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ANDRÉ BUENO · DULCELI T.

ESTACHESKI · JAQUELINE ZARBATO

ENSINO DE HISTÓRIA:
ESTUDOS DE GÊNERO
Reitor:
Prof. Dr. Marcelo Augusto Santos Turine - UFMS
Vice-Reitora:
Profa. Dra. Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo
Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte:
Prof. Dr. Marcelo Fernandes.
Direção da Faculdade de Ciências Humanas:
2 Profa. Dra. Vivina Dias Sol Queiroz
Coordenação do Curso de História:
Prof. Dr. Cleverson Rodrigues

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

LAPHIS – Laboratório de Aprendizagem Histórica

Coordenação
Everton Crema e Dulceli T. Estacheski

Bueno, André; Estacheski, Dulceli T.; Zarbato, Jaqueline (org.)

Ensino de História e Estudos de Gênero. 1ª Ed. Rio de Janeiro/Nova


Andradina: Sobre Ontens/UFMS, 2020.
ISBN: 978-65-00-02129-5 510pp.

Ensino de História; Estudos de Gênero; Sexualidade; Aprendizagem


Histórica.
Sumário
ENSINO DE HISTÓRIA: ESTUDOS DE GÊNERO por Dulceli de L. Tonet Estacheski e Jaqueline Ap.
M. Zarbato ..................................................................................................................................... 8
A REVOLUÇÃO CUBANA: REPRESENTAÇÕES GENERIFICADAS EM UM LIVRO DIDÁTICO DE
HISTÓRIA por Andréa Mazurok Schactae.................................................................................... 12
3
CULTURA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO NO CONTEXTO URBANO EM CAMPO GRANDE/MS/BRASIL
E EM MAR DEL PLATA/ARGENTINA: PROPOSIÇÕES PARA ANÁLISE DAS COLEÇÕES FEMININAS
EM MUSEUS por Jaqueline Ap. M. Zarbato................................................................................. 19
INTERSECÇÕES HISTÓRICAS E GÊNERO EM MULHER-MARAVILHA (PATTY JENKINS, 2017) por
Maristela Carneiro e Vilson André Moreira Gonçalves ............................................................... 24
MEMÓRIAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA por Susane Rodrigues
de Oliveira ................................................................................................................................... 31
LIÇÃO DE RESISTÊNCIA: A ORGANIZAÇÃO FEMININA CONTRA A DITADURA CIVIL MILITAR NO
BRASIL por Alethéia Paula Lapas Prado ...................................................................................... 42
SOBRE VESTIR O OUTRO: APONTAMENTOS TEÓRICOS SOBRE OS PERSONAGENS MASCULINOS
E FEMININOS NO COSPLAY por Alexia Henning e Vanda Fortuna Serafim ................................. 49
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E O ISOLAMENTO SOCIAL DAS MULHERES: REFLETINDO
SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO BRASIL por Aluizia do Nascimento Freire e
Claudia Regina Nichnig ................................................................................................................ 58
O PROTAGONISMO DA MULHER NEGRA NA HISTÓRIA BRASILEIRA: DISCUTINDO GÊNERO E
RAÇA NO ESPAÇO ESCOLAR por Ana Paula Lima Cunha ............................................................. 63
FEMINISMO E SUAS VERTENTES: A IMPORTÂNCIA DE ENTENDER AS PECULIARIDADES DO
FEMINISMO NEGRO por Ana Beatriz Siqueira Bittencourt e Juliana Otero Nogueira ................ 71
A ORIENTAÇÃO SEXUAL NA ESCOLA: UM ESTUDO DE CASO por Ana Paula dos Santos Reinaldo
Verde e Eleildada Silva Santos..................................................................................................... 78
A COR LILÁS E A BONECA ABAYOMI: SÍMBOLOS DA LUTA POLÍTICA DAS MULHERES E DAS
MULHERES NEGRAS NO ENSINO DA HISTÓRIA por Andréa Giordanna Araujo da Silva ............. 86
O PROTAGONISMO DAS MULHERES NO ENSINO DE HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DA PRESENÇA
FEMININA NOS LIVROS DIDÁTICOS DA ESCOLA SESI por Andresa Fernanda da Silva e Pablo
Afonso Silva ................................................................................................................................. 94
MULHERES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: INSERÇÃO E PERSPECTIVA NOS ESPAÇOS DE
SABER-PODER por Antonia Stephanie Silva Moreira e Jakson dos Santos Ribeiro ................... 101
A HISTÓRIA DAS MULHERES E O ENSINO ATRAVÉS DE UMA ABORDAGEM REGIONAL E LOCAL
por Ary Albuquerque Cavalcanti Junior .................................................................................... 106
PRECISAMOS FALAR SOBRE AIMEE: GÊNERO, SEXUALIDADE E SORORIDADE NO CURRICULO
ESCOLAR por Azemar dos Santos Soares Júnior e Guilherme Lima de Arruda ......................... 112
FORMAÇÃO DA MULHER NO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR A PARTIR DO CURSO DE
PEDAGOGIA NO BRASIL E NA UNESPAR, CAMPUS PARANAVAÍ (1965-2019) por Beatriz
Fernanda Almeida da Silva e Márcia Marlene Stentzler ........................................................... 118
QUANTO VALE A VIDA DE UMA MULHER NA CHINA? UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE
OPRESSÃO PRESENTES NO LIVRO “AS BOAS MULHERES DA CHINA” por Bettina Pinheiro
4 Martins ...................................................................................................................................... 124
ESCRITA DE SI, GÊNERO E LOUCURA NA OBRA ‘HOSPÍCIO É DEUS’ DE MAURA LOPES CANÇADO
por Bruna Alves Lopes e Geane Caroline Wiltemburg .............................................................. 132
PROBLEMAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO ESPAÇO ESCOLAR: A TRAVESTI NEGRA NA SÉRIE
TELEVISIVA SEGUNDA CHAMADA por Bruno Silva de Oliveira e Manuela Aguiar Damião de
Araújo ........................................................................................................................................ 138
HISTÓRIA DAS MULHERES E ENSINO DE HISTÓRIA EM CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA BASE
NACIONAL COMUM CURRICULAR por Carolina Giovannetti .................................................... 146
O MODELO DE PRINCESA DA DISNEY E SEU DISCURSO AO LONGO DO TEMPO por Clarice Luz e
Flávia Schena Rotta ................................................................................................................... 152
O USO DE BIOGRAFIAS FEMININAS COMO MEIO PARA A DISCUSSÃO DE GÊNERO EM SALA DE
AULA por Daiane da Silva Vicente ............................................................................................. 158
INTERFERÊNCIAS DO BACKLASH EM SALA DE AULA: O ENSINO DE HISTÓRIA E A
DESMISTIFICAÇÃO DE (PRÉ) CONCEITOS DO MOVIMENTO FEMINISTA por Elaine Cristina Florz
................................................................................................................................................... 163
NOS EMBALOS DO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO: SEXISMO E MACHISMO NO GÊNERO MUSICAL
PREFERIDO DOS (AS) BRASILEIROS (AS) por Emili Sabrina Ribeiro Silva ................................... 172
O ENSINO DA HISTÓRIA PODE OU DEVE COMBATER A CISNORMATIVIDADE E A
HETERONORMATIVIDADE? por Fabrício Romani Gomes.......................................................... 180
BREVES REFLEXÕES ACERCA DA CULTURA ESCOLAR, GÊNERO E HISTÓRIA DAS MULHERES por
Fernanda Loch ........................................................................................................................... 186
INVISIBILIDADE FEMININA: O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA DE TIA EVA NA CONTRUÇÃO DA
IDENTIDADE CAMPO GRANDENSE por Francisca Kessione M. Bezerra e Jaqueline Ap. M.
Zarbato ...................................................................................................................................... 191
EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: UM DEBATE A PARTIR DOS ESTUDOS DE GÊNERO por
Georgiane Garabely Heil Vázquez ............................................................................................. 198
UM CORPO AGENTE MALÍGNO EM ERÁRIO MINERAL DE LUÍS GOMES FERREIRA: CONCEPÇÕES
MÉDICAS ACERCA DA MENSTRUAÇÃO FEMININA NO SÉCULO XVIII por Gessica de Brito Bueno
e Christian Fausto Moraes dos Santos ...................................................................................... 205
UMA PONTE ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA E OS MANUAIS DIDÁTICOS: REPRESENTAÇÃO DA
MULHER NA GUERRA DO PARAGUAI por Ingrid Taylana Machado .......................................... 212
OS ENCONTROS E OS DESENCONTROS DAS MULHERES por Isabela Nogueira da Silva Grossi 220
REFLEXÕES A CERCA DO ESTUDO DE GÊNERO EM SALA DE AULA POR BRECHAS DA NOVA BNCC
por Itamara Cris Marchi Cordeiro ............................................................................................. 226
UMA HISTORIOGRAFIA DO ESQUECIMENTO: O MEMORICÍDIO E AS PRÁTICAS DE ESCRITURA
HISTÓRICA DE MULHERES NO SÉCULO XIX por Jeane Carla Oliveira de Melo .......................... 231
JERÔNIMO DE ESTRIDÃO E AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NAS MISSIVAS 22 E 24 ÀS
MULHERES NOBRES DE ROMA NA ANTIGUIDADE TARDIA por Fabiano de Souza Coelho ....... 238 5

O ENSINO DE HISTÓRIA E IMPRENSA: MASCULINIDADE NO BRASIL REPUBLICANO ATRAVÉS DAS


PROPAGANDAS DE MEDICAMENTOS por João Marcelo Dutra Araujo e Jakson dos Santos
Ribeiro ....................................................................................................................................... 247
GRUPOS SOCIAIS FEMININOS NO CONTEXTO FEUDAL: O TRATADO DO AMOR CORTÊS (C. 1186)
NO ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA por Luciano José Vianna e Juliana Caroline de
Souza Araújo.............................................................................................................................. 254
A IMPORTÂNCIA DO TEMA GÊNERO NAS AULAS DE HISTÓRIA E HUMANIDADES: UMA ANÁLISE
A PARTIR DAS REDAÇÕES NOTA MIL DO ENEM/2015 por Juliana Dias Lima e Victor Romero de
Lima ........................................................................................................................................... 262
A PUBLICIDADE COMO FONTE PARA O ENSINO DA HISTÓRIA: UM ESTUDO DE CASO NA SALA
DE AULA COM PUBLICIDADE DE CERVEJA PARA DISCUTIR REPRESENTAÇÕES SOBRE A
MASCULINIDADE EM MEDELLÍN - COLÔMBIA por Kelly Johanna Cadavid Sánchez e Maria Isabel
Giraldo Vásquez ........................................................................................................................ 270
ARTESÃS SUL-MATO-GROSSENSES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: DO DESCONHECIDO PARA A
SALA DE AULA por Lislley Raquel Damazio e Jaqueline Ap. M. Zarbato ................................... 279
HISTÓRIA DO CASAMENTO NA PRINCESA DO SERTÃO: ANALISANDO AS NOTAS DE CASAMENTO
NOS JORNAIS CAXIENSES por Marciele Sousa da Silva e Jakson dos Santos Ribeiro ................ 285
O JEITO CAPRICHO DE SER: MUDANÇAS DO PARADIGMA FEMININO ATRAVÉS DA REVISTA
JUVENIL por Marcos de Araújo Oliveira .................................................................................... 292
AS MULHERES MEDIEVAIS ENTRE “A ROCA E A ESPADA”: PROTAGONISMO, SUBMISSÃO E
PODER FEMININO NOS DISCURSOS HISTÓRICOS E LITERÁRIOS por Marcos de Araújo Oliveira
................................................................................................................................................... 302
AS REVISTAS DE MODA COMO FONTE HISTÓRICA: ESTUDANDO A MODA MASCULINA NA
PRIMEIRA REPÚBLICA NA PRINCESA DO SERTÃO por Marta Gleiciane R. Pinheiro e Jakson dos
Santos Ribeiro ........................................................................................................................... 310
“O TRABALHO DAS MULHERES”: LAR, FAMÍLIA E CASAMENTO NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX por Milena Calikoski .............................................................................................. 317
O COTIDIANO DE VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NOS CAMPOS DE TRABALHO E
CONCENTRAÇÃO NAZISTAS por Milena Silvério Ferreira.......................................................... 322
DANDO VOZ ÀS ESQUECIDAS: POR QUE AS MULHERES QUE FIZERAM HISTÓRIA NAS CIÊNCIAS
NÃO APARECEM EM SALA DE AULA? por Nathália Moro e Anelisa Mota Gregoleti ................ 328
ECOMUSEU E ENSINO DE HISTÓRIA: DIÁLOGOS SOBRE A IMPORTÂNCIA DE GRUPOS
CULTURAIS E DE GÊNERO por Nelson Barros da Silva Junior e Jaqueline Ap. M. Zarbato........ 334
CORPO, FEMINISMO, QUEER E OUTRAS TEORIAS por Nila Michele Bastos Santos e Luana
Martins Pereira.......................................................................................................................... 340
VIOLÊNCIAS DE GÊNEROS por Nila Michele Bastos Santos e Manuel Oliveira da Costa Neto . 353
6
PROJETO LEGIP: OS ESTUDOS DE GÊNERO NO IFMA CAMPUS PEDREIRAS por Nila Michele
Bastos Santos ............................................................................................................................ 361
AINDA SOMOS “ATREVIDA”?: UM ESTUDO COMPARATIVO DOS PADRÕES DE BELEZA
PRESENTES NA REVISTA DO SÉCULO XX COM A ATUALIDADE por Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal e
Nila Michele Bastos Santos ....................................................................................................... 369
LEVANTAMENTO QUANTITATIVO DE MULHERES PARTICIPANDO DO PLEITO ELEITORAL E
MULHERES ELEITAS: SOMBRIO/SC (1988-2016) por Paola Vieira da Silveira ........................... 377
SER PROFESSORA, SER MULHER: HISTORICIZANDO A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO E OS
PADRÕES DE GÊNERO NO ÂMBITO DA PROFISSÃO DOCENTE por Patrícia Rocha Carvalho .... 383
GÊNERO E SEXUALIDADE: UMA TEMÁTICA RELEVANTE NO ENSINO DE HISTÓRIA por Rafaela L.
Oliveira e Darcylene Pereira Domingues................................................................................... 391
A CIDADE DAS DAMAS (1405) E AS REFLEXÕES DE CHRISTINE DE PIZAN (1363-1430) SOBRE A
EDUCAÇÃO FEMININA NO FINAL DO MEDIEVO por Raiely Godoi Melo e Luciano José Vianna
................................................................................................................................................... 396
O AVESSO DO ORDINÁRIO: TRATANDO SOBRE GÊNERO EM SALA DE AULA A PARTIR DO
ESTUDO SOBRE A CONDIÇÃO DA MULHER NO BRASIL COLONIAL por Raimundo Nonato Santos
de Sousa .................................................................................................................................... 404
O PROJETO “GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA” E O ENSINO DE HISTÓRIA: OS CARTAZES
COMO FONTES PARA AS SUBJETIVIDADES por Robson Ferreira Fernandes............................. 411
LUGARES DE DOMINAÇÃO LUGARES DE OPRESSÃO: QUESTÕES SOBRE A PRESENÇA DAS
MULHERES NAS CIÊNCIAS por Rosilene Dias Montenegro ....................................................... 423
AS POSSIBILIDADES DE TRABALHAR A MUSEOLOGIA DE GÊNERO NO MUSEU JOSÉ ANTÔNIO
PEREIRA EM CAMPO GRANDE – MATO GROSSO DO SUL por Silvia Ayabe .............................. 431
ERA UMA VEZ...: CONTOS DE FADAS E ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO por Simone Aparecida Dupla
................................................................................................................................................... 442
SANTIDADE E VIRGINDADE NAS CARTAS DE SANTO AGOSTINHO DESTINADA ÀS MULHERES:
UMA QUESTÃO DE GÊNERO PARA O SÉCULO XXI por Thaís Correa da Silva ............................ 449
A UTILIZAÇÃO DA HQ BATTLEFIELDS - AS BRUXAS DA NOITE NO ENSINO DE HISTÓRIA:
REPRESENTATIVIDADE FEMININA NA II GUERRA MUNDIAL por Thaís da Silva Tenorio e Katty
Cristina Lima Sá ......................................................................................................................... 456
HISTÓRIA DAS MULHERES NEGRAS E SEU SABER/FAZER: REFLEXÕES E POSSIBILIDADE
DIDÁTICAS NA HISTÓRIA ENSINADA por Thaylla Giovana Pereira da Silva e Jaqueline Ap. M.
Zarbato ...................................................................................................................................... 463
REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR NAS
AULAS DE HISTÓRIA E SOCIOLOGIA NO CONTEXTO DE UMA ESCOLA PÚBLICA CEARENSE por
Vanderlene de Farias Lima e João Paulo de Oliveira Farias ...................................................... 469
PSICOPATOLOGIAS DO SEXO: AUGUST FOREL E AS PERVERSÕES DO DESEJO SEXUAL por
Vanessa Cristina Chucailo.......................................................................................................... 475
PROJETO PATHFINDER: O CASO DE ESTERILIZAÇÃO DAS OPERÁRIAS NO DISTRITO INDUSTRIAL 7

DE MANAUS NA DÉCADA DE 1980 por Vanessa Cristina da Silva Sampaio .............................. 481
A ESCOLA CONSERVADORA EM BORDIEU: DESAFIOS AO ENFRENTAMENTO DOS PARADIGMAS
HETERONORMATIVOS POR MEIO DA EDUCAÇÃO EM GÊNERO por Victor Hugo de Almeida
França e Pablo Afonso Silva ...................................................................................................... 486
DA MULHER PARA A MULHER: A CONDUTA DA RAINHA DO LAR NA DÉCADA DE 50 ATRAVÉS DA
REVISTA O CRUZEIRO por Vitória Duarte Wingert e Jander Fernandes Martins ...................... 493
POR UMA HISTÓRIA DA BELEZA E DO CORPO: O USO DO INSTAGRAM NAS AULAS DE HISTÓRIA
por Vitória Diniz de Souza ......................................................................................................... 501
ENSINO DE HISTÓRIA: ESTUDOS DE GÊNERO
Dulceli de L. Tonet Estacheski e Jaqueline Ap. M. Zarbato

Abordar as relações de gênero (história das mulheres, feminilidades,


masculinidades, homossexualidades, experiências LGBT+, queer, entre
outras) e as reflexões que decorrem de pesquisas, experiências de
aprendizagem, diálogos educativos no âmbito do ensino de história foi a
8 proposta da mesa temática que dá origem ao livro.

A proposição em historicizar as relações de gênero e as diferentes


possibilidades de inserção nas aulas de História em vários níveis de ensino,
contribui para o aprofundamento das análises sobre as desigualdades
sociais e culturais, bem como dos constructos socio-históricos estruturantes
de nossa sociedade e das relações de poder que a compõem. Baseando as
abordagens historiográficas no campo da História Cultural que envolve a
epistemologia do gênero, imbricada no processo de subjetivação nos
espaços escolares (formais e não formais). Com isso, destaca-se gênero
como categoria de análise, com reflexões teórico-metodológicas de
imagens, de narrativas, de memórias, de patrimônios, de experiências, de
inserções em espaços educativos. As articulações que ativam as ações
histórico-educativas impõem a aprendizagem histórica perceber a
confluência de atos de mulheres em diferentes tempos históricos. De
acordo com Rüsen (2010) aprender história é uma experiência na qual o
pensamento histórico é desenvolvido não por meio de um acúmulo de
conhecimentos, mas pela mobilização desses para pensar o passado em
relação ao presente.

E nesse sentido, problematizar as relações de gênero e a história das


mulheres passa a ser um dos desafios ao ensino de história, principalmente
na contemporaneidade com os inúmeros debates sobre a pertinência desses
temas. Para embasar as reflexões, os documentos legisladores da Educação
compõem-se como norteadores de análises, como: os Parâmetros
Curriculares Nacionais, Diretrizes Curriculares Nacionais, Base Nacional
Comum Curricular. Esses documentos possibilitam uma análise
aprofundada dos espaços conquistados pelos grupos subalternos, como as
mulheres, e ampliam as discussões sobre o saber/fazer ao longo da
História. As relações de gênero atravessam as estruturas escolares, se
fazem presentes nos intervalos das aulas, nas relações de poder e nas
dinâmicas sociais e culturais.

As implicações das discussões sobre a questão de gênero, a investigação


sobre os grupos étnicos, as classes sociais, as representações de gênero
propiciam o respeito e a dignidade dos sujeitos, como elementos de
pertencimento aos diferentes grupos culturais e como aponta Louro (2008,
p. 70) “a ampla diversidade de arranjos familiares e sociais, a pluralidade
de atividades exercidas pelos sujeitos, o cruzamento das fronteiras, as
trocas, as solidariedades e os conflitos são comumente ignorados ou
negados”

Desse modo, historicizar as relações de gênero no ensino de história propõe


o aprofundamento dos ‘olhares’ para a multiplicidade de situações
educacionais que necessitam ser problematizadas, invitando assim na
superação das desigualdades de gênero, de poder, se saber.

Nessa coletânea de textos há reflexões das mais diversas. Há aquelas que


problematizam os conteúdos dos livros didáticos de História da Educação
Básica, como o texto ‘Memórias de violência sexual nos livros didáticos de
História’, da historiadora e professora do Departamento de História da
Universidade de Brasília, Susane Rodrigues de Oliveira ou o texto ‘A
9
Revolução Cubana: representações generificadas em um livro didático de
História’ de Andrea Mazurock Schactae, professora de História do Instituto
Federal do Paraná. Nessa linha, outros textos de pesquisadores/as,
estudantes de graduação e pós-graduação provocam o pensar sobre a
necessidade de produção de materiais didáticos inclusivos e condizentes
com a diversidade humana.

Experiências de práticas escolares desenvolvidas por docentes da Educação


Básica ou por estudantes de graduação em Licenciatura em História em
seus estágios supervisionados merecem destaque por demonstrarem as
possibilidades múltiplas de abordagem das temáticas referentes às relações
de gênero. Pertinentes, nesse sentido, são os textos de Nila Michele Bastos
Santos, historiadora e psicopedagoga que coordena o LEGIP – Laboratório
de Estudos de Gênero do IFMA, campus Pedreiras. A autora em seu texto
individual apresenta o projeto LEGIP e em parceria com estudantes do
instituto apresenta resultados de pesquisas diversas desenvolvidas a partir
do laboratório. E também o texto ‘A publicidade como fonte para o ensino
de História: um estudo de caso na sala de aula com publicidade de cerveja
para discutir representações sobre a masculinidade em Medelín-Colômbia’
da tecnóloga em Design Industrial Kelly Johanna Cadavid Sánchez e da
Design Industrial Maria Isabel Giraldo Vásquez, do Instituto Tecnológico
Metropolitano de Medellín – Colômbia que apresentam “um modelo de
exercício acadêmico universitário realizado nas aulas de história do design
para tratar questões de construções de identidade e relações de gênero”.

Compõem também essa coletânea textos que apresentam resultados de


pesquisas historiográficas como o de Raiely Godoi Melo, graduanda do
Curso de História da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e
Luciano José Vianna, Professor Adjunto de História Medieval do mesmo
campus: ‘A cidade das damas (1405) e as reflexões de Christine de Pizan
(1363-1430) sobre a educação feminina no final do Medievo’ e o texto
‘Feminismo e suas vertentes: a importância de entender as peculiaridades
do feminismo negro’ das mestrandas do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense Ana Beatriz Siqueira
Bittencourt e Juliana Otero Nogueira. O objetivo é disponibilizar a
professoras e professores de História, que acessem essa publicação,
subsídios para o ensino das temáticas.

Temas contemporâneos como a desigualdade de gênero na política, no


mercado de trabalho e nas ciências são apresentados em textos como o de
Paola Vieira da Silveira, professora da Rede Estadual de Ensino de Santa
Catarina e pesquisadora associada do Laboratório de Arqueologia da
UNESC, ‘Levantamento quantitativo de mulheres participando do pleito
eleitoral e mulheres eleitas: Sombrio/SC (1988 a 2016)’, que embora tenha
um recorte espacial específico permite pensar uma realidade presente em
todo o território nacional. Ou o da pesquisadora e professora da
Universidade Federal de Campina Grande, Rosilene Dias Montenegro,
‘Lugares de dominação, lugares de opressão: questões sobre a presença
das mulheres nas ciências’ que analisa dados de instituições de ensino e
pesquisa e nos convida a “combater as visões que negam projetos coletivos
10
de mudança social norteada pela utopoia de um mundo melhor, menos
desigual, e menos injusto, um mundo com mais democracia, uma
democracia mais forte, que permita o empoderamento das mulheres e
consiga construir as condições para o respeito de gênero reivindicado pelas
mulheres para todas as esferas de suas vidas e lutas.” E, pertinente ao
momento atual, o texto de Aluizia Freire do Nascimento, professora de
História da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Norte e de Cláudia
Regina Nichnig, professora visitante do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Grande Dourados analisa a questão da
violência doméstica e sua intensificação devido ao isolamento social de
mulheres causado pela pandemia do Coronavírus.

O número de textos recebidos para a mesa ‘Ensino de História: estudos de


gênero’ superou nossas expectativas. A leitura de todos eles foi prazerosa e
enriquecedora. Nessa breve apresentação é inviável discorrer sobre todos
eles e por isso optamos por um breve panorama temático que minimamente
demonstra a diversidade de pessoas, instituições e conteúdos que compõem
essa coletânea. Desejamos uma excelente leitura a todas e todos. Socializar
conhecimento é o caminho para a quebra de estereótipos, para o
(re)conhecimento do/a outro/a e para o desenvolvimento da justiça social.

Neste momento estamos em casa... estamos nos cuidando e cuidando das


outras pessoas. Esse difícil momento, que entendemos ser mais difícil para
algumas pessoas do que para outras, passará! Que saibamos aproveitar o
nosso privilégio de acesso à leitura e ao estudo para crescermos como seres
humanos, pois como bem afirmou Joan Scott, “(1994, p. 19) “o historiador
pode interpretar o mundo ao mesmo tempo que tenta transformá-lo”.

Referências biográficas

Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski é professora do Curso de História da


Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina.

Jaqueline Ap. M. Zarbato é professora do Curso de História da Universidade


Federal do Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande.

Referências bibliográficas

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre a sexualidade e


teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
RÜSEN, Jörn.. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência
histórica. 1ª reimpressão. Brasília: Editora UNB, 2010.

SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu. (3)
1994. 11- 84.

11
A REVOLUÇÃO CUBANA: REPRESENTAÇÕES GENERIFICADAS
EM UM LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA
Andréa Mazurok Schactae

Historicamente o Estado e as suas organizações de poder, são espaços


ocupados por homens, nos quais os seus símbolos e suas práticas são
identificadores de masculinidades. Os heróis tendem a serem homens que
12 pertenceram a instituições armadas e participaram de conflitos armados, e
são constituídos em símbolos identificadores do Estado. Assim como a farda
e as armas, são construções simbólicas do Estado e de uma masculinidade
identificada pela violência, pela força, pela coragem e pela honra. Essas
construções constituem identidades de gênero e orientam o
estabelecimento de um “saber a respeito das diferenças sexuais” [SCOTT,
1994, p. 12] construídas historicamente, as quais são expressas em
práticas, símbolos e leis que organizam e identificam o Estado e suas
instituições.

Voltando o olhar para a construção dos símbolos nacionais e instituições


armadas, observa-se que os heróis, tendem a serem símbolos vinculados a
masculinidade. Constituem-se em representações de um ideal de
hombridade [SCHACTAE, 2013; MOREIRA, 2015; BONINO, 2002; STONER,
2003; OLAVARRIA, 2001; CONNEL, 2005]. Para Abel Sierra Madero (2005)
a historiografia cubana, tende a explicar os processos históricos focando na
guerra, além do que esse espaço e suas práticas são percebidos como
pertencentes ao masculino. Portanto, para o pesquisador, os estudos da
História de Cuba, sobre a perspectiva da guerra, reforçam um modelo de
cubania heterossexual, patriarcal, sexista e homofóbico [SIERRA MADERO,
2005, p. 68].

Em Cuba e em outros lugares do Ocidente, conforme destaca Ariel Sierra


Madero [2005], entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do
século XIX, está se construindo uma nação-sexuada imaginada, os Estados
Nacionais silenciam as mulheres e colocam os homens heterossexuais no
domínio do lugar público [CORBIN, 2013; SIERRA MADERO, 2005]. Os
mambises que lutaram pela independência de Cuba, do domínio espanhol,
são representado na historiografia, como heróis, homens, heterossexuais
[SIERRA MADERO, 2005, p. 85].

Essa herança cultural que constitui as culturas no Ocidente, também é


percebida na Revolução Cubana, esse acontecimento que marcou o século
XX e exportou um ideal de masculinidade para a América Latina. Para
Matías Alderete (2013), a construção do homem novo, pela Revolução
Cubana, é constituída pela “masculinidade revolucionária”, [Alderete, 2013,
p. 3) e marcada pela homofobia. Prevalece em Cuba o modelo do macho,
porém, “un macho no es homosexual ni heterosexual per se, sino la
continua muestra de valores masculinos: ser violento y agresivo, hablar y
actuar en forma vulgar y penetrar en la relación sexual” [Alderete, 2013, p.
6]. Para a Revolução o contra-revolucionário é o maricon, isto é, aquele que
é penetrado e apresenta comportamento percebido como feminino
[Alderete, 2013, p. 6-7], o homossexual macho tende a aceito como macho
revolucionário, nas décadas de 1960 e 1970, em Cuba.
Orientando-se por um modelo de cubania constituído por um ideal de
macho revolucionário, a Revolução Cubana é um movimento paradoxal, pois
ao mesmo tempo que se propõem estabelecer uma ruptura na ordem
estabelecida político-econômico-social, ela também resignificou um ideal de
masculinidade caracterizado pela virilidade, na segunda metade do século
XX [AUDOIN-ROUZEAU, 2013].

O ideal de masculinidade, construído no processo da Revolução Cubana e


13
presente na historiografia publicada pelo Conselho de Estado em Cuba,
tende a reproduzir o modelo viril. Entre os primeiros escritos sobre a
Revolução Cubana, destacam-se os textos do médico, Ernesto Guevara, que
no processo revolucionário se tornou um guerrilheiro e assumiu o nome de
Ernesto Che Guevara. Os seus textos: “Uma história da Revolução Cubana”,
publicado na Revista Cruzeiro, no Brasil, em 1959 [GUEVARA, 1959]; e “O
socialismo e o homem em Cuba”, publicado em 1965, no Uruguai
[GUEVARA, 1965], são marcos significativos na definição da Revolução
Cubana como masculina e na projeção internacional desse acontecimento
que marca a história política do século XX. Nos dois textos o autor destaca a
luta armada e os líderes homens como centrais na construção o projeto
político revolucionário em Cuba. Portanto, as armas, os homens e a guerra
representam o núcleo central para compreender o processo revolucionário e
da vitória dos rebeldes.

O texto publicado em 1959, por Ernesto Che Guevara, pode ser lido como
fundante do mito da Revolução dos Guerrilheiros, sendo a guerrilha e os
guerrilheiros os sujeitos da vitória. O movimento urbano é esquecido, nesse
texto, bem como a participação das mulheres na guerrilha. No outro texto,
ele segue com essa construção discursiva, pois ao colocar o Estado, o
Partido e os homens de vanguarda – os guerrilheiros –, como encarregados
de educar o povo para o socialismo [GUEVARA, 1965], sendo assim, ele
define quem foram os sujeitos que construíram e legitimam a Revolução
Cubana.

Essas publicações projetam a ideia de uma Revolução Cubana, cujos líderes


homens se constituem em guias e salvadores do povo [GIRARDET, 1987] e
o líder que ganhou maior destaque de Ernesto Guevara é Fidel Castro. Ao
afirmar que no dia 26 de julho de 1953, “um grupo de homens dirigidos
por Fidel Castro atacou (...) o Quartel Moncada” [GUEVARA, 1965], ele
oculta a presença de mulheres nesse grupo, legitimando a Revolução como
um espaço de homens que pegaram em armas para defender um projeto
político.

Ao voltar o olhara para as pesquisas sobre as representações da Revolução


Cubana, nos livros didáticos, no Brasil, destaca-se o texto de Rafael Adão e
Julio Cesar dos Santos [2015]. No texto os autores analisam as narrativas
sobre a Revolução Cubana, focando nas relações políticas em Cuba e no
contexto internacional, indicando as aproximações entre os textos dos livros
didáticos e algumas obras historiográficas sobre a Revolução Cubana. O
foco da análise são as questões políticas, porém não há um diálogo com a
categoria gênero.
Sendo assim, ainda está em aberto à construção de reflexão sobre as
representações da Revolução Cubana nos livros didáticos, utilizando como
ferramenta de análise a categoria gênero. Considerando que os manuais
didáticos orientam a construção de uma consciência história [RÜSEN,
2010], é fundamental uma reflexão sobre os discursos generificados
presentes nessas ferramentas do ensino de História. Portanto, o objetivo é
analisar as representações da Revolução Cubana nos livros didáticos
utilizados no Campus do IFPR partir da categoria gênero.
14

Voltando o olhar para o livro didático como construtor de sentido, cabe uma
análise dos sentidos que estão sendo apresentados nos livros didáticos,
sobre a Revolução Cubana. Conforme destacam Itamar Oliveira e Margarida
Oliveira [2014],

“coerente com o valor atribuído ao ensino de História (enraizado na matriz


disciplinar – objeto da sua teoria da História), o livro didático é visto como
instrumento fundamental para a vida escolar, já que atua, diretamente, na
construção do sentido (orientação no tempo)” [p. 227].

Portanto, o livro didático é um dos instrumentos de construção da


consciência histórica, pois é parte do processo da aprendizagem histórica
[RÜSEN, 2010] e para este texto foi selecionado o livro didático, utilizado
pelos estudantes do Ensino Médio, do Campus do Instituto Federal do
Paraná (IFPR), de Telêmaco Borba. E o texto sobre a Revolução Cubana é
analisado a partir das concepções de análise de conteúdo de L. Bardin
[2011], da análise do discurso, orientando-se pela categoria gênero
[SCOTT, 1995], e dialogando com o conceito de representações [CHARTIER,
1990]. Vale destacar que na análise de imagens será realizado um diálogo
com autores que utilizam imagens como fonte histórica.

Para R. Chartier representações são formas de percepção do social que


produzem discursos e práticas que buscam legitimar ou justificar para os
próprios indivíduos as suas escolhas e condutas. Elas são determinadas pelo
grupo que as forjou, o que resulta em diferentes representações, que estão
relacionadas a uma multiplicidade de práticas que resultam na construção
de mundos sociais e identidades [1990, p. 17-18]. Segundo ele, o estudo
das representações

“permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em


primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as
configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as
práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma
maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto
e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças
às quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou
da comunidade” [CHARTIER, 1990, p. 23].

Considerando que os textos presentes nos livros didáticos, refletem pontos


de vistas dos autores, os quais são influenciados por um contexto e por
discursos historiográficos, os conteúdos dos livros didáticos são
generificados e reveladores de subjetividades.

Portanto é apropriar-se de Joan Scott [1995] para analisar os discursos


presentes nos livros didáticos, pois estes também são reveladores das
construções das diferenças sexuais. Os significados das diferenças
historicamente construídas estão nos símbolos; nos discursos; nas práticas
e nas representações; nas identidades; nos espaços sociais. Ao orientar a
15
construção os espaços sociais, portanto gênero também dá significado as
relações de poder [SCOTT, 1995, p.88]. Portanto, a história como saber
também é constituído pelo gênero, orientando a construção de
representações sobre as realidades e práticas sociais.

Um saber que é apropriado pelos jovens na escola e em outros espaços


sociais. O livro didático portanto expressa um instrumento de saber e de
construção de consciência histórica, que orienta a construção de saberes
generificados. Para Jorn Rusen [2001] as apropriações dos estudantes sobre
o passado são expressões da consciência histórica, pois para J. Rusen “a
consciência histórica é a realidade a partir da qual se pode entender o que a
história é, como ciência, e por que ela é necessária” [2001, p. 56].

Ao voltar o olhar para o livro didático História 3, dos autores Ronaldo


Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira, Georgina dos Santos [2013],
com foco na Revolução Cubana, se observa que o tema está inserido no
capítulo nove : “construindo rivalidades: o mundo do pós-guerra II”
(VAINFAS et al., 2013, p. 140). Ao observar os demais títulos dos capítulos
observa-se que esse volume da coleção tem como foco a história política
dos Estados e a parte quatro do capítulo nove tem como título: “A
Revolução Cubana” [VAINFAS et al., 2013, p. 147-149].

O primeiro parágrafo é uma referência a influência dos Estados Unidos na


independência de Cuba e o parágrafo o foco é a ditadura de Fulgêncio
Batista, na década de 1950, e o movimento dos estudantes da Universidade
de Havana contra a ditadura, concluindo o parágrafo com o nome de Fidel
Castro. No parágrafo seguinte o foco é o Movimento 26 de julho e o início
do processo de construção da luta armada [VAINFAS et al., 2013, p. 147].
Observando a primeira página do texto o foco da narrativa é a luta armada
e nessa luta figuram o nome de dois homens: Fidel Castro e Ernesto Che
Guevara. O texto silencia a presença de mulheres no movimento estudantil,
na organização do Movimento 26 de Julho (M-26) e na Guerrilha, e
reproduz o discurso que coloca dois homens como líderes do movimento de
resistência e construtores da Revolução, pois somente os nomes de Ernesto
Guerra e Fidel Castro aparecem no texto. Os heróis e símbolos da
Revolução Cubana, apresentados nesse livro didático são homens barbudos
com armas, inclusive a fotografia que aparece na primeira página [VAINFAS
et al., 2013, p. 147], legitima essa representação da Revolução Cubana
como um lugar de homens viris. Para o manual didático,

“Em 26 de julho de 1953, Fidel, com 26 anos de idade, liderando um grupo


de 150 homens, atacou o quartel Militar de Moncada. O objetivo era
derrubar Batista. [...] Em 1955, Fidel foi para o México organizar outra
revolta. Ele liderava uma organização política, o Movimento Revolucionário
26 de Julho (MR-26). Um médio argentino de 27, Ernesto ‘Che’ Guevara,
integrou-se ao grupo” [VAINFAS et al., 2013, p. 147].

Portanto, o foco do texto é a participação de dois homens, Fidel e Che


Guevara. Ao construir essa narrativa o texto reproduz o esquecimento da
participação das mulheres na Revolução Cubana e se refere a
acontecimentos que marcaram o processo de luta armada em Cuba, como
espaços de homens. O ataque ao quartel de Moncada, em 26 de julho de
16
1953, em Santiago de Cuba, fato que marca o início do processo de luta
armada na Revolução Cubana, o qual teve a participação de diversas
mulheres na organização da ação e duas delas participação diretamente da
ação, Haydè Santamaria e Melba Hernandes [SCHACTAE, 2016, p. 207],
figura como lugar de homens. A organização do desembarque dos
guerrilheiros, vindos do México, no ano de 1956, foi tarefa da jovem Célia
Sanchez [SCHACTAE, 2016], cujo nome também é silenciado. Ao se referir
ao ano de 1958, o autor foca no controle do Estado pelo M-26 e silencia
sobre o Pelotón Mariana Grajales, um grupo de mulheres guerrilheiras que
atuava no M-26, combatendo na luta armada no Oriente de Cuba
[SCHACTAE, 2016].

Um olhar rápido e atento sobre o texto do livro didático analisado observa-


se uma reprodução das relações de poder generificadas, sendo o Estado e o
espaço da guerra apresentados como exclusividade de homens viris. Além
do silêncio da presença de mulheres nesses espaços o ideal de
masculinidade, apresentado pelos heróis símbolos da Revolução Cubana,
são viris, vestem uniforme, usam barba e possuem armas. Portanto, no
início do século XXI, o texto do livro didático analisado tende a reproduzir
uma construção do herói e do espaço da luta armada como domínio de
homens, prática observada em outros estudos sobre masculinidades e
virilidades [CORBIN, 2013; SIERRA MADERO, 2005; SCHACTAE, 2013;
MOREIRA, 2015; BONINO, 2002; STONER, 2003; OLAVARRIA, 2001;
CONNEL, 2005]. A construção da consciência história, apresentada nesse
manual didática silencia a atuação política das mulheres no estado e na
guerra, mesmo diante de ampla produção sobre estudos de gênero no Brasil
atual. Todavia ainda é necessário aprofundar a análise da narrativa sobre a
Revolução Cubana, apresentada no manual.

Referências
Dra. Andréa Mazurok Schactae, professora de História do Instituto Federal
do Paraná (IFPR); professora do Mestrado Profissional em História, na
UEPG; Coordenadora do Grupo de Estudos Cultura, Identidades e Gênero,
no IFPR; Coordenadora do NEABI, Campus IFPR Telêmaco Borba. Contato:
andrea.schactae@ifpr.edu.br

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17
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18
CULTURA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO NO CONTEXTO URBANO
EM CAMPO GRANDE/MS/BRASIL E EM MAR DEL
PLATA/ARGENTINA: PROPOSIÇÕES PARA ANÁLISE DAS
COLEÇÕES FEMININAS EM MUSEUS
Jaqueline Ap. M. Zarbato

Essa proposta faz parte do projeto de pesquisa: Patrimônio histórico-


cultural material e imaterial nas cidades de Mato Grosso do Sul e seu 19
impacto histórico- cultural: Cultura regional e formação de um sistema de
preservação a partir da educação patrimonial, vinculado ao acordo de
cooperação internacional, entre a UFMS e UNMDP, visando abordar as
possibilidades de investigação histórica nas cidades de Campo
Grande/MS/Brasil e Mar del Plata, na Argentina.

Mar del Plata é uma cidade localizada ao sudeste da Província de Buenos


Aires, Argentina, sobre a costa do mar argentino. A cidade se estabeleceu
devido ao porto e ao balneário, foi fundada em 10/02/1874 sobre a base
das extintas missões jesuíticas. As principais indústrias são de pesca,
turística e têxtil. Campo Grande, município da região centro oeste do
Brasil, capital de Mato Grosso do Sul. A cidade foi planejada em meio a uma
vasta área verde. Em 1870, migrantes da região sudeste colonizaram a
região, com a criação de fazendas. De modo geral, a maior parte da mão-
de-obra ativa do município é absorvida pelo setor terciário (comércio de
mercadorias e prestação de serviços). A construção civil também
desempenha papel muito importante na economia local e o serviço público.

As duas cidades tem em sua urbanização elementos que remetem a


dimensão da paisagem e natureza. Voltadas para a construção cultural de
um contexto urbano que levem em conta as concepções históricas e a
dinâmica urbana da modernidade. Assim, em meio as ruas alargadas, as
praças, aos supermercados, aos edifícios pós modernos há a resistência de
patrimônios históricos que remontam a história e memória das cidades.
Esses patrimônios, como monumentos, museus, igrejas históricas fazem
parte da cultura histórica de diferentes grupos, representando a
contribuição da manutenção e preservação dos patrimônios, mas também
da busca pela sedimentação de identidades e memórias históricas da
cidade.

A memória, analisada como vivências e experiências coletivas, que podem


ser ressignificadas no presente, como fio que conduz as tramas das relações
que envolvem subjetividades dos diferentes grupos sociais. Dessa forma, “a
memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia” (Le Goff, 1996, p. 472). Sendo assim, o cenário as museologias e
dos museus nacionais possibilitam algumas reflexões acerca das
perspectivas de entrelaçamento com os estudos de gênero. São diversos os
espaços museológicos que permitem ressaltar a presença e protagonismo
da mulher na sociedade e, pensar a museologia a partir de uma perspectiva
de gênero é um grande desafio, sendo importante lembrar que é errônea a
equiparação de “gênero” com “mulheres”. Segundo Aida Rechena:
“Na verdade, gênero refere-se à construção social da masculinidade e da
feminilidade e engloba um complexo sistema de relações que ultrapassa em
muito a relação homem/ mulher, entretanto em campos como os da
identidade e cultura gay, transgênero, transexualidade, bissexualidade,
androginia e o chamado “terceiro sexo”. Isso significa que nos estudos de
gênero estão englobadas todas as formas sociais e culturais de ser <ser
humano>, independentemente do sexo biológico ou da orientação sexual.”
20
(RECHENA, 2014, p. 154)

Gonçalves (2002. p.121-122), ao abordar a ressonância sobre o patrimônio,


afirma que:

“os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais grupos sociais
e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um
lugar público de reconhecimento, na medida mesmo em que as
transformam em ‘patrimônio’. Transformar objetos, estruturas
arquitetônicas e estruturas urbanístísticas em patrimônio cultural significa
atribuir-lhes uma função de ‘representação’, que funda a memória e a
identidade. (...) Os patrimônios são, assim, instrumentos de constituição de
subjetividades individuais e coletivas, um recurso à disposição de grupos
sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e
político no espaço público.”

Já para Ivo Matozzi (2008, p. 138), para abordar a questão do patrimônio é


necessário analisá-lo segundo algumas premissas:

“Primeiramente, porque os bens culturais são simplesmente marcas que


devem ser transformadas em instrumentos de informação, mas se tornam
elementos que marcam o território e são o meio de seu conhecimento. Em
segundo lugar, porque são considerados parte de um patrimônio difuso no
território,em relações com instituições e administrações que têm poderes de
gestão de alguns aspectos do território (governos locais, superintendências,
direções de museus e de sítios patrimoniais...).Graças ao uso dos bens
culturais e graças à educação para o patrimônio, o aluno adquire
conhecimentos sobre o território e sobre os problemas da sua gestão e pode
tornar-se um cidadão consciente, interessado e crítico.”

Nos anos 1950, a UNESCO passou a ser o órgão que retomou a orientação e
regulação internacional destinada à preservação dos bens patrimoniais
históricos culturais. Entre as propostas da UNESCO está o planejamento
urbano como principal ferramenta de preservação, e também
encaminhamentos sobre as normas e cartas patrimoniais. Funari e
Pelegrini(2009,p. 10) destacam que a noção de patrimônio (patrimonium)
se referia, aos antigos romanos, a tudo que pertencia ao pai, paters ou
paters família, pai de família.

Funari e Pelegrini( 2009, p 20) salientam ainda a efetiva construção das


noções de patrimônio, a partir da criação dos Estados Nacionais e após a
Revolução Francesa. Mas, são contundentes em argumentar que, em
diferentes tradições, há traços comuns: compreendido como em primeiro
lugar entendido com bem material concreto, monumento, edifício. Como
pressupostos há valores comuns, compartilhados por todos, que se
substanciam em casos concretos. Em segundo lugar, aquilo que é
determinado como patrimônio é excepcional, o belo, exemplar, o que
representa a nacionalidade. Uma terceira característica é a criação de
instituições patrimoniais, além de uma legislação específica.

As paisagens das cidades se modificam e com isso mudam as táticas e


estratégias para viver nestes espaços urbanos, desta forma, a cidade é,
21
portanto, feita de desordens táticas, que expressam sua complexidade frágil
e lhe permitem, apesar da mudança contínua, manter-se íntegra. Mary-
Catherine Garden( 2004, p 01) utiliza o termo "patrimônio-paisagem" se
referindo a "paisagens do patrimônio”, em que constam sítio patrimoniais
que existem dentro de extensões físicas e sociais mais amplas. Segundo a
autora, ao pensar no patrimônio como patrimônio-paisagem - ou seja, como
paisagens - chama a atenção para suas qualidades como espaços dinâmicos
e em mudança.

A intensificação dos debates sobre as paisagens patrimônio, tem sido


utilizada nas abordagens sobre patrimônio e turismo, mas podemos analisá-
la no campo histórico, pois envolve as dimensões de transformações em
contextos urbanos, com vista principalmente a sustentabilidade. Nesse
sentido, a sustentabilidade – garante que as necessidades ambientais,
econômicas e sociais da população sejam atendidas sem sacrificar as
gerações futuras - é uma preocupação crescente, particularmente entre os
pesquisadores e praticantes do turismo.

O processo de sustentabilidade dimensiona no contexto urbano, as


caracteristicas das paisagens. Anne Cauquelin afirma que o termo
“paisagem” está ausente do vocabulário ocidental. “A natureza, sua
compreensão, pertence à ordem do intelecto, não da sensibilidade.”
(CAUQUELIN, 1998, p. 25). Usa-se o termo topio, para designar um
pequeno lugar que uma paisagem. A natureza, designada por phusis, a qual
foi objeto de numerosas definições entre filósofos. Relacionada como
recurso divino à sobrevivência dos seres, suas manifestações que são
visíveis e, portanto, mais concretas. Mas, afirma também que o sujeito
moderno, ao toque do consumo descartável, passa a ter uma relação ainda
mais fugaz com a natureza, modificando intensamente os ciclos naturais, o
clima, os ecossistemas e, consequentemente, as paisagens. E, neste
processo, a sustentabilidade se insere, pois:

“A paisagem não é mais esse bonito fundo sobre o qual se destacam belos
objetos escultóricos chamados de arquitetura, mas o lugar no qual pode
instalar-se uma nova relação entre os não-humanos e os humanos: um
fórum cósmico onde devemos reescrever toda a herança recebida; a
democracia estendida às coisas, em novo pacto.” (ÁBALOS, 2004, p. 2).

A democracia amplia também as noções de espaço e circulação dos


saberes, influenciando no que se considera necessário preservar, seja
paisagem ou objeto material. Buscando pensar na preservação como algo
maior, que integra todos os conteúdos e contextos urbanos. O que se busca
preservar “[...] é a perenidade dessa forma, único objeto de transmissão
[...]” (CAUQUELIN, 1998, p. 27).
Ignacy Sachs (1995, 2000) apresentou alguns critérios de sustentabilidade,
entre os quais a sustentabilidade cultural que, refere-se às mudanças no
interior da continuidade (equilíbrio entre respeito à tradição e inovação) e à
capacidade de autonomia para elaboração de um projeto nacional integrado
e endógeno (em oposição à cópia de modelos do exterior). Desta forma, a
sustentabilidade cultural refere-se, nesse processo, ao que deve ser dado
às diferentes culturas e às suas contribuições para a construção de modelos
22
de desenvolvimento apropriados às especificidades de cada ecossistema,
cada cultura, cada local, sendo utilizada também na perspectiva das
relações entre cultura e desenvolvimento.

A pesquisa se desenvolve a partir de documentos históricos, fotografias,


escritos jornalísticos e escritos de memorialistas, de monumentos, museus,
bens patrimoniais nas cidades de Campo Grande e Mar del Plata,
relacionando a concepção de contexto urbano com as construções de
memórias de migrantes, bem como de ‘fundadores’ das cidades, além de
compreender a contribuição de diferentes grupos culturais na constituição
da memória desses lugares e de que forma podem ser utilizados no ensino
de história. Os museus e as instituições de cultura viveram estas mudanças
de modo radical. Nos anos 1960 e 1970, ocorreu uma expansão e uma
revisão museológica; movimentos eclodiram no cenário internacional e
desestabilizam os sistemas de museus. As artes, culturas, políticas e
instituições foram afetadas. Interesses privados, movimentos artísticos e da
sociedade civil disputaram ou tentaram influenciar a orientação do campo. A
Indústria cultural empenhou-se em transformar o Museu em negócio e lugar
de espetáculo. Nos anos 90, os neoliberais que ocuparam postos
estratégicos de poder na América Latina, perseguiram este modelo. Este
processo marcou profundamente a América Latina.

Pretende-se identificar as principais características de objetos, obras,


coleções, elementos culturais e imagens que tenham a representação
feminina no Museu José Antônio Pereira. Visando, principalmente relacionar
como estão dispostos e representados os bens patrimoniais que sejam
relacionados ao saber fazer de mulheres, sejam negras, brancas, indígenas.
em que seja possível compreender a utilização de tais artefatos históricos
como construtores de identidades. reconhecendo o museu como uma
instituição também da comunidade, cujo patrimônio pode ser concebido
como instrumento da construção da identidade e consequentemente da
cidadania. Influenciada pela necessidade de abordar os saberes femininos,
a maneira de ensinar a história pelo prisma da mulher a pesquisa com o
museu tem como objetivo analisar e enfrentar o silenciamento da
participação das mulheres na história da fundação da cidade, para isso nos
baseamos teoricamente em análises sobre patrimônio histórico (Gonçalves),
história das mulheres( Michele Perrot), museu e história (Mario Chagas)
narrativas históricas (Verena Alberti), ensino de história (Jorn Rusen, Maria
A. Schmidt), museologia de gênero (Rechena) e antropologia dos objetos
(Gonçalves), museologia social (Moutinho) e Ecomuseus (Pessoa). Foi
realizado um estudo dos objetos expostos que possuem ligação com o saber
feminino do século XIX, fazendo uso da teoria das Representações Sociais
em diálogo com a museologia de gênero.
A abordagem metodológica visa fundamentar como o saber/fazer das
mulheres são representados e organizados nas ações e coleções de museus
na América Latina, fazendo um panorama de que espaços possuem coleções
femininas ou que constam como diversidade cultural.

Referências
Jaqueline Ap. M. Zarbato, doutora em História. Docente no curso de
História/UFMS. Docente no Profhistória/UFMT e PPGE/CPTL. Coordenadora
23
do Grupo de Pesquisa Ensino de História, Mulheres e patrimônio( GEMUP).

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INTERSECÇÕES HISTÓRICAS E GÊNERO EM MULHER-
MARAVILHA (PATTY JENKINS, 2017)
Maristela Carneiro e Vilson André Moreira Gonçalves

O cinema comercial não é estranho ao filme histórico. Algumas das


primeiras super-produções cinematográficas foram épicos espetaculares
como Quo Vadis (Enrico Guazzoni, 1910) e Intolerância (D.W. Griffith,
24 1916). Dito isso, não são apenas os “filmes de época”, ao menos não no
sentido mais restrito do termo, que apoiam suas narrativas em discursos de
historicidade. Obras de outros gêneros empregam a “autoridade” da
narrativa histórica em suas tessituras para fins de ambientação, desenlace
narrativo e apresentação estética.

Até mesmo blockbusters hollywoodianos, formas de entretenimento


frequentemente mais dirigidas para o impacto visual que para tramas de
grande complexidade, podem recorrer à supracitada autoridade da
disciplina histórica. A tendência dos filmes de super-herói, que marca de
forma indelével a fase mais recente do cinema comercial estadunidense,
apresenta sua cota de diálogos entre esse modelo e o filme histórico; um
dos casos mais emblemáticos dessa intersecção é Mulher-Maravilha (Patty
Jenkins, 2017).

Concebido como parte do universo cinematográfico conhecido como DCEU


(DC Extended Universe), o filme de Patty Jenkins situa sua narrativa na
Europa de 1917, ao fim da Primeira Guerra Mundial, apresentando sua
reflexão estética e narrativa acerca do conflito. Ao fazer isso, a obra, que
também é um dos raros exemplos de filme de super-herói protagonizados
por uma personagem feminina, coloca em perspectiva as relações de
gênero e o modo como o cinema convencionalmente as representa.

Para analisar essas representações, faz-se pertinente delinear os conceitos


que estruturam essa modalidade midiática. O filme histórico, conforme
compreendido aqui, é a produção que adere às convenções narrativas que
buscam elaborar um discurso audiovisual com a conotação de passado.
Entretanto, todo filme é um filme histórico, visto que, como apontado por
Napolitano (2011, p. 67), tem algo a dizer a respeito do contexto de sua
produção. Dito isso, nem todo filme é produzido com a intenção de situar-se
em uma conjuntura histórica específica, e este é o local do filme histórico
enquanto modalidade narrativa ou gênero. O gênero fílmico, por sua vez, é
uma categoria diegética inteligível para públicos e criadores (ALTMAN,
1999, p. 15-16), uma “gama de expressão” para os cineastas e uma “gama
de experiência” para os espectadores (SCHATZ, 1981, p. 22),
caracterizando-se como um repertório de signos convencionais que
permitem saber qual é o tipo de história que está sendo contada.

E o gênero fílmico histórico, como definido por Rosenstone (2015, p. 33),


utiliza o discurso histórico como ponto crucial de sua coerência temática,
concentrando-se em “pessoas documentadas ou criando personagens
ficcionais que são colocados no meio de um importante acontecimento ou
movimento”. Em vista dessas considerações, o presente texto se dedica a
observar como Mulher-Maravilha se estrutura estética e narrativamente
para apresentar seus temas ao público, tendo como pano de fundo marcas
de historicidade como pontos fulcrais de seu enredo.

Mulher-Maravilha no cinema: histórico da presença da personagem


e sinopse
Criada na década de 1940 pelo psicólogo William Moulton Marston e pelo
ilustrador Harry George Peter, a Mulher-Maravilha veio a se tornar uma das
personagens mais reconhecíveis do gênero super-herói nas histórias em
25
quadrinhos, sendo ainda representada em produções animadas, jogos
eletrônicos e em uma série televisiva da década de 1970 (FIGURA 1).
Entretanto, enquanto outras figuras conhecidas dos quadrinhos, como
Superman e Batman recebiam múltiplas interpretações cinematográficas, a
princesa das amazonas não recebeu uma versão na tela grande até Batman
vs Superman: A Origem da Justiça (Zack Snyder, 2016), produção na qual
aparece como coadjuvante.

FIGURA 1: Pôster do seriado da década de 1970.


FONTE: http://imdb.com

No ano seguinte, o filme solo da personagem chegou às telas. A trama


narra em pinceladas amplas as origens do povo sobre-humano ao qual a
protagonista pertence, as amazonas da ilha de Themyscira. Todavia, seu
foco principal é a saída de Diana desse contexto e seu confronto com o
“Mundo dos Homens” - forma pela qual as amazonas, uma cultura
exclusivamente composta por mulheres semidivinas, referem-se aos
mortais que residem além de suas fronteiras.

O confronto em questão se inicia quando as praias de Themyscira são


atingidas por um espião estadunidense em fuga, Steve Trevor, e os
soldados alemães que estavam em seu encalço. As amazonas vencem os
soldados com relativa facilidade, mas não sem a morte de algumas
guerreiras. Trevor é interrogado pela rainha Hipólita, e fala sobre a guerra
na Europa e o que o levou a chegar até aquele território.

As amazonas, até então reclusas por opção, adquirem ciência da escala


monstruosa do conflito que acomete o Mundo dos Homens. Diana, filha de
Hipólita, acredita que uma guerra tão pavorosa só poderia ser fruto da
vontade do deus grego Ares, e assume para si a tarefa de matá-lo,
acreditando que isso daria fim à carnificina.
26

Mulher-Maravilha inicia, portanto, com uma protagonista outsider, estranha


ao palco do conflito, mas decidida a transformar este cenário, ainda que
acompanhada de Trevor, que representa a humanidade que contrapõe a
dimensão semidivina da própria heroína. Diana é otimista, até mesmo
ingênua, e seu heroísmo não é desconstruído ou dúbio. A postura de Diana
como salvadora é absoluta, mesmo quando guiada por uma motivação
equivocada – crer que os homens entram em guerra apenas por causa da
influência perniciosa de uma divindade. Dito isso, os vilões, Ares, o General
Ludendorff e a Doutora Veneno, também são absolutos, indivíduos guiados
pelo desejo de dominar e destruir. O tom singelo e maniqueísta da narrativa
se preserva ao longo da produção: ao fim do filme, a heroína supera sua
ingenuidade, mas a mensagem que ela deixa é inquestionavelmente
positiva.

A estética, por sua vez, apesar de predominantemente verossímil, emprega


cores fortes e efeitos visuais impactantes, especialmente para expressar o
contraste entre a positividade da heroína e a desolação do mundo que ela
deve salvar. Nesse sentido, conforme elaborado no tópico a seguir, é
inescapável que a configuração estética trabalhe com as tensões que
emanam das relações de gênero abordadas no filme, ainda que de forma
superficial, cômica ou metafórica.

As Amazonas e o mundo dos homens


A noção de gênero, como afirma Scott (1995, p. 86), é uma categoria que
se constrói primariamente a partir das diferenças percebidas entre os sexos.
Entretanto, segundo a autora, a cadeia de relações derivadas dessas
percepções é imensamente mais complexa que uma distinção biológica, à
medida que incorpora um vasto histórico de complexas relações de poder.

Assim, ao compartimentar seus cenários entre os polos compostos por


Themyscira e o Front, ou o Mundo dos Homens, o filme de Jenkins, não
obstante fantástico, dialoga com problemas de gênero do mundo real. As
amazonas, narra Hipólita ao início do filme, foram criadas pelos deuses para
ensinar a humanidade a viver em paz, mas sua sabedoria foi rejeitada, e
por isso elas receberam seu próprio paraíso terrestre, onde poderiam viver
à revelia das guerras dos homens.

À narrativa em voz over de Hipólita é contraposta uma série de pinturas


animadas, aparentemente de moldes da arte neoclássica, as quais utiliza
como recurso para explanar à filha (e ao público) a guerra passada que
resultou na morte da maior parte dos deuses e no banimento de Ares,
pouco antes do deus supremo, Zeus, abrigar as amazonas no paraíso
destinado a elas.
A cenografia paradisíaca de Themyscira reforça sua aura mística e seu
status especial. Além do aparentemente isolamento geográfico e mágico
que a oculta de seres humanos comuns, ela parece ser uma amálgama de
paisagens intocadas, vegetação exuberante, fauna tropical, quedas d’água,
arquitetura monumental e estatuária reminiscentes da Antiguidade Clássica.
Nas cenas que se passam na ilha, a fotografia é dominada por verdes,
dourados e cores quentes.
27
Dirigindo-se à Europa com Trevor em uma embarcação (personagem com o
qual mais tarde desenvolverá um vínculo mais íntimo e afetivo), Diana tem
um vislumbre das concepções de moralidade comuns ao Mundo dos
Homens: ele demonstra desconforto ao se deitar com ela por não serem
casados. A noção contratual e exclusivamente heteronormativa de amor,
casamento e sexualidade que ele lhe apresenta parece ser recebida com
estranhamento ao longo do diálogo.

O Mundo dos Homens no qual eles aportam, em oposição à ilha das


amazonas, é lúgubre e melancólico. Predominam os azuis e cinzas.
Prevalece a umidade, a neblina e a poluição; poucos espaços parecem
claros, limpos ou bem preservados. Ironicamente, a tecnologia pós-
industrial da Europa do início do século XX é mais dilapidada que a
antiguidade encapsulada de Themyscira. O primeiro contraponto estético
para a ilha das amazonas é a metrópole nebulosa de Londres, que Diana
descreve como “horrenda”.

Ali Diana é apresentada a Etta Candy, a secretária de Trevor, com quem


deve ir comprar “roupas adequadas”, já que seria muito conspícua
utilizando uma pitoresca armadura amazônica naquele cenário. Ela se choca
primeiro com o tipo de trabalho servil que Candy faz para Trevor, depois
com as roupas que lhe são apresentadas. Ela questiona como mulheres
poderiam lutar usando trajes como aqueles, alheia à noção de que, no
Mundo dos Homens, espera-se que mulheres assumam papeis secundários.
Isso se torna perceptível para a protagonista quando, ao acompanhar
Trevor até uma reunião do Conselho de Guerra, ela tenta se fazer ouvir e é
tratada como impertinente por falar sem que alguém tenha lhe dirigido a
palavra antes.

De modo geral, o sexismo naturalizado neste contexto, inclusive entre os


amigos e comparsas de Trevor, faz com que praticamente todos os homens
da trama, com exceção de Ares, duvidem das intenções e habilidades da
protagonista, descartando suas ações a princípio e taxando-a de
precipitada, louca ou excessivamente emotiva. Essa naturalização se torna
ainda mais visível quando se considera que minutos antes se descortinava
diante do espectador uma próspera cultura de semideusas.

O contraste entre a terra natal de Diana e o mundo que ela ambiciona


salvar se torna mais agudo à medida que o filme se desloca para o
esquálido front, na Bélgica, onde se dará o clímax da narrativa. Ali, o
cenário não é apenas insalubre, mas de completa destruição e estagnação.
Em parte, nestes casos, a ambientação se pauta por parâmetros similares
aos de um drama de época ou um filme de guerra convencional. As
representações da Londres do início do século XX e das trincheiras do Front
Ocidental são parte da “textura histórica necessária” a um filme transcorrido
no passado. Como salienta Jonathan Stubbs (2013, p. 17-18), mesmo
filmes vagos acerca da época em que a trama se desenrola e que tomam
liberdades em relação ao período retratado, precisam apresentar signos de
historicidade.

Entretanto, é inegável que, além do papel de contextualização, a


formulação cênica e a caracterização dos personagens servem à geração do
28
contraponto entre o fantástico de um mundo de deuses e a dureza da
realidade que Diana enfrenta, e, portanto, aos temas tensionados ao longo
da narrativa. Como afirma Burke (2004, p. 200), o filme histórico, que não
é menos cinematográfico em razão de seu discurso de historicidade,
mobiliza sentimentos, e não apenas uma corrente coesa de fatos ou
conjunturas pretensamente precisas.

Por exemplo, quando está prestes a partir para uma missão no front, Diana
se depara com soldados britânicos feridos retornando do conflito no
continente: homens feridos e aterrorizados com o que testemunharam.
Veteranos que perderam braços e pernas em conflitos reais foram utilizados
como figurantes nessa cena, a fim de reforçar a tensão e a atmosfera da
cena (BUCKLAND, 2017). Essa composição traduz em imagens a percepção
de que a guerra em andamento é um conflito sem esperanças, sem heróis e
de proporções inimagináveis. Deste modo, o filme simultaneamente
introduz Diana e o espectador a este mundo no qual a guerra não é um
tópico glorioso, mas o auge da desolação e do terror.

Adiante, essa percepção é reforçada quando é informada que o sofrimento


nas trincheiras se arrasta há anos sem que qualquer avanço real tenha sido
feito. A reação de Diana, crente em sua função como redentora em meio
àquele conflito, é emergir da trincheira como Mulher-Maravilha (FIGURA 2),
entrando em combate de forma decisiva e expondo de forma espetacular o
contraste entre o mundo fabuloso de onde veio das amazonas e o universo
verossímil e desencantado da frente de batalha. Os tons de vermelho, prata
e dourado do traje e das armas de Diana são uma reminiscência dos valores
e dos aspectos mais fantásticos de Themyscira, colocando-se em oposição
ao panorama desolado do Mundo dos Homens, com seus cinzas e azuis.
29

FIGURA 2: Mulher-Maravilha emerge da trincheira.


FONTE: Mulher-Maravilha (Patty Jenkins, 2017)

Diana é em si é uma reminiscência de seu mundo, este local, cuja fartura e


beleza emanam dos próprios deuses, um referencial moral para a heroína
quando ela combate os males que afligem os mortais. Quando Diana decide
abandonar a ilha para salvar o mundo dos homens da destruição, sua mãe
afirma que “os homens não a merecem”, mas ela opta por trocar a
existência idílica e reclusa para viver em um mundo que acredita precisar
dela. A Mulher-Maravilha se dirige ao mundo dos mortais porque considera
sua intervenção uma responsabilidade moral.

Este componente de inabalável nobreza e desprendimento da personagem é


salientado de forma especialmente dramática quando Ares exige que ela
observe a humanidade atentamente e constate sua mesquinhez e feiura.
Apesar disso, ela opta por salvar o Mundo dos Homens, insistindo em
apegar-se aos seus melhores aspectos e aspirações.

Considerações
Em meio ao núcleo temático do filme, uma questão se sobressai: há lugar
para uma amazona no Mundo dos Homens?

Essa pergunta inicial convoca outra. Qual é o espaço ocupado pelas


mulheres em narrativas de ficção histórica? E, dado que frequentemente
são peças importantes na formação do senso de historicidade das pessoas
familiarizadas com as mídias, se esse espaço é exíguo, ínfimo, o espectador
questionaria qual é o posto das mulheres no início do século XX do modo
como Diana questiona?

A primeira questão também pode ser reelaborada nos seguintes termos: há


lugar para mulheres no cinema? Os filmes de super-heróis, como inúmeros
outros formatos midiáticos de sucesso, são uma seara predominantemente
masculina. Mulher Maravilha é um caso relevante por abrir portas para uma
protagonista feminina, mas também para uma diretora, e para outros filmes
que, ao buscar emular seu sucesso nesse mérito, criarão mais espaço para
heroínas na mídia.

Como afirma Matos (2005, p. 21-22), o feminino e o masculino se


constroem um em função do outro, em uma cadeia de representações nas
arenas do social, do econômico e do cultural. A ciência dos processos pelos
quais convenções acerca do feminino e do masculino são formadas permite
encontrar formas de mantê-las em estado de indagação e de revisão, de
30
modo que mais heroínas possam emergir das trincheiras, por vezes
horrendas, da cinematografia.

Referências
Maristela Carneiro é professora da UFMT, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO. Doutora em
História pela UFG.
Vilson André Moreira Gonçalves é professor da SEDUC/MT e digital
influencer, administrador da página História da Arte com o Tio Virso
(@hadevirso). Doutor em Comunicação e Linguagens pela UTP.

ALTMAN, Rick. Film Genre. Londres: BFI Publishing, 1999.


BUCKLAND, Danny. Soldiers who lost arms or legs appear in war films to
lend realism to scenes. Mirror. 23 Set. 2017. Disponível em:
<https://www.mirror.co.uk/news/uk-news/soldiers-who-lost-arms-legs-
11225096>. Acesso em: 13 de Fev. de 2019.
BURKE, P. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.
MATOS, M. I. S. de. Âncora de emoções: corpos, subjetividades e
sensibilidades. Bauru: Edusc, 2005.
NAPOLITANO, M. A escrita fílmica da história e a monumentalização do
passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, M.
H.; MORETTIN, E.; NAPOLITANO, M.; SALIBA, E. T. (orgs.). História e
cinema: duas dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda,
2011.
ROSENSTONE, R. A. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2015.
SCOTT, J. Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-99, 1995. Disponível em
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1210/scott_gend
er2.pdf>. Acesso: 10/09/2017.
SCHATZ, Thomas. Hollywood Genres: Formulas, Filmmaking and the Studio
System. Nova York: Random House, 1981.
STUBBS, Jonathan. Historical Film: A Critical Introduction. Nova York:
Bloombsury, 2013.
MEMÓRIAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS
DE HISTÓRIA
Susane Rodrigues de Oliveira

Introdução
A violência sexual nem sempre despertou os mesmos sentimentos, valores
e respostas jurídicas (VIGARELLO, 1998). Como outras formas de violência, 31
ela é indissociável do contexto que a produziu, recebendo diferentes
sentidos e tratamentos ao longo do tempo e espaço. Inclusive a vergonha
derivada da agressão variou dependendo da identidade da vítima e da
imagem que dela se tinha. Tais mudanças nas definições, imagens,
tratamentos e limites da tolerância da violência sexual denotam, portanto, a
historicidade e a força de suas representações na vida social.

Compreendemos as representações como formas de produção de sentidos


para as coisas, trata-se das “palavras que usamos para nos referir a elas,
as histórias que narramos a seu respeito, as imagens que delas criamos, as
emoções que associamos a elas, as maneiras como as classificamos e
conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos (HALL, 2016, p. 21).
Enquanto práticas centrais de produção de valores e significados culturais
são capazes de regular e organizar nossos comportamentos, subjetividades
e diferenças, auxiliando “no estabelecimentos de normas e convenções
segundo as quais a vida em sociedade é ordenada e administrada” (HALL,
2016, p. 22). Ao atuar no nível do corpo, as representações remetem
também aos modos de ser engendrados no social, constituindo processos
de subjetivação, ou seja, referências com os quais os sujeitos podem se
reconhecer e se posicionar na vida social. A subjetivação é “o processo pelo
qual se obtém a constituição de um sujeito, mais exatamente de uma
subjetividade, que evidentemente é uma das possibilidades dadas de
organização de uma consciência de si” (FOUCAULT, 1984, p. 137). Assim,
partimos do pressuposto de que as representações de violência sexual –
difusas nos livros didáticos, nas práticas de ensino, nos sistemas jurídicos,
na mídia televisiva, na historiografia, na ciência, no cinema, na música e
outros artefatos culturais da contemporaneidade, – tem o poder de orientar
práticas sociais, condutas e processos de subjetivação de sexo-gênero,
incidindo nas formas de ver, imaginar, interpretar, sentir e tratar essa
violência no tempo presente.

Os livros didáticos escolares revelam as expectativas e imaginários coletivos


de sociedades escolarizadas, como parte integrante do patrimônio histórico-
educativo constituem fontes imprescindíveis para o estudo da cultura
escolar, pois permitem a compreensão do passado formativo comum de
diversas gerações e dos padrões que determinam modos coletivos de
comunicação e de relação com o mundo (OSSENBACH, 2010, p. 117).
Como instrumentos privilegiados de construção das identidades, funcionam
também como dispositivos de subjetivação, na medida em que veiculam
uma série de representações que nomeiam, descrevem e atribuem valor,
significado, identidade, classificação e importância aos sujeitos e suas ações
na vida social. Tais representações podem servir de guias, referencias ou
modelos para legitimar ou justificar nossos projetos, escolhas, condutas,
relações sociais e modos de ser.
É nesse sentido que elegemos aqui cinco livros didáticos de História,
aprovados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2018 para o
Ensino Médio, como fontes de pesquisa para uma análise histórica das
representações de violência sexual que circulam na cultura escolar,
especialmente no ensino de história. Trata-se de representações do passado
que se apoiam em um conjunto de memórias de violência sexual,
especialmente de estupros em cenários de guerra, colonialismo, escravidão
e outros conflitos sociais. Afinal, o que quer dizer essa lembrança evocada
32
nas narrativas didáticas? Como as representações de estupros funcionam no
interior dos enredos narrativos? Quem são as vítimas e os perpetradores
destes estupros? Como as representações de estupros constroem os
sujeitos envolvidos nesses acontecimentos, constituindo processos de
subjetivação no ensino de história? Que ordem discursiva e epistêmica
abarca estas representações do passado?

Enquanto professores/as e historiadores/as entendemos que é necessário


analisar e discutir o modo como a violência sexual vem sendo incorporada,
rememorada e ressignificada nos livros didáticos de História. “Para que o
ensino de história contribua na igualdade entre os sexos e no fim da
violência contra as mulheres, é necessário empreender uma
desnaturalização de comportamentos e relações humanas que a história nos
mostra como dados e não como construções” (OLIVEIRA, 2017, p. 223).
Desvelar a historicidade dos sentidos constitutivos de narrativas históricas
de violência sexual é parte fundamental de nosso compromisso político com
a educação para a transformação das formas misóginas, racistas e sexistas
de pensar e agir que ainda produzem a vitimização, a opressão e o
sofrimento das mulheres no tempo presente (OLIVEIRA, 2014). Para isso,
buscamos apoio teórico em estudos feministas interseccionais (pós-
estruturalistas, pós-coloniais, decoloniais e negros), bem como nas noções
de representação (HALL, 2016) e subjetivação (FOUCAULT, 1984).

A violência sexual contra as mulheres continua sendo um problema tão


sério hoje como foi nos anos 1970. Por isso mesmo, os estudos feministas
vem há muito tempo apontando para o caráter patriarcal, racista e
sistêmico da violência sexual, colaborando na crítica e historicização de
representações e discursos que naturalizam, sexualizam e erotizam tais
atos de opressão e até mesmo o assassinato (feminicídio) de mulheres.
Com um olhar atento às interseccionalidades do gênero – à raça, classe,
etnia e outros marcadores sociais – alguns estudos problematizam a
violência sexual como “um conjunto complexo de práticas culturais usadas
para impor e manter não apenas o sexismo, mas também múltiplas formas
de opressão” (BERTRAM; CROWLEY, 2012, p. 63. Tradução nossa). A
realidade vivida do trauma sexual constitui assim uma “representação
corporal do poder” capaz de articular as estruturas sistêmicas de exploração
e opressão à experiência da agressão e dominação sexual (BERTRAM;
CROWLEY, 2012, p. 63. Tradução nossa).

A violência sexual simboliza e expressa uma relação de poder que constrói


posições subjetivas para vítimas/femininas e agressores/masculinos. Ao
desencadear processos de subjetivação desiguais que engendram e reificam
representações de sexo-gênero, funciona ainda como uma tecnologia de
gênero (LAURETIS, 1994, p. 212). Lauretis explica que o gênero enquanto
representação e auto-representação “é produto de diferentes tecnologias
sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e
práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida
cotidiana” (1994, p. 208). É nesse sentido que destacamos aqui as práticas
de violência sexual, bem como suas representações em memórias históricas
e narrativas didáticas escolares, como tecnologias de gênero, pela
capacidade de engendrar processos de subjetivação que também sustentam
e mantém desigualdades estruturais em nossa sociedade.
33

Estupros coletivos na Idade Média


Em uma atividade localizada ao final de um capítulo dedicado à cultura,
economia e sociedade medieval, no primeiro volume da coleção Olhares da
História (VICENTINO; VICENTINO, 2016, v. 1, p. 244), identificamos uma
menção aos estupros coletivos em tempos medievais. A atividade, incluída
na seção intitulada “Pratique”, é desencadeada pela leitura do seguinte
fragmento de texto historiográfico:

“11. Em um artigo sobre os jovens na Itália medieval, a historiadora


Elisabeth Crouzet-Pavan explica:

Os arquivos criminais atestam numerosas práticas anômicas ou criminosas


que congregam os bandos de jovens. E essas práticas, em Veneza, são
características das horas noturnas. O estupro coletivo, diferente de muitos
estupros diurnos cometidos no espaço da cidade ou da casa, inscreve-se no
registro dessas violências perpetradas à noite. Os componentes lúdicos que
lhe são inerentes, as injúrias e os golpes que o acompanham, seguem as
regras gerais que dramatizam a conduta violenta do grupo. O estupro,
como todas as outras formas de agressão noturna, prova, no seio do grupo,
uma capacidade social baseada essencialmente em critérios de virilidade. A
violência contra as forças policiais vale igualmente como proeza viril. A luta
é exigida pelas regras da honra quando, de armas na mão, o grupo recusa-
se a deixar-se revistar. Mas, com frequência, a briga é voluntária,
provocada por uma troca preliminar de insultos ou uma gritaria geral. Sem
outra causa a não ser a escolha precisa desse adversário, observa a
sentença, cinco ou seis delinquentes atacam as forças policiais do Conselho
dos Dez. O jogo se prolonga. Quatro jovens, intimados a entregar suas
armas, lutam de espada com um guarda, obrigam-no a refugiar-se numa
casa, perseguindo-o até afinal feri-lo. [...] Os primeiros textos
regulamentares das Comunas, na segunda metade do século XIII e nas
primeiras décadas do século seguinte, lançavam as bases de um controle
dos comportamentos. Trata-se então de um primeiro dispositivo de
conjunto que, destinado a pacificar a cidade, visava certas práticas,
protegendo mais particularmente alguns períodos e alguns lugares. [...]

CROUZET-PAVAN, Elisabeth. Uma flor do mal: os jovens na Itália medieval


(séculos XIII-XV). In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. História dos
jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. v. 1. p. 204-205.

a) O que caracterizava o comportamento dos jovens nas cidademedievais?


b)Como as autoridades lidavam com os bandos jovens que agiam nas
cidades?
c)Formem grupos de cinco ou seis pessoas e durante uma semana
pesquisem e selecionem notícias que tratam do jovem hoje na cidade. Que
imagem a imprensa constrói do jovem?
d) A maneira como as autoridades lidam com o jovem hoje é diferente ou
parecida com a forma como lidavam com eles na Idade Média? Explique.
e)Em sua opinião, a imagem construída pela imprensa traduz com
fidelidade a juventude de hoje? Justifique.” (VICENTINO; VICENTINO, 2016,
v. 1, p. 244. Grifos nossos).
34

As atividades propostas em torno do recorte historiográfico abrem


importantes reflexões sobre as experiências de jovens urbanos, a partir das
representações produzidas pela imprensa, mas deixam escapar a
problematização de um tema sensível no tempo presente, os estupros
coletivos como forma de violência e idealização de masculinidades
dominantes. As questões “c”, “d” e “e”, ao direcionar o debate para o tempo
presente, apenas para o modo como as autoridade e a imprensa lidam com
os jovens urbanos na atualidade, enfatizam as diferenças e as imagens
positivas e negativas dos jovens, deixando escapar não só a possibilidade
de historicização de imagens que constroem masculinidades
agressoras/estupradoras, como também a atualidade deste tema entre a
juventude.

O recorte historiográfico que embassa estas atividades revela que os


estupros coletivos nas noites de Veneza eram parte de uma confraria
masculina associada à criminalidade, onde a violência sexual contra
mulheres e a violência armada contra as forças policiais ganham contornos
de jogo e ludicidade na expressão de uma subjetividade viril que serve
como prova da capacidade de cumprir as “regras da honra” que
fundamentam a identidade do grupo. Ao mesmo tempo em que confere
visibilidade a um modelo agressivo de masculinidade, destaca a importante
presença de dispositivos normativos de pacificação e controle dos
comportamentos naquele contexto. Entretanto, o recorte demonstra que os
estupros coletivos, seguidos de golpes e insultos, bem como as brigas e a
luta armada nos espaços públicos, como representações de poder viril,
fundamentavam o comportamento dos homens em grupo, especialmente,
as formas de atuação que exigiam demonstração de coragem, força e honra
na capacidade de burlar as normas sociais. Tal representação de virilidade,
suscitada pelo campo da representação do estupro, conduz a um imaginário
da sexualidade que distingue radicalmente os lugares do masculino e do
feminino na história, já que se passa sem qualquer problematização.

O tratamento da violência sexual como uma parte onipresente da história,


dificulta a capacidade de nossas/os alunas/os questionarem por que esses
eventos ocorreram em tempos e lugares específicos, incluindo o presente.
Existe o perigo de assumir uma tendência masculina inata de cometer
violência sexual, ao invés de compreender a historicidade desse
comportamento, bem como de seus significados e modos de funcionamento
na vida social. A naturalização do desejo sexual masculino desenfreado se
reflete na indiferença em relação à violência sexual na história. Essa
suposição nociva tende a apagar os fatores sociais que tornam esse tipo de
violência tão predominante. Ao situar a violência sexual, bem como as
masculinidades que a produzem em seu contexto histórico específico,
podemos romper com justificativas, para esse tipo de violência, baseadas
em supostos princípios biológicos.

Estupros em cenários de escravidão e colonialismo


A coleção História Global menciona que as mulheres negras nas Minas
Gerais, em tempos de escravidão, “suportariam uma dupla exploração:
sexual e econômica” e que, assim, a “escravidão revelaria uma de suas
faces mais severas” (COTRIM, 2016, v. 2, p. 337). Trata-se de uma imagem
35
que fixa um modo de subjetivação das mulheres negras como corpos
capazes de “suportar” o estupro e, concomitante, a exploração econômica.
Assim, o livro didático parece informado pelos mesmos estereótipos racistas
e sexistas que circulam intensamente no cinema, na telivisão, nas músicas
e outros artefatos culturais, perpetuando a imagem das mulheres negras
como seres fortes e capazes de aguentar, suportar e sobreviver à dor, à
exploração e à violência extrema. Como bem disse Bell hooks, “A imagem
estereotipada das mulheres negras como fortes e poderosas dominou tanto
a consciência da maior parte dos americanos, que até a mulher negra é
claramente conformada com as noções sexistas de feminilidade e
passividade que ela pode caracterizar como resistente, dominadora e forte.
Muito do que foi percebido pelos brancos como um traço amazônico nas
mulheres negras foi meramente aceitação estoica de situações que não
tivemos poder para mudar” (2014, p. 60).

A imagem de mulheres negras que suportavam a adversidade que nenhuma


mulher branca supostamente seria capaz de suportar, constitui-se em um
sinal de “força animalesca subhumana” (HOOKS, 2014, p. 59). Trata-se de
uma concepção racista/sexista, informada por ideias acerca da natureza
feminina negra que emergiram durante o século XIX (HOOKS, 2014, p. 59).
Desse modo, o livro didático perpetua uma imagem colonial que tende a
naturalizar a violência sexual sofrida cotidianamente por essas mulheres em
nossa sociedade, desumanizando-as e excluindo-as como sujeitos de direito
humanos. Essa dimensão simbólica e estruturante do estupro, produzida na
intersecção entre escravidão e patriarcado, ainda tem efeitos imediatos,
pois as mulheres negras são as maiores vítimas de estupro no Brasil.

Sobre colonialismo e estupro de mulheres negras na África, a coleção Cenas


da História, ao tratar do tema “Partilha da África”, menciona o “extremo da
violência” no Congo, cometida pelos colonizadores belgas no fim do século
XIX, ao se permitir “o saque das vilas, o assassinato dos homens e o
estupro das mulheres”, estimando que “essas ações chegaram a vitimizar
entre 8 a 10 milhões de indivíduos” (GRANGEIRO, 2016, v. 3, p. 75). Nesse
enunciado observa-se que o destino dos homens é a morte, enquanto o das
mulheres é o estupro. Essa forma de tratamento do corpo das mulheres até
o último limite no que eles podem oferecer, denota uma violência e
exploração ainda mais cruel e sem precedentes sobre o corpo de mulheres-
colonizadas. Visto como alvo de ocupação e anexação, o estupro de seus
corpos expressa uma subjetivação marcada simultaneamente pela diferença
de gênero e raça. Esse ato de estupro expressa ainda a subjetivação dos
sujeitos brancos-masculinos no poder e no controle do corpo das mulheres-
colonizadas, constituindo-se em uma ferramenta do colonialismo patriarcal
e racista que ainda persiste no tempo presente.
Em tais memórias de estupros de mulheres negras em cenários de
dominação colonial e escravista observamos o caráter eurocêntrico da
epistemologia ainda dominante na escrita da história escolar e que incide
nas formas de inclusão dos povos afrodescendentes como sujeitos
subalternizados e vitimizados. Apesar dos avanços no combate à presença
de imagens preconceituosas e estereotipadas nos livros didáticos, colocados
pelos critérios de avaliação do PNLD e pelas leis 10.639/03 e 11.645/08,
ainda observamos uma série de preconceitos relacionados à história da
36
África e dos afrodescendentes nos livros didáticos (OLIVA, 2017, p. 49).

Estupros e prostituição forçada na Guerra de Canudos


Sobre a história do Brasil, uma narrativa sobre a Guerra de Canudos (1896-
1897) exposta na coleção Oficina de História, faz menção ao estupro dentre
as “cenas de extremo horror” retratadas pelos jornalistas que
acompanharam a última expedição militar a Canudos em 1867. Segundo os
autores, muitos foram assassinados e tiveram seus corpos queimados, mas
“como de horror foi o destino das meninas da comunidade, vítimas de
estupro e muitas delas obrigadas pelos soldados a se prostituir” (CAMPOS;
PINTO; CLARO, 2016, v. 2, p. 254). A expressão “como de horror” destaca
a continuidade e normalidade dessa prática na história. Assim, os estupros
e a prostituição forçada expõe uma situação precária de inferiorização,
violência, assujeitamento e exploração sexual imposta pelos soldados às
mulheres de Canudos. Trata-se de uma representação do estupro coletivo
como sanção social, que evidencia não só o poder, a supremacia e as
formas de governabilidade patriarcal do Estado brasileiro, mas também as
chaves de construção/reprodução de masculinidades viris nas guerras.

Embora os avaliadores do PNLD destaquem que a coleção Oficina de


História “incentiva o combate à violência de gênero e ao racismo” (BRASIL,
2017, p. 80), notamos que o enunciado sobre a guerra de Canudos tem
sérias implicações na educação para a superação da violência sexista e
racista contra as mulheres. Em determinados conflitos armados, os estupros
coletivos fizeram parte de campanhas sistemáticas e massivas de terror, e
por isso mesmo causam enorme espanto. No entanto, os modos de
rememorização destes estupros abrem uma enorme ferida nos livros
didáticos, ao fixar imagens de mulheres pobres e afrodescendentes, como a
maioria das mulheres de Canudos, em situação de horror, violência,
aprissionamento, sofrimento e morte. “Não que o horror não precise ser
estudado e conhecido, mas é preciso saber trabalhá-lo. (...) o ensino de
questões sensíveis e controversas não tem como objetivo chocar ou apenas
dar a conhecer eventos chocantes do passado. O objetivo é suscitar a
reflexão dos alunos. É preciso saber passar de fase, nesse jogo: da
sensibilização para a reflexão” (ALBERTI, 2014, p. 3).

Enquanto professores/as podemos assumir a tarefa de problematizar o


enunciado no livro didático, desvelando também a historicidade de suas
memórias e representações. É nesse sentido que podemos lançar, em sala
de aula, alguns questionamentos: como as mulheres de Canudos são
retratadas no livro didático? Que outras versões dessa história poderiam ser
apresentadas? Quais os significados e implicações do estupro e prostituição
forçada de meninas naquele contexto? Quem eram aquelas mulheres? Os
estupros coletivos são fenômenos restritos às guerras? Afinal, por que se
repetem em quase todas as guerras mencionadas nos livros didáticos?
Quais as consequências dessa violência para as mulheres?

Estupros nas guerras contemporâneas


A coleção História cita ainda os estupros de mulheres chinesas cometidos
pelos soldados japoneses em 1937, durante a Segundo Guerra Mundial, na
conquista dos territórios de Nanquim (SANTOS; FERREIRA; VAINFAS;
FARIA, 2016, v.3, p. 97). Trata-se de memórias traumáticas e bastante
37
controversas no tempo presente, pois tais atos de violência ainda são
interpretados como necessários para “manter a disciplina” das tropas e
proporcionar descanso e lazer aos soldados. O corpo destas mulheres
aparece como alvo de anexação, como um território a ser ocupado e
conquistado, cuja posse sexual devia ser distribuída entre os homens-
soldados, como corpo escravo, servil, concubino e de exploração sexual no
contexto de guerra.

Segundo Joanna Bourke, o trabalho de historicização do estupro deve se


situar “em oposição a explicações essencialistas tais como as da psicologia
evolutiva, que defende a existência de uma continuidade da conduta
sexualmente violenta, cujas origens remontam a nossos antepassados mais
longínquos e que inclusive podem se localizar nos genes (masculinos)”
(2009, p. 14. Tradução nossa). Os estupros demandam, portanto,
abordagens didáticas que exponham o seu caráter histórico-cultural, tendo
em vista o desvelamento de seus mecanismos de re-produção e
funcionamento em diferentes contextos. Rejeitando as concepções do
estupro como um fenômeno a-histórico, expressas na afirmação de que, por
natureza, todos os homens são estupradores em potencial, o ensino de
história pode nos mostrar que essa violência tem raízes em questões
políticas, econômicas e culturais concretas.

Já a coleção História Global traz um exercício baseado na leitura de um


pequeno relato das “monstruosidades” contra as crianças e mulheres judias
nos campos de concentração nazista. Uma parte desse relato diz que:

“(...) os sobreviventes se recordam primeiro das crianças. Falam dos bebês


arremessados vivos nos crematórios, dos moribundos corroídos pelas
doenças injetadas pelo médico de Auschwitz, doutor Josefe Mengele; dos
concursos de arremessos de crianças judias entre os guardas da SS.
Também falam das mulheres; as mais jovens estupradas repetidamente
antes de mortas, seus corpos usados como tochas humanas em fogueiras
de mortos – a carne delas, constataram os guardas, queima mais rápido.
Quando pergunta-se sobre as pilhas de corpos, as testemunhas lembram de
ratazanas mordiscando os cadáveres; de prisioneiros ainda vivos lutando
para se expelir de uma montanha de mortos; de mulheres grávidas
abortando fetos. E do cheiro, dizem todos.
II Guerra Mundial. Fábrica da Morte [Revista Veja Online, 2016]”. (COTRIM,
2016, v. 3, p. 333. Grifos nossos).

Novamente o horror vem à tona, mas com o objetivo de ressignificar tais


atos de estupros como “monstruosidades”. Trata-se de uma representação
que retira o caráter humano e histórico da violência sexual desencadeada
naquele contexto. Conferir sentidos a essa experiência dos estupradores
não é tarefa fácil. A desumanização selvagem dos estupradores estabelece
uma distinção e barreira fundamental entre “eles” e “nós”. No entanto,
como explica Bourke, a humanização dos estupradores, é ao mesmo tempo
algo positivo e perturbador: “positivo porque os retira da categoria de
monstros inumanos e, por conseguinte, faz com que suas ações sejam
suscetíveis de mudança; perturbador porque nos arriscamos a familiarizar e
acostumar em excesso com o terrível dano que provocam” (2009, p. 14.
Tradução nossa). Atentando para este problema semântico, é importante
38
que os livros didáticos tenham um cuidado na forma de nomear ou adjetivar
os estupradores, pois as maneiras estereotipadas de vê-los e tratá-los
(como monstros, irracionais ou loucos) não permite um enfrentamento mais
amplo desta violência na vida social, já que tende a encerrar este problema
no indivíduo, tratando-o (ou punindo-o) de modo isolado ou individual,
desconsiderando a persistência desse problema como um fato social
realimentado cotidianamente por meio de imagens, memórias e práticas
que subjetivam masculinidades dominantes na posse e violência de corpos
femininos.

A partir da leitura do depoimento acima, o livro pede aos/as estudantes que


debatam com os colegas as seguintes questões: “Quais seriam as origens
da violência e da maldade?” (COTRIM, 2016, v. 3, p. 333). O Manual do
Professor chama nossa atenção pela resposta que confere a essa indagação,
ao classificá-la como pessoal e explicar que se trata de um tema “complexo
e de amplitude filosófica”, propondo que “os/as estudantes devem
conversar com os/as professores/as de Filosofia e Sociologia e, tanto
quanto possível, ler autores que tratam do tema (Konrad Lorenz, Hannah
Arendt, Sigmund Fred etc)” (COTRIM, 2016, v. 3, p. 333). Não por acaso,
retira-se da história a responsabilidade de ofecer qualquer explicação para
essa violência qualificada como monstruosa, demonstrando dificuldades no
enfrentamento de temas sensíveis evocados por relatos perturbadores de
violência e injustiça.

As narrativas didáticas fixam a política de gênero das guerras


contemporâneas, construindo masculinidades/dominantes e feminilidades/
dominadas, tendendo a naturalizar a relação da masculinidade com a
guerra, bem como o estupro como forma de dominação e resolução de
conflitos. A violência de gênero como representação das injustiças e
crueldades em uma guerra tende a reduzir o protagonismo das mulheres na
história, pois seguem representando-as de forma negativa e estereotipada,
perpetuando a desigualdade e violência de tipo simbólico que ainda
predomina em nossa sociedade. É isso que podemos também observar na
imagem abaixo, de uma mulher nua e dominada nos braços de um homem,
junto a uma narrativa do livro História (volume 2) sobre as guerras pela
unificação da Itália no século XIX. A legenda diz: “Nesta imagem, a mulher
representa Roma; o homem que a segura Vítor Emanuel II; e o clérigo, ao
chão, o papa Pio IX.
39

IMAGEM 1: Desenho do século XIX. Autor desconhecido.


Fonte: SANTOS; FERREIRA; VAINFAS; FARIA, 2016, v. 2, p. 142.

Esta imagem serve como expressão do poder, vitória, força e superioridade


dos homens na história. A violência sexual contra as mulheres revela assim
a sua dimensão expressiva, colaborando na banalização de uma prática de
terror às mulheres. Ao orientar o nosso olhar e sentimentos para a
normalidade, indiferença e tolerância em relação às memórias de
dominação sexual, as narrativas didáticas ensinam a não ter empatia com
as vítimas, funcionando também como “pedagogias da crueldade” (SEGATO,
2016) contra as mulheres.

Para finalizar...
Após a Segunda Guerra Mundial, os livros didáticos, especialmente dos
países envolvidos nesse conflito, se tornaram alvo de vigilância e controle
por parte de instituições internacionais, como a Unesco, pelo receio de que
visões estereotipadas de grupos e populações pudessem instigar novamente
uma guerra entre nações (BITTENCOURT, 2011, p. 489). Hoje, as memórias
de estupros de guerra devem suscitar também preocupações e avaliações.
Trata-se de memórias domesticadas por histórias capazes de despertar
sentimentos misóginos e desejos de dominação sexual das mulheres como
forma de guerra, governo, resolução de conflitos e demonstração de poder
e masculinidades viris; constituindo-se em potentes referenciais políticos
onde o principal inimigo e oponente passa a ser o corpo das mulheres,
especialmente de mulheres racializadas.

É necessário que os livros didáticos não deixem de mencionar as resoluções


internacionais para os crimes de guerra, onde o estupro passa a ser
caracterizado como forma de tortura e genocídio (SÁNCHEZ, 2016, p. 229).
Além disso, a educação para a superação da violência sexual, demanda a
elaboração de narrativas didáticas que desnaturalizem as razões, os
significados e as implicações dessa violência, desvelando também as
conexões da violência de gênero com outros eixos de dominação (raça,
classe, etnia, etc.). A ênfase na violência sem a devida visibilidade do
protagonismo, resistência e identidade das mulheres que sofrem esta
violência na história, tende a cristalizar imagens e memórias de
vítimas/femininas e agressores/masculinos. Faz-se necessário trazer
memórias de atuação das mulheres nos mesmos cenários onde a violência
sexual aconteceu, para conferir-lhes também o status de sujeito histórico
nos enredos narrativos. Podemos, por exemplo, mostrá-las como
combatentes ou ativistas em organizações que tentam intervir em
processos de paz, a favor do desarmamento e prevenção às guerras
(SÁNCHEZ, 2016). Embora alguns livros didáticos tragam outras formas de
representação das mulheres nas guerras, ainda que de modo controverso,
destacando o seu protagonismo nas batalhas como combatentes,
vivandeiras (SANTOS; FERREIRA; VAINFAS; FARIA, 2016, v. 2, p. 221) ou
enfermeiras (GRANGEIRO, 2016, v. 3, p. 144), observa-se que os modos de
rememorização dos estupros de guerra integram narrativas que tendem a
40
fixar a violência que vitimiza e inferioriza as mulheres. Mais um motivo,
portanto, para que o ensino de história assuma o compromisso de ser uma
instância de valorização de subjetividades positivas e plurais para as
mulheres, no reconhecimento da memória como princípio fundador da
construção da igualdade de gênero.

Referências
Dra. Susane Rodrigues de Oliveira é historiadora e professora associada do
Departamento de História da Universidade de Brasília, atuando na área de
Teoria e Metodologia do Ensino de História. Este trabalho é resultado da
pesquisa de pós-doutorado realizada na Unicamp (2018) e no Instituto de
Investigaciones Feministas da Universidad Complutense de Madrid (2018-
2019).

Uma versão mais ampla deste texto foi publicada na Revista Tempo e
Argumento (Udesc). Cf.
http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/21751803112820194
66.

ALBERTI, Verena. O professor de história e o ensino de questões sensíveis e


controversas. Palestra proferida no IV Colóquio Nacional História Cultural e
Sensibilidades, realizado no Centro de Ensino Superior do Seridó (Ceres) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Caicó (RN), de 17
a 21 de novembro de 2014.
BERTRAM, Corrine C.; CROWLEY, M. Sue. Teaching about Sexual Violence in
Higher Education: Moving from Concern to Conscious Resistance. Frontiers:
A Journal of Women Studies, University of Nebraska, v. 33, n. 1, p. 63-82,
2012.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Produção didática de história:
trajetórias de pesquisas. Revista de História, São Paulo, n. 164, p. 487-516,
jan./jun. 2011.
BOURKE, Joanna. Los violadores. Historia del estupro de 1860 a nuestros
días. Barcelona: Crítica, 2009.
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Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2017.
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COTRIM, Gilberto. História global. 3ª ed., São Paulo: Saraiva Educação,
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Entrevista de Michel Foucault. Les Nouvelles, em 29/5/1984. In: ESCOBAR,
Carlos Henrique (org.). Michel Foucault (1926-1984). O Dossier: últimas
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1981. Lisboa: Tradução livre para a Plataforma Gueto, 2014.
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117, oct. 1998.
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VIGARELLO, Georges. História do Estupro: violência sexual nos séculos XVI-
XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
LIÇÃO DE RESISTÊNCIA: A ORGANIZAÇÃO FEMININA CONTRA
A DITADURA CIVIL MILITAR NO BRASIL
Alethéia Paula Lapas Prado

Nesse artigo, escrevo a respeito das diversas formas de resistência


articuladas pelas mulheres brasileiras durante a Ditadura Civil Militar [1964-
1985]. Falar sobre autoritarismo, relembrar o peso da mão opressora do
42 Estado e dos seus agentes sobre a população, é mais que um exercício de
memória, é uma lição para os nossos dias. O tempo presente, lega ao Brasil
o retorno de atores autoritários ao poder que, em movimentos constantes,
ameaçam o pleno funcionamento das instituições democráticas, cerceiam as
manifestações culturais, a produção intelectual e científica.

Além das desventuras políticas trazidas pelos atuais representantes de uma


plutocracia misógina, há os fantasmas que insistem em aparecer através de
setores da sociedade que manifestam simpatia e até evocam o retorno da
Ditadura Militar. De repente, essa cegueira coletiva começou a nos impedir
de identificar o nosso passado e as duras consequências de vinte e um anos
de governo ditatorial sobre o país. “Por ter se estendido ao longo de 21
anos, o regime militar impactou profundamente a sociedade e interrompeu
o curso de vida criativa de toda uma geração de brasileiros, com
consequências incalculáveis para a vida da Nação.” [BRASIL, 2010, p.12].

Diante dessa perspectiva, é essencial que a pesquisa, o estudo e o ensino


de História cumpram o papel pedagógico de lembrar a sociedade o quão
nocivo e obscuro são os períodos históricos regidos pelas arbitrariedades de
regimes de exceção. Atribui-se, desse modo, aos historiadores e
professores de História a tarefa de mostrar aos demais cidadãos “que a
inteligibilidade do tempo presente requer o conhecimento das experiências
daqueles que nos procederam, assim como o reconhecimento do passado
em comum.” [CAIMI, 2014, p.169]. É através do conhecimento histórico
que podemos perceber, por exemplo, nossa capacidade de resistência
diante de governos opressores. Se hoje somos um país democrático, ainda
que envolto em insistentes problemas, a história nos ensina que
conquistamos a democracia por meio de muita resistência.

A importância do conhecimento histórico acerca da Ditadura Civil Militar


brasileira e as diversas formas de resistência a esse sistema, ultrapassa,
sobremaneira, o âmbito político. Há muitas especificidades do tema que são
enriquecidas à luz de abordagens como o estudo de gênero. Assim, é
fundamental que todos compreendam que os movimentos de resistência
que baniram a Ditadura e nos trouxeram até aqui, eram formados pelos
mais diferentes agentes socias, contando com efetiva participação feminina.

Por meio do estudo de gênero, percebermos a intensa participação das


mulheres, na luta contra poder exercido pelos militares. Contrariando os
papéis impostos pela sociedade do seu tempo, as mulheres mostraram que
eram transgressoras ao não aceitar o regime de exceção. Elas se
mobilizaram, participando de organizações partidárias, integrando
sindicatos, atuaram na luta armada e encabeçaram o movimento pela
Anistia.
Nesse sentindo, o presente artigo tratará, a princípio, da influência da
“segunda onda” do feminismo no Brasil, a organização de movimentos
sociais a partir da liderança feminina. Posteriormente, falaremos sobre as
torturas praticadas contra as mulheres brasileiras no contexto ditatorial e
destacaremos ações coletivas como das revolucionárias que participaram da
Guerrilha do Araguaia e, individuais, como as da mato-grossense Jane
Vanini, que atuou contra as ditaduras brasileira e chilena.
43
Este texto ampara-se nas seguintes bibliografias, nos livros “Direito à
memória e à verdade: luta, substantivo feminino”, de Tatiane Merlino e Igor
Ojeda, “Habeas corpus: que se apresente o corpo”, produzido pela
Secretaria de Direitos Humanos, o artigo “Feminismo e gênero: uma
abordagem histórica, de Ana Maria Marques. Para compreensão do contexto
histórico utilizamos o livro “Uma História do Brasil” de Thomas E. Skidmore,
e referências de apoio como os sites Memória da Ditadura, Tortura Nunca
Mais, além de documentários como “Ditadura Militar e Violência Sexual” e
“Memórias Femininas da Luta Contra a Ditadura Militar.”

Ditadura, Feminismo e Movimentos Sociais


Ao longo das décadas de 1960 e 1970, a “segunda onda” do feminismo ou
“feminismo da diferença”, influenciou pensamentos e atitudes em diversas
partes do mundo. Nessa época, as ideias feministas cresceram em conjunto
com os movimentos negro, pacifista e correntes progressistas. “No
‘feminismo da diferença’, a Mulher (com letra maiúscula) tornou-se o sujeito
ativo que necessita romper com a condição de dominação masculina.”
[MARQUES, 2015, p. 13]. No Brasil, por conta da Ditadura Militar, além de
romper com a dominação masculina, as mulheres tiveram que resistir a um
regime político opressor.

Assim, naquele contexto, o engajamento na luta contra a Ditadura foi


essencial para as feministas brasileiras. Todavia, se por um lado a
participação feminina nos movimentos em oposição ao governo militar era
efetiva, por outro, elas ainda tiveram que enfrentar uma realidade em que
prevalecia o masculino, ou seja, a maior parte dos postos de comando nas
associações partidárias ou organizações revolucionárias ainda ficavam sob a
responsabilidade do homem. Para muitos deles, a luta de classe estava
acima da luta pelos direitos das mulheres.

A cultura opressora do governo militar via o movimento feminista como


uma ameaça. “Por questionarem os padrões de família e de feminilidade, as
organizações feministas colidiam com a ideologia disseminada pelo regime”
[MEMÓRIAS DA DITADURA, 2017]. As mulheres resistiam ao não
assumirem os estereótipos de esposa e donas de casa, pacíficas e ordeiras,
determinadas pelo governo e setores conservadores daquela sociedade. “Ao
mesmo tempo, que se organizavam em movimentos de protestos e de
indignação, nas ruas, praças, dentro das universidades, das escolas,
igrejas, fábricas, sindicatos, campo.” [MERLINO, OJEDA, 2010, p. 31].

A política econômica praticada pelos militares gerou intenso arrocho salarial


e foi sentida por trabalhadoras e trabalhadores que nas áreas periféricas
dos grandes centros urbanos do país também passaram a se mobilizar,
sobretudo, a partir de 1975, período em que tem início uma distinção “lenta
e gradual” do regime autoritário. Como afirma SKIDMORE, “na década de
1970, as mulheres trabalhadoras organizaram um movimento contra a
carestia que desafiava a política econômica do governo. O movimento
ajudou a dissipar o medo da autoridade por parte das mulheres e lhes deu
confiança para trabalharem juntas.” [2000, p.286]. Nesse cenário, as
dificuldades econômicas uniam as mulheres das classes populares que
passaram a reivindicar junto ao poder público moradias, escolas, creches,
postos de saúde, etc.
44

A exploração das trabalhadoras e trabalhadores do campo, desassistidos do


apoio governamental, e os incentivos dados aos grandes latifundiários,
fizeram surgir diversas mobilizações das populações rurais pelo país. Muitas
camponesas trabalhavam como “boias-frias”. A falta de perspectivas, “o
ambiente miserável de trabalho e a proximidade das mulheres entre si,
levou-as a organizar poderosos sindicatos rurais. Em 1984, 60 mil boias-
frias conseguiram reconhecimento sindical.” [SKIDMORE, 2000, p.287].

A organização de movimentos femininos também auxiliou na criação de


comitês em favor da anistia. Muitos desses comitês foram criados por
iniciativa de mães ou companheiras de presos ou desaparecidos políticos.
Mulheres como Tereza Zerbini, criadora do Movimento Feminino pela
Anistia, em 1975 ou Iramaya de Queirós Benjamin, que teve dois filhos
presos, torturados e exilados durante a ditadura, e foi uma das fundadoras
do Comitê Brasileiro pela Anistia. “Inicialmente organizada por mulheres,
como o Movimento Feminino pela Anistia e, depois, pelos Comités
Brasileiros pela Anistia (CBAs) a campanha pela anistia foi fruto da
indignação de setores da sociedade brasileira que queriam dar um basta à
Ditadura.” [MERLINO, OJEDA, 2010, 31].

Desse modo, é possível compreender que as lutas empreendidas pelas


mulheres colaboraram para o gradativo enfraquecimento do regime
autoritário no Brasil. Várias pautas debatidas pelo movimento feminista
brasileiro durante o governo militar, como a violência contra as mulheres,
direitos de reprodução e a sub-representação feminina no campo político,
continuam extremamente atuais e ainda em nossos dias provocam muita
discussão.

A Tortura como Instrumento de Coerção e a Ação Revolucionária


Feminina
O período entre 1968 e 1974, é conhecido como a fase mais implacável da
Ditadura, por contra do controle exercido pelos militares da chamada “Linha
Dura” das Forças Armadas. É a época marcada pela instituição do AI5, 13
de dezembro de 1968, que entre outas ações, fechava o Congresso
Nacional, cassava mandatos de opositores ao governo autoritário e fazia
forte censura à imprensa. É durante esse período, que ocorreu a maior
ofensiva da Ditadura contra a oposição, sobretudo, aos grupos armados.
“Em 1974, os militares já haviam derrotado os grupos de guerrilha urbana e
completavam a última campanha de aniquilamento da Guerrilha do
Araguaia.” [MERLINO, OJEDA, 2010, P.30].

Durante esse período, a tortura passou a ser a linguagem usada pelo Estado
para se comunicar com a oposição. Todo o tipo de violência poderia ser
usada contra os que não se subordinassem às determinações autoritárias
dos que ali representavam o governo. Para as militantes femininas, as
torturas eram acompanhadas de abusos psicológicos e violência sexual. “O
corpo da mulher, sempre objeto de curiosidade, tornou-se presa do desejo
maligno do torturador e ficou à deriva em suas mãos.” [ARANTES, 2010, p.
33].

Assim, além de toda a força do Estado opressor, os agentes torturadores,


45
detentores de referenciais simbólicos marcados pela hierarquia do
masculino sobre o feminino, da relação pretensamente natural [SCOTT apud
MARQUES, 2015, p. 14] que sobrepõe o papel do homem ao da mulher,
utilizava de toda forma de intimidação e violação quando uma militante era
torturada, pois ela transgredia os padrões de gênero já estabelecidos. A
cultura machista, alimentada historicamente por abusos cometidos pelo
colonizador às mulheres indígenas ou as atrocidades cometidas por feitores
ou senhores sobre as suas escravas, legitimava agora as ações dos agentes
torturadores do Estado às cidadãs brasileiras.

De acordo com Glenda Mezarobba, no documentário “Ditadura Militar e


Violência Sexual”, a violência sexual/ gênero foi usada ao longo de toda a
Ditadura Militar como método de repressão e tortura. As mulheres
torturadas descreviam que recebiam choques nos mamilos e genitais, eram
obrigadas a se despirem no momento da prisão. Mulheres grávidas eram
levadas para assistir os companheiros sendo torturados, ou ainda, eram
torturadas para que perdessem seus bebês e, perdiam.

O livro “Direito à memória e à verdade: luta, substantivo feminino”, de


Tatiana Merlino e Igor Ojeda, reúne histórias de mulheres torturadas,
desaparecidas e mortas na resistência à ditadura. Todos os relatos citam
que as torturadas eram alvo de insultos, humilhações, violações ao corpo
feminino, ameaças, enfim, toda ordem de violência era permitida. Um
desses depoimentos, de Yara Spadini, explica com clareza todo o
sentimento dos representantes da repressão estatal em relação à
participação feminina na militância revolucionária: Havia um desprezo por
parte deles, junto com a ideologia, vinha essa humilhação pelo fato de ser
mulher, como se a gente estivesse extrapolando o nosso papel de mulher.
Era como se você merecesse ser torturada porque estava fazendo algo que
não deveria ser feito. [MERLINO, OJEDA 2010, p.96].

Outra marca da brutalidade da Ditadura Civil Militar Brasileira, foi a


repressão empreendida aos membros da Guerrilha do Araguaia, que se
desenvolveu entre 1972 e 1974, à margem esquerda do rio Araguaia, no sul
do Pará, sob a direção do PC do B (Partido Comunista Brasileiro). Os
membros do partido acreditavam que a derrubada da ditadura e a tomada
do poder deveria começar pelas áreas rurais com o apoio de camponeses,
com ocorreu à China Maoísta.

Integrando-se às comunidades locais, os membros da guerrilha dedicavam-


se a ocupações típicas dos camponeses da região. As mulheres que
compunham o grupo revolucionário, geralmente desempenhavam as tarefas
de professoras, parteiras, lavradoras, caçavam e auxiliavam na derrubada
da mata. Eram divididos em destacamentos, geralmente os postos de
comando eram reservados aos homens. Porém, havia exceções como a
baiana “Dina”, Dinalva Oliveira Teixeira, que ocupou o cargo de vice
comandante do seu destacamento “C”. “Única mulher da guerrilha a
alcançar um posto de comando. Destacava-se por sua habilidade militar
para escapar de ataques inimigo e por participar de vários choques
armados.” [MERLINO, OJEDA, 2010, 137].

Por representarem uma séria ameaça à ordem instituída, os guerrilheiros do


46
Araguaia foram alvos de três operações de combates efetuadas pelo
governo militar, a partir de 1972. “Um corpo da elite, treinado de 10 mil
soldados, matou e capturou todos os 69 guerrilheiros na área. Mas, isso
levou dois anos de repetidos assaltos, de modo semelhante a Canudos.”
[SKIDMORE, 2000, p.234]. Em janeiro de 1975 a guerrilha estava liquidada.

Os homens e as mulheres que morreram no Araguaia eram muito jovens, a


maioria tinha menos de trinta anos de idade. Seus corpos permanecem
como desaparecidas até os nossos dias. “Uma diretiva de Planejamento da
Operação Papagaio, realizada contra os guerrilheiros, em 1972, mencionava
que antes do sepultamento deveriam ser tomadas os elementos de
identificação.” [BRASIL, 2010, p.95]. Era a forma das forças armadas
silenciarem a memória dos acontecimentos. Não bastava “sumir” com os
prisioneiros e prisioneiras. Era necessário torna-los invisíveis. A história da
Guerrilha do Araguaia, nunca deveria ser contada, por isso, a ocultação dos
corpos. “A não entrega dos corpos dos opositores políticos mortos as
famílias é um dos legados mais dolorosos do regime militar”. [BRASIL,
2010, p.15].

A história da Guerrilha do Araguaia é também uma história de resistência


feminina, história de Marias, Helenira, Lúcia, Luzia, Jana, Áurea Eliza,
Walquíria, Telma, Suely, Dinalva. História de um idealismo levado às
últimas consequências. Ao conhecer a história dessas mulheres é impossível
não ficar tocada com a capacidade de cada uma em fazer as suas escolhas
e pensar em todos os sentimentos que as movia.

Da mesma forma, que nos sensibilizamos com a história da mato-grossense


Jane Vanini. Assim como as revolucionárias do Araguaia, Jane escolheu ser
clandestina e participar de grupos de esquerda, primeiro no Brasil e, depois,
no Chile, onde integrou o MIR (Movimento de Izquierda Revolucionária) que
tentava derrubar a ditadura do general Pinochet. Nesse país, assumiu
outras identidades, Gabriela Hernandez e Carmem Carrasco Tápia. Casada
com José Carrasco Tápia, Pepe Carrasco, um dos dirigentes do MIR, “foi
presa na sua casa após 4 horas de resistência contra os policiais. Na casa,
ela deixou um bilhete para Pepe dizendo: Perdóname mi amor, fue un
último intento por salvarte.” [MERLINO, OJEDA, 2010, p.163]. Jane foi
morta em 6 de dezembro de 1974.

O bilhete e a atitude de Jane junto à Pepe, simbolizam o humanismo


presente nessas ações de resistência. Revela uma rede de solidariedade e
afeto que ajuda a resistir às dores da prisão ou da tortura. Nos ensina que
as relações humanas, principalmente em tempos opressivos, podem nos
comover e nos fortalece.
Consideração Finais
Podemos compreender, portanto, que a “segunda onda” do feminismo, no
Brasil, ocorreu paralela à Ditadura Militar. Nesse contexto, além de romper
com a dominação masculina, as mulheres tiveram que se organizar e
resistir ao autoritarismo do Estado. Percebemos que diversas redes e
formas de resistência passaram a ser construídas por essas mulheres.

Nos centros urbanos, grupos femininos envolviam-se num crescente


47
ativismo político tanto através da participação em organizações opositoras
ao governo, quanto requerendo os seus direitos junto ao Estado, como o
acesso à creches, escolas, ou postos de saúde. No campo, as precárias
condições de trabalho, uniam as trabalhadoras e as mobilizavam na criação
e direção de sindicatos rurais. Do mesmo modo, a união feminina auxiliou
na formação dos Comitês em favor da Anistia, indispensáveis para
pressionar a classe dirigente na aprovação desta Lei. Algo que foi possível
em 28 de agosto de 1979.

Para provar a sua força e combater a oposição, o Estado Ditador Brasileiro


passou a dispor de um amplo aparato de torturas. A violência de gênero
caracterizou as torturas praticadas contra militantes femininas no Brasil.
Assim, os abusos sexuais, a violação do corpo, as humilhações, os insultos
e ameaças contra a mulher, ou seu companheiro e filhos, eram práticas
cotidianas nos quartéis. Elas visavam impor a ideologia do Estado, que
pregava a suposta superioridade do masculino sobre o feminino.

Muitas mulheres também ocuparam espaço nos movimentos de guerrilha.


Na guerrilha do Araguaia, por exemplo, elas atuaram como professoras,
parteiras, lavradoras, além de pegarem em armas para combater o sistema
vigente. As guerrilheiras e guerrilheiros do Araguaia, partilhavam da ideia
que uma sociedade sem classes poderia ser implantada no país a partir de
uma revolução camponesa. Entretanto, a força do Estado opressor
transformou os ideais da guerrilha do Araguaia em utopia.

A história das mulheres da Guerrilha do Araguaia, assim como da militante


mato-grossense, Jane Vanini, morta pela repressão chilena, são exemplos
de resistência de protagonismo feminino. Visto que essas mulheres fizeram
suas escolhas e levaram o idealismo político às últimas consequências. A
atitude que todas elas tiveram em favor da defesa da liberdade e da justiça
social é algo extremamente necessário hoje, pois, em tempos de quase
inércia e cegueira coletiva em relação às posturas políticas, a memória e a
história podem nos ensinar alguns caminhos para a mudança.

Referências
Alethéia Paula Lapas Prado, Professora de História para os anos finais do
ensino fundamental, na Rede Pública Estadual de Mato Grosso. É mestre em
Ensino de História pelo Programa Prof. História – UFMT.

ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. IN MERLINO, Tatiana;


OJEDA, Igor (ORGs). Direito à memória e à verdade: luta substantivo
feminino. São Paulo: Editora caros Amigos, 2010.
BRASIL, Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos. Habeas
Corpus: que se apresente o corpo – Brasília: Secretaria dos Direitos
Humanos, 2010.
CAIMI, Flávia Heloisa. Geração Homo Zappiens na Escola: novos suportes
de informação e aprendizagem histórica. In: Ensino de História Usos do
Passado e da Memória. MAGALHÃES, Marcelo, Rocha Helenice, RIBEIRO,
Jaime, CIAMBARELLA, Alessandra, (ORG). Rio de Janeiro. Editora FGV,
2014.
48
MARQUES, Ana Maria. Feminismos e Gênero: uma abordagem histórica.
Revista Trilhas da História, Três Lagoas, v.4. n.8. jan-jun, 2015. P.06-19.
http://seer.ufms.br/index/php/RevTH/aricle/view/556
MERLINO, Tatiana; OJEDA, Igor (ORGs). Direito à memória e à verdade:
luta substantivo feminino. São Paulo: Editora caros Amigos, 2010.
SKIDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
1998.
Documentário: Ditadura e Violência Sexual/ Glenda Mazarobba – Youtube
https://www.youtube.com/watch?v=0rY9KK69XXE
Site: http://memoriasdaditadura.org.br/mulheres/index.html acesso em:
19/08/2019
SOBRE VESTIR O OUTRO: APONTAMENTOS TEÓRICOS SOBRE
OS PERSONAGENS MASCULINOS E FEMININOS NO COSPLAY
Alexia Henning e Vanda Fortuna Serafim

O presente artigo está vinculado à pesquisa de Iniciação Científica,


intitulada: “As tendências explicativas e teóricas do cosplay: uma pesquisa
bibliográfica” , cujo objetivo consiste em estudar o cosplay mediante a um
levantamento bibliográfico a respeito do tema, com a finalidade de perceber 49
quais são as áreas de conhecimento que se apropriam da discussão acerca
do cosplay e assim, tornando possível uma análise no que remete as
representações culturais associadas as práticas cosplay. Para a presente
discussão, utilizaremos o trabalho de Victor Turner [1974], e Carolina
Furukawa [2008], que nos permitirão uma compreensão na representação
do cosplay no campo da antropologia e psicologia. Em certo momento
faremos uso da obra de Erving Goffman [2002] que auxiliará com sua visão
sob a perspectiva sociológica. E tentaremos problematizar as reflexões de
Otavia Alves de Cé [2014] sobre a prática do cosplay, pensando na
experiência das mulheres praticantes ao incorporar personagens
masculinos.

Em primeiro lugar, faz-se necessário entender o significado de cosplay. Tal


prática consiste no emprego das palavras em inglês costume, traje/fantasia,
e play ou roleplay, brincadeira/interpretação; ou seja, diz respeito a um
hobby [passatempo] que consiste em práticas de comunicação por jovens
que se vestem e elaboram uma atuação de acordo com seus personagens
preferidos [NUNES, 2013].

A origem dessa atividade provém do final da década de 1930 nos Estados


Unidos da América, em uma convenção de ficção científica, sendo
adaptada e renovada na década de 1990 no Japão, conforme sua cultura
[NUNES, 2013]. Contudo o que nos interessa é: como esta atividade
difundiu-se no Brasil? De acordo com as análises realizadas no projeto, ao
focarmos o surgimento dessa prática no Brasil acredita-se que chegou no
ano de 1996 com a primeira convenção de mangás e animes no país, o
evento chamado Mangacon [BARBOZA e SILVA, 2013]. O evento, ficou
marcado por ser o primeiro encontro que reuniu admiradores, fãs de
mangás e animes no país em companhia com o crescimento da cultura
jovem que expandiu o consumo do mesmo.

Dessa maneira, destacamos o evento em questão, foi realizado na cidade


de São Paulo pela ABRADEMI – Associação Brasileira de Desenhistas de
Mangá e Ilustrações. No ano de 1996 a ABRADEMI comemorou seu
aniversário de fundação com exposição de mangás, animes, esculturas dos
personagens dessa mídia [mangás/animes], música, como também o
lançamento de uma revista chamada Anime Club que abordava matéria
sobres cosplayers [praticantes da atividade] do mundo a fora. Por iniciativa
da Associação que tal prática teve seu primeiro contato no Brasil, sendo
confeccionada e usada por Cristiane A. Sato, a primeira cosplayer a
participar de convenção no país, pois o título de fato desconsiderando
eventos desse gênero é creditado ao Diego Fernando Ferreira, ao usar uma
fantasia de Saint Seya [Personagem fictício da série de mangá Saint Seiya
criada por Masami Kurumada] no Carnaval em Rio Claro-SP
[www.abrademi.com – autor: Francisco Noriyuki Sato].

A notícia da nova atividade percorreu sobre o Brasil, o que gerou interesse


de vários fãs e possivelmente futuros cosplayers. No mesmo ano, meses
depois do primeiro evento de comemoração, a ABRADEMI realizou de fato o
primeiro Concurso de cosplay. Portanto, destacamos que a prática, em
geral, estará associada com os eventos que reúne admiradores do universo
50
de animes e games.

Ao longo dos anos esses eventos possibilitaram a criação de um espaço


importante aos cosplayers com a realização de concursos com diversas
modalidades. Portanto, afirmamos que esta prática já se encontra anexada
a cultura brasileira, devido aos vastos eventos/convenções estabelecidos ao
ano. Todavia essa prática não ficou apenas voltada para a cultura do
oriental, pois também teve a introdução de diversos ícones da cultura geral,
tais como cantores de singles pop, videogames, literatura e cinematografia.
Posto isto, podemos notar que há um apreço e um apoio muito grande pela
cultura pop nos dias atuais, marcada principalmente pela prática cosplay.

Exposto isso, o presente artigo irá contar com análises a respeito das
práticas e representações culturais associadas a esta modalidade. Sendo
assim, o conceito aqui proposto sobre a palavra cosplay, pode ser entendido
como uma amostra de afinidade e identificação por uma personagem
favorita ou admirada em determinadas narrativas, levando a uma
reprodução e performance inspirada nestas personagens.

Desta forma, início algumas abordagens para o desenvolvimento desse


artigo com a seguinte citação:

“A indumentária como objeto de pesquisa é um fenômeno social completo


pois apresenta simultaneamente um discurso histórico, econômico,
etnológico e tecnológico e, pode-se apontar também, para uma linguagem
religiosa, na acepção de um sistema de comunicação. Além de ser um
sistema de signos, por meio dos quais os seres humanos delineiam a sua
posição no mundo e a sua relação com ele, funciona como um sistema
normativo que aponta para duas direções: de um lado as roupas
tradicionais, de outro lado as roupas da moda.” [SERAFIM, 2013, p.71].

Sendo assim, é vantajoso salientarmos também a questão da indumentária


xamânica que, segundo Eliade [2002] compõe uma manifestação do
sagrado e símbolos cósmicos. Isto é, ele expõe como a as práticas
xamânicas giram em torno desse fenômeno:

“A indumentária representa, em si mesma, um microcosmo religioso


qualitativamente diferente do espaço profano circundante. De um lado,
constitui um sistema simbólico quase completo e, de outro, está
impregnado, pela consagração, de forças espirituais múltiplas e,
principalmente, de "espíritos". Pelo simples fato de vesti-la - ou de
manipular objetos que a substituem - o xamã transcende o espaço profano
e prepara-se para entrar em contato com o mundo espiritual.” [ELIADE,
2002, p.170].
Posto esses dois excertos, podemos observar que os cosplayers ao fazerem
o uso do vestuário pode ser entendido como um conjunto de peças e
acessórios que o ajudam a compor o traje, contendo consigo múltiplas
funções e origens complexas [NACIFLL, 2007]. No que diz respeito ao traje,
isto é, o figurino, a partir de um ponto de vista do campo das artes cênicas,
é um componente essencial para o espetáculo, sendo encarado como um
objeto consagrado ao personagem, materializando-o e o privilegiando
51
[CORTINHAS, 2010].

Sendo assim, o estudo da performance de Victor Turner [1974] se encaixa


ao tema da presente discussão, visto que o mesmo está ligado a um campo
de estudo interdisciplinar, envolvendo uma compreensão de aspectos
artísticos como também da vida cotidiana. Há uma percepção no que diz
respeito a vida social, por meio dos movimentos dialéticos envolvendo uma
estrutura social.

O conceito elaborado por Turner [1974]: communitas, corresponde a uma


forma de antiestrutura constituída pelos vínculos entre os indivíduos ou
grupos sociais alimentados pelas práticas rituais, isto é, compartilham uma
condição “limiar” [NOLETO,2015]. Essa condição “limiar” possibilita o grupo
de cosplayers uma existência entre dois planos diferentes. Pois, o que
caracteriza o cosplay e o difere do simples ato de se fantasiar, é que além
de criar os trajes, também há uma interpretação do personagem escolhido,
reproduzindo os traços de sua personalidade como postura, falas e poses
típicas:

“Em todo caso, na medida em que os outros agem como se o indivíduo


tivesse transmitido uma determinada impressão, podemos ter uma
perspectiva funcional ou pragmática, e considerar que o indivíduo projetou
“efetivamente” uma certa definição da situação e “efetivamente” promoveu
a compreensão obtida por um certo estado de coisas” [GOFFMAN, 2002,
p.16].

Mas aí surge a seguinte indagação: o que leva uma pessoa a se vestir de


um personagem fictício por livre e espontânea vontade no mundo atual?!
Acreditamos que, a partir de um ponto de vista da psicologia, ao
interpretarem o personagem escolhido lidam com a realidade de forma
subjetiva, visando uma condição favorável ao encarar certas situações do
cotidiano [FURUKAWA, 2008]:

“Mesmo quando nenhuma dificuldade pesa, pode emergir a tentação de


desligar-se de si mesmo – nem que seja por algum tempo – para fugir das
rotinas e preocupações. Qualquer desobrigação é bem-vinda, ela permite
desapegar-se por um instante.” [LE BRETON, 2018, p.10].

Dessa forma, podemos fazer uma alusão com a concepção sobre transe,
possessão e consequentemente o êxtase religioso, o qual Lewis [1977]
aborda. Ele expõe em sua obra: “êxtase religioso: um estudo antropológico
da possessão por espírito e do xamanismo” como o transe se configura,
dado que ele emprega um sentido médico a palavra como: “estado de
dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário, e,
frequentemente, por automatismo de ato e pensamento, representados
pelos estados hipnótico e mediúnico” [LEWIS, 1977, p.41], isto é, significa a
ausência temporária ou completa da alma do indivíduo, representando até
mesmo uma possessão.

Segundo o autor, Lewis [1977], o transe induz o ato de pensar e decorrente


dele vem o termo possessão que é caracterizado pela perda do domínio do
corpo. E por último, ele traz uma discussão a respeito da tomada do homem
52
pela divindade, o êxtase religioso.

Sabemos que ao falarmos disso, logo vem à mente a experiência religiosa a


quem se entrega de corpo e alma a determinada crença [SILVA; LANZA,
2009]. Diante disso, gostaria de destacar a semelhança entre o êxtase e o
tema abordado.

Como Lewis [1977] ressalta em sua obra, os estados de transe podem ser
induzidos por diversas formas de estímulos. Portanto, ao pensarmos no
indivíduo em um estado de transe, ele estaria obtendo uma condição limiar
entre os dois planos. A pessoa, ou melhor, o cosplayer, por trás da
personagem precisa ser apagada, para assim dar espaço somente à
personagem [CÉ, 2014].

Mas como podemos ver o significado do êxtase religioso nessa atividade? É


interessante notar um aspecto muito importante, o comportamento
emocional presente na persuasão da narrativa, visto que:

“Uma experiência intensa de “transporte”, por sua vez, reforça o impacto


persuasivo da informação narrativa sobre as crenças dos leitores, onde a
magnitude da necessidade de uma pessoa de se envolver emocionalmente
em algo determina em que medida ela experimenta o “transporte” e é
persuadida pelas informações apresentadas” [MARLET, 2016, p.81].

Sendo assim, segundo Lewis [1977] essa tomada da divindade é recordada


como uma experiência intensa [PAES, 2017], sendo possível assimilar com
a ideia de transportation apresentada por Marlet [2016], pois há situações
as quais os indivíduos podem experimentar certas mudanças.

Essa experiência proporcionada pelo mecanismo de transportation: “o


campo do fenômeno pode se tornar o mundo da história mais do que a
realidade física em torno do indivíduo, o qual pode perder sua consciência
do “eu” como uma entidade distinta.” [MARLET, 2016, p.64]. Em outras
palavras, os cosplayers experimentam histórias cruéis, divertidas, mórbidas
que são socialmente condenadas, pressupondo um distanciamento da
realidade pois pegam a vida desses personagens e usam como passe para
recriar suas ações cotidianas [ALMEIDA, 2017].

Dessa forma, o cosplayer empresta seu próprio corpo e, sendo uma das
grandes responsáveis, a empatia ao se identificar com o personagem de
determinada narrativa [SOARES, 2013]. Contudo, o êxtase em se fantasiar
pode variar, mas a sensação de diversão e idealização de uma vida livre das
normas é um fator que prevalece majoritariamente, pois esses cosplayers: “
Eram jovens/as que encontravam, nessa prática mutável e flutuante, uma
maneira de se transformarem em algo que não conseguem ser ou atuar em
suas experiências cotidianas e adquirir um reconhecimento pelas
habilidades construídas para esse fim. ” [ALMEIDA, 2017, p.179].

No crossplay, uma vertente da palavra cosplay na qual o adepto da


atividade interpreta um personagem do sexo oposto, podemos captar um
rompimento das limitações de gênero o que proporciona aos seus
participantes representações e performances cada vez mais distintas dos
53
seus habituais [CÉ, 2014]. Sendo assim, a Otavia Alvez Cé [2014] em seu
trabalho sobre as representações do papel da mulher sob ponto de vista da
área de linguística aplicada, traz uma abordagem intrigante quando a
mesma faz uma relação dos adeptos da prática crossplays com os
crossdess. O crossdress é termo que diz respeito ao ato de se vestir e
performar utilizando objetos associados ao sexo oposto.

Dessa maneira, vale ressaltar o termo representação discutido por Erving


Goffman [2002], pois refere-se a uma atividade completa a qual um
indivíduo, por um determinado período, se passa caracterizado diante de
um grupo de observadores. Em vista disso, tanto as práticas de
crossdresses como a de crossplays não possuem relação com a orientação
sexual, sendo essa prática limitada ao seu vínculo social, ou melhor à sua
esfera performática [CÉ, 2014].

As visões são de performatividade, de uma forma mais convencional, são as


apresentações culturais as quais nos possibilita imaginar a existência de um
cenário, isto é, o suporte para a representação. Portanto, Goffman [2002]
para além do termo de representação traz também o termo fachada,
referindo a um comportamento padronizado, seja ele intencional ou
inconsciente empregado ao indivíduo durante o ato:

“Além do fato de que práticas diferentes podem empregar a mesma


fachada, deve-se observar que uma determinada fachada social tende a se
tornar institucionalizada em termos das expectativas estereotipadas
abstratas às quais dá lugar e tende a receber um sentido e uma
estabilidade à parte das tarefas especificas que no momento são realizadas
em seu nome. A fachada torna-se uma “representação coletiva” e um fato,
por direito próprio. [...] Dada que as fachadas tendem a ser selecionadas e
não criadas, podemos esperar que surjam dificuldades quando os que
realizam uma dada tarefa são obrigados a selecionar, para si, uma fachada
adequada dentre muitas diferentes” [GOFFMAN, 2002, p.34].

Deste modo, o cosplay é inserido nessa performance cultural, em um dado


contexto e local adequado e, sendo a atuação uma das bases para a
performance [CÉ, 2014], a mesma constituí a fachada social mencionada no
excerto.

Contudo, segundo as abordagens de Otavia Alvez de Cé [2014] que, ao


nosso ponto de vista é indispensável, podemos fixar o nosso olhar para essa
questão da performance no que diz respeito a realidade do gênero, ou seja,
como a autora nos esclarece: “A ideia de masculino ou feminino é apenas
ficção existente no imaginário humano, ditada pelas normas de uma
sociedade” [p.106]. Entretanto, normas são estabelecidas, impondo-nos
uma ideia de como se portar conforme o sexo biológico.

Posto isto, podemos dizer que de acordo com regras encontradas nas mais
diversas sociedades, os gestos e comportamentos são o que demarca uma
identidade de gênero. Vale ressaltar que não existe uma maneira certa de
comportamento, mas sim padrões impostos [CÉ, 2014]. Logo, os adeptos
da prática crossplay ao assumirem uma performance de gênero subversiva
54
em um primeiro momento pode ser um choque, mas o mesmo é
considerado “menos nocivo” quando relacionado a um palco e/ou
espetáculo.

Segundo Le Breton [2018], somos movidos por valores, representações,


modelos, papéis e afetos, pois a existência social é dita por meio da nossa
capacidade de assumirmos diversos papéis sociais levando em consideração
o público, portanto: “Quando ele encarna um de seus personagens no
cenário social, os outros são colocados entre parênteses. Alguns sem
alhures, em outro contexto, fora do papel que são acostumados a vê-lo
exercer.” [p.196].

Apesar de Le Breton [2018] estar se referindo aos papéis que assumimos


cotidianamente, podemos associar sua reflexão ao conceito de subversão de
gênero na prática crossplay. Visto que, tal atividade exige uma
transformação física e até mesmo mental para construção de um novo
corpo [CÉ, 2014]. Portanto, podemos afirmar também que para além dos
seus significados, as imagens passam a perpetuar em nossas vidas de modo
que desejamos a ser como elas [SOARES, 2013].

Ao analisarmos o trabalho de Cé [2014], percebemos que ao tratar do


termo crossplay, a mesma refere-se às praticantes mulheres. A apropriação
e interpretação de personagens masculinas pode remeter uma libertação da
opressão e consequentemente a fuga dos papéis de gênero, porém a autora
afirma que esse processo de subversão pode acabar sendo revelado como
silenciamento do feminino em prol do masculino. Portanto para Cé [2014]:
“Essa “deformação” reforça a supremacia do homem sobre a mulher, isto é,
preserva a hegemonia dos valores do universo masculino.” [p.171].
Contudo:

“Mesmo se cada mulher se vestisse de acordo com sua condição, ainda


assim estaria sendo feito um jogo: o artificio, como a arte, pertence ao
domínio do imaginário. Não se trata apenas de que cintas, corpetes,
tinturas e maquilagem disfarçam o corpo e o rosto, mas do fato de que a
menos sofisticada das mulheres, uma vez “arrumada”, não mostra ela
mesma à observação. Tal como o quadro, a estatua ou o ator no palco, é
um agente por meio do qual sugere alguém que não está ai, a saber, o
personagem que ela representa mas não é. É esta identificação com algo
irreal, fixo, perfeito, como o herói de um romance, um retrato ou um busto,
que agrada a ela. Esforça-se em identificar-se com esta figura e assim
parecer a si mesma estar estabilizada, justificada em seu esplendor.”
[BEAUVOIR, 1953 appud GOFFMAN, 2002, p.59]
Apesar de estarmos cientes dessa construção social, do silenciamento e
repressão qual nós mulheres passamos, ressaltamos aqui que somos um
guarda-roupa de personagens prontos para se ajustar, pois a busca de si
pode ser vista como algo positivo ou deveras dolorosa [LE BRETON, 2018].

Sendo assim, o modernismo pode ser entendido como algo que


desnaturaliza nosso sistema no que diz respeito as funções psicofisiológicas
[JUNIOR, 2008]. Relaciona-se também com a noção de liberdade, isto é,
55
ideia de um sujeito autônomo [FURUKAWA, 2008]. Ressaltamos a reflexão
de Le Breton [2018] quando o mesmo propõe a ideia de um indivíduo
contemporâneo esgotado de sua rotina, se veem instigado a desfazerem de
seu centro.

O presente artigo procurou apresentar, mediante o levantamento


bibliográfico, uma série de apontamentos e questões possíveis que podem
ser abordados com a temática referida. A proposta foi de analisar e expor
algumas considerações a partir da perspectiva de História das Religiões
assim como enfatizar algumas discussões acerca do gênero dentro da
temática.

Contudo, acreditamos que a presente discussão consistiu em analisar e


refletir como tal fenômeno pode ser analisado por meio das ideias propostas
pelos autores acima citados. Desta maneira, nos parece possível explorar a
prática cosplay enquanto objeto da história das religiões, visto que
encontramos aproximações com os fenômenos analisados pelos autores
trabalhados.

Referências
Alexia Henning: graduanda de Licenciatura em História pela Universidade
Estadual de Maringá. Membro do Laboratório de Estudos em Religiões e
Religiosidades (LERR/UEM) sob orientação da professora doutora Vanda
Fortuna Serafim. E-mail: alexiahenning330@gmail.com.
Vanda Fortuna Serafim é professora e doutora Adjunta na Universidade
Estadual de Maringá, atua nos cursos de graduação em História (presencial
e EAD) e Pedagogia (EAD); é docente do Programa de Pós-graduação em
História (PPH-UEM). Atua como pesquisadora/docente do Núcleo de
Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPQ), no Grupo de
Trabalho em História das Religiões e das Religiosidades (ANPUH) e no
Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (UEM). E-mail:
vandaserafim@gmail.com.

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56
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57
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E O ISOLAMENTO SOCIAL DAS
MULHERES: REFLETINDO SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR NO BRASIL
Aluizia do Nascimento Freire e Claudia Regina Nichnig

O presente artigo tem como objetivo abordar a violência doméstica e


familiar contra as mulheres no período do isolamento social causado pela
58 pandemia do coronavirus no Brasil, principalmente no Estado do Rio Grande
do Norte, com ênfase nos meses de março e abril de 2020. O que nos
chamou a atenção para escrever o presente artigo foi o aumento do número
das denúncias em relação violência doméstica contra as mulheres,
momento em que nosso país está passando por uma pandemia, tendo como
medida cautelar o isolamento (o exercício da quarentena), é uma forma
encontrada de não disseminar a doença, tendo como lema, “fique em casa”.
O slogan “Isolamento sem violência: Não se cale”, é a campanha
encampada pelas delegacias das mulheres em Natal- RN.

Entretanto, as violências contra as mulheres não só têm aumentado no RN-


Rio Grande do Norte, mas em quase todas as capitais do Brasil. Neste
período, em que homens e mulheres permanecessem restritos a companhia
de seus familiares, muitos homens se aproveitam o isolamento social para
cometerem crimes contra as mulheres. De acordo com os dados estatísticos
da delegacia especializada em violência doméstica, representa atualmente
um problema da maior gravidade que aflige as mulheres, em face das sérias
consequências não só para as vítimas, mas também para toda a sociedade.
Para entender esse contexto, apresento os dados do relatório do Núcleo de
Estudos da Violência da USP (NEVUSP, 2019), no ano de 2019, foram 3.739
homicídios dolosos de mulheres no ano passado, uma queda de 14,1% em
relação a 2018. Em 2019 houve uma taxa de 12% nos feminicídios e uma
queda de 67% nos homicídios dolosos de mulheres (Estudos de Violência da
USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Em 2019 no Brasil houve
um aumento de 7,3% nos casos de feminicidios, que são crimes de ódio
motivados pela condição de gênero, comparado a 2018 (NEVUSP,
28/03/2020).

Segundo Erika Andreassy, a folha de São Paulo, apresentou dados da


violência doméstica no período do isolamento em que estamos vivemos,
entre as principais cidades no número de crescimento de violência contra as
mulheres estão Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e outras. No Estado do
Rio de Janeiro de acordo com as denúncias a violência doméstica é de 50%,
em São Paulo 55 mulheres perderam a vida esse ano no Estado, vítimas de
feminicídio, 15% a mais que no mesmo período do ano passado. Com a
quarentena a situação piorou, somente entre 24 de março e 13 de abril, 16
mulheres foram assassinadas, um aumento de 72% na taxa de mortalidade
03/2020).

Embora o número seja alto referem-se apenas aqueles que ocorreram


dentro de casa demonstrando que, assim como ocorrem com o coronavirus,
a subnotificação nos casos de violência contra a mulher também é grande.

Segundo Andreassy, os pedidos de medidas protetivas cresceram 29% de


fevereiro para março e as prisões em flagrantes, 51%. No Estado do
Paraná foram 15% as denúncias por agressão. Ainda de acordo com
Andressay (2020), esses dados não expressam o conjunto da realidade, as
delegacias são poucas, ás vezes não atendem os telefonemas. São várias as
dificuldades, dentre estas a falta de comunicação, os dados podem ser bem
maiores. Um dado interessante é que no Estado do Pará houve uma
redução no número de casos da violência contra as mulheres, de 14%,
durante o isolamento social (ANDRESSAY, 27/03/2020).
59
As mulheres são que mais sofrem com esse isolamento, muitas delas são
responsáveis pela casa sozinhas, tendo que fazer as atividades domésticas,
cuidar dos filhos, além de auxiliar nas tarefas da escola, com um acréscimo
no tempo destinado ao trabalho doméstico neste período. Acrescida as
tarefas já realizadas no dia a dia das famílias, neste período de quarenta e
com a impossibilidade das crianças frequentares as escolas, os pais, mas
principalmente as mães são responsáveis por acompanharem a educação
dos seus filhos em suas residências. Nesse momento de quarentena há uma
sobrecarga que, na maioria das famílias, fica a cargo das mulheres. O
desemprego é um fator econômico responsável pelo maior número de
mulheres em casa, pois muitas delas são autônomas e estão sem ter renda
própria.

No Estado do Rio Grande do Norte essa situação não é diferente, sabemos


que houve uma diminuição de 30% na queda do número de violência do
ano de 2019, foram 21 casos de feminicídio, 8 casos a menos comparado ao
ano de 2018, foram registrados, 29 casos de feminicídio. No RN o número
de registro de violência doméstica em 2020 vem aumentando, foram 354
casos no mês de fevereiro, no mês de março 385, variação de 8,8%, na
cidade de Natal no mês de fevereiro foram 143 de registro de violência
doméstica, no mês de março já temos 162 casos; na região metropolitana
(Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Ceará Mirim e Extremoz), tivemos
125 casos no mês de fevereiro, em março 153, um aumento de 22,04%.
Portanto em Natal de fevereiro a março tivemos um aumento de registro de
violência doméstica 305 casos, equivalente a 13,3% (CANUTO-
SESPDS,17/04/2020).

No período de isolamento social devido a pandemia, em relação aos casos


de feminicidio no Estado do RN, em comparação em relação a março do ano
passado, que foi de uma morte, no mesmo período da pandemia, na
primeira quinzena do mês de março já houveram 4 mortes, tivemos um
aumento do feminicidio de 300%, no RN. Em Natal, na segunda quinzena
do mês de março de 2019, 18% aumento no número de pedidos de
medidas protetivas 8,8%, nesse período de isolamento social (CANUTO,
2020). Ainda de Acordo com os dados de Canuto (2020), 7 a cada 10
mulheres morrem em casa.

As relações de poder desiguais entre homens e mulheres são naturalizadas,


sendo que o sentimento de posse dos homens sobre as mulheres acaba
sendo naturalizado o que se agrava no isolamento social, não vem de hoje,
no entanto se agrava com a pandemia do coronavirus. O aumento do
número de violência contra a mulher não é novidade para nós, mas se ela
já vinha crescendo, o que muda com essa pandemia. Segundo Andreassy
(2020), a novidade agora é que, com as medidas de isolamento social, esse
quadro de horror para muitas mulheres e crianças tende a se agravar, já
que para muitas delas, o lar longe de ser um ambiente seguro, é
justamente o local onde a violência se materializa. É nesse ambiente onde
sempre ocorreu a violência doméstica, uma vez que ela foi
institucionalizada, Infelizmente é visto até hoje pelos homens como uma
questão cultural.

Cito um trecho de Margarete Rago que afirma: “no Brasil isso se deu a
60
reprodução de uma sociedade patriarcal, na qual o homem era considerado
o sujeito capaz e habilitado a atuar publicamente, enquanto a mulher ficava
restrita ao lar e a educação dos filhos”. A constatação de que essa situação
ainda se reproduz de maneira parcial na atualidade e de que, devido a
terem sido historicamente excluídas, tanto legalmente quanto socialmente
da vida pública, elas são excluídas de participar de atividades ainda
inerentes ao sexo masculino (RAGO, 2004, p.32).

Porém, não podemos esquecer que as mulheres de classes populares,


nascidas nas periferias já trabalhavam, e atuando no âmbito público,
exercendo as mesmas funções masculinas. Para Souza-Lobo (1991, p. 75),
“o trabalho doméstico faz parte da condição de mulher, o emprego faz parte
da condição da mulher pobre”. Não podemos esquecer que as violências
são cometidas por homens considerados de família, os quais não
registraram casos de violências em outras situações ou relações. Desta
forma, muitas vezes, é a cultura machista que faz com que se sintam no
direito de demonstrar sua força com a violência.

Nesse sentido é importante mais campanhas educativas de emergência


sobre a violência doméstica, disponibilizando e intensificando os canais de
denúncias e ampliando os serviços públicos de assistência as mulheres,
como as delegacias 24 horas, o atendimento psicossocial, entre outras
medidas públicas emergenciais. Constatamos a falta de interesse dos
governantes com a implementação de políticas públicas de combate à
violência contra as mulheres, políticas que de fato venham a se concretizar
e pôr fim à violência não só contra as mulheres, mas a toda forma de
opressão, bem como o combate e fim do machismo e o racismo. Os dados
mostram o crescimento do feminicídio diariamente, a necessidade urgente
de encontrar alternativas concretas, principalmente neste período marcado
pela falta de contato com outras pessoas e o não acesso a políticas
públicas.

O conceito de feminicídio é utilizado para designar os homicídios de


mulheres em razão da condição de gênero. “Entende-se como uma forma
extrema de violência de gênero que resulta na morte de mulheres”. Pode-se
dizer que o “feminicídio se configura como o ápice da trajetória de
perseguição à mulher com diferentes formas de abuso verbal e físico, como
estupro, tortura, incesto, abuso sexual infantil, maltrato físico e emocional”
(COLLING; TEDESCHI, 2019, p. 245). O termo feminicídio em 2015 foi
inserido na lista do homicídio por meio da Lei nº 13.104/2015. Temos
assistido e ouvido constantemente nos meios de comunicação que o
feminicídio ocorre em razão de sermos mulheres, ou seja, crime praticado
contra as mulheres, portanto, feminicídio como qualificadora do crime de
homicídio
Vale enfatizar que, uma das primeiras normas a possibilitar visibilidade no
ordenamento jurídico brasileiro a respeito da violência contra as mulheres é
a Lei Maria da Penha, que leva esse nome em referência a Maria Da Penha
Fernandes, que assim como milhares no Brasil, sofreram e sofrem de
graves violências acometidas em suas relações conjugais e familiares.
Diante da morosidade do judiciário brasileiro, Maria da Penha Fernandes
recorreu a corte interamericana de Direitos Humanos, que impôs ao Brasil a
61
criação de medidas de proteção as mulheres, como forma de punição ao
seu caso. Assim em 2006 surgiu a Lei Maria da Penha nº 11.340/2006.
Apesar da lei ter sido criada visando diminuir os elevados índices de
violência contra mulheres, esta não foi suficiente, principalmente devido a
sua não implementação na totalidade e a ausência de políticas públicas que
de fato venham proteger as mulheres vítimas da violência doméstica e
familiar.

As violências contra as mulheres, não apenas a que leva a morte, como o


caso do feminicídio, podem se caracterizar de diferentes formas, como a
violência física, moral, psicológica, sexual e patrimonial, todas nominadas
pela Lei Maria da Penha. Essa luta constante do combate ao fim da violência
contra as mulheres e por políticas públicas que venham a sanar as
desigualdades de gênero é presenciada cotidianamente. É preciso encontrar
os meios de coibir essa violência cobrando do Estado a responsabilidade,
sendo a denúncia um fator importante para a implementação de políticas
públicas.

Assim, este artigo tem como objetivo mostrar o aumento da violência


praticada contra as mulheres no decorrer do isolamento social, uma das
medidas utilizadas para o enfrentamento da pandemia causado pelo
coronavirus. Ocorre que outras situações são agravadas com o isolamento,
sendo uma delas a violência contra as mulheres. Temos a compreensão que
a violência doméstica ocorrida no âmbito do espaço doméstico durante esse
período de isolamento social é um dos fatores que nos deixam indignadas,
diante de um momento em que estamos passando por mudanças
estruturais na nossa vida causada por uma pandemia, em que não está
oferecendo condições de socialização, tendo dificuldades de comunicação e
o temor de sair de casa. Todos esses fatores dificultam para que as
mulheres tenham acesso a serviços essenciais, bem como a efetivação da
denúncia a violência elas vêm sofrendo no âmbito do espaço privado, uma
vez, que são as principais responsáveis pela administração da casa e das
receitas financeiras, muitas delas são afetadas pelo subemprego, o
desemprego, sempre diante de uma crise são as mulheres a serem
demitidas, a sentir o impacto causado pelo coronavírus.

Vemos observando que diante dessa violência doméstica ocorre


predominantemente em todas as camadas sociais, já que ela é decorrente
das desigualdades ocorridas nas desigualdades de gênero, de classe social,
raça e etnia, amparada pela desigualdade de gênero, abrange as diversas
extensões de sociabilidade através da dominação e exploração. A ideologia
patriarcal dominante naturaliza o comportamento de dominação do homem
sobre as mulheres, diante disso, o isolamento social passou a ser mais um
fator que impulsiona a prática das violências, principalmente contra as
mulheres.

Referências
Aluizia Freire do Nascimento é professora de História da Rede Municipal de
Ensino do Rio Grande do Norte, é graduada em história, mestra em Serviço
Social, pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte),
doutoranda em História pela UFGD (Universidade Federal da Grande
62
Dourados).
Claudia Regina Nichnig é professora visitante do Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal da Grande Dourados –
UFGD. É pós-doutora em História, pela Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC e em Antropologia Social pela École des hautes études en
sciences sociales – EHSS, em Toulouse/França. É doutora pelo programa
Interdisciplinar em Ciência Humanas da UFSC, na área de Estudos de
Gênero.

