valores constitucionais e convencio-
12.694/2012, que previu a criação de juízos cole- nais, por parte das agências persecutórias.
giados em primeira instância nos tribunais do país, De início, convém atentar para a mitigação da
como forma de garantir a eficácia do combate ao ampla defesa e do contraditório, decorrente dos me-
crime organizado, através de uma pretensa proteção gaprocessos referentes ao concurso de crimes que,
das autoridades judiciárias envolvidas em tal tarefa. não raro, engloba a ORCRIM. Noutros termos, uma
No plano normativo internacional, constata- denúncia por organização criminosa, via de regra,
-se que a Lei n.° 12.850/2013 observa as diretrizes imputa aos denunciados outros delitos, tais como
estabelecidas pelas Convenções de Palermo (2000), corrupção, lavagem de dinheiro, desvio de dinheiro
atinente ao enfrentamento do tráfico internacio- público, tráfico de entorpecentes e fraude licitatória,
nal de pessoas, e de Mérida (2003), que preconizou apenas para ficar em algumas ilustrações.
medidas preventivas e repressivas contra a corrup- Isso resulta em processos demasiadamente
ção, merecendo destaque as de cunho patrimonial. extensos, com um volume de documentos e mí-
Como em toda política criminal eficientista, dias tal, que torna impossível o exercício da plena
a “nova” lei de organização criminosa insere-se em defesa técnica, sobretudo para os escritórios de
um contexto onde vicejam ironias, sendo a primeira pequeno porte, que não dispõem de tempo, infra-
delas bem sinalizada nas aspas aí colocadas. É que estrutura e pessoal compatível com a complexida-
a lei não inova no ordenamento jurídico pátrio, no- de das referidas demandas (MALAN, 2019, passim).
tadamente em face das reminiscências autoritárias Ainda, na esteira de irracionalidades, persiste
e inquisitoriais que impregnaram o ânimo do legis- na mentalidade do Judiciário brasileiro a ideia equi-
lador de 2013, com destaque para a relativização de vocada de que a prisão preventiva de integrantes de
garantias processuais como requisito para a elabo- organizações criminosas é mecanismo idôneo para
ração de acordo de colaboração premiada. a garantia da ordem pública. Insistir nessa ideia é
Outra ironia consiste no fato de que o Go- manobrar um direito desconectado dos seus as-
verno brasileiro da época provou do seu próprio pectos sociológicos e criminológicos, desconside-
veneno, ao ser deposto graças a táticas investigati- rando a realidade do sistema prisional pátrio.
vas disciplinadas na lei que ele próprio sancionou. Estudos desenvolvidos no âmbito da Crimi-
A politização da justiça, sob o manto do combate à nologia e da Sociologia dão conta de que os estabe-
corrupção, resultou na criminalização deliberada lecimentos penais são ambientes propícios ao re-
de agentes públicos, empresários e partidos polí- crudescimento da violência, não sendo capazes de
ticos, utilizando-se do direito como arma na guer- arrefecer as organizações criminosas neles instala-
ra contra tudo e contra todos os que resistissem à das (ANITUA, 2008, p. 802-803); isso conta, muitas
vezes, com o beneplácito de agentes públicos cuja
conduta comissiva ou omissiva permite que as fac-
1
Texto produzido a partir do debate promovido no
ções nos presídios comandem a delinquência para
Congresso da UFBA, em 17 de março de 2023, no PAF-1
(Ondina), com a participação do autor e dos professores além dos seus muros (LOURENÇO, 2013, passim).
Thaíze de Carvalho, Fernanda Ravazzano, Fábio Roque A Lei n.° 12.850/2013 corrobora a “finan-
Araújo e Oliveiros Aguiar Filho. ceirização” da justiça criminal, como preconizado

18
Artigos

pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário In- Os aspectos em tese positivos encontráveis
ternacional para a América Latina, a partir de um na Lei de 2013 envolvem a consonância com a refor-
Código Modelo de Processo Penal, elaborado na ma processual penal da América Latina, sobretudo
primeira década dos anos 2000. Trata-se de mo- quanto à colaboração premiada, bem como com as
delo de política criminal que aposta nos negócios diretrizes internacionais de Palermo e Mérida. Para
jurídicos processuais, como ocorre com os acor- além disso, salutar o advento de definições quanto
dos de colaboração premiada, que ganharam aten- à organização criminosa, o que confere maior se-
ção especial dos legisladores de 2013 e de 2019. gurança na tipificação de condutas relacionadas a
Sucede que a mentalidade inquisitorial e au- tal prática delitiva, sob a óptica da taxatividade.
toritária do subsistema processual penal brasilei- Sucede que é patente a irracionalidade da
ro se faz presente, também, na “nova” colabora- política criminal em comento, especialmente
ção premiada. É que a defesa continua com acesso quando se trata do fetiche pelo encarceramento
condicionado ao termo de colaboração, carecen- dos integrantes de ORCRIM, como esposado pelo
do de autorização judicial, o que não se exige do próprio STF(!). Tal revela a necessidade premente
Ministério Público ou da Polícia. Para acessar os de abordar o tema com amparo em contribuições
“prêmios” da colaboração, pondera-se a respeito da sociologia, da ciência política e, notadamente,
da personalidade do colaborador, em clara home- da criminologia. Com isto, ampliam-se as chan-
nagem a Lombroso. Ademais, exige-se que a de- ces de se encontrar soluções preventivas para a
fesa do colaborador apresente as provas do que criminalidade organizada, à luz das diretrizes in-
se pretende revelar, uma verdadeira inversão do ternacionais, reduzindo os danos decorrentes da
ônus probatório, incompatível com o sistema acu- repressão pura e simples, que se tem revelado
satório. Sem contar a exigência de abrir mão do contraproducente, por combater a violência por
direito ao silêncio, para firmar a avença. meio do recrudescimento dela mesma.
Outra grande ironia que aparece no contexto
do enfrentamento do crime organizado diz respei- REFERÊNCIAS
to à Lei n.° 12.694/2012, que, como se disse, trata da
criação de varas colegiadas em primeiro grau, para ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos crimi-
o processamento de causas atinentes a organiza- nológicos. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
ções criminosas e assemelhados. Recentemente, o LOURENÇO, Luiz Cláudio (org.). Prisões e punição no Bra-
Conselho Nacional de Justiça editou a Recomenda- sil contemporâneo. Salvador: Eduf ba, 2013.
ção n.° 77/2020, traçando as diretrizes para a cria- MALAN, Diogo. Megaprocessos criminais e direito de de-
ção das mencionadas varas, com destaque para o fesa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 27, n.°
número de magistrados atuantes, a aquisição de in- 159, set. 2019.
sumos e a infraestrutura, aptos a proteger vítimas, Supremo Tribunal Federal – STF. HC 214243 AgR, Re-
testemunhas e autoridades judiciárias. lator: NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em
Nota-se o grande impacto orçamentário que 13/06/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG
o implemento das referidas diretrizes pode acar- 20-06-2022 PUBLIC 21-06-2022.
retar. Curiosamente, a preocupação com o impac-
to no orçamento público levou o STF a suspender
a eficácia de diversos dispositivos de cunho ga- MISAEL NETO BISPO DA
rantista, como os referentes à implementação do FRANÇA
“juiz das garantias”.
Pelo exposto, temos que a “nova” lei do cri- Doutor em Direito. Professor
me organizado mantém-se como mais um produto de Direito Processual Penal e
de uma política criminal de emergência, de cunho Prática Jurídica Penal da UFBA.
eficientista, onde o enfrentamento da macrocrimi- Analista Jurídico do MPF
nalidade surge como pretexto para a perversão de
garantias processuais. Trata-se, ainda, de diploma
que reforça o caráter seletivo do sistema de justiça
criminal, ofertando possibilidades de barganha a ca-
tegorias hegemônicas, em detrimento da liberdade
ambulatorial dos mais vulnerabilizados, como forma
primordial de controle dos corpos indesejáveis.

