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UMA HISTÓRIA PARA O CONFORMISMO E A EXALTAÇÃO

PATRIÓTICA: crítica à proposta de BNCC /História

A HISTORY FOR CONFORMITY AND PATRIOTIC EXALTATION: a criticism of the proposed BNCC /History

G I L BERTO CA L IL
Doutor em História Social (UFF) e pós-doutorado em História (Universidade do Porto)
Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná
gilb ertocal i l @uol .com.br

RESUMO: ESTE ARTIGO DISCUTE CRITICAMENTE A PROPOSTA DE BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) PROPOSTA PARA A ÁREA DE HISTÓRIA.
ARGUMENTA QUE SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO FOI POUCO DEMOCRÁTICO E QUE A PROPOSTA APRESENTADA É INSATISFATÓRIA. CRITICA EM
ESPECIAL SUA PERSPECTIVA PATRIÓTICA, A FRAGMENTAÇÃO DA ABORDAGEM, A EXCLUSÃO DOS CONCEITOS E PROCESSOS FUNDAMENTAIS PARA
A COMPREENSÃO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS SUBORDINADA AO CONSUMO.
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO DE HISTÓRIA; POLÍTICAS EDUCACIONAIS; EDUCAÇÃO.

ABSTRACT: THIS ARTICLE CRITICALLY DISCUSSES THE PROPOSED COMMON NATIONAL BASE CURRICULUM (BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR,
BNCC) PROPOSAL FOR THE HISTORY AREA. ARGUES THAT ITS CONSTRUCTION PROCESS WAS UNDEMOCRATIC AND THAT THE PROPOSAL SUBMITTED IS
UNSATISFACTORY. CRITICIZES ESPECIALLY ITS PATRIOTIC PERSPECTIVE, THE FRAGMENTATION OF APPROACH, THE EXCLUSION OF THE FUNDAMENTAL
CONCEPTS AND PROCESSES FOR UNDERSTANDING THE CONTEMPORARY WORLD AND THE CONCEPTION OF HUMAN RIGHTS SUBORDINATE TO THE
CONSUMPTION.
KEYWORDS: HISTORY TEACHING; EDUCATIONAL POLICIES; EDUCATION.

INTRODUÇÃO ano1. Os componentes curriculares de História não


constavam naquela versão do documento, tendo
Em 16/09/2015, o Ministério da Educação sido divulgados apenas no final de outubro2. O
tornou pública sua proposta de Base Nacional documento geral, com 302 páginas, inclui objetivos
Comum Curricular (BNCC) para as diversas disci- gerais e componentes curriculares de 4 grandes
plinas da educação básica, redigida por asses- áreas, abarcando 14 disciplinas. A despeito do
sores indicados no dia 17 de junho do mesmo atraso (para o qual desconhecemos explicações

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oficiais) e da consequente redução do tempo para Em um debate que se concentra exclusi-


discussão, os conteúdos de História foram certa- vamente nos componentes curriculares não há
mente os que produziram maior polêmica, com a espaço para discutir os problemas cotidianos
publicação de grande número de textos críticos e/ vividos no ambiente escolar e que são razão
ou propositivos. fundamental dos resultados insatisfatórios: corte
A proposta deste texto é discutir o sentido de recursos, precarização do trabalho docente,
político e ideológico da proposta apresentada para baixos salários, fechamento de turmas e aumento
a área de História3. Antes, no entanto, é necessário do número de estudantes por turma, ausência
referir rapidamente o contexto da proposição das efetivas de políticas de permanência dos estu-
bases nacionais e a forma como o debate vem dantes, carência de estrutura e equipamentos, etc,
sendo gerido pelo MEC. etc, etc.