ANDRESSAY, Erika. https://www.pstu.org.br/basta-de-violencia-machista-


deter-o-avanco-da-pandemia-e-garantir-a-vida-das-mulheres/. Acesso
27/03/2020. (Internet)
COLLING, Ana Maria e TEDESCHI, Antônio Losandro (Org.) Dicionário Critico
de gênero. 2º ed. Dourados, MS, 2019, p. 245. (Dicionário)
Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEVUSP) Núcleo de Estudos da
Violência da USP (NEVUSP), https://nev.prp.usp.br/
RAGO, Margareth. A mulher brasileira nos espaços público e privado. Ser
mulher no século XXI, 2004, p. 31. (Livro)
SESPDS- Secretaria Estadual Da Segurança Pública E Da Defesa Social.
Coordenadoria De Informações Estatísticas E Análises Criminais. Enviado
Por (ERICA CANUTO, 17/04/2020). (E.mail)
SOUZA-Lobo, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: Trabalho,
Dominação e Resistência. São Paulo: Brasiliense/Secretaria Municipal de
Cultura-SP, 1991, p. (Livro).
O PROTAGONISMO DA MULHER NEGRA NA HISTÓRIA
BRASILEIRA: DISCUTINDO GÊNERO E RAÇA NO ESPAÇO
ESCOLAR
Ana Paula Lima Cunha

A escola tem grande participação na construção da identidade da criança e


adolescente. É nesse espaço que eles recebem um conjunto de elementos e
valores que formam seu pensamento e atitude. Sendo assim, a interação 63
com o outro, o reconhecimento e a representação positiva constroem o
olhar de si e a afirmação identitária. HALL [2006, p. 39] explica que “a
identidade surge não tanto da plenitude que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do
nosso exterior”.

A interação com o outro é que dá sentido a identidade. Nesse sentido, é


muito importante que a escola esteja comprometida em preparar cidadãos
que respeitem a diversidade étnico-racial, que valorizem a história de cada
grupo e que esteja alinhada com projetos de educação para relações étnico-
raciais e igualdade de gênero, a fim de superar concepções de superioridade
e inferioridade.

É sabido que fora da escola as crianças e os jovens são bombardeados por


informações e posturas que muitas vezes podem levar os mesmos a
reproduzirem discursos preconceituosos, de raça e de gênero. A escola, de
modo algum, pode se colocar como uma instituição neutra frente aos
problemas sociais. Se os conflitos e desigualdades sociais acontecem fora
da escola, eles certamente surgirão dentro do espaço escolar. Desta forma,
ao fechar os olhos para situações de racismo e sexismo, a escola estará
contribuindo para a reprodução da desigualdade social, da intolerância e
violência, ferindo o seu papel de agente de transformação da sociedade.

Com o intuito de reparar anos de negação de direitos à população negra e


valorizar a sua história, cultura e reconhecer sua contribuição para
construção da nação brasileira, população essa que resistiu em quilombos,
em movimentos de lutas por direitos e visibilidade, como por exemplo, o
movimento da Frente Negra Brasileira (FNB), o Teatro Negro Unificado
(TNT), o Movimento Negro Unificado (MNU) e tantos outros que provocaram
debates e levantaram questões acerca das necessidades da população
negra, impulsionando assim a criação da Lei 10. 639/2003, que torna
obrigatório nos estabelecimento de ensino, a História e Cultura Afro-
brasileira e Africana.

Para implementar essa lei e orientar as práticas pedagógicas dos docentes


foi criado o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, o Parecer CNE/CP
nº 03/2004, a Resolução CNE/CP nº 01/2004 e as Orientações e Ações para
a Educação das relações Étnico- Raciais. Esses documentos regulamentam
as atribuições das esferas Federal, Estadual e Municipal. Cabendo ao
município:

- Apoiar as escolas para a implementação das Leis nº 10.639/03 e


11.645/08 por meio de ações colaborativas com o Fórum de Educação para
a Diversidade Étnico- Racial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e
sociedade civil; [BRASIL, 2013, p. 32].

A consolidação dessas práticas depende também da atuação do município


como meio propiciador e orientador dos profissionais da educação. O
documento – “Orientações e Ações para a Educação das relações Étnico-
Raciais” - organiza e orienta as ações didático-pedagógicas em cada nível
ou modalidade de ensino. Em relação ao Ensino Fundamental ele
64
acrescenta:

No que se refere à ideia de currículo, é importante entender que existem


diferentes visões para sua construção e encaminhamento. Em nossa visão o
entendemos como mola-mestra para o processo de sensibilização de
alunos(as) para o conhecimento e exercício de seus direitos e deveres como
cidadãs(os). O trabalho docente pode, então, orientar-se para além das
disciplinas constantes do currículo do curso, mas também na exposição e
discussão de questões éticas, políticas, econômicas e sociais. [BRASIL,
2006, p. 57].

Os temas voltados para educação das relações raciais devem integrar todo
o currículo escolar. Dito de outra forma, as temáticas devem ser inseridas
em todas as disciplinas e durante todo o ano letivo e não de maneira
folclórica e festiva. É preciso problematizar essas questões constantemente
a fim de provocar uma reflexão-ação, desenvolvendo nos discentes postura
crítica e respeitosa frente as diferenças. Para SILVA [2007] a educação das
relações étnico-raciais tem como objetivo:

A educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de


cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover condições de
igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos direitos
de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes pertencimentos étnico-raciais
e sociais. [SILVA, p. 490].

O trabalho no espaço escolar deve se basear nos princípios que norteiam as


ações para implementação da lei: Consciência Política e Histórica da
Diversidade, Fortalecimento de Identidades e de Direitos e Ações educativas
de Combate ao Racismo e a Discriminações. Portanto, é preciso que os
docentes motivem/orientem os alunos/as para assumirem postura de
reconhecimento da diversidade, do respeito às diferenças e desenvolvam o
sentimento de pertença. Para tanto, é necessário que esses educadores
também passem pela conscientização, educação e aprendizagem. Segundo
Munanga (2005), somos resultado de uma sociedade eurocêntrica, e por
conta disso o preconceito é reproduzido de forma inconsciente.

A representação dos negros e negras nos livros didáticos, quando


aparecem, é sempre de forma negativa. Ele é o cativo, submisso, fraco,
inferior, feio e menos capaz. Todo esse preconceito é introjetado na criança
e adolescente negros/as, ferindo sua autoestima e maculando sua
identidade, levando muitas vezes a repetência e evasão escolar, uma vez
que não veem sentido na educação e não se sentem representados. Nesse
sentido, a educação deve ser um mecanismo poderoso de superação do
racismo e de qualquer tipo de desigualdade.
Os estereótipos ideológicos apresentados nos livros didáticos podem ser
desconstruídos pelo/a educador/a, seja através da problematização das
histórias e imagens ou até mesmo por meio de confronto com outros
materiais que enalteçam e valorizem a história dos negros/as e afro-
brasileiros/as.

Em um trabalho desenvolvido nas aulas de História, na turma do 8º ano da


65
Escola Municipal Almerindo Alves dos Santos, situada no município de
Eunápolis, sobre Maria Firmina dos reis, escritora negra e abolicionista, uma
aluna revelou o quanto aprender sobre Maria Firmina fortaleceu sua
identidade. Assim ela relata em seu diário:

(...) Eu já sofri racismo na minha própria casa, alguns dos meus parentes
que faziam isso comigo. Eu ficava ouvindo várias vezes eles dizendo:
Gorda, feia, cabeça de cupim, preta, etc. Diziam que preto rouba, que eu
não tomava banho porque era preta. Mas eu já superei tudo isso, não me
importo com o que dizem sobre mim. Mas quando eu li a história dela me
emocionei, porque, cara! Ela é foi muito corajosa e maravilhosa. Na minha
casa eu chorei. Ela é magnífica. E o incrível é que foi graças a Firmina que
hoje nós negras fazemos o que no passado nenhuma negra fazia. (Relato
do diário de trabalho da aluna F do 8º ano do Ensino Fundamental II,
2019).

Protagonismo Feminino Negro


A narrativa histórica tem uma grande dívida com a história das mulheres.
Elas foram silenciadas, apagadas como meras coadjuvantes dos fatos
históricos. Condenadas a obscuridade dos espaços privados e da vida
traçada pelos papéis que lhe cabiam: mães e esposas. Para Scott [1990, “O
gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a
criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens
e as mulheres”. [p.7]. Nessa perspectiva, o estudo de gênero explica como
foram construídos os papéis femininos ao longo da história, esclarece que a
desigualdade social entre homens e mulheres é uma construção histórica,
social e cultural, rejeitando assim o determinismo biológico ou diferença
sexual.

Mas em que momento da história a “superioridade” masculina firmou-se


perante a feminina marcada de maneira imposta? Para BEAUVOIR (2016) a
soberania do homem sobre a mulher se deu a partir do momento que ele
dominou a natureza, limitando a mulher apenas à maternidade. Segundo a
autora, a mulher dá apenas a vida, o homem arrisca a sua vida pelos seus
pares, e isso o torna superior.

Quando nos voltamos para a história das mulheres negras o silêncio é ainda
mais taciturno. A mulher negra escravizada era considerada não mulher,
era uma mercadoria que dava lucro, seja através do trabalho pesado, seja
no seu valor de procriação. Se para as mulheres brancas restava o espaço
do lar, para as mulheres negras, nada restava, ela era o outro do outro, ou
seja, era duplamente inferiorizada. Para as mulheres negras não restou o
“encanto” de viver a maternidade. Elas trabalhavam nos campos, grávidas
e, quando tinham seus filhos, continuavam trabalhando de sol a sol, com
seus filhos amarrados pelas costas.

Segundo DAVIS (2016), as mulheres negras não podiam ser mães e dona
de casa, elas trabalhavam tanto quanto os seus companheiros, e em
relação a elas, eles não tinham privilégios:

‘É verdade que a vida doméstica teve uma exagerada importância na vida


66
social dos escravos, porque lhes deu o único espaço onde podiam
verdadeiramente experienciarem-se como seres humanos. As mulheres
negras, por esta razão – e também porque eram trabalhadoras tal como os
homens – não estavam rebaixadas nas suas funções domésticas do mesmo
modo que as mulheres brancas se tornaram. De forma desigual às suas
parceiras, elas não podiam nunca ser tratadas como meras “donas-de-
casa”’. (DAVIS, 2016, p.19).

As mulheres negras escravizadas, quando estavam na condição de mãe e


donas de casa, dividiam igualmente com os seus companheiros as tarefas
domésticas, o trabalho nos campos, o cuidado com os filhos, a luta contra o
opressor, as inúmeras fugas e tentativas de fuga, rebeliões e com grande
peso, a luta pela abolição da escravatura.

A consciência de si e o desejo de romper as amarras da subordinação


através da igualdade entre homens e mulheres, foram as bases para o
surgimento de um movimento que nasce no apagar das luzes do século
XVIII e toma corpo e se fortalece no século XIX: o Movimento Feminista.
Esse movimento novo é esperançoso, pois busca pensar o papel das
mulheres na sociedade. Para as autoras, “Trata-se, hoje, de um movimento
que questiona o papel da mulher na família, no trabalho e na sociedade,
luta por uma transformação nas relações humanas e pela extinção das
relações baseadas na discriminação social”. (COSTA; SARDENBER, 2008
p.29).

No entanto, nas duas primeiras ondas do Movimento Feminista as mulheres


negras não se sentiam representadas. Elas sofriam machismo dentro do
movimento negro e racismo dentro do movimento feminista. Sueli Carneiro
é um dos grandes nomes de representação das mulheres negras que
buscou enegrecer o movimento feminista. Segundo Carneiro (2003), os
problemas das questões de gênero é ampliada pela questão da raça.

Ao perceber a solidão em que se encontrava em suas questões mais


intimas, a mulher negra seguiu envolvida nas lutas dos movimentos
feministas e populares, mas estabeleceu para si uma frente de luta própria
de combate ao racismo e a discriminação, através de encontros, fóruns e
agendas programadas. Essa agenda diz respeito a tema tais como:
trabalho, educação, saúde e violência. O movimento feminista negro
contribuiu para incluir as questões de gênero na agenda pública, tendo
como objetivo principal, acabar com a desigualdade entre homens e
mulheres.

Do início da colonização até a conquista do voto, ocorreram muitas lutas.


No Brasil colônia, as mulheres negras além de trabalharem duramente,
eram abusadas sexualmente por seus senhores, tendo sua dignidade
violada. As mulheres brancas embora tivesse o lar como seu “reduto de
proteção”, eram oprimidas por não poderem trabalhar, estudar e participar
da política. Quando o Brasil se torna uma República, a Constituição de 1891
diz que todos são iguais perante a lei, mas não garante que “esse todos”
inclua as mulheres, que ficam, por costume, de fora dos direitos políticos.
Logo após a proclamação da República muitas mulheres se organizaram em
diferentes regiões do Brasil pra fazer valer o artigo que preconizava a
67
igualdade jurídica. Elas fundaram jornais, partidos políticos feministas,
fizeram passeatas, mas foi com a criação da Federação Brasileira para o
Progresso Feminino (FBPF) sob o comando de Bertha Lutz que as lutas
feministas brasileiras pelo sufrágio universal se consolidaram:

Tendo à frente Bertha Lutz, a FBPF será o ponto de partida para a criação
de várias outras associações de mulheres em todo o Brasil, caracterizando-
se como a primeira entidade de mulheres a nível nacional. Torna-se assim,
a principal responsável pela luta sufragista no Brasil, uma luta que se
travou quase que exclusivamente a nível parlamentar. Apesar de toda a
influência das sufragistas norte-americanas, jamais adotou o “terrorismo
feminista” como tática para chamar atenção às lutas das mulheres.
[COSTA; SARDENBERG, 2008, p.37].

A Federação fez duras críticas ao governo que cobrava impostos das


mulheres mais não garantia a elas a igualdade jurídica, denunciando o
machismo e o sexismo que retardava o progresso das mesmas. Após a
conquista do voto, Bertha Lutz desempenhou um importante papel no
processo de garantia de direitos para as mulheres, combatendo leis
discriminatórias que regulavam as desigualdades. É preciso lembrar que
nessa primeira fase do feminismo brasileiro as mulheres foram pensadas de
forma genérica. Mesmo as lutas importantes levantadas pelos partidos
políticos ditos “de esquerda”, não levavam em consideração questões como,
por exemplo, raça e classe.

Segundo as autoras, o ego exacerbado e as visões divergentes acerca da


opressão feminina foi um grande entrave para o avanço das lutas. Enquanto
um grupo via no sistema patriarcal o algoz da opressão feminina o outro
grupo responsabilizava o sistema capitalista de produção. Esse impasse
gerou um esvaziamento das reuniões e encontros feministas, uma vez que,
muitas mulheres não se sentiam representadas por nenhum dos grupos
citados.

E quanto às mulheres negras, como ficam suas demandas e representação


frente ao movimento feminista brasileiro? Na década de 1970 muitas
mulheres negras militavam no Movimento Negro, no entanto, embora esse
espaço represente um local de busca por direitos para o povo negro e luta
contra o racismo, ainda trazia no seu contorno o ranço do sistema patriarcal
e misógino. As mulheres negras eram meras coadjuvantes dos homens no
movimento, eram rechaçadas dos postos de lideranças, cabendo apenas o
papel de cumprir tarefas. Nesses espaços, suas lutas feministas por
igualdade de representação e poder não eram contempladas.
Por outro lado, o movimento feminista não as representava, uma vez que,
ele se apresentava compacto e genérico e não levava em consideração as
especificidades das mulheres negras, sem falar no preconceito racial que
sofriam por parte das mulheres brancas. Desta forma, é importante deixar
claro que, dentre todas as demandas do movimento feminista que as
mulheres brancas e negras buscavam conquistar, a mulher negra ainda
carregava em seus ombros a árdua tarefa de combater o racimo. Sueli
Carneiro é um dos grandes nomes de representação das mulheres negras
68
que buscou enegrecer o movimento feminista. Segundo Carneiro (2003), os
problemas das questões de gênero é ampliada pela questão da raça. Ao
citar Gonzalez ela explica que:

Padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés


eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão
de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao
universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o
conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação,
violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não-
brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia
racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um
distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma
história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido
protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que
nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo. [GONZALEZ
apud CARNEIRO, 2003, p. 4]

As mulheres negras ao longo da história, tanto no Brasil quanto no mundo,


sofreram discriminação por serem mulheres pela raça e pela classe. Por isso
que a luta pelo fim da desigualdade entre homens e mulheres deve ser
pensada a partir desses conceitos.

Uma forma de combater a discriminação racial em relação às mulheres é


levar essas discussões para o espaço da sala de aula. Trabalhar a
construção histórica de conceito tais como: raça, racismo, sexismo,
discriminação e gênero contribuirá para a reflexão dos discentes acerca da
construção da história das mulheres negras, possibilitando a mudança de
postura frente a situações de racismo e sexismo.

É também na escola que os papéis sociais e o significado do que é ser


homem ou ser mulher são construídos. Portanto a escolha dos conteúdos
diz muito sobre que tipo de cidadão a escola quer formar. Será que os
conhecimentos adquiridos têm levado os mesmos a estabelecerem relações
iguais, onde meninos e meninas se respeitam e valorizam as
potencialidades individuais, adquirindo de forma igualitária um acervo de
elementos que os possibilite trilhar o mesmo caminho de oportunidade? O
estudo do conceito de gênero possibilita a compreensão da sociedade como
um todo.

Nessa questão, a inclusão do gênero como categoria de análise é de grande


importância, pois, segundo muitas estudiosas dentre as quais Scott, ela
amplia os paradigmas do conhecimento e, ao abrir perspectivas para uma
nova história, para uma nova realidade social, possibilita a discussão sobre
a desigualdade e a opressão, não só de gênero, mas, em geral, ao tempo
em que permite que a experiência feminina seja contemplada.
(SARDENBERG, 2011,p.55).

Ao inserir no ensino de história práticas pedagógicas voltadas para história


das mulheres negras, problematizando suas lutas e papéis assumidos nessa
temporalidade, os/ as docentes estarão promovendo a igualdade racial e de
gênero. Os meninos e meninas se reconhecerão nessas histórias, muitas
69
vezes refletindo o seu modo de vida, de suas mães, tias e avós e outras
mulheres.

Contemplar no ensino de história vozes ausentes como mulheres, indígenas,


homossexuais e outros grupos minoritizados é apresentar um currículo para
as diferenças. Esse é um exercício constante, um tempo de longa duração.
Portanto, é preciso caminhar para uma educação das relações étnico-
raciais. O primeiro passo é reconhecer que somos um país racista, o
segundo é perceber que as diversidades não podem se tornar sinônimo de
desigualdade e que, acima de tudo, não somos superiores a ninguém.

Referências
Ana Paula Lima Cunha é mestranda do Programa de Pós Graduação em
Relações Étnico- Raciais (PPGER) – UFSB. Especialista em Educação em
Gênero e Direitos Humanos (UFBA). Graduada em História (UNEB).
Professora efetiva de História do município de Eunápolis – Ba. E-mail:
anaclio2010@gmail.com.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão


Europeia do Livro, 2016.
BRASIL. Lei 10.639 de 09 de Janeiro de 2003. D.O.U de 10 de Janeiro de
2003.
BRASIL, Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana.
Brasília: SECADI, 2013.
BRASIL, Ministério da Educação. Orientações e Ações para Educação das
Relações- Étnico Raciais. Brasília: SEDAD, 2006.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. 2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300008 Acesso: 30/03/2019.
COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria B. (Org). O
Feminismo do Brasil: Reflexões Teóricas e Perspectivas. Salvador: UFBA /
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, 2008.
DAVIS, Ângela. Mulher, raça e classe. Boitempo: São Paulo, 2016.
HALL. Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na escola. MEC/BID/UNESCO:
Brasília, 2005.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. 1990.
Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667.
Acesso: 04/04/2019.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Aprender, ensinar e relações étnico-
raciais no Brasil. Porto Alegre, Educação 2007, p. 489-506. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/274
5/2092. Acesso em 04/04/2019.

70
FEMINISMO E SUAS VERTENTES: A IMPORTÂNCIA DE
ENTENDER AS PECULIARIDADES DO FEMINISMO NEGRO
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt e Juliana Otero Nogueira

A mobilização para a elaboração de uma história das mulheres tem ganhado


escopo robusto ao longo das últimas décadas. Diversos trabalhos tem-se
apresentado na intenção de ampliar o campo de visão acerca do que é ser
mulher, e o que sobre elas pode ser falado ao longo do processo de 71
construção histórica. Como campo definido aparece principalmente entre
1970 e 1980, e já desde as primeiras formulações esteve relacionado à
ideia de um posicionamento político e representativo; de certo, “a conexão
entre a história das mulheres e a política é ao mesmo tempo óbvia e
complexa” [SCOTT, 1992, p. 64].

A historiadora Joan Scott argumenta em seu texto “História das mulheres”


[1992], que toda a narrativa necessita ser refletida a partir de uma análise
crítica, entendendo também que existem as variações na dependência de
quem às relata e para que uso e finalidade esteja sendo evocada. Para ela,
a sequência pronta que apresenta a política feminista como ponto de
partida, e que ao longo do tempo vai se distanciando até o rompimento
para uma história acadêmica erudita voltada ao próprio espaço em uma
discussão de gênero aparentemente neutra, precisa ser revista por
apresentar-se simplista demais, e por não representar corretamente a
história da história das mulheres em sua relação com a política e com a
própria disciplina da história. A história deste campo não requer somente
uma narrativa linear, mas um relato mais complexo, que leve em conta, ao
mesmo tempo a posição variável das mulheres na história, o movimento
feminista e a disciplina da história.

Da mesma forma que não se pode restringir a história das mulheres a um


processo de construção acadêmico disciplinar deslocado de seu contexto
social, não se pode entendê-la apenas como o reflexo de um crescimento da
política feminista. Logo, como a própria Scott destaca, para além de apenas
uma correlação, é preciso pensar este campo como sendo um estudo mais
dinâmico na política da produção de conhecimento.

Os esforços em sintetizar o que seriam os primórdios de surgimento da luta


das mulheres acabam também por fim em restringir e esquecer as
significativas variações, afinal “o feminismo tem sido, nas últimas décadas,
um movimento internacional, mas possui características particulares,
regionais e nacionais” [SCOTT, 1992, p. 67]. De certo, não se pode atribuir
à história das mulheres um ponto de partida delimitado e imóvel, não existe
um ponto inicial assim como não existirá um ponto final. É preciso entender
as construções sociais que de diversas maneiras se relacionam entre si, e
ainda sim apresentam estritas relações com seus contextos de imersão. Não
é possível falar em uma história homogênea e universal do feminismo, e
sobre isso Judith Butler conclui que:

“A presunção política de ter de haver uma base universal para o feminismo,


a ser encontrada numa identidade supostamente existente em diferentes
culturas, acompanha frequentemente a ideia de que a opressão das
mulheres possui uma forma singular, discernível na estrutura universal ou
hegemônica da dominação patriarcal ou masculina”. [BUTLER, 2017, p. 20]
Outro ponto de destaque se dá para o fato de que para “além das ficções
‘fundacionais’ que sustentam a noção de sujeito, há o problema político que
o feminismo encontra na suposição de que o termo mulher denote uma
identidade comum” [BUTLER, 2017, p. 20]. É vital a compreensão de que
dentro desse grande grupo estão intrínsecas as particularidades de cada
indivíduo, e de consequentemente outros grupos de subdivisões dentro da
72
própria causa, na qual as demandas são múltiplas.

O termo “política” deriva do grego politéia [πολιτεία], que indicava todos os


procedimentos relativos à pólis, ou cidade-Estado. Em extensão assume o
significado enquanto sociedade, comunidade, coletividade, e outras
definições que fazem referência ao entendimento de vida urbana. A política,
como forma da práxis humana está estreitamente ligada ao exercício de
poder. Em aplicação, o conceito é entendido no exercício das atividades de
governos, ou de forma mais geral ao ser expressa em meio às relações de
poder pela formação de estratégias, bem como são também práticas
normativas que buscam estabelecer identidades individuais e coletivas.
Como Scott apresenta, a narrativa da história das mulheres se faz valer a
partir das múltiplas ressonâncias da própria palavra política, e de fato,
como se pode esperar, a narrativa é sempre uma expressão política.

A partir disto, faz-se necessário lembrar e debater o conceito de


representatividade. A construção política de um sujeito feminino
representativo já nasce vinculado aos processos de legitimação e exclusão
pertencentes à essência do próprio sistema ao qual se busca subverter,
“essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma
análise política que torna as estruturas jurídicas como seu fundamento”
[BUTLER, 2017, p. 19]. Na política, ao mesmo tempo em que se apresenta
como forma de legitimação de poder, se percebe o quão excludente ainda
permanece o sistema em sua hegemonia. Em suma, são produzidas e
reprimidas pelas mesmas estruturas de poder pelas quais buscam a
emancipação.

Certamente, a intenção não é recusar a agência política representacional,


mas analisar criticamente em que meio estamos inseridos, pensar o
presente e as demandas pelas quais se busca lutar como forma de não
perder de vista a multiplicidade que nos constitui. “E a tarefa é justamente
formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias
de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram,
naturalizam e imobilizam” [BUTLER, 2017, p. 22].

A bivalência da história das mulheres e seu caráter político nos apresenta


certamente uma força crítica e desafiadora das lógicas de opressão. O
ocupar dos espaços tão restritos e hierarquizados é emblemático, desafia e
desestabiliza as premissas disciplinatórias; ainda sim, esse processo não é
algo dado, e nem mesmo apresenta uma síntese a seguir. Assim, “não há
resolução simples, mas apenas a possibilidade de constante atenção aos
contextos e significados no interior dos quais são formuladas as estratégias
políticas subversivas” [SCOTT, 1992, p. 77.].
Um dos processos percebidos e vivenciados atualmente – em especial no
contexto em que vivemos, enquanto sociedade brasileira –, é a permanente
sensação de que nos falta um certo senso histórico. Nos deparamos
frequentemente com a dificuldade de entendimento das corrente teóricas e
políticas do que é o feminismo, e o que buscam as mulheres frente às
patentes e latentes desigualdades enfrentadas. Essa percepção se
intensifica ainda mais no que se refere às diversas especificidades dentro
dessa própria luta, como o chamado feminismo negro, o qual trabalharemos
73
aqui mais notadamente.

As especificidades do feminismo negro


Para que possamos adentrar pelo caminho do feminismo negro, suas
formulações na História e lutas, trazemos para a discussão a intelectual
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e sua importante contribuição para o
feminismo na obra Sejamos todos feministas [2014]. Nesta obra se volta a
discutir sobre a normalização do machismo; imersos em uma cultura e
estrutura social onde na grande maioria das vezes homens estão no
comando e no poder, acabamos por não perceber o machismo das falas e
atitudes imbricadas na sociedade. É valido portanto refletir sobre a própria
formação social da educação infantil, ao mesmo tempo em que reprimimos
posturas de questionamento e confrontamento nas meninas, abafamos a
humanidade dos meninos ao ponto de que não possam chorar, ter medo ou
demonstrar muita vulnerabilidade, acabando por gerar problemas em
ambos os sexos, homens durões de ego frágil e mulheres altamente
permissivas [ADICHIE, 2014, p.11].

Criticando as divisões opressoras de gênero menciona que o “problema da


questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de
reconhecer como somos” [ADICHIE, 2014, p.14]. Aponta ainda o fato da
discussão de gênero ser um lugar obscuro onde nem homens nem mulheres
querem estar, pois mudar o padrão social, transformando o status quo, é
um assunto complexo e sensível.

Adentrando mais o campo dos movimentos feministas em si, para


compreendermos em que momento na história do feminismo as
reivindicações das mulheres negras de terem seu lugar como diferenciado
pela própria vivência, assim como as questões de raça, classe e sexualidade
serem pensadas de forma teórica e epistemológica, trazemos para o artigo
a intelectual da área do direito que pensa mulheres e gênero, Naiara
Andreoli Bittencourt, no artigo “As ‘ondas’ dos movimentos feministas e o
eurocentrismo da História” [2015].

Bittencourt parte de um princípio interessante e necessário para


entendermos o porquê das ramificações do feminismo quando afirma que
este não é um movimento único, singular, que permeia a história das
organizações de mulheres por todo o mundo. A multiplicidade e os
posicionamentos teóricos quebram essa teoria de que há um histórico do
movimento feminista, mas mesmo assim aponta que é possível vermos
ideias que aparecem e predominam entre os movimentos que vivenciam o
mesmo contexto histórico.
Característica central dos movimentos feministas sempre foi o silenciamento
e é devido a isso a dificuldade de encontrar a existência de grupos
organizados, acabando por ressaltar apenas personagens individuais. A
pesquisadora destaca que “as respostas das mulheres à opressão estrutural
do patriarcado e à dominação masculina sempre ecoaram no silêncio da
história” [BITTENCOURT, 2015, p.2] e é por conta desse calar os
movimentos como algo pensado no coletivo e combativo na mesma lógica,
que só vamos encontrar as primeiras organizações feministas na Revolução
74
Francesa com o aparecimento das sufragistas. Pontua que é nesse
momento histórico que são separados na teoria as correntes teóricas
socialista, anarquista, conservadora cristã e liberal. A busca pelo conceito
ampliado de cidadania a partir do ideal burguês liberal tornar-se o ponto
central e as reivindicações pela formação profissional e por representação
política demonstra como esses interesses partiam de uma classe média
branca, pois na mesma época as mulheres negras não eram nem
equiparadas como ser humano, muito menos estavam lutando por direitos
de cidadania, já que se encontravam tendo que enfrentar primeiramente as
opressões e as amarras da escravidão.

Em uma análise do contexto histórico pré movimento da segunda onda,


Naiara Bittencourt percebe que “o cenário mundial também é marcado por
uma intensa efervescência, como o movimento hippie nos EUA, a guerra no
Vietnã, o maio de 1968 em Paris, o lançamento da pílula anticoncepcional e
os levantes populares” [BITTENCOURT apud PINTO, 2015, p.4]; entre as
décadas de 1960 e 1980 os movimentos feministas passam a incorporar
outras reinvindicações que não sejam de caráter burguês. É aqui que as
vozes das mulheres negras e pobres que sempre foram caladas e
subjugadas dentro do próprio movimento feminista vão tomar dimensão e
lugar na luta contra as opressões de gênero e trarão para esse
enfrentamento as questões de raça e de classe.

A partir disto é possível entrar no âmbito de análise e entendimento das


peculiaridades dos movimentos negros para que assim possamos
compreender a importância de seu estudo. O artigo “Feminismo negro
diaspórico” [2007], da socióloga PhD em Antropologia Social Sônia Beatriz
dos Santos, foi a base para alcançar a análise da forma que se deu a
composição social e política do feminismo negro. Através de sua definição
de feminismo negro como “grupos cujas práticas políticas e intelectuais são
produzidas e desenvolvidas por feministas e/ou ativistas afrodescendentes”
[SANTOS, 2007, p.1], e a divisão de cinco correntes que representam esse
feminismo no plano mundial, o afro-latino americano, o afro caribenho, o
afro-americano, o africano e o das negras britânicas, podemos perceber as
múltiplas dimensões das experiências de mulheres negras em suas diversas
particularidades.

Demonstra em sua discussão a crítica feita por intelectuais negras sobre a


ausência de um estudo teórico das relações raciais dentro dos movimentos
feministas. Partindo desta defasagem apontada pelas mulheres negras é
que surge a busca para conceituar suas experiências em relação às
opressões que vivenciam. A luta da mulher negra é colocada como um
legado, já que desde o momento em que nasce passa a sofrer com a
submissão estruturada historicamente desde o período da escravidão.
Dessa forma, a socióloga trás a importância da ideia de que as experiências
dessas mulheres sejam validadas como relevante na produção de
conhecimento. Para uma experiência ganhar veracidade como descrição da
realidade social, essa precisa possuir um papel epistemológico, pois assim
ajudará a reconhecer o lugar do indivíduo na sociedade e no mundo
[SANTOS apud MOHANTY, 2007, p.3].

É interessante refletirmos a respeito desses questionamentos feitos pelos


75
movimentos feministas negros e suas intelectuais porque nos leva a pensar
sobre quem sempre contou a história do mundo, a quem pertence à
produção do conhecimento e quem está autorizado a falar. A filósofa e
ativista do feminismo negro brasileiro, Djamila Ribeiro, trás em seu
raciocínio, na publicação da Revista Pandora o texto “O que é lugar de fala”
[2018], a importância de entender de que lugar social as pessoas partem
para relatar suas histórias e agir no mundo. Aponta que essas experiências
vão muito além de falar acerca de determinado assunto, o lugar de fala é
sobre poder existir na sociedade.

Djamila menciona a epistemologia dominante que impõe um conhecimento


tornando ele universal e passível de reprodução sistemática e como a
discussão do lugar de fala ser importante para romper com essa dinâmica,
já que essa disputa de narrativas é também uma forma de disputar
reconfigurações de mundo. Enfatiza que “mais do que falar é necessário
educação de base e políticas públicas eficientes, que sejam capazes de
quebrar e desconstruir a voz única, masculina, branca, eurocêntrica e cristã
que controla todas as narrativas” [RIBEIRO, 2018, p.7].

A importância de entender o conceito está na capacidade que possui para


nos ajudar a perceber os preconceitos e estereótipos que perpetuamos. A
fala, portanto, pode deslegitimar lugares e sujeitos, pois é uma ferramenta
política que toma proporções ostensivas. Djamila identifica no colonialismo
o centro das legitimações ou deslegitimações de certas identidades, onde
são criadas as estruturas de opressão e “embora a colonização tenha
terminado formalmente, o imperialismo e a globalização ainda perpetuam
inúmeras formas de desigualdade” [RIBEIRO, 2018, p.17].

Ao longo da história a visão da exploração das mulheres negras tem sido


contada a partir daqueles que a subjugaram. O uso opressivo de suas
imagens contribuiu para a manutenção da dominação sobre essas
mulheres. Intelectuais da década de 30 do século XX sustentaram essa
imagética da mulher negra a partir de ideologias racistas e machistas. Em
sua pesquisa e no desenvolvimento da sua tese “O feminismo negro
brasileiro: um estudo do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro e
São Paulo” [2007], a socióloga Núbia Regina Moreira trás Gilberto Freyre
como um dos pensadores que auxiliaram e deram caráter científico no
degradar a imagem da mulher negra, designando a ela um papel social na
hierarquia da família patriarcal.

Ao sexualizar a mulher mulata, Freyre dá à negra a única função que lhe


caberia, de acordo com ele, ter o trabalho braçal. “O servilismo tem sido
considerado atributo natural ou papel social designativo das funções da
mulher negra na sociedade” [MOREIRA, 2007, p.19], ou seja, a mulher
negra tem a sua existência baseada em servir aos outros. A escravidão foi o
sistema responsável pela configuração da mulher negra de forma
pejorativa. Para legitimar o estupro que praticavam contra essas mulheres,
o homem branco afirmava que as negras eram dotadas de uma sexualidade
desenfreada e por isso precisavam ser controladas.

Moreira demonstra que “de antiga escrava, a mulher negra ascende à


condição de empregada doméstica, quando a nação brasileira se insere
76
numa ordem industrial/fabril, cabendo, ao segmento negro, a execução de
trabalhos manuais.” [MOREIRA, 2007, p.23]. A posição e as condições
sociais das mulheres negras fizeram com que elas aprendessem a lidar com
a rua, a fim de garantir o sustento da família. Isso se dá de forma diferente
da mulher branca classe média do século XX, que não necessitava lidar com
o trabalho braçal.

Através das diferenças entre as mulheres brancas e negras que já se


encontravam estruturadas desde muito tempo, podemos compreender a
necessidade de existir vertentes especificas dentro do feminismo, pois é
latente que as condições as quais viveram e vivem não são iguais. À
exemplo, é válido pensar sobre a enorme representatividade que tem
Carolina de Jesus nos movimentos feministas nacionais contemporâneos.
Em sua obra “Quarto de despejo” [1960] é possível perceber como a
condição de mulher, negra, pobre e favelada é marcada pela dificuldade de
sobreviver em um país com um governo omisso às conjunturas sociais, e
em uma sociedade machista e racista que subjuga mulheres em todo
tempo.

A literatura é desenvolvida entre 1955 e 1960, e a partir de uma narrativa


muito envolvente e tocante, Carolina conta do seu próprio dia a dia e suas
dificuldades como catadora de papel, demonstrando em sua escrita uma
válvula de escape da dura e cruel realidade vivida na favela de Canindé, na
beira do rio Tietê. Através da escrita de si, marca uma identidade muito
forte em seus relatos que denunciam a violência, a miséria e a fome. Sua
obra é um conjunto de escritos em cadernos encontrados nos lixos que
catava, onde relata o abandono das favelas pelo poder público. Denomina a
favela como o verdadeiro “quarto de despejo”, o que posteriormente se
torna o nome da literatura.

O machismo e a violência contra a mulher são marcas explícitas no livro; a


autora relata diversos acontecimentos vividos e presenciados onde
mulheres eram agredidas em casa por seus maridos ou em brigas na rua, e
é a partir disto que enfatiza em alguns momentos que não quer ter homem
dentro de casa, pois não se submeteria a ser violentada e ter mais
problemas na vida além dos que já possuía.

Neste sentido, Carolina de Jesus é um exemplo de mulher negra que não se


deixou abalar pelo sistema opressor de gênero, raça e classe social, lutando
diariamente contra o machismo, o racismo e a fome para poder sobreviver
em um ambiente abandonado pelo poder público, em uma sociedade
estruturalmente preconceituosa. Pensando em histórias como essa e
auxiliando no empoderamento de outras mulheres negras, temos
significativamente, por exemplo, a formação do Coletivo Negro Carolina de
Jesus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fazendo com que essas
mulheres ocupem espaços de poder, reivindicando seus direitos,
denunciando e lutando contra o racismo institucional que visa impedir sua
mobilidade social, e contra uma estrutura repressora que insiste em manter
a população negra nos porões da sociedade.

Referências
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt e Juliana Otero Nogueira são mestrandas
77
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, tendo ambas concluído a graduação na mesma instituição. Este
artigo é, portanto, fruto de questionamentos coletivos acerca dos debates
de gênero e suas aplicações no cotidiano e em sala de aula.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo:


Companhia das Letras, 2014.
BITTENCOURT, Naiara Andreoli. As “ondas” dos movimentos feministas e
eurocentrismo da História. Revista InSURgência, Brasília, v.1, n.1, jan/jun
2015.
BUTLER, Judith. Sujeitos do sexo/gênero/desejo. In: Problemas de gênero:
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SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: A escrita da história: novas
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A ORIENTAÇÃO SEXUAL NA ESCOLA: UM ESTUDO DE CASO
Ana Paula dos Santos Reinaldo Verde e Eleildada Silva Santos

O tema sexualidade está na “ordem do dia” da escola. Presente em diversos


espaços escolares ultrapassa fronteiras disciplinares e de gênero, permeia
conversas entre meninas e meninos e é assunto a ser abordado na sala de
aula pelos diferentes especialistas da escola.
78
Porém, a sexualidade na Educação Básica ainda é vista como algo
indesejável, tanto por parte da própria escola como, sobretudo, da família.
Aspectos relevantes que são tratados nos PCN’s no eixo transversal
Orientação Sexual são relegados a Educação Básica por ausência de
formação básica dos profissionais da educação. É mister salientar que a
ausência do desenvolvimento desse tema transversal a ser trabalhado em
sala de aula passa pela falta de compromisso entre os Gestores
educacionais e os docentes, justificando essa afirmativa haja vista que
existe material específico para o desenvolvimento de um trabalho
sistemático sobre sexualidade nas escolas municipais advindos do Governo
Federal.

A criação do tema Transversal Orientação Sexual nos Parâmetros


Curriculares Nacionais é outro indicio da inserção deste assunto no âmbito
escolar. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s 1998,
p.293), A orientação sexual na escola é um dos fatores que contribui para o
conhecimento e a valorização dos direitos sexuais e reprodutivos. Estes
dizem respeito à possibilidade que homens e mulheres tomem decisões
sobre sua fertilidade, saúde reprodutiva e criação dos filhos, tendo acesso
às informações e aos recursos necessários para implementar suas decisões.

A sexualidade é o que há de mais íntimo nos indivíduos e aquilo que os


reúne globalmente como espécie humana. Está inserida entre ‘as disciplinas
do corpo’ e participa da ‘regulação das populações’, sendo um ‘negócio de
Estado’ é tema de interesse público, pois diz respeito à saúde pública, à
natalidade, ao povoamento e à qualidade de vida da sociedade.

Sexo e Sexualidade: conceitos diferentes e complementares


A partir do século XII, formou-se uma aparelhagem para produção de
discursos sobre o sexo, a qual, baseada na técnica da confissão possibilitou,
a constituição do sexo como objeto de verdade.

No entanto é a partir do século XIX que o termo sexualidade surge com


contorno diferente. Seu uso é estabelecido em relação a outros fenômenos,
como o desenvolvimento e o estabelecimento de regras e normas apoiadas
em religiosidade, conceitos pedagógicos ou judiciários e orientações
médicas; mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar
sentido e valor a sua conduta, desejos, prazeres, sentimentos, sensações e
sonhos.

Comumente as pessoas confundem sexualidade com sexo ou simplesmente


com o ato sexual, fruto da desinformação generalizada sobre educação
sexual, pois, na verdade o sexo é a estrutura biológica (a constituição física
e seu funcionamento), psicológica (o sentimento de ser sexuado ou o se
sentir homem ou mulher) e social (desempenho de papeis definidos para
homens e mulheres).

Segundo Foucault (apud, REIS, 1999, p. 150) em suas teses, a sociedade


capitalista não obrigou o sexo a silenciar-se, ao contrário, este é motivado a
manifestar-se e esta mesma sociedade nos convida a falar de nossa
sexualidade, no entanto traçar concepções de sexualidade, na sociedade
atual, não é uma tarefa simples, pois se trata de um assunto altamente
79
complexo, que vai além das determinações biológicas de caráter racionalista
na medida em que trata de sujeitos humanos.

Segundo Guimarães (1995, p. 23), sexo é relativo ao fato natural,


hereditário, biológico, da diferença física entre o homem e a mulher, e da
atração de um pelo outro, para a reprodução.

Pode-se definir o sexo como a conformação particular que distingue o


macho da fêmea, conferindo-lhes características diferentes, em outras
palavras, sexo é a identidade sexual. Apesar da simplicidade do sexo, nossa
sociedade com seus tabus, não transmite essa visão, nela o sexo aparece
sempre como algo vergonhoso, impuro, feio, proibido e vários outros
sinônimos depreciativos, sendo passado de geração à geração através dos
tempos. A palavra ‘sexo’ não se resume tão somente á anatomia genital, a
um mecanismo de reprodução ou fonte de prazer. Na espécie humana o
sexo é muito mais que isso, inclui características físicas, aspectos
psicológicos, éticos, morais e culturais.

Para os PCN´s (1997 p. 117) sexo “é expressão biológica que define um


conjunto de características anatômicas e funcionais (genitais e
extragenitais)”. Por essas razões, diferencia-se de sexualidade que é uma
dimensão inerente ao ser humano e que está presente em todos os atos de
sua vida. Encontra-se marcada pela cultura, assim como pelos afetos e
sentimentos, expressando-se com singularidade em cada sujeito.

Para os Parâmetros (1997, p. 117), a sexualidade “é de forma bem mais


ampla, expressão cultural. Cada sociedade cria conjuntos de regras que
constituem parâmetros fundamentais para comportamento sexual de cada
indivíduo”.

Diferenciar sexo e sexualidade é de suma importância, pois, são palavras


diferentes em seu significado e por essa razão se faz necessário um
entendimento entre esses dois conceitos. Para Foucault (1990), “a vontade
de saber de nossa sexualidade, nossas opiniões e pensamentos sobre a
mesma, se torna artifício básico de controle disciplinar do corpo e da
população”.

Os PCN’s buscam uma visão pluralista sobre a sexualidade, dando abertura


para as diferentes crenças e valores, as duvidas e os questionamentos
sobre os diversos aspectos ligados a sexualidade.

Nesse sentido deve haver um trabalho em conjunto entre escola e família,


no sentido de se buscar os esclarecimentos acerca de temas relacionados a
sexualidade dando oportunidade a informação sistemática em torno do sexo
e da sexualidade.

A formação de atitudes, valores e condutas do individuo ocorrem com o


conhecimento adquirido na escola, nos meios de comunicação e na
interação social, no entanto essa educação formativa e informativa é às
vezes insuficiente para as crianças e os adolescentes, fato que remete a
importância do papel dos educadores, na confiança que os alunos
80
depositam neles, sendo, portanto a escola o lugar ideal para a formação e
informação da sexualidade.

Educação sexual e orientação sexual


Tratar de Educação e ou Orientação Sexual é algo complexo e que requer
na atualidade cuidados que vão além da terminologia, pois a educação
brasileira a partir da LDB 9694/96, exige que este assunto seja tratado
como pertinente à educação formal escolarizada, como algo disciplinar ou
como componente curricular que permita uma melhor compreensão do que
seja educação e orientação sexual.

Enfim, Educação Sexual diz respeito ao conjunto de valores transmitidos


pela família e pelo ambiente social, percorrendo toda a vida, e recebendo
influências da cultura, da mídia (rádio, TV, revistas...), dos amigos (as), da
escola, e que nos permite incorporar valores, símbolos, preconceitos e
ideologias. Todos nós somos educadores sexuais, logo, todas as pessoas
são educadas sexualmente.

Por outro lado, diferencia-se da Orientação sexual que é um processo de


intervenção sistematizado, planejado e intencional, promovendo o espaço
de acolhimento e reflexão das dúvidas, valores, atitudes, informações,
posturas, contribuindo para a vivência da sexualidade de forma responsável
e prazerosa.

Não se limitando apenas a uma mera informação reprodutiva ou preventiva,


pois a sexualidade tem uma dimensão histórica, cultural, ética e política que
abrange todo o ser: corpo e espírito, razão e emoção, podendo se expressar
de diversas formas: carícias, beijos, abraços, olhares. Assim, ela abrange o
desenvolvimento sexual compreendido como: saúde reprodutiva, relações
de gênero, relações interpessoais, afetivas, imagem corporal e auto-estima.
Sendo assim, a Orientação Sexual deve ser abordada de duas formas:
Dentro da programação, por meio dos conteúdos, ou seja, transversalizados
nas diferentes áreas do ensino;

Mediante a programação, complementar ou extra, sempre que surgirem


questões relacionadas ao tema. Não se trata, portanto, de criar novos
conteúdos, e, sim, desvendar a dimensão da sexualidade em geral, oculta
ou estereotipada nos conteúdos específicos de cada disciplina.

Desse modo, os blocos de conteúdos propostos para o Ensino Fundamental


abarcam três eixos fundamentais que devem nortear toda e qualquer
intervenção do professor ao abordar o tema em sala de aula, que são: O
corpo: matriz da sexualidade, tratado como um todo integrado em suas
funções biológicas, afetivas, perceptivas e de relação social; as relações de
gênero, no sentido das representações sociais e culturais construídas a
partir da diferença biológica dos sexos; a prevenção às Doenças
Sexualmente Transmissíveis/AIDS, com ênfase na prevenção e na saúde, e
não nas doenças, a fim de não vincular a sexualidade à doença ou à morte.

Esses conteúdos podem e devem ser flexíveis, de forma a abranger as


necessidades específicas de cada turma, a cada momento, pois o professor
também pode abordar temas trazidos pelas crianças; aliás, julga-se ser este
81
o ponto de partida do trabalho. Para tanto, o documento propõe que a
relevância sócio-cultural deva ser um critério de seleção dos conteúdos e
que o professores, ao abordá-lo nas escolas, levem em consideração as
dimensões biológicas, culturais, psíquicas e sociais, pois sendo a
sexualidade uma construção humana, esta se encontra marcada pela
história, pela cultura, pela ciência, assim como pelos afetos e sentimentos,
expressada com singularidade em cada sujeito.

A Orientação Sexual como tema transversal proposto pelos PCN’s deve ser
entendida como um processo de intervenção pedagógica, cujo objetivo é
transmitir informações, problematizar questões e ampliar o leque de
conhecimento e opções referentes à sexualidade, incluindo posturas,
ideologias, crenças e tabus, propiciando debates e discussões a ela
relacionada, para que o próprio aluno escolha seu caminho de forma
consciente.

A escola é, sem dúvida, uma das instituições que mais reflete as regras
sociais, cuja atuação e funcionamento têm papel decisivo na construção do
sujeito. A escola é um local reconhecido pelo grupo social como
transmissora de informações, habilidades e valores culturais, socialmente
compartilhados.

Vários são os motivos que justificam a Orientação Sexual na escola: jovens


bem informados costumam iniciar a vida sexual mais tarde e com maior
responsabilidade. Muitas famílias não abrem espaço para o diálogo em casa
e deixam essa função para a escola. Assim, as crianças e os adolescentes
conversam sobre sexo com os amigos e podem receber informações
incompletas, errôneas e preconceituosas, a televisão mostra todos os dias,
inúmera cenas de sexo e de relacionamentos entre homens e mulheres nem
sempre de forma natural e saudável.

Sendo a escola um lugar de curiosidades, sonhos, medos, idéias,


aprendizagem, conquistas, descobertas etc., esta não pode excluir as
manifestações da sexualidade e, sim criar um espaço de discussão aberta e
franca sobre ela, deixando de lado os próprios preconceitos, permitindo que
cada um se mostre como é: com suas dúvidas, conflitos, medos. É ela
quem detém os meios pedagógicos necessários para a intervenção
sistemática sobre a sexualidade, de modo a proporcionar a formação de
uma opinião mais crítica sobre o assunto, permitindo, assim, a satisfação e
os anseios dos alunos.

Como não se trata de uma disciplina obrigatória, sujeita a notificações, a


escola e/ou determinados ‘os professores’ sentem-se desobrigados de
assumir mais essa ‘árdua’ tarefa. Esses dados não foram tão
surpreendentes assim, pois, na prática, são ‘pouquíssimas’ as escolas que
assumem realmente a tarefa de desenvolver um trabalho permanente e
consistente de Orientação Sexual.

A orientação sexual na visão dos professores do ensino fundamental


Entendendo-se como Duarte (1993, p. 42) “que o sexo e a sexualidade
desempenham papel essencial em nossas vidas, influenciando nosso modo
de ser”, é que os profissionais do ensino da Unidade Integrada Cidade
82
Olímpica, perceberam a necessidade que os adolescentes e as crianças tem
de uma construção de conhecimento pautada nas relações humanas
permeadas de sexualidade.

Para os professores da Escola Unidade Integrada Cidade Olímpica, a


Educação e Orientação sexual supõem um trabalho contínuo, sistemático e
regular, perpassa todo o ano letivo através de atividades escolares e
extraescolares. Dessa forma pressupõe a formação contínua, na forma de
atividades de grupos, ciclos de palestra, debates na comunidade escolar
com participação da família, utilizando a interdisciplinaridade e a
transversalidade como aportes metodológicos para a implementação das
ações práticas e teóricas.

Ao atuar como um profissional a quem compete conduzir o processo de


reflexão que possibilitará ao aluno autonomia para eleger seus valores,
tomar posições e ampliar seu universo de conhecimento, o professor deve
ter discernimento para não transmitir seus valores, crenças e opiniões como
sendo princípios ou verdades absolutas. O trabalho coletivo da equipe
escolar, definindo princípios educativos, em muito ajudará cada professor
em particular nessa tarefa.

Para tanto os trabalhos são planejados para envolver todas as áreas de


ensino, orientadores, coordenadores, auxiliares de ensino, professores e os
pais dos alunos, alguns professores assumem de forma relativa a
organização dos trabalhos, embora a responsabilidade seja de todos e não
apenas daquela equipe que está à frente do projeto.

É necessário então, que o educador e todos os colaboradores tenham


acesso à formação especifica para tratar de sexualidade com crianças e
jovens na escola, possibilitando a construção de uma postura profissional e
consciente no trato desse tema. O professor deve então, entrar em contato
com questões teóricas, leituras e discussões sobre as temáticas especificas
de sexualidade e suas diferentes abordagens; preparar-se para a
intervenção prática junto dos alunos e ter acesso a um espaço grupal de
supervisão dessa prática, o qual deve ocorrer de forma continuada e
sistemática, constituindo, portanto, um espaço de reflexão sobre valores e
preconceitos dos próprios educadores envolvidos no trabalho de orientação
sexual.

Geralmente, faz-se um planejamento das atividades por série e por área de


conhecimento, buscando atender às necessidades da educação infantil e do
ensino fundamental, então se torna indispensável criar um espaço próprio
dedicado em seu currículo para trabalhar a sexualidade, todo a organização
destes eventos passa por uma elaboração própria sob a supervisão dos
professores dos diferentes níveis de ensino.

A Unidade Integrada Cidade Olímpica em âmbito municipal reflete as


necessidades básicas do bairro; alunos doentes, sem condições mínimas de
saúde pessoal. Vários são os casos detectados na escola de hanseníase,
meningite, hepatite, dentre o mais comum a gravidez precoce e os abortos.
83
Partindo dos pressupostos dos PCN’s, formou-se uma comissão de
professores no sentido de ministrar palestras educativas sobre orientação
sexual para os pais e responsáveis no sentido de tirar dúvidas e
esclarecimentos acerca do projeto a ser desenvolvido na escola.

Este trabalho teve embasamento teórico advindo do Programa Federal


Educação Sexual na Escola, em que a escola participou e teve material
adequado disponível para desenvolver o Projeto.

As reuniões referentes ao Projeto aconteciam às quartas-feiras, na chamada


formação continuada, nesse espaço eram debatidas estratégias, conteúdos,
competências e habilidades a serem desenvolvidas no Projeto, que teve sua
culminância no dia 1 de dezembro, Dia Mundial do Combate a AIDS.

O quadro social da escola era de que todos os anos, desde a fundação da


escola em 1999, eram constatados cerca de 10 casos de gravidez por ano,
foi possível contar com a colaboração e compreensão de pais e responsáveis
para o desenvolvimento efetivo para o desenvolvimento do projeto
Sexualidade na Escola – promoção de estilo de vida saudável.

O projeto Sexualidade na Escola promoção de estilo de vida saudável


direcionou o seu trabalho para os temas: abuso sexual, desmistificação de
crenças populares, questão de gênero, planejamento familiar,
homossexualidade, métodos anticoncepcionais, AIDS, gravidez na
adolescência e aborto, DST’s e saúde reprodutiva.

A importância de tal projeto está na contribuição do âmbito escolar que


presta a sociedade e a comunidade referida. Portanto, com a
implementação de ação ativas a nível, municipal, tem-se a ambição de
tornar a escola um espaço em que tem por objetivo formar cidadãos
conscientes de sua sexualidade.

Considerações
Através deste projeto foi possível perceber o universo dos conflitos
presentes nas escolas e nos ambientes familiares desde o início do século
perpassando os meios midiáticos. Podemos observar que os estudiosos de
sexo/sexualidade e educação/orientação sexual são unânimes em afirmar
que a sexualidade poderá ser extremamente gratificante se a criança e o
adolescente tiver uma orientação bem direcionada que os levem a escolher
bem seus parceiros e souber tomar decisões e atitudes no momento certo,
para não ser surpreendido por problemas como gravidez indesejada ou por
Doenças Sexualmente Transmissíveis.
Um trabalho de orientação sexual sério possibilita a explicação dos medos e
a abordagem de diferentes mitos e preconceitos culturais de forma segura.
Segundo Moser (2002, p. 25) a primeira grande lição que os pais devem dar
a seus filhos, é revelarem uma vida sexual equilibrada, de respeito mútuo,
de ajuda e de renuncia. Esta é a grande lição de vida, ou seja, os pais e os
mestres precisam ajudar as crianças e os adolescentes a se libertarem, a
serem eles mesmos.
84
O educador deverá conhecer a si próprio, sua própria sexualidade, para que
possa de modo aberto desenvolver um trabalho onde tenha condições de
falar de sexualidade com clareza, sem reticências e sem receios,
antecipando informações que possam chegar deturpadas e sejam causa de
danos irreversíveis na vida dessas pessoas.

É necessário a conscientização da sociedade, principalmente dos


educadores, e de programas de formação docente responsável por uma
contribuição na implantação das propostas curriculares, diversificação dos
recursos necessários e desenvolvimento de projetos que priorizem os
conteúdos transversais.

Referências
Professora da educação básica no Maranhão e professora bolsista do Parfor
História (Programa de formação de professores da educação básica) pela
Universidade Federal do Maranhão. Possui graduação em História e
Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão (2007). Especialista em
Psicopedagogia pela Faculdade Internacional de Curitiba e Psicologia da
Educação pela Universidade Estadual do Maranhão Mestrado em Historia
Profissional pela Universidade Estadual do Maranhão e Doutoranda em
Educação pela Universidade Estadual do Ceará.
E-mail:napaularenaldo@gmail.com
Graduanda do Curso História Parfor (Programa de formação de professores
da educação básica)da Universidade Federal do Maranhão e Professora da
Unidade Escola Básica Emília de Araújo Melo em 2018-2019.

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A COR LILÁS E A BONECA ABAYOMI: SÍMBOLOS DA LUTA
POLÍTICA DAS MULHERES E DAS MULHERES NEGRAS NO
ENSINO DA HISTÓRIA
Andréa Giordanna Araujo da Silva

O texto aborda a história da criação de dois símbolos que têm relação com
86 a história da mulher e dos movimentos feministas. O Primeiro é a adoção da
cor lilás como símbolo do movimento feminista, em âmbito internacional, e
o segundo é a boneca Aboymi, como referência às mulheres negras no
Brasil. Realiza-se a descrição da origem histórica dos símbolos e dos seus
possíveis usos no ensino de história, com crianças, nos anos iniciais do
Ensino Fundamental. O estudo analisa as produções pedagógicas
resultantes do trabalho realizado com graduandos do curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Alagoas, na disciplina Saberes e Metodologias do
Ensino de História II – SMEH II (2017-2019) e no projeto de extensão
“Raízes Negras do Brasil e de Alagoas: por uma História recontada nas
escolas” (2018-2019).

Os símbolos em questão
Nas atividades pedagógicas desenvolvidas no campo da educação, formal e
não formal, a cor lilás tem sido utilizada como símbolo da causa feminista:
da luta das mulheres por dignidade e igualdade nas relações sociais,
equidade nas condições de trabalho, direitos civis e liberdade sexual.

Segundo a pesquisadora Ana Isabel Álvarez González [2010], a cor lilá foi,
inicialmente, adotada como a cor oficial do movimento feminista em âmbito
internacional para recordar um incêndio ocorrido, em 1911, numa fábrica de
produção de roupas femininas em Nova York, quando em torno de 146
pessoas formam mortas. O mito trata de uma fábrica que teria sido
incendiada, de propósito pelo proprietário, em represaria à recursa das
trabalhadoras de desenvolverem suas funções em condições indignas de
trabalho. Assim, o empresário teria fechado as portas e ateado fogo na
fábrica, devido a um movimento grevista.

Gonzalez ao pesquisar as fontes históricas, observou que as condições de


trabalho nas fábricas, na primeira década do século XX, eram de modo
geral inseguras e que os empresários não atendiam as mínimas exigências
de segurança determinadas pelos órgãos oficiais:

“No outono de 1910, o serviço de controle sanitário de Nova York (New York
Joint Board of Sanitary Control) investigou as condições de 1.243 oficinas
têxteis da cidade Dessa, 99% foram declaradas inadequadas em matéria de
segurança; 14 não possuíam saídas de incêndios; em 101 foram detectadas
escadas defeituosas; 491 tinham apenas uma saída; em 23, as portas
permaneciam fechadas com chaves durante o dia; 58 estavam
insuficientemente iluminadas; em 78, os acessos às saídas de incêndio
estavam bloqueados e as portas de 1,172 (94%) abriam para dentro”
[Gonzalez, 2010, p. 35].

Considerando as precárias condições a que estavam submetidos os


trabalhadores e trabalhadoras das fábricas e a incidência de desastres nos
locais de trabalho, o movimento de reivindicação dos trabalhadores e
trabalhadores é fenômeno constante nos países em que a indústria estava
em ascensão no início do século XX. Assim, não parece crível pensar que
um empresário perderia todo o seu o patrimônio com o objetivo de punir o
movimento reivindicatório, e que se utilizaria de um tipo de violência que
lhes traria sérias consequências jurídicas. O incêndio resultou,
possivelmente, do resto de cigarro aceso e descartado por um trabalhador.
Todavia, os proprietários da fábrica foram levados a julgamento devido ao
87
não atendimento das normas de segurança, pois as portas estavam
fechadas e as funcionárias não conseguiram sair do local. Porém, foram
inocentados, porque não se conseguiu provar se eles ou funcionários
haviam fechado a porta, e cabe salientar que se tratava de um júri formado
apenas por homens.

Este desastre teve como consequência a realização de muitos eventos de


reivindicação por segurança. Alguns foram promovidos por instituições
sindicais formadas por mulheres, como a Liga Sindical de Mulheres e o
Sindicato Internacional dos Trabalhadores em Confecção para Mulheres. As
ações resultaram no alcance de alguns direitos jurídicos para as
trabalhadoras.

“Entre as recomendações, que se transformaram em leis, não só no Estado


de Nova York, mas também em outros Estados, estavam a redução da
jornada de trabalho das mulheres, a limitação da idade das crianças para
começar a trabalhar, a proibição do trabalho noturno para mulheres, as
compensações econômicas pelos acidentes de trabalho, as medidas para
preveni-los e a exigência de normais mais rígidas para instalação de
fábricas e estabelecimentos comerciais” [Gonzalez, 2010, p. 40].

Embora o acontecimento trágico descrito apresente as opressões vividas e


as lutas travadas pelas mulheres trabalhadoras nos Estados Unidos e tenha
servido de referência ao movimento feminista, em âmbito internacional,
segundo González [2010, p. 35], não existe registro histórico que relacione
a cor lilás ao incêndio ocorrido na Triangle Shirtwaist Company:

“Apesar de que o mito conta que as empregadas da fábrica incendiadas


utilizavam uniformes de cor lilás, posteriormente adotado como a cor
feminista por excelência, as fontes consultadas para determinar as
condições de trabalho da Triangle não só não fazem menção a nenhuma
cor, como nem sequer mencionam que estas operárias utilizassem
uniformes.”

Embora a cor lilás não esteja relacionada ao fenômeno histórico citado, ela
é o símbolo que agrega o conjunto dos movimentos e práticas feministas
surgidos a partir das lutas das mulheres por direitos. Assim, usualmente,
aparece na exposição dos trabalhos das feiras de ciências e nas imagens e
produções expostas nas escolas no dia Internacional da Mulher, ou em
eventos que tratam sobre gênero e violência contra a mulher.

A Abayomi é descrita, usualmente, como uma boneca, porém, em sua


origem, ela foi produzida não relacionada ao ato do brincar, mas como um
objeto de expressão da memória de um grupo étnico e hierarquicamente
situado na estrutura da sociedade: a mulher negra ou a mulher negra
africana traficada para o Brasil, nos governos colonial e imperial
escravocratas.

A Abayomi transformou-se em um mito nas narrativas orais, após sua


criação. De uma produção artística, criada e difundida em curso para
mulheres negras no estado do Rio de Janeiro, a Abayomi se transformou em
um mito. Passou a ser descrita como uma referência às mulheres negras
88
africanas, que, quando traficadas e transportadas para as colônias no navio,
rasgavam suas vestimentas e produziam bonecas de pano, modeladas pela
feitura de nós nas extremidades do tecido, como objetivo de acalentar seus
filhos durante a tortuosa viagem. Essa narrativa está disseminada como se
fosse um fato histórico em muitos sites na internet. Assim, ao escrever a
frase “crianças nos navios negreiros”, no buscado Google, o primeiro
anúncio é “Abayomis: Amuleto que diminuía a dor de crianças nos navios
negreiros”, produzido pela Rádio Agência Nacional [2016]. O texto afirma
que:

“Por séculos, milhares de africanos foram trazidos ao Brasil para serem


escravizados. Dentro do navio negreiro e em meio a condições terríveis,
mães se esforçavam para amenizar a dor e o medo dos filhos. Durante a
travessia, as mulheres rasgavam pedaços do tecido das suas saias. Para
acalantar as crianças, o pano se transformava em matéria-prima para a
confecção de pequenas bonecas, as Abayomi. Feitas sem costura, apenas
com tranças e nós, as africanas acreditavam que a peça de tecido preto e
vestes coloridas também servia como amuleto de proteção para seus filhos.
De origem iorubá, “abay” significa encontro e “omi”, precioso. Para as
mães, as bonecas Abayomis trazem uma mensagem: “Ofereço a você o
melhor que tenho em mim”. Em terra e séculos depois, a boneca de pano
que acalentou tantas crianças negras virou símbolo da sabedoria e da
resistência dos povos africanos.”

Ao escrever no mesmo buscador termo Abayomi, o primeiro site ao tratar


da temática foi o Geledés – Instituto da Mulher Negra [2015], um
importante espaço on-line e físico que desenvolve atividades de formação
para tratar das questões da mulher negra no Brasil. Neste espaço a
narrativa se repete:

“Para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos


tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o transporte de escravos
entre África e Brasil – as mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e
a partir deles criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que
serviam como amuleto de proteção. As bonecas, símbolo de resistência,
ficaram conhecidas como Abayomi, termo que significa ‘Encontro precioso’,
em Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja população
habita parte da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim. Por Kauê Vieira,
do Afreaka” [Gedeles, 2015].

Todavia, o texto anterior tem como complemento outra informação:


“’Lena Martins, Movimento Negro e o começo de tudo’
Cláudia Muller também se inspirou no trabalho da pioneira quando o
assunto é Abayomi, Waldilena Martins, ou Lena Martins para os mais
chegados. Educadora popular e militante do Movimento das Mulheres, ela
liderou a confecção das bonecas no Brasil no final dos anos 1980, ao
mesmo tempo em que o Movimento Negro organizava uma marcha para
lembrar os 100 anos da abolição. Em um cenário em que a questão
ecológica estava se popularizando, o objetivo de Lena era fazer da arte
89
popular instrumento de conscientização e sociabilização. Não demorou para
que o trabalho fizesse sucesso e chamasse a atenção de mulheres
espalhadas pelos quatro cantos do país. A aceitação foi tanta que em 1988
foi criada no Rio de Janeiro a Cooperativa Abayomi, plataforma fundamental
para o fortalecimento da autoestima e reconhecimento da identidade afro-
brasileira. Por meio de um trabalho social e humanitário, a Cooperativa
Abayomi está em constante diálogo com os movimentos negros, estudantil,
sindical e religioso. O projeto faz parte da rede nacional contra a violência à
mulher e da rede de mulheres negras latino-caribenhas. Integram o time da
Cooperativa Abayomi mulheres educadoras, psicólogas, terapeutas, que
juntas organizaram um grupo de trabalho baseado na conscientização e
socialização do indivíduo” [Gedeles, 2015].

Segundo pesquisa desenvolvida por Gomes et al. [2017], sobre trajetória


da artista Lena Martins e do surgimento das Abayomi, a criação da boneca
Abayomi ocorreu na segunda metade da década de 1980, por iniciativa da
artesã Lena Martins, à época militante do movimento de mulheres negras.
O objeto lúdico recém inventado, por uma maranhense, que vivia no Rio de
Janeiro e atuava como coordenadora de animação cultural no Centro
Integrado de Educação Pública (CIEP) Luís Carlos Prestes, tinha a função
política ser um “[...] exercício de transmissão de uma memória a ser
reconstruída [p. 256], era como estratégia para fortalecer a identidade
negra e a dar visibilidade à origem africana deste grupo étnico-racial”.

A Abayomi é mais que uma Boneca, é uma técnica de criação; é um objeto


lúdico feito com nós sem costura e sem cola e sem face; um saber-fazer
que buscar a re(construção) da memória negra. “Os nós são resultados da
ação das mãos, das palavras, da identificação social, de gênero e da
ancestralidade [p. 259]. Criada por mulheres negras, militantes do
movimento negro da década 1980 e reproduzidas em cursos e oficinas nos
anos 1980 e 1990, as Abaoymi “[...] integram o conjunto de símbolos que
marcam a memória dos movimentos negros” e caracterizam-se “[ ...] como
instrumento pedagógico de sensibilização concernente à identidade das
mulheres negras” [p. 261 e 262].

Na obra Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer [1988]


observam como a lenda das aventuras de Homero serviram de inspiração
para justificar os valores e princípios da razão da burguesia, em acessão
política e econômica na Europa, no âmbito do iluminismo. Assim, Homero
cumpre a função de ser um fenômeno agregador dos povos da Europa, na
época da acedência dos ideários iluministas, ele é visto como um ancestral
comum e fundador das qualidades do homem burguês; trata-se do um
desbravador de terras, corajoso, ágil, criativo, forte e inteligente. Homero
foi capaz de vencer um ciclope, criatura maior e mais forte que ele,
utilizando-se da dissimulação e da mentira como recursos que
representavam a inteligência e a astucia; obras de sua mente criativa. Foi
capaz de atravessar o canto das sereias ouvindo a música que elas
cantavam, porém não as seguiu, porque estava amarrado em um mastro do
navio, isto permitiu que ele não as seguisse. Fingiu ser outro indivíduo, ao
retornar para casa, para testar a fidelidade de sua esposa e a confiança de
seus súditos. Assim, embora as ações de Homero nem sempre estivessem
imbuídas da verdade e da ética, elas eram úteis, vistas como inteligentes,
90
pois buscavam a autoconservação do indivíduo (a preservação da vida),
logo eram justas e coerentes com a razão burguesa.

É considerando o mito com um elemento comum aos sujeitos, que


possibilita encontrar uma unidade na diversidade, assim também são os
símbolos que podem representar no campo político, por exemplo, uma
causa social, um grupo étnico ou um partido político. Assim, a cor lilás e a
boneca Abayomi ganharam sentido e tonaram-se símbolos de lutas comuns
às mulheres na diversidade (movimentos feministas) e na unidade
(particularidade das mulheres negras no Brasil).

Observamos que os símbolos não foram construídos a partir da memória


histórica oficial, mas ainda assim produzem sentidos como referência ao
passado de violência e resistência das mulheres. Assim, como o mito, o
efeito de sentido dos símbolos é produzir e fazer circular discursos que
reforçam a imagem da mulher como sujeito histórico ativo, receptor,
produtor e transformador de cultura.

O Ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental


Em nosso trabalho de formação inicial de professores, no curso de
Pedagogia, temos realizado, sobretudo, duas ações para a abordagem da
História das Mulheres e a História dos Negros e Negras no Brasil. Realiza-se
um trabalho de discussão teórica sobre as temáticas citadas e a produção
de jogos didáticos na disciplina Saberes e Metodologia do Ensino de História
II. Ainda, frequentemente, em nossos projetos de extensão, produzimos
oficinas que abordam a História dos Negros e Negras em Alagoas e no
Brasil. Nesta última ação, priorizamos a confecção da boneca Abayomi para
criar a representação positiva da mulher negra, que passa a ser
apresentada às crianças como a mãe e a filha de alguém. Com esse
trabalho pedagógico buscando desassociar a imagem da mulher negra da
pessoa escravizada que as crianças veem nos livros de história.

Um exemplo de jogo didático que explora a cor Lilás como símbolo é o “A


Luta Feminina por Direitos no Brasil do Século XX”, produzido pelas futuras
professoras Anielle Silva e Emanoela Damasceno [2019, p. 2]:

“Quando pensamos em trabalhar a luta das mulheres por direitos no Brasil


do século XX, pensamos principalmente que queríamos, com o trabalho,
demonstrar um pouco da importância da atuação da mulher em diversas
lutas que diversas vezes passam despercebido e com a reunião da literatura
para a confecção do jogo pudemos comprovar isso. Diversas histórias de
luta, de união, que pode causar um senso de pertencimento enorme nas
meninas que tiverem acesso ao jogo e de respeito (que muitas vezes não é
semeado ao longo da vida) entre os meninos, vendo que, apesar de ainda
vivermos numa concepção patriarcal de sociedade e valores, muito do que
temos hoje é advindo da luta feminina.

Percebemos que ao se trabalhar história na sala de aula, em diversos


acontecimentos apresentados há apenas figuras masculinas a frente destes.
Assim sendo, o jogo A Luta Feminina Por Direitos no Brasil do Século XX
traz em si uma relevância social enorme, quando auxilia no combate ao
sexismo, visando ainda um empoderamento feminino, fomentando uma
91
educação pautada na equidade, quebrando assim estereótipos implantados
na sociedade ao longo das gerações.”

Imagem 1: Jogo “A Luta Feminina por Direitos no Brasil do Século XX”


Fonte: Silva e Damasceno, REP 2, 2019.

No material pedagógico, a cor Lilás (em suas várias “tonalidades”) é usada


como discurso político e ideológico. Não se trata de um elemento utilizada
para melhor expor a estrutura física do objeto, ele pretende formar e
direcionar o olhar da (o) estudante para a luta feminista, por meio do uso
do símbolo.

Já a Abayomi, usualmente, é utilizada em oficinas, cursos e momentos


pedagógicos diversos no ensino de história (oficinas pedagógicas para os
professores, feiras de ciências e atividades relacionadas ao dia da
Consciência Negra) em que a questão da história e cultura negra busca ser
tratada como símbolo de luta, resistência e produção de cultura. Assim, em
nossas vivências pedagógicas, a linguagem artística, com a confecção da
“boneca” (vista por nós mais como escultura que como boneca), visa criar
a miragem da mulher negra como mãe e mulher, como sujeito capaz de
amar, distanciando-se da representação da mulher negra escravizada,
representada como se fosse um mero objetivo, uma mercadoria e um
indivíduo incapaz e inerte, animalizado e distante da figura humana) tão
comum na abordagem dos livros de história dos anos iniciais do ensino
fundamental.
92

Fonte: a autora, 2019.

Segundo Joice Beth [2019, p. 113], “[...] os conceitos estáticos acerca do


belo têm mudado de acordo com os valores e intenções da época”. A
abordagem do mito da Abayomi apresenta à escola a história da mulher
negra como sujeito produtor de história e de cultura, que sofreu (e ainda
sofre) opressões diferentes de outras mulheres membros da nossa estrutura
social patriarcal, mas que resiste e se reproduz como figura forte e que luta
por emancipação política e econômica [Ribeiro, 2017]. Pretendemos
colaborar para que as crianças, jovens e adultos desenvolvam o sentimento
de empatia, como construção intelectual [Ribeiro, 2019], em relação as
questões políticas e sociais conexas à opressão e à resistência do negro e
da negra no Brasil e estimular a criação de ações antirracistas e de
reconhecimento do papel da mulher na sociedade brasileira no trabalho
pedagógico realizado na escola, desde a infância.

Considerações
Os materiais (jogos) e as atividades pedagógicas (oficinas de produção de
Abaoymi) produzidos na disciplina SMEH II e no projeto de extensão “Raízes
Negras”, mesmo lembrando da situação de desqualificação da mulher na
história e os processos de silenciamento da mulher negra como mãe,
esposa e filha, mostram que esta condição não é natural e que a luta e a
resistência das mulheres foram e são os meios necessários para o
reconhecimento da mulher como sujeito histórico produtor de cultura e de
resistências, que interferem na transformação das práticas culturais,
econômicas e políticas constituídas por elas, com elas, para elas e entre
elas.

Nota: Adotamos o termo tráfico em contraposição a ideia de um comércio


ultramarino de pessoas, pois o rapto, captura, compra, aprisionamento,
transferência para as colônias e escravização de pessoas africanas precisam
ter considerados como formas de violências à existência humana, não um
acordo entre Estados e comerciantes.

Referências
Andréa Giordanna Araujo da Silva é professora da disciplina Saberes e
Metodologias do Ensino de História do Curso de Pedagogia e Programa de
Pós-Graduação em História da UFAL, pesquisadora do “Grupo de Estudos
Ensino, História e Docência” e Líder do Grupo de Pesquisa “História da
Educação, Cultura e Literatura”
[https://cedu.ufal.br/grupopesquisa/gephecl/].
ADORNO, Theodor; HORKEIMER, Max. Dialética do esclarecimento.
Tradução Guido de Almeida, Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
GELEDÉS. Bonecas Abayomi: símbolo de resistência, tradição e poder
feminino. 22 mar. 2015. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/bonecas-abayomi-simbolo-de-resistencia-
tradicao-e-poder-feminino/.
93
Acesso em: 06 nov. 2019.
GOMES, Edlaine et al. A boneca Abayomi: entre retalhos, saberes e
memórias. Iluminuras, Porto Alegre, v. 18, n. 44, p. 251-264, jan./jul.,
2017.
GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a comemoração do dia
internacional das mulheres. São Paulo: Expressão Popular: SOF-
Sempreviva Organização Feminina, 2010.
Rádio Agência Nacional. Abayomis: Amuleto que diminuia a dor de crianças
nos navios negreiros. Brasília, 16 nov. 2016. Disponível em:
<http://radioagencianacional.ebc.com.br/cultura/audio/2016-09/abayomis-
amuleto-que-diminuia-dor-de-criancas-nos-navios-negreiros>. Acesso em:
6 nov. 2019.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019
______. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando,
2017.
SILVA; Anielle; DAMASCENO, Emanoela Damasceno. Relatório de
Experiência Pedagógica. Maceió: UFAL/SMEH II, 2019.

Bibliografia (usada para produção dos recursos e práticas pedagógicas)


AGUIAR, Vilenia V.P. Somos todas margaridas: um estudo sobre o processo
de constituição das mulheres do campo e da floresta como sujeito político.
Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2015.
GIULANI, Paola Cappelin. “Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade
brasileira”. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2004.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-
1937). São Paulo: Brasiliense, 1981. p 61.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
F. Perseu Abramo, 2003.
SOUTO, Bárbara. “Senhoras do seu destino”: Francisca Senhorinha da Motta
Diniz e Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista
na imprensa brasileira (1873-1894). Dissertação (Mestrado), Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2013.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
O PROTAGONISMO DAS MULHERES NO ENSINO DE HISTÓRIA:
UMA ANÁLISE DA PRESENÇA FEMININA NOS LIVROS
DIDÁTICOS DA ESCOLA SESI
Andresa Fernanda da Silva e Pablo Afonso Silva

O presente artigo tem por objetivo trabalhar o ensino de História e seus


desdobramentos em sala de aula, destacando as problemáticas que
94 permeiam o tema a partir da análise do porquê mulheres são tão pouco
citadas em livros didáticos? Qual sua importância histórica e por que tão
cerceada por diversos autores ao retratar a História?

A reposta a estas indagações são apresentadas e discutidas durante todo o


trabalho, resultando como principais hipóteses da persecução de tal
problemática a própria ideologia a qual está envolvida a instituição de
ensino, estando o SESI e demais instituições ligadas ao sistema “S”
articuladas para a promoção dos serviços à indústria, carregando em seu
material didático, indiscutivelmente, a mesma ideologia. Além de tal fato,
destaca-se como uma hipótese a tal acontecimento, a própria armadilha na
“comercialização da educação”, em que, em nome das renovações
historiográficas, trazendo temas ditos mais atuais aos livros didáticos,
acabam por deixar os grandes feitos femininos nas últimas páginas dos
mesmos, em uma posição de mínimo destaque. Por fim, ao ofuscar o
protagonismo da mulher, revela-se o andamento de interesses que seguem
hierarquias, planos e principalmente projetos, para garantir o controle,
sustentar as ideologias do sistema, planos e currículos, materializados de
forma cultural e identitária.

A presença das mulheres nos livros didáticos de história


Os livros didáticos são sabidamente fonte de referência em sala de aula. O
trabalho com o material em sala se não é, acaba sendo a única fonte de
acesso a informação dos alunos, já que, suas representações e imagens
refletem parte da formação de seus leitores, conforme sinaliza Costa a
respeito de tais materiais, que:

“Na medida em que é acessível ao público ao qual se destina, também pode


desempenhar um papel significativo na formação ideológica e cultural no
cotidiano escolar, seus textos e imagens passam a ser um forte referencial
para quem o lê. Por representar um importante instrumento de trabalho em
sala de aula, constata-se que muitas vezes, professores e alunos o têm
como única fonte de informação”. (COSTA,2006, p. 32).

A preocupação com o ensino de História, da maneira que deve ser,


abrangente e democrático, vai completamente contra a distorção que é feita
com os livros didáticos, principalmente no que diz respeito a história das
mulheres, pois, ao analisar esses conteúdos, a inquietação dos historiadores
e historiadoras está em garantir que os pilares epistemológicos que
fomentam a pesquisa histórica despertem a consciência dos sujeitos, o que
nos obriga a esmiuçar os conceitos que vão de encontro a realidade
histórica dos indivíduos.

Trabalhar com a consciência histórica remonta a vários outros aspectos,


pois, conforme salienta (CERRI, 2001) a consciência é referida muitas vezes
a realidades diferentes ou até mesmo excludentes entre si, o que gera uma
relação de identificação entre os sujeitos, que partem daquilo que vivem
como parâmetro para guiar suas ações no presente.

Tendo a história das mulheres como parâmetro, para uma análise profunda
dos livros didáticos, para falar dos sujeitos históricos, falar da história das
mulheres que participaram dos processos e acontecimentos histórico,
necessária é uma análise epistemológica, pois, pensar a epistemologia nos
95
faz avaliar como o campo dos conceitos é responsável por produzir os
conhecimentos, e entre eles, o conhecimento histórico.

Segundo Martins (2010) conhecimento histórico caracteriza-se de duas


formas:

“O conhecimento histórico se caracteriza por duas dimensões comple-


mentares. Uma diz respeito à historicidade de todo e qualquer con-
hecimento. Com efeito, mesmo se o conhecimento vem a ser expresso de
forma genérica ou universal (como no caso das assim chamadas “leis da
natureza”, por exemplo), sua aquisição e seu controle, assim como seus
objetos e sujeito, somente subsistem no tempo histórico. A outra dimensão
refere-se ao conhecimento produzido pela ciência histórica, de acordo com
suas referências teóricas e com seus procedimentos metódicos”. (MARTINS,
2010, p. 5-6)

Tomando como base a primeira dimensão de conhecimento histórico, ao


analisar-se a história das mulheres, é sabido que as relações e discussões
de gênero não estão presentes na escola e muito menos nos livros
didáticos, e por isso, o controle daquilo que está nos livros estão
submetidos a relações que impede os alunos de pensarem nas mulheres
enquanto sujeitos da história, pois, conforme salienta Rago (1998),
tomamos as representações daquilo que temos como verdade daquilo que
operamos e reproduzimos, ou seja, a exclusão e o silenciamento das
mulheres.

Trabalhar com os alunos as esferas que envolvem os conceitos


epistemológicos é o primeiro passo para trabalhar com as mulheres nos
livros didáticos, entender como as relações de poder se estabelecem no
âmbito da educação é essencial para analisar como as mulheres são
representadas. Salienta Rago que:

“Dessa maneira é que percebemos como o discurso do poder se pronuncia


sobre a educação, a fim de definir o seu sentido, a forma e a finalidade de
sua prática pedagógica e o conteúdo a ser ensinado, estabelecendo sobre
cada disciplina o controle das informações a serem transmitidas.” (RAGO,
1998, P.28)

O controle das informações a serem transmitidas traz aos livros didáticos de


história um caráter excludente ou superficial, como no caso da história das
mulheres, colocadas em muitos livros como um braço de ajuda aos homens,
em papeis secundários, mas sempre as atribuindo características
masculinas, o que impõe na formação dos alunos a ideia de que se
“masculinizadas”, as mulheres seriam capazes de serem reconhecidas como
sujeitos importantes da história. (SILVA, 2007)

As representações das mulheres nos livros didáticos revelam pensamentos


que determinam funções sociais aos homens e mulheres, o que polariza os
gêneros dentro de uma lógica dual:

“[...] O pensamento dicotômico e polarizado, que concebe os gêneros como


96
polos opostos que se relacionam dentro de uma lógica de dominação-
submissão, certamente em nada, ou muito pouco, contribui para um ensino
de história que possa formar sujeitos plurais, capazes de pensar e refletir
sobre o mundo e as relações a partir de uma história que se constrói
cotidianamente, e não pronta e definitiva.” (SILVA, 2007, P. 236)

Estabelecer os lugares que homens e mulheres devam ocupar, revela de


forma natural o modelo de sociedade atual, cheio de singularidades,
espelhadas em comportamentos totalmente machistas que se materializam
na realidade dos alunos, determinando comportamentos que legitimam as
desigualdades sociais.

Contudo, trabalhar os conteúdos que abordam as desigualdades sociais


como é o caso da história das mulheres, refletem avanços significativos ao
ensino de história e aos estudos de gênero, pois, fomentar estas discussões
traz a história, com todo o seu viés critico, oportuniza aos alunos a
autonomia para reconhecer-se ou não, naquilo que aprendem e no que
estudam nos livros, é o balanço fundamental para os estudantes se
afirmarem como sujeitos da história. Sobre o assunto, articula Schmidt e
Cainelli que:

“No ensino de História é fundamental tomar a experiência do aluno como


ponto de partida para o trabalho com os conteúdos, pois é importante que
também o aluno se identifique como sujeito da história e da produção de
conhecimento histórico. Nesse sentido, tanto os professores quanto o
material didático disponível devem atender a prerrogativa de que a História
é feita por todos os seres humanos e que suas vivencias são importantes e
contributivas nessa construção.” (SCHMIDT & CAINELLI, 2009, p. 47)

A participação e o reconhecimento do aluno enquanto sujeito histórico é o


que move as propostas de ensino de história. Sobre isso, Pereira (2017)
destaca a superação de determinados processos de alienação e o
conhecimento das ciências humanas, como um fator crucial e determinante
para que o aluno compreenda a discriminação e o preconceito declarado nas
relações em sociedade.

Trabalhar a presença das mulheres nos livros didáticos contribui para a


análise do preconceito e da discriminação destilada a elas, o que reflete o
discurso dominante e majoritariamente masculino que há nos livros
didáticos, que demanda um constante trabalho de revisão, e traga à tona a
participação das mulheres, sobretudo, das mulheres negras, indígenas,
operárias, que caracterizam uma história vista de baixo, história esta que
fundamenta as mulheres e os demais sujeitos subalternizados como
efetivos protagonistas da história.
Analisando a história das mulheres nos livros didáticos da escola
SESI
O trabalho com os livros didáticos da escola Sesi traz consigo
peculiaridades, as quais deve-se primeiramente analisar-se a escola e o que
é o sistema “S”? Pelo que e para quem o Sesi trabalha? São estes e vários
outros questionamentos que emanam uma análise quanto a abordagem
feita em seus livros didáticos e de como seus princípios enquanto instituição
97
financiada pela indústria respinga na história, e em especial na história das
mulheres.

Os livros didáticos aqui expostos fazem jus a conteúdos trabalhados no


ensino médio, trataremos das três series, e de conteúdos diversos, dando
enfoque no período histórico, na participação das mulheres e na maneira
como as mesmas são representadas.

A luta pela representação das mulheres e das demais minorias políticas nos
livros didáticos é complicada, pois, por mais que exista o latente conflito
entre estabelecer a historiografia nos parâmetros do materialismo histórico,
ainda há dificuldades em abordar estes conteúdos, conforme sinaliza
BITTENCOURT:

“(...) um aspecto fundamental que preside a seleção dos conteúdos é o


domínio da produção historiográfica e do processo de reelaboração e
apropriação desse conhecimento em uma situação escolar que,
invariavelmente, tem de estar relacionada aos objetivos pedagógicos e às
especificidades das condições de aprendizagem.” (BITTENCOURT, 2008,
P.138)

As relações pedagógicas e as condições de aprendizagem não são dadas aos


alunos pelos livros didáticos, pois, a historiografia e o debate feito sobre os
conteúdos revelam inúmeras defasagens, como é o caso do conteúdo
trabalhado no primeiro ano do ensino médio, que aborda as mulheres na
Grécia antiga, porém, apesar da breve contestação, é interessante analisar
que o material se preocupa em analisar o papel das mulheres no presente
também, o que implica em uma discussão que diz respeito a pouca
representação das mulheres em cargos políticos e como as mesmas estão
suscetíveis a violência doméstica.

Analisando a presença das mulheres nos livros didáticos do Sesi, é possível


verificar que há uma classificação, não se tem registros de textos e imagens
de mulheres negras e indígenas, as únicas mulheres presentes nas
discussões são mulheres brancas, que também protagonizam a história,
porém, não são somente elas que a fazem.

Compreender que os livros didáticos potencializam comportamentos que


afastam os alunos de suas realidades é o primeiro passo para trabalhar com
a educação histórica, pois, como pontuado acima, é impossível falar da
presença das mulheres no ensino de história se não falarmos das minorias
políticas de maneira geral, a ausência desses debates cria entre os alunos e
os livros os chamados signos, ou seja, como é recorrente a falta de debates
sobre as mulheres, os alunos nem questionam a presença dessas temáticas.
(GOMES, 2007)

Pontuando mais uma vez a presença das mulheres nos livros didáticos do
Sesi, passemos a segunda série do ensino médio, onde o enfoque é dado as
mulheres operárias, uma abordagem muito breve e superficial, e que foca
especialmente nas condições precárias e insalubres que as mulheres
estavam expostas, porém, uma questão interessante trazida pelo material é
98
a ascensão dos movimentos sociais de luta pelo direito das mulheres, que
impulsionaram as trabalhadoras têxtis a irem as ruas, especialmente nas
greves de 1917, que desembocaram na famosa revolução russa.

A abordagem da história das mulheres nos livros é mínima, mas, essa


análise demanda um olhar mais crítico por parte dos professores, pois, um
bom planejamento didático configura o professor da seguinte maneira:

“[...] professores de História bem informados, com acesso a conhecimentos


oriundos de diferentes fontes, têm melhores possibilidades de exercer
qualificadamente o seu trabalho, descortinando horizontes mais amplos,
posicionando- se com maior autonomia diante das demandas da sua
profissão e, consequentemente, fazendo escolhas e utilizações do livro
didático com maior protagonismo” (CAIMI, 2010, p. 106).

Utilizar os livros didáticos com maior protagonismo é o caminho para


aperfeiçoar a consciência histórica dos alunos, e ainda mais o ensino de
história, pensando em sua abordagem na escola e no debate epistemológico
na qual promove, ou que pelo menos, deveria promover.

Fazendo uma análise do livro de história da terceira série do ensino médio,


visualiza-se que de fato, os livros do Sesi não tocam mesmo nas mulheres
negras e indígenas, apesar de debater da ascensão do movimento feminista
e a participação política das mulheres durante no período da república
velha, as protagonistas de luta pelas conquistas ainda são as mulheres
brancas e operárias. O protagonismo dessas mulheres evidencia
constantemente a indústria, como uma forma de reafirmar as ideologias da
escola o tempo todo.

A vista disso deve-se considerar que um ensino de história pautado no


protagonismo feminino ainda precisa de muitos avanços, trabalhar com os
livros didáticos, com a revisão dos conteúdos e a reformulação dos planos
pedagógicos é preciso, o objetivo central é incluir os alunos como adjuntos
da história, para que assim possam reconhecer como as identidades são
fragilizadas, como os estudos de gênero devem estar presentes na escola, e
como todos os outros debates que fomentam a colocação de determinados
sujeitos a margem da sociedade precisam estar regulamentados no chão da
sala de aula.

Algumas considerações
Como fora apontado ao longo deste ensaio, o protagonismo das mulheres
ainda é superficial nos livros didáticos, em especial nos livros da escola Sesi
aqui analisados, a ausência de um debate latente sobre as questões de
gênero e a relação entre homens e mulheres falta no material, assim como,
uma maior expansão do protagonismo feminino, para além das mulheres
brancas e operárias.

Mediante a isso, é que o presente trabalho buscou contextualizar um pouco


sobre as ideologias que cercam a escola Sesi, e também, como os livros
didáticos foram bombardeados pela interferência de inúmeras relações de
interesse e poder, masculinizando as mulheres, trazendo-as sempre as
sombras dos homens, como se as mesmas fossem inerentes aos processos
99
e acontecimentos históricos.

Finalizando, a abordagem ao ensino de história foi essencial para a criação


deste texto, pois, tratar as minorias dentro de uma perspectiva histórica é o
que sem dúvida guia o pilar principal de formação do historiador, que deve
expressar a seus alunos que são sujeitos da história.

REFERÊNCIAS
Andresa Fernanda da Silva, graduanda do curso de Licenciatura em História,
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas
(UFMS/CPTL), e-mail: andresa.fernanda1606@gmail.com
Pablo Afonso Silva, graduando do curso de Licenciatura em História, pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas
(UFMS/CPTL), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de
Professores (GForP-UFMS/CPTL), e-mail: pabloafonsosilva@hotmail.com

BITTENCOURT, Circe (Org.) O saber Histórico na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2010.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos/Circe Maria Fernandes Bittencourt – 2. Ed. – São Paulo: Cortez,
2008.
CASTALDI. José Zanardi Dias. História: Ensino médio 1º ano. 1 ed.- São
Paulo: SESI, 2012. P. 27 (Movimento do aprender.)
CASTALDI. José Zanardi Dias. História: Ensino médio 2º ano. 1 ed.- São
Paulo: SESI, 2012. P. 113 (Movimento do aprender.)
CASTALDI. José Zanardi Dias. História: Ensino médio 3º ano. 1 ed.- São
Paulo: SESI, 2012. P. 19 (Movimento do aprender.)
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dizem os professores. In: BARROSO, Véra Maciel [et al]. Ensino de história:
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MULHERES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: INSERÇÃO
E PERSPECTIVA NOS ESPAÇOS DE SABER-PODER
Antonia Stephanie Silva Moreira e Jakson dos Santos Ribeiro

O conceito de alfabetização tem se modificado ao longo do tempo. “Com


base nos diversos censos demográficos realizados no Brasil podem-se
perceber alguns aspectos dessas alterações.” [SCHWARTZ, 2010, p.23].
Inclusive no modo de avaliação do nível de alfabetização dos indivíduos. Até 101
1940 era alfabetizada a pessoa que assinava seu nome, a partir de 1950
eram consideradas alfabetizadas as pessoas que sabiam ler e escrever um
texto simples.

Na década de 1990 políticas públicas como a Bolsa Escola fomentaram o


acesso da população à educação básica. No ensino superior, com a criação
de programas como o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) e PROUNI
(Programa Universidade para Todos) e com o aumento das universidades
privadas, que ultrapassou em muito o número de alunos matriculados em
relação a universidade pública, favoreceu especialmente as mulheres.
[DOTTA, 2015, p. 09]

Desde o século XX estamos presenciando um avanço no que diz respeito à


formação das mulheres. “No Brasil a educação de mulheres é fato recente e
intenso. ” [PINSKY, 2013, p. 333]. Desde o primeiro censo de 1872 até o de
1950 os indícios de analfabetismo de mulheres eram vários pontos
percentuais maiores que os dos homens. A inversão só foi detectada no
início dos anos 1990. E de fato a educação feminina só se efetivou com a
LDB em 1971 com a equivalência entre os cursos secundários.

Inicialmente é necessário apresentar uma contextualização acerca do


público alvo das desigualdades sociais. A EJA, segundo dados do MEC, surge
como uma modalidade de ensino responsável pela conclusão da educação
básica de jovens e adultos que em seu período regular não tiveram a
oportunidade de terminar os estudos e assim incluí-los socialmente de
modo satisfatório. Pensando nisso reflete-se sobre algumas questões no
tocante a continuidade dessa forma de ensino.

A EJA no Brasil, é marcada por sucessivos processos governamentais


[ALMEIDA, 2015]. Mas em contrapartida, a maioria deles foi descontínuo o
que ocasionalmente cristalizou a essa modalidade de ensino uma
invisibilidade muito grande nos projetos públicos. Apesar dos jovens e
adultos serem assegurados tanto pela LDB, quanto pela Constituição
Federal, na prática vemos que a carência de políticas públicas destinada à
EJA é muito grande. O impedimento não é especificamente na oferta
dessas vagas, mas, sim em mecanismos asseguradores da permanência
desses alunos na sala de aula, haja vista muitos deles serem obrigados a
escolher entre a educação ou a sobrevivência.

O processo histórico pelo qual a Educação de Jovens e Adultos passou,


denuncia de certo modo o quão forte são as desigualdades sociais ao nosso
redor. Trabalhadores e trabalhadoras obrigados a se contentarem em
receber salários pequenos e ainda se submetem a condições de trabalhos
extremamente exaustiva por conta do baixo índice educativo durante seu
período regular é preocupante em nossa sociedade. [ARROYO, 2017]. A EJA
é, ou pelo menos deveria ser, uma das modalidades de ensino que
assegurasse essa possibilidade de conclusão do ensino aos jovens, adultos e
até mesmo de idosos.

“A inserção no campo da Educação de Jovens e Adultos, na idade adulta,


significa conciliar diferentes responsabilidades com as tarefas, horários e
outras exigências escolares.” [EITERER, 2014, p.07] Em geral a jornada
102
doméstica pesa mais sobre as mulheres, então retornar aos estudos se
torna uma alternativa somente na EJA devido a grande quantidade de
responsabilidades que as mesmas assumem ao longo de suas trajetórias.

O programa educacional que mais possibilita a inserção de mulheres na


educação é a Educação de Jovens e Adultos (EJA), e agora de Idosos, a qual
é assegurada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96. Esse modelo
de educação possibilita que as mulheres que por diversos motivos tiveram
que deixar de frequentar as salas de aula, como a necessidade de trabalhar
desde a menoridade, a constituição da família que sobrecarrega ou a falta
de transporte para o deslocamento até a escola, a retornarem para o
âmbito escolar. [FERNANDES, 2016, p. 02]

As mulheres encontram na EJA uma oportunidade de terminarem seus


estudos, devido ao horário noturno pois há a possibilidade de desempenhar
outras atividades ao longo do dia. Mas isso nem sempre é garantia de
permanência nas salas de aula, pois muitas vezes são proibidas por seus
maridos, ou ainda precisam cuidar dos filhos entre outros motivos que
fazem o nível de evasão das mulheres ser acentuado.

“[...] Para a mulher que decide voltar a estudar, são várias as dificuldades
enfrentadas entre a matrícula e a permanência nas aulas, ou seja, contar
com o apoio do marido, parentes, filhos, patroas ou com a violência física e
psicológica; luta solitária pela sobrevivência deixar de ser obediente ao
marido e brigar pelo seu direito de estudar; assumir, no contexto
profissional, a opção pelo estudo e enxergar que o marido não tem o direito
de impedir que ela prossiga seus estudos. Sentar nos bancos escolares
representa o nascimento de uma nova vida, valorizada e reconhecida, por
ser alguém que adquiriu conhecimentos no contexto escolar.” [CAMARGO,
2014, p. 131]

O conhecimento é construído, produzido, selecionado e sendo assim não é


neutro, dessa forma os próprios alunos de EJA são produtores de
conhecimento também A identidade da educação de pessoas jovens e
adultas vem dessa coexistência, encontro, confluência dessas identidades
coletivas. [ARROYO, 2017, p.24]. Todos são atores do real vivido. Nossas
memórias estão ligadas à grupos, desse modo a vida cotidiana também vai
se fixando à memória. As memórias trazidas por mulheres para a sala de
aula podem ser as mais diversas dependendo de sua vida cotidiana fora da
escola.

Nesse sentido, COSTA (2014), de igual modo afirma que, “Todavia,


algumas vezes, essas memórias rompem com a realidade, convidando-nos
a uma viagem pela imaginação, pelo mundo da subjetividade. Isso é natural
quando se apreende que a lembrança não se configura como uma mera
reprodução do fato; ela é, sobretudo, recriação do passado, é esperança de
construção do novo.”

Conforme afirma [LOPES, 2019, p. 02], “É preciso que a sociedade


compreenda que alunos de EJA vivenciam problemas como preconceito,
vergonha, discriminação, críticas dentre tantos outros. E que tais questões
são vivenciadas tanto no cotidiano familiar como na vida em comunidade.”
103
Se formando assim uma teia onde o ambiente de convívio e os problemas
pessoais do indivíduo afetam a educação como o inverso.

Mas essa é uma questão que vai além do debate sobre educação, perpassa
também pela esfera do gênero, mais especificamente a desigualdade entre
os gêneros. Nas palavras da historiadora Joan Scott “O gênero se torna,
aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres.” [SCOTT, 1989, p.07]. Ou seja, gênero é caracterizado pela
construção de atitudes e comportamentos em sociedade.

Isto é, a necessidade de cuidar dos filhos e da casa requer muito tempo das
mulheres que muitas vezes são encarregadas desses serviços sozinhas.
Então muitas vezes se veem sem opção e obviamente sem tempo para o
retorno a escola. O retorno às escolas revela muitas coisas. Resistências,
identidades, lutas por igualdades entre outros. “A volta à escola como
passageiros da noite e do dia em itinerários pelo direito a um justo viver é
uma firmação de coragem.” [ARROYO, 2017, p. 242]

“O ideário de que a educação de meninas e moças deveria ser mais restrita


que a de meninos e rapazes em decorrência de sua saúde frágil, sua
inteligência limitada e voltada para sua “missão” de mãe; o impedimento à
continuidade dos estudos secundários e superior para as jovens brasileiras”
[PINSKY, 2013, p. 334].

Isso reflete de certo modo no perfil social das mulheres que estão
matriculadas nas turmas de EJA. Haja vista que muitas delas em sua
juventude não tiveram oportunidades de concluir seus estudos.

Em 1879 com a Lei Leôncio de Carvalho as mulheres tiveram o direito de


estudar em instituições brasileiras de ensino superior. De acordo com
(PINSKY, 2013), algumas mulheres se destacaram no que se refere a
inserção no ensino superior. Mas isso se deu depois de muito tempo de
negação da educação formal as mulheres devido o imaginário da época ser
voltado para a natureza corruptível da mulher, atrelado as crenças
religiosas. Mulheres como Maria Augusta Generosa Estrela que foi a
primeira brasileira a ter diploma de ensino superior, porém não foi em uma
instituição brasileira. No ano de 1882 Maria se formou em Medicina nos
Estados Unidos.

Ainda de acordo com (PINSKY, 2013), Em 1887 a branca Rita Lobato


graduou-se na faculdade de Medicina da Bahia. Apenas 39 anos depois uma
negra conseguiu se graduar em nível superior no Brasil. Maria Rita de
Andrade graduou-se portanto em Direito pela Faculdade de Direito da
Bahia. Trata-se, porém, além do gênero feminino, é visível neste caso o
preconceito estrutural e social com relação a cor do indivíduo. É deste modo
uma barreira dupla, ser mulher e ser negra.

Maria das Dores de Oliveira, da etnia pankararu, obteve em 2006 o título de


doutora pela Universidade Federal de Alagoas. Retoma-se aqui a afirmação
inicial que “no Brasil a educação de mulheres é fato recente e intenso.”
[PINSKY, 2013, p. 333]. Então por muito tempo pensou-se que partilhar de
104
etnias indígenas foi sinônimo de retrocesso e marginalização. Então ter uma
mulher indígena com doutoramento é um avanço significativo na educação
de mulheres.

Podemos questionar a ideia de hierarquização, recordando que não há, em


essência, trabalho que seja em si mesmo feminino ou masculino. As
atribuições sociais estabeleceram esses lugares e podem ser alteradas.
[Eiterer, 2014, p. 169] Ou seja, muito do que hoje se considera espaços
femininos e masculinos são frutos de construções sociais, assim como o
acesso à educação. Há estudos sobre a trajetória educacional das mulheres,
isso se deve ao fato de que existem uma grande quantidade de mulheres
formada em ciências humanas.

Aprendemos a ser homens ou mulheres pela ação da família, da escola, de


instituições religiosas, grupos de amigos entre outros. Por isso que, Joan
Scott coloca que, o “[...] gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as
“construções sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os
papéis próprios aos homens e às mulheres.” [SCOTT, 1989, p.07]. Ou seja,
gênero é caracterizado pela construção de atitudes e comportamentos em
sociedade.

Consoante a esse elemento, devemos também levar em consideração a


categoria, classe, discutimos o sentido do processo histórico e como ela
concebe a ideia da: má distribuição de renda e a forma como as pessoas
são discriminadas no que se refere ao nível econômico dos indivíduos. A
dificuldade de ascender socialmente é um dos motivos que ainda permeiam
e solidificam a divisão das classes econômicas e desse modo muitas pessoas
se sentem discriminadas por tal condição.

“O racismo e o sexismo que vêm da colônia reproduzem-se na república e


são repostos na fraca, violenta democracia. Realismo e sexismo reafirmados
nas estruturas de poder, de trabalho. De classe. [...]” [ARROYO, 2017,
p.246]. No que se refere a classe para os alunos de EJA “Viver, [...]
significa ter o que comer, ter um salário, ter uns trocados.” [ARROYO,
2017, p.57]. Quer dizer, em virtude das limitações econômicas se veem
obrigados a largarem os estudos no período regular e agora na EJA
pretendem retomar as atividades.

Referências
Jakson dos Santos Ribeiro – Professor Adjunto I, Doutor em História Social
da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História
Social pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em
História do Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano)
(2011). Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da
Universidade Estadual do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de
Caxias-MA) (2011). Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro de
Estudos Superiores de Caxias – CESC – Campus/UEMA.
Antonia Stephanie Silva Moreira é graduanda em Licenciatura Plena em
História, pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade
Estadual do Maranhão – CESC/UEMA.

ARROYO, Miguel. Passageiros da noite: do trabalho para a EJA: itinerários


105
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II CINTEDI. Centro de Convenções Raymundo Asfora. 16 a 18 de novembro
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PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres
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Eiterer, Carmem Lucia. Aspectos da escolarização de mulheres na EJA.
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A HISTÓRIA DAS MULHERES E O ENSINO ATRAVÉS DE UMA
ABORDAGEM REGIONAL E LOCAL
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior

A História enquanto disciplina e abordagem científica passou por inúmeros


debates ao longo do último século, algo que contribuiu de forma
significativa para estudos que não mais privilegiassem apenas alguns
106 grupos e indivíduos, tais como reis e “heróis”, sendo todos masculinos.
Assim, algumas reflexões apresentadas por Natalie Davis, Edward
Thompson e Christopher Hill dentre outros trouxeram contribuições aos
estudos de outros personagens, passando a observar mulheres, operários,
camponeses etc como entes ativos na história e não mais como passivos,
visão errônea perdurou há muitos anos.

A partir dos debates acerca das fontes e os personagens na história, as


mulheres passam a ser entendidas como importantes no processo histórico
a que estavam inseridas, combatendo o silenciamento nas produções que
perduraram durante anos. Dessa forma, entende-se a importância de
compreender que a história das mulheres vai muito além de criar heroínas
etc, mas de entender que estas sempre estiveram envolvidas direta ou
indiretamente nos processos históricos que foram sendo constituídos ao
longo dos séculos. Contudo, por muito tempo perdurou uma visão
masculina da história, algo que principalmente na segunda metade do
século XX recebeu novas abordagens e reflexões importantes sobre a
construção de uma história das relações de gênero e no combate a seu
silenciamento. Segundo Joan Scott:

“Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais


entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas,
como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas
de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens
têm uma força muscular superior” (Scott, 1995, p. 7).

Além das contribuições apontadas anteriormente, importante destacar


estudos como os de Michelle Perrot, historiadora francesa e uma das
referências acerca da história das mulheres e que apresenta de forma clara
e objetiva, a importância das ações das mulheres ao longo da historia.
Segundo Michelle Perrot:

“Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao


passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da
memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo,
“esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da
reprodução, inenarrável, eles estivessem fora do tempo, ou ao menos fora
do acontecimento” (Perrot, 2005, p. 9).

Com tal crítica á historiografia, da qual compactuo, no Brasil já há estudos


importantes e avançados acerca da história das mulheres, algo que, com o
diálogo com outras ciências permitiu um alcance ainda maior, bem como
abordagens cada vez mais inovadoras. Hoje, por exemplo, as discussões em
torno da história das mulheres e das relações de gênero já podem ser
encontradas em cursos como engenharia, medicina etc, algo que muda não
apenas as visões durante muito tempo distorcidas, como impacta
positivamente na sociedade. Dessa forma, pesquisas desenvolvidas por Céli
Pinto, Joana Pedro, Margareth Rago, Ana Colling, Cristina Wolff elucidam e
exemplificam bem as inúmeras pesquisadoras brasileiras e seus estudos de
excelência, os quais sob diferentes abordagens problematizam o espaço das
mulheres na sociedade e seu protagonismo.

Neste breve texto, fazendo uso, ainda que nas entrelinhas das
107
pesquisadoras citadas, busco apresentar algumas possibilidades de ensino
de história através de trajetórias e/ou estudos de caso de mulheres numa
abordagem regional e local, permitindo sua aplicabilidade em sala. A origem
deste trabalho parte da inquietação de contrapor algo que durante muito
tempo foi denominada “história nacional”, a qual privilegiava alguns locais e
regiões como centro dos acontecidos históricos. Com isso, a história de
determinados espaços e pessoas acabou sendo subtraída não apenas da
historiografia, mas da, ainda, principal ferramenta de ensino no Brasil, o
livro didático.

Como destacam Ana Colling e Losandro Tedeschi:

“Acostumamos a encarar a história como algo ligado ao cognitivo, às


informações, aos fatos, desprovidos de relações de poder e saber.
Deixamos de vê-la em seus aspectos de disciplinamento, de silêncios.
Analisar quem a história convoca ou silencia nos seus textos discursivos
deveria ser uma tarefa permanente do historiador”(Colling; Tedeschi, 2015,
p. 310).

A partir do que destacam a referida autora e o autor, deve-se entender,


ainda que não será possível aprofundar o debate neste breve texto, que a
produção, confecção e circulação de um livro possui um propósito e que é
necessária uma atenção em sua análise, desde como representam
personagens, bem como os silencia. Uma vez que os livros didáticos ainda
são a ferramenta de ensino mais utilizada em nosso sistema educacional.

Sobre a abordagem da história regional e local, os próprios Parâmetros


Curriculares Nacionais (PCN’s) de História sugerem o trabalho de questões
locais e regionais em sala de aula. Contudo, o que observamos muitas
vezes é o trabalho de datas específicas da localidade, geralmente em datas
festivas. Por outro, a própria forma como os professores são cobrados
quanto ao conteúdo é uma das dificuldades quanto a um trabalho que faça
uma abordagem seja ela regional ou local. Segundo Erivaldo Neves:

“O vago conceito de região, pela imprecisão dos seus limites espaciais, não
desvenda um sistema de relações explícitas ou implícitas como os de classe
social ou capitalismo. Uma região define-se do mesmo modo que uma
localidade, em relação aos seus componentes de tempo, espaço, etnia,
cultura, atividade econômica e, por isto, os elementos históricos da sua
caracterização não correspondem aos de outro recorte regional” (Neves,
2008, p. 28).

A partir do que descreve Neves (2018) se torna importante observar as


particularidades do espaço onde se está localizado e contextualizá-lo com as
dinâmicas do tempo, cultura etc, algo que ajudará o/a professor/a trabalhar
com os/as alunos/as de uma forma que possam compreender as mudanças
ocorridas em suas cidades e/ou regiões. Com isso, podem identificar
importantes possibilidades metodológicas, bem como entender a construção
histórica e social a que estão inseridos/as.

No tocante a história das mulheres, trabalhos biográficos e de trajetórias


passaram a ter um novo olhar por parte da historiografia ao longo das
108
últimas décadas, com isso, muitas mulheres que até então não haviam tido
espaço nas abordagens históricas passaram não apenas a demonstrar suas
lutas e conquistas, como o próprio combate a uma história que durante
muito tempo permaneceu androcêntrica. Por outro lado, como destaca
Moreira (2018), em livros didáticos, elas ainda são vistas, em sua maioria,
em quadros separados como de curiosidades ou desconexas com o
conteúdo principal, algo que dificulta o entendimento dos discentes quanto
a real importância daquelas personagens naquele contexto estudado.

Segundo Susane Oliveira (2014):

Esta incorporação de aspectos da história das mulheres, de forma isolada e


complementar, parece simplesmente ter a função de cumprir com as
demandas dos movimentos feministas expressas nas políticas educacionais
traçadas nos PCNs, no Plano Nacional de Educação (PNE) e no Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD). Deste modo, tal inclusão parece se tratar
de “histórias para as mulheres” e não de “história na perspectiva das
mulheres” (Oliveira, 2014, p.283).

Assim, ao propor uma história que aborde as mulheres enquanto sujeitos


históricos, levando-se em conta as perspectivas regionais e locais que as
regem é importante observar as relações de gênero, algo que permite
analisar a sociedade a que as mulheres estavam inseridas, entendendo
resistências, culturas, padrões de feminilidade e as relações de poder que
em muito determinavam as funções de mulheres e homens. Uma atividade
é o/a docente solicitar aos estudantes que conversem com suas mães,
avós, tias e questionem como eram suas rotinas e/ou lugares que podiam
ou não “deveriam” frequentar. Ao fazer uma reflexão com a atualidade
perceberão o quanto direitos foram alcançados e por mais que não estejam
totalmente iguais, devido principalmente a uma estrutura de poder sexista,
houve um avanço significativo.

A partir de uma definição dos pressupostos conceituais de gênero e história


das mulheres, além do campo local e regional é possível apresentar
exemplos de trabalhos que as abordam e algumas sugestões didáticas,
sendo este o principal objetivo deste texto.

Em 2017, Marisa de Farias, Alexandra da Costa e Luciana Vieira,


organizaram “Mulheres na história de Mato Grosso do Sul”, obra que trás
diferentes abordagens e diferentes autoras destacando as mulheres sul-
mato-grossenses. No referido livro, encontramos estudos que vão desde a
violência até as mulheres em assentamentos rurais. Assim, entende-se que
existe uma infinidade de possibilidades de se abordar os assuntos em sala
de aula, onde o/a docente pode ter uma ferramenta importante ao destacar
os assuntos e a ação das mulheres. Ainda que a produção aqui destaque o
estado do Mato Grosso do Sul, pode ser utilizada para levantar discussões e
propostas de ensino.

Em 2019, Raphael Coelho produziu a dissertação “A memória de uma


heroína: a construção do mito de Maria Quitéria pelo exército brasileiro
(1953)”. O texto é uma oportunidade para analisar a história de uma das
mulheres de maior destaque dentro da historiografia militar, algo que
109
aguardou certo tempo para ter seu reconhecimento. Assim, o docente pode
propor uma relação entre aquilo que consta ou não no livro didático sobre
Maria Quitéria e aprofundar o debate com textos de apoio, como o de
Coelho (2019). Na oportunidade pode trazer a reflexão de quantas
mulheres conhecem ou já ouviram falar na história, algo que contribui para
combater o silenciamento e permitir que conheçam outras personagens em
sua localidade.

Para quem busca fazer uma análise sobre a história das mulheres no
período ditatorial, em 2019, Cavalcanti Junior lançou a obra “Três mulheres
e uma história de luta pela democracia e pela liberdade”, analisando a
trajetória de mulheres nordestinas em diferentes períodos durante a
ditadura. Como sugestão, é possível que o/a docente busque analisar como
se deu o referido período em sua cidade e/ou região e como foi à ação das
mulheres. Outra possibilidade é fazer um levantamento de quantas
mulheres da cidade/região atuam politicamente na cidade seja em ONG’s,
como prefeita, vereadora. movimentos sociais etc. Com isso é possível
refletir sobre o importante papel dessas mulheres em diferentes frentes de
luta e as visões que carregam perante a sociedade.

Além de possibilidades de ensino com base nas abordagens apresentadas


anteriormente juntamente aos estudos, existe uma infinidade de ações
possíveis. Uma delas seria solicitar uma pesquisa de campo aos estudantes,
os quais deveriam buscar quais quem são as mulheres com maior
representatividade na cidade ou região. A partir desse levantamento
analisarão as histórias das mulheres pesquisadas, bem como as classes
sociais e os modelos culturais e políticos do período que atuaram/atuam.
Tal atividade consiste em fazer uma reflexão sobre a história regional e
local a partir das mulheres, permitindo com isso que os alunos possam
compreender como se dá a escrita da história, ao mesmo tempo em que
estarão inseridos.

Outra possibilidade se daria a partir das mulheres que mais convivem e/ou
gostam e tentarem escrever suas biografias. Com isso, teriam não apenas
uma proximidade maior com a pesquisa de campo, como também
observariam as pesquisadas como inseridas numa sociedade e parte de uma
história em construção daquele espaço estudado.

Uma outra sugestão de atividade é a realização de um levantamento dos


nomes de ruas, escolas e/ou instituições públicas que levam os nomes de
mulheres. Após o resultado preliminar buscam informações sobre as
personagens, inclusive perguntas a familiares se conheceram ou ouviram
falar daquela personagem. Por fim, apresentam os resultados encontrados e
analisam as principais dificuldades e as diferentes narrativas criadas em
torno das figuras femininas. Esse recurso permite não apenas analisar quem
foram as personagens, ou fazer um contraponto do quanto os nomes de
personagens masculinos ainda é maioria em logradouros e/ou instituições.
Além disso, também contribui de forma significativa para que os discentes
conheçam um pouco da história de sua cidade e percebam a importância e
a participação das mulheres para ela.

Ambas atividades servem como estímulo para uma abordagem que


110
aproxime os discentes da história das mulheres que fazem parte da
construção social, politico e cultural de sua cidade ou região. Além disso,
o/a docente que buscar fazer as atividades pode interligar os conteúdos
obrigatórios, com mulheres que atuaram naquele período em sua
cidade/região. Isso permite um nível de proximidade importante entre a
história e os alunos através de sua compreensão como algo em movimento,
no qual também estão inseridos.

Obviamente que o trabalho com a história regional e local ainda é um


desafio na maioria das instituições de ensino, seja pela preocupação dos
conteúdos, ou até mesmo pelos processos seletivos, os quais cada vez
menos se pautam no conhecimento no referido contexto. Porém, esta
comunicação buscou propor ideias e ao mesmo tempo levantar inquietações
acerca do tema da história das mulheres em diferentes localidades e
regiões, demonstrando que é possível abordá-la em consonância com a
realidade do ensino brasileiro.

Referências
Mestre Ary Albuquerque Cavalcanti Junior. Doutorando em História pela
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) é Docente do curso de
História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/CPCX.

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Florianópolis, 2018.
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2007.
PERROT, Michelle. As mulheres, ou, os silêncios da história. Edusc, 2005.
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ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 185-201,
2001.
PRECISAMOS FALAR SOBRE AIMEE: GÊNERO, SEXUALIDADE E
SORORIDADE NO CURRICULO ESCOLAR
Azemar dos Santos Soares Júnior e Guilherme Lima de Arruda

Chamava-se Aimee. Tinha dezesseis anos, cabelos louros e ondulados, um


corpo que chamava a atenção por suas curvas bem delineadas. Estudava
numa escola de ensino médio, e como tantas meninas de sua idade,
112 precisava pegar um ônibus coletivo para chegar até o local de seus estudos.
Deveria ter sido um dia como os demais se não fosse o aniversário de sua
melhor amiga. Acordou mais cedo que o comum, fez um bolo em formato
de um coelho com cobertura cor de rosa, para em forma de surpresa
comemorar a vida de sua amiga. Por viver num lugar frio, vestiu calça
jeans, camisa de gola e mangas longas e uma bota. Colocou a mochila nas
costas e com as duas mãos segurava o bolo. Ao adentrar o ônibus
relativamente lotado, encostou-se numa daquelas barras de ferro buscando
apoio para equilibrar seu corpo e não derrubar o bolo. Um pouco mais atrás
estava um homem jovem, branco, de olhos azuis, cabelos claros e lisos.
Com a chegada de mais pessoas no coletivo, o homem aproximou seu corpo
ao corpo de Aimee. E observou-o atentamente com o olhar de desejo.
Sussurrou algo como “gostosa”. Abriu o zíper de sua calça, colocou o pênis
para fora e se masturbou, ejaculando rapidamente na calça da adolescente.
Ela gritou anunciando o assédio. As pessoas nada fizeram a não ser ignorar.
Aimee desceu do ônibus e seguiu para a escola a pé, com o bolo nas mãos
e a calça melada como carimbo do assédio sexual que havia sofrido.

Ao chegar na escola, encontrou Maeve, sua amiga. Ofertou-lhe o bolo como


forma de parabéns e pediu ajuda para limpar-se pois um homem havia
ejaculado em sua calça dentro do ônibus. Indignada com o que ouvia, falou
da importância de ir até a delegacia registrar um boletim de ocorrência.
Para sua surpresa, a jovem assediada afirmou que não era necessário, pois
“[...] homens faziam isso com as mulheres” e que “[...] ele devia estar
carente”. Apesar da alegação, Maeve insistiu e juntas rumaram até a
delegacia. Junto à polícia, registraram o ocorrido e ficaram impressionadas
com o relato da quantidade de casos de mulheres que lá chegavam com as
mesmas descrições. Mais chocadas ainda ficaram com a notícia de que era
muito difícil encontrar os agressores, fazendo com que a maioria desses
casos não possuísse uma punição.

A história de Aimee, contada ao expectador no terceiro episódio da segunda


temporada da série Sex Education - série britânica de comédia dramática,
criada por Laurie Nunn, que estreou em janeiro de 2019 na Netflix -,
impressiona de imediato por duas características: a naturalização do
assédio sexual como sendo algo comum, provocado pelo instinto masculino
e/ou pela carência; e a referência à falta de resolução nos casos de
violência sexual cometidos contra mulheres. O primeiro discurso de Aimee
revela não apenas a naturalização, mas uma educação doméstica e escolar
no sentido de obedecer, para ser submissa ao homem, de que as ações do
homem sobre o corpo da mulher são “normais”. É possível inferir que
Aimee, assim como tantas adolescentes brasileiras, cresceu vendo suas
mães serem vítimas de abuso por parte de seus maridos e companheiros,
bem como, receberam dentro de casa a orientação de que seu corpo
pertencia ao outro gênero, que deveria ser objetificado, coisificado.
Apontamos aqui a existência de uma cultura do assédio legitimada na
maioria das vezes pelas instituições educativas (família, escola, igrejas,
etc.). Não que essas instituições ensinem e incentivem o assédio sexual,
mas porque elas evitam combater determinados temas para não ferir a
moral masculina, historicamente construída e engessada como estrutura
vital da sociedade brasileira. Homens governam a família, gerem os poderes
públicos, representam a população, são os provedores das casas, o
113
“cabeça” da relação. Ao colocá-los nesses espaços, marginalizou-se o lugar
reservado às mulheres.

No Brasil, desde o período colonial, o corpo feminino foi violentado


fisicamente e sexualmente. De acordo com Lilia Schwarcz (2019, p. 190),
mulheres indígenas e negras foram consideradas produtoras de riquezas,
pois eram utilizadas na agricultura, na casa-grande, nas cidades e na
mineração, e ainda serviam a seus proprietários como instrumento de
prazer e gozo. A prática da cultura do assédio e da violência não ficou
restrita à colonização. Ali ganhou raízes bastante profundas, sendo capaz de
sustentar a maldição do machismo que tanto provoca traumas em pleno
século XXI. Dessa forma, o silêncio de Aimee pode ser entendido não
apenas como a naturalização do abuso sexual, como também por uma
cultura do medo: medo se ser apontada como a estuprada, a mulher fácil,
de ficar conhecida como aquela que mereceu o abuso por conta dos
atributos físicos de seu corpo, medo de contrariar o modelo machista de
família na qual esteve historicamente enredada.

Quanto ao segundo dado, sobre a dificuldade de localizar e punir homens


que violentam sexualmente mulheres, dá-se não apenas pelo medo das
mulheres em formalizar a denúncia, mas por ser um crime que muitas
vezes não deixa rastros, além claro, daqueles causados fisicamente e
psicologicamente às vítimas. O assediador se perde na multidão, pode ser
qualquer um. Sua cor de pele ou classe social não o define. Conforme
descrição acima, o homem que abusou da adolescente dentro do ônibus era
branco, dono de porte atlético, cabelos louros e olhos azuis. Rompe-se
assim o estigma de que os crimes sexuais eram cometidos por negros e
pobres.

Na maioria dos casos de assédio sexual o que fica é o registro. Lilia


Schwarcz (2019, p. 191) apresenta dados sobre o assédio sexual no Brasil:
88% das vítimas de assédio são do sexo feminino, 70% são crianças e
adolescentes (como no caso de Aimee), 46% não tem ensino fundamental
completo, e 51% são de cor parda ou preta. Lilia Schwarcz (2019) ressalta
ainda que 24% das notificações apontam como agressores o próprio pai ou
padrasto, 32% dos casos são praticados por amigos ou conhecidos da
vítima, e muitos desses atos são cometidos por duas ou mais pessoas. Só
na cidade de São Paulo, por exemplo, foram registrados quatro casos de
assédio sexual por semana no ano de 2016, dentro do metrô paulistano.
Uma realidade que já sabemos de onde herdamos. Nos resta refletir sobre
as razões que nos levam a silenciar nas instituições educativas sobre as
formas de resistência ao machismo e as formas de dominação que relegam
mulheres à coisificação. Não cabe às famílias e às escolas apenas mostrar
como homens se apropriaram do corpo feminino e dele fazem uso para seu
exercício de poder. Faz-se urgente educar para a liberdade no sentido de
respeitar o corpo do outro, de entender que a mulher não é propriedade
privada de alguém, de que elas possuem os mesmos direitos dos homens e
que seus corpos não são mais o lugar de despejo do gozo masculino. As
famílias e as escolas precisam ensinar seus filhos e alunos que “não é não”.
Que o corpo do outro só pode ser tocado quando se tem autorização e pode
trazer respeito e prazer para os envolvidos. Precisamos, assim, incluir em
nosso currículo as discussões de gênero.
114

Tais debates não se realizavam nem na casa e nem na escola de Aimee. As


conversas com sua amiga Maeve e os relatos ouvidos na delegacia abriram
seus olhos para a realidade da cultura do assédio e para o fato de que havia
sido vítima de violência sexual. Após o fato, o trauma foi aos poucos se
instalando. Todos os dias pela manhã, saía de casa para o ponto do ônibus.
Ao se deparar com o transporte parado à sua frente e com as portas
abertas, a adolescente relembrava o assédio sofrido. Como saltos de
luminosidade, a memória trazia à lembrança o rapaz branco se
masturbando sobre sua perna. Aimee não conseguia mais entrar no ônibus.
Passou a ir a pé para a escola. Andava cerca de cinco quilômetros a pé. O
trauma não mais permitia que ela adentrasse no transporte público. Nos
corredores da escola, Aimee passou a se deparar com rapazes brancos e
fortes. Nessas situações, parecia ver o rosto do homem que a violentou. Ao
encontrar o seu namorado, teve a mesma reação: passou a rejeitá-lo
porque em sua cabeça, passaria novamente pelo abuso sexual. A vida de
Aimee tornou-se sem graça. Ela agora era vítima do trauma sofrido:
imaginava situações que lhe causavam pavor, evitava roupas que definiam
seu corpo, não mais conseguia chegar perto de amigos do gênero
masculino, chorava pelos cantos.

Passados alguns dias, um grupo de cinco meninas que fazia parte do grupo
de leitura e literatura foram desafiadas pela professora a pensar em algo
que tinham em comum. Enquanto cada uma pensava na roupa, nas
viagens, na cor do batom, nos namorados, Aimee chorava silenciosa. Com o
desenrolar da cena, as meninas começaram a discutir em voz alta sobre o
que era prioridade na vida de cada uma delas. Foi nesse instante, por não
mais suportar a dor do silêncio em que se aprisionou, enquanto as amigas
discutiam futilidades, que Aimee gritou. Todas a olharam e notaram seu
choro. A adolescente olhava para sua calça jeans e lembrava do assédio
sofrido e alegou que não conseguia mais entrar no ônibus para ir à escola.

Nesse instante, as jovens do ensino médio, envolvidas na cena, perceberam


que de alguma forma já haviam sofrido algum tipo de abuso. Uma das
moças, contou que “[...] fui apalpada na estação de trem quando ia a um
show na cidade. Um grupo de caras passou e um deles pegou no meu
peito”; outra afirmou que garotos a assediaram e que uma mulher ao ver a
cena, alegou que a jovem tinha culpa porque o short que ela vestia era
muito curto; a terceira afirmou que quando era criança costumava ir à
piscina, e numa dessas vezes ao mergulhar percebeu que um homem mais
velho estava balançando o pênis na direção dela. Saiu correndo da piscina,
contou à sua mãe que não mais a deixou voltar ao banho; a outra contou
que gostava de entrar em chats, mas começou a criar pavor, pois só
recebia imagens de pênis de todos os tamanhos e formas; a quinta garota,
narrou que ao voltar para casa foi seguida por um homem e que não foi
violentada porque conseguiu chegar em casa e seu pai a esperava à porta.
Estava esclarecido o que todas possuíam em comum: tinha sido vítimas da
cultura do assédio.

Além do fato das adolescentes tomarem consciência de que tinham sido


violentadas ao menos uma vez na vida antes de atingir a maior idade, se
deram conta que aprenderam a se cuidar e a falar sobre o tema, sentindo
115
na pele a dor do fato ocorrido. Elas, assim como milhares de meninas, não
debateram tais questões nem em família e nem na escola. A cena pareceu
soar como uma crítica à escola e ao currículo escolar. Por mais irônico que
pareça, as jovens conversavam sobre a cultura do assédio e sobre o cuidar
umas das outras sem a presença de um professor e sem o tema ser pauta
do conteúdo escolar. Por essa razão, precisamos falar sobre Aimee! Ou
melhor, precisamos falar sobre gênero, sobre sexualidade, sobre
sororidade, sobre empoderamento feminino, sobre feminismo.

O movimento feminista empreendeu ao longo das últimas décadas


significativos avanços que culminaram com a reivindicação de espaços para
as mulheres, antes majoritariamente masculinos, e representou a luta pela
conquista de direitos contra a violência sofrida por elas, culminando com a
Lei Maria da Penha. Significou o exercício da sororidade, ou seja, o cuidado
entre as mulheres, o dar as mãos umas às outras, o “mexeu com uma,
mexeu com todas”. O movimento feminista, segundo Guacira Lopes Louro
(2018, p. 53), colocou o corpo da mulher na pauta da discussão: investiu
na “[...] possibilidade de usar o corpo e de viver a sexualidade com
autonomia”, ou seja, os estudos que colocaram a mulher ou as relações de
gênero no centro das preocupações, sempre implicaram, direta ou
indiretamente, questões sobre a sexualidade. Apesar dos avanços, o
movimento feminista ainda não conseguiu assegurar a presença dessa
discussão em sala de aula. Debates sobre gênero, sexualidade,
feminicídio... não foram ainda contemplados pelo currículo escolar.

Por exemplo, o único momento em que a palavra gênero aparece na Base


Nacional Comum Curricular (BNCC) da disciplina de História das séries finais
do Ensino Fundamental, é no fim do conteúdo reservado à turma do nono
ano. O tema da aula é: “Modernização, ditadura civil-militar e
redemocratização: o Brasil após 1946” que tem por objetivo estudar o “[...]
processo de redemocratização, a Constituição de 1988 [...] o protagonismo
da sociedade civil e as alterações do sociedade brasileira, a questão da
violência [...]”. Dessa forma, exige-se do professor as habilidades de lidar
com reconhecimento dos:

“[...] diferentes agentes ou atores sociais que protagonizaram formas de


associativismo na sociedade civil de 1989 aos dias atuais. A partir de 1990,
os movimentos sociais populares de agendas diversas (de igualdade racial,
igualdade de gênero, das pessoas com deficiência, dos sem-teto, sem-terra,
em defesa dos índios etc.) se organizaram de forma mais institucional,
ganhando maior visibilidade e atuação social” (BNCC, 2019. Grifos nossos).

Deixa a cargo do professor decidir sobre o trato do tema em sala de aula.


As questões sobre igualdade de gênero são apontadas pelo currículo apenas
como uma dentre diversas outras possibilidades da atuação social do país a
partir de 1946. Acreditamos ser um recorte temporal e uma diversidade
temática bastante ampla para um único conteúdo, abordado em três ou
quatro aulas do nono ano. Dentre o leque de possibilidades temáticas -
igualdade racial, pessoas com deficiência, indígenas, moradores de rua -,
aparece muito sutilmente a indicação da possibilidade do debate de
“igualdade de gênero”, sem especificar se a discussão deve ser feita entre o
campo de luta do masculino e do feminino, ou do heterossexual e do
116
homossexual. Além de se configurar enquanto um problema de ausência de
tão importante tema para os alunos desde o ensino fundamental. O
currículo deixa a cargo do professor, que poderá ou não se valer dá ideia do
“currículo oculto” para problematizar o assunto em sala de aula.

Outro problema que podemos apontar, é o fato de o professor não querer


discutir o tema, seja pela falta de conhecimento, seja por preconceito, seja
por questões religiosas, ou mesmo pela proibição legal de se discutir gênero
– é importante lembrar que alguns municípios brasileiros aprovaram a lei da
ideologia de gênero, que proíbe o debate de gênero nas escolas públicas.

Quando o assunto é gênero, tema tão importante para se pensar os lugares


e identidades constituídas, não se há nenhuma garantia de efetivação:
primeiro porque o currículo oficial não normalizou sua obrigatoriedade em
forma de lei; segundo porque precisamos contar com a sensibilidade dos
professores de história para realizar o debate. No fim das contas, parece
que a escola e a sociedade de forma geral tem consciência da importância
do tema, mas por questões “morais e religiosas” acabam por condenar o
assunto. Parece haver uma consciência da necessidade de falar sobre tantas
Aimees que existem nas escolas desse país, mas prefere-se silenciar. Por
outro lado, não podemos perder a esperança. Ainda existem docentes
empenhados em assegurar – como forma de resistência – a discussão em
sala de aula. Para alguns, gênero é conteúdo obrigatório, é presença
registrada no seu currículo; para outros, espera-se a demanda, são aqueles
que optam por, a partir de algum problema ocorrido na escola ou na
comunidade, para então realizarem o debate em sala de aula. O fato é:
precisamos falar sobre Aimee!

Precisamos, como chamou atenção Guacira Lopes Louro (2018, p. 59),


“estranhar o currículo”. Desconfiar do currículo como ele se apresenta,
tratá-lo não de modo usual. Precisamos desconsertar ou transtornar o
currículo. Colocá-lo de ponta-cabeça, revirá-lo ao avesso, “passar dos
limites”. Fazer como indicou Durval Muniz Albuquerque Júnior (2010):
deformar o currículo, fazê-lo diferente, respeitar a alteridade, problematizar
os sentimentos, atribuir outros sentidos à escola, exumá-la da repetição, do
metodismo, da ausência de tesão, do lugar da obrigação. Ou ainda nas
palavras de Azemar Soares Júnior (2019, p. 171), ao alegar que o currículo
de História precisa “fazer sentido” para o nosso aluno, precisa-se encontrar
no currículo, muitas vezes engessado, formas de burla, táticas diferenciadas
de debate, exposição daquilo que se pensa. Ou seja: o docente engajado
com a realidade social em que vivemos deve “[...] passar dos limites,
atravessar-se, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que está
posto; colocar em situações embaraçosas o que há de estável naquele
‘corpo de conhecimentos’” (LOURO, 2018, p. 60). O professor pode orientar
sua prática no enfrentamento das condições em que se deu historicamente
o conhecimento em sala de aula do ensino básico.

Enquanto a escola não se encarrega de normalizar o debate de gênero em


seu currículo obrigatório, contamos com a sensibilidade e compromisso
social dos professores. Enquanto a escola não discute o tema, as meninas
acabam por aprender formas de cuidar de si e uma das outras, através das
dores marcadas em seus corpos e suas mentes pela cultura do assédio. O
117
que a escola fez diante da violência sofrida por Aimee? Nada. Porém, suas
amigas, que também já sentiram na pele as marcas desse tipo de violência,
acordaram mais cedo que Aimee e rumaram até o local da espera do ônibus
que a levaria à escola. Ao chegar no ponto de espera, Aimee se deparou
com suas cinco colegas de escola. Espantada, perguntou “O que vocês
estão fazendo aqui?”. Maeve respondeu em nome do grupo: “Pegando o
ônibus. Todas nós vamos pegar. É só um ônibus”. Prática de sororidade,
como pode ser vista na imagem que fecha esse texto:

Fonte: Sex Education (2020)

Referências
Azemar dos Santos Soares Júnior é professor do Departamento de Práticas
Educacionais e Currículo (DPEC/UFRN) e dos Programas de Pós-Graduação
em Educação (PPGEd/UFRN) e História (PPGH/UFCG). Graduado em História
(UEPB) e Doutor em Educação (UFPB)
Guilherme Lima de Arruda é professor de Educação Básica no município de
Esperança (PB). Atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação
em História (PPGH/UFCG).

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Por um ensino que deforme: o


docente na pós-modernidade, 2010. Disponível em: www.cnslpb.com.br
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica,
2018.
SEX EDUCATION. Laurie Nunn. Produção de Jon Jennings. Inglaterra:
Netflix, 2020.
SOARES JUNIOR, Azemar dos Santos. Ensino de História e sensibilidade: o
ver, o ouvir e o imaginar nas aulas de história. In: História & Ensino.
Londrina, jul./dez, p. 167-190, 2019.
SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
FORMAÇÃO DA MULHER NO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR A
PARTIR DO CURSO DE PEDAGOGIA NO BRASIL E NA UNESPAR,
CAMPUS PARANAVAÍ (1965-2019)
Beatriz Fernanda Almeida da Silva e Márcia Marlene Stentzler

Temos como objetivo analisar em que medida o processo sócio histórico de


criação do Curso de Pedagogia no Brasil e em Paranavaí e suas
118 contribuições para a presença feminina no curso. Ao resgatar aspectos do
percurso histórico da mulher na educação, em particular aspectos
relacionados ao seu ingresso e permanência no nível superior, no Curso de
Pedagogia da Unespar, campus de Paranavaí. Fundamentamos o estudo em
documentações institucionais, legislações e pesquisas sobre o Curso de
Pedagogia e a mulher. Representações serão compreendidas a partir de
Chartier (1990, p.17), para quem “As lutas de representações têm tanta
importância quanto as lutas econômicas para compreender os mecanismos
pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo
social, os valores que são seus e o seu domínio.” A pesquisa embasou-se
em documentos históricos do curso disponíveis em acervo institucional e
particular, bem como em registros estatísticos na página da
Unespar/Prograd, acerca do ingresso e permanência de estudantes neste
curso (UNESPAR, 2018; 2019). O estudo se completa com resultados de
uma sondagem sobre perspectivas profissionais de estudantes e interesse
pelo Curso, junto aos 219 estudantes matriculados em 2019, turnos
vespertino e noturno. Recebemos 23 respostas, sendo: 3 estudantes do 1º
ano; 3 do 2º ano; 13 do 3º ano e 4 do 4º ano. Responderam 5 questões,
via formulário do google drive.

Ao escolhermos como temática de estudo o acesso da mulher ao ensino


superior e ao mundo do trabalho por meio do Curso de Pedagogia, estamos
dando visibilidade a um grupo de profissionais que atua na educação
infantil, anos iniciais do ensino fundamental, gestão escolar, entre outros. É
fato que cada vez mais as mulheres tem predominado em cursos superiores
e que historicamente o Curso de Pedagogia tem sido majoritariamente
procurado por elas buscando a formação em nível superior. Mesmo com a
escolarização superior elas estão sujeitas a menores remunerações
ocupando função idêntica à do homem, conforme aponta o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2019, s.p.) as “Mulheres com 12 anos
ou mais de estudo ganham, em média, 68% do que homens com a mesma
escolaridade”, revelando a desigualdade de gênero e o papel feminino na
história. Contudo, essa questão conta com especificidades no âmbito da
educação, uma vez que as instituições contam com plano de carreira para o
magistério, garantindo que professoras e professores tenham direitos iguais
quanto à remuneração, tornando a carreira do magistério atrativa para as
mulheres. As “[...] mulheres não só representam a maior parte dos inscritos
nos vestibulares como a maioria dos ingressantes no ensino superior e a
maior parcela dos concluintes, tendo obtido mais sucesso acadêmico que os
homens” (ÁVILA e PORTES, 2009, p. 94), respeitadas as áreas específicas e
a conquista de direitos como processo sócio histórico, conforme Castro
(2018). Existem áreas de predominância femininas e masculinas e a
pedagogia é fundamentalmente feminina.
A criação do curso de pedagogia faz parte de um contexto histórico de
instalação das licenciaturas no Brasil, no ano de 1939. Mas, em Paranavaí, a
criação do Curso de Pedagogia junto a recém criada Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Paranavaí (FAFI), ocorreu quase 3 décadas após a
existência do primeiro curso, no Rio de Janeiro. Buscamos em pesquisas já
publicadas, mas também em fontes primárias o embasamento para
compreender esse movimento e permitindo a sua contextualização
enquanto um processo sócio histórico com a inserção da mulher no
119
magistério, por meio do Curso de Pedagogia.

A mulher e o Curso de Pedagogia


Sobre as escolhas femininas para a profissionalização, Barroso e Mello
(1975, p.50) apontam que o “curso normal pode mesmo não constituir uma
escolha profissional para parte das jovens que o procuram, mas apenas
uma forma mais elaborada de preparação para o destino doméstico.” Para
outras, cursar uma escola normal não era uma opção pessoal, revelando o
tradicionalismo na formação feminina e masculina. Estudo realizado pelas
autoras a partir de dados do MEC, entre 1956 e 1971, indica crescimento do
número de mulheres em cursos superiores da área de Letras, Ciências
Humanas e Filosofia, compreendendo os cursos de Letras, Pedagogia,
Geografia, História, Ciências Sociais, Psicologia e Filosofia. Esses cursos
abarcavam aproximadamente a metade das mulheres matriculadas no curso
superior, em estabelecimentos públicos ou privados. Esse fato estava
correlacionado a elevação do número de mulheres egressas do ensino
secundário.

Essa possibilidade para as mulheres foi viável na região noroeste do estado


do Paraná, em 1965, pela criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Paranavaí (FAFI), hoje campus da Unespar e do Curso de
Pedagogia. Entretecendo dados históricos e atuais com uma pesquisa de
campo realizada junto a estudantes deste Curso é possível evidenciar o
percurso histórico e perspectivas que o ensino superior traz para o
desenvolvimento e o futuro de uma região. Sua criação ocorreu junto com a
instituição, como aliás, ainda ocorre muito frequentemente nos dias atuais,
nas instituições de ensino superior. É impossível compreendermos a
escolha pelo Curso de Pedagogia sem analisarmos aspectos a ela
relacionados e as interrelações que se estabelecem entre o processo
formativo no curso superior e as expectativas de trabalho.

Diferentes períodos marcaram a existência do Curso de Pedagogia no Brasil,


de acordo com Furlan (2008). O processo histórico de criação, segundo o
autor citado, teve o primeiro período, entre 1939 e 1972, caracterizado pelo
processo de criação e fortalecimento da identidade do curso que formava
professores para a escola secundária e de técnicos para a educação. Pelo
Parecer do Conselho Federal de Educação nº 252/1969 (CONSELHO
FEDERAL DE EDUCAÇÃO, 1969a) e Resolução do Conselho Federal de
Educação nº 02/1969 (CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, 1969b), foram
fixados o currículo mínimo e o tempo de integralização do curso. A
legislação manteve “a formação de professores para o Ensino Normal, mas
acrescentou as habilitações destinadas a formar especialistas para:
planejamento, supervisão, administração e orientação educacional”, de
acordo com Castro (2018, p.51).
A reestruturação global dos cursos superiores e de formação do magistério
no Brasil, marcou o segundo período, entre 1973 e 1978, em que antigas
atribuições foram modificadas, fortalecendo a formação para a licenciatura,
aponta Furlan (2008). Interessante observar que os estudos de Barroso e
Mello (1975) evidenciam o crescimento significativo de mulheres nos cursos
das áreas de Letras, Ciências Humanas e Filosofia. Em 1956, elas ocupavam
67% das vagas dos cursos e em 1971 esse percentual subiu para 77%.
120
Segundo as autoras citadas, duas raízes que poderiam explicar a mudança:
“a crescente perda de prestígio da profissão docente e a restrição das
alternativas existentes para a mulher no mercado de trabalho.” (1975, p.
54). De fato, o magistério para a educação básica tornou-se um campo de
trabalho eminentemente feminino com o passar dos anos.

O terceiro período, compreende as décadas de 1980 e 1990, foi marcado


pela discussão da identidade do curso, conforme assevera Furlan (2008).
“Na década de 1980, receptor de inúmeras críticas, o Curso de Pedagogia
apontava a fragmentação de forte caráter tecnicista e a ênfase na divisão
técnica do trabalho na escola” conforme revela Almeida e Lima (2012, s.p.).
Nesse período de intensa mobilização nacional, professores e estudantes se
organizaram num movimento de resistência às reformas e de luta contra a
ditadura militar. Encontros nacionais bianuais e seminários regulares,
resultaram em documentos referência para a construção da identidade do
pedagogo e do próprio Curso de Pedagogia, com ênfase na formação de
professores para os anos iniciais do ensino fundamental, conforme apontam
os autores citados acima. A reorganização do Curso se efetivou no contexto
de lutas contra a ditadura, redemocratização e reordenamento legal da
educação com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases, LDB no. 9394/96.
(BRASIL, 1996).

O quarto período teve início em 1999, com a publicação do Decreto nº


3.276 de 6 de dezembro de 1999 e se prolonga até os dias atuais, de
acordo com Furlan (2008). Esse Decreto regulava a formação em nível
superior de professores para atuar na educação básica, determinando que a
formação de professores para a educação infantil e anos iniciais do ensino
fundamental seria realizada, nos Cursos Normais Superiores. Novamente a
comunidade acadêmica se organizou para resistir a essa ideia. O então
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso e o ministro da
educação, Paulo Renato de Souza, assinaram o Decreto-Lei nº 3.554 de 7
agosto de 2000, dando nova redação ao § 2o do Art. 3o do Decreto
no 3.276, de 6 de dezembro de 1999, substituindo o termo
“exclusivamente” por “preferencialmente”. (BRASIL, 1999; 2000). O Curso
de Pedagogia recuperava a sua função como licenciatura.

O Curso de Pedagogia possibilita as mulheres exercem sua profissão


conciliando a carreira com família, desejos e sonhos. Contudo, por vezes, a
falta de opção por outra formação em nível superior definiu a escolha de
acadêmicos, que também buscam estabilidade no trabalho após a
formatura, especialmente por meio de concurso público. Além da sala de
aula e possibilidade de trabalho com crianças que possuam dificuldades na
aprendizagem na educação básica, o curso prepara para a continuidade dos
estudos em nível stricto sensu. (ALMEIDA, 2019). Chegamos a esses dados
por meio de uma sondagem sobre perspectivas profissionais de estudantes
e interesse pelo Curso, realizada junto aos 219 estudantes matriculados em
2019, turnos vespertino e noturno. Recebemos 23 respostas, sendo: 3
estudantes do 1º ano; 3 do 2º ano; 13 do 3º ano e 4 do 4º ano. O Ensino
Superior, por meio do curso de pedagogia, oportuniza à mulher crescimento
profissional e pessoal.

A escolha da profissão está relacionada ao contexto sócio histórico e ao


121
percurso de vida. Contudo, mesmo com o ingresso no curso superior, não
abandonam atividades historicamente atribuídas a elas. Como a mulher era
ensinada a cuidar de crianças, o Curso de Pedagogia as aproximou desse
caminho, mas com a base para a ação docente fundamentada nas ciências
da educação. São muitos os desafios. Estes fatores também contribuem
para o acesso e permanência das mulheres no nível superior. É possível
inferir pelos estudos realizados e pela análise dos dados da pesquisa de
campo obtidos, que a discussão sobre as condições para a permanência das
mulheres na universidade é urgente e necessária.

Desde a primeira turma de formandos, o Curso de Pedagogia, do campus da


Unespar de Paranavaí teve número maior de mulheres entre as formandas.
Os documentos que embasaram este estudo evidenciam a relevância do
Curso para a sociedade, especialmente registrados por meio de Ata de
solenidades de formatura, dos registros de estudantes e diplomas, bem
como na imprensa local.

O Diploma representa o empoderamento da mulher, abre oportunidades


para sua independência financeira e autonomia intelectual. Entre os
documentos que localizamos na pesquisa, está este diploma que pertence a
uma professora aposentada, formada na primeira turma de formandos do
Curso de Pedagogia em Paranavaí. Era um período de muita carência de
professores formados.

Fotografia 1 - Diploma de Licenciando em Pedagogia


Fonte: Acervo particular de Berenice Vessoni

Historicamente o Curso de Pedagogia sofreu mudanças legais, implicando


na organização didático-pedagógica. Ao pesquisar sobre a sua história,
assim como a história da criação deste no campus da Unespar, constatamos
que essa história ainda é desconhecida por muitos que hoje frequentam o
curso. A pesquisa contribuiu para tornar conhecida parte da história da
educação da região. Conhecer nossa história é a base para termos uma
criticidade acerca dos problemas, fatos históricos, entre outros, que
ocorreram e permeiam nossa sociedade.

Considerações Finais
122
Esta pesquisa embasou-se em documentos históricos do curso disponíveis
em acervo institucional e particular, bem como em registros estatísticos na
página da Unespar/Prograd, acerca do ingresso e permanência de
estudantes neste curso (UNESPAR, 2018; 2019). Olhamos para o passado,
mas vislumbrando perspectivas de profissionalização para a mulher por
meio da educação.

Ao final da segunda década do Século XXI, momento em que muitas


profissões vivem uma crise de existência, o Curso de Pedagogia se
apresenta como um dos cursos que continuam com grande procura,
especialmente por mulheres. Ter diploma de pedagogo representa
possibilita trabalho para os egressos e nos dias atuais a mulher ainda luta
para adentrar em cursos de graduação e permanecer na universidade,
devido ao trabalho, maternidade e lar, entre outros motivos. Ávila e Portes
(2009, p. 95) afirmam que “[...] as preferências quando à escolha dos
cursos foram se construindo ao longo do processo de escolarização dos
sujeitos femininos e masculinos”, de acordo com áreas de maior interesse
feminino ou masculino. Um egresso do curso de pedagogia ocupa papel
central na organização didático-pedagógica, curricular e de gestão nas
escolas de educação básica e junto a outros cursos de formação de
professores, em todas as áreas de conhecimento. As mulheres passaram a
ocupar esse espaço com respeito e consciência do que representa ser
Pedagoga numa instituição de ensino.

Referências
Beatriz Fernanda Almeida da Silva é acadêmica do 4º ano de Pedagogia da
UNESPAR, campus Paranavaí. Membro do Grupo de Estudos História e
Memória da formação de Professores. E-mail biiaallmeida2227@gmail.com.
Dra. Márcia Marlene Stentzler é docente no Curso de Pedagogia da
UNESPAR, campus Paranavaí (PR). Docente do Programa de Pós-Graduação
"PPIFOR" da Unespar. E-mail mmstentzler@gmail.com

ALMEIDA, Beatriz. Pesquisa junto a acadêmicos do Curso de Pedagogia.


Paranavaí,
2019.
ALMEIDA, Marlisa Bernardi de; LIMA, Maria das Graças de. Formação inicial
de professores e o Curso de Pedagogia: reflexões sobre a formação
matemática. In: Ciência & Educação. V. 18, n. 2. Bauru: UNESP, 2012.
ÁVILA, Rebeca Contrera; PORTES, Écio Antônio. Notas sobre a mulher
contemporânea no ensino superior. Mal-Estar e Sociedade, Barbacena, ano
II, n. 2, p. 91-106, Jun. 2009.
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mulher ao ensino superior brasileiro. In: Caderno de Pesquisa. No. 15. São
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http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/issue/view/147
Acesso em 15 dez 2019.
BRASIL. Decreto n° 3.276, 6 de Dezembro de 1999. Dispõe sobre a
formação em nível superior de professores para atuar na educação básica, e
dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3276.htm.
Acesso em 17 nov. 2019.
CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO. Parecer nº 252/1969. Estudos
123
pedagógicos superiores. Mínimos de conteúdos e duração para o curso de
graduação em pedagogia. Relator Valnir Chagas. In: Documenta, Brasília,
DF, nº 100. 1969a. P.101-179.
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de Janeiro: Editora Bertrand, 1990.
DIPLOMA de Licenciando em Pedagogia. Acervo particular de Berenice
Vessoni. Paranavaí, 1970. 1 fotografia.
_____. MEC. Decreto n° 3.554, 7 de Agosto de 2000. Dispõe sobre a
formação em nível superior de professores para atuar na educação básica, e
dá outras providências. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2000/decreto-3554-7-agosto-
2000-371745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 17 nov. 2019.
FURLAN, Cacilda Mendes Andrade. História do Curso de Pedagogia no Brasil:
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2019.
_____. _____. Relatório da base de dados: registros acadêmicos.
Paranavaí, 2018. Disponível em http://prograd.unespar.edu.br/dados/inicial
Acesso em 20 nov. 2019.
QUANTO VALE A VIDA DE UMA MULHER NA CHINA? UMA
ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE OPRESSÃO PRESENTES NO LIVRO
“AS BOAS MULHERES DA CHINA”
Bettina Pinheiro Martins

É unanimidade dizer, entre os pesquisadores, que a proclamação da


República Popular na China, em 1949, fez com que o país mergulhasse num
124 contexto jamais visto em outros países. Embora suas raízes tenham caráter
marxista-leninista, possui características próprias, um "socialismo à moda
chinesa". A historiografia, grosso modo, divide o período da liderança de
Mao Zedong em três momentos: a repressão aos direitistas, o Grande Salto
para Frente e a Revolução Cultural. A Revolução Cultural, período principal
para a análise desta pesquisa, é entendida pelos historiadores como tendo
ocorrido entre 1966 e 1969. Entretanto, para a maioria dos chineses [Shu,
2012], ela só terminou em 1976 — ano da morte de Mao Zedong.

