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ISSN 2675-2689 (Impresso)

ISSN 2675-3189 (Online)


BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ANO 4, Nº 15

JUNHO DE 2021

Entrevista com
Fábio Esteves
P. 36

Memorial de 80
Anos do Código
Processual Penal:
Civilização, fascismo
e modernização: O
Código de Processo
Penal e a Distribuição
da Cidadania no
Brasil P. 38
Ações perante os Tribunais:
Diretoria Executiva
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Presidente: Vinícius Assumpção Santana, Rafaela Alban, Caio Hita e Ismar
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Brandão Observatório da Equidade: Charlene Borges,
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BOLETIM REVISTA DO INSTITUTO BAIANO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL, ANO 4 - N.º 15,
JUNHO/2021, ISSN: 2675-2689 (IMPRESSO)/ ISSN 2675-3189 (ONLINE)

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e Vinícius Romão Yazdani (@mahnaz.yazdani) for the
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Moura
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Lara Teles e Jonata Wiliam das Árvores, CEP 41.820-020, Condominio
Edição Mundo Plaza, Torre Empresarial, 5º andar,
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O IBADPP agradece a todos que http://www.ibadpp.com.br/


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boletim, em especial aos chargistas publicacoes@ibadpp.com.br
Alexandre Beck, André Dahmer e @ibadpp
Editorial
A Epidemia da Barbárie
Lágrimas. Indignação. Desespero. Saudade. A O que as lágrimas dos parágrafos anteriores
pandemia da COVID-19, até este momento, nos tirou possuem em comum? O desprezo pela vida. A pró-
mais de 500 mil vidas brasileiras. Ceifou meio milhão pria barbárie. Mortes acontecendo por omissão e
de primaveras e deixou de luto mais outros milhares por insistência em medidas médicas de comprovada
de jardins, agora sombrios pela dor do não-viver e do ineficácia. Do outro lado, mortes sendo celebradas e
que poderia ter sido vivido. Sim, ainda cabia muita erigidas como troféu por competência. Nesse pata-
vida para muitos daqueles que padeceram de uma mar, outro velho conhecido que também já sucum-
doença contra a qual já se possui vacina. O andamen- biu foi o processo penal como marco civilizatório. As
to da campanha nacional de imunização é um alento, alas mais progressistas não tardam em reconhecer
mas com um preço do atraso impagável para muitas o papel presidencial no primeiro conjunto de óbitos.
vidas brasileiras. Mas essa, infelizmente, não é a úni- Todavia, até mesmo algumas dessas alas apresentam
ca epidemia vivenciada nesta terra. uma miopia seletiva e aplaudem discursos legitima-
Lágrimas. Indignação. Desespero. Saudade. A dores de dizimação das vidas matáveis. (AGAMBEN,
Operação Policial do Jacarezinho, a mais letal da his- 2007, p.16), E isso somente é possível com uma prévia
tória do Rio de Janeiro, mata quase trinta moradores narrativa de autenticação, ecoada não somente pela
da comunidade e um agente de segurança pública, extrema-direita da terra brasilis.
mesmo em meio às restrições impostas pela ADPF Nesse contexto, este boletim, ao lado de mui-
635. Nas palavras da grande mídia, “a corporação tas outras publicações contramajoritárias Brasil afo-
afirma que 24 criminosos foram mortos” (PORTAL DE ra, vem se apresentar como uma vacina, na tentativa
NOTÍCIAS G1, 2021). A operação aconteceu no dia 06 de conter essa epidemia da barbárie. São artigos da
de maio de 2021, no início da manhã. A notícia supra resistência, que propõem um contraponto à narra-
é do mesmo dia e foi publicada às 6h45min da manhã. tiva do mainstream jurídico e político-social, que,
Tempo suficiente para a mídia comprar e endossar apesar de sua natureza discursiva, produzem muita
a narrativa legitimadora da violência. Não basta ma- destruição no mundo dos fatos.
tar, é preciso desumanizar e legitimar a morte, mes-
mo que sequer tenha dado tempo de investigar, de Lara Teles
modo isento, qualquer circunstância que seja. Houve
quem comemorasse tal chacina. Em nome de quem? REFERÊNCIAS
Guerra às drogas! Porém, como bem nos lembra Va-
lois, “drogas não morrem, não levam tiros e não são AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a
vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte:
encarceradas e aos poucos o termo guerra às drogas
Editora UFMG, 2007.
vem revelando a sua face exclusivamente desumana VALOIS, Luís Carlos, O Direito Penal da Guerra às Drogas.
de uma guerra contra pessoas.” (VALOIS, 2017, p.16). 2a ed. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017.
Poucos dias depois, mais corpos negros caídos no PORTAL DE NOTÍCIAS G1. Operação no Jacarezinho deixa
chão: Kathleen Romeu e de seu bebê, que sequer teve 25 mortos, provoca intenso tiroteio e tem fuga de bandi-
a chance de respirar os ares de dias melhores. Na dos. 06 mai 2021. Disponível em https://g1.globo.com/rj/
rio-de-janeiro/noticia/2021/05/06/tiroteio-deixa-feri-
quebrada, tudo igual: como diria Emicida, “80 tiros te
dos-no-jacarezinho.ghtml. Acesso em 15 jun 2021.
lembram que existe pele alva e pele alvo”1.
1
Trecho da canção Ismália de Emicida.
Para ler ouvindo:
Ismália
Emicida feat Larissa Luz
Fernanda Montenegro
SUMÁRIO

03 COLUNA PONTO E CONTRAPONTO:


RACISMO NO PROCESSO PENAL OU PROCESSO PENAL RACISTA

07 EL AS NO FRONT COM THAIS LEMOS DUARTE E MARIA GORETE MARQUES DE


JESUS: QUEREMOS PÃO E ROSAS

10 LIRISMOS INSURGENTES

11 ARTIGOS

11 A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JÚRI: UMA PREDESTINAÇÃO


INCONSTITUCIONAL?

13 ALBERT CAMUS E A JUSTIÇA PENAL ESTRANGEIRA: ENTRE O ROMANCE E A REALIDADE FRANCO-


ARGELINA

15 INGRESSO DOMICILIAR E REGISTRO DO CONSENTIMENTO DO MORADOR: CONQUISTAS


DEMOCRÁTICAS E DESAFIOS PRAGMÁTICOS

17 NOTAS SOBRE A PRISÃO DO DEPUTADO DANIEL SILVEIRA: INTERFACES ENTRE DIREITO, POLÍTICA
E HISTÓRIA NESTES “TEMPOS DIFÍCEIS”

19 PRONÚNCIA, INQUÉRITO POLICIAL E O NOSSO MUNDO AO AVESSO

21 O TESTEMUNHO POLICIAL COMO FATOR DETERMINANTE NAS CONDENAÇÕES POR TRÁFICO DE


DROGAS

23 JUEZ DE GARANTÍA. EXPERIENCIA CHILENA

25 PESSOAS TRANSEXUAIS NA PRISÃO

28 VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, DISCRIMINAÇÃO E DIFERENÇA. MULTICULTURALISMO E


CULPABILIDADE

31 AVALIAÇÃO DE RISCO: ENTRE FORMULÁRIOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO A


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

33 DISCIPLINA NO CÁRCERE: A PUNIÇÃO POR FALTA GRAVE PELA POSSE, UTILIZAÇÃO OU


FORNECIMENTO DE APARELHO CELULAR

36 MÚLTIPLOS OLHARES COM FÁBIO ESTEVES

38 MEMORIAL DE 80 ANOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: CIVILIZAÇÃO, FASCISMO E


MODERNIZAÇÃO: O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A DISTRIBUIÇÃO DA CIDADANIA NO
38 BRASIL

WALKIE-TALKIE

41 IBADPP REALIZA
Pont
Coluna

e
.CONTRAPONTO Por Dora Lúcia de Lima Bertúlio

Racismo no Processo Penal ou Processo Penal Racista

Este ensaio pretende trazer algumas refle- especificamente ao século XIX, quando a Inde-
xões sobre Justiça Criminal e Racismo, pensada pendência do Estado Brasileiro do jugo colonial
a sociedade brasileira, sem, no entretanto, des- português e a formação política do Estado Impe-
cartar os reflexos e os nefastos efeitos da for- rial, indica aos governantes e à elite econômica
mação populacional nas sociedades americanas, escravocrata (na verdade, ambos escravocratas),
palco que foram do sistema escravista e do tráfi- a necessidade de formatar a sociedade e os po-
co atlântico por quase 400 (quatrocentos) anos! deres do Estado de forma a buscarem sua inser-
Impossível trazer estudos e reflexões, ção na comunidade internacional, cujo primeiro
ideias e proposições sobre o desfecho da perse- ato institucional foi a Constituição do Império
cução penal sobre a população negra nos esta- outorgada pelo Imperador em 1824.
dos em que sua formação sociopolítica e jurídica Com os poderes constituídos regulamen-
foram formatados em cima dos mais horrendos tados, o sistema jurídico imperial precisa ser
processos de formação populacional que o mun- igualmente organizado dando as diretrizes po-
do moderno realizou, promoveu e reproduz. lítico-econômicas do Estado, diante de um con-
Tráfico negreiro no Atlântico, genocídio das po- tingente expressivo de indivíduos escravizados,
pulações autóctones (indígenas)1 e colonização negros, em maioria significativa em relação à
dos países europeus que se deslocaram para o população branca europeia, com o sistema pro-
continente americano para se instalar, com seus dutivo dependente exclusivamente do trabalho
interesses, desejos e ganância de explorar as ri- escravo, e tendo como fonte secundária de ri-
quezas e os recursos humanos originais ou tra- queza a mantida pelo tráfico negreiro, Atlântico
ficados, em proveito exclusivo de sua condição e interno.
de europeus, brancos e contemplados com um Especificamente com relação ao combate
aparato jurídico que autoriza a ação seletiva do ao crime, em 1830 é editado o Código Criminal
sistema de “justiça” criminal no que se apresen- do Império, que entra em vigor em 1831 e que
ta, para a sociedade, como política de segurança cumpre o papel de controle social da população
pública. e, em seu texto vê-se a atenção especial para
Preciso, portanto, buscar os pressupostos controle da população negra, escravizada ou li-
jurídicos e políticos do racismo internalizado e berta, o que nos indica a preocupação das elites
naturalizado nas sociedades americanas e em políticas e econômicas com o controle de com-
particular na sociedade brasileira. portamentos da população negra. Muito embora
Fazendo um recorte metodológico na his- a Constituição de 1824 não faça qualquer refe-
tória da população negra no Brasil, dirijo-me rência quer ao regime escravista, quer à con-
dição ou existência de indivíduos sob o regime
1
Em pensando a América do Sul e Central, excetuando- de escravidão, o Código Criminal tem diversos
se o Brasil, ainda que o processo genocida da Espanha e
normativos expressos para os escravos, como lá
Portugal tenha ocorrido, as populações indígenas dos
países Centro e Sul americanos conseguiram manter-se, dito, seja para excluir a punibilidade por “maus
sob forte opressão e discriminação, mas com contingente tratos realizados pelos senhores a seus escravos
superior ao que os portugueses permitiram no Brasil. se o castigo for moderado” (parágrafo 6º. Do art.

3
Coluna
14), criar os crimes de insurreição que somente em algum momento. O espectro do Haiti sem-
pode ser praticado por escravos que se reunirem pre rondou os dirigentes do Império e mesmo a
para haverem a liberdade por meio de força (art. comunidade internacional, quando os a rebelião
113); criminaliza vadios e mendigos e criminali- dos escravos e negros libertos na colônia fran-
za a posse de instrumentos proibidos (art. 297) cesa de Saint-Domingue é vitoriosa,
e determinar que as Câmaras Municipais terão Assim que, ao tempo em que o Estado Im-
competência para definir quais instrumentos são perial se prepara para o fim do escravo como
proibidos, (art. 229). bem produto de arrecadação fiscal, organiza a
Em 1841, ocorre a reforma do Código Cri- propriedade da terra para o mesmo fim. Com-
minal, como explica Alessandra Ferreira em seu plementando o propósito, organizada a parte
trabalho: econômica para que a propriedade das terras
do Estado não possa ser adquirida ou utilizada
“A 3 de dezembro de 1841 aprova-se a Re-
forma do Código de Processo Criminal, legalmente por negros, sejam escravizados ou
pelo qual a polícia e a justiça passam a ser livres ou libertos, resta ao Estado e às elites do
centralizadas. ” Por essa lei as principais Império, o que transborda para a República, o
atribuições policiais, que antes eram de controle social dessa população: escrava, liberta,
competência do Juiz de Paz, foram trans- livre, não importa. Negros e Negras.
feridas para os delegados e subdelegados,
Dessas reflexões, sobre as nuances em que
escolhidos pelo governo sob o controle efe-
tivo do Ministro da Justiça.”2 o racismo e a discriminação racial operam em
nosso país, acoplando teorias racistas formata-
Nesse introito ao movimento do racismo das na Europa em especial no século XIX com o
que se instala completo no ideário valorativo da sistema escravista, do tráfico negreiro Atlântico
humanidade das pessoas a partir de seus per- e do genocídio da população indígena, é certo
tencimento racial no Brasil Império, é importan- dizer que a elite branca aqui estabelecida, teve
te não somente a descrição dos atos normativos que agir em todos os referenciais de organiza-
e da Câmara Legislativa Nacional. Carece nossa ção social para manter sua supremacia. Após
reflexão de fazer-se análises e interações dessa ter formado em nossos valores sociais a ideia da
legislação, para a apreensão das ações do Es- marginalidade negra, como uma das razões de
tado brasileiro no controle social da população sua posição na camada menos favorecida e que
negra onde a repulsa pelos corpos e mentes ne- menos se beneficia dos avanços da nossa socie-
gras, como participativas de uma nação que se dade, cabe ao Estado e às elites brancas fazer
formava e pretendia ser reconhecida internacio- uso de sua arma mais poderosa nos aparelhos
nalmente, tinha que ser reprimida. jurídicos-políticos e ideológicos do Estado3: o
Lei 601 de 1850, chamada de Lei de Terra, sistema penal.
cuja ementa diz “Dispõe sobre as terras devo- Rever Louis Althusser me pareceu útil
lutas do Império”. Visualizando o fim do siste- para o desenvolvimento das reflexões sobre
ma econômico vigente, os artistas do Governo o Processo Penal em um sistema de valor e de
já promovem os movimentos de manutenção do direitos absolutamente determinados no valor
poder da elite branca sobre os milhares de indi- racial dos indivíduos, valor este formado e re-
víduos negros que estariam, a qualquer tempo, produzido no país pelo Estado e o Direito, em
a tomar os espaços sociais. Nesse momento já sua formação político-econômico-Jurídica, as-
se sabia que o projeto de alguns parlamentares, sentada na escravização por trezentos e setenta
para devolver os escravos libertos para a África anos da população negra, cujo valor humano se
não se concretizaria. Portanto, a organização do forma dentro dessa condição subalterna e opri-
Estado e da Sociedade escravista vai no sentido mida. Em contrapartida, sob o seu contraste, o
de coibir, de todas as formas, que a população valor humano na condição de ser branco, em
negra participasse ou mesmo tomasse o poder um primeiro momento porque o opressor/do-
minador é branco e, após séculos dessa vivência
2
Alessandra Ferreira em sua Monografia “Posturas e apreensão valorativa racializada, por sua ex-
Municipais como instrumento do controle social na Vila
clusiva condição racial de ser branco. Ao tratar
do Príncipe (1850-1889). Apresentada no Departamento
de História do Departamento de História do Centro de
ciências sócias, Letras e Artes da Universidade Federal do 3
Althusser, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Rio Grande do Norte.1999. Estado. Lisboa:Editorial Presença.3ed.1980.

