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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

SER NEGRA NA SOCIEDADE


PANDÊMICA

www.editoraexpressaofeminista.com.br
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

LAURINDA FERNANDA SALDANHA SIQUEIRA


MAYNARA COSTA DE OLIVEIRA SILVA

SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

1.ª edição

SÃO LUÍS/MA
EDITORA EXPRESSÃO FEMINISTA
ABRIL - 2021
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

Não basta não ser racista, é necessário ser antirracista

Angela Davis
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

Os conteúdos dos capítulos são de responsabilidades das autoras.

Edição, projeto gráfico, capa e diagramação: Maynara Costa de Oliveira Silva.

Revisão: Laurinda Fernanda Saldanha Siqueira.

Conselho Editoral da Editora Expressão Feminista:

Profa. Ma. Ademilde Alencar Dantas de Medeiros Neta (UFRN); Profa. Dra.Elaine Ferreira do Nascimento
(FIOCRUZ-PI); Profa. Ma. Emilly Mel Fernandes de Souza (UFRN); Profa Ma.Joely Coelho Santiago
(UFR); Prafa. Dra. Laurinda Fernanda Saldanha Siqueira (IFMA); Profa. Ma. Maynara Costa de Oliveira
Silva (UFMA); Profa. Ma. Muranna Silva Lopes (UFMA); Profa. Ma. Regina Alice Rodrigues Araujo Costa
(UFPE); Profa. Ma.Renata Caroline Pereira Reis (UNESA); Profa. Dra.Thayane Cazallas do Nascimento
(MMM).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ser negra na sociedade pandêmica [livro eletrônico] / organização Laurinda Fernanda Saldanha
Siqueira, Maynara Costa de Oliveira Silva. -- 1. ed. -- São Luís, MA: Editora Expressão
Feminista, 2021. PDF

Bibliografia
ISBN 978-65-993672-6-7

1. Desigualdades - Brasil 2. Discriminação racial 3. Negras - Identidade racial - Brasil 4.


Pandemia 5. Racismo 6. Racismo - Aspectos sociais 7. Sociologia I. Siqueira, Laurinda
Fernanda Saldanha. II. Silva, Maynara Costa de Oliveira.

21-62543 CDD-305.8
Índices para catálogo sistemático:
1. Desigualdades de gênero: raça, etnia: Pandemia: Ciências sociais 305.8
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 1
CAPÍTULO 1 A PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL E A POPULAÇÃO NEGRA: A GESTÃO
DA NECROPOLÍTICA .......................................................................................................................... 2
CAPÍTULO 2 ALISAR POR QUÊ? SAÚDE E IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DOS CABELOS.. 13
CAPÍTULO 3 IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 PARA AS TRABALHADORAS
DOMÉSTICAS NEGRAS NO BRASIL: UM ENSAIO SOBRE O RACISMO E A DESIGUALDADE
SOCIAL NA CLASSE TRABALHADORA BRASILEIRA ................................................................ 22
CAPÍTULO 4 GESTANTES NEGRAS E A COVID-19: DA (DES)ASSISTÊNCIA AO PRÉ-NATAL
ÀS CONSEQUÊNCIAS DA DOENÇA ................................................................................................ 34
CAPÍTULO 5 DESIGUALDADES E PRECONCEITOS SOBRE O CORPO NEGRO DENTRO DA
ESFERA NECROPOLÍTICA ............................................................................................................... 42
CAPÍTULO 5 MULHER EM FOCO: A MÚSICA AFRO-BRASILEIRA E A LUTA PELO
PROTAGONISMO FEMININO NOS TAMBORES ........................................................................... 58
CAPÍTULO 6 A PANDEMIA DA COVID-19 E A INTENSIFICAÇÃO DAS DESIGUALDADES
RACIAIS NO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO: UM RETRATO “PRETO E BRANCO”
............................................................................................................................................................... 68
CAPÍTULO 7 A COVID-19 REVELANDO A COR DO FEMINICÍDIO .......................................... 83
CAPÍTULO 8 IRACEMA: UMA FAKE NEWS MITOLÓGICA, MISÓGINA E RACISTA ........... 95
SOBRE AS ORGANIZADORAS……………………………………………...…………………………109
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APRESENTAÇÃO
Em algum momento se decretou a abolição, mas não a
exploração. Somos um corpo encarcerado - em massa, quando não
assassinado. Estatísticas, estático no chão o corpo tem cor e
localização.
O livro propõe um debate acerca dos ser mulher e negra durante
a pandemia. Reúne trabalhos de pesquisadoras das cinco regiões do
país, que buscam mais que expor resultados teóricos e analíticos,
denunciar os corpos mortos na pandemia, a vida precarizada e não
reconhecidas em sua maioria se constitui de mulheres negras e
periféricas. Não é normal, mas é comum, é ordinário, diário.
Repintemos, isso não é normal, eles querem que seja, mas não
deixaremos, não iremos nos calar: Nossas vidas são importantes e
nossas mortes também! Mulheres do Brasil, uni-vos!

Boa leitura!

As organizadoras, abril de 2021.


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

CAPÍTULO 1
A PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL E A
POPULAÇÃO NEGRA: A GESTÃO DA
NECROPOLÍTICA

KAROLINE ALVES DO NASCIMENTO1

INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19 no Brasil não afeta a todos igualmente. As estatísticas


demonstram que a população negra é a que mais sofre com as implicações decorrentes da crise
sanitária, política, social e econômica que vivemos neste momento. Seja pelo fato de que os
recentes dados demonstram que a população negra é a que mais morre, seja pelo desemprego,
pela fome e pelas inúmeras dificuldades que decorrem não só do coronavírus, mas de uma
gestão política que intensificou o caos no país e de um passado colonial e escravocrata
brasileiro que contribui para a extrema desigualdade existente.
Assim, neste artigo, objetivo analisar em que medida estas estatísticas, da população
negra na pandemia, se relacionam com uma gestão política que está voltada para a morte,
definida pelo filósofo camarônes, Achille Mbembe, com o termo necropolítica.
A metodologia empregada no artigo é a da revisão bibliográfica, com a utilização de
livros, artigos e ensaios que relacionam os temas que pretendo articular aqui: colonização,
escravidão, racismo, desigualdade social e uma gestão política voltada para a morte, que tem
como alvo privilegiado a população negra e pobre do país, e que se intensifica no contexto da
pandemia. Trago também algumas estatísticas sobre a população negra durante a pandemia de
COVID-19 no Brasil.
No primeiro ponto analiso a desigualdade racial no Brasil. O Brasil foi formado com
base em um regime colonial e escravocrata. A abolição da escravidão no país não pode ser
encarada como um marco de transformação da sociedade brasileira, pois sua racionalidade

1
Mestranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
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3
persistiu. Este passado é extremamente relevante para entendermos o que acontece no presente
e, mais especificamente, o motivo pelo qual alguns sujeitos são subjugados, ainda hoje, a um
poder político de morte.
No segundo ponto, trago alguns dados e estatísticas sobre a pandemia no Brasil.
Pretendo levantar a discussão de como a crise sanitária não afeta a todos igualmente e aflige
muito mais determinados grupos sociais.
Por fim, no último ponto, trato diretamente da teoria do filósofo camarões Achille
Mbembe, para refletir como esta teoria pode revelar o projeto político em andamento no país,
que se relaciona com o nosso passado e se intensifica no presente. Portanto, concluo com este
artigo que há em andamento no país um projeto político que dita quem pode viver e quem deve
morrer e, nesse sentido, a população negra é o alvo desta política de morte durante a pandemia
de COVID-19.

A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL

A história do Brasil é atravessada pela raça. Não é possível pensar na história brasileira
sem resgatar a violência e o extermínio de povos indígenas e, posteriormente, de pessoas negras
que foram escravizadas para a tentativa de réplica no país de um modelo de “civilização”
europeu. Este passado, tão arraigado na nossa sociedade, possui diversas implicações no
presente, de modo que também enfatizo não ser possível pensar no presente sem olhar para o
nosso passado. Por isso, objetivo aqui resgatar alguns marcos da questão racial no Brasil (sem
esgotá-los, pois, conforme mencionado anteriormente, a raça faz parte de toda a história do
país) para, posteriormente, verificar como esse passado se vincula a atual situação de crise
sanitária e política existente no país. Pensar em como o Estado brasileiro lida com esta
pandemia é voltar a este passado para entender quais vidas são, desde o início, relegadas a uma
morte-em-vida2.
Assim, se como dito, a raça está presente desde a constituição do país, com a
subjugação e o extermínio dos povos que aqui viviam originariamente, esta tentativa de matar
e subjugar continuou e se perpetuou durante toda a constituição do Estado brasileiro.

2
O termo morte-em-vida é uma expressão cunhada pelo filósofo, historiador e cientista político
camaronês, Achille Mbembe, quando este trata da escravidão e qualifica a vida do escravo como uma
“morte-em-vida”. Analiso a compreensão de Mbembe sobre uma gestão política voltada para a morte,
que tem como base textual o ensaio Necropolítica (2018), no terceiro e último ponto deste artigo.
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4
Desse modo, a ocupação territorial no Brasil colonial, e posteriormente no Império, é
marcada pela profunda desigualdade na distribuição de terras, gerando os grandes latifúndios,
uma sociedade escravocrata e uma economia baseada na monocultura. Essas características,
que definem tão bem a sociedade e a economia brasileira no período colonial e imperial,
influenciaram a ocupação territorial do país e significativamente a ocupação das cidades, que
surgiram de forma mais expressiva com o grande processo de urbanização apenas no século
XIX no Brasil (CARVALHO, p. 18-20, 2002).
A Colônia, instaurada por Portugal, visava atender interesses mercantilistas e gerar
lucros, produzindo para o mercado externo, o que só era possível através da monocultura em
grandes extensões de terra, exigindo uma vultosa quantidade de mão-de-obra. A distribuição
das terras por parte da Coroa gerou os grandes latifúndios que só eram concedidos àqueles que
guardavam relacionamento e interesses com a Coroa, em um claro esquema de favores e
privilégios, que se repetiu durante grande parte da história do país.
A escravização surgiu como a solução para um regime que pretendia submeter pessoas
ao trabalho forçado e, ao mesmo tempo, transformar essas mesmas pessoas em objetos, em
propriedades privadas. Assim, a mentalidade escravocrata não submetia apenas a pessoa
escravizada à condição de meio de produção e de trabalho, mas também à condição de
mercadoria, fonte de renda e investimento, o que, como se sabe, permitia a troca, o aluguel, a
venda de pessoas (CARVALHO, p. 18-30, 2002).
A abolição da escravidão no Brasil sofreu forte resistência. A pressão da Inglaterra
para a abolição da escravidão no país, em que pese um suposto argumento humanista, tinha
fundamentos em interesses capitalistas advindos da recente Revolução Industrial. A proibição
de tráfico de escravos se deu em 1850, mas a abolição efetiva da escravidão no Brasil só ocorreu
muito tempo depois, em 1888, demonstrando esta resistência.
Contudo, ainda que este tenha sido um marco legal no país, sabe-se que a maioria das
pessoas que foram escravizadas permaneceram nas fazendas, mas, desta vez, recebendo
salários irrisórios e ficando presas a um sistema de consumo. Aqueles que fugiam das mazelas
do campo e buscavam melhores condições de vida nas cidades sofriam com a segregação e as
reformas sanitárias dos governos brasileiros, que visavam eliminar pessoas indesejáveis. Os
mais pobres, as pessoas que foram escravizadas e buscavam novas oportunidades nas cidades
brasileiras, passaram a ocupar as cidades do seu próprio modo: através da autoconstrução de
residências em periferias e favelas. Assim, José Murilo de Carvalho, ao analisar a formação da
cidadania no Brasil, conclui:
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No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem
5
empregos. Passada a euforia da libertação, muitos ex-escravos regressaram a
suas fazendas, ou a fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo
salário. Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda
viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados
escravos. Outros dirigiram-se às cidades, como o Rio de Janeiro, onde foram
engrossar a grande parcela da população sem emprego fixo. Onde havia
dinamismo econômico provocado pela expansão do café, como em São Paulo,
os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados
pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país. Lá, os
ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais
mal pagos. As consequências disso foram duradouras para a população negra.
Até hoje essa população ocupa posição inferior em todos os indicadores de
qualidade de vida. É a parcela menos educada da população, com os empregos
menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social.
(CARVALHO, 2002, p. 52)

Após a abolição da escravidão no país que, como mencionado anteriormente, pode ser
considerada uma libertação apenas no plano formal, o debate sobre a raça se intensificou. Neste
sentido, data desta época o engajamento da teoria do mito da democracia racial. Gilberto
Freyre, com o livro Casa grande e Senzala, publicado em 1933, é considerado expoente dessa
teoria, que visava desconstruir a ideia de que o Brasil é um país racista, ao afirmar uma pretensa
igualdade entre negros e brancos no país, decorrente da miscigenação que, nesta percepção,
anulava as diferenças raciais. Nesse sentido, atento aos problemas do mito da democracia
racial, Florestan Fernandes já denunciava:

Não existe democracia racial efetiva, onde o intercâmbio entre indivíduos


pertencentes a ‘raças’ distintas começa e termina no plano da tolerância
convencionalizada. Esta pode satisfazer às exigências do bom-tom, de um
discutível ‘espírito cristão’ e da necessidade prática de ‘manter cada um no
seu lugar’. Contudo, ela não aproxima realmente os homens senão na base da
mera coexistência no mesmo espaço social e, onde isso chega a acontecer, da
convivência restritiva, regulada por um código que consagra a desigualdade,
disfarçando-a e justificando-a acima dos princípios de integração da ordem
social democrática. (FERNANDES, 1960, p. XIV)
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Importante ressaltar que as diversas violências e opressões sentidas pelas pessoas
negras e pobres no Brasil não foram praticadas sem resistência e luta por parte desses grupos
historicamente subalternizados. Assim, no que diz respeito a população negra, esta criou
movimentos de mobilização racial em alguns estados do país. Estes movimentos, inicialmente,
possuíam caráter assistencialista, recreativo e/ou cultural e algumas até mesmo se constituíram
como uma forma de entidade sindical, por reunirem determinadas classes de trabalhadores
negros da época. Posteriormente, estes movimentos tomaram um viés político 3. Portanto, o
movimento negro no Brasil resistiu e resiste até hoje, mesmo diante da brutalidade, do terror
imposto.
Ainda assim, mesmo com toda a resistência empreendida pelos movimentos sociais,
o passado colonial e escravista brasileiro é o ponto de partida das diversas violações e
violências que a população negra sofre ainda hoje no país, de modo que os resquícios desta
mentalidade e deste sistema permanecem e têm reflexos no presente. As estatísticas referentes
as pessoas negras no país demonstram essa perpetuação do passado. Apenas a título
exemplificativo, cabe mencionar aqui que a população negra compõe o maior percentual entre
as pessoas mais pobres do país4. Do mesmo modo, a população carcerária no Brasil é, em sua
maioria, negra5. O Mapa da Violência, realizado pela última vez em 2014, diagnosticou que

3
Segundo Petrônio Domingues, a história do Movimento Negro no Brasil é composta de três fases distintas: a
primeira fase, entre 1889-1937 da Primeira República ao Estado Novo, buscava transformação nas condições
desfavoráveis a qual estava submetida a população negra, logo após a abolição formal da escravidão. Por isso o
movimento se caracterizava muito mais por ações assistencialistas, recreativas e/ou culturais. Data desta época
também a criação no país da Imprensa Negra. Esta reunia meios de comunicação liderados por pessoas negras e
voltados para a denúncia contra a segregação racial. Em 1931 cria-se em São Paulo a Frente Negra Brasileira e
esta organização passa a pautar suas ações com caráter mais político. Na segunda fase do Movimento Negro no
Brasil, durante o Estado Novo, havia intensa repressão política, o que dificultou o surgimento e desenvolvimento
de movimentos sociais que questionassem o regime. Após a ditadura, o Movimento Negro ressurgiu e expandiu
seus objetivos, dado a permanência da dificuldade dos negros no mercado de trabalho, da marginalização no
espaço e dos preconceitos e estereótipos contra a população negra, surgindo em 1943, a União dos Homens de
Cor (UHC) que trabalhava no estímulo a debates na imprensa local, publicação em jornais próprios, prestando
assistência jurídica e médica, disponibilizando aulas de alfabetização, voluntariado e participação em campanhas
eleitorais. O golpe de 1964 culminou com o retrocesso das lutas empreendidas pelo Movimento Negro no país.
Os militares acusavam os movimentos de denunciar um racismo que inexistia no Brasil. É apenas no final da
década de 1970 que se reestrutura a discussão antirracista e ressurgem movimentos populares, sindicais e
estudantis voltados para a população negra, caracterizando a terceira fase do Movimento Negro brasileiro
(DOMINGUES, 2007).
4
Informação disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/11/13/percentual-de-
negros-entre-10-mais-pobre-e-triplo-do-que-entre-mais-ricos.htm. Acesso em 11 mar. 2021.
5
“Segundo dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária (InfoPen), os jovens representam 54,8% da
população carcerária brasileira. Em relação aos dados sobre cor/raça verifica-se que, em todo o período analisado
(2005 a 2012), existiram mais negros presos no Brasil do que brancos. Em números absolutos: em 2005 havia
92.052 negros presos e 62.569 brancos, ou seja, considerando-se a parcela da população carcerária para a qual
havia informação sobre cor disponível, 58,4% eram negra. Já em 2012 havia 292.242 negros presos e 175.536
brancos, ou seja, 60,8% da população prisional era negra. Constata-se, assim, que quanto mais cresce a população
prisional no país, mais cresce o número de negros encarcerados.”. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-
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cerca de 30 mil jovens de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil e, deste número,
77% são negros6.
Os dados que comprovam, na prática, os efeitos do nosso passado, do racismo e da
desigualdade social no país, são extensos e poderiam ser mencionados muitos outras aqui. No
entanto, estes mencionados acima já dimensionam as diversas violações e violências dirigidas
à população negra e, principalmente, corroboram o fato de que estas violências e violações são
institucionalizadas, ou seja, provêm do próprio Estado.
Se este passado permanece, a crise sanitária, decorrente da pandemia de COVID-19,
que agrava crises políticas, sociais e econômicas anteriores, e se apresenta no presente, é muito
mais sentida pela população negra e pobre do país. Neste sentido, analiso brevemente no
próximo ponto como a pandemia tem revelado a permanência deste passado, marcado pela
aniquilação de alguns povos e populações.

A PANDEMIA NO BRASIL: CRISE SANITÁRIA, POLÍTICA, ECONÔMICA E


SOCIAL

A pandemia acentua a desigualdade e as crises anteriores, sejam elas políticas, sociais


ou econômicas. Apesar de existir um discurso no senso comum de que todos enfrentaríamos
estas crises da mesma forma, é evidente que este discurso não é compatível com a realidade.
Assim, na prática, que o vírus, como afirma Boaventura de Souza Santos (2020, p. 7), possui
“alvos privilegiados”. Nesse sentido, o autor afirma que uma das lições que podemos retirar
dessa pandemia é que “As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga”,
pois as condições de prevenção e mitigação do vírus são muito inferiores para grupos sociais
subalternizados.
Judith Butler, no mesmo sentido, afirma que apesar de o vírus “não discriminar”
pessoas, a desigualdade radical e a exploração capitalista encontram modos de se fortalecer na
crise sanitária, em detrimento da vida de grupos vulneráveis:

O vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade,
nos colocando igualmente diante do risco de adoecer, perder alguém próximo
e de viver em um mundo marcado por uma ameaça iminente. Por conta da

br/noticias_seppir/noticias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-carceraria-e-negra-1.
Acesso em 10 mar. 2021.
6
Informação disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295. Acesso em 10 mar. 2021.
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forma pela qual ele se move e ataca, o vírus demonstra que a comunidade
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humana é igualmente precária. Ao mesmo tempo, contudo, o fracasso por
parte de certos Estados ou regiões em se prepararem adequadamente de
antemão (os EUA talvez sejam agora o membro mais notório desse clube), o
fortalecimento de políticas nacionais e o fechamento de fronteiras (atitude
muitas vezes acompanhada de xenofobia panicada), e a chegada de
empreendedores ávidos para capitalizar em cima do sofrimento global, tudo
isso atesta a velocidade com a qual a desigualdade radical – o que inclui
nacionalismo, supremacia branca, violência contra as mulheres e contra as
populações queer e trans – e a exploração capitalista encontram formas de
reproduzir e fortalecer seus poderes no interior das zonas de pandemia. Isso
não deve ser surpresa nenhuma. (BUTLER, 2020)

No Brasil está intensificação das desigualdades sociais e raciais, pode ser facilmente
observada. Começo por lembrar aqui que a primeira vítima de COVID-19 no Rio de Janeiro
foi uma mulher negra, diarista, que contraiu o vírus quando trabalhava em residência de uma
família que recém havia voltado da Europa7. Apesar de ser paradigmático, por ter sido um dos
primeiros casos registrados no país que já evidenciava essa desigualdade sintomática,
infelizmente, não se tratou de um caso isolado.
Os dados coletados pela ONG Instituto Polis no Brasil revelam que homens negros
são as principais vítimas da COVID-19 no país, sendo 250 óbitos pela doença a cada 100 mil
habitantes, ao passo que homens brancos perfazem o total de 157 mortos a cada 100 mil
habitantes. Do mesmo modo, as mulheres negras estão em piores estatísticas relacionadas a
mortes na pandemia se comparadas com mulheres brancas: 140 mortes por 100 mil habitantes,
contra 85 por 100 mil entre as mulheres brancas8. Assim, as populações negra e pobre do país
se tornaram alvos privilegiados do vírus.
Além de principais vítimas da doença no país, as pessoas negras sofrem mais com as
mazelas da intensificação das crises políticas, sociais e econômicas no país. Assim, em recente
pesquisa realizada pelo IBGE, é possível notar os drásticos efeitos da pandemia na população
negra no Brasil: mais de 6, 4 milhões de homens e mulheres negros perderam ou deixaram de

7
Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. UOL. 19 mar. 2020. Disponível
em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-
e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm. Acesso em 18 mar. 2021.
8
“Na comparação entre o 4º trimestre de 2019 e o 2º trimestre de 2020, entre os negros, o número subiu para 7,4
milhões. Para os não negros e não negras, o total pouco se alterou, chegando a 2,7 milhões de pessoas.”. Disponível
em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2020/boletimEspecial03.html. Acesso em 01 mar. 2021.
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procurar emprego por acreditarem não ser possível conseguir nova colocação, ao passo que,
entre brancos, o número de pessoas nesta situação é de menos que a metade do número de
homens e mulheres negras, 2,4 milhões 9.
O isolamento social, como forma de evitar a propagação do vírus, não é uma
possibilidade para a maioria das pessoas pobres, periféricas e negras do país que,
sistematicamente, tem seus direitos mais básicos, como o direito à moradia e à saúde, negados.
Assim, submetidos ao trabalho precário, a condições de moradia insalubres, transportes
coletivos lotados, estas pessoas se expõem diariamente e arriscam suas vidas para sobreviver
em um sistema que parece não querer garantir as suas vidas.
Se a desigualdade se acentua na pandemia, se os efeitos da pandemia são sentidos
pelos mais pobres, pelas pessoas negras, pelas mulheres, cabe ao Estado pensar em políticas
públicas capazes de minimizar essa desigualdade e reduzir a intensificação das implicações da
COVID-19 para grupos sociais subalternizados na sociedade.
No entanto, ao menos no Brasil estas políticas não têm sido implementadas e o
resultado são as estatísticas mencionadas acima. Essa omissão deliberada, que segue a mesma
racionalidade do passado brasileiro, se insere em uma gestão política que visa ditar quem pode
viver e quem deve morrer. No próximo ponto, busca-se entender essa técnica política e qual
sua fundamentação.

QUEM PODE VIVER E QUEM DEVE MORRER NA PANDEMIA DE COVID-19 NO


BRASIL

No ensaio Necropolítica (2018), o filósofo e cientista político camaronês, Achille


Mbembe, define a expressão máxima da soberania como o poder de determinar quem pode
viver e quem deve morrer. Este autor está preocupado com formas de soberanias “cujo projeto
central é a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição de corpos
humanos e populações” (MBEMBE, 2018, p. 10). Assim, a necropolítica, isto é, esta política
da morte, é definida.
Não é por acaso que Mbembe visualiza a colonização e a escravidão como processos
originários de uma necropolítica. Nesse sentido, ao resgatar a noção de biopoder e racismo de

9
Informação disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2020/boletimEspecial03.pdf. Acesso em
01 mar. 2021.
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10
Estado em Foucault10 e, ao mesmo tempo, promover um deslocamento na teoria foucaultiana 11
Mbembe (2018, p. 18) ressalta que “a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na
prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade
de povos estrangeiros.”.
Na escravidão, a condição de escravo resulta na tripla perda: de um lar, de direitos e
de estatuto político, o que leva a definição da vida do escravo como uma morte-em-vida
(MBEMBE, 2018, p. 22-23). Na colônia e sob o regime do apartheid, de modo semelhante, a
soberania é “o exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual a “paz”
tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim” (MBEMBE, 2018, p. 32-33).
Em que pese essa expressão da soberania através de um poder de morte pareça estar
atrelada apenas ao passado, Mbembe demonstra como esta necropolítica se expressa na
contemporaneidade, seja através das guerras contemporâneas, seja por meio das ocupações
coloniais tardias.
No entanto, para além de uma necropolítica que se expressa em guerras e nas
ocupações coloniais tardias, também é possível pensar com Mbembe nos países que, como o
Brasil, possuem um passado colonial e escravocrata e, por isso, guardam aquilo que o autor
denomina como imaginários que: “deram sentido à instituição de direitos diferentes, para
diferentes categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço”
(MBEMBE, 2018, p. 38-39). Significa então que estes imaginários permanecem e explicam a
dinâmica que o poder estatal soberano assume ao ditar quem pode viver e quem deve morrer.
A permanência de imaginários coloniais e escravistas que dão status diferenciados às
pessoas, se intensifica no contexto de exceção que vivemos. Mbembe afirma que a emergência,
a exceção, o inimigo ficcional são elos que unem a política e a morte (2018, p. 17). Se
entendermos este contexto de pandemia como uma situação de exceção, na qual a
“normalidade” parece ser uma categoria distante, então estamos diante de um cenário propício
para a união de política e morte, isto é para o exercício deste necropoder, que não se dirige a
todos, pois tem em seu cerne a criação de “inimigos ficcionais”. Estes inimigos historicamente

10
A biopolítica é definida em Foucault como o poder que se volta para o gerenciamento da vida, ou, quando a
vida foi incluída no âmbito da política para que ela fosse gerida, prolongada, multiplicada, o que o filósofo francês
chama de “fazer viver”. Paradoxalmente, este poder que se volta para a vida, também atua no sentido de matar. O
poder de morte soberano é exercido por meio do racismo de Estado, uma tecnologia do poder, que desempenha
duas funções: determinar uma divisão entre aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer com base em
um tipo biológico e, ao mesmo tempo, legitimar a morte do outro, por meio do melhoramento da própria vida
(FOUCAULT, 2010).
11
Foucault entende que a expressão máxima do biopoder e do racismo de Estado pode ser vislumbrada na história
por meio do regime nazista. No ensaio, Mbembe discute sobre como estas noções se encaixam perfeitamente nos
regimes coloniais e escravistas.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

11
são as populações negras, os povos indígenas, os pobres, as mulheres, enfim, todos aqueles
grupos marginalizados na sociedade. Esta atuação necropolítica do Estado explica a ineficácia
estatal na pandemia, sobretudo no que diz respeito a estes grupos sociais vulneráveis diante do
vírus.
Em países colonizados como o Brasil, a necropolítica é desempenhada desde a
formação do Estado e, portanto, não é surpreendente que continua sendo exercida durante a
pandemia de COVID-19, que cria um ambiente propício para o exercício deste poder de morte.
Com isso, pensar a gestão política da pandemia de COVID-19 no Brasil e, ao mesmo tempo,
observar as estatísticas referentes a população negra no país, demanda a conscientização sobre
a existência de uma necropolítica, uma política de morte que tem alvos privilegiados e
determina aqueles que devem morrer.