BASES NACIONAIS PARA QUE? AUTORITARISMO E SIMULACRO DE DISCUSSÃO

O que explica a proposição de Bases O processo de construção das Bases


Nacionais no atual contexto da política educacional Nacionais vem sendo marcado pelo autorita-
brasileira e quais foram as motivações do MEC rismo em todas suas fases, desde a indicação
para o encaminhamento da proposta em questão, dos especialistas que redigiram a proposta sem
com prazos de discussão claramente achatados? qualquer explicitação dos critérios adotados para
Embora a definição de Bases Nacionais sua escolha até a forma de gestão da chamada
possa atender a objetivos e motivações diversas, “consulta pública”. O pressuposto geral é que a
a análise do professor Paulo Eduardo Dias de prerrogativa de definir os conteúdos cabe ao MEC,
Mello dá indicações úteis para compreender o e não às distintas áreas de conhecimento. O corpo
sentido específico desta proposição, claramente de “especialistas” indicado pelo MEC muitas vezes
subordinada a metas relacionadas a fluxo escolar, está longe de expressar a heterogeneidade da área,
ao controle vertical sobre o trabalho docente e à como é claramente o caso de História.
obtenção de resultados em exames padronizados. A consulta pública é feita através de ques-
De acordo com ele, há clara subordinação a uma tionário fechado, nos moldes de pesquisa de
“lógica da prescrição diretiva, que não se agrega às “satisfação do cliente”, onde para cada conteúdo
atuações efetivas para investimento no professor cabe apenas responder “concordo fortemente”,
e em sua autonomia profissional e curricular, nem “concordo”, “sem opinião”, “discordo” e “discordo
vincula-se a iniciativas concretas de melhoria das fortemente”. Tal formato impede a discussão,
condições de trabalho docente”. Ao contrário, nos problematização ou crítica dos pressupostos
marcos de uma perspectiva neoliberal, a proposta gerais da área e seus eixos constitutivos (a única
pretende sanar os problemas críticos da educação possibilidade aberta é a proposição de “novos
básica através de um currículo prescritivo que objetivos”).
ataca frontalmente a autonomia docente: A consulta pode apenas produzir
“sugestões”, cuja sistematização é prerrogativa
Aos professores será exigido que assegurem do MEC e seus assessores e especialistas. Nela
aos seus alunos o ‘direito’ de aprender o que certamente as contribuições qualificadas de profis-
será examinado. Sua autonomia docente sionais da área se perderão em meio a torrentes
estará circunscrita à escolha do método, ou de sugestões produzidas com finalidades as mais
seja, do como irá ensinar o conteúdo a ser diversas, incluindo-se desde “sugestões” de
examinado, e menos na compreensão dos grupos religiosos fundamentalistas em defesa do
contextos das escolas e das situações de ensino do criacionismo até críticas de saudosistas
vida dos alunos”.4 da ditadura militar. A tabulação de dados colhidos

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desta forma dificilmente produzirá um instrumento • em terceiro lugar, o reconhecimento de