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Artigos

Reflexões acerca da imparcialidade no julgamento


de processos da lei de drogas no Brasil
Por Ricardo Cathalá Ribeiro Dias

Os processos do âmbito da Lei n.° positivos mumificados, anteriores à Constituição


11.343/2006 abarrotam as Varas Criminais de Federal, que estão em flagrante descompasso
todo o Brasil com velocidade e volume de pro- com os princípios, de inegável matriz democrá-
porções industriais. Esta dinâmica, decorrente tica, nela consagrados. Esses dispositivos, de
do alistamento (consciente ou inconsciente) de natureza inquisitorial, trazem disposições legais
atores do Poder Judiciário à Guerra às Drogas, cujo conteúdo amplia o ambiente de decisão do
desafia a administração do Sistema de Justiça julgador, através da discricionariedade, nisso re-
Criminal sob o ponto de vista operacional, mas, sidindo um grave problema: ausentes princípios,
também, sob a perspectiva da manutenção da a lei ordinária carece de sentido, possibilitando
imparcialidade do julgador quando do momento ao juiz decidir com base em critérios subjetivos,
de tomada de qualquer decisão. arbitrariamente (PINHO, 2013, p. 22).
O juiz, alistado à anacrônica procissão dos Nesse sentido, a compreensão do exercí-
argumentos morais e políticos da Guerra às Dro- cio mental, realizado pelo julgador na formação
gas, vê-se desvinculando, ainda que homeopatica- da certeza, é essencial para identificar qual é a
mente, dos valores consagrados pelos princípios raiz dos argumentos de autoridade que marcam
constitucionais que devem orientar a interpreta- o poder discricionário, desconstruindo, assim, a
ção e aplicação da lei, e inserido em um ambien- premissa de imparcialidade sob a qual deveria se
te de vinculação ideológica, onde a agenda puni- alicerçar a figura do juiz.
tivista, movida pelo pânico moral do combate às Robert A. Burton (2017) nos diz que “a certe-
drogas, autoriza o magistrado a valer-se do po- za e os estados similares de ‘saber o que sabemos’
der discricionário para julgar de forma arbitrária nascem de mecanismos cerebrais involuntários
e seletiva, fazendo com que, como pontua Valois que, como amor ou raiva, funcionam independen-
(2017), sempre que conveniente, o Estado Demo- temente da razão”. Quanto ao estado de certeza
crático de Direito dê lugar ao Estado Policial. acerca de fatos, objetos de apuração em um pro-
Lamentavelmente, em nosso Código de cesso penal, é preciso situar que o processo, como
Processo Penal, em que pesem as inúmeras re- destaca Aury Lopes Junior (2020), é um instrumen-
formas, retalhos e entalhos, seguem vigendo dis- to de retrospecção, de reconstrução aproximativa

20
Artigos

de um determinado fato histórico. Por isso, não há logia kantiana, a razão prática, que, no Brasil, traz
certeza, mas, sim, uma sensação de saber, cons- consigo o sabor amargo da nossa história social,
truída a partir da coleta consciente e inconsciente inviabilizando, de plano, a existência de um juízo
de todo tipo de informação que será submetida ao imparcial, sob qualquer prisma.
crivo da experiência pregressa e compreensão de
mundo do julgador, na composição do caso penal.
REFERÊNCIAS
Segundo Burton (2017), tais mecanismos
operam de forma inconsciente, através de ima- ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo:
gens mentais já previamente estabelecidas, antes Jandaíra, 2021.
mesmo de qualquer contato do julgador com os BURTON, Robert A. Sobre ter certeza: como a neuroci-
autos. Por isso, não se pode descuidar da sensí- ência explica a convicção. Tradução: Marcelo Barbão. São
vel dissociação que se deve fazer entre o conhe- Paulo: Bluncher, 2017.
cimento intelectual – aquele obtido na apreciação LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São
das provas dos autos – e o conhecimento senti- Paulo: Saraiva Educação, 2020.
do – a carga de experiência (pré-juízos) adquirida PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo:
pelo juiz ao julgar processos similares e que de- uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal.
termina a forma como o julgador se posicionará Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
desde o primeiro contato com os autos. ROSA, Alexandre Moraes da. Guia do processo penal es-
Partindo da premissa de que o juiz é juiz-no- tratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. 1ª
-mundo (LOPES JUNIOR, 2020, p. 1.346), é preciso ed. Florianópolis: Emais, 2021.
que se tenha claro que, no momento da tomada TAVARES, Juarez. Crime: crença e realidade. Rio de Janei-
de decisão, o julgador trará consigo a influência ro: Da Vinci Livros, 2021.
declarada e/ou velada de toda sorte de pressões VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas.
sociais e midiáticas, que incidem sob os demais in- Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
divíduos, mas que são inconscientemente poten-
cializadas em razão da posição que o julgador ocu-
pa no tabuleiro processual. Na obra “Crime, Crença RICARDO C. RIBEIRO DIAS
e Realidade”, Juarez Tavares tece imprescindíveis
considerações acerca da formação da consciên- Advogado Criminalista. Mem-
cia dos atos, asseverando que “a vida consciente é bro da Comissão de Ciên-
uma vida na história” e destacando, com maestria, cias Criminais da OAB/BA.
como “na história se desenvolve a vida consciente Membro do Instituto Baiano
e, também, todo o processo de conotação dos ob- de Direito Processual Penal.
jetos, de interpretação das regras, de reconheci- Especialista em Ciências Criminais – Universidade
mento do outro, de juízos de valor, afirmativos ou Católica do Salvador. Bacharel em Direito – Univer-
negativos” (TAVARES, 2021, p. 24-25). sidade Católica do Salvador.
Ao afirmar que “a vida consciente é uma
vida na história”, Tavares (2021) questiona a pre-
missa da imparcialidade subjetiva do julgador,
cujo Esquema Decisório inevitavelmente trará a
carga das experiências vividas enquanto Ser, o
que, segundo Alexandre Morais da Rosa (2021),
materializa-se em forma de Heurísticas, verda-
deiras regras de bolso, utilizadas como forma de
simplificar a atividade mental necessária para o
desempenho do ato de julgar.
Dessa forma, por ser o juiz um juiz-no-
-mundo, os parâmetros de decisão adotados são
oriundos de um exercício mental multidisciplinar
inconsciente, que inevitavelmente não pode ser
limitado pelas regras do saber jurídico, havendo,
por essa razão, a incidência incontrolável de to-
dos os planos que compõem, segundo a termino-

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Artigos

A invisibilidade e a demonização do usuário de


crack: o inimigo agora é outro!
Por Carolina Souza Neris e Isabela Oliveira de Santana

Fácil de esconder, preço baixo e com efeito de nas ruas (morais e silva, 2020, p. 10). Ademais,
rápido. Foram, basicamente, essas características a violenta política contra as drogas só intensifi-
que fizeram com que o crack ficasse conhecido ca o sofrimento dos usuários, uma vez que são
como o fast food das drogas (inciardi, 1996, p. 10- constantemente constrangidos e agredidos pelos
12). A guerra contra as drogas é um antigo embate agentes do estado (toledo et. Al, 2016, p. 32).
travado pelo governo brasileiro e não é novidade Desse modo, o uso de crack e de outras dro-
que, ano após ano, o brasil perde esta batalha. Ins- gas ilícitas é uma questão de enfrentamento de
ta destacar que a comercialização do crack afeta competência da saúde pública. Proibir o uso sem
diretamente os setores econômico, político, jurí- critérios através da legislação, internar compulso-
dico e de saúde, e o objetivo é único: o lucro. riamente os dependentes químicos ou encarcerá-
O crack nada mais é do que a cocaína (sóli- -los só aumenta a demanda nos hospitais e pri-
da) misturada com outras substâncias. Ele surte sões, além de desrespeitar a dignidade da pessoa
sensações prazerosas no corpo, contudo, a sua humana (coelho et. Al, 2014, p. 366). É notório que
ação no organismo dura cerca de vinte minutos. não existe uma real preocupação com os depen-
Varella (2011) aponta que o vício ocorre em um dentes químicos, pelo contrário, busca-se exter-
curto período porque a cada uso o organismo minar o crack das ruas (e quem o utiliza).
necessita de uma quantidade maior da droga. Al- A política de extermínio criou uma visão
guns estudos acerca dos efeitos do uso do crack distorcida sobre a substância e quem a utiliza, e
concluíram que o “pulo do gato”, na verdade, está esse olhar míope para o estado de vulnerabilidade
na via de administração, uma vez que o acesso ao social dos usuários contribui para o crescimento
cérebro é mais rápido do que com a cocaína, por da violência no país (valois, 2020, p. 370), Visto
exemplo. Além disso, diferente do que é propa- que o cometimento de delitos é um dos meios de
gado, não existe qualquer comprovação científica sustentar o vício.
de que, usando apenas uma vez, o sujeito se torna A vulnerabilidade social é, portanto, o fator
viciado, isso porque nada é instantaneamente vi- chave para discutir o uso da droga em questão,
ciante (streatfeild, 2001, p. 299). porque não há dúvidas de que os usuários de cra-
Acontece que todas as tentativas (ineficien- ck, em sua maioria, são pessoas que já tiveram os
tes) do estado para implementação de políticas seus direitos limitados antes mesmo da depen-
públicas voltadas para esses usuários, aqui no dência química. À vista disso, toledo, góngora e
brasil, colocam o crack no centro do debate, no bastos (2016, p. 33) Afirmam que a fuga de uma
foco de todas as ações, como o grande vilão que realidade violenta, fome e problemas psicológi-
destrói a vida das pessoas, colocando-as em si- cos são alguns dos motivos que levam os depen-
tuação de extrema vulnerabilidade. Sucede que, dentes a consumir o crack.
na verdade, o ponto central reside na tomada de Neste contexto, conclui-se que a demoni-
consciência de que a vulnerabilidade e exclusão zação dessas pessoas, fortalecida pelos meios de
social precedem o início do uso do crack, e não comunicação, só contribui para a perpetuação da
o contrário. É óbvio que o usuário tende a sofrer seletividade penal, uma vez que os verdadeiros
com os mais diversos problemas, mas o que mo- motivos que estão por trás desse grande colapso
tiva alguém a consumir tal substância? Do que se seguem sendo, propositalmente, ignorados, di-
pretende fugir e qual a relação dessa tentativa de ga-se de passagem. Bertoni e bastos (2014) des-
fuga com o estado? Evidente que o vício exclui tacam que a esmagadora maioria dos usuários de
(ainda mais) o indivíduo do seio da sociedade, crack encontra-se em estado de extrema vulne-
dado que a maioria dos usuários de crack resi- rabilidade social, sendo, em maior número, par-