CONCLUSÃO

Com o presente artigo, busquei demonstrar que o passado colonial e escravista


brasileiro está diretamente relacionado a uma gestão política que visa a aniquilação da
população negra no país e que encontra na pandemia de COVID-19 um terreno fértil para
prosperar.
O resgate da história brasileira demonstra as diversas violações e violências
perpetuadas contra a população negra, desde o início da tentativa de construção de um Estado
no país. Os resquícios destas violações permanecem e têm reflexos no presente, de modo que,
se hoje não há um regime escravista, técnicas estatais são empregadas para aniquilar direitos e,
nesse sentido, a população negra permanece subjugada às mais diversas violências,
principalmente institucionais, praticadas pelo próprio Estado brasileiro.
A pandemia de COVID-19 escancara a histórica desigualdade racial no país, de modo
que as estatísticas mencionadas no artigo evidenciam que a população negra é o alvo
privilegiado das mazelas da crise sanitária, política, econômica e social existente neste
contexto.
As implicações da pandemia não são sentidas por todos da mesma forma e caberia ao
Estado promover políticas públicas capazes de minimizar essas desigualdades. No entanto,
como demonstrado no artigo, a racionalidade escravista e colonial prevalece no país e, com
isso, uma política que decide qual vida merece ser vivida é praticada durante a emergência
sanitária. Portanto, com a ideia de necropolítica de Mbembe, concluo que a gestão política em
andamento no Brasil, que promove a morte de alguns sujeitos, não se trata de uma simples
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

12
negligência ou omissão estatal. Trata-se, em realidade, de uma técnica política desempenhada
desde a formação originária do Estado brasileiro, e que visa promover deliberadamente a morte
de alguns, para preservar a vida de outros.

REFERÊNCIAS

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https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-
19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em 13 mar. 2021.
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Paulo. 2020. Disponível em:
https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2020/boletimEspecial03.pdf. Acesso em 01 mar.
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Rio de Janeiro: Uol, 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295.
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MADEIRO, Carlos. Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre os mais ricos.
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noticias/2019/11/13/percentual-de-negros-entre-10-mais-pobre-e-triplo-do-que-entre-mais-
ricos.htm. Acesso em 11 mar. 2021.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.
São Paulo: n-1 edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1,
2018b.
Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon. UOL. 19 mar.
2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-
noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-
patroa.htm. Acesso em 18 jan. 2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
SINHORETTO, Jaqueline. Mapa do Encarceramento – Os jovens do Brasil. São Paulo.
2015. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/noticias_seppir/noticias/junho/mapa-do-
encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-carceraria-e-negra-1. Acesso em 10 mar. 2021.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

13
CAPÍTULO 2
ALISAR POR QUÊ?
SAÚDE E IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DOS
CABELOS
NILA MICHELE BASTOS SANTOS12
THAMIRES PEREIRA DE AMORIM13
INTRODUÇÃO

O ato de se preocupar com a estética, da aparência, do como se adornar, como ser


"bonito" diante dos demais não é uma característica exclusiva da atualidade, ao contrário, a
própria palavra “estética” vem do grego, aisthésis, que significa percepção ou sensação e nessa
civilização clássica, por exemplo, o termo não se restringia apenas a uma questão de bem estar,
mas sim, constituía-se em um tópico filosófico que se relacionava com a moral dos homens,
pois o belo se ligava ao bom e ao digno.
Já no período medieval a estética passou a ser alvo de represálias, pois sob o olhar da
igreja, o almejo por ser belo representaria a vaidade, que ia contra os dogmas cristão. Em
contrapartida, o corpo ainda era visto como o Palácio da alma e sua degradação era uma
preocupação.
O corpo não poderia estar desordenado. Era de natureza nobre demais para
ser assim rebaixado. Seu desregramento, portanto, era a suma preocupação da
Filosofia Medieval. A fonte dos distúrbios eram os sentidos – como Platão (c.
424-347 a. C.) fez escola! Todas as considerações filosóficas depreciativas
(ou normativas, como queiram) em relação ao corpo na Idade Média tinham
como base a filosofia platônica. Acrescida a ela, como já destaquei, a
metáfora organicista, que ressaltava a importância do bom cumprimento das
partes, para que o todo estivesse saudável. 14

12 Orientadora. Doutoranda em História (UEMA), Mestra em História Social (UFMA), professora EBTT de
História no Instituto Federal do Maranhão - Campus Pedreiras, Integrante do NEABI-IFMA e Coordenadora do
LEGIP- Laboratório de Estudos de Gênero do IFMA campus Pedreiras. E-mail: nila.santos@ifma.edu.br
13 Bolsista aprovada no EDITAL PRPGI nº 102/2020 PIBIC EM CNPq- Aluna do ensino médio integrado ao

Curso de Eletromecânica do IFMA campus Pedreiras. Membro do Neabi Campus Pedreiras e do Laboratório de
Estudos de Gênero do IFMA campus Pedreiras – LEGIP. E-mail: pereira.amorim@acad.ifma.edu.br
14
COSTA, Ricardo. A estética do corpo na filosofia e na arte da Idade Média: texto e imagem.
Trans/Form/Ação vol.35 no.spe Marília 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-
31732012000400011
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

14
Dessa forma, percebemos que a estética é uma categoria e que, portanto, é passível de
variáveis que dependem de fatores que vão além de visões homogêneas de "Belo" ou "Feio",
enquanto categoria ela é influenciada pelos determinantes políticos, ideológicos, culturais,
históricos e sociais do lugar em que está inserida. Logo corroboramos GOMES a afirmar que:

A relação do homem com o corpo é pautada por um imperioso processo de


alteração. Manipular, adornar, alterar, pintar, escarificar, tatuar, cortar são
ações que fazem parte da dinâmica cultural e dos diferentes rituais de toda e
qualquer sociedade. À medida que o corpo vai sendo tocado e alterado, ele é
submetido a um processo de humanização e desumanização. A experiência
corporal é sempre modificada pela cultura, segundo padrões culturalmente
estabelecidos e relacionados à bicas de afirmação de uma identidade grupal
específica.15

Partindo de tal visão, o contexto atual brasileiro ainda é influenciado pelo ideal
eurocêntrico, que invisibiliza a estética afro ao mesmo tempo que se coloca na posição de
superioridade em todos os âmbitos, sejam estes intelectuais, artísticos ou mesmo estéticos. É
notável que nesse contexto tudo que se relaciona ao negro vai ser considerado ruim, mal ou
feio, tal padrão é responsável pela marginalização do negro, transformando a angústia de ser
excluído em uma ânsia por aceitação.
É em decorrência destes e outros fatores que serão posteriormente apresentados que
muitas mulheres negras se submetem às práticas de alisamento capilar. Um número
considerável se dispõe à essas práticas desde tenra idade, que não nos compete prestar
julgamentos, todavia nos dá a possibilidade de apontar os males físicos e mentais advindos de
tais práticas. Desta forma, elencaremos os produtos químicos apontados — através de
literaturas científicas — relacionados aos danos físicos e mentais de tais usuárias,
demonstrando como a manutenção do padrão estético corporal europeu pode ser apontado
como racismo e estes diminuem a qualidade de vida direta e indiretamente de suas vítimas.

RELAÇÃO IDENTITÁRIA DA MULHER NEGRA COM O CABELO AFRO

15
GOMES, Nilma. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou
ressignificação cultural? Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação. (pg. 40-52).
Set/Out/Nov/Dez 2002 Nº 21. Pg.42.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

15
O cabelo afro está intrinsicamente interligado à identidade da mulher negra, o cabelo
conta histórias, as formas de arrumá-lo ou de apresentá-lo vai muito além de um adorno estético
como muitos tendem a pensar. O cabelo da mulher negra, por exemplo, pode ser uma marca de
grande sofrimento quando posto sob a luz de uma sociedade que molda seus ideais em uma
cultura etnocêntrica segregacionista. Voltando-nos ao contexto social brasileiro, o cabelo liso
perdurou-se como o único viável socialmente até poucos anos atrás. As falas cotidianas de
cabelo bom ou cabelo ruim normalizou uma ideia de que “cabelo bom” é sinônimo de cabelo
liso, enquanto o cabelo crespo foi constantemente ligado à ideia de pobreza ou desleixo, sendo
assim continuamente marginalizado e posto sob uma luz negativa permeada por anos pela
indústria midiática e capilar.

O cabelo crespo figura como um importante símbolo da presença africana e


negra na ancestralidade e na genealogia de quem o possui. Mesmo que a cor
da pele seja mais clara ou mesmo branca, a textura crespa do cabelo, em um
país miscigenado e racista, é sempre visto como um estigma negativo da
mistura racial, e por conseguinte, é colocada em um lugar de inferioridade
dentro das escalas corpóreas e estéticas construídas pelo racismo ambíguo
brasileiro. Mesmo que a textura dos cabelos não seja exclusiva dos povos
africanos, o racismo lhe impõe um reducionismo perverso, e a sociedade
brasileira aprendeu a olhá-la como sinal não só de mistura, mas a parte
considerada socialmente e "biologicamente" inferior da mestiçagem.16

A normalização feita sobre esta ideia é uma forma de hierarquização, pois se elege
uma característica como melhor em relação à outra, atribuindo a ela todas as características
positivas enquanto a outra se torna feia, ruim, pior. Porém, nos últimos anos esse contexto vem
mudando pouco a pouco e o cabelo crespo tem ganhado espaço e representação na mídia e na
indústria. Produtos voltados para cabelo crespo e cacheado estão se tornando cada vez mais
comuns e a quantidade de sites, páginas e blogs voltados para a discussão da aceitação do
cabelo crespo e cacheado natural vem mudando a visão popular do que é assumir essa parte da
identidade negra. Contudo, a pesquisa compilou diversos relatos de mulheres negras e suas
experiências com seus cabelos e constatou que mesmo com a crescente abertura midiática e
representativa, a estigmatização do cabelo da mulher negra ainda se mantém com determinada
força, sendo seu tipo de cabelo, ainda, transformado em um veículo para a vergonha e a
exclusão em várias esferas de suas vidas. No âmbito profissional, por exemplo, o cabelo afro

16GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 3° Edição. Grupo
Autêntica: Autêntica, 15 de julho de 2019. Pg.18.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

16
ainda é considerado "impróprio" e, em meio a sociedade, recebe críticas e opiniões negativas,
causando feridas mentais duradouras em suas vítimas, como explana Fernanda Cantalice:

Tudo isto iniciou anteriormente ao Navio Negreiro. Em uma cultura


ocidental, onde invisibiliza os nossos. Nossos corpos, nossas mentes, mas
sobretudo, nossas almas. Como diz a historiadora Caroline Sodré. Desaparece
e nossos corpos, simbólica e literalmente, desaparece com a nossa
inteligência, autoestima, autocompaixão, conosco e com o outro. Fazem
questionar-nos o tempo todo se somos bons, aptos, capazes. Somos
inviabilizados, em nossa potência, inteligência, ordem psíquica, capacidade
de conquista e realização [...]17

Se engana, todavia, quem pensa que os danos se resumem somente ao mental.


Baseando-se nos resultados obtidos através de pesquisas bibliográficas em artigos científicos,
é provado os efeitos nocivos de alisamento e tinturas na saúde física das usuárias. A utilização
de químicos fortes — como o alisamento — modifica a estrutura do fio, tornando frágil e
quebradiço. Para saúde física das usuárias, porém, os métodos de alisamento podem causar
dermatites, descamações, queimaduras e, em casos graves, câncer. A questão é abordada na
revista "International Journal of Cancer", que liga o uso de alisantes e tinturas à probabilidade
de desenvolvimento de câncer de mama.

Muitos produtos para o cabelo contêm compostos de desregulação endócrina


e carcinógenos potencialmente relevantes para o câncer de mama. Produtos
usados predominantemente por mulheres negras podem conter mais
compostos hormonalmente ativos. [...] Durante o acompanhamento (média =
8,3 anos), foram identificados 2.794 cânceres de mama. Cinquenta e cinco
por cento das participantes relataram o uso de tintura permanente na inscrição.
O uso de tintura permanente foi associado a um risco 45% maior de câncer
de mama em mulheres negras (HR = 1,45, IC 95%: 1,10–1,90) e risco 7%
maior em mulheres brancas (HR = 1,07, IC 95%: 0,99–1,16; heterogeneidade
p= 0,04). Entre todas as participantes, o uso pessoal de alisante foi associado
ao risco de câncer de mama (HR = 1,18, IC 95% 0,99-1,41); com maior risco
associado ao aumento da frequência ( p para tendência = 0,02). A aplicação
não profissional de tintura semipermanente (HR = 1,28, IC 95% 1,05-1,56) e
alisantes (HR = 1,27, IC 95% 0,99-1,62) em outros foi associada ao risco de
câncer de mama. 18

17 CANTALICE, Fernanda. Você consegue ver humanidade em uma pessoa negra? Artigos e Reflexões.
05/02/2021. Gelédes. 2021. Disponível em: https://www.geledes.org.br/voce-consegue-ver-humanidade-em-
uma-pessoa-negra/
18 EBERLE, C; SANDLER, D.; TAYLOR, K.; WHITE, A. Hair dye and chemical straightener use and

breast cancer risk in a large US population of black and white women. International Journal of Cancer/
volume 147, issue 2/ p.383-391. Pg.383. Disponível em:
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/ijc.32738
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

17
Ainda nesse estudo, é mostrado que mulheres negras são as mais afetadas, afinal são
aquelas para as quais os alisantes têm maior apelo.

OS ALISAMENTOS QUÍMICOS E A QUESTÃO RACISTA ATUAL

Um dos primeiros alisamentos químicos usados foi o hidróxido de sódio ou,


popularmente chamado, soda cáustica, famoso produto químico com a finalidade de limpeza,
a soda cáustica se tornou febre entre os métodos de alisamento existente por volta dos anos de
1930. Este tipo de alisamento trouxe consigo um alto percentual de eficácia, entretanto para
além do visível, acarreta graves problemas aos fios. O objetivo do alisamento químico é a
quebra das pontes de dissulfetos da queratina, diminuindo a curvatura do fio. No entanto, para
que isso ocorra, é preciso de um agente alcalino, ao qual o cabelo é extremamente sensível,
pois altera o pH do fio, abrindo suas cutículas e deixando-o vulnerável a ação de agentes
externos. O uso constante de alisantes com tal fórmula promove a exposição contínua do fio,
diminuindo a força e elasticidade do folículo piloso até que, pelo desgaste, este quebre ou se
torne extremamente frágil, não apresentando brilho e a aparência inicial.
Assim, para além da saúde do cabelo, o uso constante de química capilares nocivas,
como por exemplo o formol, traz outros males às suas usuárias. O contínuo uso de químicos
alisantes promove dermatites por contato, coceiras, descamação, queimaduras, feridas, queda
de cabelo e diversos problemas que tendem a piorar com a permanência do uso. Além disso, a
vaporização e inalação da química durante o processo de alisamento pode causar sérios danos
ao aparelho aéreo superior, aumentando os riscos de câncer.

O perigo da utilização do formol é decorrente dos níveis de concentração,


bem como, da frequência em que é utilizado, já que tanto os profissionais
quanto clientes estão susceptíveis aos riscos do contato com a substância,
sendo a inalação dos gases e o contato com a pele as formas mais comuns de
exposição (BALOGH et al., 2009). Dias et al. (2007), destacam que, a
inalação do formol presente nos produtos, quando há a realização do
alisamento nos cabelos, pode provocar corrosão e necrose na pele, cefaleia,
dispneia, queimadura, queda do cabelo, edema pulmonar e tosse, além de ser
considerado um agente cancerígeno, tumorigênico e relacionado a má
formação congênita. 19

19BACELAR, L.; OKABAYASHI, C. M.; VIEIRA, S. L. V. Análise da presença de formol e avaliação do


ph de alisantes capilares. Arq. Cienc. Saúde UNIPAR, Umuarama, v. 23, n. 3, p, 157-161, set./dez. 2019.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

18
Todavia, mesmo sabendo dos riscos, é comum que mulheres, em sua maioria negras,
"escolham" aderir a tais processos desde a infância — o processo de escolha se apresenta de
forma controvérsia, uma vez que muitas se sentem obrigadas ou compelidas ao ato de alisar.
Nos relatos de alisamento em tenra idade aparecem uma constante entre as usuárias dos
produtos: A urgência para se encaixar em um padrão opressivo e a falta de representação social.
Na televisão, revistas, anúncios ou mesmo no dia a dia, a falta de representação negra sempre
foi um usual motivo para a procura por métodos que as incluam nesses meios, uma procura por
se ver representada.
Tais fatores tendem a se tornar ainda mais ansiados quando o contexto social se torna
opressivo para com as características negróides destas mulheres. É comum que o cabelo afro
seja visto como menos profissional ou bonito no âmbito trabalhista, é comum que socialmente
o cabelo afro seja taxado de feio, ruim, duro. É essa pressão que permeia o meio social de tais
mulheres que as encaminham para a necessidade de aceitação, de validação. Olvidam então
sua identidade, são oprimidas quanto à suas raízes, tendem a se esquecerem do eu social ligado
a quem são.

O racismo é [...] uma forma de negação ou de e mistificação da alteridade da


população negra, fixando-a estereótipos, atribuindo-lhe uma essência de
inferioridade e maldade, não reconhecendo suas diferenças, infringindo-lhe o
que Alberto Memmi chama de "Marca Plural". 20

Não só desenvolvem doenças físicas, mas mentalmente esquecem suas qualidades, sua beleza,
sua ancestralidade. Se limitam e se submetem a um padrão que as exclui constantemente. Exclusão esta
que, pouco a pouco, as fazem desenvolver males mentais. Sejam estes depressão, ansiedade ou
insegurança. Sua qualidade de vida cai, pois não somente se submetem fisicamente a processos nocivos,
como também mentalmente.
Portanto a representação midiática é tão importante, ao se verem representadas em espaços de
poder, sem a necessidade de adequar-se ao padrão europeu, meninas e mulheres negras permitem-se
sonhar enxergando possibilidades de serem elas mesmas. O processo de representação na mídia ainda
é lento, contudo, o constante ativismo dos movimentos negros e do feminismo negro possibilitaram um
contexto de desconstrução no qual cada vez mais mulheres e meninas, adolescentes ou na idade adulta,

20FERNANDES, V.; Souza, M.; Identidade negra entre exclusão e liberdade. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros/ Arq. N°63. Abril 2016. Pg 103-120. Pg.106. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-
901X.v0i63p103-120
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

estão se abrindo para o seu cabelo e o transformando em mais do que somente um fio, mas sim em um
19
veículo político contra o racismo, a opressão, a marginalização do que são suas características.
É essa tomada de consciência que possibilitou que grandes empresas de cosméticos investissem
no que está sendo chamado de “novo nicho de mercado”. Entretanto as consumidoras negras sempre
estiveram aí, o que está diferente é a exigência destas. Uma boa comparação está nas campanhas abaixo:

Reprodução
Reprodução

A primeira propagada, notoriamente racista, foi vinculada em 2015 colocando uma


mulher negra, com os cabelos alisados pelo produto, e exaltando que é justamente esta condição
artificial que tira o melhor dela, ou seja, somente com a aproximação ao padrão de beleza
branco é que ela terá algo bom. Já a segunda propaganda faz justamente uma apologia à quebra
do padrão e a necessidade de assumir o cabelo natural e volumoso, a segunda propaganda evoca
as questões de identidade, liberdade e protagonismo da mulher Negra com um simples “EU
ASSUMI”.
O fato é que com a tomada de consciência de mulheres negras e suas crescente lutas em
prol de mais equidade cada vez mais empresas passam a reconhecer a diversidade de cabelos
e, com base na necessidade imposta por essa mudança, passaram a dar mais atenção aos cabelos
afros. Mas muito ainda há de caminhar, a diversidade de produtos não significa equidade e o
cabelo afro ainda é alvo dos mais agressivos tipos de rejeição e preconceito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observar que o cabelo afro transcende a esfera estética é reconhecer que, mais do que
um meio relacionado a beleza, o cabelo também é um ato político em relação à vivência do
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

20
povo negro. É sabido que o racismo media situações que não causam somente feridas física,
ele abrange toda a constituição da identidade do eu negro no contexto em que está inserido.
Por conta disso, o cabelo deixa de ser estético, deixa de ser sobre esta ou outra textura, de que
forma ele é usado; ele transcende tudo para um viés político e ideológico de crenças, valores e
construção social.
A sua subjetividade nasce do contexto, ele toma forma e raízes mais profundas quando
associado à dor, à vergonha, à negação. Ele não é só mais um fio, é um relato de experiências,
é uma marca que, ao longo do caminho, se relaciona à toda uma trajetória de vida. É por conta
disso que se torna difícil explicar o efeito social do cabelo negro somente através de um viés,
pois este é subjetivo. Ainda assim, é observado que essas experiências negativas que permeiam
a vivência do negro, que afetam social, física e mentalmente o indivíduo, se transformam em
um meio de luta e resistência. O cabelo estando como ponto chave para tais transformações
sociais, levando em conta seu viés político e o papel que ele reproduz na vida da pessoa negra.
No entanto, é passível de observação uma mudança social relacionada ao cabelo
natural da mulher negra. Isso pois a vivência do negro em sociedade está se transformando,
pois o contexto social atual em relação ao negro também está em constante mudança de valores.
A valorização da negritude começou a ser impulsionada, seja por celebridades ou por mulheres
comuns, que relatam e compartilham suas experiências, são exemplos de uma conscientização.
Usar o cabelo afro natural passou a ser um ato de resistência, não somente se tornou necessária
a valorização à beleza, como a valorização à identidade enquanto mulher e negra. Entender
esse movimento não é resumir o papel do cabelo ao ser afro ou alisado, é perceber que a escolha
deve deixar de ser uma opressão, para ser um livre arbítrio.
Dessa forma, os resultados obtidos através da presente pesquisa relacionam, de forma
direta e indireta, a influência do racismo sobre a qualidade da saúde física e mental das
mulheres negras que, por urgência de aceitação, se submetem a métodos nocivos de alisamento
e tinturas capilares para se encaixar no padrão imposto socialmente.
Estipulada tal questão, é de suma importância entender como se dá esta influência,
afinal ela não tem somente um meio de repercussão. Seja no viés midiático, excluindo pessoas
negras e inviabilizando sua participação na sociedade, seja em espaços de poder onde estas
pessoas negras pouco possuem presença. É de suma importância permear ideias que rivalizam
com a permanência deste padrão racista e separatista que se relaciona diretamente com a ideia
eurocêntrica enraizada em nossa sociedade, criando, assim, uma nova visão sobre a cultura e
vivência negra.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

21
REFERÊNCIAS
BACELAR, L.; OKABAYASHI, C. M.; VIEIRA, S. L. V. Análise da presença de formol e
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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

22
CAPÍTULO 3
IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 PARA
AS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NEGRAS
NO BRASIL: UM ENSAIO SOBRE O RACISMO E
A DESIGUALDADE SOCIAL NA CLASSE
TRABALHADORA BRASILEIRA
ANDRÉA SILVA DE MELO21
GABRIELLE MARTINS SILVA MAUÉS22

A pandemia oriunda da Covid-19 evidenciou a fragilidade do sistema socioeconômico


do Brasil, já marcado por uma crise política e econômica, em que se acompanhava o aumento
do desemprego e do emprego informal, bem como os impactos acarretados pela reforma
trabalhista no mercado de trabalho. Crises dessa natureza refletem na população de forma
diferenciada, a depender de contextos sociais, étnico-raciais e de gênero, em razão das
desigualdades sociais que estruturam a sociedade brasileira.
Foi o que ocorreu com o Coronavírus, que afetou de forma mais gravosa as pessoas
negras, que representam o maior número de contaminados e de óbitos pelo vírus no Brasil. Este
índice guarda relação com o fato de serem a maioria da população pobre, que integra a mão de
obra informal, reside em locais de saneamento básico inexistente ou insuficiente e, em regra,
não possui acesso adequado à saúde. Apesar disso, consoante levantamento da entidade não
governamental Agência Pública, a vacinação contra a Covid-19 é superior entre a população
branca.
Tais fatores não constituem uma coincidência, estando intimamente ligados ao
racismo e à lógica de Necropolítica vigente no país, em que o Estado adota uma política da
morte que segrega e oprime corpos negros.
Para além dos efeitos da doença em si, as pessoas negras foram afetadas pelo racismo
estrutural que persiste até os dias atuais na sociedade brasileira, camuflado pelo mito da

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Andréa Silva de Melo é advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Faculdade
Maurício de Nassau. Bacharel em Direito pela Universidade da Amazônia (UNAMA). E-mail:
melo.andrea@hotmail.com
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Gabrielle Martins Silva Maués é advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho
pela Faculdade Legale e em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Bacharel em Direito pela
Universidade da Amazônia (UNAMA). E-mail: gabriellemaues@hotmail.com
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democracia racial difundido por Gilberto Freyre e a política de embranquecimento propagada
constantemente, segundo os quais o Brasil seria um paraíso racial, em que diversas raças teriam
se miscigenado e viveriam harmonicamente.
Contudo, acertadamente aponta Lélia Gonzalez que o “racismo à brasileira”, baseado
naquele mito, na prática, exclui e maltrata os mais vulneráveis, como as mulheres negras, e
enaltece a classe dominante branca e economicamente abastada. Sobre a adoção de condutas
racistas e a negação de existência de opressão, com a introdução do falso ideário da democracia
racial, argumenta a autora (GONZALEZ, 1988):

O racismo latinoamericano é suficientemente sofisticado para manter negros


e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais
exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do
branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos
aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as
classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e
universais.

O Coronavírus acarretou profundas alterações na pirâmide político-social brasileira.


A desigualdade social latente tomou proporções ainda mais nocivas nesse cenário. Durante o
período de distanciamento social no país, alguns dos severos efeitos do racismo sistêmico
foram revelados, principalmente, nas trabalhadoras domésticas.
De início, para entender o cruel processo de segregação desses corpos negros
femininos, é importante destacar a origem escravagista do trabalho doméstico no Brasil, que
remonta à época do Brasil Colônia. Naquele tempo, os serviços domésticos na Casa Grande
eram exercidos pelas escravizadas negras, que, embora fossem consideradas privilegiadas, ao
entardecer eram encaminhadas de volta às Senzalas.
Além de fomentar a riqueza dos nobres durante o período colonial, a escravização
expôs o desequilíbrio existente entre brancos e negros, pois inclusive os cuidados com os filhos
e descendentes das famílias brancas cabiam à “ama de leite” negra, que ficava responsável até
pela amamentação de recém-nascidos. Essa rotina criava um falso ambiente de afetividade, em
que a negra escravizada era percebida como “quase da família” e acreditava em promessas
ilusórias de alforria e liberdade, cujo intuito real era de manutenção da subalternização.
Nesse sentido, surge o termo “mucama”, que designava essas mulheres negras que
viviam na Casa Grande para efetuar o trabalho doméstico e acompanhar as pessoas das famílias
dos senhores de Engenho e, como narrado, muitas vezes serviam como “amas de leites” para
filhos dos senhores. A origem do termo mucama, na língua quimbunda, remete à ideia de
“amante” ou “concubina” e, embora este sentido tenha sido ocultado na definição adotada no
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Brasil, a violação sexual dos corpos destas negras escravizadas era uma realidade
(GONZALEZ, 1984).
Ainda nesse período, mulheres negras experimentaram todo tipo de violência,
principalmente pelas mãos dos senhores de Engenho, pelos quais eram tratadas como
propriedade e mão-de-obra barata e lucrativa. Eram muitos os relatos de tortura, agressões e
estupros no Brasil Colonial, dos quais nasciam crianças que também viriam a ser escravizadas.
Maria da Penha Silva aduz que as relações familiares das mulheres negras eram
totalmente distintas das mulheres das classes dominantes, eis que inexistia uma lógica de
reprodução e perpetuação da linhagem familiar, ideais típicos da elite branca. Em paralelo, era
ausente qualquer traço de compaixão com as negras grávidas ou lactantes, as quais eram
submetidas a trabalhos desumanos e degradantes, ocasionando sérias consequências às suas
vidas e as de seus filhos. E assim argumenta (SILVA, 2010):

Inseridos nesse contexto estão às mulheres negras escravas, que sem dúvida
estavam colocadas em um nível social inferior, tanto por ser mulher, como
por ser negra e, também escrava. Ser mulher, e ser escrava dentro de uma
sociedade extremamente preconceituosa, opressora e sexista, é reunir todos
os elementos favoráveis a exploração, tanto econômica quanto sexual, e
também ser o alvo de humilhações da sociedade nos seus diferentes
seguimentos.

Collins, ao elencar os fatores que estimularam o surgimento da teoria social crítica das
mulheres negras nos Estados Unidos, enfatiza as experiências comuns no trabalho doméstico,
que aliou a exploração econômica delas aos atos de resistência, sobretudo ao observarem os
laços de “afetividade” tão conhecidos do período escravagista, em que, apesar de serem criadas
com as famílias brancas, estavam cientes de que jamais pertenceriam a esse âmbito familiar. E
assim descreve (COLLINS, 2019):

Elas eram trabalhadoras economicamente exploradas e, portanto, ficariam


sempre de fora. O resultado é que se viram em uma curiosa posição social de
outsider interna [outsider-within], uma forma peculiar de marginalidade que
originou uma perspectiva específica das mulheres negras em uma série de
temas.