de análise qualificado. que tal opção faculta acesso às fontes,
Não há espaço para a discussão sobre a aos documentos, aos monumentos e ao
especificidade de cada campo do conhecimento conhecimento historiográfico;
e os objetivos e possibilidade a serem perse- • por fim, a consideração de que a História
guidos na estruturação de seus componentes na do Brasil deve ser compreendida a partir
educação básica. Pode-se discutir, por exemplo, de perspectivas locais, regionais, nacional
se um conteúdo de História é ou não pertinente, e global e para a construção e para manu-
mas não há espaço para discutir o que se pretende tenção de uma sociedade democrática. (p.
com o ensino de História na educação escolar. 244)
Mesmo o debate público feito à margem A argumentação é pouco convincente
dos espaços institucionais é prejudicado pelo (outros saberes são também significativos;
prazo exíguo, que basicamente corresponde – permitem fomentar a curiosidade científica; têm
novembro a março - ao período de final de ano fontes facilmente localizáveis, etc) e a opção
letivo, férias docentes e início do novo ano letivo, produz inconsistências e insuficiências graves.
quando a sobrecarga de trabalho e a dispersão A seguir, a proposta indica títulos que
produzida pelas férias coletivas tendem a inviabi- pretendem traduzir o “enfoque predominante, mas
lizar um debate sistemático em torno da proposta não exclusivo” (p. 244) para cada série, redigidos
por parte dos professores dos diferentes níveis e em termos que pretendem expressar uma perspec-
áreas. tiva de busca da diversidade e pluralidade: “Sujeitos
e Grupos Sociais” (1º ano); “Grupos Sociais e
A PROPOSTA DE BNCC EM HISTÓRIA Comunidades (2º ano); “Comunidades e outros
lugares de vivência” (3º ano); “Lugares de vivência
As Bases Propostas para História são parte e relações sociais (4º ano); “Mundos brasileiros” (5º
do capítulo sobre ciências humanas, juntamente ano); “Representações, sentidos e significados do
com Geografia, Filosofia, Sociologia e Religião(!). A tempo histórico” (6º ano); “Processos e Sujeitos”
proposta é constituída por 200 componentes distri- (7º ano); “Análise de processos históricos (8º e 9º
buídas entre as 9 séries do Ensino Fundamental ano); “Mundos Ameríndios, Africanos e Afro-brasi-
e Médio, sendo 61 relacionados ao 1º ciclo (do 1º leiros” (1º ano do ensino médio); “Mundos Ameri-
ao 5º ano), 83 ao 2º ciclo (do 6º ao 9º ano) e 56 canos (2º ano); e “Mundos Europeus e Asiáticos” (3º
prescritos para o Ensino Médio. ano). A distribuição, no entanto, é enganosa: dos
Toda a estruturação e distribuição dos 19 conteúdos propostos para o 3º ano do Ensino
conteúdos é determinada pela opção “pela ênfase Médio, supostamente dedicados aos “Mundos
em História do Brasil”, supostamente justificada Europeus e Asiáticos”, a grande maioria remete
por quatro fundamentos: à história brasileira, buscando nexos, vínculos
• em primeiro lugar, por oferecer um saber e consequências de processos europeus ou
significativo para crianças, jovens e asiáticos na História brasileira. Esta perspectiva
adultos, pois conhecer a história brasileira é empobrecedora, pois processos como desloca-
é conhecer a própria trajetória; mentos humanos ou a emergência do liberalismo
• em segundo lugar, o reconhecimento de são estudados sob uma lente redutora que procura
que o saber histórico deve fomentar a basicamente fazer comparações ou identificar suas
curiosidade científica e a familiarização consequências para a história brasileira. Dentre
com outras formas de raciocínio, a partir as poucas proposições restantes, há formulações
do acesso a processos e problemas rela- vagas como “Usar criativa e criticamente fontes
cionados à constituição e conformação do históricas diversas para o estudo das culturas
Brasil, como país e como nação; europeias e asiáticas” (CHHI3MOA040).