4
Coluna: Ponto e Contraponto

da estrutura e superestrutura na formação do pulação negra foi um entrave para os desígnios


Estado, Althusser já indica que a base econômi- dos governantes e governados brancos. O se-
ca, não raras vezes se submete aos aparelhos da questro dos povos africanos operou em primeiro
superestrutura ideológica, aqui nesse ensaio, o lugar para retirar a humanidade daquelas pes-
descarte dos cérebros negros na formação do soas, suas culturas, referências regionais e ét-
Brasil indicam que, mesmo a base econômica nicas, de forma a torná-los seres animalizados,
deve estar atenta a não perder o poder branco. aliás, como foram tratados desde seu sequestro
As relações raciais rompem com o projeto de de- e continuamente na América.
terminação do econômico na superestrutura. Primeiro passo para que ao se formatar o
Escolhi, para esse ensaio, trazer Eugênio sistema de Segurança Pública no país deveria e
Raúl Zaffaroni4 que em obra coletiva, expressa as foi o controle daquela população, por seus do-
diversas nuances do controle social, que irá se nos, pela polícia e pelo sistema judiciário. Não
afinar no sistema penal das sociedades moder- foram poucas as rebeliões, as quebras de obs-
nas, para termos um recorte histórico. Em seus táculos que os escravizados utilizaram para sua
estudos o jurista aborda a base do sistema penal liberdade e tomada de poder, o que de pronto
que define como “conjunto de agências que ope- deixou a sociedade política e elite econômica
ram a criminalização primária e secundária, ou certos de que sim, se tratavam os plantéis de es-
que convergem para sua produção” cravos de seres humanos, dotados de inteligên-
Nas palavras do citado autor: cia e perspicácia além de habilidades em todos
os serviços, de forma a serem efetivamente uma
“Os atos mais grosseiros cometidos por
pessoas sem acesso positivo à comuni- ameaça ao propósito de uma nação europeizada
cação social acabam sendo divulgados – o modelo.
por esta como os únicos delitos e, tais Mais se explicita o poder de estruturar-
pessoas como únicas delinquentes. A -se como indivíduos iguais aos brancos pelos
estes últimos é proporcionado um aces- negros, mais severo o sistema de controle se
so negativo à comunicação social que
apresenta contra essa população. Daí a trazer as
contribui para a criar um estereótipo no
imaginário coletivo, [...] o que resulta em razões de segurança pública e combate à crimi-
fixar uma imagem pública do delinquen- nalidade primária, os delitos somente ou prefe-
te com componentes de classe social, rencialmente possíveis de ocorrer no seio da-
étnicos, etários, de gênero e estéticos.” 5 quela população.
(grifo no original). Negados os benefícios sociais inerentes
à dignidade humana – os censos nacionais são
Aqui, em sentido bastante simples, é pos- demonstrativos desse diagnóstico – a popula-
sível dizer que a estrutura da persecução do cri- ção negra se inclui naquele estereótipo prefe-
me em nossa sociedade segue aqueles ditames rencial do sistema de criminalização secundária
expostos pela Teoria crítica do Direito Penal6 que falávamos. Vemos então o nefasto efeito do
desvelando o seu propósito democrático e de racismo que entranhado na percepção dos valo-
justiça. res raciais que estruturam o cotidiano de nossas
Como então podemos trazer as relações vidas, assumem o pressuposto primeiro para a
raciais nessa seara da Administração Pública? ação do sistema penal, em todos os seus agen-
Desde a formação do Estado brasileiro, sem des- tes, da polícia aos juízes e, certamente com a le-
cartar a Colônia cujo sistema de justiça criminal gitimação do Ministério Público, constitucional-
era baseado nas Ordenações Portuguesas, a po- mente agente da persecução penal.
Esta Instituição tem sido o agente princi-
4
Zaffaroni, E. Raúl, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro pal para permitir ao processo penal, de se mover
Slokar. Direito Penal Brasileiro – I . Teoria Geral do Direito a partir de premissas racistas adotando a ideia
Penal, Ro de Janeiro: Renavan.2003. 2.ed. de que negros fazem parte, naturalmente de um
5
Zaffaroni, ob. Cit. p. 44-46. público propenso ao crime. Assim, quando as
6
Digo Teoria Crítica, ainda que os autores não se polícias militar ou civil, as Delegacias de Polícia,
identifiquem com a terminologia, mas que apresentam
seletivamente, por tratar-se daqueles que devem
em sua construção um revés ao Direito liberal formatado
nas convenções e tratados tidos como democráticos, mas ser monitorados de perto porque suspeitos por
cujas premissas são contestáveis, senão derrubadas pela natureza (de sua negritude), levam ao sistema
realidade das ações dos agentes do sistema penal. os crimes e os respectivos criminosos ou, mais

5
Coluna
simples, os matam sem o devido processo legal boas exceções, não se está “criminalizando” a
que os agentes do Ministério Publico assumem Instituição, mas trazendo a necessidade de uma
como atos legitimados por algum dos princípios ampla revisão no ensino jurídico no país, com a
de exceção constitucional. E, a pena de morte, inclusão regular de estudos sobre a formação do
não permitida pela Constituição Federal, se dá Direito e do Estado brasileiro com a particulari-
sob as razões de sua própria (dos agentes) per- dade da formação populacional nacional, o es-
cepção de valor daquelas vidas. O MP aceita os cravismo, genocídio de indígenas e de africanos
laudos e os remetem ao Juízo com sua aquies- sequestrados mortos aos milhares na travessia
cência, sem a devida apuração da verdade, mas atlântica. Inclusão também dos estudos sobre
crente na verdade da cor dos indiciados. racismo e todas as formas de intolerância. Essa
Nesse mister, as corporações policiais, ci- mudança poderá ser um início para a formação
vis e militares, bem como o Poder Judiciário são de juristas, brancos e negros sobre seus papéis
igualmente agentes perpetradores do racismo futuros no desenvolvimento e garantia de direi-
no sistema penal, com os mesmos pressupostos tos da população.
aqui trazidos. O Juiz, ao iniciar o processo pro- Tal projeto irá acomodar a necessidade de
priamente dito, via de regra analisa e julga os que todos os agentes do sistema jurídico devam
acusados e seus crimes a partir não somente do estudar e conhecer, ao invés de aceitar as razões
bem jurídico violado, mas com o olhar trazido por básicas do porquê todo o sistema penal age pri-
séculos de ideologia racista e discriminatória, re- vilegiadamente sobre os corpos negros: crian-
conhecendo o quanto aqueles indivíduos devem ças, jovens, homens, mulheres.
ser punidos por representarem o indesejável no
contexto da sociedade, menos em razão do de- Curitiba, outono de 2021. Texto apresentado
lito, mais em razão de seu pertencimento racial. para o Boletim Trincheira Democrática do IBA-
Certamente que ao realçar o protagonismo DPP.
do Ministério Público, e necessário afirmar, com

DORA LUCIA DE LIMA BERTÚLIO

Procuradora Federal na Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito pela


Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pesquisador Visitante
em Harvard Law School.

6
Coluna

ELAS
A

NO FRONT
Queremos pão e rosas
Por Thais Lemos Duarte e Maria Gorete Marques de Jesus

"À medida que vamos marchando, mar- amigo se deitou (BARRETO, 2021). O primeiro foi
chando
alvejado na cabeça; o segundo não foi atingido.
Nós também lutamos pelos homens
Pois eles são filhos de mulheres Thiago ficou internado no hospital por 12
E nós somos mães novamente dias, em ala para infectados por Covid-19, o que
Nossas vidas não serão adoçadas impediu a mãe de visitá-lo. De fato, Queli não
Do nascimento até o fim entendeu os motivos de o filho ter sido aloca-
Corações morrem de fome, assim como do no lugar, pois ele não apresentava sintomas
corpos
do vírus e sua situação exigia outros cuidados
Dê-nos pão, mas dê-nos rosas"
(Bread and Roses - James Oppenheim)1 em razão dos ferimentos a bala. Ela até conse-
guiu autorização judicial para realizar visita, po-
rém, foi impedida pelo hospital em decorrência
Apresentação: não é uma violência a mais dos protocolos referentes ao novo coronavírus.
A suspeita é que Thiago tenha ficado no local
Este artigo conjuga quatro temas centrais não apenas para impedir o contato familiar, mas
ao cenário nacional, que estão imbricados entre também para estar vulnerável à contaminação
si: pobreza, raça, gênero e tortura. Damos espe- por Covid-19. Não à toa, ele morreu sem comu-
cial ênfase ao último, pois, neste mês, em 26 de nicação com qualquer parente.
junho, celebra-se o Dia Internacional de Apoio O caso foi registrado na delegacia pelo
às Vítimas de Tortura. A data enfatiza uma vio- próprio autor do feito. O policial disse ter agi-
lência estatal cometida de forma reiterada, mas do em “legítima defesa”, pois Thiago teria ten-
invisibilizada. Trazer a questão à baila, sempre, é tado sacar um revólver, sem sucesso. Em re-
fundamental para que atos bárbaros não se re- forço a isso, o laudo do IML ressaltou que o
pitam, agora, nem “nunca mais”, como apontou jovem participou de uma tentativa de assalto
Dom Paulo Evaristo Arns (1985). ao policial, ao invés de constar a causa mortis.
Para ligar as quatro questões, relatamos Ou seja, podemos dizer que o rapaz foi julgado
um caso que apenas não choca aos insensíveis. e sentenciado à morte não apenas por quem o
Em São Paulo, 08 de abril deste ano, Thiago Du- alvejou, mas por outros atores da justiça cri-
arte, negro, morador de periferia, de 20 anos, minal, além daqueles que deveriam salvá-lo,
foi ao mercado comprar pão. No caminho, junto como os profissionais do hospital. Segundo
com um colega, foram abordados por um policial Queli, "se a arma sumiu (...) para mim está mais
à paisana que pediu para que se estirassem no do que claro que eles fizeram a burrice deles
chão, “em rendição”. Sem entender muito bem e tentaram colocar meu filho como bandido”
o que se passava (pois, segundo a mãe do jovem, (BARRETO, 2021).
Queli Duarte, seu filho apresentava “atraso inte- A Rede de Proteção e Resistência ao Geno-
lectual”), Thiago se manteve em pé, enquanto o cídio, movimento de enfrentamento à violência
policial, recolheu vídeos do ocorrido, encami-
1
Tradução nossa. nhando-os ao Ministério Público e Defensoria

7
Coluna: Elas no front

Pública. Ainda não sabemos, porém, qual será A tortura, nosso quarto elemento de aná-
a posição de ambos os órgãos. De todo modo, lise, é marca do cotidiano dessas pessoas. O ato
cremos que a morte de Thiago foi "gestada" pelo estabelece um mecanismo de negação à huma-
Estado a partir de uma série de ações e omissões nidade do outro, de forma que o negro e pobre,
(ALC NTARA; PINHEIRO, 2021). Sem a socieda- em especial a mulher, se converte em objeto. Ao
de civil, o inquérito policial disporia apenas do invés de proteger, como feito às camadas mais
depoimento do policial responsável pela execu- abastadas, a ação policial pune e disciplina tais
ção e do jovem que acompanhava Thiago no fato. indivíduos, tornando-se instrumento de sub-
Não teriam sido realizadas outras diligências. missão através do medo. Nessa lógica, a tortura
Sem desconsiderar a dor de Queli, tam- não é tão só conduta isolada, ocorrida em mo-
pouco banalizar o caso, questionamos quantos mentos e em contextos específicos, como indi-
eventos desse tipo são noticiados anualmente, cam certas agências de direitos humanos (DU-
mensalmente, diariamente. Episódios assim são ARTE; JESUS, 2020). É elemento estrutural de
sistemáticos em nossa sociedade, pois em boa nossas dinâmicas de classe, raça e gênero.
medida são frutos dos quatro elementos com os Logo, a tortura é fruto da intervenção di-
quais iniciamos os debates. Para encadeá-los, reta do Estado, como quando o policial atirou
bebemos nas reflexões de referência nacional de contra Thiago; ou mesmo, ao ser impedida a vi-
estudos sobre classe, gênero e raça: a filósofa, sita de Queli ao filho internado. Resulta também
antropóloga e militante negra Lélia Gonzalez. da omissão estatal. Desnecessário dizer que a
narrativa do agente de segurança é tão valori-
Opressões generalizadas zada pela justiça criminal que reforça um cená-
rio de impunidade desenfreada. Somado a isso, a
O racismo, conformado por uma articula- omissão se perfaz através da opacidade do caso.
ção ideológica e conjunto de práticas, expõe sua A falta de transparência sobre a morte do filho
eficácia estrutural ao estabelecer uma divisão aflige, atormenta e desampara Queli. Não só
racial do trabalho, compartilhada por todas as Thiago. Ela é também vítima estatal.
formações capitalistas contemporâneas (GON- No limite, a tortura também deve ser
ZALEZ, 2020). Isto é, para manter o equilíbrio de compreendida como algo difuso, quase im-
tal sistema econômico, o racismo é um dos cri- palpável, apesar de seus efeitos aniquiladores.
térios de maior importância na conjugação dos As mães negras e pobres ficam ansiosas com
mecanismos de recrutamento para as posições a possibilidade de seus filhos não voltarem à
individuais na estrutura de classes. Pensando casa quando vão comprar algo na esquina. Elas
nas dinâmicas capitalistas travadas em nosso sabem da chance real de eles serem presos ou
país, a população negra constitui, em sua gran- mortos nesse lapso. Gonzalez (2020) diz que,
de maioria, um exército industrial de reserva, a longo prazo, a partir da disseminação dessas
ou mesmo, uma massa marginal (GONZALEZ, práticas, busca-se impedir qualquer forma de
2020). De um modo ou de outro, está sujeita à unidade do grupo dominado, impulsionando
subalternidade e à opressão. sua passividade.
Cabe, então, ao homem negro e pobre, o
trabalho precarizado e/ou cair nas malhas do Para uma vida com “pão e rosas”
controle estatal, sendo objeto de repressão.
Em geral, seu destino, ou é a morte, como foi O dia 26 de junho relembra a necessidade
para Thiago, ou o cárcere. Já a mulher negra de seguirmos firmes no enfrentamento à tor-
no Brasil, como Queli, vive sob tripla discri- tura, já que a prática desempenha papel funda-
minação, já que os estereótipos impulsionados mental às assimetrias de classe, gênero e raça
pelo racismo e pelo sexismo a deixam no nível de nosso país. Tal luta não deve se dissociar de
mais alto da opressão de classe (GONZALEZ, outras ações com efeitos estruturais, como as
2020). Ela exerce atividades destinadas ao destinadas à eliminação do sexismo, racismo e
conforto dos ricos para somar sua renda do- pobreza. A segmentação dos debates é estéril.
méstica, acrescida da dupla jornada de traba- Não queremos uma coisa ou outra. Queremos
lho. Longe de ser algo emancipador, esse tipo “pão e rosas”, em alusão ao manifesto de Cin-
de tarefa social a torna vulnerável ao abuso e zia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser
assédio (hooks, 2020). (2019). Queremos uma vida digna, longe de todas

8
Coluna: Elas no front

as formas de opressão. Queremos que Thiagos e


Quelis vivam sem medo, distantes das garras de THAIS LEMOS DUARTE
um Estado violador que, a qualquer momento,
Pesquisadora de pós-dou-
pode desfigurar suas trajetórias.
torado em Sociologia pela
Universidade Federal de Mi-
REFERÊNCIAS nas Gerais e pesquisadora do
ALCANTARA, A. F; PINHEIRO, P.S. Apartheid de negros e
Centro de Estudos de Criminali-
a gestação da morte: o caso de Thiago Duarte. Comissão dade e Segurança Pública (CRIS-
ARNS. OPINIÃO, Coluna UOL, 26 de abril de 2021. Disponível P-UFMG). Foi integrante do Me-
em: https://noticias.uol.com.br/colunas/comissao- canismo Nacional de Prevenção
arns/2021/04/26/apartheid-de-negros-e-a-gestacao-da- e Combate à Tortura entre 2015
morte-o-caso-de-thiago-duarte.htm e 2017.
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. 41. ed. São Paulo:
Vozes, 1985.
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy.
Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitem-
MARIA GORETE
po, 2019.
BARRETO, Herculano Filho. Jovem negro é baleado na MARQUES DE JESUS
cabeça por PM à paisana em ida a mercado em SP. UOL,
11 de abril de 2021. Disponível em: https://noticias.uol. Pesquisadora do Núcleo de
com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/04/11/jovem- Estudos da Violência da USP
baleado-por-pm-a-paisana-em-sp-iria-comprar-leite- (NEV-USP) e pós-doutoranda
diz-familia.htm do Departamento de Sociolo-
DUARTE, Thais; JESUS, Maria Gorete Marques de. Preven- gia FFLCH-USP. Foi membro do
ção à tortura: uma mera questão de oportunidade aos me- Comitê Nacional de Prevenção e
canismos latino-americanos? Revista Direitos Humanos e
Combate à Tortura como repre-
Democracia, 8 (15), 2020, 134-152.
sentante da sociedade civil entre
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira:
uma abordagem político-econômica. In: RIOS, Flavia; LIMA,
2014 e 2016.
Márcia (org.). Por um feminismo afro latino americano. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 2020.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas
arrebatadoras. 13° edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
2020.
UOL. São Paulo: morre jovem negro baleado por PM, mãe
diz que não pode ver o filho. UOL, 22 de abril de 2021.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/
ultimas-noticias/2021/04/22/sp-morre-jovem-negro-
baleado-por-pm-mae-diz-que-nao-pode-ver-filho.htm

9
Lirismos Insurgentes

O Vilarejo da vida
A areia atravessava a praia, entrava na casa,
amanhecia nos quartos. Os caranguejos saíam de
dentro dos buracos e tentavam espiar o mar. Espiavam
e voltavam ao umbigo da areia.
A areia quieta, respirava, livre. A areia vestia a praia e
saia correndo com o vento. Agarrava-se nas pernas
do cachorro. Era da natureza da areia invadir as
superfícies. Ia se alastrando, avançando em direção à
estação dos ventos.
A areia invadia as palavras que possuíam sensação
marítima. Mar e Areia: era coisa que se sentia e
tornava possível o chão da praia. A areia permitia as
conchas se acomodarem perto da intensidade das
ondas, dos dedos sentirem o gosto do mar, do vento
sentir que podia arrastar –se livremente. O vento levava
a areia para as margens da vida. Ela, a areia, permitia a
praia ser o que era: extensa.
Perto do mar, estava o silêncio.
Das flores na areia, aos cestos no mercado. Olhar
quieto e prolongado. O som do mar virava o som do
tempo. Escutava o vento próximo ao mar. Vá saber das
águas luminosas que se estendem na imaginação úmida
dos mais velhos que contam as histórias das águas. O
rio e o mar eram a raiz do lugar. O coração não se
amansa em ruas barulhentas. Precisa pousar no chão
de águas, banhar-se de tempo.
Era esse o andamento da areia. Os antigos sabiam
cantigas nutridas de tempo, encontro profundo de
mundos, iluminados pelo sol no Vilarejo da Vida.

Miriam Coutinho de Faria Alves


Doutorado e Mestrado em Direito ( UFBA). Mestrado em Sociologia
(UFS).Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Professora permanente do Mestrado em Direito
(Prodir/UFS). Pesquisadora Líder do Grupo de Pesquisa Direito, Arte e
Literatura (CNPq/UFS). Membro Honorária da Rede Brasileira de Direito
e Literatura (RDL).. Membro do Centro Internacional e Multidisciplinar dos
Estudos Épicos (CIMEEP) Coordenadora do GT 21 (Centro Internacional e
Multidisciplinar de Estudos Épicos.). Integrou o Conselho Seccional OAB/
SE (2016-2017).Vice presidente da comissão de defesa da mulher da OAB/SE
(2013-2014).

