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REALIZAÇÃO APOIO:

: Organizadores

Athos Matheus da Silva Guimarães


Wendell P. Machado Cordovil

UFPA
ANNANINDEUA

ISBN: 978-65-80307-03-6
Organizadores
Athos Matheus da Silva Guimarães
Wendell P. Machado Cordovil

II SIMPÓSIO ONLINE DE HISTÓRIA


DOS ANANINS:
ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO

Realização: Grupo de Pesquisa Escola dos Ananins


(iisimpoananin.blogspot.com, de 08 a 12 de Julho de 2019)

ISBN: 978-65-80307-03-6

Ananindeua, 2019

1
Copyright © by Organizadores e autores

Primeira edição, 2019.

Imagem na capa: Champney, James Wells, Vegetation of the rawed of border


,1860, Travels in the north of Brazil

Produção: Editora Cordovil E-books.


Revisão de texto: Autores.

Editora Cordovil E-books


Ananindeua, Pará, 67133-170
CNPJ: 32.262.244/0001-39
cordovilebooks@gmail.com

900
GUIMARÃES, Athos Matheus da Silva; CORDOVIL, Wendell P.
Machado [orgs.]. II Simpósio Online de História dos Ananins:
Ensino, Pesquisa, Extensão. Ananindeua [PA]: Editora Cordovil
E-books, 2019.
ISBN: 978-65-80307-03-6
Disponível em: https://iisimpoananin.blogspot.com/

2
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................... 9
UM CONTO A PARTIR DO CANTO: AS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DE PELÉ DO
MANIFESTO PARA OS DEBATES ÉTNICOS-RACIAIS EM SALA DE AULA ...................... 15
Emily Maria Pantoja Maia .................................................................. 15
O ENSINO DE HISTÓRIA E AS POSSIBILIDADES DE COMBATE À CORRUPÇÃO: DO DEBATE
À AÇÃO CIDADÃ ALÉM DA ESCOLA ............................................................. 30
Marcos de Araújo Oliveira ................................................................. 30
A CONTRIBUIÇÃO DO ENSINO RELIGIOSO PARA A FORMAÇÃO DE VALORES DO ALUNO. 42
Talita Souza Da Rocha Rebello[1] ......................................................... 42
André Dias Martins[2] ...................................................................... 42
O USO DA INTERNET NAS AULAS DE HISTÓRIA: UMA FERRAMENTA EDUCATIVA ......... 57
Rafael Noschang Buzzo ..................................................................... 57
REPENSANDO O TRADICIONAL: A NOVA HISTÓRIA POLÍTICA E O ENSINO DE HISTÓRIA . 68
Ernesto Padovani Netto ..................................................................... 68
Daniel Rodrigues Tavares .................................................................. 68
CINEMA E MEDIEVO: MEDIEVALIDADE E REMINISCÊNCIAS MEDIEVAIS EM LADYHAWKE
(1985) E O NOME DA ROSA (1986) ............................................................. 75
Marcelo Gonçalves Ferraz .................................................................. 75
NATUREZA E ENSINO DE HISTÓRIA EM SANTA IZABEL DO PARÁ ........................... 86
Ligia Mara Barros Ribeiro .................................................................. 86
HISTÓRIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: CAMINHOS PARA O RECONHECIMENTO
MULTICULTURAL NO BRASIL.................................................................... 98
Camíla Joseane e Sousa Rios Costa ....................................................... 98
OS PERIGOS DE UMA HISTÓRIA ÚNICA: O ENSINO DE HISTÓRIA E A DIVERSIDADE
CULTURAL ...................................................................................... 110
Rayme Tiago Rodrigues Costa ........................................................... 110
O USO DE FONTES HISTÓRICAS NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM E AS
POSSIBILIDADES JUNTO AO CINEMA ......................................................... 121
Lays Fernanda Oleniuk ................................................................... 121
ENSINO DE CONCEITOS HISTÓRICOS ATRAVÉS DA FICÇÃO - POSSIBILIDADES DO USO DO
CINEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL ......................................................... 128
Kédson Nascimento Maciel .............................................................. 128
“LUTA E APRENDIZAGEM”: VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA NO
COLÉGIO MILITAR TIRADENTES EM CAXIAS-MA............................................. 141
Ayrton Costa Da Silva..................................................................... 141

3
Camila Joseane E Sousa Rios Costa ..................................................... 141
Mirian Da Silva Costa ..................................................................... 141
COMUNIDADES TRADICIONAIS NO ENSINO DE HISTÓRIA: PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS
................................................................................................... 148
Francicleia Ramos Pacheco ............................................................... 148
Elbia Cunha de Souza ..................................................................... 148
POR QUE ESTUDAR IDADE MÉDIA NO BRASIL? .............................................. 155
Henrique De Melo Kort Kamp .......................................................... 155
AS CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA O ENSINO DA HISTÓRIA ................... 166
Aline Nunes Rangel ....................................................................... 166
A REFORMA DE LUTERO?: ANÁLISE DA NARRATIVA SOBRE REFORMA PROTESTANTE NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA ............................................................. 169
Layane De Souza Santos .................................................................. 169
O AGRÁRIO EM NARRATIVAS ESCOLARES ................................................... 185
Athos Matheus da Silva Guimarães .................................................... 185
Francivaldo Alves Nunes ................................................................. 185
IDENTIDADE & MEMÓRIA: AS “MULHERES UCRANIANAS” EM PRUDENTÓPOLIS/PR .... 196
Nikolas Corrent ............................................................................ 196
GÊNERO & HISTÓRIA: UMA QUESTÃO DE PODER E SUBJETIVIDADE ..................... 210
Nikolas Corrent ............................................................................ 210
O GOIÁS DENTRO DE UM CONCEITO DE SERTÃO. E AS RELAÇÕES PARA COM UM
PROJETO DE NAÇÃO ........................................................................... 223
Cesar Augusto Neves Souza ............................................................. 223
DAS CIDADES-ESTADOS ITALIANAS ÀS PROVÍNCIAS UNIDAS DA HOLANDA: A GUERRA DOS
TRINTA ANOS SOB UMA PERSPECTIVA ARRIGHIANA ....................................... 234
Victor Domingues Ventura Pires ........................................................ 234
Naiane Inez Cossul ........................................................................ 234
CAPARAÓ: GUERRILHA, RESISTÊNCIA E DIFICULDADES DE INSERÇÃO (1964 - 1967) .. 245
Alaéverton Andrade ....................................................................... 245
EM DEFESA DA PROPRIEDADE OU DA VIOLÊNCIA NO CAMPO: A FALA DO PRESIDENTE
BOLSONARO AOS RURALISTAS................................................................ 259
Francivaldo Alves Nunes .................................................................. 259
HISTÓRIA E POLÍTICA EXTERNA: PERSPECTIVAS PARA O GOVERNO BOLSONARO ..... 271
Danilo Sorato Oliveira Moreira ......................................................... 271
Tiago Luedy Silva.......................................................................... 271
O PENSAMENTO DE POLÍTICA EXTERNA DE RIO BRANCO ANTES DE SER BARÃO ....... 277
Danilo Sorato Oliveira Moreira ......................................................... 277