A Revolução Cultural foi a resposta de Mao às críticas que suas políticas


anteriores haviam sofrido e, pouco a pouco, uma onda de vandalismo
tomou conta da China, tanto nas cidades quanto no campo. Em abril de
1969, o Partido convocou seu IX Congresso, declarando oficialmente
“vitoriosa” a Revolução Cultural. Entretanto, “o povo chinês se refere ao
período de 1966 a 1976 como os ‘10 anos de grandes desastres’ [shi-nian
haojie], e na China, a Revolução Cultural é sinônimo de ‘grande tumulto’ e
‘grande caos’”. [SHU, 2012, p. 112] Estupros, violências físicas e
psicológicas, distúrbios mentais, assassinatos, perseguições e prisões são
alguns dos efeitos desta histeria que foram sentidos em todos os cantos da
China durante o período da Revolução, e são alguns dos traumas
carregados até hoje.

Neste cenário, há um silenciamento em relação à história das mulheres e


sua condição na China contemporânea. Os relatos colhidos pela jornalista e
escritora chinesa Xinran, expostos em As boas mulheres da China
concordam com este fato. O livro nos apresenta à uma coletânea de
quatorze relatos de mulheres chinesas, reunidos por Xinran ao longo de
quase uma década, entre 1989 e 1997, período em que a autora trabalhou
como apresentadora no programa de rádio Palavras na brisa noturna,
situado na cidade de Nanquim. Em seu programa, Xinran discutia aspectos
da vida cotidiana e procurava abrir um espaço para que as pessoas
pudessem se sentir à vontade para desabafar após anos de repressão
política. Para esta pesquisa, escolheu-se dois dos relatos apresentados pela
autora em seu livro. Os relatos escolhidos são: A menina que tinha uma
mosca como animal de estimação, p.21–49 e A mulher cujo casamento foi
arranjado pela Revolução, p.134–144.

A condição da mulher na China do século XX


Entender gênero como uma construção cultural é entender que, a partir
dele, "pode-se perceber a organização concreta e simbólica da vida social e
as conexões de poder nas relações entre os sexos" [TORRÃO FILHO, 2005,
p.136]. São essas construções sociais, e não o determinismo biológico, que
definem a desigualdade entre os sexos. As mulheres não são:
"obedientes, castas, perfumosas e caprichosamente enfeitadas já por
natureza. Só podem conseguir essas graças, sem as quais não lhes é dado
desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a mais enfadonha
disciplina”. [WOOLF, 1972 apud TORRÃO FILHO, 2005, p.139]

Além disso, a classificação de gênero sempre obedece a uma hierarquia.


Para Nolasco [1995, apud TORRÃO FILHO, 2005, p.140], "alguns
comportamentos são definidos pela cultura como sendo pertencentes a um
125
ou outro sexo, aos quais o homem e a mulher 'devem recalcar para serem
reconhecidos como homem e mulher'". Esta dicotomia, enraizada
culturalmente, encontra-se no cerne dos problemas de gênero na grande
maioria das sociedades e, no que diz respeito à China, ainda é uma questão
atual. A sociedade chinesa se estruturou a partir de uma visão confuciana
que, desde o nascimento, estabelecia o lugar que a mulher ocuparia no seio
da família. Conforme Fisac Badell [1996], a tradição cultural e filosófica
chinesa não vê o ser humano como indivíduo autônomo, mas sim como
parte de uma sociedade comunitária e, principalmente, membro de uma
família, o que faz da mulher somente um objeto do patrimônio familiar:

"[...] se estabelece o lugar que a mulher ocupará no seio da família, desde


o nascimento até o casamento, com especificações a respeito de suas
obrigações e direitos escassos. A partir de então a sorte de qualquer garota
estava nas mãos de sua família para arranjar um bom casamento. Ao
contrário de seus irmãos homens, a mulher não tinha o direito de herdar a
fortuna de seu pai e, no caso da morte de seu pai em tenra idade, o
primogênito assumia os direitos e deveres paternos. Com o casamento, a
mulher passava a pertencer à família do marido e rompia seus laços de
parentesco que se redefiniam em torno de seu novo lar [...]". [FISAC
BADELL, 1996, p.16, tradução nossa]

De fato, a partir da fundação da República Popular da China em 1949,


houve, de certa forma, alguns avanços em relação à figura da mulher na
sociedade:

"Abolindo as antigas leis do casamento, promovendo a entrada das


mulheres no mercado de trabalho, e ensejando sua participação nos
quadros políticos do Partido, Mao combateu intensamente as tradições
machistas do passado, alcançando um substancial sucesso nas áreas mais
urbanizadas e na educação". [BUENO, 2009]

Entretanto, "na China, os homens são normalmente submissos à autoridade


de três sistemas – o poder político, o poder do clã, o poder religioso.
Quanto às mulheres, estão, além disso, submissas à autoridade dos homens
ou o poder marital" [MAO ZEDONG apud BUENO, 2009]. Embora, na teoria,
o socialismo visasse a igualdade entre homens e mulheres nas atividades
sociais e de produção, o peso dos costumes milenares chineses não fora
algo fácil de se dissipar.

A menina que tinha uma mosca como animal de estimação


Hongxue [nome fictício], estuprada pelo pai pela primeira vez aos 11 anos
de idade. Dividia um aposento num dormitório coletivo com o pai e o irmão
mais novo. A história de Hongxue foi sabida por Xinran através de cartas e
folhas de diário que esta recebeu em seu programa de rádio, em 1989.
Estas folhas continham o selo e o endereço de um hospital na província de
Henan, onde Hongxue esteve internada durante a década de 1970. No
diário, Hongxue relatava o horror vivido por ela durante o tempo em que
dividiu o aposento com seu pai, que era militar, e sua luta para tentar
afastar-se dele. Para evitar uma aproximação com o pai ela começou a ficar
doente propositalmente, fazendo de suas idas ao hospital um mecanismo de
defesa:
126

"No inverno, encharcava-me de água fria e saía para o gelo e a neve. No


outono, comia comida estragada. Uma vez, em desespero, estendi o braço
embaixo de um pedaço de ferro que estava caindo, para cortar a mão
esquerda na altura do pulso [...]. Nessa ocasião, ganhei sessenta noites
inteiras de segurança." Diário de Hongxue [XINRAN, 2003, p.27]

No dia 21 de abril de 1975, Hongxue escreveu sobre sua vontade em criar


um filhote de mosca dentro do hospital, como animal de estimação:

"No domingo passado não tive nenhum tratamento intravenoso, então


dormi bem, até ser despertada por uma sensação suave na pele, um
arrepio. [...] Era como se um par de mãos minúsculas me acariciasse
suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis saber
de quem eram. Abri os olhos e vi: era uma mosca! Que horror! Moscas são
cheias de germes e sujeira de esgoto! Mas eu não sabia que as patas de
uma mosca podem ter um toque tão suave e leve, ainda que sejam sujas".
Diário de Hongxue [XINRAN, 2003, p.32]

A partir deste contato, Hongxue começou a criar um filhote de mosca,


alimentando-o e o deixando num "ninho" de gase em cima da mesa-de-
cabeceira. Cuidava-o incansavelmente, com medo de que a mosca fugisse
ou fosse morta por algum funcionário, o que acabou acontecendo certo dia;
a mosquinha foi esmagada, sem querer por um enfermeiro do hospital.
Entretanto, Hongxue não enterrou a mosca, mas guardou-a na geladeira;
enterrá-la significava deixá-la partir, de modo que Hongxue preferiu manter
sua "companheira" por perto. A menina ansiava por uma família de
verdade, que lhe desse amor e segurança. O toque das patas da mosca, no
entanto, fora sua única forma de afago durante a vida.

As folhas finais do diário demonstram a angústia de Hongxue em voltar


para a casa de seu pai. O médico lhe avisara que sua condição estava de
estabilizando, de modo que teria alta em breve para se recuperar em casa.
Ao pensar em algum plano para continuar internada, Hongxue
acidentalmente caiu na escada da cantina do hospital e cortou o braço. Os
enfermeiros redobraram o cuidado com o ferimento por causa de sua saúde
frágil, que poderia facilmente desenvolver uma septicemia devido ao
número de moscas no hospital:

""Moscas são grandes portadoras de doenças". As palavras da dra. Yu me


deram uma ideia, que decidi experimentar. Não me importo com as
consequências. Até a morte é melhor do que voltar para casa. Vou esmagar
a mosca grande em cima do corte no meu braço." Diário de Hongxue
[XINRAN, 2003, p.48]
Junto com as folhas do diário, Xinran recebeu também um certificado de
óbito, datado de 11 de setembro de 1975. Hongxue morreu de septicemia
aos 17 anos de idade.

A mulher cujo casamento foi arranjado pela Revolução


Neste capítulo, Xinran relata uma ligação que recebeu na secretária
eletrônica da rádio, de uma mulher cuja vida privada estava longe de ser
igual à pública. Anonimamente, a mulher, na casa dos 50 anos, contara à
127
Xinran sua história de estupro, casamento forçado e infelicidade:

"Eu não achava que houvesse tantas histórias de mulheres, semelhantes,


mas diferentes. [...] Você deve saber que é um grande alívio para as
mulheres dispor de um espaço para se expressarem sem medo de
acusações ou de reações negativas. É uma necessidade emocional, não
menos importante do que as nossas necessidades físicas." Mulher anônima
[XINRAN, 2003, p.135]

A mulher nascera numa família de pais instruídos, que haviam estudado no


exterior. Estudando durante a infância e adolescência numa escola
moderna, em estilo ocidental, ela sabia de seu privilégio e sua sorte em
gozar da liberdade que outras meninas chinesas da época não tinham.
Entretanto, apesar de ter sido criada numa família liberal, aos 17 anos ela
resolveu aderir à Revolução, ansiando por lançar-se num empreendimento
grandioso. Sua boa criação a fez destacar-se perante as outras meninas,
visto que ela sabia cantar, dançar, atuar e tocar música. No dia do seu
aniversário de 18 anos, a mulher foi então chamada ao escritório do líder do
regimento, que lhe atribuiu uma "missão". Ansiando por fazer parte do
Partido ela aceitou sem pensar, mesmo não sabendo qual seria sua missão
final. Fora então levada, no meio da noite, para o prédio do governo
regional, onde foi apresentada a um oficial de alta patente.

"Mais tarde, na mesma noite, fui despertada por um homem subindo na


cama. Aterrorizada, estava prestes a gritar quando ele me tapou a boca
com a mão e disse, em voz baixa: "Xiu, não perturbe o repouso dos outros
camaradas. Esta é a sua missão". [...] A voz dura era do oficial que eu tinha
conhecido ao chegar. Não tive forças para me defender, nem saberia como.
Só pude chorar. No dia seguinte, o Partido me informou que, à noite,
realizaria uma festa simples para celebrar o nosso casamento. Aquele oficial
é o meu marido até hoje". Mulher anônima [XINRAN, 2003, p.143]

Aos olhos dos outros, a mulher tinha tudo o que poderia desejar: um
marido ocupando um cargo importante no governo, dois filhos bem-
sucedidos e uma casa grande, confortável e moderna. Entretanto, a mulher
relatou não haver comunicação de verdade na família. "Quando estamos só
nós, tudo o que se ouve são os ruídos da existência animal: comer, beber e
ir ao banheiro". [XINRAN, 2003, p.136]

Xinran não pôde comentar sobre este relato durante seu programa de rádio.
Ao pedir permissão às autoridades para transmitir a história, estes
recusaram, alegando que seria prejudicial à imagem dos dirigentes do
Partido.
O primeiro relato escolhido para esta pesquisa, A menina que tinha uma
mosca como animal de estimação (p.21–49), evidencia o machismo e a
opressão sofridos por uma adolescente durante a década de 1970. Seu pai,
além dos abusos sexuais, também a agredia psicologicamente. Em uma das
passagens do livro, em seu diário, Hongxue escreveu que: "se eu contasse
para alguém, seria criticada em público e teria que desfilar pelas ruas com
palha na cabeça, porque eu já era o que chamavam de "um sapato usado"
[p.25]. A partir deste trecho, pode-se analisar o controle da mulher por
128
parte da figura masculina. A mulher, enquanto um ser carregado de
"feminilidade", deve manter sua "pureza" até o casamento. No caso de
Hongxue, a humilhação se daria ao fato de que não arranjaria um bom
casamento caso sua "impureza" viesse à tona. Deste modo, havia um
controle psicológico por parte de seu pai, que usava destas questões
culturais como forma de domínio.

Nas páginas 25 e 26, presente indiretamente no relato, percebe-se como


eram os dormitórios na época da Revolução Cultural. A divisão era feita por
famílias, que normalmente possuíam uma única peça. No dormitório ao
lado, outra família alojava-se:

"Pus um cadeado na porta do quarto, mas ele não se importava de acordar


todos os vizinhos e batia até que eu abrisse. Às vezes enganava as outras
pessoas no dormitório e elas o ajudavam a forçar a minha porta, ou então
dizia que precisava entrar pela janela para pegar alguma coisa porque eu
tinha o sono muito pesado. Outras vezes era meu irmão quem o ajudava,
sem entender o que fazia. Assim, trancasse a porta ou não, ele entrava no
meu quarto, em plena vista de todos”. Diário de Hongxue [XINRAN, 2003,
p.25–26]

Não houve, a partir deste relato, qualquer desconfiança por parte dos
vizinhos em relação ao que acontecia dentro do dormitório. O pai, por ser
homem e, consequentemente, exercer sua autoridade, não foi vítima de
contestação. A página 27 traz à tona uma parte da carta de Hongxue, onde
ela relata ter contado a verdade a sua mãe.

"Eu não aguentava mais e contei a verdade à minha mãe. Vi que ela ficou
terrivelmente perturbada. Mas, poucas horas depois, a minha "sensata"
mãe me disse: ‘Pela segurança da família toda, você vai ter que suportar
isso. Caso contrário, o que é que nós todos vamos fazer?’” Diário de
Hongxue [XINRAN, 2003, p.27]

Embora o divórcio fosse politicamente aceito, moralmente a prática ainda


era vista com maus olhos pelos chineses. Conforme Xinran [2003, p.249],
"em unidades de trabalho estatal, praticamente tudo o que é designado a
uma família vai no nome do homem". Divorciar-se seria a ruína da família,
moral e financeiramente, mesmo que a mãe de Hongxue tivesse um
emprego. Ademais, "os casais precisavam da autorização de seus
empregadores para se divorciar [...] quando as enormes estatais se
encarregavam de amparar seus funcionários até a morte e a dedicação ao
partido era considerada como mais importante que os dramas individuais."
[TREVISAN, 2006, p.51]
A comoção do relato se dá com o fato da morte de Hongxue, aos 17 anos,
vítima de septicemia. Com isso, pensamos em como a falta de voz e apoio
referidas às mulheres vítimas de abuso causam atitudes extremas. Este
caso veio à tona somente no ano de 1989, quando Xinran recebeu as folhas
de seu diário. Entretanto, trinta anos separam as datações dos escritos de
Hongxue, da década de 1970, com a publicação do livro de Xinran, em
2002. E a estes trinta anos, soma-se a certeza de que a violência sofrida
por Hongxue não se trata de um caso isolado.
129

O segundo relato analisado, A mulher cujo casamento foi arranjado pela


Revolução (p.134–144), traz à tona a situação do casamento arranjado,
prática comum na China ainda nos dias atuais. Contrariando a crença de
que apenas mulheres "sem instrução" são vítimas de opressão, este relato
expõe a infelicidade de uma mulher que, à época do relato, nos anos 1990,
estava na casa dos 50 anos, e que havia tido uma infância privilegiada em
relação às outras meninas de sua época. Entretanto, aos 17 anos, após
resolver aderir à Revolução contra a vontade de seus pais liberais, foi dada
em casamento a um oficial de alta patente do Partido. Xinran [2003] analisa
que esta era uma prática comum. "Muitos homens que aderiram à
Revolução deixaram mulher e filhos para trás, a fim de seguir o Partido.
Quando atingiram posições graduadas, o Partido lhes deu uma nova
esposa".

"A maioria das novas esposas eram estudantes que acreditavam


fervorosamente no Partido Comunista e idolatravam os homens de fuzil no
ombro. Muitas vinham de famílias abastadas e eram todas cultas. Eram
completamente diferentes das primeiras esposas, que eram sobretudo
camponesas. O refinamento delas estimulava nos oficiais o desejo por
novidade [...]". [XINRAN, 2003, p.145]

Conforme o relato da mulher, desde o começo do casamento a relação foi


puramente uma questão sexual e moral. Sua função como esposa, para o
marido, era servir como prova de sua "simplicidade, diligência e caráter
correto", para que este pudesse passar a ocupar um cargo mais alto. "Para
o meu marido, a carreira é tudo; as mulheres satisfazem apenas uma
necessidade física, mais nada. Ele costuma dizer: "Se você não usa a
mulher, para que se dar ao trabalho de tê-la?" [XINRAN, 2003, p.143]

"[...] O novo governo se viu diante do problema de decidir o que fazer com
as primeiras esposas de seus líderes. Muitas delas, casadas com homens
que agora ocupavam altos cargos, foram para Pequim com os filhos, na
esperança de encontrar o marido. [...] Os funcionários tinham constituído
nova família com as novas esposas: que esposa e que filhos seriam
repudiados, e quais seriam conservados? Não havia lei alguma em que
basear uma decisão". [XINRAN, 2003, p.145–146]

Obviamente, as segundas esposas — cultas — eram agora as esposas


oficiais. A solução encontrada pelo Partido foi a indenização vitalícia e o
reconhecimento de alguns direitos especiais para as primeiras esposas, de
modo que estas se encontrassem, então, sob a proteção do governo e não
fossem censuradas por suas aldeias. A ideia do divórcio ou de ser uma
"mulher usada", como mencionado anteriormente, era algo alvo de
humilhações, de modo que essa "proteção" visava amparar socialmente
estas mulheres abandonadas. O cumprimento dessas regras foi efetivado
simplesmente pelo fato de que as primeiras esposas mal as compreendiam:
“essas mulheres analfabetas, que não sabiam ler nem os ideogramas mais
simples, só entendiam uma coisa: pertenciam aos homens que lhes tinham
levantado o véu e que as transformaram de meninas em esposas”.
[XINRAN, 2003, p.146]
130
A partir deste relato, percebe-se duas "categorias" de esposas infelizes: as
camponesas, que foram abandonadas por seus maridos, e as novas
esposas, que mesmo tendo, aos olhos dos outros, tudo o que uma mulher
poderia querer em termos de conforto e estabilidade, se encontravam
apenas na posição de "esposas", e não de mulheres humanas, dotadas de
sentimentos e vontades próprias.

Considerações finais
Usar a literatura como fonte histórica nos permite trabalhar com o conceito
de verossimilhança. Os relatos recontados por Xinran servem como
representação de uma China real, e trazem à tona a realidade vivida por
uma sociedade que se encontra em constante transformação. No que diz
respeito às mulheres, percebe-se que a teoria é diferente da prática. Mesmo
uma política significativa como a de Mao, que visava a igualdade de gênero,
não fora o suficiente pra culminar com o milenarismo dos costumes
chineses. A partir desta pesquisa, considera-se um equívoco pensar a China
como igualitária. As políticas inclusivas de Mao alcançaram relativo sucesso,
principalmente nas áreas urbanas, mas não transformaram, nem de longe,
a China num país igualitário.

Por fim, ao analisar a representação da mulher chinesa a partir dos relatos


presentes no livro, procurou-se indagar qual o impacto dos antecedentes
culturais na vida destas mulheres modernas, bem como as consequências a
curto e longo prazo de uma tradição baseada em relações de poder. Nesta
perspectiva, buscou-se compreender como a tradição, ainda tão enraizada
no seio da China moderna, teve um papel tão importante numa sociedade
que, a partir de 1949, procurava romper com as tradições confucionistas
em nome da modernidade.

Referências
Bettina Pinheiro Martins é bacharel em História pela Universidade Federal de
Pelotas e mestranda em História pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
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SHU, Chang-sheng. A História da China Popular no Século XX. 1. ed. Rio de
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se cruzam. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 24, n.jul./dez., p.
127–152, 2005.
TREVISAN, Cláudia. China: o renascimento do Império. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2006.
XINRAN, As boas mulheres da China: vozes ocultas. São Paulo: Companhia
131
das Letras, 2003, 283 p.
ESCRITA DE SI, GÊNERO E LOUCURA NA OBRA ‘HOSPÍCIO É
DEUS’ DE MAURA LOPES CANÇADO
Bruna Alves Lopes e Geane Caroline Wiltemburg

Maura Lopes Cançado foi uma escritora brasileira conhecida pelas obras
Hospício é Deus – Diário I e Sofredor do Ver. Nascida em 1930, em uma
tradicional e influente família da oligarquia rural mineira, teve sua vida
132 permeada por internamentos em instituições manicomiais. Seu primeiro
internamento ocorreu em 1949, voluntariamente, devido a crises
depressivas. Na década de 50 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
conviveu com a elite intelectual e artística da cidade. Trabalhou nos
periódicos Jornal do Brasil e Correio da Manhã (veículos responsáveis pela
publicação de grande parte de sua obra literária composta, principalmente,
de contos e crônicas). No primeiro, publicava na coluna “Suplemento
Dominical” ao lado de nomes como Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar e
Carlos Heitor Cony. Seus contos, que foram escritos simultaneamente às
suas internações e tentativas de readaptação, renderam-lhe aclamação e
premiações. Alguns deles formam a coletânea intitulada “O sofredor do
ver”, publicada em 1968.

Publicado anteriormente, Hospício é Deus foi escrito durante um de seus


internamentos no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro,
pertencente ao Centro Psiquiátrico Nacional. Publicado em 1965, o livro
divide-se em duas partes. A primeira, de aproximadamente 30 páginas, é
uma espécie de autobiografia. O texto, descritivo e repleto de lembranças,
memórias e laços afetivos, enfatiza o período da infância e adolescência da
autora. Nele ela aborda suas crises epiléticas, os abusos sexuais sofridos
durante a infância, suas aventuras como integrante de um aeroclube e sua
prática de pilotar aeronaves, seu casamento e maternidade, bem como seu
conflito com o papel, ideal de mãe. Também relata, entre outras coisas, o
abandono do seu filho aos 03 anos de idade e o preconceito sofrido por ser
uma mulher separada (embora o divórcio não fosse instituído no país, nesse
período). Encerra relatando seu sofrimento com os reflexos do
condicionamento imposto pela sociedade a uma mulher jovem que percebe
além do que é apresentado como verdade. A segunda parte é composta de
um diário escrito entre 25 de outubro de 1959 e 07 de março de 1960.
Nele, Maura relata seu cotidiano, como percebeu e ressignificou sua
experiência de adoecimento e internamento. Além disso, aborda suas
concepções sobre loucura, os ditos loucos, sobre o funcionamento da
instituição manicomial, dos tratamentos, das relações com outras pacientes
e também com médicos e demais funcionários da instituição, bem como seu
entendimento e relação com seu diagnóstico, a esquizofrenia.

A obra, que possui três edições e atualmente encontra-se esgotada,


possibilita um olhar sobre a hospitalização do ponto de vista da mulher
institucionalizada (isso num contexto em que a voz do paciente era
obliterada pelo discurso médico) tornando-se uma importante fonte sobre o
cotidiano nos hospitais psiquiátricos ao longo da década de 1960, além de
apresentar denúncias acerca das violências empregadas dentro das
instituições. Nas linhas que seguem dedicaremos nossa atenção na
discussão sobre escrita de si, gênero e loucura.
De acordo com Milan [2016 p.154] os diários se tornaram, ao longo do
tempo, um espaço importante para a escrita de si feminina “[...] servindo
como um instrumento para a construção do ser; uma maneira de se
conhecer e de se fazer conhecer”. No que diz respeito ao processo de
hospitalização tais características da escrita e si pode adquirir um novo
significado: não apenas se conhecer, mas manter ativo na memória, por
meio da escrita, a imagem de quem se é ou imagina-se ser. Isso porque,
quando uma pessoa entra no ambiente hospitalar para receber cuidados
133
médicos, há um processo de transformação: o ‘eu’ anterior à internação é
transformado na figura do paciente e, a partir de então, passa a ser
submetido às regras da instituição e as decisões feitas pelos especialistas
[CARAPINHEIRO, 2005]. Nesse sentido, são interessantes as palavras de
Carapinheiro [2005, p.56]: “Nota-se as formalidades da chegada ao hospital
e ao setor de internamento, o despojo das roupas e valores pessoais, a
atribuição de uma cama e a obrigatoriedade de a ocupar imediatamente, a
circulação das papeletas e das pastas onde passa a ser registrada uma
outra biografia, a biografia de um homem doente”. Maura registra sua
percepção desse momento em seu diário: “Estranha minha situação no
hospital. Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa
no instante em que vesti este uniforme amorfo, ou, depois disto nada
existindo – a não ser uma pausa branca e muda. Estou aqui e sou. É a
única afirmativa, calada e neutra como os corredores longos” [CANÇADO,
1991, p. 32]

Tendo em vista que o ambiente hospitalar, em especial os dedicados ao


atendimento psiquiátrico, é marcado por esse ‘despojo do eu’ a primeira
reflexão que se faz pertinente é problematizar o que significava, dentro
desse contexto, ser mulher, internada e dedicar-se a escrita. Em outras
palavras, questionamos como a escrita de Maura expressa a visão de si e do
espaço em que estava.

Ao analisarmos a fonte observamos que a loucura é o que “dá sentido” a


narrativa de Maura e, ao mesmo tempo, é aquilo que ela interpreta
atribuindo sentido. Sua narrativa menciona o período da infância, talvez
numa tentativa de encontrar nela os primeiros indícios/sinais dos elementos
que, mais tarde a levam a passar por algumas internações psiquiátricas.
Nesse sentido observamos os sentimentos de inapropriação à sociedade
decorrentes de suas trajetórias e ações diante dos acontecimentos
(exemplo: suas crises epilépticas, os abusos, sentimento de culpa e a
loucura) como, também, as consequências de seus comportamentos,
considerados fora dos padrões estabelecidos, pela sociedade que a autora
aponta como preconceituosa. Ainda sobre a dificuldade de relacionar-se
com os demais e na busca de sinais que a ajudassem a compreender o que
acontecia, aponta: “Aprendi que só tinha a mim e minha presença me
agradava. Lia sem parar, pensava muito – eu me impunha uma disciplina
interior espartana. O que eu buscava sem cessar era uma coerência que
desse sentido à minha vida. Talvez, se eu enlouquecesse, conseguisse dar
vida às coisas que existiam em mim e que eu não era capaz de exprimir.
[CANÇADO, 1991, P.63]

Deus e loucura na narrativa são termos marcantes, a ponto de ser inserido


no título do livro, sendo os dois termos associados à ideia de distância e
eternidade. O hospício seria o olhar sempre vigilante e punitivo descrito na
autobiografia, o local repressor. Porém, também o local de refúgio. O lugar
onde Maura buscava a estabilidade, a compreensão não encontrada na
sociedade. Wadi [2017, p.2] aponta: “A procura por compreensão, a fuga
da solidão, apesar da atenção e carinho que recebia em seu local de
trabalho, foram justificativas para a busca por internação.” Comenta ainda
que esses argumentos foram uma constante, tanto em internamentos
anteriores quanto posteriores. Aprofundando o quesito distância, fica claro
134
que Maura Lopes Cançado sempre achou que havia uma distância entre ela
e os demais, mesmo na sua família: sua condição de filha amada, a classe
social, o capital cultural e, posteriormente, o divórcio e a loucura criaram a
compreensão de que não conseguia relacionar-se em igualdade com os
demais. Em seus textos utiliza adjetivos de superioridade e se auto intitula
como “super Maura”, “hiper Maura”, “Maurissíma”, “Maura de todas as
coisas e nada” [CANÇADO, 1991, p.137]. Também aborda essa ideia de
distância ao comentar que procura sua dimensão humana no olhar das
pessoas, no outro – e não a encontra - e que seu reino não seria desse
mundo, onde tudo se mostraria difícil e insuportável [CANÇADO, 1991,
p.157]. A distância poderia ser, também, consequência do sentimento de
isolamento social. No processo de internação tais reflexões se acentuaram:

“O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos.


Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, os mausoléus mais
gigantescos e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a
loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável,
decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava,
subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante.
O morto é naúseo, e se observado, acusa alto a falta do que o distinguia.
[..] só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele
não encontramos fala. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de
vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo fica-se em dúvida:
onde se acha a solidão? O louco é divino na minha tentativa fraca e
angustiante de compreensão. É eterno.” [CANÇADO, 1991, p.26]

Nesse sentido, vemos na escrita uma primeira tentativa de atribuir um


sentido e ordem àquilo que parece sem razão e permeado pelo caos.
Mendes e Mendonça [2002, p.117] defendem que “A experiência da doença
se refere, basicamente, à forma como as pessoas e os grupos sociais
assumem a situação da doença ou nela se situam”. Escrever seria, então, o
primeiro passo para manter a sanidade e, ao mesmo tempo, manter-se
como protagonista num contexto em que aqueles considerados ‘outros’
(médicos, guardas e demais funcionários da instituição) ignoram sua
individualidade e, não raro, humanidade:

“O doente, ainda preso ao mundo de onde não saiu completamente, tratado


com brutalidade, desrespeito, maldade mesmo, reage. Tenta agarrar-se ao
mundo de onde não saiu completamente. Apega-se a seus antigos valores,
dos quais não se libertou tranquilo. Principalmente teme: a característica do
doente mental é o medo (não o medo das guardas, dos médicos. O medo
de se perder de todo antes de se encontrar). Considero um noviciado,
depois do que as provas perdem razão de ser [...]” [CANÇADO, 1991, p.
27].
De acordo com a análise de Maura, a resistência era uma forma de manter-
se na condição de sujeito, apesar da violência praticada pela instituição. Era
um mecanismo utilizado para dizer a si mesma que não se entregou à
vontade, não raro perversa, do outro. Assim, mesmo as ações que em
outros contextos seriam consideradas rudes e pouco educadas, dentro do
hospício eram uma forma de manter-se íntegro a quem se é: chutes, uso de
palavrões, jogar objetos, entre outros, são alguns dos exemplos citados ao
135
longo do diário. Wadi (2017) ressalta que Maura também aponta o peso do
diagnóstico, que passaria a definir as pessoas internadas. Com ele e a
consequente hospitalização, surgiriam mudanças que provocam efeitos na
pessoa e na forma como esta se observa e é observada, o que Goffman
(1999) denominou carreira moral. Para Wadi (2017), Maura se agarrava ao
mundo externo para fugir dessa carreira moral já iniciada. Essa resistência
causava embates com médicos e com a estrutura do hospital, que foi
repetidamente questionada. Segundo Gomes e Mendonça [2002, p.114]:
“(...) podemos dizer que essa experiência depende muito do que se entende
por doença e que entendimento reflete, além dos aspectos subjetivos,
questões socioculturais mais amplas. Por isso nem sempre os conceitos dos
profissionais de saúde e o das pessoas que vivem a doença têm os mesmos
significados”. Os embates entre ela e os médicos são frequentes e,
conforme mencionado anteriormente, sua escrita é uma denúncia dos maus
tratos, tratamentos considerados inadequados, ameaças e outros. Maura
observa a loucura como algo diferente da doença mental e o seu receio “de
se perder como um todo” é uma constante em sua narrativa. Um dos
símbolos desse receio é a forma como aborda a terapêutica do pátio, um
local onde acomodariam os pacientes mais graves, aqueles que já não
possuem medo ou reações.

Em sua escrita observamos que as internas letradas recorriam a outro


instrumento de resistência: o uso da escrita: “Aqui estou de novo nesta
‘cidade triste’, é daqui que escrevo”. Não sei se rasgarei estas páginas, se
as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se
têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou
uma que veio voluntariamente para essa cidade – talvez seja a única
diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos “que não sabem” uma
mensagem do nosso mundo sombrio. [...] dizem que escrevo bem. Não sei.
Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém –
parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as
mensagens. [CANÇADO, 1991, p. 31].

Ainda que não tivessem a esperança de que seus escritos fossem


publicados, fica claro que a escrita se tornou para as alfabetizadas um
espaço/tempo importante para suportar e ressignificar a experiência da
internação. No caso de Maura, escritora já conhecida naquele momento,
dedicar-se ao diário teve mais dois significados que importantes a serem
destacados: 1) testemunhar o cotidiano das mulheres, de diferentes
classes, raças, gerações dentro do hospício e, a partir dessa observação in
loco, denunciar tanto o desconhecimento e descaso daqueles que nunca
passaram por tal experiência e, portanto, muitas vezes romantizavam o
hospício e a loucura quanto denunciar as práticas realizadas dentro daquele
espaço. Outra questão importante era 2) humanizar as internadas tirando-
as do anonimato, imposto pela família e pela instituição, e da
desumanização, expressa pela palavra paciente e por várias práticas
hospitalares, que retirava dessas mulheres a identidade (nome, gostos,
talentos, estilo de vestuário, história) e categorizava-as a partir da
patologia transformando em única memória legítima aquela narrada pelo
prontuário.

Entre as mulheres que marcaram Maura Cançado nessa internação, Dona


136
Auda foi uma das mais citadas em seu diário. O primeiro registro da
escritora em relação à colega de internamento surge na página 27 e, a
partir de então, torna-se um dos nomes mais citados ao longo da obra,
dedicando-lhe manifestações de carinho e afeto. Descreve Dona Auda como
uma interna antiga, hospitalizada há mais de 20 anos, uma antiga modista.
Considerada um caso perdido, passava o dia no pátio, horas na mesma
posição e, quando não estava lá, fazia o que era esperado dela: o proibido.
Para ela, Auda tinha medo. E, por isso agredia, antes de ser agredida.
Rasgava vestidos e fazia gestos obscenos. Porém, no seu ponto de vista, as
pessoas só se aproximavam de Auda para insultá-la.

Inicialmente a admirava porque parecia-lhe totalmente livre, pois não


precisaria de mais ninguém. Posteriormente, entendeu que aquela postura
era o reflexo do sentimento de solidão e renegação. Como todos, Auda
necessitava de todo mundo.

A partir de Dona Auda vemos Maura refletindo sobre o poder do ato de


escrever. Enquanto o hospício desumaniza — sendo a trajetória da colega
de internação um exemplo claro para Maura disso — o papel da escrita era
humanizar por meio das palavras. Relatar-se, nesse contexto, significava
responsabilizar-se [BUTLER, 2017] e fazer falar/reconhecer aqueles que,
devido à violência ética praticada em nome da suposta preocupação com a
saúde mental, foram sistematicamente retirados de cenas em que seus
corpos poderiam ser vistos e suas vozes ouvidas. Ainda que Maura e Dona
Auda fossem ambas mulheres internadas na mesma instituição, a escritora
tinha consciência de que ainda possuía instrumentos para que seu sussurro
fosse escutado e, a partir dele, que Dona Auda fosse vista para além da
identidade ‘louca’.

Podemos dizer que Maura aproveitou dois momentos para tornar pública a
história de Auda: no conto “Introdução a Alda”, publicado no livro o
Sofredor do Ver e no seu diário tornado público. Na perspectiva de Maura
há uma clara distinção entre as mulheres retratadas nos seus escritos,
distinção essa expressa inclusive na grafia do nome. A primeira,
apresentada no conto, era a “louca” cuja imagem era aquela descrita pela
instituição. O desconhecimento da mulher por detrás da paciente é
observado inclusive no desconhecimento em relação a grafia correta de seu
nome (Com a letra u e não l como acreditou a autora). A repercussão do
conto deu visibilidade a Auda e possibilitou alterações nas atitudes das
pessoas em relação a ela. Maura observou que o texto possibilitou que a
“Alda” retornasse a ser “Auda”, ou seja, um ser humano, antes de ser
alguém com uma patologia. Sobre o impacto exercido pelo uso da escrita
afirmou: “Para mim, só o amor e a compreensão farão o milagre de
descobrir Audas, desarmadas e autênticas.”
Referências
Bruna Alves Lopes é Licenciada em História, mestre e doutora em Ciências
Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Geane Caroline Wiltemburg é Bacharel em Turismo, Licenciada em História
e mestranda em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de


137
Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Diário I, 3. ed., São Paulo,
Círculo do Livro, 1991.
CANÇADO, Maura Lopes. O sofredor do ver, Rio de Janeiro, José Alvaro
Editor, 1968.
CARAPINHEIRO, Graças. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos
serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento Ltda, 2005.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos, 9. ed., São Paulo,
Perspectiva, 1999.
GOMES, Romeu; MENDONÇA, Eduardo Alves. A representação e a
experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In:
Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2002, p.109 – 132.
MILAN, Letícia Portella. Escrita de si e diários: construções do gênero diante
de paradigmas socioculturais. Revista Brasileira de História e Ciências.
Vol.8. nº 15, 2016.
WADI, Yonissa Marmitt. “Estou no Hospício, Deus”: problematizações sobre
a loucura, o hospício e a psiquiatria no diário de Maura Lopes Cançado
(Brasil, 1959-1960). Asclepio Revista de História de la Medicina y la Ciencia,
vol 69, no2, 2017.
PROBLEMAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO ESPAÇO
ESCOLAR: A TRAVESTI NEGRA NA SÉRIE TELEVISIVA
SEGUNDA CHAMADA
Bruno Silva de Oliveira e Manuela Aguiar Damião de Araújo

Em 1976 o filósofo francês Michael Foucault, ao publicar História da


sexualidade – a vontade de saber, nos mostrou que o sexo passou a ser
138 uma produção de discurso a partir do século XVI, por meio de diversos
mecanismos enunciativos (2006, p. 19). Ou seja, gênero e sexualidade é
um dispositivo mais discutido do que imaginamos quando nos dispomos a
analisar as diversas instituições, mecanismos e práticas discursivas que não
somente incitam, mas, que também, proíbem. Partindo disso, este trabalho
irá abordar o espaço escolar e a personagem Natacha, a partir série
Segunda Chamada (produzida pela Rede Globo, 2019, tendo sido escrita
por Carla Faour, Julia Spadaccini e Joana Jabaci, na direção artística),
enquanto enunciados discursivos sobre gênero e sexualidade, bem como
violências mencionadas na produção televisiva, as quais são submetidas os
corpos LGBTQI+ (por mais que seja escassa menções diretas a esse grupo).
Para a discussão faremos uso dos conceitos de representatividade, o qual
discuti Silvio Almeida (2010), e arquitetura escolar, abordado por Agustín
Escolano (2001).

Ambientada na Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, numa comunidade


periférica, a série retrata diversos dilemas e situações dentro deste espaço,
sempre com ênfase nas ações de seus agentes; sejam os professores, que
possuem papeis fundamentais nas narrativas; sejam os alunos que
vivenciam todo o drama cotidiano de viver em regiões socialmente
marginalizadas. A trama é complexa e diversificada, principalmente no que
se refere à frágil situação em que os professores são submetidos a um
sistema de ensino deficitário e com falta de investimentos; seja na
infraestrutura escolar, na remuneração dos profissionais da educação e em
medidas que auxiliem na permanência dos alunos na escola. A série aborda
um leque amplo de situações as quais lidamos cotidianamente na escola e
com a comunidade entorno a partir de representações por meio da referida
produção televisiva.

Quando pensarmos de que formas e em que espaços, nos dias atuais, tem-
se discutido e problematizado sobre gênero e sexualidade se faz importante
discorrer sobre discursos políticos no Brasil. É do vereador Pimentel Filho
(PSD), da cidade de Campina Grande – PB, o projeto de lei que proíbe
qualquer conteúdo, do que seria chamado de “ideologia de gênero”, de ser
discutido em escolas públicas e privadas. Sancionada em 2018, pelo então
prefeito Romero Rodrigues (PSDB); o qual anunciou em vídeo o apoio ao
projeto da Câmara dos Vereadores justificando manter boas relações com a
mesma e valores religiosos, a lei nº6.950 esclarecia que:

“[...] coloca a família como ‘elemento natural e fundamental da sociedade’


[...] considera ‘material impróprio ou inadequado para crianças e para
adolescentes’ aqueles [...] que ‘contenham imagens ou mensagens sexuais
com conotação intencionalmente erótica, obscena ou pornográfica, material
relacionado a ideologia de gênero’.
[...] esclarece, ainda, que ‘os materiais didáticos, para didáticos, cartilhas
ou qualquer outro tipo de material escolar, destinados ao público infanto-
juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou
anúncios ou narrativas de qualquer espécie de bebidas alcoólicas, tabaco,
ou qualquer objeto ou atividade impróprio para consumo ou execução direta
pela própria criança ou pelo próprio adolescente, devendo respeitar os
valores éticos e sociais da pessoa e da família (G1, 10/07/2018).”
139
O projeto de lei faz parte de uma discussão presente no Brasil atualmente,
em defesa da moral, dos bons costumes, de valores tradicionais,
conservadores e religiosos que condenam a comunidade LGBTQI+. O que se
costuma ouvir é que a referida comunidade estaria impondo uma “ideologia
de gênero”, a qual transformaria jovens e adolescentes em gays. Esta
mesma comunidade estaria destruindo a família tradicional, ou seja, seria
um ataque à heterossexualidade, conforme disse Marco Feliciano, então
Deputado Federal durante entrevista para o documentário Explorer
investigation – Intolerância LGBTQI+, produzido pela National Geographic,
em 2018. O discurso LGBTfobico não se limita ao projeto de lei discutido na
referida cidade.

Em 2019, durante a X Bienal do Livro que ocorria na cidade do Rio de


Janeiro – RJ, o então prefeito Marcelo Crivella mobilizou-se para que um
quadrinho da Marvel, o qual continha personagens gays, fosse retirado do
evento e que outros materiais com conteúdo semelhante fossem
censurados para que o público jovem não tivesse contato. Esses materiais
deveriam serem comercializados em embalagens lacradas e com
advertência acerca de seu conteúdo. O caso teve grande repercussão
nacional resultando em diversas manifestações, tanto nas redes sociais
como também no próprio evento. A argumentação era a mesma; defesa da
moral, dos bons costumes, de valores tradicionais, conservadores e
religiosos que condenam a comunidade LGBTQI+.

Apesar do que possa parecer, a discussão sobre gênero e sexualidade, não


necessariamente, quer dizer que será pautado o leque de gêneros e
sexualidades existentes. Para além disso, a proposta que se discuta tais
questões visa abarcar assuntos como feminismo, machismo, assédio sexual,
violência doméstica e várias outras questões políticas, econômicas, sociais e
culturais que perpassam o nosso cotidiano. Entretanto, as formas
discursivas para abordar gênero e sexualidade na escola não se limitam ao
discurso verbalizado já que os enunciados discursivos são empregados
através da arquitetura escolar e as representações através de mídias, como
é o caso da série Segunda Chamada. Gênero e sexualidade é discutido bem
mais do que parece.

Problemas de representatividade nas telas: reprodução de


estereótipos e luta contra LGBTfobia
Pensar as representações e analisá-las em produções contemporâneas nos
permitem observar e compreender como determinados elementos são
postos em tela, sendo difundidos para a massa de telespectadores que as
consomem. Tais produções carregam consigo valores sociais e culturais do
meio em que se inserem, sejam eles conservadores ou com maior abertura
para a diversidade e, portanto, podem vir a reforçar estereótipos, por mais
que as intenções sejam positivas ao abordar determinadas questões.

Ao reproduzir estereótipos, essas representações podem contribuir para que


preceitos conservadores e moralistas sejam reforçados, sobretudo por parte
do público telespectador que pode vir a carecer de informações prévias,
para além de estereótipos. A reprodução dessas imagens sobre um
determinado grupo social comumente marginalizado, sobre algum tema
140
considerado tabu ou qualquer outro elemento que já sofre por preconceitos
e estigmatizações de forma estrutural, são um desserviço para pautas de
lutas importantes, como é o caso de lutas pelas pautas da comunidade
LGBTQI+.

Representatividade, através dos meios de comunicação e dos espaços


acadêmicos, tem sido um elemento reivindicado por grupos socialmente
discriminados na tentativa de ocupar espaços que lhes são negados e,
assim, romper barreiras e paradigmas numa sociedade voltada para grupos
que se colocam enquanto dominantes, sejam por raça, gênero, sexualidade,
crenças ou classe. Entretanto, a busca por representatividade, que atendam
aos interesses e as demandas desses grupos subalternizados tem sido
apropriada e mercantilizada pelo sistema capitalista, o qual vende uma falsa
ideia de igualdade e inclusão desses grupos e suas lutas. Tais imagens,
mesmo que objetivando a inclusão, podem vir a reproduzir estereótipos e,
com isso, reforçar violências.

Quando pensamos representatividade corroboramos com Silvio Almeida


quando ele esclarece que “[...] o que chamamos de representatividade
refere-se à participação de minorias em espaços de poder e prestígio social,
inclusive no interior dos centros de difusão ideológica como os meios de
comunicação e a academia” (ALMEIDA, 2010, p. 109). O autor segue
elencando dois aspectos importantes da representatividade frente a
discriminação: 1) propiciar a abertura de um espaço político para que as
reinvindicações das minorias possam ser repercutidas, especialmente
quando a liderança conquistada for resultado de um projeto político
coletivo; 2) desmantelar as narrativas discriminatórias que sempre colocam
minorias em locais de subalternidade... (ALMEIDA, 2019, p. 110).

As representações desses sujeitos através dos meios de comunicação


podem conferir um efeito contrário por estarem sob o domínio de grupos
dominantes que delas fazem uso como forma de manutenção da LGBTfobia,
machismo e racismo. Para que a representatividade seja eficaz em sua
proposta de fazer frente a discriminações, enquanto ferramenta política, é
necessário que estejam alinhadas aos interesses dos grupos subalternizados
para que os interesses políticos da representatividade sejam alcançados. A
partir disso, entendemos:

“[...] que as representações são um instrumento o qual o indivíduo utiliza


para criar significados permeados por interesses, sejam eles político, social,
econômico ou cultural. Quem fala, fala a partir de algum lugar e a partir
dele, sendo o discurso uma peça importante das representações...”
(OLIVEIRA; CORDÃO, 2019, p. 102).
A comunidade LGBTQI+ tem tido imagens associadas a ela nos mais
variados setores de consumo, difundidas enquanto representatividade. Na
indústria cinematográfica temos, por exemplo, o filme Me chame pelo seu
nome (2017), baseado em livro de mesmo nome, ganhador do Oscar de
“Melhor roteiro adaptado”, o qual apresenta personagens homossexuais
brancos e que reproduzem comportamentos normativos. Temos, também, o
longa-metragem Com amor, Simon (2018), baseado na obra Simon vs. a
agenda homo sapiens, o qual nos apresenta um personagem branco,
141
homossexual e que reproduz comportamentos normativos.

Outras produções recentes obtiveram visibilidade mercadológica como, por


exemplo, a série Sex education (2019), produzida pela Netflix. Nesta,
assistimos o personagem o Eric Effiong (Ncuti Gatwa) é um jovem negro,
homossexual e que; ao contrário dos personagens brancos e homossexuais
dos filmes anteriormente citados, que apresentam comportamentos
normativos numa ótica “masculinizada”, Eric é afeminado, possui os
“trejeitos”. Enquanto a artista Linn da Quebrada canta sobre sair de salto e
maquiada na favela, ela também atua dentro dessa imagem, enquanto
travesti na série Segunda Chamada.

O espaço escolar e políticas públicas: manutenção de discursos


LGBTfóbicos
Quando pensamos nas homossexualidades precisamos compreender que o
entendimento desse amplo leque é deficitário dentro de comunidades
populares. É comum em bairros periféricos/favelas, o entendimento de que
existe homem e mulher (cis), ele podendo ser “viado”, ela podendo ser
“sapatona” (Termo pejorativo para referir-se ao homem e a mulher,
respectivamente, que relaciona-se afetiva e/ou sexualmente com o mesmo
sexo). O indivíduo que se veste com roupas destinadas ao sexo feminino e
que se identifica enquanto travesti será lida, nesses espaços, enquanto um
“homem viado”, “mulherzinha”, ou qualquer outro termo pejorativo
empregado ao homem que foge aos padrões de masculinidade construída
socialmente, travestir-se seria uma dessas fugas.

Esse é um dos temas que será abordado no primeiro episódio da primeira


temporada, da série Segunda Chamada, de forma a nos apresentar a
personagem Natasha. As cenas ocorrem no banheiro masculino da escola.
Natasha está prestando auxilio a um colega que está passando mal, nesse
momento dois jovens, negros, adentram ao banheiro e, ao presenciarem a
cena, começam a fazerem piadas vulgares, vindo a chamá-la de “traveco”,
o que ela responde pronunciando seu nome para os jovens, os quais
insistem no tratamento na forma masculina chamando-a de Robson. Os
insultos persistem, ela passa a ser chamada de “viado”, e a mesma
responde ser uma travesti. Um dos jovens a agarra e a arrasta para dentro
do cubículo em que fica o vaso sanitário, Natasha tenta se desvencilhar. O
outro jovem tenta impedir seu colega de continuar com a agressão no
momento em que ela consegue se livrar dele, pega uma navalha que estava
escondida em suas vestes e empunha na direção dos dois jovens.
Amedrontados, os dois rapazes saem do banheiro, um deles proferindo
ameaças contra Natasha que continua com a navalha empunhada, e a
deixam só.
Essa sequência de cenas nos traz não somente o masculino que é
enxergado em Natasha pelos jovens, ao chamá-la de “traveco” e na
insistência de usar um nome masculino o qual a mesma não se identifica.
Apesar dela se identificar enquanto Natasha, uma travesti, ela é lida, pelos
jovens na cena, enquanto uma figura masculina com comportamentos de
“viado”, “traveco”. Essas cenas nos introduzem a um assunto de extrema
importância para pensarmos como esses indivíduos lidam com suas
sexualidades em um espaço que busca podá-las e encaixá-las dentro de
142
normas preestabelecidas socialmente para controle e manutenção de
comportamentos com base na cis heteronormatividade. A arquitetura
escolar surge nesse contexto enquanto um meio que perpetua violências
contra estudantes que não se enquadram dentro desses padrões de
sexualidade. Vejamos o diálogo a seguir em cena que ocorrem dentro da
escola, ainda no mesmo episódio.

“Colega: para de usar o banheiro dos macho e usa os da mina, Natacha.


Natacha: amiga é o que mais quero, mas olha pra mim, olha pra mim, só
vou arrumar outro problema” (Segunda chamada. Direção: João Gomez e
Ricardo Spencer. Rede Globo, 2019).

Em outra cena, ainda no mesmo episódio, Natasha encontra-se diante da


entrada dos banheiros masculinos e femininos, dispostos lado a lado com
identificação de sexo. Ao dirigir-se ao feminino uma senhora que vai saindo
dele é surpreendida ao ver alguém se aproximando e diz:

“Dona Jurema: meu filho, esse banheiro é das mulheres, dos homens é ali.
Natacha: Dona Jurema, se entro lá agora não sei nem se saio viva.
Dona Jurema: vai reclamar com a direção, não sou obrigada a dividir
banheiro com travesti.
Natacha: respeita, Dona Jurema, que eu não tô faltando com respeito.
Dona Jurema: me respeita você, Robson.
Natacha: quantas vezes vou ter que repetir, meu nome é Natacha.
Dona Jurema: pra mim continua Robson” (Segunda chamada. Direção: João
Gomez e Ricardo Spencer. Rede Globo, 2019)..

Nesse primeiro episódio, o qual irá apresentar personagens e o ambiente da


trama, a forma como Natasha é lida dentro espaço escolar e a constituição
do mesmo estará em constante discussão. O conceito de arquitetura escolar
é fundamental para nos auxiliarmos na compreensão desse espaço físico e
sua perpetuação de valores sociais conservadores. Por mais que não fizesse
uso desse conceito, Michael Foucault (2006) já demonstrava formas de
como a discussão sobre o sexo se fazia presente nesse ambiente a partir de
sua estrutura física.

Conforme o autor a arquitetura também é discursiva, ela organiza os


indivíduos com os quais se relaciona a partir de concepções sociais, ou seja,
a ela segue os valores predominantes sociais à época. A arquitetura dos
colégios do século XVIII na França não está desassociada do meio social em
que está inserido. Segundo Foucault, a sexualidade passou a ser um
problema público, ou seja, resultou em ações institucionalizadas; a partir de
discursos médicos de pedagogos e também das autoridades do Estado, para
organizar esses espaços. Esse nó de discursos institucionalizados
(FOUCAULT, 2012, p. 28) nos permite observar a gama de agentes que irão
atuar nesses colégios através de uma série de observações, advertências e
preceitos com base em valores conservadores.

Seguindo essa percepção da arquitetura, enquanto enunciação discursiva, o


espanhol Agustín Escolano (2001), o qual debruçou-se sobre a História da
Educação espanhola, pensa o espaço escolar enquanto uma construção
cultural que reflete discursos sociais para além de sua estrutura física.
143

“A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie


de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como
os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial
e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos,
culturais e também ideológicos” (ESCOLANO, 2001, p. 26).

A partir disso, podemos pensar no formato da escola enquanto discurso que


visa exercer o controle dos corpos. A arquitetura escolar, mecanismo
material, dialoga com valores construídos socialmente que são excludentes,
disciplinarizadores e de constante vigilância. Escolano discuti que, por mais
que haja o processo de modernização da estrutura escolar, sua arquitetura
ainda constitui um símbolo de poder que perpetua velhas e retrogradas
concepções que impõe valores tradicionais e que reforçam o controle dos
corpos, de como devem se comportar o homem e a mulher nesse espaço
que:

“[...] tem se estruturado historicamente por preceitos, crenças e valores


que maximizam a discriminação, invisibilização e preconceito a sujeitos
“ininteligíveis”, legitimando as relações de poder e opressão entre os
considerados “normais” e “anormais”, entendidos como “doente[s],
esquisito[s], inferior[es], desqualificado[s], pervertido[s], contagioso[s]”
(LACERDA, 2018, p. 217-218).

Conforme Agustín Escola e Milena Lacerda esses espaços físicos são meios
de perpetuação de concepções retrógradas e violências contra o que seria
“anormal”. Assim, temos o exemplo de Natasha com a escola (como é o
caso de outra situação, ainda no primeiro episódio). Na cela, ela se coloca
diante dos banheiros masculino e feminino e os observa e adentra ao
feminino causando estranhamento entre as mulheres presentes. Por mais
que haja o processo de modernização da estrutura escolar ela estaciona em
alguns aspectos que exclui homens e mulheres trans, como é o caso dos
banheiros.

Pensar na construção de banheiros, sobretudo no ambiente escolar, é ter


em perspectiva sua construção voltada para o homem cis e a mulher cis. Ou
seja, é levado em consideração o órgão sexual biológico do corpo,
excluindo, portanto, pessoas trans que não se identificam com o gênero
socialmente atribuído ao seu corpo. Esse problema não está limitado apenas
a arquitetura escolar, ele é reforçado socialmente por meio de instituições
transfobicas. Existem no Brasil exemplos de projetos políticos de que
tinham como objetivo proibir pessoas trans de fazerem uso de banheiros de
escolas públicas e de outros espaços públicos, a partir do gênero com qual
se identificava.
No segundo episódio Natasha volta a fazer menção a problemas que
assolam tal comunidade, problemas estes que não se limitam ao ambiente
escolar, como já discutimos. Ela diz “Eu tenho medo, eu saio de casa todos
os dias e não sei se volto viva” (Segunda chamada. Direção: João Gomez e
Ricardo Spencer. Rede Globo, 2019). Sua fala chama a atenção acerca da
violência física que são alvos os corpos LGBTQI+ no Brasil. Tal violência
contra a comunidade LGBTQI+ no Brasil tem causado altos índices de
144
mortes desses indivíduos, como nos mostra o relatório de 2018 publicado
pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), ao apontar o número de 420 homicídios no
referido ano, sendo: 164 (39%) foram de pessoas trans, sendo incluso
nessa denominação: 81 travestis; 72 mulheres transexuais; 6 homens
trans; 2 drag queens; 2 pessoas não-binárias e 1 transformista.

Considerações finais
Apesar de se haver discussões acerca de gênero e sexualidade nas escolas
se faz necessário uma atuação de todo o ambiente escolar para que haja a
obtenção de resultados positivos, como por exemplo, a luta contra a
LGBTfobia. Contudo, existe toda a carga social, sobretudo por parte do
Estado, que atual na contramão de propostas que busquem implementar
discussões do tipo nas escolas, nos explica os psicólogos da educação:

Evidenciando o crescente número de violência contra a população LGBTT, o


MEC – Ministério da Educação, compreende que seria necessário discutir as
temáticas de gênero e sexualidade na formação – inicial e continuada – de
profissionais da educação e com isso nasceu o Projeto Escola sem
Homofobia (2004), ou ainda, o “kit gay” como foi pejorativamente
conhecido pela população.

O material que compunha o Projeto Escola sem Homofobia tinha como


objetivo contribuir para a implementação e a efetivação de ações que
promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos
humanos e da respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de
gênero no âmbito escolar brasileiro. E como é de conhecimento público,
quando estava pronto para ser impresso e distribuído, setores
conservadores da sociedade e do Congresso Nacional tencionaram o
Governo Federal e o projeto foi engavetado (Pessôa; Pereira; Toledo, 2017,
p. 23).

O debate sobre gênero e sexualidade na educação fortemente presente nos


dias atuais e que tem como principal agente inviabilizador o Estado, é
intensificado também por um crescente debate que tem questionado sua
omissão em instituir políticas educacionais que abarquem questões tão
urgentes e que podem contribuir para que ocorram mudanças nos índices
de violências, sobretudo contra a comunidade LGBTQI+, que demonstram o
fluxo contínuo de derramamento de sangue de nossos cidadãos. Políticas de
Estado tem corroborado para a perpetuação de discursos conservadores,
por isso corroboramos com o que dizem a autora e os autores “A omissão
do Estado em instituir políticas educacionais que tomem as discussões de
gênero e sexualidade com a seriedade e o rigor que merecem só acirra
desigualdades e violências” (Pessôa; Pereira; Toledo, 2017, p. 29).
Referências
Bruno Silva de Oliveira é aluno de graduação em História pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG); Integrante do Grupo de Estudos
Literários em Escrituras Negras (GELEN-CG);
Manuela Aguiar Damião de Araújo é graduada em História pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG); Doutora em Literatura e
Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB; Pesquisa
sobre literatura, gênero e mídia.
145

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como
programa. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de
Janeiro: Edições gerais, 2006.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2012.
NOGUEIRA, Leonardo; HILÁRIO, Erivan; PAZ, Thaís Terezinha; MARRO,
Kátia (Org.). Hasteemos a bandeira colorida: diversidade sexual e de
gênero no Brasil. São Paulo: Expressão popular, 2018.
OLIVEIRA, Bruno Silva de; CORDÃO; Michelly Pereira de Sousa. O feminino
em Vikings: reflexões sobre as personagens na cultura escandinava
medieval. In. Aprendendo História: mídia. União da Vitória: Edições
especiais sobre ontens, 2019.
PÊSSOA, Lilian Correia; PEREIRA, Rodnei; TOLEDO, Rodrigo. Ensinar gênero
e sexualidade na escola: desafios para a formação de professores. Revista
de estudos aplicados em educação, v. 2, n. 3. jan./jun. 2017.
Disponível em: <g1.globo.com/google/amp/pb/paraiba/noticia/sancionada-
lei-que-proibe-ideologia-de-genero-nas-escolas-de-campina-grande.ghtml>
Acesso em 26 de março de 2020.
Disponível em: <politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/caso-
crivella-x-bienal-do-livro-censura-ou-protecao-ao-menor/?amp> Acesso em
26 de março de 2020.
SEGUNDA CHAMADA. Direção de João Gomez e Ricardo Spencer. Rede
Globo, 2019 (ainda em produção).
HISTÓRIA DAS MULHERES E ENSINO DE HISTÓRIA EM
CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR
Carolina Giovannetti

O ensino de história não tem se ocupado, prioritariamente, com a história


das mulheres, o que revela uma epistemologia baseada na ordem patriarcal
146 da sociedade. Para a historiadora Gerda Lerner, o patriarcado gerou a
negação da história das mulheres e “a existência das mulheres foi ignorada
e omitida pelo pensamento patriarcal – fato que afetou a psicologia de
homens e mulheres de forma significativa” [LERNER, 2019, p. 31]. Ela
também defende que “a falta de conhecimento das mulheres sobre a
própria história de luta e conquistas é um dos principais meios de nos
manter subordinadas” [LERNER, 2019, p. 277]. Assim, não conhecer
histórias de vivências e de lutas das mulheres é uma forma de manter a
dominação do patriarcado.

Segundo Lerner, “as mulheres foram impedidas de contribuir com o fazer


história, ou seja, a ordenação e a interpretação do passado da humanidade”
[2019, p. 29]. O fazer história é uma criação que remonta à invenção da
escrita e, até bem pouco tempo atrás, as pessoas incumbidas de fazer o
relato histórico eram homens e registravam o que os homens haviam
realizado e considerado importante [LERNER, 2019]. “Chamaram isso de
história e afirmaram ser ela universal. O que as mulheres fizeram e
vivenciaram ficou sem registro, tendo sido negligenciado, bem como a
interpretação delas, que foi ignorada” [LERNER, 2019, p. 29].

Os estudos históricos referentes às mulheres passaram por um longo


processo marcado pela desmemorização e por silenciamentos [PERROT,
2005; 2017]. Os movimentos feministas e o campo de pesquisa da história
das mulheres denunciaram a exclusão das mulheres do relato histórico,
propondo uma perspectiva feminista que questiona a desigualdade entre
homens e mulheres nos mais diversos âmbitos da sociedade, inclusive nas
esferas curriculares educacionais. Da perspectiva feminista é importante
considerar “o fato de que a epistemologia não é nunca neutra, mas reflete
sempre a experiência de quem conhece” [SILVA, 2011, p. 94]. Não
conhecer a história das mulheres nas escolas, através dos currículos, é
manter a epistemologia masculina sobre a narrativa histórica, gerando
visões desiguais da sociedade. “Essa repartição desigual estende-se,
obviamente, à educação e ao currículo” [SILVA, 2011, p. 92]. Assim, a
epistemologia feminista denuncia e questiona os valores passados pelos
currículos. “É essa reviravolta epistemológica que torna a perspectiva
feminista tão importante para a teoria curricular. Na medida em que reflete
a epistemologia dominante, o currículo existente é também claramente
masculino. Ele é a expressão da cosmovisão masculina” [SILVA, 2011, p.
94].

Silva afirma também, nesse sentido, que o “currículo não pode ser visto
simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O
currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos
tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos
produz” [2001, p. 27]. Desta forma, o currículo constitui os sujeitos e
também é constituído por eles, informando o tipo de sujeito e de sociedade
que se pretende formar.

O currículo escolar, assim, é também “um espaço de lutas e disputas


constantes, no qual os diferentes grupos sociais tentam imprimir suas
verdades, divulgar seus conhecimentos e produzir determinados
significados” [SILVA, 2011, p. 34]. Assim, as discussões sobre currículo vão
além de uma seleção de conhecimentos, envolvem também, uma operação
147
de poder. Para Michel Foucault [2007], as relações de poder se alastram por
toda a estrutura social, nada está isento de poder, portanto, não é possível
escapar dessas relações de poder microfísicas, mas é possível resistir a
elas.

Dentro desse contexto teórico, estudar ou não determinados conteúdos


históricos é uma ação proveniente de uma escolha interessada, que
privilegia determinados conhecimentos e silencia outros. Assim, os
programas curriculares podem ser espaços de silêncios de mulheres, de
determinadas culturas, grupos minoritários, étnicos ou raciais, na medida
em que são constituídos de relações de poder de diferentes formas. O
currículo pode reverberar injustiças, discriminações e saberes etnocêntricos,
produzindo significações para o mundo social e cultural.

Assim como os currículos, o discurso histórico também pode ser


considerado com uma formação discursiva cultural, social e histórica, sendo
a história um saber construído, moldado por interesses, por relações de
força, com discursos que tornam históricos certos acontecimentos em
detrimentos de outros. “O poder produz saber (...), não há relação de poder
sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” [FOUCAULT,
2008, p.30]. Assim, cria-se um saber que é legítimo dentro de um discurso
histórico. É neste contexto, por exemplo, que as mulheres estiveram às
margens do discurso historiográfico tradicional. “A história será, então,
pensada como um campo de relações de força, do qual o historiador tentará
aprender o diagrama, percebendo como se constituem os jogos de poder”
[RAGO, 1995, p. 77].

Debater e propor o desafio da teoria feminista tornar-se um novo


paradigma de compreensão da realidade, da sociedade e da educação passa
por uma reflexão sobre o paradigma tradicional da ciência positivista e
empirista, tendo em vista que ele constitui a visão dominante no processo
de construção do conhecimento na contemporaneidade. Assim, para Marlise
Matos [2008], “os movimentos organizados de mulheres, e depois os
movimentos feministas de todos os matizes, inauguraram no alvorecer do
século XX grandes viradas, inclusive no escopo do próprio modo de se
perceber o conhecimento” [p. 335].

Nesse contexto, o movimento feminista trouxe à tona a discussão sobre o


processo de exclusão sofrido pelas mulheres e, em suas discussões, toma
como ponto de partida a dominação masculina, peculiar ao patriarcado, que
tem um importante papel no estabelecimento das relações desiguais entre
os sexos. A crítica feminista ao conhecimento hegemônico “revela o caráter
particular de categorias dominantes, que se apresentam como universais;
propõe a crítica da racionalidade burguesa, ocidental, marxista incluso que
não se pensa em sua dimensão sexualizada, enquanto criação masculina,
logo excludente” [RAGO, 1998, p.4].

A ciência ocidental ligada a epistemologias tradicionais e patriarcais “opera


no interior da lógica da identidade, valendo-se de categorias reflexivas,
incapazes de pensar a diferença” [RAGO, 1998, p.4]. Dentro desta reflexão,
pode-se afirmar que “as noções de objetividade e de neutralidade que
148
garantiam a veracidade do conhecimento caem por terra, no mesmo
movimento em que se denuncia o quanto os padrões de normatividade
científica são impregnados por valores masculinos, raramente filóginos”
[RAGO, 1998, p.5]. Assim, “a pretensa neutralidade projeta uma educação
que é incapaz de intervir no mundo e, por isso, torna-se cúmplice das
injustiças e violências que nele ocorrem [MIGUEL, 2016, p. 615]. Portanto,
pode-se concluir que “a crítica feminista evidencia as relações de poder
constitutivas da produção de saberes, como aponta, de outro lado, Michel
Foucault” [RAGO, 1998, p.5].

Assim, as noções tão caras à ciência ocidental, como neutralidade e


objetividade, são repletas de valores masculinos [RAGO, 1998]. “O que a
análise feminista vai questionar é precisamente essa aparente neutralidade
– em termos de gênero – do mundo social. A sociedade está feita de acordo
com as características do gênero dominante, isto é, o masculino” [SILVA,
2011, p. 93].

Dentro dessa interpretação, pode-se afirmar que na contemporaneidade


surgem novas epistemologias, baseadas por outros ideais de produção do
conhecimento e são pautadas por uma inserção distinta do conhecimento,
em um processo de experiência composto por indivíduos em interação,
alterando suas considerações e sem um método pronto e acabado. Assim, a
epistemologia feminista tem como uma de suas características considerar
como questões relativas às relações de gênero influenciam e direcionam as
concepções de conhecimento, as pesquisas acadêmicas, as produções
científicas e os currículos escolares.

Para as análises curriculares, a epistemologia feminista aqui esboçada


torna-se essencial, por nos alertar para o caráter excepcional das mulheres
na história e seu estado de exclusão, além de propor novos olhares para os
currículos escolares oficiais, que perpassem relações de gênero e a
necessidade de inserção das experiências das mulheres. Assim, “não se
trata mais simplesmente de ganhar acesso às instituições e formas de
conhecimento do patriarcado mas de transformá-las radicalmente para
refletir os interesses e as experiências das mulheres” [SILVA, 2011, p. 93].

A articulação entre história das mulheres, currículo e relações de poder,


possibilita o questionamento de epistemologias androcêntricas e o
desvelamento de estruturas sociais desiguais entre homens e mulheres, que
surgem através das relações de poder. Os desequilíbrios de gênero se
refletem nas leis, políticas, práticas sociais e nos currículos. “O currículo é,
entre outras coisas, um artefato de gênero: um artefato que, ao mesmo
tempo, corporifica e produz relações de gênero” [SILVA, 2011, p. 97].
Assim, as desigualdades de gênero tendem a aprofundar outras
desigualdades sociais e discriminações de classe, raça, casta, idade,
orientação sexual, etnia, deficiência, língua ou religião, dentre outras, o que
pode ser legitimado através de currículos que se propõem a ser universais,
mas desconsideram as histórias das mulheres. Dentro deste contexto,
tomar o feminismo como base epistêmica é propor questionamentos à
ordem androcêntrica estabelecida e pensar novos paradigmas de estudo e
de cientificidade, pautados pela luta das mulheres e pautas feministas.
149
A pretensão de uma história universal e aspiração de neutralidade expõem
o lado dos favorecidos pelos jogos de poder. A história positivista, dita como
neutra e totalizante, revela-se como uma porta voz das pessoas
favorecidas, pois não pressupõe os saberes que consideram as mulheres e
os ditos excluídos da história [PERROT, 2017]. Podemos também considerar
os currículos nesta análise, porque ao se propor um pretenso currículo único
para todo o território nacional, como a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) corrobora-se com os saberes dominantes, as forças proeminentes e
predominantes dos saberes escolares [BRASIL, 2018]. Os currículos oficiais,
propostos pelo Estado, falam em nome de um padrão de sociedade
específico e as disputas em torno do currículo são questões em torno de
visões de sociedade. A BNCC tem pretensões universalistas, prescrevendo
conhecimentos que são posicionados como universais. Assim, não é possível
entender currículo se não entendê-lo como política.

A BNCC, homologada em contexto de avanço da extrema direita no Brasil,


não traz nenhuma discussão sobre o campo das histórias das mulheres e
negligencia as questões de gênero. Juntamente com a Reforma do Ensino
Médio, esse currículo limita as chances da juventude brasileira de ter acesso
a conhecimentos escolares que subsidiem a luta pela construção de um
mundo mais justo. Essa omissão epistemológica já vinha desde o Plano
Nacional de Educação (PNE), documento educacional em que as menções às
questões de gênero foram interditadas. Isso “fez com que os grupos
reacionários se sentissem empoderados e vários Projetos de Lei fossem
elaborados e discutidos no Senado e na Câmara dos Deputados” [PARAÍSO,
2018, p. 30].

Parece, assim, que essa discursividade antifeminista, aliada a outros


elementos sociais no Brasil, atuaram para que as discussões de gênero
fossem negligenciadas na BNCC, tendo como consequência a limitação do
campo teórico das histórias das mulheres nos currículos. Assim, mudanças
curriculares são propostas por grupos reacionários no Brasil, em que uma
visão específica de mundo, de família e de sociedade é defendida. A
pensadora Bell hooks avalia que:

“A nova direita e os neoconservadores costumam explicar essas mudanças


como uma tentativa de impor ordem ao caos, de voltar a um passado
(idealizado). Na noção de família criada nessas discussões, os papeis
sexistas são proclamados como tradições estabilizadoras” [HOOKS, 2017, p.
43]

Na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCCEM),


homologada em 2018, não há nenhuma referência direta às discussões
promovidas pelo campo das histórias das mulheres: a temática foi
totalmente interditada. Isso desloca o debate do currículo para coisas
nomeadas como “neutras”, “importantes”, “não ideológicas”, “generalistas”,
“conhecimentos universais” e não se debatem as políticas públicas de
currículo no campo da história das mulheres. Assim, esse tipo de
conhecimento generalista representa e configura-se como um discurso que
demanda uma neutralidade educacional, a qual é impossível como já
afirmava Paulo Freire [1996, p. 110]: “agir como se a educação fosse isenta
de influência política é uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos
150
interesses dominantes”. Freire ainda adverte que:

“A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores,


reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo
quase sempre resulta de um ‘compromisso’ contra os homens, contra sua
humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos
consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos
quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem
a neutralidade impossível” [FREIRE, 2018, p. 23].

Desta forma, nas disputas curriculares, os grupos reacionários também


operam tentando silenciar as histórias das mulheres nos currículos do
Ensino Médio, tendo como possíveis efeitos de manutenção de
desigualdades de gênero e de visões escolares reducionistas. Esse tipo de
história que reitera os silêncios impostos às mulheres é aqui questionado,
problematizado, propondo-se uma história que considere as mulheres em
suas análises e que transgrida os silêncios.

Assim, o currículo tem potencial de tencionar as desigualdades e, por isso, é


importante ter as mulheres representadas nas escolas através das
propostas curriculares que rompam com o paradigma da história única.
Assim, corroboro com a escritora Chimamanda Adichie:

“As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram


usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para
empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo,
mas também podem reparar essa dignidade” [ADICHIE, 2019, p. 32].

Reconhecer as histórias das mulheres passa, assim, por uma mudança de


paradigma, por uma luta por uma epistemologia feminista, que reverbera
no ensino de história e nas decisões curriculares.

Referências
Carolina Giovannetti é historiadora e professora de história da rede pública
de Minas Gerais; mestranda em Educação – FaE/UFMG, na linha de
pesquisa Currículos, Culturas e Diferenças

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Companhia das Letras, 2019.
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Acesso em 07 de abril de 2020.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2008.
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2007.
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151
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invenção política com gênero e sexualidade em tempos do slogan “ideologia
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SILVA. Tomaz Tadeu. O currículo como fetiche. Belo Horizonte: Autêntica,
2001.
O MODELO DE PRINCESA DA DISNEY E SEU DISCURSO AO
LONGO DO TEMPO
Clarice Luz e Flávia Schena Rotta

As princesas dos desenhos e dos filmes da Walt Disney Company encantam


gerações. Entretanto, desde o lançamento da Branca de Neve e os Sete
Anões, em 1937, é possível notar mudanças de estereótipos nos modelos
152 de personagens femininos apresentados nas animações sobre princesas. O
universo encantado das princesas tem como base, na maioria das vezes,
narrativas de contos de fadas que tornam se um referencial de feminilidade
para meninas. O presente estudo tem por objetivo analisar fatores sociais e
históricos que influenciaram na evolução do processo de criação do modelo
de princesas nas produções da Disney, através de pesquisas exploratórias.

Os estúdios Walt Disney Company possuem grande poder de representação


sobre a sociedade e através das suas narrativas reproduz padrões
estereotipados e propaga discursos dominantes que foram estabelecidos e
naturalizados em determinados períodos históricos. A indústria
cinematográfica desenvolve narrativas compostas por elementos
audiovisuais amparados em tecnologias inovadoras, oferecendo aos (as)
telespectadores uma formula pronta de sensações e imaginações ilimitadas.

Através dos discursos apresentados nas produções cinematográficas,


aspectos sociais e culturais são associados ao poder de representação e
carregam consigo o poder de impor manter padrões e normas.
Considerando que os discursos são produzidos por classes hegemônicas que
conseguem criar ou manter costumes culturais de um determinado grupo
que ao ser retratado é consolidado como realidade, a proposta de
representação, assim como costumes e valores, daqueles que impõem
começam a serem seguidos, ou seja, a sociedade se adapta aos discursos
dominantes através das representações.

Diante das possibilidades de dar maior ênfase a determinados aspectos em


prol de outros e da abrangência dos discursos é relevante avaliar o poder
que este tem. Para analisar este aspecto, recorre se a análise de Michel
Foucault presente no livro “A Ordem Do Discurso”, [2012]. Segundo o
autor, os discursos sempre estiveram sob controle de uma classe
hegemônica, que impõem “voz” sobre ouras denominadas como inferiores,
em tentativa de manter a influência de uma ação dentro de um sistema de
verdades impostas, [...] “em toda sociedade a produção do discurso é o
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
terrível materialidade” [...] [FOUCAULT, 2012, p.8-9].

De acordo com a escritora Simone de Beauvoir, na obra “O Segundo Sexo”,


as características femininas relacionadas a submissão e fragilidade são
moldadas pela sociedade. [...] “tudo contribui para confirmar essa
hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções,
as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os
homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as
nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que
permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de
quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas,
refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através
de olhos masculinos que a menina explora o mundo e nele decifra seu
destino”. [BEAUVOIR, 2009, P. 385]. [...]

A animação da Branca de Neve e os Sete Anões estreou em 21 de


dezembro de 1937 quebrando recordes de bilheteria e marcando uma nova
153
era dos estúdios Disney com a produção de filmes animados sobre
princesas. Desde o primeiro filme até a atualidade foram treze produções,
com treze princesas ao total: Branca de Neve e Os Sete Anões [1937] –
Branca de Neve; Cinderela [1950] Cinderela; A Bela Adormecida [1959]
Aurora; A Pequena Sereia [1989] Ariel; A Bela e a Fera [1991] Bela;
Aladdin [1992] Jasmine; Pocahontas [1995] Pocahontas; Mulan [1998]
Mulan; A Princesa e o Sapo [2009] Tiana; Enrolados [2010] Rapunzel;
Valente [2012] Merida; Frozen: Uma Aventura Congelante [2013] Anna e
Elsa.

O estereótipo das princesas apresentados nos filmes não foi sempre o


mesmo. Aspectos ligados as perspectivas de consumo e as transformações
da sociedade junto a primeira, segunda e terceira onda do movimento
feminista influenciaram nas mudanças, a representação da figura feminina
nos filmes reflete as mudanças relacionadas ao conceito de gênero em cada
período histórico.

As princesas dos estúdios Disney se dividem em três grupos, o primeiro é


representado por Branca de Neve, Cinderela, Aurora [Bela Adormecida],
estas são denominadas princesas clássicas, relacionadas ao estereótipo da
mulher de comportamento nobre, cujo objetivo é encontrar o amor
verdadeiro com a chegada do príncipe encantado, cuidar da casa, do marido
e da felicidade da família. O ideal de beleza e feminilidade estão
relacionadas as formas de representação da mulher jovem, pele e cabelo
impecáveis, altas, magras, sorridentes e delicadas.

Neste período que se inicia a primeira onda do movimento feminista, fim do


século XIX e início do século XX, conforme a autora Mirla Cisne na obra
“Feminismo e Consciência de Classe no Brasil” [2015], esse é o período em
que as mulheres iniciam uma aproximação com as lutas sociais esse e o
movimento feminista passa a ser desenvolvido.

O segundo grupo é formado pelas personagens Ariel, Bela, Jasmine,


Pocahontas e Mulam, é o grupo das princesas rebeldes, destemidas e
corajosas não se predem ao conformismo. Bela deseja conhecer o mundo,
Jasmine vai contra as convenções e se apaixona por um ladrão, Pocahontas
é aventureira, curiosa e não concorda com as vontades do pai e tradições
da aldeia onde vive, Mulam vai contra os padrões ao entrar travestida de
homem para o exército e ganha destaque.

O estereótipo das princesas rebeldes também apresenta um novo ponto de


vista estético, Jasmine Pocahontas e Mulam marcam o início de novas
tendências para a diversidade étnica em produções cinematográficas,
exibem a beleza árabe, índia e chinesa, quebrando assim, padrões
ocidentais de beleza feminina.

Nas décadas de 1960 e 1970 ocorre a segunda onda do movimento


feminista e reflexões relacionadas às condições das mulheres em âmbito
doméstico e social começam a serem discutidas, nessa época o movimento
passa a levantar e abordar questionamentos relacionados aos papéis de
gênero relações de poder entre homens e mulheres, questões étnicas,
154
discriminação e desigualdades culturais.

O terceiro grupo é formado pelas personagens Tiana, Rapunzel, Mérida,


Anna, Elza e Moana. São as princesas contemporâneas, as próprias heroínas
nas histórias dos filmes e animações da Disney. Seguem o modelo da
mulher que busca individualidade, é independente, segura de si e luta por
seus objetivos.

Os filmes das princesas contemporâneas acabam trazendo fantasias


juntamente com dramas vivenciados por mulheres na vida real. Sendo
assim, os personagens apresentam qualidades e defeitos como qualquer
outro ser humano e com isso os telespectadores podem se identificar com
os mesmos. Isso também acontece por que hoje à um novo discurso em
relação ao papel da mulher na sociedade, pois, a história das mulheres
permaneceu durante muito tempo restrita ao papel feminino, apenas pelo o
olhar da maternidade e consequentemente da boa esposa.

Nesse sentido, Joan Scott, na obra ‘História das Mulheres’ [1992],


apresenta um estudo no qual pretendia fazer da história das mulheres não
uma história linear, mas sim impor a posição das mulheres na história,
como também não somente introduzir uma história das mulheres, mas fazer
dela um suplemento história: “A emergência da história das mulheres como
um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para a
melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da
história.” [SCOTT, 1992, p. 75]

Deste modo, o estudo das mulheres almejava colocar a mulher como um


objeto de estudo e como sujeito pertencente à história, interpretando as
várias ações e experiências das mulheres que foram ocultas no passado,
buscando assim, o fim da subordinação, da invisibilidade, sendo totalmente
contra ao controle do corpo e da vida das mulheres. Com base nesse
estudo, o discurso em relação as mulheres vêm se modificando aos poucos,
em que as mesmas podem e devem estudar, trabalhar e serem
independentes, possuindo uma condição de existência de equidade em
relação aos homens.

Portanto, é claro que nem todas as meninas de hoje se identificam com as


princesas clássicas, em que são frágeis e buscam um príncipe para viverem
felizes para sempre. Outrossim, a Walt Disney, visando essa mudança do
discurso em relação ao papel na mulher na sociedade, vêm trazendo em
seus filmes, princesas de personalidades diversificadas, em que não buscam
o verdadeiro amor de um príncipe para se tornarem completas.
O filme A princesa e o sapo [2009], conta a história de Tiana, uma mulher
negra e apaixonada pela culinária e que sonha em abrir um restaurante
para melhorar de vida. Na trama ela acaba sendo transformada se apaixona
por um sapo que na verdade é um príncipe enfeitiçado e acaba sendo
transformada também. No final eles se casam, voltam a verdadeira forma
de humanos e a mesma consegue realizar seu sonho, apesar de realizá-lo
juntamente com o príncipe. Deste modo, Tiana se torna uma mulher
independente, buscando na sua relação com o príncipe uma
155
complementação e não um ideal.

Um filme de grande importância é o filme Frozen: uma aventura congelante


[2013], sendo um dos filmes que possuem um duplo discurso em relação a
mulher, em que uma tem vontade imensa de se casar e outra que nunca
nem cogitou isso.

A trama do filme gira em torno da vida de duas irmãs que são princesas,
Elsa e Anna. Ambas possuem um amor imenso uma pela outra, mas devido
à um acidente provocado pelos poderes mágicos (produz gelo com as mãos)
de Elsa na infância, são separadas pelos pais, pois como ela não ainda não
tem domínio do seu próprio poder, poderia acabar machucando alguém.
Logo após a morte deles em uma viagem no alto mar, Elsa, como filha mais
velha deveria então assumir o reinado de Arendell. Neste dia tão esperado
da coroação, os portões do castelo finalmente se abrem e Anna acaba
saindo pela primeira vez do castelo, encontra um príncipe chamado Hans e
resolve querer se casar com o mesmo.

Decidindo pedir a bênção de Elsa para seu noivado, as duas acabam


brigando, pois, Elsa não aceita que sua irmã se case com alguém que
acabará de conhecer. Neste instante, Elsa acaba perdendo o controle, seus
poderes acabam sendo revelados ocasionando muito medo ao povo do
reino. Elsa decide se isolar do mundo, mas infelizmente antes de partir,
acaba congelando o reino todo. Anna, sentindo-se culpada, parte em busca
de Elsa pelas montanhas e encontra Kristoff, sendo dele um homem
solitário amigo de uma rena que decide ajudar Anna a encontrar sua irmã.

Quando finalmente encontram o reino de gelo construído por Elsa, a mesma


se recusa a ajudar pois não sabe como deter seu próprio poder e acaba
atingindo Anna com gelo em seu coração. Deste modo, agora eles começam
a lutar contra o tempo, pois, Anna poderia congelar completamente caso
não se salva-se por um ato de amor verdadeiro, decidindo então encontrar
Hans para que se beijem e assim quebrando o feitiço. Quando Anna retorna
ao reino, descobre que na verdade Hans é um farsante e que buscava
somente se tornar rei de Arendell, com intuito de matar Elsa. Deste modo,
Anna acaba percebendo que Kristoff que esteve ao seu lado em momentos
difíceis é seu amor verdadeiro e mesmo morrendo decide encontrá-lo.

Elsa tenta fugir de Hans antes que a matasse, ele anuncia que na verdade
Anna já havia sido morta por culpa da mesma matá-la, a tempestade de
neve para e Anna consegue finalmente encontrar Kristoff, mas no mesmo
instante enxerga Hans com uma espada pronto para matar Elsa que está no
chão chorando, e então resolve colocar-se na frente da espada para salvar a
irmã ao invés de salvar sua própria vida e, imediatamente vira uma estátua
de gelo. Elsa aos prantos abraça a irmã petrificada e Anna descongela e
volta à vida, sendo este então o ato de amor verdadeiro. Assim, através do
amor entre irmãs. Por fim Elsa consegue finalmente dominar os seus
poderes, retira o inverno de Arendell, e se torna rainha.

Deste modo, pode-se perceber que as princesas do filme acabam rompendo


com esse imaginário que construído, mostrando-as fortes, corajosas e
independentes. As duas possuem personalidades diferentes e ao longo do
156
filme precisam lidar com as suas qualidades e com seus defeitos. Em
algumas cenas elas se diferem daquelas retratadas em outros filmes, nem
sempre as mesmas aparecem com o cabelo impecável. Anna sempre se
mostra muito alegre e Elsa é retratada como uma mulher madura, na qual
quando era criança, era ensinada a “encobrir, não sentir, não deixar saber”,
para ser uma boa menina e esconder o seu poder, mas quando fica sozinha,
se sente livre e dona de si.

Outro fator importante, é que Elsa é uma princesa e possui poderes


mágicos, o que até então isso era atribuído as bruxas nos outros contos de
fada, uma vez que as bruxas eram seres malignas, longe do ideal da mulher
da princesa adorável.

Quando Elsa diz a Anna que a mesma não se pode casar com alguém que
acaba de conhecer, se difere de imediato dos outros filmes de princesas,
pois, era normal que o casamento acontecesse logo após o encontro do
príncipe e a princesa, até porque as mulheres que não casavam, eram
duramente criticadas pela sociedade, já que deveriam ser uma boa esposa e
encontrar seu ápice na maternidade. Assim, Frozen quebra com esse
paradigma que o final feliz da princesa era ao lado de homem, pois, o filme
termina sem casamento algum e ainda sim tem um final feliz.

No filme Valente a personagem Mérida é formulada e representada em um


discurso que retrata a sociedade do século XXI de países Ocidentais em
sistema capitalista. Diferente da temporalidade onde a narrativa do filme se
passa, uma sociedade feudal, sobretudo em relação ao papel feminino na
hierarquia.

Entre as personagens principais da obra existe um choque de ideias. Mérida


é personificação da mulher atual em uma sociedade que o normal é ser
como sua mãe. Esse pode ser considerado um artifício utilizado pelos
criadores para estabelecer um elo entre a sociedade do século V com a
sociedade do século XXI. O papel da princesa diferente e revolucionário no
filme se faz possível de existir através da luta de movimentos feministas e
de direitos conquistados pelas mulheres. Mérida é a primeira protagonista
mulher de um filme da Companhia Pixar e produzido pela Disney afirmando
que o discurso e os interdiscursos são marcantes e se encontram cada vez
mais presentes nas produções da indústria cultural, incluindo assim, no
imaginário popular uma imagem de ser princesa na sociedade atual.

As mudanças de consciência do papel do feminino, na criação dos


personagens das princesas foram influenciadas junto as mudanças ocorridas
na sociedade e com o progresso e influência cada vez maior dos
movimentos feministas. Na década de 1990 iniciou a chamada terceira
onda feminista, e permanece até a atualidade, e a luta do movimento
estende se em várias vertentes e considerando as desigualdades entre
homens e mulheres uma construção social.

Perante todos, as transformações ocorridas no mundo globalizado, e


principalmente, no que se refere as mulheres. As produções culturais
incorporaram em suas narrativas uma nova versão do papel feminino. A
mulher moderna que exerce diferentes papéis na sociedade e tem o
157
controle da sua própria vida, diferente daquela educada no modelo
patriarcal, onde sua função era servir.

Durante muito tempo as produções cinematográficas apresentaram


personagens femininos compostos por narrativas construídas em aspectos
de contos de fadas, nos quais a princesa mora em castelos encantados, usa
vestidos longos, sapatos belíssimos, tem cabelo longo, liso e loiros e possui
modos e postura impecáveis dignos da realeza à espera do príncipe do
cavalo branco. Porém a sociedade mudou. Durante o último século as lutas
femininas transformaram o posicionamento da mulher perante a sociedade,
em dinâmica política, econômica e sexual.

O papel da princesa diferente e revolucionário no filme se faz possível de


existir através da luta de movimentos feministas e de direitos conquistados
pelas mulheres. Merida é a primeira protagonista mulher de um filme da
Companhia Pixar e produzido pela Disney afirmando que o discurso e os
interdiscursos são marcantes e se encontram cada vez mais presentes nas
produções da indústria cultural, incluindo assim, no imaginário popular uma
imagem de ser princesa na sociedade atual.

Referências
Clarice Luz, acadêmica do 4º ano de História da Unespar – Campus União
da Vitória.
Flávia Schena Rotta, acadêmica do 4º ano de História da Unespar – Campus
União da Vitória.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: a experiência vivida volume2, /


Tradução Sérgio Milliet - 3. ed. – Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2016.
SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.) A Escrita da
história: Novas perspectivas. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista,
1992.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de
France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga
de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
O USO DE BIOGRAFIAS FEMININAS COMO MEIO PARA A
DISCUSSÃO DE GÊNERO EM SALA DE AULA
Daiane da Silva Vicente

O ensino de história, como qualquer outra disciplina, necessita de


metodologias que facilitem o ensino e a aprendizagem. Deste modo,
pretende-se apresentar uma alternativa que permita contribuir com o
158 desenvolvimento da prática educativa sobre o estudo de gênero. Para isso,
sugere-se o uso de biografias históricas de mulheres.

Segundo o historiador francês, François Dosse: “A biografia se apresenta,


pois, como uma subdisciplina auxiliar da história, um de seus múltiplos
materiais de construção” [DOSSE, 2015, p. 170]. Além do mais, as
biografias surgem como um meio de visibilizar trajetórias individuais. Sendo
assim, o biografado, que se encontra inserido em um determinado contexto
histórico, contribui com o desenvolvimento dos acontecimentos históricos. E
para isso, é preciso levar em consideração que:

“Ao se ler sobre a biografia, percebe-se de imediato quantas áreas


importantes da História se cruzam ou mesmo se confundem, quantos temas
estão contidos ou próximos da biografia: a micro-história, os estudos de
caso; a História oral, as histórias de vida; os trabalhos sobre vida cotidiana,
sobre sensibilidade, sobre sociabilidade. Também a discussão sobre
memória, sobre geração, sobre família, sobre género são de grande
interesse para quem precisa entender uma vida individual.” [BORGES,
2008, p. 215]

Percebe-se o quanto é fundamental ter conhecimento sobre o contexto que


a personagem está inserida, como também, compreender e fazer uso de
termos específicos que estão vinculados, de maneira direta ou indireta, aos
aspectos da vida do indivíduo. De acordo com Dosse:

“A biografia reencontra também a escrita histórica em seu papel de rito de


enterro. Instrumento de exorcismo da morte, ela a introduz no cerne
mesmo de seu discurso e permite simbolicamente a uma sociedade situa-se
ao se dotar de uma linguagem sobre o passado. O discurso do historiador
nos fala do passado para enterrá-lo. Ele tem, segundo Certeau, a função do
túmulo, no duplo sentido de honrar os mortos e de participar de sua
eliminação do cenário dos vivos. As revisitações, tanto histórica como
biográfica, têm, pois, essa função de abrir para o presente um espaço
suscetível de marcar o passado para redistribuir o espaço dos possíveis. A
prática do historiador está, pois, por princípio, aberta a novas
interpretações, a um diálogo sobre o passado aberto para o futuro, a ponto
de se falar cada vez mais de “futuro do passado”. Ela não pode, portanto,
deixar-se encerrar numa objetivação fechada sobre si mesma.” [DOSSE,
2015, p. 409-410]

Portanto, através dos registros deixados, sendo poucos ou não, é que se


torna possível desenvolver um estudo da trajetória de um indivíduo, a partir
da compreensão dos aspectos ligados as ações realizadas. Ademais, tanto
“a biografia, como a história, escreve-se primeiro no presente, numa
relação de implicação ainda mais forte quando há empatia por parte do
autor” [DOSSE, 2015, p. 11].

Ainda de acordo com François Dosse, é necessário primeiramente,


apresentar e justificar a relevância da trajetória da figura que se pretende
expor um estudo [DOSSE, 2015]. Com isso, torna-se relevante mencionar a
importância das trajetórias femininas. No ensino de história, fazer uso de
biografias de mulheres que desenvolveram uma participação importante nos
159
acontecimentos históricos é uma boa maneira de “convidar” o estudante a
querer saber mais sobre aquela personagem, como também, o contexto de
sua atuação.

Dessa maneira, insere-se também o estudo de gênero em sala de aula. Por


muito tempo, as mulheres, por exemplo, foram apagadas da história, a
solidariedade com o feminino era quase inexistente e isso não quer dizer
que na atualidade seja muito diferente. É em meio a fatos como esse, que
as práticas pedagógicas mais humanizadas se tornam constantemente
necessárias em sala de aula. Desenvolver atividades que sensibilizem os
estudantes, por meio das atuações e contribuições femininas é uma
possibilidade de ensino com base na equidade de gênero:

“Historicamente, o conceito de gênero surgiu para se contrapor a uma visão


que enfatizava as diferenças biológicas, ou sexuais, entre homens e
mulheres, que acabava naturalizando a dominação masculina. A nova
categoria veio enfatizar que a natureza não explica, e muito menos
determina, a relação entre os sexos. São os componentes sociais e culturais
que interferem mais decisivamente na maneira pela qual os gêneros se
relacionam, não havendo papéis fixos para homens e mulheres em
nenhuma esfera social.” [SILVA e SILVA, 2009, p. 166]

A história sempre idolatrou os “grandes homens”. Os feitos masculinos, na


maioria das sociedades, sempre foram exemplos de orgulho. Já as
mulheres, como afirmou Michelle Perrot: “É preciso ser piedosa ou
escandalosa para existir” [PERROT, 2019, p. 18]. Em outras palavras, ou as
mulheres são vistas como santas ou bruxas. São essas características que
se sobressaem: a piedosa, a boa esposa, a devota ou a “desonrada”, a
péssima esposa, a que quer ocupar o lugar dos homens. Estão essas
características corretas? Desse modo, é fundamental mencionar que “a
história das mulheres – tanto de personagens individuais quanto das
mulheres como sujeito coletivo – começou a ter visibilidade a partir do final
dos anos de 1960" [MONTEIRO e MÉNDEZ, 2012, P.86].

O questionamento anterior, necessariamente não precisa de resposta


imediata. Aos poucos, quando se dispõem a investigar a trajetórias de
mulheres que conseguiram ocupar o espaço público ou simplesmente um
lugar na história, pode-se perceber que não foi algo conquistado com tanta
facilidade: “O respeito à diferença feminina, assim como à presença das
mulheres na esfera pública, foi conquistado a duras penas, num processo
ainda hoje não totalmente concluído” [RAGO, 2013, p.231]. Mas afinal, de
que maneira se pode levar essas questões para a sala de aula? É preciso
levar em consideração, que para o desenvolvimento de práticas que girem
em torno das questões de gênero, por exemplo, haja uma compreensão
vinculadas aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s):

"Para tanto, faz-se necessário discutir os currículos para a área, o que


implica em observar, entre outros aspectos, as políticas e diretrizes
educacionais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) para a área de
História apontam a relevância de uma práxis educacional que seja
inovadora, que busque aproximar-se de tendências teóricas capazes de
160
refletir sobre a pluralidade da produção historiográfica, destacando a
necessidade de um ensino que “dê voz” a grupos silenciados" [MONTEIRO e
MÉNDEZ, 2012, P. 84-85]

Dessa maneira, fazer uso de biografias femininas, sendo elas, obras escritas
ou até mesmo filmes, é uma possibilidade de ensino que pode ser
trabalhada através de múltiplo viés. É de entendimento que a história de
vida de um indivíduo se encontra inserida em um contexto, e esse contexto
pode ser o de qualquer época. Em todos os períodos históricos, sem
dúvidas, as mulheres estiveram presente; mesmo que em massa, não
tenham participado ativamente desses fatos, alguns nome se destacaram,
como também, há outras que infelizmente ainda não tiveram as suas
trajetórias resgatadas:

“Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos, vestígios. E


isso é uma dificuldade quando se trata da história das mulheres. Sua
presença é frequentemente apagada, seus vestígios, desfeitos, seus
arquivos, destruídos. Há um déficit, uma falta de vestígios.” [PERROT,
2019, p. 21]

Essa afirmação é algo que acontece, muitas vezes, por causa das próprias
mulheres. Elas mesmas acabavam destruindo os seus registros, em sua
maioria por acreditarem que não havia importância em seus atos: “Existe
até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das
mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra”
[PERROT, 2019, p. 17]. Desse modo, analisar os acontecimentos tomando
como base uma trajetória individual, a trajetória de uma mulher, é um meio
que permite desenvolver um estudo através de ângulos diferentes, reforça a
importância do ocorrido e do ativismo feminino na história.

O uso de biografias femininas em sala de aula


Para a realização de aulas com a inclusão de contribuições de personagens
femininas que atuaram em épocas grandiosas da História, como exemplo,
será utilizado a trajetória de Olga Benário (1908-1942). Olga participou
ativamente dos acontecimentos de sua época. Existem obras de cunho
biográfico, que mostram perspectivas sobre a sua trajetória. Como também,
há um filme, levando em consideração a utilidade que essa ferramenta
possibilita:

“Os filmes não são registros de uma história tal qual aconteceu ou vai
acontecer, mas representações que merecem ser entendidas e percebidas
não como diversão apenas, mas como um produto cultural capaz de
comunicar emoções e sentimentos e transmitir informações.”
[BITTENCOURT, 2008, p. 353]
Embora o Filme “Olga”, não mostre necessariamente os embates políticos.
Pois, tem como foco principal o romance de Luiz Calos Prestes e Olga
Benário. O filme acaba deixando a desejar em relação aos aspectos políticos
que rodearam a vida da revolucionária. Olga era alemã e de origem judaica,
desde muito cedo, durante a sua adolescência começou a se interessar pela
política de esquerda, dando inicio a seu ativismo político. Diante de suas
ações, pelo Partido Comunista Alemão, que foram realizadas em Berlim,
161
Olga precisou fugir para Moscou e lá recebeu treinamento militar para que
assim pudesse executar missões estabelecidas pela Internacional
Comunista. Olga fez parte do grupo de revolucionários estrangeiros
escolhidos para acompanhar Luiz Calos Prestes no seu retorno para o Brasil,
“Prestes, a partir da atuação da coluna, tornara-se um verdadeiro mito
nacional, chamado desde então de “O Cavaleiro da Esperança”” [VIANNA,
2007, p. 75]. Ela foi encarregada de garantir a segurança de Prestes
durante todo o trajeto. Depois de uma longa viagem, eles chegam ao Brasil
em 1935 e permanecem na clandestinidade. Ademais, é assim que a
história de Olga se relaciona com a história do Brasil. Durante esse período,
Getúlio Vargas era quem estava no poder e Prestes era visto como um de
seus maiores inimigos. Algo marcante nessa trajetória, como também algo
decisivo foi o levante de 1935:

“No fim de 1929, início de 1930, colocada a candidatura de Getúlio Vargas,


o movimento tenentista dividiu-se: de um lado ficou o general da coluna,
Luís Carlos Prestes, que aderiu ao socialismo por considera-lo o único
caminho capaz de conduzir a uma sociedade mais justa, e do outro ficou a
quase totalidade dos tenentes revolucionários, que apoiaram Getúlio porque
achavam que a chegada ao poder da coligação que o sustentava (a Aliança
Liberal) seria a “regeneração” da República, a concretização dos objetivos
do ideal republicano que os tenentes expressavam no lema “representação
e justiça”: voto secreto e moralidade pública.” [VIANNA, 2007, p. 66]

Esse embate político contribuiu para que ocorresse o levante de novembro


de 1935. No entanto as coisas não ocorreram da forma que se esperava.
Muito se especula sobre os motivos que levaram a tentativa revolucionária
ao fracasso. Deste modo, resultou-se em diversas prisões dos apoiadores
do movimento, tanto da Aliança Nacional Libertadora como do Partido
Comunista Brasileiro:

“Na noite de 5 de março Prestes e Olga foram presos. Levados para o DOPS
e lá separados, foi a última vez que se viram. Em setembro de 1936 o
governo brasileiro entregou Olga Benário e Elise Berger à Alemanha nazista,
onde foram assassinadas num campo de concentração. Olga estava grávida
de sete meses da filha de Prestes.” [VIANNA, 2007, p. 100]

Antes de Olga ser assassinada, a mãe de prestes conseguiu resgatar a


criança, com o auxílio da solidariedade internacional, através de
movimentos organizados pela mãe e a irmã de Luiz Carlos Prestes. A
história de Olga Benário é baseada em revoluções, amor e um final trágico.
É a história de uma mulher que lutava pelo que acreditava, por um mundo
justo e digno de todos, sem dúvidas, seu ativismo inspirou e inspira outras
mulheres. Dentro dessa perspectiva, em sala de aula, após expor a
trajetória da militante comunista relacionando com o contexto do Brasil e o
contexto mundial, é interessante mostrar as regras imposta as mulheres na
sociedade daquela época. Utilizando como ferramenta um simples editor de
vídeo, algumas cenas do filme do diretor Jayme Monjardim poderiam ser
utilizadas para essa questão, como por exemplo, a cena em que a mãe de
Olga desaprova as escolhas da filha. Também há uma variedade de
documentários, alguns baseados nos estudos da historiadora Anita Leocádia
Prestes, a filha do casal.
162

Portanto, o estudo de gênero consiste em desenvolver uma análise acerca


dessas trajetórias, fazendo comparações sobre a imposição da sociedade e
o ativismo feminino. Torna-se possível desenvolver um estudo sobre os
acontecimentos históricos, e ao mesmo tempo, resgatar a história de
mulheres como Olga.

Referências
Daiane da Silva Vicente é graduanda do curso de Licenciatura em História
na Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Cap. III Documentos não escritos.


In: Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005,
p.351-401.
BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e Misérias da Biografia. In.: Fontes
Históricas. Carla Bassanezi Pinsky (Org.). – 2.ed., 1ª reimpressão. – São
Paulo: Contexto, 2008, p.203-234.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Tradução: Gilson
César Cardoso de Souza. – 2. ed. – São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2015.
MONTEIRO, Katani Maria Nascimento. “Gênero, biografia e ensino de
história” in Aedos n. 11 vol. 4 - Set. 2012, p.84-97
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angela M. S. Côrreia.
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Almeida Neves (Orgs). – 2. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.
INTERFERÊNCIAS DO BACKLASH EM SALA DE AULA: O ENSINO
DE HISTÓRIA E A DESMISTIFICAÇÃO DE (PRÉ) CONCEITOS DO
MOVIMENTO FEMINISTA
Elaine Cristina Florz

A tecnologia vem ocupando cada vez mais espaço na vida das pessoas,
principalmente pelas formas de comunicação multimídia, conforme apontam
Soares e Câmara [2016]. As redes sociais acompanham o crescimento da 163
internet, que além de promoverem comunicação entre internautas
independentemente da posição geográfica, possibilitam que informações
variadas sejam compartilhadas com o público que acessa, como vídeos,
fotos, memes e notícias.

A pesquisadora Nicolaci-da-Costa [2002] denomina esses envolvimentos


como a “Revolução da Internet”, que reconfiguram novas maneiras de
pensar, comunicar, estudar, escrever e pesquisar. A escola ou os(as)
professores(as), nesse sentido, passam a não ser vistos como únicos
detentores do conhecimento, uma vez que é possível encontrar qualquer
informação via internet. Porém, como alerta Souza [2014], nem todas as
informações são confiáveis e verídicas.

Atualmente, a alta elaboração de notícias falsas compartilhadas de maneira


rápida pelas mídias sociais, fez com que o termo “Fake News” tomasse
maior proporção. Conforme Carvalho e Mateus [2018, p. 5], “o problema
dos chamados de pequenos boatos de internet passou a ter status quo de
assunto político, uma vez que houve acusações de influências de
informações manipuladas para fins políticos.”

A jornalista Susan Faludi ao publicar a obra “BackLash: O contra-ataque na


guerra não declarada contra as mulheres” [2001], retrata como a mídia
utilizou seu papel de propagadora de informações para produzir uma
imagem negativa sobre o papel do movimento feminista em meados da
década de 1980. “A expressão backlash ganha sentido prático, expressão
codificada com os significados de “retrocesso e movimento ao oposto.”
[Bueno, 2011, p. 28]. Para Susan:

“O backlash é ao mesmo tempo requintado e banal, decepcionantemente


"progressista" e orgulhosamente retrógrado. Ostenta as "novas"
descobertas da "pesquisa científica", assim como o moralismo bolorento do
passado [...]” [2001, p. 17].

Susan aponta que o backlash surge justamente com o intuito de impedir


progressos, como nos casos citados ao longo do livro: aos direitos
femininos. Os progressos das lutas sociais tendem a surtir efeito de maneira
lenta e quando a concretização se aproxima, o medo da mudança por parte
das lideranças dos backlashs aparece como um refluxo, afim de silencia-las.

Apesar de ser destrutivo, o backlash não é considerado por Susan um


movimento organizado, até porque a maioria das pessoas envolvidas no
processo não tem necessariamente a consciência de que tentar “prender a
mulher aos seus papéis "aceitáveis" - seja como filhinha de papai ou
criaturazinha romântica, seja como procriadora ativa ou passivo objeto
sexual” [FALUDI, 2001, p. 21] traz severas consequências.

Essas ideias antifeministas são facilmente encontradas nas redes sociais,


inclusive compartilhadas por nossos(as) web-amigos(as). Esses discursos
que estimulam a odiar e a resistir ao movimento, do qual muitas vezes não
conhecem verdadeiramente, aparecem camuflados pelo uso da famosa
frase: liberdade de expressão e podem ser definidos como backlashs.
164

Estimulada por bell hooks – o nome é grafado em letras minúsculas por


escolhas da autora, a fim de deslocar o foco da figura autoral para suas
ideias - também acredito que se soubéssemos mais sobre feminismo,
poderíamos desmistificar a ideia odiosa sobre ele e com base na reflexão e
na prática feminista, poderíamos passar a perspectivar um mundo sem “as
amarras do patriarcado”.

Para bell hooks [2019] “uma revolução feminista sozinha não criará esse
mundo; precisamos acabar com o racismo, o elitismo, o imperialismo.”
[2019, p. 15]. Baseada nessas ideias que me motivei a trabalhar com o
tema “Movimentos Sociais” durante a aplicação do Estágio Supervisionado.
Seguindo essa linha de raciocínio, além do Movimento Feminista, inclui em
meu plano de aula o Feminismo Negro, e o Movimento Negro. O recorte
desse artigo priorizará apenas os dois primeiros temas citados. A discussão
completa desse trabalho englobando o tema Movimento Negro pode ser lida
na integra através da Revista Sobre Ontens - Volume Especial TFES 2019.

Visto que nossos(as) alunos(as) passam grande parte do seu tempo


navegando na internet, é provável que esbarrem com os frequentes ataques
dos backlashs diariamente. Segundo Souza [2014], é por meio da escola
que devemos passar de uma sociedade da informação para uma sociedade
do conhecimento. Pensando nisso, o objetivo deste trabalho é tentar
entender até que ponto os ataques do blackslash influenciam a vida escolar.
Quais são os impactos que esses conteúdos disfarçados de opinião e que
são publicados nas redes socais e nas mídias tem para o ensino? Como nós,
educadores(as), podemos desmistificar essas relações em sala de aula?

Aplicação
Decidi iniciar minhas aulas inspirada pelo conceito de Aula-Oficina [BARCA,
2004], em que os(as) alunos(as) são interpretados como fundamentais no
processo de ensino, assim, é preciso “interpretar o mundo conceitual dos
alunos, não para de imediato o classificar em certo/errado,
completo/incompleto, mas para que esta compreensão ajude a modificar
positivamente a conceitualização dos alunos.” [BARCA, 2004, p. 132].

Em cada uma das turmas selecionei alguns minutos da minha primeira aula
como estagiária para a aplicação de um questionário com algumas
perguntas [figura 1] referentes aos conteúdos que iríamos estudar nas
aulas seguintes. É significativo atentar-se sobre os conhecimentos prévios
dos(as) estudantes, já que possibilita ao “professor tomar a decisão sobre o
que lhe parece mais necessário para a aprendizagem. Num processo que se
configura como uma avaliação diagnóstica e processual.” [FERNANDES,
2008, p. 5].
165

Figura 1: questões sobre o conhecimento prévios de estudantes. Acervo da


autora.

Feminismo
Iniciei a aula com enfoque do papel das mulheres brasileiras na sociedade
durante os séculos passados, em que ocupava prioritariamente o espaço
privado, vivenciando uma sociedade patriarcal, em meio ao machismo e ao
decorrer da fala e das contribuições dos(as) alunos(as), que aconteciam de
forma frequentemente, fui especificando tais termos. Dado o contexto dessa
sociedade, busquei questiona-los(as) por meio das respostas dos
próprios(as) alunos(as) sobre as concepções negativas que obtinham sobre
o feminismo e que apontaram no primeiro trabalho.

Figura 2: Conhecimento prévio do Aluno M, 2º B.

Descrição: “Feminismo surgiu como um movimento que pedia direitos iguais


aos que os homens tinham, direito de votar, de dirigir, etc. Na minha
opinião o movimento era bom hoje em dia algumas mulheres saem na rua
pelada e ainda acham que estão defendendo o feminismo.”

Ao polemizar algumas respostas, a aula passou a seguir um ritmo de


debate, dúvidas foram expostas, opiniões diversas foram apontadas,
despertando contestações à marcha das vadias, as visões estereotipadas
das feministas como radicais e uma série de outros apontamentos. Quando
os(as) questionei sobre a origem de tais vídeos em que mulheres saem com
“nudes” a mostra e todas essas versões antifeministas, responderam
prontamente que obtinham tais informações por meio da internet e das
mídias. Mais uma vez “a imprensa preferiu vender o peixe do backlash em
lugar de estudar melhor o assunto.” [FALUDI, 2001, p. 95]

Utilizei o quadro negro para indicar o tema da aula, e nesse momento pós
debate acrescentei a letra “S” ao termo, tornando-se feminismos. Ao
utilizarmos o plural, passamos a observar o movimento não mais como uma
unidade, mas como múltiplo. Esse “S” ajuda a compreender
especificidades. O feminismo brasileiro não reivindica as mesmas pautas
que o movimento que acontece nos outros locais do mundo, temos culturas
e necessidades diferentes. Por meio dessa alternativa, busquei explicar que
os vídeos citados na aula sobre mulheres em algum lugar do mundo
manifestando-se peladas na rua se encaixam nesse contexto. Não podemos
homogeneizar, precisamos analisar o contexto onde as manifestantes estão
166
inseridas e o que reivindicam.

Ao trabalhar a influência das suffragettes como inspiração para que as


mulheres brasileiras reivindicassem o voto, trouxe para a aula o contexto do
filme “As Sufragistas”, visto que os(as) alunos(as) indicaram grande
interesse por filmes em meio a indicações deles(as) que se conectavam ao
tema das aulas. Além de abordar o conteúdo, os(as) instiguei por meio da
curiosidade a assistir tal filme.

A 3ª onda feminista é evidenciada pelo surgimento do movimento riot grrrl,


orquestrado por mulheres punks feministas. O movimento surgiu como uma
contestação a dominação masculina nas bandas de punk rock. A
denominação riot grrrl surgiu por meio de um zine que contestava a não
inserção feminina nos grupos musicais. [RIBERO; COSTA; SANTIAGO,
2012]

Zine vem da palavra magazine e nada mais é, do que um pequeno livreto,


muito parecido com a literatura de cordel. A essência dele é produzir
conteúdos de forma independente, por meio de fotocópias, propiciando um
baixo custo. A prática dos zines se propagou de maneira rápida, chegando
inclusive no Brasil [MELO, 2015]. Através dele é possível expressar-se sobre
qualquer conteúdo, inclusive os considerados tabus. Muitas mulheres
utilizaram do Zine para compartilhar conteúdos relacionados ao corpo, a
maternidade, a menstruação, como forma de informar a população comum
e propagar o feminismo.

Após contextualizar os(as) estudantes e apresentar de maneira impressa


alguns modelos de zines e também de cordéis para que os(as) alunos(as)
tivessem uma base, propus no 2º técnico a produção de zines por meio de
duplas, em que retratassem os conteúdos estudados durante o estágio e
que pudessem divulgar tais informações ao público de forma acessível e de
maneira breve, também deveriam apresentar o conteúdo do zine para
os(as) colegas de turma. Com auxílio do WhatsApp, socializei com os(as)
estudantes alguns zines exemplos e alguns blogs que poderiam auxilia-los a
montar o livreto.

O resultado da elaboração dos zines foi significativa. Voltei satisfeita para


minha casa carregando os pequenos livretos, mas ao iniciar a leitura, foi
inevitável sentir a necessidade de digitar alguns trechos dos trabalhos na
aba no Google e bingo! Os(as) alertei durante a explicação de que a ideia
do zine era a de compreender um tema e escrever sobre ele com as
próprias palavras, mas não aconteceu. Alguns trabalhos tinham como fonte
o site Wikipedia, que por ser colaborativo, não acaba sendo um dos mais
confiáveis para a pesquisa escolar.
A construção dos zines por meio do “ctrl c + ctrl v” me fez refletir se os(as)
alunos(as) realmente leram o trabalho entregue. Apesar disso, a
apresentação dos trabalhos fez com que a realização da leitura fosse
necessária.

Conforme citado acima, nossos(as) alunos(as) estão de fato imersos(as)


nesse mundo tecnológico e podem auxilia-lo(a) no processo de ensino, mas
167
o mal uso também pode comprometer seu processo de ensino
aprendizagem uma vez que “os usuários captam as informações na
internet, mas não as transformam em um conhecimento pessoal e
elaborado.” [SOARES e CÂMARA 2016, p. 211]. O que Souza [2014]
denomina de “cultura do ctrl c + ctrl v” faz com que os(as) aluno(as)
acessem sites de informações duvidosas, uma vez que possivelmente não
fazem a leitura e nem a problematização do tema pesquisado. Essa situação
acaba sendo propícia para que o(a) aluno(a) em algum momento da vida
entre em contato com o backlash e aceite-o, uma vez que passa a
considerar todo e qualquer conteúdo da internet verídico.

Figura 3: capa do Zine: Músicas empoderadoras.

Feminismo Negro
“Mulheres individuais que lutam pela liberdade em todo o mundo já
batalharam sozinhas contra o patriarcado e a dominação masculina. Uma
vez que as primeiras pessoas no planeta Terra não eram brancas, é
improvável que as brancas tenham sido as primeiras mulheres a se
rebelarem contra a dominação masculina. Em culturas ocidentais patriarcais
capitalistas de supremacia branca, o pensamento neocolonial determina o
tom de várias práticas culturais. Esse pensamento sempre se concentra em
quem conquistou um território, quem tem propriedade, quem tem o direito
de governar.” [HOOKS, 2019, p. 75]
O pensamento de bell hooks reflete a própria ciência histórica e nosso papel
como educadores(as) nesse processo para descolonizar o conhecimento.
Devemos nos atentar à inclusão de uma História que não contemple
somente uma versão branca e europeia.

“Linda Alcoff [...] chama atenção que para descolonizarmos o


conhecimento, precisamos nos ater à identidade social, não somente para
evidenciar como o projeto de colonização tem criado essas identidades, mas
168
para mostrar como certas identidades têm sido historicamente silenciadas e
desautorizadas no sentido epistêmico, ao passo que outras são
fortalecidas.” [RIBEIRO, 2017, p. 18]

Djamila Ribeiro [2018] nos atenta que a própria teoria feminista se


estruturou com base nas mulheres brancas. Omitir a luta das mulheres
negras e sua existência, faz com que seus problemas sejam minimizados ou
se quer lembrados pela sociedade, acarretando para que os índices de
violência contra as mulheres negras aumentem, enquanto o das mulheres
brancas diminua. As mulheres negras passam a ser silenciadas.

Essas visões ainda encontram-se enraizadas no nosso cotidiano, e as


reproduzimos mesmo que de forma inconsciente. Durante a leitura das
versões prévias dos(as) estudantes em relação ao Movimento Feminista
Negro, percebi que realmente consideravam o feminismo como homogêneo,
sem incluir especificidades, como aponta o aluno R, que considerou o
Movimento Feminista Negro como desnecessário. Muitos(as) relacionaram à
luta antirracista e poucos(as) conseguiram apresentar uma resposta que
definisse realmente o movimento.

Figura 31: Conhecimento prévio do Aluno R.

Para propiciarmos a consciência histórica, precisamos utilizar metodologias


que aproximem o(a) aluno(a) ao conteúdo. Para isso, planejei inserir nas
minhas aulas a relevância e a atuação de coletivos feministas locais.
Através do sentimento de pertencimento o(a) estudante morador(a) da
região passa a interessar-se pelo conteúdo das aulas, a fim de compreender
a sociedade onde vive, além de ampliar o olhar para a totalidade, sendo:
“[...] capazes de apreender as diferentes faces da realidade local, de
relaciona-las com os fenômenos globais e/ou universais, de criar
alternativas e de promover a mudança social. [ALVEZ, 2005, apud
ESTACHESKI, 2008].”

Considerando isso, a participação da acadêmica de História Cleidilene


Santos durante a realização do estágio supervisionado foi fundamental.
Cleidi é integrante do instituto feminista Rosas do Contestado e se identifica
como mulher negra, nos afirmando através da beleza natural do seus fios e
através da sua fala o real significado da palavra empoderamento. Em
acordo com a fala de bell hooks [2019], em que as mulheres formam-se
feministas, convidei a Cleidi para realizar uma fala relatando sua
experiência com o coletivo e como se inseriu nele.

Os(as) alunos(as) vibraram quando os(as) informei antecipadamente que


uma integrante do coletivo feminista da cidade estaria presente na sala de
aula para sanar as dúvidas. Animaram-se, me questionando diversas vezes:
“Mas professora, ela vem mesmo?” O feminismo que parecia distante, aos
poucos foi se aproximando.
169

No dia da fala, após apresentar a Cleidi para as turmas, fiz um pequeno


esquema utilizando o quadro e giz colorido para salientar a relevância do
movimento Feminista Negro por meio de bonequinhos palito exemplificando
que: o homem branco oprime a mulher branca através da sociedade
patriarcal, ambos oprimem o homem negro através do racismo e os três
anteriormente citados oprimem duplamente a mulher negra através do
racismo e sexismo. Por esses motivos, a mulher negra acabou não se
encaixando no Movimento Feminista, que era majoritariamente composto
de mulheres brancas, nem no Movimento Negro. Surgiu então o Movimento
Feminista Negro.

A fala da Cleidi foi convidativa e elucidativa. Apresentando inicialmente a


história do Coletivo Mais que Amélias que está em processo de
transformação para: O Instituto Rosas do Contestado (INROC), uma
organização sem fins lucrativos, afim de agir no enfrentamento das
violências praticadas contra populações vulneráveis, especialmente
mulheres e crianças. Segundo ela, um dos principais objetivos do instituto
no momento, é a execução de uma casa de passagem, onde mulheres em
casos de violência doméstica possam se refugiar e manter-se em
segurança.

O ponto central também foi especificar o objetivo do feminismo, o que seria


equidade e sexismo. Apontando que devemos cuidar com as falas do dia a
dia afim de desconstruir as visões machistas e preconceituosas. Além da
importância de perceber a variação de coletivos existentes, cada um com
suas especificidades, trazendo informações sobre a história das mulheres
negras e mulheres indígenas.

A fala foi além da intenção inicial de esclarecer sobre o coletivo, em sua


narrativa, Cleidi trouxe experiência próprias que ao meu ver valeram mais
que qualquer vídeo ou música que pudessem retratar o racismo. O título da
obra de Giovana Xavier, nos resume “Você pode Substituir Mulheres Negras
como Objeto de Estudo por Mulheres Negras Contando sua Própria História”
[2019]. Foi uma mulher, de carne e osso colocando suas vivências,
trazendo representatividade e utilizando seu local de fala para estimular a
sensibilidade, a empatia, o olhar crítico e observador dos(as) alunos(as).
Aliás, a ideia de que o racismo parecia distante da nossa realidade local
também foi repensado, uma vez que através dos diálogos abaixo, pode-se
perceber que o próprio colega de turma sofria com o impacto da sociedade
racista. Despretensiosamente, Cleidi definiu a importância da consciência
história na vida cotidiana:
Aluno: “Minha família me julga muito por eu pensar que o preconceito
nunca vai deixar de existir. Eles acham que eu estou errado. Você está
esperando o fim do preconceito ou você está aprendendo a lidar com ele?”
Cleidi: “Eu to aprendendo a lidar com ele! Antes que a gente queira o fim, a
gente precisa entender o preconceito, porque ao contrário, sempre vamos
dizer que ele e o racismo não existem!”

Considerações finais
170
Os resultados obtidos com a aplicação do estágio supervisionado nos
afirmam que apesar do backlash influenciar o pensamento de alguns(mas)
estudantes por meio da mídia e da internet, tive a possibilidade de
desmistificá-lo através de metodologias que se pautam na consideração de
que os(as) alunos(as) são portadores(as) de conhecimentos, uma vez que
estão inseridos em sociedade e vivem experiências que podem ser utilizadas
pelo(a) professor(a) a favor do ensino eficaz. Garantindo que ressignifiquem
e agreguem conhecimentos a partir dos temas e conceitos já dominados.
Ao contestar os conhecimentos negativos e generalizados sobre os
Movimentos Sociais por meio da inserção de diferentes metodologias que
incluíram a vivência dos alunos, oportunizei aguçar o senso crítico para que
no dia-a-dia ao se depararem com a propagação do backlash, utilizem o
conhecimento adquirido em sala de aula e o uso adequado da internet como
alternativas favoráveis de averiguação para que não caiam nas amarras de
ignorância dos backlashs.

Conforme Souza [2014], nós professores(as) devemos agir como


mediadores e orientadores afim de auxiliar o estudantes diante das variadas
formas de atingir consciência histórica, uma vez que “[...] por maior e
melhor que seja a estrutura tecnológica, sozinha, ela não consegue realizar
nenhum projeto educacional de qualidade.” [KENKY, 2010 apud SOUZA,
2014]

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Elaine Cristina Florz, graduada em licenciatura em História pela UNESPAR,
campus de União da Vitória.

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NOS EMBALOS DO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO: SEXISMO E
MACHISMO NO GÊNERO MUSICAL PREFERIDO DOS (AS)
BRASILEIROS (AS)
Emili Sabrina Ribeiro Silva

O gênero musical sertanejo universitário tomou conta do gosto musical dos


brasileiros, o estilo que teve início nos anos 2000 apareceu como uma nova
172 versão do até então conhecido sertanejo raiz e da música caipira. O gênero:
“encontrou, então, terra fértil no Mato Grosso do Sul e em Minas Gerais,
sendo cultivado, ao mesmo tempo, por João Bosco & Vinícius, além de
César Menotti & Fabiano. Agora, é colhido por dezenas de outros artistas do
gênero, de várias partes do Brasil” (EXTRA, 2015). A formação de duplas é
característica desse gênero musical, que no início era predominantemente
masculino, mas que ao longo das últimas décadas tem sido embalado por
diversas vozes femininas, como exemplos da atualidade, a artista Marília
Mendonça e a dupla Simone e Simaria popularmente conhecidas como “as
coleguinhas” e também duplas com ambos os sexos, como Maria Cecília e
Rodolfo.

Diversas pesquisas de popularidade dos gêneros musicais mais ouvidos no


Brasil apontam para a fama do sertanejo universitário, ora tratado apenas
como sertanejo. Uma pesquisa realizada pelo ECAD (Escritório Central de
Arrecadação e Distribuição) no ano de 2018 divulgou que o sertanejo é o
gênero mais tocado em todo país. Os dados finais foram analisados levando
em consideração: “a execução pública de músicas em plataformas de
streaming, shows, rádios e locais com música ao vivo entre 2016 e 2018”
(ECAD, 2018). Outras pesquisas, como a Hello Research mostraram a
mesma preferência musical: “A música sertaneja vive, há alguns anos, um
momento de destaque no cenário musical. O ritmo domina as paradas nas
plataformas digitais, nas rádios e também na televisão, onde é constante a
presença dos artistas do gênero como convidados nos programas de tevê.
Estudo divulgado neste ano pela agência de pesquisa de mercado e
inteligência Hello Research corrobora com essa hegemonia do gênero”
(DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 2019). Spotify, um importante aplicativo no
seguimento da música também divulgou dados a esse respeito, exibindo “as
músicas mais tocadas de 2019 na plataforma. No top 10 nacional, o
sertanejo é predominante” (ÉPOCA NEGÓCIOS, 2019), além de fazer uma
retrospectiva da década, onde os cantores mais ouvidos foram Jorge e
Matheus, seguidos por Marília Mendonça, ambos artistas sertanejos.

Tamanha popularidade é vista diariamente. Carros com equipamentos de


som soam aos quatro ventos as letras sertanejas, os aplicativos de música
dos celulares proporcionam a apreciação singular das músicas através dos
fones de ouvido, propagandas comerciais transmitem o sertanejo como som
de fundo ou paródias, suas letras se tornam legendas de fotos nas redes
sociais, estampas de camisetas ostentam frases das músicas, etc.. O
universo do sertanejo ultrapassa o de apenas ser embalo para festas,
danças, namoros e comemorações. Contudo, sendo o Brasil um país
marcado pela diversidade, o estilo também apresenta diferenças regionais
no gosto musical. “Em seu berço, o Centro-Oeste, o sertanejo reina, tendo
a adesão de 87% dos ouvintes, sendo 60% mulheres. Em outras localidades
brasileiras o estilo também possui grande aceitação. No Sul, 64% dos
ouvintes priorizam escutar este tipo de música, enquanto que no Sudeste é
o gênero preferido de 55% dos entrevistados pela agência de pesquisa. Já
no Norte perde a liderança para o gospel (52%) com metade de seus
ouvintes sendo do sexo feminino” (ADNEWS, 2019).

Não tenho dados concretos que demonstram um fato percebido


empiricamente e pelo senso comum, entretanto, é visível nas plateias de
shows sertanejos o número superior de mulheres, se comparadas ao
173
número de homens. Na compra dos ingressos não existe catalogação de
gênero, portanto, seria difícil encontrar tal dado se não fosse através do
exame das plateias dos shows. Desta forma, as mulheres não são somente
as maiores ouvintes e prestigiadoras da música sertaneja, como também
personagens importantes das letras desse gênero musical.

A música faz parte do cotidiano do brasileiro, seja ela sertaneja ou não. Os


jovens são grandes consumidores de cultura e a música faz parte deste
seguimento, sendo que no ano de 2016 a revista Exame publicou uma
notícia indicando que os maiores utilizadores do Spotify são jovens da
geração Y (os millennials), frisando que esses “jovens da geração Y ouvem
mais música, com mais frequência e com mais variedade de lugares que
outros consumidores” (EXAME, 2016). Dito isto, minha função aqui é
mostrar a possibilidade de levar a música para a sala de aula, visto que seu
consumo entre os jovens é frequente. O debate feito através das músicas
sertanejas será sobre a construção de estereótipos de feminilidade no atual
contexto histórico, a partir do entendimento que algumas construções de
discursos, saberes, poderes e representações das mulheres ainda carregam
vestígios de colonialidade e do patriarcado.

Sendo a música uma possível fonte histórica, levar esse debate crítico para
a sala de aula, terá a função de aguçar a curiosidade dos alunos a analisar
cotidianamente seus hábitos e gostos musicais, incentivando o exame
cuidadoso das letras - levando em consideração que nas aulas de História
partimos de problematizações do presente para assim encontrarmos sentido
no estudo do passado e que também através da compreensão do passado
possibilitamos a mudança de concepções na atualidade. Coloco aqui como
sugestão para tal trabalho o público do Ensino Médio, visto que eles terão
maior participação, formulação de críticas, debates, sugestões e de trocas
de experiências entre si e com o (a) professor (a).

Através de uma rápida pesquisa na internet podemos perceber a


predominância do sertanejo nos segmentos musicais, um estudo da Crowley
demonstrou uma informação importante para esse texto: “do ranking
divulgado sobre os artistas mais escutados do ano, todos os dez artistas
brasileiros são do gênero sertanejo. Para a Crowley, de cada 100 músicas
tocadas nas emissoras brasileiras, metade são deste estilo musical”
(JORNAL OPÇÃO, 2019). Tanto nessa amostra, como em outra presente na
revista Época sobre os artistas mais ouvidos na última década, constam
soberania de cantores sertanejos. Dentro deste ranking selecionei duas
duplas de destaque do segmento no atual cenário da música: Zé Neto e
Cristiano e, Henrique e Juliano. Irei analisar algumas letras de canções que
constam como as mais ouvidas do top 20 de cada dupla, no site Letras que
divulga as músicas, letras e cifras para os internautas.
A primeira letra de música a ser analisada será da dupla Zé Neto e
Cristiano, com data de lançamento no ano de 2016, intitulada Cadeira de
aço:

“Sobraram as marcas das brigas da separação


Ficaram os cacos de vidro e as flores no chão
Se eu tivesse abaixado a voz
174
Talvez hoje seríamos nós”

Aqui podemos perceber claramente que o “eu” que narra a canção, no caso
um homem, pormenoriza um cenário pós-discussão com a mulher, que
poderia ser sua namorada, noiva, esposa, amante ou companheira
sexual/amorosa. O conflito que segundo ele teria marcado a separação dos
dois conta com cacos de vidro e flores no chão, o que configura que em
algum momento houve sérias alterações de humor de alguma das partes ou
de ambos. Essas alterações de humor consequentemente trouxeram
agitamento físico e psicológico, já que na frase seguinte deste trecho ele
relata ter alterado a voz com a mulher, diante disto, podemos concluir que
a parte mais exaltada da discussão foi a masculina. Esse homem confirma
sua parcela de culpa e por certo admite talvez total culpa, já que afirma que
se tivesse tido atitude diferente ainda poderia estar com ela.

Esse cenário exposto acima demonstra a realidade cotidiana de muitas


mulheres, a violência doméstica. No ano passado o Atlas da Violência
demonstrou que o número de homicídios de mulheres (feminicídio) no Brasil
aumentou: “Verificamos crescimento expressivo de 30,7% no número de
homicídios de mulheres no país durante a década em análise (2007-2017),
assim como no último ano da série, que registrou aumento de 6,3% em
relação ao anterior” (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019). O que chama a atenção
é que grande parte desses casos de violência brutal e fatal aconteceram em
ambiente doméstico: “para analisar a questão, utilizamos os microdados da
saúde, que permitem traçar o perfil desses homicídios segundo o local da
ocorrência do fato. Do total de homicídios contra mulheres, 28,5% ocorrem
dentro da residência (39,3% se não considerarmos os óbitos em que o local
do incidente era ignorado). Muito provavelmente estes são casos de
feminicídios íntimos, que decorrem de violência doméstica” (ATLAS DA
VIOLÊNCIA, 2019). Além desses dados, a pesquisa ainda aponta que esse
tipo de violência aumentou 17,1%.

A cena relatada na música poderia ter tido um fim trágico caso algum dos
dois não saísse do lugar. Assustadoramente, o caso da canção não é uma
crítica social, é uma narrativa que embala milhares de pessoas em seu
cotidiano, majoritariamente mulheres - como já destacamos - e que sequer
se dão conta de que estão prestigiando, financiando e replicando um
discurso de violência contra seu próprio gênero.

O espaço dedicado às mulheres na história por muitos séculos foi o de


silenciamento, seu lugar foi definido por homens, sua história escrita por
eles, suas atitudes vigiadas e punidas. Partindo da ideia foucaultiana
(FOUCAULT, 2015) de que os discursos são construídos e de que eles
carregam em si relações de poder, podemos entender que as construções
sociais de gênero são resultado de uma sucessão histórica, social, cultural e
econômica. Em Tempos diferentes, discursos iguais: a construção histórica
do corpo feminino, Colling (2014) escreve sobre a continuidade desses
discursos no decorrer da história, chegando até os dias atuais:

“A história do discurso masculino sobre as mulheres demonstra que, do


ponto de vista teórico, as mulheres não existem. Não são mais do que
construções de discursos convergentes – filosofia, religião, medicina,
175
ciência” (COLLING, 2014, p. 35)

Seguimos com a canção:

“Um mês e quatro dias tentando, ela nada de me atender


Outras bocas, fui desencanando
Coração quase parou de tanto sofrer
Meu refúgio foi mesa de bar pra tentar te esquecer”

Aqui percebemos que o sujeito não desistiu de ter a mulher de volta, de tal
forma que ficou ligando incansavelmente para ela, demonstrando um perfil
obsessivo, um tanto psicótico, além de violento. Ela, em contrapartida,
demonstra resistência em atender, atestando não querer mais contato.
Entretanto, esse amor que ele demonstra sentir não foi empecilho para que
se relacionasse intimamente com outras pessoas. Esse sofrimento pelo
rompimento da relação buscou consolo em outras bocas, como ele afirma.
Nesse momento podemos perceber que ele se relaciona com outras
mulheres baseado em uma relação de objetificação do corpo feminino, não
demonstrando nenhum cuidado ou empatia pela mulher com quem ele
estava. Coloco aqui mulher, porque predominantemente as canções
retratam o padrão heteronormativo em suas letras, o que é reflexo direto
de uma sociedade ainda sexista, machista e LGBTfóbica. Além do seu
descuidado total com seu próximo, no caso as mulheres com quem ele se
relaciona, este homem apresenta um perfil bastante difundido nas músicas
sertanejas, o do homem consumidor de álcool.

O refúgio na mesa do bar reflete o desespero e desesperança desse


homem, que encontra no álcool um remédio que pode lhe causar: “diversos
efeitos, que aparecem em duas fases distintas: uma estimulante e outra
depressora” (CEBRID). Ambos os efeitos que podem ser causados pelo
álcool alterariam ainda mais o humor deste sujeito que já se encontra
psicologicamente instável, podendo fazer com ele procure
desenfreadamente ainda mais essa mulher, gerando um destino incerto
para ambos, mas que possivelmente seria violento novamente, de acordo
com as experiências passadas dos dois. E encontramos na história que
essa: “justificação da autoridade é baseada no princípio de que o ‘macho é
mais apto para a direção do que a fêmea’ [...] a mulher deve ser governada
como se governa um cidadão, mas sem haver alternância no poder, porque
a mulher não tem autoridade” (COLLING, 2014, p. 55).

Continuando:

“Sentado numa cadeira de aço enferrujada e bebendo


Cada copo americano enganava o meu sofrimento
Achei que eu tivesse esquecido a danada naquela hora
Até ver seu nome escrito na lata de Coca-Cola
Ai ai ai, ai ai ai
Deu uma saudade dela agora
Ai ai ai, ai ai ai
Garçom, joga essa lata fora”

Nesse instante o sujeito assume que o álcool de nada está adiantando, já


176
que sua função no momento estava sendo de mascarar os sentimentos
dele, que no fundo ainda continuam presentes. O homem entende que o
álcool não está remediando, mas mesmo assim não deixa de beber. Bastou
ler o nome da mulher em uma lata de Coca-Cola para que o sentimento de
perda aumentasse. Defino esse sentimento como perda, porque em nossa
sociedade a mulher ainda é tratada como propriedade do homem, o que
está sendo reproduzido nas atitudes desse sujeito que narra a canção. A
sensação de posse sobre a mulher é tão grande que ele não admite perde-
la, dai parte a insistência obsessiva compulsiva e psicótica atrás dela, que
demonstra resistência e indiferença pelo sujeito. Essa saudade sentida por
ele, nada mais é do que a falta do exercício de poder, dominação e
autoritarismo sobre a mulher que agora se recusa a voltar para ele.

Esses discursos sobre a fragilidade feminina estiveram e estão presentes


em diversos campos. As religiões, as ciências, a medicina, a política etc. são
construtores e reprodutores desse estereótipo. O corpo feminino é palco
dessas discriminações, observadas também em Uma história do corpo na
Idade Média: “a derrota doutrinal do corpo parece, portanto, total. Assim, a
subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal.
‘a mulher é fraca’, observa Hildegarde de Bingen no século XII, ‘ela vê no
homem aquilo que pode lhe dar força, assim como a lua recebe a força do
sol. Razão pela qual ela é submetida ao homem e deve sempre estar pronta
para servi-lo’. Segunda e secundária, a mulher não é nem o equilíbrio nem
a completude do homem. Em um mundo de ordem e de homens
necessariamente hierarquizado, ‘ o homem está em cima, a mulher
embaixo’, escreve Christiane Klapisch-Zuber” (LE GOFF; TROUNG, 2015, p.
52).

A música escolhida da dupla Henrique e Juliano, intitulada Conheço meu


gado, lançada neste ano:

“Terça-feira na balada
Não é desapego, é depressão
Essa legenda não me engana, não
E por trás de toda essa risada
Que eu sei que é forçada, tem um coração
Que não me esquece, não
De repente, suas amigas você até engana
Diz que ama ser sozinha, mas não dura uma semana
Pro teu corpo me chamar”

Aqui temos outro comportamento masculino predominante nas músicas


sertanejas, o convencimento. Como nessa letra, o homem sempre tem
certeza de que a mulher é dependente dele, que o ama e não consegue
viver sem ele. Esse comportamento demonstra um perfil controlador, que
acredita ser a única possibilidade de felicidade da mulher. A mulher,
seguindo a ideia de ser frágil e que necessita de “cuidado” e domínio,
enxerga sua possibilidade de bônus na vida, única e exclusivamente através
da relação amorosa heteronormativa com esse homem convencido. Esse
discurso simplifica e reduz a vida feminina ao universo androcêntrico.
Desconfigura da mulher a possibilidade de ter amor próprio, realizações
pessoais e profissionais, e menospreza sua capacidade emocional e
177
psicológica.

A alegria da mulher não é verdadeira, ele entende que ela não consegue se
desapegar sem entrar em depressão, e confirma que o coração dela não
consegue esquecê-lo. Ele determina que em uma semana ela sentirá falta
dele e provavelmente irá procurá-lo. Vemos aqui atitudes novamente
obsessivas e também psicóticas. Ele diz que ela irá procurá-lo, quando na
verdade, quem está contando os dias, escancaradamente é ele.

A ofensa mais grave vem agora:

“Eu conheço meu gado, oh, oh, oh


A saudade já deve tá te machucando
E daqui a pouco a gente tá voltando
Eu conheço meu gado, oh, oh, oh
Já tô vendo o meu telefone tocando
Você na minha cama e a gente se amando”

Esse homem relega a mulher o lugar de animal. Mas não é qualquer animal,
é a vaca (feminino do boi). “O gado”, que em seu sentido literal, o animal,
tem um tipo de tratamento específico no nosso sistema econômico
capitalista. O segmento bovino é pastoreado, nesse sentido, comandado por
alguém, que normalmente é uma figura masculina. Além disso, é visto
único e exclusivamente como fonte de dinheiro, riqueza e prazer. Por que
prazer? Prazer, porque é criado para o consumo, seja da carne ou do leite,
no caso da vaca. A lógica que quero expor é que esse homem além de
definir essa mulher como um animal, tirando assim dela toda humanidade,
racionalidade e sentimentalismo, também coloca a ele esse mesmo papel, o
de insensibilidade, irracionalidade e desumanidade, porque a vê como um
ser desprovido sobre quem ele exerce total poder.

E o termo carne não perde aqui a ideia de consumo, porque ele resume sua
relação com a mulher estritamente a cama, local de conjunção carnal entre
os dois. Dito isto, podemos claramente nos lembrar de situações em que
amigas, parentes, ou até mesmo nós mesmas, nos sentimos como “um
pedaço de carne” consumida pelos homens. Eis aqui não só a objetificação
da mulher, como também a sua animalização. Na música, o homem retira
por completo toda a humanidade feminina. Enquanto ela não o tira do
coração, ele a transporta para o campo exclusivo do prazer carnal.
Contribuindo aqui para reforçar outro discurso, o de que a mulher é
sensível, está umbilicalmente presa ao campo dos sentimentos, enquanto o
homem, em sua racionalidade natural, consegue separar o sentimento, do
prazer. Na Idade Média, segundo Le Goff e Troung o sexo deveria ser
moderado, contudo proclamava um padrão divulgado até hoje: “na cama, a
mulher deve ser passiva, o homem, ativo” (2015, p. 41).

Devido os limites de escrita que devo respeitar, deixo aqui esse convite a
analisar criticamente as músicas atuais, que continuam a reproduzir
discursos de outrora, apresentando as mulheres com padrões desumanos e
desqualificados. No mínimo encontrei dezenas de músicas que reproduzem
tais pensamentos, que de acordo com o grau de análise pode acabar
178
condenando álbuns musicais inteiros. Abordei o gênero musical sertanejo
por conta da popularidade e das letras “mais tranquilas” para serem
trabalhadas em sala de aula com adolescentes, contudo, encontrei esses
estereótipos em todos os gêneros musicais, entoados tanto por homens,
quanto por mulheres.

Referências
Emili Sabrina Ribeiro Silva, graduanda em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.

ADNEWS. Pesquisa mostra as preferências musicais de cada região


brasileira. ADNEWS, 15 de outubro de 2019. Disponível em:
https://adnews.com.br/adadcultura/pesquisa-mostra-as-preferencias-
musicais-de-cada-regiao-brasileira/
Bebidas alcoólicas. CEBRID. Disponível em:
https://www2.unifesp.br/dpsicobio/cebrid/folhetos/alcool_.htm
CAMPANHARO, Carol; ANDRADE, Naiara. Sertanejo Universitário: o
sertanejo faz escola. Extra, 2 de setembro de 2015. Disponível em:
https://extra.globo.com/tv-e-lazer/sertanejo-universitario-sertanejo-faz-
escola-363067.html
COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do
corpo feminino na história. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2014.
CRISTIANO; NETO, Zé. Cadeira de aço. Cuiabá, 2016. Disponível em:
https://www.letras.mus.br/ze-neto-cristiano/cadeira-de-aco/
DEARO, Guilherme. Geração Y é maioria no Spotify; veja o consumo na
plataforma. Exame, 18 de abril de 2016. Disponível em:
https://exame.abril.com.br/marketing/geracao-y-e-maioria-no-spotify-veja-
o-consumo-na-plataforma/
Ecad comprova: sertanejo é o ritmo mais ouvido no Brasil. ECAD, 11 de
dezembro de 2018. Disponível em: https://www3.ecad.org.br/em-
pauta/Paginas/ecad-comprova-sertanejo-e-o-ritmo-mais-ouvido-no-
brasil.aspx
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução
de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São
Paulo: Paz e Terra, 2015.
ENRIQUE; JULIANO. Conheço meu gado. São Paulo, 2020. Disponível em:
https://www.letras.mus.br/henrique-e-juliano/conheco-meu-gado/
IPEA; FBSP. Atlas da violência 2019. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo:
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, 2019.
IZEL, Adriana. Levantamento mostra os ritmos preferidos dos brasileiros;
confira! . Diário de Pernambuco, 3 de novembro de 2019. Disponível em:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2019/11/levantamen
to-mostra-os-ritmos-preferidos-dos-brasileiros-confira.html
LE GOFF, Jacques; TROUNG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média.
Tradução Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2015.
SANTOS, Fernanda. Sertanejos dominam ranking dos dez artistas mais
tocados em rádios em 2019. Jornal Opção, 31 de dezembro de 2019.
Disponível em:
https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/sertanejos-dominam-
ranking-dos-dez-artistas-mais-tocados-em-radios-em-2019-228712/
179
O ENSINO DA HISTÓRIA PODE OU DEVE COMBATER A
CISNORMATIVIDADE E A HETERONORMATIVIDADE?
Fabrício Romani Gomes

A presença das aulas de História na educação básica sofre com constantes


questionamentos. Os contextos sociais e políticos interferem ou tentam
interferir nos seus métodos e conteúdos a partir de diferentes interesses.
180 Não é novidade, por exemplo, a chegada das mulheres, das negras e
negros - durante o período escravista e no pós-abolição -, das populações
indígenas, do continente africano, entre outras “novidades”, nos livros
didáticos da disciplina e nas diferentes habilidades e competências exigidas
no processo de aprendizagens históricas. Essas questões demonstram a
série de interesses que estão vinculados à prática do ensino da disciplina e
sua relação com as demandas sociais e políticas da atualidade. Aqui quero
lançar mais um desafio à disciplina e às professoras e professores de
História: nós “podemos” ou “devemos” combater a cisnormatividade e a
heteronormatividade nas nossas aulas?

O protagonismo feminino, a retirada de diferentes mulheres da invisibilidade


nos mais diversos períodos e eventos históricos, já se consolidou em muitas
das práticas de ensino realizadas no Brasil. O mesmo tem acontecido com
os protagonismos negros e indígenas. Contribuiu para a efetivação desses
“novos fatos e personagens” no ensino de História a pressão dos
movimentos sociais, a consequente criação de legislações específicas e, por
fim, a ampliação das pesquisas acadêmicas sobre essas temáticas nos
cursos de pós-graduação em História espalhados pelo Brasil. Parte dessas
últimas, inclusive, buscou analisar a forma como mulheres, negros e
indígenas apareciam nos livros didáticos, como elas e eles eram
representados, auxiliando para o debate e as reformulações em diferentes
coleções. No caso dos dissidentes da cisnormatividade e da
heteronormatividade, estamos longe de fazer com que fatos e trajetórias
históricas, considerados importantes para transexuais, intersexuais,
homossexuais, bissexuais, entre outras possibilidades, atinjam crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos, e se consolidem nas práticas de
ensino.

As possibilidades de abordagem e consolidação das discussões sobre os


dissidentes da cisnormatividade e da heteronormatividade surgiram a partir
de publicações de origem governamental já no final do século passado (XIX)
com a chegada dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e o Tema
Transversal “Orientação Sexual”. Posteriormente, temos, com a mesma
origem, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, dando
ênfase para uma “Educação em Direitos Humanos”, percebendo a educação
básica como importante aliada no combate a todas as formas de
preconceito. Porém, a abordagem dessas questões pode não ter se
efetivado no ensino da História, pois “é compreensível que muitos
professores tenham receio em abordar esse conteúdo, seja por falta de
preparação ou, principalmente, pelos desafios que um tema envolto por
tantos preconceitos e tabus impõe” [Souza, 2019, p. 3]. A possível
insegurança motivada pela falta de aprofundamento nos estudos sobre o
tema e o clima político e social, com um governo abertamente homofóbico e
transfóbico, que valoriza identidades de gênero e sexuais “naturalizadas”, o
uso de rosa pelas meninas e azul pelos meninos, tornariam essa abordagem
ainda mais difícil.

Junto às questões específicas, relacionadas à formação de professores de


História e os contextos políticos, podemos elencar, ainda, uma certa
“tradição escolar” e/ou “disciplinar” em que “a diversidade sexual e de
gênero não costuma ser um tema comumente contemplado no ensino,
tampouco é constituinte de conteúdos convencionais do currículo dessa
181
disciplina” [Souza, 2019, p. 8]. Devido a essa “tradição”, o assunto ainda é
pouco tratado nos cursos superiores de História. Na historiografia, “apesar
dos estudos existentes, em função de relações de poder que ainda
atravessam silenciosamente a escrita histórica dominante, o caminho para
se reconhecer a existência de uma história homossexual [bissexual e/ou
transexual] relegada[s] às sombras da história heterossexual ainda deve
levar mais tempo para ser explorado de forma aprofundada e crítica”
[SOARES, 2017, p. 3]. A falta de reconhecimento dessas histórias, então,
além das dificuldades já apresentadas, precisa encontrar espaço dentro de
uma série de conteúdos já tradicionais. Como afirma Bittencourt, “a análise
da disciplina em sua ‘longa duração’ visa a fornecer alguns indícios para a
compreensão da permanência de determinados conteúdos ‘tradicionais’ e do
método da ‘memorização’, responsável por um slogan famoso da História
escolar: uma ‘matéria decorativa’ por excelência” [2018, p. 46].

Porém, apesar dessas dificuldades de efetivação de uma prática de ensino


de História que traga para a sala de aula os desviantes da cisnormatividade
e da heteronormatividade, os movimentos sociais já percebem essa
importância, conquistando algumas garantias. Muitas delas reivindicadas
devido à situação cotidiana de violências sofridas pelas e pelos
desobedientes dessas normas. As altas taxas de abandono dos estudos,
ainda durante a educação básica, devido a práticas e posturas transfóbicas
e homofóficas no contexto escolar, aliadas à presença do Brasil no topo do
número de assassinatos de transexuais e homossexuais, nos coloca o
desafio de buscar contribuir para: [1] a efetivação de um escola realmente
inclusiva e democrática; [2] a diminuição das taxas de assassinatos dessa
população.

A importância da História nesse processo já está evidente em diferentes


orientações governamentais. As aprovações dos planos nacional, estaduais
e municipais de educação, ocorridas recentemente, foram demonstrações
de um intenso debate político/educacional sobre a questão. Em um contexto
delicado, o município de Farroupilha, no Rio Grande do Sul, conseguiu
aprovar, em 2015, importantes estratégias para a “Meta 8”, que pretende
elevar a escolaridade média da população brasileira entre os dezoito e vinte
e nove anos, tendo em vista o combate às discriminações contra as
populações dissidentes. Entre elas, destaco as seguintes: “8.13 Colocar em
prática, [...], política de formação continuada aos segmentos escolares,
ampliando os espaços para reflexão nas escolas (...) nas discussões sobre
inclusão, questões de direitos humanos (criminalização da homofobia, por
exemplo), (...) sexualidade (identidades sexuais questionadoras da
heteronormatividade), diversidade, segurança etc.” (FARROUPILHA, 2015,
p. 147-148); “8.22 Construir, em regime de colaboração, proposta para que
nos currículos das graduações das Instituições de Ensino Superior se
incluam conteúdos disciplinares e nas atividades curriculares dos cursos que
ministram, temáticas relacionadas à sexualidade e à história dos
movimentos feminista e LGBTs” (FARROUPILHA, 2015, p. 150); “8.26
Garantir, [...], a inserção da realidade [...] LGBT em todo o material
didático e de apoio pedagógico produzido em articulação com as
comunidades, sistemas de ensino e instituições de Educação Superior,
promovendo o ensino de História [...] dos Movimentos LGBTs [...];
(FARROUPILHA, 2015, p. 150-151).
182

A preocupação com a elaboração de material didático e de apoio pedagógico


é um indício da falta desse tipo de recurso ou da falta de conhecimento
sobre o material existente. Fica evidente, também, a ênfase com a “história
dos movimentos LGBTs”, vista como conteúdo importante para a construção
da autoestima dessa população. A atenção a esses movimentos já começa a
ser percebida em alguns livros didáticos, que ainda são um importante
aliado das e dos professores de História. Entre as obras disponíveis para
escolha, na área de História, no PNLD de 2017 (utilizados em 2017, 2018 e
2019), tínhamos a coleção “História nos dias de hoje”. Essa obra traz o
“Quadro Complementar” intitulado “Stonewall e o direito da diversidade
sexual”, com o objetivo de aproximar as disciplinas de História e Geografia.
No texto, de meia página, destaca-se que a “Revolta de Stonewall tornou-se
um marco na defesa dos direitos civis dos homossexuais”. Além disso,
considera a revolta como movimento de origem das “Paradas do Orgulho
Gay, que se realizam em diversos países do mundo e em várias cidades
brasileiras” (CAMPOS; CLARO; DOLHNIKOFF, 2015, p. 255). Tais
informações fazem parte do capítulo “12: A era da contestação”, e estão
acompanhadas de discussões sobre o movimento feminista, movimento
negro, movimento hippie e o “Maio de 1968”. O texto acaba tornando
invisível o protagonismo de transexuais e travestis em Stonewall, e, ao
tratar das paradas como “orgulho gay”, omite outras e outros desviantes.

Essa pequena presença no PNLD de 2017 trouxe grandes expectativas para


o processo de escolha do PNLD 2020. Ainda mais, depois da aprovação da
BNCC, que garante no item EF09HI26 a possibilidade de “discutir e analisar
as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas,
mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de
consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às
pessoas. [...] (BRASIL, 2017, p. 30-31). A partir da habilidade de “discutir e
analisar as causas da violência contra populações marginalizadas”, se
imagina que as coleções didáticas para o ensino de história abordariam
questões referentes à população homossexual, já que as transexualidades
ficam invisibilizadas, mais uma vez.