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Artigos

dos e pretos, com baixa escolaridade, provendo CAROLINA SOUZA NERIS


de famílias desestruturadas e expostos à margi-
nalização e à estigmatização. Advogada Criminalista, Pós-
É mais confortável para o estado apontar -graduada em Ciências Cri-
as consequências do que assumir a responsabi- minais pela Universidade
lidade pela causa, já que resta clara e evidente a Católica do Salvador e Pós-
sua omissão no tocante ao suprimento de direitos -graduada em Direito Penal
básicos e fundamentais de grande parcela da po- e Criminologia pelo Introcrim e CEI.
pulação, marginalizada e esquecida, que só é lem-
brada ao incidir na criminalidade. ISABELA O. DE SANTANA

Advogada Criminalista; Ba-


REFERÊNCIAS charel em Direito pela Uni-
BASTOS, Francisco Inácio; BERTONI, Neilane. Pesquisa versidade Católica do Salva-
nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de dor; Especialista em Direito
crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais Público pela Legale Educa-
brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014. cional; Pós-graduanda em Direito Penal e Pro-
COELHO, Isabel; DE OLIVEIRA, Maria Helena Barros. In- cesso Penal; Membra do Grupo de Pesquisa “Fe-
ternação compulsória e crack: um desserviço à saúde minismos e Processo Penal” do Instituto Baiano
pública. Disponível em: <https://doi.org/10.5935/0103- de Direito Processual Penal.
1104.20140033>. Acesso em: 08 fev. 2023.
INCIARDI, James A. et. al. “The origins of crack”. In: CHI-
TWOOD, Dale D; RIVERS; James E; INCIARDI, James A
(Org.). The american pipe dream – crack cocaine and the
inner city. Orlando: Harcourt Brace & Company, 1996.
LARANJEIRA, Ronaldo. Tratamento contra o crack. Pro-
grama Recomeço. São Paulo, 13 abr. 2015. Disponível em:
<http://programarecomeço.sp.gov.br/noticias/trata-
mento-contra-o-crack/>. Acesso em: 08 jan. 2023.
MORAIS, Dayana Rosa Duarte; SILVA, Martinho Braga Ba-
tista. O que o crack tem a ver com a rua? Uma revisão Respiro
narrativa com implicações políticas (2011-2017). Disponí-
vel: <https://doi.org/10.1590/S0103-7331202030021807>.
Acesso em: 07 fev. 2023.
STRANO, Rafael. Crack: política criminal e população vul-
nerável. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2018.
STREATFEILD, Dominic. Cocaine – an unauthorized bio-
graphy. Nova Iorque: Picador, 2001.
TOLEDO, Lidiane; GÓNGORA, Andrés; BASTOS, Fran-
cisco Inácio P. M. À margem: uso de crack, desvio,
criminalização e exclusão social – uma revisão nar-
rativa. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-
81232017221.02852016>. Acesso em 06 fev. 2023.
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas.
3ª ed. São Paulo: D’Plácido, 2020.
VARELLA, Drauzio. Dependência química. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/depen-
dencia-quimica-entrevista>. Acesso em: 05 fev. 2023.
Por: Suzart Suzart @artedesuzart

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Artigos

A problemática do excesso de utilização das prisões


cautelares como meios de antecipação de pena
Por Joari Wagner Marinho Almeida e Filipe Santana Pitanga de Jesus

Em que pese a Constituição Federal de 1988 Tem-se então o ponto fulcral da discussão,
elencar no seu rol dos direitos e garantias fundamen- nos termos do relatório alhures citado: a alta quan-
tais o famigerado princípio da presunção da inocên- tidade de presos provisórios no país, que abrange
cia, por meio do art. 5º, LVII1, tem-se observado, no em dados mais atuais, segundo o Conselho Nacio-
Brasil, a persistência de práticas reiteradas do Poder nal de Justiça (CNJ, 2019), cerca de 40% da popula-
Judiciário, a requerimento do Ministério Público, da ção carcerária total - em torno de 241.090 presos.
utilização de prisões cautelares, em especial da prisão Ou seja, custodiados que, em sua grande maioria,
preventiva, como meios de antecipação de pena. têm as prisões cautelares decretadas sob uma su-
Nesse sentido, o fito principal deste artigo se posta expertise de garantia da ordem pública e
consolida em explorar, de maneira breve, os pre- econômica, bem como conveniência de eventual
juízos que este padrão (equivocado, diga-se) tem instrução criminal, sem que tenha havido conde-
causado aos acusados que posteriormente sejam nação transitada em julgado, sendo que relevante
absolvidos – situação corriqueira e recorrente no parte dessa população é inocentada no findar da
sistema penal brasileiro -, em especial, com relação persecução penal ou, caso condenada, vem a ter
àqueles que, devido ao atraso da marcha processu- as suas respectivas penas inferiores ao tempo que
al, acabam por passar períodos elevados de tem- passaram encarcerados (IBCCRIM, 2020).
po sob a custódia cautelar à espera de julgamento, Cediço que essa celeuma, de fato, subsiste
bem como àqueles que, em eventual condenação, e tem sido latente no contexto nacional. Segundo
têm o tempo de suas penas fixadas inferiores ao dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
período que estiveram preso preventivamente. (IPEA), 4 entre 10 pessoas que respondem ao pro-
A celeuma carcerária no país não se consubs- cesso presas, durante a instrução criminal, não são
tancia enquanto novidade. Há tempos, no Brasil, condenadas no Brasil (RAMOS, 2022). Assim, refle-
prende-se muito e prende-se mal (FERNANDES, te-se: como haverá a reparação dessa parcela da
2022). Segundo dados do Departamento Peniten- sociedade? E, de fato, há essa reparação ocorrida
ciário Nacional (DEPEN), o número da população devido à falha da atuação estatal no âmbito crimi-
carcerária triplicou entre os anos de 2000 e 2019, nal? Sendo que é notório que esse, através do sis-
saindo de um total de 232.755 para 773.151 indivídu- tema de Justiça, tem se preocupado preponderan-
os, os quais são segregados do convívio social – em temente em exercer uma espécie de “pré-punição”
situações que, na maioria das vezes (referindo-se com as prisões cautelares, mitigando direitos, ga-
àqueles que ainda não foram condenados), pode- rantias e prerrogativas constitucionais/processu-
riam ter sido impostas as medidas cautelares diver- ais conferidas aos investigados ou acusados.
sas de prisão contidas no art. 319 do CPP2 – e postos Voltaire, iluminista francês, dentre as suas várias
em unidades superlotadas, insalubres e que violam tendências de pensamento, cunhou a seguinte frase:
prerrogativas fundamentais, vide ADPF 3473. “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado
do que condenar um inocente” (2018, p. 25). Essa es-
trutura intelectual, por vezes, vem a chocar membros
1
Art. 5º, LVII, CRFB: “Ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”. da sociedade em geral, mas, principalmente, aqueles
2
O artigo 319 do Código de Processo Penal traz em seu que fazem parte do sistema de Justiça e do Ministério
dispositivo as medidas cautelares diversas de prisão que podem Público. Afinal, ab initio, parece ser um absurdo jurídi-
ser aplicadas pelo Juízo, em detrimento das prisões cautelares. co, sob a argumentação da alta criminalidade.
3
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental No entanto, aqui se acredita que, em uma so-
nº 374, o STF reconheceu que, nas prisões brasileiras,
ciedade como a brasileira, na qual o Estado exerce o
vive-se um estado de coisas inconstitucional, devido às
condições que tem se mostrado no contexto nacional, monopólio do uso da força e do poder, sob uma pers-
violando princípios fundamentais como dignidade da pectiva Weberiana, é um absurdo jurídico que ele se
pessoa humana dos presos. utilize dessa legitimidade para perpetrar injustiças