4
JOÃO MATTOS: UM PADRE CORONEL NO INTERIOR DAS MINAS GERAIS (SÃO GONÇALO
DO ABAETÉ, 1920-1968) ...................................................................... 286
Edivaldo Rafael de Souza................................................................. 286
ENTRETENIMENTO E/OU ANÁLISE SOCIAL? UM SUCINTO ESTUDO SOBRE ALGUMAS
LETRAS DE MÚSICAS INTERPRETADAS PELA BANDA MAMONAS ASSASSINAS NA DÉCADA
DE 1990 ......................................................................................... 292
Edivaldo Rafael de Souza................................................................. 292
AS SÁTIRAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: FERRAMENTAS PARA HISTÓRIA E
LITERATURA .................................................................................... 303
Leonardo Paiva Monte .................................................................... 303
Lilian Bento ................................................................................. 303
O PROTAGONISMO DA “RAINHA DOS MIL DIAS”: ANA BOLENA (1501-1536) E AS NOVAS
NARRATIVAS NA HISTÓRIA E LITERATURA JUVENIL ....................................... 313
Marcos de Araújo Oliveira ............................................................... 313
AS INTERAÇÕES SOCIAIS NO COTIDIANO NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONCEBENDO OS
DESCLASSIFICADOS COMO SUJEITOS HISTÓRICOS ......................................... 324
Daniel Fagundes de Carvalho Machado ............................................... 324
NAS LENTES DA HISTÓRIA: UM ESTUDO ACERCA DA PRESENÇA NEGRA E INDÍGENA A
PARTIR DO PATRIMÔNIO CULTURAL DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS - AL .................... 338
Aline de Freitas Lemos Paranhos ........................................................ 338
CURAS E BENZEÇÃO EM IRATI-PR ............................................................ 348
William Franco Gonçalves................................................................ 348
A PEÇA VOYAGEURS IMMOBILES DE PHILIPPE GENTY – ENSAIO TEÓRICO ENTRE
SEXUALIDADE E PAPEL ........................................................................ 359
Maicon Douglas Santos Kossmann ....................................................... 359
JUÍZO FINAL E DANSE MACABRE: A MORTE E A ARTE NA IDADE MÉDIA ................. 374
Pablo Rodrigo Barreto Coelho ........................................................... 374
CORREIO DO POVO: MODERNIZAÇÃO, ASCENSÃO E QUEDA DO JORNALISMO GAÚCHO
................................................................................................... 386
Pablo Rodrigo Barreto Coelho ........................................................... 386
NAS TRILHAS DO (I) MATERIAL: HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CASARÃO PADRE SÃO
PALÁCIO, EM PIRACURUCA-PI ................................................................ 398
Paulo Tiago Fontenele Cardoso.......................................................... 398
Pedro Pio Fontineles Filho ............................................................... 398
A IMIGRAÇÃO AÇORIANA PARA O GRÃO-PARÁ NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII
(1748 - 1778) ................................................................................... 412
Larissa Rafaela Pinheiro Alencar ........................................................ 412
André Vinicius Silvestre Cardoso ....................................................... 412

5
“CONFLITOS E PODER”: AS DENÚNCIAS DOS MORADORES CONTRA OUVIDOR JOÃO
MENDES DE ARAGÃO NO GRÃO PARÁ E MARANHÃO NO SÉCULO XVII E XVIII ........... 426
Ayrton Costa da Silva. .................................................................... 426
Orientador: Dr. Eloy Barbosa de Abreu................................................. 426
JAPÃO DO SÉCULO XVI E XVII: DA EXPANSÃO COMERCIAL AO ISOLAMENTO ........... 434
Kleiton Tariga de Mattos ................................................................. 434
Naiane Inez Cossul ........................................................................ 434
AÇÚCAR E ESCRAVIDÃO NO OESTE PAULISTA: POSSE DE CATIVOS EM CAMPINAS, 1790-
1810 ............................................................................................. 441
Carlos Eduardo Nicolette ................................................................. 441
ALTERNATIVAS EDUCACIONAIS PARA ABORDAGEM DA HERANÇA AFRICANA E DA
MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO .................................................................... 454
VANESSA DE ARAÚJO ANDRADE .................................................... 454
REFERENCIAL LATINO-AMERICANO NA OBRA DE RAUL SEIXAS: PRIMEIRAS
APROXIMAÇÕES ................................................................................ 462
Jeferson do Nascimento Machado* ..................................................... 462
CAPOEIRA PARANAENSE (XIX-XX): ENTRE O LÚDICO E O MARCIAL ...................... 468
*Jeferson do Nascimento Machado ..................................................... 468
A QUESTÃO DOS LIMITES TERRITORIAIS NAS PÁGINAS DO BOLETIM DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRAPHICO PARANAENSE (1900-1925) .................................. 478
Megi Monique Maria Dias ................................................................. 478
NOTÍCIA HISTÓRICA: O INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO PARANAENSE (1900) 490
Megi Monique Maria Dias ............................................................... 490
RESILIÊNCIA IDENTITÁRIA NO ANTIGO ISRAEL, UM ESTUDO DE CASO................... 498
Frederico Moura Ignácio .................................................................. 498
A POSSE DE ESCRAVOS EM UMA ECONOMIA DE ABASTECIMENTO COLONIAL: SÃO LUÍS
DO PARAITINGA (1798-1818) ................................................................. 506
Diego Alem de Lima ...................................................................... 506
O REGISTRO DAS PLANTAS MEDICINAIS ..................................................... 519
Carla Cristina Barbosa .................................................................... 519
LUGARES DE COMER: OS BARES E A ALIMENTAÇÃO EM BELÉM ........................... 521
Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo ............................................ 521
PASSANDO A BOLA DO CAMPO DE FUTEBOL PARA O CAMPO HISTORIOGRÁFICO: ..... 529
Lara Novis Lemos Machado .............................................................. 529
HISTÓRIA, LITERATURA E PÓS-COLONIALISMO: UM BREVE OLHAR SOBRE A ESCRITA DE
MIA COUTO ..................................................................................... 541
Jeane Carla Oliveira De Melo ............................................................ 541