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Artigos

A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA NAS DECISÕES DO


TRIBUNAL DO JÚRI: UMA PREDESTINAÇÃO INCONSTITUCIONAL?
Por Flávia Silva Pinto

Com o advento da Lei nº 13.964/2019, co- do “Pacote Anticrime”, é considerar que a de-
nhecida como “Pacote Anticrime”, saltou aos cisão dos jurados, respaldada na soberania dos
olhos de toda comunidade jurídica a alteração veredictos, impõe de forma automática o reco-
do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de lhimento à prisão quando a pena for superior a
Processo Penal, uma vez que foi incluída na le- 15 anos, sem que haja necessidade de qualquer
gislação a execução provisória da pena nas con- fundamentação específica, consubstanciada
denações provenientes de decisão do Tribunal unicamente na pena aplicada, o que é inaceitá-
do Júri superiores a 15 anos de reclusão. vel e ilógico.
Como a questão de fundo é de natureza Outro aspecto que merece destaque diz
constitucional, haja vista a disposição contida no respeito ao princípio da isonomia. Reflitamos:
bojo do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Fe- considerando uma condenação por crime aná-
deral, sobre a presunção de inocência, segundo logo, a exemplo do delito de latrocínio, que pode
a qual “ninguém será considerado culpado até o impor uma pena de mais de 20 anos de reclusão,
trânsito em julgado de sentença penal condena- o magistrado poderá deixar de decretar a prisão
tória”, reflete-se que o artigo 492, inciso I, alí- e, caso contrário, deverá fundamentar sua deci-
nea “e”, bem como os parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º do são sob pena de nulidade, em atendimento à dis-
Código de Processo Penal padecem de vício de posição do artigo 93, inciso IX da Constituição
inconstitucionalidade. Federal, bem como ao artigo 315, §2º do Código
Impende registrar que antecipar a pena, de Processo Penal (D’ANGELO, 2020, p. 213).
sem que se respeite o marco do trânsito em jul- Sobre a exceção contida no bojo do §3º
gado da sentença condenatória, também repre- do artigo 492 (questão substancial que possa
senta afronta ao artigo 9º da Declaração dos Di- acarretar a revisão da condenação pelo tribunal
reitos do Homem e do Cidadão (1789) e ao artigo ao qual competir o julgamento), Andréa Cristi-
8º do Pacto de San José da Costa Rica (1969), cujas na D’Angelo (2020, p. 213) considera que a ex-
disposições tratam acerca da presunção de não pressão “questão substancial” é vaga, subjetiva e
culpabilidade. Outra violação se verifica a partir discricionária – o que é inadmissível –, além de
da análise do próprio Código de Processo Penal, exigir do juiz de primeiro piso praticamente um
o qual preconiza em seu artigo 283: (i) ninguém exercício de futurologia, pois, no momento em
poderá ser preso senão em flagrante delito; (ii) que proferida a sentença, deverá o magistrado
por decisão escrita e fundamentada, em virtu- antever quais as teses passíveis de serem aduzi-
de de sentença condenatória transitada em jul- das pela defesa em razões recursais, prevendo a
gado; (iii) ou em razão de prisão preventiva ou possibilidade de alteração da decisão pelo órgão
temporária. ad quem.
Tanto é assim que o tema já foi objeto de Não obstante, há outra linha de sustenta-
análise perante o Supremo Tribunal Federal, ção da legalidade do referido dispositivo, justa-
especificamente no julgamento das Ações De- mente frente ao reconhecimento da soberania
claratória de Constitucionalidade nºs 43, 44 e dos veredictos, inerente ao Tribunal do Júri.
54, nas quais se adotou o entendimento de que Acerca disso, cita-se o Agravo em Recurso Ex-
não há amparo constitucional para a execução traordinário nº 1.225.185/MG, no qual foi reco-
provisória da pena. Dessa forma, a pena somen- nhecida a existência de repercussão geral e que
te poderá ser executada, salvo prisão cautelar ainda está pendente de julgamento.
devidamente fundamentada, com o trânsito em No referido caso, o tema de repercussão
julgado da decisão condenatória, após o julga- geral é a possibilidade de o Tribunal de Segundo
mento de todos os recursos. (STF. Plenário. ADC Grau, tendo em vista a soberania dos veredictos
43/DF, ADC 44/DF, ADC 54/DF, Rel. Min. Marco do Tribunal do Júri, determinar a realização de
Aurélio Mello, julgados em 07/11/2019). novo júri após julgamento de recurso interposto
De forma mais aprofundada, admitir a exe- contra a absolvição assentada no quesito gené-
cução provisória e imediata da pena, nos termos rico do artigo 483, III e §2º do Código de Pro-

11
Artigos

cesso Penal, por suposta contrariedade à prova REFERÊNCIAS


dos autos. Portanto, discute-se a soberania das
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de
decisões proferidas pelo Conselho de Senten- 03 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planal-
ça, ainda que contrária à evidência de autoria e to.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>.
materialidade delitiva, assim como preenchendo Acesso em: 04 de abril de 2020.
todos os elementos de conceito analítico de fato BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988. Dis-
típico, ilícito e culpável. ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao.htm>. Acesso em: 04 de abril de 2020.
A adoção desse entendimento consubs-
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de consti-
tanciará a aludida inovação legislativa, haja vista tucionalidade 43/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello,
que, da mesma forma que somente se pode pri- julgado em 07/11/2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.
var alguém da sua liberdade em flagrante delito br/processos/detalhe.asp?incidente=4986065>. Acesso em:
ou cautelarmente por ordem escrita e funda- 13 de abril de 2020.
mentada de juiz competente, também será pos- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de consti-
tucionalidade 44/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello,
sível a restrição da liberdade do indivíduo que
julgado em 07/11/2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.
cometa um crime doloso contra a vida se houver br/processos/detalhe.asp?incidente=4986729>. Acesso em:
julgamento pelo Tribunal do Júri. 13 de abril de 2020.
No entanto, é imprescindível que não se BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de consti-
considere a soberania dos veredictos como ab- tucionalidade 54/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello,
soluta ou definitiva. No âmbito da Carta Magna, julgado em 07/11/2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.
br/processos/detalhe.asp?incidente=5440576>. Acesso em:
essa premissa se equilibra com a presunção de
13 de abril de 2020.
inocência e com o direito de recurso; a decisão BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extra-
oriunda do Conselho de Sentença é passível de ordinário nº 1.225.185/MG. Relator: Ministro Gilmar Mendes,
recurso pela defesa e, em última análise, efê- julgado em 27/05/2020. Disponível em: <http://portal.stf.jus.
mera até o trânsito em julgado. br/processos/detalhe.asp?incidente=5440576>. Acesso em:
Ressalta-se, ainda, a fragilidade do Tribu- 13 de abril de 2020.
nal do Júri e a necessidade de se ponderar sobre
quais modificações institucionais o Conselho de FLÁVIA SILVA PINTO
Sentença precisa sofrer, considerando, inclusi-
ve, a íntima convicção intacta aos pré-conceitos Advogada criminalista no
e vivências individuais de cada jurado. Cecilia Mello Advogados.
Uma vez que a própria Constituição Fede- Graduada em Direito pela
ral cria bases e normaliza traços fundamentais Universidade Católica do
da ordem total jurídica, o instituto do Tribunal Salvador e pós-graduada
do Júri não deveria ser utilizado como um apara- em Ciências Criminais pela Universidade Estácio
to ratificador para automática prisão do conde- de Sá. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências
nado, ainda passível de recurso, cujo ato, em que Criminais (IBCCRIM) e da Comissão Especial de
pese a inovação legislativa, data máxima vênia, Direito Penal da OAB-SP.
configura flagrante predestinação inconstitu-
cional.

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Artigos

ALBERT CAMUS E A JUSTIÇA PENAL ESTRANGEIRA:


ENTRE O ROMANCE E A REALIDADE FRANCO-ARGELINA
Por André Luiz Pereira Spinieli e Sofia Covas Russi

Nascido durante o ápice do projeto de A justiça camuseana é a justiça social. Da


colonização francesa sobre os povos argelinos, tentativa de conferir cidadania francesa e di-
Albert Camus (1913-1960) se posicionou histori- reitos políticos aos muçulmanos por meio de
camente como uma das principais consciências manifestos em prol do Projeto Viollette à luta
morais e críticas da filosofia do último século. contra a condição degradante de encarcerados
Ainda que negasse o rótulo de filósofo em virtu- inseridos em um navio-prisão (ONFRAY, 2012,
de da rejeição que nutria frente à filosofia fran- p. 401; JOSÉ, 2014, p. 48), a consciência revolta-
cesa dos salões elitizados (CAMUS, 1965, p. 1427), da de Camus o transformou em um crítico da
sua imersão natural no contexto de colonialismo justiça e, principalmente, um intolerante dian-
político sobre sua terra natal permitiu a trans- te das injustiças orgânicas que afetavam aque-
formação de um pied-noir em um pensador re- les que estavam à margem da proposta coloni-
voltado com as injustiças que o cercava. zatória (CAMUS, 2013, p. 41-42).
Os combates travados em sua juventu- Para Camus, a justiça concreta se faz co-
de contra a retirada arbitrária dos argelinos tidianamente nas ações que estão situadas para
do âmbito da cidadania ou mesmo em face da além dos desejos individuais e funciona como
perpetuação de um estado de coisas violatório antídoto frente ao absurdo da realidade (JOSÉ,
pelo sistema penal colonizado abriram alterna- 2014, p. 15). Como retratos fidedignos das injus-
tivas para que Camus articulasse uma nova via tiças que vivenciou em terras argelinas, os ro-
para o existencialismo, calcada na afirmação da mances camuseanos serviram para que o filósofo
condição absurda1 da realidade objetiva, como denunciasse a capacidade que possui o direito (e,
um ponto de partilha que o conduziria à terra principalmente, as instâncias jurídico-penais) em
prometida da justiça (ALTER, 1970, p. 28). Como servir como palco para o espetáculo do absurdo.
pensamento filosófico autônomo, o absurdis- Publicada em 1942, a obra L'Étranger constitui o
mo camuseano foi responsável por colocar em espaço literário e filosófico por meio do qual Ca-
questionamento as violações à condição huma- mus tece sua principal crítica ao funcionamento
na ocasionadas pelo neocolonialismo e avanço absurdo do aparelho de justiça penal, levando em
do totalitarismo europeu. consideração uma análise das práticas e sentidos
Por intermédio de uma filosofia do absur- absorvidos pelos atores da máquina judiciária em
do inscrita nas entrelinhas de seus romances, favor da perversão da justiça.
Camus se aproximou dos principais problemas O romance narra as desventuras de Meur-
que delinearam os rumos do sistema penal arge- sault, funcionário de escritório em Argel, o herói
lino em tempos de colonialismo (LÉVI-VALENSI; absurdo que permanece apático no enterro de
ABBOU, 1978, p. 358-362). A concepção de justiça sua mãe e, no âmbito de uma paixão que desen-
na filosofia camuseana revela direito natural do volve por sua colega de trabalho Marie, deixa-se
homem, ainda que não seja absoluto (MÉLAN- envolver na prática de um assassinato justificado
ÇON, 1976, p. 163). pelo sol (CAMUS, 2016, p. 64). O florescimento do
niilismo no contexto da justiça penal colonizada,
1
O conceito de absurdo diz respeito ao sentimento do retratada a partir do pensamento camuseano,
vazio que invade o homem ao se ver lançado, como um
ocorre não apenas por meio da corrupção dos
estrangeiro, em um mundo irracional, contraditório,
cíclico e marcado por episódios repetitivos de injustiça
valores fundamentais da justiça concreta, mas
contra os mais vulneráveis. Transforma-se o homem em também pela interlocução com diferentes prá-
um sujeito estranho às suas próprias convicções, o que se ticas desenvolvidas pelos personagens que re-
traduz na impossibilidade de se obter respostas concretas velam a presença do absurdo nas entranhas do
e efetivas em relação aos questionamentos centrais da sistema de justiça.
existência humana (CAMUS, 2020, p. 20). O absurdo
Após sua prisão, Meursault foi interroga-
não está no homem ou no mundo separadamente, mas
constitui o único vínculo entre os dois, encontrando-se
do diversas vezes por um juiz responsável pela
na presença comum entre o homem e o mundo (CAMUS, identificação dos acusados. Não se tratava de
2020, p. 20). um caso que interessava a qualquer dos per-

13
Artigos

sonagens envolvidos na trama da justiça penal, colonialismo fático, presenciado na miséria ma-
exceto aos jornais argelinos – que, no verão, lu- terial e ideológica das diferentes esferas da po-
cravam por meio da publicação de notícias so- lítica e da sociedade argelina, e seus romances.
bre assassinatos (CAMUS, 2016, p. 89). Em con- Àqueles que não conseguem se libertar das gar-
tato primário com seu advogado, é orientado a ras do colonialismo, resta o suicídio, consistente
desmentir a versão construída pela acusação no no ato de se entregar aos grilhões do absurdo.
sentido de que havia demonstrado provas de in- Ao homem possui lucidez e coragem para enca-
sensibilidade na ocasião do enterro de sua mãe rar o absurdo da justiça, a revolta surge como
(CAMUS, 2016, p. 68), ainda que não fosse verda- alternativa para aqueles que têm consciência de
de. Aos juízes do tribunal interessava apenas a seus direitos.
suposta apatia de Meursault diante de situações
pretéritas de sua vida, não os fatos do homicídio REFERÊNCIAS
em si. De fato, não se tratava do caso mais im-
ALTER, A. De « Caligula » aux « Justes »: de l'absurde à la justi-
portante da pauta (CAMUS, 2016, p. 87).
ce. In: ALTER, A. et al. Les critiques de notre temps et Camus.
"Mesmo no banco dos réus, é sempre inte- Paris: Éditions Garnier Frères, 1970.
ressante ouvir falar de si mesmo" (CAMUS, 2016, p. CAMUS, A. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman; Paulina Wacht.
103). Na sessão de julgamento, as falas do promo- 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.
tor e do advogado estavam muito mais vinculadas CAMUS, A. O estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 40. ed. Rio
às práticas antecedentes de Meursault do que ao de Janeiro: Record, 2016.
CAMUS, A. 2013. Camus a Combat. França: Folio, 2013.
próprio crime. No âmbito da justiça penal coloni-
CAMUS, A. Textes complémentaires. In: Essais. Paris: Galli-
zada, a lógica de julgamento que respeite o direito mard, Éditions Bibliothèque de la Pleiade, 1965.
penal do fato abre espaço para o direito penal do JOSÉ, C. J. G. Albert Camus e o direito: itinerário libertário
autor, uma vez que nem mesmo a defesa do réu para uma filosofia jurídica. 314 f. Tese (Doutorado em Direi-
argelino lhe deu a possibilidade de intervir diante to) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São
das acusações de apatia e insensibilidade (CAMUS, Paulo, 2014.
2016, p. 103). Ainda que pouco se tenha falado do
crime – e, quando mencionado, o ponto questio- ANDRÉ LUIZ
nado dizia respeito aos motivos pelos quais o Meu- PEREIRA SPINIELI
rsault praticara o crime em dois atos, desferindo
tiros em dois momentos distintos – o julgamento Mestrando em Direito na
do argelino se encerrou com sua condenação. Universidade Estadual Pau-
Por intermédio da obra L'Étranger, Camus lista (UNESP), Especialista em
desvendou as filigranas que acobertavam as prá- Direitos Humanos pela Facul-
ticas inerentes a um sistema de justiça penal colo- dade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais
nizado e cujas perspectivas giravam em torno da (FACICA) / CEI. Pós-Graduando em Direito Consti-
(re)produção do absurdo do direito e da justiça. tucional pela Faculdade CERS. Graduado em Filoso-
No âmbito do estado de coisas colonial, o direi- fia pelo Instituto Agostiniano de Filosofia (IAF/ISTA-
to penal justo abre espaço para a assimilação de -BH). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito
uma concepção de justiça que interessa apenas de Franca (FDF).Professor de Noções de Adminis-
àqueles cuja finalidade é calar aqueles que se re- tração Pública, Filosofia e Sociologia para carreiras
voltam perante o absurdo da existência. Por meio policiais (PMESP e Barro Branco) na Escola Instinto
de sua aparente insensibilidade, a introdução do Lógico (IL). Pesquisador. Advogado.
personagem Meursault por Camus é fundamen-
tal para revelar um retrato da justiça absurda, SOFIA COVAS RUSSI
que permite ao homem sua continuidade em um
estado de estrangeiridade. Para que o espetáculo Graduanda em Direito pela
absurdo da justiça penal se consume, faz-se su- Faculdade de Direito de Fran-
ficiente a presença de "muitos espectadores no ca (FDF). Extensionista do
dia da minha execução e que me recebessem com grupo Cárcere, Expressão e
gritos de ódio" (CAMUS, 2016, p. 126). Liberdade da Universidade
Como produto intelectual de seu tempo Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp-Franca), pes-
e de sua realidade, a consciência revoltada de quisadora pela Faculdade de Direito de Franca e pelo
Albert Camus se situa na justa medida entre o Laboratório de Ciências Criminais IBCCRIM-2021.