A coleção “Geração Alpha” traz trechos de um texto de Drauzio Varella,


refletindo sobre a homossexualidade e a questão de ela ser tão natural
quanto a heterossexualidade, e três questões sobre o texto: “a) Segundo
Drauzio Varella, a homossexualidade seria uma escolha? Explique; b) A qual
violência contra os homossexuais ele se refere no texto?; c) Você concorda
com a opinião do autor no texto ou discorda dela? Justifique” (NEMI; REIS;
MOTOOKA, 2018, p. 229). Em outras coleções, como “Vontade de Saber”,
“Araribá Mais” e “Historiar”, os temas relacionados aos dissidentes da
cisnormatividade e da heteronormatividade são mencionados em textos
sobre diversidade e ações afirmativas e não são tratados de forma mais
específica. Já a coleção “Teláris” traz um boxe intitulado “Conheça Mais”.
Nele aparece a vereadora do PSOL Marielle Franco. Nenhuma referência à
sexualidade da vereadora é realizada. Enfatiza-se que ela lutava a favor dos
direitos humanos, “com destaque para as mulheres, os afrodescendentes e
a comunidade LGBT”. Além disso, existe uma explicação para a sigla LGBT:
“sigla utilizada para denominar quem se difere da orientação heterossexual,
como homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros”
183
(VICENTINO; VICENTINO, 2018, p. 231). Fica notório o problema de se
considerar sexualidade e identidade de gênero a mesma coisa.

A partir dessa breve exposição é que busco a reflexão sobre se “podemos”


ou “devemos” incorporar as trajetórias e os fatos relacionados à História
das e dos dissidentes da cisnormatividade e da heteronormatividade em
nossas aulas na educação básica.

As questões relacionadas à formação de professores de História, a


“tradição” da disciplina e o desenvolvimento da pesquisa histórica sobre o
assunto nos levam a refletir sobre se “podemos” fazer esse tipo de
abordagem em nossas aulas. Essas questões podem nos levar a outras, tais
como: podemos fazer essa abordagem mesmo sem termos profundidade
nos estudos a respeito do tema? Conseguiríamos fazer uma discussão com
nossos alunos e alunas sem buscar respostas no senso comum ou nas
ideias cristalizadas em nossa sociedade sobre essas posturas dissidentes
daquilo que ainda consideramos o normal, no caso, a cisgeneridade e a
heterossexualidade? Precisamos esperar que as redes de ensino nas quais
atuamos realizem encontros de formação e discussão sobre o assunto para
nos sentirmos aptos para desenvolver as aprendizagens relacionadas à
história das populações que não se enquadram nos gêneros e sexualidades
que nos são impostas? Temos segurança para dizer aos nossos estudantes
que identidade de gênero não é a mesma coisa que sexualidade? E, quem
sabe, o mais importante: temos convicção de que esses assuntos fazem
parte da nossa aula de História?

As questões sociais que evidenciam o grande número de abandono escolar


e os altos índices de violências, inclusive assassinatos, dos dissidentes da
cisnormatividade e da heteronormatividade demonstram que devemos
trazer esses temas para a sala de aula imediatamente, principalmente em
um contexto político que promove o discurso de ódio e de discriminação a
esses dissidentes. A partir disso, devemos: [1] buscar informações, nem
que sejam mínimas, sobre a Revolta de Stonewall disponíveis na internet e
em filmes recentes para preparar uma aula; [2] conhecer quem foram
Marsha P. Johnson e Silvia Rivera e qual a importância delas no movimento
trans; [3] diferenciar sexualidade de gênero; [4] tirar da invisibilidade a
homossexualidade de Madame Satã a partir de discussões sobre a capoeira;
[5] refletir sobre a importância da representatividade política, enfatizando
que tivemos, durante toda a história republicana brasileira, somente um
deputado federal assumidamente homossexual e comprometido com as
pautas LGBT... Ao fazer isso, nos afastamos das competências e habilidades
sugeridas para o ensino da História? Então, podemos ou devemos?
Para encerrar, lembro que “existe o medo de que a mera menção da
homossexualidade vá encorajar práticas homossexuais e vá fazer com que
os/as jovens se juntem às comunidades gays e lésbicas” [Dinis, 2011, p.
43]. A partir dos silenciamentos gerados por esses medos, Dinis traz para o
contexto da educação o conceito de “amolador de facas”. De acordo com o
autor, as professoras e os professores não seguram “a arma, nem a faca
que provoca diariamente o assassinato de pessoas que representam as
minorias sexuais [e de gênero] no Brasil, [mas] eles(as) são os(as)
184
amoladores(as) de facas que colaboram indiretamente para tal genocídio, já
que entender a homossexualidade como pecado, profanação do corpo e da
sexualidade, como anormalidade e desvio de comportamento – discursos
importados da religião, da mídia e das ciências psicológicas - são também
as principais justificativas utilizadas por assassinos em série ou grupos de
extermínio de travestis, transexuais, bissexuais, gays e lésbicas no Brasil”
[DINIS, 2011, p. 46-47].

A partir das nossas abordagens, nas nossas aulas de história, “podemos”


seguir amolando facas ou “devemos” nos colocar contra o discurso da
normalidade cisgênera e heterossexual?

Referências
Fabrício Romani Gomes é Mestre em História pela UNISINOS; acadêmico do
curso de especialização em educação do IFRS – Campus Farroupilha;
licenciado em História pela UCS; professor da educação básica na rede
estadual e do munício de Farroupilha/RS.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e


métodos. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base
nacional comum curricular. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: fev.
2020.
CAMPOS, Flavio de; CLARO, Regina; DOLHNIKOFF, Miriam. História nos dias
de hoje, 9º ano. 2. ed. São Paulo: Leya, 2015.
COTRIM, Gilberto; RODRIGUES, Jaime. Historiar, 9º ano: ensino
fundamental. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila; PELLEGRINI, Marco. Vontade de
saber: história. São Paulo: Quinteto Editorial, 2018.
DINIS, Nilson Fernandes. Homofobia e educação: quando a omissão
também é signo de violência. Educar em Revista. 2011, n.39, p. 39-50.
FARROUPILHA. Lei 4.125 de 10 de junho de 2015: aprova o Plano Municipal
de Educação. Disponível em:
http://www.farroupilha.rs.gov.br/novo/wpcontent/uploads/2014/01/Plano-
Municipal-de-Educa%C3%A7%C3%A3o.pdf, acesso em 07 de dezembro de
2019.
MODERNA, Editora (organizadora). Araribá mais: história. São Paulo:
Moderna, 2018.
NEMI, Ana Lúcia Lana; REIS, Anderson Roberti dos; MOTOOKA, Débora
Yumi. Geração alpha história: ensino fundamental. 2. ed. São Paulo:
Edições SM, 2018.
SOARES, Bruno Brulon. Os homossexuais na história: relações de poder e a
classificação do gênero na historiografia contemporânea. Anais do XXIX
Simpósio Nacional de História - contra os preconceitos: história e
democracia. Brasília: Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil, 2017.
SOUZA, Diego Gomes. Diversidade sexual e de gênero no ensino de
história. Anais do 30° Simpósio Nacional de História - História e o futuro da
educação no Brasil / organizador Márcio Ananias Ferreira Vilela. Recife:
Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil, 2019.

185
BREVES REFLEXÕES ACERCA DA CULTURA ESCOLAR, GÊNERO E
HISTÓRIA DAS MULHERES
Fernanda Loch

Este breve ensaio foi resultado de uma atividade avaliativa realizada


durante a disciplina de Oficina de História III, referente ao quarto ano do
curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa
186 (UEPG). A pesquisa foi executada no ano de 2017, em dois colégios, um
localizado na cidade de Piraí do Sul e o outro na cidade de Ponta Grossa e
teve como objetivo uma breve sondagem e a posterior análise de como os
profissionais do ensino de história e áreas afins (artes, geografia e
pedagogia) se posicionam e quais os seus conhecimentos acerca da História
das Mulheres e dos Estudos de Gênero em geral. Além desta abordagem
realizada com os professores do ensino básico, aqui também discutimos
alguns pontos da Cultura Escolar como, por exemplo, o currículo oculto
presente no ambiente da escola porque a discussão sobre gênero também
adentra esse espaço de maneira “não-oficial”, atuando na manutenção dos
supostos e normativos papéis de gênero.

A cultura escolar pode ser entendida como a cultura que é veiculada pela
escola, a cultura que é produzida pela escola e também a cultura
organizacional da escola. (BARROSO, 2013 p. 182). Nessa cultura escolar,
estão colocados todos esses aspectos que envolvem o ambiente
educacional, de maneira explícita, formativa e oficial, e também coisas que
“não são faladas”, ou seja, o que podemos encaixar no “currículo oculto” da
escola. Entendemos o currículo oculto da seguinte forma:

“O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente


escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de
forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes. [...] O que se
aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes,
comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens
se ajustem de forma mais conveniente às estruturas e às pautas de
funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas, e, portanto,
indesejáveis, da sociedade capitalista. O currículo oculto ensina em geral o
conformismo, a obediência, o individualismo. [...]” (SILVA, 2007, p. 78-79
apud ANDRADE, 2013, p. 49).

Dentro do currículo oculto da escola, estão presentes elementos que são


relacionados também à sexualidade, raça e as relações de gênero:

“Mas recentemente, nas análises que consideram também as dimensões do


gênero, da sexualidade ou da raça, aprende-se, no currículo oculto, como
ser homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como
a identificação com uma determinada raça ou etnia.” (SILVA, 2007, p. 78-
79 apud ANDRADE, 2013, p. 49).

Ou seja, mesmo que não se fale sobre as relações de gênero, a cultura


escolar traz tais concepções que são intrínsecas ao currículo oculto.

O conceito de gênero possui várias definições e não é difícil encontrá-lo de


forma equivocada para definir simplesmente a questão do sexo biológico,
por exemplo. Segundo Scott, há várias maneiras de se definir gênero: “as
feministas começaram a utilizar a palavra gênero mais seriamente, num
sentido mais literal, como uma maneira de se referir à organização social da
relação entre os sexos.” (SCOTT, 1995, p. 72); “gênero é, [...], uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado”. (SCOTT, 1995, p. 75).

As pesquisas realizadas na categoria de gênero não incluem somente


mulheres nos seus estudos, mas vários outros temas que também se
187
enquadram dentro deste tipo de análise. Na história de gênero, temas como
sexualidade, família, crianças, vem à tona. Além disso, quando estudamos
mulheres e modelos de feminilidade, sempre o fazemos em oposição ao
masculino, o que implica também no estudo dos homens e da
masculinidade.

Se focarmos especificamente no campo da História, a História das mulheres


e os estudos de gênero tiveram um grande desenvolvimento em período
recente, nos últimos 30 anos. Assim como as mulheres foram oprimidas
durante boa parte da história, a história das mulheres também foi reprimida
na historiografia, porque este espaço foi constituído, em sua maioria e com
maior notabilidade, por autores homens.

Para as historiadoras e historiadores feministas não há dúvida de que as


mulheres participaram ativamente de grandes e pequenas revoltas políticas,
guerras, revoluções, e tiveram a sua participação na história, mas na
história dos heróis, - característica da história positivista, - as historiadoras
e historiadores não enxergavam as mulheres que ocupavam papéis
supostamente masculinos. Era como se a história das mulheres fosse
separada da história dos homens, e não coubesse nas esferas política e
econômica das sociedades, espaços quase exclusivamente masculinos.

Segundo Colling e Tedeschi (2015), na década de 70 passam a surgir novos


objetos de pesquisa, como a criança, a loucura, a sexualidade, a vida
privada; e com a mulher adentrando o espaço das universidades, o debate
se fez mais do que necessário. E mais, atualmente, os Estudos de Gênero
são um campo de estudos consolidado internacionalmente, no qual
dificilmente seus pesquisadores não tenham um certo grau de militância na
sua escrita. Escrever sobre relações de gênero é um ato político, é expor
desigualdades e confrontar com a ordem estabelecida, assim como as ações
exercidas pelo movimento feminista.

Quando debatemos acerca dos supostos papéis de gênero, é comum


pensarmos nas relações constituídas no antro doméstico. Mas a construção
dessas relações e do ideal tanto feminino, quanto masculino não ocorrem
somente na esfera doméstica e nas relações de parentesco:

“Seus usos e significados nascem de uma disputa política e são os meios


pelos quais as relações de poder - de dominação e de subordinação - são
construídas. O saber [a respeito das diferenças sexuais] não se refere
apenas a ideias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais
específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo
de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é
inseparável dela.” (SCOTT, 1994, p. 12-13).
Portanto, essa construção e usos do gênero também ocorrem nas relações
dentro do mercado de trabalho, na educação, na política, ou seja, na
organização social como um todo, e são legitimadas pelas relações de
poder. Michel Foucault (1979), com seu trabalho sobre as relações de
poder, colabora na compreensão da História das Mulheres:

“As práticas foucaultianas da pesquisa histórica demonstram que a


188
historicidade governa a relação entre os sexos ao mostrar em que contexto
nascem a figura da mãe triunfante e subjugada, ou a da histérica. Michel
Foucault auxilia-nos a romper com o eterno feminino dos médicos e dos
biólogos cujos discursos, nos séculos XVIII e XIX, reforçavam a sujeição das
mulheres ao seu corpo e ao seu sexo. Ele nos ajuda a compreender como
determinadas verdades são instituídas em campo do saber e como isso
dificulta uma outra forma de olhar o passado; e revela que estamos sempre
cercados, somos perseguidos por verdades. O fato histórico escolhido
depende do olhar do próprio historiador e do tipo de história que gostaria de
fazer. Incita-nos a questionar quais práticas discursivas e não discursivas
fizeram essa ou outra questão emergir e constituindo-a como objeto para o
pensamento.” (COLLING; TEDESCHI, p. 298).

Em suma, o currículo oculto (que contém, todas essas tensões construídas


social e historicamente, e estão implicitamente presentes na cultura
escolar) auxilia na manutenção de supostos papéis de gênero, da
discriminação sexista e legitima como cada pessoa, homem ou mulher,
deve ser, viver e se comportar.

Coleta e Análise de dados


Para o aprimoramento da pesquisa, foram elaborados questionários e
aplicados à três professores de história, um professor de geografia, uma
professora de artes e uma pedagoga. Desses seis questionários, cinco foram
feitos na cidade de Piraí do Sul, no Colégio Estadual Prof.° Leandro Manoel
da Costa, e um no Colégio Estadual Regente Feijó, em Ponta Grossa. A
pesquisa foi realizada no ano de 2017, como já mencionado anteriormente.
As perguntas foram as seguintes:

1- O que você entende por Estudos de Gênero?


2- Você acha importante discutir sobre as desigualdades entre homens e
mulheres, etc. dentro do espaço escolar?
3- Você já abriu/costuma abrir espaço para esse tipo de discussão em sala
de aula? (Se não, por quê?)
4- Se sim, quais os assuntos/matérias/temáticas escolares que mais
envolvem a discussão sobre mulheres?
5- No livro didático que você utiliza nas suas turmas, há espaço para a
história das mulheres?

Como resultado, todos os professores entrevistados souberam responder o


que eles entendiam por estudos de gênero, passando aproximadamente a
mesma ideia. Uma das professoras entrevistadas disse que estudos de
gênero são: “Estudos sobre a diversidade de gênero, orientação sexual e
identidades de gênero, bem como as relações com o mundo do trabalho,
questões sociais, elementos culturais e relações interpessoais.”
Todos também responderam que consideram importante ter esse tipo de
discussão dentro do espaço escolar e procuram leva-lo para a sala de aula.

Entre os assuntos que surgem envolvendo mulheres e gênero apareceram


como principais: a violência, política, voto feminino, maternidade,
sexualidade e na maioria dos casos, os professores responderam que não
possuem o apoio do livro didático para a realização das aulas sobre isso.
189

Então, além de ser um debate que já foi muito reduzido na historiografia, os


livros didáticos apresentam poucas discussões acerca do tema, apesar da
singela melhora nos últimos anos. “Quando são incluídas nas discussões de
fato, as mulheres ainda figuram nas bordas e margens das produções
didáticas, em quadros específicos e em situações pontuais, sem evidentes
impactos sobre os processos históricos” (MISTURA; CAIMI, 2015, p. 243).
Também é comum um olhar voltado para as personagens que se
distinguem por grandes feitos, o que acaba criando uma visão generalizada.
Além disso, muitas vezes não há uma articulação com os “conteúdos
tradicionais”. Para suprir essa ausência, se faz necessário o uso de
metodologias de ensino diversificadas.

Uma alternativa para isso seria o uso didático de documentos. De acordo


com Bittencourt (2004), documentos podem ser usados como ponto de
partida para uma discussão, como gerador de situações-problemas, como
forma de fixação do conteúdo trabalhado, como ilustração do conteúdo, ou
como fonte de informações.

Mas ao mesmo tempo, quando nos referimos à dificuldade de se trabalhar


com história das mulheres devido à ausência de materiais no Ensino de
História, nem sempre nos damos conta de que essas lacunas também
podem ser problematizadas. É justamente essa ausência das mulheres na
História que pode ser o ponto de partida para qualquer discussão.

É preciso voltar o olhar para as discussões de gênero nas escolas, sejam


elas discussões sobre assuntos atuais ou no campo próprio da história, para
que seja possível os estudantes compreender as relações de poder e de
desigualdade que se projetam na nossa sociedade.

Considerações Finais e Provocações


Este trabalho teve como objetivo uma breve reflexão acerca dos Estudos de
Gênero na Educação Básica, seus desafios e possibilidades. Buscar essas
diferentes formas de abordagem não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa
necessária. A reflexão é essencial para o desenvolvimento da prática. Além
dos desafios próprios da abordagem de gênero, também é importante
pensarmos nas interseccionalidades presentes nesses estudos, relações que
são capazes de vincular gênero com outras temáticas que são de igual
importância, como raça e movimento negro, classes sociais e movimentos
trabalhistas, entre outros sistemas sobrepostos de opressão, dominação e
discriminação.

Abordar essas questões em sala, desde a História das Mulheres e dos


Estudos de gênero, até os outros temas que citamos acima, é um trabalho
que, mesmo que vagaroso, acaba por romper com o silêncio e combater as
desigualdades. Colocar essas temáticas em debate e como essenciais na
cultura escolar, também consequentemente trará resultados nas
desigualdades carregadas pelo currículo oculto.

Por último, mas não menos importante, o desconhecimento sobre o que são
Estudos de Gênero, ou até mesmo sobre o que são identidade de gênero e
orientação sexual, somado à incompreensão do que é cultura escolar ou
190
currículo oculto, leva a algumas instâncias da sociedade a criarem
mecanismos de barragem para esse tipo de discussão pública, justificando
que esse tema nada mais seria do que “ideologia de gênero”, que seria um
movimento para acabar com a organização familiar e que confronta com a
“ordem” estabelecida e “tradicional” da sociedade. Porém a difusão da
“ideologia de gênero” só acaba reforçando ainda mais o quão necessário é
esse debate. E de acordo com a nossas entrevistas, se até os profissionais
da educação querem e sentem a necessidade de debater sobre gênero na
escola, quais são os reais impedimentos para que isso aconteça?

Referências
Fernanda Loch é mestranda no Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Também integrante do
Laboratório de Estudos de gênero, diversidade, infância e subjetividades da
mesma universidade. (Lagedis).

ANDRADE, Luma Nogueira de. Hierarquia, Disciplina E Panoptismo: Uma


Cartografia Do Espaço Escolar. In: RODRIGUES, A.; BARRETO, M. A. S. C..
Currículos, gêneros e sexualidades. ES: Edufes: 2013.
BARROSO, João. Cultura, Cultura Escolar, Cultura de Escola.
Unesp/UNIVESP, 1ª Edição, V. 1, 2013.
BITTENCOURT; Circe Maria F. Ensino de História: Fundamentos e Métodos.
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979.
MISTURA, Letícia; CAIMI, Flávia Eloisa. O (não) lugar da mulher no livro
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COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antonio. O Ensino da História e
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99.
SCOTT, Joan Wallach. “Prefácio.” In: Gender and politics of history.
Columbia University Press, N.Y., 1988. Tradução de Mariza Corrêa. In:
Cadernos Pagu (3), 1994,
INVISIBILIDADE FEMININA: O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA
DE TIA EVA NA CONTRUÇÃO DA IDENTIDADE CAMPO
GRANDENSE
Francisca Kessione M. Bezerra e Jaqueline Ap. M. Zarbato

O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa “Patrimônio histórico-


cultural material e imaterial nas cidades de Mato Grosso do Sul e seu
impacto histórico- cultural: Cultura regional e formação de um sistema de 191
preservação a partir da educação patrimonial”. Nesse sentido, o artigo tem
como objetivo analisar a representação cultural e social de “Tia Eva” (Eva
Maria de Jesus, ex escrava que fundou uma comunidade quilombola).
Investigando a invisibilidade de uma mulher tão importante para a
construção e ampliação de Campo Grande/MS, o silenciamento no processo
de construção da identidade local. Utilizando documentos históricos,
fotografias, memórias, mapas históricos para ensinar a história pelo prisma
de uma mulher negra, quilombola, que migrou para Mato Grosso do Sul.
A “história oficial” de Campo Grande/MS apresenta como fundador José
Antônio Pereira que teria ‘desbravado’ a região, primeiramente, com uma
comitiva e depois de verificar a existência e condições das terras trouxe sua
família e escravos para a região. Que, era até então conhecida como
Campos de Vacaria. O enredo da fundação de Campo Grande está envolto,
ainda, por interesses oligárquicos e de uma sociedade pecuária pautada em
um suposto pioneirismo masculino, que se apropriou da imagem de José
Antônio Pereira como desbravador conquistador dessas terras devolutas.
Entretanto, essa historiografia não leva em conta a existência de indivíduos
que já haviam se alocado na região, sejam eles indígenas ou negros, e foca
apenas na imagem de um antepassado elitista e branco.

A historiografia produzida durante o século XX na região buscava solidificar


uma identidade que pudesse atribuir respaldo para os movimentos
divisionistas promovidos pela elite local. Nesse sentido, era de fundamental
importância unificar a população criando formas de possibilitar o sentimento
de pertencimento. Esse movimento surge, também, para negar os laços de
proximidade com a até então capital do Estado: Cuiabá. Fator explicitado
por Queiroz: “[...] encontra-se um primeiro esboço de uma identidade
especificamente sul-mato-grossense, como reação à identidade mato-
grossense “oficial” (QUEIROZ, PAULO R., p. 160, 2006).

A partir disso, com a efetivação da divisão do Estado, em 1977, o papel da


historiografia se tornou ainda mais importante para propiciar o cenário
supracitado e impor definitivamente diferenças entre o sul e o norte.
Ademais, visava garantir, ainda mais, uma noção de região voltada a
produção pecuária e sociedade hegemônica, excluindo as demais
populações que contribuíram para a construção de Campo Grande.
Marginalizando esses povos e a sua oralidade.

Ainda, essa confecção da história, coloca a comunidade negra como


subalterna e a existência do quilombo ( que salvaguarda suas raízes) como
um atraso para o progresso de Mato Grosso do Sul como aborda Santos: “
O quilombo e o negro, que representam o antigo Mato Grosso do Sul, são
invisibilizados e até mesmo silenciados” (SANTOS, PLÍNIO, p. 30, 2010). Tal
problemática refletida até mesmo nos espaços museológicos da cidade,
onde os negros e principalmente as mulheres negras não são devidamente
representadas, pois houve a dissociação dessas agentes históricos em
relação a historiografia local. Isso, gera altercações acerca da história local
e o papel desses indivíduos.

Sob tal ótica, o envolvimento de Tia Eva (Eva Maria de Jesus) com a criação
de uma identidade negra na região de Campo Grande (até então Campos de
Vacaria) foi negligenciado para dar palco a história de uma elite dirigente. A
192
vinda da ex escrava Eva Maria de Jesus para a região é de suma
importância e desencadeou o processo de formação da comunidade
Quilombola Tia Eva. Com isso, é relevante ressaltar que o espaço
quilombola demonstra a ancestralidade, e preservação de costumes
culturais e da oralidade local.

Em decorrência disso, se faz essencial a compreensão de como o espaço da


comunidade Tia Eva foi construído e a importância desse lugar para o
Ensino de uma história mais inclusiva, que leva em consideração os
diferentes agentes históricos na composição da identidade local. Assim
como, reafirmar a presença de mulheres e negros que por muitas vezes é
suplantado por interesses locais. Pretende-se identificar, a trajetória de Tia
Eva, desde sua partida em rumo aos Campos de Vacaria até seu papel
nessa nova sociedade que se formava na região. Reafirmando sua
importância como benzedeira, parteira e as mais diversas facetas dessa
mulher.

Além disso, a falta de inclusão dessa figura emblemática na história de


Campo Grande constitui uma falta de representatividade, causando o
distanciamento de sujeitos com a história regional pois não se veem
contemplados por ela. Pois a construção de identidade é continua e
perpassa por agentes que corroboram para sua formação e afirmação,
tomando diversos marcadores como referenciais.

A jornada de ‘tia Eva’


Eva nasceu em 1848, na fazenda Ariranha em Jataí-Goiás, cujo dono era
José Manoel Vilela. Já nasceu escrava, e o seu trabalho era voltado para as
atividades domésticas. Com vinte e dois anos foi mãe pela primeira vez,
deu à luz a Sebastiana na mesma fazenda onde nasceu e foi criada, logo
após vieram mais duas filhas: Joana e Lazara. Depois de um tempo ocorre o
acidente determinante para sua vinda aos campos de vacaria, Tia Eva era
encarregada de fazer sabão e enquanto exercia seu ofício queimou a perna
com banha quente. Devido as condições de vida e a medicina da época a
perna não sarava. Foi então, afastada da sede da fazenda, com tudo, ainda
presenciou muitos atos de violência contra os seus, vivia, afinal, em um
contexto de exploração e abusos. Essas “memórias do cativeiro” seguiram
através da transmissão oral e são repassadas na hodiernidade por seus
descendentes.

Foi, a partir de ver esses maltratos sofridos pelos escravos que Tia Eva fez
um pedido e promessa a São Benedito, como aponta Carlos Plínio dos
Santos através da narrativa histórica de Seu Waldemar:
“A tia Eva foi muito devota de São Benedito. Por causa da escravidão ela fez
um pedido para São Benedito, por isso ela veio pra cá [Campo Grande]. Ela
fez um pedido a São Benedito assim. Um dia eles tinham apanhado lá, ela
viu as pessoas apanhando, ela fez um pedido [que] se São Benedito
ajudasse que ela saísse de lá para vim pra cá pro Mato Grosso, ela ia
arrumar um lugar para criar só as pessoas da cor dela, mas que não iriam
mais ser escravos. Iam viver independentes, fazer sua casa, fazer farinha,
lavar roupa, fazer óleo de mamona, um local para passar toda a vida. Ela
193
falou isso para São Benedito. E ela tinha o dom de benzer, com as graças
de São Benedito. Assim que começou o negócio de benzer os outros.”
[Plínio,2012]

Tia Eva já se destacava em sua região de origem pois exercia o papel de


benzedeira e parteira. A partir disso, já acumulava alguns bens, como:
carro de bois, bois, galinha, porco e doações pelos benzimentos. Vinham
pessoas de longe para serem benzidas por ela (Plínio,2012). Com a abolição
da escravatura em 1888, se torna possível para a ex-escrava a migração,
saindo da localidade em que nasceu e rumando para a região do sul de
Mato Grosso, que segundo viajantes era dotada de terras devolutas que
poderiam ser habitadas.

Dessa forma, um grupo de ex-escravos se reúne para a longa jornada até


Campo Grande, dentre os indivíduos presentes, vale ressaltar, na mesma
comitiva também estava Dionísio Antônio Martins (fundador da futura
comunidade negra rural Furnas do Dionísio, localizada em Mato Grosso do
Sul). Carlos Alexandre Plinio dos Santos comenta que:

“Os integrantes da comitiva, logo que chegaram à recém-formada Vila


Santo Antônio de Campo Grande, procuraram por terras ainda vagas e
encontraram-nas na região de Olho D’água a cerca de seis quilômetros do
centro da Vila. Nessa região, numa área de mais próxima ao córrego
Segredo, Tia Eva e outros ex-escravos levantaram a Comunidade negra São
Benedito (ou Tia Eva).” [Machado, 2019, p.30].

Outrossim, Tia Eva era muito religiosa e agarrava-se a sua devoção a São
Benedito, fez uma promessa então de construir uma igreja em homenagem
ao Santo Preto para que lhe concedesse a cura de sua perna. Um de seus
primeiros feitos foi erguer a igreja que havia prometido, primeiramente em
pau a pique e depois reformada na alvenaria. Iniciou, também as festas de
São Benedito que até hoje são realizadas na comunidade, o que demonstra
a importância da oralidade e da preservação dos costumes para os
membros da comunidade.

Como exposto previamente, Tia Eva era uma mulher de múltiplas facetas,
atuou em diversas atividades em Campo Grande, contribuindo com a
sociedade local, como aponta Myleide Machado:

“Tia Eva continuava a trabalhar na produção de seus doces, mesma


atividade dos tempos de escravidão, produzia e vendia no centro de Campo
Grande. Além de benzer, fazer partos, as mulheres das comunidades
cultivavam pequenos “jardins”, verdadeiras farmácias, com plantas
medicinais – folhagens e flores próprias para chás. Segundo nos relataram,
no local todos aprenderam a respeito de plantas, principalmente com a
família e com amigos também. Três entrevistados citaram o nome da filha
de Tia Eva, Sebastiana, que benzia e era parteira; citaram também o nome
do raizeiro Antônio, neto de Tia Eva. Uma demonstração clara de que as
Comunidades de São Benedito, dos descendentes da negra Tia Eva, ainda
conservam suas tradições como o uso de plantas medicinais e místicas
vindas com seus ancestrais da África.” [Machado, 2019, p.31]
194
Com a morte de Tia Eva em 1926, as funções religiosas e políticas foram
passadas para sua filha Sebastiana Maria de Jesus que continuou o legado
da mãe, utilizando as terras em favor de seus descendentes.

Silenciamento social
Durante longo tempo histórico, história de negros vem sendo silenciada,
como resquícios das mazelas deixadas peça escravidão e abolição inacabada
e a situação só se agrava ao entrarmos na seara da negligência das
narrativas de mulheres negras. Essa marginalização, é pautada por Léila
Gonzales e Carlos Hasembalg no livro “Lugar de Negro”, no qual apontam
existir uma hierarquia incontestável: homem branco, mulher branca,
homem negro, mulher negra. Com isso, apesar de Tia Eva se constituir
como um dos pilares da história campo grandense pouco aparece nas
produções e discussões locais.

Na época da chegada (cerca de 1905), Tia Eva e seu grupo já foram alvo de
estranhamento, os caracterizaram como “mudanceiros”, para Barros
(1999;23) o termo carregava sentido pejorativo e marcava a divisão entre
vizinhos desejáveis e indesejáveis. Outrossim, esses moradores antigos se
intitulavam detentores do poder e conhecimento sobre essa sociedade,
relegando aos recém-chegados o papel de forasteiros. Como apresenta
Carlos Plínio dos Santos através da narrativa histórica de Seu Waldemar:
“Lá tinha uns crioulos roceiros, quando tia Eva chegou, falavam que eles
também foram escravos, mas era daqui mesmo. Os brancos moravam tudo
perto do centro. As coisas antigamente eram assim, crioulos de um lado e
brancos do outro, né. Antigamente tinha essas coisas, os brancos era tudo
criador de gado, rico. [...]. Ali tudo se chamava Olho D’água, mas depois
mudaram para Cascudo [...]. Mas lá tinha muito crioulo, era cheio de
crioulada, naquele tempo era tipo o cativeiro, a crioulada gostava muito de
andar de pé no chão, quando muito, algum tinha a alpargata. Então,
andando de pé no chão, a sola do pé engrossa tudo, aí então ficou essa
história de Cascudo pra lá e Cascudo pra cá.” [Plinio dos Santos, 2012, 165]

É possível perceber, então uma segregação já existente entre os moradores


da vila, essa diferenciação era ainda agravada pela produção que cada
segmento era responsável, a comunidade negra já se encarregar do plantio
de alimentos para o abastecimento da pequena vila, o status ainda estava
na criação de gado. A comunidade produzia também azeites, peças de
madeira, ainda, as mulheres trabalhavam como lavadeiras, cozinheiras e
empregadas domésticas. Além disso, tia Eva continuava com a sua
produção de doces, que vendia pelas ruas de Campo Grande, além de
continuar seu trabalho de parteira e a vocação de benzedeira, com isso,
adquiriu dinheiro o suficiente para regularizar suas terras, pagou 85 mil réis
para tomar posse de oito hectares de terras devolutas.
A importância de tia Eva pode ser percebida também pelo seu papel dentro
da irmandade por ela formada, foi a partir da indignação com a escravidão
que ela vislumbrou uma forma de salvaguardar os seus. Da mesma forma,
possibilitou uma rede de amparo para esses ex-escravos e seus
descendentes, mesmo na fronteira eles já consumaram esses laços
familiares, como aponta Plinio dos Santos:

“Esses libertos, ao tentarem cruzar os limites do estado de Goiás para o


195
Mato Grosso, foram obrigados a parar em um Posto de Fiscalização5 para
serem cadastrados. Porém, vários desses ex-escravos não possuíam
sobrenomes e precisaram inventá-los. Grupos de homens, consanguíneos
ou não, assumiram certos sobrenomes. Desse modo, surgiram os “Borges”,
os “Custódio”, os “Caetano”, os “Silva”, os “Martins”, os “Souza” e os
“Pinto”. Tia Eva, suas filhas e todas as outras mulheres, mesmo sem laços
consanguíneos, adotaram o sobrenome “de Jesus.” [Plinio, 2012, p. 163]

Para Patricia Hill Collins, uma das dimensões da opressão de mulheres


negras é a forma específica com que o trabalho dessas mulheres será
historicamente explorado para a construção e manutenção do capitalismo.
Essa percepção nos auxilia a compreender porque o pensamento de
mulheres negras ainda é tão subvalorizado pelas lógicas acadêmicas, uma
vez que o mesmo não está articulado nas lógicas padronizadas da academia
branca. O custo para a manutenção da própria vida, sem sucumbir às
violências vivenciadas a partir do trabalho é alto e acaba afastando essas
mulheres dos lugares de privilégio social, como é o caso das instituições de
ensino superior. O pensamento feminista negro, portanto, é resultado da
própria experiência de sobrevivência das mulheres negras e não de
observações externas, apartadas e supostamente neutras.

Ademais, Léila Gonzales e Carlos Hasembalg no livro “Lugar de Negro”


apontam que sempre o papel das mulheres negras na sociedade sempre foi
subalternizado pelo racismo. A historiografia regional não aborda a
importância e pioneirismo dessa mulher, que contribuiu vastamente para a
construção da identidade negra em Campo Grande. No livro “Mulheres
Negras do Brasil” Erico Vital Brasil e Maria Aparecida Schumaher discorrem
sobre a falta de visibilidade concedida a essas mulheres:

”Constatamos que a ausência de registros sobre a participação das afro-


descendentes na formação e no desenvolvimento do Brasil é gritante. Com
exceção dos escritos sobre o sistema escravocrata e, por vezes, uma ou
outra alusão ao mito Chica da Silva, não se encontraram muitas outras
referências e informações sobre as mulheres negras em nossos museus,
currículos escolares, livros didáticos e/ou narrativas oficiais.” [SCHUMAHER
e BRAZIL, 2007, p. 9].

Além disso, a história oficial por muitas vezes negligencia os povos de


tradição oral, que constituem sua identidade cultural por meio da memória.
Dentro desse contexto, os patrimônios materiais e imateriais adquirem
extrema força simbólica (Carvalho; Funari, p.11) a partir dessa análise,
pode-se abstrair uma perspectiva acerca da importância das histórias
contadas dentro da comunidade quilombola, assim como a vitalidade da
Igrejinha de São Benedito e da festa dedicada ao santo negro.
Possibilidade de ensinar a história a partir da comunidade negra e
de tia Eva
As possibilidade de ensinar história por outras vozes, dissonantes da
historiografia tradicional apresenta a abordagem da história das mulheres
negras e ‘tia Eva’ como expoente nas aulas de história em Mato Grosso do
Sul. Com isso, entre as diferentes ações didáticas da História pode-se
utilizar a memória da comunidade quilombola, bem como da investigação
sobre a importância da comunidade quilombola para os grupos subalternos.
196
Pode-se partir do reconhecimento histórico da comunidade, bem como da
representação cultural da comunidade e da própria ‘ Tia Eva’.

A complexidade da abordagem sobre o patrimônio cultural e sobre a


memória na aula de história tem sensibilizado diferentes fundamentações,
estudos e narrativas. Ao abordar o patrimônio cultural, emerge
primeiramente a informação clássica de que este é “o conjunto de
monumentos e edifícios antigos, ou seja, ao chamado Patrimônio Edificado
ou Arquitetônico constituído de bens imóveis”. Mas, ao problematizar sua
utilização na aula de história da Educação Básica, pretende-se aprofundar e
ampliar as noções acerca dos costumes, tradições, sensibilidade para
valorização dos bens, identidades e fundamentar a consciência
preservacionista em todos os âmbitos.

A problematização da representação de “tia Eva’, que ainda hoje tem


diferentes concepções na sociedade encaminha a análise sobre a discussão
em sala de aula, seja no Ensino Fundamental ou Ensino Médio sobre a
História e Cultura africana e afro brasileira. Com isso, propõe-se iniciar as
indagações sobre a representação e importância cultural de Tia Eva, uma
questão emblemática: Por que em 2018, a escultura de Tia Eva que fica na
frente da Igreja São Benedito( comunidade quilombola Tia Eva) foi
depredada, sendo jogado tinta branca nela? O que isso representa
culturalmente aos quilombolas?

Essas questões impulsionam o ‘olhar’ a investigação histórica sobre o


cotidiano e a representação da comunidade quilombola, que teve a frente a
mulher, negra, ex escrava, conhecida como Tia Eva.

(fonte: imagem 01 jornal Campo Grande News, 2018. Imagem 02: foto
arquivo pessoal)

Referências
Francisca Kessione Mendonça Bezerra, graduanda do curso de História –
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campo Grande/MS –
kessy715@gmail.com
Jaqueline Zarbato é professora doutora do curso de História da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul

BARROS, Abílio L. de. 1999. “Crônicas de uma vila centenária”. In: Campo
Grande: 100 anos de construção. Campo Grande/MS: Matriz Editora.
197
CARVALHO, Aline Vieira; FUNARI, Pedro Paulo. Memória e Patrimônio:
diversidade e identidades. Revista Memória em Rede. UFPEL, 2010.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento,
consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias.
1º edição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
GONZALES, Lelia; HALSENBALG, Carlos. Lugar de negro (Coleção 2 pontos).
Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1982.
MACHADO, Myleide Meneses de Oliveira. Comunidade Tia Eva: Bairro de
Negros e herança de fé. UFGD, 2019.
PLÍNIO DOS SANTOS, Carlos Alexandre Barbosa. Fiéis descendentes: redes
– irmandades na pós-abolição entre as comunidades negras rurais sul-
mato-grossenses. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2014.
PLÍNIO DOS SANTOS, Carlos Alexandre Barbosa. Eva Maria de Jesus (tia
Eva) Memórias de uma comunidade negra. In: Anuário Antropológico, 2012,
p. 155-181. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/317
QUEIROZ, Paulo R. Cimó. Mato Grosso/Mato Grosso do Sul: divisionismo e
identidades (um breve ensaio). Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 10, n. 2, p. 149-
184, 2006.
SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Erico Vital. Mulheres negras do Brasil.
Redeh Rede de Desenvolvimento Humano, 2006.
EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: UM DEBATE A PARTIR
DOS ESTUDOS DE GÊNERO
Georgiane Garabely Heil Vázquez

Notas Preliminares
Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi (2015) ao refletirem sobre entre o
198 ensino de história e as questões de gênero na historiografia brasileira
mapeiam como, em diferentes tempos e sociedades, as mulheres e
populações LGBTs foram deixadas à margem do olhar de historiadores. Ao
dialogar com os textos de Joan Scott (1990), Colling e Tedeschi (2015)
traçam conceitos gerais ao que compreendem como Estudos de Gênero:

“Gênero tem sido o termo utilizado para teorizar a diferença sexual,


questionando os papéis sociais destinados às mulheres e aos homens. A
categoria de gênero não se constitui numa diferença universal, mas permite
entender a construção e a organização social da diferença sexual. A história
das mulheres e a história de gênero estão interligadas, sendo que o gênero
se situa no campo relacional, porque só se concebe mulheres se elas forem
definidas em relação aos homens” (Colling; Tedeschi, 2015, p 299).

Nesse sentido, pode-se afirmar que, o espaço escolar, como instituição


social, é também marcado por relações de poder que podem gerar ou
perpetuar desigualdades de gênero. Sendo assim, se a escola e até mesmo
o ensino da história têm sido historicamente um lugar de demarcação
sexual de ocultação das diferenças, é necessário problematiza-los e inserir
nas práticas de ensino estratégias capazes de articular história estudos de
gênero e equidade sexual.

Cláudia Vianna e Sandra Unbehaum (2016) procuram traçar um breve


panorama do processo de inserção do gênero nas políticas educacionais
brasileiras. Nesse percurso, as autoras encontram as pesquisas de Yara
Sayão (1997) que afirma que já na década de 1920 havia registros de
propostas de inclusão de educação sexual nas escolas públicas, e mesmo
durante o período de ditadura militar existiram propostas de implantação de
educação sexual obrigatória nas escolas, mas que foram arquivadas.

Já no fim do século XX, com o fortalecimento dos movimentos feministas, o


surgimento da AIDS nos anos de 1980, a intensificação de vários meios de
comunicação que, em alguma medida, estimulavam o debate sobre direitos
sexuais e reprodutivos, bem como o fortalecimento do movimento de gays,
lésbicas e população Trans, a escola foi também se abrindo de maneira
mais constante e rápida para as temáticas de gênero.

Nesse novo contexto, foram lançados em 1997 os Parâmetros Curriculares


Nacionais (PCN), pelo Ministério da Educação. Os PCNs acabaram por
introduzir de maneira oficial no currículo de todas as escolas brasileiras a
educação sexual e, com ela, em algum grau o debate sobre gênero e
diversidade.
Depois disso, já no início do século XXI e com governos ditos progressistas,
tivemos outras legislações e incentivos aos Estudos de Gênero. A própria
“Lei Maria da Penha”, sancionada em 2006, prevê em um de seus artigos a
obrigação de escolas e outras instituições de ensino em trabalhar com a
igualdade de gênero para combater a violência contra mulheres.

Contudo, o caminho que já parecia trilhado sofreu forte revés. Começaram 199
a surgir uma série de ataques aos Estudos de Gênero e em especial seu
debate nas escolas e universidades. Problematizar essa questão é
apresentar uma possibilidade de estratégia para burlar o isolamento das
pesquisas universitárias e comunicar-se efetivamente com a sociedade em
geral é o objetivo central desse texto.

Relatando uma dor


21 de novembro de 2017. Liguei o computador em busca de notícias sobre
a política nacional e a economia, tendo em vista o recente processo do
golpe de 2016. O Brasil vivia uma abrupta mudança de direcionamento nas
políticas sociais, concepções econômicas e, também, uma espécie de
“guerra de narrativas” sobre os rumos corretos para a Nação. Todavia, a
notícia que ressaltava em diferentes sites de internet e principalmente nas
redes sociais vinha da Bahia e se relacionava ao ensino superior.

Em novembro de 2017 diversas/os professoras/es universitárias/os e


pesquisadores foram surpreendidos pela notícia que docentes da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) estavam sendo ameaçados, inclusive
de morte, por pesquisas vinculadas aos estudos de gênero e sexualidade.
Além disso, a defesa de uma dissertação de mestrado na referida
universidade precisou de reforço policial para que pudesse ocorrer. Segundo
Joana Pedro (2011), a Universidade Federal da Bahia é uma das instituições
brasileiras mais relevantes nas pesquisas sobre gênero e sexualidade,
chegando, inclusive, a possuir o único curso brasileiro de Bacharelado em
Estudos de Gênero e Diversidade até o momento.

Toda essa situação de ameaças levou ao então Reitor da UFBA, João Carlos
Salles, divulgar uma monção de repúdio contra tais ataques ao corpo
docente e discente da instituição. Além disso, os docentes foram orientados
a prestar queixa judicial referente às ameaças. Toda a comunidade científica
brasileira vinculada ao campo das humanidades assistia atônita aos
acontecimentos da UFBA. E foram tais acontecimentos que motivaram-me a
escrever sobre estudos de gênero para um portal/ site de internet em busca
de ampla divulgação. Assim, problematiza-se neste texto a experiência de
história pública não exatamente por opção teórica ou metodológica, mas
como uma forma de divulgação de conhecimento científico (num primeiro
momento), motivada por ataques ao campo de estudos e pesquisas em
gênero.

Situações como as narradas acima demonstravam cada vez mais que os


Estudos de Gênero estavam- e creio que ainda estejam- sobre forte ataque.
Esses ataques vinham principalmente de setores autodeclarados
“conservadores”, que poderiam ou não estar vinculados à diversos grupos
religiosos. No caso específico da UFBA um dos temores anunciados pelos
grupos conservadores era a imposição de mudança sexual para crianças e
adolescentes, ou seja, muitos acreditavam que os estudos de gêneros eram
responsáveis pelo incentivo à homossexualidade ou mesmo ao estímulo
sexual precoce para crianças e adolescentes.

200
Esses ataques acabaram tirando as pesquisas de gênero desenvolvidas no
interior das Universidades e as levando para o espaço público, onde o
debate é muito mais heterogêneo e, até por isso, mais complexo. No
mesmo ano de 2017, Toni Reis e Edla Eggert (2017) publicaram um artigo
na Revista Educação e Sociedade, debatendo sobre o boicote e ataques que
os estudos de gênero vinham sofrendo no campo educacional, em especial,
analisam o Plano Nacional e Planos Estaduais e Municipais de Educação,
verificando o acalorado debate contra a inclusão do termo gênero em
diferentes Planos Educacionais. Esse artigo ja denunciava que o campo de
pesquisa em gênero estava sob ameaça.

Não havia mais a possibilidade de seguir com pesquisas em gênero no


isolamento universitário. Seguramente era necessário romper as barreiras
dos muros das universidades e dialogar com a comunidade de maneira mais
ampla. Desta forma, minhas ambições de história pública em fins de 2017
foram possibilitar, em alguma medida, o debate acadêmico-social sobre as
tais questões. Foi, portanto, uma resposta a demanda social na tentativa de
se fazer compreender. Em outras palavras: um tentativa de divulgação de
conhecimento científico e, neste ponto, deixo claro minha concepção sobre
a própria história pública.

Juniele Almeida e Marta Rovai (2013) argumentam que a História Pública


deveria ser vista como uma possibilidade de se ampliar e difundir o
conhecimento histórico. Nesse sentido, a ideia de “amplas audiências” como
as possibilitadas por meio de televisão, rádio, jornais, organizações não
governamentais e a própria internet poderiam ser sistematicamente
utilizadas para o fazer histórico bem como para a divulgação de tais
conhecimentos. Essa concepção extrapolava as tradicionais maneiras de
publicização do conhecimento histórico e historiográfico, tradicionalmente
feito por meio de textos acadêmicos, publicações em revistas especializadas
e com circulação mais restrita e até mesmo espaços tradicionais de história
como museus e centros de memória. Ainda segundo Almeida e Rovai
(2011) deve-se ter claro que a História Pública não é apenas ensinar e
divulgar certo conhecimento por meio da popularização do saber histórico,
mas, também possibilitar a interdisciplinaridade e a integração de diversos
recursos, sejam eles técnicos e ou metodológicos.

Nesse texto procuro compreender a História Pública em sua complexidade,


mas delimitando-a principalmente como uma nova forma de construção do
conhecimento história e como uma espécie de ponte entre o saber
construído na academia e a popularização de tal conhecimento. Nesse
caminho de busca procurei articular um espaço de ampla divulgação mas
que não se limitasse apenas a ideia de rede social pessoal. Meu intuito foi
de articular a ampla circulação ao debate acadêmico ao qual estava
adaptada desde o início de minha formação e, por essas questões, entrei
em contato com o portal “Café História”.

Café História: História feita com cliques


O historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho (2016) informa que o site Café
História surgiu em 18 de janeiro de 2008, a partir de iniciativa pessoal dele.
Tal historiador, atualmente professor da Universidade de Brasília (UNB), é 201
também criador e editor do site Café História e o denomina como uma “rede
social para historiadores na internet". Carvalho argumenta que esse
projeto buscou articular sua dupla formação, de um lado a história e de
outro a comunicação. Tal empreitada foi, portanto, uma demanda pessoal e
que não contou com investimento de terceiros ou patrocínio externo. Ainda
segundo Carvalho existia no início do século XXI uma lacuna na divulgação
e popularização do saber histórico no Brasil. Para ele, outras redes sociais,
blogs, foruns virtuais ou mesmo grupos de e-mails que existiam no período
já não davam conta da especificidade da história e da necessidade de sua
divulgação.

Pelos números fornecidos por Bruno Leal Pastor de Carvalho (2016) pode-se
afirmar que o projeto de divulgação do conhecimento histórico acertou em
suas escolhas. Segundo Carvalho o Café História recebe, em média de 3 a 5
mil acessos únicos por dia. Possui visitantes não apenas do Brasil, mas
também de outros países da América Latina como Argentina, Paraguai,
México, Colômbia e Chile. Além disso, foi possível verificar acesso de países
como Angola, Espanha, Portugal, Estados Unidos, entre outros. Sabendo do
sucesso que Café História representava na comunidade de historiadoras/es
optei por iniciar um diálogo com o editor, professor Bruno Leal Pastor
Carvalho, e publicar um texto de divulgação de conhecimento histórico
sobre gênero, um texto que articulasse em alguma medida os campos de
História Pública e de gênero.

Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gênero


Estabeleci contato com professor e editor Bruno Leal Pastor de Carvalho via
rede social Facebook. Desde o primeiro momento, acolheu muito bem
minha proposta de escrever um texto sobre estudos de gênero naquele
momento, ou seja, na mesma semana em que tomamos conhecimento das
ameaças contra pesquisadoras/es da Universidade Federal da Bahia.
Todavia, antes da entrega do texto, tivemos algumas conversas e me foram
repassadas ponderações e orientações.

Recorro aqui ao artefato da memória para, em alguma medida, resignificar


aquelas conversas em fins de 2017, ora acadêmicas, ora de amizade e
preocupação. Nesse ponto, me amparo nas reflexões de Beatriz Sarlo
(1997) quando faz significativas considerações sobre a memória como um
bem comum e a respeito do discurso narrativo que é emitido a partir dela.
Desta forma, apresento aqui a “narrativa possível” realizada via memória
sobre a conversa que resultou no texto publicado no Café História. Como
apontado por Sarlo, sabe-se que as narrativas, por mais verdadeiras que se
pretendam, são sempre permeadas de singularidades, de lacunas e
reconstruções feitas a partir da memória e acionadas de diferentes
maneiras, seja por meio de uma entrevista ou, como é o caso, pela
necessidade deliberada de rememorar para produzir uma reflexão
acadêmica sobre a conversa passada. Desta forma, e seguindo as
ponderações de Sarlo sobre a memória, não pretendo oferecer uma
narrativa com núcleo inquestionável de verdade, tendo em vista a
complexidade das teias das lembranças.
202
A primeira ponderação que o editor do Café História me fez foi: “Você
precisa ter clareza do impacto que seu texto pode causar, principalmente
num momento como esse”. E seguindo a isso, complementou: “É possível
que venham a sofrer algum tipo de ataque virtual. Você está preparada?”.
Nesse ponto, o editor me alertou para não responder comentários com
ataques e que tais comentários, se surgissem, seriam excluídos do Café
História. Também alertou que deveria ficar atenta em minhas redes sociais
para apagar qualquer tipo de ataque e não respondê-los.

Outro ponto interessante foi a necessidade de uma adaptação metodológica


de comunicação e de linguagem. Nas instruções passadas pelo editor, havia
uma limitação severa quando ao número de páginas – no máximo três ou
quatro-, também havia limitação quanto ao uso de notas e até quanto a
quantidade de referências bibliográficas – máximo de cinco. Era um modelo
de texto sobre gênero que eu nunca havia escrito.

Outra dificuldade foi estabelecer no texto um equilíbrio entre linguagens.


Era evidente que não se tratava de um texto exclusivamente acadêmico,
mas também não poderia ser um manifesto, ou um texto panfletário. Esse
equilíbrio entre o conhecimento universitário, seus ritos e normas e a
divulgação em larga escala de tal conhecimento foram um jogo tenso no
processo de redação do texto para o Café História.

Como estratégia optou-se por usar “palavras-links”, ou seja, palavras e


expressões que, ao se clicar nelas, remetiam a outros textos ou
reportagens. Já no inicio do texto publicado no Café História mencionei
sobre manifestações violentas contra os estudos de gêneros e ao se clicar
em “manifestações violentas”, que estava destacado com outra cor de
letras, o leitor era direcionado para reportagens tratando do ocorrido na
Universidade Federal da Bahia.

A dinâmica dos acontecimentos era frenética e no meu entender, o texto


precisa ser publicado já nos dias seguintes as notícias de ameaças vindas
da Bahia. Tendo em vista que o objetivo inicial dessa experiência com
História Pública era de estabelecer “uma ponte” entre a universidade e a
sociedade em geral, o texto deveria ser claro e didático, ou seja, explicar de
maneira objetiva a que se dedicavam, de modo geral, as pesquisas em
gênero. Para apresentar Scott e Butler ao grande público o texto foi:

“Scott aponta, de maneira muito interessante, para um dos eixos mais


polêmicos que os Estudos de Gênero enfrentam hoje no Brasil. Não se trata
de negar as diferenças sexuais e corporais entre homens e mulheres, mas
de compreendê-las não como naturais e determinadas, mas como relações
sociais e de poder, que produziram hierarquias e dominação. Para Scott,
gênero é a organização social das diferenças sexuais. É um saber que
estabelece significados para as diferenças corporais. (...) Para Judith Butler,
a ideia de performatividade de gênero compreende a noção de que sexo e
gênero são discursivamente criados e que, ao se desnaturalizar o sexo,
deve-se também desnaturalizar o gênero. Portanto, não se trata de negar a
existência de sexo ou de gênero, mas de historicizar tais diferenças, 203
procurando analisar as estratégias discursivas que as consolidaram. Nesse
ponto, a meu ver, encontra-se uma das contribuições mais significativas da
obra de Judith Butler: dar visibilidade ao fato de que existem corpos que
“importam” – corpos enquadrados no sistema heteronormativo – e corpos
que “não importam” – o que a autora chama de corpos abjetos. (grifos na
publicação original)”(Vázquez, 2017).

E, por fim, para ser um texto efetivamente explicativo direcionado ao


grande público, direcionei as considerações finais para formular uma
listagem simplificada de algumas das áreas temáticas dos Estudos de
Gênero:

“Os Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo modificar a


sexualidade de ninguém (...) Nunca defenderam pedofilia ou incentivaram a
erotização infantil. Nunca foram “ideologia”.(...) Pesquisas sobre
sexualidades existem dentro dos Estudos de Gênero, porém – e parece ser
necessário repetir – não se trata de conspirar para mudar a orientação
sexual de ninguém.(...)Também são temas dentro dos Estudos de Gênero:
a maternidade, os sentimentos, a religiosidade, a assistência, a participação
política, os racismos, as interseccionalidades e o próprio movimento
feminista, isso só para citar algumas poucas áreas. Não existe ideologia de
gênero! E se os Estudos de Gênero puderem impactar de forma
transformadora em nossa sociedade, será na construção de um mundo mais
justo e igualitário( grifo no original) (Vázquez, 2017).

Considerações Finais
O texto foi publicado em 27 de novembro de 2017, ou seja, seis dias após a
vinculação pela imprensa dos acontecimentos na UFBA.

Conforme alertado do Bruno Leal Pastor de Carvalho, a repercussão foi


ampla. Foram vários compartilhamentos em diferentes redes sociais e
grupos do aplicativo para celular whatsapp. Por conta da diversidade de
compartilhamentos não é possível ter a exatidão de quantas pessoas
tiveram acesso ao texto via Facebook e whatsapp, mas, conforme
informado pelo editor do site, o texto “Gênero não é ideologia: explicando
os Estudos de Gênero” teve, até abril de 2020, 34.514 acessos apenas via
Café História, com tempo médio de permanência na página de 7 minutos e
5 segundo.

Também foi possível mapear as cidades que mais acessaram o texto, sendo
elas, por ordem: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e
Brasília. Além disso, o texto também foi republicado por diversos outros
sites, com a condição de manter a citação original do Café História,
chegando até mesmo a ser traduzido para o espanhol.

Concluo, portanto, que, para além das dificuldades e adaptações


necessárias para se pensar a História Pública e iniciar esse processo mais
amplo de divulgação do conhecimento histórico, é fundamental esse
204
"exercício" historiográfico. Repensar linguagens, metodologias, impacto e
suporte de divulgação se constituem tarefas fundamentais para maior
interação entre universidade e sociedade.

Referências
Geordiane Garabely Heil Vázques é doutora em História pela UFPR e
professora do curso de História da UEPG.

ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. História pública: entre as “políticas


públicas” e os “públicos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de
História. Conhecimento Histórico e Diálogo social. ANPUH Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2013
CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet:
elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de
História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016.
COLLING, Ana Maria. TEDESCHI, Losandro A. História e Perspectivas,
Uberlândia (53): 295-314, jan./jun. 2015
PEDRO, Joana. Relações de Gênero como categoria transversal na
historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 270-
283.
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída
sobre os planos de educação brasileiros. Educação e . Sociedade.
Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva.
São Paulo: Cia das Letras, 1997.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista
Educação e Realidade. v.lS, n.2, jul./dez. 1990
VÁZQUEZ, Georgiane Garabel Heil. Gênero não é ideologia: explicando os
Estudos de Gênero ( Artigo) In: Café História – história feita com cliques.
Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-
genero/. Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso: 10 de abril de 2020
VIANNA, Claudia. Et all. Gênero e Educação: Fortalecendo uma agenda para
as políticas educacionais. São Paulo: Ação Educativa, Fundação Carlos
Chagas, 2016.
UM CORPO AGENTE MALÍGNO EM ERÁRIO MINERAL DE LUÍS
GOMES FERREIRA: CONCEPÇÕES MÉDICAS ACERCA DA
MENSTRUAÇÃO FEMININA NO SÉCULO XVIII
Gessica de Brito Bueno e Christian Fausto Moraes dos Santos

Desde a Antiguidade até o século XVIII a menstruação foi considerada um


excremento impuro se enquadrando na Teoria Humoral Hipocrático- 205
Galênica. A medicina, por meio de seu conhecimento teórico, empírico,
intervenções terapêuticas e semiologia médica, assumiu o domínio sobre os
corpos, especificamente o corpo feminino, dado que esse corpo, em
meandros do setecentos, ainda era considerado pelo cânone médico como
“débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça” (DEL PRIORE, 1993, p. 151).
No manual de medicina Erário Mineral (1735) de Luís Gomes Ferreira é
possível analisar em seus relatos a interpretação que o cirurgião-barbeiro
concebe à menstruação, um fluído venenoso que causa danos terríveis, uma
vez que, pautava-se em teses e superstições acerca do útero,
estigmatizando e qualificando a mulher segundo sua constituição biológica.

A complexa construção de uma medicina brasileira no século XVIII:


o sangue catamenial e sua relação com a Teoria Humoral
A lógica que enquadra a menstruação na Teoria Humoral Hipocrática-
Galênica pode ser investigada na fonte documental Erário Mineral quando se
percebe o complexo e conflituoso processo de construção da medicina
desde a Antiguidade até, em especial, no século XVIII.

Ao se considerar que o período setecentista foi, particularmente,


ambientado por diversas “ciências”, permeado por diferentes discussões
acerca da vida e da saúde, onde tanto líderes religiosos, doutores, quanto a
população buscavam depositar sua crença em teorias que pudessem reger
suas vidas, é possível aferir sobre o quanto o conceito de medicina naquele
contexto poderia ser diverso (COELHO, 2002, p. 168). Ao assinalar tal
configuração, retomar períodos anteriores darão margem para apontar
alguns cenários que contribuíram para que a medicina interpretasse a
menstruação como um líquido mortífero.

Desde o contexto medievo havia uma confusão no propósito de acolhimento


nos chamados “edifícios para abrigar”, decorrendo de uma ausência de
distinção entre o que seria um hospital, uma albergueria ou um manicômio
(LABARGE, 1996). Assim, eram “simultaneamente uma e outra coisa” (SÁ,
1996, p. 88). A reputada medicina da antiguidade anunciou em seu tempo o
autor da Teoria dos Humores, um médico grego chamado Hipócrates, onde
seus princípios terapêuticos seriam apropriados pelo médico grego Galeno
e, posteriormente, pelo médico polímata Avicena, no período medievo.
Ulteriormente no século XVIII, essa terapêutica seria o cerne para o estudo
e tratamento de doenças (COELHO,2002, p. 156).

Na Idade média a construção do saber no campo da medicina envolvia, para


além disso, uma mistura de saberes que abarcavam outras esferas, como a
prática astrológica, não sendo integralmente proibida, mas somente quando
utilizada pelos matemáticos do oriente. Essas práticas tinham o mesmo
peso de legitimidade que os Tratados médicos produzidos pelos letrados do
período. Ademais, no século XVIII, a presença de manuais de medicina
instrucionais seria constante no interior da malha social e psicológica na
colônia mineira (ABREU, 2011, p. 14), servindo-se de consulta tanto pelos
médicos quanto pelo público leigo, sendo manuseado com a finalidade de
206
instrução da vida, sobretudo da saúde.

Almanaques chamados Lunários Perpétuos exerciam um papel salutar na


condução da vida dos indivíduos na colônia mineira no setecentos, seus
diagnósticos eram como uma sentença quase definitiva, quem os elaborou
seguia fenômenos da própria natureza, ensinando sobre ciência, remédios,
cura de doenças e sobre a menstruação das mulheres (FIGUEIRÊDO, 2014,
p. 26). Havia também o uso recorrente de manuais de exorcismo, sob os
domínios da religião, onde o ato de exorcizar buscava curar as pessoas de
uma moléstia de feitiçaria (ibidem, 2011).

Na América portuguesa, a terapêutica africana contribuiu para resolver


problemas médicos no século XVIII com seus produtos da África Centro-
Ocidental, um aspecto significativo para a formulação da farmacopeia
europeia (FAGUNDES, 2017). Os conhecimentos advindos dos ameríndios
também podem ser encontrados nessa composição farmacêutica, pois,
embora submetidos aos tratamentos galênicos praticados pelos jesuítas,
estavam apoiados na flora brasileira para a cura de doenças endêmicas e
saúde em geral (DEL PRIORE, 2004).

A medicina portuguesa oficial, dita erudita, que tentava interpretar os


domínios do corpo, estava, pois, se afastando de compreender seu
funcionamento interno. Em sua totalidade anatômica, negava práticas de
cura ilegais, embora as incorporando, e pautava-se em seu diagnóstico de
doenças prioritariamente no esvaziamento do excesso e acúmulo de humor
que a pessoa apresentava quando estava enferma, pois a Teoria Humoral
se baseava em equilibrar perturbações internas chamadas de humores,
sendo eles quatro, o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra
(COELHO, 2002).

Segundo Porter e Vigarello (2008, p. 443) “Não é aberrante fazer do


“estado” dos fluídos, indícios do “estado” do corpo”. Ou seja, a comparação
da menstruação como excremento ou fluído venenoso, dado o mistério no
interior dos corpos, levando em consideração que o diagnóstico pela
observação inspecionava mais os líquidos do que os sólidos, levava a
menstruação regular das mulheres a serem interpretadas como resultado
de um desequilíbrio interno constante. A menstruação seria encarada como
um excesso e desequilíbrio humoral constante, produzido pelo aparelho
reprodutor feminino, uma doença exclusiva da mulher.

O corpo feminino como “Receptáculo Maligno” no discurso médico,


moral e religioso no setecentos
O corpo sempre esteve sob o domínio do discurso médico e,
prioritariamente, do religioso, sendo este referência inalterável para os
religiosos, relembrando-o como sacrifício pela redenção da humanidade
(GÉLIS, 2008, p. 19). Mas, existe uma outra imagem do corpo que deve ser
evidenciada, o corpo humano, cujo pecado o persegue desde seu
nascimento. Nisto, para que ninguém se desviasse dos caminhos morais, a
igreja estabeleceu diversas medidas coercitivas para o controle do corpo, e
quem mais se maleficiou com esses regulamentos foram as mulheres.
207
O aparelho reprodutor feminino foi empregado pela igreja para controlá-las,
sob o aspecto do casamento e da maternidade, pois, assim, poderia ditar
seus passos (SILVA, 2019, p. 149), de modo que a investigação de seu
útero estava vinculada permanentemente sobre sua natureza maternal,
cujo destino estava reservado à todas. A menstruação seria designada
como um sangue limpo se constituísse a vida, caso contrário assumiria
como secreção suja, não servindo para nada, a não ser como causadora de
moléstias (LEAL, 1995, p. 27). A medicina atribuiu à menstruação um
fenômeno similar a uma doença, causada pelo desequilíbrio dos humores.
Esse corpo feminino, frágil e imperfeito, estando aberto e propício a
diversas influências do mau que há no meio externo, invisíveis aos olhos,
torna-se um objeto que incorpora mais facilmente a corrupção dos humores
(BARREIROS, 2014, p. 46).

Doenças físicas
A mulher seria controlada e dominada pelo útero e seus instintos mais
perversos, uma vez que, as teorias engendradas no furor uterino,
juntamente com a proliferação de imagens sobre sua natureza perversa, já
estavam possuindo comprovação científica. Ademais, seus desejos e
prazeres sexuais seriam foco de atenção nos tratados médicos. O útero
como protagonista da infâmia das desreguladas, as direcionariam no
caminho da ninfomania, aparentemente, ocorrendo com menor frequência
que a histeria, mas acompanhada dela como um de seus sintomas (Ibidem,
2004).

A concepção de que o corpo feminino é um agente maligno, embora coibido


de dar à luz a uma vida, segundo o cirurgião Luís Gomes Ferreira (2002)
está no fato de que sua estrutura física e, mais precisamente, seu
organismo produzem um líquido nocivo, no qual as mulheres o utilizam para
enfeitiçar os homens, dando-lhes de beber ou por simples contato, por
objetivo conquistá-lo. No entanto, acaba por deixá-los “tontos, loucos,
furiosos e os mata, porque é tal o veneno e maldade do dito sangue que,
até nas coisas insensíveis, faz tais estragos e efeitos tão
lamentáveis”(ibidem, 2002, p. 423), levando a acreditar que a mulher não
teria boas intenções e índole virtuosa justamente por propiciar, por
intermédio de seu corpo, um sangue tão danoso, no qual é letal à sua
própria saúde física e mental quanto a do homem, que por engano viesse a
cometer tal erro.

Quando ocorriam mortes em que um homem falecia e não se encontrava a


causa, muitas opiniões, seja médica ou de cunho popular, reforçavam a
presença de feitiços feitos por mulheres que se utilizavam de seu sangue
menstrual. Logo, as opiniões populares do período estavam banhadas de
superstições que, à época, tinham caráter de factualidade. Assim como, a
mesma noção iria permear sobre o imaginário médico do setecentos.

Ilustração do anatomista Johann Remmelin, 1619, Universidade de Lowa.

208

Fonte: https://publicdomainreview.org/collection/remmelin-s-anatomical-
flap-book-1667

Doenças mentais
A revolução burguesa do século XVIII apregoaria a igualdade, mas que
jamais se concretizaria. No entanto, alicercearia uma nova ordem social,
dentro de um ideário onde passaria a controlar o cotidiano dos indivíduos,
seus gestos e pensamentos. A sociedade burguesa irá se munir de
instrumentos de coerção, aliada ao fenômeno da medicalização na
medicina, transferirá seu pensamento “preventivo” sobre o que poderia vir
a ser ou contrair, em relação aos corpos, para o imaginário social, que
incorporará um senso de higienização e moral, cerceando, quiçá eliminando,
a partir de então, toda a autonomia da mulher (VIGARELLO, 2008).

Foi, pois, uma cultura masculina que procurou construir uma leitura do
comportamento da mulher, seja interpretando-a no que diz respeito ao seu
corpo e seu psicológico, seja concebendo modelos morais de conduta, as
medidas coercitivas sobre seu corpo as levariam a se enquadrar numa
condição de espécie fraca e de mente desequilibrada, de modo que a
sociedade alimentaria uma hostilidade em relação a tudo o que a mulher e
seu corpo estivesse envolvido. O sangue menstrual, por sua vez, foi
relacionado a uma gama de estigmas, o corpo da mulher passou a ser
encarado como “um animal voraz e feroz” (ibidem, 2019, p. 149) e devido a
esse corpo, ao mesmo tempo frágil e inquieto, seria mais propenso a
desenvolver transtornos mentais (ibidem, 2004, p. 333).

O comportamento das mulheres quando não lhe vinham a conjunção era,


muitas vezes, associado à histeria, uma vez que o sangue menstrual acaba
por assumir o protagonismo sobre diversas moléstias, o fluído poderia
causar doenças tanto nela quanto em quem entrasse em contato com seu 209
excremento venenoso. Elucida-se uma leitura religiosa, em que a medicina
se ampara, ao visualizar seu corpo como um veículo que incorpora o mau,
senão, é o próprio mau, e é a intermediária da histeria (BOLLAS, 2000).“A
noção de repulsa, de perigo e de evitação” em relação ao sangue menstrual
ou a mulher nesse estado está ligado a crença de que esse fluído
catamenial é “simbolicamente potente, poderoso, forte, fértil”, temendo os
homens de se tornarem impotentes e loucos (LEAL, 1995, p. 26).

Se o prelúdio é o útero, logo a mulher teria mais propensão a contrair


diversas doenças, principalmente transtornos mentais, mas o fato é que
muitas das vezes seu corpo, sua sexualidade é colocada em pauta para
identificar patologias, uma vez que já eram consideradas, por natureza,
inclinadas a desenvolver perturbações mentais pelo indecifrável
funcionamento do seu organismo, como também pelos seus atos
libidinosos, e esses, quando se desconfiava que havia, eram reprimidos e
qualquer que fosse seus desejos e ânsias. E em meio a esse ambiente, o
procedimento padrão para identificação da histeria, tal como a ninfomania,
seria perceber se uma pessoa, prioritariamente mulher, estava
demonstrando inquietação com o corpo, fazendo uso racional do sexo e
demonstrando ter orgasmos com muita frequência (Ibidem, 2004).

O aspecto significativo é que a transgressão pela sexualidade estaria


atrelada a essas curiosidades por parte da mulher, ela, por sua vez, seria
fortemente reprimida por sua intromissão naquilo que já estava sendo
teorizado pelos médicos sobre seu corpo, medidas essas coercitivas que
segundo Matthews-Grieco (2008) alienariam mentes, tanto de mulheres
como de homens, onde Sigmund Freud diria mais tarde que “o prazer
sexual seria incompatível com a sociedade civilizada” (Ibidem, 2008, p.
219), ou pelo menos, forçosamente civilizada.

Conclusão
O aparelho genital da mulher, tinha, então, forte domínio sobre o estado
mental das mulheres, seu corpo é um teatro de expressões e
manifestações, numa linguagem onde poderia denunciar as suas
fragilidades. As mulheres teriam de enfrentar dúvidas sobre seu próprio
corpo e, infelizmente, admitir que era uma doente, diante de uma
sociedade que a forçaria a se sujeitar.

O cirurgião Gomes Ferreira, em seus tratados, tratou de inúmeras doenças


venéreas, e nessas ocasiões sublinhava a necessidade dos homens se
afastarem das “mulheres depravadas”, visto que as associavam a todo tipo
de mau e bruxaria, ora, o português afirma que o sangue menstrual das
mulheres seria capaz de inúmeras vezes arruinar o membro masculino, no
que culminaria no homem uma profunda loucura e falta de juízo (DIAS,
2002, p. 88). Um sangue que parecia possuir uma condição de alteridade,
alojando-se no corpo da mulher, fazendo-a sucumbir a diversas ações
malignas (Ibidem, 1995, p. 22).

É considerável descortinar o véu que escondia o medo coletivo quando o


210
assunto era a histeria e a loucura, e, mais precisamente, tudo que envolvia
a mulher e seu corpo, os autores dos discursos médicos acerca do aparelho
reprodutor feminino e, mais precisamente, da menstruação, eram homens,
e essa categoria tinha medo do que não conhecia (BARREIROS, 2014).
Justificamos a pesquisa aqui apresentada, sob a necessidade de
esquadrinhar como se deu este importante processo em que enquadra a
menstruação a algo relacionado ao mau, de natureza venenosa, e como o
fenômeno da menstruação foi sendo concebido pelo imaginário coletivo e
pela ciência médica no século XVIII.

Referências
Gessica de Brito Bueno é graduada em Artes Visuais e graduanda do curso
de História na Universidade Estadual de Maringá, bolsista PIC.

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VIGARELLO, Georges. História do Corpo: Da Renascença às Luzes – Vol I.
Petrópolis: Editora Vozes, 2008
UMA PONTE ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA E OS MANUAIS
DIDÁTICOS: REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA GUERRA DO
PARAGUAI
Ingrid Taylana Machado

A Guerra do Paraguai, conhecida como o maior conflito armado ocorrido na


212 América Latina, nos possibilita historicizar por vários vieses. Para além, no
presente estudo, tencionamos pensar na guerra com base nos livros
didáticos, desenvolvendo a problemática acerca da representatividade da
mulher. Buscamos a compreensão de como a mulher é apresentada nos
materiais didáticos de 8º ano, em três livros de apoio utilizados por escolas
públicas de ensino básico.

Diferentes discussões foram travadas por historiadores sobre as definições


do que de fato efetivou o levante da Guerra Paraguaia. Anteriormente
concebia seus motivos causais culpados pelo Imperialismo Britânico,
estudado no decorrer de vários anos, com real tensão e única, por supostos
interesses Britânicos, com propensões diretas de financiamento, de fato ao
final da guerra, o Brasil acumulou uma dívida abrangente com a Inglaterra,
após os empréstimos, todavia apesar do suporte monetário, este pensar
caiu por terra.

Após as reformulações dos estudos, o que era antes considerado a causa,


acabou por ser superada. Dando espaço para as motivações ligadas à
geopolítica e questões econômicas, indícios com suporte pautados em
documentos e materiais que permitam este desbravar, assim como coloca o
historiador Francisco Doratioto, as questões da eclosão da Guerra estavam
ligadas a um processo regional, que se tornou o grande causador da guerra.

As motivações estavam intrinsecamente ligadas à disputa de poder,


estabelecer o domínio tanto do meio fluvial como o territorial, a tão
almejada liderança da região platina, após a invasão do Paraguai à
Argentina para chegar à região mato-grossense brasileira, o “Brasil,
Paraguai, Argentina e Uruguai, países vizinhos e posteriores parceiros no
Mercosul, envolveram-se em um sangrento combate ao longo de cinco
anos” [ROCHA, 2014, p.1]. Os três países formaram a Tríplice Aliança para
a guerra travada contra o Paraguai.

O marco inicial da batalha ocorreu com a invasão do exército paraguaio em


solo brasileiro, na região Mato-grossenses. Apesar da duração da guerra ter
se efetivado em longos cinco anos, somente um ano de batalha aconteceu
em solo brasileiro e “(...) por quase 4 anos – no território do Paraguai”
[DORATIOTO, p.2, 2009].

Nas mãos de Francisco Solano Lopez o Paraguai vai a guerra ou de forma


indireta devida à posição que se encontrava, para derrota, preferido morrer
a se render. Desse modo, a temporalidade nos traz várias faces de Solano
Lopez, desde a Guerra até os dias de hoje, estabelecendo a linha tênue do
desiquilibrado inconsequente a herói de uma nação, variando na concepção
de quem vê sua representação, principalmente a partir da população.

Algumas vezes com a grande influência que Solano Lopez estabelecia, era
chamado como colocado por Doratioto a “Guerra de Lopez”, que governava
de forma ditatorial, exercia controle sobre tudo e todos, obviamente,
inclusive sobre a impressa, domínio exclusivo estatal. Toda e qualquer 213
decisão final partia do governante, que cometeu brutalidades durante sua
vida, sem escrúpulos torturou e matou pessoas, inclusive seus próprios
irmãos, trazendo um peso de mortalidades em suas costas enorme.

O Paraguai sobre seu dúbio governo, em 1865, após diversas batalhas em


terra e mar foi ao declínio, levando consigo a economia, e o seu povo ao
chão, cerca de 75% da população fora dizimada, mulheres, homens e
crianças. A atualidade possui um exímio reflexo do seu passado, sangrento
passado.

Ao pensarmos na Guerra, se tratou de uma catástrofe geral, pois todas as


economias dos países envolvidos saíram afligidas drasticamente. Ao fim,
não houve vitoriosos, na realidade o descomunal ganhador foi os prejuízos
causados e a desumanidade vivida, perante todos os ângulos.

Todos obtiveram grande rombo em suas estruturas sociais. “[...] Os


prejuízos que os países envolvidos tiveram foram muito maiores do que os
benefícios. Só a Inglaterra saiu ganhando, e duplamente: recebeu com
juros o dinheiro que havia emprestado [...] e passou a vender seus
produtos ao Paraguai”. [PILETTI; PILETTI; 1989 p. 22].

A mulher e a guerra
A Guerra do Paraguai chegou ao seu fim, como a grande guerra que
aconteceu na América Latina, e a maior no mundo entre a Guerra da
Secessão e a Primeira Guerra Mundial. Mas apesar da sua tamanha
importância, a historiografia somente nos últimos tempos que obteve maior
desenvolvimento em produção de escritos sobre os sujeitos ditos
marginalizados. Antes se apresentava de certo modo vaga, com o passar do
tempo vem se solidificando e progredindo, ainda mais quando tratamos da
mulher.

As mulheres sempre estiveram esquecidas na História, não somente na


representatividade em meio as Guerras, mas nos acontecimentos históricos
como um todo. Falar da representação feminina em qualquer esfera da
estrutura social, apresenta uma tarefa árdua, mas, contudo, fascinante e
produtiva. A partir dessa abertura de novos ares, a História começou a ser
tomou para si uma nova temática. “Não é exagerado dizer que por mais
hesitante que sejam os princípios reais de hoje, tal metodologia implica não
só em uma nova história das mulheres, mas em uma nova história”
[SCOTT, 1989, p. 04].

Apesar da escassez de material sobre a mulher na Guerra do Paraguai,


tanto em escritos como memórias e documentos, trabalhos estão sendo
desenvolvidos cada vez mais, demonstrando efetividade para uma abertura
da representação do feminino. A mulher faz parte da História e deve ser
estudada concomitante aos homens, pois ambos papeis exercidos
estabelecem importância em qualquer acontecimento da estrutura social, a
História não se faz só.

214
Em vários momentos históricos os papeis desempenho pelas mulheres são
deixados de lado, assim como em diversos momentos na Guerra do
Paraguai. Como não assumiu cargos relacionados a uma figura de poder,
não significa que não foi efetiva na História. Esteve o tempo todo dando
estrutura para que ocorresse. O fato de não desenvolver papeis ligados a
liderança ou de frente no poderio armado, não diminui o peso do papel que
desempenhou, como agente histórica.

O estudo respaldado na mulher deve ser trabalhado em sala de aula, dentro


de qualquer acontecimento histórico, a Guerra do Paraguai, não se faz
exceção. A partir do contexto de sala de aula, se torna o principal viés de
desenvolvimento para essas abordagens, possibilita quebrar essa História
tão masculina, a qual presenciamos e molda a estrutura social patriarcal.

O livro didático muitas vezes é usado como material norteador de conteúdo


em sala de aula, pela carência que se encontra o ensino, muitos professores
levam como única fonte histórica. A mulher deve estar obrigatoriamente
representada, em tal material de ensino, “não basta acrescentar a mulher
nos livros de história é preciso repensar o próprio saber histórico” [PINSKY,
2011, p.9].

Como se porta o ensino da História, nos livros didáticos, a partir da


representação da mulher na Guerra do Paraguai. Um cenário de dor e caos,
em que as pessoas tiveram como palco da sua vivencia, “pessoas”, não
somente homens, logo a representação de ambos deve estar evidenciada
no material didático. Havendo mais que a explicitação de todo um contexto,
mas a libertação dessa História vista e feita somente por homens.

Em muitas das instituições de ensino, os docentes tem como sua


metodologia a utilização do livro didático, “[...] planejados, organizados e
produzidos especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo
predominantemente alunos e professores, e que têm a função de transmitir
saberes circunscritos a uma disciplina escolar” [FREITAS, 2009, p.14]. A
problemática gira em torno da utilização de somente dessa única fonte, e
usar essa mesma, como uma verdade absoluta. A representação da mulher
muitas vezes é falha, e como ela não está no livro, não ser trabalhada, se
torna inadmissível. Dentro dessa estrutura desenvolve os problemas, livros
falhos, sobre uma História falha.

A problemática dos livros deve tratar de todos os paralelos constituintes,


em uma temática, sua avaliação para a entrada nas escolas deve ser
meticulosa, pois está vinculada ao âmago de muitas abordagens e
metodologias. Os pressupostos para a análise devem se pautar na minúcia,
“[...] além da identificação dos valores e da ideologia que necessariamente
é portador, é preciso estar atento à outros três aspectos básicos que dele
fazem parte: sua forma, o conteúdo histórico escolar e o seu conteúdo
pedagógico” [BITTENCOURT, 2008 p. 311].

Dentro da concepção que se estabelece a metodologia da presente análise


acerca da representação feminina “pretende-se tratar e analisar as
informações textuais constantes no objeto de pesquisa no caso os livros 215
didáticos buscando uma compreensão crítica dos conteúdos postos a luz dos
objetivos que regeram a pesquisa” [PEREIRA, 2013, p.25].

Possibilitando uma reflexão sobre como está a representação para escolas


públicas, em relação a vida das mulheres que morreram na Guerra, e
aquelas que permaneceram viva após ela. A partir dos livros didáticos,
estabelecendo a problemática entorno da representação do feminino. “O
tipo de pesquisa que utilizado nesse estudo foi a documental tendo em vista
que o livro didático foi tomado enquanto documento e fonte de pesquisa e
não como referência bibliográfica” [PEREIRA, 2013, p.26].

Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado três livros didáticos do


sistema público de ensino dos 8ª anos. Sendo dois produzidos ela editora
Moderna, e o outro editado pela FTD. Identificados e analisados,
processualmente. Levando em consideração o conteúdo estabelecido no
presente problemático.

Partimos da contextualização para a análise do material didático,


percebendo alguns ideais trazidos com ele. “O conhecimento produzido pelo
livro didático é categórico, característica perceptível pelo discurso unitário e
simplificado que se reproduz, sem possibilidade de ser contestado, como
afirmam vários de seus críticos”. [BITTENCOURT, 2008, p.313]. Trazendo
consigo esse instrumento de memória nacional.

O livro didático “vontade de saber História”, para 8º ano. Dentro do


conteúdo e seu contexto que é apresentado da Guerra do Paraguai,
expressado em quatro páginas, esclarece aspectos como o jogo de
interesses, o conflito e mais especificações, vinculadas ao universo de
acontecimentos que desenvolveu na Guerra, de maneira sucinta.

Então traz o tópico “As mulheres na Guerra”, desconstruindo alguns


estereótipos, mostrando aos alunos que a mulher também esteve em
batalha, “A mulheres participaram ativamente da Guerra do Paraguai. Entre
elas havia mães, esposas, comerciantes e escravas”. Sintetizado em três
parágrafos, traz a representação da mulher a Guerra do Paraguai e
mostrando o papel que desempenhou, trazendo a presente citação: “Nas
linhas de atiradores que combatiam encarniçadas, vi [as mulheres] mais de
uma vez aproximar-se dos feridos, rasgarem as saia em ataduras para
estacarem o sangue, montá-los na garupa dos seus cavalos e conduzi-los
no meio de balas” [Dionísio Cerqueira. In: Maria Teresa Garritano Dourado.
Tropas femininas em marcha. Nossa História. São Paulo: Vera Cruz, ano 2,
n. 13, nov. 2004. P.39].
Claramente o livro traz de um modo mais próximo a real configuração que
se estabeleceu na Guerra do Paraguai, qual foi travada por todos,
ampliando as visões sobre a temática, mostrando que os autores do livro,
saíram desse círculo fechado, onde a guerra é feita unicamente por homens
brancos, vista somente a partir de uma elite.

216
Ao lado da descrição textual sobre a mulher na Guerra do Paraguai, o livro
didático, apresenta uma imagem, conforme pode ser vista abaixo na figura
1. Dessa forma, fazendo um paralelo com o contexto que se estabeleceu
nos parágrafos sobre a representação da mulher na guerra. Demonstrando
a mulher no campo de batalha, vestida a caráter segurando e honrando a
bandeira do Paraguai, quebrando o estigma que persegue a mulher, como
um ser sensível, incapaz de lutar. Apresentando Joana F. Leal de Souza,
que se voluntariou para a Guerra do Paraguai.

Figura 1. Fonte: Autor desconhecido – A Voluntária da Pátria D. Joana


Francisca Leal de Souza. Em semana Ilustrada. 03/09/1865. Fundação
Biblioteca Nacional de Rio de Janeiro

Ao analisar o livro de 8º ano, “História das cavernas ao terceiro milênio,


volume 2, da conquista da América ao século XIX”. Percebemos que traz o
contexto da Guerra, de modo extremamente simplificado, ocupando o
espaçamento do livro em um total de somente duas páginas. De uma
maneira breve mostrando as formas de como ocorreram a Guerra,
principais aspectos vinculados às questões políticas e econômicas e o seu
desfecho.

Finalizando o conteúdo do livro sobre a Guerra do Paraguai, o livro traz a


figura 2, como podemos observar abaixo, apresentando a seguinte legenda
para a imagem, “Quase toda população masculina do Paraguai foi dizimada
na Guerra. Às mulheres sobrou a imagem de desolação”.

217

Figura 2. Fonte: Paraguai: imagem de sua pátria desolada (c.1880), de


Juan Manuel Blanes. ArchivoIconografico S.A/Corbis-Stock Photos.

O único momento em que as mulheres são citadas no capítulo, se refere à


descrição da imagem acima. E como podemos perceber o contexto que a
imagem é colocada, é como uma mulher amedrontada e fraca que expressa
sua tristeza, por seu pai, filho ou marido ter sido morto em meio às
batalhas, solidificando a imagem da mulher inferior incapaz de lutar em
uma Guerra, pelo simples fato de ser mulher.

"A Paraguaia" (1879), como é conhecida a imagem do pintor uruguaio Juan


Manuel Blanes (1830-1901). Em sua essência retrata a face do povo
paraguaio, por suas perdas, pelo sangue derramado e todas as infelicidades
que ocorreram durante e após a Guerra. Entretanto, o livro didático acaba
por recortar o sentido da imagem, colocando em um contexto totalmente
estereotipado. Já que a pintura representa a tristeza de um povo, e não
somente das mulheres, pela mortalidade masculina.

O terceiro livro didático do 8º ano trata-se do material, “História das


cavernas ao terceiro milênio, séculos XVIII e XIX: as fundações do mundo
contemporâneo”. O livro apresenta o conteúdo em três páginas de forma
eximiamente sucinta, ressaltando algumas questões políticas, econômicas e
sociais. Fazendo ênfase nos antecedentes da guerra, a eclosão dos conflitos
e as consequências que ocorreram no pós Guerra. Trazendo algumas fontes
icnográficas sobre o desenrolar da Guerra do Paraguai.

A única menção que o livro faz referente às mulheres, se trata dessa quase
imperceptível passagem, “A maioria dos sobreviventes eram idosos,
mulheres e crianças”. Hora alguma o livro destaca a participação feminina,
218
mas sim ofusca ainda mais. Já é construída a visão para os indivíduos, das
mulheres como apenas sendo um adorno na Guerra, acaba por se
concretizar e solidificar ainda mais.

Fazendo parte de uma História tradicional, elitista, feitas de grandes


personagens e os considerados importantes acontecimentos, os autores
pecam no desenrolar da constituição do material sobre a Guerra do
Paraguai. A necessidade da História vistas por todos os ângulos é clara,
“essa questão parece um desafio, ou mesmo um desejo de recuperar a
mulher na sua identidade social e mostrar a sua presença nos campos de
batalhas. Mesmo que não fizesse parte do processo de tomada de decisão”
[DOURADO, 2008, p.1]. A inserção da representação da mulher é falha em
certo pontos, demonstrando um viés de toda uma diversificada História.
Tornando várias pessoas heróis, e outras nulas no processo historico.

Considerações Finais
O material didático, muitas vezes é o único meio que alguns alunos entram
em contato durante sua vivência, logo tem efetiva importância para o
processo de ensino-aprendizagem. Está ao cargo do professor, não utilizar o
livro como única fonte de conhecimento para conduzir a aula. Além do fato
que cabe ao docente desconstruir todos os estereótipos presentes no livro,
mostrando que a História se expande muito além das barreiras de gênero. A
Historiografia abre caminhos, e ainda os mesmos, podem ser desbravados
dentro de sala de aula, despertando o pensar e o senso críticos dos alunos.

De modo geral, a representatividade da mulher em todos os vieses da


História ainda apresenta a carência de estudo, até mesmo em certo ponto
credibilidade. Assim como os homens as mulheres estavam presentes e
ativas no processo, como aconteceu na Guerra do Paraguai.

As discussões da representação feminina na História sempre são


importantes. Pois possibilita termos noções de como está se relacionando a
mulher e História, como um todo. Se torna instigante perceber que com o
passar do tempo ainda não obtermos uma História que conte a participação
de todos os viventes em um acontecimento histórico. Propriamente advinda
de um desinteresse da História contada pelo viés das minorias,
considerando menos importante do que a pelos grandes heróis.

A Guerra do Paraguai nos possibilitou um olhar mais crítico, em relação às


distinções de gênero, como se encontra extremamente desigual. As
mulheres lutaram arduamente, assim como os homens, ambos se doaram
em prol de ideais, mas os seus reconhecimentos como agentes diretos na
luta são de fato totalmente diferente. O livro didático acentua ainda mais a
visão de uma História feita por homens.
Referências
Ingrid Taylana Machado: Mestranda em História - História e Regiões na
UNICENTRO, (Universidade Estadual do Centro - Oeste). Possui graduação
em História - UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro - Oeste)
campus Irati (2017). Pesquisa temas relacionados a Relações de Gênero,
História das Mulheres, Práticas e Representações, Saberes Populares,
História Cultural, Partos, Ensino de História. 219
E-mail: ingriditaylana@hotmail.com.

DAVIS, Arthur H. Martín T. McMahon – diplomático – El estridor de las


armas. Assunción: Editora Litocolor, 1985, p.60.
DORATIOTO, Francisco. História e ideologia: a produção brasileira sobre a
Guerra do Paraguai. Nuevo Mundo-Mundos Nuevos , v. 0000, p. 49012,
2009.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
FLORES,Hilda Agnes Hübner. Mulheres na Guerra do Paraguai. Porto Alegre:
EDIPUCRS,2010.
FREITAS, Itamar de. Livro didático de História: definições, representações e
prescrições de uso. In: Livros didáticos de História: escolhas e utilizações.
Natal: EDUFRN, 2009.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 336 p.
PINSKY, CARLA B. Estudos de Gênero e História social. Curitiba: World
Laser, 2011.
PILETTI, Nelson; PILETTI, Claudino. A Guerra do Paraguai. In: . História &
Vida- 6ª série. São Paulo: Ática, 1989. p. 22-24.
PEREIRA. Alline Mikaela. A representação da mulher no livro didático de
História. 2013. 50 folhas. Monografia [Especialização em Educação:
Métodos e Técnicas de Ensino]. Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Medianeira, 2013.
ROCHA, Maristela. Os 150 anos da Guerra do Paraguai. A participação da
compositora Chiquinha Gonzaga a bordo do São Paulo. Anais do XXXVII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. In: Intercom, 2014, Foz
do Iguaçu. Anais do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 2014.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade. Vol. 20 (2), jul/dez. 1995.
Imagens:
Fonte: Museo Nacional de Artes Visuales [Disponível em:
<http://m.mnav.gub.uy/cms.php?o=1083>. Acesso em: 14 Dez. 2016].
OS ENCONTROS E OS DESENCONTROS DAS MULHERES
Isabela Nogueira da Silva Grossi

A História desde os seus primórdios foi dominada por homens


conservadores, logo, o lugar das mulheres nessa ciência tradicionalista foi
sendo inicialmente adquirido apenas no século XX. Atualmente, é notável
220 que nesse campo foi raro encontrar presenças femininas vinculadas às
pesquisas que eram desenvolvidas por historiadores e inclusive à própria
História, já que as configurações acadêmicas e sociais vigentes eram
excludentes e patriarcais. Além disso, os ditos autores clássicos, salvo raras
exceções como o francês Jules Michelet, não as enxergavam como um
objeto pertinente e digno de suas atenções e de seus estudos, expondo a
parcialidade dessa ciência, bem como de seus profissionais (SCOTT, 1992),
o que no presente, devido às mudanças na academia e na sociedade se dá
de outra forma.

A memória, como a História e a historiografia, é sexuada (PERROT, 2005).


A historiadora e professora francesa Michelle Perrot ao escrever o livro
publicado em 2005, Mulheres ou os silêncios da história, rememorou vários
momentos da história das mulheres, indo do século XIX ao XX mostrando as
falhas no argumento de que essas nada teriam feito ou de que tudo teria
sido realizado com o respaldo dos homens.

Hoje, com a enorme gama de conhecimento sobre o assunto, já se sabe


que as mesmas, especialmente na transição do século XX para o século
XXI, foram estimulando e encabeçando as suas próprias lutas com
“características particulares, regionais e nacionais” (SCOTT, 1992, p. 67)
provenientes de diferentes camadas sociais e múltiplas vertentes (SOIHET,
2011).

Em 1960 começou a ocorrer uma revisão histórica incentivada por


marxistas, como Edward Palmer Thompson e como Josep Fontana, com o
foco voltado para aqueles que foram excluídos de inúmeras pesquisas, os
subalternizados, levando a histórias com novos personagens e ao
preenchimento de lacunas na historiografia (Idem). É nesse contexto que o
estudo do espaço privado surgiu, sendo possível a observação de uma
micro história de categorias como a das mulheres, que antes de irem para o
espaço público estavam extremamente ligadas ao lar, mostrando que o que
acontecia no cenário privado deveria ser igualmente levado em conta e
incluído dentro da História e da historiografia:

“A grande reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se sobre


temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse, contribui
para o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres. Fundamental, neste
particular, é o vulto assumido pela história cultural, preocupada com as
identidades coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais: os
operários, camponeses, escravos, as pessoas comuns.” (Idem, p. 263)

Outros profissionais da História se interessaram por esse conteúdo referente


a grupos subalternizados. Não tardou para que, em meados da década de
1960, além das mulheres passarem a frequentar as universidades como
alunas e como professoras, grupos de estudo e cursos concernentes ao
tópico fossem programados para serem assistidos (SCOTT, 1992). Perrot,
em seu livro Minha história das mulheres de 2006, fala acerca do Women’s
Studies, iniciado nos Estados Unidos da América, e acerca de As mulheres
têm uma história?, da Universidade de Paris VII na França (PERROT, 2017).
A autora vai além, na sua obra de 2005, demonstrando como era difícil 221
tratar da história das mulheres, pois a escassez das fontes e dos relatos
minimamente confiáveis era tremenda: primeiro porque eram poucas as
que liam e as que escreviam, tendo em vista que essas duas atividades
eram proibidas para a maioria e, em diversas ocasiões, as mesmas
destruíam o que foi produzido no silêncio e no isolamento das suas casas
(PERROT, 2005); segundo pois as próprias pessoas que ocupavam cargos
importantes, como:

“Os escrivães da história – administradores, policiais, juízes ou padres,


contadores da ordem pública – tomam nota de muito pouco do que tem o
traço das mulheres, categoria indistinta, destinada ao silêncio. Se o fazem
(...) recorrem aos estereótipos mais conhecidos: mulheres vociferantes,
megeras a partir do momento em que abrem a boca, histéricas, assim que
começam a gesticular.” (Idem, p. 33)

Como já mencionado, o espaço privado era o local comum do sexo feminino


e, dessa forma, a sociedade patriarcal pretendia que esse fosse
invisibilizado, devendo ficar em silêncio sem ser reconhecido como indivíduo
(PERROT, 2017), mostrando que tanto os seus traços privados quanto os
seus resquícios de memória públicos eram majoritariamente
desconsiderados.

Conforme Virginia Woolf, uma das mais significativas escritoras britânicas


do século XX, com o preenchimento de brechas históricas com a história das
mulheres, as verdades absolutas saem de jogo e dão lugar para novos
campos de estudo, como o dos que eram excluídos e que se tornaram
legítimos, indispensáveis, e que fornecem um equilíbrio histórico (SCOTT,
1992). Por isso, ao mesmo tempo em que as mulheres participaram da
história elas foram, sempre e ao mesmo tempo, anuladas e excluídas dessa,
fosse do espaço privado fosse do espaço público.

Às mulheres, nos confinamentos do seu lar e do seu quarto, eram


delegadas, comumente, atividades relacionadas ao cuidado da casa, do
marido e dos filhos. Além disso, em várias ocasiões serviam como um
troféu para ser desfilado, como em um concurso de qual dos maridos
possuía a melhor e a mais bela do recinto.

Embora por um longo tempo as atividades domésticas não tenham


significado algo para os historiadores e para a sociedade, atualmente já se
sabe que esse tipo de trabalho é tão crucial para o andamento da vida
quanto qualquer outro realizado no cenário público. A grande questão é
que, especialmente no passado, essa posição era imposta às mulheres e,
como essas não tinham outras opções no meio do patriarcado, aceitavam-
na com pouca resistência.

A frase da filósofa existencialista Simone de Beauvoir presente em O


Segundo Sexo, “toda a história das mulheres foi feita pelos homens” (2016,
p. 186), apesar de, hoje, poder ser relativizada, faz referência às mulheres
222
como sendo o Outro que legitima a sua postura como submisso. Essa
posição acarretou na demora da constituição de uma comunidade que
viabilizasse a organização de um grupo com interesses em comum e com o
objetivo de conquistá-los (Idem, p. 15). Pode-se dizer que esse atraso se
deu pela concentração feminina no cenário privado, no qual raramente as
mulheres se encontravam com outras ou promoviam eventos próprios, não
sendo o suficiente para que formassem um grupo que obtivesse um ponto
de encontro. Não tinham privacidade, então, para conversarem sobre as
suas necessidades em comum, para compartilhar intimidades, para dialogar
acerca dos defeitos dos seus maridos e, inclusive, dos abusos que muitas
sofreram. Além disso, mesmo em suas casas, a palavra final era a do
homem, porque o patriarcado propagava o seu reinado na família e no
Estado:

“O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual nos


espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir
estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a
Casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado
é temporária, cadenciada pelas necessidades da família, a qual comanda,
remunerada com um salário de trocados, confinada às tarefas ditas não
qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas. “Ao homem a
madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos”, diz um texto
operário (1867).” (PERROT, 2017, p. 198)

As suas participações nos espaços públicos sempre foram abafadas,


contudo, as mulheres faziam várias atividades nesses, mas aqueles que
envolviam questões econômicas e políticas, assuntos “totalmente
masculinos”, eram considerados como pertencentes aos homens e eram os
mais importantes para a sociedade da época:

“Mas, grosso modo, o mundo público, sobretudo econômico e político, é


destinado aos homens e é o mundo que conta. Esta definição dos papéis,
clara e voluntarista, traduziu-se por uma retirada das mulheres de certos
locais: a Bolsa, o Banco, os grandes mercados de negócios, o Parlamento,
os clubes, círculos e cafés, grandes locais de sociabilidade masculina, e até
mesmo as bibliotecas públicas.” (PERROT, 2005, p. 34)

As fábricas e os lavadouros são exemplos de espaços públicos onde as


mulheres tinham uma participação ativa na Europa como um todo e
especificamente na França, já que a movimentação feminina começou
propriamente com a Revolução Francesa. No século XX, nesse país, as
mulheres compunham ao menos 38% da população industrial, sendo as
fábricas de papel e de tabaco duas das que mais consumiam a sua mão de
obra, classificadas como um verdadeiro exército industrial reserva sem
qualquer qualificação, com empregos flutuantes e com os salários bem mais
baixos que os dos homens, ou seja, as mesmas sofriam duas vezes: pelo
seu sexo e pela sua posição como operariado. O polo têxtil, por
conseguinte, detinha 73% de todas as que eram contratadas pelas fábricas,
pois esse trabalho requeria a princípio atividades que podiam ser feitas em
domicílio, isto é, o estereótipo da costura se fazia presente na vida das
mulheres como um hobby ou como uma tarefa genuína, fossem elas nobres 223
ou proletárias (Idem).

Michelle Perrot (Idem) afirma que as mulheres faziam greves puramente


femininas e que, também, participavam das que eram mistas estando em
maior quantidade nessas, sendo as indústrias têxtil e de tabaco as que mais
lhes davam motivo para protestos, chegando a se masculinizarem para que
pudessem se envolver sem maiores problemas. Embora não tivessem uma
consciência operária bem estruturada nesse período, clamavam por salários
maiores e pela redução da jornada de trabalho para doze horas, por
exemplo, buscando avisar às autoridades e aos seus patrões da realização
das greves. Mesmo nessas situações mostravam traços de submissão,
provenientes do patriarcado, que as faziam buscar apoio na legalização das
suas manifestações que eram fornecidas, logo, pelos grandes homens da
sociedade, os únicos capazes de ajudá-las no período, tendo em vista que,
por suas vezes, os sindicatos pouco as amparavam. Muitas por serem
católicas ou por serem protestantes, inclusive, tinham medo de desrespeitar
os seus chefes ou outras pessoas nessas empreitadas, já que essa ação
seria tida como um pecado. A sociedade já menosprezava as mulheres, as
grevistas mais ainda e se essas fossem pecadoras eram mesmo rechaçadas.

Além disso, até a adaptação de toda a sociedade às máquinas, as mulheres


participaram da luta ferrenha que foi travada contra a nova tecnologia, a
responsável por abolir o trabalho tradicional com o qual todos estavam
acostumados. Em vários momentos elas tomaram a frente dos embates
para defender o que acreditavam, ou seja, que as máquinas não deveriam
existir porque tomariam os postos dos seus maridos, tal qual os seus nas
indústrias, chegando a destruí-las algumas vezes: a máquina de costura
levou ao caos, pois apesar dos abusos que sofriam nas fábricas, essa
tecnologia propagaria a sua servidão caseira e, nesse instante, se
posicionaram contra a mesma (PERROT, 2017).

Os lavadouros, do XIX para o XX, eram utilizados por mulheres de classes


subalternizadas para a lavagem das suas roupas e para a lavagem das
roupas das mulheres das classes altas. Essa atividade era feita de acordo
com o tempo que restava das suas outras obrigações, como os afazeres
caseiros, o cuidado do marido e dos filhos e do emprego, se tivessem.
Embora as vestimentas pudessem ser lavadas em qualquer local onde
existisse água, os lavadouros cada vez mais foram sendo limitados e se
tornaram mais organizados.

Aos olhos da sociedade patriarcal era necessário separar as mulheres, o que


se deu, então, por compartimentos que inviabilizavam a conversa e a troca
das suas intimidades. Desgostosas com a situação, essas acabaram
boicotando esses lavadouros específicos que, logo, tiraram-nas do contato
direto que mantinham com as suas companheiras e vizinhas, tendo em
vista que as mesmas não iam para esse espaço público apenas para lavar
roupas, mas sim para dialogar com as suas parceiras.

Esse ambiente era um dos mais democráticos que existiram no passado, no


224
qual trocas de informações diversas aconteciam e relações múltiplas eram
estabelecidas, com mulheres que não pertenciam à alta sociedade podendo
viver tranquilamente, sem serem julgadas como, por exemplo, as mães
solteiras, impróprias para a época – essas eram mal vistas, mas não nos
lavadouros, onde existia “uma moral de mulheres, feita de fatalismo e
pragmatismo, que protege as que “erram” (Idem, p. 244). Outrossim, além
de se sentirem protegidas e confortáveis, percebendo que outras passavam
por situações parecidas com as suas, experimentavam a liberdade. Apesar
desses lugares funcionarem como uma espécie de escola que educava as
mulheres, usados com essa finalidade pelas autoridades do período e por
políticos para discipliná-las, foi a organização mais próxima e mais antiga
da que atualmente existe com o feminismo. Os lavadouros funcionavam
como um ponto de encontros das mulheres (Idem).

Um padrão pode ser observado nos locais públicos explicitados


anteriormente. Todas as vezes em que as mulheres tentaram se manter
nesses, como nas ruas das cidades, nas indústrias e nos lavadouros, essas
foram repelidas, foi feito de tudo para reeducá-las, para que as mesmas
retornassem para o espaço privado que na percepção dos homens, em
contextos nos quais a dominação masculina sobre as mulheres vencia e
prevalecia, era o local ao qual pertenciam e de onde não deveriam sair sem
que lhes fosse permitido. As fábricas e os lavadouros, partindo da análise
antropológica feita pelo etnólogo francês Marc Augé, seriam um não-lugar,
um espaço que não foi consumado totalmente, mas que é habitável, móvel
e que, no entanto, dura por alguns momentos, apenas brevemente (2009).
É notável que as mulheres estiveram sempre penetrando por esses não-
lugares, com a sua estadia sendo passageira, bem como a sua rebeldia e a
sua liberdade, porque, segundo Augé, esses não são permanentes e sim
transitórios.

Com a Primeira Guerra Mundial, contudo, aos poucos esse cenário foi
modificado. Não havia outra opção senão a tomada dos lugares dos homens
por parte das mulheres, mesmo que depois os mesmos retornassem,
durante a ocorrência da Grande Guerra. Assim, uma organização feminina
começou a surgir e culminou em reivindicações de fato, a partir do
momento em que conjuntamente se conscientizaram acerca do que queriam
conquistar, como a liberdade, tão passageira, que experimentaram nas
greves e, principalmente, nos lavadouros. Os espaços públicos vão sendo
apoderados pelas mulheres que vão construindo o que hoje é conhecido
como as três ondas feministas, buscando os seus direitos públicos, políticos
e trabalhistas, tal qual questões de saúde e de gênero.

Pode-se afirmar que as mulheres desenvolveram um sentimento de


insatisfação, demonstrando que queriam manter a autonomia obtida ao
longo da Primeira Grande Guerra, de modo que pudessem escolher onde
queriam estar, isto é, no âmbito privado, no público ou em ambos. Essas
romperam com um contexto no qual eram submissas, sob a orientação dos
seus interesses em comum manifestados na sua associação, algo que, por
séculos, como dissertou Simone de Beauvoir (2016), se mostrou inexistente
devido às historicidades das conjunturas anteriores e que, atualmente,
recebe o nome de feminismo. 225

Referências
Isabela Nogueira da Silva Grossi é graduada em licenciatura em História
pelo Centro de Teologia e Humanidades da Universidade Católica de
Petrópolis.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da


sobremodernidade. Lisboa: 90º, 2009.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo:
EDUSC, 2005.
______. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2017.
______. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 8. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2017.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da
história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 63-96.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 263-284.
REFLEXÕES A CERCA DO ESTUDO DE GÊNERO EM SALA DE
AULA POR BRECHAS DA NOVA BNCC
Itamara Cris Marchi Cordeiro

Quando entramos em sala de aula, nós professores [as], nos deparamos


com um mundo de possibilidades e expectativas. Hoje contamos com
226 grandes ferramentas que nos auxiliam, principalmente aos [as] professores
[as] de História, a

“ensinar o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessárias; o saber-


fazer, o saber-fazer-bem, lançar os germes do histórico. Ele é o responsável
por ensinar o aluno a captar e a valorizar a diversidade dos pontos de vista
[...] Ensinar História passa a ser, então, dar condições para que o aluno
possa participar do processo do fazer, do construir a História. O aluno deve
entender que o conhecimento histórico não é adquirido como um dom”
[SCHMIDT, 2003. In. BITTENCOURT, 2003, p. 57].

O presente texto abordará reflexões a cerca da experiência do ensino de


gênero em sala de aula da rede privada de ensino. Iniciando com a reflexão
sobre o ‘ser professor [a] de História’, passando à emergência do ensino da
História das Mulheres e concluindo com a experiência em sala da aula.

“A aula de História é o momento em que, ciente do conhecimento que


possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do
conhecimento histórico existente, através de um esforço e de uma atividade
com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento. É
também o espaço em que um embate é travado diante do próprio saber: de
um lado, a necessidade do professor ser o produtor do saber, de ser
partícipe da produção do conhecimento histórico, de contribuir
pessoalmente. De outro lado, a opção de tornar-se apenas um eco do que
os outros já disseram” [SCHMIDT, 2003. In. BITTENCOURT, 2003, p. 57].

Oferecer, permitir, incluir e participar da produção do conhecimento é isto


que temos em mente quando preparamos nossas aulas e entramos em sala
de aula, não pretendemos ter alunos [as] meros [as] espectadores [as] e
também não pretendemos ser ‘um eco do que os outros já disseram’, surge
assim a questão, ou as questões: como incluir, ou abordar, a temática de
gênero no ambiente escolar de uma maneira que ao mesmo tempo seja
relacionada, comparada, compreendida com os assuntos trabalhados e
desperte o interesse de todos [as]?

Muitos são os desafios que se apresentam aos [as] professores [as] de


História, seja recém-formado [a] que ‘ao mesmo tempo, ele vive a
insegurança em relação a juventude dos seus próprios alunos e à
defasagem entre sua própria formação e o aceleramento contínuo dos
novos estudos e pesquisas do conhecimento histórico’ [SCHMIDT, 2003. In.
BITTENCOURT, 2003, p. 56]; ou já com certa experiência, cabe aos [as]
professores [as] ‘dar condições para que o aluno possa participar do
processo do fazer, do construir a História’ [SCHMIDT, 2003. In.
BITTENCOURT, 2003, p.57]. Essas intenções vêm intimamente aliadas às
determinações da nova BNCC [2019] onde muitos [as] professores [as]
buscam inserir em suas aulas metodologias ativas [quando desenvolvemos
uma aula que envolva os [as] alunos [as] e ele [a] aprende fazendo]. Em
seu texto a BNCC [2019] prevê que para o Ensino Médio seja promovido o
diálogo com o [a] Outro [a] e que sejam usadas as novas tecnologias para
abordar isso, ‘no conjunto das relações sociais, é necessário assegurar aos 227
estudantes a análise e o uso consciente e crítico dessas tecnologias,
observando seus objetivos circunstancias e suas finalidades a médio e longo
prazos, explorando suas potencialidades e evidenciando seus limites na
configuração do mundo contemporâneo’ [BNCC, 2019, p. 562].

Desde o Ensino Fundamental procura-se estimular, segundo a BNCC


[2019],

“Um dos importantes objetivos de História no Ensino Fundamental é


estimular a autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que os
indivíduos agem de acordo com a época e o lugar nos quais vivem, de
forma a preservar ou transformar seus hábitos e condutas. A percepção de
que existe uma grande diversidade de sujeitos e histórias estimula o
pensamento crítico, a autonomia e a formação para a cidadania” [BNCC,
2019, p. 400].

Ao longo do Ensino Médio saber promover diálogos construtivos que


incluam diferentes grupos sociais, indivíduos, saberes e culturas, por
exemplo, condicionam ao conhecimento, respeito e aceitação do diferente e
a assumir uma postura ética perante a sociedade. Justificando a
necessidade das categorias ‘Política e Trabalho’ a BNCC [2019] demonstra a
preocupação em saber respeitar as diferenças

“No tratamento dessas categorias no Ensino Médio, a heterogeneidade de


visões de mundo e a convivência com as diferenças favorecem o
desenvolvimento da sensibilidade, da autocrítica e da criatividade, nas
situações da vida, em geral, e nas produções da vida, em particular. Essa
ampliação da visão de mundo dos estudantes resulta em ganhos éticos
relacionados à autonomia das decisões e ao comprometimento com valores
como liberdade, justiça social, pluralidade, solidariedade e sustentabilidade”
[BNCC, 2019, p. 569].

Com isto em mente, e tendo buscado preparo além da formação nos


deparamos com os Estudos de Gênero o qual podemos abordar em vários
momentos no material [Editora Positivo, 2017] utilizado pela escola
particular alvo desta experiência relatada no presente texto. Esta escola em
seu sistema de ensino possibilita abordar a História das Mulheres em vários
momentos, mas especificamente na 1ª série do Ensino Médio. Ao iniciar o
material desta série trabalhamos a introdução aos estudos históricos que
inclui diversos conceitos essenciais ao conhecimento da História
[historiografia, historicidade, sujeito histórico, por exemplo]. Este próprio
material [Editora Positivo, 2017] cita, em suas atividades, texto de Michele
Perrot, onde podemos inserir seu ponto de vista a cerca das novas
abordagens da historiografia.

“O ‘ofício de historiador’ é um ofício de homens que escrevem a história no


masculino. Os campos que abordam são os da ação e do poder masculinos,
mesmo quando anexam novos territórios. Econômica, a história ignora a
228
mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e negligencia os sexos.
Cultural ou “mental”, ela fala do Homem em geral, tão assexuado quanto a
Humanidade. Célebres – piedosas e escandalosas –, as mulheres alimentam
as crônicas da “pequena” história, meras coadjuvantes da História”
[PERROT, 1988, p.185].

Neste momento que podemos apresentar a necessidade da História das


Mulheres explicando a partir dos estudos de Joan Scott, e deixando claro
que existem muitas pesquisas, agora, que abordam várias áreas de
conhecimento a cerca de gênero, pois a historiografia passou a ‘olhar’ para
as mulheres, assim como para outros sujeitos históricos não pensados
antes.

“A história das mulheres, sugerindo que ela faz uma modificação da


“história”, investiga o modo como o significado daquele termo geral foi
estabelecido. Questiona a prioridade relativa dada à ‘história do homem’,
em oposição “à história da mulher”, expondo a hierarquia implícita em
muitos relatos históricos. E, mais fundamentalmente, desafia tanto a
competência de qualquer reivindicação da história de fazer um relato
completo quanto à perfeição e a presença intrínseca do objeto da história –
o Homem universal” [SCOTT, 1992, p. 78]

Para a autora pensar a história das mulheres corresponde a um ‘estudo


dinâmico na política da produção do conhecimento’. Mediar a produção do
conhecimento é o que professores [as] fazem em sala de aula. Neste ponto
apresentar a experiência do [a] professores [as] diante do tema estudado é
uma alternativa muito interessante, pois permite demonstrar claramente
como é seu trabalho e permite comparações com sujeitos de convivência
dos [as] alunos [as]. Sendo assim relatamos nosso primeiro contato com a
história das mulheres, que aconteceu ao desenvolver o projeto “Os
catadores da margem esquerda: coleta, sobrevivência e identidade no
Médio-Iguaçu no início do século XXI”, desenvolvido na Faculdade Estadual
de Filosofia, Ciências e Letras – FAFIUV, entre 2009 e 2010, fomentado pelo
Governo Estadual através do ‘Universidade Sem Fronteiras’, e depois na
especialização ao cumprir o módulo “Do protagonismo da história das
mulheres ao gênero como categoria de análise” com a professora Dulceli
Tonet Estacheski, também na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e
Letras – FAFIUV. Nestes dois casos publicamos textos que são apresentados
aos [as] alunos [as] para esclarecer e demonstrar uma realidade bem
próxima a sua no que diz respeito a ser sujeito histórico alinhado aos
direitos e deveres de sua cidadania, engajado [a] com as preocupações
referente às reflexões de gênero.
“‘Gênero’ foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Nos
Estados Unidos, o termo é extraído tanto da gramática, com suas
implicações sobre as convenções ou regras [feitas pelo homem] do uso da
linguística, quanto dos estudos da sociologia dos papeis sociais designados
às mulheres e aos homens. Embora os usos sociológicos de “gênero”
possam incorporar tônicas funcionalistas ou essencialistas, as feministas
escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as 229
conotações físicas de sexo” [SCOTT, 1992, p. 86-87].

Segundo Scott [1995] a aceitação da História das Mulheres é um caminho


árduo a ser construído por historiadores [as] desta área visto que este
estudo demorou a ser compreendido até mesmo por aqueles [as] que
pesquisam sobre. Neste caminho muitos [as] passaram a utilizar o termo
‘gênero’, que a própria historiadora afirma ser um termo para substituir o
termo “mulheres” e ‘é também utilizado para sugerir que qualquer
informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os
homens, que um implica o estudo do outro’ [SCOTT, 1995, p. 75]; ou seja,
a história das mulheres, ou melhor, o estudo de gênero, não é um abscesso
da História dos homens e sim a união de diversas experiências que
enriquecem a compreensão da História da Humanidade, ‘‘gênero’ tornou-se
uma palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a
prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens’
[SCOTT, 1995, p. 75].

Contudo ainda percebemos que, ao longo do processo de implementação da


História como disciplina escolar e da preocupação com a escrita da História,
no nosso caso a História do Brasil, ‘os interesses do Estado e da Educação
conjugavam-se na medida em que os indivíduos seriam moldados pela ação
e representação conservadoras’ [BITTENCOURT, 2003, p. 34]. Notamos isso
com a ‘poda’ que a discussão sobre gênero nas escolas sofreu.

Na explicação sobre sua definição de ‘gênero’ Scott [1995] esclarece que o


centro de sua definição está baseado em duas proposições que se conectam
integralmente: a primeira diz respeito ao fato de gênero esclarecer que as
relações sociais são organizadas a partir das diferenças entre os sexos; e
em segundo, que gênero se torna a priori a significação das relações de
poder. E é nesta segunda proposição que podemos justificar a necessidade
de abordar o estudo de gênero na escola: trabalhar as relações de poder no
interior das sociedades é uma das propostas de aprendizagens que temos
presente na BNCC [2019] no Ensino Médio

“Na modernidade, a noção de indivíduo se tornou mais complexa em razão


das transformações ocorridas no âmbito das relações sociais marcadas por
novos códigos culturais, concepções de individualidade e formas de
organização política no mundo ocidental. Em meio às mudanças, foram
criadas condições para o debate a respeito da natureza dos seres humanos,
seu papel em diferentes culturas, suas instituições e sua capacidade para a
autodeterminação” [BNCC, 2019, p. 566].

E para Scott [1995]


“o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.
Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou
por meio do qual o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas
ele parece ter sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a
significação do poder do ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas”
230
[SCOTT, 1995, p. 88]

Concluímos com uma questão: na experiência relatada apresentamos o fato


de estarmos cientes da emergência da História das Mulheres,
compreendemos os caminhos por onde abordá-la e como relacioná-la a
outros saberes históricos, mas e os [as] demais colegas, das mais diversas
áreas, como abordam o tema, se não há possibilidade [por parte das
políticas educacionais dos governos] de ampliar esse debate em sala de
aula? Pois concordamos com Joan Scott [1995] que os estudos de gênero
apresentam uma maneira de alcançar o entendimento a cerca das inúmeras
possibilidades de interação entre os seres humanos. Aprendemos a
observar o [a] outro [a], e a sua relação com o mundo, quando da
necessidade de resolver algum conflito, compreendemos que as relações
humanas, é isso mesmo ‘humanas’, independente de ser homem ou
mulher, somos humanos, devemos receber os mesmos olhares, os mesmos
julgamentos, corresponder ou não as expectativas, respeitamos quem está
do nosso lado também sem julgar suas habilidades e competências só
porque é homem ou mulher, enfim as propostas de crescimento são
diversas basta disposição daqueles que querem e podem auxiliar a trilhar e
construir esse caminho.

Referências
Itamara Cris Marchi Cordeiro é especialista em História pela FAFIUV e
professora de História no Colégio Cosmos de Porto União/SC.

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR.


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versa
ofinal_site.pdf acesso em 26/03/20 [internet]
CORDEIRO, Lysvania Villela. “História”. Curitiba: Positivo, 2017. [apostila]
PERROT, Michele. “Os excluídos da História: operários, mulheres e
prisioneiros”. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. [artigo]
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. “A formação do professor de História e o
cotidiano da sala de aula”. In. BITTENCOURT, Circe. (org.). “O saber
histórico na sala de aula”. 8ª Edição. São Paulo: Contexto, 2003. [artigo]
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise hist9órica”.
Educação e realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul/dez. 1995, PP. 71-99.
[artigo]
SCOTT, Joan Wallach. “História das Mulheres”, In. BURKE, Peter. (org.). “A
escrita da História: novas perspectivas”. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992. [artigo]
UMA HISTORIOGRAFIA DO ESQUECIMENTO: O MEMORICÍDIO
E AS PRÁTICAS DE ESCRITURA HISTÓRICA DE MULHERES NO
SÉCULO XIX
Jeane Carla Oliveira de Melo

Este breve texto visa discutir a questão do memoricídio de autoria feminina


nos oitocentos, trazendo casos exemplares de obras de cunho histórico 231
produzidas por mulheres de letras do século XIX que foram sumariamente
destruídas ao longo do tempo. Compreende-se que estes apagamentos não
estão dissociados do gênero (SCOTT, 1995), isto é, tais opacidades ligam-
se fundamentalmente às desiguais relações de poder na sociedade e ao
pouco valor que é atribuído a produção literária feminina em detrimento da
masculina. Deste modo, o termo memorícidio (DUARTE, 2019), utilizado
pelas pesquisadoras de obras femininas soa bastante apropriado para dar
conta dos processos de apagamento da presença literária feminina na
história da historiografia brasileira.

A manutenção dos arquivos de mulheres intelectuais é ainda um imenso


desafio para as instituições de guarda (SIMIONI & ELEUTÉRIO, 2018).
Também é um desafio para as pesquisadoras e pesquisadores, que
encontram inúmeras dificuldades ao lidar com a escassez de fontes sobre
mulheres na história, sobretudo no que diz respeito à organização,
catalogação e publicização dos impressos produzidos nos oitocentos.

Dito isto, tem-se o século XIX como ponto de partida da investigação por
três deliberadas razões: a) pelo estabelecimento da imprensa régia em
1808; b) pelos movimentos iniciais de implementação da instrução pública
feminina em 1827; c) por ser o século em que o primeiro conjunto de
mulheres passa a publicar no país. Cabe assinalar que a produção letrada
feminina oitocentista é bastante variada e se dá por meio de diversos
gêneros literários e históricos. Contudo, essa produção é marcada pela
irregularidade, pouco ou quase nenhum acolhimento destas mulheres
autoras nos círculos intelectuais de suas épocas e o recebimento de críticas
marcadas pela condescendência ou indiferença – o que pode ser
compreendido pela junção sexo da autoria e preconceito com a escrita
feminina. O campo intelectual oitocentista é, portanto, bastante árido para
as mulheres escritoras (FAEDRICH, 2018).

Uma produção “perdida” no tempo ou o vilipêndio da memória


feminina
Considerando que as autoras oitocentistas se aventuraram por diversos
gêneros textuais, um deles ainda bem pouco explorado na pesquisa
histórica é aquele que diz respeito a produção de memórias e biografias, de
manuais didáticos de história, de romances históricos, de história religiosa,
de práticas colecionistas, de ensaios e poemas históricos. Empreender uma
investigação com este fim significa entender que mesmo ausentes do
cânone e dos espaços de sagração intelectual como o IHGB – que poderia
nomear quem seria considerado historiador ou não – as mulheres também
participaram da produção do conhecimento histórico nos oitocentos, de um
modo radicalmente diferente dos homens de letras e a partir de condições
hierarquicamente distintas.

Ao produzirem variados bens culturais em formato de impressos, elas


também forjaram e tematizaram narrativas sobre o passado. Ausentes de
tudo que dizia respeito ao métier do historiador (arquivos, bibliotecas,
232
fontes manuscritas e a possibilidade de fazerem viagens exploratórias,
exposição dos produtos intelectuais entre os pares), grande parte das
mulheres que escreveram textos históricos o fizeram mediante ‘pesquisas
marginais’ em livros com uma circulação mais intensa e em alguns poucos
documentos que poderiam ter acesso. Nesse sentido, é bastante provável
que impossibilidade de frequentar arquivos fosse ‘burlada’ com o uso da
imaginação histórica como método privilegiado.

Outro aspecto desta produção é o caráter particular que se dá ao passado,


por meio da produção de memórias individuais (escrita de si) e biografias.
Também a questão da instrução lhes permite pela primeira vez adentrarem
no magistério e publicarem manuais escolares e deste ponto, produzir
narrativas sobre o passado da nação que pudessem ser didatizadas e
consumidas para um pequeno, mas crescente público escolar (MELO, 2017).
Tais escritos, ao lançarem mão de um certo tipo de narrativa fundante do
Brasil, também buscavam construir uma interpretação de país e dotar-lhe
de uma identidade nacional – uma das questões mais candentes que
desafiavam os intelectuais no século XIX.

Vale destacar que as mulheres de letras estavam bastante afinadas com


este debate. A poesia e prosa indianistas compostas por nomes como Nísia
Floresta (Lágrima de um Caeté, 1849), Ana Luísa Castro (Narcisa de Villar,
1859) e Maria Firmina dos Reis (Gupeva, 1861-2) são um bom termômetro
para aferir a inserção delas nesse processo de reescrita da nação
(SCHMIDT, 2019). É importante pontuar o quanto a escritora maranhense
Maria Firmina avançou na contribuição sobre a questão nacional pois além
de pensar a condição feminina, o fez articulado com reflexões sobre raça e
abolicionismo em uma sociedade escravista (SILVA& FERNANDEZ, 2020).
Merecem destaque os inúmeros estudos e o grande interesse que sua obra
vem despertando em pesquisadores comprometidos com a reabilitação de
sua memória e reinserção no cânone.

Para Bonnie Smith (2003), um modo útil de classificar o trabalho intelectual


feminino na produção de discursos sobre o passado em um momento
anterior à profissionalização da atividade dos historiadores é alcunhá-las
como ‘historiadoras amadoras’. Essa definição abarca a gama de mulheres
que produziram para um público variado, obras históricas feitas de um
modo privado, criativo e artesanal, haja vista a restrição posta a elas de
terem acesso aos documentos presentes nos arquivos, bibliotecas e
instituições letradas. Mas também a referida conceituação denuncia a
existência de uma espécie de feminilização da escrita histórica não-cientifica
e, por tabela, uma masculinização da história enquanto ciência (DIAS,
2019).
Deste modo, a divisão do trabalho intelectual na história é generificada. As
mulheres em sua maioria tinham que dar conta das sobrevivências
materiais, dos filhos e demais familiares, das aulas (quando eram
professoras), e ao mesmo tempo conviver com o olhar desabonador para
suas aventuras intelectuais; de acordo com Smith (2003) a escrita das
minorias de gênero e raciais são invariavelmente criações literárias
atravessadas por traumas que se configuram na experiência de um viver 233
subalterno.

Dessa safra de historiadoras amadoras brasileiras destacamos três autoras


que tiveram seus escritos destruídos e obras consideradas perdidas. São
elas: Rita Joana Sousa (manuscritos históricos), Maria Angélica Ribeiro
(drama histórico para teatro), Rita Esteves Alves de Vasconcellos
(biografia). Passemos agora a um breve exame de cada caso em particular.

Rita Joana de Sousa


Aqui iniciaremos não com uma autora oitocentista, mas apresentando
notícias de uma mulher instruída da colônia. Nascida 1696 e morta
precocemente em 1718 aos 22 anos, D. Rita Joana de Sousa foi natural de
Olinda, Pernambuco. As informações a seu respeito são díspares e
inconsistentes. Os primeiros relatos sobre a produção de D. Rita nos
informam que ela produziu opúsculos filosóficos e históricos, contudo,
nenhum dos seus manuscritos sobreviveu ao tempo. Convém ressaltar que
no século XVIII não havia tipografias na colônia. Imagina-se que por esta
razão, sua produção intelectual não tenha chegado a ser impressa nem
mesmo na metrópole. Cerca de dezesseis anos após sua morte, o primeiro a
mencioná-la em uma antologia de mulheres de letras foi o Padre Manuel
Tavares, em 1734, quando publica em Lisboa o seu livro “Portugal illustrado
pelo sexo feminino”. Mesmo sem ter fontes impressas (é difícil saber se ele
teve contato com os manuscritos da autora ou apenas ouviu falar dela),
Tavares pontua que D. Rita foi uma dedicada estudiosa da filosofia natural,
da história da Espanha e França, bem como se dedicou a pintura.

A partir deste registro inicial, criou-se uma espécie de mito da mulher


letrada em torno da figura de D. Rita. Varnhagen, Joaquim Manuel de
Macedo, Inês Sabino e Sacramento Blake fazem parte do conjunto de
escritores notórios que incluíram o nome de Rita Joana de Sousa em suas
obras, acrescentando detalhes sobre sua biografia sem, contudo, apresentar
qualquer fonte que pudessem comprová-los (VASCONCELLOS, 1999). De
modo que, atualmente, a presença de D. Rita não pode mais ser mais
analisada separada dessa memória construída em torno dela, o que indica o
quanto parte da tradição literária luso-brasileira sentia-se à vontade para
construir projeções em cima de uma desconhecida “femme savante” na
mesma medida que tolhia as produções letradas de mulheres setecentistas
e oitocentistas. A exortação em torno de D. Rita torna o mito mais aderente
ao responder a um anseio apaziguador pela ausência de mulheres nos
círculos intelectuais nos séculos XVIII e XIX. Pouco sabemos sobre esta
jovem escritora e seus manuscritos históricos foram provavelmente
destruídos em circunstâncias ainda bastante misteriosas, mas é bastante
salutar problematizarmos acerca das camadas mitificadoras em torno dela e
assim lançarmos uma reflexão sobre a relação entre gênero e produção
literária na colônia.

Rita Esteves Alves de Vasconcellos


Uma outra Rita, um outro ruidoso e inquietante silêncio. Em 1864, a
escritora pernambucana Rita Esteves Alves de Vasconcellos, ainda menor de
234
idade (embora não se saiba precisar sua data de nascimento e morte)
escreveu uma biografia do Monsenhor Francisco Muniz Tavares (reconhecido
historiador e sócio fundador do Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico de Pernambuco). Entregou-a no mesmo Instituto – que ficou
registrado no boletim interno da Revista do IAHGP, na edição de número 3,
do ano de 1864. O manuscrito foi “recebido com agrado” e mandado
arquivar. Depois desta notícia pública do arquivamento, não se tem mais
informações a respeito do documento. Por conta da produção deste
manuscrito biográfico, o nome de Rita Esteves foi parar em dicionários e
almanaques intelectuais, como o de Sacramento Blake (1883) e Maria
Thereza Bernardes (1989).

A biografia foi um gênero histórico bastante peculiar aos oitocentos. A


escrita da história por meio das vidas de grandes homens e seus feitos era
uma forma literária tão distinta quanto válida para delinear através destes
sujeitos históricos exemplares, a própria história da nação (OLIVEIRA,
2017). Assim, Rita Esteves ao produzir uma biografia provavelmente
elogiosa e laudatória do presidente do referido Instituto não destoava
destes aspectos mais intrínsecos à construção do projeto biográfico
imperial.

No mês de novembro de 2019, em consulta ao IAHGP para localização deste


manuscrito, nos foi informado que ele provavelmente se deteriorou com o
tempo e também foi aventada a possibilidade de que algum sócio já falecido
pudesse ter levado o documento para uma biblioteca privada, sendo deste
modo, pouco provável encontrar ainda a biografia feita por Rita Esteves.

Estamos diante de um caso flagrante de memoricídio. É a completa


aniquilação da memória intelectual de um breve legado; uma rara mulher a
escrever uma biografia no século XIX, uma jovem historiadora amadora que
usou a vida de outrem como fonte histórica privilegiada para composição de
uma narrativa. E por conta de uma negligência que traz marcadores
misóginos, hoje não podemos contar com esse documento que certamente
nos faria avançar na compreensão dos múltiplos modos pelos quais as
mulheres adentraram na cultura escrita oitocentista, sendo também
memorialistas e biógrafas, disputando interpretações sociais sobre o
passado e seus tempos presentes. Ciente que o descaso com determinados
documentos possui dimensões de gênero (quais critérios para que alguns
sejam mantidos enquanto outros descartados?), cabe indagar: e se fosse
Rita Esteves Alves de Vasconcellos um jovem e promissor escritor?
Arriscamos a dizer que seus escritos teriam sido publicados, ou no mínimo,
guardados com mais respeito; como afirmou Perrot (2005) ano teatro da
memória, as mulheres se constituem como sombras tênues e coadjuvantes
em relação aos homens.
Maria Angélica Ribeiro
Nascida em 1829 no Rio de Janeiro, Maria Angélica foi uma prolífica
dramaturga que escreveu dezenas de peças encenadas com êxito de crítica
e público, sendo que a primeira delas data de 1855. Produziu extensamente
até a sua morte, em 1880, deixando várias peças inéditas. Preferia
tematizar problemas sociais de sua época, fazendo a crítica de costumes
com acidez e denúncia. Ao contrário das “Ritas”, Maria Ribeiro deixou 235
algumas obras impressas e que foram republicadas nos anos seguintes das
récitas. Estabeleceu-se como autora e tradutora teatral, passando a viver
profissionalmente da sua pena, fato bastante incomum e que contribuiu
para ampliar os espaços de atuação das mulheres, sobretudo no campo das
artes (SOUTO-MAIOR, 1999). Obteve admiração e críticas favoráveis de
escritores como Machado de Assis, quando da estréia de Gabriela (1863) e
Cancros Sociais (1865). O sucesso alcançado desta última peça de caráter
abolicionista também ajudou a consolidar o nome de Maria Ribeiro no
ambiente teatral da corte carioca.

No entanto, de uma produção que contava com mais de vinte peças, hoje
só temos conhecimento de três que foram recuperadas pelos esforços da
pesquisadora Valéria Andrade Souto Maior (2014). São elas: Cancros
Sociais, Um dia na opulência e a Ressurreição do primo Basílio. De acordo
com esta pesquisadora os originais de Maria Ribeiro foram destruídos por
um incêndio ocorrido em 1893 no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro
– local os seus impressos e manuscritos inéditos estavam guardados.
Dentre eles encontrava-se o drama histórico “Dom Sancho em Silves”. Uma
peça certamente épica e, a julgar pela aposta no gênero histórico, deveria
portar um tom diverso das peças usuais da autora. Pelo título infere-se que
estava ambientada em Portugal entre os séculos XII-XIII, tematizando a
saga do rei expansionista D. Sancho I (1185-1211); uma narrativa que
muito provavelmente demandou por parte da autora uma cuidadosa
pesquisa histórica do período. Efetivamente, é mais um texto histórico de
autoria feminina que existiu, que foi lido, registrado, que obteve
repercussão pública, mas que não conseguiu sobreviver ao infortúnio de um
incêndio.

Considerações Finais
Se os escritos destacados nesse curto artigo tivessem sobrevivido a uma
sociedade patriarcal que subalterniza a produção intelectual de mulheres,
teríamos certamente um outro panorama da escritura histórica feminina,
com muito mais elementos para pensar a participação das mulheres na
construção do conhecimento histórico nos oitocentos. Possuiríamos, com
efeito, mais subsídios para afirmar que a história no século XIX não foi um
ofício conjugado apenas no masculino através de homens de letras alojados
em academias ilustradas. Lançando mão de formas “não-oficiais” de narrar
o passado, seja por meio do drama histórico ou da produção de biografias,
nossas historiadoras amadoras traziam consigo marcadores de gênero e da
diferença sexual que as fazia produzir à margem de uma sociedade
patriarcal e racista que negava às mulheres os direitos mais básicos de
cidadania, como o voto e educação secundária.
Dito isto e, pensando em questões contemporâneas ligadas ao ensino, nos
indagamos: quais rebatimentos a ausência da produção histórica feminina
possui na própria história que ensinamos, considerando ser esta uma
narrativa que ainda é monopolizada por homens autores, sobretudo no que
diz respeito ao mercado editorial de livros didáticos em que tanto a
representação feminina quanto a autoria dos livros são questões ainda
236
lacunares e problemáticas?

Na certeza de que a “amnésia sexista” (MONTERO, 2008) nos legou uma


historiografia fraturada, que outras mulheres-autoras o cânone recalcou e
silenciou, deixando apenas um pálido rastro historiográfico que teima em
sobreviver ao memoricídio e esquecimento?

Referências
Jeane Carla Oliveira de Melo é doutoranda em História pela UFMG e
professora de História do IFMA.

ANDRADE, V. Maria Ribeiro: teatro quase completo. Florianópolis: Editora


Mulheres, 2014.
BERNARDES, M. T. Mulheres de ontem? – Rio de Janeiro, século XIX. São
Paulo, Queiroz, 1989.
DIAS, J.H. O “Mal-Estar” na História em Three Guineas de Virginia Woolf:
Escrita Feminista e a Crise Do Historicismo. Tese (Doutorado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
DUARTE, C. L. Memoricídio: o apagamento da história das mulheres na
literatura e na imprensa. Aracaju, UFSE, 2019. (Mesa redonda no XVIII
Seminário Internacional Mulher e Literatura).
FAEDRICH, Anna. “Memória e amnésia sexista: repertórios de exclusão das
escritoras oitocentistas. Lêtronica. Porto Alegre, v. 11, n. esp. (supl. 1), set.
2018, s164-s177.
MELO, J. C. O de. Mulher, Professora e Historiadora dos Oitocentos:
Herculana Firmina e seu Resumo da História do Brazil (1868). Anais do
XXIX Simpósio Nacional de História - contra os preconceitos: história e
democracia, Brasília/UnB, 2017.
MONTERO, R. Histórias de mulheres. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
OLIVEIRA, M. As vidas de um gênero: biografia, história, ficção. In:
Diálogos, Maringá, v. 21, n. 2, 2017.
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc,
2005.
SACRAMENTO, B. Diccionario bibliographico brasileiro. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, v.7, 1883.
SCHIMDT, R. T. Na literatura, mulheres reescrevem a nação. In:
HOLLANDA, H. B. de. Pensamento feminista brasileira: formação e contexto.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.
Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-
99.
SILVA, R. A. da & FERNANDEZ, R. Maria Firmina dos Reis: intérprete do
Brasil. Letrônica, Porto Alegre, v. 13, n. 1, p. 1-12, jan.-mar. 2020.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Mulheres,
arquivos e memórias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n.
71, p. 19-27, dez. 2018.
SMITH, B. G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed.
EDUSC: São Paulo, 2003.
SOUTO-MAIOR, V. A. Maria Angélica Ribeiro. In: MUZART, Z. L. Escritoras
brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. 237
VASCONCELLOS, E. Rita Joana de Sousa. In: MUZART, Z. L. Escritoras
brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.
JERÔNIMO DE ESTRIDÃO E AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO
NAS MISSIVAS 22 E 24 ÀS MULHERES NOBRES DE ROMA NA
ANTIGUIDADE TARDIA
Fabiano de Souza Coelho

Jerônimo – Eusebius Hieronymus, em latim –, provavelmente, nasceu na


238 década dos anos 340 E.C., na pequena cidade de Estridão, limite entre as
províncias romanas de Dalmácia e Panônia, região hoje da atual Eslovênia,
sendo essa cidade destruída pelos godos em torno do ano 376 E.C. Paralelo
a isso, o monge Jerônimo viveu inserido em um contexto de transformações
sociais, religiosas e políticas, em torno do Cristianismo e Império Romano,
no decorrer do século IV e início do V E.C.

Esse Padre da Igreja se distinguiu dos demais Pais do Ocidente pela


experiência prática monástica que teve no Oriente e, devido ao seu contato,
pelo domínio de línguas não latinas, como o grego, um pouco de copta e do
hebraico, e pelo profundo estudo dos textos bíblicos. Com isso, Jerônimo foi
um pertinaz defensor da renúncia sexual cristã e teve acesso direto a uma
gama de obras nessas outras línguas, relevantes para os Cristianismos na
Antiguidade Tardia.

A atuação religiosa do monge Jerônimo de Estridão foi marcada pela


presença da figura feminina, uma vez que muitos de seus trabalhos foram
elaborados e idealizados em meio ao grupo de mulheres aristocratas que o
cercavam.

Acreditamos na proximidade de Jerônimo com as mulheres da elite romana


e, também, observamos a dependência material que existia desse monge
em relação às cristãs matronas abastadas.

O monge Jerônimo teve muito interesse em selecionar os mais convenientes


companheiros e companheiras. Assim, observamos que Jerônimo construiu
um círculo de profunda amizade com as matronas romanas e seus
descendentes. Ainda, entendemos que a cidade foi o lugar onde o monge de
Estridão teve grande atuação sociocultural, mesmo tendo preferência pela
vida retirada do século.

Em especial, essas estreitas relações de Jerônimo com feminino foram


construídas em Roma, entre os anos de 382 e 385, quando esteve como
auxiliar do bispo Dâmaso, como relatamos anteriormente. Desse modo,
enxergamos o vasto epistolário e diálogo com tais mulheres de Roma, pois
no interior dessas correspondências temos esse contato íntimo com o
feminino. Por conseguinte, a partir desse instante, algumas missivas do
monge de Estridão dirigidas para as mulheres aristocráticas de Roma serão
nossas fontes de análise e aplicação de nossa problemática.

Em contrapartida, não podemos deixar de assinalar que grande parte das


cartas do monge Jerônimo para as mulheres tinha a mesma finalidade, isto
é, de convencê-las a guiar as suas vidas por meio de um rigoroso caminho
ascético. A ideia de ascese em Jerônimo fora marcada pela desvalorização
do corpo, ao considerá-lo como prisão da alma e fonte de impureza, e,
consequentemente, devia-se ter uma total repulsa das coisas classificadas
como temporais [Marcos Sánchez, 1986: 315-316].

Jerônimo, em grande parte de seu corpo epistolar, descreveu a respeito das


figuras femininas que foram de suma importância para sua vida. Não 239
podemos nos esquecer de que as missivas do monge de Estridão nos
revelam sua complexa e polêmica personalidade. O calor de suas afeições,
suas críticas e ofensas, reprovações e indignações, seu desejo passional de
ser amado e reconhecido [Giannarelli, 1980: 11; Kelly, 1975: 51; Mattioli,
1990: 239].

Destarte, por sua formação e histórico, ele era um especialista na arte de


escrever. Agora, em suas missivas, numa dimensão mais íntima, projeta
seu pensamento em torno das representações do comportamento feminino
e de gênero, ou seja, daquelas que eram tidas pertencentes da melhor
linhagem social do Mundo Romano Tardo Antigo.

A primeira carta que analisaremos será a de número 22 – Ad Eustochium de


virginitate servanda –, escrita aproximadamente no ano 384. O monge
Jerônimo se dirigiu à Eustóquia e essa produção foi considerada um tratado
em relação à virgindade. Essa missiva ganhou muita fama nos meios
cristãos e tal foi considerada uma distinta composição patrística acerca da
virgindade cristã.

Era muito comum na Antiguidade Tardia, no Império Romano adepto e


simpatizante das experiências cristãs, a elaboração de tratados a respeito
da tônica da virgindade, exclusivamente endereçados ao gênero feminino.

Nessa carta, Jerônimo tratou Eustóquia com muita afeição e com vocábulos
de grande estima, realizou uma série de recomendações e um jogo de
citações bíblicas dos livros do Antigo e Novo Testamento, como uma
manifestação de sua autoridade perante a temática da pureza corporal
humana.

Jerônimo fez uma admoestação para as virgens, deste modo: “[...] E


faltaram as virgens boas (Amós 8, 13). Porque temos virgens más. Todo
aquele que olhar, disse o Senhor, para uma mulher com desejo libidinoso,
já cometeu adultério em teu coração (Mateus 5, 28). Perde-se, pois,
também a virgindade por pensamento. Estas são as virgens más, virgens na
carne, mas não no espírito; por não ter azeite, são virgens errantes
excluídas do tálamo do seu esposo” [Carta 22, 5].

O Estridonense representou o feminino como um indivíduo que deveria ter


uma conduta dentro da castidade do corpo e do pensamento, pois para ele
a mulher virgem ideal era aquela que precisaria ter dignidade em sua uma
mente e se resguardaria da conduta impura e libidinosa.
Além de tudo, a mulher teria de evitar o excesso de vinho e,
consequentemente, a embriaguez. Jerônimo nos relata tal petição nestes
termos: “[...] o que peço e suplico é que a esposa de Cristo fuja do vinho
como esse fosse um veneno, pois essas são as primeiras armas dos
demônios contra a mocidade [...]” [Carta 22, 8, grifo nosso].
240
Aqui, o monge Jerônimo classifica a mulher virgem consagrada como
esposa de Cristo (sponsa Christi) – unida em um matrimônio simbólico com
a divindade cristã, representada em Jesus de Nazaré – e que ela não seja
inclinada à bebedeira que, por sua vez, para o Estridonense, seria a base do
vício da luxúria e intemperança.

Outro conselho de Jerônimo para um tipo exemplar de virgem: “[...] leia


com muita frequência e aprende tudo o possível [...]. Que seu jejum seja
diário e tua refeição sem fartura [...]” {Carta 22, 17]. Quanto a isso, as
mocinhas, para Jerônimo, além da prática ascética do jejum, tinham que
ser dedicadas aos estudos dos textos sagrados dos cristãos e de outras
línguas – por exemplo, o grego e o hebraico.

Além disso, descreveu-nos sobre a conduta da virgem consagrada, desta


maneira: “[...] Quando der esmolas, somente Deus a veja. Quando jejuar,
tenha um rosto alegre. Que teu vestido não seja demasiado indiscreto e
nem sujo. Não chames atenção por nada, para que não te pare diante da
multidão que passa e te aponte o dedo [...]” [Carta 22, 27]. E por fim, a
virgem tinha de ser desapegada dos bens materiais humanos e da falta de
generosidade. Relata-nos o monge de Estridão que a virgem: “também teria
que evitar o mal da avareza [...]” [Carta 22, 31].

A princípio, essa questão da avareza entre as mulheres aristocráticas


aparenta algo contraditório, porque mesmo elas sendo integrantes de
famílias abastadas da sociedade romana, precisariam ter condutas
afastadas das ostentações materiais e seculares, ou seja, para Jerônimo, as
matronas consagradas tinham de praticar intensas renúncias ante a
realidade socioeconômica na qual estavam inseridas.

Por outro lado, também havia a existência, nesse contexto, de um intitulado


ascetismo mundano. Uma vez que algumas mulheres optavam pelas
práticas ascéticas, mas não rompiam com os antigos hábitos de ostentação
e de suntuosos comportamentos existentes na sociedade de Roma [Serrato
Garrido, 1993: 39].

Afinal, o monge Jerônimo foi um pertinaz opositor, crítico e repreensor de


comportamentos que considerava inadequados para as mulheres ricas e que
eram adeptas da experiência monástica e da ascese cristã. Em outras
palavras, o Estridonense era contrário ao tipo de conduta cristã que ele
considerava inapropriada para seu ponto de vista religioso.

*
Examinemos a carta 24, dirigida novamente à Marcela, sobre a vida de sua
irmã Asela, escrita no outono do ano 384, dois dias após compor a carta 23.
Assim, Asela que fazia parte do ao renomado romano gens Caeonii e parte
de sua família aderiu às experiências cristãs no decorrer do quarto século
E.C.

Acreditamos que Jerônimo produziu essa missiva para mostrar mais uma 241
vez o exemplo de uma virgem para as demais mulheres cristãs. Isto é, essa
carta se adequa como uma representação do gênero feminino em seu
tempo, contudo, particularmente, acreditamos que eram somente as
mulheres pertencentes aos grupos mais poderosos do Império Romano na
Antiguidade Tardia.

Essa nossa assertiva se justifica com as próprias palavras de Jerônimo,


pois, ao fazer uso de argumentos retóricos, empenhava-se na persuasão de
mulheres na adesão do modo de vida que, para ele, era considerado
excelso. Assim ele escreveu: “[...], pois quando advertimos os maus
estamos corrigindo os demais e ao louvar os melhores despertamos o fervor
dos bons para a prática das virtudes [...] Contar-se-á brevemente a vida de
nossa querida Asela [...]. Essa carta deve ser lida por moças jovens, a fim
de que se formem conforme seus exemplos e tenham na vida dela exemplo
de vida perfeita” [Carta 24, 1].

Nessa argumentação de Jerônimo, entendemos quão laudáveis eram as


pessoas que se dedicavam ao ascetismo, em particular, as mulheres, como
uma forma de exteriorização da sua crença religiosa. Essas pessoas,
classificadas com virtudes, eram para ele revestidas de elementos
simbólicos e transcendentes, uma vez que seriam modelos para aqueles
considerados bons e um incômodo para aqueles considerados maus.

Esse discurso era dirigido exclusivamente para o gênero feminino e


constatamos que o monge Jerônimo, em nenhum momento desse escrito se
dirige a homens (pelo menos de forma direta e estrita), pois essa missiva
deveria ser lida por mulheres que se encontravam na mocidade –
adulescentulae (adulescens): uma donzela ou menina bastante jovem.

Jerônimo de Estridão nos relatou que Asela era recoberta de virtudes.


Nestes termos nos mostra que: “Pois, como havia começado a dizer,
sempre [Asela] se portou com tal modéstia e manteve-se tão oculta em
secreto em seu aposento, que jamais se apresentou em público e nem sabia
o que era falar com um homem e, o que é mais admirável, amava mais
quando via uma irmã virgem. Trabalhava com suas mãos, sabendo que está
escrito: quem não deseja trabalhar também não há de comer (2
Tessalonicenses 3,10). Falava com seu Esposo rezando ou cantando salmos,
visitava apressadamente as memórias dos mártires sem ser vista, e, não
obstante, a alegria que dava a sua profissão de fé, no que, sobretudo, se
gozava era em que ninguém a conhecera. Todo ano praticava contínuo
jejum, permanecendo assim dois ou três dias seguidos; [...]. E com esse
regime – coisa que pode parecer ao homem impossível, mas para Deus isso
pode ser feito perfeitamente – chegou à idade de cinquenta anos sem saber
o que era uma dor de estômago [...]” [Carta 24, 4].

Notamos, nessa exposição, que monge Jerônimo representou Asela com os


seguintes valores: renúncia aos bens terrenos, modéstia, discrição, vivência
de uma vida privada, trabalho manual, vida de oração e leituras das
242
escrituras, testemunho de fé e prática de árduos jejuns no decorrer de sua
vida. Em outros termos, percebemos que essa virgem cristã consagrada
portava, pelo menos, três predicados tradicionais romanos: domiseda,
lanifica et lentica e acupingere.

Além disso, defensor pertinaz do ascetismo e monasticismo, Jerônimo,


sendo guia espiritual de inúmeras mulheres cristãs, acreditava que severos
jejuns poderiam controlar os desejos do corpo humano e ajudariam as
religiosas a terem foco no ente divino [Salisbury, 2002: 32].

Inclusive, as qualidades observadas por Jerônimo, a respeito da austeridade


da virgem Asela, mostra-nos na carta: “[...] Nós podemos descrever que
vimos. Nada mais alegre que sua severidade; nada mais severo que sua
alegria. Nada mais triste que seu sorriso; nada mais risonho que sua
tristeza. Seu rosto está de forma pálida, que, sendo indício de sua
mortificação, não tem cheiro de ostentação. Seu falar é silencioso e seu
silêncio é eloquente. Seu andar, nem precipitado nem demorado; seu porte,
sempre o mesmo [...]. Somente ela tem merecido que em uma cidade de
pompa, lascívia e prazeres, em que ser humilde é humilhação do ânimo; os
bons a louvem, os maus não se atrevam a murmura dela, as viúvas e as
virgens a imitem, as casadas a reverenciem, as más a temam e até os
sacerdotes a admirem” [Carta 24, 5].

Nesse escrito do Estridonense, há uma representação da virgem como um


arquétipo a ser imitado e, portanto, teria de ser enaltecido por bondosos e
maldosos, viúvas e casadas e até sacerdotes. Esse Padre da Igreja
caracterizou essa dama romana como uma pessoa honrada e virtuosa, pois
Asela era, para ele, portadora de atributos ascéticos e valores associados a
muitos tipos de renúncias, inclusive corpóreas. Então, o exemplo dessa
virgem romana seria um objeto simbólico para que o monge Jerônimo
persuadisse as aristocráticas do presente e do futuro a aderirem a um
testemunho cristão numa continência perfeita.

De uma maneira geral, Jerônimo de Estridão recomendava para as jovens


destinadas à virgindade, muita austeridade e modéstia, desde seus
primeiros anos de vida. Ele representou tais senhoritas, sem dúvida
pertencentes às altas classes sociais de Roma, com uma vida longe de luxos
materiais, dedicadas aos estudos e com uma conduta voltada ao
recolhimento.

Por ser um especialista em textos bíblicos e retórica, há, ao nosso


entendimento, uma alusão indireta ao texto atribuído a Paulo quando o
Estridonense escreveu nessa carta assim: Sermosilens et silentiumloquens
(Seu falar é silencioso e seu silêncio é eloquente). Porquanto, essa parte
nos porta ao trecho que diz: “[...] Como acontece em todas as Igrejas dos
santos, estejam caladas as mulheres nas assembleias, pois não é permitido
tomar a palavra [...]” [1 Coríntios 14, 34-35]. Em vista disso, típico da
cosmovisão patriarcal, o monge Jerônimo igualmente planteava e esperava
do gênero feminino expressiva quietação, serenidade e bastante modéstia.