6
AS ESTRUTURAS MENTAIS NA IDADE MÉDIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DE ‘TRISTÃO E
ISOLDA’....................................................................................... 549
César Aquino Bezerra ..................................................................... 549
EVANGELIZAR POR MEIO DA EDUCAÇÃO: OS IRMÃOS MARISTAS EM CANUTAMA ....... 559
César Aquino Bezerra ..................................................................... 559
CONSIDERAÇÕES SOBRE UM DIÁLOGO ESSENCIAL: OS MANUAIS ESCOLARES COMO
VESTÍGIOS À HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS ESCOLARES ..................................... 570
Felipe Augusto dos Santos Vaz .......................................................... 570
MEMÓRIAS DO TRABALHO COM A JUTA DA COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO DA BRASÍLIA,
PARINTINS-AM (1950-1980)................................................................... 578
Everton Dorzane Vieira ................................................................... 578
HISTÓRIA DE VIDA: IDENTIDADE, CULTURA E RELIGIOSIDADE ........................... 592
Vania Maria Carvalho De Sousa ........................................................ 592
A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO E CONSERVAÇÃO DE FONTES DE PESQUISA ....... 602
Esther Salzman Castellano ............................................................... 602
ARQUIVO E HISTÓRIA: A IMPORTÂNCIA DOS DOCUMENTOS ARQUIVÍSTICOS PARA O
ESTUDO DA OCUPAÇÃO E POVOAMENTO DA BAIXADA MARANHENSE- SÉCULO XVIII .. 610
Alessandra Cristina Costa Monteiro .................................................... 610
ESTUDOS JUDAICOS COMO ESTUDOS CULTURAIS: UMA REFLEXÃO SOBRE OS SEPHARDIC
STUDIES ......................................................................................... 626
Lucas De Mattos Moura Fernandes ..................................................... 626
ELEAZAR VERSUS CASEZ: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A CONSULARIZAÇÃO DO
COTIDIANO NA COMUNIDADE JUDAICA -BRASILEIRA NO MARROCOS CONTEMPORÂNEO
................................................................................................... 637
Lucas De Mattos Moura Fernandes ..................................................... 637
A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS SAGRADOS EM IRATI-PR .................................... 646
William Franco Gonçalves................................................................ 646
DOS QUE VISITAM AOS QUE HABITAM: A REPRESENTAÇÃO DOS URUBUS NA AMAZÔNIA
DO SÉCULO XIX................................................................................. 658
Talita Almeida Do Rosário ............................................................... 658
Wendell P. Machado Cordovil ........................................................... 658
GEADA NEGRA E O DECLÍNIO DA LAVOURA CAFEEIRA: HISTÓRIA E MEMÓRIA EM SÃO
PEDRO DO IVAÍ - PR (1970-1990) ............................................................ 672
Eliane Aparecida Miranda Gomes Dos Santos ........................................ 672
A MARQUESA DE ALORNA (1750-1839) E SEU “ESPELHO DE CASADAS” ................. 685
Ricardo Hiroyuki Shibata ................................................................ 685
HISTÓRIA E SOCIEDADE NO TESOURO DE MENINAS (1774) ............................... 693
Ricardo Hiroyuki Shibata ................................................................ 693

7
RESPONSABILIDADE SOCIAL E EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO ESTADO DO PARANÁ:
EXEMPLOS DE BONS PROJETOS .............................................................. 704
Talita Seniuk ............................................................................... 704
REFLEXÕES SOBRE A VIVÊNCIA INICIAL DE PROFESSOR: CORPO, ESCOLA E ENSINO .. 714
Felipe Araújo de Melo¹ ................................................................... 714
CARTOGRAFIA DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDIGENA: EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
E EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE .......................................................... 724
Larissa Rafaela Pinheiro Alencar ........................................................ 724
INÍCIO E FIM DO IMPÉRIO BIZANTINO: NOVA ERA .......................................... 733
Josiane Araujo Rocha...................................................................... 733

8
APRESENTAÇÃO
Quando tentamos explicar história para as pessoas que não

pertencem ao âmbito dos historiadores, podem não compreender a

diversidade das temáticas presentes na área do conhecimento. Em

muitas ocasiões reivindicam a história ensinada tradicionalmente

em sala de aula, dos velhos roteiros, ou tradicionais, solidificados na

concepção da sociedade como um todo. Buscam uma única resposta

para a colonização, para independência, para a escravização, para

abolição e dentre outras temáticas já caracterizadas na história do

Brasil. O roteiro já conhecido do público acaba abdicando do que

mais significativo existe na sociedade, a diversidade.

É o que a história, História, a historiografia e o ensino de

história realizam nas suas produções há décadas, analisar as

diversidades presentes na sociedade. Os vários relatos, os diversos

grupos presentes, os diversos olhares existentes sobre inúmeros

fatos. Fatos construídos no âmbito acadêmico, mas no espaço escolar

ainda possivelmente desconhecido. A História é campo decisivo

para o debate das inúmeras facetas presentes na sociedade, nas

temporalidades construídas e na incessante tentativa de

compreender essas pluralidades.

É o que significa este livro digital, pluralidade de debates e

concepções sobre as mais variadas temáticas, temporalidades e

espacialidades. Cada texto presente neste ebook compõe a afirmação

9
dada anteriormente. Dificilmente encontrará um debate incapaz de

provocar reflexão sobre a temática discutida. São debates que

proporcionam a compreensão de diversas dimensões temporais e

espaciais.

O livro por si só é bastante diversificado. São textos de

diversas regiões do Brasil. De várias instituições de ensino básico ou

superior, particular ou pública. Tendo este mosaico tão plural acaba

concebendo páginas e mais páginas de debates intensos sobre os

mais variados assuntos. Os/as autores proporcionam reflexões

importantes, tanto na esfera regional, quanto local e também

nacional.

Este livro é fruto do II Simpósio Online de História dos

ANANINS: Ensino, Pesquisa e Extensão. Os membros dos ananins são

todos e todas discentes do Campus Universitário da UFPA em

Ananindeua. A ideia de construção do simpósio online veio da

necessidade de interligar os mais diversos autores interessados e

expor suas ideias e construir debates com diversas pessoas do Brasil.