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Artigos

INGRESSO DOMICILIAR E REGISTRO DO CONSENTIMENTO DO


MORADOR: CONQUISTAS DEMOCRÁTICAS E DESAFIOS PRAGMÁTICOS
Por Guilherme Gomes Vieira

A Constituição Federal de 1988, em seu art. sos “franqueados” nas residências dos denomi-
5º, inciso XI, estabeleceu, na qualidade de ga- nados assistidos (pessoas que são defendidas
rantia fundamental, a inviolabilidade de domicí- por esta instituição), os quais correspondem à
lio, de modo que ninguém pode entrar na casa clientela do sistema criminal seletivo.
alheia sem o consentimento do respectivo mo- Percebe-se que os integrantes dos seg-
rador, salvo nos casos de flagrante delito, desas- mentos social e economicamente excluídos são,
tre, necessidade de socorro ou, de dia, em razão na prática, aqueles que mais sofrem com a vio-
de determinação judicial. lação desse direito constitucional. Cria-se, nes-
Em março de 2021, o Superior Tribunal de ses casos, uma ficção fática que tenta justificar
Justiça, no âmbito do Habeas Corpus 598.051, a autorização para ingresso em domicílio e que,
impetrado pela Defensoria Pública de São Pau- mediante a constituição de prova supostamente
lo, declarou, de forma inédita, a ilicitude do in- lícita, apresenta o potencial de implicar a con-
gresso em domicílio por parte de agentes de se- denação criminal do indivíduo.
gurança pública na situação em que não houve Assim, afastam-se, após persistentes deba-
a comprovação do consentimento do morador tes doutrinários e jurisprudenciais (e finalmente,
por meio de registro audiovisual da diligência. diga-se de passagem), situações que configuram
Consequentemente, em razão da nulidade iden- verdadeiro espetáculo teatral, cujos atores fan-
tificada, as provas obtidas foram consideradas tasiam cenas que são concebidas como realida-
ilícitas, consoante assinala a teoria dos frutos des inquestionáveis por parte de diversos es-
da árvore envenenada, e a ordem foi concedida pectadores, resultando em cômoda encenação
para absolver o paciente. fático-jurídica.
Dessa forma, de acordo com o caso para- É curioso, para dizer o mínimo, alguém
digmático, é preciso haver justa causa (traduzida franquear a entrada de agentes em sua residên-
em fundadas razões) para que o referido direito cia nas conjunturas em que há indícios ou provas
fundamental seja mitigado – e nos limites das do cometimento de determinado crime pelo mo-
exceções constitucionalmente previstas –, sen- rador, situação que ocasiona prejuízo ao próprio
do ônus do Estado comprovar a voluntariedade indivíduo. Esse cenário é comum em situações
do consentimento do morador por meio de pro- envolvendo tráfico de drogas e outros delitos
vas fidedignas que ultrapassem o mero testemu- previstos na Lei nº 11.343/2006, como ocorreu
nho por parte dos agentes envolvidos. no próprio caso do HC 598.051/SP. Consideran-
Ao fixar o entendimento, o Superior Tri- do as estatísticas do Departamento Penitenciá-
bunal de Justiça consolida a dupla proteção em rio Nacional (DEPEN, 2017) no que tange à repre-
casos de ingresso de policiais em domicílios sentatividade do tráfico de drogas nos cárceres
alheios. Por um lado, assegura-se o respeito à in- e ao perfil das pessoas encarceradas, reforça-se
violabilidade de domicílio quando não houve, de o impacto desse entendimento jurisprudencial
fato, a autorização para seu ingresso em casos aos segmentos sociais mais vulneráveis.
não contemplados pelas excepcionalidades pre- É importante pontuar, ainda, que a exigên-
vistas na Constituição Federal. Por outro lado, cia de comprovar o consentimento por meio de
evita-se o risco de os agentes de segurança se registro audiovisual não configura medida one-
responsabilizarem por crime de invasão de do- rosa para os agentes de segurança pública, no-
micílio ou por abuso de autoridade quando não tadamente pela facilidade de se utilizar celulares
houve a voluntariedade por parte do morador. ou outros aparelhos eletrônicos para realizar a
A proibição do ingresso domiciliar ilícito gravação. Nada obstante, é plausível cogitar que
reforça uma conquista democrática, consubs- questões técnicas, operacionais e institucionais
tanciada no reconhecimento efetivo de um serão apresentadas para dificultar a concretiza-
direito fundamental. Esse cenário é particu- ção dessas diretrizes.
larmente observado na atuação cotidiana da Em paralelo, destaca-se que, se o ingresso
Defensoria Pública, em que se observam ingres- consentido em domicílios ocorre, de fato, volun-

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Artigos

tariamente e com autorização do morador, con- ção recursal para o Supremo Tribunal Federal
soante afirmações dos agentes públicos respon- em relação ao caso paradigmático, bem como
sáveis, não há prejuízo em registrar, mediante tentativas de mudança desse entendimento, no
vídeo e áudio, essa situação. âmbito de outros casos.
Sem adentrar em discussões acerca dos O reconhecimento jurisprudencial do Su-
limites da atuação do Superior Tribunal de Jus- perior Tribunal de Justiça acerca da proteção
tiça (sobretudo ao se considerar que esta Corte à inviolabilidade do domicílio, notadamente no
determinou o prazo de um ano para permitir o que tange à comprovação do consentimento
aparelhamento das polícias, treinamento e de- do ingresso por agentes de segurança pública,
mais providências necessárias para a adaptação não corresponde ao fim de problemas pragmá-
às diretrizes da decisão), apesar de esse entendi- ticos enfrentados no âmbito da seara criminal,
mento gerar significativa conquista democrática mas ao início de novos desafios relativos à real
para a população – notadamente para as cama- implementação dessa garantia e à manutenção
das sociais marginalizadas –, observa-se que a jurídica dessa perspectiva. O grande obstáculo,
sua concretização, na prática, apresenta alguns portanto, é não permitir que essa proteção seja
desafios. efetivada tão somente no plano teórico, de modo
O primeiro é o efetivo cumprimento da a implementá-la, de forma adequada e consoli-
determinação por todos os agentes públicos dada, na prática.
envolvidos na persecução penal. Por um lado, é
possível que haja um pseudoconsentimento do REFERÊNCIAS
morador (em razão de inúmeros motivos), legiti-
mando, de forma aparente, o ingresso domiciliar DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL.
e fundamentando, dessa forma, a condenação Levantamento Nacional de Informações Peni-
criminal. Por outro lado, é concebível que alguns tenciárias Atualização - Junho de 2017. Dispo-
agentes públicos simplesmente não atendam ao nível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/
entendimento jurisprudencial, de modo que, em depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteti-
ambas as hipóteses, as consequências jurídicas cos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf.
somente poderão ser analisadas no âmbito do Acesso em: 07 mar. 2021.
próprio processo penal, em cada caso concreto.
A segunda reflexão traduz a ideia de que GUILHERME
o reconhecimento da ilicitude do ingresso no GOMES VIEIRA
domicílio e das provas colhidas depende do en-
tendimento do magistrado que julga o caso de Doutorando em Adminis-
forma originária (e, eventualmente, de julgado- tração pela Universidade de
res em instâncias recursais). Percebem-se, por- Brasília. Mestre em Direito
tanto, novos desafios, consistentes na vincula- pela Universidade de Brasília.
ção dos juízes em relação à decisão do Superior Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela
Tribunal de Justiça, questão que se conecta com PUC-RS. Bacharel em Direito pela Universidade de
discussões sobre independência funcional e Brasília. Professor colaborador da UnB. Defensor
obrigatoriedade de acatar o teor do mencionado Público do Distrito Federal. Link lattes: http://lattes.
posicionamento judicial. cnpq.br/3583443516965651
Complementarmente, é interessante res-
saltar que essa discussão não está finalizada,
uma vez que, possivelmente, haverá impugna-

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NOTAS SOBRE A PRISÃO DO DEPUTADO DANIEL SILVEIRA: INTERFACES


ENTRE DIREITO, POLÍTICA E HISTÓRIA NESTES “TEMPOS DIFÍCEIS”
Por Gustavo Lívio

1854. Charles Dickens, no auge da degrada- Bolsonaro de que bastaria “um cabo e um solda-
ção social provocada pela Revolução Industrial do” para fechar o STF.
na Inglaterra, escreve seu aclamado livro “Tem- Concordo com Lênio Streck: o STF está sob
pos Difíceis”. A sátira narra o Sr. Grandgrind, ataque sistemático (Contempt of Court) e não é de
dono de uma escola-modelo que pretende en- hoje: “E é um Contempt mais grave, porque é um
sinar aos alunos apenas a ciência estrita. “Fatos, ataque sistemático à Corte não apenas nas pessoas
fatos, fatos”, diz ele. Isso é tudo o que importa. de seus ministros, mas na própria função que ela
Não pode haver espaço para a “ladra imagina- desempenha na República enquanto Suprema Cor-
ção”. Num episódio, depois de surpreender seus te” (STRECK, 2021). Basta aqui lembrar o grupo
filhos admirando um espetáculo circense, o Sr. dos 300 de Sara Winter (também presa) depois de
Grandgrind, surpreso e decepcionado, dispara: montar acampamento paramilitar em frente ao
“será que, apesar de todas as precauções, algum Supremo (havia treinamentos de combate!) e di-
livro inútil de história veio parar aqui? Porque, zer que estava na hora de “ucranizar o Brasil” (re-
estas mentes foram praticamente formadas com ferência aos movimentos neofascistas da Ucrânia
régua e esquadro” (DICKENS, 2014). como o Pravy Sektor). Uma cena assustadora.
“Lei, lei, lei, texto, texto, texto”, dizem os E o que o STF faz diante desses ataques?
positivistas de hoje. Isso é tudo o que importa. O Se defende! Já de algum tempo a Corte inicia um
episódio da prisão do Deputado Daniel Silveira movimento claro de autodefesa institucional. E
nos oferece uma ótima oportunidade para re- este movimento é absolutamente legítimo, para
fletir sobre o papel do Direito nestes “Tempos desespero dos garantistas míopes: ao defender-
Difíceis”. -se, o STF defende o próprio regime democrá-
O Direito é um complexo social total e tico atual, que, com todas as suas deficiências
historicamente determinado que estabelece e farsas, foi conquistado depois de tanta luta
mediações com outros complexos sociais (a po- para derrubar uma sangrenta ditadura militar.
lítica, a economia, a linguagem) dentro de um Eis a dialética da democracia: ela não pode to-
complexo social maior total que é a sociedade. lerar atos antidemocráticos que coloquem em
Trocando em miúdos: o Direito não existe no risco sua existência. É claro que devemos dis-
vácuo: sua elaboração, interpretação e aplica- cutir outros modelos de democracia popular (o
ção são social e historicamente condicionadas. STF não está fadado a existir para sempre), mas
Parece óbvio, mas não é. O juspositivismo atu- não podemos retroceder ao AI-5, como defende
al (ou o pós-positivismo, outro nome para um o deputado.
fenômeno estruturalmente idêntico) pretende, Os garantistas liberais da ocasião querem
em vão, isolar a esfera do Direito dos demais resolver essa situação como o Sr. Grandgrind:
complexos sociais (no máximo, há influxos da apenas com régua e esquadro. Esquecem os
moral para negar o “direito positivo extrema- livros de história. Isolam o ato em si da prisão
mente injusto”). Não há espaço para discorrer do deputado e desconsideram todo o entorno.
sobre o viés isolacionista promovido pelos ju- Precisamos de mais: precisamos de uma forte
ristas de hoje. Basta destacar a tendência de fe- análise política da conjuntura reacionária atual;
tichizar o Direito, que, segundo Lukács, “quer precisamos de uma leitura histórica sobre o que
fazer da esfera do direito algo que repousa intei- foi a ditadura empresarial-militar que fez viúva
ramente em si mesma” (LUKÁCS, 2013). o deputado; precisamos entender a falta que faz
Pois bem. O deputado Daniel Silveira tem uma justiça de transição e como sua ausência
um longo histórico de atos manifestamente an- demanda um papel mais altivo das Instituições
tidemocrático. Relembro apenas um: Em 2019, em momentos como este. Sem isso tudo, não é
após o STF decidir contra a prisão com o esgo- possível compreender a prisão (concorde você
tamento da 2ª instância, escreveu no Twitter: com ela ou não).
“se precisar de um cabo, estou à disposição”, re- Não tenho espaço para debater os con-
ferindo-se à fala do também deputado Eduardo tornos estritamente jurídicos da prisão. Apenas

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afirmo que ela foi legal e necessária. Quanto ao num país que se recusou a realizar uma justiça
flagrante, a decisão foi proferida num curto es- de transição. E não me torno menos crítico ao
paço de tempo desde a publicação do vídeo, em Direito Penal por defender a prisão neste caso.
situação absolutamente compatível com o art. Prefiro não aderir ao garantismo liberal a-his-
302, II do CPP. Também não vislumbro problema tórico. Porque tão ruim quanto o negacionismo
na aplicação do art. 324, IV: são inafiançáveis os científico é o negacionismo histórico. Nega-se
crimes que, no caso concreto, perfizerem os re- 1964 não apenas quando se diz que não houve
quisitos da prisão preventiva. E é exatamente o ditadura; nega-se também quando se deixa de
caso: o deputado fala em espancar, perseguir e perceber que este ano está fortemente pre-
prender Ministros e defende o retorno do AI-5 sente no hoje e que a história não se desfaz no
– e já não é de hoje! –, num tom claro de ameaça ar. São Tempos Difíceis como este que exigem
institucional concreta. Se os tipos abstratos dos posturas enérgicas para evitar retrocessos.
crimes que praticou não são em si inafiançáveis,
o crime concreto o é, por expressa aplicação do REFERÊNCIAS
art. 324, IV. Pior ainda é alegar imunidade para
DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. Boitempo, São Paulo,
liberdade de expressão. Nesta, sequer perderei
2014, p. 34.
tempo. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. Ed.
Diversas pessoas se encontram diariamen- Boitempo, São Paulo, 2013, 119.
te em situação de flagrância e nem por isso os STRECK, Lênio. Deus morreu e agora tudo pode? Reflexões
Ministros saem por aí expedindo mandados de sobre a prisão do deputado. Consultor Jurídico. Disponível
prisão. Por que então o fizeram neste caso? Por- em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-17/streck-deus-
-morreu-agora-tudo-prisao-deputado?
que a Corte está sob forte ataque e um medo de
retorno aos tempos da ditadura paira no ar. É
um movimento de autodefesa. E com todas as GUSTAVO LÍVIO
críticas ao STF, a Corte vem reagindo a estes
episódios altiva e corretamente. Ela demonstra Promotor de Justiça no MP-
que não serão apenas um cabo e um soldado que -RJ. Ex-Defensor Público na
a deporão. Mas só podemos bem compreender Defensoria Pública do Estado
esta atuação mais combativa do STF se desviar- da Bahia. Graduado em Direi-
mos os olhares dos códigos (do esquadro e da to pela Universidade Federal
régua!) para a política e para a história. do Rio de Janeiro (2014). Pesquisador
Defender uma postura mais enérgica
contra esta onda reacionária é uma exigência

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PRONÚNCIA, INQUÉRITO POLICIAL E O NOSSO MUNDO AO AVESSO


Por José Victor Ferreira Lima Ataíde e Rodrigo Rocha Meire

Embora a ordem constitucional tenha ado- semânticas, com a introdução de “eufemismos”


tado o sistema processual penal acusatório, esta no discurso processual penal, como tentativa de
escolha não refletiu substancialmente na prática ajuste ou reequilíbrio discursivo. Nesse contexto
forense. No procedimento especial do Tribunal que se difundiu a noção de instrumentalidade do
do Júri, esta realidade é observada nitidamen- sistema processual, de segurança pública como
te com as decisões de pronúncia lastreadas em bem jurídico constitucionalmente tutelável (jus-
elementos informativos do inquérito policial, tificando boa parte da lógica do ativismo judicial
procedimento de natureza inquisitiva. na seara penal material e processual), e por fim da
No entanto, mais de 30 anos após o históri- inversão dos direitos fundamentais e da elevação
co dia 05 de outubro de 1988, decisões do Supre- do Judiciário como superego da sociedade (Gloe-
mo Tribunal Federal (STF)1 e do Superior Tribunal ckner, 2018, p. 148).
de Justiça (STJ)2 resgataram a esperança de que Casara (2015, p. 144-217) afirma que o pro-
o processo penal brasileiro trilhe caminhos mais cesso de naturalização do autoritarismo envolve
próximos à Constituição da República. a criação de mitos no processo penal, a exem-
A Suprema Corte decidiu que a pronún- plo do mito da verdade real, do processo penal
cia lastreada unicamente em elementos do in- como instrumento de pacificação social ou de
quérito viola os princípios do contraditório e da segurança pública e, no caso específico dos pro-
plenitude de defesa, e que a utilização do (anti) cedimentos do Tribunal do Júri, o mito do in du-
princípio in dubio pro societate afronta o direito bio pro societate.
fundamental à presunção de inocência. O STJ, Embora os atuais precedentes sejam um
por sua vez, seguiu o entendimento do STF, e alento, resta saber se houve uma mudança efeti-
no campo infraconstitucional acrescentou que a va de paradigma nas Cortes Superiores acerca do
consideração exclusiva de elementos do inqué- tema ou se ocorrerão mais à frente decisões em
rito seria incompatível com o art. 155 do CPP. sentido contrário, temperamentos e mitigações.
O Judiciário brasileiro se baseava em artifí- Conforme Streeck (2013, p. 16-18), as mudanças
cios retóricos esvaziados de qualquer lastro legal institucionais ocorrem durante longos períodos
e constitucional, sustentando que o art. 155 do de tempo, e que as transformações contam com
CPP seria inaplicável à decisão de pronúncia. Tri- causas contrariantes que as desaceleram. Nesse
bunais e magistrados afirmavam que a pronún- contexto, tratando-se de precedentes recentes,
cia encerraria “mero juízo de admissibilidade”, e ainda é cedo para entender a força destes pre-
que o “princípio” do in dubio pro societate vigeria cedentes no Judiciário.
na primeira fase do procedimento do Tribunal Outro fator que gera dúvida é a observân-
do Júri, visando desincumbir de qualquer ônus o cia dos precedentes pelos Tribunais de Justiça e
órgão acusatório. Estes artifícios, reproduzidos magistrados singulares. Mesmo após as decisões
à exaustão pelas Cortes de Justiça (incluindo as do STF e do STJ, proferidas entre março de 2019
Cortes Superiores), passavam a encontrar funda- e fevereiro de 2021, o Tribunal de Justiça do Es-
mento na própria teoria dos precedentes, em um tado da Bahia continua proferindo decisões ad-
fenômeno de retro-alimentação. mitindo a pronúncia com base exclusivamente
É natural que a promulgação da CF/88 não em elementos do inquérito policial sob os mes-
traria uma readequação instantânea no pensa- mos fundamentos3.
mento dos atores do processo penal brasileiro:
seria necessário um paulatino exercício de au- 3
Exemplos de acórdãos em que TJ/BA manteve a pronúncia
toanálise e mudança das práticas processuais. No baseada exclusivamente em elementos informativos do
entanto, o caminho adotado foi diverso. Iniciou- inquérito policial, mesmo após os precedentes das Cortes
Superiores:
-se um processo de ressignificação das práticas Recurso em Sentido Estrito nº 0387208-77.2013.8.05.0001, Publicado
punitivas mediante operações de transformação em 04 de março de 2021.
Recurso em Sentido Estrito, nº 0505351-34.2018.8.05.0103, Publicado
em 21 de agosto de 2020.
1
STF, RE com Agr 1.067.392 e Habeas Corpus n. 180.144. Recurso em Sentido Estrito, nº 0302692-38.2013.8.05.0256, Publicado
2
STJ, Habeas Corpus n. 589.270. em 13 de fevereiro de 2020.