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A cada série, os conteúdos estão distribu- tização” destes símbolos muito diversa daquela (in)
ídos, ainda, em quatro eixos: “procedimentos de existente nas famigeradas aulas de Moral e Cívica.
pesquisa”; “representações do tempo”; “catego- Muitos conceitos e designações já
rias, noções e conceitos”; “dimensões político-ci- superados pela historiografia são reproduzidos sem
dadãs”. De acordo com os autores, “trata-se de qualquer problematização. É o caso dos “ciclos”
uma tipologia para explicitar a operação predo- da cana de açúcar, do ouro e da mineração e do
minante, mas não a única, em cada objetivo de café (CHHI7FOA085) e, pior, da naturalização do
aprendizagem” (p. 245). Não há justificativa para a termo “conquista” para designar a submissão dos
definição destes eixos e é realmente difícil compre- povos ameríndios pelos europeus, presente em
ender o que os autores imaginaram ao propor um inúmeros componentes (081, 086, 099, 100, 101,
eixo como “representações do tempo” para uma 106) reproduzindo uma perspectiva eurocêntrica.
área que tem o tempo (e não suas “representa- Em diversos casos, há indicação arbitrária
ções”) como elemento constitutivo. A distribuição e injustificada dos aspectos a serem considerados
dos conteúdos entre os eixos parece muitas vezes no estudo de determinado processo. A julgar pela
aleatória, sem elementos que permitam compre- prescrição do documento, o Golpe de 1964 deve
ender a conexão entre conteúdo e eixo. ser conhecido e compreendido “como resultado
das tensões sociais gestadas desde o processo
UMA HISTÓRIA PATRIÓTICA de Redemocratização, por meio do estudo das
condições sociais no campo, das propostas de
Não é apenas a história europeia e asiática reformulação da educação e dos movimentos
trabalhada na 3ª série do Ensino Médio que é subor- culturais urbanos” (CHHI9FOA137). A injustificada
dinada aos “nexos” e “vínculos” com a história prioridade a estes três aspectos em detrimento
brasileira: este é o procedimento constante que de inúmeros outros fundamentais (agravamento
perpassa o conjunto dos componentes propostos. da crise econômica, politização crescente do
E os problemas não se restringem à “ênfase em movimento operário, participação de empresários
História do Brasil” explicitamente defendida no e militares na conspiração golpista; interferência do
documento, com a consequente redução do tempo Estados Unidos, etc) determina a impossibilidade
destinado à abordagem dos processos históricos de uma compreensão de conjunto que leve em
extranacionais, mas abarcam também a pers- conta a articulação dos fatores políticos, econô-
pectiva com que a história nacional é abordada micos e sociais que desencadearam o golpe – algo
e a subordinação da história extranacional a seus inteiramente factível para a faixa etária do 9º ano
nexos e vínculos com o Brasil. (13/14 anos).
Uma das maiores contradições para uma Os conflitos sociais são apagados e há
proposta que se pretende atenta às diversidades é uma definição idealizada de sociedade civil que
o viés patriótico, nacionalista e brasilcentrista com fundamenta a concepção liberal de cidadania que
que são enunciados os mais diversos conteúdos atravessa o documento. Ao propor o estudo da
de História do Brasil, das séries iniciais ao Ensino “Abertura política” “como resultado de demandas
Médio. O HHI5FOA054 (5ª série) propõe expressar da sociedade civil organizada” (CHHI9FOA137),
“o que é ser brasileiro”, deixando evidente o pressu- o documento ignora e omite a existência de um
posto unificador e reducionista da existência de um projeto de “distensão política” gestado no interior
“tipo brasileiro”; o HHI5FOA059 (5ª série) propõe da ditadura e colocado em prática desde meados
“problematizar os significados e os sentidos dos dos anos 1970, que condicionou fortemente os
símbolos nacionais – hino, bandeira, brasão, selo”. rumos do processo. O componente CHHI9FOA139
É difícil imaginar que crianças de 9 a 10 anos, no apresenta uma conceituação de sociedade civil
contexto de um currículo centrado na história restrita aos movimentos populares, mencionando
nacional, tenham condições para uma “problema- explicitamente os movimentos negro, indígena,