Cada texto é a consolidação do objetivo traçado para o

simpósio, aumentar a gama de ideias, de autores, de leitores, de

conceitos e de interações entre várias regiões do Brasil. No que tange

participação, houve uma grande interação dos participantes nos

debates dos textos dos autores e a possibilidade de sugestão para

mudanças e continuidades. Os eventos online também demandam

10
bastante esforços como os eventos presenciais, como também

gratificante tanto quanto o presencial ao deparar com a grande

participação de diversas pessoas.

O grupo escola dos Ananins tem três anos de existência,

construído no ano de 2016 pelos discentes da primeira turma de

História da UFPA em Ananindeua. Sendo este o segundo evento

online, esse simpósio teve mais adesão do que o anterior. O presente

simpósio, com os textos e a participação do público, teve a

característica principal dos membros dos grupos, temas e debates

plurais. Os capítulos que estão neste livro satisfazem os mais

variados desejos do publico leitor. Debates que envolvem ensino,

como pesquisa e extensão.

Existem textos de relatos de experiência de intervenções no

pibid e na residência pedagógica, programas importantes para a

construção de ensino de história mais combativa no espaço escolar.

Dá mesma maneira é possível identificar a necessidade de estudar o

medievo no ensino básico. Como também identificar os discursos e

os conflitos por terras no Brasil. Além disso, é possível perceber as

narrativas presentes nos livros didáticos no país, especialmente no

que tange o debate sobre a questão agrária.

A História é diversificada por que a sociedade também é em

suas temporalidades e espacialidades. Quando é possível identificar

as relações da sociedade com objetos e outros seres nos dão a

11
dimensão das várias linhas ligadas a grupos e a simplesmente

indivíduos, por exemplo, como a sociedade se comportava diante

dos urubus no século XIX. É uma temática que nos dão outra

imersão da própria sociedade em um século tão marcado e discutido

por outras temáticas. Como também a discussão sobre a história da

alimentação, daquilo que se come, tendo outra relação no debate

historiográfico. As variedades na pesquisa podem também atingir a

variedade que existe no espaço escolar.

Dá mesma forma que começamos a realizar reflexões sobre

outras possibilidades para o ensino de história no tempo presente,

aproveitando a própria realidade dos discentes e os grupos que

pertencem para conseguir realizar debates importantes e

problematizações sobre a seu próprio cotidiano. Dando outras

facetas para o ensino de história e possibilitando a maior interação

entre os sujeitos presentes. Como o rap, estilo musical bastante

presente há anos na sociedade em vários países, mas que nas

últimas décadas deste século ganhou mais força e destaque.

Possuindo letras importantes para o espaço escolar e que são,

possivelmente, conhecidas pelos discentes. Quando o docente

aproveita as pluralidades dos próprios discentes expõe o que mais

forte tem na História, os vários caminhos possíveis construídos pela

própria sociedade ao longo do tempo, evitando, assim, a ideia de

uma história única.

12
Em tão pouco tempo de existência do grupo, este é o segundo

livro construído pelo grupo graças a contribuição dos autores que

participaram do simpósio. A construção do simpósio e do livro são

frutos da busca constante de construir debates plurais e

democráticos. Oportunizando cada sujeito a ter acesso a produções

de outras pessoas, em outras regiões. O livro é fruto de intensos

debates e de muita dedicação dos diversos autores que se

comprometem com a essência da história.

Ananindeua, 14 de dezembro de 2019.

Athos Matheus da Silva Gimarães

13
PARTE 1
E
N
S
I
N
O
14
UM CONTO A PARTIR DO CANTO: AS
POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DE PELÉ
DO MANIFESTO PARA OS DEBATES
ÉTNICOS-RACIAIS EM SALA DE AULA

EMILY MARIA PANTOJA MAIA

O presente trabalho vem sendo baseado nas pesquisas


desenvolvidas pelo projeto de Iniciação Científica intitulado
“História e Música no Ensino Médio”, tendo também como
inspiração as investigações realizadas pelo Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), o qual tem como temática
“A Cidade e as Relações Étnicos-raciais”. A elaboração em
evidência, tem como finalidade melhorar as práticas de ensino na
disciplina de História referente às questões étnico-raciais,
percebendo desse modo, como vem se dando essas relações na
própria cidade de Belém através das rimas do rapper paraense Allan
Roosevelt, conhecido artisticamente como “Pelé do Manifesto”. Com
isso, será apontado suas possíveis contribuições para o debate em
sala notando também a potencialidade da música, neste caso, o rap,
como um instrumento didático que proporciona um entendimento
da realidade em um determinado local e tempo (HERMETO, 2012).
Além de suas músicas, as falas do cantor que foram feitas através de
uma entrevista gravada, serão expostas aqui para uma melhor
compreensão do recurso didático proposto, assim como, o
entendimento da realidade do rapper e da população negra
paraense, para que assim, seja levado aos alunos. Portanto, a
abordagem em sala deve ser feita de acordo com a Lei Federal nº
10.639/03, onde traz discussões sobre a história e as lutas afro-
brasileiras que devem estar presentes em sala de aula (BRASIL,
2003).

15
Uma breve contextualização da condição histórica imposta ao
negro

Ao falarmos historicamente, cabe ressaltar o contato entre europeus


e africanos. O desembarque no continente africano causou uma certa
estranheza logo de cara em ambos os lados, tendo os europeus
deparando-se com novidades nunca dantes vistas (RAMOS, 2015, p.
127). Entretanto, podia ser percebido como os africanos possuíam
potencialidades, da qual foi notada uma organização política
aperfeiçoada (MUNANGA, 1988, p. 7), tendo uma dificuldade
europeia para a colonização de grandes grupos, sendo necessário
uma fixação no litoral e a busca por troca de produtos (RAMOS,
2015, p. 131), assim como também, os europeus possuindo um
armamento fortificado para se dar tal processo. Nota-se como a
população africana, pela falta de um aprimoramento de armas, ficou
indefesa, havendo então uma possibilidade para adquirir mão de
obra barata para a escravização em outros continentes
(MUNANGA, 1988).