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Nesse contexto, a opinião pública, influen- Em síntese, se os precedentes supracita-


ciada pela cultura policialesca, atua como uma dos são um avanço, o mesmo Judiciário que o
das forças de resistência à consolidação do novo produziu é também responsável pelo retrocesso
paradigma jurisprudencial. Conforme Casara de não aplicar um instituto democrático trazi-
(2018, p.63), direitos e garantias fundamentais do por uma Lei cunhada com intenções autori-
podem representar obstáculos ao “bom anda- tárias. Narra Eduardo Galeano (2020, p.02) que
mento do espetáculo” e à satisfação dos espec- “há cento e trinta anos, depois de visitar o País
tadores. das Maravilhas, Alice entrou num espelho para
Os maiores prejudicados pelos aludidos descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renasces-
movimentos contrários à constitucionalização se em nossos dias, não precisaria atravessar ne-
do processo penal são os mais vulneráveis sob nhum espelho: bastaria que chegasse à janela.”
a ótica do neoliberalismo, sobretudo os jovens Eis a essência do nosso mundo ao avesso.
pobres e negros residentes nas periferias dos
centros urbanos, alvos tanto da seletividade REFERÊNCIAS
do sistema penal (Zaffaroni, 1991, p. 268-270),
CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo:
como do sistema penal subterrâneo, consis-
Saraiva, 2015.
tente em ações oriundas das agências exe- CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo (e outros
cutivas do Estado (principalmente os órgãos ensaios). 2. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
policiais) à margem da legalidade, o que inclui GALEANO, Eduardo Hughes. De pernas pro ar. A escola do
procedimentos de tortura e coação para ob- mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 2020.
tenção de confissões extrajudiciais e depoi- GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo
Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo
mentos de testemunhas viciados (Zaffaroni,
penal brasileiro. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
2003, p. 51-53; 69-70). STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do ca-
Indo além, persiste a necessidade de re- pitalismo democrático. Coimbra: Conjuntura Actual Editora,
fundação do Processo Penal em bases realmente 2013.
democráticas e constitucionais. Nesse contexto, ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a
mesmo o art. 155 do CPP, que considera o inqué- perda da legitimidade do sistema penal. 5.ed. Rio de Janeiro:
Renavan, 1991.
rito como elemento para convencimento quan-
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de
do coligido com provas judicializadas, não aten- Janeiro: Revan, 2003.
de à ordem constitucional de 1988, tratando-se
de resquício da cultura inquisitiva.
A via de salvação seria, paradoxalmente, o JOSÉ VICTOR
Pacote Anticrime com a instituição do “Juiz das FERREIRA LIMA ATAÍDE
Garantias” e a desvinculação física do inquérito
dos autos processuais, tornando os preceden- Defensor Público do Estado
tes desnecessários para impedir a utilização da Bahia com atuação na Vara
do inquérito nas razões de decidir. Paradoxal, do Júri e Execuções Penais da
já que a Lei 13.964/19 fundamentava-se na ne- Comarca de Juazeiro-BA.
cessidade de tornar o sistema mais eficiente. @tesesatodaprova
Leia-se: prender mais, por mais tempo e com
menos garantias. RODRIGO
Contudo, o Juiz das Garantias e uma sé- ROCHA MEIRE
rie de outros dispositivos encontram-se com
a aplicabilidade suspensa. As razões vão de ví- Defensor Público do Estado
cios formais até inobservância de impacto or- da Bahia com atuação na Vara
çamentário. Existe, contudo, outra explicação. do Júri e Execuções Penais da
“O velho engenho jurídico”4 insiste em não Comarca de Ilhéus-BA.
morrer. Para tanto, não conseguindo amparo Pós-graduando em direito penal e criminologia.
no legislativo ou veto presidencial, apostou no @tesesatodaprova
Judiciário e seu autoritarismo disfarçado de
decisionismo.

4
Expressão de Jacinto Coutinho.

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O TESTEMUNHO POLICIAL COMO FATOR DETERMINANTE


NAS CONDENAÇÕES POR TRÁFICO DE DROGAS
Por Laura Nepomuceno

Dois atores são essenciais na concretiza- haja vista que são presumidas verdadeiras todas
ção do processo de criminalização secundária: as alegações desses funcionários (JESUS, 2016).
o policial e o magistrado. Quanto ao primeiro, Consoante as lições de Semer (2020), o pro-
seu depoimento está presente e influencia dire- blema ao concluir pela fé pública do depoimento
tamente na fundamentação da sentença e con- policial consiste em não se poder comunicar um
sequente condenação de corpos negros, como ato administrativo, ou seja, a presunção de legi-
dados do INFOPEN (2017) demonstram. Sendo timidade dos atos da administração pública, ma-
assim, é importante analisar, mesmo que de téria típica do direito administrativo, com o ato
modo breve, como o testemunho policial em ju- personalíssimo de testemunhar. A presunção de
ízo é um fator determinante na condenação, e fé pública, portanto, seria em relação aos atos
trazer questionamentos do porquê dessa ques- administrativos típicos, e não em todos.
tão ser problemática. Outro ponto importante trazido por Maria
De acordo com o relatório de iniciação de Jesus (2016) diz respeito à denúncia anônima,
científica orientado por André Sampaio (2020), pois é uma expressão comumente presente nas
que objetivou a valoração judicial de depoimen- narrativas, onde, na maioria dos casos, não ha-
tos policiais em processos de tráfico de drogas via uma comprovação desse registro. Além dis-
e condutas afins, a partir de seus resultados, é so, é alegado que o simples fato de os policiais
possível apreender que em partes dos processos motivarem a abordagem pela denúncia anônima
há falas vacilantes dos agentes de segurança pú- parecia fazer desaparecer qualquer necessidade
blica, ou seja, que causam incerteza na instrução de verificar a existência dessa denúncia.
probatória. Ademais, percebeu-se também que Continuando, mais um questionamen-
boa parte da prova testemunhal obtida a par- to que a autora supracitada traz é em relação
tir desses depoimentos não coadunava com o ao ingresso na residência do flagranteado sem
restante do arcabouço probatório disponível ao mandado judicial, principalmente naquelas em
magistrado. Além disso, há certa dependência que o policial aduz que foi autorizado pelo pro-
da palavra do agente de segurança pública para prietário da residência. A partir das entrevistas
a fundamentação da sentença, utilizando-se do realizadas (JESUS, 2016), depreende-se que não
termo fé pública e da proximidade que o agen- é em qualquer residência que há esse ingresso,
te teve do fato ocorrido para atribuir-lhes certa são naquelas de pessoas de maior vulnerabilida-
confiabilidade. Resultado esse encontrado tam- de social, por não terem conhecimento de que
bém na mencionada pesquisa. é preciso um mandado judicial para o ingresso,
Sendo assim, Maria de Jesus (2016), ao tra- bem como que deixam, muitas vezes, por medo.
tar do saber policial, aduz que ele é um saber Acerca desse tema, cumpre ressaltar que há en-
que produz uma verdade, que não é científica, tendimento consolidado no Superior Tribunal
parte de uma produção de controle, onde seu de Justiça que todas as violações de domicílios
olhar não é neutro, nem descontextualizado. sem mandado de busca e apreensão, com au-
Acrescentando ainda que esse saber policial é sente comprovação de justa causa deveriam ser,
reprodutor e reforça as desigualdades existen- portanto, consideradas ilegais.
tes na sociedade, marcada por uma assimetria Em suas conclusões, Maria de Jesus (2016)
de poder e tratamentos não igualitários ao “sub- aduz que a verdade policial é válida para o direito
cidadão”. e possui uma utilidade necessária para o sistema
Dessa forma, um termo muito utilizado nas funcionar, assim os juízes podem exercer seu
sentenças é “fé pública” dos depoimentos poli- poder de punir. Nesse sentido, a forma de como
ciais. Contudo, o termo, que está relacionado ao tudo foi realizado pela polícia não é questionada.
direito administrativo e é atribuído a documen- Contudo, ressalta a autora, que deve-se atentar
tos de órgãos públicos, passa a ser concedido ao fato de que os policiais que realizaram o fla-
ao policial por ele ser um funcionário público, grante são os mesmos que figuram como teste-
acarretando assim na inversão do ônus da prova, munha, praticamente são os autores dos casos

21
Artigos

e buscarão legitimar suas ações, de modo que, ciar o quebradiço valor probatório presente
por terem participado, seus relatos deveriam ser nesse tipo de prova, a qual é utilizada pelo ma-
recepcionados com mais reservas. gistrado devido ao vácuo probatório existente
Além disso, a autora (JESUS, 2016) ainda nesses processos.
destaca que é preciso problematizar o fato de
que esses flagrantes ocorrem, geralmente, em REFERÊNCIAS
determinadas localizações das cidades onde há
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Informativo de
grande vulnerabilidade social. Desse modo, re-
Jurisprudência n.º 606. Distrito Federal, 02 de agosto de
flete mais um modo de política de segurança do 2017.
que a economia da droga. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL -
Por fim, Fernanda Prates, em entrevista MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA.
para o podcast Improvável (2020), discorrendo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias,
acerca da sua tese de doutorado, expõe que, a atualização junho de 2017. Org: Marcos Vinicíus Moura.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública.
partir dos dados coletados sobre processos con-
Departamento Penitenciário Nacional, 2019. Disponível em:
tra o patrimônio e tráfico de drogas do Tribunal <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen>.
de Justiça do Rio de Janeiro, foi possível obser- Acesso em: 03 de julho de 2020.
var um distanciamento entre a prática do fórum Improvável 36: A palavra do policial e o processo decisó-
e o pensamento do magistrado de fato, entre o rio. Entrevistadora: Janaína Matida. Entrevistada: Fernanda
discurso oficial e não oficial. Prates. [S. l.] 12 out. 2020. Podcast. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/0xgbsF3jui3mRvFV8A4
Nesse sentido, no primeiro, o magistrado
DfI?si=eq75BAbrTYu2Dd95ZlLmpw. Acesso em: 28 out.
aparece como desconfiado do depoimento do 2020.
acusado e não no dos policiais, enquanto no se- JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo
gundo reconhece que é muito difícil trabalhar só não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos
com o depoimento policial, e que não dá para ter processos criminais de tráfico de drogas. São Paulo, SP,
certeza que, no momento do depoimento, ele 2016. 276 f. Tese (Tese em Sociologia), Universidade de São
Paulo - USP.
está falando a verdade. Dessa forma, conclui-se
SAMPAIO, André Rocha; MELO, Marcus Vinicius da Silva
que o magistrado acaba por trabalhar em um vá- Ferreira Melo; CARDOSO, Tayana Brandão. Relatório final
cuo probatório, valendo-se de outras técnicas de iniciação científica — Ciclo 2019/2020. Análise da valo-
(artesanais) para a categorização do traficante ração judicial de depoimentos policiais em processos de
como, por exemplo, a partir da experiência e sa- tráfico de drogas e condutas afins. Maceió: Centro Uni-
ber “só de olhar” quando o réu está mentindo. versitário Tiradentes, Julho 2020.
Portanto, embora haja muitas questões a
serem problematizadas acerca do depoimen- LAURA BEATRIZ DE
to policial nos processos de tráfico de drogas, OLIVEIRA WANDERLEY
buscou-se priorizar três pontos principais: NEPOMUCENO
questionou-se a atribuição de fé pública ao
testemunho policial, a realização de diligências Bacharela em Direito pelo
a partir de denúncias anônimas sem nenhum UNIT/AL. Membra do
registro posterior acerca dessas informações, Grupo de Pesquisa Bio-
bem como o ingresso na residência sem o man- política e Processo Penal. http://lattes.cnpq.
dado de busca e apreensão, de modo a eviden- br/9332389466933930.

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JUEZ DE GARANTÍA. EXPERIENCIA CHILENA.


Por Rodrigo Ríos Álvarez

La figura del Juez de Garantía nació en juicio oral ante el desarrollado en sesiones ora-
Chile con la instauración de la Reforma Procesal les y públicas.
Penal del año 2000. En cuanto a sus rasgos dis- 2. La actual estructura del proceso penal
tintivos, podemos definirlo como aquel órgano chileno presenta una gran ventaja en términos
jurisdiccional, unipersonal y letrado, con com- de celeridad en los tiempos de tramitación de
petencia para ejercer las atribuciones que la ley los casos que ingresan al sistema, y en esto tie-
le confiere desde el inicio de la etapa de investi- ne principal injerencia el rol desplegado por
gación hasta la dictación del auto de apertura de los Jueces de Garantía. Dentro de su ámbito de
juicio oral que da término a la etapa intermedia o competencia material, podemos constatar que,
de preparación de juicio oral, y que luego, puede junto con velar por el resguardo y respeto de las
eventualmente recuperar su competencia para la garantías de los intervinientes del proceso, tiene
ejecución de la sentencia definitiva condenatoria. además asignada competencia para resolver los
A continuación, haremos una breve sínte- procedimientos especiales y salidas alternativas
sis de cuáles han sido las principales ventajas y al juicio oral (aproximadamente sólo un 5% de
críticas que se han formulado al rol que el Juez casos llegan efectivamente a la etapa de juicio
de Garantía en el proceso penal chileno, a lo lar- oral). Con ello, existen casos por delitos flagran-
go de estos ya casi 21 años de su instauración. tes que pueden ser resueltos en 24 horas, con la
1. Previo a la reforma procesal penal del año dictación de una sentencia definitiva condena-
2000, las funciones de investigar, acusar y resol- toria (procedimientos monitorios, simplificados
ver recaían en el mismo sujeto procesal (Juez del o abreviados), o bien mediante la aprobación de
Crimen) que pertenecía al Poder Judicial. Con la salidas alternativas, que potencian acuerdos en-
creación del Ministerio Público, Juzgados de Ga- tre los intervinientes, por ejemplo, entre fiscal e
rantía y Tribunales de Juicio Oral, se vino a dar imputado (suspensión condicional del procedi-
un expreso reconocimiento del principio acu- miento) o bien entre imputado y víctima (acuer-
satorio en cuanto a división de funciones. Hoy, do reparatorio).
quien investiga y acusa es el Ministerio Público 3. Bajo la estructura adversarial y contra-
(organismo autónomo que no pertenece al Po- dictoria del proceso penal chileno, el rol que
der Judicial), quedando entregada la función de debe cumplir el Juez de Garantía es esencial-
resolver a los jueces con competencia en mate- mente pasivo. Esto implica que recae en los in-
ria penal. Así, hoy contamos con un proceso que tervinientes (fiscal, querellante y defensor) for-
se compone de tres etapas: (1) Investigación; (2) mular las peticiones que deban ser resueltas por
Intermedia o de preparación de juicio oral, y (3) el juez de garantía, y entregar los fundamentos
Juicio oral. Las dos primeras etapas, están en- que permitan persuadirlo en adoptar dicha de-
tregadas a la competencia exclusiva del Juez de cisión, no pudiendo subsidiar a ninguno de los
Garantía, quedando la tercera de ellas entregada intervinientes en sus alegaciones o peticiones.
a los Tribunales de Juicio Oral. Por regla general las discusiones ante el Juez de
Como puede apreciarse junto con la divi- Garantía se realizarán en audiencias orales y pú-
sión de funciones entre Ministerio Público y tri- blicas, en las cuales previo debate, el juez deberá
bunales con competencia en materia penal, exis- resolver verbalmente inmediatamente una vez
te entre éstos, una distribución de competencia cerrada la discusión. Esto también ha significado
material que permite realzar de mejor manera la un cambio conductual en la forma de entender el
imparcialidad del juzgador que conoce del jui- ejercicio de la jurisdicción, ya que solo excepcio-
cio oral, por cuanto este tribunal colegiado no nalmente se harán peticiones y se dictarán reso-
tiene ninguna participación en las etapas inicia- luciones por escrito. Solo excepcionalmente se
les, evitando de esa manera la “contaminación” a contemplan actuaciones de oficio por parte del
la cual puede verse expuesto cualquiera de sus tribunal, lo que viene a confirmar y reforzar el
miembros, debiendo enfocarse única y exclusi- principio de pasividad en sus funciones.
vamente a valorar el material probatorio y a dic- 4. Una de las principales funciones del Juez
tar la sentencia definitiva una vez concluido el de Garantía es aquella encaminada a resguar-