A abolição, apesar da premissa de liberdade e igualdade, não deixou muitas opções


às pessoas negras antes escravizadas, uma vez que permaneceram sendo tratadas como cidadãs
de segunda classe e não como sujeitos de direitos, o que vem se perpetuando até a atualidade,
ainda que se negue o racismo no Brasil. É o que ocorre no trabalho doméstico.
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A política do embranquecimento, executada com sucesso, camufla a drástica situação
da mulher negra no Brasil, permitindo que, em ocasiões especificas, deixe o espaço de
sofrimento e marginalização e ocupe locais de popularidade e reconhecimento, como é o caso
dos desfiles carnavalescos. A glória do carnaval é uma ficção, eis que se limita à objetificação
e sexualização dos corpos das mulheres negras, reforçando a lascívia dos homens brancos sobre
seus corpos. Passados os dias de euforia, elas voltam a ser tratadas como empregadas
domésticas, no local social que lhes cabe (GONZALEZ, 1984).
Em ensaio sobre a história e invisibilidade do trabalho doméstico no Brasil, Silva,
Loreto e Bifano (2017) argumentam que, com a chegada da modernidade, a estrutura da Casa
Grande se modificou e deu lugar a novo cômodo nos lares abastados: o quarto da empregada.
O racismo, a concepção serviçal e as formas degradantes de sobrevivência de outrora,
entretanto, permaneceram os mesmos, configurados em um espaço limitado, abafado, isolado
do restante da residência e com restrições de alimentação. O labor doméstico em tese não seria
mais uma exploração, todavia, permanece precarizado e mal remunerado, sendo exercido por
mulheres economicamente vulnerabilizadas e, em sua maioria, negras, corroborando a
discriminação de gênero e raça presente no país.
A reiterada presença da mulher negra nos espaços domésticos é abordada também na
obra de Angela Davis (2016), que sustenta que esta mulher, historicamente, suporta um duplo
fardo, do trabalho assalariado e das tarefas domésticas e afirma:

No entanto, da mesma maneira que suas irmãs brancas chamadas de


“donas de casa”, elas cozinharam e limparam, além de alimentar e
educar incontáveis crianças. E, ao contrário das donas de casa brancas,
que aprenderam a se apoiar no marido para ter segurança econômica,
as esposas e mães negras, geralmente também trabalhadoras, raramente
puderam dispor de tempo e energia para se tornar especialistas na vida
doméstica.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apurou, em pesquisa realizada em


2018, que o Brasil contava com 6,2 milhões de pessoas exercendo trabalho doméstico
remunerado, tais como empregadas domésticas, diaristas, cuidadores, babás, entre outras
funções. Entre estas pessoas, 5,7 milhões eram mulheres, o que corresponde a 92% do total, e
3,9 milhões eram negras, o que não deixa dúvidas sobre a natureza escravagista desse tipo de
trabalho.
A precarização da mão de obra doméstica no país é profunda, sendo a classe marcada
pela informalidade – dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad IBGE) demonstram que, em 2018, somente 1,5 dos
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6,3 milhões de trabalhadores domésticos possuíam carteira de trabalho assinada, isto é, 32%
de toda a categoria.
O Brasil é um dos países da América Latina com mais trabalhadoras domésticas em
atividade. E mesmo sendo uma das profissões mais antigas do país, marcadamente por sua
origem racista e escravocrata, vem sendo historicamente desvalorizada, fundada em relações
violentas e mal remuneradas.
A pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, constatou que as mulheres pretas ou
pardas ganham em média menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%). Outro
dado importante consiste no fato de, em 2018, 44,8% da população preta ou parda residir em
domicílios com escassez de utensílios domésticos, como máquinas de lavar por exemplo,
indicando que altas cargas de trabalho doméstico, como lavagem de roupa e outros serviços
pesados, são designadas a estas mulheres.
Nesse sentido, as pesquisadoras Silva e Queiroz (2018), ao concluírem seu artigo
sobre o emprego doméstico no Brasil, asseveram que:

Os resultados apontam que a categoria constitui uma atividade pré-capitalista,


centrada na mulher/mãe/trabalhadora e com valor de uso, subordinada e
oprimida pelo capital/patrão, que culmina em déficit de direitos, desigualdade
de rendimento, desvalorização profissional e discriminação sociocultural.
Além disso, em decorrência dos preconceitos sociais que ainda são inerentes
a essa categoria profissional, muitos domésticos repudiam tal labor e se
envergonham de exercê-lo.

Logo, o racismo presente na formação social brasileira trouxe graves consequências,


sobretudo para a mulher negra, que se encontra na base da pirâmide social e é marcada pela
opressão, sexualização e dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho.
Comparados os números com a realidade racista que originou a classe das
empregadoras domésticas brasileiras, resta cristalina sua vulnerabilidade socioeconômica.
Atualmente, é a pandemia causada pela Covid-19 que desnuda as muitas mazelas que assolam
a população, especialmente a mais vulnerabilizada, e escancara a origem escravagista do
trabalho doméstico no Brasil e a fragilidade social das mulheres negras que desempenham essas
funções.
No início da pandemia, quando as autoridades oficiais de saúde de todo o mundo
começaram a apontar a necessidade do distanciamento social, muitas empregadas domésticas
não foram liberadas de seus postos de trabalho, sendo expostas ao contágio pelo coronavírus e
à contaminação de seus familiares, quando não foram obrigadas a permanecer nas residências
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das famílias para quais laboravam por tempo indeterminado (DIEESE, 2020), para evitar os
deslocamentos em transportes públicos. Logo se percebeu que o isolamento social configurava
um privilégio, do qual apenas determinadas classes poderiam usufruir.
O recrudescimento da doença em todo o país exigiu a adequação das formas e relações
de trabalho, com o incentivo à adoção do modelo home office. Contudo, o privilégio de manter
o trabalho nesse formato com uma remuneração digna e inalterada é um cenário distante para
a maior parte dos trabalhadores brasileiros.
Nas favelas e bairros periféricos do Brasil, nos quais a maioria dos moradores são
negros e pobres, o número de mortos pela Covid-19 alcança níveis alarmantes, conforme dados
divulgados pela Prefeitura de São Paulo em maio de 2020. Os números são impulsionados pela
ausência de políticas públicas eficazes no enfrentamento da crise de saúde, eis que o Estado
tem falhado na adoção de estratégias de contenção do vírus e de assistência médica suficiente
para o elevado número de casos, bem como na essencial vacinação da população.
Em pesquisa efetuada por 14 cientistas da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do
Rio de Janeiro (UOL, 2020), divulgada em maio de 2020, com base nos dados do Ministério
da Saúde até o dia 18 de maio de 2020, os estudiosos concluíram que 54,8% dos pacientes
negros internados com síndrome respiratória aguda grave, sintoma característico da Covid-19,
faleceram, contra 37,9% dos pacientes brancos que passaram por internação. Os registros do
Ministério da Saúde ilustraram ainda que o número de pessoas negras mortas por Covid-19 no
Brasil quintuplicou em duas semanas, entre 11 a 26 de abril deste ano.
Embora naquele período não existissem números oficiais considerando o critério
racial, no ano de 2008, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apurou que 67% dos
usuários do SUS eram negros, logo, são os mais atingidos pela doença. Estes índices refletem
como o racismo é fator preponderante também na pandemia, que vitima mais pessoas negras,
já historicamente mais vulnerabilizadas socialmente.
Interessante salientar a negligência na inclusão do quesito raça/cor nos formulários
dos sistemas de informação de saúde de competência do SUS, expressando o racismo na sua
pior forma em um contexto de crise sanitária global. Márcia Pereira Alves dos Santos et al.
(2020) constata que o boletim epidemiológico referente à 21ª semana da pandemia mostrou
que o número de casos confirmados com estratificação da raça/cor ignorada totalizava 51,3%
(60.382) do total de 117.598 casos confirmados da doença, o que representa mais da metade
de casos confirmados cuja cor/raça é desconhecida.
Em que pese a população negra seja a maioria infectada e morta pelo Coronavírus, a
vacinação caminha em direção oposta. Conforme levantamento da organização Agência
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Pública, 3,2 milhões de pessoas autodeclaradas brancas receberam a 1ª dose de alguma vacina
contra a Covid-19, contra 1,7 milhão de pessoas autodeclaradas negras, o que significa que a
cada duas pessoas brancas vacinadas, somente um pessoa negra recebeu uma vacina. Ao buscar
compreender o porquê destes números, a entidade sugere que esteja relacionado a como o
racismo impacta inclusive a saúde das pessoas, de forma que a expectativa de vida da população
negra é consideravelmente inferior à da população branca e, até o momento, apenas idosos e
idosas vêm sendo vacinados em larga escala no país.
No mais, embora sejam elevados os números de casos e de óbitos no país, é
significativa a subnotificação quando se trata de pessoas negras, em virtude de falta de
atendimento médico, baixa testagem da população, ausência de comunicação às autoridades
municipais de saúde e de condições de realização de testes rápidos para a confirmação da
doença, cujo valor destoa da realidade financeira da maioria dos brasileiros.
O primeiro registro de morte por Covid-19 no Brasil se deu no Rio de Janeiro
(DIEESE, 2020) e foi justamente de uma empregada doméstica negra, cuja patroa havia
retornado de viagem para a Itália e, embora suspeitasse de estar com Coronavírus e estivesse
aguardando o resultado de exames feitos, não dispensou a trabalhadora de suas funções. A
funcionária residia parte da semana no trabalho, pela distância de casa; passou mal, dando
entrada em um hospital no dia 16 de março de 2020 e vindo a falecer no dia seguinte. Sua
identidade não foi revelada pela família, por temer represálias dos empregadores.
São questões alarmantes, sobretudo no contexto social da pandemia da Covid-19, em
que o distanciamento social é medida de prevenção e proteção orientada pela Organização
Mundial de Saúde – OMS. Este direito vem sendo negado a muitas trabalhadoras domésticas
brasileiras, porque o cumprimento da medida prejudicaria seu sustento.
Agrava o quadro o fato de que, quando estas trabalhadoras domésticas solicitam
dispensa para garantir o direito à vida e à saúde, ou seja, o distanciamento social que lhes devia
ser assegurado, sofrem ameaças de demissão ou diminuição de seus salários, além de serem
confrontadas com justificativas de que podem utilizar transporte público em horário diferente
e de que no serviço doméstico sempre estão lavando as mãos, o que afastaria o risco de
contágio, por exemplo.
Especificamente em relação a esta classe, a Covid-19 evidenciou como as políticas
públicas podem ser racistas e elitistas. No estado do Pará, como ocorreu também no Maranhão
e Rio Grande do Sul (BRASIL DE FATO, 2020), os serviços domésticos foram considerados
serviços essenciais pelos decretos estaduais elaborados em 2020 que instituíram o chamado
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lockdown, isto é, os empregadores puderam obrigar as trabalhadoras domésticas a continuarem
desempenhando suas funções mesmo durante a interrupção de diversas atividades econômicas.
A repercussão negativa foi de âmbito nacional e, dois dias depois, o decreto paraense
foi alterado, sendo mantidos como serviços domésticos essenciais aqueles de cuidados com
crianças, idosos, enfermos e incapazes, desde que verificada a impossibilidade de exercício do
cuidado por morador do mesmo domicílio, mediante declaração emitida pelo contratante. Nos
demais estados, a essencialidade do serviço doméstico foi mantida, mesmo com as diversas
críticas.
Em Pernambuco, ocorreu inclusive o triste e simbólico caso do menino Miguel Otávio
(G1, 2020), que, aos 5 anos de idade, faleceu após cair de uma altura de 35 metros do 9º andar
de um prédio de luxo na capital Recife, no dia 02 de junho de 2020. A mãe da criança, Mirtes
Renata Santana de Souza, mulher negra, era empregada doméstica da família Corte Real,
pertencente à elite pernambucana e cujo empregador era prefeito da cidade de Tamandaré. Em
virtude de não ter sido liberada de seu posto de trabalho e das aulas escolares estarem suspensas
pela pandemia, teve de levar seu filho ao trabalho.
Quando saiu para passear com o animal de estimação dos patrões, o menino ficou aos
cuidados da patroa. Em seguida, foi deixado sozinho por esta no elevador do prédio, tendo ido
até o 9º andar do prédio e acessado uma janela no fim do corredor, onde alcançou a
condensadora de ar-condicionado e subiu na grade existente, que se soltou e causou sua queda.
O comovente episódio estampou as manchetes e matérias dos principais meios de
comunicação da imprensa brasileira, ilustrando o perverso cenário em que as empregadas
domésticas negras brasileiras foram submetidas nessa quarentena e fomentando os debates
sobre os traços escravocratas do trabalho doméstico no Brasil, gerando grande comoção social.
Em virtude do ocorrido, a família Corte Real foi condenada pela Justiça do Trabalho por dano
moral coletivo e em potencial causado à sociedade (G1, 2021). Naquele momento, o ideal era
que Mirtes de Souza, a mãe do menino Miguel, tivesse assegurado o direito de permanecer em
isolamento social em casa, com seu filho, o que não lhe foi permitido.
A morte desta criança deve ser analisada sob o contexto racista e escravocrata do
trabalho doméstico brasileiro, que restou desnudado durante a pandemia da Covid-19 e afeta
as mulheres negras que atuam nos serviços domésticos de forma ainda mais grave, como todos
os dados indicados corroboram.
Na tentativa de reprimir condutas abusivas no ambiente de trabalho, o Ministério
Público do Trabalho exarou a Nota Técnica Conjunta 04/2020 (DIEESE, 2020), que
recomenda, entre outras diretrizes, a dispensa das empregadas domésticas com a garantia de
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suas remunerações, sobretudo quando os patrões suspeitarem estar contaminados pela Covid-
19, salvo em situações de indispensabilidade do serviço. Nestas hipóteses, devem ser
fornecidos equipamentos de proteção individual à trabalhadora, inclusive para as diaristas.
Observa-se, destarte, o apagamento social dessas pessoas, diante da falta de políticas
públicas eficazes para garantir a vida digna da população negra brasileira, visto que, com o
descaso e falta de proteção, estão mais suscetíveis à doenças físicas e psicológicas, baixa
escolaridade, suicídio e violência. Mesmo com programas assistencialistas e a política de cotas,
ainda é escasso o acesso às universidades e a posições de direção e gerência em trabalhos
remunerados.
Achille Mbembe (2016), em seu ensaio sobre necropolítica, a conceitua como a
decisão cabível ao detentor do poder (não necessariamente o Estado) de, exercendo a sua
soberania, determinar quem vive e quem morre em seu território. A lógica é de uma “política
da morte”, que opera sobre indivíduos definidos, a saber, grupos politicamente minorizados e
oprimidos na sociedade, definição facilmente aplicável ao contexto atual envolvendo a
pandemia e a classe trabalhadora brasileira, que contém em sua maioria a população negra
vivente no país. O autor aduz:

Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal poder se
define em relação a um campo biológico – do qual toma o controle e no qual
se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em
grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma
cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo
(aparentemente familiar) “racismo”.

Ao comentar o conceito, Navarro (2020) acrescenta:

A negligência do Estado e de alguns governantes resulta no genocídio de


populações específicas, de grupos que são considerados como perdíveis,
destrutíveis, não passíveis de lamentação. A produção desses “corpos que não
importam” cria um contexto favorável para que a necropolítica do Estado
possa operar e, assim, vidas -que sim, importam! -sejam perdidas.

Nesse aspecto, a população negra é a principal vítima dos descasos envolvendo a falta
de políticas públicas e de inclusão social, como consequência direta da herança escravagista
em que se funda a sociedade brasileira, que impede que negros tenham garantido o direito a
uma vida sadia e digna e autoriza que as decisões sobre o futuro do país sejam determinadas
por homens brancos e da classe dominante, que representam o topo da pirâmide social
brasileira, detentora de privilégios e vantagens diante dos demais.
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A maior vulnerabilização das mulheres nesse período de crise mundial na saúde e a
gravidade do impacto da pandemia para as trabalhadoras domésticas e para a população negra
levaram a Organização Internacional do Trabalho – OIT (DIEESE, 2020) a ressaltar a
importância de promover um trabalho decente para as empregadas domésticas, sobretudo em
tempos de Covid-19.
Isso porque elas enfrentam duras horas de trabalho, expostas a diversos agentes
químicos de limpeza, que podem comprometer a capacidade respiratória, e dependem de
transporte público para se deslocar ao local de trabalho, expondo suas vidas a risco para garantir
uma fonte de renda, e, ainda assim, são desvalorizadas e mal remuneradas por seus trabalhos,
o que revela a discriminação presente nas relações de gênero e de raça.
Ademais, a imposição de isolamento social significa um aumento da demanda de
afazeres domésticos e de cuidados com crianças, eis que toda a família está confinada em seu
lar, o que equivale a um crescimento da sobrecarga de trabalho para esta classe trabalhadora.
De outro lado, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(PnadC), elaborada pelo IBGE (IBGE, 2020), verificou-se o aumento das demissões de
empregadas domésticas no primeiro trimestre de 2020, com redução de 385 mil cargos de
trabalho doméstico no período quando comparado a 2019. Embora inexistam registros dos
meses posteriores, a probabilidade é da tendência ter sido mantida, uma vez que a Covid-19
alastrou o país no período e a pandemia segue dramática. As justificativas utilizadas nessas
demissões foram os cortes de despesas e o risco de contágio pelo vírus.
A Organização Mundial de Saúde – OMS (R7, 2020), por sua vez, alertou que a
contenção do avanço do coronavírus exige o enfrentamento das desigualdades, com a
priorização do cuidado e atendimento aos mais desamparados socialmente.
É certo que o mundo não estava preparado para lidar com uma pandemia desta escala,
porém, não é possível ignorar o abismo social e racial que assinala a maior parte das sociedades
nesse cenário. Em um país como o Brasil, em que dispensar as empregadas domésticas de suas
funções durante uma crise de saúde de proporções globais, cujo vírus possui elevada taxa de
contágio e profunda letalidade, é medida impensável, cabe refletir sobre a imperiosidade de
serem garantidos direitos fundamentais a esta população.
A Covid-19 destacou a urgência do debate sobre a precarização do trabalho doméstico,
desempenhado consistentemente por mulheres negras, desnudando as mazelas experimentadas
pelas domésticas na execução de suas funções e provocando reflexões sobre a dimensão
relacional e racista deste tipo de trabalho.
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É dever do Estado, e da sociedade como um todo, assegurar que as empregadas
domésticas negras sejam incluídas e consideradas na resposta à crise socioeconômica da Covid-
19, que perpassa pela inclusão das pautas destas mulheres nas políticas públicas nacionais, nos
planos institucionais e não institucionais, que devem atuar em diferentes níveis para contemplar
a complexidade da situação, pensando formas novas e consistentes de combater o grave
problema social do racismo, possibilitando a redução dos impactos provocados pela pandemia
para estas mulheres e garantindo-lhes condições mais dignas de trabalho e de vida.
Cabe, ainda, a análise crítica da cultura do trabalho doméstico no Brasil, do fato de
ser exercido por maioria de mulheres negras e das origens escravocratas que o estruturam, com
um olhar cuidadoso sobre as razões que o ensejam e sobre os números elencados nesta pesquisa.
Há de se reconhecer o caráter racista e escravagista dos serviços domésticos no Brasil,
com maior atenção e enfrentamento do preconceito racial e mudança na estrutura política
vigente, que apresenta privilégios e benefícios para uma só classe e não atende às demandas de
todo o povo brasileiro, mormente durante os tempos sombrios da pandemia da Covid-19 e do
negacionismo estatal da doença, que ratificam os existentes descaso e desigualdade social
alarmante.
Logo, é necessária a atuação mútua do Estado e da sociedade no combate ao racismo
e na implementação de políticas públicas efetivas, que assegurem às trabalhadoras domésticas
negras direitos humanos garantidos na legislação e nos tratados internacionais dos quais o
Brasil é signatário e que norteiam a democracia brasileira.

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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

34
CAPÍTULO 4
GESTANTES NEGRAS E A COVID-19: DA
(DES)ASSISTÊNCIA AO PRÉ-NATAL ÀS
CONSEQUÊNCIAS DA DOENÇA
ROSE MARI FERREIRA23
ALCINDO ANTÔNIO FERLA24

Em março de 2020, inicia a pandemia do COVID-19, transformando radicalmente o jeito


de andar a vida de populações inteiras (GOVERNO, 2020). No Brasil, país de desigualdades
sociais imensas, previsões sobre o impacto que ocorreria sobre as populações subalternizadas
historicamente (populações negra e indígena) estavam sendo feitas quando em países
desenvolvidos, já era possível antever o potencial de graves consequências que estava por
acontecer (SANITARISTAS, 2020).
Diferentemente de outros países, o Brasil não apresentou planejamentos estratégicos que
pudessem diminuir os efeitos desastrosos que a pandemia produziria. E como o Sistema Único
de Saúde (SUS), responsável por atender a maioria da população brasileira vem
sistematicamente sendo sucateado, sanitaristas e epidemiologistas alertavam para o possível
colapso do sistema de saúde, com o crescente número de vítimas com a doença, principalmente
aquelas que necessitavam de cuidados especializados, geralmente ofertados pelo sistema
hospitalar.
Assistimos ao desespero de famílias que perdiam seus entes queridos por falta de acesso
aos respiradores, equipamentos utilizados em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI’s), por
conta de um sistema hospitalar que não estava preparado para operar em situações de pandemia.
E nesse crescente cenário de mortes, éramos constantemente bombardeados por fake
news que, semelhantemente à pandemia, produziam efeitos alarmantes, deixando parte da
população em total desconhecimento sobre a gravidade da situação sanitária que o mundo
estava atravessando (5 FAKE, 2020).

23
Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; especialista em Saúde Coletiva
pelo IFRS-campus Alvorada; cirurgiã-dentista pela PUC/RS.
24
Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; orientador do Programa de
pós-graduação de Saúde Coletiva UFRGS.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

35
Nesse contexto trágico, trago um ensaio sobre a situação gravíssima a que foram e estão
sendo submetidas as gestantes nesse país, em especial as gestantes negras durante a pandemia
de COVID-19. E por que falo em especial sobre as gestantes negras durante a pandemia?
Para iniciar, trago o conceito de morte materna (óbito materno) que é a morte de uma
mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término da gestação, independentemente da
duração ou da localização da gravidez. “É causada por qualquer fator relacionado ou agravado
pela gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela. Não é considerada morte materna a
que é provocada por fatores acidentais ou incidentais”(BRASIL, 2009, p. 12).
O Brasil tem hoje o índice de mortalidade materna em 64,5 óbitos para cada 100 mil
nascidos vivos. A meta que foi firmada com a ONU-Organização das Nações Unidas é de 30
óbitos para cada 100 mil nascido vivos até 2030, conforme os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ONGARATO, 2019) Além de o índice brasileiro ser muito longe da meta da
ONU, os índices maiores de mortalidade materna encontram-se entre aquelas mulheres que
vivem em comunidades mais pobres e em áreas rurais.
Em 2014 a taxa de mortalidade materna foi de 64 óbitos por 100 mil nascidos vivos. A
população negra – resultante da soma da população preta e parda – é a mais acometida pela
mortalidade materna. Do total de mortes por complicações na gravidez ou no puerpério, em
2014, 67% foram de mulheres negras (BRASIL, 2020b) (grifos da autora).
De acordo como o Silva (2013) a renda das mulheres negras não chega nem à metade
daquela auferida pelos homens brancos e corresponde a cerca de 56% dos rendimentos das
mulheres brancas (SILVA, 2013, p.118). Essas mulheres negras, quando gestantes, constituem
uma parcela da população que habitualmente já estava em subalternidade pela intersecção de
gênero e raça e agora, na condição de gestantes, têm risco duas vezes maior de mortalidade
materna por COVID-19 do que as mulheres brancas (BRASIL, 2020d).
Falo também sobre as gestantes negras porque como já nos alertava Sueli Carneiro
(2011), a pobreza tem cor nesse país, e as mulheres negras, estão na base da pirâmide social
abaixo dos homens negros, das mulheres brancas e dos homens brancos. A figura abaixo, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) ilustra a informação:
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

36
Figura 1: Pobreza, distribuição e desigualdade de renda.

Fonte: Retrato das Desigualdades de gênero e raça. (IPEA, 2011.)

A pandemia revela que as mulheres negras e pobres são as mais afetadas e os fatores
classe social, gênero e cor estão presentes. Esse desvelamento da situação em que mulheres
negras e pobres vivem pode ser também compreendido a partir do conceito da
interseccionalidade, como nos traz Kimberlé Crenshaw
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação.
Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe
e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições
relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas geram opressões=s que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p.
177).
Dessas evidências, a preocupação com a assistência ao pré-natal e parto das gestantes
negras requer maior atenção por parte das instituições responsáveis pela assistência, em todos
os níveis de atenção à saúde.
Para falar sobre a assistência à saúde da gestante, iniciaremos pelo programa de pré-natal, que
consiste no acompanhamento sistemático das gestantes, através de consultas, solicitação e
realização de exames, monitoramento e avaliação do período gestacional. De acordo com o
Ministério da Saúde, o pré-natal de baixo risco deve ser acompanhado preferencialmente em
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

37
uma Unidade Básica de Saúde, pelo(a) enfermeiro(a) e pelo médico(a), com consultas
intercaladas até a 28ª semana – mensalmente; da 28ª até a 36ª semana – quinzenalmente; da
usuários, sendo considerada a porta de entrada preferencial da gestante no Sistema Único
de Saúde. Com a pandemia, muitas Unidades Básicas de Saúde interromperam os atendimentos
considerados eletivos, desmarcaram consultas agendadas e não realizaram procedimentos de
acompanhamento de usuários com doenças crônicas (Hipertensão e Diabetes). Nesse processo,
também as consultas de acompanhamento do pré-natal no início da pandemia foram
interrompidas.
A população que é assistida pelo SUS é formada por mais de 75% pela população negra
(QUASE, 2017). E é exatamente essa população a mais atingida pelas consequências trágicas
dessa pandemia. Importante lembrar que a primeira vítima pela COVID-19 foi uma mulher
negra, empregada doméstica, moradora em uma periferia no Rio de Janeiro (MELO, 2020).
Em função da pandemia, algumas gestantes ficaram impossibilitadas de realizarem o
acompanhamento de sua gravidez porque a Unidade Básica de Saúde não estava ofertando esse
atendimento. Em que pese o fato de alguns profissionais na rede privada oferecessem consultas
de forma remota (com as tecnologias da internet), aos usuários do SUS esta modalidade de
consulta à distância não foi oferecida ou foi oferecida em poucas instituições. Nesse período,
os Governos Estaduais e Municipais emitiam sequências de notas técnicas, algumas semanais,
com diretrizes de teor confuso, que pouco contribuíam para melhoria do acesso aos
atendimentos.
Com o avanço da pandemia, em agosto de 2020, o governo federal destina recursos para
os estados e municípios, incentivando que as gestantes tenham atendimento do pré-natal nas
unidades de saúde. Através da Portaria 2.222 de 25 de agosto de 2020 (BRASIL, 2020a) o
governo federal destinará incentivo financeiro de R$ 260 milhões, com várias ações de apoio
à gestação e puerpério saudáveis no contexto da pandemia. Entre essas ações:

• Fomento da testagem de gestantes e puérperas para SARS-CoV-2


• Incentivo adicional por gestante e puérpera com cadastro atualizado na Atenção
Primária;
• Incentivo de R$ 800,00 para as equipes de Atenção Primária que possuam
gestante cadastrada em qualquer idade gestacional, a fim de apoiar as ações de
cuidado e prevenção da COVID-19;
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

38
• Incentivo de até R$ 7.280,00 para apoiar distanciamento social para mulheres
grávidas e puérperas que não possuam condições para realização de isolamento
domiciliar;
• Incentivo financeiro de R$ 10.000,00 para Casas de Gestante, Bebê e Puérpera
em funcionamento para prevenção de Covid-19.

Em setembro de 2020, o Ministério da Saúde pública o Manual de Recomendações para


a Assistência à Gestante e Puérpera frente à Pandemia de Covid-19, com o objetivo de orientar
o acesso e a horizontalidade da assistência durante a pandemia Covid-19, abordando as vias de
transmissão, o diagnóstico precoce e o adequado manejo das gestantes e puérperas nas diversas
fases da infecção, definindo diretrizes que evitem a morbimortalidade materna e os agravos ao
concepto (BRASIL, 2020c, p. 6). Dentre as diretrizes e recomendações que o manual
preconiza, consta que

Recomendação 4: Para diminuir o risco de exposição, para gestantes de risco


habitual está indicado o espaçamento de consultas, substituindo alguns
encontros presenciais por atendimento remoto. As gestantes devem receber
orientações claras sobre a sequência de consultas e onde se dirigir em caso de
urgência. Gestantes com gravidez de alto risco devem manter as consultas
presenciais (BRASIL, 2020c, p. 55).