A desinformação dos europeus quanto ao continente africano, a


estranheza e o pensamento cristão que rodeava os colonizadores, fez
com que desde então, o negro ali presente se tornasse sinônimo de
subalterno, desprezando todas as riquezas culturais e das
organizações que os africanos possuíam. Desse modo, pode-se
entender como ainda no início da modernidade, o preconceito étnico
foi germinado, dando potencialidade a um racismo inicial, estando o
negro em uma condição de violência. Kabengele Munanga (1988)
vem apontando como todas as qualidades do negro são tiradas uma
a uma, passando a ser visto como aquele que possui retardo, é
perverso e ladrão. Com essas colocações, percebe-se como que o
negro é colocado nas fronteiras da História, não sendo vistos como
agentes, mas meros componentes. Ainda com as falas de Munanga
(1988), tem-se a compreensão histórica da marginalização atribuída

16
a essa população até atualmente. Mesmo após 1888, os pós-libertos
da escravidão, buscando novos rumos para as suas vidas,
enfrentavam intolerâncias, havendo a exclusão da população negra
no espaço brasileiro ali presente (GOMES, 2005), pontos que podem
ser evidenciados até os dias atuais através desta contextualização
histórica.

Com essa abordagem, visando a condição dada, percebe-se como a


construção de movimentos foram e são fundamentais para
potencializar vozes que foram caladas por muito tempo na história,
buscando enfrentar e denunciar as injustiças sociais sofridas.
Portanto, Munanga (2004) vem trazendo a dificuldade de definição
de quem é negro no Brasil, entretanto, através daqueles que
possuem uma identificação, compreende-se que o negro não busca
meios para viver em uma sociedade, ele procura por maneiras para
sobreviver em uma sociedade de um pensamento específico: o
branco. Com isso, manifestações que impulsionem tais formas são
destacadas, tendo o rap ligado de maneira intrínseca a identidade e
ao movimento, denunciando realidades sociais vividas.

O rap na raça

Para uma abordagem musical, torna-se necessário notar a visão de


nacional-popular trazida por Santuza Naves (2004), tendo o
próprio rap sendo baseado nas perspectivas que nortearam a música
popular brasileira, percebendo como a MPB vem sendo um
instrumento utilizado por músicos para a busca de uma identidade
nacional descarregada do erudito (NAVES, 2004), todavia, reuniu-se
uma encadeação de elementos da música erudita e folclórica
(NAPOLITANO, 2002).

17
Visando o rap, Hermeto (2012) vem mostrando como sua estrutura
musical acaba rompendo com as características da canção popular
brasileira, tendo os rappers mais falando do que propriamente
cantando. Entretanto, partindo de Naves (2004), onde visa o que há
por detrás de sua estrutura, percebendo suas características
populares e que traz uma representação social de setores que estão
em busca de uma valorização, pode-se destacar o pensamento por
meio de uma perspectiva cultural, tendo o próprio conceito de
circularidade que o historiador Carlo Ginzburg (2006) aponta do
pensamento bakhtiniano, já que segundo Naves (2004) o rap traz
partes da música popular, da qual sofreu uma certa hibridização.

Destacando a representação que o movimento vem trazendo,


os rappers buscam por retratar uma ancestralidade fundamentada
em tradições afro-brasileiras, estimulando uma luta contra os
aspectos de desigualdade racial e social que foram impregnados
historicamente. Portanto, Naves (2004) mostra como que os cantores
ao mesmo tempo que buscam por recriar uma valorização da
comunidade negra, buscam também por incorporá-los às novas
ordens mundiais, buscando construir suas próprias características
como um sujeito presente ativamente em determinada sociedade.
Portanto, Roberto Camargos (2015) mostra como que o rap no Brasil
vem no momento que as atenções do governo brasileiro estão
voltadas para políticas neoliberais, abalando ainda mais setores em
que estavam em condições de vida indesejáveis (OLIVEIRA, 2015)
por aqueles que possuem uma sustentação pelo capital.

Consequentemente, muitos movimentos podem ser destacados


como forma de demonstrar uma representação trazendo uma
compressão de mundo, visando um campo para além de uma
mentalidade específica (CHARTIER, 1989). Portanto, o rap apresenta
declarações e acusações sobre tal situação vivenciada por pessoas de
uma camada própria, destacando uma exclusão, uma desigualdade

18
social e racial, principalmente com as populações de áreas
periféricas que lutam diariamente contra tais condições que foram
impostas. Com este ponto, Carlos (2008) mostra os espaços que se
encontram na cidade a partir de um contraste que vem trazendo
diferenças entre classes e consequentemente gerando uma
segregação espacial, com isso, as lutas dos negros e as implicâncias
nos contextos das diversas áreas de dentro de uma cidade, são
questões importantes a se pensar eticamente em todo espaço. Ao
pensar no agir humano e nas formas de enfrentamento de uma
realidade social traiçoeira, pode-se destacar o rap com o seu auge em
1980 (HERMETO, 2012) a partir de uma denunciação de um
sofrimento imposto historicamente pelos brancos, sendo percebidos
até os dias atuais.

Cabe aqui destacar o gênero como sendo um estilo onde se sobressai


muito mais a fala para uma delação social, do que propriamente o
ritmo musical. Sua batida rápida e sua letra em forma de discurso
carregam consigo lutas diárias enfrentadas por aqueles que tentam
dar destaque a sua existência e conseguir seus direitos igualitários,
pois percebe-se que a cor acaba determinando vantagens ou
desvantagens dentro de uma sociedade, portanto, Cavalleiro (2005)
diz “remete ao cotidiano da população negra, no qual a cor acaba
por explicar parte significativa das desigualdades encontradas nos
níveis de renda, educação, saúde, moradia, trabalho, lazer,
violência” (CAVALLEIRO, 2005, p.67). Desse mesmo modo, Miriam
Hermeto (2012) apresenta o rap, com as suas duas vertentes,
mostrando que “sua arte denuncia a desigualdade e a realidade de
exclusão em que vivem, e a música é compreendida como uma
forma de luta, como um instrumento de elucidação” (HERMETO,
2012, p. 133).

Como Adalberto Paranhos (2015) mostra, o rap trata-se de “palavras


escarradas pelos rappers carregadas de esporro que causa incômodo

19
a ordem social” (PARANHOS, 2015), portanto, percebe-se que o
movimento não é apenas para uma demonstração da arte e diversão
através daqueles que usufruem da produção, mas sim um produto
que encontra-se na raça por uma forte militância, tendo em sua
estrutura uma espécie de “colagem” trazendo narrativas da
realidade enfrentada. Nesse ponto, pode-se destacar como
o rapper paraense “Pelé do Manifesto” encontra-se inserido nesse
processo, percebendo suas rimas com potencialidade para o
entendimento de certas questões, demonstrando o seu engajamento
ao movimento e retratando indagações específicas nas periferias da
cidade de Belém, visando o contexto de áreas diversas. Aqui, o
cantor ganhará destaque nas próximas seções.