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dar los derechos de todos los intervinientes en de internalización de los principios que inspi-
el proceso penal. Así, se pronunciará sobre las ran nuestro actual sistema procesal penal. Así,
autorizaciones judiciales previas que solicite el uno de los puntos de crítica que se formulan de
Ministerio Público para realizar actuaciones que manera cíclica, principalmente en periodos de
priven, restrinjan o perturben el ejercicio de de- elección de cargos políticos (presidencial y par-
rechos asegurados por la Constitución. Para ac- lamentarios) es el uso del eslogan de la “puerta
tividades de investigación tales como, ingresos giratoria”. Se critica a los Jueces de Garantía de
y registro de lugares cerrados, interceptaciones ser excesivamente “garantistas” y permitir que
telefónicas, entre otras, será necesario contar una persona que ha sido detenida y que ingresa
con la autorización judicial previa para ejecutar al tribunal por una “puerta” sale inmediatamen-
dichas diligencias de investigación. En caso de te por la misma “puerta” una vez que termina la
no cumplirse con este requisito, las actuacio- audiencia. Este discurso crítico ha hecho mucho
nes que se hayan ejecutado podrán ser objeto de daño en el funcionamiento del sistema, porque
sanciones procesales, como por ejemplo, la ile- ha generado una errada concepción de su es-
galidad de la detención y la exclusión de prueba tructura, y ha propiciado una serie de reformas
ilícita. que han ido incorporando aspectos netamente
En este aspecto el Juez de Garantía se eri- represivos y de tendencia inquisitiva dentro de
ge como un verdadero contralor del respeto de la regulación legal actual. Valga aclarar que esta
los derechos y garantías durante la investiga- crítica, que tiene su génesis en discursos políti-
ción. Pero no solo respecto del imputado, sino cos, no tiene asidero estadístico en el sistema.
que ejerce esta función también sobre las pe- Por ejemplo, se ha comprobado que cerca de 9
ticiones que el resto de intervinientes puedan de cada 10 peticiones de prisión preventiva que
formular (por ejemplo, la víctima y el querellan- formula el Ministerio Público son concedidas
te), en la medida que exista una afectación a sus por los jueces de garantía.
derechos. En suma, la incorporación del Juez de Ga-
5. En la audiencia de preparación de juicio rantía constituyó un hito fundamental en el en-
oral, el Juez de Garantía ejecuta un rol de filtro granaje del sistema procesal penal, y una de las
de las pruebas que serán finalmente conocidas claves del éxito de su instauración. Se requiere
por el Tribunal de Juicio Oral. Dentro de las cau- de cara al futuro, reforzar los aspectos comuni-
sales más relevantes de exclusión de prueba, cativos de cara a la comunidad, en orden a socia-
está aquella asociada a las que han sido obteni- lizar de manera eficiente los roles de cada uno
das con vulneración de garantías fundamentales de los sujetos procesales, atacando con ello uno
(prueba ilícita). Pero tal como hemos indicado a de los principales riesgos de deslegitimación
propósito del principio de pasividad, estas ale- que experimenta hoy en día nuestro sistema, y
gaciones deberán ser formuladas por la defensa en esa línea, reforzar la exigencia permanente a
del imputado, y luego del debate de rigor el Juez los Jueces de Garantía en su rol de resguardo y
de Garantía deberá resolver. Lo que se busca respeto de los derechos y garantías de todos los
es evitar que el Tribunal de Juicio Oral conozca intervinientes del proceso penal.
pruebas que sean sobreabundantes, que recai-
gan sobre hechos públicos y notorios, sean im- RODRIGO
pertinentes o bien sean ilícitas, evitando que los RÍOS ÁLVAREZ
juicios orales se extiendan más allá de lo razo-
nable y que ingrese a juicio oral prueba obtenida Doutorando em Direito Pe-
ilegalmente. nal, Universidade de Buenos
Finalmente, podemos destacar que uno de Aires. Advogado e Mestre em
los principales problemas que se ha detectado Direito da Universidade do
en la aplicación del proceso penal reformado Chile. Fundador da Picand & Ríos Abogados. Profes-
ha sido la falta de comprensión por parte de la sor do Direito Processual Penal e Litigação Oral, na
comunidad del rol que ejerce el Juez de Garan- Universidade Finis Terrae. Membro do Projeto Ino-
tía dentro del proceso, y previo a ello, una falta cente (Chile).

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PESSOAS TRANSEXUAIS NA PRISÃO


Por Luís Carlos Valois

Se formos analisar a prisão pelo tempo e alimentação de qualidade. (SANZOVO,


2020, p. 166)
que ela existe na sociedade como sanção penal,
veremos que é um instituto de mais de trezen- Por certo fica muito difícil exigir direitos
tos anos que mudou muito pouco desde a sua básicos inerente à sua condição de ser humano
origem. Muitos muros, grades, ódio e ressenti- se os direitos mais fundamentais da sua con-
mento isolados em uma instituição da socieda- dição de ser vivo não são respeitados. Como
de. Mas, enquanto a sociedade muda, a prisão falar de reposição hormonal onde não há água
é quase a mesma de 1777, ano que John Howard potável, a prisão destrói seres humanos e o faz
resolveu escrever o primeiro relatório sobre es- com muito mais perversidade com relação às
ses calabouços. pessoas trans.
Assim, não é de se espantar o fato de que O Poder Judiciário, por sua vez, enquan-
a prisão não se encaixa na sociedade atual. Ela, to começa a reconhecer a identidade de gê-
na verdade, se mantém como instrumento de nero, o faz na esfera cível principalmente. No
coerção e repressão, paira como uma ameaça sistema penal, o engessamento do código,
em nome do Estado, mas em termos de princí- o preconceito dos seus agentes, a violência
pios e do pensamento atual dos seres humanos inerente à prática do encarceramento, a prisão
sobre a sociedade, a prisão não se encaixa. desumana, o reconhecimento da identidade de
Dessa forma, o que dizer das pessoas tran- gênero é raro e normalmente existe contra a
sexuais encarceradas em uma instituição secu- pessoa trans.
lar, criada em uma época em que sequer havia Victor Siqueira Serra, que estudou o dis-
nascido a ideia de indivíduo. Se a prisão foi feita curso do Tribunal de Justiça de São Paulo a
para homens, embora utilizada para mulheres respeito das pessoas trans, informa o quanto
sem nenhuma diferença de base na construção o preconceito está incrustrado nas decisões e
e administração, para as pessoas trans ela é um acórdãos jurídicos: a representação de travestis
entulho histórico totalmente inapropriado. pelos discursos do Tribunal de Justiça de São Pau-
Mas o que pensam as pessoas trans, que lo é marcada por fantasmas que, sistematicamen-
não têm a sua identidade de gênero respeita- te invocados, materializam-se. A periculosidade,
da, e são postas, por exemplo, mulheres nas a afeição ao crime, o vínculo quase necessário
prisões de homens? SANZOVO entrevistou di- coma prostituição e o tráfico de drogas, a “men-
versas mulheres trans na prisão e concluiu o tira” do “homem” atrás ou dentro do travesti, são
seguinte: estereótipos, construções sociais, que ao surgirem
no discurso jurídico assombram ações policiais,
O cárcere é, em si mesmo, um espaço
de violação de direitos, portanto, como lavraturas de boletins de ocorrência, produção de
observado na pesquisa, antes de celas e provas, tipificação de condutas, fixação de penas
raios específicos ou acesso a itens de fe- e regimes de cumprimento. (SERRA, 2019, p. 79).
minilidade, as pessoas se queixaram de Ser punido mais severamente, ou ser puni-
não acessar direitos mais elementares, do quando normalmente não se é, em razão de
como alimentação de qualidade, estudo,
padrões comportamentais ou, no caso, em razão
trabalho e também problemas relaciona-
dos com superlotação nas celas do CDP- do preconceito de gênero simplesmente, é algo
-II. Assim, refletir (propor) sobre o local que as mulheres conhecem muito bem, mas
mais adequado para seu encarceramen- que só agora começa-se a discutir quando essa
to é importante, mas pleitear/garantir violência atinge as pessoas trans, pois só ago-
condições mais dignas na prisão, é fun- ra tem se reconhecido a existência de pessoas
damental. As travestis e transexuais en-
trans no âmbito do Judiciário.
carceradas querem, evidentemente, pre-
servar sua identidade feminina, tomar O Poder Judiciário, como órgão de poder,
hormônio, serem chamadas pelo nome poder político, é estruturalmente conservador, e,
social, poder acessar e utilizar pertences por isso, extremamente lento no reconhecimento
e produtos femininos, mas, antes, preci- das minorias e consequentemente de seus direi-
sam de atendimento adequado à saúde tos, sendo correto afirmar, com relação ao Judi-

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ciário, que “a ideologia homofóbica está contida decisão transigente, uma decisão translativa,
no conjunto das ideias que se articulam em uma não cabe uma decisão trans, pois o meio car-
unidade relativamente sistemática (doutrina) e cerário é inflexível, não conhece reflexões para
com finalidade normativa (promover o ideal he- além da limitada segurança contra a fuga.
terossexual)” (BORRILLO, 2010, p. 64). As pessoas trans sofrem mais, sofrem
Contudo, mesmo quando o Judiciário re- preconceito desde a abordagem policial até o
conhece algum direito de uma pessoa trans, o último dia de envolvimento com o sistema pe-
sistema todo cria outros obstáculos, posto que a nal, são tratadas com desdém e, não raramen-
homofobia é efetivamente estrutural. Exemplo, te, com violência, pelos próprios funcionários.
em 2018, o STF determinou que duas mulheres Escapando dos estupros e demais violências fí-
transexuais, presas em São Paulo, fossem trans- sicas e sexuais, o isolamento mesmo pode cau-
feridas para penitenciárias femininas. O rela- sar problemas mentais, alucinações, perda da
tor foi o Ministro Roberto Barroso. Trata-se de capacidade de concentração, tornando a pes-
uma decisão que indefere o pedido de liberdade soa “catatônica”, isso sem se falar, no caso das
das mulheres, não analisando o habeas corpus, pessoas trans, que têm o tratamento hormonal
mas reconhece que as presas estavam recolhi- interrompido pelo encarceramento, sujeitas
das “em estabelecimento prisional incompatível à “depressão, problemas cardíacos e pressão
com a sua orientação sexual”, e concede a ordem sanguínea irregular” (MOGUL; RITCHIE; WHIT-
nos seguintes termos: “(...) nego seguimento ao LOCK, 2011, p. 109-112).
habeas corpus. Contudo, concedo a ordem de Casos de automutilação são comuns. Nos
ofício para determinar ao Juízo da Comarca de EUA há registro de presos que chegam a ten-
Tupã/SP que coloque o paciente P H O P (nome tar amputar a genitália em situação de privação
social L F) e o corréu L P P F (nome social M E do tratamento hormonal2, fato que passaria to-
L) em estabelecimento prisional compatível com talmente despercebido no caos do acompan-
as respectivas orientações sexuais.” (HC 152491, hamento da saúde dos encarcerados no Brasil.
julgado em 14/02/2018). Muitos já podem ter morrido assim e cataloga-
Ora, não existe esse estabelecimento penal dos como mais um caso de morte por hemorra-
compatível com a orientação sexual, ou o esta- gia causada por algum acidente.
belecimento penal é masculino ou é feminino, é O sistema penitenciário é um mundo à
o que diz a lei e assim deveria ter determina- parte, enquanto o judiciário também, mas, este,
do o STF, indicando objetivamente o estabele- um mundo de gabinete. Os mundos institucio-
cimento penal para recolhimento das mulheres nais não dialogam entre si e nem dialogam com a
trans. Deixar em aberto o estabelecimento pe- sociedade, e fazer valer direitos nessa realidade
nal é deixar a decisão nas mãos do carcereiro da é muito difícil.
ocasião. A mudança é realmente lenta, e com obs-
E foi o que aconteceu, diante da demora táculos ainda maiores no meio prisional, onde
em expedir ofício para a transferência de esta- questões básicas de saúde são negligenciadas.
belecimento penal por parte do STF, a direção Poucos trabalhos abordam a questão, livros de
do estabelecimento penal, já sabendo do acór- execução penal não possuem comentários so-
dão, apressou-se para pressionar as presas, a fim
de que as mesmas, por livre e espontânea vonta- 1
Essa informação nos foi dada pelo Dr. Victor Hugo Anuvale
de decidissem ficar na penitenciária masculina. Rodrigues, advogado de São Paulo, então advogado das
E, mesmo havendo pedido nos autos para que as mulheres presas. Segundo o Dr. Victor, uma delas, chorou
na frente do juiz suplicando para ser enviada para uma
mesmas, em cumprimento à decisão do STF, o
penitenciária feminina, como determinou o STF, mas
termo assinado pelas presas preferindo ficar na o magistrado, logo depois, com o retorno da presa ao
prisão masculina encerrou o assunto e a decisão estabelecimento penal, recebeu o documento, assinado
não foi cumprida1. pela própria presa, dizendo que estava tudo bem e que
Muito bela e avançada a decisão do STF, de queria ficar na penitenciária masculina, fazendo a decisão
determinar que as presas fossem recolhidas em do STF não ser cumprida.
2
Note-se que, no Brasil, o tratamento hormonal para
estabelecimento penal compatível com as suas
pessoas trans é garantido pelo SUS, sendo recomendado
orientações sexuais, mas em questão prisional pelo Conselho Federal de Medicina pela Resolução CFM
há que ser direto e objetivo. Para a garantia do 2.265/2019, portanto obrigatório seja na prisão, seja em
direito de mulheres transexuais, não cabe uma meio livre.

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SERRA, Victor Siqueira. “Pessoa afeita ao crime”: crimina-


bre, então fica aqui esta pequena contribuição,
lização de travestis e os discursos do Tribunal de Justiça de
para estimular pesquisas, debates e, principal- São Paulo. São Paulo: IBCCrim, 2019.
mente, para que se dê voz e comecem a ouvir de
verdade as pessoas transexuais presas.
LUÍS CARLOS VALOIS
REFERÊNCIAS
Juiz de direito da Vara de
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um
Execuções Penais do Ama-
preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
BENTO, Berenice. Transviados: gênero, sexualidade e di-
zonas, mestre e doutor em
reitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017. direito penal e criminologia
MOGUL, Joey L.; RITCHIE, Andrea J.; WHITLOCK, Kay. pela Universidade de São
Quer (in)justice: the criminalization of LGBT people in The Paulo, pós-doutorando em criminologia na Alema-
United States. Massachusetts: Beacon Press, 2011. nha, pela Universität Hamburg, membro da Asso-
SANZOVO, Natália Macedo. O lugar das trans na prisão.
ciação de Juízes para Democracia – AJD.
São Paulo: D’Plácido, 2020.

Respiro

Charge por: Mahnaz Yazdani @mahnaz.yasdani

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VISÕES SOBRE DESIGUALDADE, DISCRIMINAÇÃO E


DIFERENÇA. MULTICULTURALISMO E CULPABILIDADE
Por Sebástian Borges de Albuquerque Mello

Como relacionar culpabilidade com igual- Este modelo, prossegue, permite que as
dade? Considerar a igualdade como medida da questões relativas às diferenças sejam decididas
culpabilidade demanda uma análise das ideias com base na lei do mais forte, num jogo livre e
de diferença, desigualdade e discriminação, pois desregulado dos poderes privados, que acarreta
cada um destes conceitos possui um significado a situação de desigualdade, antes referida. Ob-
distinto, e uma relação específica com a digni- viamente, não pode haver uma concepção ju-
dade humana e o princípio da culpabilidade. rídica de culpabilidade que seja indiferente às
Diferenças e desigualdades são situações diferenças e desigualdades, pois isso resultaria
de fato, as quais demandam proteções jurídicas numa equalização artificial da igualdade, que
diferenciadas. As diferenças são inerentes à ex- terminaria por corresponder ao fim da dignida-
periência humana, notadamente em face de um de humana, da autonomia ética do indivíduo e
Estado de Direito plural e multicultural. A diver- do direito fundamental à liberdade.
sidade é uma característica da espécie humana, A discriminação, por sua vez, é uma si-
havendo inúmeras condições, crenças, preferên- tuação normativa que consagra privilégios ju-
cias, situações que fazem de cada pessoa um ser rídicos arbitrários e desarrazoados. A discri-
único e irrepetível, igual aos demais em dignida- minação, no plano do Direito, é a antítese da
de, posto que humano, mas diferente de fato em igualdade, pois estabelece um regime jurídico
relação aos demais. As diferenças entre as pes- que permite um tratamento diferenciado entre
soas não podem ser ignoradas, mas garantidas, as pessoas, mesmo diante de situações fáticas
como expressão da própria autonomia ética do que sejam idênticas.
ser humano. O direito fundamental de liberdade As situações de discriminação amiúde
assegura a cada pessoa um espaço para a realiza- atingem os mais vulneráveis, que terminam sen-
ção de sua identidade, desde que respeitados os do marginalizados não apenas do ponto de vista
limites e direitos fundamentais alheios estabele- fático, mas também do ponto de vista jurídico,
cidos pela ordem jurídica. Deste modo, as dife- fator que, no Direito Penal, contribui para a crise
renças inerentes às pessoas devem ser protegi- de legitimidade do próprio sistema (BARATTA,
das pela ordem jurídica. 2002; ZAFFARONI, 1991).
As desigualdades, por sua vez, são situações Segundo Peces-Barba, a desigualdade, si-
de fato que implicam desvantagens para o ser hu- tuação de fato, é incompatível com a dignidade
mano em relação aos demais, de tal sorte que po- humana, de tal sorte que são necessários, para
dem interferir no conteúdo do mínimo existencial. que se consagre dita dignidade, comportamen-
A redução das desigualdades é uma missão do Es- tos jurídicos de igualdade, com vistas a promo-
tado Social, de tal sorte que o Estado tem o dever ver a redução das desigualdades materiais atra-
de atuar na promoção da igualdade material. vés do direito. Esta é uma das missões do Estado
As desigualdades não podem ser ignoradas Social. A discriminação, como positivação jurídi-
pelo Direito, sob pena de serem decididas, como ca que cria ou ratifica desigualdades, também é
pondera Ferrajoli, pelo paradigma hobbesiano incompatível com a dignidade humana, na me-
de defesa e opressão das identidades a partir dida em que é uma situação normativa que esta-
dos mais fortes. Se houver indiferença jurídica belece, sem razão justificada, status ou deveres
entre as diferenças, “[...] as diferenças não se distintos para pessoas em situação análoga.
valorizam nem se desvalorizam, não se tutelam As diferenças, por sua vez, são desigual-
nem se reprimem, não se protegem nem se vio- dades naturais que não afetam a dignidade da
lam. Simplesmente, são ignoradas1”(FERRAJOLI, pessoa humana e não exigem tratamento jurí-
2004, p. 74). dico para corrigi-las (PECES-BARBA MARTINEZ,
2003, p. 73-74). Ferrajoli argumenta que exis-
1
No original: “las diferencias no se valorizan ni se te uma assimetria entre igualdade e diferença:
desvalorizan, no se tutelan ni se reprimen, no se protegen ni igualdade é um termo normativo, significando
se violan. Simplesmente, se las ignora”. . que os diferentes devem ser respeitados e tra-