24
Artigos

contra cidadãos específicos (afinal, criminalizados dado ao alto número de presos que, ao término do
também são cidadãos e gozam de direitos e prer- processo criminal, vêm a ser absolvidos.
rogativas), que em sua grande maioria são negros e
pobres, equivocando-se, então, no uso arbitrário das REFERÊNCIAS
prisões cautelares, numa ideia utilitarista de preven-
ção (FERRAJOLI, 2002). A propósito, mencione-se: BRASIL. Justiça e Segurança. Dados sobre população car-
cerária do Brasil são atualizados. Brasília. Disponível em:
a ideia utilitarista de prevenção, quan- <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguran-
do apartada do princípio de retribuição, ca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-
tem-se transformado num dos principais
-sao-atualizados>. Acesso em: 14 abr. 2023.
ingredientes do moderno autoritarismo
penal, associando-se às doutrinas corre- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. BNMP 2.0: Banco
cionalistas da defesa social e da prevenção Nacional de Monitoramento de prisões. Disponível em: <
especial e legitimando as tentações subje- https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/
tivistas nas quais, como veremos, nutrem- bnmp.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2023.
-se as atuais tendências em favor do direito DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Peniten-
penal máximo (FERRAJOLI, 2002, p. 298).
ciárias. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/
Isso posto, nota-se que tem existido pro- servicos/sisdepen>. Acesso em: 05 abr. 2022.
blemática na percepção do nível de inadequação e IBCCRIM. A banalização da prisão preventiva: ainda a ordem
inautenticidade com a aplicação das prisões cau- pública como via argumentativa para a prisão processual. No-
telares como meios de antecipação de pena, o que, tícias IBCCRIM, 2020. Disponível em: < https://www.ibccrim.
como citado, tem se revelado uma afronta às ga- org.br/noticias/exibir/701#_edn2>. Acesso em: 11 nov. 2022.
rantias e prerrogativas constitucionais/legais dos FERNANDES, Maíra. BRASIL CHEGOU A MAIS DE 900 MIL
indivíduos submetidos à persecução penal. PRESOS DURANTE A COVID-19. Consultor Jurídico, 2022.
Por outro lado, é correto afirmar que, na eventual Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jun-08/
tentativa de propor mudanças às “regras do jogo” como escritos-mulher-sistema-prisional-durante-covid#:~:text=-
estão postas, houve no ano de 2019 alterações, de fato, Atualmente%2C%20o%20sistema%20prisional%20brasilei-
importantes no Código de Processo Penal, tangentes ro,mil%20vagas%20nas%20penitenci%C3%A1rias%20brasi-
à temática discutida, advindas da Lei nº 13.964/2019 – leiras>. Acesso em: 11 nov. 2022.
como foi o caso das mudanças presentes nos arts. 312, FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo pe-
§ 2º, e 316, parágrafo único, ambos do referido diploma. nal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Os dispositivos trouxeram consigo, respectivamente, RAMOS, Maria Carolina de Jesus. O abuso das prisões pro-
a necessidade de contemporaneidade dos fatos para visórias. CANAL CIÊNCIAS CRIMINAIS, 2022. Disponível em:
que se possa haver a decretação de prisões preventivas <https://canalcienciascriminais.com.br/o-abuso-das-priso-
e o dever de revisão dessas decisões a cada 90 dias. es-provisorias/> Acesso em: 10 nov. 2022.
No entanto, à luz do que se está, bem como do retrato VOLTAIRE. Oeuvres Complètes de M. de Voltaire. França:
fático/social da população carcerária nacional, essas Wentworth Press. 2018.
reformas revelam-se ainda tímidas e insuficientes no
âmbito do encarceramento no Brasil, uma vez que a JOARI WAGNER M. ALMEIDA
própria jurisprudência, em grande parte dos julgados,
tem tendido a manter prisões preventivas que diver- Advogado Criminalista. Mes-
gem com o disposto nas mudanças. trando em Ciências Crimino-
Eis, portanto, a problemática que está posta lógico-Forenses pela Universi-
no contexto de encarceramento brasileiro, mostran- dad de Ciencias Empresarialies
do-se necessárias políticas baseadas em pesquisas y Sociales (UCES), Argentina.
e estudos tangíveis, que se proponham a (re)pensar Professor da Faculdade Anísio Teixeira (FAT).
reformas institucionais, promovendo-se uma re-
discussão institucional da arquitetura do problema, FILIPE S. PITANGA DE JESUS
uma vez que a existência de meras mudanças em al-
guns poucos pontos da legislação processual vigente Bacharelando em Direito pela
não se mostram eficazes na resolução da celeuma. Universidade Estadual de Fei-
Nessa perspectiva, este ensaio faz um alerta à ne- ra de Santana/Universidade
cessidade de se debater a legalidade do excesso de do Porto.
prisões cautelares e seus impactos, principalmente,

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Artigos

Perfil criminológico do homem envolvido com


violência doméstica: a estrutura patriarcal e a
normalização da violência
Por Mariana Rodrigues da Costa Pinto de Carvalho

Ao tratarmos do perfil criminológico do ho- tamento considerado desviante, a partir do curso


mem envolvido com violência doméstica, é preci- da evolução histórico-cultural, passam por uma
so partir da história do patriarcado – e, nisso, as transformação no seu enfrentamento desde as lu-
teóricas feministas têm muito a colaborar. tas feministas. Davis (2016, p. 60-64) ressalta como
Angela Davis (2016, p. 19) resgata a história o inconformismo das mulheres à supremacia mas-
escravista, ressaltando o lugar da mulher na eco- culina as levaram a lutar por seus direitos, como
nomia: enquanto as mulheres brancas serviam à na Convenção de Sêneca Falls, em 1848.
casa como manufatoras da família, as mulheres Inobstante essa transformação, não se pode
negras escravizadas viviam conforme a conve- afirmar que o ponto de vista daqueles privilegia-
niência dos escravistas, exploradas ao trabalho dos pela estrutura patriarcal mudou, posto que o
pesado como se fossem homens, mas punidas e etiquetamento da violência de gênero, enquanto
exploradas como fêmeas, a fim de que também conduta desviante, é ação afirmativa necessária à
servissem à propriedade e à supremacia branca, medida que permanece sendo a cultura dominante.
sobretudo a masculina. Nesse sentido, Paixão et al. (2018), discor-
Com o período industrial norte-americano rendo sobre homens acionados criminalmen-
(séc. XIX), a ideologia da feminilidade se difundiu, te por violência conjugal na cidade de Salvador/
reforçando a imagem da mulher que nasceu para BA, comprova que a naturalização da violência é
ser mãe e dona de casa. Mesmo o trabalho tendo transgeracional e cíclica, pois o perfil criminológi-
migrado para as fábricas, as mulheres brancas, en- co do agressor é marcado pela ausência de com-
quanto esposas, encontravam-se fadadas a serem preensão de suas atitudes como desviantes, tanto
serviçais de seus maridos (DAVIS, 2016, p. 45). que muitos deles chegam ao ponto de afirmar que
Gerda Lerder (2019, p. 50; p. 112) denota que “(...) isso é natural e todo casal enfrenta”.
“a opressão de mulheres precede a escravidão e Assim, apesar de Roberto Bergalli (2015, p.
a torna possível”, ao retomar o segundo milênio 230) observar, à luz da teoria do etiquetamento,
a.C., período que se destaca pela escravização de que o desviante deve ser compreendido na sua
mulheres de uma sociedade, incluindo o ato de interação com o ambiente no qual está inserido,
estuprá-las como estratégia de guerra e de con- os aspectos macrossociológicos, nessa teoria,
quista territorial. terminam sendo ignorados em razão de a análise
A histórica dominação dos corpos femini- não incluir a estrutura social e econômica desse
nos, através da justificativa do sexo biológico, tem ambiente. Por conta disso é que a criminologia fe-
se atualizado estrategicamente pela manutenção minista se faz necessária para entender melhor o
da estrutura hegemônica patriarcal branca como fenômeno das violências.
ela é – haja vista a imagem do homem provedor Vale citar o debate que Soraia da Rosa Men-
da família ser fomentada pelos homens brancos des (2021 p. 53-78) propõe quanto à conexão entre
(DAVIS, 2016, p. 20) –, sendo base da sociedade em múltiplas epistemologias feministas, em especial,
que vivemos. A percepção dessa estrutura social a de mulheres negras, como forma de romper com
nos permite entender o conflito do homem en- epistemologias que não contestam as próprias
volvido em situação de violência doméstica diante premissas e não analisam as vozes disfarçadas do
das mudanças legislativas. poder. E é assim que a própria necessidade das
Partindo dessa premissa – em que pese as lutas dos movimentos feministas, na intervenção
mulheres, principalmente as negras, ainda serem através do Direito Penal, é proposta como forma
pouco observadas à luz das teorias criminológicas de solucionar a problemática, tal como aborda
–, o patriarcado e a sua relação com o compor- Mariana Seifert Bazzo (2020, p. 91) ao chamar a