Pelé do Manifesto: NEGUINHO SIM, PRETO COM MUITO


AMOR

O título elaborado para este trabalho, “Um conto a partir do canto:


As possíveis contribuições de Pelé do Manifesto para os debates
étnicos-raciais em sala de aula”, possui um propósito bem claro, o
qual será impulsionado nesta seção a partir de uma análise das falas
do cantor paraense em questão, visando suas músicas a partir de
suas próprias vivências, dando ênfase ao direito de uma narrativa
étnico-racial e fazendo com que desfavoreça o racismo e a
marginalização contra essa população.

“(...) Qualquer loja que você entra você é sempre suspeito, você tem
segurança na sua cola pra ver se não vai furtar nada... era muito
constrangedor, me sentia extremamente incomodado e é o que eu
acabo citando em algumas músicas minhas como ‘sou neguinho’,
por exemplo, ‘sou neguinho 2’, da gente ser acusado de crime que a
gente não cometeu, estar sendo suspeito de algo que a gente não
cometeu.” (Pelé do Manifesto, 2019).

20
Assim, as rimas do rapper, podem ser fundamentais para
oportunizar um ensino que vá em busca de uma identidade, o
entendimento de uma sociedade com múltiplas faces, um
empoderamento a partir de uma identificação, uma educação
antirracista a partir do que for atribuído pelo professor ao
documento proposto, assim como, fazer com que o aluno perceba e
denuncie atos extremos.

Iniciando com “neguinho sim, preto com muito amor”, frase que se
encontra presente em um dos raps mais famosos do artista,
percebemos como Pelé do Manifesto traz uma mistura de
sentimentos que se resulta em luta, demonstrando um
empoderamento e a potência de uma identidade. Logo, Nilma Lino
Gomes (2005) aponta como existe uma complexidade em torno deste
conceito, visando a identidade como aquilo que se refere a um modo
de ser no mundo e com os outros, sendo um fator de extrema
importância para as relações sociais e culturais de grupos
específicos. Portanto, o rap de Pelé do Manifesto pode ser
considerado dentro dessa perspectiva, tendo o estilo musical sendo
carregado de concepções e de interrogações do mundo (OLIVEIRA,
2015), assim como, ligado intrinsecamente a bandeira da negritude
(NAVES, 2004).

Essa questão pode ser evidenciada dentro das falas do próprio


cantor, percebendo como existe uma aptidão em torno de uma
identidade e a vontade de transparecer um disparo de sentimentos
que potencialize uma batalha em busca de uma valorização,
buscando por uma superação daquilo que Elaine Cavalleiro (2005)
vem apontando, da cor determinando as desigualdades.

“O que eu quero passar com as minhas músicas é um pouco das


minhas vivências... um pouco do meu entendimento de mundo
quanto a ser um homem preto, um homem preto periférico,
entender o que a sociedade quer de mim, o que a sociedade quer do
meu povo e resgatar um pouco dessa ancestralidade para
empoderar o meu povo não só economicamente, mas também

21
empoderando ele na questão estética dizendo que a pele dele é
bonita, que o nariz dele é bonito, que o cabelo dele é bonito, que ele
não precisa ter vergonha de ser quem ele é, que ser preto é bonito
enquanto a sociedade diz pra gente que tudo que é do preto é feio,
tudo que é do preto é ruim” (Pelé do Manifesto, 2019).

Allan Roosevelt, conhecido artisticamente como “Pelé Do


Manifesto”, morando em Belém do Pará, especificamente no
bairro da Cremação, vem procurando trabalhar com toda a
comunidade negra de sua realidade, em busca de um
reconhecimento e empoderamento da negritude.

“Trabalhar as questões raciais dentro da periferia é meio complexo.


O periférico não se entende como preto, ele se entende só como
periférico. A palavra “preto” historicamente no Brasil ela carreta
algo ruim, tudo que é do preto, é do negro é ruim. Ele sabe que ele é
periférico porque ele não mora na Doca, não mora em Nazaré, na
Batista Campos, ele entende isso, que ele é periférico, mas não se
entende e nem se aceita como preto. Trabalhar essas questões é
fundamental, é complexo, mas é fundamental pra gente que
trabalha com isso, não só pra mim que sou rapper, mas pra
professores, pra militantes do movimento preto e pra toda galera
que quer desmistificar toda essa, essa... esse racismo cultural e
histórico que tem no Brasil, pra que o periférico se entenda, ele
entenda o mundo que ele vive, porque a partir do momento em que
ele se entende como preto periférico ele acaba entendendo o mundo
que o cerca (...) qual é o papel dele dentro da sociedade e da
comunidade, o que ele pode fazer para ajudar essa comunidade
dele” (Pelé do Manifesto, 2019).

Com essas colocações percebe-se o engajamento do cantor e a


força que vem trazendo a partir dos seus raps para a busca de
uma superação do que foi determinado historicamente. Portanto,

22
a abordagem de quem é Pelé do Manifesto e o que é posto em
suas músicas, vem a partir desses pressupostos, destacando
também a importância de uma biografia do artista através de
pesquisas prévias para a sala de aula, já que foi percebido em
investigações anteriores que professores não possuem uma
preocupação em pesquisar para além do que a música traz em sua
letra ou melodia (Maia,2019), sendo necessário uma busca
antecipada para o desenvolvimento do próprio rap como um
instrumento didático.

A utilização do rap de Pelé do Manifesto como um instrumento


didático

A partir do que foi colocado, pode-se perceber a potencialidade


do rap para se trabalhar em sala de aula como um instrumento
didático que trará reflexões acerca das questões étnicos-raciais,
buscando descontruir ideias que foram impregnadas por uma
cultura histórica, procurando por uma igualdade e um
fortalecimento da educação antirracista.

Previamente, antes da abordagem do rap do cantor em si, é


necessário uma notoriedade da música de forma mais ampla,
destacando que ao trabalhar com a música em sala, é necessário
percebê-la como um objeto de estudo possível para uma aplicação
que contribuirá para a desconstrução, aprofundamento,
concentração e aprendizado de conceitos e conteúdos que a música
carrega a partir das representações de determinado contexto
(HERMETO, 2012), entendendo neste caso, as relações étnicos-
raciais. Ademais, a música pode ser vista como um recurso
apropriado não apenas para a audição, mas para se pensar
(NAPOLITANO, 2002), criando uma consciência que ocasionará em
conhecimentos, tendo as rimas de Pelé do Manifesto fazendo com
que entendam determinados processos.