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tados como iguais e, como norma, não basta órgãos que aplicam a lei (Executivo e Judiciário),
enunciá-la, sendo preciso observá-la e sancio- porém não estabelecem limites ao legislador,
ná-la. Diferença, por seu turno, é um termo des- que poderia levar a cabo qualquer discriminação
critivo, que quer dizer que as pessoas, de fato, sem violar tal princípio, desde que apresentasse
são distintas, e que a identidade de cada pessoa suas desigualdades materiais a partir de normas
está dada, precisamente, por suas diferenças, e universais (ALEXY, 2002).
são justamente tais diferenças que devem ser A experiência demonstra que a realidade
respeitadas, tuteladas e garantidas com vistas ao social não é aquela do ser humano ideal, forjado
respeito do princípio da igualdade (FERRAJOLI, a partir de um modelo único de cidadão; o ho-
2004, p. 79). mem real é integrante de uma sociedade concre-
Por isso, a igualdade não se contrapõe à di- ta, plural, multicultural, baseada na tolerância a
ferença, mas sim à discriminação. As diferenças diferenças e que gera desigualdades. Cumpre ao
devem ser valorizadas e garantidas pela ordem Estado Social e Democrático impedir que essas
jurídica. As discriminações são desigualdades desigualdades sejam reafirmadas na lei através
reconhecidas e ratificadas pelo ordenamento. A de discriminações e procurar nivelar tais desi-
ideia de igualdade jurídica entre as pessoas sig- gualdades na maior medida possível.
nificou, na aurora iluminista, que os seres hu- Como sustenta Hormazábal, existem dife-
manos eram tidos como entes nascidos livres e renças entre as pessoas provocadas pelo próprio
iguais entre si. A ideia de igualdade formal pe- modelo de sociedade, que acarretam consequ-
rante a lei reduzia as distinções entre nobreza, ências na teoria da responsabilidade penal, a qual
clero, burguesia e povo a uma só categoria: a de tem de compatibilizar duas premissas: a de que
cidadão. as diferenças entre as pessoas devem ser con-
A igualdade formal, certamente, é impres- sideradas no momento do juízo de culpabilida-
cindível para que se possa falar numa concepção de, e outra premissa básica que encontra raízes
jurídica de dignidade que alcance qualquer pes- desde a Ilustração: a antinomia entre a pessoa e
soa humana. Só poderá haver justiça e dignidade o Estado, latente no próprio texto constitucional
quando situações jurídicas idênticas sejam deci- (HORMAZÁBAL MALARÉE, 2005, p. 180).
didas de acordo com os mesmos parâmetros. O O princípio de culpabilidade, nessa linha,
princípio da igualdade perante a lei, como igual- impõe a tutela das diferenças, a eliminação das
dade formal-liberal, significa que os homens discriminações normativas arbitrárias e a re-
nascem livres e iguais em direitos, amparados dução das desigualdades, tudo isto para que se
sob o conceito de cidadania. atenda ao princípio da igualdade. Para tanto, é
Este modelo, porém, é insuficiente, pois, preciso que haja respeito e tolerância às dife-
como ressalta Canotilho, não fornece critérios renças, para que estas não sejam entronizadas
para se estabelecer quem são os iguais e quem na ordem jurídica como discriminações ou juí-
são os desiguais, e termina significando apenas a zos moralizantes de valor, pois o conceito de to-
prevalência da legislação sobre a administração lerância impõe justamente o reconhecimento do
e a jurisdição (CANOTILHO, 2003, p. 427). diferente como “outro”, que pode eventualmente
Assim, a igualdade formal, que se exaure integrar diverso segmento social, cultural, étni-
como fim em si mesmo, sem critérios para fixar co ou religioso, mas que faz parte de um grupo
um conteúdo de igualdade material, representa mais amplo, a sociedade pluralista, humana, da
um modelo que impõe um conceito de igualda- qual todos fazem parte.
de a partir do conceito generalizante e univer- Uma sociedade juridicamente fundada na
salizante de cidadão, o qual corresponde, na li- tolerância funciona como ente integrador em
nha do que sustenta Ferrajoli, a um modelo de que não se impõem verdades ou códigos morais,
desigualdade, discriminações e privilégios, en- mas produto da compreensão entre distintas
cobertos por um falso universalismo que toma concepções de vida (MARTÍNEZ DE PISÓN, 2001,
como referência o ser humano macho, branco e p. 65-66), às quais intimamente podem implicar
proprietário (FERRAJOLI, 2004, p. 75). num desvalor, mas que não podem ser chancela-
Alexy considera que esse mandado de das pela ordem jurídica sob pena de se constituir
igualdade perante a lei pode vincular apenas os numa discriminação.

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Artigos

REFERÊNCIAS ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a


perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Ra-
ALEXY, Robert, Teoria de los Derechos Fundamentales. mos Pedrosa e Almir López da Conceição. Rio de Janeiro:
Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, Madrid, Revan, 1991.
2002
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Di-
reito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos, 3. ed., Rio de SEBÁSTIAN BORGES DE
Janeiro: Revan, 2002; ALBUQUERQUE MELLO
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003.
Advogado, Mestre e Doutor
FERRAJOLI, Luigi, Derechos y garantías: la ley del más dé-
bil, 4. ed. Madrid: Ed. Trotta, 2004.
em Direito pela Universida-
HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernan. Una necesaria revisión de Federal da Bahia, profes-
del concepto de culpabilidad. Revista de Derecho v. XVIII – sor de Direito Penal da Uni-
n. 2 – Valdivia: 2005. versidade Federal da Bahia. Titular da Cadeira n. 18
MARTÍNEZ DE PISÓN, José. Tolerancia y derechos funda- da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Coorde-
mentales en las sociedades multiculturales. Madrid: Tec-
nador estadual do IBCCRIM-BA.
nos, 2001
PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. La dignidad de la
persona desde la Filosofía del Derecho, 2. ed., Madrid: Ins-
tituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Uni-
versidad Carlos III de Madrid: Dykinson, 2003

Respiro

Charge por: André Dahmer @andredahmer

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Artigos

AVALIAÇÃO DE RISCO: ENTRE FORMULÁRIOS E


POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
Por Maria Brito Alves

O enfrentamento da violência doméstica de coibir a violência doméstica possibilitaram


familiar depende de recursos, políticas públicas, a Resolução Conjunta nº. 5, de 03 de março de
do contexto sociocultural e das subjetividades 2020, do Formulário Nacional de Avaliação de
das pessoas envolvidas articuladas as estruturas Risco no âmbito do Poder Judiciário e do Minis-
estatais (CAMPOS, 2015, p.45). tério Público3, e mais recentemente a edição da
O aumento no número de casos de violência Lei 14.149, de 05 de maio de 2021.
contra a mulher, incluindo de feminicídios, provo- A avaliação de risco refere-se à adoção de
cou, entre outras reações, o recrudescimento e a procedimentos sistematizados para a identifica-
edição pelo legislador de leis de caráter repressi- ção da possibilidade de ocorrência de novas vio-
vo como forma de enfrentamento à violência do- lências e destas serem letais. O registro minu-
méstica familiar. Neste contexto, há necessidade cioso de informações relevantes é essencial para
de se avaliar as políticas até então implementadas a compreensão desse risco e aprimoramento da
sob o risco de violações e esvaziamento do con- atenção e assistência oferecidos às mulheres,
teúdo normativo, pedagógico e repressivo da Lei com vistas à garantia de sua segurança (FERREI-
11.340/06, “Lei Maria da Penha". RA; SCHITTER, 2018, p.185).
Consoante dados disponibilizados pelo O pedido de medida protetiva, por vezes
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de um indeferida sob fundamento da ausência de
milhão de processos relacionados à Lei 11.340/06 prova documental (FERREIRA; SCHITTER, 2018,
tramitam nos Tribunais de Justiça do país e quase p.188) ganha novos contornos com a aplicação
400 mil medidas protetivas foram deferidas em do Formulário Nacional de Avaliação de Risco
2018 (CNJ, 2019), sendo este um nicho importan- no momento do registro da ocorrência (BRASIL,
te para consecução da proteção integral à mu- 2021). Assim, ainda que de forma perfunctória e
lher. Sob as justificativas do vultuoso e crescente em razão das circunstâncias do caso concreto,
número de medidas protetivas e da necessidade a valoração deste formulário deve ser realizada
de identificar adequadamente os fatores de ris- com cautela e dentro dos limites processuais para
co para ocorrência de atos futuros de violência que não ocorra um rebaixamento de standards
doméstica, o CNJ e o Conselho Nacional do Mi- probatórios em nome de um punitivismo que
nistério Público (CNMP), apresentaram, respecti- ratifica as desigualdades sociais. Consoante as
vamente, as seguintes ferramentas: o “Formulário respostas, parâmetros de risco são identificados
Nacional de Avaliação de Risco”1 e o “Formulário possibilitando a gestão e o encaminhamento
Nacional de Risco e Proteção à Vida (Frida)2”. da vítima aos serviços especializados e de
Apesar das diferenças significativas entre assistência.
os instrumentos, o eixo comum da dimensão do Analisar este instrumento pela perspectiva
risco se fez presente, e junto à necessidade de de gênero e de forma interseccional possibilita
articulação interinstitucional e dever do Estado inferências acerca da relação do sistema crimi-
nal com a violência doméstica, as potencialida-
1
Identifica fatores de risco da mulher vir a sofrer des e limitações da Lei Maria da Penha, frente
qualquer forma de violência no âmbito das relações
um sistema conformado por padrões históricos
domésticas e familiares e subsidia a atuação do Poder
Judiciário e órgãos da rede de proteção na gestão do discriminatórios. Os documentos oficiais pro-
risco identificado. Disponível em: https://atos.cnj.jus.
br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2925. 3
Ressalte-se que o CNJ e o CNMP constituíram formulários
Acesso 03.05.2021. de avaliação de risco a partir da iniciativa singular de cada
2
Indica o grau de risco da vítima com o fito de reduzir instituição. Apenas com a Resolução Conjunta nº.5, de 03
a probabilidade de repetição ou ocorrência de um de março de 2020 que os formulários produzidos de forma
primeiro ato violento contra a mulher no ambiente independente foram compilados em um único instrumento.
doméstico. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/ Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/
portal/images/noticias/2019/maio/Proposta_de_kit. uploads/2020/03/ResolucaoConjunta-CNJCNMP-
REV.pdf. Acesso 03.05.2021. Frida-04032020.pdf. Acesso 03.05.2021.

31
Artigos

duzidos por este sistema que negligencia ou também viabilizando atos articulados em prol de
reproduz narrativas de forma repetitiva e im- uma nova política pública para as mulheres.
pessoal levam à completa e intencional redução
da complexidade dos conflitos e ao apagamento REFERÊNCIAS
das questões de raça, gênero e classe desafiando
os discursos de efetividade propagados pelo Es- BRASIL, Lei n° 14.149, de 5 de maio de 2021. Disponível em:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.149-de-
tado. (VALENÇA; MELLO, 2020, p.1251)
5-de-maio-de-2021-318198245. Acesso em 05.05.2021.
As medidas protetivas de urgência, o su- BRASIL, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em:
porte da equipe multidisciplinar especializada, http://w w w.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
a articulação entre os entes que prestam aten- 2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso 03.05.2021
dimento as mulheres em situação de violência CAMPOS, Carmen Hein de. Razão e Sensibilidade: Teoria
doméstica familiar, o uso de ferramentas na ges- Feminista do Direito e Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://themis.org.br/wp-content/uploads/2015/04/
tão de políticas e recursos da rede de proteção
LMP-comentada-perspectiva-juridicofeminista.pdf.
como os instrumentos da avaliação de risco são Acesso 28.04.2021.
essenciais neste enfrentamento, e não devem CNJ. Dados de Violência Doméstica e Feminicídio
vincular-se apenas à existência de uma inter- no Brasil (2016 a 2018). Disponível em: https://
venção penal. w w w. c n j . j u s . b r/ w p - c o n t e n t/u p l o a d s/ 2 0 1 9/ 0 3/
Desponta, assim, uma série de desafios a c7bb60579ffe93584acf30929c349c50.pdf. Acesso
03.05.2021.
aplicação e valoração deste formulário no sis-
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 284/2019.
tema de justiça criminal no que tange às ques- Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-
tões étnico-raciais e de classe, presunção de normativos?documento=2925. Acesso 28.04.2021
inocência, constituição da prova, o risco de re- CNJ; CNMP. Resolução Conjunta Nº 5, de 3 de março de
vitimização da mulher, a relação interpessoal 2020. Disponível em: ResolucaoConjunta-CNJCNMP-
entre autor e vítima, que caracterizam a com- Frida-04032020.pdf. Acesso 28.04.2021
CNMP. Conselho Nacional do Ministério Público.
plexidade presente nas demandas do conflito
Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/
doméstico e que não devem ser menospreza- noticias/2019/maio/Proposta_de_kit.REV
das sob o risco de tornar-se um elemento de FERREIRA, Carolina; SCHITTER, Maria Carolina. Proteção
violência ou descredibilização das conquistas Integral à Mulher: avaliação de risco. Brasília (DF).
consubstanciadas na Lei Maria da Penha. Práticas de enfrentamento à violência contra as mulheres:
Existe uma linha tênue entre a objetividade experiências desenvolvidas pelos profissionais de
segurança pública e do sistema de justiça. Disponível em:
desta ferramenta e a objetificação do enfrenta-
https://casoteca.forumseguranca.org.br/wp-content/
mento da violência doméstica contra a mulher, uploads/2019/04/CASOTECA-2018_site.pdf . Acesso
não holisticamente compreendida pelo checklist 03.05.2021
de um formulário. O uso deste instrumento dis- VALENÇA, Manuela Abath Valença; MELLO, Marilia
sociado das políticas públicas simplifica esta Montenegro Pessoa de. “Pancada de amor não dói”: a
problemática, deteriora o processo penal e a le- audiência de custódia e a visibilidade invertida da vítima
nos casos de violência doméstica. Rev. Direito e Práx., Rio
gítima proteção das mulheres vítimas da violên-
de Janeiro, Vol. 11, N. 02, 2020, p. 1238-1274.
cia. Não basta dimensionar os riscos, é preciso
uma atuação conjunta e coordenada de enfren-
tamento a violência de gênero, a fim de fomen- MARIA BRITO ALVES
tar programas que viabilizem o acolhimento,
formação de profissionais que atuam no sistema Mestranda em Direito Cons-
de justiça, bem como políticas públicas especí- titucional pelo Instituto Bra-
ficas de saúde, educação, trabalho e combate às sileiro de Ensino, Desenvolvi-
desigualdades de gênero. mento e Pesquisa- IDP (DF).
Nesta senda, a dimensão do risco apresen- Pós-Graduada Lato Sensu
ta-se como estratégia potente e capaz de possi- em Ciências Criminais (2016) pela Faculdade Baiana
bilitar a elaboração de ferramentas que viabili- de Direito. Advogada.
zem a incidência adequada da Lei 11.340/06, não
se restringindo à construção de formulários, mas

32
Artigos

DISCIPLINA NO CÁRCERE: A PUNIÇÃO POR FALTA GRAVE PELA


POSSE, UTILIZAÇÃO OU FORNECIMENTO DE APARELHO CELULAR
Por Juliana Sanches

No ensino jurídico, pouco se discute sobre institucional de conflitos entre os agentes esta-
Execução Penal. Em regra, não há oferta da dis- tais e os presos.
ciplina como obrigatória nas grades curricula- No decorrer da análise dos registros de
res dos cursos de direito, tampouco como dis- 280 processos disciplinares administrativos, co-
ciplina optativa. Isso demonstra o desinteresse mumente chamado pelos atores do sistema de
em relação ao ensino da execução da pena no justiça no Estado do Rio de Janeiro de CTC (por
país que ostenta a terceira maior população ser a sigla de Comissão Técnica de Classificação,
carcerária do mundo, no contexto crescente de órgão responsável pelo julgamento dos proces-
encarceramento em massa da população negra sos disciplinares), uma das principais modalida-
(BORGES, 2019). des de falta grave encontradas são as faltas por
No âmbito da Execução Penal, a existência posse, utilização ou fornecimento de aparelho te-
de deveres a serem cumpridos na unidade prisio- lefônico, que permita a comunicação com outros
nal nos leva ao tema da disciplina. A Lei de Exe- presos ou com o ambiente externo (art. 50, inciso
cução Penal estabelece que a disciplina, durante VII, da LEP).
a execução da pena, consiste na colaboração com A alteração legislativa promovida pela Lei
a ordem, na obediência às determinações das au- nº 11.466/2007, que a incluiu a modalidade de
toridades e seus agentes e no desempenho do falta grave por uso de celular no sistema pri-
trabalho (art. 44, caput, da LEP). sional, tinha como propósito primordial con-
Em caso de violação das normas, a pessoa ter a comunicação entre presos e o ambiente
presa tem registrada sua falta disciplinar, que externo, a fim de evitar a prática de atividades
pode ser leve, média ou grave. As faltas graves delitivas. Esperava-se controlar as articulações
estão previstas no rol taxativo do art. 50, da LEP. de facções criminosas que ocorriam dentro dos
Apesar disso, mesmo quando faltas médias ou presídios, especialmente pelo Primeiro Coman-
leves são aplicáveis, muitas ações são enqua- do da Capital (PCC), em São Paulo (GIAMBERAR-
dradas como faltas graves, em razão de arbitra- DINO, 2019).
riedades tidas como aceitáveis na execução da No entanto, o que vemos nos processos
pena. O controle institucional prisional é exerci- disciplinares para apurar essa prática são puni-
do pelo diretor do estabelecimento penal, que é ções por falta grave pela posse de peças de ce-
a autoridade administrativa detentora do poder lulares que não oferecem qualquer possibilidade
disciplinar (art. 47, da LEP). de comunicação efetiva com o ambiente ex-
A relevância do estudo sobre faltas disci- terno. Essas apreensões acontecem a partir de
plinares de natureza grave decorre dos sérios depoimentos em que os presos não confessam
impactos na execução na pena, pois as possíveis a posse dos itens e a autoridade administrativa
sanções aplicáveis ultrapassam a esfera admi- não se incube em comprovar a posse.
nistrativa, sem que haja a devida fiscalização dos É comum verificar na lavratura da parte
atos pelo Poder Judiciário. As sanções judiciais disciplinar pelo policial penal situações como
por falta grave acarretam a regressão de regime, esta: “após revista geral na cela, logrou-se êxi-
a perda de dias remidos, além da interrupção da to em apreender cadernos e folhas contendo
contagem do prazo para fins de progressão de várias anotações assim como um fone de ou-
regime, com o novo cálculo do remanescente a vido”. A partir do registro, o preso é enca-
partir da data da prática de falta grave. minhado à Delegacia de Polícia para registro
Nesse contexto, o presente ensaio busca de ocorrência de suposta prática do crime
apresentar resultados preliminares da pesquisa previsto no art. 349-A, do Código Penal (in-
empírica realizada para escrita da minha disser- gressar, promover, intermediar ou facilitar a
tação de mestrado, que se dedica a compreen- entrada de aparelho telefônico de comunica-
der o impacto da punição por prática de falta ção móvel, de rádio ou similar, sem autoriza-
disciplinar de natureza grave, a partir da análi- ção legal, em estabelecimento prisional), bem
se das dinâmicas de resolução de administração como é conduzido posteriormente ao isola-