As recomendações do governo federal não levam em conta as enormes disparidades


regionais desse Brasil assimétrico. Faço esse texto a partir da realidade que vivencio, como
servidora municipal, lotada em uma unidade básica de saúde, localizada na periferia de um
município na região metropolitana de uma capital brasileira. A realidade a que me refiro é a de
uma unidade de saúde com poucos recursos de acesso à internet e de algumas unidades sem
internet; de muitos usuários que frequentam a unidade de saúde não possuírem condições
financeiras para manter dados móveis para acessar a internet, em que pese, que boa parte dos
usuários hoje possuem aparelho celular. Estamos falando de “Brasis” e não de Brasil,
parafreaseando novamente Carneiro (2011).
Ao analisarmos à assistência ao parto, resultados da pesquisa realizada por Leal et al.
(2005) evidenciaram que em relação ao atendimento na maternidade, quase 1/3 das pardas e
negras não conseguiu atendimento na maternidade no primeiro estabelecimento procurado.
Quanto ao parto vaginal, negras e pardas receberam menos anestesia quando comparadas com
gestantes brancas. Analisada a peregrinação em busca de atendimento em uma maternidade,
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

39
constatou que a peregrinação foi de 31,8% entre as negras, 28,8% nas pardas e 18,5% nas
brancas (LEAL et al., 2005).
As populações negra e indígena, vítimas da desigualdade social, são as que enfrentam
as maiores dificuldades de acesso à saúde. Jurema Werneck (2020) nos alertava com a
campanha Nossas Vidas Importam sobre a responsabilidade das autoridades sanitárias em
tomar medidas que realmente atendessem às necessidades das populações em situação de
vulnerabilidade. Salientou ainda, que a Estratégia de Saúde da Família, desmantelada pelos
ataques sucessivos do governo, não é suficiente para dar conta das necessidades na Atenção
Primária (WERNECK, 2020).
Concordando com o pensamento do Jurema Werneck, finalizo esse texto relembrando
que as normas, diretrizes, portarias e demais documentos que são emitidos pelos governos são
de extrema importância para garantir direitos de assistência à saúde. Entretanto, sem a
exigência de que sejam cumpridas as determinações, sem fiscalização das ações implementadas
e sem mudança na estrutura da sociedade, sem a mudança de atitude das pessoas que compõem
as instituições, as perspectivas de quadros melhores são deficitárias.

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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

42
CAPÍTULO 5
DESIGUALDADES E PRECONCEITOS SOBRE O
CORPO NEGRO DENTRO DA ESFERA
NECROPOLÍTICA
ANA CAROLINA MORAES DE CASTRO25
ANA CAROLINA CADEMATORI26

Conforme Nunes e Santos (2016) “as desigualdades, nas ciências sociais, são tratadas
como processos de produção e distribuição de bens e recursos, materiais e simbólicos, escassos
na sociedade” (p.2). Dentro dessa compreensão, pode-se relacionar as desigualdades também
como uma produção histórica de desvantagens para determinados grupos sociais sob uma
ideologia de diferença sexual, étnica e racial. Segundo estudos sobre a desigualdade social,
alguns eixos giram em torno de sua problemática, na qual são: as estruturas ocupacionais;
distribuição de rendimentos, relações sociais de produção, padrões de distinção social e
diferenças no estilo de vida. Essas temáticas correspondem a teorias específicas nos quais
tiverem a influência de autores como Marx, Durkheim, Weber e Bourdieu. Todavia,
características como raça e sexo se sobressaem a essas temáticas, pois criam distribuições
distintas de bens e recursos vindas desses fatores (NUNES, SANTOS, 2016).
No que se refere às desigualdades sociais, elas podem ser manifestadas através de seu
caráter multidimensional e dinâmico, sendo necessária uma perspectiva interseccional 27. Em
suma, sua base estrutural está relacionada às disparidades dos sistemas educacionais,
infraestruturas básicas e logísticas. A apropriação de renda, concentração fundiária,
concentração espacial e fatores subjetivos como o gênero, etnia, classes sociais, bem como
aspectos culturais, também, podem estar presentes nesse processo. (POCHMAN, SILVA,

25
acadêmica de Psicologia na Faculdade Integrada de Santa Maria - FISMA. Email:
anacarolinamdecastro@gmail.com
26
Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Econômicas; Universidade Federal do Piauí
– UFPI
E-mail: eduoliveira@ufpi.edu.br
27
Ribeiro (2018), cita que “as mulheres são oprimidas de modo diferente, tornando necessário discutir gênero
com recorte de classe e raça, levando em conta as especificidades de cada uma” (p.45). Por essa compreensão, a
interseccionalidade vem no intuito de compreender cada especificidade e representação dos sujeitos, visto que os
sujeitos são distintos por serem de contextos, posições e posturas diferentes.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

43
2020). Diante disso, os resultados de uma pesquisa feita pela Pesquisa Social Brasileira
(PESB), mostrou que os indivíduos que possuem sua cor fora da classificação branca, como
por exemplo populações indígenas, negros e pardos, possuem ao menos metade de toda a
desigualdade presente no país (MUNIZ, 2016).
Os autores Nunes e Santos (2016) demonstram em sua pesquisa que pessoas negras
estão em desvantagem social comparado a indivíduos aos brancos, pois suas desigualdades
estão presentes dentro de um “ciclo de desvantagens acumulativas”, sobretudo no que se refere
às questões educacionais, ocupacionais do trabalho, ocupações territoriais e culturais. Sendo
assim, pode ser caracterizada uma discriminação racial pois,

Discriminação racial é empregada tanto como ação ou comportamento direto


e explícito de inferiorização e negação do outro, quanto no sentido de
preterição ou discriminação velada, que utiliza por vezes o próprio silêncio
ou outra estratégia sutil para impedir, negar ou dificultar o acesso do outro a
determinados bens materiais ou simbólicos (NUNES, SANTOS, 2016, p. 3).

O legado histórico das desigualdades faz com que influencie na discriminação racial,
fazendo com que no mercado de trabalho as pessoas negras não conquistem os mesmos níveis
econômicos que pessoas brancas, mesmo que sua produtividade seja a mesma. A discriminação
racial, sendo assim, se efetiva desde a escolarização, da escola para o mercado de trabalho até
chegar na posição social. Nesse sentido, os efeitos discriminatórios colocam barreiras para os
indivíduos em desigualdade não ocupem determinadas posições sociais (NUNES, SANTOS,
2016).
A desigualdade de renda também pode ser caracterizada como uma manifestação das
desigualdades de gênero e raça, visto que diferenciais de renda separam mulheres e homens,
brancos e negros. A renda é um fator importante a ser analisado pois seu caráter influencia nas
posições sociais, materiais ou não, podendo influenciar na distribuição de poder, riqueza e
prestígio. Todavia, a renda não é o único fator que influencia na desigualdade. Além do mais,
podemos compreender que a desigualdade é formada por uma estrutura baseada em uma
divisão de trabalho, através do legado da economia política (NUNES, SANTOS, 2016).
Outro fenômeno importante diz respeito à concentração espacial, onde formou-se
através do aumento da produtividade e competitividade capitalista e pelo crescimento dos
monopólios e oligopólios. As desigualdades regionais produzem estruturas distintas nas quais
renda, ocupação, sistema educacional estão dentro desses processos. O abismo que concentra
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

44
esses espaços através da desigualdade, são feitos através do intuito de separar os territórios
desenvolvidos e os espaços repletos pela pobreza (POCHMAN, SILVA, 2020).
Dentro dessa problemática, Penna e Ferreira (2014) identificam a vulnerabilidade de
certos grupos dentro das estruturas de oportunidades onde estas são ofertadas pelo mercado,
Estado e pela sociedade. O Estado opera de uma maneira mais considerável por conta da sua
influência nas políticas sociais (escolas, saneamento básico e habitação) e de estrutura urbana,
sendo assim “as estruturas de oportunidades estão relacionadas entre si, pois facilitam o acesso
a outras oportunidades, bens e serviços” (p.2).
Tendo como questão as desigualdades “socioespaciais”, Frehse (2016) as classifica
como uma perpetuação das desigualdades, tendo a falta de acesso social das periferias nesse
contexto. Em suma, as desigualdades de acesso periféricas se referem à falta de políticas
públicas e ao mercado de trabalho. Além do mais, a distribuição espacial das cidades também
diz respeito à segregação de determinados grupos, tanto quanto uma distribuição desigual que
divide a cidade.
Nesse sentido, essas disparidades contribuíram para as regiões periféricas das cidades
e do país altos índices de desemprego, baixa remuneração, trabalhos precários, informalidade
e pobreza. Além do mais, os estados periféricos vão ser úteis para as centralidades por serem
consumidores do mercado e por fornecer matéria-prima e mão de obra baratas. Dessa forma,
as regiões Sudeste e Sul acabam possuindo uma grande infraestrutura produtiva em suas
centralidades e as regiões Nordeste e Norte, são marcadas pela falta de saneamento básico,
energia e abastecimento de água (POCHMAN, SILVA, 2020).
Com base no que foi comentado, a renda pode ser considerada como uma variável das
posições de classe como um dos componentes de desigualdades. As desigualdades têm sido
encontradas dentro de grupos e classes vulneráveis, visto que a estrutura das desigualdades tem
demonstrado ainda a presença hierárquica entre cor e sexo, resultando que homens brancos
tenham ainda os meios de produção e as rendas mais altas e as mulheres negras com resultados
consideravelmente bem menores. Posto isso, as relações sociais se tornam complexas visto que
há uma manutenção de hierarquias e dificuldades em adquirir direitos e na reivindicação da
igualdade (NUNES, SANTOS, 2016).
As categorias de raça e sexo são operadas por mecanismos estruturais que tem o intuito
de classificar as pessoas em várias categorias. Esses efeitos são vistos, ao examinar as
diferenças que o racismo e o sexismo têm operado para manter pessoas fora do acesso à
educação impedindo que mulheres negras, mulheres brancas e homens negros alcancem
posições desejadas na estrutura social. Nota-se também na presente pesquisa, que a distribuição
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

45
da raça em relação a ocupação de empregos é desigual para os indivíduos negros, podendo
dizer que eles não possuem representatividade nos índices de maiores rendas e por não terem
disponíveis as mesmas condições que pessoas brancas (NUNES, SANTOS, 2016).
Os estudos sobre desigualdades sociais, também demonstram que a discriminação e o
preconceito racial estão interligado pelas posições diferentes de indivíduos na estrutura social,
levando à produção de diferenças e hierarquias. Além disso, essas pesquisas apontam que a
estrutura brasileira possui uma forte rigidez e uma manutenção das desigualdades pelas
posições distintas encontradas entre brancos e negros. Um exemplo desse fator, é os grandes
índices de desemprego, o que demonstra que a raça está atrelada a um estigma pela procura de
emprego (NUNES, SANTOS, 2016).

Nesse sentido, pode-se compreender que: Quanto mais rico é o contexto


investigado, maior o peso do atributo racial na explicação das disparidades
entre indivíduos negros e brancos. Desse modo, a raça reflete tanto posições
individuais de status – definido pela cor da pele – como também redes de
relações na sociedade, configurando-se como uma variável estrutural
(NUNES, SANTOS, 2016, p.5).

As desigualdades segmentam territórios e grupos, sendo a pobreza não apenas a


consequência dos fatores econômicos, mas também como um fator complexo influenciado por
várias reproduções sociais, sendo assim “a desigualdade de oportunidades entre indivíduos é
problemática. É o caso de indivíduos que, por seus atributos pessoais, teriam condição de
prosperar muito e não o fazem por falta de oportunidades” (PENNA, FERREIRA, 2014, p.10).
A lógica segregacionista e classificatória é descrita por Frehse (2016) como uma
maneira de produzir assimetria nos processos políticos e econômicos, considerando as
desigualdades entre ricos e pobres nas cidades. Posto isso, se tem como referência uma
reprodução de uma estrutura socioespacial que separa os indivíduos em espaços distintos, como
por exemplo o centro das cidades e as periferias. Além disso, autora traz a importância de se
atentar ao espaço social no intuito de fortalecer o debate sobre problemas como a pobreza,
segregação e habitações da cidade, justamente por que a habitação é um pressuposto de se fixar
um determinado espaço na sociedade, como também o ambiente espacial repleto de influências
que as desigualdades perpetuam na sociedade.
Barata (2002) também destaca dois aspectos importantes para se pensar na inserção
social e econômica da população latino-americana, na qual estão o modo de vida e a inserção
na estrutura produtiva. O modo de vida, diz respeito às condições de manutenção de um estilo
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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de vida, tais como a renda. A inserção produtiva diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho
e as condições de trabalho existentes. Sendo as condições de vida as circunstâncias de
sobrevivência e materiais que permeiam a cultura, o meio social e a vida dos sujeitos e
determinados grupos sociais.
Historicamente, o poder público tem falhado em tentar solucionar as dificuldades
sociais através de políticas públicas. É visto a precariedade dos serviços públicos à população
que necessita desses serviços, o aumento das violências e sucateamento dos transportes
públicos, da saúde e da educação. Salienta-se a necessidade de se atentar aos aspectos políticos
no que tange às desigualdades. Além disso, destaca-se através de pesquisas, onde foi
demonstrado que em países da Europa onde tiveram seus melhores índices de saúde, foram
exercidos por governos sociais democratas e trabalhistas, pois seus interesses foram na
instauração de políticas redistributivas e já entre os piores índices, estão governos liberais ou
cristãos (BARATA, 2002).
Nesse sentido, Paim (1999) destaca que as condições de vida vão além do material, do
estilo de vida e de aspectos aquisitivos, pois as políticas públicas são as responsáveis ao garantir
o acesso à saúde e as condições para a sobrevivência e, nesse sentido, dando ênfase na questão
política para a vida dos indivíduos. É importante ressaltar que deve ser uma preocupação do
Estado em restaurar áreas degradadas e a criação de políticas públicas, por conta do perigo que
ali cerca para a população e, também, pela busca de mais equidade na gestão das cidades.
Ao que se refere à população negra, o preconceito e a discriminação a esse grupo se
inicia de uma forma distinta no Brasil, a partir da entrada dos negros ao país e a sua exploração
através da mão de obra escrava. Além do mais, para Silva (2003) “o racismo traz, na sua
genealogia, um processo de negação ao considerar que homens e mulheres sejam diferentes
daquilo que se convencionou chamar de maioria branca, apenas pelo caráter hereditário e tom
da pele” (p.2).
Com a abolição da escravatura, mesmo assim os negros tiveram que ficar sob uma
sociedade branca através de diversas desigualdades, principalmente territoriais, laborais e
econômicas. Mezan (1998), também, aponta o racismo como uma forma que assume o
preconceito quando o grupo portador das características repugnantes ou indesejáveis é uma
raça, e não uma profissão, uma corrente de opinião, os moradores de certa região ou localidade
etc. Por trás da aparente tautologia - o racismo é o preconceito contra uma raça - oculta-se um
complexo problema, que é o da própria conceituação do que seja uma “raça” (MEZAN, 1998,
p. 227).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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É possível dizer que o Brasil, desde seu período colonial até os dias atuais, é marcado
pela violência em sua história e sua organização social. Sendo constituído pelo colonialismo, a
monocultura, exploração da mão de obra escrava, hierarquizações de poder e grandes
propriedades rurais, é caracterizado por uma sociedade que legitima relações de dominação
(ADORNO, 2002). Percebe-se que esse longo processo de exploração e colonização teve
consequências negativas, tendo em vista que algumas populações desaparecerem através do
lastimável genocídio indígena ao longo dos anos, devido a doenças trazidas da Europa às
comunidades e por problemas climáticos. Ainda, convém lembrar que os exploradores tinham
a necessidade de escravizá-los de forma brutal e para além da tomada de suas terras, os
indígenas trabalhassem para eles. Os portugueses, não respeitaram sua cultura, sua vida
comunitária e a situação ocorreu de uma forma tão dura que muitos morriam de tristeza,
adoeciam ou buscavam a bebida como conforto ao ser tomada suas terras, crianças e mulheres
(PREZIA, 1989).
Em virtude dos fatos mencionados, o desaparecimento das comunidades indígenas
pode ser refletido como uma questão histórica lastimável e que ocorreu ao longo do
desenvolvimento do país, caracterizando o homem branco pelo seu caráter de exploração e
colonização. Além do mais, o desrespeito ao nativo persiste até hoje, marcando uma estrutura
que reflete a realidade do Brasil através de uma violência colonial (WEIS, 2016). O descaso
com a vida e negros e indígenas, seus valores, cultura e estilo de vida, a sua cultura ainda está
presente na realidade do Brasil
Pode-se perceber a relação da desumanização com o preconceito, visto que coloca
determinados grupos realizam ou sentem o medo, a ameaça e a dominação sobre o outro. Para
Freitas (2019), o preconceito se realizada através de algumas condições entre os grupos, onde
uma delas é o sentimento de superioridade ao outro, na qual a consciência que o outro está em
um uma posição inferior gera uma distância simbólica, uma posição de exclusão e, também, o
medo, vindo de uma percepção de ameaça.
Nesse viés, a produção de diferenças no que diz respeito a determinados grupos, é visto
como uma forma de excluir, inferiorizar ou desvalorizar um sobre o outro (FREITAS, 2019).
No contexto brasileiro, a história evidencia a exploração tanto quanto a desumanização dos
indígenas é presente desde a invasão dos colonizadores no país. Conclui-se, que os indígenas
foram a primeira minoria no Brasil, por conta da invasão de uma diferença física e cultural,
feita pelos colonizadores, no qual ocorreu de um modo violento e genocida (WEIS, 2016).
Conforme o exposto, visto que as minorias sociais (nas quais se inserem as pessoas
negras, mulheres, indígenas e a comunidade LGBT) passam por construções de estereótipos e
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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discriminações e preconceitos, que para Silva (2003, p.1) é “um conjunto de crenças, atitudes
e comportamentos negativos atribuídos a membros de determinados grupos sociais”. Além
disso, para o autor supracitado, na sociedade torna-se cada vez mais custoso compreender o
outro como um indivíduo semelhante pois características como a sexualidade e traços físicos
ainda são alvos do preconceito e discriminação, onde as minorias acabam sendo
desqualificadas por conta de suas particularidades.
O preconceito visto como um comportamento negativo, seja para determinado sujeito
ou certos grupos, pode levar a atuação através de julgamentos, sentimentos ou pensamentos
hostis sobre objetos ou pessoas (SILVA, 2003). Dessa forma, uma pesquisa feita em 2010,
através de uma entrevista com 2006 pessoas por todo o Brasil, mostrou que quando os(as)
brasileiros(as) foram questionados sobre certos grupos nas quais não gostariam de encontrar os
resultados encontrados foram grupos étnicos e raciais (LIMA, FARO, SANTOS, 2016). Sendo
assim, para Mezan (1998)

o preconceito é definido como: é o conjunto de crenças, atitudes e


comportamentos que consiste em atribuir a qualquer membro de
determinado grupo humano uma característica negativa, pelo simples
fato de pertencer àquele grupo: a característica em questão é vista como
essencial, definidora da natureza do grupo, e portanto adere
indelevelmente a todos os indivíduos que o compõem (MEZAN, 1998,
p. 226).

Nessa compreensão, a percepção do outro como menos humano é também


compreendida como um processo histórico que é antigo e ainda presente na nossa sociedade.
Lima, Faro e Santos (2016) analisam historicamente como os escravos não eram vistos como
um indivíduo, as vítimas do holocausto eram chamadas de “vermes” pelos nazistas, os
imigrantes eram relacionados às doenças e todas as pragas que vinham aos seus países e os
indígenas tendo estereótipos como selvagens em relação aos colonizadores.
Pode-se relacionar que a criação de estereótipos negativos sobre certos grupos
proporciona num processo de desumanização desses sujeitos, pois muitas vezes os classificam
dentro de representações do bem versus o mal, humanos e animais e etc, negando a sua
humanizada em relação a outros grupos, onde “a desumanização decorre da criação de
hierarquias entre os grupos, em que um se considera mais humano que outro. Nesse caso, um
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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dos grupos se afirma possuidor de características especiais e, simultaneamente, nega ao outro
a posse de tais atributos” (LIMA, FARO, SANTOS, 2016, p.2)
Dentro dessa problemática, insere-se a necropolítica, um campo de estudos explorado
inicialmente por Mbembe (2016), onde seu questionamento das políticas em forma de guerra
se dá através de “que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo
ferido ou morto)? Como eles estão inscritos na ordem de poder?” (MBEMBE, 2016, p. 2).
Nesse sentido, a necropolítica está relacionada a uma política de morte, onde o referido autor
irá questionar principalmente os contextos de guerra e países colonizados na qual o racismo
atua de uma maneira estrutural.
Mbembe (2016) é um filósofo camaronês, que denuncia a ideia de inimigo nos países
onde há guerra e formados por estados de exceção. Além disso, o autor ressalta que as primeiras
experiências biopolíticas foram o colonialismo e a escravidão pelas questões raciais que
dividiram humanos e não humanos. Gonçalves (2019) cita exemplos do sistema necropolítico
atuais que se dão no caso da Palestina, onde através de uma biopolítica pautada em mecanismos
necropolíticos, populações sofreram através de instrumentos de guerra, a apropriação
territorial, ataques e destruição de casas, falta de abastecimento de água, inacessibilidade de
energia elétrica e o uso da violência (GONÇALVES, 2019).
Agostini e Castro (2019) evidenciam como a atual política neoliberal implementa
políticas de morte. A principal estratégia do sistema capitalista, está na eliminação de quem
não interessa para as classes dirigentes e o Estado. Nesse sentido, os indivíduos que não
consomem ou não produzem representam indiferença para a sociedade, sendo alvos de
violências silenciosas que o deixam morrer através das exclusões, desigualdades sociais e
políticas de austeridade. Em suma, as estratégias de morte são cruéis para os que vivem em
situações precárias de vulnerabilidade e à margem da sociedade (AGOSTINI, CASTRO,
2019).
Mbembe (2016) coloca que os países em um contexto colonial não foram organizados
de uma forma humana, pois se configuram como zonas em que imperam as violências, as
guerras e as leis jurídicas podem ser suspensas em um estado de exceção, como descrito por
Agamben (2003), colocando-se à serviço de uma política de morte. Nesse sentido, Mbembe
(2016) compreende que as políticas coloniais modernas interferem em registros distintos
biológicos e sociais. Nesse sentido, para Gonçalves (2019) a devida compreensão da
necropolítica é de suma importância para questionar e denunciar um país em um contexto de
guerra, com políticas de exceção que autorizam a violência e o genocídio das populações
vulneráveis (GONÇALVES, 2019).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

50
Gonçalves (2019) reitera que os corpos periféricos, negros, indígenas, femininos e
LGBT muitas vezes vão ocupar espaços em instituições que os interrogam sobre seu verdadeiro
valor humano. Nesse contexto, está inserida a colonialidade que se caracteriza por uma matriz
predatória política, ética, material e cognitiva (GONÇALVES, 2019). As instituições
brasileiras irão se atravessar por essa matriz, num contexto de exploração pois,

A colonialidade não depende da existência de colônias: ela se reatualiza


permanentemente, produzindo novos arranjos institucionais e formas de
expropriar, dividir, subalternizar e invisibilizar grupos, incorporando e
intensificando graus de opressão. Enquanto matriz, a colonialidade se instaura
no projeto colonial europeu. Por isso, precisamos dizer, mesmo que
brevemente, algo sobre os eventos coloniais que se deram a partir do final do
século XV. Foi o momento em que os modos de viver, ver e produzir europeus
foram projetados para outros territórios enquanto norma, constituindo a
relação metrópole-colônia. Tal projeção partia do entendimento dos
territórios das colônias como espaços do “não ser”, dos “não humanos” e da
não propriedade e, portanto, da total exploração e liberdade (GONÇALVES,
2019, p.3).

Historicamente há a presença de relações desiguais estabelecidas na sociedade, onde a


necropolítica assumirá uma forma de poder, onde através de uma hierarquia “esse poder sobre
a vida do outro assume a forma de comércio: a humanidade de uma pessoa é dissolvida até o
ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu dominador”
(MBEMBE, 2016, p.11). No pensamento político moderno e no imaginário europeu, a vida
colonizada estando em um contexto desigual, se insere dentro de uma conjuntura que atua em
sua subjugação do corpo, teorias médicas legais, regulamentações da saúde, teorias sobre a
degeneração e raça, na qual o poder exerce uma prática de soberana sobre certos corpos
(MBEMBE, 2016).
Nesse sentido, é possível dizer que a produção de dicotomias humanas vindas do
pensamento europeu, marca um imaginário brasileiro através de um sistema colonial. Sendo
assim, a categoria raça é importante para compreender tais processos, pois a raça é um
fenômeno político que interfere nas relações sociais brasileiras. Nesse sentido, podemos
compreender o racismo através da influência colonial, onde se “instaura um padrão de
sociabilidade e das subjetividades, estabelecendo um novo universo de relações. A construção
de identidade pela negativa da humanidade, pela subalternização e invisibilização de sujeitos,
encobre, limita e extermina formas de estar no mundo” (GONÇALVES, 2019, p.6).
No caso da escravidão, o escravo colonizado possui um lugar de não humano,
resultando em perdas de todos os seus direitos: sua família e seu lar, seu corpo, direitos
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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humanos e políticos, pois “a vida de um escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte
em vida” (MBEMBE, 2016, p.11). Sua morte social, se dá através de uma expulsão de sua
humanidade na sociedade, através de uma dominação política absoluta sobre de sua vida
(MBEMBE, 2016).
Nessa compreensão, instaurou-se uma representação de divisão humana sobre os
escravos, vinda do pensamento europeu, onde os brancos seriam donos do “novo mundo”,
ocupando-se da metrópole com maiores possibilidades e os escravos sendo dependentes da
colônia e também inferiorizados (GONÇALVES, 2019). Através disso, a divisão hierárquica
entre humanos e não humanos foi colocada ao homem ocidental, pela exclusão dos corpos e a
reprodução da diferença entre os territórios e a população. Além do mais, há também distinção
entre homens e mulheres, marcando por uma “colonialidade de gênero” (LUGONES, 2014).
No Brasil, encontram-se classes dominantes, descendentes de senhores de escravos na
qual segundo a compreensão de Ribeiro (2015) e Mbembe (2016), essas classes consideram
que certos humanos são objetos e através de um comportamento perverso, exercem sobre o
país uma máquina necropolítica na qual determinam-se as mortes. Além disso, Agostini e
Castro (2019) apontam que a história do Brasil é marcada pela necropolítica em sua genealogia.
Considerando que o Estado brasileiro é perpassado pela colonialidade, é visto que o
país ainda é marcado por problemas estruturais como o sexismo e o racismo, onde um
genocídio violento e sistemático marcam a cidadania daqueles considerados não humanos.
Conforme os Atlas de Violência de 2018, o Brasil cada vez mais é marcado por um crescente
conflito violento, pois em 2016, na última década foi registrado a morte de 500 mil indivíduos
por homicídios (GONÇALVES, 2019).
Em vista disso, Mbembe (2016, p.14) vai compreender que a soberania é a capacidade
de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é”. Além do
mais, a necropolítica atua num âmbito de escolha entre a vida e a morte, pois as tecnologias de
destruição ocorrem em um sentido mais tátil, sensorial e anatômico, onde os mecanismos de
morte estão mais preocupados na destruição em massa do que a disciplinarização dos corpos
(MBEMBE, 2016), que é o caso dos “massacres” que ocorrem cotidianamente no Brasil.
Da mesma maneira, grandes antagonismos sobre diferentes grupos sociais se dá por
conta de práticas violentas e discursos autoritários, nas quais, atualmente, configuram-se
através da interligação entre o neoliberalismo e a necropolítica (AGOSTINI, CASTRO, 2019).
Mbembe (2018) levanta o questionamento acerca das políticas de poder atuais “em que o
político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do
inimigo seu objetivo” (AGOSTINI, CASTRO, 2019, p.4).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

52
Conforme Butler (2018) o neoliberalismo fomenta uma construção do imaginário do
inimigo que se dá através do estímulo ao individualismo, onde o sujeito deve buscar a sua
própria responsabilidade social e individual para alcançar os privilégios que deseja e o sistema
estrutural o impede. Assim, para Agostini e Castro (2019) é estabelecida a ameaça constante e
a precariedade, pois “dispensável ou potencialmente dispensável, o sujeito experimenta a
ansiedade de maximizar seu próprio valor de mercado e “matar seus inimigos” (p.5). E além
disso, como se não bastasse a instauração de políticas de morte, o sistema neoliberal estimula
que os indivíduos privilegiados desconfiem dos excluídos socialmente, sendo seu sofrimento é
indiferente para o resto da população. A ideia instaurada é que os indivíduos excluídos não são
confiáveis, são desagradáveis e diferentes justamente por ameaçaram à ordem social
(AGOSTINI, CASTRO, 2019).
Entretanto, Mbembe (2018) cita que não é possível compreender a lógica violenta do
Estado sem lembrar da escravidão - uma das primeiras manifestações biopolíticas. Além do
mais, para Agostini e Castro (2019) a escravidão distinguiu o humano e o não humano e no
caso do Brasil, as instituições políticas se estruturaram por esse viés que continua presente no
imaginário brasileiro - principalmente pelas classes dominantes, pelas práticas políticas e
algumas frações das classes médias. Além disso, apesar da abolição da escravatura, a população
negra não retirou todo seu legado de exclusão e marginalização de uma hora para a outra, pois
ainda permanece a ideia que essas pessoas merecem a morte, não devem ter seus direitos
garantidos e poderiam ser violentadas através da segurança pública (AGOSTINI, CASTRO,
2019).
Na sociedade atual, os imaginários culturais existem dentro de um contexto de
hierarquias, exclusões, classificações de indivíduos, produções de fronteiras e zonas de vida e
da morte (MBEMBE, 2016). Essa construção de imaginários distintos dá lugar a diferentes
direitos humanos, onde o exercício da soberania atua em fins diferentes conforme determinada
categoria de indivíduos. Nesse contexto, exemplificamos que a “soberania significa ocupação,
e ocupação significa relegar o colonizado em uma terceira zona, entre o status de sujeito e
objeto. Esse foi o caso do regime do apartheid na África do Sul” (MBEMBE, 2016, p.14). A
necropolítica, dessa forma, atua no âmbito do “fazer morrer”, pois o governo produziria zonas
de morte e ritos de eliminação. Sendo assim, no contexto brasileiro podemos encontrar uma
inter-relação contínua desses aspectos pelos traços coloniais.
Em relação à política contemporânea, a necropolítica dá espaço para uma reflexão
sobre os lugares em que os corpos ocupam sobre a vida e a morte (AGOSTINI, CASTRO,
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

53
2019). Dessa maneira, Mbembe (2018) desloca a compreensão foucaultiana sobre biopoder
para destacar cenários coloniais, trazendo à tona a sua compreensão sobre necropolítica:

O conceito de necropolítica como paradigma da divisão entre segmentos


sociais, que regulamenta – e regulariza – o poder de gestão da vida, vai ditar
quem pode viver e quem deve morrer para garantir o funcionamento da
máquina de guerra capitalística. Para tanto, produz o esvaziamento do status
político dos sujeitos e sua redução a um emaranhado bioquímico inumano,
buscando assegurar a legalidade de toda sorte de genocídios, por ação bélico-
militar ou por abandono. A máquina de guerra capitalística, no
contemporâneo, age para perpetuar os ciclos de exploração da grande maioria
por alguns poucos na (re)composição das operações necropolíticas e
neoliberais (AGOSTINI, CASTRO, 2019 p.5).