Por último, concordamos com Michelle Perrot [2003: 21] que atestou que, 243
no campo das representações religiosas, os monoteísmos do Ocidente
adotaram uma visão bem negativa a respeito da figura feminina. A mulher
foi vista como causadora do mal existente no mundo – figura de Eva –,
como aquela que deve ficar em silêncio – relatos de Paulo. Ou seja, as
mulheres foram associadas ao pecado do qual os homens deveriam se
defender e, com isso, submetendo-as ao silêncio.

Jerônimo tinha uma espécie afeição por questões que envolviam o


ascetismo feminino e uma dependência da ajuda das mulheres ascéticas.
Em outros termos, o monge de Estridão tinha uma espécie de fascinação e
obsessão pelo gênero feminino pertencente aos grupos abastados de Roma
e, de maneira igual, nitidamente, percebemos uma profunda dependência
afetiva e material do feminino por parte desse Padre da Igreja.

Assim, grande parte do epistolário de Jerônimo direcionado para o polo


feminino tem em seu componente final um modelo prático de
recomendações de como elas deveriam conduzir suas vidas como cristãs
consagradas. Para o monge de Estridão, tais mulheres tinham de ser
diferentes das cristãs comuns e das politeístas, que eram inclinadas à vida
mundana ou secular [Marcos Sánchez, 1990: 145].

Acredita-se que Jerônimo de Estridão escreveu missivas que não eram


simplesmente lidas por seus destinatários, mas esses textos eram copiados
e tinham uma ampla circulação no Mundo Romano Tardo Antigo [Salisbury,
2002:118].

À vista disso, tais empreendimentos desse autor cristão não somente


tiveram uma dimensão particular naquela sociedade, como essas missivas
puderam atingir objetivos e perspectivas cristãs e ascéticas mais amplas
naquele mundo e em tempos póstumos.

Destarte, ao realizarmos uma análise densa dessas fontes de Jerônimo de


Estridão e de uma forma muito específica, percebemos que todos esses
predicados propostos para o gênero feminino – aristocratas consagradas,
patronas, matronas cristãs e continentes – foram idealizados por homens e,
consequentemente, dirigidos exclusivamente ao feminino. Raramente se fez
alusões, nesses escritos, aos homens, aos varões.

Outrora e no tempo presente, propunha-se e propõe-se a continência


perene para o gênero masculino pertencente ao clero católico – o celibato
clerical. Verificamos que, em Jerônimo, não há tratados remetidos ao
masculino, para que homens se mantenham virgens ou para que os viúvos
se dediquem a uma vida consagrada e continente, fiel à memória de sua
esposa falecida. Não se observam escritos que sugerissem os homens a
permanecerem em suas residências e trabalharem manualmente em suas
residências.

244
Assim posto, a renúncia sexual feminina permitiu que as mulheres ricas,
mediante o exercício da virgindade e a viuvez consagrada, criassem uma
rede de patronato e evergetismo sobre a nova fórmula da caridade cristã,
que consistia em uma das mais importantes bases econômicas da
comunidade eclesial e um atrativo para o proselitismo das manifestações
cristãs [Teja, 1999: 224]. Portanto, rompendo com a ordem androcêntrica e
patriarcal imposta a gênero feminino no Mundo Romano na Antiguidade
Tardia.

As mulheres notáveis que adotavam a experiência ascética cristã, por meio


do estado de vida virginal, de certa forma quebravam uma ordem sócio-
política que por muito tempo predominava na sociedade romana Antiga. Em
outros termos, a estrutura tradicional que ditava que a mulher geraria para
aquela sociedade novos cidadãos – o gênero feminino era entendido como
uma espécie de um aparato que deveria conceber descendentes.

No Mundo Tardo Antigo, as figuras femininas cristãs abastadas poderiam


alcançar prestígio na sociedade se rejeitassem suas obrigações familiares.
Elas seriam capazes de realizar tal intento para se dedicarem aos estudos
teológicos e para fazerem peregrinações em lugares considerados sagrados
pelos cristãos daquele tempo. Além do mais, a virgindade consagrada cristã
era um instrumento para mulher estar livre da demanda imposta a ela pelo
meio social. Contudo, esse estado de vida era um meio de controle de seus
desejos particulares, o que poderia resultar na continência perpétua [Clark,
1993: 126-127].

Por seu turno, a continência perfeita, a pudicícia e a repulsa ao casamento


ou novas núpcias, adotado pelas aristocratas cristãs – exclusivamente
virgens e viúvas –, foram vias para libertação das vicissitudes negativas da
vida matrimonial – molestiaenuptiorum. Dessa maneira, a recusa ao
casamento ou recasamento era um meio alternativo a uma possível
dependência e serventia a um esposo (ao masculino).

Muitas matronas viúvas cristãs se dedicavam não somente às doações para


os mais necessitados da sociedade, mas também na construção de edifícios
religiosos para finalidades ascéticas – exercendo o tradicional evergetismo,
caracterizado por sua tradicional modalidade chamada beneficentia [Serrato
Garrido, 1999: 347].

Finalmente, as matronas da Antiguidade cristã ousaram em suas conquistas


e realizações e lutaram por elas em meio a uma sociedade e estrutura
religiosa que privilegiava somente os homens.
Referências
Fabiano de Souza Coelho é doutor em História Comparada (PPGHC/UFRJ) e
atualmente é professor da Educação Básica do Estado do Espírito Santo.

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O ENSINO DE HISTÓRIA E IMPRENSA: MASCULINIDADE NO
BRASIL REPUBLICANO ATRAVÉS DAS PROPAGANDAS DE
MEDICAMENTOS
João Marcelo Dutra Araujo e Jakson dos Santos Ribeiro

O presente trabalho é fruto de reflexões e inquietações relacionadas ao


ensino de história na Educação Básica, uma vez que, compreende-se que 247
esse conhecimento é parte fundamental do processo de construção de uma
consciência crítica e social, bem como, da compreensão de si, do outro e de
mundo, entretanto sabe-se que os desafios encontrados por educadores
não são poucos, pensando isso, o trabalho em questão visa pensar uma
proposta de ensino de história que utilize como ferramenta didática recortes
de jornais, mais precisamente de propagandas de medicamento para o
ensino de história, realizando assim um processo de levar para sala de aula
aspectos que ficam fechados no âmbito acadêmico.

No mundo do século XXI, na famigerada “modernidade liquida” a qual


referiu o autor Zigmund Bauman, as mudanças acontecem de forma
acelerada, noções de tempo e verdades não se sustentam e parecem ser
voláteis demais, vivemos no século da “informação”, na era da tecnologia
que é capaz de oferecer um vasto repertorio de repostas, dados e visões
sobre um fato ou uma pergunta na velocidade de um clic, e o que poderia
ajudar acaba tornando-se uma problemática no âmbito educacional,
todavia, não se pode confundir informação com conhecimento. Pinsky e
Pinsky (2007) elucidam que:

“Para informar aí estão, bem à mão, jornais e revistas, a televisão, o


cinema e a internet. Sem dúvida que a informação chega pela mídia, mas
só se transforma em conhecimento quando devidamente organizada. E
confundir informação com conhecimento tem sido um dos grandes
problemas de nossa educação... Exatamente porque a informação chega
aos borbotões, por todos os sentidos, é que se torna mais importante o
papel do bom professor”. [Pinsky E Pinsky, 2007, p. 22]

Desse modo, torna imprescindível aos profissionais da educação, sobretudo


aos professores de história o encargo de não apresentar informações de
forma solta, mas organiza-las, contextualizar e por vezes problematizar,
tendo em vista que uma das metas do ensino de história é a construção de
uma consciência crítica, entretanto muitos são os obstáculos que dificultam
essa finalidade, o desinteresse por parte dos educandos pelas aulas de
história sem dúvidas é uma delas, uma verdade que não se pode negar é
que permeia no espaço escolar e no senso comum é que a representação da
história enquanto disciplina é de ser uma matéria puramente decorativa e
“chata”; Assim sendo, a importância de estuda-la é julgada erroneamente
como desnecessária.

É possível dizer que esse é resultado de um processo de séculos de uma


prática pedagógica positivista, onde o sujeito da educação estava centrado
exclusivamente na figura do professor, o mesmo apenas narrava os fatos,
datas e nomes, instituindo desse modo uma educação “mecânica”. Sobre
essa educação “mecânica” e tradicional, Paulo Freire (1996) elucida que:

‘A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à


memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os
transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo
248
educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”,
tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”,
tanto melhores educandos serão’. [Freire, 1996, p. 166]

Nesse sentido, de acordo com que diz Paulo Freire, o professor tradicional é
visto como uma figura imponente e inquestionável, que se traduzia por um
ensino unilateral e decorativo, o aluno nesse modelo seria uma espécie de
receptáculo que assimilaria todo o conteúdo, forma que o autor considerada
ineficaz, haja vista que para ele o processo de ensino não é dado de forma
pronta, mas uma construção, ainda segundo o autor “ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou
a sua construção.” [Freire, 1996, p.12]

Assim sendo, compete ao professor (não somente) a responsabilidade de


buscar métodos, formas e meios para despertar nos alunos o interesse e
participação em sala de aula, torna-los efetivamente atuantes no processo
de ensino, uma vez que como já destacado estes são peças fundamentais
desse processo. A esse respeito, Schimitd (2004) argumenta que:

“O professor de História pode ensinar o aluno adquirir as ferramentas de


trabalho necessárias, o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançar os germes
históricos. Ele é responsável por ensinar o aluno a captar e a valorizar a
diversidade dos pontos de vista. […] Ensinar História passa a ser, então, dar
condições para que o aluno possa participar do processo de fazer, construir
a História”. [Schimitd, 2004, p. 57]

Dessa maneira, levando em conta a necessidade do educador reinventar-se


frente aos desafios escolares, e ainda da necessidade de transformar as
aulas de histórias em aulas que pudessem ser mais interessantes e
articuladas com o fazer historiográfico, apresentamos uma proposta que é
discutida, entretanto com pouca prática, a de levar produções e fontes que
ficam acopladas exclusivamente no âmbito acadêmico e adaptá-las para o
ensino básico, dentre uma diversidades de fontes e de narrativas é de
pretensão do presente estudo pensar a fonte documental que são os jornais
como uma possiblidade de ferramenta de apoio para o ensino, de outra
forma seria a transformação da pesquisa em material didático, no estudo
em questões apresentando a possibilidade de pensar a história do período
republicano través de anúncios de medicamentos encontrados em
periódicos do determinado recorte temporal. Assim, para composição do
presente estudo utilizou-se recortes dos seguintes jornais: Jornal de Caxias:
Órgão Comercial e Noticioso e Jornal do Comércio, periódicos que
circularam na cidade de Caxias-MA durante os anos da Primeira República.
Jornais e propagandas: uma possibilidade para o ensino
Uma maneira de tentar afastar essa “aversão” ao estudo de história pelos
educandos é mediante à desconstrução da concepção de que o
conhecimento historiográfico é estático e acabado, levando-os a entender
que o mesmo é produto de uma construção polifônica, isto é, que possui
uma multiplicidade de narrativas que podem ser percebidas por meio de
diferentes formas de análise, à exemplo do uso de músicas, imagens, livros 249
literários e jornais; é acerca do último que pretende-se discorrer
posteriormente.

Os jornais carregam em si informações dos mais variados segmentos da


sociedade, de lugares e de pessoas em determinados recortes temporais,
além de expressarem informações sobre o cotidiano, sistema político ou
econômico que utilizados de forma correta pode ser uma potencial fonte e
passível de ser utilizada como ferramenta pedagógica, corroborando com
essa premissa à autora Bittencourt (2004) no “livro Ensino de História:
fundamentos e métodos”, expôs o seguinte:

‘As possibilidades de utilizar jornais como fonte histórica são múltiplas: a


análise dos conteúdos das notícias (políticas, econômicas, culturais, etc.) da
forma pela qual são apresentadas as notícias, as propagandas, os anúncios,
as fotografias, etc. e de como esse conjunto de informações está distribuído
nas diversas partes do jornal, entre outras […]’ [Bittencourt, 2004, pp. 335-
336]

Posto isso, entende-se que é a utilização dessa fonte é viável e pode


permitir ao aluno pensar de forma critica as informações veiculadas ou
perceber aspectos de uma determinada realidade, entretanto a utilização do
jornal em sala requer alguns cuidados que o professor deve tomar, sobre
isso Alves (2012) diz que:

“A linguagem, a grafia, a organização editorial e as construções discursivas


dos jornais antigos são obstáculos a ser enfrentados pelo professor, mas
não motivo para a desistência da utilização de tais fontes documentais. O
estudo prévio da contextualização histórica e das condições de produção de
um determinado jornal, ou seja, das relações inter, intra e extradiscursivas
que cercam a sua publicação, são ações básicas para que o docente possa
lançar mão de tal documentação, calcado essencialmente numa bibliografia
de apoio e no conhecimento de causa acerca do seu objeto de estudo”.
[Alves, 2012, p. 21]

Assim, a escolha dos jornais e dos aspectos que para serem analisados em
sala de aula devem antes passar pelo crivo bibliográfico e teórico do
professor, afim de apreender sobre o contexto e os jogos de interesses que
podem conter na linguagem, símbolos e signos presentes nas páginas dos
jornais.

Força, saúde e vigor: um modelo de República nos jornais


O período da Primeira República (1890-1930) é um momento de suma
importância na história do Brasil, pois representa a mudança de um regime
administrativo e político. Esse período é marcado dentre outros temas pela
Belle Époque que significou grandes transformações socioculturais e
técnicas [Sevcenko, 1998] que elevariam o status do Brasil a uma nação
“Moderna”, entretanto, essas mudanças não aconteceriam somente no
âmbito urbano, manifestou-se também através do discursos médico-
higienista e cientifico, como bem ressalta [Machado, 2009, p. 49]. "[...] os
250
símbolos da modernidade não devem ser orientados somente nas paredes
dos prédios ou nas pedras das calçadas, eles deveriam se inscrever também
nos corpos da população da cidade".

Corroborando com essa opinião, [Matos, 2003, p. 109] diz que: “O


cientificismo imperante nesse período permitiu aos médicos expandir o
controle sobre a vida de homens e mulheres, normatizando os corpos e os
procedimentos, disciplinando a sociedade”, desse modo, fabricaram-se
arquétipos de como as pessoas deveriam viver, assim sendo, exemplos de
pessoas fracas, doentias e abatidas e que não “adequavam-se” ao modelo
da recém República e deveriam ser combatidos, o grande beneficiado dessa
proposta de cuidado do corpo como uma normatização social foi a indústria
farmacêutica.

A indústria farmacêutica, essa que canalizou e a aproveitou a necessidade


do cuidado com o corpo e viu nessa possiblidade um caminho para principal
ânsia do mundo capitalista, o lucro. A proclamação de propagandas de
medicamentos nos meios impressos, como jornais e revistas significou uma
guinada para esse mercado que buscava uma ascendência e é exatamente
por esse motivo que [Temporão, 1986, p.37] diz que “[...] a história da
propaganda e das práticas publicitarias no Brasil confunde-se com a da
propaganda de medicamentos”, a respeito da vasta produção publicitaria
em torno de medicamentos [Matos, 2011] salienta que:

“[…] cabe destacar que essa produção publicitária projetava influenciar e


aumentar o consumo, mas também transformava hábitos, educava e
informava. Enquanto produto cultural reproduzia expectativas e práticas
que circulavam socialmente; não inventava sentidos, mas recriava e
reforçava, além de vender estilos de vida, sensações, emoções, visões de
mundo e desejos” [Matos, 2011, p.133-134]

Então, compreende-se que não se vendia somente medicamentos, mas toda


um conjunto de significações e sentidos encapsulados ou engarrafados. As
propagandas farmacêuticas voltadas para o público masculino prometiam a
reabilitação de características tradicionais como: força, robustez, disposição
e virilidade, elementos que como já explano anteriormente são aceitos
culturalmente como definidores do gênero e agora fica à disposição dos
pacientes, ou melhor dizendo dos clientes, que fazem esse consumo pois o
fortalecimento e a higienização dos corpos masculinos passam a ser
necessidades e determinações sociais.

Uma vez realizada essa discussão de cunho teórico de eixos como o desafio
do ensino, jornal como fonte e a sobre a construção de um modelo
masculino atrelado ao ideal de uma nação saudável e moderna presente no
Período Republicano, se faz relevante compartilhar a proposta de ensino a
qual foi pensada desde o início da pesquisa. Bueno [2008] aborda que as
propagandas de medicamentos não eram divulgadas de forma desconexas
da realidade, antes estabeleciam uma ligação evidente com a conjectura
social, isto é, o assunto do momento.

Nesse óptica, uma primeira ideia de trabalho na sala de aula seria levar os 251
alunos a partir das propagandas de medicamento previamente selecionadas
a identificarem o motivo e circunstâncias delas estarem sendo divulgadas,
trabalhando com a curiosidade do aluno, levando o a querer entender o
contexto, não é claro cobrando um vigor acadêmico, mas estimulando sua
participação no processo de ensino aprendizagem.

Por exemplo foi encontrada nos jornais caxienses em 1915, período da


primeira grande Guerra Mundial, em um momento onde milhares de
pessoas perdiam suas vidas e ficavam debilitadas, propagandas da Emulsão
Jonas que prometiam fazer o inverso e fortalecer os brasileiros em um
momento de caos, a intenção da utilização dessa imagem é provocar os
alunos para relação do Brasil para o que estava acontecendo no mundo,
como também para a ideia de fortalecimento da nação.

Outro tipo de propagandas encontradas e que podem ser utilizadas foram


as do medicamento Emulsão Scott, segundo [Bueno, 2008, p.40] esse é um
remédio de origem norte-americana que foi vendido globalmente no século
XX, o texto publicitário era claro, as ilustrações eram marcantes tudo para
que o consumidor assimilasse a mensagem sem grandes dificuldades.
talvez seja a mais icônica e representativa da propaganda do medicamento
da Emulsão Scott (A mesma continua sendo o slogan da marca), onde a
figura masculina era representada como uma espécie de pescador que
carrega em seus ombros um enorme peixe, estampado em letras garrafais
os nomes dos males que prometiam sua eficácia, nessa imagem especifica
aparece nomes de doenças respiratórias, vale lembrar que nesse período o
mundo passava por uma pandemia de gripe espanhola, então existia um
temor, remédios prometiam de forma irrefutável a cura, então o professor
pode levar os alunos a refletirem como o sistema capitalista através das
indústrias farmacêuticas podem se aproveitar de determinadas situações
para gerar riqueza, perceber isso dentro de uma sistema republicano
considerado liberal.

A partir dessa propaganda o professor pode trabalhar em sala de aula a


respeito do padrão masculino considerado como correto construído pelo
discurso higienista, um homem que representaria uma suposta
masculinidade hegemônica, e que em seu corpo deveriam conter
características vigorosas como: Força, destreza, musculatura, em suma
deveriam ser um verdadeiro guerreiros.

Seria interessante nesse sentido o professor fazer um paralelo com temas


da atualidade, problematizar por exemplo o sentido de ser homem, haja
vista, que a masculinidade não é homogênea ou espontânea, mas plural.
Nesse sentido, [Bandinter, 1993, p.4) ao argumentar sobre essa questão, a
mesma aponta que a “virilidade não é dado de saída, mas deve ser
construída, digamos 'fabricada'. O homem é, portanto, um artefato", então
o professor pode estimular os alunos a pensarem e a refletirem sobre a
diversidade, colaborando desse modo para a construção de uma sociedade
que exclui preconceitos.

252
Em suma, foi apresentado alguns exemplos de ideias que ainda estão
desenvolvidas, considero um trabalho inovador e talvez isso seja um
problema, entretanto considero ser uma proposta que pode ser passível ser
colocada em pratica em sala de aula, vale ressaltar que é uma proposta que
considero ainda em fase de gestação, isto é, considero em aberta para fazer
ajustes e modificações em um futuro não tão distante.

Referências
João Marcelo Dutra Araújo é graduando em Licenciatura Plena em História,
pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade Estadual do
Maranhão –CESC/UEMA. Bolsista PIBIC/FAPEMA – Fundação de Amparo à
Pesquisa do Maranhão – FAPEMA. Membro do Grupo de Estudos de Gêneros
do Maranhão- GRUGEM/UEMA
Jakson dos Santos Ribeiro - Professor Adjunto I, Doutor em História Social
da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História
Social pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em
História do Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano)
(2011). Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da
Universidade Estadual do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de
Caxias-MA) (2011). Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do
Maranhão- GRUGEM/UEMA Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro
de Estudos Superiores de Caxias – CESC – Campus /UEMA.

ALVES, Francisco das Neves. O ensino da história por meio dos jornais
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(Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cabelo, barba e bigode: masculinidades,
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GRUPOS SOCIAIS FEMININOS NO CONTEXTO FEUDAL: O
TRATADO DO AMOR CORTÊS (C. 1186) NO ENSINO DE
HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Luciano José Vianna e Juliana Caroline de Souza Araújo

A proposta deste trabalho consiste em tratar a condição feminina no


254 Tratado do Amor Cortês de André Capelão, voltando-se, portanto, para um
campo de estudos que cada vez mais se delineou a partir dos anos 70 do
século passado, ou seja, a História das Mulheres e, de uma forma mais
específica, a História das Mulheres no Medievo. Ademais, este trabalho
também visa realizar uma análise introdutória sobre as possibilidades de
trabalho com o Tratado do Amor Cortês no ensino de História Medieval na
Educação Básica.

É necessário destacar que escrever sobre a História das Mulheres é fazer


uma reflexão sobre a situação social feminina na história,
independentemente do contexto histórico abordado. E este campo de
estudo começou a surgir no século passado. Segundo Joan Scott, existiam
relatos estabelecidos sobre a origem do campo da História das Mulheres,
dos quais um deles apresentou como premissa a política feminista (SCOTT,
1992, p. 64). De acordo com essa narrativa, a História das Mulheres, como
campo de estudos se desenvolveu na década de 60 do século XX e se
ampliou nas décadas seguintes.

Com o fortalecimento do campo da História das Mulheres, fato que


aconteceu também nas primeiras décadas do atual século, pretendeu-se
transformá-las em sujeitos históricos e em temas de estudo da história,
uma vez que o homem era a base da historiografia moderna ocidental.
(SCOTT, 1992, p. 66-77). De acordo com Sharp: “tradicionalmente, a
história tem sido encarada, desde os tempos clássicos, como um relato dos
feitos dos grandes.” (1992, p. 40). É notório que a Escola dos Annales, um
movimento historiográfico que surgiu na França em 1929, proporcionou a
ampliação dos objetos de estudo da história, principalmente em sua terceira
geração, porém, é necessário ter em mente ainda a permanência de
abordagens da história tradicional, a qual é reproduzida muitas vezes nas
aulas de história e nos livros didáticos.

Gradualmente ocorreram mudanças em termos de ensino de História


destacando o papel das mulheres no período do Medievo (BNCC, 2018, p.
420-421), passando, portanto, a incluir a necessidade de se fazer reflexões
sobre o papel da mulher na história. A História das Mulheres na perspectiva
da História Medieval é uma possibilidade para o conhecimento e utilização
de uma diversidade de fontes primárias que apresentam em seus conteúdos
grupos sociais de mulheres existentes nesse período, capazes de serem
traduzidas a partir de nossas inquietações do presente e que, portanto,
servem também para serem abordadas no processo de ensino de História e
formação dos futuros cidadãos no âmbito escolar.
O Tratado do Amor Cortês: entre a utilização da memória e a
representação social
O Tratado do Amor Cortês foi composto por volta de 1186 no norte da
França, e está dividido em três livros que comentam sobre o que é o amor,
como mantê-lo e a sua condenação, respectivamente. O objetivo principal
do Tratado é tratar da concepção do amor no âmbito do feudalismo, uma
vez que estava direcionado para o amor entre os nobres (VIANNA, 2018). 255

O contexto no qual essa obra foi composta foi marcado pelo feudalismo.
Assim, as práticas e os comportamentos presentes nela são reflexos do
contexto feudal, uma vez que o Tratado do Amor Cortês se caracteriza
como um tratado normativo. Para Raúl Cesar Gouveia Fernandes, os
pesquisadores devem observar os dados históricos considerando o contexto
no qual os mesmos foram compostos. Isso configura uma interação com
princípios culturais e sociais da época, que permite uma investigação de
qualidade. (FERNANDES, 1999, p. 9) Assim, compreendemos que pela
influência da relação feudal de vassalagem “a mulher é equiparada a uma
suserana; [...] o amante mostra submissão total à mulher, exprime o
desejo de ser aceito como seu vassalo e oferece-lhe incansavelmente os
seus serviços.” (BURIDANT, 2000, p. 39).

É necessário salientar que o Tratado do Amor Cortês se constitui como um


registro literário. De acordo com Jaume Aurell, na historiografia do Medievo
existe uma proximidade entre o historiador e o acontecimento narrado
(AURELL, 2013, p. 99). Todavia, não está clara a intenção de Capelão de
escrever fatos propriamente históricos. Na verdade, entre os séculos XI e
XII, constatou-se o auge da escrita produzida no âmbito laico, embora a
sociedade se caracterizasse como cristã, visto que permaneceu, durante
muitos séculos, a perspectiva religiosa juntamente com a leiga na escrita da
história.

Segundo Patrick Geary, a retomada de uma informação segue o curso da


memória e ocorre seguindo a evidência de impulsos precedentes, partindo
do presente até o objeto buscado (2002, p. 178). Assim, Capelão, ao falar
sobre o Amor Cortês, embora tenha como foco o contexto nobre, aborda
também, ainda que brevemente, o contexto de outros grupos sociais
femininos, justamente para deixar claro que os mesmos não participam dos
jogos do Amor Cortês. Com isso, delineia em sua obra uma diversidade de
grupos sociais femininos, os quais, muitas vezes, sequer são mencionados
em um contexto de Ensino de História e nos livros didáticos utilizados em
sala de aula.

De acordo com Aleida Assmann: “em todas as camadas sociais a mulher


constitui o pano de fundo sobre o qual se ergue a fama masculina, luzente”
(2011, p. 67). Portanto, tais grupos sociais femininos estavam como pano
de fundo na construção da memória textualizada de Capelão e,
posteriormente, foram rememorados através da sua fama no registro
histórico. Para Aleida Assmann, a fama se constitui como a recordação
abundante de glórias, a qual o indivíduo pode alcançar durante a vida.
Ademais, se caracteriza como um modo secular de autoeternização (2011,
p. 37). Neste caso, através do Tratado do Amor Cortês, é possível ter
conhecimento e nos aproximarmos aos grupos sociais femininos existentes
no contexto feudal.

Em termos metodológicos, para se trabalhar com a perspectiva feminina no


Medievo é necessário considerar o filtro masculino encontrado na maioria
256
das fontes (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 16), filtro este que se refere a um
processo de representação de mundo. Ainda de acordo com a autora: “há
poucos textos, poucas imagens da mulher e da família que nos transmitem
a voz das principais interessadas. O eco dos prazeres e das dores
quotidianas, das alegrias ou das discussões domésticas chega-nos, tingido
de compreensão, de malícia ou de hostilidade evidente, com muito mais
frequência dos homens do que das mulheres. [....] tudo o que se sabe
sobre o assunto reflete a influência da informação e deformação das fontes
provenientes das camadas mais altas da sociedade: a classe cavaleiresca,
para o período mais antigo e a burguesia, das cidades, para os finais da
Idade Média” (1992, p. 194). Entendemos, portanto, que as fontes
medievais apresentam um filtro sobre o mundo feminino, representando-o a
partir de questões e propostas particulares dos seus autores. Neste sentido,
sobre o processo de representação recuperamos as palavras de Chartier:
“As representações do mundo social assim construídas (...) são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso,
o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de
quem os utiliza”. (CHARTIER, 1998, p. 17).

André Capelão foi um clérigo secular. Havia uma diferenciação básica entre
o clérigo secular e o clérigo regular, uma vez que o primeiro é encontrado
nas cortes feudais e o último nos monastérios, seguindo alguma regra de
vida. Essa constatação mostra que Capelão estava muito próximo à
realidade das mulheres nobres, por isso existe um detalhamento
comportamental considerável sobre elas no Tratado do Amor Cortês.
Entretanto, devemos destacar que, embora o espaço e o tempo de escrita
de Capelão estejam voltados para um contexto nobre, percebemos em sua
obra aspectos destacados para as mulheres que pertenciam a outros grupos
sociais no contexto do feudalismo.

Os grupos sociais femininos no Tratado do Amor Cortês: uma


diversidade social para o Ensino de História Medieval na Educação
Básica
Na leitura e análise da obra, o principal grupo que recebe um foco de
atenção em termos de abordagem é o das mulheres nobres. Entretanto,
verificamos a presença de uma diversidade social feminina em termos de
grupos, alguns dos quais, embora não sejam o foco da escrita de Capelão,
estão presentes em sua obra, como, por exemplo, mulheres burguesas, as
religiosas, as prostitutas, as camponesas e as cortesãs. A seguir,
destacamos algumas características destes grupos com base na narrativa
de Capelão sobre o Amor Cortês.

1. As mulheres burguesas. O grupo social feminino burguês está presente


na obra como participante da corte do amor. Contudo, o autor adverte que
o amor somente é possível entre os grupos da mesma condição social, ou
seja, uma burguesa pode apenas ter o amor de um burguês. Como se trata
de um tratado normativo, pressupõe-se que André Capelão desejou corrigir
a comum transposição dos limites comportamentais, no que diz respeito ao
amor entre homens e mulheres de ordens sociais distintas. Por isso,
apresentou no seu discurso a insatisfação em relação à realização do amor
entre burguesas e nobres. Na perspectiva de Capelão, as mulheres 257
burguesas se comportam como mulheres distintas na medida em que elas
não confessam possuir beleza e virtudes (CAPELÃO, 2000, p. 25). Segundo
ele, elas praticam a arte sofista ao expressar suas palavras. O fragmento
seguinte expõe essa ideia, representando o diálogo entre uma burguesa e
um plebeu e uma plebeia: “Admiro tuas palavras, a arte de sofista com que
procuras pilhar-me em falta.” (CAPELÃO, 2000, p. 31).

2. As mulheres religiosas. Outro grupo social que encontramos na obra de


André Capelão são as religiosas. Em relação ao assunto principal da
narrativa da obra, as mesmas são caracterizadas como atraentes e belas,
as quais aceitam facilmente os desejos de um homem quando possível. O
fragmento seguinte apresenta essa ideia: “Logo começamos a nos sentir
violentamente atraídos por sua beleza e a ser cativados pelo encanto de
suas palavras.” (CAPELÃO, 2000, p. 197-198). Dessa maneira, para
Capelão, as mulheres religiosas possuem muitos encantos, porém, um
homem nobre que aceita o amor de uma mulher religiosa pode perder a sua
reputação (CAPELÃO, 2000, p. 196-198).

3. As mulheres prostitutas. Em sua obra, Capelão também se refere às


prostitutas. Percebemos essa ideia no fragmento seguinte relacionado à
característica do amor: “O amor verdadeiro vem apenas da afeição do
coração, é por pura graça e por pura generosidade que o damos. Essa
dádiva preciosíssima é inestimável e não pode ser maculada pelo dinheiro.
Mas, se uma mulher possuída pela paixão da cupidez a ponto de se dar a
um amante por dinheiro, ninguém deverá considerá-la apaixonada, mas, ao
contrário, achar que ela falsifica o amor e classifica-la entre as prostitutas
nos lupanares” (CAPELÃO, 2000, p. 198-199). Para Capelão, as prostitutas
demonstram um amor fingido para se apropriar das riquezas dos homens,
uma vez que isso se caracteriza como comércio do amor (CAPELÃO, 2000,
p. 199).

4. As mulheres camponesas. A seguir, André Capelão trata do amor entre


os camponeses, também chamados na fontes de “rústicos”, no qual
mencionou as camponesas. Para ele, a prática do amor cortês entre o grupo
camponês se constitui como impossível, uma vez que este grupo possui
funções para trabalhar a terra. Verificamos essa ideia no fragmento
seguinte: “Mas mesmo que, contrariando a sua natureza, lhes aconteça –
raramente, é verdade – ser instigados pelo aguilhão do amor, não convém
iniciá-los na arte de amar: seria de se temer que, desejando comporta-se
em oposição às suas disposições inatas, eles abandonassem a cultura das
ricas terras que frutificam habitualmente graças a seus esforços, e que
estas se tornassem improdutivas para nós” (CAPELÃO, 2000, p. 207). Dessa
forma, percebemos a representação que Capelão elaborou em relação às
mulheres camponesas. Os comportamentos sociais destacados provocam a
exclusão delas da corte do amor, pois, abandonar o trabalho da terra para
se dedicar ao amor prejudicaria o modo de vida nobre, uma vez que os
nobres usufruíam do cultivo da terra feito pelos camponeses (CAPELÃO,
2000, p. 207).

258
5. As mulheres cortesãs. O último grupo social feminino que encontramos
na obra de André Capelão são as cortesãs. Existe uma diferenciação entre a
cortesã e a prostituta no Tratado do Amor Cortês, uma vez que a primeira é
encontrada nas cortes feudais, e a última em lupanares e nas ruas. De
acordo com Capelão, é necessário evitar a prática do amor das cortesãs,
pois este é revestido pela indecência e conduz o homem nobre ao pecado.
Como ocorre com as mulheres prostitutas mencionadas anteriormente, na
perspectiva de Capelão, os deleites do corpo em troca de presentes e
dinheiro são considerados comportamentos nefastos. O fragmento seguinte
mostra essa ideia: “Aliás, mesmo ocorrendo que uma mulher dessas se
apaixone, não resta dúvida de que seu amor é funesto para os homens:
todos os que tenham bom senso reprovam o comércio íntimo das cortesãs,
e quem as frequenta perde a boa reputação” (CAPELÃO, 2000, p. 208).

As possibilidades do Tratado do Amor Cortês no Ensino de História


Como podemos observar, o Tratado do Amor Cortês é uma fonte rica em
termos de diversidade de representações sociais, principalmente voltadas
para o contexto feminino no feudalismo, um período tradicionalmente
conhecido como masculino. Mesmo que tenha sido composto para
demonstrar as características do Amor Cortês entre o grupo nobre, o
Tratado, indiretamente, apresenta uma diversidade de situações sociais na
época de Capelão, fato que propicia a esta fonte uma gama de
possibilidades de abordagem em termos de Ensino de História,
principalmente no sentido de desconstrução de ideias equivocadas sobre o
período em relação à atuação feminina na sociedade. Por exemplo, ao
comentar sobre este mesmo período, Georges Duby fez a seguinte
afirmação sobre o contexto intelectual feminino no século XII: “as damas do
século XII sabiam escrever, e com certeza melhor que os cavalheiros, seus
maridos ou seus irmãos. Algumas escreveram, e talvez algumas tenham
escrito o que pensavam dos homens. Mas praticamente nada subsiste da
escrita feminina.” (1995, p. 9).

O Tratado do Amor Cortês é uma fonte que apresenta uma visão de mundo
sobre as práticas e os comportamentos do Amor Cortês, o qual não estava
acessível a todos os grupos sociais da época, apenas à nobreza. A fonte em
si, utilizada em sala de aula, serve para demonstrar a lógica
comportamental da sociedade feudal. Porém, como um documento como o
Tratado do Amor Cortês pode ser utilizado nas aulas sobre o feudalismo na
Educação Básica? Como a obra de Capelão pode ser utilizada para abordar a
situação social feminina no contexto feudal? A seguir apresentamos
algumas reflexões iniciais sobre como este documento pode ser utilizado no
processo de Ensino de História, as quais, obviamente, não se esgotam neste
trabalho:
1) Em primeiro lugar, utilizar um documento como este em um contexto
escolar serve para destacar a presença feminina no contexto feudal, período
geralmente conhecido a partir da ótica e ação masculinas – com ênfase no
aspecto bélico e nas relações sociais de vassalagem e de senhorio –
desmistificando, assim, a ideia de um Medievo masculino; 2) Ademais, tal
fonte também pode ser utilizada para demonstrar uma diversidade social
em termos femininos, o que auxilia o discente a compreender a existência 259
de diversos grupos sociais no contexto, o que muitas vezes pode não estar
presente em termos de materiais didáticos, como o livro didático; 3) Por
fim, o Tratado serve para se aproximar à lógica comportamental da
sociedade feudal, a partir da visão de Capelão, na qual os grupos
apresentados na narrativa tinham suas funções naquela sociedade. E dentro
desta lógica comportamental encontramos grupos femininos que estavam
presentes naquela sociedade.

Considerações finais
No decorrer da década de 1970, os estudos sobre a História das Mulheres
no Medievo trouxeram inúmeras possibilidades de abordagens e de fontes,
as quais foram importantes para o conhecimento das experiências históricas
medievais femininas. O Tratado do Amor Cortês consiste em uma
composição cultural na qual constam experiências de seu autor, André
Capelão, voltadas para o mundo feminino no feudalismo, ou seja, os grupos
sociais que eram formados por mulheres no contexto feudal. Assim, a
memória social do grupo feminino está cristalizada no Tratado do Amor
Cortês, incluindo aqueles grupos que não eram o objetivo do autor.

Capelão, ao escrever sua obra, buscou um incentivo no presente e se voltou


para o passado, conseguindo, dessa forma, recuperar a memória dos
grupos sociais de mulheres e reformulá-la com objetivos específicos para
utilizar no seu discurso. Mesmo que o seu foco tenha sido as mulheres
nobres, de uma forma indireta, o autor, a partir da lógica do Amor Cortês,
deu destaque para outros grupos sociais femininos existentes em sua
época.

O Tratado do Amor Cortês nos permite romper não somente com a ideia de
um Medievo exclusivamente masculino, mas também com a ideia de
representação única da mulher no período medieval em termos sociais,
assim como nos tem permitido compreender a situação das diferenças
sociais – e os motivos destas diferenças – no contexto do feudalismo. Desse
modo, é importante ressaltar que os grupos sociais femininos estão
presentes na obra em espaços sociais distintos e, consequentemente,
possuem uma abordagem diferenciada por André Capelão. Por isso, é
preciso ter uma atenção específica para cada grupo, e isso deve ser
refletido e levado em consideração pelo professor em um contexto de
ensino de História.

Referências
Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da
Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas
Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus
Petrolina. Doutor em Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat
Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’Estudis Medievals
(UAB-IEM). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em
Medievalística (UPE/campus Petrolina).
Juliana Caroline de Souza Araújo é graduanda do Curso de História da
260
Universidade de Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti
– Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina).
Atualmente realiza seu projeto de Iniciação Científica como bolsista da
Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco
(FACEPE) sob a orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna, cujo título é “A
representação da mulher no Tratado do Amor Cortês: práticas,
comportamentos e condição feminina no século XII.”

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261
A IMPORTÂNCIA DO TEMA GÊNERO NAS AULAS DE HISTÓRIA
E HUMANIDADES: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS REDAÇÕES
NOTA MIL DO ENEM/2015
Juliana Dias Lima e Victor Romero de Lima

O presente artigo tem como objetivo destacar a importância da temática


262 “gênero” no ensino de História e de outras disciplinas de Humanidades na
Educação Básica. Para tanto, demonstraremos como o tema tem sido pauta
de provas importantes da educação nacional, a exemplo da sua presença na
redação de 2015 do Exame Nacional do Ensino Médio [ENEM], cujo título foi
“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
Metodologicamente, abordaremos a importância dessa temática numa
educação pautada nos direitos humanos e na valorização da diversidade, e
analisaremos cinco redações que obtiveram nota máxima, as quais estão
disponibilizadas no manual de redação do ENEM 2016 [INEP, 2016].

A temática “Gênero” na educação brasileira


Em 2014 foi apresentado pelo Ministério da Educação [MEC] o Plano
Nacional de Educação [PNE], que determina as diretrizes, metas e
estratégias para a política educacional dos dez anos seguintes.
Destaquemos que um dos objetivos do PNE seria a “promoção da igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, caracterizando, assim,
uma educação voltada ao desenvolvimento do aluno como cidadão crítico
apto a compreender e conviver com a diversidade social que o cerca, além
de ser uma das formas de combate aos diversos tipos de discriminação.

Desde a sua apresentação no Congresso Nacional, no entanto, o projeto


recebeu inúmeras críticas de parlamentares de vertente conservadora, o
que levou a modificação da proposta inicial. Foi retirado o termo “gênero”
sob a acusação de que fazia referência à ideologia de gênero nas escolas. O
PNE modificou o antigo trecho por “cobrir todas as formas de
discriminação”. Essa mudança: “soou como recuo às lutas por políticas
públicas não sexistas, antirraciais e antidiscriminatórias na educação, logo
uma perda para os direitos humanos” [Neves, 2018, p. 736]. Após essa
modalização, o Plano Nacional de Educação foi aprovado através da Lei n°
13.005/2014 [Brasil, 2014].

Importante ressaltar que durante esse período diversos projetos políticos


defendiam uma educação pretensamente sem doutrinação ideológica. Tais
projetos tinham apoio de movimentos como Movimento Brasil Livre [MBL] e
Movimento Escola sem Partido [ESP]. Este segundo, como é possível
perceber na própria nomenclatura, faz alusão ao combate de uma suposta
educação político-partidária em sala de aula, quando na verdade tem como
pretensão erradicar a educação democrática [Penna, 2016].

Num primeiro momento os apoiadores do Escola Sem Partido [ESP]


sinalizavam o combate ao que chamam de “doutrinação marxista” em
escolas, universidades e materiais didáticos. O movimento foi fundado em
2004 pelo advogado e procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib,
mas apenas a partir de 2014 ganhou notoriedade, sendo apresentado como
projeto de lei em diversas casas legislativas do país. Muitos políticos
apoiadores do movimento pertencem à bancada evangélica, usando como
argumento o discurso de combate a ideologia de gênero nas escolas. Com
isso, o ESP se voltava para outra pauta da agenda conservadora: o combate
à “ideologia de gênero”, entendendo de forma equivocada e preconceituosa
que a escola executa papel único na orientação de gênero do indivíduo 263
[Ferreira, Alvadia Filho, 2017].

Em decorrência dessa mudança, passou a haver uma pressão do


movimento no sentido de proibir que professores falassem sobre temas
como o criacionismo, gênero, sexualidade, entre outros, sob o risco de que
fossem denunciados para a associação e difamados na página da internet
do ESP.

Além do tema da redação de 2015, a contraditoriedade do Escola sem


Partido em relação ao tema “gênero” no ENEM ainda teve outro foco em
2015. Miguel Nagib direcionou sua crítica a uma questão presente na prova
de Ciências Humanas e Suas Tecnologias que trazia uma das citações mais
famosas da filósofa feminista Simone de Beauvoir no livro “O segundo
sexo”, de 1960: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” [Beauvoir,
2008, p. 13].

A visão crítica do fundador do ESP, presente no site oficial do Escola sem


Partido [escolasempartido.org], diz: “Este ano, mais de milhões de
estudantes tiveram de escrever uma redação sobre a violência contra a
mulher na sociedade brasileira. Cuidava-se, é claro, de uma provocação
ideológica, e é de supor-se que muitos candidatos tenham ficado temerosos
de expressar seus pensamentos” [Nagib, 2015]. Sua crítica sugere que o
próprio INEP estaria desrespeitando, claramente, os direitos humanos ao
impor que a intervenção para o problema abordado respeitasse os direitos
humanos, sem romper com valores como cidadania, liberdade,
solidariedade e diversidade cultural. Sua argumentação prossegue:
“Condicionar o acesso de um estudante ao ensino superior a que ele possua
ou expresse determinada opinião sobre o que quer que seja configura, sem
sombra de dúvida, uma forma acintosa de cerceamento àquelas liberdades”
[Nagib, 2015]. Nagib finaliza seu discurso dizendo que no fim das contas,
Simone de Beauvoir era apenas o boi de piranha do ENEM. Esta frase diz
respeito justamente à repercussão obtida pela questão de Ciências
Humanas que, segundo ele, teria tirado o foco sobre o real “problema” da
prova que era o “controle de pensamento” da redação ao zerar aqueles
alunos que desrespeitassem os direitos humanos.

Segundo defende o Escola sem Partido, a função de educar cabe a família e


a religião. O objetivo da escola seria apenas instruir para a entrada no
mercado de trabalho. Partindo dessa perspectiva, além de inconstitucional,
o movimento ignora uma educação emancipatória e crítica e também o
caráter plural da escola. Louro [2001] nos lembra que no ambiente escolar
estão presentes o sexismo, o racismo, a LGBTfobia e o ódio a diversidade. A
escola, muita vezes, pode ser ambiente de reprodução das mesmas formas
de discriminação, visto que é constituída através de uma parcela da
sociedade.

Assim sendo, numa visão democrática de Ferreira e Alvadia Filho [2017], o


papel do profissional da educação é, além de repassar o conteúdo,
estimular o pensamento crítico para que o aluno consiga relacionar
264
passado, presente e os padrões culturais que permeiam a sociedade a sua
volta. Só dessa maneira será possível fortalecer a luta por políticas públicas
que valorizem as minorias e façam com que os indivíduos aprendam, desde
cedo, a conviver respeitosamente em ambientes permeados pela
diversidade.

O ENEM de 2015 e a educação em direitos humanos


Assim como nos outros anos, na redação de 2015 o estudante deveria
escrever uma dissertação-argumentativa, com no máximo 30 linhas, que
em seu parágrafo de conclusão apresentasse uma proposta de intervenção
articulando medidas e agentes responsáveis, respeitando os direitos
humanos, sendo esta conclusão-intervenção um diferencial do exame. Em
caso de violação dos direitos humanos o candidato teria nota zero atribuída
a sua prova.

Além de se constituir no principal mecanismo de ingresso ao ensino superior


do país, é importante salientar que o ENEM se apresenta como forma de
avaliação do currículo educacional em âmbito nacional, tendo em vista o
cumprimento do artigo 205 da Constituição Federal de 1988, tanto por
instituições de ensino privada como por instituições de ensino público, o
qual afirma: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho” [BRASIL, art. 205]. Logo,
diferente do que afirma o movimento Escola Sem Partido, a educação é um
direito que relaciona diversas instituições e deve ser uma educação que
prepara também para o exercício da cidadania e não apenas para a
qualificação no mercado de trabalho.

Ademais, assim como a educação é uma atividade que relaciona diversas


instituições, a educação em direitos humanos [EDH] faz-se necessária com
o auxílio de várias instituições, inclusive dentro da própria escola, ou seja,
não é função apenas do professor de História ou de seus colegas de
Humanidades abordarem conteúdos sociais em suas aulas, mas sim de
todos os educadores em conjunto. Com isso, não haverá apenas um
letramento em direitos humanos, mas uma cultura em direitos humanos e
dessa forma será possível fazer com que medidas realmente aconteçam
extraclasse [Neves, 2018]. Para isso, também é necessário que os
educadores pensem em estratégias para abordar os conteúdos sem que
reproduzam discriminações que já estão estruturadas na sociedade,
inclusive no currículo e na linguagem irrefletida que são usadas, e que, por
conseguinte, acabam reafirmando as diversas formas de discriminação
existentes na sociedade [Meyer, 2003].
Análise das redações nota 1000 e sua importância para a História e
as Humanidades

Ao examinarmos as cinco redações nota 1000 de 2015 disponibilizadas no


manual de redação do ENEM 2016 [INEP, 2016], é possível observar a
percepção das melhores provas sobre o tema. Quatro das cinco redações
salientaram que, apesar de a sociedade ter tido mudanças em relação aos 265
espaços sociais, que passaram a ser mais ocupados por mulheres, ainda há
muito a avançar em termos de igualdade de direitos e condições entre os
gêneros.

Abaixo apresentaremos os trechos que mais chamaram a atenção nas


redações disponibilizadas, podendo perceber em cada uma a alusão ao
tema gênero. Em seguida, os analisaremos.

Redação 1: “A crença na subalternidade feminina é construída socialmente.


A filósofa Simone de Beauvoir corrobora isso ao afirmar que “ninguém
nasce mulher, torna-se mulher”. Os dizeres de Beauvoir revelam como a
associação da figura feminina a determinados papéis não é condicionada
por características biológicas, mas por pré-determinações sociais” [INEP,
2016, p. 49].

Redação 2: “O Brasil ainda não conseguiu se desprender das amarras da


sociedade patriarcal. Isso se dá porque, ainda no século XXI, existe uma
espécie de determinismo biológico em relação às mulheres. Contrariando a
célebre frase de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se
mulher”, a cultura brasileira, em grande parte, prega que o sexo feminino
tem a função social de se submeter ao masculino, independentemente de
seu convívio social, capaz de construir um ser como mulher livre” [INEP,
2016, p. 51].

Os trechos acima, retirados das duas primeiras redações, citam a frase de


Simone de Beauvoir que também esteve presente na prova de Ciências
Humanas. Diferentemente do fundador do Escola sem Partido, que a usou
para fomentar suas críticas a respeito da educação sobre gênero, os alunos
a utilizaram para salientar a sociedade brasileira como possuidora de uma
cultura que pré-estabelece o papel feminino e que, por sua vez, essa
“construção” determina a posição e o comportamento das mulheres se
comparadas aos homens.

Devido ao exposto, vale relembrar o nome de uma antropóloga que não foi
mencionada nas redações, no entanto é de grande prestígio para o tema.
Margaret Mead, em 1935, contribuiu para a ruptura da ideia de que o
comportamento dos homens e das mulheres era determinado por fatores
biológicos em seu ensaio intitulado “Sexo e Temperamento”. Comparando
diversas sociedades, Mead conclui que as chamadas qualidades masculinas
e femininas não são baseadas em diferenças sexuais fundamentais e
determinantes, mas reflete condicionamentos culturais de diferentes
sociedades. Apenas o sexo é biológico [Mead, 1969].
Redação 3: “O ensino veta todo e qualquer tipo de instrução a respeito do
feminismo e da igualdade de gênero e contribui com a perpetuação da
ignorância e do consequente preconceito” [INEP, 2016, p. 53].

A escola, por representar um veículo de formação e estar presente da


infância à vida adulta do individuo deve ter como proposta central a
266
convivência de todos com a diversidade e a pluralidade. As temáticas das
aulas, portanto, tornam-se definitivas para que estas convivências sejam
colocadas em prática no âmbito social. Não é viável que os alunos tenham
conhecimento sobre um tema que eles não têm a oportunidade de discuti-
lo. Conforme o trecho extraído, o papel fundamental da educação não deve
ser apenas contribuir com termos e conceitos para avaliações, mas fazer
com que essas referências se consolidem e se tornem ações efetivas que
sejam levadas também para fora do ambiente escolar.

Redação 4: “Na revolução de 1930, paulistas insatisfeitos com a falta do


poder político que detinham na República do café com leite usaram a falta
de uma constituição para se rebelar contra o governo Vargas. O presidente,
cedendo às pressões, garantiu na nova Constituição um direito nunca antes
conquistado pela mulher: o direito ao voto. A inclusão da mulher na
sociedade como cidadã, porém, não foi o suficiente para deter o
pensamento machista que acompanhou o Brasil por tantos séculos – fato
evidenciado nos índices atuais altíssimos de violência contra a mulher”
[INEP, 2016, p. 55].

No parágrafo de introdução desta redação o candidato expôs o avanço na


luta pelo direito ao voto feminino, só alcançado na década de 1930. Além
disso, destaquemos a percepção, em especial ao estudante autor desta
redação, sobre a luta feminista, pois a pressão para a conquista de direitos
não se deu somente relacionada ao voto. A população feminina ainda teve
que lutar pelo direito ao divórcio, ao controle da natalidade, ao direito à
segurança, visto a alta taxa de violência contra a mulher e ao direito à
educação, este que ainda não foi conquistado completamente. Outro fato
que deve ser levantado consiste na falta de representatividade feminina na
política brasileira já que é uma das formas de fomentar a criação de
políticas públicas para garantir avanço na luta pelos direitos das mulheres.

A redação conseguiu valer-se, ainda, do repertório da disciplina de História


para relacionar um assunto do passado à contemporaneidade, no caso a
persistência da violência contra a mulher. Diante do conteúdo abordado no
trecho é possível debater como os fatos e lutas do passado podem
contribuir para as problemáticas que, ainda hoje, são enfrentadas pelas
mulheres. Assim, o passado histórico do Brasil, bastante negativo, pode
contribuir para fomentar discussões que contribuam para a formação do
aluno cidadão, isto é, um cidadão participativo e solidário, aliado a uma
educação democrática e de direitos humanos, esses dois últimos que
precisam sempre andar juntos para alcançarmos essa educação [Benevides,
2003].
Redação 5: “’A história da humanidade é a história da luta...’ das mulheres.
Karl Marx, filósofo e sociólogo alemão baseou seu pensamento na extinção
gradual das classes sociais e das diferenças presentes na sociedade
moderna. Analogamente, percebe-se, no âmbito das relações sociais
humanas, a presença de um grupo que não foge à luta por seus direitos: a
população feminina. Por viverem em um país patriarcal - herança herdada
dos tempos do Império - as mulheres brasileiras permanecem à deriva da 267
sociedade” [INEP, 2016, p. 57].

O conceito “patriarcal” aparece na última redação fazendo alusão ao


“estado” de superioridade dos homens e a herança existente até hoje que
submete as mulheres e as deixam em condições de sub-representação
social. Ademais, observa-se uma importante interdisciplinaridade. O
estudante destacou Marx, que diz respeito às aulas de Sociologia e Filosofia,
e também cita a herança patriarcal vinda dos tempos do Império, o que
provavelmente esteve presente nas suas aulas de História. São utilizados
termos como “sociedade moderna”, “relações sociais” e “direitos”,
sinalizando um repertório com expressões e conceitos do currículo de
Humanas para fortalecer sua argumentação.

Também é válido ressaltar que as redações 1, 3 e 5 abordaram uma das


políticas públicas que visam à proteção da mulher, a Lei Maria da Penha, Lei
n° 11.340/2006, cujo principal objetivo é coibir todos os tipos de violência
contra a mulher. Apesar de seu objetivo, as redações alertam que ela não
chega a ser inteiramente eficaz. O estudante autor da primeira redação cita
o aumento dos casos de homicídios contra as mulheres, ainda que a Lei
Maria da Penha criminalize o feminicídio. Na segunda redação ela é citada
como: “nem sempre eficaz” [INEP, 2016, p. 53]. Já na quinta o autor, em
sua proposta de intervenção, propõe que: “cabe ao Estado a fiscalização da
Lei Maria da Penha e também a aplicação da mesma com maior rigor”
[INEP, 2016, p. 57]. Através da percepção dos autores das redações do
ENEM 2015, cabe a nós refletirmos o quão significativo torna-se o estudo
das Ciências Humanas no contexto atual.

Considerações finais
Por meio da análise das cinco redações nota 1000 podemos perceber como
a argumentação antidiscriminatória, bem como o uso de conteúdos das
diferentes áreas de Humanidades, é valorizada pelo ENEM. Esse fato
reafirma a necessidade da defesa de um currículo de História e de Humanas
na Educação Básica que contribua para uma educação lastreada nos direitos
humanos e na democracia [Abreu, 2015].

Opondo-se a movimentos que defendem uma educação sem supostas


doutrinações políticas ou ideológicas que, por conseguinte, defendem a
manutenção, e até retirada das disciplinas de Humanidades do ensino
básico brasileiro, é necessário destacar que abordar assuntos que
contribuam para uma visão independente e crítica em sala de aula não diz
respeito à doutrinação, mas sim em estabelecer uma identificação dos
alunos perante o meio social em que estão inseridos.
Devemos lembrar que os direitos humanos são fatos históricos, mudam
conforme o tempo e não se resumem apenas ao que está escrito na
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Logo, questões de
gênero, questões de raça e etnia, de sexualidade, entre outros também são
questões de Direitos humanos [Neves, 2018; Benevides, 2003].

268
Não é possível contribuir para a formação de cidadãos participativos em um
regime não democrático visto que durante a história, principalmente
durante o século XX, regimes totalitários contribuíram para a formação
cívica, porém, também fascista e nazista da população. Logo, uma
educação em direitos humanos focada na participação cívica da população
deve ser também em um regime que se perpetue a democracia [Benevides,
2003].

Nesse sentido, expressões vistas nas redações nota 1000 como “pré-
determinações sociais”, “sociedade patriarcal”, “determinismo biológico” e
até mesmo a frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, devem estar
presentes em sala de aula. O propósito é fortalecer a educação em direitos
humanos, situar o aluno e familiarizá-lo com fatos recorrentes socialmente,
dentre eles a necessidade de se combater a violência contra a mulher. As
aulas podem servir como estimulante para que os estudantes busquem
soluções para diversas problemáticas sociais, e não para que compactuem
com culturas discriminatórias e violentas.

Referências
Juliana Dias Lima é graduanda em Licenciatura no curso de Ciências Sociais
na UERJ e estagiária do projeto PIBIC "A Sociologia no ENEM e a visão dos
licenciandos em Ciências Sociais na UERJ".
E-mail: juuliana_dl@hotmail.com
Victor Romero de Lima é graduando em Licenciatira no curso de Ciências
Sociais na UERJ e estagiário do projeto PIBIC "A Sociologia no ENEM e a
visão dos licenciandos em Ciências Sociais na UERJ". E-mail:
victor.romero.lima@gmail.com

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NEVES, C. A. B.. “Direitos Humanos e Educação: A polêmica em torno da
provação de redação do ENEM 2015 e 2017”. Trabalhos em Linguística
Aplicada, v. 57, 2018.
PENNA, Fernando de Araujo. O Ódio aos Professores. Publicado por
PROFESSORESCONTRAOESP. 14 de novembro de 2016. Disponível em:
https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2016/11/14/o-
odio-aos-professores-se-profissionaliza/
A PUBLICIDADE COMO FONTE PARA O ENSINO DA HISTÓRIA:
UM ESTUDO DE CASO NA SALA DE AULA COM PUBLICIDADE DE
CERVEJA PARA DISCUTIR REPRESENTAÇÕES SOBRE A
MASCULINIDADE EM MEDELLÍN - COLÔMBIA
Kelly Johanna Cadavid Sánchez e Maria Isabel Giraldo Vásquez

270 Este trabalho apresenta um modelo de exercício acadêmico universitário


realizado nas aulas de história do design para tratar questões de
construções de identidade e relações de gênero e, neste caso, as
construções do masculino, durante certos períodos históricos na cidade de
Medellín, Colômbia. O objetivo geral é a análise de modelos publicitários,
com foco na transmissão, construção e permanência de um discurso em
relação ao ideal masculino. As peças gráficas que promoveram a cerveja
nas primeiras décadas do século XX são tomadas como referência. Durante
esses anos, os gráficos de um produto eram um meio de informação de
notável influência e poder, motivo pelo qual o conteúdo gráfico contido era
importante, além dos textos que os acompanham. Tanto nas peças gráficas
promocionais quanto nos rótulos desses produtos, evidenciam-se força,
valores, comportamentos e traços que, ao longo das décadas mencionadas,
foram adotados como características do masculino.

Breve contexto histórico


Durante a primeira metade do século XX, o departamento de Antioquia-
Colômbia (É o departamento mais populoso da Colômbia e sua capital,
Medellín, a segunda maior cidade do país) foi o foco de grandes mudanças
econômicas, sociais e culturais, devido a um processo acelerado de
industrialização. Esse processo teve seu epicentro na capital do
departamento: Medellín, onde foram apresentadas as maiores condições de
desenvolvimento industrial do país. A partir do final do século
imediatamente anterior, a cidade deixou de ser um espaço camponês,
tornando-se uma cidade industrial; vários processos e fatores contribuíram
para que a cidade e o departamento se tornassem pioneiros no
desenvolvimento industrial e empresarial do país. Questões como o boom
do cultivo e produção de café, ouro e comércio possibilitaram o surgimento
de indústrias têxteis, de alimentos e bebidas que encontraram neste local
um espaço adequado para se instalar. As primeiras indústrias a se
estabelecer na região foram as que deram as bases para desenvolvimentos
industriais subsequentes que posicionaram a capital, Medellín, como centro
de desenvolvimento nacional, e levaram à identificação do departamento
como região industrial por excelência durante o século XX.

Assim, as mudanças ocorridas na cidade e na região levam a uma série de


análises, discussões e reflexões sobre o perfil dos habitantes (homens) em
relação aos valores próprios de uma mentalidade crioula que começou a
trilhar os caminhos da modernidade, industrialização e progresso.

Fundamentos teóricos: identidade e gênero.


Interpelados social e culturalmente pelas transformações ocorridas em
Antioquia, particularmente em Medellín, e pelas discussões sobre
modernidade, é necessário entender como são elaborados os significados
materiais, culturais e sociais que existem em um determinado grupo
humano, como afirma Stuart Hall, “cómo a interação entre o “eu” e o grupo,
o mundo pessoal e o mundo público possibilitam a internalização de
significados e valores. Assim, a identidade “costura” ou “sutura” um sujeito
a uma estrutura (social), estabiliza os sujeitos e os torna unificados e
previsíveis” [Hall, 2011, p. 12]. 271

Neste sentido, a identidade é evidente em aspectos notórios da cultura,


como relações sociais, a linguagem, os objetos ou rituais, bem como em
comportamentos coletivos e até características de personalidade. Segundo
[Larrain, 2003], durante o processo de construção da identidade existem
três processos identificáveis: um processo cultural, que tem a ver com o
reconhecimento de si a partir de valores sociais compartilhados; outro
processo material, onde a comunidade se reflete nos objetos que usa e,
finalmente, um processo social, onde "os outros" são constantemente
referenciados, entendendo-os como parte da comunidade, mas ao mesmo
tempo como diferentes. Nesse processo, o autoreconhecimento histórico
das pessoas que fazem parte de um grupo social também está envolvido, e
é então quando se fala que a identidade está diretamente relacionada à
história e ao patrimônio cultural. Como Tomaz Tadeu da Silva argumenta, a
identidade não pode existir sem memória, nem sem a capacidade de
reconhecer o passado, onde um processo de identificação por
reconhecimento é possível; da mesma maneira, isso não pode acontecer
sem os elementos referenciais que lhes são próprios ou não, nem sem
elementos que o ajudem a construir o futuro, ou a identificação por
projeção. Assim pois:

«A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre


quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e
quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras,
significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A
identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles”»
[Da Silva, 2001, p. 83].

Pensar nesses três processos constitutivos de identidade é entender que as


identidades são socialmente constituídas não apenas pelo que as pessoas
reconhecem que têm em comum com outras, mas também pela
demarcação dessa alteridade e pelo reconhecimento do outro como ser
diferente e, pela projeção ou pela possibilidade de mutação / mudança no
tempo.

Em relação ao conceito de identidade, este se constitui de maneira


relacional à identidade de gênero, sendo este um arcabouço entre biologia e
cultura (relacionando sexo a questões biológicas e gênero a aspectos
culturais), uma vez que o gênero permite discernir qualquer sujeito na
sociedade, mas a questão não é tão simples quanto poderia ser a
diferenciação de dois sexos que correspondem a dois gêneros. “Existem
sociedades que consideram a existência de mais de dois gêneros. Além
disso, o gênero pode ser entendido, não como dois pólos opostos (homem /
mulher), mas como um continuum; para que fosse possível analisar o nível
de masculinidade ou feminilidade no autoconceito de um indivíduo por meio
da identificação com características tradicionalmente consideradas
masculinas ou femininas” [Espinar, 2003, p. 28].

O estudo de gênero deixou as mulheres para trás como um tema central,


272
entendendo que não se pode considerar uma parte só da população,
entendendo então que a sociedade é composta de homens e mulheres,
assumindo ambas as partes como uma realidade social. Se atribui ao
homem a sua masculinidade por ser um "macho viril", demonstrando seus
valores dominantes na sociedade, mas é cheio de preconceitos e
estereótipos de gênero em relação ao comportamento tanto de homens
quanto de mulheres.

Em relação às construções identitárias e às concepções do que era


considerado masculino na América Latina, durante o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, as caraterísticas que definiam “o
masculino" e a ordem social estabelecida, faziam referência ao homem
como:

«Autoridad paterna y guía, proveía y dominaba sin contrapeso la vida


cotidiana, distinguía entre lo público y lo privado- el trabajo, la política y la
calle para los hombres y la crianza, acompañamiento de los hijos y cuidado
del hogar para las mujeres- y establecía la división del trabajo- los hombres
en la producción y las mujeres en la reproducción» [Olavarría, 2003, p. 93].

Da mesma forma, essa ordem social era acompanhada de legislação, onde


a autoridade era dada aos homens dentro da família e a obediência absoluta
das mulheres era solicitada. Dessa maneira, estabeleceu-se uma ordem
social que conciliava trabalho e família, a produção e a reprodução.

«As relações de gênero, então, estavam definidas sob a interpretação que


foi feita dos corpos de homens e mulheres desde a revolução francesa, onde
os corpos de mulheres eram passivos em comparação com os de homens
"ativos e freqüentemente incontroláveis". Os homens eram mais "punidos"
pela paixão, tendências destrutivas e egoístas, e pouco dotados de
serenidade e solidariedade, e assim permitiam certos tipos de
comportamento que "afirmavam seu poder e arbitrariedade em relação às
mulheres". Esse modelo então definiu homens com características
masculinas, galantes, esportivas, fortes e trabalhadoras; além disso,
características racistas, classistas e sexistas foram atribuídas ao masculino
que se tornará evidente e se espalhará em vários meios de comunicação ao
longo das décadas mencionadas » [Olavarría, 2003, p. 93].

Prática acadêmica: a mensagem publicitária e a masculinidade do


início do século XX
Para abordar a questão das representações masculinas na publicidade de
cerveja, foi proposto um esquema de análise de publicidade do início do
século XX, publicado no jornal local EL COLOMBIANO. Aqui, se mostram as
formas enunciativas que compõem uma série de comportamentos
masculinos, identificando, descrevendo e interpretando a maneira pela qual,
através da publicidade, é possível evidenciar uma leitura da realidade social
da época.

Durante as aulas de história do design, essas análises foram realizadas e


discutidas pelos alunos. As construções sociais são pensadas e questionadas
através do design e de sua capacidade de manter ou ratificar certos 273
discursos. Algumas das análises dessas peças são mostradas abaixo.

Referência 1. EL COLOMBIANO, Diario de Medellín (corp.) Cien Años de


Publicidad Antioqueña. Medellín: El Colombiano, 2012

Nesse rótulo, devido ao seu tipo de mensagem, é possível definir em sua


estrutura e diagrama as características semânticas e semióticas que
permitem reconhecer que tipo de aspectos leva da realidade e para quem
sua afirmação é dirigida.

Pode se ver a representação social através do estereótipo masculino da


classe média baixa da época, reafirmando comportamentos e o estilo de
vida dessa classe de homens, uma vez que se supunha que a essa classe
social pertenciam os trabalhadores, as pessoas que trabalhavam com sua
força física, pessoas pouco elegantes, carentes não apenas de dinheiro, mas
também de estilo, cultura e educação. Mas o homem de Antioquia sempre
foi um bom trabalhador, ansioso por avançar e cheio de força; portanto, ao
homem não podia faltar energia e, por isso, uma ou duas cervejas por dia
ajudariam a prevalecer vigorosamente, pois era ele quem saía para
trabalhar enquanto a mulher fazia as tarefas em casa:

[Schrader, Sánchez, Gómez, & Pinzón, 2015] “La influencia de la publicidad


se muestra en una doble perspectiva. Primero, como medio para de finir e
imponer representaciones sociales sobre estilos de vida, necesidades y
objetos diferenciales, configurando un cierto poder simbólico entre los
individuos, a través de productos o marcas que dan identidad social.
Segundo, como manifestación de las prácticas, procesos y valores sociales
que se muestran en los diferentes ámbitos humanos en una época, por lo
cual se constituye en documento historiográfico” [p. 19].

Este rótulo é um reflexo da cultura de consumo. Uma mensagem subliminar


que queria ser deixada ao consumidor através de material simbólico e,
274
assim, alcançar uma expansão máxima de vendas possíveis, e para isso se
aproximar da classe média baixa era uma ótima estratégia, porque em
números essa classe social na população era mais ampla.

“A publicidade é constituída em um espaço simbólico onde convergem as


representações sociais atuais, as possíveis ou as formuladas a partir das
práticas cotidianas dos sujeitos em um dado momento” [Schrader et al,
2015, p. 19]. Recursos materiais e simbólicos sempre constroem a maneira
de consumir, e essa publicidade o faz muito bem: expressa uma atividade
que designa uma aparência e um encontro social, uma razão e um por qué
se deve consumir.

Indicada para o magro. Pilsen, 1934.


Referência: 2. EL COLOMBIANO, Diario de Medellín (corp.) Cien Años de
Publicidad Antioqueña. Medellín: El Colombiano, 2012

Tradução: uma magreza extrema, além de ser feia, predispõe a doenças


graves. Quando este for o caso, beba CERVEJA PILSEN. O álcool que
contém é chamado pelos médicos de "alimento para economizar", porque
ativa a nutrição, ajuda a fortalecer e nutre o corpo. Leve-a em casa para
almoçar e jantar. Peça na cantina mais próxima ou por dúzias ao telefone
23 -28

Trata-se de um rótulo com texto descritivo, no qual um homem magro é


visto como ator central, sentado em uma poltrona, com a mão no rosto
como gesto de preocupação.
Referindo-se ao texto, o homem é bastante delgado, com uma expressão
de desdém e tristeza no rosto. É evidente que, com essa publicidade, se
deseja evitar que o homem tenha uma aparência magra, porque no início
do século XX, ser assim era um sinal de fraqueza, até de doença. Pode-se
pensar que o ideal do homem de Antioquia era ser enérgico e vigoroso,
então o homem não pudesse ser fraco e magro, porque isso significaria que
ele não trabalharia duro. A imagem que é construída durante essas décadas 275
é a de um Antioquia sob uma figura de força, tenacidade e disciplina;
portanto, não era conveniente ser delgado (ou magro, como indicado na
imagem).

[Schrader et al, 2015, p. 21]. Esta peça mostra como a publicidade se


constitui no reflexo dos comportamentos sociais de uma época, enquanto
condiciona esquemas mentais sobre os sujeitos, os fatos e as ações
descritas em torno de produtos ou marcas. No contexto temporal indicado,
a cerveja era uma importante fonte de alimento e energia, era o mecanismo
para evitar doenças e desnutrição, os próprios médicos a aconselhavam,
uma vez que ser magro causava grande preocupação nas pessoas e estava
associado a problemas de saúde.

Estrela do esporte, Pilsen, 1940


Referência: 3. EL COLOMBIANO, Diario de Medellín (corp.) Cien Años de
Publicidad Antioqueña. Medellín: El Colombiano, 2012
Tradução: Após a intensa agitação de um campeonato movimentado,
nossos tenistas dissipam seu cansaço com um copo de cerveja Pilsen,
porque a Pilsen revive.

Já foi visto como o homem e a cerveja se combinam em suas vidas diárias,


isso não exclui o homem nos esportes e o papel da cerveja neles.
Praticar esportes ajuda a estimular todos os sentidos, mesmo que cause um
pouco de fadiga. Fadiga que pode ser atenuada com um copo de cerveja,
porque na época a cerveja cumpria várias funções com muitas
características: era uma fonte de alimento e de hidratação.

Nas décadas mencionadas, foi o homem que trabalhou para sustentar as


276
despesas financeiras da família e o papel da mulher se limitou a ficar em
casa e fazer as tarefas domésticas. Fadiga e cansaço eram então
característicos do homem, pois era ele quem tinha um emprego e seu dia
era exaustivo.

“As identidades de gênero devem ser estudadas como um continuum de


formas simbólicas e práticas sociais através das quais as pessoas constroem
sua maneira de ver o mundo, agindo nele e se reposicionando em relação a
si mesmas e ao seu corpo” [Otegui, 1999, p. 153]. Assim, o esporte pode
ser tomado como uma atividade de tempo livre, uma atividade que fornece
emoções que neutralizam as tensões geradas pela rotina diária da vida
como atenuar o longo e cansativo dia de trabalho, lembrando que era o
homem que trabalhava.

O colega ideal: Pilsen, 1951.


Referência: 4. EL COLOMBIANO, Diario de Medellín (corp.) Cien Años de
Publicidad Antioqueña. Medellín: El Colombiano, 2012

Reuniões sociais sempre foram uma boa direção a ser adotada como
estratégia de comercial. “No início do século XX, as atividades comerciais
concentraram a atenção nas elites de Medellín; uma parte importante de
sua atividade foi a importação de bens de consumo, dando lugar ao
crescimento comercial da atividade financeira” [Rodríguez J, s.f.]. Atividade
onde o homem de elite representa uma figura de autoridade e crescimento
econômico, um homem glamouroso, bem vestido, com detalhes sutis e
atenções.

Na peça publicitária, reflete-se então ao cómo as horas de uma mulher na


companhia de um homem com essas características podem ser "das horas
mais agradáveis". Assim, é apresentado como "natural" que na espécie
humana homens e mulheres se comportam de acordo com algumas 277
características primárias que são características de sua condição sexual. Por
sua vez, o masculino e o feminino seriam apenas o desenvolvimento
cultural e social mais refinado daqueles imperativos aparentemente naturais
e primários que sustentariam as formas práticas das relações sociais
[Otegui, 1999, p. 152].

Os encontros entre homem e mulher fizeram com que a cerveja mudasse


de contexto, passando de ser uma fonte popular de comida a uma bebida
quase "virtuosa" para animar momentos especiais, de modo que o produto
também ganhou status.

Conclusões
A publicidade é um meio que indiscutivelmente conta e narra a mentalidade
de uma sociedade, mas não apenas isso, também elabora e ensina como ler
a própria sociedade, seus valores, suas representações, sua identidade.
Talvez possa até ser considerado um dos atores mais poderosos que
influenciam o processo de produção cultural das sociedades
contemporâneas, conforme expresso por Vanni Codeluppi [Codeluppi, 2007,
p. 152] A publicidade captura os significados existentes na imaginação
coletiva e os adapta aos produtos que anuncia, concedendo certos valores
simbólicos que são reproduzidos na sociedade.

Assim, vislumbram-se as possibilidades das linguagens gráfica e textual,


bem como o discurso da publicidade e do design gráfico como elementos
sociais e culturais, políticos e econômicos capazes de construir, manter,
reforçar ou modificar os modos de ser de uma coletividade e que
contribuem para a construção ou permanência de uma identidade e ethos
cultural regional.

Além disso, torna-se possível pensar nas oportunidades que a imagem


publicitária tem como fonte historiográfica, no poder das pequenas histórias
narradas nelas e na capacidade de transmitir e entender os eventos do
passado. As peças publicitárias podem então ser catalogadas como fontes
primárias na historiografia, à medida que são produzidas ao mesmo tempo
que os eventos históricos acontecem, uma questão que os torna
documentos importantes para interpretar, analisar e estudar questões do
passado.

Referências
Kelly Johanna Cadavid Sánchez, é tecnóloga em design industrial.
Atualmente é aluna de décimo semestre em Engenharia de Design
Industrial no Instituto Tecnológico Metropolitano - ITM em Medellín -
Colômbia. É membro do grupo de estudos em Cultura Material da mesma
universidade. Faz parte do grupo de talentos excepcionais ITM. Em 2019,
foi jovem -pesquisadora da mesma instituição na área de inovação social.
Maria Isabel Giraldo Vásquez é designer industrial, especialista em design
de embalagens, e mestre em história. Atualmente, trabalha como
professora e pesquisadora no departamento de design do Instituto
Tecnológico Metropolitano de Medellín - Colômbia. Faz parte do grupo de
278
pesquisa Artes e Humanidades e coordena o grupo de estudos em Cultura
Material da mesma instituição. Seu trabalho acadêmico abrange temas
sobre patrimônio, cultura material, educação e história.

Codeluppi, V. (2007). El papel social de la publicidad. Revista internacional


de investigaciones publicitarias., I(1), 149 - 155. Obtenido de
https://revistas.ucm.es/index.php/PEPU/article/view/PEPU0707120149A
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Da Silva, T. T. (2001). Espacios de Identidad. Barcelona: Octaedro. [Livro]
EL COLOMBIANO. (2012). Cien Años de Publicidad Antioqueña. Diario de
Medellín. medellín. [Livro]
Espinar, R. E. (2003). Violencia de género y procesos de empobrecimiento.
Tesis Doctoral. Universidad de Alicante. Obtenido de
http://hdl.handle.net/10045/9905 [Tesis de doutorado]
Hall, S. (2011). Identidade cultural na pós-modernidade (10 ed.). (DP&A,
Ed.) Rio de Janeiro, Brasil. doi:https://doi.org/10.1590/S0104-
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Larrain, J. (2003). El concepto de indentidad. Revista FAMECOS, 10(21),
30-42. doi:http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2003.21 [Artigo]
Olavarría, J. (2003). Los estudios sobre masculinidades en América Latina,
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Sánchez RiañoV., Schrader ValenciaC., & Gómez DazaN. R. (2015). La
publicidad como espejo de la sociedad. La Tadeo Dearte, 1(1), 128-139.
ARTESÃS SUL-MATO-GROSSENSES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA:
DO DESCONHECIDO PARA A SALA DE AULA
Lislley Raquel Damazio e Jaqueline Ap. M. Zarbato

Investigar os saberes culturais imateriais das artesãs em Campo Grande,


contribui para fundamentar a produção do conhecimento histórico sobre sua
importância para a cultura da cidade e, também para a manutenção das 279
tradições orais na História regional. Essa pesquisa faz parte do projeto
“Patrimônio histórico-cultural material e imaterial nas cidades de Mato
Grosso do Sul e seu impacto histórico- cultural: Cultura regional e formação
de um sistema de preservação a partir da educação patrimonial”. Nesse
sentido, a pesquisa aqui apresentada se justifica pela importância histórica
das mulheres na cultura regional, tendo em vista que Mato Grosso do Sul
tem um número expressivo de artesãs, que trazem elementos da cultura e
da economia solidária. Sendo assim, essas experiências da tradição cultural
e oral aprofundam as relações histórico culturais como espaços de formação
para o ensino e história do patrimônio.

Dessa maneira, realizamos a pesquisa no espaço de artesãs, localizado em


Campo Grande, em que há diferentes tipos de trabalhos artesanais, com as
mulheres que desenvolvem as suas atividades culturais. Entende-se por
cultura todas as ações por meio das quais os povos expressam suas
“formas de criar, fazer e viver ” [Constituição Federal de 1988,art. 216]. A
cultura engloba tanto a linguagem com que as pessoas se comunicam,
contam suas histórias, fazem seus poemas, quanto a forma como
constroem suas casas, preparam seus alimentos, rezam, fazem festas.
Percebe-se no texto produzido pelo IPHAN que, as “crenças, suas visões de
mundo, seus saberes e fazeres. Trata-se, portanto, de um processo
dinâmico de transmissão, de geração a geração, de práticas, sentidos e
valores, que se criam e recriam (ou são criados e recriados) no presente, na
busca de soluções para os pequenos e grandes problemas que cada
sociedade ou indivíduo enfrentam ao longo da existência [IPHAN, 2008].

Assim, as pessoas de cada grupo social compartilham histórias e memórias


coletivas, visões de mundo e modos de organização social próprios. Ou
seja, as pessoas estão ligadas por um passado comum e por uma mesma
língua, por costumes, crenças e saberes comuns, coletivamente partilhados.
A cultura e a memória são elementos que fazem com que as pessoas se
identifiquem umas com as outras, ou seja, reconheçam que têm e partilham
vários traços em comum. Nesse sentido, pode- se falar da identidade
cultural de um grupo social. O patrimônio cultural de um povo é formado
pelo conjunto dos saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos,
que remetem à história, à memória e à identidade desse povo.

A preservação do patrimônio cultural significa, principalmente, cuidar dos


bens aos quais esses valores são associados, ou seja, cuidar de bens
representativos da história e da cultura de um lugar, da história e da cultura
de um grupo social, que pode (ou mais raramente não), ocupar um
determinado território. O objetivo principal da preservação dos saberes
culturais femininos relacionam-se ao patrimônio cultural imaterial, sendo
necessário fortalecer a noção de pertencimento de indivíduos a uma
sociedade,a um grupo,ou a um lugar, contribuindo para a ampliação do
exercício da cidadania e para a melhoria da qualidade de vida. Umas das
questões cruciais da pesquisa se dá pelo pouco tombamento e mapeamento
dos saberes culturais patrimoniais em Mato Grosso do Sul. A presença
280
feminina está arraigada na construção na cultura nacional e expressa no
patrimônio cultural imaterial brasileiro, seja na engenhosidade do saber
fazer ou mesmo na economia solidária.

As narrativas do grupo de artesãs que fazem parte do Centro de


Comercialização da Economia Solidária, permitem conhecer e difundir o
trabalho das mesmas, assim como o movimento de Economia Solidária. Tal
movimento é conhecido nacionalmente por gerar autonomia particular
regionalmente, e com o passar dos anos assume uma posição importante
quando se trata de trabalhos pouco valorizados pela massa. As artesãs
inseridas neste contexto possuem uma visão única e narrativas ímpares
sobre sua arte como parte do movimento, com enfoque nos saberes
geracionais mencionados por uma das artesãs, assim como o modo com o
qual este saber é perpassado e os materiais gerados por ele. Os elementos
culturais das vivências das artesãs será elemento constituidor como espaços
de formação para o ensino e história do patrimônio. Nosso trabalho busca a
partir de tais análises realizar a produção de oficinas voltadas para o ensino
de história patrimonial nas escolas, assim como a construção de um
material didático sobre os saberes femininos nos elementos culturais sul-
mato-grossenses. Como abordagem teórica utilizamos as contribuições de
Michele Perrot, com Minha História das Mulheres (1990); sobre aulas
oficinas de Isabel Barca (2004); sobre Economia Solidária, com França Filho
& Laville; sobre Saberes culturais femininos, com José Gonçalves, (2002).

Metodologicamente, utilizamos as narrativas e as trajetórias das mulheres


artesãs, os grupos femininos que fazem parte de associações, espaços de
socialização de seus trabalhos. Em que contribuem com o processo de
formação das identidades regionais, assim ao catalogar os processos de
fazer-saber das mulheres artesãs como elemento cultural na região Centro-
Oeste do Brasil. Realizamos um levantamento sobre os saberes culturais
femininos de Campo Grande – MS, no qual buscamos dados na divisão de
artesanato da Fundação de Cultura do Estado sobre tais artesãs, assim
como suas práticas. Durante este processo nos deparamos com um lugar
pouco difundido na cidade, o qual possui uma visão singular pautada na
Economia Solidária. A partir do achado deste local mencionado, começamos
nossas visitas frequentes a fim de nos familiarizarmos com o ambiente e
sua proposta. Nosso trabalho acabou seguindo o viés de estudo dos saberes
das artesãs que fazem parte da Economia Solidária em Campo Grande,
lugar este que possui um modo diferente de gestão e consequentemente de
pessoas que lá trabalham.

Para entendermos todo este universo que permeia o movimento de


Economia Solidária e suas artesãs entrevistamos Sebastiana Almire de
Jesus, membro fundadora do movimento em Mato Grosso do Sul e
integrante ativa do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). Tiana,
como nos foi apresentada, nos narrou todo o contexto ao redor da criação
deste movimento em 2002. De acordo com ela a necessidade vem por
causa da crise econômica da década de 90, na qual observa-se a
necessidade de uma articulação interna a fim de expandir o movimento,
porém só no final do ano seguinte este movimento chega à Campo Grande,
levando um tempo ainda maior para que conseguissem o espaço que à elas 281
foi cedido em 2006 após um longo processo de busca por espaços onde
pudessem vender os produtos gerados por seus trabalhos. Segundo Tiana
“ninguém pensava em loja”, pois a desenvoltura deste movimento em sua
maioria se dava em feiras. Houve a partir daí a busca por opções para a
criação de uma feira da Economia Solidária junto ao órgão com o qual
possuem relação com o governo do Estado, a FUNTRAB. Ela deixa claro que
a relação das pessoas que estão presentes naquele espaço é diferente dos
artesãos convencionais de trabalho individual que já gestionado pela
Fundação de Cultura, o movimento na Economia Solidária tem como base o
trabalho, este um dos fatores determinantes até mesmo para o que
aparentemente é o “saber” serem apoiados por órgãos diferentes.

O modelo de Economia Solidária pauta-se no “apoio ao trabalho coletivo,


baseado nos princípios de autogestão, solidariedade e cooperação. Trata-se,
assim, de uma trajetória marcada pela reivindicação ao direito à
organização do trabalho autogestionário, em contraposição ao trabalho
assalariado.” [NAGEM e JESUS, 2012, p. 2], sendo assim as
pessoas/artesãs inseridas neste tipo de trabalho buscam por algo que vai
além do indivíduo. As mulheres que fazem parte da Central de
Comercialização não disputa por um local de venda, pois entendem que o
espaço pertence a todas elas e da sua maneira cada uma ajuda no que
pode para que haja um bom funcionamento. O espaço possui, além de
artesanatos diversos e produzidos pelas mais distintas pessoas que vão
desde as entrevistadas até mesmo pessoas do interior do Estado, uma área
gastronômica na qual encontra-se produtos orgânico e que estão ligados ao
Cerrado (bocaiúva, jatobá, baru), curso de autogestão e de corte e costura,
massoterapia e quiropraxia realizadas por deficientes visuais do ISMAC
(Instituto Sul-mato-grossense para Cegos Florivaldo Vargas) e aulas de
capoeira d’Angola. Por ser um ambiente autogestionado não há posições
como “patrões e funcionários”, existe uma organização interna na qual os
artesãos (em sua maioria mulheres) se revezam em escalas semanais e por
períodos para cuidar do estabelecimento. Em uma das minha primeiras
visitas me surgiu a dúvida de como ficava a distribuição de renda visto que
o movimento prevê a coletivização do trabalho e as cinco entrevistadas
deram respostas semelhantes de que “um dia você vende o artesanato do
outro e no outro ele vende o seu”. Após este período de reconhecimento do
local e do conceito específico sobre o que é a Economia Solidária e como
esta infere na vida daqueles que a tomam como realidade, realizamos
entrevistas com 6 artesãs de estilos variados. Posterior a entrevista
passamos pelo processo de catalogação e transcrição das entrevistas
utilizando como aporte teórico para o processamento destes dados o livro
de Verena Alberti, Manual de História Oral (2005).
A partir das entrevistas observamos que somente para 2 das nossas
entrevistadas o artesanato foi repassado como um saber familiar. Dona
Janete de 50 anos nos narrou que quando mais jovem era costume as avós
e mães colocarem as moças das famílias para aprenderem serviços manuais
tanto como forma de punição quanto como forma de torná-la de certo modo
mais prendada. Entre as cinco artesãs observamos diferentes
282
especialidades, indo de bordado comum à pontos mais sofisticados,
quadros, vasos, crochês e afins. Em sua maioria observamos que tornar-se
artesãs para estas mulheres está muito mais vinculado à encontrar artifícios
para se ocuparem de modo produtivo do que ao ganho financeiro, pois em
uma de nossas pergunta que indagava justamente sobre a contribuição do
artesanato para subsistência familiar foi respondida de forma unânime de
que não conseguiriam sobreviver somente com a renda destes trabalhos. Já
para outras vimos que vai além disso. Dona Andrea de 40 anos nos relata
que apesar de ter aprendido quando pequena com sua mãe coisas simples
como bordar não valorizava muito estes saberes, todavia agora que está
passando por uma série de problemas relacionados a saúde imunológica e
psicológica buscou o artesanato como fonte de escape para ajudá-la a
preencher seu tempo livre.

Outro ponto analisado a partir das entrevistas foi o resgate buscado por
uma delas por uma técnica familiar que se perdeu: “Tem uma história que
eu gosto de lembrar e lamentar. É, a minha mãe, ela tinha um problema de
visão. Perdeu a visão no dia que eu nasci e ela sabia fazer um trabalho que
chama nhanduti que é do Paraguai e é um negócio raro, hoje em dia você
quase não vê. A minha vó esqueceu e a minha mãe que sabia fazer, mas
ela não pode me passar. Isso é uma coisa que eu lamento, chama nhanduti,
até um dia se você souber alguém que faça eu tenho muito interesse de
fazer” [LOPEZ, Janete. 2019]. Neste trecho da entrevista de Janete
conseguimos entender o que significou para ela a perda de tal saber.
Michael Pollak trabalha com o conceito de que a memória deve ser tida
como um fenômeno social e coletivo que perpassa o sujeito como indivíduo.
Levando em consideração a declaração de Janete após a análise meticulosa
dos dados relacionados às técnicas artesanais que são desenvolvidas em
nosso Estado fornecido pela Fundação de Cultura, conseguimos estabelecer
a perda de tal saber como algo coletivo, visto que de um número de mais
de 1000 artesãos registrados somente uma ainda possui tal técnica como
sua. Importante salientar ainda a ideia exposta pela artesã de que não era
qualquer tipo de ponto. Por diversas vezes a mesma afirma que existem
alguns tipos de bordado nhanduti, mas os pontos e técnicas desenvolvidos
pela sua avó eram dela e por mais que existam pessoas que consigam
reproduzir tal bordado, este nunca terá a mesma identidade daqueles que
foram feitos pelas mulheres de sua família.

Oficinas e propostas didáticas para Ensinar sobre as artesãs


O conceito aula-oficina da historiadora Isabel Barca foi essencial para
produção de aulas-oficinas estas foram pautadas a partir de competências a
serem desenvolvidas nos alunos, as mesmas encontram-se nas principais
propostas curriculares para o ensino básico e secundário de História A aula-
oficina parte do pressuposto de que os alunos são agentes do seu próprio
conhecimento, ou seja , de que o conhecimento é proporcionado através de
indagações causadas pelo professor por meio de atividades intelectualmente
desafiadoras, porém para que isso seja efetivamente concretizado em sala
de aula, Barca afirma que o Professor de história : “Terá que assumir-se
como investigador social, aprender a interpretar o mundo conceptual dos
seus alunos não para de imediato classificar em certo/errado,
completo/incompleto, mas para que esta sua compreensão o ajude a 283
modificar positivamente a conceptualização dos alunos” [BARCA, 2004, p.
133].

E nesse sentido, propomos analisar algumas concepções sobre os conceitos


de Mulheres artesãs, patrimônio imaterial e mulheres, economia solidária e
mulheres, espaços de saber e fazer femininos em Campo Grande. Para cada
tema propomos aulas oficinas com saídas de campo que serão visitas ao
centro de comercialização e exposição de materiais posteriormente na
escola. Principalmente com estudantes do Ensino Fundamental.

Seguindo a perspectiva de exploração e análise de ideias prévias dos alunos


e do consequente processo de conceptualização em aula, que “situa-se num
ambiente de aula construtivista, que em Portugal se convencionou designar
“aula oficina” [BARCA, 2004]. Para isso, propomos um modelo de aula
oficina que será executado nas escolas de ensino fundamental em Campo
Grande/MS, no ano de 2020.

Roteiro de aula oficina


Nomes:
Turma:

Referências
Lislley Raquel Damazio é graduanda em História da Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul, Bolsita PIBIC.
Jaqueline Ap. M. Zarbato é professora da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, Cidade Universitária, Campo Grande.
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Centro de pesquisa e documentação de história contemporânea do Brasil,
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BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. BARCA, I. (Org.)
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284
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Fundamental: História. Brasília, 1998.
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SOARES, André Luis Ramos (Org.). Educação patrimonial: relatos e
experiências. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2003.
HISTÓRIA DO CASAMENTO NA PRINCESA DO SERTÃO:
ANALISANDO AS NOTAS DE CASAMENTO NOS JORNAIS
CAXIENSES
Marciele Sousa da Silva e Jakson dos Santos Ribeiro

Durante muito tempo as mulheres não foram consideradas sujeitos da


história, ficando assim, excluídas das narrativas dos historiadores. Porém, o 285
panorama da historiografia brasileira mudou, visto que hoje podemos notar
a presença desses novos sujeitos na historiografia, adentrando as
discussões teóricas e sugerindo novos conceitos e abordagens a serem
trabalhadas.

O avanço nas pesquisas sobre a história das mulheres e das questões de


gênero nos deram subsídios para entendermos o universo do matrimônio, e,
principalmente, compreendermos os papéis sociais desempenhados pelas
mulheres dentro do casamento. Desse modo, este estudo parte da
necessidade de entender a construção da ideia matrimonial, em Caxias–MA,
na primeira metade do século XX, através da análise dos discursos
produzidos pelos jornais caxienses acerca do casamento.

As notas em jornais sobre casamentos vieram a contribuir para entender os


discursos produzidos, visto que eram fortes aliados para que a moral e os
bons costumes fossem exaltados em um local onde se visava o
desenvolvimento e a prosperidade.

Neste sentido, foram analisadas sessenta e nove (69) notas de casamento


retiradas de jornais caxienses, como: O PAIZ, JORNAL DO COMÉRCIO, E O
CAIXEIRO, todos encontrados na Biblioteca Benedito Leite, de São Luís.
Fontes que foram essenciais para o entendimento da sociedade caxiense e
das transformações ocorridas durante o período analisado. Com esta
pesquisa pretendemos contribuir para a ampliação das perspectivas da
história local e suas potencialidades.

Além desta questão, a pesquisa demonstrou o quão ainda se faz


necessários debates e reflexões, como também, o alargamento do
conhecimento sobre a história das mulheres e as relações de gênero,
intercalando o casamento como meio de entender os papéis sociais
destinados a mulher dentro da sociedade caxiense.

Introdução
O desenvolvimento da História Cultural vem reforçando o avanço na
abordagem das questões femininas ao longo do processo histórico, porém,
esses estudos tiveram força com o auxílio das outras ciências humanas,
com perspectiva interdisciplinar que permitiu entender a mulher dentro dos
seus vários aspectos, ou seja, em suas práticas, no imaginário social, nas
representações constituídas em relação a ela.

Assim, a pesquisa histórica tem passado por uma ampliação, em que passa
a apresentar uma grande variedade de objetos, novas fontes, metodologias
e abordagens. Tem-se procurado dar voz aos grupos, antes negligenciados,
como: crianças, doentes, operários, mulheres e tantos outros, que podem
ser considerados como “excluídos da história”. Neste processo de ampliação
e renovação os estudos sobre as mulheres e as relações de gênero
emergem com novos objetos e categorias de análise.

286
Por esse viés, Geneviève Fraisse e Michelle Perrot (1991), discorrem que
três movimentos contribuíram para a emergência das mulheres na história:
a crise dos grandes paradigmas, entre eles o positivismo e o marxismo,
visto que suas concepções não davam brechas à inserção da mulher; a
abertura da História que começa a refletir sobre grupos deixados de lado
anteriormente (mulheres, negros, operários), como na Nova História; e a
demanda social advinda dos movimentos feministas.

Fez-se necessário retirar o sexo feminino da ideia de exclusão, do


esquecimento, do mundo privado. Surge assim, um imenso esforço para
legitimar a figura da mulher como pioneira de grandes transformações
sociais, com intenção de reconhecer sua indiscutível participação na
organização da história do país, não somente como mera coadjuvante.

Devemos refletir que em alguns momentos da história a participação


feminina ocorria de forma singular. Visto que, sendo o Brasil,
majoritariamente, católico, a Igreja exerceu grande influência sobre o
“adestramento” da sexualidade feminina. A Igreja teve participação na
construção do modelo de mulher frágil, submissa, e do homem como
mantedor da casa e da família. Com isso, reforçam seus dogmas para
assegurarem a moral e o matrimônio.

Desse modo, este estudo parte da necessidade de entender a construção da


ideia matrimonial, em Caxias–MA, na primeira metade do século XX,
através da análise dos discursos produzidos pelos jornais caxienses acerca
do casamento. As notas em jornais sobre casamentos vieram a contribuir
para entender os discursos produzidos, visto que eram fortes aliados para
que a moral e os bons costumes fossem exaltados em um local onde se
visava o desenvolvimento e a prosperidade.

Vale salientar que o acesso e a busca pelo casamento permite compreender


o enlace das normativas da Igreja na sociedade. O casamento nos
possibilita entender as relações familiares, o papel da mulher casada e
como estava disciplinada. Deste modo, a problemática desta pesquisa parte
então dos seguintes questionamentos: Como os jornais tratavam a questão
do matrimônio na primeira metade do século XX? Qual era o perfil de
mulher ideal para o casamento? Buscaremos responder esses
questionamentos no decorrer deste trabalho, objetivando produzir uma
discussão e compreensão sobre a problemática apresentada.

Para se entender algumas categorias discutidas neste trabalho nos


utilizamos de alguns teóricos, que possibilitaram o entendimento do tema
abordado. Utilizamos autores como: LE GOFF (1996), para entender a
questão de História e memória, PERROT e FRAISSE (1991) que corrobora
debatendo sobre a história das mulheres. Para entender a ideia de
casamento trabalhamos com TRIGO (1989), em “Amor e casamento no
século XX”. Trabalhando a ideia de representação nos jornais utilizamos
THOMPSON (2005), que estuda “A mídia e a modernidade”; e CAPELATO
(1988), que trabalha imprensa e História do Brasil.

A mulher ideal para casar e as notas de casamentos 287


Durante o século XIX, a imprensa constituiu um importante meio de
divulgação de informações, opiniões e ideias, que ficaram demarcadas nas
páginas impressas, demonstrando as várias formas de sociabilidades
presentes nas vivências e no cotidiano da sociedade brasileira. Os diversos
tipos de jornais refletem características inerentes à sociedade na qual
circulava, o que reproduz fragmentos das vivências em coletividade. Como
escreve Maria Helena Rolim Capelato (1988), a imprensa escrita teve um
papel significativo na formação dos hábitos, dos gostos, das atitudes, dos
desejos e, enfim, da opinião pública, se tornando um “instrumento de
manipulação de interesses e intervenção na vida social”.

No campo da História, podemos considerar o jornal como um “lugar de


memória”. De modo que se seleciona o fato, retirando-o do cotidiano e
anunciando, tornando-o de conhecimento público. Quando se escolhe a
forma da narrativa, se está constituindo o acontecimento e criando uma
memória da atualidade. “A memória, como propriedade de conservar certas
informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções
psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF,
1996, p. 366). Podemos assim, dizer que ao selecionar os acontecimentos
que serão tornados notícias, há a contribuição para a formação da memória
coletiva da sociedade.

Os jornais caxienses, dentro desse contexto, demonstravam uma imprensa


séria, que acompanhava os acontecimentos locais e nacionais, assim como
a sociedade nos seus aspectos cotidianos. Voltados para notas de
casamentos e notas sobre mulher, recorremos às folhas de circulação na
cidade, nos anos de 1900 a 1920, destacando os jornais como O Paiz,
Jornal do Comercio, e o Caixeiro.

Quando voltamos os estudos para entender o casamento na sociedade


brasileira, vemos a diferença entre os de pessoas da elite e de pessoas que
tinham uma condição menor, ou mesmo, nenhuma condição de realizar o
casamento. Em consequência disso, reconhecemos que os arranjos
matrimoniais entre os membros da elite eram pautados na tentativa de
equilibrar interesses familiares. Neste sentido, é necessária a exposição do
casamento em jornais, como meio de divulgação e expressão da condição
social.

Ao analisarmos essas notas, percebemos que, muitas vezes, quando se


anunciava a união, o nome da família vinha antes ou logo após o nome dos
noivos. Como modo de demonstrar a distinção e de diferenciar a condição
social da família. Muitas dessas notas eram enviadas pelos contraentes para
que fossem noticiadas nos jornais ou os contraentes faziam parte do ciclo
de amizade dos responsáveis pelos jornais, como observamos nesta nota:

“Na capital do Estado, consorciou-se civil e religiosamente, o nosso


sympathico e bom amigo Arthur Leão e Silva com a Exma. Sra. D. Lizinia
Ferreira Santos, tendo logaras cerimonias no dia 24 do mez que passou. Ao
288
garrido par agradecemos a comunicação que nos fizeram, e almejamos um
futuro ridente e de venturas” (O PAIZ, Caxias, 19 de Julho de 1905).

Esses destaques, dados ao casamento, eram correntes nas páginas


jornalísticas, de Caxias, mostrando o poder que esta relação tinha dentro da
sociedade e a importância de tornar o ato um fator público, comunicando o
enlace ou destacando o noivado, um passo para o casamento. Desta
maneira, as pessoas demonstravam seu poder, seu prestígio social, muitas
pagavam por estes anúncios, demonstrando-se detentoras de certas
posses.

Dando destaque ao Jornal do Comercio, que possui o maior número de


notas de casamento, por ser um jornal político em suas páginas pouco se
sabe sobre a vivência matrimonial, visto que as notas se tornaram
pequenos resumos, de modo que se coloca apenas o nome dos contraentes
e a data do casório.

Casamentos:
Dia 8: Canuto Martinho Carneiro e Pedrolina Maria de Almeida.
Dia 9: Fabio da Costa Sousa e Barbara de Jesus e Silva.
(JORNAL DO COMERCIO, Caxias, 15 de Maio de 1915).

As notas aparecem ao lado de registros cíveis de nascimento e óbito, desse


modo, percebemos que havia no jornal, uma desvalorização em relação ao
casamento. Ficando em evidência apenas algumas notas, como as citadas
anteriormente, no início deste tópico. Anúncios de casamentos com mais
detalhes, sendo de pessoas da elite, e do grupo político ao qual o jornal
estava inserido.

Neste jornal encontramos uma chamada para a aprovação do Decreto, de


Nº 181, de 24 de Janeiro de 1890, que secularizou o casamento e o divórcio
no Brasil. O decreto foi acolhido e reforçado pela proibição do casamento
religioso antes de celebrado o civil, com o decreto, nº 521, e com a criação
de juízes privativos de casamento, pelo decreto, nº 320. Caxias, não ficou
alheia a este assunto, pois o mesmo foi tratado pelo Jornal do Comércio, de
1915.

No artigo publicado no jornal é chamada a atenção dos pais que continuam


a casar seus filhos no religioso, sem haver o casamento no civil. O artigo diz
ainda que é “apenas por meio do casamento civil que se constitui família
legítima, e se legitima os filhos, anteriormente, havidos de um dos
contraentes; se investe o marido da representação legal da família e da
administração dos bens comuns; do direito de fixar o domicílio da família,
de autorizar a profissão da mulher e dirigir educação dos filhos.” (JORNAL
DO COMÉRCIO, Caxias, 14 Abril de 1915). O artigo pede aos pais para
casarem seus filhos perante as leis cíveis, destacando a importância das
leis, mas, deixando claro que podem casar-se também no religioso, e que
antes devem se casar perante o juiz, escolhido pelo Estado.

O matrimônio, no início do século XX, vai perdendo o caráter econômico, e


se buscar outros interesses. É necessário se ter agora moralidade, bons 289
costumes e educação. Como escreve Abrantes (2010), o verdadeiro dote de
uma noiva eram suas qualidades morais, ainda que fosse recorrente a
existência do dote em dinheiro entre as famílias das camadas altas, como
meio de garantir o futuro das mulheres em caso de desamparo marital, em
vez de prepará-las para o trabalho e para a conquista profissional
(ABRANTES, 2010, p. 108-111).

Notamos também a influência do romantismo, que traz o amor como base


para um casamento feliz e se forma a ideia de que o casamento deve ser a
expressão do amor que um cônjuge sente pelo outo. Como mostra a nota
no jornal, O Paiz, em 07 de Setembro de 1905:

O Casamento
‘Casar sem amor é profanar o mais respeitável de todos os sentimentos;
casar sem amor é um suicidio moral. Os desgraçados que contrahem este
laço por frio calculo nunca terão lua de mel. O matrimônio teve por base o
affecto mutuo de dous coracoes. Os seres estreitados por este suave laço
reduzem os pesares da vida á metade e centuplicam as felicidades’.
Guerra JUNQUEIRO. (O PAIZ, Caxias, 07 de Setembro de 1905).

Segundo Trigo (1989), baseado na Literatura Romântica, do final do século


XIX e início do século XX, são propostos sentimentos novos, que
garantiriam a felicidade, iniciando assim, “um período em que a escolha
matrimonial deixa de ser, fundamentalmente, assunto familiar para tornar-
se ‘teoricamente’ livre e, mais que do que isso, com expectativa de ter o
amor como base.” Com ou sem amor, o casamento continuou a ser visto
como único destino da mulher.

Além dos discursos acerca do casamento encontramos nos jornais


analisados, notas sobre a mulher:

“A MULHER”
Para uma mulher ter merecimento real precisa aprender: A coser; a
cosinhar; a ser amável; a ser obediente; a ter livros uteis, a levantar-se
cedo; a fugir da ociosidade; a guardar um segredo; a evitar bisbilhotices; a
ser graciosa e alegre; a dominar seu gênio; a ser a alegria da casa; a cuidar
bem dos filhos; a convencer pela meiguice; a não falar antes do tempo; a
ser a poesia e a flor do lar; a não ser demasiada ciumenta; a não andar
sempre pelas lojas; a tratar de tornar-se agradável; a ter uma grande
bondade de coração (O PAIZ, Caxias, 27 de Março de 1904).

Nas páginas do jornal havia também a divulgação da mulher considerada


ideal, de modo que criava a representação do perfil ideal da mulher,
visando uma mulher voltada ao cuidado da família e da aparência pessoal.
Para que essa mulher tivesse reconhecimento, deveria ter virtudes
femininas, ter passividade, sensibilidade e ser submissa ao marido. Essa
lógica permeia o discurso de que o lugar da mulher é o lar, sob a proteção
masculina, cuidando do lar e dos filhos. As mulheres se tornaram alvos de
um discurso normalizador que pretendia manter os valores familiares com
290
permanência nas relações entre os sexos. Era necessário manter a imagem
de boa moça, prendada, administradora do lar, boa companheira. A mulher
é embutida de valores, responsável pela educação moral e disseminadora
dos valores dentro dos lares. Ela deveria estar sempre sorrindo, disposta.

John B. Thompsom (2005), ao tratar da imprensa e de sua importância para


a sociedade, mostra como ela se tornou uma arma eficaz para a divulgação
e criação de ideologias que buscavam criar modelos e concepções sociais
que deveriam ser seguidas pelos indivíduos. Por isso, podemos entender os
jornais como instrumento de manutenção e modificação social, buscando
normatizar o papel social ideal de mulher.

Desse modo, os jornais se tornaram arma eficaz para a disseminação do


ideal de mulher, e como deveria se comportar, estando casada ou não.
Criavam-se modelos e concepções sociais que deveriam ser seguidos pelas
mulheres.

Considerações finais
Do início da colonização brasileira até meados do século XX, a mulher devia
obediência, primeiro ao pai e depois ao marido a quem seria entregue
preparada para assumir seu papel de esposa, recatada e submissa. A
preocupação com o casamento sobressaia à preocupação com a educação
formal para a mulher, e elas poderiam até serem educadas, mas, para o lar.

Discursos encontrados nas notas dos jornais caxienses demonstraram que


após o casamento, a mulher adquire um novo papel social. Deverá ser uma
boa dona de casa, esposa submissa e boa mãe. Deveria estar sempre
preocupada com bem-estar dos filhos, do marido e do lar. A imagem da
mãe está relacionada à imagem de Maria, pura, assexuada, bondosa,
aquela de capaz se sacrificar, constantemente, vivendo em função da
família.

Diante disso, podemos notar que os papéis sociais da mulher na sociedade


não são fixos, principalmente, no caso das mulheres casadas, dado que,
com o matrimônio ela adquire novos hábitos e comportamentos que se
tornam imprescindíveis na pedagogia do casamento, visto que para ser uma
boa dona-de-casa precisa saber perfeitamente os gostos do marido e
procurar sempre agradá-lo, de modo que esteja sempre atenta às
necessidades do lar e do marido.

Referências
Marciele Sousa da Silva, Especialista em História do Brasil pelo IESF
(Instituto de Ensino Superior Franciscano), Graduada no Curso de
Licenciatura Plena em História, pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias
da Universidade Estadual do Maranhão – CESC/UEMA. Graduanda do curso
de Pedagogia EPT pelo Instituto Federal do Maranhão – IFMA/UAB,
participante do grupo de Estudos de Gênero do Maranhão – GRUGEM/UEMA.
Jakson dos Santos Ribeiro Adjunto I, Doutor em História Social da Amazônia
pela Universidade Federal do Pará (2018), Mestre em História Social pela
Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em História do
Maranhão pelo IESF (Instituto Superior Franciscano) (2011). Graduado no 291
Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do
Maranhão (Centro de Estudos Superiores de Caxias-MA) (2011).
Coordenador do Grupo de Estudos de Gênero do Maranhão –
GRUGEM/UEMA. Coordenador do Laboratório do Teatro do Centro de
Estudos Superiores de Caxias – CESC/UEMA.

ABRANTES, Elizabeth Souza. “O dote é a moça educada”: mulher, dote e


instrução feminina na Primeira República. 2010. Tese (Doutorado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2010. Disponível em:
https://www.historia.uff.br/stricto/td/1252.pdf
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo:
Contexto/EDUSP, 1988. p. 21.
FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle. Introdução: Ordens e Liberdades.
IN: DUBY, Georges e PERROT; Michelle. História das mulheres no Ocidente:
século XIX. Vol4. Porto/PT: Edições Afrontamento, 1991.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: Unicamp, 1996.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.
Wagner de Oliveira Brandão. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
TRIGO, Maria Helena Bueno. Amor e casamento no século XX. In: D’INCAO,
Maria Ângela. Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. P.88 –
94.

Fontes Hemerográficas
O PAIZ, Caxias, 27 de Março de 1904.
O PAIZ, Caxias, 07 de Setembro de 1905.
O PAIZ, Caxias, 19 de Julho de 1905.
JORNAL DO COMÉRCIO, Caxias, 14 Abril de 1915.
JORNAL DO COMERCIO, Caxias, 15 de Maio de 1915.
O JEITO CAPRICHO DE SER: MUDANÇAS DO PARADIGMA
FEMININO ATRAVÉS DA REVISTA JUVENIL
Marcos de Araújo Oliveira

Introdução
As revistas femininas durante muito tempo se constituíram como principal
292 produto da difusão de padrões e comportamentos de feminilidade,
instruindo mulheres das mais diversas maneiras a como agirem, pensarem
e a tornaram-se “belas e inteligentes”. Ainda que em muitos casos, o
conteúdo dessas revistas atendessem as necessidades do patriarcado para
a manutenção de um comportamento feminino que não quebrasse o
sistema de dominação masculina, incentivando uma “pureza” e “ternura”
feminina, nota-se que estas revistas também representaram uma mudança
no modo dessas mulheres conectarem-se com assuntos da sua realidade e
de terem um veículo de comunicação com o qual pudessem se identificar.
A Revista Capricho é uma das mais importantes nesse segmento; ela surge
em 1952 e se consolida ao longo dos anos através da produção de conteúdo
para o público adolescente, lida por jovens entre 12 e 19 anos. A Capricho
foi essencial para a construção de padrões sobre o “ser jovem” no Brasil,
criando ídolos adolescentes e convenções de comportamentos próprios ao
público “Teen”. Durante muito tempo foi comum ver em suas manchetes,
matérias ligadas a namoro, beleza, moda e questões comuns da
adolescência, muitas vezes com modelos que estampavam as capas dentro
das esferas hegemônicos de beleza tidas como padrão (louro, branco,
magro, etc).

Entretanto com o advento da informática e redes sociais no novo milênio, a


Capricho passou a ser inteiramente digital em 2015 e revolucionou suas
temáticas abordadas, debatendo assuntos como feminismo,
empoderamento, negritude entre outras pautas. A Capricho apresenta
então novas formas de ser adolescente e novos ídolos juvenis que vão
ganhando força.

Sabendo-se da importância das revistas, jornais e outros periódicos para o


estudo da história, as várias publicações da revista Capricho, seja em sua
versão impressa e até as da nova era digital, tornam-se uma fonte para a
compreensão das mudanças e anseios da juventude feminina ao longo dos
anos, tendo em vista a importância dessas publicações enquanto
testemunhos da história.

Atualmente a marca multimídia Capricho ainda possui grande impacto na


formação de jovens, pois além da escola e da família, a mídia tem um poder
de educação enorme, e o estudo das capas da Capricho ( impressa ou
digital) contribuem na análise historiográfica ao nos apontar novos
comportamentos difundidos entre adolescentes, como forma de se entender
as transformações sociais, culturais e de gênero.
O surgimento das revistas femininas e a importância dos periódicos
para a pesquisa em História
O sistema de desigualdades dos gêneros no Brasil desde a sua colonização,
constantemente condicionou as mulheres a posições na maioria das vezes
inferiores à dos homens, sendo assim, a educação feminina nunca foi uma
preocupação prioritária no Brasil Colônia. Porém, esta realidade muda um
pouco mais no século XIX, conforme aponta Mary Del Priore (2010), através 293
do surgimento de escolas para meninas da elite, onde aprendiam a ler,
escrever e contar.

Del Priore (2010) esclarece que logo, um público de leitoras se formaria no


Brasil e os folhetins romance ganhariam grande destaque, sendo lidas
massivamente por mulheres ao mesmo tempo em que a educação em
escolas e internatos femininos vai ganhando força na segunda metade do
século XIX. Porém o público feminino não se contentaria apenas em ficar na
leitura e partiria também para a escrita. Mary Del Priore (2010, p. 169)
defende então:

“A fundação de ‘O Jornal das Senhoras’ em 1852, em muito pode ter


colaborado para a leitura de informações úteis e editoriais em torno de
outros assuntos que começavam a despertar a atenção das mulheres.
Atenção, mas também, ação. Muitas, já letradas ou formadas por Escolas
Normais, iam participar diretamente da vida do país, colaborando ou
escrevendo na imprensa[...]Entre os finais do século XIX e as primeiras
décadas do século XX multiplicam-se escritoras e textos de autoria
feminina”.

Este fenômeno de escrita feminina se comprova nas mais variadas


produções como nos segmentos de romantismo adolescente, poesias,
textos sentimentais, instruções escolares, etc, marcados pelo estilo
feminino, crescente nas páginas de jornais dirigidos por mulheres. É nesta
expansão de jornais e revistas dedicadas as mulheres com textos escritos
“por elas e para elas” que o consumo de revistas femininas fica ainda mais
forte no Brasil:

“O Rio de Janeiro, a partir de meados do século XIX, assistiu também ao


surgimento de uma infinidade de jornais e revistas dedicados à mulher e a
família. Este tipo de imprensa, dividiu com a leitura de romances e folhetins
a esfera privada e íntima na qual a maior parte do público feminino. Alguns
desses periódicos tentaram estabelecer um diálogo com as leitoras, abrindo
suas colunas à participação destas. É o caso de ‘Iracema’, periódico literário
e recreativo dedicado ao belo sexo e publicado a partir de 1902 (DEL
PRIORE, 2010, p. 170)”.

De acordo com Guimarães (2017) na consolidação da imprensa feminina,


pode-se perceber características comuns em todas essas publicações — da
elite à popular, pois seu texto traz uma intimidade e uma relação de
amizade com o público. Ele diferentemente da imprensa tradicional, dirige-
se diretamente a leitora, utilizando o pronome você, em um tom coloquial.
Além disso são abordados temas como variedades, pautas culturais,
autoconhecimento, entre outros. Segundo a autora, a partir de 1950, as
publicações de revistas femininas tornam-se cada vez mais massivas.
Atendendo a uma lógica industrial (a de gerar lucros) e buscando
comunicar-se cada vez mais com seu público.

Nas páginas dessas revistas são representados os assuntos mais diversos


294
em relação ao universo feminino, sendo por isso que essas publicações são
verdadeiras fontes aos historiadores que desejam analisar os
comportamentos, o imaginário, a moda, padrões de beleza ou aspectos
culturais de determinado grupo que o produz ou o compõe:

“O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia,


o que por si só já abarca um espectro de questões, pois será preciso dar
conta das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma
coisa. Entretanto, ter sido publicado implica atentar para o destaque
conferido ao acontecimento, assim como para o local em que se deu a
publicação [...] Em síntese, os discursos adquirem significados de muitas
formas, inclusive pelos procedimentos tipográficos e de ilustração que os
cercam. A ênfase em certos temas, a linguagem e a natureza do conteúdo
tampouco se dissociam do público que o jornal ou revista pretende atingir”
(LUCA, 2008, p. 40)

Luca (2008) argumenta que o historiador que pretende trabalhar com


publicações como essa deva analisar também que o sumário que se
apresenta ao leitor resulta de "intensa atividade de bastidores", cabendo ao
pesquisador recorrer a outras fontes de informação para dar conta do
processo que envolveu a organização, o lançamento e a manutenção do
periódico.

No caso da análise de uma revista como a Capricho, é preciso se levar em


consideração os aspectos sociais relacionados ao conteúdo que se é
abordado, pois em um caso de uma matéria sobre autoestima e amor
próprio, é possível apontar que estas pautas procuram estar em
conformidade aos novos discursos feministas que encorajam a
autoaceitação.

Dessa forma, Luca (2008) defende que a utilização da imprensa não deve
se limitar a extrair um ou outro texto isolados, por mais representativos que
sejam, mas procurar elaborar uma análise circunstanciada do seu lugar de
inserção e tecer uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo,
fonte e objeto de pesquisa historiográfica, rigorosamente inseridos em uma
crítica competente.

A Revista Capricho: do auge no mercado editorial à criação de novos


padrões de comportamento
A Capricho foi a primeira revista feminina da editora Abril, tendo sido
lançada no dia 18 de junho de 1952, iniciando o seu pioneirismo através da
publicação de fotonovelas. Porém com o passar dos anos, o conteúdo da
revista foi se diversificando e a capricho deixou de publicar fotonovelas para
debater outras temáticas ligadas ao universo feminino. De acordo com
Ferreira (2016) a publicação adquiriu um rosto mais jovem quando em
1982 deixou de lado a publicação das fotonovelas e assumiu o slogan novo
“A revista da gatinha” para assim alcançar o público feminino mais jovem.

Entre as várias reformulações que vão acontecendo nos anos 80, a Capricho
deixa de ser “a revista da gatinha”, mas continua aumentando o seu
alcance para um público feminino ainda maior, atingindo até mesmo jovens 295
da classe C. Na década de 90, a Capricho consolidou-se como uma das
maiores revistas para adolescentes no Brasil, levando em suas páginas os
mais diversos temas como sexualidade, beleza, saúde, família, futuro
profissional, etc.

“Todas as mudanças foram para se enquadrar no período juvenil de cada


geração[...]É nessa adolescência, nesse campo rico em novidades e
descobertas que está o público da Capricho. A busca pela aceitação,
construção de uma identidade, o conhecimento do que é socialmente
considerado certo ou errado, o enquadramento social são alguns dos
assuntos abordados pela revista que podem ser levados em consideração
para o seu sucesso” (FERREIRA, 2016, p. 32).

É possível apontar então que a Capricho se tornou um verdadeiro “manual


de vida” para a jovem brasileira, oferecendo as orientações necessárias
para se tornar uma garota bem resolvida e “descolada”. Outrossim, a
revista torna-se uma fonte para o entendimento da pedagogia cultural
operante da mídia sobre o gênero feminino. Como defende Louro (2008, p.
18):

“A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras


aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável
de instâncias sociais e culturais [...] Mas como esquecer, especialmente na
contemporaneidade, a sedução e o impacto da mídia, das novelas e da
publicidade, das revistas e da internet, dos sites de relacionamento e dos
blogs? [...] As proposições e os contornos delineados por essas múltiplas
instâncias nem sempre são coerentes ou igualmente autorizados, mas
estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte e acabam por constituir-
se como potentes pedagogias culturais”.

Louro (2008) explica que estes mecanismos da mídia tem um papel de


extrema influência na instrução para a adequação nos padrões de gênero e
sexualidade. Para a historiadora, conselhos e palavras de ordem
interpelam-nos constantemente, ensinando sobre saúde, comportamento,
religião, amor; dizem-nos o que preferir e o que recusar, ajudam-nos a
produzir nossos corpos e estilos, nossos modos de ser e de viver.

Mediante essa justificativa, podemos analisar por meio de diferentes edições


da revista Capricho, como houve direcionamentos de comportamentos
femininos e as transformações dos mesmos, graças ao processo de
emancipação do gênero feminino ao longo da história.
Através das manchetes nas diferentes capas da Capricho com a cantora
Sandy, podemos constatar essa mudança feminina, pois na edição de 1999,
a cantora nos seus 16 anos estampa a capa em uma pose mais tímida, com
roupas que cobrem todo o seu corpo e afirmando nunca ter beijado; algo
muito bem visto nos padrões hegemônicos de que a mulher deve ser
adorável, meiga e pura. Entretanto, no ano 2000, Sandy estrela mais uma
296
capa da capricho, só que dessa vez sua pose é de uma garota que mostra
ser forte e decidida, com uma blusa mais curta e revelando que não gosta
do rótulo de coitadinha e da visão que muitos tem dela de ser “a santa”, em
alusão ao seu bom comportamento e doçura.

Figura. 1 - Capricho Ed. 811 – 1999

Figura. 2 - Capricho Ed. 846 – 2000


Vemos nessas capas, claramente uma transformação nos novos modos de
ser mulher e de comporta-se como tal, pois antes Sandy era reflexo da
mulher que atendia as convenções culturais do que se esperava do gênero
feminino, porém ao amadurecer, ela não deseja que estes estereótipos
sejam cristalizados acerca de sua figura.

Podemos apontar que esse novo posicionamento se reflete dentro de um 297


contexto da “Terceira onda feminista”, fortalecida entre os anos 90 e 2000,
que prega ainda mais a liberdade da mulher das correntes de opressão e
submissão, e Sandy mesmo não sendo uma ativista feminista, acaba
adentrando no processo de autonomia feminina proposto pelo movimento.

Como argumenta Gregori (2017) o feminismo nos seus aspectos basilares,


caracteriza-se através de um processo constante de ações coletivas que se
referem à emancipação política e conquista de direitos que refletem no
empoderamento das mulheres. Portanto, vale destacar que o feminismo
defende na autonomia da mulher, sua liberdade; pois independente de
comportar-se como “santa” ou não, cabe a mulher decidir agir como quiser:

“Transformações são inerentes à história e à cultura, mas, nos últimos


tempos, elas parecem ter se tornado mais visíveis ou ter se acelerado.
Proliferaram vozes e verdades. Novos saberes, novas técnicas, novos
comportamentos, novas formas de relacionamento e novos estilos de vida
foram postos em ação e tornaram evidente uma diversidade cultural que
não parecia existir” (LOURO, 2008, p. 19).

É possível apontar que a revista Capricho desde as suas primeiras


reformulações na década de 80, até sua consolidação nos anos 90, procurou
estar integrada com o modo de “Ser Jovem” no Brasil, o que a fez
representar através de suas páginas a realidade desses adolescentes. Neste
sentido, a revista se constitui como fonte histórica expressiva para o
entendimento da formação dessa juventude e as mudanças desse universo
jovem.

“Seja o que você quiser ser”: A Capricho na formação de identidades


e de novos ídolos teens
Sabe-se, que a Capricho sempre foi se modificando para atender o seu
público, tendo um papel fundamental ao dar mais visibilidade a famosos
que tem grande influência na vida desses jovens. Ao trabalhar com essas
figuras que dão voz ao universo do “ser adolescente”, por meio de suas
informações e representações, a Capricho tem papel na construção de
ídolos “teens” (termo inglês para adolescentes).

Esses ídolos se destacam por muitas vezes representarem pensamentos e a


identidade de sua geração. Em muitos casos expressam as transformações
dos comportamentos de gênero e sexualidade, como é evidenciado em
edições com a cantora Anitta.
298

Figura. 3- Capricho Ed. 1179 – 2013

Figura.4- Capricho Ed. 1200 – 2014

Na edição 1179, ela é chamada de poderosa, graças ao seu


empoderamento, e afirma: “Faço o que quero, o garoto que aceite”,
quebrando a ideia de um padrão de purismo e mostrando que a mulher
deve ser livre. Já na edição 1200, ela estrela a campanha social:
“Camisinha, tem que usar”, estimulando o sexo seguro.

Entretanto, a Capricho é muito criticada pela sua falta de representatividade


a outros tipos de beleza, pois a revista apesar dos debates em muitos
assuntos importantes para a vida de adolescentes, como aborto e violência
sexual, ficou marcada por reproduzir os padrões de beleza tidos como
“convencionais”. Guimarães (2017, p. 41) destaca que a própria Capricho
criou o seu padrão, pois “podemos concluir, mesmo que nunca tenha se
dito, que a Capricho determina como bom, belo e certo aqueles que são
branco, magro, jovem e heterossexual”.

Porém, com o advento das redes sociais e de novos debates sobre


representatividade entre os jovens, a Capricho teve que vir a trabalhar com
um novo olhar sobre seu público. Isso vem desde a sua reformulação em
2006 e com a expansão de seu conteúdo em mídias digitais, já que em 299
2015 a capricho passou a ser uma revista inteiramente digital: a “Capricho
Week”.

Guimarães (2017) destaca que a busca por identidade e os desafios da vida


adolescente são os temas recorrentes no discurso da revista. Nota-se
assim, que a Capricho Week procura uma maior representatividade no seu
conteúdo, aspecto evidenciado nas edições 178 e 208.

Figura. 5 - Capricho Week Ed. 178 – 2017

Figura. 6 -Capricho Week Ed. 208 – 2018


Esse novo paradigma é visto na edição 178 estrelada pela drag queen
Pabllo Vittar, numa estratégia ousada da revista ao exibir na capa um
artista transformista que quebra padrões de gênero e sexualidade. Já na
edição 208 com a cantora MC Soffia, a Capricho Week dá visibilidade a uma
jovem negra empoderada que fala da igualdade de gêneros.
300
Desse modo, o selo “Capricho” acaba ganhando ainda mais força dentro do
mercado, aumentando o seu poder de alcance de público e levando a sua
marca a outro patamar:

“Sabemos que a Capricho é hoje uma marca presente em vários produtos


da vida das adolescentes brasileiras. Neste sentido, está ultrapassando o
fato de ser apenas uma revista; também aparece estando presente em
revista no modo impresso, no site, no celular, em produtos licenciados
como: perfumes, cosméticos, material escolar, bolsas, sapatos, acessórios e
eventos. A meta da revista busca explicar o mundo de um jeito simples e
divertido, oferecendo os serviços para as meninas de 13 a 17 anos”
(SANTOS, 2016, p. 17).

Nota-se que apesar de atrasos durantes anos, o “padrão Capricho” vai


mudando positivamente, defendendo para suas jovens leitoras a ideia de
autenticidade e do “Seja você o que quiser ser” ao mesmo tempo em que
colabora para a notoriedade de novos ídolos do mundo juvenil, que trazem
para a revista debates pertinentes dentro do universo jovem.

Considerações Finais
Por muito tempo a impressa feminina sofreu muitos preconceitos,
entretanto com a reformulação da historiografia em buscar novas fontes
que revelem aspectos relevantes para o estudo das transformações
históricas, sociais, culturais e de gênero, as revistas femininas ganham
destaque em discursos históricos, pois são testemunhos relevantes dessas
transformações.

A revista Capricho através de suas publicações revela-se como um material


com bastante potencial para os historiadores dos periódicos, pois
proporcionam um verdadeiro panorama do modo de ser da juventude
brasileira ao longo dos anos e também das construções de identidades
através da mídia, já que os discursos da revista também possuem um
caráter educativo e de direcionamento de comportamentos femininos.

Cabe destacar que, nas suas versões impressas ou digitais, a Capricho cria
o seu próprio padrão de abordar assuntos do “ser adolescente” ou de
evidenciar ídolos tens. O estudo da difusão desses padrões, normas
comportamentais e discursos de famosos expostos na revista tem muito a
nos revelar dos valores e ideais da juventude, do passado ou da própria
contemporaneidade.
Referências
Marcos de Araújo Oliveira é graduado em Licenciatura em História na
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina).

LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio de periódicos. In:
PINKSY, Carla Bassanesi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto,
2008. 301
FERREIRA, Laize Minelli. Capricho, senhora do tempo: cronotopo e
autopoiese. 2016. 95 p. Dissertação (Mestrado em Ciência da Comunicação)
– Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2016.
GUIMARÃES, P. P. Falta de Capricho: uma análise sobre o discurso da
revista teen. 2017. 80 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Publicidade e Propaganda) - Faculdade de Comunicação, Universidade de
Brasília, Brasília, 2017.
GREGORI, Juciane de. Feminismos e resistência: trajetória histórica da luta
política para conquista de direitos. Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-
MG - v. 30, n. 2 – Jul./Dez. 2017.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas.
Pro-Posições. Unicamp. v. 19 (2), 2008, p. 17-23.
DEL PRIORE, Mary. As mulheres e os livros: vidas que se contam ... In:
FIÚZA, Regina Pamplona (org). A Mulher na Literatura: criadora e criatura.
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010. p.155-180.
SANTOS, Aline Mayara Brito. O ideal de beleza: pedagogias culturais de
gênero na revista Capricho. 2016. 44 p. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Pedagogia) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá,
2016.

Revistas Capricho usadas no artigo:


CAPRICHO. São Paulo: Abril, ed. 811, 1999.
CAPRICHO. São Paulo: Abril, ed. 846, 2000.
CAPRICHO. São Paulo: Abril, ed. 1779, 2013.
CAPRICHO. São Paulo: Abril, ed. 1200, 2014.
CAPRICHO Week. São Paulo: Abril, ed. 178, 2017.
CAPRICHO Week. São Paulo: Abril, ed. 208, 2018.
AS MULHERES MEDIEVAIS ENTRE “A ROCA E A ESPADA”:
PROTAGONISMO, SUBMISSÃO E PODER FEMININO NOS
DISCURSOS HISTÓRICOS E LITERÁRIOS
Marcos de Araújo Oliveira

Sabe-se que o campo de estudos da História das Mulheres tem permitido


302 com que historiadores possam pesquisar e refletir acerca de questões
referentes às mulheres medievais, nunca antes debatidas. As pesquisas
acerca das realidades e condições femininas dentro do Medievo mostram-se
inovadoras muitas vezes por combaterem velhos estereótipos cristalizados
sobre essas personagens femininas, além de trazer um maior protagonismo
as mulheres medievais.

Este protagonismo feminino não fica restrito ao campo historiográfico e


ocupa espaços em narrativas literárias, nas quais figuras históricas
femininas se fazem presentes como protagonistas. Caso explicito no
sucesso editorial de obras que retratam mulheres medievais nos bastidores
de conflitos políticos ou até mesmo de guerras, temáticas estas exploradas
por romancistas como Philippa Gregory e Jean Plaidy.

Ainda assim, há que se reconhecer que as fronteiras entre o real e a


representação existem, mas elas não podem deslegitimar o trabalho que o
romance histórico faz ao propor a reabilitação da memória de muitas dessas
mulheres esquecidas como coadjuvantes em narrativas oficiais da História,
Por isso é necessário repensar as relações de gênero e os protagonismos
femininos na Idade Média, garantindo a escrita de uma história das
mulheres que promova essa representatividade.

A escrita de uma História das mulheres da Idade Média


Apesar de algumas limitações de fontes para a formulação de estudos sobre
as mulheres medievais, principalmente por conta da escrita ser
majoritariamente dominada por homens ligados à Igreja Católica, como
monges ou outros clérigos, ainda assim é possível apontar que essas figuras
femininas conseguiram deixar vestígios que permitem um trabalho
historiográfico sobre as vivências dessas mulheres:

“Muitos dos estudos sobre o Medievo mais recentes, consagrados a


mulheres de todas as condições – religiosas e mulheres santas, jovens
prometidas em casamento ou esposas laboriosas- mostraram a importância
central do casamento na determinação da condição feminina; muitos
decodificaram os sistemas de valores, de imagens e de representações que
os comportamentos traduziam no cotidiano; outros testemunharam o lugar
que algumas mulheres ocuparam na vida intelectual e religiosa do seu
tempo, longe das figuras célebres ocasionalmente saídas da obscuridade
pelo poder que detêm; outros, por fim, retomam a tradição da história do
direito”. [KLAPISH-ZUBER, 1992, p. 12]

De acordo com Klapish-Zuber [1992] as atividades femininas do Medievo


permanecem quase que raramente assinadas, ficando sob o domínio das
conjecturas. Entretanto, Klapish-Zuber [1992] aponta que vestígios íntimos
como agulhas, pentes, roupas, vasos, etc permitem uma abordagem que
possa restituir os espaços e objetos que definem a vida quotidiana de uma
mulher, as suas atividades no interior ou fora de sua casa.

Porém, como explica José Rivair Macedo [1992, p.10]: “na idade Média,
como em outros períodos, a sociedade definiu os papéis e os lugares 303
reservados aos sexos”; entretanto, sabe-se que a sociedade medieval era
guiada por valores morais cristãos e pelo ideal de guerra, o que produzia
uma elevação do homem em detrimento da mulher. Portanto, ainda que
houvesse mulheres que conseguiam de certa forma ultrapassar as barreiras
impostas ao seu sexo, a submissão feminina era quase que padrão nesta
sociedade – claro que com exceções, visto no exemplo de rainhas como
Elizabeth Woodville (1437-1492), soberana que se destacou em meio a
“Guerra das Rosas”:

“A definição dos papéis e dos lugares das duas “metades” encontra-se


expressa nos próprios símbolos que as designavam: o homem, a espada. A
mulher, a roca; [...] ao homem, o símbolo de uma atividade realizada nos
campos de batalha; às mulheres, o símbolo de uma tarefa realizada na vida
privada. Trata-se evidentemente, de um estereótipo, de uma ideia
desmentida pela realidade histórica, mas como se sabe, por vezes os
preconceitos nutrem-se de ideias comuns”. [MACEDO, 1992, p.10]

Ao olhar para essas mulheres e tentar reescrever uma nova história,


levando em consideração as diferenças de gênero e as imposições sociais,
culturais e políticas que muitas mulheres medievais sofreram, o campo da
História das Mulheres também ousa ao tentar vencer esses preconceitos, já
que pensar a mulher medieval como a reles submissa empobrece as
diversas trajetórias de figuras femininas do Medievo enquanto sujeitas
históricas. Neste sentido, Klapish-Zuber [1992, p. 18] evidencia que:

“Paradoxalmente, estas mulheres da Idade Média, a quem senhores,


esposos e censores negam a palavra com tanta persistência, deixaram
afinal mais textos e ecos do seu dizer do que traços propriamente materiais.
[..] mulheres de todos os meios ousavam-se fazer ouvir; ainda que seja
preciso apurar o ouvido para a escutar, abafada no barulho imenso do coro
dos homens, a parte que estas vozes executam no concerto literário ou
místico ganha uma autonomia”.

É possível afirmar que, os estudos sobre as condições femininas na Idade


Média, tem muito a oferecer a historiografia contemporânea, propondo uma
maior abordagem sobre as mulheres medievais. É válido frisar a ideia de
“Mulheres” no plural, já que a realidade vivenciada era diferente para cada
mulher, não podendo-se pensar a mulher medieval de uma forma
homogenia.

Necessita-se observar as diversas limitações e maneiras de se atingir a


autonomia feminina, fazendo-nos refletir sobre os variados meios que essas
mulheres se valeram para obter o controle de suas vidas e as diversas
adaptações ou transgressões a essa realidade de submissão.

O protagonismo das mulheres medievais: representações femininas


dos discursos historiográficos à literatura
O historiador Tapioca Neto [2013] expõe que, graças a ideologia feminista a
304
partir da década de 1960, e, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, o
pensamento político feminino começou a ter grande aderência entre as
massas populares de vários países, e essa valorização do papel da mulher
transcendeu os discursos historiográficos adentrando também as páginas de
obras literárias e das obras cinematográficas.

Por exemplo, ao acessarmos a obras audiovisuais presentes na plataforma


de streaming Netflix, observamos o destaque que é dado aos títulos que
apresentam protagonismo feminino, com a criação da categoria específica
“Protagonistas femininas fortes”. Outro exemplo é a telenovela global “Deus
Salve o Rei” [2018] que mesmo ambientada no Medievo, trazia no embate
entre a mocinha Amélia (interpretada por Marina Ruy Barbosa) e a vilã
Catarina (papel de Bruna Marquezine) aspectos da força e coragem
feminina, equiparando-se ao protagonismo do herói, Príncipe Afonso
(interpretado pelo ator Rômulo Estrela).

Nota-se que no campo da literatura essa quebra de preconceitos nos


discursos de que as mulheres medievais eram o sexo frágil comparadas a
força e virilidade masculina, são constantemente questionados e
contestados, principalmente através de romances históricos, que ao darem
uma nova ótica a personagens fictícias – ou reais –impulsionam novas
interpretações sobre a situação feminina e a ideia da submissão versus
autonomia:

“Esse discurso de independência, por sua vez, deslocara-se um pouco da


oralidade e começou a adentrar na própria literatura. Alguns romances da
segunda metade do século XX passaram a trazer a figura da mulher
emancipada como personagem principal da trama. Não obstante, se
verificou um resgate de personalidades femininas do passado,
reinterpretadas à luz dos atuais acontecimentos, tais como: Cleópatra,
Joana d’Arc, Elizabeth I, Maria Antonieta, e a própria Ana Bolena”.
[TAPIOCA NETO, 2013, p. 53]

Este protagonismo de mulheres medievais nas páginas de obras literárias é


reflexo das próprias conquistas feministas e do estudo das concepções de
gênero pelo campo da História das Mulheres, este campo de estudos
segundo Joan Scott [1992] reivindica um novo olhar sobre o papel da
mulher ao longo da história e busca também destacar as suas contribuições.
Neste quesito, a literatura pode servir como grande aliada da História ao
interagir com os mais diversos leitores e leitoras ao despertar o interesse
sobre temáticas e dilemas referentes às realidades e modos de vida de
mulheres medievais.
Pode-se apontar que apesar de ambientados no cenário medieval,
utilizando-se da cronologia e de elementos ligados ao cotidiano e imaginário
acerca do Medievo, esses romances históricos, que procuram dar uma nova
perspectiva ao papel desenvolvido por mulheres na Idade Média, tendem
também a atender pautas da própria atualidade levantadas pelas lutas
feministas.
305
Vale salientar que a função da Literatura, ao criar o mundo ficcional, não
tem compromisso na transmissão de verdades ou fatos inteiramente
comprovados historicamente, o que é diferente do trabalho historiográfico,
que necessita criar uma narrativa verossímil. Os romances históricos, ao
tentar retratarem essas mulheres medievais, trabalham assim com a
representação dessas figuras femininas.

De acordo com Chartier [1990] desta forma, pode pensar-se uma história
cultural do social que toma por objeto a compreensão das formas e dos
motivos, ou seja, das representações do mundo social; estas, na revisão
dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente
confrontados, e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como
pensam que ela é, ou como gostariam que fosse:

“As definições antigas do termo [..] manifestam a tensão entre duas


famílias de sentidos: por um lado, a representação como dando a ver uma
coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que
representa e aquilo que é representado; por outro, a representação como
exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de
alguém. No primeiro sentido, a representação e instrumento de um
conhecimento mediato que faz ver um objecto ausente através da sua
substituição por uma «imagem» capaz de o reconstituir em memória e de o
figurar tal como ele é [...] A relação de representação [...] como
relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, valendo
aquela por este, por Ihe estar conforme — modela roda a teoria do signo
que comanda o pensamento clássico”. [CHARTIER, 1990, p. 20-21]

A representação de mulheres medievais, ao transpor o campo


historiográfico e partir para a literatura, trata-se, pois, de um processo de
apropriação da imagem dessas figuras/personalidades que estão ausentes,
possibilitando, assim, a sua presença através da reconstituição de sua
memória. A representação vale-se dessa substituição da “ausência pela
presença” constituindo uma nova imagem, de acordo com os objetivos que
são convenientes para o processo da elaboração de um sentido para este
objeto/símbolo representado. Isto é muito comum em romances históricos
que buscam essa reabilitação da memória através da narrativa ficcional.

O Romance Histórico como nova interpretação histórica: A condição


feminina entre a submissão e o poder
Apesar dos romances históricos sobre as mulheres medievais ainda terem
suas limitações, pois o método literário nem sempre vai se embasar na
análise documental e de outros testemunhos como ocorre no método
historiográfico, ainda assim essas narrativas literárias podem propiciar uma
nova interpretação histórica sobre a condição feminina durante o Medievo,
cobrindo até mesmo lacunas das narrativas historiográficas, já que os
escritores também apresentam suas versões para fatos que ficam sem
respostas muitos vezes na escrita de historiadores:

“De figura recatada, que tomava a virgem como ideal inalcançável, as


306
mulheres passaram a usar os elementos de que dispunham para se
proverem, na medida em que obtinham espaço para isso. Com o tempo,
sua força fora aumentando, chegando ao ponto de transformar a própria
configuração da sociedade, antes representada mais pelo gênero masculino.
Inclusive, observou-se que essa mulher, de perfil determinado, começou a
adentrar no mundo da ficção, não mais sendo representada como a donzela
frágil e modelo de retidão social, mas sim como um ser humano repleto de
sentimentos comuns à espécie. Nesse caso, viu-se também o resgate de
certas personalidades femininas do passado, reinterpretadas à luz da nova
ideologia de emancipação da mulher que estava em voga desde o século
XIX e principalmente após a década de 1960. É nesse contexto que
ressurgem no cenário contemporâneo: Cleópatra, Maria Antonieta e a
própria Ana Bolena”. [TAPIOCA NETO, 2013, p. 57]

A história das mulheres, como aponta Scott [1992] através das


reinvindicações feministas, buscou escrever novas discursos e valorizar o
papel e contribuições de múltiplas mulheres que durante muito tempo
foram silenciadas nas narrativas oficiais. Silêncios nas narrativas de várias
rainhas inglesas, que atualmente são resgatadas pela literatura nas suas
representações em diversos romances históricos.

Dessa forma, o uso de metaficções historiográficas destaca-se cada vez


mais. Como explica Hutcheon [1991], esses textos expandem os modelos
narrativos acerca do passado, através da união da literatura e história. A
partir do prisma conceitual de metaficção historiográfica, na perspectiva que
aborda elementos do discurso histórico interagindo a liberdade ficcional da
literatura, podemos utilizar vários romances históricos para o estudo do
Medievo e seus eventos, como a “Guerra das Rosas” (1455-1485).

Côrrea [2013] explica que essa guerra consistiu numa série de lutas pelo
trono da Inglaterra, disputado entre as famílias rivais: Yorks (representada
pela rosa branca) e Lancasters (representada pela rosa vermelha) levando
a:

“três revoltas regionais; uma série de assassinatos, cercos e feudos


privados; treze batalhas de larga-escala; dez tentativas de tomar o poder
do rei; quinze invasões; cinco usurpações do trono; cinco monarcas; sete
reinados; e cinco mudanças dinásticas”. [CÔRREA, 2013, p. 5-6].

Ao analisarmos a literatura contemporânea, vemos na ambientação de


enredos na Idade Média novas perspectivas acerca de eventos deste
período, aspecto evidente no romance “O Sol em Esplendor” publicado em
1982 por Jean Plaidy, que retrata a “Guerra das Rosas”. A obra está repleta
de representações de figuras femininas notáveis como Margaret de Anjou
(1430-1482), Elizabeth Woodville (1437-1492) e Anne Neville (1456-1485);
ambas se tornaram rainhas em meio aos conflitos da “Guerra das Rosas”.

O livro expõe as diversas condições femininas da Inglaterra do século XV,


podendo-se refletir pela ótica de Plaidy acerca de temas como maternidade,
casamento, submissão, luta pelo poder, etc, nesse cenário turbulento entre
os homens e que afetava as mulheres. O romance mergulha na ficção para 307
a construção da sua narrativa abordando episódios vividos pelas figuras
históricas femininas citadas, dando maior destaque as personagens que ora
adaptam-se a submissão “no mundo dos homens”, mas em meio aos
conflitos traçam também artimanhas para ascender ao poder.

Além de Plaidy, a escritora britânica Philippha Gregory também publicou


uma série literária dando protagonismo as figuras históricas femininas
centrais da Guerra das Rosas. Na série literária “Guerra dos Primos”,
Gregory alça ao protagonismo, Elizabeth de Woodville no livro “A Rainha
Branca” (2012), Margaret Beaufort (1443-1509) ne “A Rainha Vermelha”
(2013), Jacquetta de Luxemburgo (1415-1472) ne “A Senhora das águas”
(2014) e Anne Neville ne “A Filha do Fazedor de Reis” (2015). Essas obras
deram origem a série televisa “The White Queen” em 2013, da Starz.
Gregory escreveu também sobre Isabel de York (1466-1503) em “A
Princesa Branca” (2018) que originou a série de TV “The White Princess”
(2017) da Starz.

Essas figuras históricas ao serem retratadas nos livros de Gregory são


evidenciadas como protagonistas fortes, inteligentes e estrategistas, sendo
verdadeiras sobreviventes em meio aos conflitos dos Yorks e Lancasters,
com papeis decisivos no desenrolar das sucessões dos reis na guerra.
Portanto, Gregory não delega a essas figuras papeis coadjuvantes perante
os homens, mas tenta restituir suas contribuições históricas em seus livros.

Através dessas representações literárias, seja na obra de Jean Plaidy ou


Philippa Gregory, narram-se aspectos de trajetórias femininas em meio a
conflitos políticos e sociais, mostrando assim as diversidades das condições
femininas na Idade Média, marcadas pela desigualdade de gênero ou até
pela transgressão de padrões impostos às mulheres, como no caso das
figuras retratadas pelas autoras:

“Isso significa dizer que não vemos a questão da representação como algo
que ameace o conhecimento histórico ou que constitua uma negação do
mesmo. A dimensão da representação é uma possibilidade que deve ser
levada em consideração e não excluída apresentando como desculpas os
inúmeros problemas que traz consigo. Não estamos sugerindo que de um
lado está a representação e de outro o real formando uma dicotomia que
obrigue o leitor a escolher, ou ficar com a representação ou com o real.
Assim sendo, talvez possamos pensar a representação como uma dimensão
do real [...] Desta forma, a representação e o real são interdependentes,
um não existe sem o outro”. [SANTOS, 2011, p. 43]
Santos [2011] argumenta que as diferenças entre história e literatura
podem ser sintetizadas no fato de que o historiador representa
acontecimentos que não dependem de sua consciência para que possam
existir, ou seja, eles habitam na memória de quem os presenciou e podem
servir como testemunhas; já o literato tem a licença discursiva para
inventar situações e personagens sem a obrigação de ter referência no
308
mundo empírico. Conforme Santos explica [2011] ainda que independente
de historiadores falarem dela ou apresentarem suas perspectivas, existiu
uma cidade chamada Roma que foi capital do que ficou famoso como Antigo
Império Romano; entretanto, não há Terra média sem Tolkien ou Nárnia
sem Lewis.

A representação de uma figura feminina medieval em romances históricos


tem muito a nos dizer sobre o contexto de sua produção e as concepções de
seu autor(a); ela pode dialogar com a própria historiografia à medida em
que o romance é analisado reconhecendo as barreiras entre real e ficção, e
as perspectivas expressas pelo autor possam ser também debatidas diante
dos próprios discursos históricos sobre fatores referentes a trama, já que,
como a História, a literatura visa criar uma narrativa com base na
representação, que só é confeccionada através da reconstituição da
memória.

Considerações Finais
Os romances históricos com base em um contexto histórico relacionado ao
Medievo, tem entre suas características a complexidade em abordar
temáticas ou eventos referentes a Idade Média que são permitidos pela
licença poética do seu escritor. Sendo assim, as tramas narradas por
romancistas como Plaidy e Gregory, ainda que ambientadas no cenário
medieval e com personagens históricas, expressam as próprias concepções
das suas autoras.

É possível apontar que novos debates se abrem para o campo da História


das Mulheres, ao falarmos das condições femininas no Medievo, pois vemos
que na dinâmica do jogo “das rocas e espadas”, descrita por Macedo
[1992], haviam personagens que conseguiam se destacar e se equiparar a
homens, como as rainhas da “Guerra das Rosas”, porém muitas dessas
figuras foram silenciadas nas narrativas oficias. Entretanto com o advento
do campo da História das Mulheres esta realidade vem sendo transformada.

Essa reinterpretação da história de figuras femininas e de suas


contribuições políticas, culturais e sociais presentes em obras literárias
contemporâneas, mostra que as representações de figuras históricas dentro
da literatura podem vir a dialogar com discursos históricos, pois, à medida
em que novas fontes para a escrita da história vão sendo analisadas,
podemos ter um leque de possibilidades ao ofício do historiador.

Referências
Marcos de Araújo Oliveira é graduado em Licenciatura em História na
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina).
CHARTIER, Roger. Introdução. In:______, A História Cultural: Entre
Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. p. 13-28.
CÔRREA, Wesley. Razões e causas da crise política inglesa no tardo
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SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. 2013. Natal. Anais... Natal: ANPUH,
2013. 11 p.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. 309
Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 331 p.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: DUBY, Georges; PERROT,
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TAPIOCA NETO, R. D. A condição da mulher na Inglaterra do século XVI: O
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GREGORY, Philippa. A Rainha Vermelha: A Guerra dos Primos – Livro III.
Rio de Janeiro: Record, 2013. 364 p.
GREGORY, Philippa. A Filha do Fazedor de Reis: A Guerra dos Primos – Livro
IV. Rio de Janeiro: Record, 2015. 476 p.
GREGORY, Philippa. A Princesa Branca: A Guerra dos Primos – Livro V. Rio
de Janeiro: Record, 2018. 560 p.
PLAIDY, Jean (Eleanor Alice Burford Hibbert). O Sol em Esplendor. Rio de
Janeiro: Record, 2000. 432 p.
AS REVISTAS DE MODA COMO FONTE HISTÓRICA: ESTUDANDO
A MODA MASCULINA NA PRIMEIRA REPÚBLICA NA PRINCESA
DO SERTÃO
Marta Gleiciane R. Pinheiro e Jakson dos Santos Ribeiro

310 O presente texto aborda o uso das revistas de moda em sala de aula, como
fonte histórica. Focando dentro dessa dimensão a questões das
perspectivas de masculinidades durante a Primeira República, na cidade de
Caxias/MA. No estudo das masculinidades elegantes na Princesa do Sertão,
explicitando o progresso que se deu o estudo sobre a moda, ajudando na
contextualização do assunto, auxiliando no processo de ensino-
aprendizagem e na dinamização da aula.

Apesar de a moda segundo alguns estudiosos ser algo frívolo,


desmerecedora de estudo cientifico, Lipovetsky (1989) traz a percepção de
que através da moda podia-se estudar aspectos da sociedade, pois apesar
das maneiras distintas, esse fenômeno atingia todas as camadas sociais.

As roupas, tal como as demais fontes históricas, nos contam histórias, nos
revelam costumes, práticas e histórias de vida, possibilitando-nos de chegar
não só a conhecer uma época estabelecida como também a desvendar as
práticas culturais de um determinado grupo social, de modo específico dos
homens republicanos, no entanto ter a roupa fisicamente é um trabalho
árduo, restando-nos as fotografias e desenhos das mesmas nas Revistas de
Moda, visto que esses periódicos são fontes e consequentemente passam a
ser uma espécie de documento, uma vez que documento é tudo aquilo que
registra e apresenta informações ao pesquisador sobre o objeto estudado
seja qual for o estado físico em que se encontra, tal concepção foi
estabelecida com o surgimento da Escola dos Annalles, a proposta da
supracitada era trazer para a História novas abordagens, alargando o
campo objetal de estudo para os pesquisadores, da mesma forma que suas
fontes.

As entrelinhas das revistas


Partindo destes pressupostos, pode-se perceber que o uso das revistas de
moda na sala de aula, além de aprimorar o conhecimento sobre o referente
assunto, faz um conectivo da História local com o cotidiano dos educandos.

Assim, explicitando a relação entre passado e presente, tornando auxílio do


livro didático, Schmidt (2002) afirma que:

“A aula de História é o momento em que, ciente do conhecimento que


possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do
conhecimento histórico existente, através de um esforço e de uma atividade
com a qual ele edificou esse conhecimento. [...] A sala de aula não é
apenas um espaço onde se transmite informações, mas onde uma relação
de interlocutores constrói sentidos. Trata-se de um espetáculo impregnado
de tensões em que se torna inseparável o significado da relação teoria e
prática, ensino e pesquisa.” [SCHMIDT, 2002, pag.57].

A afirmação da autora salienta a importância da utilização de “novas”


abordagens no ensino, mostrando que a História não está distante e assim
despertar nos alunos a vontade de conhecer a historicidade do local,
comunidade e ou cidade, além do entendimento da conjuntura que o espaço 311
estudado estava vivenciando e como essas vivências estavam relacionadas
com o cenário nacional.

Na Princesa do Sertão (Caxias/MA), por exemplo, a propagação da moda


estava relacionada com a modernização da cidade e a instalação das
fábricas e principalmente da indústria têxtil, fato notório pela ampliação dos
serviços das alfaiatarias e alfaiates da cidade, evidente em um anuncio do
jornal caxeiro ( Janeiro, 1916), Com os ares da modernidade houve um
desenvolvimento da imprensa tanto caxiense como maranhense, além de
uma grande intensidade de publicações nos jornais enaltecendo a cidade, e
os homens elegantes, dotados de poder e racionalidade, como é perceptível
na Revista Elegante e do Norte. Assim sendo, as revistas se tornaram
fontes históricas essenciais, uma vez que possibilitam o estudo da história
por meio das informações presentes nas supracitadas.