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de mulheres e pela ampliação dos direitos das do Atlântico ou via do Pacífico” (CHHI6FOA070).
crianças e adolescentes. Deixa-se de considerar A História Africana só é estudada a partir do
como parte da sociedade civil, portanto, todas as século XVI, como se sua relevância fosse decor-
organizações constituídas pela classe dominantes, rência do tráfico de escravos (CHHI8FOA070). A
entidades empresariais e lobbies constituídos pelas Revolução Francesa – processo cuja importância
grandes empresas, o que apenas reforça o sentido para a conformação do mundo contemporâneo é
apassivador e idealizado da compreensão proposta. indiscutível – é estudada apenas com o objetivo
de identificar “os nexos entre os processos de
O “RESTO DO MUNDO” SÓ EXISTE PARA QUE O Independência [na América] e as transformações
BRASIL EXISTA... ocorridas na Europa” (CHHI8FOA111) e para reco-
nhecer “as incorporações do pensamento liberal
A abordagem dos diversos processos no Brasil” (CHHI8FOA114). A busca por “nexos”
desenvolvidos nos continentes europeu, africano, ocorre também quando se propõe “reconhecer
asiático e mesmo no restante da América Latina nexos entre o processo de reordenamento da
é desorganizada pelo princípio geral que compre- mão de obra no Império e as transformações
ende “a História do Brasil como o alicerce a partir ocorridas na economia internacional, por meio do
do qual tais conhecimentos serão construídos ao estudo do fim do comércio atlântico de escravos”
longo da educação básica” (p. 242). Os processos (CHHI8FOA116).
fundamentais constituidores do mundo moderno Ao invés de indagar o passado com base
e contemporâneo são estudados não para que se nas questões do presente – o que seria um proce-
compreenda sua historicidade própria, mas apenas dimento historiográfico mais adequado -, o que
sob o viés dos “nexos” e “vínculos” com a história se propõe é pensar o estrangeiro com base na
brasileira. Já os processos relacionados à pré-his- experiência nacional (naturalizada e tomada acriti-
tória, ao mundo antigo e ao medievo, são quase camente), produzindo-se nexos forçados e empo-
inteiramente esquecidos, pois não oferecem tantas brecedores e uma leitura anacrônica de processos
possibilidades de estabelecimento de “nexos” e passados interpretados em função de uma expe-
“vínculos”. riência particular e de um presente naturalizado.
Partir da história nacional para compreender
processos relativos a realidades mais distantes A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO
é procedimento didático compreensível para as
séries do primeiro ciclo (1ª a 5ª série), permitindo A mais surpreendente proeza da proposta é
a progressiva familiarização das crianças com que em seus 200 componentes não há uma única
processos desconhecidos. Torna-se, no entanto referência ao sistema social e econômico vigente
contraproducente e redutor a partir da 6ª série, e nos últimos três séculos, como também à classe
mais ainda no Ensino Médio, implicando na renúncia social que nele é dominante. Os termos capitalismo,
em compreender outras culturas e processos, capital e burguesia estão inteiramente ausente da
subordinando sua compreensão à ênfase naquilo proposta, abolindo do estudo de História conceitos
que mais se aproximar com a história brasileira. imprescindíveis para a compreensão do mundo
São inúmeros os exemplos das distor- contemporâneo5. A Revolução Industrial, processo
ções produzidas. A única referência à história decisivo para a conformação da realidade social
humana anterior à escrita nos 200 componentes tal como existe atualmente, é também inteiramente
(CHHI6FOA069), que poderia ser desbodrada em excluída dos componentes de História, sendo
diversas temáticas e para além da 6ª série, é arti- mencionada apenas nos conteúdos de Física!
culada ao debate claramente menos abrangente (p. 205, 210, 213 e 215). Sem capitalismo, sem
“sobre as prováveis rotas do ser humano para burguesia e sem Revolução Industrial, é difícil
a América, tais como via Estreito de Bering, via imaginar o mundo em que vivem os elaboradores

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da proposta. que “capitalismo” não é o único conceito explica-