Além disso, é visto que as áreas e instituições essenciais nas quais as populações
vulneráveis necessitam tais como a educação, saúde, diversidade e a seguridade social
permanecem em um campo aberto de ataques. E, no mesmo sentido, também acontecem as
ações repressivas da polícia sobre as periferias, os genocídios de minorias sociais e a
invisibilidade das mortes ocorridas. (AGOSTINI, CASTRO, 2019). É nesse contexto que,
apesar da promulgação da Constituição de 88, (onde se prevê que todos os cidadãos brasileiros
são iguais perante o Estado), nas últimas cinco décadas o Brasil obteve-se de diversas formas
de executar exceções jurídicas. O cenário atual, é composto por territórios e corpos
vulnerabilizados, divididos, marcados e até mortos, vindos de um Estado de origem colonial
onde as instituições e o governo excluem e invisibilizam diversas formas de violências
(GONÇALVES, 2019).
Dados recentes comprovam que o Estado vem declarando que as condições de saúde e
segurança irão ser reduzidas constantemente, principalmente no âmbito das classes dos
trabalhadores (AGOSTINI, CASTRO, 2019). Todavia, pode-se questionar se esses
trabalhadores que serão submetidos a insalubridade e insegurança no trabalho não serão os
parlamentares, militares ou magistrados, nas quais ocupam cargos políticos altos, e na
compreensão de Mbembe (2016) havendo a segmentação de quem merece ou não condições
decentes de sobrevivência.
Salienta-se também que a morte de determinados corpos também pode ser
compreendida de um ponto de vista generalizado e indiferenciado: são corpos mortos e sem
um sentido característico, principalmente no contexto dos massacres, por se configurarem
como corpos que não possuem mais vida política e social. Além do mais, política e sociedade
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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irão ser indiferentes de uma maneira cruel à morte desses indivíduos e sua história (MBEMBE,
2016).
Dessa maneira, é marcante a presença da estrutura colonial, racista e sexista do Estado
brasileiro, pois através de um extenso aparato necropolítico, é definido quem importa e quem
não importa. Além disso, pode-se perceber um vasto processo de desumanização e indiferença
através da violência banalizada pelos casos de homicídio da população negra e periférica
(FERREIRA, 2020).
Narrativas contra a inclusão das minorias, tais como discursos racistas, machistas e
xenofóbicos vêm se reproduzindo durante muito tempo, em especial após a campanha eleitoral
de 2018, onde a intolerância e o ódio vem se espalhando em todos os âmbitos (AGOSTINI,
CASTRO, 2018). Índices alarmantes do genocídio da população negra e indígena, violência
contra a mulher e indivíduos LGBT demonstram que algumas vidas são descartáveis, pois a
atual conjuntura se caracteriza através de um tensionamento pautado em uma não possibilidade
de questionamentos e debates, ameaça às políticas públicas e violências constantes sobre esses
grupos (AGOSTINI, CASTRO, 2019).
Além disso, Gonçalves (2019) entende as periferias como verdadeiras “necrópoles’’,
onde as metrópoles garantem a sua exclusão através das zonas de morte e exceções políticas.
Nesse sentido, os processos de urbanização exercidos por empresas e oligopólios exercem
sobre a cidade uma divisão em áreas concentradas pela riqueza e a produção da pobreza, em
um cenário caracterizado como centro-periferia (GONÇALVES, 2019). Além do mais, as áreas
mais acessíveis e valorizadas das cidades são constituídas e organizadas pela marginalização e
exploração das periferias, em uma dinâmica territorial e social pautada na extrema
desigualdade.
Outrossim, uma estratégia necropolítica presente no Brasil é a “guerra às drogas”,
direcionada, sobretudo, às favelas do Rio de Janeiro. Através de uma prática supostamente de
proteção contra ao tráfico de drogas, é naturalizada a violência através de um estado de
exceção. A ação policial que é direcionada às favelas, atinge através de tiroteios o cotidiano da
população (GONÇALVES, 2019). A favela se constitui em um cenário necropolítco, pois são
espaços que ocupam a maior parte da população negra e, nesse sentido, tornaram-se os inimigos
ficcionais do restante da cidade. Nesse viés, é exercido o extermínio do “inimigo” pela
justificativa de “garantia de segurança” para aqueles que vivem fora desses territórios.
(GONÇALVES, 2019, p.9).
Nesse contexto, Ferreira (2020) através de sua pesquisa, cita a dor das mães que
perderam seus filhos na “guerra às drogas” pela violência policial. A autora também comenta
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

55
que o direito penal no Brasil age com seletividade, pois não há justiça para a classe periférica
e para a população negra. Nesse viés, questiona-se:
e se as vítimas fossem brancas, moradoras da Zona Sul? O desfecho seria o mesmo? Quais são
os limites de atuação do Estado? Quem pode e quem não pode esperar por respostas
institucionais?” (FERREIRA, 2020, p.2).
Compreende-se que na criminologia brasileira e, assim como, diversos saberes,
questões referentes ao racismo não são denunciadas em suas críticas e argumentos. Nesse
sentido, o racismo é tomado como uma categoria menos relevante, contrapondo com os dados
de violência, onde as principais vítimas de violência e homicídio são a população negra e
periférica (FERREIRA, 2020). Dado o exposto, é visto que o Estado não tem dado respostas a
todo esse projeto necropolítico. Em síntese, agindo de maneira silenciosa, Mbembe (2016)
pontua:
O Estado pode, por si mesmo, se transformar em uma máquina de
guerra. Pode, ainda, se apropriar de uma máquina de guerra ou ajudar a
criar uma. As máquinas de guerra funcionam por empréstimo aos exércitos
regulares, enquanto incorporam novos elementos bem adaptados ao princípio
de segmentação e desterritorialização. Tropas regulares, por sua vez, podem
prontamente se apropriar de certas características de máquinas de guerra
(MBEMBE, 2016, p. 54-55).

Além disso, não há um reconhecimento das vítimas, onde as mães periféricas e negras,
vítimas da violência da “guerra às drogas”, se preocupam com a resposta da justiça em relação
à morte de seu filho, pois é preciso provar que eles eram uma pessoa honesta, trabalhadora e
de bom caráter. Ao contrário da situação, as pessoas brancas que são vítimas desse contexto,
têm um privilégio de ocupar um lugar em que não se precisa reivindicar seu lugar de cidadão
e lutar por seus direitos (FERREIRA, 2020). Nessa perspectiva, é visto que,

O Estado brasileiro é uma máquina de guerra, dirigida aos jovens, negros e


pobres periféricos. Há duas escolhas estatais: a morte ou a prisão. Os dados
da população carcerária brasileira não permitem outra conclusão senão a de
que estamos em uma guerra civil, com 59.041 homicídios por ano (BRASIL,
2019).

O corpo é vulnerável, por possuir uma finalidade, mortalidade, necessidades físicas e


biológicas. Todavia, é visto que alguns contextos são diferenciados: alguns corpos são mais
protegidos e outros mais expostos. Nesse sentido, podemos atribuir esse contexto à
historicidade das relações econômicas e sociais, além das gestões que se ocupam da
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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organização e proteção da vida e da sociedade. Portanto, historicamente a política também está
atrelada a ações violentas, em especial, pela produção de políticas de morte. Nesse viés, é
necessário questionar-se através de uma perspectiva interseccional, em que espaço se situa os
sujeitos em relação à ordem de poder, em especial, aqueles que sofrem violências,
preconceitos, desigualdade e também, acabam sendo mortos.

REFERÊNCIAS

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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

58
CAPÍTULO 5
MULHER EM FOCO: A MÚSICA AFRO-
BRASILEIRA E A LUTA PELO
PROTAGONISMO FEMININO NOS TAMBORES
MARIANA SANTOS CANUTO VIEIRA

Mulher negra e periférica: Trânsitos e espaços ocupados no social – meu ponto de vista
da pesquisa endo-etnográfica: Minha história na música começa cedo, por volta dos 8 anos. Eu
não fazia ideia do que escolheria tocar, visto que entraria para aulas de música pela vontade
que meu irmão tinha em tocar guitarra e meus pais não queriam me deixar de lado. Minha
vizinha era professora de piano, e pela grande influência dos meus pais, eu disse sim aquele
instrumento que enxergava ser maior que eu. Ao longo dos anos, entre aulas de música, shows
em que eu era levada pelo meu irmão e os encontros que ele tinha com as diversas bandas em
que tocava, me vi com 16 anos no curso de Produção Musical. Entrar para a Universidade, do
outro lado da cidade de São Paulo, foi um turn point para uma garota periférica e negra do
bairro de Itaquera, zona leste da cidade. D
igamos que, saí da “bolha” pela primeira vez. Apesar de meus pais terem certa condição
financeira para pagar uma Universidade privada, me vi muito diferente dos meus colegas de
classe. Brancos, majoritariamente homens, de classe média alta e classe alta. Ainda sim, foram
anos de amizades verdadeiras e ótimas experiências. Depois de trabalhar alguns poucos anos
como assistente técnica de áudio e shows em eventos e estúdios de música, resolvi mudar de
área por causa de assédios que passei diversas vezes no trabalho. A transição dos estúdios de
música para a sala de aula durou cerca de um ano, quando comecei a faculdade de Letras.
Foram muitos anos lecionando português para estrangeiros, até que senti uma forte necessidade
de mergulhar na afro-brasilidade cultural do Brasil, que conhecia pouco apesar de sempre
acompanhar os Movimentos Negros no Brasil.
oi quando conheci o Tambores Femininos do Mbeji, grupo de mulheres que vivenciam
a prática do tambor, da música de Ritual e Terreiro. Criado pela percussionista, antropóloga e
cantora Ariane Molina, encontrei exatamente o que procurava naquele momento. Foram dois
anos de estudo, canto, shows e ensaios. Infelizmente a Pandemia do Corona vírus também
debandou os encontros e as práticas musicais que tínhamos. De qualquer forma, a conexão
afro-brasileira que eu buscava resgatar permaneceu fortemente em mim, o que posso dizer que
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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foi exatamente essa reconexão que me colocou a escrever esse artigo. Dentro desses diversos
aprendizados e vivências musicais protagonizados por mulheres e seus instrumentos, entendi a
importância de se posicionar, se colocar a campo como presença marcante nos espaços que
ocupa. Ribeiro (2008) apud VALLE (2019) surge com o termo endo-etnografia que é “o uso
do termo endo-etnografia para a pesquisa etnográfica realizada dentro da cultura da qual o
pesquisador compartilha o conceito de experiência próxima”. Deste modo, carrego aqui meu
lugar de fala neste estudo e também minhas subjetividades. Penso ser extremamente importante
pelo caráter principal desta pesquisa, colocar o lugar de outras mulheres negras, que como eu,
traçam seus caminhos por meio de resistências.

A relação das mulheres negras das classes populares com a


universidade passa por um processo plangente de alfabetização. O idioma
acadêmico exige mais que uma mente brilhante, ele ultrapassa os limites do
saber e se intensifica no controle do corpo, neste caso, do corpo negro. A
impressão que se tem é que o processo de alfabetização pelos quais passam
essas intelectuais negras tem que ser rápido e, na maioria das vezes, é um
processo solitário. Ele tem a ver com os “modos de classe” que a comunidade
branca da classe média e média alta adquire desde o jardim da infância e
percorre todo processo educacional até a universidade Essa é nossa primeira
impressão (Souza, 2014, p. 09).

A ESCRAVIDÃO COMO BERÇO DA CONSTRUÇÃO DO BRASIL

No final do século XV iniciou-se o que é chamado pelos historiadores de “As Grandes


Navegações”. Consistia em navegar em alto-mar o Oceano Atlântico adentro, a comando de
Cristóvão Colombo. O objetivo era alcançar as Índias, mas acabou por encontrar um novo
continente, “O Novo Mundo”. Daí a importância da realização das Grandes Navegações: A
busca de metais preciosos em territórios que pudessem ser explorados economicamente. Neste
contexto, a chegada de Pedro Alvarez Cabral ao Brasil em Salvador que levou a exploração de
mão de obra dos índios. Ainda que essa mão de obra fosse barata e exploratória, eles estavam
em pouca quantidade, além de morrerem rapidamente devido às novas epidemias e se
recusarem a trabalhar compulsoriamente. Deste modo, a partir de 1600 ocorreu a vinda de
africanos para o trabalho escravo nos engenhos.

Para se falar sobre a cultura afro-brasileira não se poderia deixar de


mencionar o período escravo que se constitui numa mancha difícil de
apagar. É impossível se falar sobre a cultura dos negros, sua passagem
pelo Brasil e seus dias atuais se não for escrito sobre a escravidão e
suas consequências. [...] Eram, os africanos, mercadoria de alto valor
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

na época. Para isso concorria, de certo, sua fácil adaptação à faina


60
agrícola, uma vez que, acostumados a outras condições de vida,
decorrentes de civilização mais adiantada, seus hábitos e temperamento
muito diferiam do nomadismo indígena. [...] (Luna apud LIMA, 2010).

Assim, o escravo era considerado patrimônio e a perda de um africano escravizado


significava prejuízos enormes. Ainda que a Lei Áurea tenha liberto o escravo, a abolição não
permitiu aos negros a liberdade intelectual, econômica e social. Deparou-se o ex-escravo,
desempregado e com fome. A nova migração de trabalhadores estrangeiros, que gozavam da
preferência dos empregadores, aumentou significativamente. Os negros passaram a concentrar-
se nos centros urbanos, as grandes cidades foram se transformando, remontando velhos hábitos
e costumes pelo processo de europeização. Deste modo, a dificuldade para o negro no mercado
de trabalho aumentava a cada dia. O êxodo de europeus promovido pelas elites trazia a
construção de nova noção mais próxima possível das características de um país europeu e o
mais distante possível de tudo que era América e África. Diversas Leis foram criadas, uma das
mais notáveis foi a da reexportação de africanos libertos e a Lei de Terra, que criava
dificuldades de acesso do pobre às terras, estabelecendo dificuldades aos negros em especial.
Gomes (2019), em seu livro “Escravidão”, propõe que, assim também, na Filosofia,
muitos pensadores iluministas sustentaram a ideia do negro inferior ao branco como David
Hume, filósofo britânico do século XVIII. Voltaire, ideólogo da revolução francesa reforçava
a ideia de que a baixa capacidade mental dos negros era afirmada pelos traços físicos
diferenciados dos brancos europeus. O alemão Immanuel Kant declarou: Os negros africanos
não receberam da natureza qualquer inteligência que os coloque acima da tolice. Portanto, a
diferença entre as duas raças (negra e branca) é muito substancial.
Durante os primeiros séculos de escravidão e do tráfico negreiro, ao Brasil chegaram
principalmente sudaneses e bantos. As sociedades iorubás foram perdendo forma militar na
África, sendo assim, alvos mais fáceis para o mercado de escravos locais. Um maior fluxo de
escravos na história escravocrata correspondia sempre a um crescimento de atividade agrícola.
Em São Paulo, cana e café, assim como no Rio de Janeiro. Já em Pernambuco, Paraíba e
Alagoas trabalhavam no cultivo de algodão. A mineração de Goiás e do Mato Grosso do Sul
necessitavam também do trabalho escravo. Conforme as cidades foram crescendo e se
desenvolvendo, mais eram os africanos escravizados necessários aos serviços domésticos na
relação Casa Grande - Senzala. Os cativeiros tinham a missão para além do abrigo aos escravos.
Separava famílias inteiras; pais, mães, esposos e esposas, filhos e comunidades inteiras, antes
compartilhando costumes, crenças por gerações na África. Neste sentido, as identidades dos
indivíduos eram eliminadas, a então chamada “morte social”, segundo o sociólogo Orlando
Patterson.

Mas nem por isso o escravo deixava de existir. O que restava dessa
identidade estilhaçada pelo tráfico negreiro tinha de ser refeito na outra
margem do Atlântico. O resultado foi a reconstrução de não apenas
uma África no Brasil, mas de muitas Áfricas que, a rigor, nunca
coexistiram no continente de origem dos escravos, e também de outros
e muitos Brasis, que até então inexistiam e passariam a marcar
definitivamente a sociedade que temos hoje. (Patterson apud GOMES,
P. 233).

A GENIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS PERCUSSIVOS NA LITURGIA DAS RELIGIÕES


AFRO-BRASILEIRAS
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

61
O candomblé, religião criada no Brasil, tem sua estrutura nas diversas sociedades
africanas, como o iorubá. Ao longo da História, os papéis sociais do masculino e feminino
transformaram-se com construções pré-definidas pela sociedade. No culto do Candomblé, o
alabê, responsável por tocar e cantar para os Orixás é uma figura masculina escolhida pelo Ogã
da casa. Enquanto no Ocidente, os papéis sociais citados no parágrafo acima do masculino
davam ao homem um caráter objetivo, racional, poderoso e decisivo diante das relações
humanas; para as mulheres, era caracterizada a subjetividade, a docilidade, o cuidado íntimo –
do lar e da família. Apesar dessa divisão de gênero da História da Humanidade estar
profundamente demonstrada nos mais diversos espaços sociais, assim como na música e nas
religiões de matriz africana, idem, a mitologia iorubá trata que o tambor Batá surgiu a partir de
uma mulher.

Segundo a professora e dançarina Inaicyra Falcão dos Santos (2002) o


tambor Batá é o fio condutor do movimento, se ligando a Ayán,
símbolo do fogo, princípio vibrante. Explica ainda que, segundo os
mitos, nos primórdios da civilização, não existia nada parecido com o
tambor na cidade de Oyo-Oro. Ali morava uma mulher chamada
Ayántoke, mas todos a chamavam de Ayán. Esta mulher não tinha
filhos e andava sozinha pelo mato, sempre carregando um pedaço de
madeira oco. Um dia, viu uma pele de bode e pensou que poderia cobrir
as extremidades da madeira que carregava e tirar um som. Porém,
quando ela batia no couro com um pedaço de pau ele rasgava. Ela
insistiu várias vezes no seu intento, tendo usado até um pedaço de
couro em forma de tira para bater nas extremidades do tronco, sem
sucesso. Um dia, quando tentava mais uma vez, Exu apareceu e deu-
lhe tiras de couro de veado e disse que amarrasse com firmeza o couro
no tronco. E foi nesse momento que o tambor emitiu um som
melodioso. Ayán começou a tocar o tambor por toda a cidade e as
pessoas corriam para ouvi-la, muito surpresos, porque nunca tinham
ouvido nada igual. Ayán passou a ganhar muitos presentes. Xangô –
orixá do trovão – rei da cidade, quando a ouviu tocar, convidou-a para
morar no palácio. Ela tornou-se a tocadora oficial do palácio de Xangô.
Todos sabiam que ela não podia ter filhos, mas também sabiam que,
mais cedo ou mais tarde, ela teria um filho, já que qualquer mulher
estéril que entrasse no palácio de Xangô se tornava fértil. E assim foi...
Ayán casou-se com Xangô e logo teve um filho que foi chamado de
Aseorogi. Ela passou toda a arte de tocar e construir o tambor para o
seu filho Ayán que é, até hoje, o nome dado a todos os membros de
uma família cultuadora do tambor, entre os povos iorubá.
(THEODORO apud SANTOS, 2008: 163-164).

Os tambores do Candomblé são, entretanto, historicamente dominados por homens.


Gomes (2013) reforça este ponto de vista em sua pesquisa sobre o samba do Rio de Janeiro do
século XX, destacando a Casa das Tias Baianas. Neste espaço em que samba e religião se
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

62
uniam diretamente, somente homens tocavam tambor, visto que quem tocava no terreiro,
igualmente tocava no samba. Às mulheres ficava reservado cantar e bater palmas.
Quando pensamos nas músicas de Ritual e de Candomblé, o toque dos tambores é
essencial para aparecimento dos Orixás. Porém, ao buscar na memória ou tecer um olhar mais
crítico em relação ao imaginário social, no momento que ouvimos a palavra percussionista, o
inconsciente coletivo no traz primeiramente em nossas mentes a imagem dessa identidade
“percussionista” o gênero predominante é majoritariamente o masculino. Muniz Sodré (2005)
apud VALLE (2019) nos revela que os dispositivos culturais afro-religiosos, bem como os
microterritórios onde estes se organizam, se constituem em verdadeiras metáforas da África no
território brasileiro. E que estes dispositivos contribuíram fortemente no processo civilizatório
do país. Isto também significa dizer que muitas das práticas desenvolvidas pelos povos
pertencentes a estes espaços, “os povos de terreiro”, sobrepujaram os microterritórios
candomblecistas influenciando diretamente na forma com a qual nos relacionamos socialmente
uns com os outros no Brasil.
Assim como podemos enxergar que os espaços percussivos são masculinos nos campos
festivos e “populares” do Brasil, como nas baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro e
São Paulo, podemos traçar também que essas práticas se originam no território do sagrado
(candomblecistas). Ainda que seja possível encontrar subversões femininas no território dos
tambores, a maioria do corpo feminino participa das coreografias ou da execução de
instrumentos menores. As explicações para a grande maioria masculina no território percussivo
em geral diante da presença feminino seria o desinteresse por parte do público feminino pelo
aprendizado e envolvimento, ou por uma inabilidade natural da mulher diante do domínio de
instrumentos percussivos.
Já no Sagrado, a fundamentação da interdição do feminino no alcance do campo
percussivo-musical se mantém instaurada pela tradição, baseada pelo que Rocha; Santana
(2019) chamam de “narrativa mito-poética”, que segundo a crença surgiu na África de tempos
imemoriais. Nela, a tradição africana que serve como pilar moral para os povos de santos mais
velhos interdita o feminino ao tambor dentro do território sagrado como forma de carregar essa
tradição, característica de celebrações de uma linhagem ancestral africana. Itan, termo iorubá
que carrega o conjunto de mitos, histórias e fatos culturais iorubás, é praticado como a
orientação para a resolução de problemas, sendo passado oralmente de geração em geração.
Um desses mitos é o Aiyom.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

Aiyom um homem nigeriano conhecido por sua força inigualável, foi


63
capaz de arrancar Iroko da terra com uma única mão, desmiolar o seu
tronco e revestir suas extremidades com o couro de um bode. Tornou-
se um exímio percussionista popular em toda a Nigéria. Em certa feita
ao adormecer, sua esposa se aproveitou disso e tocou no couro do
tambor. Aiyom que nunca permitiu que sua mulher tocasse no seu
tambor teria despertado furioso com essa insubmissão e ao ver o couro
mofado, correu ao advinho para se consultar. O advinho revelou-lhe
que o couro tinha apodrecido em decorrência de sua esposa estar no
“bajé” ao tocá-lo, isto é menstruada, e que ele deveria fazer preceitos
sagrados para que o tambor se curasse. Aiyom fez os devidos ritos e
preceitos. O tambor voltou a falar e desde a fundação dessa narrativa,
foi interditado às mulheres o direito de tocar nos couros sagrados,
tornando-se encargo do homem, o “ser de valor”, aquele que não possui
a “fraqueza” de menstruar, a responsabilidade de cuidar dos tambores
(Rocha; Santana, p. 03, 2009).

Há outras argumentações para a legitimação da ausência das mulheres ao tambor no


que tange ao Candomblé. Orlando (2005) apud ROCHA; SANTANA (2019) relata que na
mitologia iorubá, o tronco utilizado para a confecção dos tambores teria sido o tronco onde o
Obá Sangó (Xangó – Orixá masculino) enforcou-se em Oyó (Império Africano), sendo então
a árvore consagrada à sua linhagem masculina.
Podemos pontuar que em muitas culturas onde os espaços musicais em realidade se
utilizam de modo a controlar o status social, crê-se que os poderes ritualísticos e de
conhecimento deveriam pertencer em tempos remotos, às mulheres. Seus pares masculinos
subverteram os poderes femininos a ponto de perderem seu poder e autonomia em algum ponto
longínquo da História. Posteriormente aparecían relatos mitológicos em los que se explica por
qué las mujeres debían ser excluídas de las esctruturas dominantes de poder y por qué los
hombres han de temer y regular la conducta de las mujeres. Em otros casos los hobres
argumentan que las mujeres, dada su capacidade para concebir vida, poseen uma gran fureza y
por tanto deben mantenerse alejadas de otras formas de poder que les proporcionarían la
capacidade de controlarpor completo la vida y la fertilidade de uma comunidade. Em aquellos
casos em los que la música se mantiene alejada de la mujeres porque proporciona vías de
conicimientos que los hombres desean reservarse para ellos, las restricciones en el desarrollo
de la perfonrmance (musical) suelen referirse al uso de determinados instrumentos - a veces
tambores y, más frecuentemente, flautas associadas a imagenes fálicas o a bramidos de toro
(Robertson, Sem data, p. 05).
Neste sentido, a ideia de autoridade e controle passa por regras sociais e hierárquicas
que se encarregam de fazer funcionar determinados sistemas sociais. No caso de desvios dessa
determinada concepção social, o caos se estabelece. Assim como em qualquer outra sociedade,
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

64
a racionalização da ordem se constrói sobre noções de moralidade, poder e controle, acionadas
por sistemas de crenças, determinando e posicionando cada indivíduo em um lugar especifico
dentro das regras e condutas moralmente aceitas. Em conclusão, aciona a autoridade e poder
de um grupo sobre outros.
O objetivo deste trabalho é em primeira parte, analisar as variações discursivas em
relação às mulheres no campo afro-brasileiro percussivo, problematizando a ideia de que o
corpo feminino não tem autonomia para o domínio percussivo de qualquer espécie. Importante
ressaltar também as narrativas míticas que se impõe dentro de espaço Sagrado do Terreiro que
se colocam como intocáveis, como verdades absolutas, quando na realidade são passiveis de
variações e interpretações, desde a sua criação na África.

Diferente do que se quer dizer acerca desse dispositivo religioso, a


interação entre culturas e as características híbridas dessas culturas já
se davam desde a África pré-colonial. Compreender isso implica em
perceber a ideia de tradição como algo não fixo, maleável a ponto de
adaptar-se a diferentes contextos. Tal compreensão pode nos ajudar a
entender, por exemplo, que a repetibilidade de alguns ritos
compreendidos como tradicionais podem ser dissonantes com as
discussões sociais vigentes hoje. E certas práticas, antes
compreendidas como aceitáveis, no contexto histórico de hoje, podem
contribuir para o acirramento de disputas entre os gêneros ou mesmo
para a obliteração de certas identidades. (Rocha; Santana, 2019, p. 04).