26
Artigos

atenção sobre como a ordem patriarcal, reforçada criminalmente. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 71, p.
por posturas dos Poderes Judiciário e Legislativo, 178-184, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0034-
por muitos anos, entendeu a autonomia da mulher 7167-2016-0475>. Acesso em: 17 abr. 2023.
como violação à lei.
Ademais, em que pese os avanços das lu-
tas feministas no enfrentamento da violência de MARIANA DE CARVALHO
gênero1, outros desafios se apresentam para uma
efetiva reparação histórica. Conforme demonstra Bacharela em Direito pela Fa-
o relatório “Reincidência Criminal”, elaborado pelo culdade Anísio Teixeira (FAT),
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, Pós-graduada em Direito Pe-
2015, p. 12), a justiça brasileira possui índice de nal pela Faculdade Damásio
reincidência de, pelo menos, 30%. Desse modo, de Jesus, especializada no
a desconstrução da cultura patriarcal vigente e atendimento jurídico das mulheres em situação de
o combate aos índices dessa violência epidêmica violência doméstica ou de gênero pelo Instituto Bra-
são necessários para que homens possam com- sileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Presidente
preender a agressão enquanto conduta desviante da Comissão de Direitos Humanos da OAB Subseção
e assumir papel ativo e comprometido com a luta Feira de Santana/BA, Assessora Parlamentar.
pelo fim da violência de gênero.

REFERÊNCIAS
BAZZO, M. S. Lei Maria da Penha: Resistências em sua apli-
cação e um necessário filtro promovido pela teoria femi-
nista do direito. In: SANTOS, Michelle Karen (org.). Crimi-
nologia feminista no Brasil: diálogos com Soraia Mendes. 1ª
ed. São Paulo: Blimunda Estúdio Editorial, 2020.
BERGALLI, R.; RAMÍREZ, J. B.; MIRALLES, T. O Pensamento
Criminológico I: Uma análise Crítica. Rio de Janeiro: Re-
van, v. 1, 2015.
BRASIL. Lei n.º 11.340, de 07 de agosto de 2006. Lei Maria
da Penha. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso
em: 23 nov. 2022.
BRASIL. Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015. Disponível
em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- Respiro
2018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 17 abr. 2023.
BRASIL. IPEA. Reincidência Criminal no Brasil. Relatório
de Pesquisa. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <http://
www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio-
pesquisa/150611_relatorio_ reincidencia_criminal.pdf>.
Acesso em: 17 abr. 2023.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci
Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado: história da
opressão das mulheres pelos homens. Tradução: Luiza Sel-
lera. São Paulo: Cultrix, 2019.
MENDES, Soraia da Rosa. Processo Penal Feminista. 2ª ed.
Baurueri: Atlas, 2021.
PAIXÃO, G. P. do N. et al. Naturalização, reciprocidade e mar-
cas da violência conjugal: percepções de homens processados

1
Citem-se como exemplos a Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria
da Penha) e da Lei n.º 13.104/2015 (Lei Anti-Feminicídio). Por: Gilmar @cartunista_das_cavernas

27
Artigos

Passado, presente e futuro na segurança


pública brasileira
Por Monique Pena Kelles

O cenário brasileiro no quesito “seguran- permaneceu praticamente idêntica à Constitui-


ça pública” é permeado por um vasto histórico de ção de 1967 e à sua emenda de 1969” (ZAVERU-
abusos e arbitrariedades, remontando até mesmo CHA, 2005, p. 59).
à época anterior à abolição da escravatura em 1888. Ocorre que a temática da segurança públi-
A Constituição Federal de 1988 atribuiu um ca se mantém um tema candente, propício para
sentido democrático às forças de repressão e controvérsias e muita discussão, nem sempre
preservação da integridade do Estado Brasileiro. frutífera. No quadriênio de 2019-2022, nosso país
Em seu capítulo III, dedica-se a estruturar a Se- vivenciou a exaltação à violência nua e crua pelo
gurança Pública do país, ainda que mantenha a então Presidente da República e muitos de seus
ideia de forças auxiliares do Exército, até como subordinados. Os símbolos das forças armadas e
reservas. Anteriormente, as forças armadas de- da segurança pública em geral foram postos no
tinham poder exacerbado, com atuação política centro dos debates como figuras responsáveis
para além de sua representatividade na socieda- pela manutenção da ordem social. Mas o que é a
de, responsáveis por destituir o presidente eleito ordem social e como ela poderia ser controlada
João Goulart, na marcante data de 31 de março por meio da força repressiva?
de 1964, instaurando um regime autocrático por O que representa hoje a segurança pú-
árduos 21 anos. blica do nosso país diz muito sobre o que fo-
Apesar de a nova Constituição ter sido fru- mos, o que somos e, até mesmo, o que seremos
to de um processo de elaboração democrática, enquanto sociedade, tendo em vista que temos
que resultou em um amplo leque de direitos e em nossas forças armadas muito mais uma sen-
garantias fundamentais, Jorge Zaverucha, ao se sação de ameaça constante do que, de fato, uma
referir às cláusulas relacionadas às Forças Ar- sensação de segurança e proteção. Desse modo,
madas, aponta que “uma parte da Constituição a fictícia premissa de uma dita “garantia da or-