23
Nem tudo que reluz é ouro, parceiro / Paraíso onde? Se eu vim nos
navio negreiro / A rua me criou meu pensamento é ligeiro / Essa
música é um alô pra todos que são verdadeiro / Ser duas vezes
melhor? Não? Cansei dessa parada / Casei de ser o preto no estilo
'homem na estrada'' / De ver as tia atravessando a rua apavorada /
De provar que o celular é meu pra não levar porrada. (Sou
Neguinho. Pelé do Manifesto, 2015).

A partir do que o cantor vem colocando na música ‘Sou neguinho’


torna-se possível ter um entendimento de como a população negra
vem sendo percebida dentro da sociedade, notando o que Munanga
(1988) destaca ao dizer que o negro é visto como “perverso e
ladrão”. Portanto, para a abordagem em sala, tem como uma
necessidade desconstruir esse pensamento desde o processo da
chegada dos europeus no continente africano, dando ênfase a uma
diversidade cultural, percebendo através deste rap, como Pelé vem
representando o seu povo, indo em direção contrária aquilo que foi
determinado. Ademais, como já dito anteriormente, a busca por um
empoderamento e a vontade de ir contra um sistema imposto, pode
ser notado também em uma de suas rimas:

Minha missão é vir cantar e provar que nada tá perdido / Tamu


junto na missão longe de foto e pose / Belém periferia cremação dois
mil e dose / Me chamavam de macaco pra tentar me ofender /
Macaco agora mano é a capa do meu cd / Preconceito racial que
maltrata corrói / Izabel é o caramba zumbi que foi herói / Sou
neguinho sim entre o navio e o busão / 500 anos de Brasil 400 de
escravidão / Então vamo pra cima lutar por liberdade / Uns faz som
pro verão eu faço pra eternidade. (Nada está perdido. Pelé do
Manifesto, 2015).

24
Com todos os pontos colocados, o rap alia-se a disciplina
questionando classes dominantes que são potencializas dentro de
uma estrutura de ensino historicista, portanto, este instrumento
didático contribuirá para impulsionar vozes que ainda se encontram
às margens da História. Pensar “raça” e “etnia” não se estabelece
como conceitos não observáveis, mas sim como uma forma de
intensificar as discussões sobre a temática e criar meios para um
reconhecimento de alunos negros enquanto sujeitos históricos para
uma identidade racial em Belém do Pará, apresentando as rimas de
Pelé do Manifesto com grandes contribuições para uma
representatividade.

Considerações finais

A pesquisa tornou-se fundamental para oportunizar um ensino que


se tenha a busca por uma identidade, tendo a produção do cantor
como uma ferramenta importante nesse processo. Através deste
instrumento, pode ser analisado, questionado e problematizado o
levantamento em relação as questões raciais, tendo uma
desconstrução de ideais e estereótipos que foram repassados
historicamente, assim como, trazendo uma identidade construída
através da representatividade, buscando por potencializar a
autoestima dos alunos negros que frequentam as escolas. Desse
mesmo modo, a ferramenta contribuirá para a construção de um
conhecimento histórico em sala de aula, compreendendo uma
possibilidade de mobilização dos discentes para uma identificação
em busca de lutas, igualmente, buscando por uma educação
antirracista, já que o sistema educacional brasileiro está repleto de
práticas racistas (CAVALLEIRO, 2005).

Referências

25
Emily Maria Pantoja Maia é estudante do curso de Licenciatura em
História da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), foi
pesquisadora bolsista de iniciação científica do projeto da faculdade
intitulado “História e Música Popular no Ensino Médio” que teve
como orientador o Prof. Dr. Edilson Mateus. Faz parte do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), pesquisando
“A Cidade e as Relações Étnicos-raciais” em uma escola pública de
Belém do Pará, sob a orientação da Prof. Dra. Luana Guedes e do
Prof. Msc. Antônio Sérgio.

Agradecimentos

Apesar de ser um pequeno ensaio, onde ainda pode se decorrer


pesquisas a partir de aplicações práticas baseadas na metodologia
abordada, o trabalho não se realizaria sem o apoio e orientação dos
professores do projeto o qual participei e de qual ainda participo,
portanto, meus agradecimentos vão primeiramente a eles. Agradeço
imensamente ao Prof. Dr. Edilson Mateus, que a partir das suas
orientações na pesquisa de iniciação científica, despertou-me
interesse por seguir esse caminho, percebendo como a música é uma
ferramenta importante para o processo de aprendizado e que
proporciona a produção do conhecimento histórico.

Ademais, agradeço a Profa. Dra. Luana Guedes e ao Prof. Msc.


Antônio Sérgio pelas orientações para que as pesquisa na escola em
que o Pibid está sendo executado, viesse ocorrer, sendo vistas suas
competências, assim como, as leituras propostas que foram e são de
extrema importância para todas as percepções obtidas. Assim, eu
pude fazer com que a escrita deste trabalho fosse realizada.

Por fim, meus agradecimentos vão ao grande personagem dessa


pesquisa, o rapper paraense “Pelé do Manifesto”, que se propôs a ter
uma conversa proporcionando fontes orais para serem analisadas,

26
fazendo-me perceber as possibilidades de aplicação em sala de aula
visando as questões étnicos-raciais, assim como também, entender
essas relações presentes na cidade em que moro. Meus sinceros
agradecimentos ao cantor, a quem desejo todo o sucesso.

BRASIL. Lei 10.639/2003. Diário Oficial da União, Poder Executivo,


Brasília: 2003.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 8ª Ed. São Paulo:


Contexto, 2008.

CAVALLEIRO, Elaine dos Santos. Discriminação racial e pluralismo


em escolas públicas da cidade de São Paulo. In: Educação Anti-
racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº10.639/03. Brasília:
SECAD, 2005.

CHARTIER, Roger. “Por uma sociologia história das práticas


sociais”. In: História Cultural: entre práticas e representações. São
Paulo: Difel, 1989, pp. 13-28.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. Das


letras, 2006.

GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate


sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação
anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03.
Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, pp. 39-62.

HERMETO, Miriam. Canção Popular Brasileira e Ensino de


História: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.

27
MAIA, Emily M. Pantoja. História e Música Popular no Ensino
Médio: Um obstáculo para ensinar através do prisma musical posto
por professores de Belém do Pará. In: Aprendendo História:
Ensino. União da Vitória: Sobre Ontens, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Negritude - Usos e Sentidos. 2º Ed. São


Paulo: Editora Ática. Série Princípios. 1988, p. 7-14.