33
Artigos

mento para aguardar as medidas cabíveis. No cidade da conduta, mas não há combate efetivo
seu termo de declaração, o preso afirma que da infração de posse de aparelho telefônico no
os itens “não eram” seus e que “não sabe como interior das unidades prisionais (GIAMBERAR-
foram parar em sua comarca, já que tem 160 DINO, 2019).
(cento e sessenta) internos na cela”. Decisão recente do Superior Tribunal de
Em outra situação, o policial penal relata Justiça considerou atípica a conduta de ingres-
na ocorrência que “foi encontrado embaixo de sua sar em estabelecimento prisional com chip de
comarca um celular da marca Alcatel com bateria celular (art. 349-A, do CP). Essa decisão do STJ,
e sem chip”. Ao negar a posse do celular, o preso pautada na proteção da legalidade, traz oti-
afirma que “quando houve a geral a cadeia estava mismo de que este entendimento se estende-
aberta e o celular não é de minha propriedade e rá ao regime das faltas graves previstas na Lei
não sei dizer como o celular foi parar na minha de Execução Penal, especialmente em relação
comarca porque no momento da apreensão não à conduta de posse de chip ou qualquer outro
estava nem na galeria, estava na quadra de fu- acessório de aparelho telefônico, consideran-
tebol junto com os outros internos”. Nesse caso, do que o princípio da legalidade também deve
fica evidente a insuficiência probatória quanto à ser aplicado no dinâmica prisional durante a
autoria, pois o celular sequer foi encontrado na execução da pena (FIGUEIREDO; FERNANDES;
posse direta do preso, mas, sim, no contexto de CUNHA, 2021).
celas superlotadas. É necessário, então, olhar atento à ques-
Nesse sentido, a pesquisadora Camila Dias tão da disciplina na prisão, pois são episódios
aponta ainda que, nas faltas por posse de apare- mal administrados em razão da discricionarie-
lho telefônico, muitas vezes a responsabilidade dade da autoridade administrativa, que geram
pela posse de objetos proibidos é definida pe- decisões arbitrárias com grave impacto na vida
los presos em rápidas deliberações, para ao final do preso. A punição por falta grave prolonga o
apresentar um “culpado” ao agente penitenci- tempo de permanência do preso em regime fe-
ário, e não há qualquer mecanismo de contra- chado (mais gravoso), no contexto de superlo-
prova ou busca por evidência pelos agentes pe- tação de todas as unidades prisionais do Estado
nitenciários. Constata-se, então, a necessidade do Rio de Janeiro.
de identificar um culpado, ainda que distante da E não podemos deixar de destacar o cará-
legalidade e da justiça (DIAS, 2014). ter racializado da punição, no sistema de justiça
Cabe destacar que são casos nos quais os criminal como um todo, e particularmente na
itens apreendidos – por si só – impossibilitam execução penal. A análise dos procedimentos
qualquer comunicação com o meio externo e disciplinares demonstra que o fato de a maioria
eventual articulação criminosa. Apesar da ine- da população penitenciária ser negra reflete na
xistência de lesividade da conduta e do flagrante desconsideração dos direitos dos presos, tanto
desrespeito ao princípio constitucional da le- quando se estabelecem as condutas puníveis,
galidade, tais condutas são punidas pela auto- quanto na forma que são punidas e na quantida-
ridade administrativa, com evidente prejuízo ao de que se apresentam diariamente nas unidades
preso (ROIG, 2018, p. 239). Isso acontece com a prisionais.
chancela do entendimento majoritário do Supe-
rior Tribunal de Justiça no sentido de que a pos- REFERÊNCIAS
se de celular sem chip ou a posse de qualquer
BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo
outro componente há de configurar falta grave,
Horizonte: Letramento, 2018.
já que entender em sentido contrário permitiria DIAS, Camila Caldeira Nunes. Disciplina, controle social e
a entrada fracionada do celular, sendo agrupada punição: o entrecruzamento das redes de poder no espaço
apenas quando necessário (STJ HC 297150/SP; prisional. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 29,
HC 292460/RS; HC 228044/SP). nº 85, junho/2014, p. 113-223.
Pesquisas apontam que, no ambiente pri- FIGUEIREDO, Daniel Diamantaras; FERNANDES, João
Gustavo; CUNHA, Leonardo Rosa Melo. Posse de chip
sional, trata-se apenas da gestão de ilegalismos
de celular e falta grave: seguindo o viés decisório do
e não da promoção efetiva da legalidade, por- STJ. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2021-
que há a preocupação em punir a infração de mai-25/tribuna-defensoria-posse-chip-celular-falta-
posse de aparelho telefônico, mesmo em casos grave-seguindo-vies-decisorio-stj-hc-619776df#author>
de insuficiência de provas de autoria ou atipi- Acesso em 25 de maio de 2021.

34
Artigos

GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Gestão de ilegalismos


JULIANA SANCHES
e o teatro da disciplina: os casos de falta grave por posse,
utilização ou fornecimento de celular em uma unidade pri-
sional de Curitiba/PR no ano de 2017. Revista de Estudos Advogada Criminalista. Mes-
Empíricos em Direito, vol. 6, nº 2, agosto 2019, p. 58-77. tranda em Sociologia e Direi-
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crí- to pela PPGSD/UFF. Coorde-
tica. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. nadora Estadual do IBCCRIM
no Rio de Janeiro. Coordena-
dora Pedagógica do Instituto de Defesa da Popula-
ção Negra (IDPN).

Respiro

Charge por: Gilmar @cartunista_das_cavernas

35
ENTREVISTA

Múltiplos Olhares parece não encontrar coerência com o sistema


de proteção judicial dos direitos fundamentais
estabelecido na Constituição. Na minha com-
preensão, são necessários ajustes para possibi-
litar a transparência e o controle das decisões
dos jurados. Não vejo dificuldades para que seja
exigido dos jurados manifestação acerca das
razões pelas quais venham a considerar um
réu inocente ou culpado. Isto pode acontecer
de forma sem que haja exposição dos jurados,
como, por exemplo, com a reformulação da
quesitação.

Ainda no contexto do Tribunal do Júri


e considerando a recente decisão do
STF sobre a legítima defesa da honra,
qual a opinião do senhor sobre a limitação
apriorística de apresentação de teses em
plenário que tenham potencial de lesa-hu-
Dr. Fabio Esteves manidade? Fere a plenitude de defesa?
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Dis-
trito Federal e Territórios (TJDFT). Doutoran- DR. FABIO ESTEVES Não fere a plenitude de de-
do em Direito pela Universidade de São Paulo fesa! A Constituição é clara ao não admitir quais-
(USP). Mestre em Direito de Estado pela Uni- quer atos que violem a dignidade da pessoa. É
versidade de Brasília – UNB. Especializando em necessário pensar que os direitos fundamentais
Direito Constitucional pela ABDConst. Gradu- proíbem proteção deficiente. Admitir sustenta-
ado em Direito pela Universidade Estadual de ção de defesa com argumentos que reproduzem
Mato Grosso do Sul. Professor da Escola da a histórica e sistemática desigualdade entre ho-
Magistratura do Distrito Federal. Co-fundador mens e mulheres, especialmente com a chancela
do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Ne- de atos violentos, não coaduna com o princípio
gros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas da igualdade e todo o sistema de proteção dos
e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de direitos fundamentais. O devido processo legal
Discriminação - FONAJURD, Presidente da Co- assegura não apenas a proteção dos sujeitos
missão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, processuais, mas dos outros bens jurídicos en-
foi Presidente da Associação dos Magistrados volvidos titularizados por terceiros.
do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios
de 2016-2018 e 2018-2020. Qual é o panorama atual do Poder

1
Judiciário constatado a partir das
Dada a sua atuação na Vara Criminal e discussões nos eventos Encontro Na-
de Tribunal do Júri do Distrito Federal, cional de Juízes e Juízas Negros (Enajun) e
indagamos: Por qual motivo o institu- Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o
to do júri conta com críticas e críticos tão Racismo e todas as formas de Discrimina-
severos? E qual é a opinião do sr. acerca do ção (Fonajurd)?
modo de funcionamento atual do Tribunal
do Júri no Brasil? DR. FABIO ESTEVES O panorama atual é de
avanços. O Coletivo requereu a criação de Gru-
DR. FABIO ESTEVES A principal crítica se dirige po de Trabalho no âmbito do Conselho Nacional
contra a falta de controle das decisões dos jura- de Justiça, que redundou no relatório Igualda-
dos, que são proferidas sem motivação e de for- de Racial no Judiciário, elaborado com a parti-
ma secreta. Em um Estado de Direito, em que o cipação de membros do ENAJUN. O documento
devido processo legal é uma máxima para que apresenta sugestões de políticas públicas para,
alguém tenha a liberdade e bens restringidos, entre outras ações, aumentar a efetividade da
a forma como se procede no tribunal do júri política de cotas para acesso aos cargos da ma-

36
Entrevista: Múltiplos Olhares

gistratura. A Escola Nacional de Formação de der de forma limitada os conflitos oriundos das
Magistrados tem oferecido para os magistrados “experivivências” sociais. O encarceramento em
formação sobre questões raciais. Os tribunais massa é fruto de decisões políticas que (têm) a
têm instituído, nas suas estruturas, órgãos para raça e a pobreza como fatores determinantes.
promoção da redução das desigualdades raciais. Sem a compreensão destes fatores, o Judiciário
As associações de juízes têm criado espaços para chancela e reproduz a seletividade penal racia-
promoção de debates e ações que visam tornar a lizada.
magistratura mais plural. Há muitas transforma-

5
ções positivas em curso. Qual a importância dos trabalhos da

4
Comissão de Juristas (atualmente
De acordo com o Censo do CNJ de em atividade na Câmara dos
2018, somente 18,1% da magistratura Deputados) para a construção de uma
brasileira era composta por pessoas justiça antirracista no Brasil?
negras. Por outro lado, a maioria da
população carcerária brasileira (cerca de DR. FABIO ESTEVES A Comissão de Juristas é um
66%, de acordo com o INFOPEN, 2019) é marco no parlamento brasileiro. Primeiro por-
negra. Em que medida essa distinção entre que reconhece não apenas o protagonismo dos
o perfil do julgador e do julgado influencia negros, como a sua intelectualidade para a dis-
no encarceramento em massa no Brasil? cussão das questões legislativas que os afetam.
A Comissão tem a missão de aperfeiçoar o siste-
DR. FABIO ESTEVES Não é o caso de afirmar que ma normativo de promoção da igualdade racial
juízes brancos julgam com menos qualidade do de maneira estrutural, no âmbito da segurança
que juízes negros, mas é fato que um sistema de pública, no sistema de justiça criminal, no que
justiça que não é plural termina por compreen- tange a direitos sociais, dentre outras esferas.

Respiro

Charge por: Alexandre Beck @tirinhadearmandinho

37
Memorial de 80
Anos do Código
de Processo Penal

Civilização, fascismo e modernização:


O Código de Processo Penal e a
Distribuição da Cidadania no Brasil
Por Eduardo Ribeiro Santos

Passados oitenta anos da edição do Có- ção de memórias e símbolos da escravidão, nos
digo de Processo Penal brasileiro, nos foi dado prognósticos e planos para o futuro da nação”
o desafio de tecer breves comentários em tor- (SCHWARCZ, 1993).
no de questões fundamentais daquele período, As diversas disputas que se davam naquele
que ora nos servem para pensar o Brasil até o período sobre os sentidos sociais e políticos da
momento presente, no que diz respeito à for- cidadania, em especial, que “tipo de cidadania”
ma de executar e pensar a pena, a justiça e o poderia ser alcançada à “população de cor”, vi-
crime, conceitos produzidos nos “quintais das nham no bojo de um processo que reunia ele-
Casas Grandes”, nos séculos que antecederam mentos de um emancipacionismo paternalista,
sua formulação. Princípios também conectados um “liberalismo econômico à brasileira”, com ins-
com um tipo de pensamento social que incor- pirações autoritárias, e articuladas com o medo
porava uma ideia de “modernização” de con- das elites políticas de possíveis desdobramentos
ceitos e regras, dentre as quais, a valorização do fim da escravização formal, que acirrassem as
social da pena. já vividas disputas raciais. O recrudescimento de
A modernização brasileira e a viabilidade da códigos que viabilizassem o controle social-ra-
“nação” pós-escravista passariam a ser o cená- cial era parte central da ideia de viabilidade da
rio de disputas narrativas, imersas na influência nação pós-escravista.
do racismo científico e das noções que fundam A construção de um aparato discursi-
a escola de eugenia no Brasil, onde os estudos vo-jurídico que se desenvolve na primeira
de antropologia criminal e o direito penal come- metade do século XX, intimamente ligado a
çam a ganhar destaque no país. É uma novíssima questão nacional da “ordem social”, antecipa a
etapa na elaboração de um projeto “civilizador”. construção da figura do “criminoso” ao crime,
As três últimas décadas do século XIX, período e inclusive sob recursos diversos, como a sua
ímpar para a consolidação do pensamento repu- patologização pelo uso de entorpecentes, por
blicano brasileiro, foram articuladas, “geralmen- exemplo, a partir do decreto nº 20.930/1932, e
te de maneira velada, práticas baseadas na ideia emergem como dispositivos aqui identificados
de raça [que] foram se fazendo notar nos deba- como empreendimentos de distribuição/res-
tes jurídicos, nas decisões políticas, na constru- trição de cidadania a partir da reconfiguração

38
Memorial de 80 anos do Código de Processo Penal

do controle da liberdade, bem como da explo- o reforço do indivíduo, sua responsabilidade


ração do trabalho. pessoal, e a atuação de um grupo orientado por
A emergência dos regimes autoritários condições biológicas singulares (racismo cientí-
na Europa (Hitler, na Alemanha e Mussolini, fico), neste manejo de teorias no terreno move-
na Itália), e no Brasil da ditadura de Getúlio diço das relações pós-escravistas brasileiras, é
Vargas, é de onde emerge uma constituição que iremos encontrar as matérias puníveis pelo
com inspirações notadamente fascistas, co- novo modelo penal no Brasil.
nhecida como a Constituição Polaca, em 1937, Passados esses oitenta anos, e imersas que
para atender, conforme seu próprio preâm- estamos, em um contexto de reforço do autori-
bulo, “ao estado de apreensão criado no País tarismo, e de aprofundamento de ideias fascis-
pela infiltração comunista, que se torna dia tas, nunca abolidas de fato, nos impõe a necessi-
a dia mais extensa e mais profunda, exigindo dade de se pensar a condição sine qua non para
remédios, de caráter radical e permanente”. a existência da democracia, a sua condição uni-
A elaboração do Código de Processo Penal versalizante, ao que só se realiza e assim pode
brasileiro de 1941, este que ora vigora, tem ins- se denominar, quando ao alcance de todas as
piração na codificação processual penal italiana pessoas. Não há democracia pela metade, como
sob regime fascista. Ali, alguns nítidos aspectos não há pretensões fascistas que não busquem
autoritários, como a presunção de culpabilidade, se realizar por inteiro.
ou seja, o acusado era tratado como potencial
culpado, em que, na primeira redação, a senten- REFERÊNCIAS
ça absolutória não era por si suficiente para re-
CABRAL, Thiago. As raízes do autoritarismo no Código de
estabelecer a liberdade do réu, observado o grau
Processo Penal de 1941. Canal Ciências Criminais (online),
da infração penal (antigo art. 596, CPP). Ademais, 2019. Disponível em: https://cutt.ly/wnk8baB. Acesso em:
previa-se ainda que, a partir de uma denúncia, 28. mai. 2021
era passível a decretação automática e obrigató- FUCILINI, Diego Castilho. As Origens Fascistas do Código
ria da prisão preventiva do acusado (antigo art. de Processo Penal de 1941. Justificando (online), 2020.
312, CPP). Disponível em: https://cutt.ly/Rnk8Op1. Acesso em: 28.
mai. 2021
A Lei Processual Penal de 1941, que deveria
FLAUZINA, Ana L. P. As fronteiras raciais do genocídio. In
proteger o cidadão dos abusos estatais, em que Revista de Direito da Universidade de Brasília.
condenações penais deveriam ser fundamenta- SANTOS, Eduardo Ribeiro. Controle, vigilância e punição
das, com provas obtidas de forma legal, compro- - Discursos criminológicos e narrativas raciais na restrição
vando-se autoria e materialidade, e ainda, em de entorpecentes no Brasil. In: OLIVEIRA, Cristiane … [et
respeito à dignidade humana, é na verdade uma al] Segregações, violências e subjetivações. 1. ed. Rio de
Janeiro: REVAN, 2020.
carta de persecução criminal a todo custo, cujas
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,
inúmeras alterações posteriores não consegui- instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São
ram superar de fato. Paulo, Cia das Letras, 1993.
Na atuação de um regime de controle e
punição em uma convivência paradoxal entre

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IBADPP realiza
C U R SO R E CO N H EC I M E NT O
DE P E S S OA S N O
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