MULHERES A PERCUSSÃO: UMA LUTA CONSTANTE

Os redutos negros do Rio de Janeiro são considerados o berço do samba carioca, no fim
do século XIX e inicio do século XX. Ex-escravos, judeus, excluídos, todos habitavam a região
periférica da cidade. Neste cenário surgiram Donga, Heitor do Prazeres, Pixinguinha, e As tias
Baianas.
As tias Baianas, mulheres como Tia Ciata, Carmem e Amélia são consideradas
essenciais no que tange a influência dentro do samba da época. Frequentemente colocadas
como matriarcas do gênero, dentro do campo religioso e político, quando nos referimos à
prática musical elas pouco aparecem. Eram sim, peças estruturais para proteger, abrigar, manter
a comida e a bebida naquele espaço enquanto a performance musical acontecia através dos
homens. É consenso na academia a na literatura que as Tias Baianas exerciam reconhecimento
no status de mulheres negras no cenário afro-brasileiro. Entretanto, raramente encontramos
indicações referentes à presença delas no aporte musical da época.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

65
Apesar de muitos pesquisadores do samba e do carnaval brasileiro
citarem a influência das Tias Baianas, essa menção é feita de um modo
genérico. Não há um aprofundamento sobre quem eram essas
mulheres. Geralmente seus nomes aparecem nas páginas introdutórias
ou em associação aos grandes homens sambistas (mães ou esposas)
(Gomes, p. 05, 2013).

Assim, como as Tias Baianas eram protagonistas ao carregarem as tradições da afro-


brasilidade no inicio do século XX, podemos citar inúmeras protagonistas até os dias de hoje.
No estudo de Rocha; Santana (2019), encontramos as mulheres Alagbe, num processo atual de
reinvenção da memórias afro-religiosas, principalmente quando pontuamos as festividades
ritualísticas do Candomblé, onde elas tocam tambores. A questão primeira é raciocinar quanto
essa “suposta subversão” impacta nesses territórios de maneira à reconfigurar os naipes
percussivos dos ritos e também o nosso entendimento de espacialidade corporal feminina no
espaço de liturgia candomblecista. Em seu trabalho, as pesquisadoras acima citadas
apresentam-nos Makota Katumonamê, filha de Kavungo, que toca tambor no Terreiro de
Matamba Tombenci Neto, é a única a que é permitida tocar os couros. O terreiro é chefiado
por mãe Ilza Mukalê de tradição banto e um dos mais antigos do Brasil.
Assim como Ekede Sil Caldeiras de Oya, mulher Alagbe, que toca tambor nos terreiro
de sua mãe desde jovem, uma vez que seu orixá de cabeça, Óya, lhe concedeu a permissão de
tocá-lo.
Também Mãe Rose de Ogum como mulher Alagbe, bate couro, além de Iyalorixá,
caminhoneira e chefe de família. Aos oito anos de idade seu pai já a levava aos terreiros em
que eram convidados. Mãe Rosa tocava o rum, o atabaque maior dentre os at
abaques da orquestra ritualístico-percussiva do Sirê. O rum é o responsável por
imprimir a construção litúrgica da festa do Candomblé.

A despeito disso e de hoje ter o título máximo dentro de uma casa de


axé, o título de Iyalorixá, Mãe Rose revela também já ter sofrido
críticas por seu lugar de subversão nos tambores, críticas que costuma
refutar entregando nas mãos do orixá. Em certa ocasião, ela revelou
que o próprio Orixá já a conduziu aos tambores em uma casa que
tradicionalmente não permitia mulheres neste território. Ratificando o
que Silveira (2008) já havia trazido como base argumentativa da
atuação das mulheres tamboreiras nas terreiras de Pelotas no Sul do
Brasil, que a interdição da mulher ao tambor não se constitui numa
restrição do orixá, mas sim na invenção de uma tradição de ordem
humana (Rocha; Santana, 2019, p. 11).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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Assim também, temos as tamboreiras Nação ou mulheres prontas no Tambor de Nação,
que tocam o Batuque do Candomblé de tradução Jêje ou Nagô, em Pelotas e Rio Grande, no
Rio Grande do Sul. Dentro dessa tradição, o tamboreiro/a deve ser um iniciado na religião e
conhecedor dos fundamentos, vinculando-se a uma casa governada por um pai ou mãe de santo.
A linhagem familiar deve ser estrutural onde a obrigação e cumprimento de tarefas e
procedimentos dos rituais devem ser seguidos à risca. Como filho de santo da casa dever ter
um pai ou mãe, uma vez que assumindo a feitura, é responsabilizado pelo mesmo. É nesta linha
de pensamento que tamboreiras tem a escolha de tocar nos rituais tanto quanto os homens.
Contudo, a invisibilidade causada pelo fato de considerar-se genericamente tal atividade
enquanto uma “função masculina” apresenta-se como uma constante.
Seus processos de transmissão do sistema simbólico musical apontam para uma
circulação restrita (quando existente) entre as diferentes Casas de Nação, o que gera, pode se
dizer, uma socialização quase “nula” com os demais músicos, condições consideradas
essenciais pelos Tamboreiros homens na definição de um “verdadeiro tamboreiro” (a
concepção masculina parece tender para uma profissionalização do ofício fortemente associada
ao aperfeiçoamento da técnica e aos trânsitos e fluxos constantes decorrentes daí, enquanto que
a concepção feminina, até onde se pôde perceber, apareceu mais fortemente associada à
experiência religiosa, a um “sentir” e “vivenciar” o tambor e a Religião do que necessariamente
concebida com fins de profissionalização como costuma acontecer entre os Tamboreiros
homens) (Silveira, p.15, 2008).
A conclusão dessa pesquisa pontua que não se pretende separar por gêneros qualquer
prática musical. Pelo contrário, o que se busca é a desconstrução de espaços sociais quanto às
questões de corpos femininos na liturgia e festividades afro-brasileiras, sejam elas quais forem.
Assim sendo, a leitura de que mitos, lendas e tradições modificam-se ao longo da História, e
que são por si só, passíveis de interpretações, variações e que são mutáveis ao longo das
diferentes visões ao decorrer do tempo e da História.

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VALLE, Miriane Borges. Ensino De Percussão Para Mulheres: Uma Perspectiva Feminista.
Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho”, São Paulo, 2019.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

68
CAPÍTULO 6
A PANDEMIA DA COVID-19 E A
INTENSIFICAÇÃO DAS DESIGUALDADES
RACIAIS NO MERCADO DE TRABALHO
BRASILEIRO: UM RETRATO “PRETO E
BRANCO”
THAINÁ OLIVEIRA SANTANA28
WENDELL GOMES DA ROCHA29
RICARDO NUNES DE OLIVEIRA30
FRANCISCO EDUARDO DE OLIVEIRA CUNHA 31

INTRODUÇÃO

A crise socioeconômica em processo, intensificada pela pandemia da Covid-1932, nos


traz a dolorosa evidência da desigualdade inerente à sociedade do capital. A parada forçada na
economia, ao passo que deixa os capitalistas aflitos por não produzirem, comercializarem e
realizarem seus bens e serviços lucrativos em uma velocidade habitual, também torna os
trabalhadores reféns do medo de perderem sua experiência com o trabalho, tão efêmera, tão
precária, tão pauperizada e tão degradada no capitalismo contemporâneo, sobretudo em regiões
periféricas como o Brasil.
A forma social e hegemônica denominada de capitalismo tem no processo de trabalho
o cerne de sua essência de funcionamento e de dinâmica de desenvolvimento, para sua
produção (e realização) de riquezas. Logo, para que referido sistema se legitime, pressupõe a
existência da classe trabalhadora. Dentro dessa lógica de sociedade, as condições materiais e

28
Graduanda do Curso de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Piauí – UFPI .E-mail:
thaisantanax@gmail.com
29
Graduando do Curso de Ciências Econômicas Universidade Federal do Piauí – UFPI E-mail:
wendellgomesrocha@gmail.com
30
Graduando do Curso de Ciências Econômicas.Universidade Federal do Piauí – UFPI E-mail:
ricardonunesoliveira3@gmail.com
31
Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Econômicas. Universidade Federal do Piauí – UFPI
E-mail: eduoliveira@ufpi.edu.br
32
Conforme a Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ, 2020), desde o início de fevereiro/2020, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) passou a chamar oficialmente a doença causada pelo novo coronavírus de Covid-19.
COVID significa COrona VIrus Disease (Doença do Coronavírus), enquanto “19” se refere a 2019, quando os
primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinês no final de dezembro.
A denominação é importante para evitar casos de xenofobia e preconceito, além de confusões com outras doenças.
Disponível em <https://portal.fiocruz.br/pergunta/por-que-doenca-causada-pelo-novo-virus-recebeu-o-nome-de-
covid-19>. Acessado em 10 mar. 2021.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

69
sociais de existência desta classe que vive de seu próprio trabalho, se dão principalmente com
a inserção desta no mundo do trabalho (ou à margem dele, na informalidade por exemplo).
Com efeito, a experiência laboral do ser humano segue como fator crucial para a construção de
sua identidade, de definição do seu padrão de sociabilidade e, sobretudo, para a obtenção de
recursos que permitam suprir suas necessidades mais básicas de forma autônoma (IPEA, 2011),
quer seja, sua dignidade e cidadania.
Voltando o olhar especificamente para a população negra de trabalhadores e de
trabalhadoras no Brasil, o acesso ao mercado de trabalho, embora ainda experimente a
discriminação e desigualdade racial que lhe são imanentes, é também pressuposto para
enfrentar uma realidade de pobreza e de privações que historicamente foram impostas à
população negra. Portanto, adentrar na investigação do acesso e representação dos seres
humanos negros no mercado de trabalho brasileiro, é desafiador e nos permite evidenciar e/ou
qualificar o padrão de inserção dessa população, na sua dimensão socioeconômica, por
conseguinte, de sua qualidade e dignidade de vida.
Conforme dados mais recentes divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua Trimestral (PNADC/T) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
– IBGE (2021)33, a população negra (pretos e pardos) do Brasil representou no ano de 2020,
54,8% da força de trabalho total. Referidos dados ratificam a hegemonia da população negra
em nosso país que, conforme o mesmo estudo, representa aproximadamente 116,9 milhões de
pessoas, correspondendo a 55,37% da população total (IBGE, 2021).
Embora a força de trabalho negra seja predominante e determinante na dinâmica
econômica do país, logo, no nosso processo de produção de riqueza nacional, seu rendimento
geral médio nominal 34 no ano de 2020 representou apenas 56,7% quando cotejado ao da
população branca, conforme a PNADC/T (IBGE, 2021). Em média, o trabalhador negro
recebeu efetivamente R$ 1.887,50 em valores nominais, no ano de 2020.
Diante do exposto, o presente trabalho tem como objetivo principal discutir elementos
estruturais, do racismo no mercado de trabalho brasileiro, da crise do emprego e seus reflexos
na população negra, apresentando alguns indicadores do ano de 2020, período em que se
iniciaram os impactos acometidos pela pandemia da Covid-19. Dessa forma, busca-se

33 Dados baseados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral, 1º ao 4º trimestre do
ano de 2020, Variável - Distribuição percentual das pessoas de 14 anos ou mais de idade, na força de trabalho,
na semana de referência (%) (IBGE, 2021).
34 Variável - Rendimento médio nominal de todos os trabalhos, habitualmente recebido no mês de referência,

pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, com rendimento de trabalho
(Reais), nos trimestres 1º ao 4º do ano de 2020 (IBGE, 2021).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

70
contribuir na compreensão dos fenômenos de discriminação e desigualdade de cor/raça que são
inerentes à forma social do capitalismo, e que se intensificam em meio à pandemia no Brasil e
no mundo.
A abordagem metodológica para esse estudo se deu, além de uma breve discussão
teórica acerca do racismo estrutural brasileiro e da crise estrutural do capital, a apresentação de
indicadores referentes ao mercado de trabalho no Brasil no decorrer do ano de 2020, com vistas
a analisa-los e qualifica-los, evidenciando alguns aspectos da discriminação e desigualdade
racial. Para tanto, procedeu-se com uma superficial caracterização e análise da força de trabalho
negra no período proposto, particularmente em relação às condições de emprego e renda,
entendidas como processos essenciais de reprodução social da vida material destes
trabalhadores no capitalismo. Ademais, as análises sobre população, ocupação, trabalho e renda
da população negra, se deram a partir de dados secundários obtidos na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Trimestral, disponibilizados através das tabelas do Sistema IBGE de
Recuperação Automática – SIDRA.
A proposição de um breve “retrato preto e branco” a partir dos dados divulgados pela
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral – PNADC/T, se explica no
objetivo de cotejar os indicadores de trabalho e renda entre a força de trabalho negra e branca,
a fim de evidenciar a desigualdade racial no Brasil, buscando ainda retratar, de forma pontual,
seu desenvolvimento no período em que se instalou e se intensificou a pandemia da Covid-19,
especificamente no decorrer do ano de 2020, tomando como referência o ano de 2019, para
fins de evolução.
Com isso, o presente trabalho, além desta introdução, se divide em mais três seções que
inicialmente desenvolve uma breve discussão teórica acerca de aspectos estruturais do racismo
brasileiro, seguido de uma reflexão sobre os aspectos estruturais da crise do emprego, para
além de uma crise meramente sanitária (conjuntural), e por fim, uma seção descritiva do atual
contexto da força de trabalho negra no Brasil.
Enfim, acredita-se que o referido estudo nos permitirá avançar na compreensão da
persistente manifestação da pobreza e desigualdade social experimentada pela população negra
– sujeitos fundamentais da geração de riqueza em nossa economia –, agudizadas pelo fenômeno
da pandemia do novo corona vírus em escala global.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

71
PRECONCEITO, RACISMO E CAPITALISMO NO BRASIL

Há um consenso nas Ciências Sociais de que o Brasil é um país socioeconomicamente


desigual. Sob um recorte de análise na dimensão racial, e observada na experiência do trabalho,
esta desigualdade se intensifica. Ademais, a investigação desse fenômeno excludente sobre a
população negra se apresenta bastante complexa, uma vez que as origens da desigualdade
brasileira, sobretudo de raça, são múltiplas e de longa manifestação, fazendo com que o
convívio cotidiano com ela concorra para que a sociedade passe a encará-la como algo natural
(HENRIQUES, 2001).
Diante dessa complexidade do fenômeno do “banimento” da população negra de postos
de trabalho dignos (ou pelo menos em condições mínimas das experimentadas pela população
branca), que se manifesta de forma histórica e sistêmica, e que ganha proporções maiores com
a crise do emprego como um pseudo reflexo da crise sanitária atual, importa recorrer a uma
apreensão rigorosa do ponto de vista metodológico de sua investigação. Conforme Almeida
(2019), no debate acerca do racismo, três concepções podem devem ser discutidas: a
individualista, a institucional e a estrutural.
Segundo o referido autor, a concepção individualista analisa a manifestação do racismo
como uma espécie de “patologia” ou anormalidade, sendo um fenômeno ético ou psicológico,
de caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados. Nesta concepção, o debate acerca
do racismo se confundiria com (ou se aproximaria do) debate sobre preconceito racial, que
certamente não se apresenta como menos importante.
Acerca da concepção institucional, Almeida (2019) chama a atenção ao fato de que as
instituições, embora carreguem o antagonismo, as contradições e os conflitos das diversidades
dos grupos da sociedade que estão inseridas, elas moldam o comportamento social, uma vez
que sintetizam as normas, os padrões e as técnicas, a fim de equilibrar tais conflitos e
diferenças. Dito isto, Almeida (2019) afirma que:
Sob esta perspectiva, o racismo não se resume a comportamentos
individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das
instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda
que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça
(ALMEIDA, 2019).

E acrescenta que,
[...] a principal tese dos que afirmam a existência de racismo
institucional é que os conflitos raciais também são parte das
instituições. Assim, a desigualdade racial é uma característica da
sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são


72
hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam
mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e
econômicos (ALMEIDA, 2019).

Dessa forma, segundo essa concepção, as instituições acabam por expressar o domínio
dos grupos hegemônicos e sua manutenção, a depender da capacidade destes de
institucionalizar seus interesses, mediante tais normas, padrões e regras de conduta. Logo, na
perspectiva racial, o domínio se daria com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios
baseados na raça, que concorreriam para a manutenção da hegemonia do grupo racial no poder
(ALMEIDA, 2019), tendo, portanto, o poder como elemento central.
A partir de ambas as concepções, para uma análise específica do mercado de trabalho,
já seria possível apresentar algumas divagações. Primeiro, a de que o mercado de trabalho não
necessariamente seria racista, mas apenas poderia se identificar nele atitudes preconceituosas
por parte de algumas entidades do mercado (empresas e/ou empregadores por exemplo),
quando observadas pela perspectiva individual, mas que também não poderiam ser ignoradas
como manifestações excludentes à população negra. Uma segunda divagação já se assentaria
na concepção institucional. Nesta, o mercado de trabalho poderia apresentar características
racistas, quando estas já estivessem institucionalizadas a partir de suas condutas hegemônicas,
como era o caso da exigência da “boa aparência” em vagas de emprego ofertadas, bem como a
própria manifestação histórica e cultural da população branca nos cargos melhores
conceituados ou de participação de determinados espaços de fala/debate e de diversas
dimensões de poder, concorrendo para uma “naturalização” da hegemonia racial.
Ainda sobre o racismo institucional, o autor reitera que as instituições buscam tão
somente reproduzir as condições para o estabelecimento e a manutenção da ordem social que
vigora. Dessa forma, a imposição de regras e padrões racistas por parte delas, estaria de alguma
maneira vinculada à ordem social que ela visa resguardar, ou seja, as instituições têm sua
atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente, logo, o racismo que estas
expressam é inerente à própria forma social, compõem sua estrutura (ALMEIDA, 2019).
Com isso o autor chega à sua terceira concepção de racismo: a estrutural. Acerca dela,
explica que:

[...] se há instituições cujos padrões de funcionamento redundam em


regras que privilegiem determinados grupos raciais, é porque o racismo
é parte da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por
ela reproduzido (ALMEIDA, 2019).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

73
Nessa discussão, depreende-se que o racismo se manifesta, seja individualmente ou
institucionalmente, porque deriva de uma sociedade cujo racismo é inerente, é componente
orgânico dessa sociedade. Na perspectiva do mercado de trabalho, a desigualdade de raça se
apresenta como elemento constitutivo da estrutura e da dinâmica de funcionamento da forma
social capitalista. Com efeito, dado o caráter estrutural do racismo no mercado de trabalho, sua
manifestação não necessita de intenção para se concretizar.
De acordo com Lima (2020), a compreensão da origem da desigualdade racial no Brasil
necessariamente passa pelo século XIX, no processo de colonização do território brasileiro, a
partir do sistema de escravidão de seres humanos africanos para cá trazidos, perdurando por
quase 400 anos. Importa destacar que os africanos escravizados para atender aos interesses
econômicos da elite portuguesa, eram submetidos a um sistema desumano e violento de
sujeição a seus proprietários, sendo, portanto, tratados como meras mercadorias, mas com uma
peculiaridade cruel, a de estarem distantes de uma não menos desumana tipificação de
mercadoria: a força de trabalho assalariada.
Dessa forma, a exclusão racial no Brasil se origina no exato momento que o negro se
relaciona com o trabalho num Brasil em processo de construção de um capitalismo “moderno”,
imediatamente pós-colonial, conforme reitera Lima (2020):

Nessa esteira, a elite brasileira estruturou-se à custa do trabalho


escravo, nascendo aí uma cultura racista que ficou enraizada em nossa
sociedade e, mais do que isso, nas instituições que constituem o próprio
aparato estatal brasileiro, razão pela qual é possível identificar-se a
existência não só de um racismo estrutural, mas também de um racismo
institucional no país (LIMA, 2020).

E acrescenta que,

De fato, no caso do Brasil, a colonização portuguesa – e, sobretudo, o


sistema de escravidão por ela implementado – fez com que a sociedade
se constituísse com base em um conjunto de práticas institucionais,
históricas, culturais e interpessoais direcionadas para a exclusão dos
negros (LIMA, 2020).

A esse conjunto de práticas, enraizadas na sociedade, no Estado, enfim, no próprio


modo de produção capitalista, dá-se o nome de racismo estrutural, elemento responsável pela
persistência de ações discriminatórias contra os negros até os dias atuais, em suas mais diversas
dimensões, não se restringindo apenas ao mercado de trabalho.

ASPECTOS ESTRUTURAIS DA “ATUAL” CRISE E O RACISMO


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

74
Os explícitos estragos socioeconômicos já provocados pela pandemia do novo corona
vírus, em escala global, escancara a incapacidade (eternamente negada) do capitalismo,
sobretudo em suas facetas neoliberais, em oferecer à humanidade condições mínimas e dignas
de sobrevivência. Dessa forma, a pandemia da Covid-19, ao se apresentar como “a crise”,
assume uma culpa que definitivamente não é dela.
A pandemia, ao trazer para si essa responsabilidade, dissimula, esconde e escamoteia o
verdadeiro vírus (o capital) que carrega em sua essência a real natureza da crise, bem como da
desigualdade racial no mundo e que se agudiza em regiões produtivas periféricas, como é o
caso do Brasil e da América Latina. Admite-se, portanto, que o racismo se verifica entranhado
na própria sequência de DNA do capitalismo e que se manifesta nas instituições e entidades
sociais, como o mercado de trabalho, como meras reproduções da estrutura excludente dessa
forma social hegemônica que lamentavelmente experimentamos.
Pensadores como István Mészáros 35 e Robert Kurz36, desde findos da década de 1960,
denunciavam a inauguração da fase do capitalismo em que se acentua e se evidencia sua crise
estrutural. Conforme a própria denominação, trata-se de uma crise que repousa nos elementos-
base, constituintes à estrutura da dinâmica de desenvolvimento do capital, em sua incessante,
incansável e insaciável busca por lucros. Como contra tendência a esta crise (e a todas as outras
que ciclicamente se apresentaram), o capital necessita sempre buscar saídas, quer seja, novas
adaptações, novas formas de se organizar e de se reestruturar para continuar produzindo e
reproduzindo, mais capital.
As diversas ações implementadas para esse novo compasso da forma societária
capitalista podem ser identificadas a partir das políticas neoliberais praticadas próximas do
final do século XX e teimosamente ainda presentes e agonizantes, observadas principalmente
na retórica da liberação dos mercados, bem como na desregulamentação dos sistemas
financeiros, tornando-os globais, ambas as ações corroborando para um intenso processo de
mundialização do capital, com a hegemonia da dimensão financeira-fictícia, que deixa de ter
compromissos com suas nações origens (se é que algum dia tiveram), se comprometendo
unicamente consigo, com vistas a sua auto valoração.

35 Filósofo húngaro que aborda proficuamente a temática da crise estrutural do capital, principalmente nas obras
“Beyond Capital: Toward a Theory of Transition” de 1994 e “The Structural Crisis of Capital” de 2009.
36 Filósofo alemão que, assim como Mészáros, aborda a crise estrutural do capital, principalmente no livro “Der

Kollaps der Modernisierung” de 1991.


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

75
Entretanto, quiçá, a mais severa atuação do neoliberalismo tem avançado
principalmente sobre a sociedade do trabalho, impondo a ela práticas de relações de emprego
mais flexíveis, desregulamentadas, informais, bem como manifestações de sub e desempregos
disfarçados. Tais transformações impostas ao mundo do trabalho, sob a retórica da
modernização, concorreram (e concorrem) para a mais intensa pauperização (e desumanização)
dos trabalhadores e trabalhadoras em todo o mundo, atingindo inclusive os países de
capitalismo avançado, ratificando o caráter estrutural da crise do capital em curso.
Como consequência mais sentida e impactante na sociedade do trabalho está o
fenômeno da informalidade que, além de impor aos trabalhadores e trabalhadoras a falsa ideia
de “empreendedorismo”, intensifica o processo histórico de superexploração da força de
trabalho, sobretudo nas economias dependentes e subdesenvolvidas, típicas da América Latina
que, diante da divisão internacional do trabalho, tem suas dinâmicas produtivas condicionadas
a atender o mercado global, conforme determinado pelas economias de capitalismo de centro.
Como resultado, constatam-se aqui no Brasil, salários historicamente praticados
substancialmente abaixo do valor da força de trabalho37, principalmente na população negra.
38
Ainda acerca da informalidade, conforme publicação recente da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que o mundo tenha atualmente 3,3 bilhões de
pessoas economicamente ativas, dentre as quais 2 bilhões (61%) destas, exercem trabalhos
informais. A partir de estudos de cenário para o pós-Covid-19, a OIT projeta uma queda média
de 60% na renda das(os) trabalhadoras(es) informais em todo o mundo, se traduzindo numa
queda de 81% na África e nas Américas, 21,6% na Ásia e no Pacífico e 70% na Europa e Ásia
Central (OIT, 2020) .
No Brasil, a precariedade do trabalho não foge à regra, afinal de contas, estamos
inseridos no capitalismo global, com o agravante de sermos periféricos. Conforme pesquisas
recentes divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2019,
o total de 41,1% das(os) trabalhadoras(es) brasileiros estavam no trabalho informal, sem
nenhuma proteção das (já precárias) leis trabalhistas. Considere-se ainda que, as taxas de
desocupação escondem, por si só, considerável parte dos trabalhadores informais e ainda os
desalentados (não mostrando a realidade do desemprego).

37 Na teoria marxista, o valor da força de trabalho seria uma abstração do conjunto de valores dos bens
necessários à reprodução material do trabalhador.
38 Perda de empregos aumenta e quase metade da força de trabalho global corre o risco de perder os meios de

subsistência. Publicado em 29 de abril de 2020. (OIT, 2020).


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

76
Diante desse cenário, a tese da crise estrutural se reforça quando rebuscamos os
momentos necessários para o ciclo de (re)produção do capital, elucidados por Marx (1999),
que nos apresenta as esferas de produção, circulação e realização do processo produtivo na
sociedade capitalista. Observa-se que, o trabalhador encontra-se como elemento central da
geração/realização da riqueza produzida no capitalismo, atuando nessas três esferas.
Logo, a pandemia da Covid-19 não provoca, mas simplesmente herda esse cenário do
mundo do trabalho. Entretanto, lamentavelmente, acaba se apresentando como um fenômeno
global bastante didático para se compreender essa dinâmica de funcionamento do capital, a
partir da constatação de que, com o isolamento social (trabalhadores em casa), rompem-se as
esferas de produção, circulação (comercialização) e realização (consumo) de boa parte dos bens
e serviços, mercadorias capitalistas, provocando crises simultâneas nestas três esferas, fazendo
com que os capitalistas enlouqueçam pelo retorno das atividades econômicas. Dessa forma,
trabalhadores em casa (ou em greve), “teoricamente”, reduzem produção, reduzem circulação,
reduzem consumo, reduzem lucros, sem adentrar, obviamente, em algumas peculiaridades de
cada uma dessas esferas, como por exemplo, o consumo de bens de luxo viabilizados pelos
próprios capitalistas.
A pandemia também desnuda a total incapacidade dos mercados “em liberdade” de
gerenciamento de crises. A retórica do “Estado mínimo” foi prontamente esquecida pelos
pseudo intelectuais da direita, pelas instituições financeiras globais e pelos ferrenhos
defensores do neoliberalismo. O mundo clama pelo socorro financeiro do Estado, enquanto a
mão invisível do mercado fica em quarentena “se limpando com álcool em gel”.
Logo, o cerne da discussão da crise estrutural, portanto, não deve ser compreendido a
partir da retração em marcha forçada no capitalismo hodierno, imposta pela crise da Covid-19.
Não significa também, aqui, negar a Covid-19 enquanto crise sanitária que afeta sim o
desempenho das economias. Mas, o importante, neste ponto, é que se perceba que a dinâmica
de desenvolvimento do capital, se forja em um processo histórico de precarização e/ou
anulação da categoria trabalho, atirando no seu próprio pé, sobretudo quando o capital se
mostra incapaz de gerar para si mesmo uma sociedade de consumo de massa para realizar o
ciclo de legitimação que necessariamente passa pelas três esferas (leia-se, transformar a mais-
valia em lucro). O máximo que consegue oferecer é uma ideologia consumista.
A crise do Covid-19, certamente tem acentuado ainda mais os níveis de desemprego (e
em longa duração) aqui no Brasil, afetando ainda mais a população negra que já experimenta
historicamente posições inferiores no mercado de trabalho, além de concorrer para o
crescimento da pobreza e das desigualdades socioeconômicas dessa população.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

77
Diante desse cenário de acentuada precarização das relações de emprego e trabalho,
seja no Brasil de capitalismo “atrasado”, seja nos países de capitalismo avançado, é lúcido
perceber que a crise do trabalho tem se tornado mais permanente, perdendo assim o caráter
cíclico das crises capitalistas de outrora. Trata-se de uma “depressed continuum” (depressão
ou crise contínua) conforme a denominação do filósofo húngaro István Mészáros, com uma
manifestação mais notável (visível a olho nu) e com reflexos mais espúrios à sociedade.
Por fim, a reflexão que aqui se apresenta, escancara o processo histórico de degradação
do trabalho como algo intrínseco à própria lógica de expansão do capital. Logo,
compreendendo que crises são imanentes ao capitalismo, não serão elas quem nos incitarão a
percepção de alternativas para além do capital. Elas tão somente sinalizam ao próprio
capitalismo para que este se readapte e siga. Aos mais atentos e vigilantes, independente de
uma intensificação (ou não) de processos de desvio de uma pretensa normalidade de
funcionamento do capitalismo (crises), sempre estaremos experimentando momentos
oportunos para se compreender criticamente o verdadeiro significado do trabalho humano, para
uma lógica de satisfação de necessidades humanas, independente de raças, em detrimento de
uma lógica de satisfação das necessidades do capital.