O uso das revistas de moda na sala de aula é uma nova perspectiva no


ensino de História, possibilitando uma nova abordagem no ensino-
aprendizagem, como também mostrando a eles a importância dos
documentos, e como as revistas são de fácil acesso, disponibilizadas em
sites como o da Biblioteca Benedito Leite, além disso, a utilização da
tecnologia no ensino, facilita a consulta das mesmas tanto pelos alunos
como pelos professores. No entanto segundo Gugelmin:

“[...] o professor deverá conduzir o estudo em sala de aula mostrando aos


alunos que não é porque foi publicada, que determinada imagem ou
situação é um retrato da sociedade daquele período, pois muitas vezes o
que se edita tenta transmitir um modelo de família, de ser humano, de
trabalhador para ser seguido pelo seu leitor, mas que nem sempre condiz
como realmente a sociedade agia ou como toda a sociedade vivia”.
[GUGELMIN, 2016, p.28]

As revistas e os jornais foram os principais meios de divulgação dos


discursos fantasiosos que determinavam um modelo de masculinidade,
generalizando a imagem de um homem estilizado, como a afirma (Ribeiro,
2018):

“Os caxiense não ficavam distantes das novidades sobre o mundo da


alfaiataria, visto o movimento dos comerciantes em buscar trazer o que
consideravam, naquele contexto, como a última novidade da moda”
[RIBEIRO, 2018, p.108]

As revistas circulavam com maior intensidade na Capital maranhense, mas


circulavam nas cidades pequenas por meio dos periódicos, eles difundiam
os acessórios e peças de roupa de ultima tendência para o público
masculino, exaltavam o perfil de homem ideal e elegante da época.

Explorando as revistas
A escolha das revistas trabalhadas no texto se deu pela sua popularidade no
período da Primeira Republica e por apresentarem conteúdo de moda para o
312
público masculino.

A revista Elegante nos seus primórdios era publicada quinzenalmente, e na


posteriori, mensalmente, sob gerencia dos irmãos Teixeira. A Revista
Elegante encontrada no acervo digital é dividida em pastas numéricas com
uma determinada quantidade de revistas em cada pasta, por exemplo, o
primeiro arquivo é de número 003 ao 036, e assim sucessivamente até
chegar o último arquivo com o número 075 ao 110, no decorrer da analise
percebeu-se que o periódico em estudo possuía um padrão de publicação,
cada editorial continha o máximo de 4 folhas, tendo os anos de circulação
entre 1892 a 1906.

Outro periódico importante para a fixação do estereótipo de homem ideal, é


a Revista do Norte a qual era publicada quinzenalmente no Maranhão entre
os anos de 1901 e 1906, os organizadores eram Alfredo Teixeira e Antônio
Lobo, Assim como a Revista Elegante, no site é dividida em pastas, a
primeira é do número 01 a 24 e a última dos números 73 ao 87.

Nas publicações da revista e principalmente na sua capa sempre se


apresentava a figura de algum homem influente, na primeira edição contém
a imagem de Campos Salles, o então presidente do país. Nas publicações
seguintes, durante a pesquisa identificamos que cada edição a revista trazia
um governador de um estado brasileiro, respectivamente, Maranhão, Pará,
Ceará, Amazonas, Rio Grande do Norte e Pernambuco, todos apresentando
vestimenta de acordo com os padrões vigentes da sociedade, todos com
paletó, cabelo bem penteando, barba bem feita.

A partir da publicação de nº 9, tem-se o início de uma série de


representações de acadêmicos brasileiros, o primeiro a ser homenageado
foi Machado de Assis, após a esta,temos Olavo Bilac, Luiz Murat, entre
outros.

Nesse período a região se encontrava com outra revista que continha certa
influência sobre os homens, a Revista Maranhense, o folhetim não era
exatamente uma revista de moda assim como a Elegante, no entanto, ela
exaltava os grandes homens, prestava-lhes homenagens de aniversário,
quando passavam por alguma cidade do Maranhão, quando ocorria a posse
de algum cargo importante e quando faleciam, durante a análise quase não
se encontrou anúncios de roupas ou algo similar, percebemos apenas uns
poucos anúncios sobre algumas alfaiatarias.

Em quase todas as publicações tinham-se algum homem elegante. Tal qual


a Revista do Norte, trazia figuras masculinas como: Dr. Herculano Parga,
Dr. Luiz Domingues,Lauro Sodré, Gonçalves Dias, Dr. Clodomir Cardoso,
Vespasiano Ramos, entre outros.

Nessas revistas eram encontrados diversos anúncios de roupas e adereços


como chapéus, paletós, cintos, bengalas, tecidos e até mesmo máquina de
barbear. Os mesmos cada vez mais elaborados devido a transição para uma
sociedade consumista, essas revistas acabaram servindo como manuais de 313
como vestir-se e os acessórios que deveriam compor o look para os homens
dos segmentos abastardados da sociedade.

Os jornais e, principalmente, as Revistas de moda retratavam a Princesa do


Sertão em seus ares da modernidade e progressos, refletindo o esplendor
da temporalidade estudada, e a imagem projetada para representar esses
acontecimentos na cidade foram os homens dos segmentos abastados. Os
periódicos homenageavam os homens que prestavam serviços a sociedade
caxiense, trazendo notoriedade para esses indivíduos, além de que a roupa
exibia seu poder aquisitivo, como era recorrente na Revista Maranhense,
que trazia “grandes homens” em suas paginas, por exemplo, governadores,
médicos, comerciantes e demais personalidades influentes, ela exaltava-os,
prestava-lhes homenagens de aniversário, quando passavam por alguma
cidade do Maranhão ou quando ocorria a posse de algum cargo importante
e quando faleciam.

Os dados encontrados nas revistas levam a pensar que os anúncios e


produtos contidos nos periódicos eram destinados exclusivamente para o
público masculino, buscando mostrar a relação entre a masculinidade e a
moda, e consequentemente ao mundo da costura.

Os produtos que eram anunciados estavam de acordo com o padrão de


vestir-se da elite burguesa caxiense da época republicana, a padronização
das vestimentas assim como a busca por uma masculinidade hegemônica
estava de acordo com o lema republicano “Ordem e progresso”, e também
pelo fato de sentir-se moderna para acompanhar o momento fabril da
cidade.

Em decorrência disso ao adquirir uma peça de roupa, o homem recorria as


revista de moda ou aos jornais que traziam anúncios similares ou idênticos.
A revista elegante de modo geral foi uma forte influência na formação e
difusão na mentalidade dos indivíduos do que seria o homem ideal através
das suas vestes e acessórios, como aborda Lipovetsky:

“Da mesma maneira que a moda não pode ser separada da estetização da
pessoa, a publicidade funciona como cosmético da comunicação. Da mesma
maneira que a moda, a publicidade se dirige principalmente ao olho, é
promessa de beleza, sedução das aparências, ambiência idealizada antes de
ser informação. Toma lugar no processo de estetização e de decoração
generalizada da vida cotidiana, paralelamente ao design industrial, à
renovação dos bairros antigos. Por toda parte se expandem a maquiagem
do real, o valor acrescentando estilo de moda”. [ LIPOVETSKY 1989, p.
189].
Algumas abordagens
Através das revistas de moda o professor pode trabalhar o gênero por meio
da moda, pois segundo Schpun:

“Em todos os critérios de beleza assinalados, os signos de classe e de


distinção são determinantes. A moda também tem o seu papel nesse jogo:
314
desde a escolha dos trajes até a maneira de usá-los, de combiná-los, de
realçá-los de adaptá-los e de mostrar-se através deles, toda a arte do
parecer desenvolve-se e os detalhes distintivos ganham enorme
importância”. [SCHPUN, 1999, p.126].

No caso do presente texto trata-se da construção de um modelo ideal de


homem por meio das revistas de moda, tendo grande difusão da mesma do
que era ser um homem viril e elegante.

Assim, ainda segundo Schpun:

“Os homens também devem exprimir sua masculinidade através da


vestimenta. Ensina-se aos meninos a representar sua identidade sexual,
entre outras coisas, pela escolha que eles fazem dos trajes, pelo porte das
roupas [...]” [SCHPUN, 1999, p.126].

No entanto tal pensamento pode ser empregado na perspectiva da moda


feminina, tendo em vista que a moda não está restrita apenas a um gênero
ou a outro, pode-se abordar também as mudanças ocorridas com a
modernidade, pois foram adotados novos costumes pela população para
assim adequar-se à urbanização em que se encontrava a cidade, fazer o
mapeamento dos trajes mais famosos daquela época, quais as pessoas que
o utilizavam e a partir disso demonstrar as principais classes sociais
caxienses, ficando evidente que além da moda masculina, podemos
perceber aspectos econômicos, políticos e principalmente culturais, devido
as mesmas tratarem dos assuntos citados mesmo que de forma surpeficial.

A utilização das Revistas de Moda em sala de aula abriu um leque de


possibilidades de uso para o ensino, segundo Cunha:

“Manusear periódicos traz benefícios para a produção historiográfica, pois


estes, enquanto objetos de estudo, são instrumentos de intervenção social
e manipulação em prol de diversos interesses, e essas intenções precisam
ser identificadas” [CUNHA, 2017, p.06].

Por tanto, a partir desse trecho identifica-se atribuições cruciais para por
em prática, o papel do professor será incentivar o senso critico dos alunos,
alem disso, aproximá-los a fontes os incentiva um estudo sobre a
importância das mesmas.

Considerações finais
A História positivista tida como tradicional e oficial é posta em “xeque” a
partir do advento da Escola dos Annales ampliando as possibilidades e
abordagens em relação as fontes e a escrita Histórica, assim como os
agentes históricos.

Levando-se em consideração esses aspectos percebemos que o emprego de


periódicos em sala de aula é algo recente e ainda não consolidado, tendo
em vista que o aparato necessário para a utilização dos mesmos é precário
no que diz respeito a estrutura física e acadêmica, mas essas novas 315
metodologias estão cada mais presentes, pois, no âmbito acadêmico existe
uma forte preocupação e incentivo aos professores em formação para que
estejam alinhados com os movimentos e novas metodologias, “inovando” o
ensino e suscitando nos alunos o interesse pelos conteúdos de História,
rompendo com a perspectiva de que a matéria está distante do cotidiano
dos educandos.

No que se refere a construção de uma masculinidade ideal durante a


Primeira Republica em Caxias- MA através da moda, as Revistas de moda
foram de fundamental importância para o estudo, as mesmas exerciam uma
forte influência na formação e difusão na mentalidade dos indivíduos do que
seria o homem ideal através das suas vestes e acessórios, os periódicos em
questão eram principais meios de comunicação do período, tornando-se
fontes primárias para o desenvolvimento da temática.

Como discorrido anteriormente as Revistas de moda podem ser utilizadas


em uma variedade de assuntos, fazendo-se um recurso didático proveitoso
para os docentes, contribuindo para a dinamização da aula, aguçar a
criticidade dos alunos e a criatividade além de ser uma atividade de
interpretação, dado que os periódicos em questão continham uma
variedade de discursos, sem deixar de lado da didática, adaptando essas
fontes para o perfil de alunos de cada turma, assim como para o ambiente
em que a escola está localizada e a própria estrutura e o corpo docente.

Referências
Marta Gleiciane Rodrigues Pinheiro é graduanda em Licenciatura Plena em
História, pelo Centro de Estudos Superiores de Caxias, da Universidade
Estadual do Maranhão-CESC/UEMA. Membro do Grupo de Estudos de
Gêneros do Maranhão- GRUGEM/UEMA e Grupo de Teatro do Centro de
Estudos Superiores de Caxias – CESC – Campus /UEMA.
Jakson dos Santos Ribeiro - Professor Adjunto I, Doutor em História Social
da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (2018). Mestre em História
Social pela Universidade Federal do Maranhão (2014). Especialista em
História do Maranhão pelo IESF (Instituto de Ensino Superior Franciscano)
(2011). Graduado no Curso de Licenciatura Plena em História da
Universidade Estadual do Maranhão (Centro de Estudos Superiores de
Caxias-MA) (2011). Coordenador do Grupo de Estudos de Gêneros do
Maranhão- GRUGEM/UEMA Coordenador do Laboratório de Teatro do Centro
de Estudos Superiores de Caxias – CESC – Campus /UEMA.

CUNHA, Manoel Afonso Ferreira. Os jornais e o ensino de história no


maranhão: os periódicos como ferramenta pedagógica. p. 06 Disponível
em: Artigo-colet%C3%A2nea-educa%C3%A7%C3%A3o-2017-MANOEL-
AFONSO.pdf. Acesso em 30 de Marcço de 2020.
GUGELMIN, Andrea. A história em páginas envelhecidas: o uso de revistas
antigas em sala de aula. 2016. 128 f. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2016. p.28.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas
316
sociedades modernas. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. P. 189.
RIBEIRO, Jakson dos Santos. Filhos da princesa do sertão: representações
da masculinidade na imprensa em Caxias/Ma durante a Primeira Republica,
(Tese) Universidade Estadual do Pará, Belém, 2018.
SCHMIDT, M. A. A. A formação do professor de história e o cotidiano da sala
de aula. In: BITTENCOURT, C. O saber histórico na sala de aula. São Paulo:
Contexto, 2002.
SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em
São Paulo nos anos 20 São Paulo: Boitempo Editorial/Editora SENAC, 1999.
P.126.
“O TRABALHO DAS MULHERES”: LAR, FAMÍLIA E CASAMENTO
NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
Milena Calikoski

Quando vislumbramos o passado, através das nossas fontes, nos


deparamos com contradições, pois olhamos para o passado pensando no
que é padrão e no que é aceitável nos dias de hoje, portanto, não se trata 317
de normatizar condutas que eram comuns nesse passado e não são – pelo
menos não deveriam ser – mais aceitas nos dias de hoje. Assim devemos
ter consciência de que os costumes e fatos retratados não eram uma norma
de conduta para todas as classes sociais e para toda a população.

No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX tinha-se uma


preocupação sanitária, movida por uma crença em novos padrões
higienistas que colocavam a família e o cuidado com a saúde no ambiente
familiar no centro do debate e, a partir disso se fazia necessário pensar a
organização familiar e como essas famílias viviam. Esse movimento
contribuiu para o surgimento de vários periódicos que tratavam da saúde
familiar, muitos destes periódicos eram voltados para o público feminino,
principalmente mulheres da elite, já que os índices de analfabetismo eram
muito altos então não eram todos que tinham acesso a estes materiais.
Estes periódicos tinham conteúdos que procuravam ajudar a mulher a
compreender e executar o seu papel de mãe e dona de casa. Alguns desses
periódicos tratavam de ressaltar a deficiência da educação feminina e
reivindicavam uma educação melhor, pois a recebida até então era
insuficiente para que educassem os filhos de maneira satisfatória.

Esses periódicos importavam muitos elementos da Europa, principalmente


da França, questões como moda, dicas de comportamento e literatura.
Eram veiculados no Rio de Janeiro, já que ali estavam os principais portos,
por onde chegavam periódicos europeus, livros e informações de modo
geral, contribuindo para o nascimento de um ambiente onde circulava muita
informação tornado a capital do Brasil um grande polo de difusão da cultura
nacional e também da cultura europeia, um bom exemplo da importância
das publicações do Rio de Janeiro é o de que muitos outros periódicos ao
redor do território nacional apenas copiavam conteúdo produzido em
periódicos da capital e o reproduziam em suas páginas. O fato é que todos
estes periódicos ajudavam a normatizar o que deveriam ser
comportamentos adequados as mulheres da elite.

No periódico “A Família, Jornal Litterario Dedicado a Educação da Mãe da


Família”, na edição número 14 publicado no ano de 1889, no artigo
“Trabalho das Mulheres”, da autoria de Maria A. Vaz de Carvalho, podemos
verificar as seguintes falas acerca do trabalho feminino: “O preconceito
mais funesto, que ainda nasceu e medrou neste mundo, é o que considera o
trabalho uma escravidão deshonrosa” [CARVALHO, 1889, ed. 13, p.5], a
autora vai ainda classificar o trabalho como algo que deve ser santificado,
um companheiro para todas horas, evidenciando a necessidade da mulher
trabalhar. Com base no texto temos que considerar o que seria esse
trabalho feminino, a autora dirá que: “Trabalhar é ser útil, é occupar o seu
espirito, é adquirir conhecimentos ou espalhal-os em torno de si, é
concorrer para o bem-estar dos outros e para o seu aperfeiçoamento
proprio.” [CARVALHO, 1889, ed. 14, p. 6]. Vai dizer ainda que a mulher
deve acordar cedo e preocupar-se em cerzir, em verificar a cozinha e a
louça, pois assim torna-se ativa e “não tem aquellas horas de tédio
318
profundo, que descobrem diante de um olhar os horisontes sinistros
esbraseados do suicídio”. [CARVALHO, 1889, ed. 14, p. 6]. À menina
solteira faz um apelo para que estude e se aprofunde no conhecimento de
línguas, música e literatura, para conhecer a natureza humana em diversas
culturas e para saber interpretar o coração dos homens, pois as matronas
devem mais do que produzir filhos e os abastecer elas devem ser bem
instruídas para bem instruírem seus filhos. Portanto o trabalho da mulher
aqui descrito consiste em elementos muito específicos não podendo ser um
trabalho que envolva muitas exigências físicas ou o trabalho que seja
realizado fora do ambiente do lar, estavam restritas puramente a casa. Ao
realizar o seu trabalho a mulher não teria que esforçar-se intelectualmente
evitando ter pensamentos voltados para o seu bem-estar e os seus
sentimentos, pois a sua felicidade e bem-estar dependia do bem-estar da
sua família, se a sua família estivesse bem a mulher estaria bem, pois não
havia melhor sensação do que ser uma esposa e mãe bem sucedida.

Não eram todas as mulheres que olhavam para o trabalho com essas
preocupações, pois muitas não tinham escolha a não ser trabalhar na rua.
As mulheres das classes mais pobres tinham um benefício, uma certa dose
de liberdade, para circular e ir aonde precisassem sem a autorização dos
seus maridos - que muitas vezes não tinham, sendo mães solteiras - eram
pobres mas desfrutavam de uma certa liberdade financeira também pois
não dependiam do marido ou do pai, exclusivamente para ganhar dinheiro e
sustentar a família. Ainda assim essas mulheres estavam sujeitas a essas
normas imposta por uma alta sociedade, as quais estavam impedidas de
seguir pois o trabalho não era adequado para a mulher, era algo indigno,
muitas dessas mulheres que tinham que trabalhar não eram nem
consideradas mulheres, já que o trabalho consumia a sua beleza dando um
aspecto doentio à sua aparência [MAGALDI, 1992, p. 69]. Por sua vez as
mulheres pertencentes a essa alta sociedade, tinham uma estabilidade
financeira, que dependia do marido ou do pai, portanto não era totalmente
garantida, e não tinham liberdade, já que esta lhes era completamente
restringida tornando-as totalmente dependentes dos seus pais ou maridos.

O fato de os periódicos terem um papel tão central na difusão das


informações e de proporcionarem debates era a chegada da tecnologia que
facilitava as publicações em quantidade, tais como os tipógrafos, isso
permitiu que periódicos circulassem com mais facilidade e também permitiu
a criação de gráficas e editoras. Os periódicos foram importantes para a
Literatura brasileira já que neles é que circulava uma grande parte da
literatura, chamada folhetim, algumas dessas conhecidas até hoje outras
perderam-se no tempo. Muitos contos de Machado de Assis, assim como
romances e poemas iniciaram a sua publicação em folhetins, periódicos ou
jornais literários, outras tantas obras eram publicadas através de editoras.
Desse fato é importante entender que este era um novo momento para o
Rio de Janeiro, como capital e maior metrópole do país, onde se tinha maior
circulação de informação inclusive escrita por mulheres e para mulheres e
uma literatura florescente e brasileira.

Machado de Assis vai ressoar muito desses comportamentos femininos tão


defendidos por estes periódicos elitistas só que desta vez como uma crítica 319
a alta sociedade e a sua busca pela manutenção do status através da
aparência, que se dava através da manutenção da distinção social. Em “O
Segredo de Augusta” vemos o desenrolar da história de Augusta e de
Vasconcelos. Augusta casa-se muito cedo, aos 15 anos, faz um bom
casamento, com um homem rico. Mas Augusta é muito vaidosa,
preocupando-se sempre em parecer jovem, manda a sua filha ser educada
no interior para proteger a sua juventude. Passa os anos de casamento
ajudando o marido a dilapidar a fortuna, este por sua vez não lhe negava
nada e deixava que gastasse o dinheiro imprudentemente, como
pagamento pelo silêncio e indiferença da mulher para os horários tardios
em que chegava e as noites em que passava fora na companhia de
amantes. Um dia Vasconcelos descobre-se a beira da falência, então tem a
ideia de casar a sua filha Adelaide, Augusta é completamente contra,
primeiramente alegando que a menina é muito nova contanto com apenas
15 anos, mas ao final do conto descobrimos que a sua recusa consistia no
medo de se tornar avó. No meio disso Augusta e seu marido entram em
uma discussão, Vasconcelos vai jogar a culpa pela iminente pobreza em
cima de sua esposa dizendo que o motivo da ruína é o fato de ela gastar
demais, então desenrola-se o seguinte diálogo:

“- Mas por que motivo não impediu o senhor essas despesas que eu fazia?
- Queria a paz doméstica.
- Não! – clamou ela -; o senhor queria ter por sua parte uma vida livre e
independente; vendo que eu me entregava a essas despesas imaginou
comprar a minha tolerância com a sua tolerância. Eis o único motivo, a sua
vida não será igual a minha; mas é pior... Se eu fazia despesas em casa o
senhor as fazia na rua... É inútil negar, porque eu sei de tudo; conheço de
nome, as rivais que sucessivamente o senhor me deu, e nunca lhe disse
uma única palavra, nem agora lho censuro, porque seria inútil e tarde”
[ASSIS, 2017, p. 196].

Uma boa esposa cuida bem de sua casa e é econômica, gastando apenas o
necessário para cuidar da casa, em todo caso é dever do marido fiscalizar
como a sua esposa está regendo a casa, se faz as atividades corretamente
e, acima de tudo, se trata o dinheiro com parcimônia, portanto o marido
também tem responsabilidades para o bom andamento do casamento, se
Vasconcelos ficar pobre ele vai descumprir com a principal dessas
responsabilidades que é a de sustentar a sua família e dar-lhe prestígio
social com a sua posição, já que a perderia com a pobreza. Assim o conto
constrói as imagens de Augusta e de Vasconcelos para zombar da alta
sociedade fluminense, pois Vasconcelos é o típico homem rico que vive
apenas da sua fortuna herdada, sem nenhum preparo para geri-la,
gastando-a de maneira imprudente, deita-se de madrugada e levanta-se
depois da uma da tarde. Enquanto que Augusta no desespero da
manutenção das aparências tem inveja da juventude da própria filha.

Neste conto podemos perceber também como o casamento era tratado.


Vasconcelos, para salvar-se da falência quer casar a sua filha, não precisa
procurar um homem rico por muito tempo, porque descobre que um dos
320
seus amigos quer casar-se o assunto desenrola-se até que a Adelaide é
consultada sobre o casamento, que não deseja. Um dia o advogado de
Vasconcelos lhe diz que o Gomes, com quem desejava casar Adelaide,
estava falido também e procurava um casamento para salvá-lo, eram dois
golpistas, Vasconcelos decide testar Gomes e diz a ele que está sem
dinheiro e Gomes desiste do casamento. Com isso observamos que o
casamento era um meio muito importante e também bastante eficaz para
se tecer relações entre famílias, muitos casamentos davam-se na medida
em que eram necessárias estabelecer-se boas relações com outras famílias
abastadas, ou como um rápido meio de obter benefícios financeiros. A
última pessoa a ser ouvida acerca do casamento era sempre a mulher, a
não ser é claro que se interessasse por um bom partido e que a família
aprovasse o relacionamento.

É daí que vem a necessidade de manutenção do casamento, já que significa


também status social, esse era um dos principais papeis da mulher na
sociedade era o de mulher e esposa, por isso a maior responsabilidade
sobre a manutenção do casamento recaia sobre os ombros da mulher.
Apropriando-se de outro trecho do jornal “A Familia”, sobre a preservação
do casamento, a colunista Maria A. Vaz de Carvalho diz:

“Todas as mulheres se queixam dos maridos; e nenhuma ainda percebeu o


seguinte, são ellas que preparam e determinam o seu destino; é a ellas que
a família em geral deve a sua desordem, a sua dissolução, ou a sua
felicidade.” [CARVALHO, 1889, ed, 14 p 6].

A mulher era aquela que tinha o dever de governar a casa e a família, se a


mulher fizesse bem o seu trabalho o marido iria preferir ficar em casa ao
invés de ir a clubes e festas, portanto a mulher podia ser culpada pelo
fracasso do casamento, se o homem preferisse o movimento da rua ao
invés do conforto do lar. O homem por sua vez não pertencia, ou não
deveria pertencer ao mundo de casa, portanto buscar o mundo externo era
um dever do homem. O homem governava a mulher, pois detinha o poder
econômico, portanto obrigava a mulher a se submeter, já que as mulheres
não poderiam buscar realização no mundo externo, por sua vez os homens
sentiam-se no direito e encaravam como um dever punir a esposa
desobediente, tal como um pai, muitas vezes usando da violência física. [
MALUF; MOTT, 1998, p. 377]. É dado um poder para a mulher, dentro do
casamento, que ela não tem na realidade, pois depende financeiramente e é
o marido que sustenta a casa, portanto governa sem governar, mal
administra.

Com relação aos periódicos eles apresentam contradições, e ideias de


manutenção quando apresentam a mulher como um ser que deve apenas
habitar essa esfera privada da sociedade, cuidando dos filhos e da casa.
Trazem também novidades e reinvindicações como a necessidade de uma
educação melhor para as mulheres, mesmo que limitada. Esses periódicos
proporcionam uma novidade que não deve ser ignorada que é a de dar voz
as mulheres, proporcionar espaços onde elas pedissem por coisas que
achassem justas e que discutissem assuntos relacionados a elas, elas
mesma poderiam falar sobre educação da família. É verdade que é um 321
espaço bastante restrito a um grupo específico de mulheres, mas não deve
ter a sua importância menosprezada pois, possibilitou, mesmo que
indiretamente, que as mulheres ocupassem um espaço fora da esfera do
lar, permitiu que suas opiniões circulassem nas ruas.

Referências
Milena Calikoski, acadêmica do 4° ano de História da Unespar – Campus
União da Vitória.

ASSIS, Machado de. O Segredo de Augusta. In: Mulheres de machado. São


Paulo: SESI-SP editora, 2017, p. 172 – 204.
CARVALHO, Maria A. Vaz de. O Trabalho das Mulheres. In: A Família, Rio de
Janeiro, 1889. Ed. 13, p. 5 – 6.
CARVALHO, Maria A. Vaz de. O Trabalho das Mulheres. In: A Família, Rio de
Janeiro, 1889. Ed. 14, p. 6 – 7.
CARULA, Karoline. A Imprensa Feminina no Rio de Janeiro nas décadas
finais do Século XIX. In: Revista Estudo Feministas. Vol. 24 n°1
Florianópolis jan./apr. 2016.
MAGALDI, Ana Maria Bandeira Mello. Mulheres no Mundo da Casa: Imagens
Femininas nos Romances de Machado de Assis e Aluizio Azavedo. In:
COSTA, Albertina de Oliveira. BRUSCHINI, Cristina. (Orgs.) Entre a Virtude
e o Pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos
Chagas, 1992, p. 57 – 87.
MALUF, Marina. MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do Mundo Feminino. In:
NOVAIS, Fernando A. (Coordenador-Geral); SEVCENKO, Nicolau (org.)
História da Vida Privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era do
Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 368 – 421.
O COTIDIANO DE VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NOS
CAMPOS DE TRABALHO E CONCENTRAÇÃO NAZISTAS
Milena Silvério Ferreira

A origem inicial dos campos de concentração é pertencente ao século XVII,


em algumas regiões da África e da Ásia que recebiam prisioneiros e
322 prisioneiras que eram indesejáveis para a sociedade, portanto ficavam
detidos naquele lugar cumprindo penas e participando de trabalhos
escravos até que fossem liberados, dessa forma os mesmos foram utilizados
como estratégia de domínio de grupos específicos para o controle cultural e
político do Estado. Porém, na Alemanha nazista ele de fato ganhou outro
significado, visto as barbaridades e desumanidades que aconteceram
nestes.

Entre 1933 e 1945 a Alemanha construiu mais de 40.000 campos de


extermínio e aprisionamento que tinham as intenções da carceragem,
trabalho escravo, detenção para os inimigos de guerra e principalmente
como ficou como conhecido no mundo todo, para o extermínio em massa.
Pesquisadores afirmam que o nome campo de concentração é dado pelo
fato dos prisioneiros ficarem fisicamente localizados em um determinado
lugar.

No início do regime, os nazistas adquiriram o método de fuzilamento para


assassinar os judeus, estes friamente teriam que cavar sua própria cova,
porém os soldados nazistas estavam ficando traumatizados. Por conta desse
fato, Adolf Hitler resolveu investir na construção dos campos de
concentração.

Durante a Segunda Grande Guerra as ideias mais obscuras foram postas em


prática dentro dos campos de concentração. O primeiro deles foi o de
Dachau (próximo a Munique) construído em 23 de março de 1933,
inicialmente ingressaram os políticos oposicionistas como os comunistas,
algumas minorias religiosas, dentre as quais se pode destacar os
testemunhas de Jeová, além dos lideres sindicais e homossexuais também
eram considerados inimigos do regime. De forma geral todos que
expressassem comportamentos vistos como subversivos para a época. Mas
com o decorrer da guerra estes campos receberam milhares de centenas de
judeus dia e noite, que posteriormente receberam os tratamentos mais
desumanos possíveis, como a ordem de trabalhar até a exaustão.

Dachau inicialmente foi considerado um campo de treinamento para os


oficiais da SS, onde eles poderiam treinar todas as suas técnicas mais
obscuras para depois serem colocadas em prática (as que tivessem
sucesso) nos demais campos localizados nos territórios de domínio alemão.
Ravensbrück merece aqui uma atenção especial já que foi um campo de
concentração que só recebeu mulheres, adiante será discutida mais
especificamente a questão.
É importante frisar que nem todos os campos eram de concentração, havia
os campos de trabalho forçado (obviamente que os prisioneiros eram
obrigados a trabalhar exaustivamente sob maus tratos e recebendo o
mínimo de alimentação), os de trânsito (serviam para concentrar um
número de prisioneiros que seguidamente seriam enviados aos campos de
extermínio) e os de extermínio (onde os prisioneiros eram encaminhados
diretamente para a morte, através das câmaras de gás). 323

Os campos de extermínio foram construídos com o intuito principal de


eliminar fisicamente os seus respectivos prisioneiros. Primeiramente foi
utilizado o monóxido de carbono gerado pelos motores e pela gasolina na
Operação Reinhard: Belzec, Sobibor e Treblinka, já campo de Majdanek
foram utilizados vários gases, portanto se percebe que havia testes para ver
a forma mais eficiente de assassinar as pessoas em grande escala. Vale
ressaltar que este campo detinha as três funções o de concentração, de
trabalho e de morte. (MILGRA & ROZETT, Jerusalem, 2010, p. 38). Chelmno
foi primeiro campo de extermínio, nele foram mortos por asfixiamento
judeus e ciganos, eles foram postos em furgões com canos que soltavam o
gás, com esse método foram mortos aproximadamente 225.000 judeus.

O campo de concentração de Auschwitz foi o mais conhecido pela execução


em massa, ele possuía um funcionamento sistemático, levando também em
consideração que ele se subdividia em outros três campos. Localizado perto
da cidade polonesa Oswiecim, Auschwitz I foi levantado em 1940. Durante
os primeiros anos de existência do campo, ele abrigava os alemães que
haviam cometido infrações criminais recorrente a política, também
produziam armamentos e artigos de guerra. Ali também aconteceram as
experiências médicas mais desumanas da figura infame Josef Mengele, que
era capitão da SS.

Auschwitz II ou Auschwitz- Birkenau ficava próximo á cidade de Brzezinka.


Era dividido em mais doze seções, separados com cerca de elétrica. Nele
haviam divisões específicas para mulheres e homens. Em 1942 foi
construída uma câmara de gás improvisada para a execução dos seus
componentes. Birkenau foi o campo que mais recebeu vítimas.

Fundado aos arredores da cidade polonesa de Monowitz, Auschwitz III,


também conhecido como Auschwitz-Monowitz, tinha por função principal a
produção de borracha sintética pela empresa I.G Farben, à custa do
trabalho escravo de judeus, ciganos, soviéticos, etc.

Em 1941 se deu início às experiências com o gás Zyklon B, ácido cianídrico,


em Auschuwitz, a empresa Degesch, que era uma cooperativa alemã
fabricante de pesticidas pertencente a I. G Farben, fornecia os cristais do
Zyklon B. O objetivo principal era assassinar industrialmente os seres
considerados indesejáveis. (MILGRAM & ROZETT, Jerusalem. 2010, p.35).
Com a descoberta do gás altamente tóxico, os nazistas construíram as
câmaras de gás em Auschuwitz- Birkenau. As instalações foram feitas pela
indústria J. A. Topf & Söhne, da cidade de Erfurt. Os corpos eram
inicialmente enterrados em valas, mas pela grande quantidade ficou mais
viável a cremação.

Auschuwitz Birkenau possuía quatro câmaras de gás, em seu auge foram


assassinados cerca de 60.000 mil pessoas por dia, o extermínio começou na
primavera de 1942, os judeus que viviam em várias regiões ocupadas pelos
324
nazistas, começaram a ser deportados em vagões até chegarem neste
campo e serem brutalmente assassinados. Caso não fossem sacrificados os
prisioneiros eram submetidos a condições desumanas, por isso uma parcela
muito pequena conseguiria sobreviver ao genocídio como bem escreveram
os autores Milgran e Rozett.

Os nazistas tentavam evitar ao máximo qualquer forma de organização


coletiva das pessoas que futuramente pudesse se tornar algum movimento
de resistência contra a exploração, ressaltando que logo na chegada aos
campos de confinamento, famílias e amigos seriam separados, assim
gerando mais um confronto psicológico de sobrevivência ás vitimas do
holocausto. O Estado nazista se utilizou severamente da foça e abuso de
poder, pondo em prática um plano absurdo de exclusão dos judeus da
sociedade.

A violência é exercida contra os judeus que são vistos como inimigos para
os soldados da SS, os laboratórios de morte, que viriam a ser os campos de
concentração, seguiam uma “organização mortal”, onde era uma morte
peculiar, uma morte segmentada, em que primeiro ocorria a morte jurídica,
sucedida pela morte moral e por fim a física.

“A irritadiça Frida caiu na besteira de contar para Frau Fleschner que estava
com dor de dente. Prontamente, ela foi levada a um dentista, que lhe
arrancou dez dos seus dentes! Depois de um dia, eles a colocaram de volta
aos campos, cuspindo sangue. Ela só tinha 21 anos”[ Beer, cap. 05]

É visível que histórias assim como de Frida são inteiramente ignoradas pela
sociedade que continua a praticar barbaridades contra as mulheres como
afirma SAIDEL á Beatriz Montesanti (2016) “os atos praticados pelos
nazistas – e a negação deles - é precursor de diversas tragédias de
violência sexual contra as mulheres nos últimos 30 anos”. Também se deve
levar em consideração que houve um campo de concentração
especificamente para as mulheres, chamado Campo de Concentração de
Ravensbrük, onde as mesmas eram diariamente estupradas e assassinadas
pelos nazistas (já que pelo decreto de Nuremberg, assinado por Hitler em
1935, afirmava a proibição de qualquer relação sexual de arianos com
judeus). Em 1938 os nazistas deram início a construção do campo de
concentração de Ravensbrück, eles viram a necessidade visando a captura
de várias mulheres durante a Segunda Grande Guerra, Rocelle Saidel diz
que foi utilizado o trabalho escravo de pessoas que estavam no campo de
Sachsenhausen. [Saidel, introdução].

O principal objetivo de Ravensbrük era de encarcerar e punir as


prisioneiras, sendo que as primeiras a chegarem foram mulheres
antifascistas, democratas e algumas judias, mas com o decorrer da guerra e
a invasão da Polônia, explorar o trabalho daquelas mulheres se tornou
viável aos alemães. No entanto o dia a dia dentro do campo cada vez mais
se tornava difícil devido a brutalidade como eram tratadas as mulheres.

Essas situações são estudadas pela fantástica pesquisadora no que diz


respeito a mulheres durante o holocausto Rochelle G. Saidel [2009, p.29] 325
ela fala que os campos de concentração eram “Um Inferno Especial para
Mulheres”, devida a violência a que elas eram expostas e pela misóginia dos
soldados da SS.

Existia agressões inimagináveis que foram usadas como tortura pelos


guardas como contou a sobrevivente Gemma LaGuardia Gluck:

“Havia a “sala do gelo em Ravensbrück, onde pelo menor delito a gente era
obrigada a ficar descalça horas a fio em cima do gelo. Para um castigo
severo, muitas prisioneiras eram despidas e jogadas na sala de gelo. Não
admira que tantas ficaram permanentemente doentes em decorrência dos
campos” [Saidel, cap. 02].

Fica nítida a brutalidade do cotidiano que as vítimas suportavam, além de


receberem chibatadas e até ataques de cães, um verdadeiro inferno como
bem frisou Saidel. Muitas não sobreviviam devido às agressões físicas e
adoeciam também pela pressão psicológica lhes imposta pela situação
vivida. Por isso a importância de dar visibilidade e mostrar para a
sociedade o sofrimento que elas passaram por pertencerem ao sexo
feminino, vendo que a ideologia nazista destilou muito ódio às judias,
ciganas, comunistas, lésbicas, etc.

“Nos guetos e campos de concentração as autoridades alemãs colocavam as


mulheres para trabalhar sob condições em que frequentemente morriam
enquanto executavam suas tarefas. Como se não bastasse, as mulheres
deportadas da Polônia e da União Soviética para fazerem trabalhos forçados
eram sistematicamente espancadas, estupradas, ou forçadas a manter
relações sexuais com alemães em troca de comida e outras coisas. Muitas
vezes, as relações sexuais forçadas entre as trabalhadoras escravas e
homens alemães resultavam em gravidez, as mães eram forçadas a
abortar, ou eram enviadas para darem à luz em maternidades
improvisadas, onde as péssimas condições de higiene garantiriam a morte
do recém-nascido” Mühlen & Strey, 2015, p.11].

Portanto se percebe a fragilidade das vidas dessas mulheres, para os


nazistas eram consideradas insignificantes, a violência altamente exercida e
as humilhações sobre elas era algo glorioso para os nazistas, algo que
deveria sempre acontecer como forma de mostrar o seu poder e também
porque foi incentivado pelos superiores como o Chefe da Polícia Alemã
Heinrich Himmler, que chegou até a sugerir o número de chibatadas que os
soldados teriam que aplicar nas mulheres como forma de castigo.
A violência sexual acontecia muito mais do que se imagina, cerca de 2
milhões de mulheres foram estupradas durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo a autora Rochelle Saidel em entrevista a Sorg em 2011 o estupro
não ocorria pelo desejo da relação sexual, mas sim como forma de mostrar
o poder dos guardas sobre as prisioneiras. Infelizmente o que é mais
preocupante é que nenhum nazista foi condenado no julgamento de
326
Nuremberg por estupro, dessa forma infere-se que a sociedade preferiu
calar-se diante dos fatos.

Segundo as autoras Bruna Krimberg Von Mühlen e Marlene Neves Strey


[2015, p.09] a desigualdade de gênero da sociedade levou a violência de
gênero contra as mulheres dentro dos campos de concentração, observando
que a discriminação ia além da raça, etnia, opção sexual, status econômico
dentro da sociedade. Os homens se sentiam superiores aos prisioneiros,
principalmente em comparação com as mulheres, visto que não somente a
sociedade alemã, mas a Europa como um todo era uma organização
patriarcal, onde o homem era o chefe de família, a figura extremamente
respeitada e confiável, as mulheres geralmente eram entendidas como
seres inferiores, o que acarretava as perseguições.

As judias ortodoxas seriam as preferidas dos soldados nazistas para


perseguições doentias, pois elas eram facilmente reconhecidas, dado que
elas possuíam muitos filhos, também se vestiam de maneira diferente,
usando roupas que cobrissem os joelhos, e os cotovelos. Já as mulheres
especialmente as deportadas da União Soviética e da Polônia eram
espancadas e obrigadas a manter relações sexuais com os alemães em
troca de alimentação. [Mühlen & Strey, 2015, p. 09].

Das mulheres que chegassem a engravidar, como se não bastasse tudo que
estavam vivendo, ainda eram obrigadas a abortar ou eram enviadas
novamente para suas respectivas regiões sem nenhum aparato.

No campo de concentração de Ravensbrück durante a Segunda Grande


Guerra passaram cerca de 132 mil mulheres, entre judias, soviéticas,
ciganas, etc. Algumas conseguiram sobreviver por conta das funções no
campo como cozinheiras, costureiras, lavadeiras, mas nos primeiros três
anos do campo (1939-1945) nenhuma conseguiu sobreviver pelo tamanho
da exigência do desgaste físico e mental.

Desse jeito se percebe o quanto a escuridão de sentimentos se alastrava


entre as prisioneiras, o otimismo, a esperança começavam a se apagar
como o fogo até se transformar em brasa. A fome e a saudade dos
familiares eram um dos únicos intuitos de tentar sobreviver num lugar de
tantos horrores, infelizmente aos pouco até essa pequena vontade foi
passando e a morte seria a melhor maneira de escapar daquilo tudo.

Referências
Milena Silvério Ferreira é acadêmica do 4ºano do curso de História da
Universidade Estadual do Paraná – Campus União da Vitória.
BEER, Edith Hans. A mulher do oficial nazista. Rio De Janeiro: Ed. Harper
Collins. 2017.
MÜHLEN, Bruna Krimburg Von & STREY, Marlene Neves. As Mulheres e o
Holocausto: dando visibilidade ao invisível. Revista Digital de Estudos
Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 9, n. 17, nov. 2015.
MILGRAM, Avraham. & ROZETT, Robert. O Holocausto: as perguntas mais
frequentes. Jerusalem. 2010. 327
SAIDEL, Rochelle G. As judias do Campo de Concentração de Ravensbrück.
São Paulo: Ed. Universidade Estadual de São Paulo. 2010.
DANDO VOZ ÀS ESQUECIDAS: POR QUE AS MULHERES QUE
FIZERAM HISTÓRIA NAS CIÊNCIAS NÃO APARECEM EM SALA
DE AULA?
Nathália Moro e Anelisa Mota Gregoleti

Quando pensamos na luta do movimento feminista e na reinvindicação


328 pelos direitos das mulheres, sabemos que um longo caminho já foi
percorrido e que muitas conquistas aconteceram. Entretanto, também é
evidente que ainda há muito para ser feito. Garantir o acesso de mulheres a
uma educação de qualidade continua sendo uma das principais bandeiras
levantadas ao redor do mundo. Porém, mais do que isso, é indispensável
lutarmos por um ensino capaz de abranger e resgatar mulheres que, ainda
hoje, continuam sendo esquecidas e deixadas de lado pela História. A
grande maioria dos livros didáticos, por exemplo, permanecem silenciando o
feminino, ao mesmo tempo em que reforçam os estereótipos das
representações femininas e masculinas. Assim, mesmo quando aparecem
ou são citadas, as mulheres sempre desempenham um papel de menor
função, como coadjuvantes ou personagens que ajudam os homens em
algumas tarefas, vistas como inferiores. Em outras palavras, é possível
afirmar que, de forma geral, o papel de protagonista e de sujeito histórico
continua sendo negado às mulheres pela História (FERREIRA; GRISÓLIO,
2016, p. 85-86).

Guiadas por tais reflexões, nossa intenção aqui é pensar acerca dessas
personagens, apontando para a necessidade de renovação, tanto dos
materiais utilizados em sala de aula quanto dos próprios docentes que,
muitas vezes, ainda são pautados pela historiografia tradicional que valoriza
apenas os grandes feitos e os grandes homens. Partiremos de uma revisão
bibliográfica que nos permite identificar em que momento as mulheres
começaram a ganhar voz na historiografia, observando sempre quais foram
as lutas e reinvindicações necessárias para que isso acontecesse. Depois,
refletiremos sobre a realidade atual do ensino básico acerca desta temática,
problematizando a importância de resgatar a História das mais diversas
mulheres a fim de construirmos uma educação mais igualitária e não
sexista em nosso país.

A inserção das mulheres na História e na Historiografia


As discussões sobre questões de gênero na História começaram a emergir
na década de 1970 defendidas, especialmente, pelo feminismo. O
movimento feminista estava em sua segunda fase, iniciada em fins da
década anterior e guiada, especialmente, pela ampla leitura da obra
pioneira O Segundo Sexo (1949) da escritora e teórica social francesa
Simone de Beauvoir. Nesse momento, as transformações também
marcavam a historiografia e os temas vistos como grandes, nos quais os
donos do poder eram priorizados, passavam a ceder lugar para temáticas e
grupos sociais que eram excluídos até aquele momento. Foi só a partir de
então, baseadas em suas lutas, que as mulheres começaram a ganhar um
espaço que não existia, alcançando à condição de objetos e sujeitos da
História (SOIHET, 1998, p. 77).
A historiadora alemã Gisela Bock nos recorda que, em 1979, outra
historiadora, Anne Fior Scott, que se tornou Presidente da Organização dos
Historiadores Americanos cinco anos depois, definiu muito bem as
necessidades e reinvindicações da sua época ao afirmar que: “O lugar das
mulheres é nos livros de História” (SCOTT, 1979 apud BOCK, 1989, p. 158).
O fato da historiografia não se dedicar ao estudo do feminino, não significa
que mulheres não participaram da escrita historiográfica anteriormente. 329
Pelo contrário, ao dedicarem-se sobre o tema, pesquisadoras como Kathryn
Kish Sklar (1975), Natalie Z. Davies (1980) e Joan Thirsk (1985)
descobriram mulheres historiadoras que raramente foram reconhecidas pela
historiografia profissional de suas épocas. No entanto, um reconhecimento
posterior também não ocorreu de imediato. Dentre os principais
acontecimentos desse processo, devemos destacar: a implantação de uma
cadeira subordinada ao tema As mulheres têm uma História? em uma das
universidades parisienses entre 1973-1974; a conferência Haverá uma
História das Mulheres? do historiador Carl N. Degler que ocorreu na mesma
época na Universidade de Oxford; as publicações de artigos sobre o tema
nas revistas Feminist Studies e American Historical Review; além das
publicações de coletâneas na Alemanha Ocidental (As mulheres estão
procurando sua História) em 1983 e na França (É possível uma História de
Mulheres?) em 1984 (BOCK, 1989, p. 158-159).

A partir das publicações sobre o tema, surgiu uma outra preocupação: o


fato de que a produção desses estudos se centrava nas mulheres de
maneira demasiado estreita, ou seja, apareciam como uma História
separada, escrita à parte das demais. Para reparar essa situação, o termo
“gênero” começou a ser utilizado, especialmente, pelas feministas
estadunidenses que visavam enfatizar o caráter fundamentalmente social
das distinções baseadas no sexo. Essa palavra não apenas enfatizava como
igual o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade, mas
também indicava rejeição ao determinismo biológico que estava implícito no
vocabulário das pessoas a partir de termos como “sexo” ou “diferença
sexual”. O objetivo dessas mudanças era evidenciar e marcar a opinião de
que as mulheres e os homens deviam ser definidos em termos recíprocos,
não sendo possível compreender qualquer um dos gêneros por meio de um
estudo inteiramente separado (SCOTT, 1995, p. 72). Dessa forma, a
historiadora canadense-estadunidense Natalie Zemon Davis, em artigo
publicado pela Feminist Studies no ano de 1976, afirmou que:

“[...] deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens como das
mulheres, e que não deveríamos tratar somente do sexo sujeitado, assim
como um historiador de classe não pode fixar seu olhar apenas sobre os
camponeses. Nosso objetivo é compreender a importância dos sexos, isto é,
dos grupos de gênero no passado histórico. Nosso objetivo é descobrir o
leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes sociedades e
períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como eles funcionavam para
manter a ordem social ou para mudá-la" (DAVIS, 1976, p. 90).

No Brasil, as questões de gênero também acompanharam as


reinvindicações do movimento feminista. Apesar de desde meados da
década de 1970, mulheres brasileiras se mobilizarem e muitas
pesquisadoras demonstrarem uma grande preocupação pela temática
feminista, o país passava pelo período da Ditadura Militar. Assim, apenas na
década de oitenta, quando o Brasil começou a sair dos chamados “anos de
chumbo”, é que os estudos de gênero conseguiram crescer em quantidade e
qualidade, marcados, principalmente, pelas críticas em relação à condição
330
da mulher no país. Nesse momento, as Ciências Humanas e Sociais, em
especial, a Sociologia, a Demografia e a História, produziram trabalhos
abordando diferentes temáticas, com uma perspectiva de resgatar a mulher
e o seu papel nas diferentes sociedades e, particularmente, na sociedade
brasileira contemporânea (SILVA, 2000, p. 1).

Como tornar nossas aulas de História mais igualitárias e não


sexistas?
Sabemos que o livro didático possui uma grande importância no sistema
educacional do Brasil e que, muitas vezes, acaba sendo o protagonista das
aulas por ser o único recurso de acesso ao conhecimento utilizado pelos
professores. Diversos motivos são responsáveis por isso, mas podemos
destacar aqui o excesso de aulas dos docentes, devido à baixa remuneração
da categoria, bem como a falta de outros recursos didáticos disponibilizados
nas escolas. Apesar disso, é importante defendermos a relevância de uma
revisão bibliográfica, identificando o que precisa ser aperfeiçoado e inovado
em sala de aula (FERREIRA; GRISÓLIO, 2016, p. 81).

No que diz respeito às questões de gênero, a grande parte dos livros


didáticos ainda perpetuam a condição de exclusão feminina quando, na
realidade, deveria ocorrer o contrário. O livro teria de ser um dos principais
responsáveis por incorporar a História das Mulheres a fim de desconstruir as
desigualdades no espaço escolar. Por isso, é indispensável que nós,
enquanto professores, cobremos uma atualização das referências utilizadas
na elaboração destes materiais. Não basta colocar a História das Mulheres
em um box informativo ao fim dos capítulos, é necessário incluir de maneira
efetiva tais questões nos conteúdos a serem trabalhados, mostrando aos
alunos que as mulheres também fazem, e sempre fizeram, parte da História
(ibidem, p. 81). De acordo com a historiadora Angela Ribeiro Ferreira
(2005, p. 59):

“Na sociedade brasileira atual, a discussão sobre igualdades entre os sexos


já foi superada, pelo menos legalmente. Para que essa igualdade de direitos
seja realmente vista por todos, precisa ser concluído o processo de
mudança na cultura do país, erradicando os pontos de vista preconceituosos
e desinformados em relação à mulher, seus direitos e seus papéis sociais. O
tempo todo podem ser encontrados resquícios da sociedade patriarcal
circulando, e a escola não é exceção. Entre outras iniciativas educacionais,
o ensino de História teve um papel importante nessa permanência, mas
pode também ter um papel decisivo na mudança, na transformação.”

Assim como em todas as áreas da História, a História das Ciências, da qual


trataremos de forma mais específica agora, também foi responsável por
apagar os nomes de muitas mulheres que contribuíram para o avanço
científico. Para começar a mudar essa situação, nossa primeira tarefa deve
ser a de desconstruir a ideia da Ciência sempre associada aos homens,
particularmente, brancos e da elite. É indispensável recuperarmos nomes de
personagens importantes, como, por exemplo: Marie Curie (1867-1934)
que ganhou dois prêmios Nobel (primeira mulher a conquistar o título); Lise
Meitner (1878-1968) que descobriu a fissão nuclear; Rosalind Frank (1920-
1958) que desvendou o DNA; Marie Tharp (1920-2006) que mapeou o 331
fundo oceânico; e Margaret Hamilton (1936-) que levou a humanidade à
Lua.

O historiador brasileiro Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2016, p. 34)


nos lembra que a História, enquanto saber, surgiu na sociedade grega, onde
a imortalidade era conseguida através do renome conquistado na vida
pública, ou seja, era importante construir uma fama em vida, de preferência
a partir de um ato heroico, para ser lembrado após morrer. No entanto,
ficar na memória não era um privilégio de todos, mas apenas dos cidadãos,
homens livres e gregos que efetivamente contavam na sociedade. Mulheres,
crianças, escravos e estrangeiros não tinham um lugar na História,
justamente porque não estavam reservados a um lugar da memória. De
acordo com o autor:

“[...] a História tem uma relação diferencial e conflituosa em relação às


memórias, notadamente aquelas memórias que se tornam oficiais,
monumentalizadas, cristalizadas, motivo de comemorações e efemérides. A
pesquisa histórica visa, por meio da crítica, afastar-se das versões
consagradas do passado, fazendo aparecer seus defeitos, seus pontos de
sutura, fazendo aparecer as costuras malfeitas, os nós forçados, os pontos
de esgarçamento das tessituras do passado. Os historiadores devem fazer
as memórias errarem, no sentido de que elas devem ter seus sentidos
deslocados, devem ter seus lugares de inscrição alterados. O historiador
tem a tarefa de desfazer os enredos dessas memórias, retramá-las, fazendo
o que Paul Veyne (1989) chamou de um ‘inventário das diferenças’.”
(ibidem, p. 37).

Dessa forma, o fato como a História surge e as necessidades que ela visava
atender, nos explica muito sobre a forma como os conteúdos continuam
sendo lecionados até hoje em sala de aula. Ensinar sobre mulheres
anteriores ou contemporâneas a nós, mostra-se de extrema necessidade e
urgência para o ensino básico, pois ao identificarmos estas personagens e
inseri-las nos conteúdos históricos, estamos resgatando vozes esquecidas
durante muito tempo e contribuindo para a construção de uma educação
menos sexista. Dentre as obras que podem nos auxiliar nessa atividade,
destacamos o livro História das Mulheres no Brasil (2004) escrito pela
historiadora Mary Del Priore e que narra a trajetória das mulheres no país a
partir da colonização; e a obra Extraordinárias – Mulheres que
Revolucionaram o Brasil (2018) de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza,
cujo objetivo é apresentar 40 biografias de personalidades brasileiras.
Conclusão
A partir de uma revisão bibliográfica ficou claro que a luta pela inserção das
mulheres na História é um movimento que já vem ocorrendo com força
desde a década de 1970. Se pensarmos a nível da História da humanidade,
tais conquistas são extremamente recentes e, até mesmo por isso, ainda
encontramos dificuldades em implantá-las nas salas de aula do ensino
332
básico. Conhecer quem foram as mulheres que fizeram História nas mais
diversas áreas da Ciência é essencial tanto para a representatividade
feminina, pois é importante que meninas também saibam que podem ser
cientistas como muitas outras antepassadas ou contemporâneas a elas,
quanto para uma constituição educacional igualitária, na qual homens e
mulheres reconheçam a importância da igualdade entre os gêneros.

Enquanto professores, cabe a nós analisarmos qual o nosso papel e o da


escola na tarefa de tornar o ensino de História o mais adequado possível à
realidade sociocultural dos educandos, bem como a necessária implantação
de uma educação voltada para a formação da consciência histórica, já que
entendemos que esta é inerente aos alunos (as), assim como as concepções
de masculinidades e de feminilidades. Por isso, a análise dos livros
didáticos, a partir da História das Mulheres e das questões de gênero,
apresenta-se de fundamental importância, pois pode e deve contribuir para
que os livros incorporem mudanças e, assim, possibilitem a revisão de
comportamentos normativos, preconceitos e discriminações erigidos sobre a
diferença (FERREIRA; GRISÓLIO, 2016, p. 81).

Referências
Me. Anelisa Mota Gregoleti é doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e bolsista CAPES.
Nathália Moro é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá (UEM) e bolsista CAPES.
Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos (orientador) é professor pós-doutor
em História das Ciências, professor da Graduação e Pós-Graduação do
Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM),
bolsista produtividade do CNPq e orientador do Laboratório de História,
Ciências e Ambiente (LHC – UEM).

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias:


para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia
de Almeida; et al (Org.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2012. p. 21-39.
BOCK, Gisela. História, História das Mulheres, História do Gênero. Fazer e
Desfazer História. Universidade de Bielefeld, Florença, nº 4, p. 158-187,
nov./ 1989.
DAVIS, Natalie Zemon. "Women's History" in Transition: The European
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ECOMUSEU E ENSINO DE HISTÓRIA: DIÁLOGOS SOBRE A
IMPORTÂNCIA DE GRUPOS CULTURAIS E DE GÊNERO
Nelson Barros da Silva Junior e Jaqueline Ap. M. Zarbato

Entrelaçar reflexões sobre ensino de história a práticas educativas referente


a educação ambiental reside o objetivo deste artigo, aspirando, sobretudo
334 analisar e propor a utilização do ecomuseu como prática docente dos
professores da rede básica de educação na cidade de Campo Grande,
capital do Estado de Mato Grosso do Sul.

A emergência de direcionarmos nossos olhares as questões socioambientais


se fazem jus a todo instante. Hoje está em pauta aquecimento global,
desmatamento, desastres naturais e os causados por nós humanos que
possuíamos grande parcela de culpabilidade acerca das questões ambientais
que devastam o planeta a qual pertencemos. Eurípedes Funes [2013]
destacou a humanidade como parte do planeta terra, no entanto, como a
pior parte. Além disto, continuou a direcionar questionamentos importantes
para debatermos, sobretudo, a respeito de quanto tempo o planeta
suportará nossas práticas devastadoras e irresponsáveis que realizamos
cotidianamente.

Eurípedes Funes destaca:

‘Grandes perguntas nos fazemos: A que ponto chegamos? Por que e como
chegamos? Que realidade é esta? O quê nos espera? As explicações
técnicas estão dadas, ou pelo menos são elaboradas. Mas as respostas para
a compreensão destas realidades só são possíveis se presarmos
historicamente a relação entre homem e o meio ambiente, se nos
debruçarmos sobre história ambiental buscando compreender as
imbricações entre a natureza a cultura’ [Funes,2013, p.204]

Portanto, é necessário enfatizar que não trabalharemos história ambiental a


partir da perspectiva dos desastres ambientais, pois seria necessário
estudos e análises sobre períodos de média e longa duração, a qual não se
alinha com os objetivos deste artigo.

José Augusto Pádua [2010], nos aponta que movimentos internos e


mudanças importantes consolidadas especialmente no século XX referente a
compreensão do mundo natural, geraram novos desafios epistemológicos
aos historiadores ambientais. O autor destaca que a difusão das
preocupações ambientais proporcionou novos desafios dentro da própria
academia na última década, de modo, que veio a proporcionar novas
pesquisas em diversas áreas envolvendo questões ambientais.

Compreendemos que a prática docente entrelaçada a prática eco-


museologica amplia o leque de possibilidades de ensino, sobretudo, em
relação aos professores de história, que constantemente se encontram
delimitados as condições estruturais das escolas, ao livro didático e a
própria limitação de fundamentação teórica-didática que compõem sua
prática no âmbito formal de ensino.

A Comissão Internacional de Museus [ICOM], define museu como: ‘Os


museus preservam a propriedade cultural mundial e interpretam-na ao
público. Esta não é propriedade comum. Tem um estatuto especial na
legislação internacional e normalmente, existe legislação nacional para a 335
proteger. Faz parte do património natural e cultural mundial e pode ser de
carácter tangível ou intangível. Muitas vezes, o bem cultural providencia
também a referência primária em vários temas da área, tais como
arqueologia e ciências naturais, e por isso representa uma contribuição
importante para o conhecimento. É também, um componente significativo
na definição da identidade cultural, a nível nacional e internacional´ [Lewis,
2004, p.01]

E nesse sentido, objetivamos demonstrar que as visitas aos museus


colaboram para o aprofundamento do conceito de cultura, preservação,
natureza, meio-ambiente, identidade e memória. Além disto, a visita
proporciona o distanciamento das práticas didáticas tradicionais, práticas
estas corroboram o discurso dos alunos, em relação a uma disciplina
monótona, cansativa e necessária de ser decorada.

Isto posto, é notório a essencialidade de inserir as práticas educativas


museológicas na fundamentação teórico-didática dos professores de história
que atuam especialmente com o ensino fundamental. A emergente
necessidade de refletir sobre novas possibilidades de ensino e aproximar o
individuo do conceito e relação entre meio ambiente e homem ou vice-
versa, se justifica, pois, como dito anteriormente, não podemos tratar como
uma opção aprendermos sobre preservação, devemos tratar como
prioridade essencial.

Apesar de estar inserida nos Parâmetros Curriculares Nacionais [PCN] desde


1997, a educação ambiental ainda se encontra distante de ser consolidada
no Brasil. De acordo com Loureiro; Cossio [2007], a motivação inicial está
relacionada a iniciativa docente de um ou mais professores, posteriormente
aparece o estímulo apresentado pelos parâmetros curriculares nacionais.
Seguindo nesta perspectiva, a educação ambiental no Mato Grosso do Sul
começa a ganhar força em meados de 1980, sustentado por campanhas
educativas que almejavam a inserção da disciplina Preservação Da Natureza
no currículo das escolas nas redes estaduais do ensino médio, em Campo
grande [Alves,2013]

Nesta ótica, compreendemos, sobretudo, a necessidade de desenvolver a


possibilidade da utilização do ecomuseu como prática docente na rede de
ensino. Atualmente o município de Campo Grande, possui quatro centros de
educação ambiental [CEA] distribuídos pelos bairros da capital. No entanto,
inferimos a necessidade de haver um espaço identitário para professores,
alunos e comunidade. Assim, propomos a utilização do Museu José Antônio
Pereiro, como um espaço ecomuseológico para o desenvolvimento de uma
educação ambiental que construa e aproxime os alunos da relação entre
homem e natureza, preservação, memória, identidade e valorização dos
patrimônios históricos.

De acordo com Brulon [2015], Jean Blanc em 1972 definiu ecomuseu como
um museu específico do meio ambiente que funcionava como um elemento
do conhecimento. Por conseguinte, o autor destaca a ´´definição
336
evolutiva´´ proposta por Jean Blanc em 1973. A definição abordava o
ecomuseu como um museu ecológico, em meados de 1978 já se definia o
ecomuseu como uma estrutura nova experimentada e concretizada nos
parques naturais. Por fim, a última versão, define o ecomuseu como
laboratório, conservatório e escola que prioriza as diversidades.

Conforme Scheiner [2012], o termo ‘ecomuseu’ começou a ser


caracterizado como sinônimo de museu comunitário, baseado na
fundamentação musealização territorial. A proposta do ecomuseu não é
certamente revolucionária. Para mais, a autora destaca que o ecomuseu é
uma reatualização do fenômeno museu e não uma ruptura com o museu
tradicional. A autora apresenta o ecomuseu como uma alternativa para
comunidades que desejam ressignificar suas relações com espaço, tempo e
patrimônio. A autora enfatiza a necessidade de distanciar a ideia de
dicotomia entre o museu tradicional e o ecomuseu, pois em ambas
essencialidades, eles são representações do fenômeno museu. É necessário
refletirmos sobre a proposta do ecomuseu onde a prática comunitária se
perde, especialmente no âmbito político-partidário ou centralizada pelo
Estado. Scheiner [2012], contribui amplamente para essas questões e
destaca a necessidade de se construir uma proposta que cresce da base, ao
invés de ser imposto do alto.

Tratando-se da prática museológica, a autora aponta que o destaque de


inovação do ecomuseu traduz-se no modo de atuar as funções básicas da
museologia. A autora direciona críticas aos museus comunitários,
sobretudo, acerca da institucionalização que ocorreu em grande parcela dos
ecomuseus no decorrer dos anos. De acordo com a autora, esta
institucionalização aproxima cada vez mais o museu comunitário ou o
ecomuseu, do modelo de museu tradicional, distanciando, dessa forma, a
principal proposta de um ecomuseu construído, concentrado e inserido
dentro da comunidade e não em posse de grupos ou indivíduos. Isto posto,
pretendemos nos atentar as todas questões levantadas e propor medidas
viáveis para utilização do ecomuseu de forma eficiente, de modo, que a
comunidade consiga usufruir, preservar e criar ambientes de pluralidade.

Concepções acerca do ecomuseu e grupos culturais e de gênero:


possibilidades de trabalhar com a memória e conceitos de
sustentabilidade na história
Para abordar a questão de gênero, é importante inserir a definição de Joan
Scott, ‘gênero é uma forma primaria de dar significado às relações de
poder’ [SCOTT, 1995, p. 85]. A proposta em analisar a questão de gênero
e sustentabilidade pelos ecomuseus, pois impulsiona a discussão sobre o
saber/fazer feminino, com fundamental inserção de mulheres em âmbito
museológico. Tanto que, no final do século XIX, o poeta francês Charles
Baudelaire escreveu que os museus eram os únicos locais convenientes
para uma mulher [PERROT, 2012, p. 101].

Longe de essencializar o lugar das mulheres, percebe-se que a metodologia


ecomuseológica agrega as ações femininas com mais enfoque na
mobilização, na manutenção de comunidades em prol de um bem comum.
Em 1984 surgiu a Declaração de Oaxtepec [México] visou solidarizar-se com 337
a Declaração de Santiago do Chile [1972], a Declaração do Québec [1984] e
com os princípios da Ecomuseologia. Definindo na sua declaração que, o
território, os patrimônios e a comunidade constituem uma unidade
indissolúvel e que não é possível preservar uma sem os outros. Nesse
sentido, aglutina-se o ecomuseu às comunidades em que estão inseridos e
a preservação de meio ambiente.

Essa perspectiva é levada em conta na nossa pesquisa, em que pontuamos


de que forma os grupos culturais estão envolvidos nos ecomuseus? Que
defesa da sustentabilidade e meio ambiente estão envolvidas nas ações?
Por que os governos estaduais e locais demoram a inserir a ecomuseologia
como elemento de preservação?

Essas e outras questões nos impõem a dinâmica do ensino de história em


diferentes níveis de escolarização. Amparando-se na “Convenção do
Património Mundial, Cultural e Natural” [UNESCO, 1972] que definiu o
patrimônio natural e as paisagens, dialogando sobre a possibilidade de
integrar diferentes áreas e comunidades em torno da preservação.

Dessa forma, pode-se compreender o ecomuseu como um patrimônio


ambiental que, segue uma dinâmica cercada de intervenções econômicas,
sociais e culturais. E ao problematizar o processo de mudanças no
patrimônio cultural, também inserimos a preocupação com a paisagem
cultural. Isso porque, a paisagem é patrimônio, a partir do momento em
que é singular, em que as suas dimensões são singulares. O pode decorrer
de duas referências: do apelo ao "solo", ou seja, à valorização do que se vê
– é a paisagem no sentido mais estrito ou usual- e do apelo ao "passado",
ou seja, à historia única que fez lugar [Lazzarotti, 2003].

Nesse processo de ampliação do entendimento dos ecomuseus, a questão


de gênero impõe novas possibilidades de análise, que tem no ensino de
história e na educação patrimonial as ações de inserção e problematização.
A discussão sobre Educação Patrimonial e ensino de história contribui para
as possibilidades de diferentes leituras e intepretações de fontes históricas,
dos espaços culturais, das paisagens, da memória, da produção de
narrativas e da constituição da identidade. A Educação Patrimonial pode ser
compreendida dentro de uma perspectiva de Paulo Freire, como um
instrumento de “alfabetização cultural”, pois possibilita ao indivíduo fazer a
leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo
sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido.

Concebendo as inúmeras composições culturais em um Brasil múltiplo,


diverso, complexo, e que podem favorecer o entendimento sobre
pertencimento, estranhamento, valorização, manutenção, salvaguarda,
reforço da autoestima dos indivíduos e das comunidades, tendo assim com
as mulheres outras possibilidades de preservação e manutenção das
comunidades em que vivem. A micro-história desenvolveu-se com os
estudos de cultura, especificamente na interação entre o popular e o erudito
nas ações cotidianas, relacionando as diferentes manifestações da cultura,
338
desenvolvidas na Itália por Carlo GINZBURG [1989]. As proposições
apoiaram-se nos conceitos da “circularidade cultural”, da
“intertextualidade”, em que se fundamenta os ‘olhares’ sobre os campos de
ação dos sujeitos, do popular ao erudito.

Neste sentido, pontuamos aprofundar as análises da micro história, no


campo metodológico para abordar as concepções da história regional. Isso
porque, os instrumentos de análise e procedimentos de investigação
histórica permitem fazer essa relação, uma vez que pontuamos análise de
patrimônios imateriais na história regional, que são representações de
grupos culturais populares. A história regional faz a análise do cotidiano de
uma comunidade, as suas representações na dimensão macro, já a micro
história, na sua investigação busca a partir de fragmentos do cotidiano
comunitário ou de um indivíduo, identificar macro-fenômenos sociais:

‘Quando abordamos a História Regional, enfatizamos a necessidade de


pesquisarmos espaços e contextos que ficam esquecidos, sendo valorizados
somente aspectos históricos nacionais ou temas já consagrados. [...] só se
entende, então, metodologicamente falando, como parte de um sistema de
relações que ela [região] integra. Deve, portanto, ser definida por
referência ao sistema que fornece seu princípio de identidade. Assim, pode-
se falar tanto de uma região no sistema internacional ou dentro de uma das
unidades de um sistema político federativo. Pode-se falar igualmente de
uma região cujas fronteiras não coincidem com as fronteiras políticas
juridicamente definidas’. [BARROS, 2004, p. 152]

A proposição de Barros de abordar a região, mas relacionar politicamente


com as fronteiras e até mesmo com a construção de identidades, contribui
com nossa análise, na medida em que, os patrimônios culturais imateriais
representam a cultura regional, bem como contribuem na concepção de
identidades regionais.

Logo, ao longo da pesquisa lançamos nossos olhares para a multiplicidade


de ações dos grupos culturais na manutenção dos ecomuseus e suas
implicações na prática educativa histórica.

Referências
Dra. Jaqueline Aparecida Martins Zarbato é professora de história na UFMS,
e coordenadora do grupo de estudos de ensino, mulheres e patrimônio
[GEMUP]
Discente Nelson Barros da Silva Junior é voluntario pelo projeto de Iniciação
Científica [PIVIC] no âmbito de Educação Patrimonial, Memória, Identidade
Regional e História Ambiental.
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Museus, colecções e património: narrativas polifónicas. Rio de Janeiro:
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2004. 339
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LOUREIRO, Carlos Frederico B.; COSSÍO, Mauricio F. Blanco. Um olhar
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CORPO, FEMINISMO, QUEER E OUTRAS TEORIAS
Nila Michele Bastos Santos e Luana Martins Pereira

Nos dias atuais, inúmeros casos de preconceitos e desigualdades de


gêneros tornam-se cada vez mais presentes em nossa sociedade, apesar
disso, é notório perceber que as discussões em torno do gênero, feminismo
340 e os movimentos LGBTQ+ também estão crescendo, mostrando que, além
da importância que essas discussões trazem para tornarmo-nos uma
sociedade mais justa e igualitária para todos, é preciso que estejamos aptos
para levar informações para pessoas que, antes, não puderam ter as
mesmas oportunidades de conhecer e entender as pautas de diversos
movimentos sociais.

O presente trabalho é resultado do projeto de pesquisa aprovado pelo


EDITAL FAPEMA N° 004/2018- GERAÇÃO CIÊNCIA, e faz parte dos estudos
do Laboratório de Estudos de Gênero IFMA - Campus Pedreiras (LEGIP),
onde buscamos primeiramente compreender os conceitos relativos à
palavra gênero, o qual foi construído socialmente, para que depois
possamos adentrar nas discussões a respeito do corpo, desde a sua
desvalorização por meio de teorias filosóficas, como também o próprio
feminismo que, antes, não possuía um embasamento teórico totalmente
consolidado, até os dias atuais onde o corpo é sujeito às demais formas de
hipersexualização nas propagandas, dos mais variados produtos.

O estudo também foca-se na chamadas “ondas do feminismo” e a sua


relação com o estudo dos corpos, mostrando a diversidade de pensamentos
e estudos de diversas teóricas feministas, como Simone de Beauvoir e
Judith Butler, sendo esta então a que mais se destacou nos estudos
relacionados à recente Teoria Queer, que emergiu nos Estados Unidos no
final da década de 80, auxiliando na desconstrução de conceitos
heteronormativos.

O corpo nas ondas do feminismo


A década de 1980 se tornou um marco significativo nos movimentos sociais
de natureza feminista, com a eclosão de diversas pesquisadoras que
estudaram, sobretudo, o gênero e as suas subdivisões. Dentre as teóricas
que mais obtiveram destaque neste momento estar Joan Scott, em seus
estudos ela determinou o gênero como algo constituído de categorias e
esquemas de análise, sendo construído socialmente para compreender a
identificação de um sujeito, como também, é uma forma primeira de
significar as relações de poder. Em seu artigo “Gênero: uma categoria útil
para análise histórica” (1989), ela afirma que o Gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, é uma forma primeira de significar as relações de poder (SCOTT,
1989, p.21).

Corroboramos Scott e nesse contexto, se faz necessário o estudo dos


corpos para podermos perceber de onde surge grande parte dos
preconceitos e desigualdades de gênero. Desde cedo, a histórica opressão
patriarcal subjugava o corpo feminino a seguir papéis sociais pseudo-
biológicos, como por exemplo, o de ser obrigatoriamente feita para ser mãe
e dona de casa. Elizabeth Grosz em seu artigo “Corpos Reconfigurados”
(2000), expõe alguns dos diversos fatores que levaram a desvalorização do
corpo, são apresentados características das quais herdamos as nossas
concepções a respeito do que se trata o corpo, além de destacar diversos
dos fatores que levaram a sua desvalorização, expondo teorias filosóficas e
as próprias teorias feministas que, antes, não possuíam uma base teórica 341
totalmente consolidada. Por exemplo, temos algumas linhas de pensamento
contemporâneo - que foram herdados muito provavelmente do
cartesianismo – pela qual o corpo é visto apenas como objeto de estudo,
tanto para as ciências ditas como biológicas, como também para as ciências
humanas, esse tipo de visão mantem a desvalorização pois apresenta a
ausência da preocupação com as particularidades de cada corpo em suas
pesquisas. Foram os estudos que buscaram reelaborar a representação dos
corpos de mulheres, ressuscitando um conceito do corpo para seus próprios
fins, desvinculado das apropriações biológicas e naturalistas em que foram
historicamente submetidos. Devemos entender, portanto, que o corpo
feminino deve ser o instrumento de liberdade da mulher e não algo que a
limite.

Grosz (2000), determinou, ainda, os pensamentos das teóricas feministas


em relação ao corpo em categorias ou ondas e as classificou como
feminismo igualitário, construcionismo social e diferença sexual.

Na primeira categoria, inclui-se figuras como Simone de Beauvoir e outras


feministas liberais, conservadoras, humanistas e até mesmo as
ecofeministas. Muitas feministas nesta categoria veem um conflito entre o
papel de mãe e o de política ou cidadã, pois para elas, a opressão das
mulheres é consequência delas serem contidas em um corpo inadequado e,
portanto, é preciso superá-lo.

Já segunda categoria, Construcionismo social, inclui a maioria das teóricas


feministas contemporâneas, as feministas marxistas e as feministas
psicanalistas, esta categoria não vê o corpo como um objeto a ser
superado, mas sim como um objeto biológico. A segunda categoria faz uma
distinta relação entre mente/corpo e biologia/psicologia, onde o corpo é
responsável pela produção e reprodução, enquanto que a mente seria
responsável pela ideologia e pelas questões sociais. Sendo marcada,
também, pelo surgimento das preocupações sociais e políticas, sendo
voltadas para a construção de conteúdo teórico.

A diferença sexual, como Grosz nomeou a terceira categoria, temos nomes


como Judith Butler e muitas outras. Nesta, o corpo é visto como crucial para
a compreensão da existência psíquica e social da mulher, mas não é mais
visto como um objeto a-histórico, biologicamente dado, não cultural. Ele é
tanto um construto, quanto uma inscrição assim como o que está registrado
nele ou sobre ele, logo ele pode ser construído culturalmente. Seguindo
essa visão podemos problematizar questões como a heterossexualidade
compulsória ou heteronormatividade, apontando-as como resultados do
pensamento naturalizante que entrelaçam sexo-gênero-desejo e prática
sexual.

Ainda por essa visão é possível entender o papel do corpo nas propagandas
publicitárias, segundo Iara Beleli em “Corpo e identidade na propaganda”:

342
‘(...) A propaganda distingue categorias de pessoas e orienta modos de ser
e viver, centrando sua eficácia na atenção que ela desperta no consumidor.
Persuadir, independentemente do target, é seduzir, e a erotização passa
pelo corpo da mulher e pelo desejo do homem, informando um modo de
organização social no qual as relações entre mulheres e produtos são as
mesmas estabelecidas entre homens e mulheres, que parecem tomar o
lugar do produto’. (BELELI, 2007, p.211 e 212)

Desse modo percebemos como o corpo feminino é usado para identificar


certos produtos. A indústria de bebidas é um excelente exemplo a ser
apontada, em suas propagandas ela acaba construindo uma simbiose
produto/mulher, mercantilizando, ainda que implicitamente o corpo
feminino. Trata-se novamente de uma relação de poder dicotômica pela
qual o consumidor masculino (preferencialmente o alvo desse tipo de
campanha publicitária), que detém o poder de compra, adquiri o produto
simbioticamente feminino (passivo).

Essa dicotomia Masculino X Feminino é o ponto alvo dos debates da


moderna Teoria Queer, sua construção, ainda que esteja em constante
elaboração, se fez presente em um contexto no qual os movimentos LGBTs
e as feministas da terceira onda emergiram nos Estados Unidos.

No final da década de 1980 a Teoria Queer surge já realizando uma


apropriação radical de uma palavra que era usada para insultar e ofender.
Segundo Richard Miskolci (2009, p.150),

A Teoria Queer emergiu nos Estados Unidos em fins da década de 1980, em


oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e gênero.
Surgida em departamentos normalmente não associados às investigações
sociais como os de Filosofia e crítica literária.

A teoria Queer nos permite pensar basicamente na multiplicidade e na


fluidez das identidades sexuais e de gênero mas, além disso, também
sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder, a
educação e, além disso, problematizar as concepções atuais de gênero,
sexo, raça e outras categorias que criam identidades sobre as quais o
“sujeito” se localiza. A palavra queer, que até então era usada para se
referir a essas pessoas como “estranhos” e “bizarros”, além de que não se
enquadram na norma heteronormativa, passa a ser ressignificada para
afirmar pessoas cujas subjetivações realizam abalos nas estruturas
normatizadoras do sujeito. A filósofa pós-estruturalista estadunidense
Judith Butler se destacou como uma das principais pensadoras acerca da
Teoria Queer, e apesar de sua evidente ligação com a teoria feminista e
foucaultiana, ela rejeita qualquer definição teórica a respeito, por entender
que isso poderia aprisionar e limitar suas reflexões e seus trabalhos.

Em síntese, a teoria QUEER admite a pluralidade de identidades, de modo


que defende a ideia que existem mais que apenas dois gêneros, que o sexo
biológico não determina o gênero e que o corpo, assim como o gênero, é
construído culturalmente. Além disso, ela problematiza as configurações de 343
como os sujeitos se percebem e veem, biológica e subjetivamente, além
das formas de rompimento com as normas de sexualidade e gênero,
historicamente construídas.

A compreensão das visões postas na presente pesquisa são essenciais para


se repensar a forma como vemos o mundo e, principalmente, tentar, a
partir daí, a mudá-lo, pois infelizmente a realidade nos mostra que quanto
mais pessoas rompem com as normas de gênero estabelecidas, mais estão
suscetíveis a se tornar vítimas de violências.

Metodologias
O estudo em questão se constitui em uma pesquisa exploratória,
bibliográfica de caráter qualitativo. Ela faz parte das ações do laboratório de
gênero (LEGIP) e foi dividido em duas etapas: a teórico-metodológica e a
prática.

Durante a primeira etapa houve o levantamento bibliográfico sobre os


temas propostos, orientamo-nos primeiramente para as concepções dos
estudos de gênero, sendo as obras escolhidas: Gênero, uma categoria útil
para análise histórica, de Joan Scott; Diga-me, o que significa gênero? de
Marie-Victoire Louis; e Gênero, Sexualidade e Educação de Guacira Lopes
Louro. Para os demais temas como corpo, feminismo e Queer, foram
escolhidas as seguintes obras: Corpos Reconfigurados, de Elizabeth Grosz;
Corpo e identidade na propaganda, de Iara Beleli; O sujeito do feminismo e
pós estruturalismo, de Silvana Aparecida Mariano; Quem tem medo do
feminismo negro? de Djamila Ribeiro; Sejamos todos feministas, de
Chimamanda Ngozi Adichie; A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de
uma analítica da normalização, de Richard Miskolci; Ensaios sobre
sexualidade e a teoria queer, de Guacira Lopes Louro; Judith Butler e a
Teoria Queer, de Sara Salih.

A segunda etapa do projeto consistiu na realização de cards e desenhos,


inspirados nas temáticas estudadas na primeira etapa.

A pesquisa, por estar ligada ao LEGIP - Laboratório de Estudos de Gênero


Ifma/Campus Pedreiras - também possui uma etapa ligada à extensão, de
modo que os resultados produzidos foram divulgados à comunidade através
de palestras e apresentações orais e divulgada em redes sociais – pessoais
e do laboratório.

Resultados e considerações
A partir das análises dos referenciais teóricos pesquisados na primeira etapa
do estudo, paralelamente, produzíamos desenhos e cards em consonância
com as temáticas apresentadas pela literatura específica escolhida, pois
acreditamos que as artes são um dos mecanismos mais promissores na luta
e no combate ao racismo, ao preconceito de gênero e outras
discriminações. Logo, ao nos valer da estética marginal e revolucionária dos
cards, pudemos fazer com que as teorias por nós estudadas, tenham tanto
um fácil entendimento, quanto uma rápida disseminação. Nosso público
344
alvo foi a Educação Básica, preferencialmente os alunos do ensino
fundamental, mas também procuramos alcançar aqueles que nunca tiveram
acesso, ou não sabem a respeito dessas discussões e de suas importâncias.

De maneira simples podemos conceituar os cards como pedaços interativos


de informação, contém informações resumidas, relevantes e de rápida
compreensão, em geral eles se apresentam quase sempre num formato
retangular, assemelhando-se aos formatos dos cartões de crédito ou cartas
de jogos. Apesar de objetivarmos os cards impressos, também construímos
“cards para web” cujo ponto forte desse formato é a interatividade e a
amplitude de espaços e pessoas que eles podem alcançar. Todos os cards
foram confeccionados manualmente pela bolsista.

O primeiro card foi inspirado no livro “Quem tem medo do feminismo


negro?”, de Djamila Ribeiro. E a informação posta foi “Reconhecer
fragilidades, dores e saber pedir ajuda são formas de restituir as
humanidades negadas. Nem subalternizada, nem guerreira: humana.”
(RIBEIRO, 2018, p.20).

Figura 1: Card “QUEM TEM MEDO DO FEMINISMO NEGRO?”

As concepções da autora, posta nesta obra também inspiraram o card “Sem


opressão”, que traz a citação: “O objetivo do feminismo é uma sociedade
sem hierarquia de gênero - o gênero não sendo utilizado para conceder
privilégios ou legitimar opressões.” (RIBEIRO, 2018, p.44).

345

Figura 2: Card SEM OPRESSÃO

Do artigo “Gênero, uma categoria útil para análise histórica” de Joan Scott
foi escolhida a citação: “Do que se trata o gênero? é uma construção social
baseada nas diferenças percebidas entre os sexos” e inspirou o card “Do
que se trata o Gênero?”

Figura 3 Card DO QUE SE TRATA O GÊNERO?


Do texto “A imagem do corpo e a escrita da identidade”, de (GOMES e
GUIMARÃES), foi retirada a citação: “O corpo deve ser o instrumento de
liberdade da mulher, não algo que a limite.” (GOMES e GUIMARÃES,2014,
p.09) e inspirou o card corpo e liberdade,

346

Figura 4: Card CORPO E LIBERDADE

Frases de importante autoras Negras e feministas também inspiraram cards


como “Ao falar de mulheres, devemos sempre nos perguntar de que
mulheres estamos falando. Mulheres não são um bloco único, elas possuem
pontos de partida diferentes, apontando a urgência de não universalizar
essa categoria, ou seja, fala-se da importância de se dar nome e trazer
visibilidade para se restituir a humanidade.” de Sueli Carneiro.

Figura 5: Card Sueli Carneiro


E “Em uma sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser
antirracista.” de Ângela Davis
347

Figura 6: Card Ângela Davis

A partir das diversas leituras voltadas para a teoria QUEER, uma sequência
de 5 cards, formou um pequeno guia explicativo sobre o significado da sigla
“LGBTQIA+” com as suas respectivas bandeiras, o primeiro card apresenta
o guia e consta a seguinte informação: “Sempre tratamos de discussões
relacionadas a comunidade LGBTQIA+, mas, do que se trata a sigla?”

Figura 7. Capa do Guia LGBTQ+

Os cards seguintes explicam o significados das letras L, G e B, sendo o L


para Lésbicas: mulheres que sentem atração pelo mesmo gênero; G para
Gays: homens que sentem atração pelo mesmo gênero e B para Bissexuais:
homens ou mulheres que sentem atração pelos gêneros feminino e
masculino, consta ainda a observação: as pessoas que sentem atração por
todos os gêneros se identificam como pansexuais; que explica que apesar
não está na nomenclatura ainda existe essa identidade.

348

Figura 8: card 2 do guia LGBTQIA+

O terceiro card do guia explica os significados das letras T e Q, sendo T para


Transexuais: pessoas que se identificam com outro gênero que não aquele
atribuído no nascimento, inclusive dentro do aspecto não-binário, além
disso, traz a seguinte observação: trata-se de um conceito relacionado à
identidade de gênero e não à orientação; logo abaixo está a letra Q de
Queer: pessoas que se identificam como gênero queer transitam entre os
gêneros feminino e masculino, com a observação: o termo faz referência a
teoria queer;
349

Figura 9: card 3 do guia LGBTQIA+

O quarto card do guia explica os significados das letras I e A, sendo I para


Intersexo: pessoas cujo o desenvolvimento sexual corporal-expressado em
hormônios, genitais, cromossomos, e/ou outras características biológicas
não se enquadram na forma binária; e A para Assexuais: pessoas que não
sentem atração por outras pessoas, independente do gênero;

Figura 10. Card 4 do guia LGBTQIA+

O último card traz o símbolo +, que significa: abriga todas as diversas


possibilidades de orientação e/ou de identidade de gênero.
350

Figura 11. Card 5 do guia LGBTIQ+

A sequencia seguinte de cards foram autorais, inspiradas em experiencias


próprias e no convívio com os demais pesquisadores do Legip.

Figura 12. Card “Seja uma mulher que levanta outras mulheres”.
351

Figura 13. Card “Resistimos”.

Nosso último card é uma homenagem à um amigo, que queríamos


demonstrar apoio, por isso o nomeamos de apenas de “Amigo”.

Figura 14. Card AMIGO

Além dos cards, produzimos artigos, resumos expandidos e apresentações


em slides e tivemos a oportunidade de levar, através dessa produção,
informações tanto de cunho acadêmico e mais prolixo, quanto por meio de
frases curtas e imagens diversas que facilitam o entendimento. Não
obstante, contribuímos para o aumento dos debates nas instituições de
ensino do IFMA, bem como nos eventos que foram realizados pelo Neabi
(Núcleo de Estudos Afrodescendentes e indígenas) em diversos campi do
Instituto Federal do Maranhão e do Brasil. Ao tratarmos dessas discussões,
temos o desejo de dar voz às minorias que, por tanto tempo, tiveram suas
vozes silenciadas para as mais diversas formas de preconceitos.
Perspectivas de continuidade ou desdobramento do trabalho
O estudo desses temas contribuiu para o aumento dos debates no IFMA-
campus Pedreiras e se se tornou algo essencial para que determinados
estereótipos fossem desconstruídos e superados. Faz-se necessário dar voz
aos grupos historicamente marginalizados, devido suas identidades de
352
gêneros, fazendo com que essas pautas possam ocupar lugares onde
existam determinados tabus e, além disso, contribuir para a formação de
uma sociedade que não compactue de forma alguma com antigos estigmas
e preconceitos. Logo um estudo mais aprofundado sobre as diversas
identidades de gênero, os princípios da heteronormatividade e da
Heterossexualidade compulsória, bem como a divulgação destes estudos
nos espaços de educação básica, exteriores ao Ifma, poderão ser alvo de
um projeto futuro que aliará pesquisa e extensão.

Referências
Ma. Nila Michele Bastos Santos é Historiadora, Psicopedagoga, Especialista
em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade
Federal do Maranhão. Professora EBTT de História do Instituto Federal do
Maranhão IFMA - Campus Pedreiras. Coordenadora do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas do IFMA campus Pedreiras e Coordenadora do
LEGIP. Contato: nila.santos@ifma.edu.br
Luana Martins Pereira, Técnica em Eletromecânica na forma integrada ao
ensino médio pelo Instituto Federal do Maranhão - Campus Pedreiras
(2019). Membro do LEGIP, Bolsista I.C. Júnior FAPEMA (2019). Atualmente
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí.

BELELI, Iara. Corpo e Identidade na Propaganda. Estudos Feministas,


Florianópolis, 15(1): 193-215, janeiro-abril/2007.
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feminina na obra de eliane brum, VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 15, n.
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GROSZ, Elizabeth. “Corpos Reconfigurados”. Pagu (14), 2000, p. 45-86.
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma
analítica da normalização Sociologias. Nº.21, Porto Alegre Jan/June 2009.
Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
45222009000100008
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: Gender
and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1989.
Tradução: Cristine Ruffino Dabat e Maria Betânia Ávila. 3.ed. Recife: SOS
CORPO, 1996. Disponível em:
http://www.observem.com/upload/935db796164ce35091c80e10df659a66.p
df
VIOLÊNCIAS DE GÊNEROS
Nila Michele Bastos Santos e Manuel Oliveira da Costa Neto

O trabalho em questão faz parte do LEGIP (Laboratório de Estudos de


Gênero do IFMA Pedreiras)e provém do projeto de pesquisa aprovado pelo
EDITAL FAPEMA N° 004/2018- GERAÇÃO CIÊNCIA intitulado como
"Violências de Gêneros", que busca analisar a diversidade e a propagação 353
das Violências de Gêneros, evidenciando os casos da cidade de Pedreiras
Maranhão.

Para este artigo, optamos em discorrer sobre a fundamentação teórica que


embasa nossa pesquisa. Em meio às leituras das Teorias sobre gênero e
violências, verificamos como noções são atribuídas ao corpo sexuado,
juntamente com os papéis aos quais o indivíduo deverá sujeitar-se e
ocupar, antes mesmo do nascimento. É, portanto, segundo Joan Scott
(1989, p.7), possível perceber que o Gênero não se liga diretamente ao
sexo biológico, mas é construído em função desse, a justificativa para os
papéis normalmente atribuídos aos indivíduos, dessa forma, não está
somente no critério biológico, mas no social, cultural e histórico.

Essas estruturas estabelecidas a partir do sexo biológico serão bastante


criticadas por teóricos do campo político, histórico e social, uma vez que
fundamentam e legitimam sistemas como Patriarcalismo,
heteronormatividade e Masculinidade Hegemônica, que colocam o Homem
como superior e dominador, enquanto Mulheres “inferiores” precisam
submeter-se. Tal visão, meramente baseada na condição física e na
natureza dos dois, gera além das desigualdades, uma série de violências,
legitimadas por uma ideia de predestinação da dominação de um grupo
sobre outro.

Já sobre a violência podemos defini-la de muitas maneiras, a Organização


Mundial da Saúde (OMS) define a violência como o uso de força física ou
poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra
um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento,
morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação.
(DAHLBERG, KRUG: 2007)

Podemos, ainda, relacionar violência com as relações de poder ampliando as


noções de atos violentos destacando-se, por exemplo, ameaças e
intimidações que causem danos ao indivíduo.

A violência baseada em gênero ocorre, geralmente, a partir do momento


em que pensamentos, como os dominantes, são contestados ou há
tentativas de rupturas, especialmente por grupos inferiorizados, dessa
forma, na busca de reafirmar a autoridade e a manutenção de seu poder, os
indivíduos “ameaçados” reagem por meio da violência, seja ela física,
psicológica, moral, sexual etc.

No Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os números de


indivíduos violentados por questões ligadas ao gênero são bem altos, cerca
de 4936 mulheres foram assassinadas em 2017, maior número em 10 anos
e em 2016, foram 5930 notificações de violência contra homossexuais e
bissexuais. Boa parte dessas violências ainda são legitimadas pelo senso
comum, pois estão imersas em uma sociedade que acredita papéis sociais
de gênero estanques.

354
Entendendo o gênero
Definir gênero não é uma tarefa simples, pois abrange uma rede bastante
ampla de significados. Gramaticalmente, a palavra está ligada a dicotomia
feminino/masculino, embora em alguns idiomas apresente o gênero neutro.
Na biologia, representa uma unidade taxonômica, para a classificação dos
seres vivos. Todavia, quando levado em conta o contexto histórico, cultural
e social, representa, entre outros, as construções sociais atribuídas aos
indivíduos sobre o seu corpo sexuado, portanto, não se trata apenas da
diferença entre os sexos, mas em relações associadas às relações de poder,
à organização familiar, ao contexto político, como também na organização e
na história de uma nação, de uma sociedade.

A palavra gênero - com essas significações - “tem suas raízes na junção de


duas ideias importantes do pensamento ocidental moderno: a da base
material da identidade e a da construção social do caráter humano”
(NICHOLSON: 2000, p.2). Essa visão foi intensificadamente utilizada por
estudiosas, ligadas ao movimento feminista, nas décadas de 1960 a 1980,
como forma de trabalhar as diferenças entre homens e mulheres, não nas
questões biológicas, mas sim como base para compreender diferenças de
comportamentos, personalidades e socialização.

Essas estudiosas feministas buscavam inscrever as mulheres na História,


nesse contexto, gênero ganha significado como sinônimo para mulheres,
contudo, não se podia estudar separadamente a História das mulheres, isto
é, fazia-se necessário estudar as experiências vivenciadas entre os
indivíduos, entre a história do passado e as práticas históricas atuais, Scott
coloca que gênero possui uma significação mais ampla:

‘O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” –


a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado’. (SCOTT, 1988, p.7)

Tais estudos feministas contribuíram significamente para a difusão dessas


noções, fazendo com que fossem pensadas maneiras de entender os
modelos dominantes e desiguais. Ampliou-se também a abrangência do
termo gênero, que não mais se restringia a mulheres, mas considerava os
indivíduos e os papéis atribuídos a eles.

Corpo e gêneros
Mesmo compreendendo que ao tratarmos de gênero concentramo-nos no
social, a discussão sobre corpo não fica de fora das análises, afinal, grande
parte das desigualdades de gênero, em especial contra as mulheres, levam
em consideração seus corpos. Segundo Elizabeth Grosz (2000, p.67): “A
sexualidade feminina e os poderes de reprodução das mulheres são as
características (culturais) definidoras das mulheres e, ao mesmo tempo,
essas mesmas funções tornam a mulher vulnerável, necessitando de
proteção ou de tratamento especial, conforme foi variadamente prescrito
pelo patriarcado.” Dessa forma, segundo o patriarcalismo, as mulheres, por 355
suas características corporais, não são suficientemente capazes de assumir
papéis semelhantes aos atribuídos aos Homens, e assim são justificadas as
restrições aos papéis sociais e econômicos das mulheres. Do mesmo modo,
os indivíduos do sexo masculino, “devem” assumir uma postura de
dominação e proteção, e consequentemente controle, dos demais
indivíduos.

Historicamente as feministas responderam de formas diferenciadas esse


entendimento, objetivando a igualdade nos papéis sociais, elas trouxeram o
corpo como centro das discussões. De forma didática Elizabeth Grosz
classificou essas discursões em “ondas”, sendo a primeira o Feminismo
Igualitário, que afirmava corpo feminino como uma limitação para a
igualdade e, portanto, era preciso superá-lo. Dentre as características
femininas, analisaram a maternidade concluindo que “Se a mulher adota o
papel de mãe, seu acesso à esfera pública, social, torna-se difícil, senão
impossível, e a equidade dos papéis dos dois sexos perde o sentido. No
melhor dos casos, a equidade das relações entre os sexos só é possível na
esfera pública” (GROSZ. 2000. p.71). Portanto, era preciso superar a
maternidade.

A segunda onda, chamada de Construcionismo social, colocava que o corpo


realizava produção e reprodução, em contradição à mente, que se
concentrava na ideologia e no social. Portanto, para atingir a igualdade, não
era necessário mudar o corpo - este sendo imutável - mas crenças valores e
atitudes.

Já, a terceira onda, Diferença Sexual, aponta o corpo como significante e


significado, construído conforme um contexto histórico e cultural. “Assim,
essas feministas não estão evocando um corpo puro, pré-cultural, pré-social
ou pré-linguístico, mas um corpo como objeto social e discursivo, um corpo
vinculado à ordem do desejo, do significado e do poder” (GROSZ. 2000.
p.77).

É possível perceber, que nas discussões a respeito de corpos encontra-se


diversos fatores que justificam preconceitos, estes por sua vez, atrelado às
relações de poder, causam violências, sejam em diferentes vertentes, mas
que agem muitas vezes contra o corpo das vítimas. Se analisarmos mais
profundamente, podemos perceber que sobre os corpos se voltaram várias
questões apoiando-se diretamente ao gênero e não propriamente ao corpo.

É preciso, levarmos em conta tanto a relação que o indivíduo mantém com


seu corpo, quanto as expectativas sociais desse indivíduo pelo corpo o qual
pertence. Portanto, trataremos não mais de gênero, no singular, mas de
Gêneros, pois compreende-se que há uma ampla rede de identidades
sociais, provenientes das Masculinidades Plurais, das relações de
sexualidades e afetividades, das transexualidades e transgêneros, como
também daqueles que não se consideram pertencentes aos gêneros pré-
estabelecidos.

356
Violência
A origem do termo violência vem do latim violentia e significa o ato de
violar alguém ou auto violar-se. “Além disso, o termo parece indicar algo
fora do estado natural, algo ligado à força, ao ímpeto, ao comportamento
deliberado que produz danos físicos tais como: ferimentos, tortura, morte
ou danos psíquicos, que produz humilhações, ameaças, ofensas” (PAVIANI.
2016). Todavia, é preciso levar em consideração as conjunturas históricas e
culturais dos grupos sociais, de modo que o conceito de violência ganha
amplos significados e teorias. Hannah Arendt, por exemplo, define violência
como “meio ou instrumento de coacção que constituem recursos ao serviço
exclusivo e soberano de uma dada autoridade (ou entidade), no exercício de
uma dada forma de poder.” (ARENDT. 1970) Sendo que existem situações
que propiciam os atos violentos, em especial àqueles em que há a “perda
de autoridade” ou situações em que existe a ameaça de transformação na
estrutura daquela relação de poder.

Contudo, mesmo entendendo que o conceito de violência é cultural,


histórico e socialmente construído, é preciso levar em conta o aspecto da
saúde e bem-estar do indivíduo. Alguns atos podem ser legitimados por
culturas e crenças, mas prejudicam a saúde do indivíduo. A violência contra
a mulher, por exemplo, ainda que legitimada por alguns, causa um dano à
saúde e bem-estar desta e, portanto, não pode ser considerado algo
natural. É importante, também, entender que violência não se resume a
violações físicas, mas se expande em uma ampla rede de atitudes que
massacram e oprimem uma vítima. Dentre os tipos de violências, segundo
Relatório Mundial da OMS destacam-se:

“As Violências Autoinfligidas, violência praticada contra si mesmo,


especialmente suicídio, agressões a si próprio, automutilações, entre
outros;
As Violências Interpessoais, classificadas em Violências intrafamiliar: entre
parceiros íntimos e entre membros da família, principalmente no ambiente
doméstico, mas não unicamente; e Violências Comunitárias, que ocorre no
ambiente social em geral, entre conhecidos e desconhecidos;
As Violências coletivas incluem-se guerras, atos terroristas, geralmente
motivados por interesses de dominação; “se entendem os atos violentos
que acontecem nos âmbitos macro-sociais, políticos e econômicos e
caracterizam a dominação de grupos e do Estado” (MINAYO.2005).

Relatório Mundial da OMS adiciona ainda as Violências do tipo estrutural, a


qual “se refere aos processos sociais, políticos e econômicos que
reproduzem e cronificam a fome, a miséria e as desigualdades sociais, de
gênero, de etnia e mantêm o domínio adultocêntrico sobre crianças e
adolescentes” (MINAYO.2005). Nestas podemos citar as Violências
Culturais, que levam em consideração as formas de violência naturalizadas
por uma cultura, em especial as Violências de caráter étnico/racial e as
Violências de Gênero.

Violências de Gêneros
O termo Violência de Gênero surgiu em meados dos anos de 1990 e tratava
da violência contra as mulheres baseadas no gênero, isto é, visibilizar que 357
esse tipo de violência é decorrente das condições desiguais entre homens e
mulheres. Contudo, violência de gêneros, em suas várias facetas,
compreende toda conduta ou ato, baseado no gênero, que cause danos
físicos, psicológicos, morais, éticos, seja no âmbito intrafamiliar ou em
ambientes públicos. É uma das manifestações de poder presente
historicamente na estrutura patriarcal, que utiliza a violência como
instrumento dominação e exploração para garantir a permanência da
estrutura.

Foucault (2001) afirma que a violência pode ser um instrumento utilizado


nas relações de poder embora sejam fenômenos distintos, estão
diretamente relacionados, e que a chave para a compreensão da violência é
a forma como se concebe o poder. Assim, a violência surge como recurso
ou alternativa para manter a estrutura de poder. (OLIVEIRA. CAVALCANTI.
2017)

As vítimas desse tipo de violência, são o grupo que é dominado e oprimido


por essa estrutura, como as mulheres, as crianças e todos os demais que
não estão de acordo com os padrões instituídos. A família se constitui na
principal instituição em que as violências são manifestadas, pois é
principalmente nela que há as organizações dos papéis sociais. Além disso,
perceber e denunciar essas violências é mais complexo, pois além dos laços
familiares construídos, muitas vezes, essa demonstração de violência
acontece no privado e permanecem no silêncio dos envolvidos. "(...) a
família nuclear tradicional tem sido um lugar onde a prevalência de abuso
de crianças, violência doméstica, e estupro é sistematicamente ocultada e
negada.” (SEGAL, 1989, p.136).

Geralmente, nas relações entre homens e mulheres, principalmente casais,


os atos de violência são naturalizados de acordo com uma ideologia sexista
e misógina. Nessas relações, as mulheres ficam com o trabalho doméstico e
a responsabilidade principal de educar os filhos, enquanto o homem possui
a função de sustentar e "organizar" a família. Segundo Koss (2000) essa
divisão do trabalho colocam as mulheres a assumir posições desiguais em
termos de poder, prestígio e riqueza. Dessa forma, quando muitas mulheres
almejam contrapor as funções atribuídas a elas, são submetidas a
manifestações violentas de homens. A violência contra crianças,
especialmente meninas, também se manifesta, frequentemente, no
ambiente doméstico e tornando-se mais complicado de perceber, pois pela
idade da vítima sua palavra é questionada quando comparada a de um
adulto. Fora do âmbito doméstico, muitas mulheres também sofrem
agressões, até mesmo quando ocupam cargos políticos, majoritariamente
de representantes masculinos, não raro elas são criticadas e desvalorizadas,
meramente, por seu gênero, ainda que tal ato seja negado e mascarado por
outras justificativas. Há ainda outras formas preconceituosas muito comuns,
como o julgamento pela vestimenta, sendo usado como justificativa até em
casos de estupros e feminicídios, tornando a vítima culpada por não seguir
o padrão moral que é imposto ao seu gênero.

358
As formas de agressão são complexas, perversas e apresentam-se de
diversas formas como ameaças, humilhações, insultos, chantagens,
limitações, além de patrimonial, que é quando há o controle e privação de
bens ou dano a algum objeto de valor daquela vítima; há ainda violências
do tipo moral, quando há acusações, exposição, desvalorização da vítima; e
também sexual (estupros, abusos sexuais, impedir o uso de métodos
contraceptivos, etc.), podem se manifestar antes, durante e fora de
relacionamentos com a vítima.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2013 o Brasil


já ocupava o 5º lugar, num ranking de 83 países onde mais se matam
mulheres. São 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, em que quase 30%
dos crimes ocorrem nos domicílios. Além disso, uma pesquisa do
DataSenado (2013) revelou que 1 em cada 5 brasileiras assumiu que já foi
vítima de violência doméstica e familiar provocada por um homem. Os
resultados da Fundação Perseu Abramo, com base em estudo realizado em
2010, também reforçam esses dados – para se ter uma ideia, a cada 2
minutos 5 mulheres são violentamente agredidas. (INSTITUTO MARIA DA
PENHA)

De acordo com esses dados, é relevante procurar maneiras de quebrar os


ciclos de violência contra a mulher, a criação de leis, que assegurem o
direito à liberdade de acordo com a Declaração dos Direitos Humanos, se
faz importante em uma sociedade marcada pela violência, como a nossa. A
Lei N° 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha foi uma conquista
árdua das mulheres na luta por seus direitos. A Lei afirma no Art. 2º que:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde
física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (Lei N°
11.340/06)

A Lei foi criada no intuito de conceber um atendimento diferenciado e


preferencial às mulheres que são vítimas de violência doméstica e/ou
intrafamiliar. Posterior a essa lei, outras ganharam espaço, com outras
motivações, mas com o mesmo caráter de combate a violência contra a
mulher, é o caso da Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/2012) que dispõe
sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, a Lei de Feminicídio (Lei
13.104/2015) que busca reduzir o número de homicídios contra mulheres
em função de seu gênero, entre outras leis que criminalizam e repudiam
atos de violência contra as mulheres.
Não somente as mulheres são vítimas de violências baseadas em gênero,
mas muitos homens, especialmente crianças, que não expressam o modelo
hegemônico de masculinidade são vítimas de bullying, abuso sexual,
agressões físicas etc., gerando sujeitos reprimidos, traumatizados e até
violentos.

Há ainda aqueles que sofrem violências de gêneros na condição de sua 359


identidade de gênero e sua opção sexual não serem tradicionais. A
LGBTfobia destaca os principais grupos afetados por essas violências. Na
maior parte das vezes, essas violências são invisibilizadas e só ganha
destaque quando há casos de homicídio. Segundo Junqueira (2007),
LGBTfobia se refere a sentimentos negativos relacionados ao “medo” e ao
“semelhante” direcionados a gays, lésbicas, travestis, transexuais e
bissexuais. Dessa forma, “compreendemos a expressão LGBTfobia como o
conjunto de anseios como ira, nojo, desconforto, receio, horror, desprezo e
descaso pelas pessoas que não estão inclusas nas definições rígidas
amarrados a heteronormatividade e a dialética binária de gênero.”
(Ministério dos Direitos Humanos, 2018).

Considerações finais
Segundo art. 2º da Lei Maria da Penha/2006 “Toda mulher, independente
de classe, raça, etnia..., goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver
sem violência...”, no entanto, dados registram alta nos casos de violência
contra mulher, principalmente mulheres negras. O Mapa da Violência 2015:
Homicídio de Mulheres no Brasil, elaborado pela Faculdade Latino-
Americana de Ciências Sociais (Flacso) mostra que a taxa de assassinatos
de mulheres negras aumentou 54% em dez anos, enquanto que, no mesmo
período, o número de homicídios de mulheres brancas diminuiu 9,8%. Isso
comprova que as violências de gênero também devem ter um recorte racial,
afinal, a violência contra as mulheres negras está relacionado ao peso
histórico da escravidão, na qual a mulher não estava de acordo com o mito
da “fragilidade” atribuída ao feminino, portanto, é necessária uma atenção
diferenciada para que sejam considerados esses e outros aspectos que
constroem esse tipo de violência.

Diante do exposto, reiteramos a necessidade de pesquisar e entender as


questões de gênero, uma vez que estas permeiam nossa vida e nossas
relações, relacionando-se com as violências na Sociedade. É necessário
persistência e estudos para que possamos desconstruir culturas sexistas e
desiguais, conferindo liberdade de gênero e de expressar esse gênero
legalmente.

Referências
Ma. Nila Michele Bastos Santos é Historiadora, Psicopedagoga, Especialista
em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade
Federal do Maranhão. Professora EBTT de História do Instituto Federal do
Maranhão IFMA - Campus Pedreiras. Coordenadora do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas do IFMA campus Pedreiras e Coordenadora do
LEGIP. Contato: nila.santos@ifma.edu.br
Manuel Oliveira da Costa Neto, Estudante do Curso Técnico em Petróleo e
Gás Integrado ao Ensino Médio no Instituto Federal do Maranhão – IFMA
Campus Pedreiras. Membro do LEGIP (Laboratório de Estudos de Gênero do
Ifma campus Pedreiras), Bolsista I.C. Júnior da FAPEMA.

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SILVA. Marcos V. M. Violência LGBTFóbicas no Brasil: dados da violência.
Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, p. 79. 2018
PAVIANI. Jayme. Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul, RS:
Educs. p. 8-20. 2016.
PROJETO LEGIP: OS ESTUDOS DE GÊNERO NO IFMA CAMPUS
PEDREIRAS
Nila Michele Bastos Santos

O Laboratório de Estudos de Gênero IFMA campus Pedreiras [LEGIP] é um


projeto de extensão, associado ao Ensino e Pesquisa, de iniciativa do Núcleo
de estudos afro-brasileiros e indígenas [NEABI] do campus Pedreiras e tem 361
dentre seus objetivos o desenvolvimento de pesquisas e atividades na área
de Estudos de Gênero, além de ser um espaço de interlocução acadêmica
entre alunos do campus Pedreiras, com pesquisadores da área, outras
instituições e interessados na realização de pesquisas sobre gênero.
Propõem-se ainda, construir parcerias com outros órgãos regionais e
nacionais com o intuito de desenvolver projetos de ensino, pesquisas e
extensão relacionados aos estudos de família, relações e violências de
gênero, sexualidade, corpo, patriarcalismo, homofobia, machismo,
heteronormatividade, além da moderna teoria Queer. O laboratório opera
diretamente em redes sociais, promovendo campanhas nas temáticas e
divulgando resultados de pesquisas. Academicamente ele atua em
congressos, seminários, encontros, reuniões científicas, além de incentivar
a popularização e publicação dos trabalhos realizados.

Introdução
Historicamente a família brasileira se construiu seguindo o exemplo
patriarcal dos portugueses, esse modelo subjugava todos os membros à
vontade do chefe da família, que não se constituía apenas de esposa e
filhos, mas de todos aqueles que dependiam ou permitiam-se dominar pelo
chefe da linhagem. Os papeis sociais foram separados de forma desigual
colocando para o homem o caráter de provedor e dominador, enquanto
relegava à mulher a submissão e incapacidade de gerir-se sozinha. Essa
desigualdade imposta se desdobrou em diversas violências de gênero, não
apenas atingindo a Mulher, mas todos aqueles que divergiam do padrão
patriarcal, tais relações devem ser compreendidas não apenas no binômio
de masculino/feminino; Homem/mulher, mas sim em uma perspectiva de
relações de poder nas quais um grupo subjuga outro de acordo com sua
necessidade. Nesse sentindo a sociedade acaba formando um discurso
normatizador que segrega todo aquele que vai de encontra a norma
estabelecida.

No que se refere a educação básica o fortalecimento desse discurso


opressor, pautado em ideias patriarcais acaba excluindo uma gama de
jovens que são obrigados a se esconder ou ainda rejeitarem sua própria
identidade, tais ações contribuem para depressões, suicídios e mesmo
bullying, pois na ânsia de se rejeitar ele pratica atos contra aqueles que
lembram o que ele não pode ser. Logo o debate sobre esses temas não
podem ser contidos, ao contrário ele precisa ser ampliado e propagado,
desse modo as ações do LEGIP, pautadas no aprofundamento dos
referenciais teóricos, é o primeiro passo – no Instituto Federal do
Maranhão/ campus Pedreiras- para a compreensão desses fenômenos, o
combate aos preconceitos e valorização da diversidade.
Outro ponto extremamente necessário a qual o laboratório busca atuar é no
combate a violência contra a mulher, pois a cidade de Pedreiras – Ma, a
qual o Instituto Federal está instalado, possui um dos mais altos índices
registrados no Estado. Em dados do DataSus [2013] a média de homicídios
de mulheres na cidade era superior à média nacional como demostra a
362
imagem a baixo:

Fonte: http://www.deepask.com/goes?page=pedreiras/MA-Assassinatos-
de-mulheres:-Veja-o-numero-e-a-taxa-de-homicidios-da-populacao-
feminina-do-seu-municipio

As análises destes e outros dados, aliado aos estudos históricos,


sociológicos e filosóficos sobre violência e violência de gênero nos ajuda a
compreender as raízes dos problemas e assim tentar saná-los. Deste
modo, a criação e atuação do LEGIP se justifica enquanto parte
fundamental das discussões de gênero na localidade em que se encontra;
pela importância em se compreender a formação de uma sociedade
extremamente hierarquizada, machista, patriarcalista, misógina e
homofóbica e principalmente como as permanências desses padrões, que
são transmitidos de geração para geração, influenciaram os costumes
tradicionais e preconceitos de nossa contemporaneidade.

Gênero, identidade e poder


Segundo Joan Scott: “gênero é um elemento constitutivo das relações
sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” [1990, p.86].
Portanto, a ideia de gênero encontra-se imbricada nas construções sociais
que permitem criar as identidades sexuais, os papeis sexuais e as próprias
relações entre os sexos. Scott ainda, conclui: “gênero é uma forma primária
de dar significado às relações de poder” [1990, p.86]. Em outras palavras
não há como compreender as relações de dominação patriarcal sem
compreender que as relações entre homens e mulheres e a forma de
construir-se enquanto tais são frutos de relações sociais pautadas em
relações de poder. Compreender isso é o primeiro passo para apresentar a
diversidade de gênero a qual estamos cercados e entender o porquê dos
preconceitos e “fobias” para com aqueles que não se encaixam no padrão 363
ditado como o correto pela sociedade.

Ao se entender as relações de gêneros, bem como o padrão das identidades


de gênero, como frutos de uma construção social baseada na diferenciação
biológica dos sexos e subordinada às relações de poder podemos
compreender as normas de conduta, funções e papeis sociais atribuídas e
esperadas para homens e mulheres em cada sociedade. Logo as “verdades
absolutas” postas ao homem como qualidades viris, coragem, força, vigor
sexual; macho, provedor, marido, amante são produzidos histórico
culturalmente e não dadas pela natureza. De acordo com Carla da Silva:

“Isso não significa a exclusão do masculino, mas o pensar em homens e


mulheres a partir do caráter relacional de poder, considerando que não
existe apenas uma mulher ou um homem, mas sim, diferentes construções
simbólicas de papeis que são flexíveis e mutáveis ao longo do tempo”.
[SILVA: 2012]

Tais papéis estão além dessas masculinidades hegemônicas ou mesmo dos


discursos heteronormativos. Os conceitos de “Ser Homem” e “ser Mulher”
precisam ser discutidos de modo que os jovens atualmente não se sintam
oprimidos a seguir padrões que não podem alcançar e entendam que a
hierarquia e os papéis sociais a quais estão submetidos não podem ser
encarados como estado de natureza fixa, apesar de seguirem códigos pré-
determinados, pois como Afirma Terry Eagleton:

“Regras, como culturas, não são nem puramente aleatórias nem


rigidamente determinadas – o que quer dizer que ambas envolvem a ideia
de liberdade. Alguém que estivesse inteiramente eximido de convenções
culturais não seria mais livre que fosse escravo delas”. [EAGLETON, 2005,
p.13].

Os sujeitos históricos, portanto, não são meros fantoches de seus meios


sociais, tão pouco a realidade em que estão inseridos é facilmente
modificada a partir de vontades individuais. É no coletivo que essas
categorias, “ser” e “ambiente”, “cultura” e “natureza” vão se automoldando
e introduzindo no mundo um grau de autorreflexividade constante e
mutável. Atualmente “[...] O natural, uma palavra que hoje em dia precisa
ser compulsivamente colocada entre aspas, é simplesmente o cultural
congelado, preso, consagrado, des-historicizado, convertido em senso
comum espontâneo ou verdade dada por certa. [...]” [EAGLETON, 2005,
p.135], logo é preciso pensar a “condição humana” ao invés da “natureza
humana”. Essas noções de identidades fixas tornam-se perigosas e reduzem
os processos históricos uma vez que impedem a visualizações de relações
afetivas dentro de um sistema econômico e esquecem que esse sistema
também é político e cultural.

Sobre essa cristalização da questão da identidade, as ciências humanas


vêm promovendo um intenso debate. De um lado temos as “velhas
identidades”, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social e definiram
364
os papéis de pertencimento ligado às culturas étnicas, raciais, linguísticas,
religiosas e principalmente aos nacionalismos culturais, nessa visão o
indivíduo é visto como um sujeito unificado e fechado em si. Na outra ponta
da discussão temos uma identidade fragmentada, composto não de uma
única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e até não
resolvida. Nessa perspectiva a moderna teoria queer traz uma quebra com
o binarismo de gênero, reafirmando seu rompimento com a
heteronormatividade, além de discutir com o próprio padrão homossexual
que foi construído, que tende a excluir travestis, drag-queens, transexuais,
pansexuais, entre outros. Em outras palavras, a Teoria Queer vem para
problematizar o chamado “normal”, levantando questões para se discutir
sobre as identidades não binárias, o que foge da relação de sexo biológico
com gênero. É na década de 1990 que as noções Queer são consolidadas,
tendo na filosofa Judith Butler sua mais notória expoente. Segundo a
autora, a sociedade criou uma “ordem compulsória” que exige a coerência
entre o sexo biológico, a identidade de gênero e o prazer sexual,
expressamente heterossexual. Para contrapor essa lógica é necessário
subverter a ordem, desmontando a obrigatoriedade entre sexo, gênero e
desejo sexual, a autora afirma que:

“O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de


significado num sexo previamente dado […] tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são
estabelecidos.” [Butler 2010, p. 25].

Em síntese, a teoria QUEER admite a pluralidade de identidades, de modo


que defende a ideia que existem mais que apenas dois gêneros, que o sexo
biológico não determina o gênero e que o corpo, assim como o gênero, é
construído culturalmente. Além disso, ela problematiza as configurações de
como os sujeitos se percebem e veem, biológica e subjetivamente, além
das formas de rompimento com as normas de sexualidade e gênero,
historicamente construídas.

Assim o Laboratório de Estudos de Gênero IFMA campus Pedreiras [LEGIP],


optou por se orientar seguindo tais referenciais teóricos, pois acredita que
estes garantem a pluralidade da diversidade, repensam identidades fixas e
problematizam de maneira ética as próprias noções de viver e existir em
sociedade. Além disso, seus membros confiam que a compreensão dessas
visões são essenciais para se repensar a forma como vemos o mundo e,
principalmente, tentar, a partir daí, a mudá-lo, pois infelizmente a realidade
nos mostra que quanto mais pessoas rompem com as normas de gênero
estabelecidas, mais estão suscetíveis a se tornar vítimas de violências.
O LEGIP
Imbuído do objetivo de produzir debates e pesquisas na área das relações
de gênero, sexualidade, corpo, patriarcalismo, homofobia, machismo,
heteronormatividade, teoria Queer, famílias e violências de gênero surgiu o
Laboratório de Estudos em Gênero do IFMA campus Pedreiras e reúne,
atualmente 5 docentes e 25 discentes do Instituto Federal do Maranhão no
campus Pedreiras. 365

Criado em maio de 2018 pela professora Mestra Nila Michele Bastos Santos,
o Laboratório contou inicialmente com apenas quatro discentes: Felipe
Alves, Luana Martins Pereira - ambos do curso Técnico em Eletromecânica
na Forma Integrada ao Ensino Médio -, Vitoria Regina Guimarães dos
Santos e Manuel Oliveira Da Costa Neto – estes do curso Técnico em
Petróleo e Gás na Forma Integrada ao Ensino Médio. Em agosto do mesmo
ano o projeto foi aprovado no EDITAL FAPEMA Nº 004/2018 – GERAÇÃO
CIÊNCIA e contemplado com financiamento para bolsas de Professor Jovem
Cientista e Estudantes de Iniciação Científica Júnior, além de fomento para
extensão.

Assim, os estudantes buscaram além da pesquisa e produção acadêmica,


confeccionar materiais didáticos lúdicos para que as temáticas pesquisadas
pudessem ser trabalhadas na educação básica. Sendo essas:

1. Gênero, Raça, Classe e Poder cujo objetivo foi articular as perspectivas


de gênero, raça e classe social no estudo dos preconceitos historicamente
construídos na sociedade brasileira, o material confeccionado foi fanzines
sobre os preconceitos raciais, de gênero e sociais.
2. Patriarcalismo, Heteronormatividades e diversidades sexuais que buscou
analisar a construção histórica do Patriarcalismo e da heteronormatividade
na sociedade brasileira, centrando-se principalmente no entendimento
desses conceitos. O material confeccionado foi cartilhas explicativas sobre
diversidades sexuais e gênero.
3. Violências de Gêneros, analisa a diversidade e a propagação das
Violências de Gêneros, evidenciando os casos da cidade de Pedreiras
Maranhão; o material confeccionado foi um “mapa da violência” da região,
apresentando dados mais atuais para ser distribuído nas escolas públicas da
região do médio Mearim.
4. Corpo, Feminismo, Queer e outras teorias: este estudo foca-se nas
chamadas “ondas do feminismo” e a sua relação com o estudo dos corpos,
mostrando a diversidade de pensamentos e estudos de diversas teóricas
feministas, desde Simone de Beauvoir à Judith Butler. O material
confeccionado foram uma série de Cards contendo além de desenhos
autorais da bolsista citações dos textos lidos.

Os trabalhos foram apresentados em seminários e simpósios estaduais e


nacionais, os estudantes também promoveram palestras no instituto
Federal e campanhas educativas nas redes sociais, foi criada a conta
@legip.ifma na rede social Instagram, tornando-se um dos principais meios
de divulgação virtual do laboratório. Todo esse conjunto de ações permitiu a
ampliação do laboratório que em seu segundo ano triplicou o número de
participantes docentes. Somando-se às pesquisas em andamento
(financiadas pela Fapema) novas pesquisas foram iniciadas, sendo quatro
financiada pela CNPq em parceria à PRPGI do IFMA e duas em voluntariado.
No mesmo ano o LEGIP comprometeu-se publicamente com aos objetivos
globais nº 05 e 5.1 da Agenda 2030 que profere: “Alcançar a igualdade de
gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” e “acabar com todas as
366
formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda
parte”

Em seu terceiro ano de existência [2020] o laboratório se expandiu e


mesmo sem os financiamentos anteriores, consta com 12 pesquisas em
andamento, 1 grupo de estudos com reuniões mensais, uma página ativa
na rede social Instagram, um projeto de palestras para educação básica,
além de atualmente organizar seus primeiros intentos nas artes plásticas,
com intervenções nos espaços escolares e urbanos, através de confecções
de painéis e pinturas de murais nas temáticas trabalhadas pelo laboratório.

Metodologias aplicadas
Por se tratar de um Laboratório de estudos e representar um espaço de
debates e contestações não há como estipular uma única linha de
conhecimento ou metodologia, o mais apropriado seria falar em
epistemologias e metodologias, no plural, uma vez que não há uma só
forma de produção do conhecimento, mas sim várias, a partir de diferentes
teorias. O que priorizamos, no entanto, é que toda produção realizada no
laboratório seja para a busca da equidade e alteridade entre os indivíduos
sociais, de modo que teorias que contradigam esses ideais são analisadas
com fim de contextualizações históricas ou a serem questionadas e
refutadas, mas jamais seguidas.

As pesquisas até agora desenvolvidas, também possui características


diversas, há estudos históricos que trabalham diretamente com
documentações do século XVIII e XIX, de modo que os métodos da
pesquisa histórica são seus métier, até trabalhos antropológicos que exigem
a pesquisa de campo com entrevistas e questionários semiestruturados. As
abordagens das pesquisas podem possuir tanto caráter quantitativo, quanto
qualitativo, embora este último tenha sido priorizado, até agora. A pesquisa
bibliográfica, no entanto, é uma exigência para todos. É importante
ressaltar que a exceção dos cinco docentes que atualmente compõem o
laboratório, todos os demais pesquisadores são jovens estudantes de
Cursos Técnicos associados ao Ensino Médio e que não recebem créditos
extras por sua participação no LEGIP, todas as pesquisas em andamento
possuem orientadores pós-graduados.

De maneira didática e sequencial os membros participam de reuniões


mensais na sala do NEABI, nas quais são levantados e debatidos
referenciais teóricos sobre as temáticas, sendo expostas por discentes,
docentes ou convidados. Os membros bolsistas, ou que possuem pesquisas
voluntárias, participam de reuniões privadas com seus respectivos
orientadores. Mensalmente, as quintas-feiras, promove-se o projeto
“quintas de categorias”, que consistem em rodas de debates curtos sobre as
temáticas do laboratório no intervalo de aulas do campus. A administração
da rede sociai do Legip é realizada em sistema de rodízio entre os membros
e as campanhas virtuais seguem um cronograma mensal para abordar
temas como o preconceito étnico-racial, de gênero, homofobia, Violências
contra a Mulher e outras violências de gêneros. As intervenções artísticas
seguem um planejamento mais volátil, uma vez que dependem de
patrocínio para a aquisição de materiais e permissões institucionais ou 367
públicas para a utilização dos espaços e muros.

Os resultados parciais, obtidos ao final de cada semestre, são compilados


para apresentações em modalidade de painel e comunicações orais nos
eventos realizados pelo NEABI do campus Pedreiras, além disso os
estudantes membros do LEGIP se comprometem a apresentar suas
produções em Simpósios e Congressos, afins com a temática, em outros
campi ou instituições.

Considerações finais
Aos poucos o LEGIP vem se consolidando como uma importante voz na
comunidade escolar, na cidade em que se localiza e em suas adjacências.
Espera-se com isso contribuir para a desconstrução de padrões
estereotipados e preconceituosos sobre gênero e sexualidade culturalmente
construídos e que ainda são reproduzidos nas escolas brasileiras. Para tanto
busca-se divulgar os resultados de nossos estudos e pesquisas tanto em
artigos apresentados em eventos acadêmicos, quanto em textos simples e
didáticos voltados para educação básica, de modo que cada vez mais
adolescentes sintam-se capazes de construir sua identidade de forma livre e
desoprimida, aceitando suas especificidades.

Acredita-se que o LEGIP possa demonstrar que é nas relações de poder que
as desigualdades são criadas, sendo frutos de uma construção social e não
natural. Desse modo confia-se que ao exaltar as multiplicidades e
diversidade, sejamos capazes de aceitar as diferenças e combater os
preconceitos.

Referências
Ma. Nila Michele Bastos Santos é Historiadora, Psicopedagoga, Especialista
em Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade
Federal do Maranhão. Professora EBTT de História do Instituto Federal do
Maranhão IFMA - Campus Pedreiras. Coordenadora do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas do IFMA campus Pedreiras e Coordenadora do
LEGIP. Contato: nila.santos@ifma.edu.br

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da


identidade. Tradução Renato Aguiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010
DEEPASK. Assassinatos de mulheres: Veja número e taxa de homicídios por
cidade do Brasil - PEDREIRAS, MA. Disponível em:
http://www.deepask.com/goes?page=pedreiras/MA-Assassinatos-de-
mulheres:-Veja-o-numero-e-a-taxa-de-homicidios-da-populacao-feminina-
do-seu-municipio
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São
Paulo: UNESP, 2005.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade: Porto Alegre, 1990.
SILVA, Carla da. A Desigualdade imposta pelos papeis de Homem e Mulher:
Uma Possibilidade de Construção da Igualdade de Gênero. Direito em Foco.
368
2012. Disponível em:
http://www.unifia.edu.br/projetorevista/artigos/direitoemfoco.html
AINDA SOMOS “ATREVIDA”?: UM ESTUDO COMPARATIVO DOS
PADRÕES DE BELEZA PRESENTES NA REVISTA DO SÉCULO XX
COM A ATUALIDADE
Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal e Nila Michele Bastos Santos

A desigualdade de gênero é presente devido a um contexto sócio-histórico-


cultural que afetam a realidade de mulheres das mais variadas formas; 369
estas desigualdades são reforçadas a todo momento na sociedade,
principalmente pela mídia, que como pretendemos mostrar impõe uma
imagem às mulheres que afetam desde a identidade até a própria
autoestima desse grupo, essas representações são frequentes no nosso dia-
a-dia, sendo a todo tempo normalizada. Levando em consideração a
realidade apresentada, os meios de comunicação possuem importante
espaço quanto a difundir essa construção do que deve ser a mulher,
principalmente em relação aos padrões de beleza que são relacionados a
como o corpo deve ser e a ideia de que existe uma obrigação do indivíduo a
se adequar àquilo que é estabelecido.

Nesta pesquisa, intitulada: “Ainda somos ‘Atrevida’?: Um estudo


comparativo dos padrões de beleza presentes na revista do século XX com a
atualidade”, buscamos entender como esses padrões foram passados
durante os últimos cinco anos do século XX por meio da revista ATREVIDA,
que tinha como público-alvo meninas adolescentes, e problematizá-los.
Além disso, também objetivamos entender qual meio de comunicação
possue na atualidade a mesma visibilidade e o mesmo apelo às
adolescentes como a revista ATREVIDA tinha nos anos 90, assim
pretendemos analisar o modelo da revista do século XX e comparar quanto
às representações de gênero abordadas nos meios de épocas diferentes e,
por fim, entender se elas perduraram ou não.

A pesquisa se realiza por meio da análise documental das revistas, análise


bibliográfica tanto de livros clássicos sobre questões de gênero quanto teses
e dissertações sobre padrão de beleza. O presente estudo se justifica,
principalmente, quando analisamos o quão mulheres, que na tentativa de se
adequarem a esses padrões inalcansáveis de beleza, contam com
intervenções estéticas e cirurgicas, sustentando toda uma indústria baseada
em serviços e produtos como plásticas, cosméticos e etc. Muitas destas
mulheres desenvolvem doenças como bulimia, anorexia e depressão, devido
a pressão que existe para se colocar dentro desta imagem que foi
construída. É preciso portanto problematizar os Padrões de beleza,
analisando a Beleza e os padrões estéticos enquanto categorias
historicamente construídas.

Metodologia
O estudo se estabeleceu em uma pesquisa exploratória e documental, de
carater qualitativo com técnicas da pesquisa bibliográfica.

Como dito na Introdução houve uma análise documental dos textos tanto
verbais, quanto os textos não verbais das Revistas Atrevida das edições de
1995 até os anos 2000, foram analizadas as capas, as fotos nas colunas de
moda, os editoriais e até às receitas que estão presentes nas Revista. Esta
documentação encontra-se no acervo do NEABI do campus Pedreiras, foram
essenciaias para identificar quais discursos são reforçados e classificar quais
corpos são exaltados, além é claro de indentificar quais são invisibilizados.
Todas as revistas foram lidas, mas somente dez foram escolhidas para
370
analises em relação a revisão de conteúdo, e estas foram escolhidas
aleatoriamente.

Foi lido o relatório final do trabalho: Atrevida! Às representações de Gênero


na revista adolescente do final do Século XX de Silvana Maranhão Lucas,
uma vez que a presente pesquisa visa dá continuidade aos estudos iniciados
pela estudante. Também houve um estudo bibliográfico de autoras como
Bell hooks, Elizabeth Grosz e Joan Scott, que trazem um direcionamento
sobre raça, classe e gênero para a pesquisa, que são temas que estão
ligados a problematização dos discursos das revistas. Foram estudados
artigos das mais diversas áreas como comunicação e enfermagem para
entender como a linguagem é construída para persuadir e sustentar os
diversos discursos relacionados a poder, principalmente em relação ao
capitalismo, e o efeito desses padrões na saúde de mulheres
contemporâneas, como exemplo podemos citar os trabalhos de Helaine Dias
de Araújo Oliveira com sua tese de mestrado em Comunicação e Semiótica
e Márcia Rebeca Rocha de Souza, Jeane Freitas de Oliveira, Enilda Rosendo
do Nascimento e Evanilda Souza de Santana Carvalho com suas teses em
Enfermagem.

Foram estudados também os trabalhos brasileiros de Márcia Tiburi, Djamila


Ribeiro e Silvana Mara de Morais dos Santos, que trazem as mais diversas
questões de gêneros, que explicam desde a construção destas opressões,
como elas atuam até a como existe a exclusão de mulheres negras no
próprio movimento feminista, e explicando ainda como os padrões de
beleza são limitantes e prejudiciais às mulheres e reforçando sempre a
importância do diálogo e do estudo sobre gênero.

Foram feitas as apresentações orais nos mais diversos eventos do NEABI


em que sempre que participamos reforçamos a importância do estudo sobre
gênero e de como os meios de comunicação podem reforçar as mais
diversas opressões.

Análise da documentação
De modo geral, a revista por ter como público-alvo meninas adolescentes e
adaptar a sua linguagem para algo que seria próxima da realidade delas, se
utilizando de expressões, gírias, e também criando táticas para se
aproximar da leitora, como respondendo perguntas em quadros como Sabe
tudo sobre sexo ou Sabe tudo sobre tudo, tem a finalidade de se tornar um
meio mais convincente para a leitora, construindo uma ideia de que a
revista seria a “melhor amiga” da leitora, mas essa relação se torna passível
de crítica levando em consideração que a revista sempre carrega um apelo
comercial, e também por reproduzir diversos discursos esteriotipados, que
apesar de refletir a época, normalizava deteminados preconceitos. Márcia
Tiburi afirma em seu livro sobre o porquê de esses discursos serem tão
normalizados para as meninas da época: ‘Talvez seja realmente difícil
compreender a dominação masculina, porque estamos mergulhados nela. A
própria ideia de compreensão é controlada pelo sistema patriarcal’ (TIBURI;
2018, p.70)

Levando em consideração a análise da revista, observamos que em seus 371


textos não verbais existe um padrão de quais meninas viriam a aparecer e
quais não. São invisibilizados corpos não brancos e não magros e ligado
sempre à textos verbais que retratavam assuntos relacionados, em sua
maioria a beleza, moda e comportamento, ou seja, excluía-se os fenótipos
de maior parte da população brasileira.

Sobre o padrão das modelos que eram escolhidas para fazer parte das
fotos, quase nenhuma possuía um corpo que fosse diferente de branco e
magro, a não ser quando a revista estava retratando uma temática
específica, como na edição de janeiro de 1997 na qual a revista trouxe uma
reportagem sobre moda denominada “O vestido certo para o seu tipo de
corpo”, neste número ela trouxe dicas as meninas consideradas “cheinhas”,
em que aparecia uma menina não magra em comparação às outras
modelos da mesma manchete, contudo, esta ainda aceitável, ou seja, não
muito “cheinha”, aliás a revista usa esta palavra como forma de amenizar a
palavra gorda, passando uma ideia de que essa seria ofensiva, ou seja, que
ser gorda não é algo normal.

Capa e manchete de janeiro de 1997, a modelo “cheinha”

Quando é observada a questão de raça, modelos negras são totalmente


invisibilizadas, exceto quando não eram uma celebridades, como Michael
Jackson e Taís Araújo, ou figurantes em alguma reportagem, e são
totalmentes invisíveis nas capas das revistas, nos 5 anos de revista a única
edição que possui uma negra na capa é a de março de 1999, apenas porque
tratava-se de um sorteio entre as leitoras e as vencedoras apareceriam na
revista, outro exemplo em que há a aparição de uma menina negra é em
uma reportagem em que aparece uma modelo branca sendo atendida por
uma baiana, no caso a modelo negra, trata-se de uma matéria sobre Moda
chamada de “Salve Salvador!”, na edição de novembro de 1996, ou seja,
372
quando meninas negras são representadas são em espaços “exóticos” e de
servidão ou então quando a revista não tem controle sobre essa escolha.

Capa de março de 1999 e Foto da manchete: Salve Salvador! da edição de


novembro de 1996

Em seu conteúdo a revista se utiliza na sua estrutura manchetes que se


dividem em diversos temas como: beleza, moda, saúde, comportamento e
etc, assuntos esses que sempre são abordados com uma motivação voltada
a conquista de um namorado ou então para poder manter uma relação, ou
seja, assuntos são quase sempre relacionados ao agrado ao sexo
masculino, principalmente sobre como adequar seu comportamento e/ou
sua aparência para isso, questões que estão ligadas a como os
organizadores da revista imaginaram o que às meninas da época devem se
interessar e que ao mesmo tempo reforçam essa imagem e os mais
diversos estereótipos.

A revista muitas vezes traz modos de como chegar a um certo ideal de


beleza, seja pela forma de dicas, nas quais a revista sempre direciona as
meninas a fazerem usos de produtos e serviços específicos com a finalidade
de estar de acordo com a “tendência da estação”. Também traz diversas
dicas de como se livrar de celulites e de dietas milagrosas, aliás sempre que
a revista trazia alguma receita, nela estava atrelada o números de calorias
e existiam alertas para as meninas não exagerarem e engordarem, assim
alimentava-se e naturalizava-se um discurso de não aceitação do próprio
corpo.
Outra questão que é analisada na revista é que existiam diversos quadros
sobre opiniões, dois deles são o Palavra de Menino e o Pensando Alto, no
primeiro diversos meninos davam opiniões, na maioria delas sobre o
comportamento e imagem de garotas que os agradavam, enquanto no
segundo quadro era dada uma pauta que podia ser considerada polêmica,
essas pautas abordavam assuntos como política, educação, sociedade e etc,
nela era pedida a opinião das leitoras por cartas, que eram publicadas as 373
duas opiniões opostas melhor argumentadas das leitoras.

O “Palavra de Menino” sempre ficava no meio da revista e tinha destaque, o


quadro Pensando Alto era colocado no fim da revista, sem muito destaque,
observamos que a opinião dos meninos sobre como as meninas eram mais
evidenciadas que que as opiniões das meninas sobre o mundo à sua volta,
assim a revista deixava claro a quais opiniões as meninas deviam dar mais
importância.

De modo geral, a revista traz uma imagem irreal e estereotipada do que a


menina deveria ser e sustenta uma ideia de que ela deve se adequar ao
padrão para poder ser aceita, ou seja, que é responsabilidade dela se
manter naquele ideal, com uma promessa falha de conquista da felicidade,
resumi-se a existência delas à sua aparência, ou a quem elas se
relacionam, com a finalidade de manter uma indústria que vive dessas
“dicas para melhorar seu visual”, ou seja, das inseguranças. No trabalho
Droga de Corpo! Imagens e Representações do corpo feminino em revistas
brasileiras às autoras explicam essa ideia:

‘Se, historicamente, as mulheres preocupavam-se com sua beleza,


atualmente ser/estar bela é responsabilidade da mulher imposta pela
sociedade. A busca por padrões estéticos deixou de ser um dever social que
pode ser conseguido ou não, e passou a ser um dever moral, para o qual a
mulher deverá se esforçar o suficiente para conquistar’ (SOUZA; OLIVEIRA;
NASCIMENTO; CARVALHO, 2013, p.13).

No momento estamos analisando qual meio específico contemporâneo deve


ser comparado a revista ATREVIDA do final dos anos 90 para podermos
fazer o paralelo, já decidimos quanto ao formato que é a internet, pois é o
mais acessível e utilizado atualmente, nosso desafio é entender se abriram
ou não novos espaços e como eles estão atuando. Pois como na internet
existem inúmeras plataformas diferentes para as quais as adolescentes se
dividem entre si e na qual elas podem preferir de acordo com seus
interesses pessoais, agora entender como essas plataformas repassam seus
discursos se torna cada vez mais complicado.

Revisão da literatura
Em sua tese de mestrado “Ser adolescente: construções identitárias em
revista” Helaine Dias de Araújo Oliveira traz a história de como o
adolescente se tornou um público lucrativo e como a linguagem se adequou
a esse público, ela mostra quais são as características dessa linguagem
analisando revistas brasileiras voltadas a meninas adolescentes, na qual a
linguagem toda tem uma finalidade extremamente comercial, um exemplo é
a revista vender uma ideia de ser melhor amiga da leitora para assim se
tornar mais persuasiva, características estas que foram observadas também
nas revista deste estudo, além do mais também é observado que quando
analisado sob este ponto os discursos problemáticos acabam ganhando
mais força já que a linguagem das revistas é muito persuasiva, essa tese
serviu então de base para o presente estudo, principalmente em relação a
374
linguagem.

Foi analisada também às ideias de Joan Scott que em sua obra “Gênero:
uma categoria útil para análise histórica” traz a história dos estudos de
gênero da época e o que seria “gênero”, sempre fazendo uma análise de
como gênero está relacionado às relações de poder e como às mulheres
acabavam sempre sendo inferiorizadas em relação aos homens, observa-se
este conceito no trecho:

‘Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são
ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo
essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar às relações de poder’ (SCOTT, 1989, p. 21)

E analisando como a imagem do ser “menina”, que é a junção de duas


categorias: mulher e adolescente, é construída dentro da revista uma
identidade que é sustentada pela linguagem persuasiva e comercial,
identidade esta que carrega uma imagem atrelada aos mais diversos
estereótipos, que reforçam tanto o consumo quanto o machismo.

No entanto, quando estudado os textos de Bell hooks é analisado uma dura


crítica a trabalhos como os de Joan Scott, principalmente em relação ao
perigo de se analisar gênero sem o recorte de raça e classe pois o sexismo
não é a única forma de opressão, ela deixa isso claro no trecho de
Ensinando a Transgredir:

‘As análises feministas sobre a sina da mulher tendem a se concentrar


exclusivamente no gênero e não proporcionam uma base sólida sobre a
qual construir a teoria feminista. Elas refletem a tendência, predominante
nas mentes patriarcais ocidentais, a mistificar a realidade da mulher,
insistindo em que o gênero é o único determinante do destino da mulher.
Certamente, tem sido mais fácil para as mulheres que não vivenciam
opressão de raça ou classe se concentrar exclusivamente no gênero’.
(HOOKS, 2013, p. 207)

Aliás a teórica ainda analisa como as mulheres negras são oprimidas devido
ao racismo e ao machismo, até pelos próprios movimentos que deveriam
lutar por elas, no texto é feito uma crítica extensa ao movimento feminista,
mas ela também critica o movimento negro, pois mesmo eles sendo
excluídos por uma condição ainda podem oprimir, sendo a mulher negra a
última nesta escada social, como no trecho Ensinando a Transgredir ela
explica:
As mulheres brancas e os homens negros têm as duas condições. Podem
agir como opressores ou ser oprimidos. Os homens negros podem ser
vitimados pelo racismo, mas o sexismo lhes permite atuar como
exploradores e opressores das mulheres. As mulheres brancas podem ser
vitimizadas pelo sexismo, mas o racismo lhes permite atuar como
exploradoras e opressoras de pessoas negras. Ambos os grupos têm
liderado os movimentos de libertação que favorecem seus interesses e 375
apoiam a contínua opressão de outros grupos. O sexismo masculino negro
prejudicou a luta para erradicar o racismo, assim como o racismo feminino
branco prejudica a luta feminista. (HOOKS, 1994, p. 207 e 208)

Assim é percebido na revista a exclusão de meninas (mulher + adolescente)


negras, ou seja, como a revista sempre analisava o que seria a identidade
da adolescente brasileira ela nunca representava meninas negras, ou seja,
tornando as invisíveis, como se aquele espaço não fosse para elas e elas
não fossem adolescentes brasileiras.

Ao mesmo tempo em que construímos a mídia ela também nos constrói,


pois ela nos dita qual a forma adequada de nos vestirmos, nos
comportamos e, claro, como devemos consumir, pois tudo isso é reforçado
com um viés capitalista, assim se torna cada vez mais perigoso como e por
quem esses espaços são construídos e controlados, pois é fato o tanto de
mulheres, principalmente meninas, que sofrem com esse sistema de
aprisionamento, que vai de baixa autoestima a depressão. No artigo Droga
de corpo! Imagens e Representações do corpo feminino em revistas
brasileiras é analisado os motivos e como às mulheres buscam se adaptar
para entrar no padrão magro, sendo desde a utilização de dietas absurdas
até a busca por cirurgias, no caso do trabalho foi aprofundado sobre o uso
de remédios para emagrecimento, mas o texto também alerta sobre
diversos distúrbios alimentares que são consequência da pressão que existe
sobre o corpo feminino.

Também foi estudado o livro “Feminismo em comum: para todas, todes e


todos” da filósofa brasileira Márcia Tiburi, em que ela traz seus conceitos
sobre feminismo e questões relacionadas, principalmente no Brasil, de
forma didática e simples, nele observa-se em seu capítulo Mulheres e o
Feministas: o problema da identidade das mulheres, o quanto é difícil a
construção da sua própria identidade sendo que esta foi construído pelo
grupo hegemônico e não pelos próprios grupo, o seja, são identidades que
reforçam essas relações de poder. Observa-se isto no trecho:

‘Às mulheres precisam lutar para defender também suas imagens,


capturadas pelo sistema econômico e social e que, nos meios de
comunicação de massa, foram transformadas em moeda e mercadoria.
Lutar pelo direito à autoimagem é, por outro lado, lutar por uma identidade,
reivindicação das pessoas que foram invisibilizadas na opressão do
espetáculo que mede às pessoas pela aparência’. (TIBURI; 2018, p.80)

Levando em consideração o presente estudo das revistas, os meios de


comunicação são a forma de “reprodução” de uma sociedade em uma certa
época, ela pode tanto reforçar as mais diversa formas de opressão quanto
também podem desconstruí-las, assim como a revista ATREVIDA reforçou
estereótipos e padrões, podemos (e devemos) repensar esses locais, os
tornando mais democráticos e desconstruí-los atualmente, para que não
continuemos a limitarmos nossa existência em “atrevidas” de forma
inconsciente, especialmente quando discutimos representações de gênero,
376
nas quais às mulheres, como em diversos segmentos, acabam sofrendo
muito, enfim a discussão e a desconstrução sobre estereótipos de gênero
deve ser uma constante luta e merece o seu espaço.

Referências
Hiza Júlia Ruben Corrêa Leal é Bolsista PIBIC ENSINO MÉDIO 2019/2020 -
EDITAL PRPGI N° 04/2019 Aluno do ensino médio integrado ao Curso de
Eletromecânica do IFMA- Campus Pedreiras.
Email: hiza.julia@acad.ifma.edu.br
Nila Michele Bastos Santos é Historiadora, Psicopedagoga, Especialista em
Formação de Professores. Mestra em História Social pela Universidade
Federal do Maranhão. Professora EBTT de História do Instituto Federal do
Maranhão IFMA - Campus Pedreiras. Coordenadora do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas do IFMA campus Pedreiras e Coordenadora do
LEGIP. Contato: nila.santos@ifma.edu.br

HOOKS, Bell. “Ensinando a Transgredir”. WMF, 1994, pp. 193 210 GROSZ,
Elizabeth. “Corpos Reconfigurados”. Pagu (14), 2000, pp. 45-86
OLIVEIRA, Helaine Dias de Araújo. Ser Adolescente: construções identitárias
em revista. Orientador: Dr. José Luiz Aidar Prado. 2010. 115 f. Dissertação
(Mestrado em Comunicação e Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica
De São Paulo, São Paulo, 2010.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1°ed. São
Paulo.Companhia das Letras. 2018
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: Gender
and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1989.
Tradução: Cristine Ruffino Dabat e Maria Betânia Ávila. SOS CORPO.
3.ed. Recife, 1996. Disponível em:
http://www.observem.com/upload/935db796164ce35091c80e10df659a66.p
df
SOUZA, Márcia Rebeca Rocha de; OLIVEIRA, Jeane Freitas de;
NASCIMENTO, Enilda Rosendo do; CARVALHO, Evanilda Souza de Santana;
Droga de Corpo! Imagens e Representações do corpo feminino em revistas
brasileiras. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(2):62-69.
SANTOS, Silvana Mara de Morais dos; OLIVEIRA, Leidiane. Igualdade nas
relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços.
Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 1 p. 11-19 jan./jun. 2010. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rk/v13n1/02.pdf
TIBURI, Márcia Angelita. Feminismo, para todas, todes e todos. 7°ed. Rio
de Janeiro. Rosa dos Tempos. 2018
LEVANTAMENTO QUANTITATIVO DE MULHERES
PARTICIPANDO DO PLEITO ELEITORAL E MULHERES ELEITAS:
SOMBRIO/SC (1988-2016)
Paola Vieira da Silveira

As mulheres ficaram durante 20 séculos sem ter o direito de votar ou serem


votadas no processo de escolha governamental, somente no decorrer do 377
século XX que esses direitos foram alcançados, em decorrência do
movimento sufragista. Lolatto [2016] relata que este movimento surgiu no
Reino Unido questionando as mulheres não terem representação e não
poderem escolher representantes na esfera pública. Logo se espalhou pelo
mundo, e em 1932 o Brasil autorizou o voto feminino.

Em âmbito nacional, de 1932 até o período da redemocratização política na


década de 1980, as mulheres tiveram muitos desafios, como a ditadura do
estado novo e a ditadura civil militar, como aponta Janine Petersen [2006]
estes foram momentos de desmobilização das mulheres, onde suas lutas se
fundiram com a luta de todo o povo.

A historiadora Marla Luiza de Andrade Amorim [2015] relata que após esse
período, em 1985 criou-se o conselho nacional dos Direitos da Mulher e com
a promulgação da constituição de 1988 as mulheres participaram com
assiduidade dos debates e da Constituição cidadã. Neste sentido, Lolatto
[2016] aponta que em 1995 foi realizada em Pequim a VI Conferência
Mundial sobre a Mulher, dela resultou uma plataforma de ação onde uma
das medidas visava ações para garantir o acesso das mulheres a estruturas
de poder. Todavia, a participação feminina na política ainda é
desproporcional em relação aos homens, a autora evidencia tal fato:

“E mesmo passadas décadas da conquista do voto, persiste uma grande


disparidade na participação de homens e mulheres no espaço da política.
Aparentemente paira a ideia de que as mulheres estão em todos os lugares,
trabalham em diferentes postos, são independentes financeiramente e
“chefes” de famílias, podem ser líderes comunitárias ou ícones de sucesso,
mas o mundo da política parece continuar sendo o limite. Este ainda é um
local para homens e não para mulheres”. [LOLATTO, 2016, P. 128].

Alinhando-se ao pensamento de Lollatto, Amorim (2015) contextualiza o


estado de Santa Catarina e ressalta que no ano de 2012, o maior colégio
eleitoral do estado, localizado em Joinville, elegeu somente uma mulher.
Aponta também dados da imprensa, expondo que

“Nos últimos 20 anos, o número de mulheres que se candidataram para


deputada estadual ou federal em Santa Catarina passou de 8 para 174, um
aumento de 2.075%. Porém, o número de eleitas ainda avança a passos
lentos. Em 1994, uma mulher foi eleita, enquanto em 2010 esse número
passou para cinco”. [DiárioCatarinense, 26/07/2014, APUD, AMORIM, p.
293].
As pesquisas sobre mulheres na política em Santa Catarina têm como
cenário, habitualmente, os grandes centros, plausível de maior relevância
política e maiores colégios eleitorais. Entretanto, desponta o
questionamento de como acontece à participação das mulheres no âmbito
político em outras localidades. As mulheres estiveram por muito tempo, não
só excluídas das decisões políticas, como também, a margem da história.
378
Um suporte para esta afirmação é Michelle Perrot [2012], ela destaca a
relevância em escrever história das mulheres e cessar o silêncio que estas
foram submetidas. Desta forma, supõe-se que não somente as mulheres
dos grandes centros devem ter suas histórias documentadas, mas também
as mulheres das comunidades interioranas.

Segundo a autora, gênero, em primeiro momento, se tornou sinônimo de


mulheres. Nessa conformidade, Scott [1995] percebe duas abordagens
utilizadas pelos/as historiadores/as, são elas:

“A primeira é essencialmente descritiva; quer dizer, ela se refere à


existência de fenômenos ou de realidades, em interpretar, explicar ou
atribuir uma causalidade. O segundo uso é de ordem causal e teoriza sobre
a natureza dos fenômenos e das realidades, buscando compreender como e
porque eles tomam as formas que têm”. [SCOTT, P. 74-75].

Ou seja, nenhumas das abordagens buscavam dar visibilidade a atuação


das mulheres nas sociedades. Inclusive, Scott [1995] enfatiza que como a
preocupação teórica surgiu no fim do século XX, ela está ausente das
principais abordagens teóricas.

Com todo o exposto, percebe-se a importância de trabalhos que dão


visibilidade as mulheres, por mais difundido que o tema esteja ainda se tem
muito que fazer para suprir os séculos de silenciamento.

Neste sentido, o presente texto tem como objetivo um levantamento da


presença das mulheres na disputa eleitoral e nos cargos do legislativo e de
chefe executivo municipal na cidade de Sombrio entre os anos de 1988 a
2016. Esta cidade está localizada no extremo sul do estado de Santa
Catarina, a aproximadamente 240 km da capital, Florianópolis. Segundo
dados do último Censo, Sombrio têm aproximadamente 27 mil habitantes.
A escolha desta cidade como foco da análise está ancorada no lugar social
da pesquisadora.