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Artigos

dem” que se faz presente frequentemente em ções permanecem como prática de algu-
mas instituições policiais, misturando-se
discursos militares se apresenta dúbia em re-
a casos de uso legítimo da força.
lação à sua verdadeira função na promoção da
defesa de seus cidadãos. Analisando o perfil de indivíduos abordados
No entanto, o termo “garantia da ordem”, e presos por forças policiais, os homens negros e
muito difundido e utilizado no meio militar, não jovens formam a grande maioria, com 84,1% do to-
só é um tanto quanto amplo, como também tem tal, o restante se divide entre indígenas, mulheres,
sido interpretado como sinônimo de repressão, brancos e amarelos.
disciplina e autoritarismo no meio policial. Em se A incivilidade gritante de nosso país é tão
tratando de uma expressão frequente na legisla- peculiar que já ocorreram diversas condenações
ção penal, até mesmo em nossa Constituição, é pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
difícil estabelecer um critério que traga contor- Um dos casos conhecidos é referente ao chama-
nos claros à atuação da polícia, que detenha linhas do “caso Favela Nova Brasília”, em 1995, que cul-
divisórias bem demarcadas acerca da atuação di- minou na morte de 26 pessoas na cidade do Rio
ária no combate à “desordem pública”. Trata-se de de Janeiro (RJ) por uma intervenção policial com
um grande desafio, na medida em que se tem, por abuso de força.
um lado, o senso comum de que o Brasil é o país Não diferente, no ano de 2021, houve a “cha-
da impunidade e, por outro, também no senso co- cina do Jacarezinho”, região de comunidade do RJ,
mum, que somos um país violento. em que morreram 28 pessoas, entre elas jovens
Ambas as teses, embora verdadeiras, mere- que passavam pelas redondezas sem qualquer
cem ressalvas. Há alguns tipos de delitos que são indício ou envolvimento de prática de crime. As
comumente punidos (como a chamada criminali- imagens do ocorrido revelam que a ação policial
dade urbana) e outros que, ao revés, são deixados se deu em completo desacordo com as práticas de
de lado pelo poder punitivo (como os chamados de abordagem da polícia militar, com o uso de força e,
colarinho branco, os crimes ambientais etc.). principalmente, com o uso de armas.
Quanto à ideia de “país violento”, os notici- Nunca é demais relembrar o “caso Ge-
ários diários nos bombardeiam com abordagens nivaldo” ocorrido em maio do ano passado em
policiais violentas, que não raras vezes culmina- Sergipe, em que Genivaldo de Jesus Santos, de
ram em mortes e/ou violação grave aos direitos 38 anos, foi abordado por policiais rodoviários
humanos. Isto é, a violência e a repressão policial federais por não estar usando capacete enquan-
não atingem aqueles que praticam delitos de cola- to dirigia uma moto. O vídeo da abordagem que
rinho branco, mas atingem brutalmente os indiví- circulou nas redes sociais revela a cotidiana
duos que praticam roubo, furto e pequenos tráfi- brutalidade da ação policial que, perante uma
cos. Rubens Casara (2017, p. 90) observa um perigo inspiração nazista de câmara de gás, asfixiou
da naturalização da violência: um homem no porta-malas da viatura, em plena
luz do dia, matando-o cruamente, sem qualquer
E o pior é que o autoritarismo produ- possibilidade de defesa.
zido acaba naturalizado e muitas vezes Os exemplos são apenas uma pequena
aplaudido. Se as pessoas acreditam que
parcela dos casos noticiados na mídia, mas já
todos os problemas só podem ser resol-
vidos por meio do uso da força, com o dão conta da chama aporofobia em nosso país, o
emprego da violência, qualquer outra que implica diretamente na forma como lidamos
medida se tornará indesejada. com a segurança pública. Sobre isso, Denise An-
tunes (2022, p. 13) sintetiza a consequência ne-
Conforme o Anuário Brasileiro de Seguran- fasta para a democracia:
ça Pública (2022), no último ano houve queda na
taxa de letalidade policial, que atingiu seu ápice (...) a importância do tema é ratifi-
em 2020 com 6.412 mortes decorrentes de inter- cada, à medida que o ódio ao pobre
afronta os preceitos mais básicos dos
venção policial – em 2021, foram contabilizadas
Direitos Humanos (e, pois, da demo-
6.145 mortes. O próprio relatório ressalta que: cracia). Atente-se que o discurso de
ódio afronta os princípios constitu-
embora esta redução mereça ser cele- cionais referentes a igualdade e dig-
brada, elevadas taxas de mortalidade por nidade humanas, além de não condi-
ações policiais permanecem em vários zentes com os ideais democráticos.
estados, indicando que abusos e execu- (...) A origem da pobreza no Brasil é

29
Artigos

percebida na nossa história e, como é


REFERÊNCIAS
intuitivo, a colonização e a escravidão
são fatores que propiciaram o surgi-
ANTUNES. Denise. Ensaio sobre a Aparofobia e a implicação
mento da miséria no Brasil. E mais, o
fim da escravidão e o início do êxodo no processo democrático brasileiro. In: Jornal AJD - Associa-
rural contribuíram mais ainda no qua- ção de Juízes para a Democracia. Ano 20, n.º 87, nov. 2022.
dro da pobreza. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6ª Turma. Recur-
so em Habeas Corpus 158.850/BA. Relator: Min. Rogério
Foi apenas no ano passado que o Supe- Schietti Cruz. Publicado em: 19 abr. 2022
rior Tribunal de Justiça, por meio do julgamento CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: Neo obscu-
do HC 158.850/BA, relatado pelo Min. Rogerio rantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civili-
Schietti, definiu a ilegalidade das buscas pes- zação Brasileira, 2017.
soais com base em filtros raciais. Ainda que a FÓRUM DE SEGURANÇA. Morte de policiais: números que
decisão mereça aplausos, não podemos deixar retratam caminhos muito mal elaborados de nossa socie-
de nos perguntar por que essa definição se deu dade. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2022. Dis-
apenas em 2022. ponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-bra-
Se é o Estado o garantidor da ordem e pro- sileiro-seguranca-publica/. Acesso em: abr. 2023.
vedor das garantias fundamentais, é também sua REDE BRASIL ATUAL. Massacre no Jacarezinho comple-
atribuição a formação de agentes da segurança ta um ano com 24 das 28 mortes arquivadas pelo MP.
pública qualificados, que se atentem aos direi- 2022. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.
tos humanos. Infelizmente, ao que indicam os br/cidadania/chacina-no-jacarezinho-completa-um-
números expostos, o Brasil, que já vem de uma -ano-com-24-das-28-mortes-arquivadas-pelo-mp/.
cultura de violência policial com requintes de Acesso em: abr. 2023.
racismo e abuso de autoridade, mantém-se for- ZAVERUCHA. Jorge. FHC, forças armadas e policiais: entre
temente em sua inconstitucional missão de per- o autoritarismo e a democracia (1999 – 2002). Rio de Janei-
petrar barbaridades país afora. ro, Record, 2005.
É certo que os caminhos para atingir esse
fim estão longe de serem cumpridos em sua in- MONIQUE PENA KELLES
tegralidade. Ainda assim, o meio acadêmico for-
nece estudos, ferramentas e dados que podem Advogada, Mestre em direito
e devem ser utilizados pelo Estado, a fim de re- e pesquisadora em Direitos
estruturar os planos de governo no que diz res- Humanos.
peito à segurança pública e o respeito mínimo as
garantias constitucionais.

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

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Artigos

O encarceramento negro feminino no Acre:


taxas de um silenciamento
Por Caroline Bispo

Segunda-feira, 03 de maio de 2021: che- das do Acre não havia mudado muito, passando
go ao Acre para o primeiro trabalho de pesqui- de 100%, em 2014, para 97%, em 2016. Ademais,
sa oficial à frente da Associação Elas Existem - dados fornecidos pelo IAPEN – Instituto de Ad-
Mulheres Encarceradas1. Assustada e com muita ministração Penitenciária do Acre, em 2020,
expectativa, dirijo-me sozinha até o Complexo revelaram que o Estado ainda possuía uma uni-
Prisional Francisco de Oliveira Conde (FOC), o dade cuja composição integral era de mulheres
maior espaço de privação de liberdade do Esta- negras, bem como uma segunda unidade, cujo
do, localizado na capital, na cidade de Rio Bran- número total de detentas era de 251 mulheres,
co, a fim de conhecer a unidade prisional femi- sendo 235 negras e somente 16 brancas.
nina. Lá, realizei o pedido de autorização formal Por essas questões é que, após receber um
para entrevistar 80 mulheres cis e trans, poli- grant para ir a Paris apresentar a Associação Elas
ciais penais e outros atores e atrizes do sistema Existem e, com alguma insistência, obtive a opor-
prisional do referido Estado. tunidade de passar três semanas viajando pelo
A situação carcerária do Acre começou a Estado do Acre, de ônibus, nas três cidades que
chamar minha atenção no ano de 2015, após o possuem unidades prisionais femininas do Estado:
lançamento do primeiro relatório nacional sobre Rio Branco, Tarauacá e Cruzeiro do Sul.
a população penitenciaria feminina do país, o IN- Quem são as mulheres encarceradas?
FOPEN FEMININO, com dados recolhidos pelas Analisando os dados oficiais disponibiliza-
penitenciarias brasileiras em junho de 2014. O re- dos, verificamos que houve um aumento eviden-
latório apresentou informações alarmantes, como te de mulheres encarceradas no Brasil, sendo
o aumento em 567% do encarceramento de mu- que, ao pensar nas questões de gênero, deve-
lheres, no curto período de 14 anos (2000-2014), mos igualmente atentar que essas mulheres são
subindo do número de 5.601 para 37.380 mulheres triplamente estigmatizadas: por serem acusadas
encarceradas no Brasil – dado que alertou movi- do cometimento de um crime, simplesmente
mentos sociais e, também, órgãos institucionais por serem mulheres e, num número muito sig-
para a questão. Ocorre que, para mim, apesar des- nificativo, por serem negras.
se crescimento assustador, o que soou mais ater- O último relatório oficial específico sobre as
rorizante na pesquisa foi a indicação de que 100% mulheres encarceradas no Brasil foi publicado em
das mulheres encarceradas, no Estado do Acre, 2018 (BRASIL, 2018), com dados recolhidos entre
eram pretas ou pardas. os anos de 2015 e 2016, através de um questionário
Em 2018, com o lançamento do segundo online enviado pelos gestores de unidades prisio-
relatório oficial do INFOPEN FEMININO, verifi- nais para o Departamento Penitenciário Nacional.
quei que a taxa de mulheres negras encarcera- Esse relatório traçou o seguinte perfil das mulhe-
res presas: 50% possuíam faixa etária entre 18 e
29 anos; 45% não chegaram a completar o ensino
1
A Associação Elas Existem - Mulheres Encarceradas
surgiu no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2016, a fundamental; 62% eram solteiras; 62% eram mães;
fim de demonstrar como o encarceramento de mulheres 62% eram presas provisórias; e 62% eram negras.
no Brasil alcançava números alarmantes A missão da Uma vez que, no primeiro relatório apre-
Associação Elas Existem - Mulheres Encarceradas é lutar sentado, a porcentagem de mulheres negras
pelo desencarceramento, pela redução do sofrimento encarceradas, em todo o Brasil, era de 67%, as
e pela garantia de direitos de mulheres (cis e trans) e
chamadas de matérias mais noticiadas acerca
adolescentes (meninas cisgêneras e transexuais e meninos
transexuais) em espaços de privação de liberdade, desse último relatório se referiam à diminui-
trazendo visibilidade, também, para aquelas que passaram ção do número em percentual dessas mulhe-
ou foram atingidas pelo cárcere, egressas e familiares. res. Isso constituiu mais uma jogada política do