BREVE “RETRATO” DA POPULAÇÃO NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO


BRASILEIRO EM 2020, NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19

Mesmo que a população negra tenha conquistado importantes acessos em determinadas


instâncias da sociedade nas últimas décadas, a sua inserção, sua posição ocupada e o seu papel
desempenhado no mercado de trabalho continua sendo um fator determinante para a construção
de sua identidade e de definição de sua sociabilidade. Dessa forma, importa perceber, nesta
seção, como a população negra tem se expressado dentro do mercado de trabalho brasileiro,
exclusivamente para este estudo, no período em que se instala e se desenvolve a crise sanitária
em nossa economia.
Embora seja uma matéria complexa a identificação e definição dos grupos raciais no
Brasil, para fins de estudos e análises socioeconômicas, esta é feita de acordo com o sistema
classificatório de “cor ou raça 39” utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), que define as seguintes categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena, com base

39 O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE, Osorio (2003).


SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

78
principalmente em aspectos fenotípicos. Neste estudo, nos limitaremos a analisar e comparar
os indicadores das raças negra (preta e parda) e branca.
Conforme a vasta literatura sobre a questão, admite-se que o preconceito racial
brasileiro é caracterizado como “de marca 40”, mesmo se compreendendo que a fenotipia não
esgota a discussão de raças, uma vez que outras questões são inseridas no debate, tais como
aspectos culturais, biológicos, regionais, linguísticos, entre outros, direcionando-o para uma
aproximação de elementos étnico-raciais nesse debate. Entretanto, a classificação do IBGE se
sustenta como legítima para fins de análise, sobretudo pelo fato de perceber a similaridade das
realidades socioeconômicas dos sujeitos pertencentes a cada grupo racial determinado.
De acordo com dados recentes da PNADC/T 41 a estimativa da população brasileira no
ano de 2020 foi de aproximadamente 211,1 milhões de pessoas, dentre as quais 55,37% se
autodeclararam negras – pretas ou pardas (IBGE, 2021). A partir dos indicadores do mercado
de trabalho brasileiro, os trabalhadores negros e as trabalhadoras negras responderam a uma
taxa de participação 42 de 58% na força de trabalho total do país, ao longo do ano de 2020,
representando um nível de ocupação43 de 48,5% no mesmo período, evidenciando, portanto,
que mesmo sendo hegemônica enquanto força de trabalho, a população negra, em termos
proporcionais, ocupou menos postos de trabalho disponíveis que a população branca.
A taxa de desocupação (ou desemprego) da população negra brasileira – que é o
percentual de pessoas desocupadas em relação às pessoas na força de trabalho –, por
conseguinte, fechou o referido ano em 16,38% representando um aumento de 15,35% em
relação a 2019, cuja taxa fechou em 14,2% da força de trabalho negra nesse ano.
Em 2020, cerca de 41,6 milhões de brasileiros foram classificados como fora da força
de trabalho, ou seja, pessoas que não estavam ocupadas e nem desocupadas, pelo fato de não
buscarem emprego por descrédito na possibilidade de consegui-lo. Dessa população
denominada de desalentados, 55,48% era força de trabalho negra. Referidos indicadores
ratificam, portanto, que os negros são maioria dentro do chamado exército industrial de
reserva, conforme denominação de Marx (1999), e que acabam por contribuir para a pressão
por redução dos salários reais dos trabalhadores em geral. Com efeito, dada situação denuncia

40 Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as
suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca;
quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências
do preconceito, diz-se que é de origem (NOGUEIRA, 1985).
41
PNAD Contínua Trimestral 2020. (IBGE, 2021).
42
Percentual de pessoas na força de trabalho na semana de referência em relação às pessoas em idade de trabalhar
(IBGE, 2019)
43
Proporção de pessoas ocupadas dentro da população em idade de trabalhar (IBGE, 2019).
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

79
a falsa retórica de poder de barganha dos trabalhadores numa pretensa ideia de mercado de
trabalho livre, sem regulações por parte do Estado, principalmente durante uma crise como a
que vivemos, onde segundo o IBGE (2021), a taxa de desemprego foi a maior já registrada
desde o início da série histórica em 2012, registrando 14,1% em 2020. Reflexo não somente da
pandemia da Covid-19, mas sobretudo, como consequência de uma crise mais duradoura e
estrutural do capital.
Adentrando nos aspectos específicos de renda, no 1º trimestre de 2020, o rendimento
habitual médio nominal do trabalho principal do negro foi de R$ 1.712,50, representando
56,7% do trabalhador branco, que foi de R$ 3.020,00 no mesmo período. Quando se analisa o
rendimento médio geral, inserindo todos os rendimentos (e não somente o trabalho principal),
o percentual salarial da força de trabalho negra cai para 56,13%, quando cotejado ao da força
de trabalho branca, demonstrando o evidente abismo de rendimentos nominais entre negros e
brancos, mostrados pela Tabela 01. Ademais, a Tabela 02 ratifica um comportamento similar
com relação à renda média real do trabalho principal habitualmente recebida pela força de
trabalho negra, que representou 56,8% do rendimento real do trabalhador branco.

Tabela 01 - Rendimento médio nominal, habitualmente recebido por mês e efetivamente


recebido no mês de referência, do trabalho principal e de todos os trabalhos, por cor ou raça
(Valores em Reais)
Brancos Negros
Rendimento Médio Nominal 2019 2020 Var 2019 2020 Var
Do trabalho principal, 2.875,0 3.020,0 5,04 1.640,5 1.712, 4,39
habitualmente recebido 0 0 % 0 50 %
De todos os trabalhos, 2.979,0 3.131,0 5,10 1.687,0 1.757, 4,16
habitualmente recebido 0 0 % 0 15 %
Do trabalho principal, 3.161,0 3.324,0 5,16 1.793,5 1.887, 5,24
efetivamente recebido 0 0 % 0 50 %
De todos os trabalhos, 3.268,0 3.427,0 4,87 1.840,5 1.935, 5,16
efetivamente recebido 0 0 % 0 50 %
Fonte: Elaboração própria com base na PNADC/T – IBGE (2021)

Tabela 02 - Rendimento médio real, habitualmente recebido por mês e efetivamente recebido
no mês de referência, do trabalho principal e de todos os trabalhos, por cor ou raça (Valores
em Reais)
Brancos Negros
Rendimento Médio Real 2019 2020 Var 2019 2020 Var
Do trabalho principal, 3.070, 3.105, 1,14 1.753, 1.762, 0,51
habitualmente recebido 00 00 % 50 50 %
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

80
De todos os trabalhos, habitualmente 3.181, 3.218, 1,16 1.803, 1.809, 0,36
recebido 00 00 % 00 50 %
Do trabalho principal, efetivamente 3.392, 3.423, 0,91 1.926, 1.947, 1,06
recebido 00 00 % 50 00 %
De todos os trabalhos, efetivamente 3.506, 3.529, 0,66 1.977, 1.996, 0,99
recebido 00 00 % 00 50 %
Fonte: Elaboração própria com base na PNADC/T – IBGE (2021)

A partir das Tabelas 01 e 02, evidenciam-se ainda que a renda (nominal e real) média
habitualmente recebida pelo trabalhador negro apresentou uma variação menos elevada que
do trabalhador branco, em 2020, sendo observado exatamente o inverso, quando se tratou da
renda média efetivamente recebida. Acerca desse ponto, importa destacar que via de regra,
para análises de conjuntura, os estudos dão maior atenção à renda habitualmente recebida, uma
vez que esta se isenta de aspectos de sazonalidade, bem como por ser livre de variações
idiossincráticas na renda efetivamente recebida (IPEA, 2020).
Com os indicadores expostos, fica patente que no capitalismo subdesenvolvido e
dependente latino-americano, consequentemente brasileiro, tem como principais
peculiaridades a superexploração da força de trabalho, a enorme desigualdade racial e uma
superpopulação relativa da força de trabalho que, reserva sobretudo à população negra,
hegemonicamente pobres, periféricos e de baixa escolaridade, as atividades marginais do
capitalismo: camelôs, babás, manicures, domésticas, traficantes do varejo de drogas, catadores,
autônomos, ambulantes e etc., bem como aqueles que se encontram na categoria em que a
ideologia neoliberal insiste chamar de empreendedores – boa parte, força de trabalho na
informalidade e no desemprego dissimulado –, tentando esconder o processo de precarização
do trabalho e de racismo estrutural brasileiro.
Destarte, a população negra expressa uma grande massa de seres humanos que já eram
afetados pela própria estrutura de funcionamento do capital, mas que se intensifica pela crise
econômica e ainda, que se tornam mais expostas ao vírus e à fome, reiterando o papel ocupado
por essa população e sua histórica situação de extrema exploração, que compõe hoje mais da
metade de toda a força de trabalho no Brasil. Em parte, isso explica o porquê do negro na
sociedade pandêmica compor a parcela hegemônica de seres humanos mais expostos às
consequências do vírus e do verme excludente entranhado na forma social capitalista.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

81
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do problema racial no Brasil pode ser desenvolvida a partir da verificação


histórica da hierarquização racial da população, ou do racismo estrutural, que se apresenta
como um fenômeno imanente à dinâmica de funcionamento do próprio capitalismo. Dessa
forma, a análise da participação da população negra no mundo de trabalho, a partir de uma
abordagem crítica, nos permite uma mais profícua compreensão das desigualdades raciais do
capitalismo brasileiro, como reflexos de seu fundamento e de sua dinâmica de
desenvolvimento, ou seja, na essência de seu próprio funcionamento.
Lamentavelmente, a crise pandêmica da Covid-19, além de cumprir com esse papel de
experiência prática do modus operandi excludente capitalista, que se escancara pela luta de
classes, também reitera a luta racial diante da manifestação estrutural da relegação do negro às
condições similares que são oferecidas à força de trabalho branca, no mercado de trabalho. Os
indicadores expostos pela PNAD Contínua Trimestral de 2020 sinalizam para um cenário
bastante desalentador para os trabalhadores brasileiros em geral, que infelizmente são
redimensionados quando analisados especificamente para a população negra. Com efeito, o
caráter estrutural do racismo brasileiro torna o problema bem mais complexo e que,
necessariamente exige que sejam pensadas políticas que concorram para uma reparação
histórica e moral da condição imposta à população negra.
Por fim, considerando que a forma social capitalista traz em suas entranhas o
desenvolvimento desigual – seja de regiões, seja de raças –, a desigualdade social, a exclusão
e a condição de pobreza experimentadas pelos trabalhadores e, sobretudo pela população negra,
certamente continuará assombrando os ferrenhos defensores do liberalismo, num pretenso
cenário de “novo normal”.
Cientes que tais fenômenos são manifestações naturais – elementos constitutivos da
própria estrutura de funcionamento do capital (sequência genética do sistema) –, para superá-
los, torna-se urgente romper com essa ideia de “normal”, e direcionar os esforços e práxis para
um “novo”, e que necessariamente seja para além do capital.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
FIOCRUZ. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Covid-19. Perguntas e respostas. Disponível
em < https://portal.fiocruz.br/pergunta/por-que-doenca-causada-pelo-novo-virus-recebeu-o-
nome-de-covid-19>. Acessado em 09 mar. 2021.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

82
HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na
década de 90. TEXTO PARA DISCUSSÃO Nº 807. Brasília: IPEA, 2001.
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral - PNADC/T: tabelas. Disponível em: <
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____. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional
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IPEA. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. MERCADO DE
TRABALHO. Os efeitos da pandemia sobre os rendimentos do trabalho e o impacto do auxílio
emergencial: os resultados dos microdados da PNAD Covid-19 de agosto. Carta de Conjuntura
nº 48 – 3º Trimestre de 2020. Brasília: Ipea, 2020.
____. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de
gênero e raça. 4ª ed. - Brasília: Ipea, 2011.
LIMA, Sílvia Tibo Barbosa. DIREITOS HUMANOS DOS NEGROS: Racismo estrutural,
necropolítica, interseccionalidade e o mito da democracia racial no Brasil. REH- REVISTA
EDUCAÇÃO E HUMANIDADES. Volume I, número 2, jul-dez, 2020, pág. 119-132.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 17ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
NOGUEIRA, Oracy. "Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem — sugestão
de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil",
in O. Nogueira (org.), Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A.
Queiroz, 1985.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). OIT: Perda de empregos
aumenta e quase metade da força de trabalho global corre o risco de perder os meios de
subsistência. 29 abr. 2020. Disponível em <https://www.ilo.org/brasilia/noticias
/WCMS_743197/lang--pt/index.htm>. Acessado em 10 mar. 2021.
OSÓRIO, Rafael Guerreiro. O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE. TEXTO
PARA DISCUSSÃO Nº 996. Brasília: IPEA, 2003.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

83
CAPÍTULO 7
A COVID-19 REVELANDO A COR DO
FEMINICÍDIO

ANA VITÓRIA DE SOUSA SILVA44


BRENNA GALTIERREZ FORTES PESSOA45
ELAINE FERREIRA DO NASCIMENTO46

INTRODUÇÃO

O feminicídio consiste em um problema social grave em que mulheres são assassinadas


em razão de serem mulheres, portanto trata-se de um crime misógino, ou seja, de ódio ao ser
feminino. No entanto, dentro desta realidade de opressão feminina, constam os marcadores
sociais de raça e classe, os quais agregam um maior impacto nestas ocorrências, pois as maiores
vítimas são mulheres negras e pobres, em razão de não conseguirem evitar que no seu óbito
aconteça, em virtude da própria realidade social brasileira que favorece estas mortes a este
determinado grupo de mulheres.
O Estado, assim como a sociedade, é também responsável pelos casos de feminicídio,
pois a forma como as estruturas de poder são construídas e legitimadas implica diretamente
sobre o modo como as questões sociais são tratadas associadas a sua trágica história colonial
que fez com que do Brasil se constitua como um país racista, machista e classista, considerando,
assim, que a população negra de modo geral (homens e mulheres) é a mais marginalizada e
subalternizada, ao mostrar o racismo presente nos dados estatísticos, como o feminicídio, em
que 68% das mulheres vítimas são negras, e nas próprias políticas públicas de proteção à
mulher, que renegam a multirracialidade do ser mulher.

44 Bacharela em Serviço Social do Centro Universitário Santo Agostinho e Mestranda do


Programa de Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí.
45 Bacharela em Serviço Social do Centro Universitário Santo Agostinho e Mestranda do

Programa de Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí


46 Assistente Social. Doutora em Ciências pelo IFF/Fiocruz. Pesquisadora em Saúde Pública.

Coordenadora Adjunta da Fiocruz Piauí. Docente permanente do Programa de Políticas


Públicas da Universidade Federal do Piauí. Líder do Diretório de Pesquisa Saúde,
Interseccionalidade e Direitos Humanos. Coordenadora do grupo de estudos Raça, Gênero e
LGBT+.
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

84
A complexidade do enfrentamento da questão social do feminicídio envolve a falha na
humanização dos meios usados para esta finalidade, pois, de fato, para as mulheres negras, o
que falta é humanidade. Deste modo, é colocado neste capítulo, o impacto dos atravessadores
sociais de raça e classe sobrepostos à mulher negra em relação à vulnerabilidade e ao risco
social de exposição à extrema violência em um contexto pandêmico e como esta atual realidade
reverbera sobre as ocorrências de feminicídio entre as mulheres negras.

VULNERABILIDADES E A TRIPLA DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES


NEGRAS

A crença de que mulheres negras são fortes e de que tudo suportam mistifica a realidade
de subjugação a qual elas vivenciam. Lélia Gonzalez, em sua obra Por um feminismo Afro
Latino Americano, afirma que “ser negra e mulher no Brasil [...] é ser objeto de tripla
discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no
nível mais alto de opressão” (GONZALEZ, 2020, p. 58). As diversas formas de violência
perpetuadas contra a mulher negra são negligenciadas, isto porque a sociedade possui bases
eurocêntricas que anulam e desumanizam estas mulheres. Assim, o entrecruzamento de
racismo e sexismo é um potencializador que afeta de modo significativo o olhar social para
uma realidade marginalizada, pois “a mulher negra desempenha um papel altamente negativo
na sociedade brasileira dos dias de hoje, dado o tipo de imagem que lhe é atribuído ou dadas
as formas de superexploração e alienação a que está submetida” (GONZALEZ, 2020, p. 62).
Kimberlé Crenshaw traz, em Documento para o encontro de especialistas em aspectos
da discriminação racial relativos ao gênero, a discussão acerca da interseccionalidade. A
jurista e autora deste termo coloca que “a interseccionalidade é uma conceituação do problema
que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos de subordinação” (CRENSHAW, 2002, p. 177). Este conceito traz o modo como o
racismo, o patriarcado e a opressão em torno das classes, como uma consequência do
capitalismo, reverberam sobre as desigualdades que hierarquizam os papeis e as posições
sociais, principalmente das mulheres, logo, a interseccionalidade constitui-se como uma
ferramenta teórica e política capaz de dar visibilidade aos marcadores sociais que atravessam
as vivências das minorias, é através de uma visão interseccional, que se torna viável a
percepção de que, na sociedade, principalmente a brasileira, os atravessadores sociais estão
sobrepostos a múltiplos sistemas de opressão. Assim, “as mulheres racializadas frequentemente
estão posicionadas em um espaço em que o racismo ou a xenofobia, a classe, o gênero e a
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

85
orientação sexual se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso
fluxo de tráfego em todas essas vias” (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Ainda segundo Crenshaw (2002), qualquer análise que desconsidera e não dimensiona
a perspectiva da interseccionalidade está negando e omitindo as circunstâncias, sobretudo de
mulheres em situação de vulnerabilidade e marginalização social, pois, como afirma Salgado
(2017, p. 42), “os reflexos da consideração de mulheres e negros como inferiores e
subordinados constituem manifestações estruturais de poder, sendo que o mecanismo principal
de todas as formas de opressão é a violência”. Especificamente para as mulheres, a violência é
algo que se encontra muito presente no cotidiano e se apresenta de diversas formas, o
feminicídio, por exemplo, constitui-se como um mecanismo de opressão por violação à vida,
trata-se de um crime envolvendo misoginia, que significa uma aversão ao feminino, ou
simplesmente o ódio à mulher, desse modo, o feminicídio é descrito como uma violência de
caráter extremo, praticada por um homem e direcionada à figura feminina, tendo como objetivo
o extermínio, quase sempre de forma cruel, desta mulher. É importante ressaltar que o
feminicídio é um crime anunciado, ou seja, ele possui uma dimensão gradativa, é o estágio
final de um ciclo de violência. No Brasil, este fato é visto com muita neutralidade pela
sociedade, que não vê neste crime um problema social e de saúde pública, que abrange a
intervenção dos setores do Estado (CRENSHAW, 2002; SALGADO, 2017).
O impacto da questão racial na violência extrema direcionada às mulheres, como é o
caso do feminicídio, constitui a causa dos altos índices deste crime concentrados em grande
parte da população feminina composta por mulheres negras, pois de acordo com o Atlas da
Violência 2020, 68% dos assassinatos foram cometidos contra este público, o que equivale a
mais da metade dos casos de feminicídio no Brasil, considerando que uma mulher é morta a
cada duas horas no país. De fato, a opressão posta pelo racismo determina a marginalização
social de mulheres negras, em que estereótipos racistas como, por exemplo, o da negra raivosa,
responsável por provocar a violência para seus próprios corpos e corpas, trazem maiores
consequências, sendo uma justificativa para o óbito destas mulheres, ao contrário das mulheres
brancas, tidas como frágeis e dignas de proteção social, estas ideias construídas é o que
divergem na atenção e no olhar, tanto da sociedade, quanto do Estado para as diferentes
categorias de mulheres. Assim, as alarmantes estatísticas de feminicídio entre mulheres negras
apontam que quando raça encontra gênero, tornam-se evidentes os contrastes sociais que
segregam o ideal de universalidade feminina colocada pelo feminismo branco eurocêntrico,
que por sua vez negligencia a centralidade da raça nas questões de gênero, sendo unicamente
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

86
legitimados os valores de uma cultura ocidental, em que são negadas a ancestralidade histórica
e a conjuntura de vida da mulher negra (CARNEIRO, 2011; CERQUEIRA et al, 2020).
A crença de uma democracia racial, tida como um cenário em que há igualdade entre
os sujeitos, neste caso, entre as mulheres, omite o grande abismo social de raça e classe que
separa distintas realidades, a ordem social por possuir traços coloniais em cuja estrutura está
inserida a noção de superioridade hegemônica eurocêntrica e não reconhece os diferentes
impactos que a opressão produz na vida das mulheres negras, tendo em vista que a violência
direcionada às mulheres é consequência de fatores que não envolvem apenas a questão do
gênero, pois há a presença de outras circunstâncias que implicam sobre este contexto, fatores
como raça/etnia/cor de pele, classe social e cisgeneridade agregam um impacto muito maior
nesta realidade e, desse modo, o cenário brasileiro, marcado por uma base social firmada pela
lógica racista, patriarcal e capitalista, permite que estes sis(cis)temas de opressão ocasionem,
particularmente sobre a vida da mulher negra, uma difícil realidade. Alguns fatos históricos da
sociedade brasileira permitem uma melhor visualização sobre a situação contemporânea que
envolve casos de extrema violência. Durante o período colonial, as mulheres negras eram
submetidas a situações de extrema exploração, sobretudo sexual, sendo constantemente
espancadas fisicamente e estupradas pelos senhores, e este tratamento brutal da escravidão
fortaleceu a violação ao corpo negro, mais especificamente ao corpo das mulheres negras
(CARNEIRO, 2011; GONZALEZ, 2020).
Tais atos de violência direcionados estritamente a estas mulheres encontram-se
dimensionados entre os três eixos de opressão que englobam raça, gênero e classe, ambos
estruturados em um triplo sistema de dominação, são estes: o racismo, o patriarcado e o
capitalismo, que interagem de modo particular sobre a vida da mulher negra. Logo, o
feminicídio, quando articulado a estes fatores, torna explícito a desigualdade e a exclusão que
se intersectam, agrupando um encadeamento de atravessadores sociais às identidades de grupos
minoritários marcados socialmente pela discriminação. Assim, as estatísticas mostram que os
contrastes existentes no crime de feminicídio são alarmantes, entre as mulheres negras o
crescimento das taxas de óbito chega a 60,5%, representando mais da metade dos assassinatos,
comparado a uma ínfima porcentagem de 1,7% das ocorrências entre mulheres brancas. Desse
modo, mulheres negras constituem o perfil de maior representação neste crime, aliado a isso,
os índices de feminicídio encontram-se mais presentes entre mulheres de baixa escolaridade,
em que 70,7% das mulheres vítimas possuíam o ensino fundamental e 7,3% tiveram acesso ao
ensino superior, e, nesse sentido, as mulheres brasileiras são as mais acometidas pela violência
extrema, tendo em vista que o Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de feminicídio,
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

87
conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, órgão das
Nações Unidas dedicado à promoção e proteção dos Direitos Humanos (BUENO, 2019;
CRENSHAW, 2002; WAISELFISZ, 2015).
O Brasil possui uma organização social racista, patriarcal e classista, logo, as relações
sociais são fundamentadas pela lógica destes sis(cis)temas, o que reforça a inferiorização de
mulheres, em que, até mesmo entre estas, há a presença de uma desigualdade segregacionista,
sustentada através da estrutura de poder da classe dominante, formada sobretudo pela
supremacia branca. Dessa forma, a ordem social é calcada conforme este padrão hegemônico
e, assim, este modelo de sociedade brasileira divide os sujeitos em níveis de importância e
humanidade, no caso do feminicídio, este consiste em uma violação aos Direitos Humanos da
mulher, portanto se constitui como uma expressão da questão social, tida como a soma de todos
os elementos que determinam as disparidades sociais, neste contexto, uma violência extrema
expressa pela existência de uma hierarquia de gênero, no entanto, o fenômeno do feminicídio
também retrata a dinâmica dos assassinatos de mulheres, em que são considerados os elementos
endógenos do crime, raça, gênero e classe. O artigo feito pelos autores Sousa, Nunes e Barros
(2020), intitulado Interseccionalidade, femi-geno-cídio e necropolítica: morte de mulheres nas
dinâmicas da violência no Ceará, traz uma discussão acerca do contexto social em que há uma
maior vitimização de corpos negros de mulheres pobres e periféricas, ao passo que estas se
encontram em uma situação de extremo descaso social, em que estão imbricadas as
circunstâncias estruturais de violência urbana, subalternização e precarização de vida, em que
a desigualdade colocada neste meio sustenta a necropolítica, um dispositivo de poder que
determina os corpos matáveis, ou seja, que designa qual vida vale menos, e tal perspectiva diz
muito sobre as ações do poder público e sobre quem ele protege, porque, na verdade, o Estado
é também o causador da morte destas mulheres (negras e periféricas). Como aponta a autora
Carla Akotirene (2019), em seu livro Interseccionalidade: feminismos plurais, tanto delegados
e juízes, quanto agressores ou feminicidas possuem uma carga de responsabilidade nos casos
de feminicídio, uma vez que estão implicados na negligência e pelos assassinatos de mulheres
(negras), assim, o feminicídio é um desafio a ser enfrentado pela sociedade e autoridades
nacionais e internacionais, enquanto uma problemática social que aniquila principalmente
corpos enegrecidos e periféricos de mulheres subalternas (PESSOA; NASCIMENTO, 2020;
SOUSA, 2020).
Recentemente, as práticas do crime de feminicídio ganharam uma dimensão pública
através da tipificação do caso, por meio da Lei 13.104/2015 – Lei do Feminicídio, que
qualificou a prática do homicídio, sendo consideradas as circunstâncias desta violência, que é
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

88
reproduzida em razão da estrutura de desigualdade de gênero. No entanto, a sociedade
pressupõe outros sistemas de poder além do patriarcal, como já foi mencionado anteriormente,
o racismo e a desigualdade de classes interferem também nesta realidade, isso porque a imagem
da vítima de feminicídio é questionada, ainda que esta mulher esteja morta, é comum que haja
uma revitimização, este termo refere-se ao julgamento que é feito logo após a incidência do
crime, o fato é que há uma categorização entre as mulheres, as ditas “de família” (decentes) e
as “descartáveis” (ultrajantes), que foram contrárias ao padrão feminino imposto, estas em
último logo são responsabilizadas pela própria morte, e expostas como a causa pelo ocorrido,
ou seja, são colocadas como as motivadoras do crime. Desse modo, é evidente que o nível de
proteção social não é o mesmo, pois a ideia formada sobre a raça/etnia, situação social,
econômica e cultural de uma mulher diz muito sobre o posicionamento de ações e medidas do
poder público quanto ao fato social em questão, o feminicídio. Nesse sentido, coloca Salgado
(2017, p. 47): “a aplicação enviesada das normas de proteção, diretamente ligada ao fenômeno
da discriminação interseccional, ao invés de contribuir para a modificação do modelo
tradicional [...], reforça uma estrutura patriarcal de traços coloniais” (SALGADO, 2017, p. 47).
Os casos de feminicídio no Brasil são alarmantes, a cada duas horas uma mulher foi
morta no ano de 2018, o que totalizou 4.519 vítimas, os dados mostram também que as taxas
de mortalidade são maiores entre mulheres negras, sendo 5,2% no ano de 2018, neste mesmo
ano a taxa de feminicídio entre mulheres não negras foi de 2,8%, logo, as estatísticas apontam
quem morre mais por estes assassinatos e é fácil identificar quais grupos sociais são mais
vulneráveis a esta realidade. As ocorrências de crime de feminicídio precedem um contexto
histórico referente a crenças de inferiorização e submissão a que as mulheres foram impostas,
no entanto, os crescentes registros destes casos mostram que, além da categoria gênero, os
componentes de raça e classe interferem de modo diferenciado na realidade de vida das
mulheres, por isso, há uma seletividade, tanto nas mortes quanto na proteção social e até mesmo
na dimensão pública que estes assassinatos irão proporcionar, no sentido de serem acionadas
medidas de enfrentamento, pois o fato é que as mulheres negras são destituídas de humanização
e isso é o que as torna marginalizadas (CERQUEIRA et al, 2020).
E essa marginalização ocorre pelos estigmas aos quais este grupo mais vulnerabilizado
de mulheres está sujeito, porque para elas (mulheres negras) tudo, a princípio, é negado, o
acesso a um serviço, os meios para a realização de uma denúncia, a própria política de proteção
não viabiliza e não vê as diferentes conjunturas de realidade, o que invalida a efetividade das
ações para o enfrentamento das práticas extremas de violência contra as mulheres, sobretudo
aquelas que historicamente, por pertencerem a um nível de status social mais baixo, foram e
SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

89
são triplamente violentadas, ainda que o feminicídio atinja as mulheres em geral, a opressão
que pertence a uma não é a mesma da outra, pois uma mulher branca sente a dor da violência
por ela ser mulher e pertencer a uma sociedade patriarcal, enquanto uma mulher negra vivencia
a dor da violência por ser mulher, negra e excluída, em uma estrutura de poder social sob os
moldes do racismo, do patriarcado e do capitalismo (AKOTIRENE, 2019).
Atualmente, é experienciado um contexto pandêmico, em razão do surgimento do vírus
da Covid- 19 no ano de 2020. A doença, por ser infectocontagiosa, obrigou governos e
municípios a adotarem medidas de proteção à saúde pública, sendo estabelecidas ações para
combater o contágio, por meio da Lei 13. 979/20 – Lei de Quarentena, que foi sancionada no
dia 7 de fevereiro, o decreto estabeleceu o distanciamento social, por meio do isolamento, bem
como outros meios para evitar o contágio, como o fechamento de Instituições públicas e de
serviços não essenciais. Esta nova realidade em razão da pandemia modificou radicalmente o
cotidiano de muitas pessoas, o que levou muitas famílias a se adaptarem ao diferente contexto
social e, assim, “diversos fatores sociais implicam em meio a este cenário pandêmico, como é
o caso da vulnerabilidade social de determinados sujeitos ou grupos [...] mais suscetíveis [...]
a danos circunstanciais” (SILVA, 2020, p. 13). Em relação às mulheres, a pandemia no Brasil
predispôs uma maior incidência das ocorrências de assassinatos, “a violência e o feminicídio
constituem fenômenos globais, que atingem mulheres de todas as [...] classes sociais, esta
realidade é visível pelas circunstâncias de vulnerabilidade da população feminina” (SILVA,
2020, p. 14). Logo, a conjuntura social atual representou, para muitas mulheres, não uma
medida de segurança e proteção, ao contrário, refletiu o agravamento da situação de opressão,
na qual estão submetidas diariamente, uma vez que a pandemia, por reduzir o funcionamento
de diversos serviços públicos, incluindo os responsáveis pelo equipamento de proteção às
mulheres, expôs estas a uma condição de completo desamparo, ademais o abismo social que
divide realidades categoriza as principais vítimas de feminicídio diante deste contexto
pandêmico, mulheres negras, pobres e periféricas (SILVA, 2020).