O recorte temporal é delimitado pelo ano em que a primeira mulher foi


eleita no legislativo deste município até o ano que compreende as últimas
eleições municipais. A relevância desta pesquisa está em abordar um
município fora do eixo das grandes cidades, mostrando parcialmente, como
ocorre à inserção das mulheres na política em cidades do sul do estado de
Santa Catarina.

Para compreensão da trajetória das mulheres na política igualmente do


sistema de cotas, foi utilizada uma pesquisa bibliográfica com foco na
História das Mulheres e na História Política. Para o levantamento acerca de
mulheres que integraram o pleito eleitoral de 1988 a 2016 em Sombrio/SC
o suporte foi o site do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina.

O Quantitativo Da Presença Feminina Na Política Sombriense


Sombrio é uma cidade localizada no Extremo Sul do estado de Santa
Catarina. Pertencente a Araranguá, sua emancipação foi declarada em
1953, aponta Aurelino C. Pereira [2015]. O autor ainda destaca que os dois 379
primeiros prefeitos, Tenente Aminthas Melo e Francisco Lummertz, foram
nomeados. Mas, no ano seguinte, em 1954 o representante municipal passa
a ser eleito pelo voto popular, sendo o primeiro prefeito eleito Santelmo
Borba [PEREIRA, 2015].

Nesta perspectiva, a partir do levantamento realizado no site do TRE foi


constatada a presença feminina em eleições somente em 1988, no qual seis
(6) mulheres concorreram ao legislativo, em contra partida a 72
representantes do gênero masculino. Somente em 1996 é possível
identificar a presença feminina na disputa pelo Executivo, mas é importante
mencionar que nesta primeira aparição surge sendo ‘cabeça de chapa’. Na
tabela a seguir é apresentada quantitativamente a presença masculina e
feminina na disputa eleitoral de 1988 a última eleição municipal, em 2016,
ficando evidente a disparidade:

TABELA 1: Presença feminina e masculina na disputa eleitoral de 1988 a


2016. Fonte: Da autora.

Essa desigualdade fica ainda mais acentuada quando considerado o número


de mulheres efetivamente eleitas. Apenas três (3) representantes do gênero
feminino foram eleitas vereadoras em Sombrio. Somente uma após a virada
do milênio. Um número surpreendente se ponderarmos que vem
aumentando gradativamente a representatividade feminina na disputa
eleitoral. Observamos a tabela:
380

TABELA 2: Quadro de mulheres eleitas no legislativo de Sombrio de 1988 a


2016. Fonte: Da autora.

O número de suplentes, embora estivesse em oscilação entre 1988 e 2008,


cresceu nas duas últimas eleições, contudo durante o levantamento foi
identificado que as coligações foram fundamentais para esse resultado. A
tabela 2 não evidencia o poder executivo, no entanto, em 2016 foi eleita a
primeira mulher para o poder executivo do município no cargo de vice-
prefeita.

Em 1982 ocorreu a primeira eleição livre para governadores dos estados no


período compreendido pela ditadura militar, neste mesmo ano foi realizado
em Blumenau um grande encontro organizado por mulheres do PMDB onde
tinham como pauta “maior participação na política, a verificação das
políticas sociais, além de mudanças no código civil”, aponta Amorim [2015].
A autora ressalta este evento como um marco para a participação política
das mulheres no estado. E por ele sucederam-se outros movimentos,
fortalecendo as mulheres politicamente, inclusive permitindo-as participação
efetiva nos debates da constituição cidadã, analisa Amorim [2015].

Entretanto, mesmo com participação garantida nos textos constitucionais,


na prática, é ainda pequeno o número de vozes femininas no setor político
[AMORIM, 2015]. Araújo [1998] chama a atenção para uma diferenciação
entre representação e paridade, considerando isso, é possível ponderar que
na política catarinense, brasileira e, inclusive, mundial há representações
femininas, mas não há paridade entre os gêneros [Amorim, 2015; Araújo,
1998].

Neste sentido se insere a política de cotas, uma lei que institucionaliza a


reserva de vagas por gênero nos partidos políticos. Segundo Amorim [2015]
o projeto de lei 9.100/95 proposto pela deputada Marta Suplicy instaurava
que 20% das vagas de cada partido ou coligação deveria ser preenchida por
mulheres. Como repercussão os partidos iniciaram campanhas para filiação
de candidatas, as pautas femininas começaram a aparecer e a participação
feminina passou a fazer parte das discussões políticas. Mesmo com
avanços, os resultados ainda foram insuficientes, então em 1997 entre em
vigor a Lei 9.504/97 modificando o percentual para 30%. Contudo, somente
em 2009 com a Lei 12.034/09 é que há uma alteração efetiva na Lei de
cotas obrigando os partidos a preencherem o percentual [AMORIM, 2015].
Mulheres integrando a política partidária levantam discussões sobre pautas
que fazem referência as mulheres, um exemplo, é a própria lei de cotas
proposta por uma candidata mulher, como pontuado anteriormente. Porém
a presença de mulheres não significa espontaneamente a defesa destas
pautas, isso acarreta em seus projetos não serem aprovados [AMORIM, 381
2015]. Porém, para Amorim [2015] as relações de gênero ficam implícitas
na atuação política, visto que as mulheres acabam por ficar com questões
referentes a cuidados, uma opção que muitas vezes reflete:

“o fato de que o eleitorado, os meios de comunicação e os próprios pares no


campo político serão mais receptivos a atuação de uma mulher na área
social. Isto é, esta atuação pode ser mais efetiva e angariar maiores
dividendos simbólicos caso ocorra a favor dos estereótipo de gênero e não
contra eles”. [MIGUEL e BIROLI, 2011, p. 112].

É evidente que a política de cotas, principalmente a partir de 2009,


influenciou as candidaturas mulheres, fazendo com que disparasse em 2012
e 2016 o número de mulheres na disputa eleitoral. Contudo, se
ponderarmos o número de candidatas eleitas não houve nenhuma para o
legislativo. Deste modo, é evidente a disparidade de gêneros na política
partidária, onde as mulheres são apenas o suporte para o partido, mas não
disputam de fato a corrida eleitoral.

Considerações Finais
Com a análise das tabelas, é possível perceber que nos primeiros anos a
diferença na quantidade de candidatos entre homens e mulheres era mais
expressiva, e com o passar do tempo a disputa eleitoral foi gradativamente
ficando mais equilibrada entre os gêneros, a lei de cotas foi o principal fator
para isso. Contudo este equilíbrio baseia-se apenas na quantidade de
candidatos, e não traduz a paridade de gênero na disputa eleitoral, bem
como entre os eleitos, evidenciando assim, que mesmo com a lei que
determina o espaço de candidaturas femininas, o desinteresse dos partidos,
que em sua maioria tem suas executivas formadas por homens de classe
média, em promover a participação efetiva da mulher na corrida eleitoral, e
mantendo assim apenas o percentual mínimo para registrar e aprovar suas
candidaturas. Isso expressa como a política partidária é um ambiente
masculinizado, machista, onde para se inserirem, as mulheres têm que
participar de acordo com as regras já impostas além de serem vistas
apenas como peças de composição numérica.

Referências
Paola Viera da Silveira é historiadora e professora, mestra em ciências
ambientais, atua como pesquisadora associada do laboratório de
arqueologia da UNESC e como professora na rede estadual de ensino de
Santa Catarina.

AMORIM, Marla Luiza de Andrade. Quando as mulheres entram em cena na


política em Joinville (1980-2014). Dissertação (mestrado) apresentada ao
Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado de
Santa Catarina sob orientação da Professora Marlene de Fáveri -
Florianópolis, 2015.
LOLATTO, Simone. Mulheres na Política: Trajetórias das Vereadoras
Titulares de Florianópolis/SC (Brasil). Tese de Doutorado apresentada ao
Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da universidade Federal de
382
Santa Catarina, sob orientação da Professora Teresa Kleba Lisboa -
Florianópolis, SC, 2016.
MIGUEL, Luis Felipe e BIROLLI, Flavia. Caleidoscópio convexo: mulheres,
política e mídia. São Paulo: Editora UNESP, 2011
PERROT, Michelle. Minha história das Mulheres. 2ªed. São Paulo: Contexto,
2012.
PETERSEN, Janine. Formação de grupos feministas em Santa Catarina –
década de 1980. Florianópolis, 2006
SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise. Educação e Realidade, Porto
Alegre, p. 71– 99, 1995.
SER PROFESSORA, SER MULHER: HISTORICIZANDO A
FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO E OS PADRÕES DE GÊNERO NO
ÂMBITO DA PROFISSÃO DOCENTE
Patrícia Rocha Carvalho

O presente estudo tem como foco a análise do processo de feminização do


magistério que, no Brasil, inicia-se no século XIX e consolida-se no século 383
seguinte. A pesquisa busca analisar as implicações das questões de gênero
no exercício da docência e avaliar como os estereótipos sobre ser mulher/
ser professora influenciam o trabalho educacional.

Compreendendo as identidades como resultado de produções discursivas


que são atingidas por relações de poder, almeja-se localizar nesta pesquisa
as motivações históricas, culturais e políticas da maciça inserção feminina
na área da educação e os ideários construídos para legitimar o magistério
como uma área essencialmente destinada às mulheres. Nesse sentido, a
pesquisa torna-se relevante ao buscar promover a historicização da
feminização do magistério, aspecto que ajuda a compreender o perfil dos
(as) atuantes nos primeiros anos da educação básica brasileira e as
consequências disso.

Para tanto, utilizou-se o método bibliográfico-exploratório, caracterizado


pela revisão de publicações sobre o tema em livros, artigos e demais
comunicações. O trabalho ora apresentado vale-se prioritariamente de
artigos concernentes aos estudos de gênero, à teoria feminista e à
educação nos anos iniciais. Cabe salientar que o levantamento do corpo
referencial deste trabalho foi realizado por intermédio de portais como
Scielo, banco de teses de universidades e conteúdos disponibilizados pelo
Instituto de Estudos de Gênero.

Representações do feminino e identidade de gênero


O sexo biológico em diferentes contextos temporais e geográficos
configurou-se como mecanismo de delimitação hermética dos conceitos de
feminilidade e masculinidade. Sob tal perspectiva, que se restringe a uma
análise naturalizante acerca do processo identitário dos sujeitos, são
estabelecidos padrões comportamentais para homens e mulheres definindo
papeis sociais de maneira estanque, desconsiderando os aspectos sociais e
culturais que influenciam a constituição das identidades sociais.

As identidades e alteridades são percebidas então como resultado de


processos exclusivamente biológicos, que determinariam as vivências dos
indivíduos e, conforme este pensamento, os comportamentos sociais seriam
guiados por fatores inatos que implicariam na existência de um padrão
dúplice de comportamentos esperados para cada um dos sexos, atribuindo-
lhes características específicas e limitando suas ações, pensamentos e
sentimentos. Dentro desta perspectiva, as desigualdades entre homens e
mulheres, a dominação masculina e a consequente submissão feminina são
percebidos como resultado de pressões naturais. A masculinidade e a
feminilidade são compreendidas de forma binária, atribuindo-se
características específicas para cada sexo, como por exemplo, a delicadeza,
a paciência e fragilidade às mulheres e força, racionalidade e rispidez aos
homens (MONTENEGRO, 2003).

As explicações que naturalizam a constituição das identidades de gênero


são amplamente difundidas no senso comum e respaldados por discurso
384
religiosos, pedagógicos, determinados discursos científicos, dentre outros,
que ignoram o fato de os padrões sexuais serem, em verdade, reflexo de
pressões culturais e construções sociais, marcadas por simbologias,
representações, estereótipos e processos discriminatórios, como por
exemplo as distinções quanto às brincadeiras direcionadas a meninos e
meninas, diferenciações na divisão das tarefas domésticas, determinações
de profissões, distinção quanto às roupas e estética de modo geral, dentre
tantas outras ações que desencadeiam a limitação da expressão do gênero
e sexualidade dos sujeitos. O binarismo de gênero, embasado nos discursos
naturalizantes, converte as diferenças entre mulheres e homens em
relações de desigualdade numa perspectiva hierárquica e invariavelmente
machista que relega as mulheres à uma condição de submissão e
desprestígio social e configura-se como uma violência simbólica:

“Assim, definir a submissão imposta às mulheres como violência simbólica


ajuda a compreender como a relação de dominação – que é uma relação
histórica, cultural e linguisticamente construída – é sempre afirmada como
uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal” (SOIHET,
1997, pp. 10-11).

Decorrente desta violência simbólica, o feminino em diferentes tempos


sofreu com a restrição de sua sexualidade e acesso à esfera pública, tendo
sua liberdade alienada em prol da manutenção de um status quo patriarcal,
pautado na superioridade masculina. Este processo implica em
desconsiderar as experiências das mulheres enquanto sujeitos sociais e
agentes históricos (PERROT, 1989). Deste modo, historicamente, foram
estabelecidos espaços e possibilidades femininas: o domínio privado,
marcado pelo imperativo do matrimônio e maternidade, que sublinham o
cuidar como uma prática essencialmente feminina.

Visando evidenciar o caráter sociocultural das distinções realizadas entre


homens e mulheres com base em fatores sexuais, as feministas da década
de 1970 começam a utilizar o conceito de gênero enquanto uma categoria
de análise da organização social das relações entre os sexos. Busca-se
através do conceito promover um distanciamento do determinismo
biológico. Ademais, o conceito apresenta um caráter relacional ao evidenciar
a interdependência entre o feminino e o masculino:

“Em outras reflexões, o termo sexo foi questionado por remeter ao biológico
e a palavra gênero passou a ser utilizada para enfatizar os aspectos
culturais relacionados às diferenças sexuais. Gênero remete à cultura,
aponta para a construção social das diferenças sociais, diz respeito às
classificações sociais de masculino e feminino” (PINSKY, 2009, p. 162).
O gênero visa, pois, sublinhar o caráter social, cultural e histórico das
identidades masculinas e femininas, refutando a oposição binária entre
homens e mulheres e redimensionando suas possibilidades de atuação
enquanto sujeitos sociais. Conforme Scott (1995), este conceito seria uma
forma primeira de significar as relações de poder e implicaria em quatro
aspectos que influenciam a questão da construção identitária, a saber: 1)
símbolos culturais que evocam representações múltiplas; 2) conceitos 385
normativos (doutrinas); 3) políticas, instituições e organizações sociais; 4)
identidade subjetiva. Estes aspectos influenciam a construção da identidade
visto que promovem representações e estabelecem padrões de conduta
femininos e masculinos.

Os usos do gênero na teoria feminista promoveram uma maior aproximação


com o campo cultural dadas as análises das simbologias, representações e
sentimentos, percebidos como partes integrantes da construção das
subjetividades e, por conseguinte, das identidades.

Mulheres e educação: historicizando a feminização do magistério e


os padrões de gênero no âmbito da profissão docente
Durante um longo período histórico a educação esteve estritamente
destinada e ministrada por homens, sobretudo religiosos (como os jesuítas)
e/ou tutores. O ensino e aprendizado não eram considerados necessidades
femininas dada sua limitação à esfera privada e dada sua destinação ao
matrimônio e maternidade. Ademais, a inteligência, racionalidade e
sagacidade necessárias para a efetivação da educação, eram percebidas
como atributos exclusivamente masculinos. A inclusão da meninas nas
classes escolares, a chamada co-educação, se deu de maneira lenta,
culminando por desencadear a necessidade de mulheres para reger as
turmas femininas. No século XIX, com a abertura do espaço letivo para as
meninas e mulheres, se dá início ao processo então conhecido como
feminização do magistério (ARCE, 2001; ROSA, 2011).

Após a proclamação da república, no século XX, o processo de inserção


feminina no magistério, que se alicerçava desde o século precedente,
começa se consolidar. Neste período propaga-se o discurso de progresso no
país, aumentando, portanto, seu compromisso com a educação. Dá-se
então, o aumento do número de vagas nas escolas e a autorização para que
meninas (alunas) e mulheres (professoras) começassem a frequentar estes
ambientes. As classes eram separadas por sexo e meninas e meninos
recebiam uma educação diferente; às primeiras eram transmitidos saberes
atrelados às tarefas domésticas e aos segundos, saberes necessários para o
desenvolvimento de atividades em âmbito público. A diferenciação curricular
de meninos e meninas implicava também na diferenciação salarial para
homens e mulheres, uma vez que estes só poderiam lecionar para os sexos
aos quais pertenciam:

“A partir daí a formação de professoras do sexo feminino se fez necessária,


pois os tutores deveriam ser do mesmo sexo que seus alunos. O primeiro
curso de ensino normal das Américas surgiu, então, na cidade de Niterói
(RJ), em 1835, e tinha no seu estatuto alguns pré-requisitos para quem
quisesse cursá-lo como a boa idoneidade moral” (RABELO, 2007, p. 49).

Apesar da desequiparação entre os sexos nesta profissão, em dado


momento os homens começam a abandonar o magistério e paulatinamente
relatórios começam a apontar a superação do número de mulheres
386
matriculadas e formadas nestas escolas com relação ao número de homens.
A esta alteração nos quadros escolares atribuem-se algumas motivações,
dentre as quais destacamos: o aumento da urbanização e industrialização
promovidos pelo advento da república, que propicia aos homens uma gama
maior de oportunidades profissionais mais bem remuneradas; as mudanças
socioeconômicas que reestruturam a sociedade patriarcal do século XX
levando as mulheres à necessidade de trabalhar; o aumento da demanda
escolar decorrente do discurso progressista que conforme os ditames da
modernização exigiam que o governo gastasse menos com professores e,
nesse sentido, as mulheres eram uma mão de obra mais barata (ARCE,
2001; ROSA, 2011).

A profissão docente torna-se interessante às mulheres por lhes permitir


circular desacompanhadas pelo espaço público e pelo fato de se configurar
como uma alternativa ante o acesso restrito ou mesmo inexistente às
demais profissões, promovendo, dessa forma, um movimento
emancipatório para as mesmas. Contudo, paradoxalmente, a abertura do
magistério às mulheres pode apresentar ainda uma noção implícita de
controle, visto que ainda que saíssem do domínio privado para a esfera
pública, ao lidar com as crianças, as mulheres não estariam expostas à
contatos nocivos à manutenção do status quo patriarcal. Ademais, o
magistério era compreendido como uma tarefa extra-doméstica e
transitória, uma preparação para as reais funções femininas conforme o
pensamento pungente em tal contexto: a maternidade e o matrimônio. A
inserção feminina na profissão docente suscita diferentes posicionamentos,
uns contra, outros a favor, porém todos marcados por uma ótica machista:

“Entretanto, este processo não se deu de forma tão tranquila, a


identificação da mulher com a atividade docente gerou muitas discussões,
disputas e polêmicas. Destinar as mulheres consideradas despreparadas
intelectualmente para educar o futuro da nação era considerado pura
insensatez para alguns. Já outros argumentavam em direção oposta,
afirmando que as mulheres tinham “por natureza” o jeito e o cuidado para
lidarem com as crianças, portanto nada melhor que responsabilizá-las pela
educação escolar dos pequenos. Outro forte argumento propagado era que
os lares não sofreriam a ausência feminina e a inserção na docência não
alteraria seu papel social, visto que cuidar de crianças e educá-las era o
destino que se esperava que fosse cumprido por elas” (ROSA, 2011, p. 8)

Apesar de tais discussões, por motivações de cunho político que tornavam


inevitáveis os processos de feminização do magistério, os discursos que
apontavam para as mulheres a responsabilidade educacional sobressaíram-
se através da promoção de concepções que associavam estas à
maternidade, às ideias de vocação e sacerdócio, estabelecendo
características supostamente femininas como pré-requisitos para a
profissão. Desse modo, representações e estereótipos construídos através
de habilidades, características, comportamentos e atitudes delimitam o que
consiste ser mulher/ser professora. Atributos como paciência,
minuciosidade, afetividade e discrição, definidos como essencialmente
femininos, eram considerados indispensáveis para a carreira docente.
Diante disso, o mito do amor materno, da educadora nata e do destino aos 387
cuidados domésticos são reforçados através das representações e
estereótipos docentes:

“Considerando, assim, o mito como uma síntese simbólica de imagens,


valores, sentimentos e aspirações coletivas, entendo que ele constitui um
fenômeno sócio histórico real, que desempenha um papel objetivo na
atividade social, ainda quando o conteúdo do mito inverta, falsifique e
deforme aspectos da realidade humana. A veracidade do mito reside no fato
de que desempenha o papel de dirigir as ações dos homens e não no seu
conteúdo propriamente dito. Entretanto, para que o mito desempenhe esse
papel, isto é, para que ele tenha o caráter de mito, é necessário que ele
esteja revestido de um caráter sagrado, o que impede seu questionamento
e torna-o mais do que pragmático, torna-o impositivo” (ARCE, 2001,
p.169).

Para além das representações sobre a feminilidade e docência, Arce (2001)


aponta as contribuições para a manutenção do mito da educadora nata
dadas por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Friedrich Froebel (1782-
1852) e Maria Montessori (1870-1952), pensadores da educação que foram
influentes no Brasil. Em linhas gerais, este primeiro conduz suas
argumentações acerca da educação pautando-se em aspectos biológicos da
mulher, recaindo, pois, à concepções inatistas; o segundo define a
professora não como uma profissional mas como uma meia mãe que
entende dos interesses e necessidades da criança, trata-se de uma rainha
do lar substituta, aquela que na ausência da mãe exerce suas funções, seria
conforme este a chamada jardineira; a terceira absorve o mito da
maternidade e a psicologia do desenvolvimento, que fornecia o cunho
científico necessário para que a mulher passasse de mera jardineira
conforme a concepção dada por Froebel, para a categoria de mestra. Apesar
deste acréscimo, Montessori afirmava que a função da mulher não era a de
ensinar, mas apenas orientar e facilitar o processo de aprendizagem
conforme os interesses e necessidades das crianças e, portanto, não caberia
dar ênfase à formação teórica docente.

A qualificação para exercer a carreira docente, conforme os discursos


difundidos no século XX e que ainda apresentam resquícios na
contemporaneidade, se torna um conceito que distancia-se da questão da
formação profissional ou mesmo das demandas técnicas/teóricas que o
cargo exige, para se apresentar enquanto construção social. Nesse sentido,
não apenas os aspectos técnicos são considerados, mas também os
atributos da trabalhadora (no caso, a professora), tais quais sua
personalidade, suas experiências de vida, suas condições étnicas,
geracionais, econômicas, culturais, sociais e seu gênero. Ou seja, a ideia de
qualificação ultrapassa a questão da escolarização e formação profissional,
e atrela-se às relações sociais e suas implicações nas trajetórias dos
sujeitos:

“Neste sentido, acrescenta-se que a qualificação – na perspectiva de


construção social – passa a ser reconhecida não somente pela base técnico-
388
científica do processo de trabalho, mas também, em especial, passa a ser
considerada resultante das relações sociais estabelecidas entre pessoas
portadoras de distintas trajetórias e características. Assim, nas condições de
gênero, como o trabalho realizado por homem ou mulher é diferentemente
reconhecido entre grupos e sociedades, dependendo dos sujeitos e das
relações em jogo, o trabalho será mais ou menos valorizado [...]” (DURÃES,
2012, p.275).

A mulher é identificada como a mais bem preparada para educar as


crianças dadas suas habilidades supostamente inatas, o que implica em
desvalorizar a formação teórica das educadoras uma vez que estas teriam
capacidades naturais para o desempenho das funções no magistério. Tal
ideário desencadeia a noção da educação como algo a-profissional,
promovendo, portanto, o desprestígio social desta área.

Considerando a história como um processo de rupturas e permanências,


deve-se considerar os efeitos sintomáticos presentes na sociedade
contemporânea decorrentes do processo de feminização do magistério
iniciado no século XIX e consolidado no século seguinte. A carreira docente
é ainda caracterizada como essencialmente feminina, fator que influencia as
possibilidades de identificação profissional femininas, restringindo o campo
de atuação das mulheres. Ademais, a desqualificação profissional, os
poucos investimentos na educação e a desvalorização dos (as) profissionais
da área são aspectos que, dentre outras motivações, configuram-se como
reflexos de tais configurações históricas:

“São estas mesmas mulheres estereotipadas e discriminadas, que lutaram e


lutam para garantirem seus espaços na sociedade, que hoje são maioria
conduzindo nossas salas de aulas e com a responsabilidade de educar
nossas crianças. Atualmente, é um fato já confirmado que as mulheres são
maioria lecionando na Educação Infantil e Anos Iniciais. De acordo com o
INEP, os níveis de creche, de pré-escola e de 1ª a 4ª séries do fundamental
concentram maioria feminina, com porcentagens 97,9 %, 96,1% e 91,2%,
respectivamente [...]” (ROSA, 2011, p. 5).

A associação da docência ao trabalho doméstico, que sob a ótica patriarcal


se configura como obrigação feminina; a fusão entre as ideias de
público/privado e o preconceito com o trabalho manual e com o cuidar, no
que se refere à alimentação e higiene, por exemplo, são fatores que aliados
aos estereótipos promovidos pela cultura machista perpetuam a divisão
sexual do trabalho e a manutenção da tríade mãe-mulher-pedagoga.
Considerações finais
Conforme salientou-se durante o desenvolver deste artigo, a feminização do
magistério apresenta-se como um dos reflexos de uma sociedade patriarcal
pautada por determinações quanto às identidades de gênero dos sujeitos
sociais. Os discursos que naturalizam fenômenos sociais, atribuindo
comportamentos dos indivíduos à aspectos de cunho biológico tendem a ser
reducionistas e promotores de concepções enviesadas, que essencializam as 389
categorias identitárias e as homogeneízam em seu interior, desencadeando,
por exemplo, os binarismos de gênero. No bojo de tais matrizes discursivas,
que advém de diversos canais conforme já ressaltamos, localiza-se a
construção das estereotipações sobre o ser mulher e ser professora. Cabe
destacar que tais discursos não surgem de forma despretensiosa, mas são
elaborados com intencionalidades específicas, tendo, portanto, um cunho
político, que perpassa pelas relações de poder existentes
sóciohistoricamente.

O processo de feminização do magistério aqui abordado traz implicações


educacionais ainda na contemporaneidade: a associação maternidade-
pedagogia nas classes universitárias e nos anos iniciais da educação básica
ainda é característica latente. O número de mulheres na Educação Infantil e
nos primeiros anos do Ensino Fundamental segue superior ao de homens e,
por conseguinte, a presença masculina causa estranheza. Paradoxalmente,
os cargos de poder na educação, em secretarias e ministérios, seguem
majoritariamente ocupados por homens.

Destaca-se, portanto, o fato de as mulheres ainda sofrerem as violências


simbólicas desencadeadas pela cultura machista, que desencadeia
hierarquias entre os gêneros, relegando sempre o feminino a situações de
submissão e desprestígio social.

Referências
Patrícia Rocha Carvalho é atualmente Pós-Graduanda em História,
Sociedade e Cultura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Possui licenciatura em História pela Universidade de Santo Amaro
(UNISA) e em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Atua
profissionalmente como Professora de Educação Básica da Rede Estadual de
Ensino de São Paulo, lecionando as disciplinas de História e Filosofia.

ARCE, Alessandra. Documentação oficial e o mito da educadora nata na


educação infantil. Cadernos de Pesquisa, n.113, 167-184, julho, 2001.
DURÃES, Sarah Jane Alves. Sobre algumas relações ente qualificação,
trabalho docente e gênero. Educação e Sociedade, Campinas, v.33, n, 118,
271-288, janeiro-março, 2012.
MONTENEGRO, Thereza. Diferenças de gênero e desenvolvimento moral das
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julho-dezembro, 2003.
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PINSKY, Carla. Estudos de Gênero e História Social. Revista Estudos
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RABELO, Amanda Oliveira. Mulher e docência: historicizando a feminização
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ROSA, Renata Vidica Marques da. Feminização do magistério:
390
representações e espaço docente. Revista Pandora Brasil, São Paulo, ed.
Especial n. 4, 2011.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
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SOIHET, Rachel. Violência Simbólica – Saberes masculinos e representações
femininas. Estudos Feministas, Florianópolis, v.5, nº 1, 07-29. 1997.
GÊNERO E SEXUALIDADE: UMA TEMÁTICA RELEVANTE NO
ENSINO DE HISTÓRIA
Rafaela L. Oliveira e Darcylene Pereira Domingues

No presente trabalho pretendemos abordar uma reflexão a respeito da


problemática que inclui os conceitos de gênero, sexualidade e ensino de
história, para tanto questionamos: por que os debates sobre a inclusão da 391
discussão da temática Gênero e Sexualidade como transdisciplinaridade nos
componentes curriculares vêm despertando discursos antagônicos,
controversos, intolerantes e preconceituosos por parte da sociedade? As
discussões sobre a temática de gênero na contemporaneidade vêm
ganhando maiores adeptos e pesquisadores, principalmente nas últimas
décadas, porém ainda encontramos discursos que desqualificam as
produções existentes. Além disso, o gênero no ambiente escolar brasileiro
durante muitos anos apresentou-se como um assunto irrelevante para
aquele espaço e consequentemente acabou negligenciado pelos educadores.
Atualmente, o diálogo que poderia ocorrer na escola é duramente
combatido por um projeto de lei intitulado Programa Escola sem Partido que
discuti diversas propostas, incluindo o gênero, de maneira encoberta e
totalmente despreparada. Discursos falaciosos são facilmente localizados
nas redes sociais e em ambientes públicos e infelizmente, apresentam uma
concepção totalmente distorcida a respeito do conceito de gênero.

Além disso, são escritos muitas vezes por pessoas públicas ou profissionais
da saúde, como por exemplos psicólogos e psicanalista, que recortam
trechos de diferentes teóricos a respeito de inúmeros temas numa tentativa
de fundamentar suas concepções, resultando numa mescla horrível
denominada “ideologia de gênero” uma falácia encontrada facilmente em
sites. Associada a está temática de gênero, está à sexualidade, que possui
diversas formas de interpretações na nossa sociedade, como por exemplo, a
mercantilização dos corpos que faz com que determinadas partes sejam
banalizadas.

Ao longo da história as mulheres reivindicam seu espaço na sociedade,


considerada muitas vezes como sexo frágil e dependente do sexo
masculino, as mulheres lutam para desmistificar esses termos. É a partir do
final do século XIX com o surgimento do movimento feminista, que se têm
as primeiras mobilizações exigindo os direitos políticos sociais e econômicos
das mulheres, como enfatiza Louro: “Desencadeava-se uma luta que,
mesmo com distintas caras e expressões, poderia ser sintetizada como a
luta pelo direito de falar por si e de falar de si. Esses diferentes grupos,
historicamente colocados em segundo plano pelos grupos dominantes,
estavam e estão empenhados, fundamentalmente, em se auto representar”
(LOURO, 2008, p. 20).

Para a autora, a figura masculina, branca e heterossexual foi e ainda


continua sendo o protagonista principal na construção da história, assim
este homem não representa as necessidades especificas dos diversos
grupos existentes. Outra autora que contribui para a reflexão sobre a
história das mulheres é Joan Scott que afirma “Por isso reivindicar a
importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as
definições de histórias e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”
(SCOTT, 1995, p.80). O estudo histórico de gênero não pode separar o
feminino do masculino para compreender uma sociedade, pois as relações
sociais de ambos os sexos encontrassem interligadas, como afirma Scott
392
“as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e nenhuma
compreensão de qualquer um poderia existir através de estudo inteiramente
separado” (SCOTT, 1995, p 333). Essa nova forma de observar a sociedade
e de fazer história dependeria da maneira como o gênero seria desenvolvido
como uma categoria de análise. Além disso, acreditamos que a discussão de
gênero no ambiente escolar é assunto de fundamental relevância
principalmente porque segundo Pinsky: “Talvez até passem por todas as
séries escolares sem nenhum contanto com um dos conceitos mais
instigantes presentes na historiografia das últimas décadas, desde que ficou
claro que as relações de gênero são uma dimensão importantíssima das
relações sociais. Tal lacuna é grave, pois um olhar atento a questões de
gênero enriqueceria muito as aulas de História” (PINSKY, 2010, p. 32).

Outro tema que vêm sofrendo discriminações é à sexualidade, que possui


diversas interpretações dentro da sociedade e que na maioria das vezes é
mal compreendida. Nesse sentido Louro afirma que: “a sexualidade
permaneceu como alvo privilegiado da vigilância e do controle das
sociedades. Ampliam-se e diversificam-se suas formas de regulação,
multiplicam-se as instancias e as instituições que se autorizam de ditar-lhes
normas” (LOURO, 2008, P. 21).

De acordo com a autora, essa vigilância faz com que determinadas partes
do corpo sejam vistos como normais e outras sejam demonizados por esta
cultura social que vivenciamos. Por pertencermos a uma sociedade
patriarcal, conservadora e fundamentada nos dogmas católicos ainda nos
tempos de hoje, gênero e sexualidade entre outros assuntos, são temas que
sofrem discriminações ao serem abordados nas instituições escolares.

Nesse sentido, dialogando com a autora, o papel da família, da escola,


igreja, instituições legais e médicas, possui uma relevância nesse processo
constitutivo. Atualmente assuntos como gênero e sexualidade não são
pautas dos diálogos nas salas de aula, isso ocorre a inúmeros fatores,
dentre eles regras das escolas, políticas e culturais.

Historicamente as disciplinas escolares como atualmente concebemos,


organização de um conjunto de saberes, iniciam seu processo de idealização
como nos afirma Fonseca (2006) somente durante o período da Idade
Média. Assim, os suportes que tinham o interesse de manter o discurso do
passado, além da manutenção de uma moral e sentimento de civilidade
foram largamente utilizados. Sendo assim, segundo Jörn Rusen “a escrita
da história era orientada pela moral e pelos problemas práticos da vida, e
não pelos problemas teóricos ou empíricos da cognição metódica” (RÜSEN,
2006, p.7). Neste sentido, a história era tida desde Sêneca como “historia
vitae magistra” e somente no século XIX é concebida como ciência
fortemente fundamentada na sua gênese teórica e metodológica na Europa,
com influências do Historicismo alemão e dos escritos franceses de Langlois
e Seignobos.

Assim, num processo paulatino de reconhecimento e solidificação a ciência


histórica se consolida ao longo dos séculos, principalmente na Europa,
entretanto, segundo Rüsen é a partir do século XIX que “os historiadores 393
definiram sua disciplina, eles começaram a perder de vista um importante
princípio, saber que a história é enraizada nas necessidades sociais para
orientar a vida dentro da estrutura tempo” (RÜSEN, 2006, p.7). Dessa
forma, quando o ensino de História chega no Brasil, o seu interesse inicial
não é orientar os indivíduos de acordo com suas carências, ao contrário
será devido a necessidade de uma História nacional, largamente difundida
pelo espaço escolar, partir do século XIX, visto que durante muitos séculos
a educação não era considerada uma política necessária em nosso território.
Nacionalmente é só partir dos anos de 1990 que o país irá se dedicar a
debater de maneira mais enfática diversas práticas discriminatórias
presentes na educação. Nesse sentido, o próprio Ministério da Educação
promove diversos incentivos, debates e discussões com o intuito de superar
os preconceitos e as discriminações na instituição escolar em função de
diferenças que marcam os sujeitos. Devido a estas mobilizações foi possível
a elaboração de documentos oficiais que teriam a finalidade de proporcionar
uma educação mais inclusiva e igualitária.

A História de Gênero estuda as relações sociais entre mulheres e homens


que constroem culturalmente regras de convívio em uma determinada
sociedade. Utilizamos o conceito de gênero como instrumento de análise
porque em primeiro lugar decidimos fazer uma história de homens e
mulheres pois esses constituem-se em sujeitos sexuais e que estão em
processos nos quais os dois estão interligados. Esse enfoque que a pesquisa
de gênero trouxe nas últimas décadas é relevante, pois as identidades
masculinas e femininas se encontram determinadas dentro de um grupo,
espaço ou tempo e dessa forma são característicos do seu período.

Denominados de Parâmetros Curriculares Nacionais, tinham a função de


destacar a pluralidade cultural, de forma transversal do tema, porém
houveram muitas críticas a este plano de ensino devido à forma que foi
elaborado. Como salienta Zarbato, sobre os Parâmetros Curriculares
Nacionais: “Os PCN´s tenham em 1998 iniciado algumas proposições para a
inserção da questão de gênero, de certa forma, restringiu para os Temas
Transversais relacionando com a saúde e sexualidade” (ZARBATO, 2014, p.
50). A autora faz assim uma crítica quanto à forma que foi introduzido o
tema nos currículos escolares, não ocorrendo os debates necessários que
poderiam amenizar as carências escolares existentes. Também precisamos
salientar as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica
do ano de 2010 que são normas que assumem o caráter de obrigatoriedade
pelos mecanismos da implementação, para o planejamento dos currículos
escolares fixados pelos Conselhos Nacional de Educação (CNE).
Segundo Saviani (1998), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
considerada como a lei maior da educação no país, define as linhas mestras
do ordenamento geral da educação brasileira. Umas das suas principais
medidas de politica educacional é sem duvida o Plano Nacional de
Educação, que se tornou uma referencia para avaliar a política educacional,
como mostra trecho do livro: “Sua importância deriva de seu caráter global,
394
abrangentes de todos os aspectos concernentes á organização da educação
nacional, e de seu caráter operacional, já que implica a definição de ações,
traduzidas em metas as serem atingidas em prazos determinados dentro do
limite global de tempo abrangido pelo Plano que a própria LDB definiu para
um período de dez anos” (SAVIANI, 1998, p. 3).

Após a introdução da LDB de 1996, os currículos escolares tiveram


importantes mudanças, entre as quais, a introdução do ensino de história e
cultura afro-brasileira, africana e indígena, do ensino de direito das
crianças; do ensino da música; e do ensino da filosofia e sociologia.
Levando em consideração o que prevê a lei 9.394 de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, destaco o
titulo II Dos Princípios e fins da Educação Nacional: “Art.2° A educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho” (LDB, 2015. P 9).

Segundo a Base Nacional Comum Curricular sobre o ensino de história, no


ensino fundamental tem o objetivo de estimular a autonomia de
pensamento e a capacidade de reconhecer que os indivíduos agem de
acordo com a época e o lugar que vivem de forma a preservar ou
transformar seus hábitos e conduta. A diversificação de sujeitos e histórias
estimula o pensamento crítico, a autonomia e a formação para a cidadania.
Para realizar discussão da BNCC foi utilizado a análise de conteúdo proposta
por Roque Moraes, pois acreditamos que a partir das categorias criadas
poderemos evidenciar as possíveis formas de abordagem dos conteúdos
referentes ao gênero no Ensino de História. De acordo com Roque Moraes,
“uma análise textual envolve identificar e isolar enunciados dos materiais a
ela submetidos, categorizar esses enunciados e produzir textos, integrando
nestes, descrição e interpretação (...)” (MORAES, 2007, p.98).

O presente texto tem a intenção de demonstrar que o debate de gênero e


sexualidade são fundamentais no ambiente escolar, uma vez que tal
conceito abarca, em si, a história de homens e mulheres uma vez que esses
constituem-se como sujeitos sexuais e que estão em processos nos quais
estão interligados socialmente. Além disso, nos parece evidente que a ideia
de diferença, que transpõe a categoria gênero, diferença entre homens e
mulheres, se produz e é ao mesmo tempo produzida por uma ideia de
diferença que não é universal, mas que se constrói cultural e socialmente, o
que torna inevitável identificar uma relação entre a emergência concreta da
subjetividade nas práticas sociais com a reafirmação dos lugares de gênero.
Assim observamos que “Os historiadores fizeram a historiografia do silêncio.
A história transformou-se em um relato que esqueceu as mulheres, como
se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução inenarrável”
(COLLING; TEDESCHI, 2015, p.300).

Consideramos que essa temática não deva ficar restrita a um determinado


conteúdo, pelo contrário, deverá estar presente no cotidiano do educando
para que ele exerça constantemente a equidade necessária perante o outro.
Além disso, também afirmamos a necessidade da temática de gênero ser 395
incluída, especificamente, no currículo da formação dos professores. Assim
sendo, cremos que o ensino de História deva se apropriar dessas
concepções e discussões que esse conceito pode proporcionar à educação,
trabalhando com noções de diferenças, diversidades e o sentimento de
empatia.

Referências
Mestre Darcylene Pereira Domingues, pelo Programa de Pós-Graduação em
História na Universidade Federal do Rio Grande.
Rafaela L. Oliveira, graduanda do curso de História Licenciatura na
Universidade Federal do Rio Grande.

COLLING, A.M; TEDESCHI, L.A. O Ensino de História e os estudos de gênero


na historiografia brasileira. Revista História e Perspectivas, Uberlândia, p.
295-314, jan./jun. 2015. Disponível em:
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PINSKY, Carla Bassanezi. Gênero. In: __________ (Org). Novos temas nas
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RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir
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ZARBATO, Jaqueline Aparecida Martins. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais e o saber docente: reflexões sobre a produção do conhecimento
histórico. Revista Trilhas da História. Três Lagos, v. 3, nº6, 2014, p. 47-62
A CIDADE DAS DAMAS (1405) E AS REFLEXÕES DE CHRISTINE
DE PIZAN (1363-1430) SOBRE A EDUCAÇÃO FEMININA NO
FINAL DO MEDIEVO
Raiely Godoi Melo e Luciano José Vianna

Introdução: historiografia e História das mulheres


396 O pensamento conferido à Idade Média, tradicionalmente, é entendido como
um período construído social, cultural e eruditamente pelos homens. Estes,
ligados à prática da vida religiosa, ou responsáveis por outros escritos do
gênero secular, produziam quase que exclusivamente os textos dessa época
(FONSECA, 2012, p. 168). De acordo com Klapisch-Zuber:

“Desde os primeiros tempos do cristianismo, partindo destes fundamentos


teológicos do masculino/feminino que carregavam positivamente o primeiro
polo e negativamente o segundo, foram se aglomerando qualidades e
defeitos, vícios e virtudes, condutas fastas e nefastas, considerados como
específicos de um ou outro sexo. Aliás, a literatura medieval comprazeu-se
em detalhar o inventário das características femininas mais do que o das
masculinas. Isto porque desde o início a mulher foi definida por suas
deficiências em relação à natureza humana, que fora realizada de forma
mais completa no homem. Os religiosos que viviam a recusa da carne e a
distância das mulheres retiveram deste catálogo binário sobretudo a
negatividade do polo feminino, com o qual eles alimentaram sua própria
visão misógina da feminilidade. Eles podem assim aumentar o inventário
dos defeitos e dos problemas ligados às mulheres.” (KLAPISCH-ZUBER,
2002, p. 144-145).

Na Idade Média, o olhar que os homens colocavam sobre as mulheres é o


que a constituía em primeiro lugar, pois era necessário passar por este filtro
masculino, que transmitia modelos ideais e regras de comportamentos que
elas não estavam em condições de contestar. Os homens que possuíam a
palavra, homens da religião, clérigos que governavam o escrito,
transmitiam o conhecimento, comunicavam ao seu tempo e para os demais
séculos, o que se devia pensar sobre as mulheres (KLAPISCH-ZUBER, 1992,
p. 16).

Durante boa parte do Medievo, pode-se perceber a presença de uma maior


quantidade de textos misóginos do que em defesa das mulheres, isso
implicou diretamente nas imagens negativas da mulher elaborada pelos
homens (FONSECA, 2012, p. 168). A mulher era vista como Maria ou Eva,
sendo santa ou pecadora. A partir de uma visão masculina, eram
relativamente privadas de direito, em razão das diversas difamações
legadas a elas, dependiam da tutela de um homem e estavam destinadas
aos serviços domésticos, ao matrimônio ou à vida religiosa (COSTA e
COSTA, 2019, p. 12).

Apesar de tradicionalmente o Medievo ser entendido como um período


masculino, hoje se observa em termos acadêmicos que, historicamente, as
mulheres sempre contribuíram como sujeitos ativos em termos históricos.
Sabe-se que algumas mulheres agiam de forma independente, pagavam
impostos, trabalhavam como professoras, escritoras e médicas (COSTA e
COSTA, 2012, p. 12). Por muito tempo, as mulheres estiveram à sombra da
figura masculina, no entanto, a revisão desse paradigma surgiu a partir dos
anos 60-70 do século passado. A história das mulheres está deixando de
lado suas bases elaboradas por fontes de autores masculinos e escolásticos
e privilegiando os registros deixados pelas próprias mulheres (COSTA e 397
COSTA, 2012, p. 13).

Joan Scott, em seu texto História das Mulheres, faz uma contextualização a
respeito do tema, tratando do início de sua consolidação a partir da década
de 60 do século XX. Sua origem esteve intrinsecamente ligada à política,
por meio do movimento feminista, o qual buscava uma história que
colocasse as mulheres como agentes ativas da sociedade (1992, p. 64). A
história das mulheres confronta uma narrativa tida como “verdadeira”, onde
inclui um ser deixado a parte que precisa ser resgatado e lembrado.
(SCOTT, 1992, p. 77) Um ponto importantíssimo a se destacar é que a
história das mulheres não se centrou em vitimizar a mesma, mas em
produzir documentação onde mostra-se a distinção da mulher e comprova-
se a sua capacidade de se fazer história (SCOTT, 1992, p. 83).

Em nenhuma sociedade nascer homem ou mulher é algo neutro, isso é


veementemente trabalhado pela sociedade. Gênero é o produto de uma
reelaboração cultural que a sociedade opera sobre a natureza biológica,
controlando e atribuindo papéis determinados aos sexos (KLAPISCH-ZUBER,
1992, p. 11). Os papéis atribuídos às mulheres são produtos de um sistema
ideológico e não concedidos em função de suas qualidades inatas
(KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 12).

A memória e o resgate do passado


Uma das principais características que se destacam na obras compostas
durante o Medievo, dentre as quais se insere A cidade das damas de Pizan,
é o intenso vínculo com o passado, o qual é resgatado, utilizado, revivido,
adaptado e muitas vezes modificado para suprir necessidades
contemporâneas (SPIEGEL, 1990, p. 59-86). Ao se falar de passado,
necessariamente se observa a presença da memória, a qual, portanto, fazia
parte das produções textuais do Medievo.

Pizan viveu em um contexto literário de intensa aversão ao mundo feminino


e procurou nas memórias do passado uma forma de reverter essa situação.
Segundo Patrick Geary, a memória social é um processo que permitir a
sociedade renovar e reformar sua compreensão do passado a fim de
integrá-lo em seu contexto presente (2002, p. 167). Fazendo um vínculo
com a proposta de Pizan, a construção da cidade das damas consistiu em
resgatar personagens do passado, mulheres que mostrassem os diversos
campos que atuavam, as inúmeras virtudes e os grandes feitos realizados
por elas, que mostrem a mulher como alguém que assim como o homem
também realizou coisas memoráveis. Ela utiliza mulheres da mitologia, das
escrituras sagradas, das mais diversas literaturas. Pizan atribuiu aos feitos
dessas mulheres um significado ímpar para sua obra, não são apenas
modelos, mas há uma simbologia por trás deles, onde a mulher é atuante
nas áreas educacionais em diferentes temporalidades da história, diferente
do que era afirmado a tantos séculos pelos homens.

Outro autor que trabalhou o aspecto da memória em suas obras foi Jan
Assman. Em seu texto Collective Memory and Cultural Indentity, Assmann
398
aborda o conceito de memória cultural, cujo principal aspecto se refere à
preservação da identidade de um determinado grupo e atua como
necessário à formação desta identidade (1995, p. 130). A formação dessa
memória cultural não depende apenas da escrita, mas está alicerçada em
diferentes objetos e formas de transmissão. Portanto, o conhecimento
ligado à memória cultural possui os aspectos de formador da educação e
fornecedor de regras de conduta (1995, p. 132). São estas características
que encontramos na obra de Pizan, a qual analisamos a seguir.

Christine de Pizan (1363-1430) e A cidade das damas (1405)


Embora a temática seja estudada mais recentemente, muitas mulheres
fizeram história ao longo das épocas. Christine de Pizan (1363–1430), filha
de Tommaso di Benvenuto Pisano, nasceu em Veneza – Itália (COSTA e
COSTA, 2019, p. 249), mas, ainda criança, sua família se transferiu para a
França, pois seu pai foi nomeado secretário do rei Carlos V (1364-1380).
Christine viveu sua infância em contato com a vida palaciana, e tendo
acesso à grande biblioteca do monarca. Seu pai foi um grande incentivador
da vida intelectual dela e por meio de sua influência a colocou em contato
com o meio erudito de sua época (COSTA e COSTA, 2019, p. 249).

O livro A cidade das damas (1405) foi produzido diante das diversas obras
literárias de cunho misógino que despertaram em sua autora, Christine de
Pizan, vários questionamentos acerca do pensamento construído sobre a
mulher. A autora nos apresenta outro posicionamento acerca do papel das
mulheres na sociedade, e busca com isso defendê-lo propondo a construção
de uma cidade imaginária levantada com argumentos desconstrutivos em
relação ao pensamento misógino.

Christine de Pizan foi uma mulher que não se contentou em se encaixar no


espaço criado pelos homens para colocar o sexo feminino, um lugar de
desfavorecimento. A sua insatisfação a levou ao mesmo campo no qual os
homens as difamaram, a literatura. E foi nesse terreno que ela
problematizou as questões levantadas pelos homens em relação às
mulheres há tantos séculos, advindas da Antiguidade (KLAPISCH-ZUBER,
2002, p. 144). Uma mulher letrada, que escreveu sobre demografia,
economia, autonomia jurídica, inserção das mulheres na vida produtiva e
intelectual (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 9).

Assim como muitos defensores das mulheres, Christine louvou as mulheres


através de bibliografias de figuras notáveis, muitos retratos femininos do
seu livro A Cidade das damas foram encontrados em Boccaccio em seu livro
Mulheres ilustres (KLAPISCH-ZUBER, 1992, p. 10). O livro de Pizan é
dividido em três partes, onde mantém um diálogo com três damas, Razão,
Retidão e Justiça, as quais fornecem os materiais necessários para a
construção da cidade idealizada por Christine. Esses materiais eram
diversos exemplos de mulheres que fizeram história nos mais variados
campos da sociedade.

Pizan e a educação feminina no Medievo


Nos diálogos que Christine manteve durante toda a obra com as três
damas, podemos perceber que a cidade utópica idealizada por Christine é 399
destinada a uma parte das mulheres de sua época, e não a todas: “Não há,
aliás, nada, nesse mundo daqui de baixo, de que se deva fugir mais, para
dizer a estrita verdade, do que a mulher de vida depravada e perversa.”
(PIZAN, 2012, p. 75). Na proposta de Pizan, eram as mulheres nobres e
virtuosas que habitariam essa cidade, a qual as protegeria dos diversos
ataques misóginos que os escritores da época faziam contra elas. É no livro
A cidade das damas que essa cidade é apresentada e construída
textualmente, onde Christine resgata diversos exemplos de mulheres
virtuosas de diferentes temporalidades, defendendo com esses exemplos as
mulheres do seu tempo, e eternizando-as em seu trabalho textual,
destacando, portanto, um estreito vínculo com o passado como aspecto de
sua escrita historiográfica.

Neste texto, nos debruçaremos sobre as questões relacionadas à educação


feminina no Medievo em seus mais diversos significados, ou seja, em um
sentido amplo de educação. Por exemplo, Pizan destaca que os homens
afirmavam que as mulheres não possuíam capacidades físicas e intelectuais
para atuar na educação da época:

“Mas, ensinai-me, ainda, por favor, se Deus, que lhes concedeu tantas
graças que honram o sexo feminino, não quis honrá-lo, privilegiando
algumas delas com virtudes, grande inteligência e saber. Desejo muito
saber se seriam possíveis tais habilidades, pois os homens afirmam que as
mulheres são dotadas de fraca capacidade intelectual” (PIZAN, 2012, p.
126).

Vale ressaltar que a educação na Idade Média tinha um caráter diferente do


que temos atualmente. A educação não se resumia ao letramento, mas
estava ligada a vários âmbitos da sociedade: a educação cavalheiresca,
religiosa, intelectual, entre outras, as quais estão presentes na obra de
Pizan.

Segundo Christine, a natureza da mulher consiste em ser simples,


comportada e honesta (PIZAN, 2012, p. 75), portanto, a principal virtude
feminina que regia a sua vida era o amor a Deus e o temor contra o pecado
e desobediência dos mandamentos. Por isso, segundo Pizan, as meninas
deviam ser educadas desde cedo a serem obedientes a Deus,
principalmente mantendo-se puras de corpo e alma (PIZAN, 2012, p. 98).
Essa era a primeira educação legada às mulheres, e que determinava
aquelas virtuosas ou não. Neste trabalho, destacaremos duas perspectivas
educacionais femininas presentes na fonte: o contexto militar e o contexto
intelectual.
O contexto militar
Pizan relata sobre mulheres educadas para o exercício e prática das armas,
as quais eram dotadas de grande força física. Exemplo disso é a rainha
Semíramis, outra personagem resgatada por Pizan, que cavalgava ao lado
de seu esposo, o rei Nino, o qual morreu ainda muito jovem, deixando a
responsabilidade de seu cargo à sua esposa, a qual agia com muita força,
400
coragem e firmeza, conservando tudo que seu esposo havia deixado com
grande disciplina e ordem de cavalaria, essa dama possuía grande vigor e
não esmorecia frente ao perigo (PIZAN, 2012, p. 99).

As amazonas foram outro exemplo de mulheres que viveram por meio da


prática militar e que foram recuperadas do passado por Pizan. Privadas de
seus maridos e filhos por consequência da guerra, decidiram viver em um
país que somente fosse habitado por mulheres, foi por meio de disciplina
militar, seguida de grande sabedoria, prudência, coragem, e proeza que
essas mulheres se tornaram temidas pelos homens em todo o mundo
(PIZAN, 2012, p. 102).

Um último exemplo que destacamos sobre o aspecto militar é com relação a


personagem Zenóbia. Segundo Pizan, Zenóbia, dama que desde a infância
manifestava proeza e coragem de cavalaria, deixou as cidades e morava
nos bosques e florestas, onde ali enfrentava os perigos selvagens sem
nenhum temor. Após ter se casado enfrentava as batalhas junto com seu
marido e, ao ficar viúva, corou-se imperadora e governou com muita
habilidade e proeza de cavalaria o seu reino. Além de possuir excelente
habilidade militar, essa dama era dotada de grande nobreza, retidão e
honestidade. Sempre que podia ela dedicava-se intensamente aos estudos e
foi instruída pelo filósofo Longino, o qual a iniciou no estudo da filosofia
(PIZAN, 2012, p. 114).

Percebemos por meio desses exemplos que a educação militar era existente
também no meio feminino, e não se concretizava apenas pela força, mas
estava intrinsecamente ligada ao comportamento, as virtudes, a forma de
se portar frentes aos diversos acontecimentos. Pizan resgata, então, tais
personagens do passado para utiliza-las em seu contexto.

O contexto intelectual
Em diversos momentos de sua obra, Pizan destaca o protagonismo de
personagens femininas em relação ao âmbito intelectual. Por exemplo, a
Imperatriz Nicole, personagem resgatada por Pizan, foi uma mulher
especialista nas Letras e nas Ciências que reinou nas terras dos antigos
faraós, e jamais foi visto homem de saber comparável. Ela governava com
prudência e sabedoria, promulgou ela mesma as justas leis que
governavam o seu povo (PIZAN, 2012, p. 93). Essa mulher mostrou grande
domínio do direito em seu governo.

Na proposta educacional de Pizan para a educação feminina, a autora


afirma:
“Vou repetir e não duvides do contrário, pois, se fosse um hábito mandar as
meninas à escola e ensinar-lhes as ciências, como o fazem com os meninos,
elas aprenderiam e compreenderiam as sutilezas de todas as artes e de
todas as ciências tão perfeitamente quanto eles.” (PIZAN, 2012, p. 126).

E continua:
401
“Sem dúvida, é por elas não experimentarem coisas diferentes, limitando-se
às suas ocupações domésticas, ficando em casa, e não há nada mais
estimulante para um ser dotado de inteligência do que uma experiência rica
e variada.” (PIZAN, 2012, p. 127).

Continuando em seu resgate de exemplos do passado, Christine cita


exemplos de mulheres que tiveram a oportunidade de frequentar a escola,
como a nobre virgem Cornifícia, e que demonstraram possuir grande
capacidade intelectual, maior até mesmo que alguns homens. Esse exemplo
citado por Pizan, nos mostra que ela propunha em sua obra que as
mulheres também fossem enviadas às escolas, assim como os homens,
para que pudessem crescer sendo educadas em plena erudição. Segundo
Pizan, a nobre virgem Corníficia foi enviada à escola desde cedo pelos seus
pais e dedicou-se às Letras, onde tomando gosto por tal saber, esforçou-se
tanto que se tornou uma grande poetisa. Essa dama não se contentou
apenas em aprender a teoria, mas quis colocá-la em prática, escrevendo
diversas obras memoráveis (PIZAN, 2012, p. 128). Pizan mostra, dessa
forma, que a erudição deveria ter resultados, e não apenas por
autorrealização intelectual, mas que esse conhecimento fosse praticado
naquela sociedade.

Uma última personagem que destacamos em relação ao aspecto


educacional é Proba. Ao falar sobre a romana Proba, que se tornou uma
grande poetisa, Pizan nos fala que essa mulher resolveu colocar, em versos
harmoniosos, os dez livros das sagradas escrituras e as histórias do Velho e
Novo Testamento. Para isso, ela pôs-se ao trabalho, lendo ora o poema
Búcolicos, ora o Geórgicas, ou a epopeia Eneida (2012, p. 128), leituras
essas que, ao serem citadas por Pizan, podemos perceber que faziam parte
também da sua proposta educacional, como referências intelectuais para
aquelas mulheres. Ademais, Pizan destaca que Proba conseguiu aprender as
sete artes liberais, as quais correspondiam às disciplinas “curriculares” da
Idade Média. Portanto, essa dama tinha conhecimento da gramática,
retórica e dialética, o trivium, da aritmética, geometria, música e
astronomia, o quadrivium. Christine cita ainda que essa mulher possuía
completo e profundo conhecimento dos livros sagrados e das Sagradas
Escrituras, sendo ainda mais estimada, uma vez que muitos intelectuais da
época não possuíam tal conhecimento. Essa afirmação mostra a importância
desse conhecimento dos livros sagrados na educação intelectual medieval
(2012, p. 130).

Considerações finais
Ao se voltar para o passado, Pizan resgata a memória de diversas mulheres
mostrando-nos a forte presença feminina em diversas áreas consideradas,
em seu contexto, de presença masculina: nas letras, no direito, na filosofia,
poesia, retórica, pintura, magia, jardinagem, agricultura, entre outras.
Resgatando as ideias de Assmann e Geary que vimos no começo deste
trabalho, a recuperação do passado alimenta a explicação do presente, e é
por meio dessas histórias do passado que Christine dá sustentação a sua
proposta educacional, recorrendo ao que já aconteceu para contradizer uma
402
posição tomada pelos intelectuais da época, que não condizia com a
realidade.

A cidade das damas é um livro ímpar para os estudos sobre a mulher no


final do Medievo. Pizan se utiliza de uma narrativa literária, reiterando-se de
memórias do passado, para retirar a mulher da sombra da figura
masculinas, do esquecimento cultural. Christine de Pizan aborda em sua
obra diversos exemplos que nos mostram a mulher como detentora do
saber, e ao ir se referindo a essas mulheres ela nos mostra um modelo
educacional a ser seguido. Uma educação que é voltada para os âmbitos
militares e intelectuais. Para Pizan, proporcionar o acesso à educação
intelectual às mulheres era a grande questão em uma sociedade que
limitava os espaços de atuação social dessas, mas, uma vez que isso era
concedido elas mostraram suas grandes capacidades.

Em sua obra como um todo, a autora problematiza diversos espaços de


atuação educacional da mulher, que não se limitavam apenas ao
letramento, mas estavam intrinsecamente ligados aos diversos âmbitos da
sociedade e muitas mulheres se capacitaram e atuaram fortemente. Nas
artes, musicalidade, trabalhos manuais, letras, direito, práticas militares,
poesia, filosofia, oratória, magia, jardinagem, agricultura, entre outras.

Referências
Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da
Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas
Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus
Petrolina. Doutor em Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat
Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’Estudis Medievals
(UAB-IEM). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em
Medievalística (UPE/campus Petrolina).
Raiely Godoi Melo é graduanda do Curso de História da Universidade de
Pernambuco/campus Petrolina e integrante do Spatio Serti – Grupo de
Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Atualmente
realiza seu projeto de Iniciação Científica como bolsista do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sob a
orientação do Prof. Dr. Luciano José Vianna, cujo título é “Reflexões sobre a
educação feminina no Medievo: uma análise da obra A cidade das damas
(1405) de Christine de Pizan (1363-1430)”.

Fonte
PIZAN, Christine. A cidade das damas. Trad. Luciana Eleonora de Freitas
Calado Deplagne. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012.
Bibliografia
ASSMANN, Jan. Collective Memory and Cultural Identity. New German
Critique, No. 65, p. 125-133, 1995.
COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres
intelectuais na Idade Média: entre a medicina, a história, a poesia, a
dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. Porto Alegre: Editora Fi,
2019. 403
FONSECA, Pedro C. L. Fontes literárias da difamação e da defesa da mulher
na Idade Média: Referências obrigatórias. Série Estudos Medievais 2: Fonte.
pp. 168-188, 2009.
GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude
(eds.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. II. São Paulo:
EDUSC, 2002, p. 167–181.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Introdução. In: História das Mulheres. A
Idade Média. Organizadores: Georges Duby e Michelle Perrot. Porto:
Edições Afrontamento, 1992, p. 9-23.
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/feminino. In: LE GOFF, Jacques e
SCHMITT, Jean Claude (eds.). Dicionário temático do Ocidente Medieval.
Vol. II. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 137-150.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: A escrita da História. Novas
perspectivas. Peter Buker (Org). São Paulo. Editora Unesp, 1992, p. 63–95.
SPIEGEL, Gabrielle M. History, Historicism and the Social Logic of the Text.
Speculum, 65/1, pp. 59-86.
O AVESSO DO ORDINÁRIO: TRATANDO SOBRE GÊNERO EM
SALA DE AULA A PARTIR DO ESTUDO SOBRE A CONDIÇÃO DA
MULHER NO BRASIL COLONIAL
Raimundo Nonato Santos de Sousa

Se distanciando das narrativas que concebem a mulher como um simples


404 sujeito reprimido e silenciado, o presente texto objetiva apontar a
possibilidade de se lançar outro enfoque sobre a figura feminina na história
do Brasil Colonial, apresentando concomitantemente uma proposta de
atividade para promover a discussão sobre a condição da mulher na
sociedade brasileira durante as aulas de História. A proposição dessa
atividade decorre da necessidade que os educadores têm hoje de incluir na
sua prática de ensino questões presentes no cotidiano do seu alunado. Para
tanto, inicialmente será apresentado um panorama sobre a condição social
da mulher no período colonial do Brasil. E em seguida, a atividade proposta
será apresentada. No que diz respeito a ela, cabe salientar que, ainda que,
essa proposição tenha um direcionamento voltado para os alunos do Ensino
Médio, ela pode ser adaptada e aproveitada também em turmas do Ensino
Fundamental II.

Entre normas e desvios: A mulher no período colonial brasileiro


No início da colonização do território que configuraria o atual Brasil,
faltavam mulheres brancas com quem os portugueses colonizadores
pudessem se relacionar e gerar uma descendência lusitana para povoar
essas terras. Isso forçou a Coroa Portuguesa a tomar a decisão de enviar
mulheres brancas para a Colônia como uma estratégia de evitar a
mestiçagem e, de consequentemente, garantir a proeminência das raízes
luso-europeias no povoamento desse território. Assim, no Brasil Colonial, as
mulheres brancas tinham a importância apoiada na sua capacidade de
proporcionar a transmissão dos padrões étnico e culturais de Portugal aos
descendentes dos colonos.

Nesse período, as estratégias de disciplinamento dos corpos, de vigilância e


de controle lançadas sobre as mulheres tinham forte presença no contexto
colonial, pois conforme a historiadora Mary Del Priore (1993) “[...] adestrar
a mulher fazia parte do processo civilizatório e no Brasil este adestramento
fez-se a serviço do processo de colonização” (DEL PRIORE, 1993, p. 27).
Isso ocorria porque se desejava dar continuidade na Colônia a uma
preocupação, existente desde há muito na Metrópole: a de conformar as
mulheres a um modelo ideal de mulher ibérica. Assim, as mulheres eram
constantemente lembradas de que elas deveriam demonstrar sutileza,
castidade, obediência, fidelidade marital e, sobretudo, sujeição à autoridade
masculina, a despeito da crença que existia na época de que ao sul dos
trópicos não havia pecado (VAINFAS, 1988).

A mulher era encarada pela sociedade colonial como indigna de confiança.


Por isso, ela sempre estava acompanhada pelos pais, irmãos e maridos em
muitas situações da sua vida (ARAUJO, 2008). Isso representava a
vigilância e o controle lançados sobre as mulheres, a fim de que as suas
pulsões pecaminosas fossem reprimidas. Nesse sentido, as leis do Estado, a
Igreja e a coerção informal da comunidade também se encarregavam da
função de disciplinar a mulher na Colônia, ajustando seu comportamento ao
modelo ideativo, há pouco tratado.

Além disso, as mulheres precisavam também adequar seus


comportamentos, desejos e sentimentos às regras de moral e dos bons 405
costumes predominantes na época, visto que a obediência a essas
normatizações as tornavam qualificadas moralmente para serem
consideradas como honráveis e dignas de respeito. No tocante a isso,
muitas qualidades eram consideradas como fundamentais para as mulheres,
tais como a obediência, a discrição e o autoconhecimento da sua condição
inferior em relação aos homens.

Em vista disso, as mulheres precisavam ser discretas em todos os aspectos


da sua vida, especialmente em relação à sua sexualidade que não deveria
ser publicizada através de manifestações explícitas ou tácitas. Essa
proibição tinha o intento de promover o disciplinamento do corpo e da
mente da mulher e ocorria porque a Igreja e, por extensão, a sociedade
objetivavam “[...] esvaziar a mulher de qualquer uso prazeroso do corpo”
(DEL PRIORE, 1993, p. 16).

Como se nota, um dos agentes responsáveis pela difusão de uma imagem


social inferiorizada da mulher foi a Igreja Católica, que através da sua
atuação moralizante normatizava arbitraria e irredutivelmente a vida
feminina a partir das suas doutrinas. Esse empenho, de caráter
normatizador, empreendido por tal instituição se pautava na ideia de
inferioridade “natural” da mulher.

Os religiosos apresentavam algumas evidências que supostamente


lançavam as justificativas para esse argumento. Eles acreditavam que por
causa da criação primogênita do homem, este seria detentor de uma
indiscutível superioridade dada por Deus. Além disso, fazendo referência ao
erro cometido por Eva, a primeira mulher criada, segundo a narrativa
bíblica de Gênesis, assim como a própria matéria usada na sua criação, a
saber, a costela recurva do homem, dizia-se que as mulheres estariam
maculadas com a essência errante, desviante e pecaminosa herdada da sua
progenitora, Eva; e por isso, todas as mulheres estariam, inevitavelmente,
fadadas ao pecado (DEL PRIORE, 1993).

O corpo feminino no período colonial


O desfavorecimento da mulher era refletido no pensamento que os
religiosos e os médicos tinham sobre o corpo feminino no período colonial.
Esses agentes, por exemplo, achavam que o corpo da mulher era um
espaço de disputa entre as forças do bem e do mal (DEL PRIORE, 1993).
Nessa perspectiva, concebiam-se como diferenças entre homens e mulheres
não só as características anatômicas, mas também as morais. Dada a
influência do pensamento religioso na ciência médica, a mulher na visão dos
médicos do período era um projeto de Deus destinado única e
exclusivamente para a reprodução; e em virtude disso, o conhecimento
médico do corpo da mulher se restringia ao conhecimento da sua genitália.

Sobre isso, a historiadora Mary Del Priore (2008) nos diz que o discurso
médico do período colonial no Brasil propagandeava que a loucura e a
ninfomania, entre as mulheres, poderiam ser resultados do mau uso da
406
madre (leia-se genitália). É por isso que, como se argumentava na época, a
reprodução era necessária para se evitar a sufocação da madre, o que
envolveria a ação de vapores que sairiam do útero e iriam para as partes
superiores do corpo feminino (DEL PRIORE, 2008). Ainda de acordo com Del
Priore (2008), acreditava-se, inclusive, que o próprio útero poderia ir para a
garganta, o que provocaria o sufocamento e a morte da mulher (DEL
PRIORE, 2008). Esses eram argumentos que objetivavam convencer as
mulheres de que sua principal função era de gerar filhos; o que serve de
indicativo do apoio dado pela Igreja Católica ao projeto colonizador do
Brasil.

Casamento: alcance da completude feminina


Na Colônia, em regra, as mulheres não tinham acesso à educação formal,
pois esta era destinada exclusivamente para os homens. Por esse motivo, a
vida das mulheres, desde a tenra infância, estava voltada para os afazeres
domésticos. Ainda criança elas eram incentivadas a se tornarem exímias
cuidadoras do lar, qualidade vista como indispensável para uma mulher de
família.

Relacionado a isso, propagandeava-se que o único meio da mulher alcançar


a sua completude, isto é, a sua realização era através do casamento, uma
vez que depois de casada ela supostamente se afastaria da condição de Eva
e, em decorrência, se aproximaria da imagem imaculada da Virgem Maria
(DEL PRIORE, 1993).

Como já foi dito, a Coroa Portuguesa atuava em parceria com a Igreja


Católica na promoção do povoamento desse território. Para tanto, esta
última usava imagens de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do
Bom parto e da Virgem Maria, como afirma Araújo (2008), para convencer
as mulheres da pretensa necessidade do casamento e da reprodução.
Ademais, nessa época todas as decisões relacionadas ao matrimônio eram
da responsabilidade do pai, inclusive era ele quem escolhia o futuro marido
da sua filha, o qual geralmente era mais velho. Isso por si só denota a
desconsideração dos desejos e dos sentimentos da mulher na condução da
sua vida.

O controle sobre a mulher não desaparecia após o casamento, pois nele


além da autoridade do marido, havia também a influência impositiva da
Igreja que normatizava até a vida íntima do casal, estabelecendo como
objetivo maior do leito conjugal a reprodução, em vez do prazer dos
cônjuges (VAINFAS, 1988). De modo que, considerava-se como cópula
pecaminosa aquela que proporcionava o prazer, em vez da geração de
filhos.
Essa situação fazia com que as mulheres, não raro, se decepcionassem nos
seus leitos conjugais. Pois, seus desejos costumavam ser ignorados pelos
maridos, que ao pretender administrar a sexualidade do casal, costumavam
não satisfazer as necessidades sexuais das suas esposas (VAINFAS, 1988).
Por causa disso, ocorriam muitos casos de divórcios, separações e
adultérios como é atestado pelas documentações do período (VAINFAS,
1988). 407

Quebrando as regras: afirmação do eu feminino através da


transgressão
Entretanto, como afirma Del Priore (1993), as mulheres do período colonial
não eram tão passivas, ao ponto de se sujeitarem cabalmente às
imposições da sociedade deste período, visto que elas resistiam, de
variadas maneiras, a esse processo de controle. Essas mulheres resistiam
por recorrerem ao uso de encantamentos, por pedirem o divorcio à justiça
eclesiástica (VAINFAS, 1988), por se responsabilizar pela chefia do lar e
também por levar uma vida sexual ativa, a exemplo das freiras nos
conventos, que não só conheciam como também faziam uso dos métodos
anticoncepcionais (ALGRANTI, 1993).

A ideia de que as mulheres estabeleciam ligações com as forças demoníacas


era corporificada no conhecimento que se tinha de que na Colônia havia
algumas mulheres que faziam uso da magia para conquistar homens ou
causar prejuízos aos seus inimigos. De acordo com Araújo (2008), há
evidências de que feiticeiras já atuavam em Salvador no ano de 1590,
período anterior à chegada do Santo Ofício ao Brasil. Aliás, essas mulheres
também costumavam fazer uso da magia para fins amorosos. Em casos
assim, o emprego desses recursos era feito predominantemente pelas
mulheres casadas que desejam receber atenção, carinho, respeito e
obediência dos seus maridos (DEL PRIORE, 2008).

Dessa forma, em apoio ao que diz Vainfas (1988), nota-se que o


estereótipo da mulher submissa e amedrontada com a punição corretiva do
homem e das instituições sociais se contrasta com a realidade da mulher
ativa e libertina, que lubridiava, seduzia e subjugava os homens da sua
época. É por isso que pode ser afirmado que apesar das tentativas de
controle, existiam também no Brasil Colonial muitas mulheres que não se
deixavam dar por vencidas ao sistema disciplinador da sociedade da época.

Ainda que não tenha conseguido obter êxito, a Igreja Católica realizou o
controle sobre as mulheres, como foi sublinhado anteriormente. Mas, como
se disse, muitas dessas mulheres subverteram essas imposições. O que
comprova isso são as constantes práticas de adultério, que eram realizadas
muitas vezes para suprir a solidão sentida por essas mulheres ou então
para experenciar o prazer sexual que os maridos geralmente não
proporcionavam a elas (VAINFAS, 1988).

Conforme o historiador Vainfas (2008), as formas mais usuais usadas pelas


mulheres para transgredir a ordem socialmente estabelecida, eram os
adultérios e os relacionamentos homoeróticos. Para realizarem essas
práticas, muitas dessas mulheres aproveitavam as oportunidades que a
própria sociedade lhes dava. Por exemplo, quando as moças eram levadas -
mesmo a contragosto - para os conventos, muitas delas não abdicavam da
sua sexualidade; ao contrário, elas encontravam nesses espaços as
condições propícias para exercê-la (ALGRANTI, 1993).

408
Como consequência, nos conventos muitas mulheres davam vazão aos seus
desejos mais profundos - até então reprimidos -, passando a ter
envolvimentos com padres, visitantes e inclusive com as demais internas
(ALGRANTI, 1993). Além disso, conforme Algranti (1993), o convento foi a
primeira instituição a ser governada por mulheres; indicando com isso que
nesse espaço as mulheres conseguiam ocupar um lugar de comando,
delegação que a sociedade se recusava a lhes dar formalmente.

O Brasil fez três visitações de agentes inquisitoriais que vieram se certificar


do cumprimento dos códigos de moral instituídos pela Igreja. Em todas
elas, um pânico generalizado se desencadeava em todo o território da
Colônia. Nesse contexto, os acusados de heresia eram levados para
Portugal, onde eram julgados. A primeira visitação do Santo Ofício no Brasil
ocorreu ainda no princípio da colonização entre 1591 e 1595, sob a tutela
do visitador Heitor Furtado Mendonça (VAINFAS, 1988). Essa visitação
focou no nordeste do Brasil, por causa da grande quantidade de cristãos-
novos, da numerosa população e também das muitas riquezas existentes, à
época, nesta região.

Como nos diz Vainfas (2008), Heitor Furtado Mendonça, durante sua
visitação, descobriu vinte e nove casos de mulheres praticantes do pecado
nefando, ou seja, a sodomia. Dessas vinte e nove, somente sete
responderam a processo, sendo que no final apenas três mulheres foram
castigadas pelos delitos cometidos; e dentre estas últimas, estava Felipa de
Sousa, que foi a única punida rigorosamente (VAINFAS, 2008).

Vainfas (2008) nos apresenta alguns casos de relações homoeróticas entre


mulheres no Brasil Colonial. Um deles é o de Paula de Figueira de 38 anos
de idade. Ela, diferentemente da maioria das mulheres da Colônia, sabia e
gostava de ler. Seu livro predileto era um romance de Jorge de Montemor,
chamado A Diana. O dito apresentava a história de amor entre duas moças.
Por ter tal conteúdo, esse livro foi proibido pela Inquisição, porque era
considerado uma obra que incentivava práticas desviantes. Paula de
Figueira colocou em prática o que lia, com Felipa de Souza, visto que as
duas mantinham um relacionamento amoroso testificado pelas cartas
apaixonadas e pelos beijos e afagos que trocavam (VAINFAS, 2008).
Situação semelhante vivenciava Isabel Antônia com a Francisca Luis Isabel
conhecida pela alcunha de Isabel, a do veludo, como diz Vainfas (2008). Ela
era uma mulher solteira que desembarcou em Bahia no ano de 1579,
porque tinha sido degredada. Isabel era chamada de “a de veludo” porque
todos sabiam que ela usava instrumentos de veludo nas relações sexuais
com suas parceiras (VAINFAS, 2008).
Esses registros mostram que o envolvimento homoerótico entre mulheres
no Brasil Colonial ocorria tanto como consequência do transbordamento da
sexualidade reprimida, da restrição de convívio e/ou da curiosidade. Isso,
por certo, contrariava o projeto de mulher pretendido pela Igreja Católica
na fase colonial da história do nosso país, e ao mesmo tempo mostra que as
mulheres não tinham a sua autonomia anulada pela imposição das
normatizações da Igreja e dos demais aparelhos da sociedade da época. 409

Proposição de atividade sobre o tema


Para discutir sobre a condição da mulher no período colonial do Brasil,
sugere-se que o/a professor/a de História proponha uma atividade
estruturada nas seguintes etapas:

Pesquisa no livro didático da disciplina sobre as menções feitas às mulheres


na fase colonial da história do Brasil;

Pesquisa na internet sobre o tipo ideal de mulher apregoado pela Igreja


Católica;

Rodas de conversas com a turma sobre os estereótipos e padrões de


comportamento lançados sobre as mulheres no período colonial e nos dias
de hoje – nesse momento o/a professor/a pode aproveitar o ensejo para
incentivar a turma a identificar e problematizar as mudanças e
permanências na imagem social da mulher ao longo do tempo na sociedade
brasileira;

E, após dividir a turma em grupos, o/a docente da disciplina pode propor


para os alunos a produção de lapbooks sobre os resultados da discussão.
Em seguida, esses lapbooks poderão ser exibidos para os demais alunos da
escola através de uma exposição feita na escola sobre o tema.

Considerações finais
Portanto, longe de serem personagens inertes, estritamente passíveis e
obedientes, as mulheres no Brasil Colonial assumiam uma postura de
enfrentamento ao processo de adestramento, ao qual a sociedade do
período tentava lhes conformar. Elas faziam isso de modos variados, mas
com o mesmo objetivo: o de assegurar sua liberdade e sua autonomia
enquanto indivíduos dotados de vontades e desejos próprios. Certamente, a
iniciativa de fomentar a discussão sobre esse tema se torna necessária,
porque vivemos em uma sociedade que ainda carrega traços coloniais na
maneira como enxerga as mulheres. De modo que, tratar sobre esse tema
em sala de aula é uma maneira de, a um só tempo, discutir gênero em sala
de aula e mostrar para os alunos que as mulheres não podem ser reduzidas
a meros papéis de coadjuvantes na história. Afinal, elas não só tem história,
como também escrevem a sua própria história.

Referências
Raimundo Nonato Santos de Sousa – É acadêmico do oitavo período do
curso de História na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, campus
Caxias. Atualmente, atua como pesquisador-bolsista PIBIC/UEMA e
pesquisador-colaborador UNIVERSAL/FAPEMA.

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio de


Janeiro: José Olympio Editora, 1993. [Livro]
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina a colônia. In:
410
PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2008. [Livro]
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo – condição feminina, maternidade e
mentalidades no Brasil Colônia. Brasília: Edunb, 1993, P. 43-101. [Artigo]
_______________. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In:
PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2008. [Artigo]
VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: PRIORE,
Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto,
2008. [Artigo]
______________. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no
Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1988. [Livro]
O PROJETO “GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA” E O
ENSINO DE HISTÓRIA: OS CARTAZES COMO FONTES PARA AS
SUBJETIVIDADES
Robson Ferreira Fernandes

A Escola de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl, gestada pela


Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, se localiza no 411
município de Águas Mornas – SC, com forte influência de imigração alemã,
que conserva o viés religioso católico e protestante, com atividade
econômica predominantemente agrícola, muitos/as estudantes trabalham
na lavoura com a agricultura familiar.

A escolha da escola, parte do pressuposto da minha atuação como docente


entre os anos de 2011 a 2017. Os temas de gênero e sexualidades sempre
são pertinentes no meu planejamento anual; incorporados e com o desejo
de dialogar e esclarecer. Conheci o projeto “Gênero e Diversidade na
Escola,” e o eixo do Concurso de Cartazes por uma professora da mesma
escola. Participei do concurso de cartazes nos editais do Projeto do Papo
Sério nos anos de 2014 e 2015, e em 2016 com o edital próprio da EEBCAL.

Esta escrita está baseada na importância de se discutir os temas de gênero


e diversidade na escola, especialmente nas aulas de História. As pessoas
estão em constante transformação, variando seus interesses e desejos,
alterando práticas cotidianas e a forma como se percebem e como vêem os
outros. Durante muito tempo prevaleceu, na maior parte das sociedades, a
ideia de que as diferenças entre homens e mulheres eram naturais e
definidas por diferenças biológicas. As mulheres teriam nascido com uma
aptidão maior para o cuidado com o lar e os filhos, enquanto os homens
tinham maior facilidade para trabalhar fora, fazer maior esforço físico e
assumir cargos de chefia, entre muitas outras atividades que marcaram as
distinções entre os sexos. Esse mesmo discurso era, notadamente, utilizado
para justificar a subordinação feminina e as relações desiguais entre
homens e mulheres.

Diante desse quadro que ainda rege as relações de gênero, as aulas de


História no Ensino Básico têm o papel de: conscientizar, sensibilizar e
informar alunas/os, professoras/es, funcionárias/os, mães e pais sobre a
necessidade urgente do trabalho com questões de gênero e diversidade na
escola. Desse modo, o ensino poderá contribuir com a formação humana
integral, que diante dessa categoria, o Currículo Base do Território
Catarinense da Educação Infantil e Ensino Fundamental de 2019, traz como
princípio do percurso formativo na Educação Básica; o estímulo ao debate e
a reflexão sobre questões de gênero e diversidade na escola contribuem
para a desmistificação de tabus e senso comum sobre gênero e
sexualidades. Diminuir as situações de preconceito e injustiça no ambiente
escolar e trabalhar com temas transversais e que estão contidos nos marcos
legais do país. É importante dialogar com autores, teóricos dos estudos de
gênero e do ensino de História para fomentar o debate; pensar em Gênero
como categoria de análise, a partir de Scot e Butler.
A partir desta problematização, analisar os cartazes em foco, é permitir
discussões acerca do projeto “Gênero e Diversidade na Escola”, ocorrido na
EEBCAL e vinculado ao Projeto Papo Sério, do NIGS – UFSC, a partir do
recorte temporal de 2015 a 2016, embora o projeto tenha se estabelecido
na escola entre 2013 a 2016. A escolha do ano de 2015 se dá pelo motivo
412
que, foi o último ano do Projeto Papo Sério, que por sete anos articulou o
concurso de cartazes com as escolas de educação básica; e do ano de 2016,
com recursos financeiros provindos do Prêmio Construindo a Igualdade de
Gênero, a EEBCAL, criou o seu I (e único) Concurso de Cartazes os mesmos
moldes estruturais do Papo Sério. As fontes que serão utilizadas para a
pesquisa se encontram em bancos de documentações próprias.

O Ano de 2015
Com os Projetos intitulados “Direitos Humanos, vulnerabilidade e
interseccionalidade: Propostas de reflexão práticas à estudantes do Ensino
Médio” e “Expressão de Gênero da infância à juventude e Faces da
Homofobia” com o 9º ano, perpassou os objetivos de conscientizar toda
comunidade escolar a pensar as questões de preconceitos e discriminações
relacionadas ao sexo, raça, gênero, entre outras.

Os métodos para a realização foram oficinas de conscientização e


sensibilização que contribuíram para a identificação dos/as alunos/as com
relação às intersecções, a transversalidade de preconceitos pontuados nos
grupos que se encontram em maior situação de vulnerabilidade, tais quais
as Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Em seguida, os/as
alunos/as dos nonos anos 01 e 02 (Ensino Fundamental II), Primeira,
Segunda e Terceira série (Ensino Médio), produziram cartazes sobre a
temática do Concurso de Cartazes: Trans-Lesbo-Homofobia e
Heterossexismo nas Escolas, promovido pelo Núcleo de Identidades de
Gênero e Subjetividades – Projeto de Extensão “Papo Sério”/UFSC.

Categoria: INTERSECCIONALIDADE (Ensino Médio)

Cartaz 01
413

Cartaz 02

Cartaz 03
414

Cartaz 04

Cartaz 05
415

Cartaz 06
Cartazes do acervo próprio do autor.

No ano de 2015, as/os estudantes foram convidados/as a pensarem sobre o


conceito de Interseccionalidade. Por interseccionalidade entende-se:
“A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar
as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o
racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições
relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. [CRENSHAW apud
RODRIGUES, 2013, p.6]

Com isso, pretendeu fazê-los voltarem seus olhares para outras formas de
preconceito e discriminação, além das citadas anteriormente, tais como:
racismo, capacitismo, xenofobia, preconceitos de classe, de religião,
gordofobia, entre outros.

No cartaz 01, apresenta a frase: “Sou negro, cadeirante e homossexual,


mas tenho um coração igual ao seu!”. Esse cartaz, bem como os outros, foi
produzido por alunes do Ensino Médio que trouxeram para a discussão as
temáticas de raça, deficiências e sexualidades. No cartaz 02, apresenta a
frase: “Born this way”, canção da Lady Gaga. Para o debate temos
apresentado no cartaz um casal de lésbicas, sendo que uma delas é
cadeirante. No cartaz 03, a frase que justifica o cartaz reflete: “Viva a
Diversidade”. Deficiência, sexualidades e gênero são perceptíveis para a
reflexão. No cartaz 04, o tema é “Favela Gay”. Pensar em vulnerabilidade e
classe social, diante de um casal homossexual. No cartaz 05, a frase que
nos provoca é: “Ser trans não é um problema para mim, por que deveria
ser pra você?”. Reflexão sobre identidade de gênero e deficiências. E no
cartaz 06, “minha sexualidade não é pro seu prazer” justifica os debates em
torno das relações de raça, identidade de gênero e coloca uma questão
pertinente para a população trans: travesti/transexual como máquina de
sexo.
416
A interseccionalidade, ferramenta teórica que nos permite pensar na
articulação de várias categorias para entender um fenômeno
discriminatório, traz como exemplo, a análise das reflexões dos cartazes,
bem como a ideia de uma mulher lésbica negra, a partir de uma perspectiva
interseccional, articulará as categorias de gênero, raça, orientação sexual
para explicar o fenômeno. Esse cenário pode provocar diversas formas de
preconceito, discriminação que culmina em várias formas de violências.

Os estudos sobre o tema das violências desmitificam a concepção de


violência como agressão física, passando a analisá-la como um conjunto de
fatores sociais que montam um ambiente violento. Neste contexto,
podemos identificar diversas formas de violências interligadas: a violência
verbal, a violência física, a violência simbólica e a violência econômica. Cada
qual com suas sutilezas, todas criam feridas, que às vezes, não se curam.
Quando pensamos estas violências contra grupos subalternos – definidos
como grupos que não preenchem modelos dominantes -, é necessário
observar a interseccionalidade de categorias que atuam simultaneamente
no processo de discriminação.

A oficina préelaboração dos cartazes permitiu que os/as estudantes


pudessem também refletir sobre a importância de uma educação com uma
perspectiva de respeito aos Direitos Humanos. Foi apresentado o
conceito/definição de vulnerabilidade, bem como foram pontuados os
grupos históricos que se encontram em maior situação de vulnerabilidade e
a quais riscos estão expostos. As mulheres estão vulneráveis ao machismo,
sexismo e misoginia; homossexuais à homofobia; lésbicas à lesbofobia;
travestis, transgêneros e transexuais à transfobia; negras/os ao racismo;
populações indígenas ao etnocentrismo. Além disso, foram citadas minorias
étnicas, religiosas e culturais, bem como exclusões por conta da aparência
física e idade. Conversamos também sobre a situação de imigrantes e
refugiados remetendo à presença de haitianos, comum na nossa região.
Também foram citadas como grupos em situação mais vulnerável as
populações quilombolas e ribeirinhas.
417

Categoria: GÊNERO (Ensino Fundamental – Anos Finais 9ºs anos)


Cartaz produzido por estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais.
Acervo próprio do autor.

No Brasil de Bolsonaro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos


Humanos, Damares, afirma que azul é de menino e rosa é de menina. O
que ela quer com essa afirmação? Questionar os estudos feministas e
abraça o patriarcado desmerecendo a ciência.

A palavra “gênero” é uma categoria de análise dos Estudos Feministas que


tem sido utilizada para pensar a construção social das diferenças entre
homens e mulheres, conforme explica a historiadora Joan W. Scott. Até
recentemente, o senso comum considerava que os comportamentos, ações
e espaços na sociedade destinados de maneira diferente para homens e
mulheres se davam pela diferença biológica dos corpos. Os estudos
feministas e de gênero passaram a questionar essa origem biológica e a
explicação causal para comportamentos e condutas de mulheres e homens
em diferentes sociedades.

Azul para meninos, rosa para meninas; carrinhos para eles, bonecas para
elas. Desta forma, as diversas instituições sociais, como as escolas, as
igrejas, a família e a mídia, vão transformando crianças em meninos e
meninas, alinhando o gênero ao sexo biológico com o qual as pessoas
nascem. Crescemos aprendendo pelo cinema, pela literatura e pela
televisão que as mulheres só são felizes se casarem, se tiverem filhos/as e
que devem ficar apenas em casa. Já os homens têm que garantir o sustento
da família e circular pelos espaços públicos. Eles têm de ser mais
agressivos, enquanto que elas devem ser mais compassivas.

Assim, na luta por um mundo com mais igualdade, é de suma importância


que se respeite os diferentes modos de ser e estar no mundo, de modo que
418
as pessoas possam expressar o gênero da maneira como se sentem
confortáveis e não por uma imposição sobre seus corpos.

Categoria: HOMOFOBIA (Ensino Fundamental – Anos Finais 9ºs anos)

Acervo próprio do autor.

O Ensino Fundamental – Anos Finais, através das turmas dos nonos anos
(91 e 92), iniciaram as reflexões sobre as relações de gênero e entraram no
projeto no ano de 2015. As reflexões desenvolvidas pelos(as) alunos(as),
buscaram compreender a diversidade de experiências, culturas, formas
associativas e dinâmicas, que aos quais, para além desses sujeitos, uma
humanização crítica e respeitosa possa florescer nas terras de Águas
Mornas, no coração de jovens impulsionados pelo sentimento de mudança e
transformação de seu meio social.

No ano de 2015, além da continuidade dos estudos de Gênero e


Sexualidades no Ensino Médio, amplia-se o espaço de divulgação e
participação do Concurso de Cartazes para o Ensino Fundamental Anos
Finais, especificamente para as turmas dos 9ºs anos 01 (matutino) e 02
(vespertino), (aproximadamente 25 alunos(as) em cada turma) da EEBCAL.
O desafio inicial e que foi fruto das socializações no decorrer dos encontros,
se edificou com as contestações que emergem a partir das violências, a
homofobia. A Caixa “Pergunte Aí”, foi um objeto de certificação de
incertezas, descrenças e objeções. Algumas perguntas que os(as)
alunos(as) depositaram na caixa: - Homofobia é a mesma coisa do que 419
Bullying? – Por que alguns homens que se sentem mulher, usam roupas
femininas e outros usam roupas de homens mesmos? – Por que as pessoas
acham que homossexualidade é doença, sendo que é dessa forma que elas
são felizes? – Por que as pessoas têm tanto preconceito? – Se você fosse
pai e tivesse um filho gay, como você reagiria?

As violências por preconceito referem-se a agressões e atos violentos que


impõem o exercício de uma hierarquia social, sendo expressivos de uma
relação de dominação de um grupo ou categoria social sobre outro/a, por
exemplo, homens sobre mulheres, ricos sobre pobres, nativos contra
estrangeiros e migrantes, heterossexuais contra homossexuais etc. A
LGBTfobia é tratamento mais cruel e que anula, torna invisível, exclui as
pessoas. A homofobia, atitude preconceituosa que hierarquiza as pessoas
em função da sua orientação sexual, é usada para se referir às atitudes e
condutas de desprezo, discriminação e ódio às pessoas não heterossexuais
e, em particular, a gays. A lesbofobia é a forma de discriminação dupla que
articula a intolerância, desprezo, discriminação por causa da orientação
sexual, com subordinação ao gênero. A transfobia despreza às pessoas
travestis e transexuais.

O Ano de 2016
O projeto realizado em 2016, agora sem vinculação direta com o “Projeto
Papo Sério” – NIGS/UFSC, pois o mesmo recebeu cortes financeiros, deu a
oportunidade para a Escola de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl
andar com os seus próprios pés.

O I Concurso de Cartazes sobre Trans-Lesbo-Homofobia e Heterossexismo


humanizou os/as estudantes do Ensino Fundamental – Anos Finais e Ensino
Médio da Escola de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl.

Trazer conhecimentos científicos da diversidade sexual e de gênero ainda é


um grande impasse, diante da sociedade. Mas o tema está no cotidiano, nas
rodas de conversas, nas famílias e, especialmente, em um dos ambientes
que unem os mais diversos posicionamentos e personalidades, que é a
escola. Para criar a discussão e expandir o conhecimento dos/as estudantes
sobre o tema, oI Concurso de Cartazes sobre Trans-Lesbo-
Homofobia e Heterossexismo, identificado como lema “Escola é lugar de
respeito às diferenças e construção da igualdade”, que foi abordado de
forma interdisciplinar através de oficinas e roda de debates em ambiente
escolar.

O Concurso, nos mesmos moldes do Concurso de Cartazes do Projeto Papo


Sério, fomentou à criação artística de cartazes sobre às questões que
discorram o combate às violências e discriminações LGBTfóbicas em
ambiente escolar. Nos cartazes, as temáticas foram diversas: discriminação,
responsabilidade da escola, padrões de vida criados pela sociedade,
reivindicações do movimento LGBTQ+, adoção por casais homossexuais,
entre outras questões, ficaram registradas nas imagens que dizem tudo
sobre respeito, amor, igualdade e cidadania.
420
Categoria: ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS (Ensino Médio)

Cartaz 03 (Acervo próprio do autor)

No cartaz 01 e 02, a defesa da responsabilidade da escola diante dos temas


em discussão. A E.E.B. Cel. Antônio Lehmkuhl manteve seu compromisso
como escola construtora da igualdade de gênero. Acreditar que um mundo
mais justo, igualitário e que respeite as diferenças seja possível com a
contribuição da educação. Fazer da escola um lugar em que aqueles e
aquelas por anos invisibilizadas/os sejam reconhecidas/os, valorizadas/os e
respeitadas/os. A Diversidade e as Diferenças vivem e habitam a escola.
Professores/as não podem ser negligentes; devem educar para a
valorização da diversidade e o respeito às diferenças.

Assim como os processos sociais são históricos, construir compreensões


sobre a História também o é, e isso significa discutir sobre sua relatividade
conforme os períodos pelos quais passa. Nos últimos anos, por exemplo,
ensinar História se tornou uma resposta a demandas e desafios que
envolviam uma renovação do olhar sobre a prática do ensino, bem como da
prática enquanto produção de saber histórico. Os chamados problemas de
gênero (sexualidade, diversidade, violência de gênero,
homo/lesbo/transfobia, direitos das mulheres, pertença histórica) se
tornaram pauta necessária dentro e fora das salas de aula e em muitos
casos dentro ou fora da História enquanto disciplina. Considerando os
problemas de gênero como sendo também o conjunto de discursos
disseminados (parlamentares, mídia, profissionais liberais, empresários,
legislações) e que trazem em seu bojo o conservadorismo, a misoginia, a 421
homofobia, sem esquecer de relacioná-los a vida social mais ampla de um
país que possui altos índices de violência contra mulheres e LGBTQ+ como
o Brasil, as reflexões propostas buscam compreender a diversidade de
experiências, culturas, formas associativas e dinâmicas que contribuam
para uma humanização crítica e respeitosa no coração de jovens
impulsionados pelo sentimento de mudança e transformação de seu meio
social.

As desigualdades sociais advindas da construção social da diferença entre o


que é considerado “masculino” e o que é “feminino” geram múltiplas
violências e opressões. As desigualdades são aprendidas dentro e fora da
escola, porém dentro da escola essas desigualdades se reproduzem.

A partir da perspectiva da escola como um reflexo ativo e dialético da


sociedade uma questão fundamental para a construção dessa formação foi
desconstruir e desvestir os conceitos e preconceitos já estabelecidos pela
sociedade.

O momento é de quebra de paradigmas, de revisão de nossos conceitos. O


debate é pertinente ainda em tempos de Escola sem Partido. Esclarecer,
conscientizar e relacionar o assunto com as práticas cotidianas é entender
os corpos que transitam pela escola e que formam a sociedade.

Referências
Mestrando em Ensino de História – UFSC, 2019-2020. Pós-graduado em
Fundamentos e Organização Curricular – UNISUL, 2018-2019. Especialista
em Gestão Pública pela Faculdade Municipal de Palhoça – FMP, 2016.
Graduado em História (Licenciatura) pelo Centro Universitário Leonardo da
Vinci – UNIASSELVI, 2014. Atualmente é professor da rede estadual de
ensino – Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. E-mail:
rofefe23@gmail.com

CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade


hegemônica: repensando o conceito. Rev. Estud. Fem., v. 21, n. 1, p. 241-
282, 2013.
CORRÊA, Ester Cândida. Análise dos conceitos de História na narrativa do
canal virtual LGBT ‘Põe na Roda’. Dissertação (Mestrado). Universidade
Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação Profissional em Ensino
de História, Cuiabá,, 2018.
CRENSHAW, Kimberle. A interseccionalidade na Discriminação de Raça e
Gênero. 27 de setembro de 2012 em 2012 – Relações Raciais (1ª edição)
http://www.acaoeducativa.org.r/fdh/?p=1533.
MOURA, Fernanda Pereira de. “ESCOLA SEM PARTIDO”: Relações entre
Estado, Educação e Religião e os impactos no Ensino de História.
Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de História, Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, Rio de
Janeiro, 2016.
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na
422
pesquisa histórica. História [online]. 2005, vol. 24, n.1, p. 77-98.
SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Trad. Guacira Lopes Louro. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história
das mulheres e das relações de gênero. Rev. Bras. Hist., v. 27, n. 54, p.
281-300, 2007.
WOLFF, Cristina e SALDANHA, Rafael. Gênero, sexo, sexualidades.
Discutindo as categorias do debate contemporâneo. Retratos da Escola.
vol.9 n. 16, 2015.
LUGARES DE DOMINAÇÃO LUGARES DE OPRESSÃO: QUESTÕES
SOBRE A PRESENÇA DAS MULHERES NAS CIÊNCIAS
Rosilene Dias Montenegro

São muitos os lugares que mostram as desigualdades de gênero, a


invisibilidade das mulheres, e a reprodução dos estereótipos de feminino e
masculino. As instituições de ensino e pesquisa constituem espaço 423
privilegiado para o estudo de das questões de gênero. De um lado, são
espaço de produção científica em que ocorrem as mais significativas
produções críticas sobre as desigualdades de gênero, por outro, espaço em
que se dão práticas culturais as que predominam em toda sociedade, e
ações corroboram para a naturalização das relações de dominação e
opressão de gênero.

“Lugares de dominação lugares de opressão: questões sobre a presença das


mulheres nas ciências”, se propõe apresentar considerações a partir de um
estudo sobre desenvolvimento e gênero, que estamos realizando, em um
estágio pós-doutoral. Pesquisa que parte um trabalho mais amplo há anos
em desenvolvimento no Projeto Memória da Ciência e Tecnologia em
Campina Grande (Projeto Memória).

Nas ações que coordenamos para a formação em iniciação científica de


nossos alunos de graduação em História têm sido recorrentes as questões
que buscam compreender as desigualdades de gênero nas ciências e
tecnologias.

A proposta desta comunicação foi motivada por questões da pesquisa do


Projeto Memória sobre a presença das mulheres, sejam na condição de
professoras, seja como alunas dos cursos das ciências exatas e das
engenharias, matemática, física, engenharia mecânica, engenharia elétrica,
engenharia de minas etc., ou seja, cursos cultural e tradicionalmente tidos
como masculinos. Inicialmente chama a atenção a pouca quantidade de
mulheres nos cursos de ciências exatas e engenharias, cuja discussão foi
nessa temática foi inicialmente promovida pelo estudo de Fanny Tabak
(2000) ao investigar a existência e predomínio de situações de desigualdade
de gênero no interior das universidades brasileiras.

É inegável que as mulheres obtiveram conquistas sociais e políticas


históricas, principalmente a partir da década de sessenta do século vinte.
Mas, não obstante as conquistas de direitos ainda existem muitas
desigualdades sociais, políticas e econômicas entre os homens e mulheres.

No ensino superior e especialmente nas universidades públicas brasileiras,


estruturadas na visão da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão,
espaço de produção cientifica, em que há de se esperar igualdade na
importância e reconhecimento do trabalho de homens e mulheres, constata-
se que se mantêm desigualdades de gênero. No tocante ao ensino superior,
assunto mais relacionado ao tema desta comunicação, o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), publicou em 2018, dados sobre
estatísticas de gênero no Brasil. Nesse estudo, o IBGE informa que:

“A maior diferença percentual por sexo encontra-se no nível “superior


completo”, especialmente entre as pessoas da faixa etária mais jovem, de
25 a 44 anos de idade, em que o percentual de homens que completou a
424
graduação foi de 15,6%, enquanto o de mulheres atingiu 21,5%, indicador
37,9% superior ao dos homens”. (IBGE, 2018).

Mas, se as mulheres têm conseguido em maior quantidade que os homens


concluir o ensino superior, quando observamos os dados de mulheres
atuando no magistério superior seja como docentes, seja como
pesquisadoras e cientistas, chamam a atenção as disparidades. Em matéria
publicada no Jornal da USP (2018), “Desequilíbrio de gênero afeta mulheres
cientistas no Brasil”, a pesquisadora Jaroslava Valentova, apresenta os
dados organizados a partir da coleta da base do Diretório dos Grupos de
Pesquisa do CNPq. Essa pesquisadora, constatou que:

“Os números de pesquisadores financiados com a chamada


Bolsa de Produtividade em Pesquisa por área foram coletados no Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre os anos
de 2013 e 2014. Também foi verificada a proporção, no período, de
membros na Academia Brasileira de Ciências (ABC), por sexo e por área”.
(Jornal da USP, 1/01/2018).

“A área mais discrepante foi a de “Engenharia, Ciências Exatas e da Terra”.


Não houve nenhuma das sub-áreas deste grupo em que a mulher foi melhor
representada. Em engenharia elétrica, por exemplo, o número de mulheres
inseridas no setor foi de 13 para 269 homens; em engenharia civil e
engenharia biomédica, a proporção foi de 56 para 210 e de 4 para 60,
respectivamente. A segregação não ficou somente nas engenharias. Em
física e matemática, o número de mulher também foi infinitamente menor:
101 mulheres para 806 homens, na primeira categoria, e de 29 para 271 na
a segunda”. (Jornal da USP, 1/01/2018).

São muitos os artigos e estatísticas que mostram as disparidades de gênero


na ciência no Brasil e no mundo. Em nossa pesquisa sobre a presença das
mulheres no magistério superior na Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), constatamos o seguinte quadro:
425

No quadro acima chama-nos a atenção as disparidades entre a quantidade


de homens e mulheres no Centro de Engenharia Elétrica e Informática, com
apenas 11% de mulheres (quatro engenheiras eletricistas e sete cientistas
da computação), seguia pela pouca presença de mulheres no Centro de
Ciência e Tecnologias, que oferece cursos na área de Ciências Exatas e da
Terra (Física, Matemática, Estatística) e as Engenharias (Mecânica, Química,
Petróleo, Produção, Materiais). Dados que organizamos em um gráfico com
as grandes áreas de conhecimento, conforme classificação do CNPq, que
mostramos a seguir:

Quadro – Presença de gênero por grande área de conhecimento


No tocante às diferenças na distribuição de homens e mulheres nas áreas
acima, muito provavelmente os percentuais referentes a UFCG são muito
próximos aos encontrados nessas mesmas áreas em outras universidades
públicas brasileiras.

426
Nesse sentido, como compreender a pequena quantidade de mulheres nas
engenharias, principalmente as que têm subáreas de especialização
teoricamente relacionadas ou que requerem maior força física? Como
exemplo especialidades dentro da engenharia Mecânica e engenharia de
Minas. Por que tão grande desproporção de gênero na distribuição de bolsas
de Produtividade em Pesquisa, nas lideranças de Grupos de Pesquisa, na
autoria principal de artigos científicos, na ministração de conferências e
palestras? Por que tão reduzida quantidade de mulheres Diretoras de
Centro ou Institutos, Pró-Reitoras, Reitoras?

Constata-se que as instituições públicas de ensino superior cumprem a


legislação que garante a igualdade de salários no serviço público segundo o
cargo, função e titulação, independentemente do gênero. Mas, mantêm as
desigualdades de gênero em outros níveis das atividades acadêmicas e de
gestão político administrativa. Por que aceitar como natural que uma
instituição de ensino superior que deve ser, por essência, questionadora e
crítica, mantêm relações de poder que colocam as mulheres em
desigualdade de gênero? Que práticas evidenciam a cultura de desigualdade
de gênero na universidade? Como poderiam ser modificadas essas práticas
culturais? Quais consequências sociais e econômicas das desigualdades de
gênero? São questões que estão no cerne desta proposta.

Como é do conhecimento da comunidade científica, a análise de dados não


é destituída do lugar de fala, concepção de sociedade e visão de mundo do
pesquisador ou pesquisadora. Nesse sentido, buscamos referências e
contribuições que problematizam e refletem as questões de gênero na
perspectiva teórica histórica e filosófica da desconstrução dos discursos e
narrativas que naturalizam as desigualdades de gênero. Para esta análise
estamos privilegiando as contribuições de autoras mulheres – historiadoras,
antropólogas, sociólogas, cientistas políticas, e filósofas, destacando-se
Joan Scott, Mariza Corrêa, Maria Margaret Lopes e Luce Irigaray. A escolha
por uma bibliografia produzida majoritariamente por mulheres tem também
um propósito de valorizar o gênero feminino.

O pensador Sigmund Freud, fundador da psicanálise, afirmou em


conferência que proferiu, entre 1932 e 1936, sobre o tema Feminilidade,
que “o menino, ao descobrir a menina, a descobre portadora de uma falta
[o pênis], isto é, como desigual e não como diferente, como inferior e não
como complementar.” (CORRÊA, 2018, p.9), (grifos meus).

Segundo Luce Irigaray, filósofa, linguista, psicanalista e feminista belga, a


“concepção de feminilidade” de Freud, teria contribuído para fortalecer
ainda mais as práticas culturais da desigualdade de gênero, uma vez que
Freud teria se pautado em:
“um determinismo biológico a partir da qual a mulher é inferiorizada, e seu
sexo não tem valor. A distinção anatômica entre os sexos explicaria a
diferença na economia psíquica, sendo só o sexo do homem capaz de
representação.” (COSSI, 2015).

Mas a verdade cientifica estabelecida pelos pressupostos deterministas de 427


superioridade biológica do sexo masculino sobre o feminino, também
fundamentado, na biologia, uma ciência exata (diferentemente das supostas
especulações e abstrações psicanalistas), partira de um pressuposto,
apresentado como “neutro”. Um pressuposto que justificava, fundamentado
em estudos e experiências de laboratórios, que a ciência mostrava a
diferença entre homens e mulheres como uma questão genética, daí a
compreensão da desigualdade.

A desigualdade seria a consequência natural da diferença biológica. Um


argumento de autoridade argumentado a partir das ciências naturais cujos
conhecimentos produzidos possuíam uma “autoridade inigualável nas
culturas ocidentais dos últimos séculos.” (LOPES, 2006, 37). Desigualdade
também naturalizada por visão de ciência ainda “pautada no discurso
Mertoniano que caracteriza o sistema cientifico como meritocrático e
neutro.” (LIMA; COSTA, 2016).

É possível afirmar que as ciências seriam um lugar tão masculino e


androcêntrico que não teria sequer cogitado a possibilidade de ser ocupado
por mulheres? Para Londa Schienbinger, “[...] a promoção das ações de
inclusão são constituídas em uma arquitetura concebida para excluir o
feminino, uma vez que a ciência [...] foi constituída em valores centrados
no masculino” (SCHIENBINGER apud LIMA; COSTA, 2016).

Essa é uma das questões mostradas no estudo “Qual foi o impacto do


feminismo na ciência?”, de Evelyn Fox Keller (2006), no qual apresenta aos
leitores as principais ideias e buscas de confirmação científica da
superioridade dos homens sobre as mulheres desde a “A Origem das
Espécies” (1859), passando pela “A descendência do homem e seleção em
relação ao sexo” (1871) chegando aos “efeitos modernos” dos avanços nos
estudos da biologia evolutiva e na ecologia, a partir de 1970, “quando os
biólogos perceberam que havia mais coisas na seleção sexual”, ou seja,
mais de um século após Charles Darwin.

Segundo Margaret Lopes (2006), “os termos conjugados gênero e ciência


aparecem pela primeira vez em 1978, como título de um artigo em que
Evelyn Fox Keller (1978)”. Nesse artigo, Keller identifica que existe:

“[...] uma “associação historicamente onipresente” entre masculino e


objetivo, caracterizada por ter simultaneamente um “ar de auto-evidente”
no âmbito do conhecimento comum e por “não ter sentido” no âmbito do
conhecimento cientifico. O silêncio virtual sobre o tema lhe sugeria que a
associação entre masculinidade e pensamento cientifico possuía status de
um mito que ou não podia ou não devia ser investigado a sério, uma vez
que entrava em conflito com nossa imagem de ciência sexual e
emocionalmente neutra. (KELLER, apud LOPES, 2006, p.40).”

Ou seja, Keller identifica construções discursivas que estabelecem padrões


de masculinidades e feminilidades que reproduzem não diferenças, mas
desigualdades.
428
Ao refletir sobre diferenças e desigualdades de gênero, Luce Irigaray (2002)
ressalta: “a mulher deve aprender a entrar em relação com o homem como
outro, um outro diferente, mas não hierarquicamente superior ou inferior”.
Colocar-se na relação social segundo essa forma de compreender a questão
de gênero, “representa também o gesto capaz de sustentar o conhecimento
de todas as outras formas de outros, sem hierarquia, privilégio nem
autoridade sobre eles: que se trate de raças, idades, culturas, religiões”.
É pertinente ressaltar que todo tema que se relaciona com gênero já
enfrenta de imediato o preconceito: “Isso é coisa de feminista”. As
pesquisadoras e pesquisadores do tema podem ser os mais brilhantes e
reconhecidos pela qualificação e competência acadêmica e intelectual, mas
parece sempre terem seus estudos resumidos a algum comentário do tipo
“que interessante!”. Porque “o envolvimento com as questões de gênero e
feministas ainda pode gerar preconceito entre os pares, uma vez que isso
representa um questionamento sobre o discurso hegemônico da ciência e
tecnologia. assim, pode dificultar parcerias e alianças.” (LIMA; COSTA,
2016, p.15). Aspecto já observado em trabalho clássico Joan Scott sobre
esse assunto:

[…] a reação da maioria dos(as) historiadores(as) não feministas foi o


reconhecimento da história das mulheres para depois descartá-la ou colocá-
la em um domínio separado (“as mulheres têm uma história separada da
dos homens, portanto, deixemos as feministas fazer a história das
mulheres, que nãos nos concerne necessariamente” ou “a historia das
mulheres Trata do sexo e da família e deveria ser feita separadamente da
história política e econômica”). (SCOTT, 1989, p.5).

Talvez essa subjetividade faça parte das razões conscientes ou não


conscientes do fato de no Brasil serem raros os trabalhos de mulheres
cientistas ou mulheres engenheiras se interessarem por pesquisas sobre as
questões de gênero em suas áreas de formação, segundo trabalho citado de
Betina Lima (2016). Uma implicação negativa ao conhecimento desse
enfoque dentro dos estudos de gênero é o de esse debate ter um impacto
ainda menor nas áreas das Ciências Exatas e da Terra e na área das
Tecnologias. Ou seja, não conseguir despertar o interesse por esses estudos
nos cientistas das ciências exatas e técnicos das engenharias,
principalmente.

Cabe interrogar o porquê de as mulheres cientistas e engenheiras no Brasil


não pesquisarem sobre as questões de gênero na ciência e tecnologia. E
observar que existem estudos sobre essas áreas sendo feito por mulheres
cientistas dessas áreas. Por exemplo, as contribuições de Evelyn Fox Keller,
autora referência nos estudos de gênero nas ciências. Refletindo sobre
essas ausências, as sociólogas Betina Lima e Conceição Costa sugerem que
a quase ausência de estudos de <gênero, ciência e tecnologia> por
mulheres dessas áreas possa estar relacionado ao “não reconhecimento da
questão de gênero como fator estruturante da ciência e tecnologia” (2016,
p.15). Um fator não-consciente.

Lima e Costa também nos ajudam a compreender as ressignificações de 429


objetividade, segundo a área de formação. Diferentemente das formações
nas Ciências Humanas e nas Ciências Sociais Aplicadas, os/as cientistas das
chamadas ciências duras e da área tecnológica entendem o conceito de
objetividade como um valor atemporal e central no conhecimento cientifico
(2016, p.16). Uma compreensão que tende a desmerecer a contribuição do
conhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Ciências Sociais
Aplicadas.

Esperamos que as questões aqui apresentadas possam motivar estudantes


e pesquisadores de História à investigação e ao debate sobre um problema
tão importante e grave como o é o da desigualdade de gênero. Entendemos
que é preciso combater as visões que negam projetos coletivos de mudança
social norteada pela utopoia de um mundo melhor, menos desigual, e
menos injusto, um mundo com mais democracia, uma democracia mais
forte, que permita o empoderamento das mulheres e consiga construir as
condições para o respeito de gênero reivindicado pelas mulheres para todas
as esferas de suas vidas e lutas.

Referências
Dra. Rosilene Dias Montenegro é professora de História do Brasil, e
coordenadora do Projeto Memória da Ciência e Tecnologia, na Universidade
Federal de Campina Grande.

CORRÊA, Mariza. Cara, cor, corpo. Cadernos Pagu. No. 54. 2018, pp. 01-13.
COSSI, Rafael Kalaf. Pensando a positivação da feminilidade: Luce Irigaray
e a psicanálise. Disponível em: <https://psibr.com.br/colunas/sexualidade-
e-genero/daniela-smid/pensando-a-positivacao-da-feminilidade-luce-
irigaray-e-a-psicanalise>. Acesso em 10 Set. 2019.
IRIGARAY, Luce. A questão do outro. Labrys, estudos feministas. No. 1-2,
Jul/Dez. 2002. Disponível em:
<http://www.historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/irigaray1.pdf>.
Acesso em: 10 Set. 2019.
KELLER, Evelyn Fox. Qual foi o impacto do feminismo na ciência? No. 27.
Jul/Dez, 2006, pp. 13-34.
LIMA, Betina S; COSTA, Maria Conceição da. Gênero, ciências e tecnologias:
caminhos percorridos e novos desafios. Cadernos Pagu. No. 48, 2016, pp.1-
39
LOPES, Maria Margaret. Sobre convenções em torno de argumentos de
autoridade. Cadernos Pagu. No. 27. Jul/Dez, 2006, pp. 35-61.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1989, pp.5-
35.
IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil.
(2018). Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf
Acesso em: 4 Abr. 2020.
Jornal da USP. Desequilíbrio de gênero afeta mulheres cientistas no Brasil.
Disponível em:
https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/desequilibrio-de-genero-
afeta-mulheres-cientistas-no-brasil/. Acesso em: 4 Abr. 2020.
430
AS POSSIBILIDADES DE TRABALHAR A MUSEOLOGIA DE
GÊNERO NO MUSEU JOSÉ ANTÔNIO PEREIRA EM CAMPO
GRANDE – MATO GROSSO DO SUL
Silvia Ayabe

Explorando o Museu José Antônio Pereira


No espaço anteriormente ocupado pela Fazenda Bálsamo, hoje se encontra 431
o Museu José Antônio Pereira. Localizado na Avenida Guaicurus, sem
número – Jardim Monte Alegre, Campo Grande – Mato Grosso do Sul, o
local aceita visitações de terça a domingo, e não cobra taxa para entrada. É
um recinto grande e aconchegante, com uma imensa potencialidade em
dialogar com o público, entrelaçando educação transformadora e lazer.

Figura 15 - Fonte Marcos Ermínio

Ilustrando a história da família Pereira, o museu possui o intuito de manter


vivo o histórico de seus antecedentes. Antiga residência de Antônio Luiz,
filho do fundador de Campo Grande, a visitação oferece ao público a
oportunidade de conhecer a pequena casa, os móveis e objetos da família,
disponibilizando a ideia de como viviam as pessoas dessa época.
Influenciando na formação patrimonial, na garantia da memória e na
construção da identidade regional é um museu que tenta superar a
conotação de “depósito de tesouros” aproximando o seu acervo
museológico aos seus usuários. A identidade regional surge aqui não como
aspecto único, e sim, como complementar de toda uma identidade cultural,
buscando criar uma sensação maior de pertencimento.

Reformado no ano de 1999 o espaço, que atualmente é gerido pela


prefeitura, ganha um certo ar de abandono. A visita guiada não possui
suporte histórico ou pedagógico, um grande prejuízo para o maior público
deste museu: escolas públicas de ensino básico. Em nossas visitas ao local,
presenciamos crianças e professores totalmente alheios aos bens culturais
que ali são apresentados, deste modo, contribuindo para o desinteresse dos
alunos em relação ao patrimônio. Sendo o espaço museológico um
ambiente não formal de educação, é necessário que se crie uma proposta
pedagógica para a visitação dos alunos. Apoiando-se em percepções tanto
da História quanto da Pedagogia juntamente com o entendimento das
práticas de organização e gestão do espaço, que necessita de um
planejamento mais adequado. É a partir dessa base, de sua natureza e
funções, que o trabalho do docente que visita o local será aprimorado.

Assim, fica evidente que um dos maiores desafios observados no Museu


José Antônio Pereira, trata da elaboração e execução de projetos que
busquem um melhor atendimento ao público, uma abordagem sobre a
432
relação entre patrimônio, memória e a mediação destas para a construção
da identidade. É urgente uma ação educativa que promova uma reflexão,
esclarecendo a sociedade a importância da preservação desse bem cultural,
que conforme Souza Filho, “é aquele bem jurídico que, alpe de ser objeto de
direito, está protegido por ser representativo, evocativo ou identificador de
uma expressão cultural relevante.” É importante ressaltar que velhas
identidades calcadas no ser masculino/herói, que tanto tempo
predominaram no mundo social, caíram em declínio, dando espaço a novas
identidades de um indivíduo mais fragmentado e moderno. Utilizar dessa
ideia como prática museológica, pode tornar a visita mais atrativa para uma
quantidade maior de pessoas.

Figura 16- Arquivo pessoal

Registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


(IPHAN) e pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o espaço que já
possuiu apoio para ações educacionais e até mesmo projetos
socioeducativos com a realização de eventos internos hoje se encontra em
um estado de quase abandono.

A restauração do museu que foi prometida para começar em agosto de


2019 acabou sendo cancelada por falta de verbas, em mais uma
demonstração de descaso foi deixado de lado todo um plano de
sensibilização da população sobre a necessidade de conservação desse
espaço museológico, construído com taipa de mão, madeira e telhas de
barro feitas nas coxas. Sendo que esse programa educativo que possuía o
intuito de aproximar a sociedade ao museu é um trabalho de extrema
importância, tendo a capacidade de motivar a família a repensar esse
universo, criando um estreitamento das atividades de cunho cultural e
incentivando o hábito de frequentação de museus de arte de todos os
envolvidos.

A estátua
Em frente à casa de pau a pique, está a estátua de Antônio Luiz, Anna 433
Luzia, e Carlinda Contar. Respectivamente filho, nora e neta de José
Antônio Pereira. É uma estátua com muitas histórias contraditórias, diversos
sites, notícias e teses a tratam como sendo do próprio descobridor de
Campo Grande. Feita pelo artista plástico José Carlos da Silva, conhecido
como “Índio”, foi entregue ao museu na década de 80. Relatos de sua
esposa – dados a revista Vozes das Artes Plásticas, contam que o artista
acordava antes das quatro da madrugada para “bater pedra”. Moradores do
bairro Coophasul, em Campo Grande, tiveram sua casa visitada por artistas,
aprendizes, e compradores de todos os tipos.

Figura 17 - Arquivo pessoal

Conhecido como um dos maiores expoentes da arte sul-mato-grossense o


Índio é fruto do romance entre um marinheiro do Arsenal de Marinha de
Ladário (Mato Grosso), e uma índia da tribo Pareci. Nascido em 4 de
novembro de 1948, em Corumbá (Mato Grosso), foi deixado com sua avó
paterna quando ainda era um bebê. Trabalhou por quase toda a sua vida
como marceneiro, na cidade de Aquidauana (Mato Grosso do Sul), ao
abandonar a profissão esculpiu sua primeira obra de arte em arenito, no
ano de 1976. Já no ano seguinte foi integrar o time dos restauradores do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ensinando sua arte a todos que
desejassem aprendê-la.

Índio demonstrava preocupação em preservar a formação da pedra,


resultando em uma obra que seguia as formas do mármore, chegou a
vender seu carro para viajar à Europa e conhecer a obra-prima do arquiteto
catalão Antoni Gaudí, ficou ali por duas semanas, tempo suficiente para
receber propostas de trabalho. Em sua volta ao Brasil, para buscar a família
que levaria consigo para a Europa o escultor acabou falecendo vítima de um
acidente de trânsito, em novembro de 1991, na cidade de Campo Grande.

434

Figura 18 - Imagem que inspirou a escultura feita por índio (arquivo do


museu)

No centro dessa imagem encontram-se Antônio Luiz Pereira, Ana Luísa de


Souza e sua filha Carlinda Pereira Contar. Nessa ocasião o casal
comemorava as suas bodas de ouro, foi se utilizando dessa imagem que
Índio criou sua famosa escultura.

A própria estátua, primeira figura visível logo na entrada do museu, pode


ser utilizada de uma melhor forma na visita guiada. Os guias possuem
pouquíssimas informações sobre o objeto, passando por ele de forma rápida
e rasa. Até oferecem informações mais concretas de Antônio Luiz Pereira,
porém, quando se trata de falar sobre o artista, sobre Ana Luísa de Souza
ou sobre Carlinda Contar padecem na falta de informação. Sendo a figura
feminina mais uma vez tratada como secundária, desvalorizada como
sujeito integrado. O museu não acompanhou as mudanças da sociedade,
estático ele se torna desinteressante para as novas gerações que são cada
vez mais caracterizadas pela diferença, apenas mais um local de “coisas
velhas”.
435

Figura 19 - Inscrição do artista na escultura feita para o museu

Mulheres e Museu no Ensino de História


A narrativa histórica dominante que priorizou certas esferas da vida social,
dentre elas a política, a religião, as guerras, os reis, os príncipes, profetas,
missionários, padres, guerreiros e colonizadores foram erguidas como
protagonistas de historiografias que davam claro destaque aos sujeitos
masculinos. Solidifica-se a crença de que os homens ocupavam-se dos
grandes acontecimentos, enquanto elas ficavam reduzidas apenas à
reprodução da ordem e do costume, ou seja, aos cuidados domésticos, a
colheita, o trabalho fabril, em todos os casos tarefas desvalorizadas
socialmente. Segundo Mary del Priore são duas as características que
marcaram o início das produções sobre o saber feminino: fazer emergir a
mulher no cenário de uma história não muito preocupada com as diferenças
sexuais e demonstrar a exploração, a opressão e a dominação que a
vitimava. Mesmo após três décadas em que se observa um crescimento
constante dos níveis de escolaridade e das taxas de participação feminina
no mercado de trabalho brasileiro, essa noção de inferioridade presente no
imaginário social ainda persiste.

Sendo assim, o cenário da museologia e dos museus nacionais possibilitam


algumas reflexões acerca das perspectivas de entrelaçamento com os
estudos de gênero. São diversos os espaços museológicos que permitem
ressaltar a presença e protagonismo da mulher na sociedade e, pensar a
museologia a partir de uma perspectiva de gênero é um grande desafio,
sendo importante lembrar que é errônea a equiparação de “gênero” com
“mulheres”. Segundo Aida Rechena:

“Na verdade, gênero refere-se à construção social da masculinidade e da


feminilidade e engloba um complexo sistema de relações que ultrapassa em
muito a relação homem/ mulher, entretanto em campos como os da
436
identidade e cultura gay, transgênero, transexualidade, bissexualidade,
androginia e o chamado “terceiro sexo”. Isso significa que nos estudos de
gênero estão englobadas todas as formas sociais e culturais de ser <ser
humano>, independentemente do sexo biológico ou da orientação sexual.”
[Rechena, 2014, p. 154]

Dessa forma, tendo os estudos de museologia o conjunto de referências


materiais e imateriais com potencial para atuar na construção de
identidades e desenvolvimento dos grupos humanos, a representação da
figura feminina como ativa e participativa é de grande importância
pedagógica, principalmente se tratando da formação de identidade das
meninas. Os museus são instituições exemplares para entendermos como a
preservação das referências patrimoniais pode contribuir para diminuir
diferenças entre mulheres e homens. São os museus instituições tomadas
como exemplo para compreendermos a influência do caráter político e
subjetivo na escolha e preservação das referências patrimoniais e, como se
atribuem valores para fundamentar quais bens culturais serão preservados
em detrimento de outros.

O contexto atual da museologia brasileira é rico e complexo, articulando:


ensino/formação acadêmica, políticas públicas e exercício/prática
profissional. Juntos, esses três segmentos ainda que entrelaçados possuem
certa liberdade. Dessa forma é possível a abordagem de uma história
feminina e, também, da história de mulheres negras no Museu José Antônio
Pereira, pois o mesmo representa uma casa do século XIX nos
possibilitando entender como era a convivência daquelas mulheres no
ambiente doméstico.

Segundo Samara, a mulher entra como assunto de análise pelos


historiadores na década de 1980, juntamente com a história da família. Do
mesmo modo, segundo a autora, se cria, concomitantemente, a
necessidade de se estudar a família levando-se em consideração as
dimensões de raça, condição social, religião e outros. Lembrando aqui que
desde o descobrimento até as décadas finais do século XIX, a escravidão foi
a grande marca da formação social brasileira e esse modo de produção lhe
serviu como base material. Porém, essa mesma historiografia oitocentista
acabou por negligenciar o papel desempenhado pela mulher escrava,
reproduzindo a ideologia dominante permeada de mitos e preconceitos.

O próprio José Antônio Pereira, em março de 1872 sai em sua primeira


viagem rumo a essas terras de vacarias já com dois escravos: João Ribeira
e Manoel. Algumas historiografias relatam também que o fundador contava
com a ajuda de uma velha escrava para realizar práticas em medicina,
histórias essas que foram deixadas de lado em detrimento da construção da
figura do “Fundador”, conhecido pela longa barba branca formando, assim,
a estampa de um grande herói.

Investigando a imagem das mulheres que participaram da história regional,


bem como da construção histórica como parte do patrimônio cultural
material de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. É de extrema importância
analisar e enfrentar o silenciamento da participação feminina na fundação 437
desta cidade, mesmo tendo uma historiografia escassa. Nesse sentido,
discutir a colonização e descolonização dos museus e do patrimônio e suas
formas de expor e construir narrativas sobre o Outro, nos permite
problematizar o destaque dado para os grandes eventos da história, dos
heróis e principalmente dos homens. Trata-se de desafiar lógicas que são
presentes nos museus criando espaços de resistência que afirmam a
entrada em cena de sujeitos excluídos historicamente dessas instituições.

No século XIX a situação da mulher era de subserviência ao pai e/ou ao


marido, a situação feminina era frágil em uma sociedade em que, além de
permitir omissões sociais quanto à conduta masculina, não possuía uma
segurança jurídica confiável para as pessoas do sexo feminino.
Infelizmente, a legislação brasileira, tradicionalmente colocou mulheres e
homens em patamares desiguais, atribuindo a elas uma quantidade menor
de direitos. A primeira Constituição brasileira elaborada em 1824, falava de
“cidadãos brasileiros” que, na verdade, eram apenas os homens, pois a
mulher juntamente com as escravos e homens livres pobres estavam
excluídos de praticamente todos os atos da vida civil.

Essa sociedade patriarcal do século XIX pouco permitia uma ascensão social
para a mulher, que muitas vezes via na subida financeira do marido sua
única possibilidade de percorrer melhor posição na sociedade. Portanto, o
casamento e o lar eram os locais de atuação dessa personagem, que
passava da tutela do pai à do marido. Sendo importante lembrar aqui da
mulher negra, presa fácil do sistema escravista nacional era vítima de
violência e sadismo.

No Brasil oitocentista as famílias endinheiradas possuíam escravas para


realizar os trabalhos domésticos, Angela Davis ao tratar do recorte de
gênero e raça nos Estados Unidos é assertiva na afirmação, que também é
válida na história brasileira, ao enfatizar que enquanto para as mulheres
brancas, o trabalho era algo a se discutir e conquistar, para as negras, ele
sempre existiu, inclusive como um objeto de exploração. Ou seja, nos
campos de Vacaria que deram início a história de Campo Grande, os papeis
sociais que ambas desempenhavam só tratava como digna de algum direito,
a mulher branca.

Porém, segundo Lordelllo: “A mulher brasileira branca do século XIX


aparecia como um ser despersonalizado, com atividade circunscrita ao lar e
à Igreja, salvo pouquíssimas exceções (...). Sua situação era de
subserviência, até jurídica, passando das mãos do pai às do marido”. Esse
discurso que provém do patriarcado formou a construção social em torno do
feminino que, se analisada juntamente com as desigualdades entre homens
e mulheres que ainda persistem comprovam a importância da museologia
social na busca de uma maior igualdade.

Isso faz com que o estudo museológico sobre as mulheres nos permita
ressaltar que o conceito de gênero ultrapassa o determinismo biológico,
pois, não é possível traçar um único perfil para a mulher latino-americana.
438
É extremamente necessário estar atento as diferenças ao considerar a
trajetória de cada retrato, assim, a Educação Patrimonial pautada pela
perspectiva da decolonialidade nos permite trazer novas discussões que
questionem como tem sido o processo de dominação saber-poder sobre as
memórias da fundação da cidade.

Dessa forma podemos em consonância com Bourdieu não apenas identificar


as mudanças na condição feminina ao longo do tempo, mas de
compreender os sistemas formais que tem o poder de arrancar da História a
historicidade da “supremacia masculina”. O autor chama a atenção
principalmente para a família, a igreja e a escola. No século XIX um mundo
para a mulher fora da esfera familiar e do casamento era impensável, a
mulher deveria permanecer virgem antes do casamento e fiel após o
mesmo. O Museu José Antonio Pereira permite um estudo da vida cotidiana
de uma família do século XIX, e é importante questionar a ausência da
história das minorias nesse espeço museológico.

Aplicabilidades da Museologia de Gênero no Museu José Antônio Pereira

Figura 20 - Museu José Antônio Pereira / Arquivo Pessoal

A casa no século XIX permite elucidar toda uma visão social da vida
cotidiana daquela época, ela nos possibilita entender melhor a interligação
entre o espaço doméstico e a mulher. Considerando aqui que uma família
que possuía condições financeiras de fazer uma viagem entre Minas Gerais
e Mato Grosso do Sul é aquela pertencente à classe mais alta, podemos
afirmar que a figura feminina estava diretamente ligada ao trabalho com a
casa, pois, possuía uma vida mais reclusa. Dessa forma, essa mulher
exerceu maior influência na disposição espacial das residências. O nosso
objetivo aqui é apontar de que forma esse espaço museológico pode ser
mais bem pensado, fundamentado na importância do saber feminino na
constituição da sociedade.

Ao encontrar essa mulher pertencente a uma família da elite, transformada


em “rainha do lar” pela literatura, acabamos deixando de lado seu papel
como agente transformador na comunidade. Nesse momento, a
compreensão da dinâmica social estará comprometida pela negligência de 439
não valorizar a importância de cada ator. A constituição da esfera privada
como “lugar” das mulheres, e a pública como “lugar” masculino, carrega
consigo inúmeras consequências que são difíceis de superar.

Na História da colonização da cidade de Campo Grande – MS, o papel do


homem pioneiro tem grande destaque, sempre retratado como desbravador
e corajoso José Antonio Pereira ganha realce como quase que único
responsável por estabelecer aqui o início de uma cidade. Acredita-se que
pesquisar para relatar e descrever sobre a participação das mulheres na
História é de suma importância, possibilitando novos olhares sobre os
acontecimentos passados. O trabalho é árduo, pois, os grandes
acontecimentos já estão estabelecidos, mesmo que, com grandes lacunas
da História contada. É necessário questionar o porquê de as mulheres não
aparecerem nos livros sobre a fundação de Campo Grande, o que
consequentemente gerou a sua ausência dentro do espaço museológico. Em
1999, ano do centenário da cidade, o jornal local Correio do Estado realizou
uma pesquisa sobre o conhecimento da população quanto a História da
fundação dessas terras. Como resultado obteve que 68% dos entrevistados
sequer conheciam o nome do fundador, comprovando a necessidade de
mudanças na forma de abordar esse tema no Ensino de História.

Figura 21- Arquivo ARCA

A preocupação aqui é dar ênfase àquelas mulheres que, de alguma forma,


já aparecem em algumas pesquisas, entretanto, mesmo assim, acabam por
não fazer parte do discurso reproduzido nos locais de memória. O objetivo é
perpetrar com que esse saber nas salas de aula, facilitando a criação de
uma cultura de valorização e respeito ao feminino, ressignificando o lugar
social dessa mulher. Dessa forma podemos citar a instituição escolar como
mecanismo que vem sendo utilizado para silenciar as mulheres, a escola é
um espaço cultural onde discriminações, enquadramentos e preconceitos de
toda uma sociedade se reproduzem insistentemente. Nesse sentido, Ferrari
(2011) aponta que:

“Podemos pensar que os processos de silêncio e silenciamento ocorrem em


diferentes dimensões: para calar os alunos diante da necessidade de uma
explicação, para colocar em vigor um entendimento de disciplina e controle
440
de turma, mas também para silenciar práticas, assuntos e comportamentos
tidos como indesejáveis e não valorizados.” [Ferrari, 2011, p.72]

Sendo assim, a museologia de gênero vem como uma forma de suscitar


questionamentos sobre o lugar ocupado pela mulher na sociedade. O Museu
José Antônio Pereira tem como visitantes mais frequentes professores e
alunos da educação básica, sendo então um possível local para dar
visibilidade as ausências.

Referências
Silvia Ayabe é aluna do Curso de História da UFMS, voluntária de Iniciação
Científica CNPq – PIVIC 2018/20, Pesquisadora no Grupo de Pesquisa
Ensino de História. Mulheres e Patrimônio. E-mail: silvia.ayabe@gmail.com.

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ERA UMA VEZ...: CONTOS DE FADAS E ESTEREÓTIPOS DE
GÊNERO
Simone Aparecida Dupla

Nunca ouvi contos de fadas da minha mãe, as histórias que ela contava
eram uma espécie de folclore da roça, onde tinha muitos lobisomens,
442 meninas d’água e assombrações. As histórias que eu ouvia falavam dos
camponeses, das peregrinações de João de Maria, das noites temidas da
quaresma. Fui ouvir sobre contos de fadas na escola, com a professora do
primário, com ela aprendi que existem princesas e bruxas, príncipes e
ogros, e de cara, logo percebi que nesse universo fantasioso que o conto de
fadas nos apresenta eu era a bruxa, a menina que vivia enclausurada na
biblioteca porque não era como as princesas, aquela que não dançava na
festa junina porque não tinha jeito, nem par (príncipe). Desde cedo aprendi
então, que os contos de fadas eram cruéis, pois nos mostravam paradigmas
que deveríamos seguir, e nos colocavam à margem quando não éramos
como seus personagens principais, tendíamos ao mesmo fim dos vilões,
éramos a prole destes.

Não é a toa que hoje questionamos esses modelos narrativos, passamos a


vida sendo bombardeados por arquétipos, no cinema, nas novelas, na
escola, sim, a escola, locus privilegiado onde se produz e reproduz
estereótipos negativos de crenças, etnias, classe e gêneros. Uma escola
velha, tão velha quanto os contos de fadas, rançosa em seu currículo,
capenga em sua metodologia, infeliz em sua atuação ao tentar enquadrar
jovens e crianças nas realidades pretéritas do professor, um mestre que
não deseja envelhecer e que saudosamente vê seu mundo como um modelo
a seguir, mas que um dia cruza no pátio com a ex-aluna de jaleco pronta
para dar aulas.

Assim, eu bruxa crescida me tornei professora, e deparei-me com o


currículo de minha disciplina tendo como conteúdo questões de gênero,
uma perspectiva nada bem vista em um sistema educacional tradicionalista
e em uma cidade cujos representantes eleitos bravejam um projeto
provinciano contra o que chamam de ideologia de gênero (LOM 04/2018 -
Ponta Grossa, Pr).

Pese a isso, o lugar social do aluno, segundo ano do Ensino Médio, onde
grande parte era evangélicos neopentecostais, um universo de oitenta
adolescentes, uma multiplicidade única de desejos, sonhos e preconceitos
raizadas pela família e os grupos dos quais faziam parte. Esse é o pano de
fundo desse texto, que tem como objetivo apresentar minha experiência
pedagógica do ano de 2019, referente às discussões e produções realizadas
no conteúdo sobre questões de gênero, na cidade de Ponta Grossa, Paraná.

Questões de gênero e as propostas de abordagens


As discussões da atualidade não ficam alheias às questões de gênero, seja
para discutir sobre os papéis impostos acerca do que é ser feminino ou
masculino, ou dos estereótipos negativos em relação àqueles que fogem
dos arquétipos binários, cujos discursos resistem ao mundo pós-moderno
ou mesmo defender padrões e condutas ultrapassadas tendo como
parâmetro referências religiosas mal interpretadas.

A escola, no entanto, se esquivou por muito tempo dessa discussão,


mantendo ao longo de sua existência apenas uma abordagem sanitarista
em relação à sexualidade e seus desdobramentos, mas as novas demandas 443
da sociedade não a permitem mais omitir-se ou esquivar-se por mais
tempo, assim, como não é possível que as disciplinas de humanas fechem
os olhos a ela.

Nas disciplinas de História, Sociologia e Filosofia, por exemplo, o gênero é


visto como uma construção social, o qual influência de forma
desconcertante diversas práticas sociais e ratifica normas comportamentais
e modelos adequados de ser a agir dos membros de uma sociedade. Como
colocou Amanda Rabelo, o conceito diz respeito aos:

“atributos diferentes a homens e mulheres consolidada durante toda a vida,


o que determina as relações entre os sexos em vários aspectos. O uso deste
termo objetiva sublinhar o carácter social das distinções fundadas sobre o
sexo e a rejeição do uso da palavra sexo que, etimologicamente, se refere à
condição orgânica que distingue o macho da fêmea, enquanto que a palavra
gênero se refere ao código de conduta que rege a organização social das
relações entre homens e mulheres” (RABELO, 2010, p. 161).

Esse “código de conduta”, que impõe lugares sociais e condensa uma


diversidade identitária em dois grandes blocos (masculino e feminino), trata
como anormal as formas que escapam de sua óptica binária e deseja a todo
custo extirpar tais diferenças do comportamento de seus agregados. E
sendo a escola a grande reprodutora de normas e convenções sociais, nada
mais corriqueiro que ela mantenha uma perspectiva ultrapassada em
relação ao conceito de gênero, ou ignore as demandas atuais, por não se
sentir confortável ao abordá-lo, ou pressionada pelos dirigentes como tem
sido comum nos últimos anos.

Isso porque não há como falar de gênero sem falar de sexualidade, da


diversidade desta e das orientações sexuais dos indivíduos que compõem a
sociedade, e este assunto ainda é considerado tabu. Mesmo que escola
tenha em seu histórico uma prioridade de abordagem dessa temática sob
uma perspectiva sanitarista, ou relacionada à saúde pública, fato que só
mudou no último quartel do século XX, as discussões ainda precisam
caminhar para além desse ponto. Como apontado por Andreza Marques de
Castro Leão (2009):

“A sexualidade no ambiente escolar geralmente é vista como forma de


prevenir ou sanar os “problemas” de natureza sexual. Contudo, a partir da
última década do século XX alguns acontecimentos trazem contribuições
significativas à abrangência deste assunto pelas escolas, não mais vinculado
somente à precaução” (LEÃO, 2009, p.28).
Por isso, em sua tese, Andreza Marques de Castro Leão (2009, p.118)
afirma que é papel do professor atuar sobre a temática, visto que as
questões de gênero e orientação sexual é uma questão básica para a
cidadania, não apenas no curso de Pegagogia, mas em todos os cursos de
formação de professores, e friso que consequentemente nos cursos de
humanas, principalmente nas disciplinas de História, Sociologia e Filosofia.
444
Isto em razão de quê:

“os estudos das relações sociais de sexo/gênero permitem a apreensão das


diferenciações hierarquizadas na relação entre mulheres e homens, que se
estabelecem no processo produtivo; possibilitam o desvelamento de uma
construção histórico-social do ser mulher, do ser homem. Uma construção
que estabelece relações de poder, inscritas sobre corpos sexualizados,
forjadas objetivamente por múltiplas instâncias sociais, e que se subjetivam
através de mecanismos de socialização” (MILHOMEM, 2015, p.38).

Assim, trabalhar as questões de gênero é dever do professor que ensina


para a cidadania, e ser cidadão é compreender e respeitar o outro, estar
ciente de seus direitos e deveres. As abordagens sobre gênero, na escola,
precisam refletir na quebra de estereótipos negativos, na desconstrução do
discurso binário acerca de nossos papéis de gênero e orientações sexuais.
Não há cidadania na exclusão, seja ela de que ordem for, não se forma
cidadão quando se ratifica uma proposta onde o sujeito não pode ser ele
mesmo, mas deve estar dentro do paradigma obtuso que se afirma a
revelia das mudanças sociais.

Esses papéis forjados dentro de uma esfera de controle de mentes e corpos


são propagados em discursos que estão presentes nas mais diversas facetas
do nosso cotidiano, entre elas os estereótipos que reproduzimos conscientes
ou inconscientemente nos contos de fadas. Estes nos dizem como as
mulheres devem se comportar, seus atributos físicos e psicológicos, da
mesma forma traz essa perspectiva em relação ao masculino, mostrando
modelos comportamentais e valorando a performance do príncipe ou
cavalheiro, enfim, do herói.

Para Maria do Carmo Gonçalo Santos:

“A relação entre os contos de fadas e gênero pode conduzir à formação de


vários estereótipos na vida das crianças, meninas/os ou transgêneros; por
elas/eles se identificarem com os/as personagens e buscarem trazer, para a
sua realidade, as características desses personagens” (SANTOS, 2018,
p.45).

Os contos não falam daqueles que fogem aos paradigmas de gênero e


propõem modelos negativados aqueles que fogem das concepções ideais de
ser masculino e feminino. Os que quebram as regras e enfrentam o poder
vigente são bruxas, ogros, vilões e estes têm as suas características
voltadas a tudo que é considerado feio, grotesco, desarmônico.
As bruxas, por exemplo, são mulheres que desconhecem a bondade,
invejosas, traiçoeiras, aterrorizantes, seus aspectos físicos são descritos
como repugnantes, trazem verrugas, rugas e defeitos diversos, além, de
estarem sempre acompanhadas de um livro, onde anotam seus feitiços e
maldades (ler e escrever são um ato subversivo, só as bruxas seriam
capazes de tal quebra na harmonia do corpo social, não é atoa que alguns
filmes sobre contos de fadas trazem uma releitura sobre isso, “Para sempre 445
Cinderela”, de Andy Tennant, é um exemplo dessas releituras).

As bruxas são acompanhadas de animais peçonhentos, fazem planos cruéis


e mágicas maléficas, elas são sempre detidas pelo príncipe, cujo caráter e
coragem está sempre pronto a destruir a mulher feia e má ou enfrentar o
perigo de seres que não tem lugar na paisagem paradisíaca dos contos de
fadas.

Já as princesas precisam caber na caixinha ou no sapatinho de cristal, assim


como o príncipe precisa encaixar-se nos ideais masculinos de beleza e
generosidade. Essas caixinhas propostas pelos contos de fadas, ainda
insistem em nos acomodar em suas formas etiquetadas e foi pensando
nelas e a partir desses quadrados que o trabalho se desenvolveu.

Num primeiro momento situamos e abordamos nosso conceito (gênero),


colocando as discussões que o fizeram surgir como uma categoria analítica
e as razões pela qual o gênero é uma construção histórica e social, uma
categoria de análise que surgiu das lutas do movimento feminista, do qual
abordamos as três ondas e as demandas que a estes correspondem.

Não poderíamos abordar o tema sem falarmos em Simone de Beauvoir


(1980) ou mesmo as concepções freudianas sobre o falo. Ao falarmos de
papéis de gênero destacamos, no quadro, características qualitativas
psicológicas e físicas de formas de agir consideradas corretas para ambos
os sexos biológicos.

Posteriormente questionei sobre aqueles que fogem de tais modelos, e de


onde vêm estas determinações e regras. Respostas foram surgindo: da
escola, da família, etc., onde e com quem aprendemos que ser delicada é
coisa de mulher. Questionei que se lá na infância não aprendíamos a ser
assim e acreditar que isso era correto porque nos foi passado na literatura,
passando daí a abordar os contos de fadas. Então, a desconstrução de
estereótipos começou.

Quando os personagens não cabem na caixinha: contos pós-


modernos
Após discussões sobre gênero, sexualidade e formas de controle de corpos,
estereótipos aceitos e rejeitados na sociedade, abordei como os modelos
femininos e masculinos estão presentes nas mais diversas formas de
discurso social, entre elas, a literatura, com os contos de fadas. Antes de
abordar as histórias da carochinha, questionei os alunos sobre o
conhecimento a respeito de algumas, como Bela Adormecida, Cinderela,
Chapeuzinho Vermelho e A princesa e o sapo.
Expliquei que os contos de fadas não foram apenas historinhas para colocar
crianças para dormir e que em sua origem serviam como lição de moral ou
para dizer como os grupos deviam agir e se comportar. Abordei o livro de
Robert Darnton (1986), O grande massacre de gatos, onde o autor aborda a
história de Chapeuzinho Vermellho e tece comentários sobre as
446
interpretações psicanalíticas a respeito do conto, além de situá-lo
historicamente e assim trazer a luz dados relevantes sobre sua origem, as
intenções e os tons que se desenham na narrativa. Vale lembrar que na
perspectiva de Darnton, os contos populares são documentos históricos e
como tais de forma alguma podem ser neutros ou deixar de ser
questionados. Para o autor, os contos:

“Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes


transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as
imutáveis operações do ser interno do homem, sugerem que as próprias
mentalidades mudaram” (DARNTON, 1986, p.26).

Daí a recontar alguns contos tradicionais, mas a cada conto abordado os


questionava se a história sempre fora assim ou havia outras versões, a
partir daí narrei as versões anteriores dos Irmãos Grimm e Perraut a cerca
da Cinderela, Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho, só então partimos
para uma análise dos contos de fadas, tendo como objetivo a caracterização
dos modelos de masculino e feminino ratificados nas narrativas.

A partir do quadro criado com as principais características das personagens


principais, sem esquecer os vilões, cujas performances negativas também
foram objeto de discussões, os alunos apontaram diversas desigualdades de
gênero e sociais presentes nas histórias.

E pensando na mutabilidade das mentalidades e ressignificância das


narrativas foi proposto como avaliação que os alunos realizassem uma
releitura de um dos contos de fadas, os quais foram sorteados entre os
grupos, a proposta incluía além da releitura feita em preto e branco, uma
versão colorida que no final deveria constar o conto original e uma pequena
conclusão sobre a temática.

Os trabalhos surpreenderam pela qualidade e entendimento da proposta,


tivemos de príncipes gays a princesas lésbicas, uma busca de
representatividade de meus alunos LGBTS, houve princesas que se
salvaram sozinhas ou derrotaram o dragão indo estudar e se tornar magas,
outras preferiram fazer desejos ao poço para viver com no brejo com seu
amigo sapo, e outra ainda transformou o príncipe em sapo, costurou o
nome da amada na boca dele e foi ser feliz com sua camponesa. Os alunos
trouxeram para o seu contexto os contos de fadas e muitos fizeram a
narrativa pensando em contá-las aos irmãos menores ou a outras crianças,
para que não crescessem com os mesmos estereótipos negativos que os
seus.
Algumas considerações
O universo do conto de fadas é fantástico, suas narrativas são envolventes
e criam modelos e aspirações que nos acompanharão de forma positiva ou
negativa durante nossas vidas. As releituras feitas pelos alunos mostraram
muito do seu universo e entendimento de mundo, descontruíram
paradigmas negativos.
447
Demostraram uma consciência voltada à cidadania e a tolerância,
propuseram autoestima e respeito à diversidade ao caracterizarem
princesas negras ou gordas, príncipes gays e Chapeuzinho que entregou o
lobo às autoridades por pedofilia. No universo mental dos alunos,
percebemos uma visão plural de gênero e dos papéis destes. Nas suas
conclusões e explicações acerca de suas produções encontramos o
entendimento dos conceitos trabalhados, o caminho ainda insipiente da
construção de um mundo mais plural.

Já trabalho há alguns anos com essa temática e sempre busco trazer


abordagens diferentes em relação ao conteúdo, confesso que foi um
momento de minha vida profissional que deixará saudades, não só por
essas atividades, mas por todas aquelas que elaboramos no decorrer do
semestre, dos documentários sobre feminicídio aos depoimentos sobre
machismo e violência doméstica, pelas discussões prazerosas e por vezes
acalorada, pela confiança quando partilharam suas vivências.

Há tempos que nos orgulham como professor, há histórias que precisam ser
contadas e recontadas, contos pós-modernos que na atualidade podem
começar por: era uma vez, uma bruxa que se tornou professora e gostava
de ensinar crianças a pensar...

Referências
Doutora em História, pela Universidade Estadual de Maringá. Professora da
Educação Básica. E-mail: cathain_celta@hotmail.com

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
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pedagogia da UNESP-Araraquara quanto à inserção das temáticas de
sexualidade e orientação sexual na formação de seus alunos. 2009. Tese
(Doutorado em Educação Escolar) - Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara, 2009. Disponível
em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/101587 Acesso em: 10
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experiências vividas na rede municipal de Palmas, Tocantins. Caderno
Espaço Feminino, v. 28, n. 1, p. 36-50, 2015. Disponível em:
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10 março 2020.
RABELO, Amanda Oliveira. Contribuições dos estudos de género às
investigações que enfocam a masculinidade. Ex æquo., n. 21, p. 161-76,
2010. Disponível em:
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0874-
55602010000100012&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 10 março 2020.

448
SANTIDADE E VIRGINDADE NAS CARTAS DE SANTO
AGOSTINHO DESTINADA ÀS MULHERES: UMA QUESTÃO DE
GÊNERO PARA O SÉCULO XXI
Thaís Correa da Silva

A questão de gênero é um debate relativamente novo, o "apogeu" de sua 449


discussão se dá entre os fins da segunda onda feminista e o início da
terceira onda. Entender qual o significado do conceito gênero e o contexto
em que se deu sua gênese é importante para as conclusões finais deste
artigo, que tem como objetivo identificar e compreender os significados de
virgindade e santidade presentes em cartas de São Agostinho, sendo essas
direcionadas a mulheres.

Sobre gênero, a autora Joan Scott nos diz que: "As pesquisadoras
feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria
não só novos temas como também iria impor uma reavaliação crítica das
premissas e critérios do trabalho científico existente." [SCOTT, p.3, 1991].

Esse trecho da autora nos mostra que a concepção de gênero, além de se


dar em um período específico, é criada devido à intensificação de estudos
voltados para a área feminista. Scott também afirma que: "A palavra
indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos
como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero sublinhava também o aspecto
relacional das definições normativas das feminilidades.". [SCOTT, p.3,
1991]. Já a Profª Dra Andréa Praun, em seu artigo afirma que: “O termo
gênero, classificação construída pela sociedade, contribui para exacerbar a
distinção entre indivíduos de sexos diferentes. Essa classificação possibilita
a construção de significados sociais e culturais que distinguem cada
categoria anatômica sexual e que são repassados aos indivíduos desde a
infância.” [DEZIN, 1995, apud NOGUEIRA, 2001, apud PRAUN, 2011].

A questão sobre a santidade e virgindade, que serão aqui abordadas, deve


ser analisada levando-se em consideração os aspectos a qual essas
"qualidades" são submetidas nas cartas escritas por Santo Agostinho.
Posteriormente, poderemos observar que a questão do gênero ainda não
era significativamente importante, pelo menos em algumas abordagens
contidas nas cartas. Deve-se levar em conta que este conceito não existia
na época em que as correspondências foram trocadas.

As cartas foram escritas no século V, antes do fim do Império Romano.