Também são excluídos inteiramente tivo abrangente que desaparece com a proposta
os movimentos de ideias e os processos que das Bases Curriculares em História. Desaparecem
implicam em resistência ao capitalismo. Não há também feudalismo, mercantilismo e escravismo
nas 302 páginas das BNCC uma única referência (ainda que existam referências à escravidão, jamais
aos termos socialismo/socialista, comunismo/ compreendida como sistema). Com isto, fica
comunista, anarquismo/anarquista e marxismo/ realmente difícil compreender o que entendem os
marxista, ainda que os componentes de História especialistas do MEC com o primeiro dos objetivos
encontrem espaço para mencionar o stalinismo, gerais enunciados para o Ensino Médio – “Entender
em referência generalizante a “processos histó- a sociedade como fruto da ação humana que se faz
ricos tais como o fascismo, o nazismo e o stali- e refaz continuamente”. Como é possível esperar
nismo” (CHHI3MOA052). Logicamente também que este objetivo seja atingido se, além de inter-
são apagados da História as Revoluções de pretarmos as experiências diversas tendo como
1848, a Comuna de Paris e a Revolução Russa. O referência a história brasileira, ainda abdicamos
século XIX está inteiramente ausente, e com ele de conceitos e categorias de alcance explicativo
o processo de afirmação e desenvolvimento do mais amplo? Com estas opções, é difícil ir além
capitalismo, da mesma forma que as contestações de uma história em migalhas, constituída por frag-
e resistências que a ele se impuseram. Mesmo mentos desarticulados, histórias particulares com
com a suposta ênfase na história latino-americana, pouca relação entre si e destituídas de qualquer
também não há qualquer referência ao governo determinação mais ampla.
de Salvador Allende, a despeito de ter constituído A fragmentação é agravada pela exclusão
experiência histórica original de proposição de quase total de todos os processos anteriores
transição pacífica ao socialismo. ao século XVI, reafirmando-se o pressuposto de
A exclusão é evidente retrocesso, pois com que o sentido de tudo é determinado pelo início
todas as contradições e problemas, são processos da constituição da Luso-América. Que possibili-
que estão contemplados na maior parte dos currí- dade temos de compreender a historicidade das
culos atualmente vigentes e que ficam excluídos, relações sociais com este pressuposto? Que diver-
interditando radicalmente a compreensão do sidade e pluralidade é possível se o outro só nos
mundo contemporâneo e suas contradições e interessa em sua relação e seus “nexos” conosco?
conflitos, ou levando a uma leitura superficial e Mais estranho ainda é observar que a omissão de
harmoniosa de processos que em realidade são diversos conteúdos coexiste com inúmeras repeti-
tensos e conflitivos. Por exemplo, é proposto ções de outros, para a qual os autores da proposta
para o 9º ano “Compreender o século XX como apresentam uma justificativa pouco convincente:
um momento de reordenação e reformulação das “as repetições que se observam em alguns títulos
relações de trabalho, em função das transforma- (...) objetivam apontar para a recursividade que
ções na economia mundial” (CHHI9FOA130). Na caracteriza a progressão no processo de cons-
ausência de qualquer referência ao sistema capi- trução do conhecimento e de desenvolvimento do
talista e à burguesia, provavelmente as “transfor- estudante” (p. 244).
mações na economia mundial” apareçam como Na redação de grande parte dos compo-
sujeitos de si mesmas, sem articulação com uma nentes, a perspectiva fragmentadora se evidencia
totalidade mais ampla que estabeleça seu signifi- com “sugestões” ou “exemplos” que propõem
cado e permita sua efetiva compreensão. abordar conteúdos históricos a partir de aspectos
particulares, muitas vezes bastante específicos e
UMA HISTÓRIA EM MIGALHAS insuficientes para uma compreensão mais ampla.
A utilização de termos e conceitos não problema-
Para sermos justos, devemos reconhecer tizados – como por exemplo “poder”, “política”