FEMINICÍDIO DA MULHER NEGRA NA PANDEMIA

Os dados de feminicídio aumentaram pelos menos em 22%, conforme o Fórum


Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) de 2020, em virtude do isolamento social causado,
conforme Pessoa e Nascimento (2020), pelo vírus nomeado de SARS-CoV-2 ou Covid-19,
uma doença com alta carga viral e de rápido contágio. Por este motivo, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) determinou um decreto solicitando que todos os países realizassem o
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isolamento social, a fim de que as pessoas ficassem reclusas em ambiente domiciliar para evitar
a disseminação do vírus. No entanto, este acordo global facilitou o feminicídio, principalmente
de mulheres negras, conforme é colocado no artigo Feminicídio e Covid- 19 pelas autoras
Pessoa e Nascimento (2020), em que as discussões estão baseadas em dados do Atlas da
Violência (2020) que aponta 68% dos casos de feminicídio acometidos contra as mulheres
negras. Nesse sentido, pesquisas como essa mostram que a desigualdade pela cor da pele
perpassa para além da pobreza e saúde ou outras expressões da questão social, como a violência
e a morte por gênero e, desse modo, não há como tratar deste momento pandêmico sem
identificar como ele atinge de modo diferenciado as pessoas, aqui no caso mulheres (mulheres
negras e não negras), ressaltando que não será tratado aqui de mulheres trans e travestis, apenas
cis, no entanto, é de fundamental importância produzir informações para esse segmento da
população.
Em razão disto, é inviável englobar, em uma crise pandêmica desta magnitude, apenas
questões pontuais, sejam sanitárias ou de valores sociais e econômicos, sem entender como
esta condição atual perpassa, de modo diferenciado, a realidade de vida das pessoas,
principalmente aquelas que se encontram em uma condição de maior vulnerabilidade (mulheres
negras), estas que estão na base da pirâmide social, conforme Carneiro (2003), depois homens
negros, em seguida mulheres brancas e na ponta os homens brancos. As mulheres negras,
geralmente, ocupam cargos em trabalhos considerados subalternizados pela sociedade, como,
por exemplo, serviços domésticos e comerciários, uma realidade contemporânea que agrega
resquícios históricos e contemporâneos da colonialidade e isto faz com que haja um declínio
de instabilidade financeira entre estas mulheres e seus companheiros, no que se refere ao
orçamento do lar, e tal situação proporciona mais poder ao homem, pois, de fato, este consegue
ter trabalhos com uma melhor remuneração, uma vez que a desigualdade sexual salarial é um
agravante notório e não superado no Brasil.
Isso sem contar que estas mulheres fazem jornadas triplas com afazeres domésticos, um
traço da sociedade patriarcal, em que é delegada somente às mulheres a realização destas
atividades. Com a pandemia, esta carga de trabalho doméstico mais que triplicou com
companheiro e/ou os filhos dentro de casa por mais tempo, e para a mulher negra o risco é mais
eminente, aqui para além do recorte de raça, enfatiza-se a questão de classe, pois ambos os
fatores, raciais e classistas, encontram-se atravessados em determinados grupos de mulheres.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (2019), os (as) negros (as) estão
em 75% entre os mais pobres, e os (as) brancos (as) entre os 70% mais ricos. Além disso,
conforme Novellino (2004), até muitos homens desprovidos de bens (mendicância) associam
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a companheira a uma propriedade privada única, o que simbolicamente concede ao homem um
direito de violação ao corpo da mulher, como, por exemplo, estupro e morte (feminicídio).
Nesta perspectiva, discutir sobre a violência de gênero, como o feminicídio, sem a
questão da raça e/ou classe implica desconsiderar toda historicidade que ainda é perpetuada
com o colonialismo e o capitalismo no país ao ter estes dois eixos estruturais fundantes de
dominação e opressão em vigência constante, uma vez que tais sistemas fazem parte da própria
construção social do Brasil. Desse modo, de acordo com Piedade e Tiburi (2018), o feminicídio
integra um colonialismo moderno que violenta majoritariamente mulheres negras, enquanto
um grupo marginalizado da população feminina, com isso, torna-se necessário entender o outro
do outro, para além da desigualdade entre os gêneros (homem e mulher), mas inter-gênero
(mulher negra e mulher branca), entendendo que a violência às mulheres negras não iniciou no
isolamento social em razão da pandemia, o contexto apenas potencializou algo que já existe na
atualidade, as negligências para com estas mulheres (negras), é resultante de um Estado
genocida e necropolítico que segrega e mata sujeitos (mulheres) em razão da cor da pele e da
classe social.
Em razão disto, é necessário perceber as relações de gênero não pela via universalizante
do feminismo clássico eurocêntrico, em que é visualizada somente a desigualdade entre
homens e mulheres, mas sim pela interseccionalidade, em que é transitado um olhar
humanizado para as diferentes realidades da conjuntura social e histórica das mulheres do
Brasil. Conforme coloca a autora Audre Lorde (2020), as mulheres negras estão na categoria
de outra ou outsider, não sendo considerada apenas como inferior ao gênero masculino, mas
também em linha oposta às mulheres brancas, de modo que a negritude feminina possui uma
conotação negativa, as mulheres negras serão consideradas menos mulheres, numa perspectiva
em que a violência e a morte por gênero costumam ser invisibilizadas, assim é relevante
considerar as diferentes realidades de mulheres dentro do contexto brasileiro, como uma forma
de não mascarar a estrutura histórica de desigualdade social que atravessa mulheres em relação
a fatores de raça e classe. E, com a pandemia, é essencial o cuidado humanizado e
interseccional nas propostas de enfrentamento ao fenômeno social do feminicídio na
atualidade, sendo infactível o pensamento universalista em relação às ocorrências deste crime.
Contrário a isso, o governo brasileiro criou uma plataforma de emissão de denúncias de
violência doméstica, através do aplicativo denominado de “Direitos Humanos Brasil”. O
aplicativo tem tecnologia desenvolvida para celulares Android e iOS. No entanto, tal solução
não alcança, de modo geral, mulheres negras e pobres. Em 2018, a Agência Nacional de
Telecomunicações (ANATEL), afirmou que 3,8 milhões de pessoas não possuem um aparelho
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celular, o que corrobora com os dados ditos anteriormente do Instituto Brasileiro de Geografia
Estatística (IBGE, 2019), em que consta que os (as) negros (as) estão em 75% entre os mais
pobres, e os (as) brancos (as) entre os 70% mais ricos. Esta falta de olhar interseccional para
as políticas públicas e busca imediatista por soluções rasas são explicáveis por meio da
concepção política bolsonarista, em que o presidente Jair Bolsonaro reduz a sua postura como
governante a colocações do neoliberalismo e um Estado minimalista para a classe trabalhadora,
limitada em palavras, como “déficit”, “falta de recurso” e “cortes”.
O governo, no seu primeiro ano antes da pandemia, precisamente nos primeiros seis
meses de governança, desmontou uma das mais importantes políticas para as mulheres, a Casa
da Mulher Brasileira, e, como argumento, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não iria
reforçar orçamento na área, pois em sua opinião para esta pauta não era necessário o dispêndio
de recursos financeiros, sendo possível apenas uma conscientização comportamental para
serem evitados os casos de violência doméstica e feminicídio, justificando, assim, os cortes no
ano de 2019. A Casa da Mulher Brasileira foi criada no governo da ex-presidenta Dilma
Rousseff (2011-2016), com o objetivo de prestar atendimento integrado às mulheres vítimas
de agressões, contando com um centro de atendimento humanizado e especializado à mulher
em zona de violência doméstica, agrupando no mesmo âmbito: Juizado Especial voltado para
o atendimento à mulher; Núcleo Especializado da Promotoria; Núcleo Especializado da
Defensoria Pública; Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher; Alojamento de
passagem; Brinquedoteca; Apoio psicossocial; e Capacitação para a autonomia econômica. Era
considerada umas principais ações desempenhadas pela Secretária Nacional de Políticas para
as Mulheres da Presidência da República (FREITAS, 2020).
A primeira unidade da Casa da Mulher Brasileira, um centro de atendimento e espaço
público de acolhimento, em que estão reunidos serviços multidisciplinares e especializados, foi
inaugurada em 2015 e encontra-se em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, a
posteriori foram criadas também unidades em Brasília, Curitiba e São Luís. Desse modo, a
instituição foi fundada com o objetivo de contribuir com o atendimento às mulheres em
situação de violência, como um dos mecanismos para contribuir com o enfrentamento desta
realidade no país e prováveis casos de feminicídio. Não obstante, a decadência das ações do
governo Bolsonaro, em que a política pública voltada para as mulheres é inexistente, torna o
feminicídio um agravante letal, assim como o vírus da Covid-19. Nesta perspectiva, é visível a
ausência de preocupação do governo brasileiro com as mulheres e atualmente, com a pandemia,
os problemas já existentes dimensionaram e torna-se cada vez mais impensável uma alternativa
vinda do poder público em vigência que amenize as mazelas sociais. Dessa forma, diante de
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93
tais circunstâncias, a melhor solução seria a mudança de governo, ou seja, o Impeachment, de
modo que esta extrema direita não acrescenta, tanto em relação ao enfrentamento à conjuntura
pandêmica quanto em relação à questão do Feminicídio (FREITAS, 2020).
A conjuntura atual da pandemia no ano de 2020 super dimensionou as ocorrências de
feminicídio. Em países desenvolvidos, como a China e a Itália, foram realizadas ações
estratégicas de acolhimento domiciliar para combater a violência extrema contra as mulheres,
através de uma parceria com o setor hoteleiro destes países, a fim de serem evitados os casos
de assassinatos de mulheres neste período de isolamento social. Desta forma, foi pensado um
meio de prevenção às ocorrências de feminicídio, uma experiência favorável à vida de muitas
mulheres que mostrou uma alternativa de saída desta situação de violência em um contexto
social tão grave como este vivenciado atualmente, uma medida que poderia ser viável no Brasil
por meio de articulações do próprio governo e demais instituições como um mecanismo para
o enfrentamento ao feminicídio durante a pandemia (PESSOA; NASCIMENTO, 2020).

CONCLUSÃO

A dinâmica social brasileira influi no modo como o crime de feminicídio atinge


determinados grupos da população feminina, as mulheres negras são as maiores vítimas pela
marginalidade social da realidade periférica em que vivem e que afeta o alcance destas
mulheres às medidas de proteção, sendo as mais estigmatizadas, além do assassinato das
mulheres negras ser algo invisibilizado, pois há uma categorização de mulheres, em que estas
são colocadas abaixo do nível de valor social. A pluralidade existente no Brasil mostra que o
olhar para estes casos de violência extrema deve ultrapassar conceitos universalizantes que
negam todo o contexto multirracial, pois há fatores (raciais e classistas) que implicam de modo
singular sobre a vida de uma mulher, desse modo, o feminicídio não se constitui apenas como
uma questão de gênero e atualmente, com a pandemia, os casos de feminicídio entre as
mulheres negras tornaram-se maiores do que já eram, além disso, a negligência de um Estado
necropolítico com diretrizes patriarcais misóginas num contexto pandêmico, em que medidas
de isolamento social necessárias são adotadas, pode acarretar no provável aumento do número
de feminicídio de mulheres e, em particular, de mulheres negras.

REFERÊNCIAS

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qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
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95

CAPÍTULO 8
IRACEMA: UMA FAKE NEWS MITOLÓGICA,
MISÓGINA E RACISTA

RODNEY ALVES DE OLIVEIRA47


INTRODUÇÃO
Com viés político, o burguês escravista e romancista cearense descreve sua angústia
com seu momento profissional:

“Essa corrupção geral dos partidos e dissolução dos princípios […] que
tinham até então nutrido a vida política no Brasil, é o que se convencionou
chamar de conciliação: termo honesto e decente para qualificar a prostituição
política de uma época. (ALENCAR p.1061)

“Ig” possui, merecidamente, sua parcela de contribuição na construção da unidade


nacional com suas obras baseadas em mitos fundadores e o enorme contraponto com a verdade
e a ética ao qual o indianismo se prestou. Alencar não só galgou no mesmo sentido político ao
qual se propôs criticar mas também de tratar a questão do “indianismo” como ferramenta
política na promoção pessoal, já que Iracema (1865) alavancou sua imagem quatro anos depois
de sua posse como deputado cearense e ofertou, pela primeira vez em suas obras o prefácio e
o posfacio ao também político e amigo marquês de Jaguaribe (CAMILO, 2007 p.18). Pelas
páginas esbarra-se com a misantropia e o ideal de eugenia, racismo e apagamento histórico ao
disfarçar com termos decentes e honestos “uma legitimação ideológica para o processo violento
da unificação de uma nação.” (LEMAIRE, 1989 p.66)

METODOLOGIA
Esta proposta foi construída sob revisão sistemática reunindo publicações relevantes e
concordantes, buscando esclarecimento sobre as contradições na Iracema Alencariana. Numa
revisão de literatura, específica, utilizando bases de dados como Scielo, Banco de Dados do

47
iaciotekuaraparayba@gmail.com
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96
Domínio Público, no período de Março a Abril de 2020, nos idiomas Português e Espanhol,
pelas palavras-chave Iracema, crítica e José de Alencar, selecionando referências sólidas, que
apesar de tratar-se de uma questão ora literária ora historiográfica, o tema sugerido mesmo não
esgotado pôde avançar.
DISCUSSÃO

A construção da figura nacional, desejo do nacionalismo político, se deu também a


partir do uso da literatura. A construção de lendas descompromissadas com uma função social
democrática, com uma linguagem inacessível e a escolha de uma personagem desfavorecida e
rotulada, num romance irreal à moda eurocentrista contribuiu com o apagamento cultural e a
formação genocida, típicos, do Estado Brasileiro.
Na obra Alencariana, Martim, a figura principal e eixo ao qual a personagem Iracema
se curva, retrata como a índia cegamente apaixonada e angustiada, tenta preencher as
expectativas do nobre conquistador para que fixe moradia nas florestas Cearenses e não
sucumba ao desejo do retorno a sua saudosa terra e de sua amante Portuguesa que também está
a lhe esperar. Iracema é a mulher “romântica”, virgem, imaculada, submissa e recatada, ao
preocupar-se apenas com os desejos de Martim e abrir mão dos compromissos pessoais e
coletivos.
Nada ao acaso, Martim, nome não tão genérico, remete ao primeiro navegador de
iniciativa privada que transita até a terra de Vera Cruz, Martim Afonso, que em 1530 o qual
assim como os primeiros Portugueses que aqui se aventuraram, em verdade, “barbudos,
hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas e escorbuto,
olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnada.” (Ribeiro, 1995 p.44)
Outro Martim, Soares Moreno, navegador na primeira expedição ao Rio Grande do Norte,
fundador do Ceará e construtor do presídio na primeira década do século XVII, explorador do
Maranhão e defensor da Paraíba (CEARÁ, 1903), outro assassino condecorado pela Coroa
pode ter sido inspiração ao augusto que se uniu ao índio Jacaúna e seu irmão Poti. Apontando
que a escolha dos nomes não foi tão inocente, causando desconforto na democracia do ponto
de vista da diversidade, mas também discórdia temporal e histórica. Poti o intérprete e gentio
moderador com o qual Martim “plantou a árvore da amizade” (Alencar p.28) é tratado na obra
como Tabajara. Além de prolixo, tem reconhecido o questionamento em versões recentes como
a divulgada pela Câmara dos Deputados (2013), fato contestado por Basílio Quaresma Torreão,
Valeroso Lucideno e Gabriel Soares (ALENCAR p.18) supondo que a personagem seja um
reflexo de Antônio Felipe Camarão, nome de batismo de um índio Poti, vivido no litoral
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pernambucano e seria Potiguara, fidalgo qual tornou-se ícone na historiografia nacional por
defender a região do nordeste de invasões holandesas no século XVII ao lado dos Portugueses.
Suas passagens descritas na obra “Memórias de Guerra do Brasil” (ABREU, 1998) e o título
reconhecido ao gentio prestativo, em 2012 pela Presidência da República sob a lei nº12.701
por contribuição e serviços Pátrios (FAGUNDES, 2016 p.25).
Cabe ressaltar que a historiografia Potiguara descrita por Horácio de Almeida,
Guilherme Gomes da Silveira d’Ávila Lins, José Joffily e Franz Moonen entre outros, mostra
que desde o início do século XVI até o ano de 1599 os Potiguaras “constituíram uma muralha”
que impedia o avanço dos Portugueses pelo litoral, forçando a Coroa a dar atenção bélica a
Capitania, que havia sido abandonada pela violência dos selvagens daquela região (SIMÕES,
2016, p.3). O conflito constante forçou a mudança do povo Potiguara, do primeiro contato com
o europeu na região onde hoje se compreende entre João Pessoa (PB) e Recife (PE) para a Baía
da Traição (PB) mais ao norte, na região que carrega o nome dado pejorativamente pelos
Portugueses, dada aliança forçada entre os povos remanescentes e os Franceses nos meados do
século XVI. Pejorativo também é poti, que varia entre camarão e fezes (CARVALHO, 1987
p.93). Além disso, os Tabajaras sempre foram “inimigos irreconciliáveis e rancorosos dos
Portugueses” que habitavam principalmente a serra do Ibiapaba, localizada a trinta e quatro
quilômetros ao interior do litoral cearense em direção a Paraíba (BRASIL). Fato este também
não esclarecido na ilibada obra. Já em 1669, Dom Diogo Pinheiro Camarão, capitão mor dos
índios e administrador das aldeias do Rio Grande, dos povos Tabajara e Potiguara, foi outro
Camarão a prestar contas a Coroa já no Século XVII. O que nos revela que as relações entre
Potiguaras e Tabajaras na região que compreendia a capitania e entre Pernambuco, Paraíba
foram históricas (DA SILVA, 2007). O codinome Camarão foi dado a vários Potiguaras:

Antônio Felipe Camarão, capitão-mor (1633≠1660); Francisco Pinheiro


Camarão (pai de Diogo Pinheiro Camarão); Diogp Pinheiro Camarão,
governador dos índios do Rio Grande (1669), governador e capitão dos índios
da capitania de Pernambuco
(1672-1683); e capitão dos índios (1694- 1721); Antônio João Camarão,
capitão (1677-1682); Antônio Domingos Camarão,capitão (1703), último
governador dos índios (1721-1732). Por parte dos Tabajara se destacaram:
Agostinho Gonçalves Perrasco (1636-1674); Antônio Pessoa Perrasco
Arcoverde, tenente (1698-1702); Manuel Pessoa Arcoverde, tenente (1703-
?); Antônio Domingos Camarão Arcoverde, mestre de campo (ant. 1734).
(DA SILVA, 2007)

O contexto embaçado sobre o qual Iracema, a índa dos lábios de mel, é construída
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revela uma confusão proposital, politicamente irresponsável e equivocada ao entrelaçar
criações e conflitos históricos sobrepondo o apagamento de dois séculos de disputas e
resistências desses povos (NEUMANN, 2014 p.3) já que o papel da mulher, indígena e negra,
na construção dessa nova Pátria foi historicamente criado como o “sexo bom de fornicar, de
braço bom para trabalhar, de ventre fecundo para prenhar” (RIBEIRO, 1995 p.48), ilustrado
no prefácio da obra Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre, num ditado popular brasileiro
famoso: “mulher preta pra trabalhar, mulata pra transar e branca pra casar.”
Portugal que sofrera sucessivas perdas históricas, em crise social e sanitária, dos
conflitos contra Mouros e Judeus e mortandade pelas doenças pelas práticas anti-higiênicas
(RIBEIRO, 1968, 1972, apud RIBEIRO 1995 p.64) a vinda para as terras brasílicas permitiram
um ideal Lusitano da expansão do histórico sistema feudal em sistema de capitanias
hereditárias, preenchidas pelo “cunhadismo” (RIBEIRO, 1995 p.83) descrito pelo padre
Manuel da Nóbrega em cartas com notícias das terras do Brasil, em 1553, de casos de sujeitos
aparentados com os gentios com mais de oitenta índias como escravas sexuais que até o
governador Tomé de Souza, espantado, descreve sobre um tal João Ramalho que tinha tantas
mulheres índias que conseguia levantar cinco mil índios para batalhas enquanto o governo
Português somente dois mil. (RIBEIRO, 1995, p.84) Era inclusive necessário que fossem feitas
recomendações Católicas, como a do jesuíta Antonil, pedindo controle das emoções dos
cavalheiros Portugueses, principalmente aos senhores de engenho, para evitar excessos como
“não lhes deve de nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que
andam grávidas […], abrir ventres de mulheres grávidas ou jogar crianças ao ar para espetá-
las na ponta da baioneta” (GALEANO, 2016, p.73).
Os registros historiográficos deixam claro que a realidade dos fatos divergem em tudo
do romance Iracema, quando descreve uma construção das relações entre os dois mundos. O
massacre sobre os povos originários causada pelo europeu invasor, muito longe de ser
romântico, pode ser descrito como o mais alto plano jesuítico: “um somatório de violência
mortal, de intolerância, prepotência e ganância […] de europeus com canhões e arcabuzes”
(RIBEIRO, 1995 p.52-51) que dizimaram no primeiro século aproximadamente trezentas
aldeias indígenas na costa brasileira somente no século XVI, compondo parte de um grande
evento catastrófico em toda América Latina de “cento e vinte milhões de crianças no centro da
tormenta” no pior massacre dos últimos séculos (GALEANO, 2016, p.12).
CONCLUSÃO
Então, o que realmente faz de Iracema um clássico? Uma linguagem erudita e poética,
carregada de arcaísmo, uso da terceira pessoa, perífrases, símiles, dípticos e aliterações
(CAMILO, 2007 p.3) sobre os índios? Ter sido escrita por um político escravagista influente?
Um estilo literário pioneiro e tendencioso com intuito de fundir romance, poesia e prosa, numa
linguagem tupinizada e edênica preocupada com a fundação da literatura nacional mesmo que
isso negasse a verdade?
O indianismo restrito ao uso assoberbado de termos atijolados entre um tupi-guarani
inconsistente e um português inacessível, não faz jus, de forma alguma, aos povos originários
e suas culturas. Mostrando o descompromisso com a ética, evidenciando interesses pessoais
em projetar sua figura e de seu estado, historicamente escravocrata, pouco influente na
economia brasileira à época, criando uma lenda excêntrica com tom de bairrismo “fazer
coincidir o mito fundador da província natal com o da nação,” usando uma literatura inventiva,
politizada, misógina e racista forçando “uma legitimação ideológica para o processo violento
de unificação da nação” (CAMILO 2007 p.20 apud LEMAIRE, 1989 p.66) com todas as
características de fake news.

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SER NEGRA NA SOCIEDADE PANDÊMICA

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SOBRE AS ORGANIZADORAS

LAURINDA FERNANDA SALDANHA SIQUEIRA


Graduada em Licenciatura em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão (IFMA), Especialista em Estatística pela Universidade Estadual do
Maranhão (UEMA), Doutora em Química pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Iniciou o estágio pós-doutoral no programa de pós-graduação em Química da
Universidade Federal do Maranhão (PPgQUIM/UFMA). Atualmente é Professora de Química
Analítica/Quimiometria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão,
Campus São Luís (IFMA).. É consultora ad-hoc das agências SISCT, PPSUS, FAPEMA,
CNPQ, FAPES, PROPES/IFPE, PROPI/IFMS, DPEXT/PROPEI/IFF, PRPGI/IFMA e
PRPGI/UFMA. Membro do comitê científico, comitê de revisão e organização da Editora
EXPRESSÃO FEMINISTA. Líder dos grupos de pesquisa do CNPQ: QUIMMERA/IFMA
para estudos de gênero, sexualidade e ciência, e QUIMMETRA/IFMA para estudos da química
analítica aplicada e quimiometria. Faz parte do Grupo de Pesquisa em Química Biológica e
Quimiometria (QBQ/IQ/UFRN). Coordena o Observatório da Mulher na Ciência (IFMA-
FAPEMA), a EScola de Meninas e Mulheres Cientistas (IFMA-FAPEMA) e o coletivo
Mulheres IFMA. Tem experiência na área de Química Analítica Aplicada, Instrumentação
Analítica e Análise Multivariada de Dados, com ênfase em Quimiometria aplicada em estudos
de câncer e Química Médica e pesquisas envolvendo os seguintes temas: algoritmos
quimiométricos, epidemiologia e meio ambiente, tecnologias aplicadas a saúde, estudos de
gênero e educação. Presidente da Comissão Própria de Avaliação - CPA CENTRAL/IFMA.
Avaliadora de cursos de graduação e pós-graduação do BASis/SINAES/INEP/MEC.

MAYNARA COSTA DE OLIVEIRA SILVA


É Editora-chefe da Expressão Feminista. Doutoranda em Ciências Sociais
(PPGCSOC/UFMA). Mestra em Antropologia Social (PPGAS/UFRN). Especialista em
Direitos Humanos e Questões Étnico-sociais (IBF). Especialista em Direito Público (IBF).
Bacharela em Direito pela Faculdade de Natal Estácio de Sá. Advoga na seara do Direito
Público. Professora do curso de Direito das Faculdade Pitágoras São Luís/MA e Faculdade
Estácio São Luís. Atuou como membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate a
Intolerância da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Norte. Foi Vice-
Presidenta do Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do Norte, e auditora da Comissão
Disciplinar Desportiva da Secretária do Estado do Esporte e do Lazer do Rio Grande do Norte.
Atua nos seguintes grupos: Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Sexual, Gênero
e Direitos Humanos (TIRÉSIAS/UFRN), na Base de Pesquisa: Gênero, Corpo e
Sexualidades(DAN/PPGAS/UFRN), no Laboratório de Antropologia da Política
(LEAP/UFMA/UEMA), no Grupo de Pesquisa QUIMERA (CCH/IFMA) e coordena as
atividades do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Violência de Gênero e Sexualidade
(Div@s/Faculdade Estácio São Luís) .
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