Entretanto, Santo gostinho influenciou e influencia até hoje o pensamento
religioso Católico-Apostólico- Romano. Agostinho de Hipona, mais
comumente conhecido como Santo Agostinho, nasceu no dia treze de
novembro de 354 d.C., em Tagaste [nos dias atuais Souk Ahras, Argélia], e
falecido no dia vinte e oito de agosto de 430 d.C., em Hipona [nos dias
atuais Annaba, Argélia].
Santo Agostinho escreveu diversas cartas em sua vida, algumas delas
destinada a mulheres. Estas cartas foram analisadas de modo a se tentar
compreender como o Santo lidava com a noção da santidade e virgindade
em sua troca de correspondências com essas mulheres, e, de que modo
atribuía essas designações as pessoas. Por meio da análise de discurso ,
todas as dezoito cartas foram lidas e analisadas, tendo como foco principal
450
a “captura” das palavras, virgindade, santidade ou sinônimos. Além disso,
se prezou a observação de que se a existência dessas palavras
[santidade/virgindade] possuía alguma interação. Após a leitura dessas
cartas, foi possível concluir que apenas cinco possuíam referências tanto a
virgindade, como a santidade. A seguir, uma breve descrição do conteúdo
dessas epístolas será apresentada, juntamente com algumas conclusões
individuais.

A primeira carta a ser analisada será a 263. Tem como título-tema: “Carta
de consolación”. Foi escrita por volta de 420 d.C., tendo como destinatária
Sápida. Como sugere o tema, trata-se de uma carta de consolação. Santo
Agostinho escreve a Sápida de modo a tentar consolá-la devido ao
falecimento de seu irmão. Há não só referências às palavras santidade e
virgindade como também existem a relação entre elas. Logo no início,
Santo Agostinho a denomina como uma santa filha. “Agustín saluda en el
Señor a Sápida, señora piadosísima y santa hija”.[Agostinho de Hipona,
Epístola 263]. Outra referência é observada ao se falar de seu falecido
irmão, segue-se: “[...] para tu hermano, santo ministro del
Señor”.[Agostinho de Hipona, Epístola 263]. Aqui, a designação de santo foi
utilizada levando-se em conta o fato de que Timeteo fazia parte do clero.
Em outro trecho, Santo Agostinho a designa como “Santa irmã”. [Agostinho
de Hipona, Epístola 263].

Partindo para a referência a virgindade, temos o seguinte trecho: “Es para


llorar que a ese hermano, que te amaba tanto por tu vida y profesión de
sagrada virginidad [...]”.[Agostinho de Hipona, Epístola 263]. Neste trecho
é extremamente explícita a relação que se tem entre santidade e
virgindade. Santo Agostinho continua consolando Sápida, e afirma que seu
irmão a amava não só pela sua vida, como também pela sua “profissão de
sagrada virgindade”. Este trecho nos demonstra que, na visão de Santo
Agostinho, a virgindade está completamente ligada com o sagrado, ou
melhor, a virgindade é uma coisa sagrada, que não é só considerada por
ele, como também pelo falecido irmão de Sápida. Nesta correspondência,
fica clara a diferença de designação da santidade. Enquanto Timoteo era
considerado santo pelo seu ministério, ou seja, por trabalhar para igreja,
Sápida era considerada, como “santa filha” e “santa irmã” por preservar sua
virgindade, que é tida como sagrada.

A segunda carta é a de número 130. Foi escrita por Santo Agostinho após
411 d.C. Esta carta possuiu como título-tema: “La oración”. O tema
principal tem como foco conselhos (relacionados à oração) dirigido a uma
viúva. Nesta correspondência, é possível observar diversas referências, não
só sobre santidade, mais também sobre a virgindade. Porém, me
concentrarei em apresentar as menções que possuem relações. No trecho:
“Y no sólo tú, sino tu religiosísima nuera con tu ejemplo y las demás santas
viudas y vírgenes que se hallan bajo vuestra protección”. [Agostinho de
Hipona, Epístola 130]. Aqui podemos observar claramente a relação entre
santidade e virgindade [não só as virgens são consideradas sa ntas, mas as
viúvas também]. Ou seja, assim como na carta anterior, vê-se que para
Santo Agostinho a virgindade – no caso das mulheres- está ligada á
santidade. Entretanto, como dito anteriormente, esta carta tem como 451
objetivo auxiliar uma viúva a como proceder após o falecimento de seu
marido. É importante destacar a presença das palavras santo e santa, que
aparecem tanto para homens como para mulheres. No caso da santidade
alcançada graças à permanência da virgindade, deve-se tomar cuidado. A
remetente da carta, Proba, é viúva, o que significa que ela foi casada
anteriormente, e, muito possivelmente teve relações sexuais com seu
marido, ou seja, ela não é mais virgem. Entretanto, mesmo assim, Santo
Agostinho continua definindo-a como santa, a questão é, por quê? A
resposta pode ser retirada do trecho a seguir: “De todas estas
preocupaciones está libre la virginidad integral”. [Agostinho de Hipona,
Epístola 130]. Pode-se concluir, com base nessa passagem, que diferente
das virgens, que geralmente se preocupam com questões como:
matrimônio, filhos e o futuro destes, assim como sua própria virgindade,
Proba está livre desses questionamentos devido sua atual situação, o que
possibilita que suas atenções se voltem as orações. Ou seja, mesmo já
tendo sido casada, a santidade de Proba não é afetada, devido a sua viuvez,
que lhe proporcionou uma vida sem questionamentos “mundanos”, e uma
vida voltada para a oração, o que lhe dá, na visão de Santo Agostinho, a
classificação de pessoa santa.

A próxima epístola, 188, data entre os fins de 417 e inicio de 418 d.C.,
dirigida a Juliana. Esta, juntamente com as duas cartas a seguir, são as que
mais possuem referências entre virgindade e santidade. O titulo-tema é:
“Precaución ante un escrito de Pelagio a Demetríade” [Agostinho de Hipona,
Epístola 188]. O assunto que é discorrido durante toda correspondência se
remete o fato da filha de Juliana ter escolhido permanecer virgem, ou seja,
decidiu não se casar, em favor de uma vida voltada para a religião,
dedicada em suas orações. Como dito anteriormente, nesta carta existe
bastantes menções a santidade e a virgindade. Utilizarei dois trechos para
prosseguir em meus comentários. Leia-se, a seguir:

“Ella profesó la santidad del estado virginal”. [Agostinho de Hipona, Epístola


188].
“Que la virgen de Cristo lea en ese libro, si eso es lícito, por qué cree que su
santidad virginal y todas sus riquezas espirituales no son sino de propia
cosecha”. Que la virgen de Cristo lea en ese libro, si eso es lícito, por qué
cree que su santidad virginal y todas sus riquezas espirituales no son sino
de propia cosecha. [Agostinho de Hipona, Epístola 188].

Esses dois trechos apresentam a ligação entre a santidade e virgindade,


onde a escolha de Demetríade em permanecer virgem para ter como foco
uma vida religiosa, faz com que ela alcance o “status” de uma mulher
santa. Entretanto, deve-se atentar para o fato de que essa santidade é
conquistada não pela virgindade, mas sim pelo motivo que levou que
Demetríade preferisse levar uma vida de castidade ao invés de adquirir
matrimonio, servir a Deus.

Na quarta correspondência, a de número 150, assim como a anterior,


possuiu muitas referências à santidade e virgindade. Ela, novamente é
452
dirigida a Juliana, e também, a Proba. Datada entre os anos 413/414 d.C.,
tem como título-tema: “Gozo por la consagración virginal de Demetríade”
[Agostinho de Hipona, Epístola 150]. O assunto abordado nesta
correspondência se refere a já citada anteriormente, escolha e adesão de
Demetríade a vida santa e casta. Nesta carta, Santo Agostinho felicita
Juliana e Proba pela escolha de Demetríade. Novamente, trago um trecho
que se refere à santidade e virgindade:

“Sois conocidas en todas partes. La fama volandera predica por doquier la


santidad virginal de vuestra estirpe [...]”.[Agostinho de Hipona, Epístola
150].

Neste fragmento, além de novamente, como na carta anterior -188-,


relacionar a escolha de Demetríade em permanecer virgem á santidade,
vemos a exaltação de Santo Agostinho a essa escolha, citando até mesmo a
“fama”, graças ao fato de que a decisão de Demetríade foi conhecida por
outras pessoas.

A última epístola, das dezoito, que contém menções tanto a virgindade


como a santidade é a de número 208. É dirigida Felícia, escrita depois de
411. Possui como título-tema: “Carta de consolación y exhortación”
[Agostinho de Hipona, Epístola 208]. Nesta correspondência, Agostinho
consola Felícia, que parece estar vivendo um momento de fraqueza
espiritual, devido a escândalos que, pode-se supor, assolam e perturbam a
remetente. Santo Agostinho lhe dirige palavras com o objetivo de
reconstituir sua fé, de modo que ela siga com suas orações. Nesta carta,
podemos observar algumas menções a santidade e virgindade, embora não
estejam relacionadas. Leia-se a seguir tais referências:

“Encomendándole a El tu corazón, tu compromiso, tu virginidad, tu fe,


esperanza y caridad, no te afectarán los escándalos, que abundarán hasta
el fin, sino que te salvarás con el firme vigor de la piedad y serás gloriosa
en el Señor, perseverando en su unidad hasta el fin.” [Agostinho de Hipona,
Epístola 208].

“[...] pensé que debía enviar a tu santidad esta carta de consuelo o


exhortación”. [Agostinho de Hipona, Epístola 208].

No primeiro trecho, vemos a tentativa de Santo Agostinho para manter


Felícia forte nesses momentos conturbados que estão lhe afligindo, nele,
vemos Agostinho citar que a receptora da carta mantivesse sua virgindade
confiada a Cristo. Já no segundo trecho, vemos apenas uma pequena
menção à santidade, porém, esta não possuiu relação com o termo
virgindade, exposta anteriormente.
Esse artigo se limitou a analisar e expor, entre as dezoito cartas que foram
escritas por Santo Agostinho e foram destinadas a mulheres, quais
possuíam relações entre santidade e virgindade. Nas cinco cartas analisadas
podemos concluir que existe uma clara relação entre o alcance de a
santidade estar submetida ao estado de virgindade [a exceção é a carta
208, onde, mesmo havendo referências não só a virgindade, como a 453
santidade, não temos uma relação explícita entre essas duas designações].
Entretanto, antes de concluir, é interessante expor um fato curioso. As
demais cartas [quinze], mesmo que não possuam uma referência à
virgindade possuem à santidade. A sua designação se dá em um contexto
diferente. Para demonstrar isso, utilizarei a carta 31. Tendo como título-
tema: “Contestación a dos cartas de Paulino. Envío y petición de libros”.
[Agostinho de Hipona, Epístola 31]. Datada entre os anos 395/396 d.C., foi
escrita por Agostinho para Theresia, tendo como temática a resposta de
cartas anteriores, escritas por Paulino [irmão de Theresia], assim como o
envio de livros que lhe foram solicitados. Nesta carta, é interessante
observar que Santo Agostinho não distingue [levando-se em consideração o
gênero] ao tratar de ambos os irmãos, muito pelo contrário. Em diversas
passagens, encontramos referências à santidade. Porém, é necessário
destacar o contexto dessa designação. Em um primeiro momento, mais
especificamente no primeiro parágrafo, Santo Agostinho diz:

“He recibido con gran alborozo en el Señor a los santos hermanos Romano
y Ágil, otra carta vuestra [...]”. [Agostinho de Hipona, Epístola 31].

Neste trecho, fica claro que a designação de santos irmãos se dá pela


extrema consideração que Santo Agostinho tem com Romano e Ágil que
receberam as cartas escritas anteriormente por Paulino, provavelmente,
eles fazem parte do clero - e vivem com Santo Agostinho -, o que reforçaria
a denominação de santos irmãos.

Outra referência pode ser encontrada na carta, leia-se a seguir:

“Creo que tu santidad descubrirá, con la sagacidad espiritual que el Señor te


da, la parte buena que Romaniano tiene y aquella de que adolece por
debilidad. Habrás leído, como lo espero, con qué solicitud recomendé a tu
humildad y caridad tanto a él como a su hijo, y qué familiaridad me une con
ellos. El Señor los edifique por tu ministerio.” [Agostinho de Hipona, Epístola
31].

Neste trecho, fica claro que a designação de santidade se refere ao fato de


Paulino ser padre, ou seja, esse modo de tratamento dado a ele por Santo
Agostinho leva em consideração o caráter religioso, já que a carta nos leva a
supor que ele é um padre. A palavra é observada em outro trecho:
“Creo que tu santidad tiene los libros del bienaventurado Ambrosio [...]”. Por
último, a seguir, é possível observarmos uma referência a ambos os irmãos:
“Oh santos hermanos, amados de Dios, miembros recíprocos nuestros”.
[Agostinho de Hipona, Epístola 31].
Com base nos trechos retirados, podemos concluir que, nesta carta, Santo
Agostinho não faz uma distinção de gênero ao designar alguém como santo.
No caso de Romano e Ágil, pode-se supor que eles são padres, por estarem
com Santo Agostinho, lendo a carta que foi escrita anteriormente. No caso de
Paulino, temos uma referência que remete ao fato dele ser um irmão em
Cristo, pelo fato de também ser um sacerdote. Já no trecho em que ambos
454
são chamados de santíssimos irmãos, essa denominação foi utilizada de modo
a demonstrar a imensa consideração que Agostinho possui por ambos.

Comparando essa correspondência, que cita santidade, com as demais cartas,


que além de citar, relacionam santidade e virgindade entre si, é possível
chegar a uma conclusão. A visão de santidade para Santo Agostinho pode ou
não ter relação direta com a virgindade. Isto vai depender do contexto e do
indivíduo a quem se refere. Na carta 31, vemos que ambos os irmão são tidos
como santos, devido as suas atividades voltadas para a religião, entretanto,
em nenhum momento a virgindade é dada como uma condição para se
alcançar o “status” de santo [a]. Já nas cartas destinadas às mulheres, vemos
a todo o momento a santidade interligada com a virgindade. Em meu ponto de
vista, as cartas que mais exemplificam isso são as que remetem a escolha de
Demetríade a preferir viver uma vida casta e religiosa do que se submeter ao
casamento [cartas e 150 e 188]. É claramente explícita a exaltação que Santo
Agostinho faz, não só a Demetríade, mas a Proba e Juliana, pela escolha da
primeira, chegando a alegar que:

“[...] la santidad virgin al de vuestra estirpe [...]”.[Agostinho de Hipona,


Epístola 188].

Nesse contexto, pode-se observar que a questão de gênero é bastante


considerada [tomando o devido cuidado, para, nesse caso, não fazer
anacronismo, já que a definição de gênero não existia no período analisado],
de que, ao considerar uma mulher santa, Santo Agostinho, quase que
instintivamente, levava em conta sua virgindade. Ledo engano é pensar que
somente as mulheres estavam submetidas a isso, já que na carta 131, é
mencionado o cuidado com a concupiscência- “Así, con el buen uso se
convierten en bienes, no acrecientan nuestra concupiscencia y ejercitan
nuestra paciência”. [Agostinho de Hipona, Epístola 131]-, tanto do lado do
homem, quanto o da mulher, porém, é nítido que, a virgindade relacionada
com a santidade tem um maior significado para a mulher, na visão de
Agostinho de Hipona.

Por fim, é válido destacar que as treze cartas restantes [as já citadas 131 e
31, assim como a 32; 99; 124; 126; 127; 210; 262; 264; 265; 266 e 267]
possuem algumas referências à santidade. Em sua maioria, destinadas à santa
escritura, ou, como na carta dirigida a Theresia, a santos irmãos, como pode
ser observado a seguir: “Quizá vuestra santidade” [Agostinho de Hipona,
Epístola 124]; “[...] gozar perpetuamente con los santos [...]”. (Agostinho de
Hipona, Epístola 267); “[...] un acuerdo más santo [...]”. [Agostinho de
Hipona, Epístola 262].
Referências:
Thaís Correa Da Silva é graduanda em História [licenciatura] na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

Agostinho de Hipona, Epístolas (31; 92; 99; 124; 126; 127; 130; 131;
150; 188; 208; 210; 262; 263; 244; 265; 266 e 267). 455
Disponíveis para consulta em:
http://www.augustinus.it/spagnolo/lettere/index2.htm

PRAUN, Andrea Gonçalves. Revista Húmus - ISSN: 2236-4358


Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N° 1 Sexualidade, gênero e suas relações de
poder. Revista Húmus, [s.i.], v. 1, n. 1, p.55-64, Não é um mês valido! 2011.
Quadrimestral. Disponível em:
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/revistahumus/issue/view/
128

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução de


Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Recife, SOS Corpo, 1991.
SILVA, A. C. L. F. Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em
perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e
gênero. Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002.
A UTILIZAÇÃO DA HQ BATTLEFIELDS - AS BRUXAS DA NOITE
NO ENSINO DE HISTÓRIA: REPRESENTATIVIDADE FEMININA
NA II GUERRA MUNDIAL
Thaís da Silva Tenorio e Katty Cristina Lima Sá

456 O uso das imagens no ensino de História não é uma proposta inovadora. Ao
folhear o livro didático encontramos durante as narrativas fotografias,
quadros e mapas que estabelecem algum tipo de relação com o que está
sendo abordado. Entretanto, apesar do fasto conteúdo iconográfico disposto
nos materiais, não se tem realmente um devido cuidado ao colocado ali, do
mesmo modo que não há por parte do professor e do aluno uma
contextualização daquele elemento. O que aquela imagem significa? Qual é
a sua história e o que ela nos conta a respeito do período no qual foi feita?
São questionamentos que deveriam ser feitos e respondidos em sala, nos
quais os educadores estariam estimulando não só o aprendizado dos
educandos, como também exercitando a capacidade de ler imagens além do
texto.

Apesar da modernidade dispor de vários elementos que poderiam auxiliar


no processo de ensino e aprendizagem em sala, ainda existe uma certa
resistência para com a utilização de determinados materiais em sala. Não se
sabe se é por despreparo para o manuseio ou se é somente pelo viés
engessado que muitos profissionais dão a educação, algumas produções
midiáticas que teriam um potencial considerável para ensino, são renegadas
e por vezes até acusadas de prejudicar o desenvolvimento cognitivo dos
alunos, como é o caso das Histórias em Quadrinhos [HQs].

Em meio a II Grande Guerra, autores que produziam Histórias em


Quadrinhos com temas que abordavam o que estava se passando no
cotidiano social, ou seja, medo e terror, sofreram grandes críticas por parte
de pais e educadores. Isso porque eles entendiam que as obras ao traziam
temas preocupantes que não deveriam estar no imaginário das crianças e
jovens da época. Tal preocupação é acentuada com a Guerra Fria, na qual o
psiquiatra Fredric Wertham foi um dos grandes nomes que, em conjunto
com pais, educadores, grupos religiosos, criticavam a leitura dos quadrinhos
como também investiam em ações que impedissem o progresso e
disseminação dessa literatura [VERGUEIRO, 2010].

Desde seu surgimento em meados do século XIX, até os dias atuais, aos
quadrinhos configuram-se em um meio de comunicação que, ao unir texto e
imagem, detém um grande poder de transmitir ideias e visões de mundo
não só da época que buscam retratar como principalmente da época que
foram produzidas. Segundo André Luiz Sigueira [2012], é errôneo e até um
tanto quanto inocente reduzir as HQs um mero produto da indústria de
comunicação que tem por objetivo divertir, como um passatempo. Seu
conteúdo comporta uma linguagem codificada, jogos de palavras, imagens
e cosmovisões de uma época, que quer queiram quer não exprimem
ideologias próprias de um determinado período.
Desta forma, entendendo os Quadrinhos como um documento que exprime
ideias, valores e um retrato histórico social que ao unir a imagem ao texto
torna mais fácil a assimilação e a compreensão de um determinado fato ou
tempo histórico, o presente artigo tem por objetivo discutir a viabilidade da
utilização das Histórias em Quadrinhos [HQs] como fontes para o ensino de
História na sala de aula, apresentando ao fim duas produções que podem 457
ser empregadas tanto no ensino da História nacional quanto da História
Geral.

O trabalho com quadrinhos vem para promover uma quebra nessa tradição
cuspe-giz da sala de aula pode ser muito eficiente. Para Will Eisner [1989],
a Nona Arte, pois se constitui num veículo de expressão criativa, uma
forma que junta o artístico e o literário, de forma que dispõe as imagens,
figuras e palavras para contar uma história ou dramatizar uma ideia. Sendo
assim um conteúdo relevante no processo de aprendizagem.

Chamamos quadrinhos pela denominação de Nona Arte baseados na


classificação de Ricciotto Canudo, crítico italiano de cinema durante o
modernismo, que organizou as artes vigentes na seguinte ordem: 1ª Arte –
Música [som] 2ª Arte – Dança/Coreografia [movimento] 3ª Arte – Pintura
[cor] 4ª Arte – Escultura [volume] 5ª Arte – Teatro [representação] 6ª Arte
– Literatura [palavra] 7ª Arte – Cinema [integra os elementos das artes
anteriores]. A partir de então, com o surgimento da fotografia, dos
quadrinhos, games e novos formatos de arte digital, deu-se continuidade a
classificação das artes e surgiram as seguintes: 8ª Arte – Fotografia
[imagem] 9ª Arte – Quadrinhos [cor, palavra, imagem] 10ª Arte – Jogos de
Computador e de Vídeo, e 11ª Arte – Arte digital [integra artes gráficas
computorizadas 2D, 3D e programação].

No entender do professor Túlio Vilela [2004], o uso de Histórias em


Quadrinhos pode sim ser efetuado de diversas maneiras pelos docentes, a
fim de fornecer uma ideia ou investigar sobre um fato ali representado,
reproduzindo ideias do período retratado como também do período que foi
produzido.

Deste modo, é exequível o desenvolvimento com alunos da educação


básica, promovendo o contato destes com outros tipos de fontes históricas
possíveis de serem estudadas. Não obstante, no que diz respeito a
pesquisa, o contato do professor com esse tipo de material permite não só a
ampliação de seus horizontes acadêmicos, como também pode despertar
seu olhar para o desenvolvimento de pesquisas nesse ramo, visando
trabalhar com o ensino de história e fontes audiovisuais, iconográficas e
eletrônicas.

Portanto, recordemos que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


[LDB], promulgada em 1996 abriu caminhos para a aceitação das Histórias
em Quadrinhos como suporte didático para o ensino da educação formal.
Segundo Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos [2009], as diretrizes
nacionais já apontavam para a necessidade de inserir outros tipos de
linguagens e manifestações artísticas e culturais no ensino fundamental e
básico, visando assim melhorar o processo de aprendizagem do aluno,
como também combater o grande número de analfabetos funcionais.

A mulher na Guerra: HQ Battlefields - As Bruxas da Noite


Quando se trata de ensinar o conteúdo sobre Segunda Guerra Mundial,
458
constatamos que a maior parte das narrativas se centram na figura dos
homens como bravos soldados independentes. Em contrapartida, às
mulheres é comumente dado o papel de trabalhadoras de fábricas ou
enfermeiras, sendo raramente citada nas aulas a participação feminina
como combatente no conflito.

Assim, é no intuito de levar aos educandos uma nova perspectiva sobre a


Segunda Grande Guerra, que propomos a utilização da história em
quadrinho Battlefields – As Bruxas da Noite, lançada no Brasil em 15 de
abril de 2016, com 164 páginas, pela editora Mythos com o título traduzido
para Campos de Batalha, como podemos ver abaixo.

A referida edição conta com narrativas lançadas originalmente nos EUA, da


minissérie Battlefields – Night Witches. Como já dito, as narrativas se
passam na Segunda Guerra Mundial, mais especificamente no verão de
1942, quando um esquadrão de bombardeios formado por mulheres faz
inúmeros ataques as bases nazistas. Enquanto o exército alemão avançava
perante aos russos e soviéticos, a tripulação feminina do 588º Regimento
de Bombardeios Noturnos se compromete a pilotar frágeis aeronaves,
embarcando em missões noturnas para liquidar os inimigos. Por suas
missões se sucederem pela noite e ela agilidade e sucesso em seus
objetivos, esse esquadrão de mulheres ficou conhecido entre os amigos e
inimigos como bruxas da noite, por isso o título dado a produção.

Seguindo a tradição de outras produções nas quais atuou, o Roteirista Garth


Ennis tentou ao máximo fugir dos clichês de uma história de Guerra. Na
narrativa não existem nem mocinhos nem vilões, só homens e mulheres
que têm objetivos e visões diferentes do certo e errado. A protagonista das
histórias é Ana Kharkova, a piloto do primeiro esquadrão de aviadoras da
União Soviética.

Com o aumento das baixas e o conflito devorando cada vez mais seus
companheiros, a tenente Anna Kharkova rapidamente passa de uma
adolescente ingênua a uma veterana de combate endurecida. O inimigo
nazista já é ruim o suficiente, mas o poder aterrorizante da polícia secreta
de seu país torna a morte na batalha quase preferível. Gravemente ferida e
exilada de seu próprio povo, Anna começa uma odisseia que a levará dos
campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial para os terríveis campos
de castigo soviéticos - e no topo do mundo, bem acima do Oceano Ártico, a
protagonista continua sua missão, na esperança de encerrar a Guerra e
levar a vitória ao seu país.

Historicamente, o regimento realizou bombardeios e missões contra os


militares alemães de 1942 até o final da Guerra. No seu maior, tinha 40
tripulações de duas pessoas, deixando cair mais de 3.000 toneladas de
bombas e 26.000 bombas incendiárias. Foi a unidade feminina mais
condecorada da Força Aérea Soviética, com muitos pilotos tendo voado
mais de 800 missões até o final da Guerra e vinte e três tendo recebido o
título de heroína da União Soviética.

Trinta e duas de seus membros morreram na guerra. Seus voos ocorriam 459
em Polikarpov U-2 de madeira e lona , um projeto de 1928 destinado ao
uso como avião de treinamento e para o pó de colheita , que também tinha
um especial U-2LNB versão para o tipo de missões de ataque noite assédio
transportados pelo 588, e até hoje continua a ser o mais produzido biplano
na história da aviação. Os aviões podiam levar apenas duas bombas de
cada vez, então oito ou mais missões por noite eram necessárias.

Embora as aeronaves estivessem obsoletas e lentas, os pilotos fizeram uso


ousado de sua excepcional capacidade de manobra, uma técnica de ataque
dos bombardeiros noturnos era acionar o motor perto do alvo e deslizar até
o ponto de liberação da bomba, com apenas ruído do vento para revelar sua
localização. Uma outra explicação do nome dado às heroínas advém dos
soldados alemães compararam o som a cabos de vassoura e chamaram os
pilotos de Bruxas da Noite. Devido ao peso das bombas e à baixa altitude
de voo, os pilotos não levaram paraquedas até 1944. Quando o regimento
foi enviado para a frente de Guerra em junho de 1942, o 588º Regimento
de Bombardeiros Noturnos estava dentro do 4º Exército Aéreo na Frente
Sul.

Tendo em vista o teor histórico da produção estudada, compreendemos


como esse quadrinho pode ser útil no processo de ensino da Segunda
Guerra Mundial. De modo que, a partir de uma narrativa que mistura o
lúdico com o real, o educando é capaz de compreender o evento histórico
através de um novo olhar, onde a mulher é protagonista e a Rússia e a
União Soviética estão em primeiro plano. Através do olhar humano e
sensível de Ennis e colaboradores, o leitor tem uma nova experiência ao se
debruçar na leitura, experiência essa que galgamos levar para sala de aula,
como forma de inovar junto aos processos de aprendizagem e
representatividade dos alunos, que discorreremos agora no tópico seguinte.

Levar um material para ser usado em sala de aula exige do docente muito
cuidado. Quando se trata de elementos visuais como os quadrinhos, a
prudência deve ser redobrada, visto que existem muitas produções que tem
uma recomendação de certa faixa etária por conterem imagens de lutas,
sangue e morte.Com o material escolhido, verificamos que este se
apresenta para a partir de 16 anos, sendo então apropriado apenas para o
ensino no 3º ano do ensino médio, no qual os alunos tem entre 16 a 20
anos/ou +.
Verificado a aplicabilidade etária da obra, iremos nos empenhar em uma
análise da HQ como um recurso didático na sala de aula. Sabendo de tudo
exposto no primeiro capítulo, compreendemos que a utilização das
diferentes linguagens para o ensino de História vem contribuindo para uma
maior dinâmica em sala de aula, de modo que no cotidiano o professor tem
a possibilidade de diversificar a prática do ensino e ofertar ao educando
uma melhor compreensão da mensagem histórica do evento.

Quando o aluno entra em contato com as imagens de forma isolada e não


apresentar conhecimentos prévios acerca do tema, ele poderá apreender a
real mensagem que elas objetivam passar. De modo que, quando a HQ
460
Campos de batalha é abordada como metodologia pelo docente, pode-se
buscar um maior envolvimento com o holocausto, tendo em vista que após
uma abordagem inicial teórica, as imagens serão apresentadas de forma
mais específica, chamando atenção para as nuances da produção.

Hunt [2006] nos diz que os documentos não são simples reflexos
transparentes do passado, mas sim ações simbólicas com significados
diferentes conforme os autores e suas estratégias os moldam. Assim, a
partir da Nova História Cultura, surge um interesse pela simbologia em
história, de forma que as relações sociais nos campos de produção e
interação cultural serão investigadas sob um olhar mais subjetivo. Na
supracitada HQ escolhida para o estudo de caso no presente capítulo, a
simbologia das imagens são uma constância, de modo que os educandos
são envolvidos tanto pela narrativa quando pela simbologia que elas
trazem. O passado é compreendido por uma nova ótica, ao desenvolver nos
leitores o envolvimento emocional.

A representação imagética é utilizada como uma forma de atrair o aluno por


não ser exatamente uma fonte tradicional. Apesar do estudo dos quadrinhos
como ferramenta de ensino ter avançado consideravelmente nos últimos
tempos, continua não sendo uma metodologia comum na comunidade
docente. Ao propor a utilização de uma produção que aborda um tema
histórico com uma narrativa verídica e que coloca como protagonista um
grupo que é comumente excluído desse período no que tange ao combate
bélico, a utilização dessa metodologia leva para a sala de aula o conceito de
Memória, que para Le Goff é: um elemento essencial do que se costuma
chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista é também
um instrumento e um objeto de poder [LE GOFF, 1990, p. 476].

Nesse ínterim, o quadrinho está o tempo todo rememorando o passado do


esquadrão feminino que lutou na Segunda Grande Guerra, esquadrão esse
que foi esquecido ou silenciado durante muito tempo nas narrativas sobre a
guerra. Desta forma, ao levar para a sala essa discussão, podemos além de
exercitar o historiar, resgatar e dar voz a história dessas mulheres que
foram tão importantes para a derrota dos nazistas.

Considerações finais
As recentes pesquisas na área do ensino têm demonstrado a importância de
se inserir outros tipos de linguagens nas salas de aula. As Histórias em
Quadrinhos, por sua vez são um tipo de linguagem diferençada por unirem
texto e imagem. Não obstante, é através de suas narrativas ficcionais ou
não que esse tipo de literatura remonta a tatos e épocas vividos,
explorando a imaginação por meio da leitura do texto e a interpretação das
imagens.

Assim sendo, buscamos ao longo deste artigo demonstrar como as HQs


podem ser utilizadas em sala de aula no ensino de História. As duas
publicações trazidas para a discussão, Campos de Batalha [2016]
expressam o quanto esse meio de comunicação é importante no tange a 461
representação do passado a partir de um olhar mais lúdico, que não deixa
de ter um comprometimento com o fato abordado.

Tendo em vista o que foi exposto acima, podemos concluir que as Histórias
em Quadrinhos se constituem em uma fonte histórica rica, passiveis de
diversas leituras e aplicações, tanto para a pesquisa quando para o ensino.

No que tange a aprendizagem, além de estimular os alunos a terem contato


com documentos históricos – o que não é recorrente no ensino escolar –
procuramos demonstrar a possibilidade de se ver a História através de
outro meio que não se restrinja ao livro didático, ampliando não só os
horizontes dos educandos, como também do próprio educador. Como dito
anteriormente, os quadrinhos por se tratarem da junção de texto e imagem,
se constituem em uma ferramenta poderosa para o estimulo da
aprendizagem bem como tem a capacidade de proporcionar ao estudante a
possibilidade de plasmar o conteúdo através de imagens e narrativas
dinâmicas, de diferentes localidades e temporalidades.

Além disso, por não se tratar exclusivamente da leitura de textos,


estimulando assim uma alfabetização semiótica do discente, a utilização das
Histórias em Quadrinhos no ensino possibilita não só uma ampliação na
aprendizagem da disciplina História, como também no combate ao
analfabetismo funcional, que infelizmente abarca uma boa parte dos
estudantes.

Assim sendo, podemos afirmar que ao levar para a sala de aula um material
didático imagético, estaremos proporcionando aos alunos uma nova forma
de ver a História. Não obstante, essa prática dos saberes através de fontes
audiovisuais além de oferecer novas formas de estudar um fato ou período
histórico, poderá despertar no aluno um maior interesse na aprendizagem,
o fazendo perceber que a História não está presente somente nos livros
didáticos, ela está em tudo que é produzido pelo homem. Deste modo, ao
levar os quadrinhos para dentro da sala de aula, estaremos apresentando
uma dentre as várias infinitas produções humanas que contam a história de
um determinado tempo e acima de tudo a do tempo histórico que a
produziu, abrindo assim os horizontes sobre o que história e como
interpretá-las nas suas mais diversas manifestações cotidianas.

Referências
Thaís da Silva Tenorio, professora de História, mestra pelo Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH/UFRN) Integrante do grupo de estudos
Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços
Katty Cristina Lima Sá, professora de história, mestranda em História
Comparada pela UFRJ Bolsista Capes Integrante do Grupo de Estudos do
Tempo Presente (GET/UFS).

ARILLO, Jesús Robledano & GONZÁLES, José Antônio Moreiro. O conteúdo


da imagem. Curitiba: Editora UFPR, 2003.
462
BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru: Edusc, 2004.
FILHO, João Gomes. Gestalt do objeto: Sistema de leitura visual da forma.
São Paulo:Escrituras, 2009.
HUNT, Lynn. História, cultura e texto. A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 2006
KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas.
São Paulo: Contexto, 2008.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18 ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
NETO, José Alves de Freitas. A transversalidade e a renovação no ensino de
história. In: KARNAL, Leandro [Org.]. História na sala de aula: conceitos,
práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2004, pp. 57-73.
NOGUEIRA, N. A. S. Aprendendo história através das HQs: experiências e
considerações. Disponível em
http://pt.scribd.com/doc/12794646/Aprendendo-Historia-atraves-das-HQs
Publicado em 25 fev. 2020.
OROZCO-GOMES, Guillermo. Comunicação, educação e novas tecnologias:
tríade do século XXI. In: CITELLI, Adílson Odair; COSTA, Maria Cristina
[Org.]. Educomunicação: construindo uma nova área de conhecimento. São
Paulo: Paulinas, 2011.
RAMA, A.;VERGUEIRO, W.[Orgs.].Como usar as histórias em quadrinhos na
sala deaula. São Paulo: Contexto, 2004
RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.
RIBEIRO, Jonatas Roque. História e Ensino de História: perspectivas e
abordagens. In: Educação em Foco. 2013, vol.07, n.09, p. 1-07.
SIQUEIRA, A. L. O ensino de conceitos históricos a partir dos HQs de
“Hagar, o Horrível”. Revista Eletrónica do Laboratório de Ensino e Pesquisa
do Curso de História, Curitiba-PR, Jan. 2011
STEPHANOU, Maria. Instaurando maneiras de ser, conhecer e interpretar.
In: Revista brasileira de História. 1998, vol.18, n.36, pp. 15-38.
VERGUEIRO, Waldomiro [Org.]. Como usar as histórias em quadrinhos na
sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
______________________,RAMOS, Paulo [Org.]. Quadrinhos na educação:
da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009
_______________________.A linguagem dos quadrinhos: uma
“alfabetização” necessária. In: RAMA, Ângela; VERGUEIRO, Waldomiro.
[Orgs.]. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4. ed. São
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VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In: RAMA, Angela;
VERGUEIRO, Waldomiro [Org.]. Como usar as histórias em quadrinhos na
sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
HISTÓRIA DAS MULHERES NEGRAS E SEU SABER/FAZER:
REFLEXÕES E POSSIBILIDADE DIDÁTICAS NA HISTÓRIA
ENSINADA
Thaylla Giovana Pereira da Silva e Jaqueline Ap. M. Zarbato

O presente artigo faz parte da pesquisa: Patrimônio histórico-cultural


material e imaterial nas cidades de Mato Grosso do Sul e seu impacto 463
histórico- cultural: Cultura regional e formação de um sistema de
preservação a partir da educação patrimonial. No recorte da pesquisa,
analiso a historicidade de mulheres negras e as concepções patrimoniais
envolvidas nos discursos oficiais, que silenciam/negligenciam o saber/fazer
feminino negro. Além disso, pontuamos realizar atividades nas escolas
abordando a História das mulheres negras e seus saberes/fazeres culturais.
Dessa forma, pontuamos como objetivo nesse artigo, apresentar as
principais reflexões teóricas que nos orientam na análise sobre a história
das mulheres negras, bem como das possibilidades de realizar aulas oficinas
no Ensino Médio.

Analisamos os estereótipos atribuídos as mulheres negras escravas,


relacionando a igualdade de gênero na lógica de trabalho e suas formas de
resistências, descontruindo a perspectiva de que apenas fugas e violência
foram utilizados para obter a liberdade no período escravocrata, enfatizando
o papel fundamental que as mulheres negras exerceram no processo de
abolição.

A ideologia da feminilidade que direcionou historicamente a mulher a ser


apenas dona de casa, esposa amável e mãe, não eram voltados a mulher
negra/escrava. Essas mulheres, que foram conhecidas por ser mucama,
ama de leite, cozinheira da casa grande também tiveram importância
cultural e relevância nos percursos históricos. Mas, quando se tratava da
mulher negra a produtividade estava acima de questões de gênero, que
sofriam não somente a exploração da escravidão, mas o estrupo de seus
corpos vindo de seus senhores. A postura dos senhores em relação às
escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las
como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas
quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis
apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de
fêmeas. [DAVIS. p 19, 2016]

No contexto religioso e moral a valorização da maternidade foi afirmada


como um papel social da mulher que era considerada um ser incompleto,
fraco e levava uma vida sem sentido, mas ao tornar-se mãe a mulher essas
circunstâncias mudariam e estaria mais próxima da divindade celestial, a
educação materna também era regida pela igreja e alertavam sobre a
formação intelectual das crianças “Os jornais católicos apontavam a
infantilização do vocabulário e a convivência com os escravos como
prejudiciais ao desenvolvimento correto do falar das crianças, por isso,
recomendava-se às mães que afastassem os filhos da convivência “nociva”
com escravos” [BROTTO p.7, 2010].
Entretanto, a exaltação da maternidade não se estendia as escravas que
cada vez mais eram avaliadas por sua fertilidade e capacidade de ter
quatorze filhos ou mais, gerando cada vez mais lucros para os senhores e
comercialização de escravos, as mulheres negras não eram vistas como
“mães” mas reprodutoras obrigadas a multiplicar, ter a oportunidade de
criar seus filhos era um grande privilégio, pois desde muito cedo as crianças
464
eram separadas de suas mães como animais podendo ser vendidos sem
distinção de idade, “Enquanto muitas mães eram forçadas a deixar os bebês
deitados no chão perto da área em que trabalhavam, outras se recusavam a
deixá-los sozinhos e tentavam trabalhar normalmente com eles presos às
costas” [DAVIS, p.21].

Como aponta Michele Perrot “As mulheres deixam poucos vestígios diretos,
escritos e materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções
domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São
elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem
interesse. Esse silenciamento se dá em diferentes fontes históricas e, ainda
mais sobre a história das mulheres negras no Brasil [PERROT. p.17, 2017]
Somente nos anos 1990, tem-se a preocupação em dialogar sobre o gênero
interseccional. Djamila Ribeiro [2018] destaca que a romantização da
miscigenação no Brasil, contribui para a banalização da violência sexual.

Para Joana Maria Pedro, a luta do movimento das mulheres e do feminismo,


na segunda onda, buscavam analisar a subordinação das mulheres, e
destacar o espaço das mulheres, pois: “Mulheres negras, índias, mestiças,
pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma
“diferença” – dentro da diferença. Ou seja, a categoria “mulher”, que
constituía uma identidade diferenciada da de “homem”, não era suficiente
para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam.
Não consideravam como fez Betty Friedan na “Mística Feminina”, que o
trabalho fora do lar, à carreira, seria uma “libertação”. Estas mulheres há
muito trabalhavam dentro e fora do lar. O trabalho fora do lar era para elas,
apenas, uma fadiga a mais. Além disso, argumentavam, o trabalho “mal
remunerado” que muitas mulheres brancas de camadas médias
reivindicavam como forma de satisfação pessoal, poderia ser o emprego
que faltava para seus filhos, maridos e pais. Todo este debate fez ver que
não havia a “mulher”, mas sim as mais diversas “mulheres”, e que aquilo
que formava a pauta de reivindicações de umas, não necessariamente
formaria a pauta de outras. Afinal, as sociedades possuem as mais diversas
formas de opressão, e o fato de ser uma mulher não a torna igual a todas
as demais. Assim, a identidade de sexo não era suficiente para juntar as
mulheres em torno de uma mesma luta. Isto fez com que a categoria
“Mulher” passasse a ser substituída, em várias reivindicações, pela
categoria “mulheres”, respeitando-se então o pressuposto das múltiplas”
[PEDRO. p.77, 2005]

Davis apresenta que o cenário social e cultural apresenta a desigualdade


para essas mulheres, mesmo em diferentes períodos históricos, no espaço
público: “As mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que
suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida
das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros
anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros
aspectos de sua existência ofuscada pelo trabalho compulsório [DAVIS,
p.17, 2016] Nesse sentido, percebemos que as mulheres negras desde o
período da escravidão, se apresentam como fundantes de suas histórias,
defendiam sua família, resistiam ao assédio sexual, participavam e
organizavam rebeliões, por terem acesso facilitado a casa grande 465
conseguiam envenenar seus senhores e uniam-se as comunidades de
escravos fugitivos.

Possibilidades e diálogos sobre a história das mulheres negras


A partir da seleção de fontes históricas (documentos, fotografias,
esculturas, monumentos) destacar a representação feminina negra na
sociedade brasileira, tendo o espaço histórico de Campo Grande/MS como
um dos cenários de análise. Mas trabalhando com as projeções dessas
fontes também em outras cidades, que possuem patrimônios culturais
identificados como de mulheres negras. Essa dimensão se dá pela falta de
fontes históricas, inclusive em manuais didáticos sobre a História das
mulheres negras no Brasil, uma herança do movimento escravista “O
movimento antiescravagista oferecia às mulheres de classe média uma
oportunidade de provar seu valor de acordo com parâmetros que não
estavam ligados a seus papéis como esposas e mães.” [DAVIS, p. 51, 2016]

Isso, segundo a autora, daria a consciência sobre os direitos das mulheres


não incluía as mulheres brancas da classe trabalhadora e muito menos as
mulheres negras. Nessa mesma perspectiva, analisando o feminismo negro
norte-americano, dialoga sobre a importância da história das mulheres.
Assim, segundo [CRENSHAW, p.174, 2002] aponta que “a garantia de que
todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção dos
direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias
formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras
identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a
vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres desconhecida e
precisa, em última análise, ser construída a partir do zero.

Na educação básica, nos baseamos na Lei 9.394/96 [Diretrizes e Bases da


Educação Nacional/ LDB] que estabelece os temas a serem abordados:
sensibilidade, igualdade e identidade. Ainda seguindo essa perspectiva
apontadas pela UNESCO, há os eixos estruturadores da educação na
sociedade contemporânea, entre eles: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a viver e aprender a ser. Assim, segundo os art. 22. A
educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe
a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-
lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. art. 32. IV –
o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana
e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Além disso, com a reestruturação do Ensino Médio, que a partir da BNCC irá
pontuar temas a serem abordados no Ensino de História, refletimos sobre a
importância de trabalhar em sala de aula com a História das mulheres
negras, partindo de situações problema em que vivem os/as estudantes e
pontuar as discussões em aulas oficinas. As aulas oficinas seguem a
concepção teórico-metodológica de Isabel Barca, que define o conceito
aula-oficina, são pautadas a partir de competências a serem desenvolvidas
nos alunos, elas encontram-se nas principais propostas curriculares para o
ensino básico e secundário de História. “I- É possível que as crianças
466
compreendam a História de uma forma genuína, com algum grau de
elaboração, se as tarefas e contextos concretos das situações em que forem
apresentados tiverem significado para elas. II – Os conceitos históricos são
compreendidos gradualmente, a partir da relação com os conceitos de
senso comum que o sujeito experiência. O contexto cultural e as mídias são
fontes de conhecimento que devem ser levadas em conta, como ponto de
partida para a aprendizagem histórica. III – Quando o aluno procura
explicações para uma situação do passado à luz da sua própria experiência
revela já um esforço de compreensão histórica. Este nível de pensamento
poderá ser mais elaborado do que aquele que assenta em frases
estereotipadas, desprovidas de sentido humano. IV – O desenvolvimento do
raciocínio histórico processa-se com oscilações e não de uma forma
invariante. Tanto as crianças, como adolescentes e adultos poderão pensar
de uma forma simplista, em determinadas situações, e de uma forma mais
elaborada noutras. V – Interpretar o passado não significa apenas
compreender uma versão acabada da História que é reproduzida no manual
ou pelo professor. A interpretação do “contraditório’, isto é, da convergência
de mensagens, é um princípio que integra o conhecimento histórico
genuíno.” [BARCA, p.139, 2004]

Assim, buscamos a partir do embasamento sobre a História das mulheres


negras e seus saberes/fazeres e atrelar com as diretrizes curriculares do
Ensino Médio, projetar dez [10] aulas oficinas com temas que podem
aprofundar a produção do conhecimento histórico. Um exemplo de aula
oficina: Escultura africana. Abaixo explicamos o processo de aula oficina

Turma:1º ano do Ensino Médio. Conceitos trabalhados: Democracia Racial,


Empoderamento, Identidade Negra, representação cultural.

Fonte: Acervo Preservação/DPH/SMC. Chico Saragiotto./Mãe preta/Largo do


Paisandú/SP

Texto: Membros do Clube 220, entidade que congregava agremiações


negras do Estado de São Paulo, se empenharam na construção de um
monumento à Mãe Preta em São Paulo, no começo dos anos 1950. A
Câmara Municipal e os jornais Diário da Noite, Diário de São Paulo e Correio
Paulistano debateram sobre o assunto. A discussão resultou em um projeto
de autoria do Vereador Elias Shammas que, aprovado na Câmara, deu
origem a um concurso público de maquetes para a construção do
monumento, instituído pelo prefeito Jânio Quadros em 1953. O trabalho
vencedor foi o de Júlio Guerra [Santo Amaro, SP, 1912 - São Paulo, 2001],
dada sua simplicidade e realismo, conforme avaliação da comissão 467
julgadora e da imprensa. Essas qualidades, no entanto, se transformaram
em defeitos aos olhos do militante negro José Correia Leite. Os traços
modernos da escultura não o agradaram, pois esperava ver a Mãe Preta
imortalizada em linhas acadêmicas: mucama bonita e bem arrumada como
costumavam ser as amas de leite, e não uma figura “deformada” como a do
Paiçandu. A inauguração ocorreu em 23 de janeiro de 1955, como parte das
comemorações de encerramento do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
A escolha do Largo do Paiçandu para acolher a homenagem à Mãe Preta se
deveu à presença da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos e de ser aquele largo, desde a construção da igreja no começo do
século XX, um ponto de referência para a comunidade afrodescendente de
São Paulo. O bronze da Mãe Preta ganhou foros de entidade religiosa,
integrando rituais católicos e afro-brasileiros. Tornou-se comum depositar
velas e oferendas aos seus pés, como flores, bebidas, comidas e pedidos
em pedacinhos de papel. Transformou-se em local privilegiado para as
comemorações pela libertação dos escravos, no dia 13 de maio e, mais
recentemente, também pelo Dia da Consciência Negra, em 20 de
novembro. Manifestações artísticas e religiosas ocorrem ao redor da estátua
da mulher negra que amamenta a criança branca, relembrando as amas de
leite no período da escravidão. Em 2004, com base em pedido encaminhado
pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos e da comunidade local, o
monumento à Mãe Preta foi tombado pelo CONPRESP, reconhecendo seu
valor cultural para a cidade de São Paulo. [Fonte: Seção Técnica de
Levantamento e Pesquisa Divisão de Preservação / DPH]

Proposição da Aula: Iniciar à aula dialogando sobre o que representa o


monumento, a representação feminina negra e trazer a explicação do
escultor. Após esse momento inicial abrir para socialização perguntando se
já viram monumentos/esculturas/ de mulheres negras. Fazer uma pesquisa
online e nos livros didáticos sobre as representações femininas negras a
partir de diferentes patrimônios tangíveis e intangíveis. Contemplar os
grupos com textos/fontes históricas que apontam a importância das
mulheres negras no Brasil. Fazer esquemas com cada grupo sobre a fonte
histórica selecionada, após isso retomar as discussões e fazer a análise das
fontes.

A partir das aulas oficinas, pontuamos a abordagem da História das


mulheres negras e sua representatividade cultural, envolvendo as
dimensões histórico-educativas. Focando na contribuição dessas mulheres
em suas diferentes dimensões na sociedade brasileira.
Referências
Drª Jaqueline Aparecida Martins Zarbato é professora de História da UFMS e
coordenadora do Grupo de estudos de ensino, mulheres e patrimônio
[GEMMUP]
Discente Thaylla Giovana Pereira da Silva. Acadêmica de História –
licenciatura da UFMS, é voluntária pelo projeto de iniciação científica [PIVC]
468
no âmbito de educação patrimonial, mulheres e negritude.

BARCA, Isabel. Educação histórica: Uma nova área de investigação. Revista


da faculdade de letras, 2004.
BROTTO, Renata Batista. Médicos e Padres: discursos sobre a maternidade
no século XIX [1860-1870]. ANPUH. Rio de Janeiro, 2010.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em
aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos
Feministas, 2002, vol.10, n.1, p.174. Disponível em: https://goo.gl/83tXV1
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.17
Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa
histórica. História. São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Da legitimação à condenação social.
IN:PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. [Orgs.]. Nova História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 293.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo.
Companhia das letras, p.117, 2018.
REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM
DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR NAS AULAS DE HISTÓRIA E
SOCIOLOGIA NO CONTEXTO DE UMA ESCOLA PÚBLICA
CEARENSE
Vanderlene de Farias Lima e João Paulo de Oliveira Farias

O que entendemos por “homem” e “mulher” são frutos de uma construção 469
social que varia de acordo com a cultura e o tempo histórico. Chamamos de
gênero os comportamentos, maneiras de vestir e de se relacionar impostos
ao masculino e ao feminino, que variam conforme a lógica cultural de cada
sociedade [BEAUVOIR, 1980]. Como vivemos em uma sociedade machista,
patriarcal e sexista, a mulher é uma das pessoas que mais sofre com a
violência de gênero. A violência acontece através da agressão verbal, moral
e física como assédio, humilhações e exploração sexual e em casos mais
cruéis chega ao feminicídio.

É no século XX que o combate à discriminação e o preconceito baseado no


gênero e na sexualidade vão ocorrer com mais força. E no Brasil a “Lei
Maria da Penha” é um destaque que tem repercussão nacional e
internacional que luta pelo direito das mulheres e tenta impedir a violência.
A pertinência do tema foi discutida de forma interdisciplinar nas aulas de
Sociologia e de História com os jovens do Ensino Médio em uma escola
Estadual de Educação Profissional, localizada na cidade de Guaraciaba do
Norte, CE. A metodologia foi uma revisão bibliográfica e uma pesquisa
documental.

Os principais objetivos da pesquisa são: relatar os resultados dessa


experiência nas aulas das disciplinas mencionadas junto aos sujeitos
envolvidos. Também compreender como o é importante tratar das
temáticas de gênero, feminicídio, movimentos sociais, diversidade,
preconceito, a discriminação e a violência contra a mulher na sala de aula
para a construção de um pensamento mais crítico dos estudantes.

O tema foi discutido com os jovens da escola pesquisada com o auxílio de


vídeos de depoimentos de mulheres que sofreram algum tipo de violência
por namorado ou ex-companheiro. Foi usada a análise da história de vida
da Maria da Penha, que deu nome à Lei, como uma forma de combate à
violência contra a mulher. Também análises de imagens, músicas e
propagandas machistas reproduzidas na década de 50 que são trabalhadas
como recurso didático no livro “Sociologia em Movimento” adotado pela
escola. O debate foi enriquecido na disciplina de História por meio do estudo
do tema “Cidadania, direitos sociais e ações afirmativas”, presente no livro
didático “Olhares da História: Brasil e mundo”, dos autores Bruno Vicentino
e Cláudio Vicentino.

Revisão de literatura: Gênero, violência e feminicídio: marco


referencial teórico
Os estudos do filósofo Michel Foucault (1988) apontam que a sociedade se
organiza em torno das relações de gênero, do controle dos corpos através
das instituições sociais e dos discursos de poder. Simone de Beavouir
(1980) se refere ao conceito de gênero como as expectativas e
representações sociais criadas em torno do que a cultura considera homem
e mulher, logo, as identidades masculinas e femininas não podem ser
compreendidas a partir de características biológicas. Ao longo da história,
tem-se utilizado o gênero para justificar as relações de poder e demarcar as
470
diferenças entre homens e mulheres.

Porém, não existe uma relação direta entre o sexo biológico e o


comportamento de homens e mulheres, mas sim um processo de
internalização cultural que constrói o gênero desde a infância. A escola, por
exemplo, é uma instituição social que divide os comportamentos
considerados masculinos e femininos e dessa forma reforça as
desigualdades com base nas relações de gênero [LOURO, 1997].

Desde a infância meninas e meninos são ensinados através da cultura a se


vestir e se comportar de acordo com aquilo que se espera de um homem ou
de uma mulher. As meninas são ensinadas a brincar com panelinhas,
casinhas e bonecas enquanto os meninos são estimulados a brincar com os
amiguinhos na rua, com carrinhos e bola. Através das brincadeiras as
meninas aprendem que o sua função será cuidar do lar e dos filhos e os
meninos entendem desde a infância que seu lugar na sociedade é trabalhar
fora de casa sem maiores preocupações com atividades domésticas e
cuidado com a prole. Dessa forma, a divisão sexual do trabalho começa na
infância através do incentivo às brincadeiras de menino e de menina e se
estendem até a vida adulta determinando as possibilidades e inserção
profissional no futuro para o homem e para a mulher [SAFIOTTI, 1987].
Sobre as brincadeiras na infância, Martins (2006) afirma que sua função vai
além da ludicidade, pois elas ensinam papeis sociais aos indivíduos que
desde cedo demarcam espaços.

As emoções das crianças também são moldadas desde cedo. As meninas


são vistas como seres passivos, sensíveis, frágeis; enquanto aos meninos
ensina-se que não podem chorar ou expor seus sentimentos, são
estimulados à agressividade [AUAD, 2006, p. 22].

Saffioti (1987) diz que a educação dada pela família patriarcal e a


delimitação da mulher às funções domésticas fez com que a sociedade
brasileira se construísse com base na desigualdade de gênero e nos
discursos de poder que inferiorizavam o feminino. Na obra “O poder do
macho”, Saffioti explica que esse processo foi naturalizado e perpetuado ao
longo da história. A violência de gênero traz como consequência a violência
doméstica, que de acordo com a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, a
violência contra a mulher pode ser física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral.
A Lei 11.340/2006 é fruto da luta de Maria da Penha que sofreu diversas
formas de violência do seu companheiro. Por essa razão, a Lei ganhou o seu
nome. Serve para combater todos os tipos de agressão contra as mulheres,
independente de cor, raça, etnia, religião ou classe social, garantindo a
prevenção e erradicação à violência doméstica [LEI Nº 11.340, DE 7 DE
AGOSTO DE 2006].

Dados registrados no site Relógios da Violência, do Instituto Maria da


Penha, mostra que a cada 7,2 segundos uma mulher sofre violência física. E
de acordo com o Mapa da Violência de 2015, para cada 100 mil mulheres,
ocorrem 4,8 assassinatos, números que colocam o Brasil como o 5° país 471
com maior taxa de feminicídio. O Dossiê Feminicídio mostra também que
em 2013 a cada 90 minutos uma mulher é vítima de feminicídio. Rita Laura
Segato (2006) apud [MACHADO & ELIS, 2018, p. 289] define feminicídio
como “crime de poder” justamente porque expressa a manutenção de poder
e dominação masculina.

Os altos índices de violência contra a mulher ferem os direitos humanos e


mostram que o assunto precisa ser tratado nas diversas instituições sociais
para repensar a educação e as políticas públicas. Diante desse contexto, o
tema foi trabalhado nas aulas de Sociologia e de História em uma escola
Estadual profissional, localizada na cidade de Guaraciaba do Norte, Ce. No
próximo tópico, delimitaremos como ocorreram as intervenções em sala de
aula e os efeitos provocados nos alunos.

Violência contra a mulher: diálogo interdisciplinar nas aulas de


Sociologia e História
O relato de experiência da pesquisa ocorreu em uma escola estadual de
ensino profissional, localizada na cidade de Guaraciaba do Norte, a 303 km
da capital Fortaleza/CE. O tema foi trabalhado nas aulas de Sociologia e
História com os estudantes do 2° ano dos seguintes cursos técnicos
ofertados pela instituição de ensino: Administração, Agropecuária,
Edificações e Informática. O livro didático de Sociologia adotado pela escola
é o “Sociologia em Movimento” que trata da temática no Capítulo 14:
Gêneros, sexualidades e identidades. Na disciplina de História o tema foi
estudado no Capítulo: “Cidadania, direitos sociais e ações afirmativas”,
presente no livro didático “Olhares da História: Brasil e mundo”.
Trabalhamos com essa temática durante o 1° Bimestre deste ano de 2020 e
o desenvolvimento das atividades durou cerca de um mês, totalizando 7
aulas, de modo que cada aula tem 50 minutos. Nossa aproximação com
esse contexto ocorreu porque somos professores dessas disciplinas e a
temática estava dentro do Plano Anual de Ensino. As três primeiras aulas
foram expositivas e dialogais dentro das aulas de Sociologia, a quinta e a
sexta aula foi utilizada pelo professor de História para desenvolver o
conteúdo do livro didático, e nas duas últimas aulas foi proposto aos alunos
que apresentassem seminários sobre temáticas delimitadas.

Na primeira aula de Sociologia, levamos para a sala de aula o curta-


metragem “Acorda, Raimundo, acorda!”, que mostra a inversão
momentânea de papeis sociais na vida de um casal; E exibimos também o
vídeo “O menino Nito”, de Sonia Rosa, que questiona o comportamento
socialmente construído em torno do homem, alimentado por uma educação
machista que se propaga na cultura através de frases como “homem que é
homem não chora!” e que o menino desde criança deve esconder suas
fraquezas e reprimir suas emoções. Mostramos para os estudantes uma
imagem fotográfica de duas meninas brincando de casinha e boneca para
que refletissem sobre as expectativas sociais que são criadas em torno da
mulher e o quanto as brincadeiras influenciam no processo de socialização
das crianças. Com esses três recursos didáticos podemos fazer as
provocações iniciais acerca da temática, analisando as ideias trazidas pelos
472
estudantes, gerando o “estranhamento” e a “desnaturalização” para a
construção do conhecimento sociológico. Na sequência da aula, passamos
rapidamente um slide para explicar os principais conceitos, como: gênero,
sexo, identidade de gênero, orientação sexual, machismo, patriarcalismo,
sexismo, feminismo, empoderamento feminino, sororidadade, movimento
social feminista, movimento LGBTQ+, violência doméstica, assédio e
feminicídio. A definição dos conceitos passou também pela apresentação
dos autores Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Margareth Mead e Ruth
Benedict.

Na segunda aula, analisamos com os estudantes uma imagem trazida pelo


livro didático que mostra como as propagandas na década de 1950 eram
divulgadas nos Estados Unidos para construir a figura da mulher como um
ser subordinado aos homens e com a participação social restrita ao
ambiente doméstico. A leitura dessa imagem e as discussões a partir dos
vídeos, da fotografia e do desenvolvimento dos conceitos expostos
anteriormente geraram questionamentos para muitos estudantes que
tomavam a desigualdade de gênero como algo natural e comum à sua vida
cotidiana, havendo inclusive muita resistência por parte de alguns mais
conservadores. Os estudantes também conheceram a história de vida de
Maria da Penha apresentado em slide, que sofreu violência doméstica de
seu companheiro durante muitos anos e foi uma militante que atuou em
favor das mulheres. A Lei 11.340/2006 que ganhou o seu nome, destaca as
conquistas das mulheres no que tange à proteção da violência doméstica.

Foi apresentado também em sala de aula o contexto do feminicídio a partir


da Lei 13.104/2015 que causou surpresa aos estudantes que não
conheciam o conceito e nunca ouviram falar na existência dessa lei. Com a
definição de violência doméstica, assédio e feminicídio, os alunos ficaram à
vontade para relatar situações vivenciadas dentro na própria casa, na
vizinhança, na rua, na escola e em outros espaços sociais. Expomos dados
estatísticos do site Relógios da Violência, do Instituto Maria da Penha e do
Mapa da Violência de 2015 para comprovar em números o índice de
violência doméstica e feminicídio que afeta as mulheres brasileiras.

Na terceira aula analisamos algumas músicas que a juventude das escolas


costuma ouvir e que trata do machismo, assédio e violência contra a
mulher. Analisamos em sala de aula a letra das seguintes músicas:
“Propaganda” (Jorge e Mateus), “Baile de Favela” (Mc João), “Vidinha de
Balada” (Henrique e Juliano), “Ciumento Eu?!” (Henrique e Diego), “Faixa
amarela” (Zeca Pagodinho) e “Só Surubinha de Leve” (Mc Diguinho). Diante
disso, pedimos aos estudantes que detectassem os trechos na letra das
músicas apresentadas que traziam fatos sobre o machismo e a violência
contra a mulher explicitamente para que pudéssemos refletir criticamente
sobre as músicas.

Na quarta e quinta aula, trabalhamos o Capítulo “Cidadania, direitos sociais


e ações afirmativas” nas aulas de História, presente no livro didático. Ao
final desta aula, foi proposto aos estudantes que apresentassem em forma
de seminário temas como violência contra a mulher, participação da mulher 473
na política, a mulher no mercado de trabalho. Os estudantes utilizaram as
duas aulas seguintes para suas apresentações em equipes.

A experiência com os estudantes da Educação Básica se mostrou produtiva


porque ampliou os conhecimentos e questionou preconceitos. A partir dos
conceitos trabalhados em sala de aula e a apresentação dos autores que
discutem o tema, foi possível sair da visão do senso comum para a
elaboração de um olhar mais crítico sobre a realidade, analisando os
impactos do machismo e do patriarcalismo na formação do Brasil e nos
índices de violência contra a mulher e feminicídio.

Considerações finais
A pesquisa mostra que os relatos de experiência citados pelos próprios
jovens e o material utilizado nas aulas de Sociologia e História expressam a
violência contra a mulher no Brasil nos últimos anos mostrados nos livros
didáticos, na mídia, internet e redes sociais e manifestam o preconceito, a
discriminação e a violência contra a mulher e traços do feminicído em nossa
sociedade.

Conhecer a Lei Maria da Penha e a lei que criminaliza o feminicídio


ajudaram os estudantes a conhecer os mecanismos legais de proteção à
mulher vítima de violência, bem como a luta dos movimentos sociais no
século XX para a efetivação de direitos humanos. Desenvolver uma
educação que reflete sobre a intolerância ajuda a combater o preconceito,
estimula o exercício da cidadania e o respeito à diversidade.

Referências
Vanderlene de Farias Lima é graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú– UVA, Especialista em Educação e
Direitos Humanos pela Universidade Federal do Ceará -UFC e atualmente
cursa o Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional-
ProfSocio/UVA. É professora da Rede Estadual de Ensino do Ceará.
João Paulo de Oliveira Farias é graduado em História pela Universidade
Estadual Vale do Acaraú– UVA, Especialista em Educação, Pobreza e
Desigualdade Social pela Universidade Federal do Ceará -UFC e atualmente
cursa o Mestrado Profissional em Ensino de História- ProfHistória- na
Universidade Regional do Cariri-URCA. É professor da Rede Estadual de
Ensino do Ceará.

AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola.


São Paulo: Contexto, 2006.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1980 [1949]. 2 v.
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Disponível em: http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1180.pdf. Acesso
em 26 de out. de 2018.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade v. I: Vontade de saber. Rio de
Janeiro. Graal, 1988.
474
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. 6. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1997.
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personalidade. In.: ARCE, Alexandra. DUARTE, Newton (orgs.) Brincadeira
de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski,
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MEAD, Margareth. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva. 1979.
SILVA, A.; LOUREIRO, B.; MIRANDA, C.; et al. Sociologia em Movimento. 2°
ed. São Paulo. Moderna. 2016.
MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
OLIVEIRA, A. C. G. A.; COSTA, M. J. S & SOUSA, E. S. S. Feminicídio e
violência de gênero: aspectos sóciojurídicas. v. 16, n. 24/25, janeiro a
dezembro de 2015. Disponível em:
http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/viewFile/236
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SAFFIOTI, H. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. 120 p.
SILVA, Priscila Almeida. A escola e o conceito de gênero e sexualidade. I
Seminário de Pesquisa da FESPSP: IV Seminário de Iniciação Científica e I
Seminário da Pós-Graduação 26 a 30 de novembro de 2012. Disponível em:
https://www.fespsp.org.br/sic2012/anais/mesa5/Aescolaeoconceito.pdf.
Acessado em 05 de nov. de 2018.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres
no Brasil. Disponível em www.mapadaviolencia.org.br. Acesso em 28 de
out. de 2018
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 28 de out. de 2018.
PSICOPATOLOGIAS DO SEXO: AUGUST FOREL E AS
PERVERSÕES DO DESEJO SEXUAL
Vanessa Cristina Chucailo

Ao longo da história, as sociedades foram criando regras e princípios que


regulassem, ou ao menos orientassem a vida social dos grupos. O corpo se
encontra no centro de toda essa dinâmica social e cultural. A cultura 475
relaciona-se ao corpo a fim de modelá-lo e socializá-lo a partir de suas
regras e normas [Marzano-Parisoli, 2004]. Ele sempre foi alvo e reflexo de
pressões e múltiplas transformações fundadas em valores e crenças
promulgadas pelas sociedades ao longo dos séculos.

A ciência médica passou a oferecer um novo olhar sobre o corpo, não


apenas para medicalizar em caso de doenças, mas promulgando regras de
comportamento, censurando prazeres e envolvendo o cotidiano em uma
rede de conselhos de moderação. Especialmente a partir do século XIX, o
prazer sexual passou a tornar-se patológico [Laqueur, 2001], embora
Foucault [1997] aponte que desde o século XVIII, a psquiatrização do
prazer perverso já era alvo de uma normalização e patologização dentro do
que ele vai chamar de dispositivo de sexualidade.

A medicalização dos comportamentos e hábitos sexuais enquanto doença


passou de um comportamento desviante para uma patologia perversa,
tendo seu auge em fins do século XIX sob a influência das obras de Von
Krafft-Ebing e Havellock Ellis, e por Freud, já no início do século XX.
[Huertas, 2017]

A patologia passou a ser utilizada como explicação para alterações


fisiológicas e/ou psicológicas dos hábitos sexuais tidos como “normais”. Um
comportamento sexual que objetiva o prazer, sem a intensão ou
possibilidade de reprodução, isto é, fora de uma norma moral instituída
para os corpos sexuados, passou a ser considerado como perverso.
[Huertas, 2017]

O indivíduo “perverso sexualmente” passa a ser visto como um doente, e


não apenas um transgressor das normas morais impostas ao corpo. A
psiquiatria, através dessa nova ordem da ciência médica preocupada com a
medicalização do sexo, passa a explicar esses sujeitos que não se
enquadram a essa normatização em relação à sexualidade, como
psicologicamente doentes e pervertidos. O cérebro passou a ser apontado
como o principal responsável pelas patologias sexuais.

August Forel e as patologias sexuais


Embora fascinado pela vida dos insetos revelando-se um grande
entomologista, Auguste-Henri Forel [1848-1931] escolheu a medicina, em
especial a neuropsiquiatria, para ganhar sua vida. Sempre muito intrigado
com a mente e a dualidade do corpo, em seus escritos mais tardios ele
buscou resolver a relação entre a fisiologia e a psicologia do cérebro
[Parent, 2003].
Sua obra La question sexualle ficou internacionalmente conhecida. Foi
traduzida em diversas línguas e utilizada como manual para educação
sexual, pois forneceu uma primeira perspectiva tanto biológica quanto
sociológica a respeitos das questões sexuais.

476
No capítulo VIII do livro, Forel apresenta a discussão sobre a patologia
sexual, indicando aos leitores, logo no primeiro parágrafo, a obra de Von
Krafft-Ebbing, Psychopathia sexual, como uma referência para uma
discussão mais abrangente sobre a temática, pois deixa claro que não
pretende estender ou aprofundar o debate sobre perversões do desejo
sexual [Forel, 1929]. Mas destaco que esse capítulo da obra de Forel traz
alguns pontos interessantes para analisar sua perspectiva a respeito das
patologias sexuais, enquanto reflexo das discussões médicas e científicas
sobre essas questões em fins do século XIX e início do XX.

Para August Forel [1929, p. 202]: “O cérebro é o verdadeiro domínio de


quase todas as anomalias”, ou seja, para ele as patologias sexuais, quase
que exclusivamente, tem suas raízes na constituição mental ou nas
disposições hereditárias do cérebro. O comportamento perverso passa a ser
justificado não apenas pelo componente fisiológico do corpo, mas
especialmente pelo seu componente psicológico, e consequentemente, não
podem ser tratadas pelos médicos por meio de medicamentos comuns.

Para Forel a psicopatologia sexual é limitada pelos domínios do desejo


sexual, e pode ser classificada entre anomalias sexuais hereditárias ou
congênitas e anomalias adquiridas através de hábitos viciosos. Krafft-Ebing
diz que os vícios sexuais adquiridos são muito mais estigmatizados, mas
ressalta que essa distinção entre as anomalias hereditárias e adquiridas é
algo relativo e gradual, não podendo colocá-las em oposição [Krafft-Ebing
apud Forel, 1929]. Segundo esses autores, no caso de uma disposição
hereditária, por exemplo, a patologia pode se manifestar ou permanecer
latente, ou até mesmo extinguir-se. Forel chega a defender que mesmo
indivíduos com condutas sexuais viciosas não devem ser apontados “como o
produto de uma vontade livre, pervertida ou má” [1929, p. 213], mas como
resultado de uma má disposição hereditária, desenvolvida provavelmente
pela influência de maus costumes e do meio. Tal posicionamento demonstra
a necessidade constante de tratar dessas pessoas enquanto doentes, e para
o médico, as doenças do cérebro são a fonte dos vícios.

Forel segue o capítulo listando as principais psicopatologias sexuais, entre


elas impotência sexual, anestesia sexual, hiperestesia sexual, masturbação
ou onanismo, paradoxismo sexual, e as perversões do desejo sexual,
definida por ele em sua obra como “desejo sexual provocado por objetos
inadequados”. [1929, p. 230]

Para falar dessas perversões, o autor utilizou-se das subdivisões feitas por
Krafft-Ebing: I. desejo sexual perverso, II. inversão sexual ou amor
homossexual, III. desejo sexual tendo por objeto crianças e IV. desejo
sexual tendo por objeto animais.
O desejo sexual perverso quase sempre tem por objeto o sexo oposto, e é
apresentado por Forel em três categorias. A primeira delas é a algolagnia,
ou seja, o prazer obtido pela dor. Ela pode se manifestar de forma ativa, no
caso do sadismo [infligindo dor a outrem] e de forma passiva, no caso do
masoquismo [excitação pela humilhação, submissão ou dor infligida ao
próprio indivíduo]. O segundo desejo perverso é o fetichismo, descrito pelo 477
médico como “sensações voluptuosas provocadas pelo contato ou pela
simples imagem de certas partes do corpo ou do vestuário da mulher”
[1929, p. 235]. Forel ressalta que o fetichista não é aquele que excita com
partes do corpo ou situações que normalmente inspiram o desejo sexual,
como os seios, os órgão sexuais, o rosto, o cheiro ou a nudez, mas sim, um
ser patológico que tem seu desejo conectado essencialmente a certos
objetos como lenços, luvas, botinhas, ou características de cabelo, mãos,
pés, ou até mesmo certas deformidades físicas. O terceiro e último desejo
sexual perverso nesta subdivisão, é o exibicionismo cujo desejo sexual
consiste em se masturbar na presença de outras pessoas do sexo contrário.
Forel cita nesta categoria também os voyeurs, pessoas que se excitam
observando o ato sexual de outros. [1929]

De todas as “perversões”, a chamada “inversão sexual ou amor


homossexual”, seja a mais conhecida, abordada e estigmatizada pelos
médicos e intelectuais do período. É evidente a estigmatização da
homossexualidade na própria descrição de Forel quando ele ressalta que,
embora as perversões citadas anteriormente possam parecer espantosas,
absurdas e patológicas, elas ao menos derivam de certa ordem normal
entre os sexos, isto é, entre sexos opostos. Já no caso da inversão sexual
ou do amor homossexual, trata-se do desejo sexual pelo mesmo sexo, ou
seja, de um homem por outro homem, ou de uma mulher por outra mulher.
[1929]

Embora muitos médicos e intelectuais do período defendessem que os


homossexuais constituem uma variedade de homens normais, para Forel o
amor homossexual no homem não é algo que se possa chamar de “normal”,
pois se trata de um desejo sexual completamente desviado do seu
verdadeiro fim, a procriação. [1929]

Destaco que tal posicionamento é importante para revelar o pensamento de


alguns intelectuais da época, bem como as ideias e as concepções a
respeito das questões que envolviam a sexualidade. É evidente que para
Forel a sexualidade deve ser controlada e medicalizada, e o sexo deve
obedecer apenas aos preceitos biológicos da fecundação.

O amor homossexual é, para Forel, ordinariamente patológico e quase todos


os “invertidos” são em graus, mais ou menos acentuados, psicopatas ou
neuróticos. Ele também atribui como fator psicopatológico a essa perversão,
a hereditariedade. Ou seja, uma predisposição genética ou hereditária
despertada por situações ou traumas cotidianos. Existem então para esse
médico dois tipos de invertidos: aqueles que se entregam ao vício, descritos
como cínicos e debochados que pouco se importam com as opiniões alheias
sobre sua condição, e aqueles que, mesmo sentindo tais “desejos doentios”
optam por reprimi-los e escondê-los. Segundo ele, esses últimos invertidos,
alguns “honestos” e “de alta moralidade e inteligência”, que a todo custo
recusavam ceder às perversões dos seus desejos sexuais, muitas vezes
recorriam ao suicídio como uma tentativa de combater o desejo tido por
eles como doentio e desonroso [Forel, 1929, p. 241]. É interessante
478
observar que para Forel, os indivíduos que recorrem a medidas trágicas,
como o suicídio para não ceder aos desejos sexuais, merecem piedade e
respeito, pois são vítimas de uma patologia que afeta tanto sua vida sexual
quanto social.

É pertinente destacar que atualmente, muitas pesquisas revelam que


jovens homossexuais tem uma maior tendência de morte por suicídio, se
comparados com a população cis e heterossexual [Moia, 2018]. Isso
definitivamente não é algo “honroso” atualmente, mas um dado
preocupante e triste, que merece atenção e cuidados.

O amor sexual aparece em fins do século XIX como uma perversão


patológica, mas desde que não atacasse menores, mulheres e alienados,
poderia ser tida como inocente e muito menos nociva do que a prostituição,
pois não produzia descendentes, e consequentemente, não perpetuaria tal
“degeneração”. Porém, segundo Forel, esse quadro pode ser alterado
quando o “invertido” ataca menores, ou quando seus desejos de
manifestam juntamente de outras perversões sexuais, como o sadismo por
exemplo. [1929].

Quanto ao amor homossexual feminino, o médico explica que não é uma


inversão rara, apenas mais discreta se comparada com a inversão
masculina, sendo que o amor entre mulheres também pode ser descrito
como lésbico ou safismo, e os desejos sexuais se manifestam pela
masturbação mútua e sexo oral. [Forel, 1929].

Forel descreve essas “mulheres invertidas” como masculinas, pois gostam


de se vestir como homens, apreciam esportes masculinos, usam penteados
masculinos e tem prazer em ocupações masculinas. [1929].

Destaco que essas falas são importantes para revelar algumas construções
de gênero do período, ou seja, toda uma gama de elementos simbólicos que
descrevem ou determinam o lugar, os comportamentos, os modos e os
papeis esperados das mulheres, e dos homens na sociedade.

Além disso, Forel aponta outra característica tida como “própria da mulher”
no caso da inversão feminina, que é o sentimento de simpatia, carícias e
envolvimento emocional. Ele explica que nos homens, qualquer carícia
sensual pode se caracterizar como suspeita de inversão; o homem “normal”
não sente desejo de beijar ou acariciar outro homem, muito menos de ter
relações sexuais com ele, pois sabe separar nitidamente a simpatia da
sensação ou estímulo sexual. Já na mulher “normal”, os sentimentos de
simpatia exaltada de uma “invertida” podem facilmente provocar o desejo
de beijar, acariciar, abraçar, dando a essas mulheres um certo prazer
sensual. Ou seja, a exaltação física relaciona-se diretamente ao sentimento
de simpatia, não podendo ser separados [Forel, 1929]. Para ele, portanto, a
mulher tem uma “tendência” devido ao seu gênero, de ceder e se entregar
mais facilmente aos desejos e paixões, do que os homens.

Evidentemente essa é mais uma demonstração de como as relações de


gênero foi construída socialmente e culturalmente ao longo dos séculos, 479
“determinando” as funções e os papeis esperados para cada sexo.

O desejo sexual tendo por objeto crianças é uma questão, segundo Forel,
muito debatida no período. Discutia-se essencialmente, se tal “desejo
sexual” pode ser caracterizado enquanto perversão, uma vez que muitos
casos em que os abusos e atentados cometidos contra crianças eram efeitos
da demência senil ou do abuso da inocência para satisfação do desejo
sexual “normal”, isto é, aqueles que abusavam de crianças, também eram
capazes de manter relações sexuais com mulheres. [Forel, 1929].

Forel classifica o desejo sexual por crianças como uma categoria de


perversão hereditária, propondo o uso do termo pederose, “uma vez que o
de pederastia se aplica ao coito pelo ânus de homem com homem,
quaisquer que sejam as causas que levem a isto” [1929, p. 251], e a
pederose pode ou não se combinar com a inversão. Krafft-Ebing não
acredita na categoria de pederose, preferindo chamar tal perversão de
“pedofilia erótica”.

Por fim, Forel discute o desejo sexual tendo animais por objeto. Ele destaca
que o desejo sexual humano exclusivamente por animais não é algo
frequente, e defende que a cópula entre humanos e animais geralmente se
justifica pela falta de oportunidade de uma satisfação sexual normal,
afetando tanto homens, quanto mulheres [1929]. Desde que tal perversão
não resulte em “crueldade ou tortura”, especialmente aos animais menores,
Forel considera tal patologia como “uma das mais inocentes” [1929, p.
252]. Ele explica que foi a imaginação humana que estigmatizou tal ato do
ponto de vista moral, considerando-o crime. Mas para ele, desde que
praticada com animais maiores, tal perversão não causa prejuízo nem ao
animal, nem a terceiros.

Essas foram algumas das perversões sexuais descritas por Forel em sua
obra “A questão sexual” [1929]. Ele esclarece que existem inúmeras outras
perversões, mas optei por apresentar e descrever essas como principais.

Considerações finais
Em fins do século XIX e início do XX, a medicina preocupou-se em
medicalizar e orientar a sexualidade das pessoas com a desculpa da
manutenção da higiene e da moral dos indivíduos e das famílias.

Falar sobre as questões sexuais não implicava necessariamente em uma


liberdade sexual, pois os discursos conservadores em relação ao sexo se
faziam presentes a todo instante, nas falas de médicos, juízes, políticos e
intelectuais do período.
Consequentemente em nome de uma moral civilizatória, esses discursos
acabaram recaindo sobre o corpo, delimitando uma “normalidade” e uma
“anormalidade” em relação às funções sexuais. A sexualidade e suas formas
de manifestações passaram então a ser objeto de intervenção desses
múltiplos saberes, especialmente das práticas psiquiátricas, revelando o
480
pensamento e os discursos de uma época passada, mas que não me
surpreendem quando, atualmente, me deparo com defensores da “cura
gay”.

Mas esse é um outro debate!

Referências
Vanessa Cristina Chucailo é doutoranda em História pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro [Unirio] e bolsista CAPES.

FOREL, Auguste. A questão sexual. 4ª ed. São Paulo: Editora Nacional,


1929.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1997.
HUERTAS, Rafael. El concepto de perversión sexual en la medicina
positivista. In: HUERTAS, Rafael. Outra Historia para outra psiquiatria.
Madri: Xoroi Edicions, 2017.
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
MARZANO-PARISOLI, Maria Michela. Pensar o corpo. Petrópolis: Vozes:
2004.
MOIA, Luciano. Risco de suicídio triplicado. O que fazer para os jovens
homossexuais?, 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-
noticias/584639-risco-de-suicidio-triplicado-o-que-fazer-para-os-jovens-
homossexuais
PARENT, André. “Auguste Forel on Ants and Neurology” in The Canadian
Journal of Neurological Sciences. v. 30, n. 3, august 2003, p. 284-291.
PROJETO PATHFINDER: O CASO DE ESTERILIZAÇÃO DAS
OPERÁRIAS NO DISTRITO INDUSTRIAL DE MANAUS NA
DÉCADA DE 1980
Vanessa Cristina da Silva Sampaio

No Brasil, o desenvolvimento industrial se consolida com a Zona Franca de


Manaus, concepção idealizada no final da década de 1950 como um projeto 481
geopolítico de integração da região amazônica ao restante do país. Partindo
desde princípio, a Zona Franca de Manaus foi idealizada pelo Deputado
Federal Francisco Pereira da Silva e criado pela Lei N◦3.173 de 06 de julho
de 1957. Em 19 de abril de 1960, Francisco Pereira da Silva é empossado
como o primeiro superintendente da Zona Franca de Manaus, ficando no
cargo até 14 de setembro do mesmo ano. Posteriormente, a Zona Franca foi
administrada por alguns empresários até a sua reformulação e efetivação
pelo Decreto-lei N◦288 de 28 de fevereiro de 1967, onde também pelo
Decreto-lei N◦ 61.244 do mesmo ano foi criada a Superintendência da Zona
Franca de Manaus – SUFRAMA, autarquia de autonomia administrativa,
jurídica e financeira, encarregada de administrar, promover e desenvolver
programas e projetos de interesse ao desenvolvimento da Zona Franca.

A Zona Franca de Manaus apresentou fases distintas pautadas, sobretudo,


pelas transformações na ordem econômica internacional. Essas etapas
estão divididas em Comercial (1967-1975), Comercial e Industrial (1975-
1991) e Industrial (1991- em vigor). [Carvalho, 2009, p.90] A conjuntura
de desenvolvimento potencializou mudanças na ordem social, que a longo
prazo, estabeleceu visões que consolidariam a construção de novas
identidades a partir deste processo de industrialização emergente. Esse
processo começa a se concretizar com o lançamento do Distrito Industrial
de Manaus em 1968, simbolizando a progresso e a chegada da
industrialização no Estado. Após esse processo de promoção e incentivo da
região amazônica, quase duas décadas depois, a luta operária feminina
ganha impulso dentro do Distrito Industrial de Manaus, em uma conjuntura
de intensa mobilização do movimento operário brasileiro, principalmente a
partir da década de 1980, onde as formas de resistência se faziam
emergentes no seio da classe trabalhadora. No caso especificamente do
Amazonas, o movimento operário industrial acompanhou o processo de
mudanças no qual o Brasil estava vivenciando e foi se consolidando
paulatinamente. Neste período, a questão do feminismo em âmbito
nacional, encontram bases sólidas, e trazem à tona reflexões acerca do
conceito de gênero, divisão sexual do trabalho e ação política.

Para entender estas transformações, é preciso compreender primeiramente,


que a luta do movimento operário estava em paralelo com a luta feminista,
por que se aproxima quanto as questões de demanda de direitos,
participação sociopolítica e reconhecimento. Neste trabalho se abordará
questões que envolvem as vivências cotidianas das operárias industriais,
alinhadas ao processo de organização e amadurecimento da classe operária
amazonense, colocando em pauta, reivindicações quanto a inserção das
mulheres na luta política, opondo-se as mais variadas formas de
disciplinamento, arbitrariedade e desvalorização. A partir de 1985, os
trabalhadores passaram a protagonizar reações às condições de trabalho e
a exploração vivida nas empresas do Distrito Industrial de Manaus,
constatado nas greves gerais de 1985 e 1986. A formação de uma
consciência de classe operária neste momento foi preponderante, e nesta
conjuntura, o papel da mulher foi essencial, por que “elas tiveram
482
participação efetiva tanto como vítimas, como participantes atuantes nas
greves, assim como nas ações de resistência à exploração, na apresentação
de reivindicações e no confronto direto” [Pinheiro, 2014, p.153]

Foi no trabalho industrial que muitas mulheres viram a possibilidade de


melhores condições de vida e de trabalho. Em sua maioria jovens, muitas
delas vinham do interior do Estado do Amazonas, com idade entre 16 a 25
anos, rapidamente foram absorvidas como mão de obra barata e facilmente
disponível, preferível por exigia mais habilidade manual e também por que
a remuneração era bem inferior se comparado aos do sexo masculino.
[Scherer, 2005, p.67]. Outro ponto a ser destacado era a ausência de
experiência laboral destas jovens mulheres. Eram recrutadas em função do
seu comportamento contido e submisso, favorável a um controle maior de
suas ações. [Torres, 2005, p.183]. Já inseridas no processo de produção, as
mulheres se concentravam geralmente nas linhas de montagem, onde o
ritmo de trabalho era monitorado constantemente, as cobranças eram
maiores e as jornadas de trabalho extremamente exaustivas. Neste
contexto foi muito comum os casos de violência moral e psicológicas contra
essas mulheres, exercidas de forma arbitraria e tirânica.

Quanto as humilhações, por serem ainda muito jovens, muitas mulheres


eram assediadas. Havia uma concepção que caracteriza a operária cabocla
como “liberada sexualmente”, onde as mulheres eram frequentemente
rotuladas como prostitutas pelas chefias. [Torres, 2005, p.185]. O
desrespeito se iniciava ainda no processo de seleção, tanto pelos inúmeros
questionamentos pessoais, no intuito de investigar a vida dessas mulheres,
quanto pela obrigatoriedade da apresentação do plano-teste para
comprovar que não estavam grávidas. No tocante a essas questões, houve
muitos casos de abortos e denúncias de empresas que induziam as
operárias a realizar este procedimento.

Essa pauta foi amplamente discutida e denunciada tanto pelo Sindicato dos
Metalúrgicos do Amazonas, que representava a categoria de trabalhadores
do Distrito Industrial de Manaus, como pela grande imprensa manauara.
Segundo dados do próprio sindicato, 50% da categoria era formada por
mulheres. Em denúncia ao Jornal A Crítica, revelou-se que as indústrias
adotavam medidas que levavam as mulheres a optar pelo aborto,
considerando o elevado número de demissões de mulheres grávidas a partir
de 1985. Além disso, os próprios médicos das empresas indicavam o
aborto. Neste sentido, a distribuição de anticoncepcionais as operárias
dentro da fábrica é um indicio que a ordem era que não houvessem
gestantes no quadro de empregados. [A Crítica, fev/1986 p.10].
Um exemplo desse controle foi o Projeto Pathfinder. Teoricamente,
implantado com o objetivo de estimular e apoiar soluções inovadoras no
campo populacional e de estratégias de planejamento familiar, mas na
prática foi de esterilizar as operárias do Distrito Industrial de Manaus, em
um prazo de 12 meses a contar de julho de 1985, inicialmente atingindo
2.400 famílias. “O projeto pretendia desenvolver as seguintes ações:
doação de 60% de anticoncepcionais orais, 20% de aplicação de DIU, 10% 483
de laqueaduras e 10% de outros métodos” [A Crítica, maio /1986 p.11].
Com isso, a empresa se tornou um espaço de discriminação e manipulação
dos corpos femininos, evitando que as operárias ficassem grávidas. O
principal objetivo de implementação deste projeto no setor industrial era
“eliminar atrasos, faltas e licenças que prejudicassem a produção, assim
como, conter o aumento excessivo do exército de reserva” [Ribeiro, 1987,
p.289].

A implantação no Distrito Industrial de Manaus nasce por iniciativa dos


empresários com apoio do SESI e do Departamento Materno-Infantil da
Universidade do Amazonas através da empresa americana Pathfinder Fund,
especializada em programas de planejamento familiar nos países da África,
Ásia, Europa e América Latina, fundada em 1957, mas que iniciou suas
atividades antes mesmo da década de 1920 com o Dr. Clarence Gamble,
fundador da empresa. No Brasil, passou a operar no início da década de
1980, tendo como representante legal, o professor da Universidade Federal
da Bahia, José Santiago Gonzales, com sede situada em Salvador, Bahia.

No Amazonas essa prática já vinha sendo frequentemente denunciada. A


prática do planejamento familiar foi amplamente condenada como foi
possível notar em carta aberta destinada ao Papa João Paulo II, em visita a
Manaus em julho de 1980. Nesta carta assinada pelo Comitê da Mulher
Operária Amazonense, Comitê da Mulher Universitária do Amazonas,
Partido dos Trabalhadores – PT/AM, Fórum da Amazônia e entidades
solidárias como a Associação dos Professores do Amazonas – APPAM e
Associação dos Docentes da Universidade do Amazonas – ADUA é possível
notar o repúdio quanto ao controle da natalidade praticada pelo Governo do
Estado do Amazonas nas mulheres da região. A nota denuncia que
aproximadamente desde 1978, alguns municípios do interior do Amazonas
vêm praticando o projeto de “planejamento familiar”, através de um médico
suíço que não foi divulgado o nome, a serviço uma empresa estrangeira.
[Jornal do Comércio, jul/1980 p.05].

De acordo com o Jornal do Comércio, o Governo do Amazonas através da


Secretaria de Saúde implantou ainda no ano de 1980 um programa de
planejamento familiar, que em sua maioria, atenderia mulheres
trabalhadoras. O método contraceptivo utilizado seria uma injeção de
origem japonesa que havia sido proibida nos Estados Unidos, por provocar a
longo prazo, câncer uterino e outras doenças graves. A nota de repúdio,
seguiu dizendo que o Governo do Amazonas pretendia oferecer as mulheres
amazonenses como cobaias para os laboratórios estrangeiros. A empresa
Pathfinder Fund passou a atuar no Amazonas oficialmente desde 1985,
como um projeto alternativo na área da saúde da mulher. Em Manaus, o
intuito era gerar ainda mais lucros as multinacionais estaladas no Distrito
Industrial. Neste contexto, muitas empresas consideravam a gravidez como
um “crime”, negando-lhe o direito ao trabalho, ato que se constituía como
um atentado a legislação trabalhista, mas principalmente a dignidade
humana.

484
A questão se mostrava um tanto polêmica. O que para uns era considerado
um programa de planejamento familiar, para outros seria a esterilização em
massa de mulheres contra a sua vontade. De acordo com um artigo
publicado pela socióloga, Sandra Jouan, a questão do planejamento familiar
suscitava muitas dúvidas. Para o Centro da Mulher Brasileira – setor
Amazonas, o planejamento familiar deveria ser uma opção livre e
consciente da mulher e do casal em relação ao número de filhos, assim
como a melhor maneira para preveni-los. A partir do posicionamento do
Governo do Amazonas, o Centro da Mulher se colocava contra a qualquer
forma sutil imposta à população feminina quanto a sua composição familiar.
No caso da mulher trabalhadora, os riscos eram dobrados: “a eminência de
serem demitida e de terem o filho ainda no ventre, contaminado dadas as
péssimas condições de trabalho das empresas” [Jornal do Comércio,
out/1985 p.02].

Mesmo com dados imprecisos, o Centro da Mulher Brasileira – setor


Amazonas acreditava que cerca de 33% das mulheres amazonenses
trabalhadoras com menos de 30 anos haviam sido esterilizadas pelo
programa pathfinder, segundo foi apontado pela socióloga, Sandra Jouan.
[Jornal do Comércio, out/1985 p.02]. Esse programa revelou os métodos
arbitrários e a condição humilhante no qual estavam sujeitas as operárias
do Distrito Industrial de Manaus. Segundo algumas notícias vinculadas
nesse período, a questão do controle da natalidade era um caso de saúde
pública nacional e uma preocupação das autoridades, no entanto, como
afirmou o Centro da Mulher Brasileira – setor Amazonas, a política de
planejamento não era apenas um debate sobre a reprodução da mulher,
mas uma discussão ampliada sobre a necessidade de garantias a essas
mulheres. [Jornal do Comércio, jan/1986 p.13].

Além do Amazonas, o projeto foi implantado nos estados de São Paulo, Rio
de Janeiro, Fortaleza, Recife, Curitiba e Brasília. No entanto, após alguns
testes foi comprovado pelo Ministério da Saúde que uma série de
irregularidades vinham sendo cometidas em relação as pesquisas iniciadas
em mulheres de todo o país desde 1985. O risco a saúde da mulher ficou
eminente. [Jornal do Comércio, jan/1986 p.06]. Devido a ameaça a vida
dessas mulheres, a Secretaria Municipal de Saúde – SEMSA descartou no
primeiro semestre de 1986, a implantação total do projeto por parte das
empresas do Distrito Industrial de Manaus. De acordo com o secretário da
pasta, Fernando Ferreira, o projeto foi rejeitado devido a pressões de
diversas entidades da sociedade civil. Podemos dar destaque para o papel
do Comitê da Mulher Trabalhadora no empenho em denunciar e cobrar um
posicionamento das instituições ligadas à saúde quanto a fiscalização deste
projeto. [Jornal do Comércio, jun/1986 p.08].
Além do trabalho de fiscalização, o Comitê da Mulher Trabalhadora
desenvolveu um trabalho base com o objetivo de conscientizar as operarias
do Distrito Industrial quanto ao perigo de utilização de métodos
contraceptivos fornecidos pelas empresas sem a devida procedência. A
pressão exercida por diversas entidades ligadas à defesa do direito
mulheres no Amazonas contribuiu para alertar a sociedade civil quanto aos
perigos oferecidos pelo Projeto Pathfinder na região, sem considerar as 485
características locais e sem consultar as mais interessadas nesse processo,
as trabalhadoras. A arbitrariedade das empresas esbarrou na resistência
feminina construída paulatinamente dentro do movimento operário do
Distrito Industrial de Manaus desde o início da década de 1980. A recusa
dessa esterilização em massa foi apenas o princípio desta luta.

Referência
Vanessa Cristina da Silva Sampaio é mestranda no Programa de Pós-
graduação em História da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
CAPES.

CARVALHO, Marcelo Bastos Seráfico de Assis. O empresário local e a zona


franca de Manaus: reprodução social e globalização econômica / Tese
(Doutorado em Sociologia) - Porto Alegre, 2009.
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Gênero & Imprensa na História do
Amazonas. Manaus: EDUA, 2014,
RIBEIRO, Marlene. De Seringueiro à Agricultor/pescador à Operário
Metalúrgico: Um estudo sobre o processo de expropriação/proletarização/
organização dos trabalhadores amazonenses. Dissertação de mestrado em
Educação apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais, 1987.
SCHERER, Elenise. Baixas nas carteiras: desemprego e trabalho precário na
Zona Franca de Manaus: EDUA, 159p, 2005.
TORRES, Iraildes Caldas. As Novas Amazônidas. Manaus: Editora da
Universidade Federal do Amazonas, 2005.

Outras fontes
Jornal A Crítica, Manaus.
Jornal do Comércio, Manaus.
Relatório das atividades da Pathfinder Fund - Sistema de Informações do
Arquivo Nacional – SIAN
A ESCOLA CONSERVADORA EM BORDIEU: DESAFIOS AO
ENFRENTAMENTO DOS PARADIGMAS HETERONORMATIVOS
POR MEIO DA EDUCAÇÃO EM GÊNERO
Victor Hugo de Almeida França e Pablo Afonso Silva

O presente trabalho tem por objetivo identificar os processos de construção


486 e manutenção de pedagogias homofóbicas nas escolas, por meio da análise
de como se estruturam as relações de gênero e a fixação identitária
masculina (e) feminina na sociedade e no espaço de ensino. A partir da
discussão teórica sobre gênero, busca-se refletir acerca dos sistemas sociais
que fazem da escola um espaço de manutenção de desigualdades, ou seja,
uma instituição de ensino conservadora (BOURDIEU, 1999).

As hierarquizações de gênero interferem na produção de identidades


sexuais pelos indivíduos nas escolas, distorcendo o idealizado “espaço de
transformações” em um objeto de perpetuação de hierarquias, e
consequentemente, opressão. Tais considerações são de extrema
importância na compreensão de desigualdades, de modo que, ao questioná-
las, possibilita-se, gradativamente, a modificação deste cenário, para outro,
um pouco mais igualitário.

O debate de gênero se torna essencial no que refere-se a discussão de


homofobia, tendo em vista que, há extrema “dificuldade em diferenciar a
identidade de gênero da identidade sexual” (FINCO, 2003), pois as
definições binárias de gêneros e o papel social desempenhado por homens e
mulheres, são minuciosamente definidos e estritamente limitados pela
sociedade de modo geral. Entretanto, tal pensamento torna-se questionável
quando visualizado sob o prisma das identidades em movimento, pois,
como bem esclarece Silva (2000) são as transgressões de identidade que
questionam a hegemonia da identidade dominante.

Assim, o debate de gênero deságua na discussão de todo um sistema de


subordinação, o qual coloca sempre em evidência a imagem da
masculinidade imperante, em detrimento da identidade feminina. Tal
sistema, por ser mais amplo e irrestrito aos muros das entidades
educacionais, pertencendo tão logo ao bojo da sociedade atual, acaba
refletindo-se na educação, por meio da perpetuação da homofobia.

Para Joan Scott (1995), o gênero é o primeiro objeto de análise, o qual


afigura-se em uma construção histórica-cultural para as atribuições
biológicas dos sexos, impondo-se diferentes características que definirão um
sistema hierárquico baseado em binarismos. Contudo, sendo as identidades
individuais altamente mutáveis, a imposição de um currículo escolar
baseado em ideais pouco articuláveis, prejudica o processo de criação da
individualidade da criança/adolescente na fase escolar, a qual destaca-se
pela abertura do autodescobrimento.

Dessa forma, quando a instituição escolar é contrária a tais ideais, a


autoafirmação enquanto indivíduo distinto do dito socialmente aceitável,
torna-se uma tarefa deveras complicada, de modo que, o sistema imposto
sufoque e silencie as identidades diversas ao padrão replicado e afirme a
hegemonia no processo de construção de hierarquias (LOURO, 2000).

Construções de gênero e sexualidade na sociedade


A escola dos Annales, criada na primeira metade do século XX, possibilitou
um salto evolutivo da História como ciência, já que este movimento foi o 487
divisor de águas na metodologia científica utilizada. Uma ciência humana,
antes baseada em documentos oficiais que contam apenas a história dos
vencedores, pode agora expandir a gama de fontes históricas em busca de
outras verdades além da instituída como oficial, assim, os silenciados por
uma historiografia anterior a este movimento fazem suas vozes serem
ouvidas.

Paralelamente a prática historiográfica dos Annales, o gênero como


categoria analítica na História passa a ter visibilidade a partir da década de
1980, principalmente nos Estados Unidos e na França, onde os movimentos
feministas rejeitam a história masculinizada construída até o momento e
passam a lutar pela construção de uma historiografia própria, que afirme a
história das mulheres como legítima e critique, na tentativa de desconstruir,
os sistemas hierárquicos que imperam na sociedade.

O gênero é uma construção sociocultural que toma as diferenças biológicas


entre os sexos para a definição de características e funções específicas para
cada gênero (SCOTT, 1995), efetivando assim, marcas sociais que
interiorizam um sistema de hierarquizações baseadas em binarismos que
formam pares conceituais. Pode-se tomar como exemplo as oposições entre
masculinidade/feminilidade, atividade/passividade, público/privado,
virilidade/fragilidade, racionalidade/emotividade, entre diversos outros
conceitos que sempre colocam a identidade feminina subordinada à
masculina.

Assim como Daniela Finco (2003) aborda em seu texto “Relações de Gênero
nas Brincadeiras de Meninos e Meninas na Educação Infantil”, a escola é
uma das primeiras ferramentas de imposição de formas de comportamento
diferenciadas pela construção física. Segundo a mesma, a experiência com
alunos de 4 a 6 anos revela o não reconhecimento das relações de poder na
divisão de gênero quando, naturalmente, escolhem com o que brincar e
com quem se relacionar nessas brincadeiras, evidenciando que “gênero é,
portanto, um conceito eminentemente relacional e político” (MADUREIRA,
2007, p. 66).

Por esta análise, não seria possível instituir um sistema que estrutura as
relações na sociedade sem a abordagem da sexualidade. “O gênero
biológico é apresentado como uma das dicotomias fundamentais da
natureza e replicado na ordem social pelas classificações mais básicas à
vida de uma criança” (OLIVEIRA; DINIZ, 2014, p.3).

Desta forma, a sexualidade é construída sob um sistema de dominação de


gênero. Portanto, os corpos sexuados são classificados de acordo com a
diferenciação descrita anteriormente, de forma que as identidades que
destoam desse cenário heteronormativo são tratadas com preconceito.
Logo, o padrão estabelecido passa ser a do “homem branco, heterossexual,
de classe média urbana e cristão” (LOURO, 2000, p.6), evidenciando
também que as categorizações de raça, classe e religião, interferindo
diretamente no processo de subalternização social, sendo a escola
488
conservadora uma das instituições responsáveis por tal processo.

A vertente pós-estruturalista que se desenvolveu no debate de gênero,


juntamente da teoria Queer da década de 1990, têm “papel importante no
questionamento de concepções preconceituosas” (MADUREIRA, 2007, p.80),
teoria esta que coloca em xeque os sistemas que subalternizam identidades
sexuais e de gênero disseminados por toda a sociedade. É justamente o
questionamento das distinções de gênero, relações de poder e do
preconceito, que farão da realidade discrepante entre os “normais” e
“anormais” ser alterada. Assim, a heteronorma, baseada nas concepções de
gênero instituída nas escolas, pode ter suas estruturas contestadas por um
modelo crítico de pedagogia, de modo que a escola conservadora seja uma
dicotomia frente a instituição de tal matriz pedagógica.

A Escola conservadora
Ao se falar em escola conservadora é preciso deixar claro que, o presente
estudo não refere-se a escola denominada conservadora como uma
instituição exclusiva de vertentes políticas de direita ou esquerda, mas
como uma instituição que prioriza determinados conceitos e ideias perante
a uma sociedade extremamente diversa. Sendo assim, torna-se
imprescindível não usufruir dos estudos do sociólogo francês Pierre
Bourdieu.

Na obra “Escritos da Educação”, Bourdieu por meio do capitulo, “A escola


conservadora: as desigualdade frente à escola e à cultura”, evidencia que
as instituições de ensino são em sua maioria conservadoras, pois as
mesmas tendem a reproduzir conceitos, valores e a cultura referente a uma
classe dominante levando a criação de um conceito de capital cultural, que
permite analisar mais fundo a problemática da reprodução de uma cultura
dominante nas escolas.

Segundo Bourdieu:

“A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crianças


originárias de um meio pequeno burguês (ou, a fortiori, camponês e
operário) não podem adquirir, se não penosamente, o que é herdado pelos
filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto, o talento, em síntese,
essas atitudes e aptidões que só parecem naturais e naturalmente exigíveis
dos membros da classe cultivada, porque constituem a “cultura” (no sentido
empregado pelos etnólogos) dessa classe. Não recebendo de suas famílias
nada que lhes possa servir em sua atividade escolar, a não ser uma espécie
de boa vontade cultural vazia, os filhos das classes media são forçados a
tudo esperar e a tudo receber da escola, e sujeitos, ainda por cima, a ser
repreendidos pela escola por suas condutas por demais “escolares”.”
(BOURDIEU, 1998, p. 55)

A aproximação da cultura escolar com a de uma classe dominante ocorre


desde o advento da “Era Industrial”, após a criação da escola para “ricos e
pobres”, momento em que a elite da época obteve respostas aos seus
anseios, resultando que a classe operária obtivesse minimante instruções e 489
educação (FREIRE, 1986).

Do exposto, é possibilitada a reflexão acerca de um ideal de escola,


levantando-se dúvidas sobre a luta por sua democratização e seus objetivos
de fato, haja vista que a educação, por meio da escola, deveria ser
inclusiva, democrática e não silenciadora, conforme o modelo
heteronormativo operante, para só assim garantir o pleno desenvolvimento
de todos os alunos, independentemente de sua identidade, sendo direito
resguardado pela Constituição Federal de 1988.

Contudo, segundo Bourdieu (1998) a escola é excludente, e acaba


excluindo ainda mais os ditos “excluídos da sociedade”, por não
pertencerem à classe dominante. A exclusão está totalmente ligada ao
conceito de capital cultural que permite que a cultura se torne um
instrumento de dominação.

Gênero e heteronormatividade no cotidiano escolar


O espaço escolar traduz-se na principal máquina social de produção de
identidade, contudo, as diferenças produzidas nesse espaço são objetivadas
pela manutenção de um sistema heteronormativo, que coloca a identidade
masculina e feminina heterossexualizada como único modelo a ser seguido,
de maneira a silenciar as identidades que destoam desse padrão. Logo, o
processo de outrificação descrito por Silva (2000) é responsável por definir
fronteiras de gênero, que legitimam uma identidade como hegemônica e
subalternizam as que se diferenciam de tal ciclo.

As chamadas pedagogias da sexualidade (LOURO, 2000) instituem o


indivíduo hétero como a identidade padrão presumida e esta, por
conseguinte, marginaliza e silencia a homosexual. O sexismo e a homofobia
são guiados pelos sistemas de poder de gênero e sexualidade (OLIVEIRA;
DINIZ, 2014), abordagens preconceituosas que deslegitimam e
desumanizam tais pessoas e, principalmente na escola, essas dicotomias
são aprendidas e reproduzidas nos diferentes setores sociais. Assim, a
classificação desses cidadãos como anormais é uma importante ferramenta
de dominação, visto que ao tratar o indivíduo como outro, a identidade
humana é perdida e este, por sua vez, não pode ter direitos.

No espaço de educação da escola são facilmente perceptíveis as pedagogias


homofóbicas, que são todo um conjunto de práticas heteronormatizantes,
como a “pedagogia do armário” e a “pedagogia do insulto” (JUNQUEIRA,
2010), já que “a escola é um espaço obstinado na produção, reprodução e
atualização dos parâmetros de heteronormatividade” (JUNQUEIRA, 2010, p.
212).
Já abordada anteriormente, a pedagogia da sexualidade é o ponto inicial
para esta subordinação, já que, segundo Louro (2000) os corpos adquirem
sentido socialmente, quando têm a inscrição de gênero sob um corpo
sexualizado e, citando Foucault (1988), a pesquisadora afirma que o
“dispositivo histórico” da sexualidade é, senão, uma construção social que
regula, normatiza e estabelece “verdades” hegemônicas. Entretanto, como
490
pode-se afirmar identidades binárias se as construções de gênero,
sexualidade e performatividade destas são altamente mutáveis e plurais?

A escola também é um local onde se verificam pluralidades, contudo, como


Luma Andrade (2012) observa nos relatos colhidos nas escolas de ensino
estadual do Ceará, as identidades que mais se afastam do padrão de gênero
heteronormativo expressam uma polissemia de perspectivas a respeito
dessas identidades, no caso do objeto de pesquisa da autora, a identidade
travesti. O resultado de grande variabilidade de respostas na pesquisa
evidencia os processos de outrização e anormalização que a instituição
educacional impõe aos alunos, agindo de modo silenciador e periferizador.

Sendo assim, é demasiadamente dificultoso expressar uma identidade


homossexual, quando nas escolas a performatividade dessa é tratada como
algo passageiro, a utilização dos espaços é limitada (principalmente quando
se fala de transgêneros), há o emprego de uma heterossexualidade
presumida, a segregação é fortemente presente e uma aceitação
condicionada é imposta, além das variadas formas de agressões físicas e
verbais, que caracterizam um sistema agressivo para a manutenção da
heteronormatividade (JUNQUEIRA, 2010).

Há também despreparo e rigidez comportamental por parte do corpo


docente e direção, os quais preferem ignorar as singularidades expressadas
por seus alunos ou, quando não ignoram, tiram conclusões precipitadas a
respeito do estudante que se identifica fora do ciclo heteronormativo.

Todavia, os professores que tentam adotar um currículo crítico e horizontal


que questione as hierarquizações de gênero e sexualidade, não encontram o
suporte necessário nos materiais didáticos oferecidos pelo Estado. Como
observam Oliveira e Diniz (2014), os materiais didáticos escolares impostos
pelo Ministério da Educação, que compreendem os livros didáticos e as
DVDtecas, fazem (ou não) uma abordagem de gênero meramente baseada
em princípios da biologia e, se expressarem a pluralidade sexual, esta vem
camuflada sob um véu ideológico de “respeito e tolerância”. No entanto, a
análise pós-estruturalista de como operam os mecanismos de produção e
dominação da identidade e da diferença, assim como os processos de
fixação destes (SILVA, 2000) é a requerida por estes docentes que
objetivam desconstruir a dicotomia social da homofobia.

A educação de corpos que a escola exerce sobre os indivíduos e o processo


de silenciamento e marginalização das identidades homossexuais são
temáticas a serem abordadas por um currículo que debata horizontalmente
as construções socais das hierarquias de gênero e sexuais, de forma a
alterar o quadro em que se configuram as identidades nas escolas e
extinguir as pedagogias homofóbicas expressadas no presente texto.
Destarte, as identidades homossexuais analisadas podem deixar de ser
silenciadas e agredidas por tais pedagogias.

Considerações finais
Conclui-se que, o gênero como uma categoria de análise (SCOTT, 1995) é
de extrema importância na compreensão dos sistemas que hierarquizam as 491
identidades de gênero na sociedade e esta, por sua vez, se faz necessária
na análise dos processos de marginalização e invisibilização das identidades
homossexuais.

Para que os sistemas de imposição da identidade masculina


heterossexualizada sejam quebrados, a biologização do conceito de gênero
deve ser uma prática abandonada, de forma que ao tratar o currículo em
movimento nas escolas (JUNQUEIRA, 2010) as pluralidades sexuais e as
performatividades de gênero em cada indivíduo sejam respeitadas,
definindo esta categoria como uma construção sociocultural que, assim
como a análise de classe de Bourdieu (1998), implica na manutenção de
desigualdades no espaço de educação formal.

Somente assim, pode-se adotar um currículo escolar que aborde de forma


crítica as tramas da desigualdade, questionando cenário heteronormativo na
tentativa de quebrar essa continuidade. Desta forma, tal abordagem dá voz
aos marginalizados quando questiona a continuidade das relações de poder
e, assim, as relações no ambiente escolar podem se tornar mais plurais.

Referências
Victor Hugo de Almeida França, graduando do curso de Licenciatura em
História, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três
Lagoas (UFMS/CPTL), e-mail: vhugo012@hotmail.com
Pablo Afonso Silva, graduando do curso de Licenciatura em História, pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas
(UFMS/CPTL), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de
Professores (GForP-UFMS/CPTL), e-mail: pabloafonsosilva@hotmail.com

ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na escola: assujeitamento e


resistência à ordem normativa. 2012.
BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola
e à cultura. Escritos de Educação, v.2, p. 39-69, 1998.
FINCO, Daniela. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas
na educação infantil. Pró - Posições, v. 14, n. 3, p. 89-101, 2003.
FREIRE, Paulo et al. Cuidado escola. São Paulo: Brasiliense, 1980
JUNQUEIRA, Rogério. Currículo heteronormativo e cotidiano escolar
homofóbico. Espaço do currículo. v. 2, n. 2, p. 208 – 230, 2010.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte, Brasil: Autêntica, 2000.
MADUREIRA, Ana Flávia do Amaral. Gênero, sexualidade e diversidade na
escola: a construção de uma cultura democrática. 2007.
OLIVEIRA, Rosana Medeiros de; DINIZ, Débora. Materiais didáticos
escolares e injustiça epistêmica: sobre o marco heteronormativo. Educação
& Realidade, Vol. 39 n. 1. p. 241-256. 2014.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade, v. 20, n. 2. 1995.
DA SILVA, Tomáz Tadeu. A Produção Social da Identidade e da Diferença.
492
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, p. 73-102, 2000.
DA MULHER PARA A MULHER: A CONDUTA DA RAINHA DO LAR
NA DÉCADA DE 50 ATRAVÉS DA REVISTA O CRUZEIRO
Vitória Duarte Wingert e Jander Fernandes Martins

O presente texto é fruto de uma análise realizada no decorrer de um


semestre letivo de estudos, diálogos e reflexões na disciplina de Estudos de
gênero e suas manifestações culturais, dentro do PPG Processos e 493
Manifestações Culturais da Universidade FEEVALE-NH/RS. Tendo como
objeto, fragmentos da sessão Da mulher para a Mulher, publicadas no ano
de 1952 na revista O Cruzeiro. Através desta pesquisa, buscamos refletir
sobre a imposição de uma determinada conduta para o gênero feminino na
década de 50, influenciada pelos meios de comunicação, tais como a
revista. Em termos metodológicos a discussão se desenvolve no campo da
história das mulheres no Brasil e na normatização dos papeis de gênero.

Em um primeiro momento, foi realizada uma pesquisa de caráter


bibliográfico como um dos instrumentos colaboradores para a realização da
pesquisa por acreditar ser adequada neste processo investigativo. Desta
forma foi traçada uma discussão sobre aspectos da história da mulher da
década de 50, a partir de pesquisas historiográficas.

Em um segundo momento foram selecionadas cartas e conselhos da sessão


Da mulher para a mulher, da revista O cruzeiro, do ano de 1952, a fim de
problematizar as determinações quanto a conduta esperada para as
mulheres casadas. Cabe ressaltar que aqui, o periódico será tratado como
uma fonte histórica, em função de que: “a escolha de um jornal como
objeto de estudo justifica-se por entender a imprensa fundamentalmente
como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida
social”; (LUCA, apud CAPELATO, p. 118, 1994). A análise dos fragmentos,
do periódico foi feito, levando em consideração a categoria de gênero, uma
vez que o percebemos como um campo, onde se vive a história.

O lugar da mulher na historiografia


A primeira história que gostaria de contar é a história das mulheres. Hoje
em dia ela soa evidente. Uma história ‘sem as mulheres’ parece impossível.
Entre tanto, isso não existia. Pelo menos no sentido coletivo do termo: não
se trata de biografias, de vidas de mulheres especificas, mas das mulheres
em seu conjunto[...]” (PERROT, 2017. p.13.)

Começo a primeira parte desta discussão, com a citação de Michelle Perrot,


retirada do livro Minha história das Mulheres. O livro surgiu a partir do
programa de rádio France Culture, onde com linguagem simples e acessível,
a historiadora explicava ao público em geral, seus estudos desenvolvidos
sobre a história das mulheres. Perrot chama a atenção para o silêncio das
fontes, pontuando que as mulheres o quanto as mulheres foram
invisibilizadas e silenciadas, dentro da historiografia tradicional. Com poucos
vestígios sobre suas ações no meio social. O resultado é uma em certa
deficiência nos estudos de gênero, que possuem como objetivo contemplar
a mulheres e outras minorias, como participantes em variados campos das
Ciências Humanas.

Realizando uma análise sucinta da historiografia brasileira, em geral, a


figura masculina, sempre, protagonizou a História. E esta, tem sua razão de
ser desde os primórdios da colonização do Brasil, onde a figura da mulher
494
estava representada, tão somente, dentro do “sagrado matrimônio”, sendo
que esta tinha como único objetivo dar continuidade a linhagem do marido
através dos filhos e cuidar dos afazeres domésticos. Um proverbio
português afirmava que a mulher virtuosa, saia de casa em apenas três
ocasiões: para ser batizada, para casar-se e para ser enterrada. (HABNER,
2018).

As mulheres por sua vez, encontravam mecanismos de defesa próprios,


como ir à missa, para se encontrar e conversar com as amigas ou até
mesmo com seus amantes. Há também registros históricos de esposas que
envenenavam os maridos, para se livrarem dos laços matrimoniais.
(PRIORE, 2014) Como sintoma de uma estrutura patriarcal, se constata que
até mesmo as punições para este tipo de caso eram desiguais, no que
concerne à Legislação lusa vigente naquela época, enquanto:

Para a mulher não se colocava nem seque a possibilidade de serem


desculpadas por matarem os maridos adúlteros, aos homens a defesa da
honra perante o adultério feminino comprovado encontrava apoio nas leis.
(PRIORE, 2014, p.34)

A visão limitada da mulher, aquela que constituía sua identidade apenas a


partir do casamento, não foi algo apenas da época da Colônia. Em pleno
século XX, continuou-se cultivando a ideia da moça de família, da mulher
para casar, daquele tipo de jovem que se dá o respeito. Mesmo com um
salto de alguns séculos, se percebe que o ideal de mulher, da representação
construída sobre a mesma, pouco mudou: submissa, recatada, discreta,
compreensiva, boa esposa, boa mãe, etc.

Da Mulher para a Mulher


Guardiã da moral e dos bons costumes a sessão Da mulher para a mulher,
assinada por um indivíduo com pseudônimo de Maria Teresa, era uma
espécie de consultório sentimental, onde as mulheres enviavam cartas
pedindo conselhos e também apresentava textos escritos pela colunista e
considerados de temáticas relevantes para mulheres. A sessão localizava-se
nas últimas páginas da revista O cruzeiro. Entre os principais assuntos
destacam-se namoro, casamento, filhos e conduta feminina. Sempre em
tom moralizador e cristão, Maria Teresa, exercia o papel de conselheira
feminina, deixando bem claro que cada mulher possuía um papel fixo
dentro da sociedade.

Quando estudamos questões referente a construção social dos papeis


atribuídos ao masculino e ao feminino, compreendemos que publicações,
como esta sessão da revista O Cruzeiro, serviram para fortalecer a
construção discursiva da divisão entre ser homem e ser mulher. Para esta
sociedade que tinha como premissa o determinismo biológico, esta cultura
do feminino era construída e expressa pela: “articulação de gênero com
outras ‘marcas’ sociais, tais como classe, raça/etnia, sexualidade, geração,
religião, nacionalidade”. (MAYER, 2004, p. 15). Tendo essa articulação como
importante produtora das modificações nas formas de experenciar tanto a
masculinidade quanto a feminilidade, pelos diferentes grupos que compõe a
sociedade, no decorrer de suas vidas. 495

Várias correspondências desta sessão são relacionadas ao casamento,


principal objetivo de vida da mulher da década de 50, ou pelo menos
deveria ser. A leitora denominada Dulce Mascarenhas do Rio de Janeiro,
escreve para a sessão contando sua história de amor. No relato ela afirma
ter se apaixonado perdidamente por um jovem, porém sua família decide
mudar de cidade, para seu desespero. Meses mais tarde, para sua
decepção, ela recebe a notícia de que seu amado, está noivo de outra:

“Achei minha rival muito engraçadinha, mas custava a admitir que fosse a
mulher talhada para meu antigo fã, pois o conhecia de perto para saber
suas preferências. Enfim cheguei a evidência de que não estava enganada
quando soube que haviam desfeito o noivado. E pouco tempo depois eis que
ele me procura para saber se ainda o amava. E dizer que era eu, e não a
outra, a mulher talhada para sua vida, ora, Eu ainda o amava, e quanto!
Estamos casados há dois anos e espero meu primeiro bebê. Estou pedindo a
Deus que seja um garotinho para continuar o nome do meu adorado
Gilberto.” (O CRUZEIRO, 12 de janeiro, 1952)

Analisando historicamente o relato desta leitora, observamos algumas


coisas. Primeiro: a construção de uma rival feminina, alguém havia furtado,
o grande amor desta mulher. Em segundo lugar, o grande desfecho desta
história de amor foi: o casamento e a gravidez. Este era considerado o
gran finale, o que era esperado a toda mulher desta década. Era de
consenso que as mulheres viviam para o amor, “romantismo e sensibilidade
eram, nos Anos Dourados, características tidas como especialmente
femininas, sendo que toda uma literatura estava disposta a alimentar esta
inclinação”. (PINSKY, 1997, p.618)

Não apenas casar-se era fundamental, mas manter o casamento também


era peça chave para manter a estrutura social. E na harmonia do
matrimonio, a esposa era a peça fundamental. Como forma de ajudar
outras mulheres, dentro do casamento, a leitora Eleonor, de Taubaté,
compartilhou dicas, “muito úteis”:

“Boa formação moral: apesar das ideias modernas a moça que sempre se
soube se fazer respeitar tem aos olhos de seu marido um valor todo
especial.
Conhecimento da questão sexual em boas fontes: Fui educada, sem minha
mãe e o recato natural que nos separa de um pai levou-me a satisfazer
minha curiosidade (desperta pelo que considero más conversas) em livros
científicos vários e em conversas com pessoas que eu considerava de bom
senso. Assim sendo, não tive choques, nem surpresas nas primeiras
experiências conjugais.
Tempo suficiente de noivado: Por diversos motivos meu casamento foi
adiado e tivemos noivos, pouco mais de dois anos. Esse espaço de tempo
permitiu-me um conhecimento bastante profundo sobre o homem que seria
meu marido e da família dele, o que é um ponto importantíssimo.
496
Sorte: Em último lugar, para não me alongar demasiado, há muita coisa,
que escapa a qualquer cálculo de pretensão, está enfim, completamente
fora das mãos da gente. A isso chamam de estrela, destino ou sorte.
Também pode ter influenciado o fato de eu ter me casado já com 23 anos”.
(O CRUZEIRO, 26 de janeiro de 1952)

Podemos destacar vários aspectos da fala de Eleonor. Em primeiro lugar ela


nos apresenta o velho estereótipo de, a mulher precisa se dar o respeito,
para que desta forma seja bem vista, pelo marido. Ainda era exigido, que a
mulher se casasse virgem, sendo assim a descoberta do próprio corpo, era
vetado e considerado pecaminoso. A própria Eleonor admite ter sido
influenciada por más conversas. Por fim, ela considera-se uma garota
sortuda, por ter encontrado um marido e já estar casada aos 23 anos.
Quanto a idade ideal para o casamento, vemos que a faixa etária
aumentou, visto que no período colonial as meninas casavam-se entre 12 e
13 anos. Na década de 50, entre os 18 e 20 anos de idade. Uma mulher
solteira de 25 anos era motivo de constrangimento e categorizada como
solteirona. Em contra partida: “um homem de 30 anos, solteiro, e com
estabilidade financeira, ainda era visto como um bom partido, para
mulheres bem mais jovens”. (PINSKY, 2017, p.619)

A grande problemática em torno desta sessão é que ela não leva em conta,
que cada indivíduo, vive e expressa sua sexualidade de diferentes maneiras.
Grande parte do problema está na heterossexualidade normativa, pois esta
é opressora: “na medida em que busca criar uma estabilidade entre sexo,
gênero e desejo” (MARIANO, 2005, p. 487). A pureza sexual, representada
pela virgindade, além do recato era algo fundamental nesta sociedade,
distinguindo socialmente a moça de família da leviana. A jovem decente era
que: “conserva sua inocência sexual e não se deixava levar por intimidades
físicas com os rapazes [...] mantendo-se virgens até o matrimonio
enquanto aos rapazes era permitido ter experiências sexuais”. (PINSKY,
1997, p.610)

A fala também sugere que embora o país estivesse se modernizando, e a


mulher fosse estimulada a aderir um novo padrão de comportamento,
principalmente no que tange a novas formas de beleza e o consumo de
produtos para o lar, deveria continuar seguindo o antigo padrão de
comportamento. Ou seja, deveriam conciliar o padrão de consumo
moderno, com antigos deveres femininos, maternidade, casamento e
tarefas domésticas. Ademais, as próprias leitoras criticam algumas
modernidades, como por exemplo, a separação:

“Nada de divórcio, o Brasil não está preparado para a visita deste ditador,
ouçamos antes a voz do coração, a exemplo do Mestre que disse: perdoai
nossas dividas, como perdoamos os nossos devedores” (O cruzeiro, 27 de
fevereiro de 1952).

Percebemos que as páginas, destinadas as mulheres, sempre buscavam


redirecionar o comportamento feminino, tanto no âmbito social, quanto no
privado, como algo natural se se ser. Aquelas, as quais o comportamento,
não se adequasse, ao exigido socialmente, precisavam modifica-lo 497
urgentemente. Para Joan Scott, o lugar da mulher na vida social humana
não é, de qualquer forma direta, um produto das coisas que ela faz, mas do
significado que suas atividades adquirem através da interação social
concreta (SCOTT, 1995)

Uma fala que nos chamou muita atenção foi a coluna escrita assinada por
Maria Teresa, responsável pela sessão Da mulher para a mulher, que se
intitulava: Nível Intelectual, nela lemos o seguinte:

Em geral o marido está em nível intelectual superior ao da mulher, ou, o


que está se tornando mais comum, os dois no mesmo nível. Quando o
homem é mais adiantado não existe problema nisto. Se transforma até num
fator a mais de proteção no desempenho do seu papel de mais forte e,
como reciproca, a esposa vê no seu marido um apoio mais seguro e exigido
pela sua delicadeza feminina. [...] Quando porém, se dá o contrário, isto é,
quando a mulher leva a melhor, do ponto de vista intelectual, a situação
muda de aspecto e torna-se muito mais delicada [...](O CRUZEIRO, 26 de
janeiro de 1952)

Em primeiro lugar, nos chama atenção na fala, a superioridade masculina,


como sendo algo normatizado. É natural o homem ser mais inteligente, com
isto ele consegue protege a família, etc. Porém a mulher ser mais
inteligente causa uma problemática a harmonia do lar, pois dirigir a família
é papel dado a ele e não a ela. Caímos novamente no binário biológico:
masculino/feminino, homem/mulher, muito difundido na época, e diria
muito presente até os dias atuais. Nesse marco, há o homem com H do
iluminismo – branco, burguês, varonil, guerreiro, colonizador – e seu
oposto, a mulher, instável, impregnada de fluidos sexuais, criatura do
mundo de penumbras que é a vida privada, onde os homens recuperam a
energia para retomar os embates da esfera pública e as guerras.
Generalizamos também o que é ser um homem, uma vez que: “O conceito
de masculinidade é falho porque ele essencialista o caráter dos homens ou
impõe uma unidade falsa a uma realidade fluida e contraditória”. (CONNEL
& MESSERSCHIMIDT, 2013, p.249).

No decorrer da fala de Maria Teresa, ela aconselha que a mulher


intelectualmente superior haja com: “delicadeza, perseverança e sabedoria,
que lhe conduza sem lhe ferir o amor próprio [...] os homens são
orgulhosos por natureza e não admitem em hipótese nenhuma serem
guiados pela mulher”. (O CRUZEIRO, 26 de janeiro de 1952). É fundamental
nos determos para analisarmos, como estas diferenças e desigualdade entre
homens e mulheres são discursivamente construídas e não biologicamente
determinadas. A mulher não biologicamente subordinada e o homem um
líder nato. Eliminar a essencialização e universalização é fundamental para
compreender que o que se passa dentro desta relação são estratégias de
poder que instituem e legitimam determinadas ações. (MEYER, 2004)

Esta não é a primeira, nem a última vez que Maria Teresa se posiciona
quanto a essência feminina. Na edição de 16 de Fevereiro de 1952, ela
498
escreve:

“Liderança feminina
Há pessoas que não fazem uma ideia perfeita da posição da mulher no seio
da família. Umas revoltam-se, acham que a mulher casada perde a
personalidade. Outras, vão além, acham que se transformam numa
verdadeira escrava do marido. Surgem então novas opiniões, mais erradas
ainda, de que ela deveria mandar e o marido obedecer. A mulher casada e
feliz assume dentro da família uma posição que lhe foi ditada pela própria
natureza feminina, na sua essência. Querer contrariar as leis naturais é
entrar em choque com a própria condição humana, é criar situações
insustentáveis.”

Aqui explicitamente temos o uso dos termos, ditada pela própria natureza,
essência, leis naturais, condição humana, demonstram como erroneamente
o fator biológico tenta explicar os papeis sociais. Compreendendo a cultura
como um campo de disputa onde se vive e se representa a masculinidade e
a feminilidade, estas visões universalistas, como as apresentadas por Maria
Teresa se tornam demasiadamente simplistas: “Para manter as hierarquias
entre o masculino e o feminino, as possíveis ameaças a “mulher culta” [...]
certo nível cultural é necessário para que saiba conversar e agradar os
rapazes” (PINSKY, 2017, p.625-627)

Considerações finais
Através desta pesquisa, buscamos refletir sobre a imposição de uma
determinada conduta para o gênero feminino na década de 50, influenciada
pelos meios de comunicação, tais como a revista O Cruzeiro. Tendo em
vista analises aqui realizadas, com base na categoria de gênero e história
das mulheres, conseguimos constatar em primeiro lugar que a unidade
mulher é excludente e normatizadora “como se todas as mulheres o fossem
de modo idêntico” (LOURO, 1995, p.115).

Aqui também ressaltamos a importância dos periódicos, como fontes


históricas, permitindo que o pesquisador compreenda melhor a sociedade
pesquisa, neste caso o Brasil da década de 50. Percebendo fragmentos do
imaginário coletivo daquela época, bem como as condutados
normatizadoras da feminilidade da mulher casada, como é o caso desta
pesquisa. Ao nos determos nos anúncios destinados as mulheres,
conseguimos perceber a predominância de produtos domésticos, reforçando
que o lugar da mulher era dentro do lar, com tarefas exclusivamente
manuais e não remuneradas. Enquanto a rua e o espaço político e de
tomada de decisões, exclusivamente masculino. Quando o esposo chegava
cansado do trabalho, capitalista e remunerado, cabia a esposa não o
incomodar com frivolidades. Além do mais, como mesmo reforça o
periódico, era da natureza feminina organizar a atmosfera de harmonia do
lar, sendo delicada, pacienciosa, agradável, polida e vestida alinhadamente
e com recato para esperar o homem, como ressalta a sessão Da mulher
para a mulher.

A revista O cruzeiro, em função de seu alto impacto no cenário midiático da


época, contribuiu na divulgação de um determinado tipo de discurso sobre a 499
maneira correta de ser mulher. Influenciando muitas leitoras a aderirem
comportamentos ou a suportarem abusos e traições, pois era de sua
natureza serem passivas e submissas a seus maridos. Estes elementos
apresentados pela revista moldaram a construção social e cultural da
década de 50, bem como reforçaram certos estereótipos, dos quais temos
resquícios até os dias atuais.

Com isto concluímos que o campo de gênero bem como a construção da


masculinidade e da feminilidade hegemônica, se trata de um campo social
de disputas de poder, assim como a própria cultura. Reconhecer estas
categorias normativas como excludentes, fixas e problemáticas é o primeiro
passo para darmos voz aos invisíveis da história e construirmos uma
sociedade mais igualitária e democrática.

Referências
M.a. Vitória Duarte Wingert: Mestra em Processos e Manifestações
Culturais- Universidade Feevale. Especialista em Mídias na Educação (IFsul
Pelotas) Licenciada em História - Universidade Feevale. Professora na Rede
Municipal de Campo Bom. E-mail: vitoriawingert@hotmail.com
Me. Jander Fernandes Martins. Mestre em Processos e Manifestações
Culturais- Universidade Feevale. Doutorando em Processos e Manifestações
Culturais. Pedagogo – UFSM. Professor na Rede Municipal de Campo Bom.
E-mail: martinsjander@yahoo.com.br

CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil.2.ed. São Paulo:


Contexto/EDUSP, 1994.
CONNEL, Robert & MESSERSCHMIDT, James. Masculinidade hegemônica,
repensando o conceito. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2013000100014 Acesso em 05 de novembro de 2018.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas. 2 ed. São Paulo: Planeta, 2014.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, História e Educação: Construção e
Desconstrução. Educação e realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, 1995.
HABNER, June E. Mulheres da elite. In: PINSK, Carla Bassanezi & PEDRO,
Joana Maria (org). Nova história das mulheres no Brasil – 1ª ed. São Paulo:
Contexto, 2018.
MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pós-
estruturalismo. Revistas Estudos Feministas, vol13, n.3, 2005.
MEYER, Dagmar E. Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e
desafios atuais. Brasília: Bras Enferm, 2004.
PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE,
Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/UNESP,
1997.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Trad. Angêla M. S. Corrêa.
São Paulo: Contexto, 2007.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
500
Educação & realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, 1995.

Periódicos consultados:
O Cruzeiro, 12 de janeiro, 1952
O Cruzeiro, 16 de janeiro, 1952
O Cruzeiro, 26 de janeiro, 1952
POR UMA HISTÓRIA DA BELEZA E DO CORPO: O USO DO
INSTAGRAM NAS AULAS DE HISTÓRIA
Vitória Diniz de Souza

As redes sociais são um fenômeno em todo o mundo, a popularização do


seu uso trouxe transformações nos hábitos das pessoas, moldando novos
modos de subjetivação e práticas de sociabilidades. Por isso, nós 501
professores não podemos nos manter alheios a essas novas tecnologias,
sendo positiva a sua inserção no contexto da sala de aula. Nesse sentido,
essa pode ser uma ótima maneira para romper com o tradicionalismo que
ainda resiste nas aulas de História.

Neste ensaio, pretendo apresentar novas maneiras de se introduzir as redes


sociais nas aulas de história. Dessa forma, podemos trazer para a escola
uma discussão crítica e questionadora acerca dos usos desses instrumentos
que tem modificado tanto a vida das pessoas atualmente. Crianças e
adolescentes são um dos maiores grupos de usuários da internet, como
aponta a pesquisa do “Cetic.br”. Segundo essa pesquisa em 2017, 40% das
crianças e adolescentes conectados usam a Internet para conversar com
pessoas de outras cidades, países e culturas, 36% delas participam de
páginas ou grupos na Internet sobre assuntos de interesse, 28% buscam
informações sobre saúde e 22% sobre o que acontece na sua comunidade.
De fato, existe uma diversidade de redes sociais, assim, para esse texto,
escolhi o Instagram para apresentá-lo como recurso didático.

O Instagram é a quarta rede social mais usada no Brasil, segundo dados da


“Datareportal” [2019], ficando atrás apenas do Youtube, Facebook e
Whatsapp. Essa rede social é feita para a publicação de imagens e vídeos,
compartilhados entre os seguidores dos usuários que caso gostem podem
curtir e comentar o post. Ele é muito semelhante as outras redes sociais,
possuindo recursos de vídeos, texto, comentários, box de mensagens. No
entanto, o que difere é a sua capacidade de provocar uma midiatização de
“lifestyles”, onde as pessoas produzem uma imagem de si mesmas,
elaborando um estilo de vida pautado em paisagens exuberantes, corpos
esbeltos, comidas finas, projetando uma idealização da felicidade que afeta
a autoestima de milhares de usuários. Sendo essa uma ótima maneira para
dialogar de maneira crítica com os alunos sobre os perigos do Instagram e
propor maneiras mais saudáveis para o uso desse tipo de aplicativo.

Pretende-se, dessa forma, propor um olhar questionador acerca das


fotografias como representações da realidade, sendo elas permeadas por
discursos. Haloana Moreira Costa & Guilherme Figueira-Borges [2016]
afirmam que a fotografia não somente descreve, ela funda significações,
pois quando se fotografa algo por um certo ângulo, se escolhe
determinados cenários e se exclui outros. O ato de fotografar inclui um jogo
de posicionamentos que instaura efeitos de sentidos sobre o acontecimento
fotográfico. Ou seja, a fotografia produz discursos e atribui sentido a
objetos, pessoas e situações. As imagens enquanto fontes históricas
sofreram com certo preconceito pela historiografia tradicional, no entanto,
nas últimas décadas, com a renovação historiográfica, elas vêm sendo
objeto de inúmeras dissertações, teses e artigos.

Proponho a partir desse olhar ampliar as noções de História na Educação


Básica que infelizmente ainda é marcada por uma tradição da história
política e de uma perspectiva reduzida de política. Aspecto reforçado pela
502
organização da Base Nacional Comum Curricular [BNCC], na qual resiste
uma visão clássica e limitada de “acontecimento histórico” organizada ainda
entre categorias como: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Dessa
maneira, é preciso encarar a história como uma disciplina que também é
histórica. Sendo necessária uma renovação temática que abarque outros
aspectos como a cultura. Nesse sentido, analisaremos essas fotografias a
partir de um olhar acerca da história do corpo e da beleza. É claro que,
podemos usar o Instagram como recurso em aulas sobre diferentes
temáticas, entretanto, neste ensaio manterei um olhar acerca dos padrões
de beleza em diferentes épocas. Nesse caso, a escolha foi pelo marco
temporal do início do século XX, mais precisamente a “Era de Ouro” do
cinema Hollywoodiano. Esse período foi marcado por uma intensificação da
urbanização e massificação do cinema que projetava para o mundo o
“lifestyle” norte-americano baseado no “American way of life”. Assim, é
possível produzir um conhecimento histórico com os alunos acerca do
período Entre Guerras e acerca do imperialismo americano iniciado através
da exportação de filmes que ganharam o gosto do público brasileiro.

Como fazer?
Inicialmente, é importante conhecer as condições físicas da escola na qual
ocorrerá a aula, pois, nem todos os estabelecimentos tem acesso a internet,
além disso, é preciso se certificar se na escola existe o equipamento
necessário para a execução da proposta. Se estiver tudo certo em relação a
infraestrutura, o passo a seguir é o da pesquisa. Antes de qualquer aula o
professor precisa planejar como ocorrerá os momentos de aprendizagem,
qual material será utilizado, qual o conteúdo da aula, tudo isso com
antecedência. Nesse caso, escolhi o período Entre Guerras, momento crucial
para a disseminação da cultura do cinema que se expandiu pelo mundo.
Quero discutir com os alunos como os padrões de beleza mudaram ao longo
do tempo, por isso, a escolha das fotografias como fonte. Assim, aproveito
a popularidade das redes sociais para promover uma aula interessante,
refletindo sobre como elas moldam os padrões de beleza na atualidade.

Realizada a pesquisa, é necessário selecionar as imagens e esse processo


depende dos objetivos propostos pela aula. Como pretendo realizar uma
aula sobre a “Era de Ouro” de Hollywood, pesquisei perfis no Instagram que
divulgam fotografias de atores e atrizes antigos. Há uma diversidade de
páginas com esse fim, entre elas, escolhi três: a “miss_hollyold”, a
“vintagehollywoodstars” e a “theclassicsdarling”. Esses perfis possuem
respectivamente 24,3 mil, 40,4 mil e 256 mil seguidores no momento da
elaboração deste texto. São páginas de língua inglesa e tem o objetivo de
divulgar fotografias de antigos astros do cinema americano. Elas apelam
para a nostalgia que provocam com essas imagens e são apreciadas por fãs
do cinema antigo, independentemente da idade, nacionalidade e raça.
Sendo o seu público em sua maioria mulheres. No critério de seleção dessas
fotografias se deve levar em consideração a faixa etária dos alunos, na
experiência proposta aqui, recomendo alunos a partir dos doze anos. Além
disso, é preciso verificar a credibilidade das imagens publicadas por esses
perfis, para isso, há recursos e sites de pesquisa que ajudam bastante
nesse processo de averiguação.
503
Após selecionar as imagens, é preciso conhecer o contexto de produção
delas. Isso é possível através de uma pesquisa bibliográfica acerca do que
se tem produzido acerca da história do cinema, da beleza e do corpo no
período proposto, nesse caso, as décadas de 1930, 1940 e 1950. Depois
disso, é feita uma leitura desse material, selecionando os aspectos
importantes para a elaboração da aula. Entender o contexto histórico é
fundamental para a preparação do professor em uma aula de história,
principalmente, porque o aluno vai precisar de outras informações para
fazer sua análise individual dessas imagens. Antes de exibi-las em sala, é
preciso que o professor faça sua própria análise individual das fotografias
selecionadas, estabeleça conexões entre elas e com o contexto histórico,
delimitando bem suas marcas de historicidade. Por fim, organize o roteiro
da aula e o plano de maneira clara e bem objetiva.

Serlei Maria Fischer Ranzi [2002, p. 191-192] tece algumas informações


importantes acerca do uso do cinema nas aulas de história que também são
relevantes no caso do uso das fotografias:

“Interrogar-se sobre o que um aluno aprende com a imagem significa levar


em conta três tipos de dados: o primeiro, com relação à imagem, pressupõe
um mínimo de formação sobre os significados de cada imagem [...] O
segundo dado diz respeito ao aluno, sabe-se que o "leitor" da imagem faz
sua leitura em função daquilo que lhe é solicitado, mas também, em função
daquilo que ele sabe ou pensa, ou crê, como também em função do seu
grau de familiaridade com o tipo de imagem que lhe é apresentada [...] Por
último, é muito importante levar em consideração o contexto em que a
imagem está sendo trabalhada [...] Depende também do encaminhamento
metodológico, ou seja, daquilo que ele é levado analisar, a ver, a pesquisar,
enfim, depende da situação de aprendizagem proposta”.

Por isso, a elaboração de uma aula bem planejada e de momentos de


aprendizagem bem organizados são fundamentais. Sendo necessário o
professor estar atento para o ponto de vista do observador da imagem,
nesse caso, o aluno, que tece suas próprias observações a partir da sua
perspectiva e do seu grau de familiaridade com o objeto. Aqui o papel do
professor como mediador ganha destaque, é ele que vai auxiliar o aluno
nesse processo de análise.

A experiência:
Foram selecionadas três fotos no total para a análise. Inicialmente, antes de
tudo, é importante fazer uma breve introdução ao conteúdo da aula. Se é
sobre a história do cinema, é importante apresentar uma breve
contextualização sobre essa indústria, seu surgimento, processo de
popularização e como ela vem “ditando a moda” há muitas décadas.
Gradualmente, traga para a discussão a importância dessa indústria na
elaboração de padrões de beleza, como é o caso dos “sex symbols” que
permeiam o imaginário popular. É sempre necessário estabelecer uma
ponte com a atualidade, por isso, questione os alunos sobre os filmes que
assistem, quem são os padrões de beleza atuais e assim criar conexões
504
entre o passado e o presente.

A primeira fotografia foi retirada do perfil “miss_hollyold_”, sendo


protagonizada pelos atores Mirna Loy e William Powell. Ela foi realizada para
fins de divulgação do filme “The Thin Man” de 1934 [que no Brasil ficou
traduzido para A ceia dos acusados]. Esse filme é uma comédia detetivesca,
gênero bem popular nesse período, tendo sido uma franquia composta por
seis filmes no total. Os atores formavam um casal que se envolviam em
trapalhadas enquanto investigavam algum estranho acontecimento. Mirna
Loy, a atriz protagonista, era associada a imagem da jovem moça divertida
e envolvente que auxiliava o protagonista homem nas suas aventuras. Na
imagem, vemos um casal que estão envolvidos romanticamente pela
disposição dos corpos. Ela apresenta uma face contemplativa, sem olhar
diretamente para a câmera, nem para o seu companheiro. Nesse caso, ela
deixa claro o fato de que gosta de ser admirada por ele. Ela utiliza um
vestido de alças, o que demonstra ser uma moça ousada e que está com
roupas de festa. Sua maquiagem e penteado são um clássico que marcou
os anos 1930, sobrancelhas arqueadas, finas, levemente desenhadas a
lápis. A sombra é escura, o batom também, o que cria um efeito de
contraste, importante nas fotografias em preto e branco. O cabelo é curto e
encaracolado, estilo muito usado pelas atrizes hollywoodianas no período.

Fonte: https://www.instagram.com/p/B197nqunhxU/
Enquanto isso, William Powell, considerado um galã da época, aparece de
terno e gravata, vestimenta tradicional masculina, bigode pouco volumoso,
sem barba, cabelo alinhado, com algum tipo de produto para cabelos que
deixava os fios para trás, representando bem o padrão de beleza masculino
desse período. Algo interessante que não contém na imagem, é a diferença
de idade entre eles, nesse caso, Myrna tinha 29 anos, enquanto William
tinha 42 anos nessa fotografia. Era muito comum casais com grandes 505
diferenças de idade nos filmes, além disso, a vida útil de um ator homem
era muito maior que de uma atriz. Os homens encerravam suas carreiras
com mais de sessenta anos sendo considerados ainda galãs, enquanto as
mulheres terminavam com no máximo quarenta anos, sendo
posteriormente chamada para papéis pequenos.

Segundo Denise Sant’Anna [2012] graças aos novos recursos da


maquiagem e das técnicas cinematográficas, o embelezamento modificou a
visão dos corpos feminino e masculino. Exemplar a esse respeito foi o
surgimento de Rodolfo Valentino, que se assemelha ao William Powell. Sua
imagem combinava virilidade e sensibilidade, força do corpo e delicadeza
dos gestos. Seu rosto, sem os traços da barba, convidava ao toque, sugeria
um contato macio, próximo ao imaginário historicamente associado a
feminilidade. As mulheres apareciam mais ousadas, porém, ainda
resguardavam uma áurea de delicadeza, recato e sensibilidade, atributos
considerados femininos.

As possibilidades de análise das fotografias são infinitas, sendo interessante


que o professor traga os alunos para a análise e provoque neles o desejo de
manifestarem suas opiniões e considerações acerca da fotografia. Essa
etapa é fundamental no processo de aprendizagem, despertando neles o
senso crítico. Nesse sentido, podemos discutir, por exemplo, a construção
da masculinidade e da feminilidade pelo cinema americano nos anos de
1930. As desigualdades enfrentadas pelas mulheres nessa indústria
extremamente competitiva e pouco receptiva para com elas. Seria
interessante que além da fotografia, apresentasse também vídeos desses
atores em movimento, como nos trailers desses filmes disponibilizados
pelas páginas de suas produtoras no Youtube, como é o caso dos filmes da
MGM, da Warner Bros e da Paramount.

Caroline Gomes Rocha [2019, p. 4-5] afirma que:

“[...] as representações femininas no cinema da época eram


majoritariamente dependentes e construídas em função do homem, sendo a
maioria das mulheres representadas pelos filmes, segundo a classificação
proposta por Ann Kaplan [1995], do tipo cúmplices, que renunciam aos
seus sentimentos pessoais e realização individual em detrimento de outras
questões, adotando uma posição de resignação”.

Por que não trazer essas questões para a discussão com os alunos e assim
contribuir para que possam refletir criticamente sobre as desigualdades de
gênero na indústria cinematográfica enfrentadas hoje pelas mulheres,
LGBTQs, negros e várias etnias.
A seguir, as fotografias são compostas por duas estrelas muito populares no
cinema na década de 1950. Por meio delas é possível analisar as mudanças
nos padrões de beleza que exploravam uma postura mais sexy e despojada
de suas estrelas. Abaixo, escolhi uma imagem do ator americano James
Dean, conhecido pelo filme Juventude Transviada de 1955.
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Fonte: https://www.instagram.com/p/B3BGN61nuFV/

Na fotografia acima vemos o ator James Dean, em um lugar ensolarado, de


maneira despojada, fumando um cigarro, com uma camiseta branca,
cabelos penteados para trás, mas dessa vez, de maneira leve. A foto foi
tirada de lado para causar a sensação de que foi tirada sem que o
fotografado percebesse. Novamente vemos um homem sem barba, branco,
com pelos apenas nos braços. Com James Dean percebemos uma mudança
crucial no padrão de beleza masculino que nesse momento passa a ser
despojado e jovem, nessa fotografia ele estava com a idade
aproximadamente de 24 anos, época que despontou como galã, tempo
breve, até sua morte.

Na foto a seguir, vemos a atriz Sophia Loren em 1955, momento em que


ela despontou como um dos “sex symbols” mais marcantes da época. Uma
das características mais admiradas sobre ela era a sua sensualidade, com
um olhar marcante, lábios volumosos e corpo curvilíneo. De origem italiana,
ela produziu um novo padrão de beleza feminino, com mulheres sensuais,
de corpos curvilíneos, como é o caso de outra estrela dessa época, a atriz
Marilyn Monroe. A magreza, apesar de ainda ser um padrão, agora
disputava a visibilidade com mulheres mais “robustas” que atraíam o olhar
masculino.
507

Fonte: https://www.instagram.com/p/BzLxvzpHxvJ/

Na imagem acima, percebemos que os pelos nas axilas das mulheres não
eram vistos como um problema, mas como uma característica. A “caça aos
pelos” nas mulheres é um padrão de beleza relativamente recente. Dessa
maneira, era recorrente as imagens da Sophia Loren mostrando suas axilas,
se tornando uma marca da atriz. Segundo Caroline Gomes Rocha [2019]
Hollywood buscava, à época, uma nova estrela feminina para a década, que
atraísse o grande público masculino para o cinema. Sendo a Sophia Loren
uma das que mais engajavam os homens a irem às salas de cinema. Isso
demonstra como o corpo feminino é objetificado, aspecto que marcou a
história do cinema hollywoodiano, onde mulheres apenas apareciam como
alvo do olhar masculino e interesse romântico do protagonista. A figura da
“femme fatale”, por exemplo, surgiu ainda nos anos 1920, no entanto, foi
sendo reelaborada ao longo das décadas, configurando uma das imagens
mais recorrentes no cinema americano. Por isso, é importante pensar sobre
como a corpo feminino e masculino foram representados ao longo do
tempo, até mesmo, as definições binárias acerca do corpo foram produzidas
para criar essa aparência de naturalidade que reproduz preconceitos.

Silvana Vilodre Goellner [2013, p. 30] afirma que é preciso:

“Pensar o corpo como algo produzido na e pela cultura, é, simultaneamente,


um desafio e uma necessidade. Um desafio porque rompe, de certa forma,
com o olhar naturalista sobre o qual muitas vezes o corpo é observado,
explicado, classificado e tratado. Uma necessidade porque ao desnaturalizá-
lo revela, sobretudo, que o corpo é histórico. Isto é, mais do que um dado
natural cuja materialidade nos presentifica no mundo, o corpo é uma
construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes
tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc”.
Conclusão
A intenção desse ensaio foi promover uma reflexão acerca da produção da
beleza, do corpo, da feminilidade e da masculinidade ao longo do tempo e,
principalmente, construir um olhar desnaturalizado acerca dessas questões
e como elas possuem marcas de historicidade. O modelo de aula
apresentado nesse texto não é a única possibilidade para esse tipo de
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abordagem metodológica. O uso do Instagram como recurso didático é
ampla e a decisão de como utilizá-lo vai depender do professor e dos
objetivos propostos para a sua aula.

É recomendado não utilizar as fotografias de forma pura, na verdade, é


preciso trazê-las de forma contextualizada, dialogando também, se
possível, com outras fontes. O importante é proporcionar uma aula reflexiva
e cheia de momentos de aprendizagem ricos e críticos. Nesse sentido, os
alunos poderão questionar a sua relação com os padrões de beleza atuais e
com as redes sociais, que muitas vezes é tóxico, deixando as pessoas
doentes.

Portanto, os limites das abordagens metodológicas realizadas com o


Instagram e com as fotografias vai depender unicamente dos limites da
criatividade do professor. Bom trabalho!

Referências
Prof. Vitória Diniz de Souza, graduada em História (UEPB) e mestranda em
Educação (UFRN).

CLASSIC HOLLYWOOD, 2019. Disponível em:


https://www.instagram.com/miss_hollyold_/. Acesso em: 23 de fevereiro
de 2020.
COSTA, Haloana Moreira; FIGUEIRA-BORGES, Guilherme. Discursividades
em fotografia: constituição do corpo feminino na história. III Congresso de
Ensino, Pesquisa e Extensão da UEG: Inovação: Inclusão social e Direitos.
Pirenópolis – Goiás, 2016.
DIGITAL BRAZIL, 2019. Disponível em:
https://datareportal.com/reports/digital-2019-brazil. Acesso em: 23 de
fevereiro de 2020.
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO,
Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo,
Gênero e Sexualidade: um debate contemporâneo. 9 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013, pp. 30-42.
RANZI, Serlei Maria Fischer. Cinema e aprendizagem em história. Revista
História & Ensino, Londrina, V. 8, edição especial, out. 2002, pp. 185-194.
ROCHA, Caroline Gomes. A Mulher e o Cinema: Uma Breve Análise da
Representação Feminina na Era de Ouro do Cinema Americano. Intercom:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXI
Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste. São Luís, 2019.
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpo e Beleza. “Sempre Bela”. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012, pp. 105-125.
TELE.SÍNTESE. 85% de crianças e adolescentes do país já são usuários da
internet, 2018. Disponível em: http://www.telesintese.com.br/85-de-
criancas-e-adolescentes-do-pais-ja-sao-usuarios-da-internet/. Acesso em:
23 de fevereiro de 2020.
THE CLASSICS, DARLING, 2019. Disponível em:
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de 2020. 509
VINTAGE STARS, 2019. Disponível em:
https://www.instagram.com/vintagehollywoodstars/. Acesso em: 23 de
fevereiro de 2020.
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