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Artigos

que Silvio Almeida (2018) nomeia como Racis- Por isso, este ensaio não objetiva trazer uma
mo Estrutural2, tendo em vista que a escolha de conclusão final sobre a problemática social posta,
dar visibilidade para o número de 62% a nível mas criar um alerta sobre o aumento e o silencia-
nacional, sem esclarecer e visibilizar, de igual mento do marcador social da raça nas discussões
modo, o aumento expressivo do encarcera- sobre o encarceramento de mulheres no Brasil, e
mento de mulheres negras em algumas cidades dividir a inquietação sobre a ausência de uma mobi-
especificas, é, também, inquestionavelmente, lização social para qualquer mudança nesse cenário.
uma manutenção do racismo3.
Comparando os relatórios, o Acre continuou
ocupando o topo, com uma taxa de 97% de mu- REFERÊNCIAS
lheres negras encarceradas, mas, nesses dois anos ACRE. Instituto de Administração Penitenciária. Dados so-
(2014-2016), o número dessas mulheres passou de bre presos. Gráfico da evolução carcerária. Disponível em:
66% para 90% no Tocantins, de 79% para 90% no <http://iapen.acre.gov.br/dados/>. Acesso em: abr. 2023.
Piauí, bem como de 52% para 90% no Maranhão. ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Hori-
Aliás, o Maranhão foi o Estado com o maior au- zonte: Letramento, 2018.
mento no percentual (38%) de mulheres negras BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário
encarceradas nesse curto período. Nacional. Levantamento Nacional de Informações Peni-
E agora? tenciárias – Infopen – junho de 2014. Brasília/DF, 2014.
Este breve ensaio, utilizando o método et- BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário
nográfico, pretendeu trazer uma reflexão sobre o Nacional. Levantamento Nacional de Informações Peni-
aumento do encarceramento feminino negro no tenciárias – Infopen Mulheres. 2. ed. Brasília/DF, 2018.
Brasil e como o silenciamento e a falta de recorte
racial nas discussões fizeram/fazem com que esse
número continue a crescer ao longo dos anos. Após CAROLINE BISPO
ir pela primeira vez ao Acre, em maio de 2021, para
iniciar a pesquisa durante três semanas, retornei ao Mestranda em Segurança
Estado em outubro do mesmo ano, quando me mu- Pública e Justiça pela UFF.
dei para a cidade de Cruzeiro do Sul, com o objetivo Pós-graduanda em Políticas
de analisar a questão pelo olhar do que chamo de Públicas e Justiça de Gênero
criminologia cultural e trabalhar diretamente com pelo CLACSO. Pós-graduada
a formação das mulheres encarceradas. em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS. Advo-
Atuar através da escuta ativa para além da gada. Fundadora e diretora da Associação Elas Exis-
pesquisa acadêmica me fez perceber que a falta de tem - Mulheres Encarceradas. Membra do Conselho
um letramento racial e a carência de discussões po- Orientador da Plataforma Brasileira de Política de
líticas locais contribuem, de maneira fundamental, Drogas. Membra da Comissão Especial de Seguran-
para o aumento do encarceramento de mulheres ça Pública do Conselho Federal da OAB. Articuladora
cis e trans, em geral, e para o aumento do encarce- política internacional da Elas Existem, atuando na
ramento de mulheres negras, em específico. Colômbia, Nova York, Washington e Montreal. Mãe
da Maria Eduarda.
2
No Brasil, o conceito de Racismo Estrutural tomou forma e
força com o lançamento do livro do Ministro Silvio Almeida,
que elucida de forma didática as diferenças entre racismo
individual, institucional e estrutural, deixando evidente que o
racismo institucional é a presença massiva de determinados
grupos hegemônicos nas instituições de poder.
2
Dina Alves, membra efetiva do Adelinas – Coletivo
Autônomo de mulheres Pretas, traz em seus textos
sempre uma reflexão ao que ela chama de relação
senzala-favela-prisão, ao analisarmos não somente o
número de pessoas negras encarceradas, mas, também, o
número de pessoas negras que são vítimas de execução
policial pelo Estado diariamente, evidenciando o racismo
estrutural e institucional que o Brasil vivencia, e sendo
essa demonstração quantitativa ainda mais evidente nos
espaços de privação de liberdade.

32
Entrevista com: Hédio
' Silva Júnior

Advogado militante, conferencista, parecerista, ex-


consultor da ONU e da FAPESP. Doutor em Direito
Constitucional e Mestre em Direito Processual Penal
pela PUC-SP. Autor de teses, artigos e livros, tais como
“Discriminação racial como sinônimo de maus-tratos:
o papel do ECA na proteção das crianças negras” (2017).

1
A combativa atuação do professor, re- vítico. Devo mencionar que o “abate religioso”,
conhecido por sua luta contra o racis- para além da liturgia, assume uma dimensão
mo e em proteção à liberdade religio- econômica e dietética, na medida em que al-
sa, no âmbito do julgamento do RE 494601, gumas religiões (como ocorre no islamismo) só
iniciado no ano de 2018, chamou a atenção consomem proteína de animais abatidos confor-
de todos e todas à importância do tema ali me os seus rituais religiosos. A despeito disso, o
tratado e foi essencial ao deslinde do caso. À racismo religioso cristalizou um “caldo de cultu-
ocasião, o STF reconheceu a constitucionali- ra” que associou o “abate religioso” estritamente
dade “[d]a lei de proteção animal que, a fim à macumba e a práticas primitivas e selvagens
de resguardar a liberdade religiosa, permite que mereceriam alguma forma de censura ou
o sacrifício de animais em ritual de cultos de reprovação. Nesse contexto é que a principal
religiões de matriz africana”. Na sua opinião, contribuição desse julgamento paradigmático,
quais foram os impactos efetivos dessa deci- pelo STF, foi desmistificar o “abate religioso”, re-
são na sociedade brasileira? velar que se trata de um dogma comum a várias
religiões, com dimensões inclusive econômicas,
HÉDIO SILVA JÚNIOR Antes de responder à e assumi-lo por legítimo e constitucional. Outro
pergunta, devo fazer duas observações: a refe- impacto positivo do julgamento deveu-se ao re-
rida ação buscou tutelar a liberdade de crença conhecimento do “abate animal” como patrimô-
(o que inclui a liberdade de não crença), direito nio cultural imaterial.
assegurado constitucionalmente (art. 5º, incisos
VI e VIII, da CF/88), a partir do reconhecimento Nos últimos anos, a pauta sobre intole-
de que um dogma, independentemente da reli- rância religiosa ganhou força durante a
gião a que pertença, deve ser respeitado, desde disputa entre os candidatos à chefia do
que obviamente observada a fronteira da lega- poder executivo do Brasil. Com o acirramen-
lidade. O segundo registro é que eu emprego to político, as eleições de 2018 e de 2022 fo-
a expressão “abate religioso” para me referir a ram marcadas por sérios ataques de cunho
práticas presentes também em religiões que não religioso, discursos de ódio e violência, o que
são de matriz africana, a exemplo do judaísmo, representa patente afronta ao Estado de Di-
no qual há o ritual do Kaparot, e do islamismo, reito. Sob sua visão, enquanto coordenador
no qual se pratica o Eid al Adha; também a Bíblia do Instituto de Defesa dos Direitos das Reli-
traz rituais com animais em várias passagens, giões Afro-brasileiras (Idafro) e ex-secretário
como no seu terceiro livro do Pentateuco, o Le- de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado

33
Entrevista: Múltiplos Olhares

de São Paulo, quais seriam as principais for- Segundo levantamento de dados reali-
mas democráticas de enfrentamento à into- zado em 2021 pela ONG Words Heal the
lerância religiosa? World1, metade dos Estados brasileiros
(Acre, Amapá, Amazonas, Ceará, Goiás, Ma-
HÉDIO SILVA JÚNIOR A crescente expressão da ranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba,
violência, no campo político, sem dúvida, reflete o Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Ro-
grau de enraizamento e de arraigamento de um dis- raima, Sergipe, Tocantins) não possui qual-
curso de ódio que começou há décadas no campo quer registro de crimes motivados por ódio
religioso. Os Tribunais Superiores, especialmente religioso, ao passo que outros Estados detêm
o STF, chegaram a demarcar, com precisão, a linha considerável quantidade de casos, de que é
que distingue o proselitismo – que é o enalteci- exemplo São Paulo, com 120 registros. Em
mento das próprias crenças e narrativas religiosas sua opinião, quais fatores justificariam essa
– do discurso de ódio. Ocorre que, não raramente, assimetria entre os dados no país, e quais as
grupos ainda buscam afirmar a sua verdade religio- implicações desse cenário disforme na agen-
sa a partir da execração, da humilhação, do cons- da de combate à intolerância religiosa?
trangimento, do ataque verbal e até físico de outros
grupos. Esse “caldo de cultura” é retroalimentado, HÉDIO SILVA JÚNIOR Na realidade, há uma
em grande medida, pela mídia e por alguns progra- invariável subnotificação nas taxas de crimes
mas religiosos veiculados na televisão aberta, que motivados por ódio religioso em todo o país,
se abstêm do proselitismo para ingressar na fron- mesmo nos Estados em que o citado relató-
teira ilícita e criminosa do discurso de ódio, que rio apontou registros; portanto, o próprio
demoniza não só religiões, mas todo o patrimônio pressuposto da assimetria é questionável.
cultural, todo o legado civilizatório Essa subnotificação genera-
por elas herdado. Eu utilizo a ex- lizada é produto de vários fa-
pressão “racismo religioso” para Eu utilizo a expressão tores (históricos, sociais, po-
dizer que não há um dissenso en- “racismo religioso” líticos), mas, em especial, do
tre crenças, mas uma perseguição amiúde despreparo do sistema
contra a crença e a descrença de para dizer que não de justiça para recepcionar
determinados segmentos, e isso há um dissenso entre as reclamações e assegurar o
ocorre com maior ênfase em face crenças, mas uma seu devido encaminhamento,
de religiões de matriz africana, tão e da notória incapacidade do
sistemática e cotidianamente vio- perseguição contra a sistema penal para responder
ladas em seus direitos – e, o pior, crença e a descrença adequadamente a essas viola-
sob o manto da naturalização das ções de direitos, que faz com
de determinados
violências. Para a superação dessa que as pessoas vitimadas não
perseguição sistemática, não me segmentos [...] se sintam, em geral, minima-
parece plausível contarmos so- mente encorajadas a registrar
mente com medidas coercitivas e sancionatórias; uma ocorrência. Noutro prisma, as religiões
torna-se necessária uma intervenção estatal que de matriz africana ainda possuem dificulda-
faça uso de instrumentos preventivos (tais como de em se visualizarem como sujeitas de direi-
a indústria cultural, a publicidade, a propaganda, a tos, e, mais ainda, de terem uma leitura nítida
educação escolar) que propaguem a relevância do acerca das violências sofridas. Desse modo,
imperativo ético da valorização da diversidade, e a para o avanço da agenda de combate à into-
importância da dissociação entre “diferença” e “in- lerância religiosa, primordial que as agências
ferioridade” – que é o núcleo central do racismo re- de reclamação sejam aparelhadas por equipes
ligioso. Um país que se pretenda democrático e que especializadas nesse tipo de conflito (como já
possua uma rica geografia de identidades culturais, ocorre nos Estados de São Paulo, do Rio de
étnico-raciais e religiosas, como o Brasil, precisa, Janeiro e da Bahia), e que o debate acerca dos
principalmente, desenvolver o conceito jurídico de meandros que envolvem os crimes motivados
tolerância, para que as religiões se respeitem, con- por ódio religioso seja intensificado, contínua
vivam harmoniosamente e, acima de tudo, coexis- e incansavelmente, no intuito de que as pes-
tam tanto no ambiente privado quanto no público. soas não mais naturalizem comportamentos
violentos e aviltantes.

34
Entrevista: Múltiplos Olhares

4
Recentemente, suposto caso de in- é o ponto, o respeito a valores éticos, cultu-
tolerância religiosa ocorrido em pro- rais e, portanto, religiosos diversos.

5
grama de mídia televisiva (reality
show) pautou uma discussão sobre o tema Para o professor, nos próximos anos,
nas redes sociais. Alguns internautas re- quais serão os novos desafios do Di-
pudiaram a atitude de três participantes reito frente ao racismo e à intolerân-
que manifestaram sentimento de "medo" cia religiosa, com vistas à convivência de-
diante de rituais candomblecistas de um mocrática?
quarto participante, enquanto outros de-
fenderam a não configuração de crime HÉDIO SILVA JÚNIOR A maior dificuldade, em
na espécie. Sob a sua perspectiva, de que se tratando de intolerância religiosa, é estati-
modos poderíamos avançar num debate zar, “desprivatizar” o Estado brasileiro, o que
mais abrangente e efetivo, direcionado é um colossal, mas real, paradoxo. Nós temos
à evitação da violação desses direitos de uma assombrosa, temerária e corrosiva ocu-
cunho religioso? pação de espaços públicos (conselhos tute-
lares, escolas públicas, creches públicas) por
HÉDIO SILVA JÚNIOR Um ilícito religioso grupos religiosos; no entanto, para o Estado
pode causar implicações em diversas esfe- brasileiro, constitucionalmente laico, deveria
ras, inclusive na esfera criminal (vejam, nesse importar a formação de cidadãos nessa res
sentido, o artigo 208 do Código Penal), mas publica, não de fiéis, que é uma matéria de au-
precisamos ter em mente que ele afeta, so- tonomia privada. Quanto ao racismo, e preci-
bremaneira, subjetividades, samente ao racismo religioso, o
pois ingressa na seara da tu- desafio é alcançarmos não só os
tela constitucional do senti- A grande urgência seus efeitos, mas as suas causas.
mento religioso. Imaginem, no é que ultrapassemos Eu entendo que a expressão “ra-
caso acima retratado, quantas cismo estrutural” está totalmente
pessoas tiveram o seu sen- o conceito de desconectada do sistema jurídico
timento religioso violado ao antirracismo e brasileiro, pois a ideia de que o
assistirem à suposta cena de adotemos o que a responsável pelo racismo seja
ultraje. Elas, sem dúvida, pos- uma “estrutura” intangível e de
Constituição a
suem instrumentos individuais endereço incerto acaba desone-
ou coletivos, para a tutela des- República denomina rando o Estado, as corporações e
se bem jurídico, contra a emis- de política os indivíduos aos quais esse mes-
sora que veiculou o conteúdo, igualitária, para que mo sistema atribui responsabili-
pois é dever dessa emissora dade pelo racismo. A ideia de um
estabelecer protocolos e regu- o Estado assuma país com racismo e sem racista é
lar condutas que aviltem, ain- a sua cota de paralisante. A grande urgência é
da que indiretamente, direitos responsabilidade que ultrapassemos o conceito de
de participantes ou de milha- antirracismo e adotemos o que a
no tratamento
res de telespectadores, mesmo Constituição da República deno-
em se tratando de reality show. da questão mina de política igualitária, para
Mas isso se trata de reparação, que o Estado assuma a sua cota
não necessariamente de prevenção. Para a de responsabilidade no tratamento da ques-
evitação da violação desses direitos, uma me- tão e, volto a dizer, por meio de seus instru-
dida que entendo extremamente importante mentos preventivos, ingresse no sistema de
é o acionamento, pela sociedade em geral, do valores, para que a diversidade figure como
Conselho de Comunicação Social, que é um imperativo ético.
órgão vinculado ao Congresso, cuja função é
colaborar na fiscalização dos veículos de ra-
diodifusão, a fim de que a produção e a pro-
gramação das emissoras cumpram os stan-
dards fixados nos artigos 220 e 221, ambos da
Constituição da República, dentre eles, e aqui

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