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e “cultura” produz anacronismos flagrantes. Um a fundação do PCB? Para afirmar que a noção
exemplo são os componentes 100 e 101, que de Brasil e de brasileiros é produto da atuação de
propõem estudar o “contexto político”, respecti- setores médios e do Estado?
vamente, “da África subsaariana às vésperas da A desestruturação da linha temporal na
conquista” e “dos povos indígenas habitantes do distribuição dos conteúdos acentua a fragmen-
território brasileiro ao tempo da Conquista”, sem tação, pois dificulta o encadeamento histórico dos
cogitar que a noção contemporânea de “contexto processos, muitas vezes prevendo o estudo de
político” é anacrônica e imprópria para a compre- processos cujos antecedentes serão estudados
ensão da organização social - simultaneamente apenas em anos posteriores. Já para o início do 2º
política, econômica e cultural - dos reinos africanos ciclo (6º ano) propõe o estudo dos “processos de
e comunidades indígenas. colonização ocorridos nas Américas, com ênfase
Os exemplos de escolha arbitrária e injusti- na colonização portuguesa” (CHHI6FOA065). Isto
ficada são inúmeros. A nota CHHI2MOA027 propõe será feito sem qualquer noção anterior relativa ao
a análise dos processos de independência das mundo moderno, ao mercantilismo e às condições
Américas “tais como a Independência dos Estados gerais que tornaram possível o processo de coloni-
Unidos, Haiti e do Paraguai”. Por que esta escolha, zação! Apenas no 8º ano será proposta a compre-
em detrimento da Argentina e México, por exemplo, ensão do contexto econômico de Portugal, e ainda
que são processos de impacto continental? O assim sem qualquer referência mais ampla.
que é referido como “exemplo” não será tomado
como percurso único pela editoras e produtores A DEMOCRACIA DO CAPITALISMO E A CIDADANIA
de materiais didáticos? DO CONSUMIDOR
Algumas escolhas parecem totalmente arbi-
trárias e injustificadas, como a opção por discutir A perspectiva política e ideológica confor-
o impacto do 13 de maio para a população negra mista e conservadora fica bastante explícita nas
e o movimento negro (CHHI7FOA089), omitindo concepções que fundamentam o eixo “Dimensão
qualquer referência ao 20 de novembro, data que Político-Cidadã”, que naturaliza a concepção
igualmente tem grande impacto e ressalta os liberal de democracia, com a opção por conceitos
aspectos de conflito e resistência; ou a escolha/ frágeis e apassivadores como “exclusão social”
indicação das colônias de São Vicente, Salvador, (CHHI7FOA094), em detrimento de outros de maior
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e alcance explicativo como “exploração”. Difunde-se
Maranhão, como aquelas nas quais devem ser assim uma concepção prescritiva, moralizante
estudadas as relações mantidas pelos colonos com e a-histórica de cidadania. O componente 134
os povos africanos e indígenas (CHHI8FOA102). menciona expressamente os “direitos e deveres
Aqui não há como não pensar nos testes padro- trabalhistas e dos movimentos sociais de trabalha-
nizados e deixar de ver os “exemplos” como dores rurais e urbanos”, enquanto o 142 menciona
indicação de conteúdos que deles constarão. a “luta pela ampliação dos direitos e deveres ao
O componente CHHI9FOA136 propõe longo do século XX” (grifos meus).
compreender a “conformação de uma noção No quarto ano do Ensino Fundamental, antes
de Brasil e de brasileiros, emergida da atuação mesmo de seres apresentadas à qualquer noção
política de setores médios urbanos e das políticas sobre direitos sociais, as crianças aprenderão que
culturais do Estado Novo, por meio do estudo do “as relações de consumo são regulamentadas pela
Modernismo (Semana da Arte Moderna), Teatro legislação, por meio de estudo de documentos
Experimental do Negro e da política de estado para como o Código de Defesa do Consumidor, identifi-
a cultura”. Por que a eleição destes processos cando mudanças e permanências nessas relações
em detrimento de outros tão relevantes como a ao longo do tempo” (CHHI4FOA044). Como em
emergência e atuação do movimento operário e momento algum serão apresentadas à história e ao

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conceito de capitalismo, certamente entenderão o COMEÇAR DE NOVO...


consumo de mercadorias como natural e inevitável,
ainda que com “mudanças ao longo do tempo”. Não é possível corrigir pontualmente,
Várias proposições reforçam a perspectiva emendar ou sanar deficiências desta proposta
patriótica, como “reconhecer-se como cidadão fazendo supressões acréscimos específicos. Ainda
brasileiro” (CHHI6FOA077). A abordagem naciona- que se admita a necessidade de definição de uma
lista leva inclusive à estranha formulação constante Base Nacional Comum Curricular – o que está
no componente 092, que propõe “reconhecer e muito longe de ser consensual e deve ser objeto de
discutir princípios dos direitos humanos e civis discussão séria e sistemática -, a elaboração dos
dos brasileiros”, desconhecendo a universalidade componentes de História (assim como de todas
destes direitos que é proclamada em documento as demais disciplinas) precisa ser resultado de um
cujo estudo é proposto em outros componentes processo amplo, cujo debate abarque os pressu-
(CHHI4FOA043). Já o componente 140 nomeia o postos, eixos, objetivos e conteúdos (e não apenas
movimento dos trabalhadores como “movimento fragmentadamente estes últimos). Só assim será
trabalhista”, uma designação que carrega signifi- possível produzir um conjunto de conteúdos que
cado específico vinculado ao varguismo e a uma possibilite que os estudantes compreendam a
determinada concepção sindical. conformação histórica do mundo em que vivem,
A perspectiva liberal implica também em que dominem conceitos históricos fundamentais
forte individualização da História, em oposição e que possam compreender o caráter histórico (e,
aos avanços consolidados pela História Social, o portanto, transitório) das relações sociais atual-
que enseja forte ênfase nos sujeitos individuais em mente vigentes.
detrimento das forças sociais. Assim, o compo-
nente 081 propõe

Reconhecer o protagonismo dos sujeitos


e dos grupos históricos no processo de NOTAS
formação do povo brasileiro” e o 083
sugere “Inferir, a partir de fontes diversas, 1 http://www.jusbrasil.com.br/diarios/94124972/dou-secao-1-18-
06-2015-pg-16
o protagonismo de sujeitos em processos
2 http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/conhecaDisciplina?-
históricos no Brasil expressos em
disciplina=AC_CIH&tipoEnsino=TE_EM
movimentos tais como a Confederação dos
3 Grande parte dos textos críticos produzidos avalia as inconsis-
Tamoios (1556-1567), a Cabanagem (1835-
tências e prejuízos dentro de campos e sub-áreas específicos,
1840) e a Balaiada (1838-1841). produzindo críticas consistentes, mas que muitas vezes não
chegam a explicitar a relação entre os problemas identificados
com a concepção geral que orienta as BNCC de História.
Pretende-se assim interpretar importantes
4 MELLO, Paulo Eduardo Dias de. Base Nacional Comum, Direitos
movimentos sociais da história brasileira como
e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento e o IDEB:
produto de ações individuais. Já o componente nexos, contextos, rastros e o lugar do professor. Disponível em
103 estabelece que se deva “Valorizar o protago- https://www.academia.edu/9809465/Base_Nacional_Comum_
Direitos_e_Objetivos_de_Aprendizagem_e_Desenvolvimento_e_o_
nismo dos ameríndios, africanos, afro-brasileiros e
IDEB_nexos_contextos_e_o_lugar_do_professor , p. 23 e 24.
imigrantes, em diferentes eventos da História do
5 A omissão não é exclusiva da proposta de História, pois nas 302
Brasil”. A despeito da redação genérica e imprecisa
páginas do documento o termo burguesia não é grafado nenhuma
(o protagonismo de todos em diferentes eventos), o vez, e o capitalismo uma única vez, nos componentes de sociologia
provável é que enseje estudos fragmentários sobre (CHSO3MOA009).

ações e liderança individuais.

46 G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 2 , N . 4 , P. 3 9 - 4 6 , J U L . / D E Z . 2 0 1 5 .

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