MUNANGA, Kabengele. A difícil tarefa de definir quem é negro


no Brasil. Estud. av. vol.18 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2004.

NAPOLITANO, Marcos. História e Música – História Cultural da


Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

NAVES, Santuza Cambraia. “Eu quero frátria”: a comunidade do


rap. In: Dossiê de História e Música. Uberlândia: Artcultura. v. 6. n.
9. 2004.

OLIVEIRA, Roberto Camargos de. Rap e política: percepções da


vida social brasileira. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2015.

PARANHOS, Adalberto. Rap nas quebradas: a palavra como


esporro e como escarro. Artcultura, Uberlândia, v.17, n.30, 2015,
p.137-143.

RAMOS, Fábio Pestana. Encontros e desencontros na África e na


Ásia. In: Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos
Descobrimentos. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2015, p. 127-131.

Vídeos Consultados

MANIFESTO, Pelé. Nada está perdido – Pelé do Manifesto. 2015.


(3m38s). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=50NX2PrRYXg. Acesso: 27
de abril de 2019.

28
MANIFESTO, Pelé. Sou neguinho | Pelé do Manifesto. 2015.
(2m47s). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=FlnD04R_EeY. Acesso: 26
de abril de 2019.

29
O ENSINO DE HISTÓRIA E AS
POSSIBILIDADES DE COMBATE À
CORRUPÇÃO: DO DEBATE À AÇÃO
CIDADÃ ALÉM DA ESCOL A

MARCOS DE ARAÚJO OLIVEIRA

Introdução

A história enquanto disciplina dentro da rede básica apresenta


contribuições muito importantes, principalmente por ser condutora
de debates e reflexões acerca do papel do homem e das
transformações dentro da sociedade ao longo do tempo. Muito além
da ciência que “estuda o passado para entender o presente”, a
história é capaz de despertar, para muitas crianças e jovens:
curiosidade, criticidade e muitas vezes até a motivação para a
construção de uma jornada que molde o mundo ao seu redor.

Durante a experiência de estágio docente vivenciada na Cooperativa


Educacional de Jaguarari – COOPEJ no município de Jaguarari-Ba,
pude debater com a turma do 9° ano os efeitos corrosivos que a
corrupção causa no Brasil e assim, pudemos compreender que ela
não é um fenômeno do presente, mas um processo em constante
expansão no Brasil que pode começar pelo indivíduo mais comum
até ser praticada pelos sujeitos cujos cargos políticos são os mais
altos da República.

Usar as aulas de história para propiciar esse tipo de diálogo e


incentivar os alunos a refletirem sobre suas responsabilidades
sociais só reitera o compromisso da história enquanto disciplina
humanista, pois através desses debates propõe-se aos alunos o
despertar enquanto sujeitos históricos e principais agentes
transformadores da História, pois a mesma é feita de mudanças e

30
permanências e cabe a esses sujeitos históricos a erradicação da
corrupção no Brasil.

O Ensino de História e o seu potencial transformador

Ao analisarmos a importância do ensino da História, vemos que esta


disciplina nas escolas deve voltar-se para a formação de cidadãos,
através das práticas de criação e ampliação de experiências, na
gestação de conhecimentos que promovam novos significados a esta
prática de ensino-aprendizagem e criem assim uma proximidade
com a realidade dos estudantes inseridos no espaço escolar.

Entretanto, a história como componente curricular e disciplina


dentro das escolas, sofreu diversas transformações ao longo do
tempo, fruto muitas vezes dos próprios anseios sociais, pois
enquanto ciência cujo enfoque é a produção do conhecimento
histórico, a História busca elucidar discursos e narrativas atingindo
assim as necessidades de seu próprio tempo. Como afirma Fonseca
(2006, p. 21):

“Na verdade, o próprio ensino da História enquanto campo do


conhecimento mudou com o tempo, conforme suas relações com o
debate cientifico e as ciências humanas em particular. A rigor,
somente a partir do século XVIII é que a História começou a
adquirir contornos mais precisos, como saber objetivamente
elaborado e teoricamente fundamentado”.

A história transforma-se assim num campo de conhecimento cujo


potencial é transformador, pois é capaz de produzir saberes que
auxiliam o homem no seu processo de reflexão acerca da trajetória
da humanidade, e neste cenário de reflexão é que surgem várias
correntes historiográficas e possibilidades de campo de estudos.
Compreende-se também que o conhecimento histórico ensinado
dentro das escolas, em muitos casos foi usado como ferramenta para
despertar paixões nacionalistas. Ainda de acordo com Fonseca
(2006, p. 24-25).

31
“A afirmação das identidades nacionais e a legitimação dos poderes
políticos fizeram com que a História ocupasse posição central no
conjunto de disciplinas escolares, pois cabia-lhe apresentar às
crianças e aos jovens o passado glorioso da nação e os feitos dos
grandes vultos da pátria. [...] Assim ao longo do século XX, a
questão do método dizia respeito não apenas a investigação
histórica propriamente dita – a objetividade, a técnica, a crítica
documental- mas também ao ensino de História nas escolas
primárias e secundárias que deveria obedecer a procedimentos
específicos como a adequação da linguagem, a definição de
prioridades em termos de conteúdo a utilização de imagens úteis à
compreensão da história da nação”.

Nota-se, portanto que a História enquanto disciplina tem um poder


muito impactante, o que se reflete na própria formação do indivíduo
enquanto ser social e agente histórico. Por isso a sua adoção em
currículos se faz tão necessária, e o trabalho do professor de História
também.

Pois os estudantes no seu ambiente escolar, dependem do apoio do


professor, que muitas vezes enfrenta vários desafios para fazer a
transposição didática desses conhecimentos históricos aos seus
alunos, porém deve ser muito valorizado pois possui papel essencial
para o sucesso da construção destes conhecimentos no seu alunado.

Explorando a problemática da corrupção no Brasil nas aulas de


História

Durante a regência das aulas no 9° ano da Cooperativa Educacional


de Jaguarari- COOPEJ (ocorridas entre outubro e dezembro de
2018), estudamos o conteúdo: “o Brasil na Nova Ordem Mundial”,
onde abordamos vários governos de presidentes da República e
alguns escândalos de corrupção famosos como “Esquema PC”
(1992), “Escândalos dos Anões do Orçamento”(1993), Mensalão
(2005) e a polêmica operação “Lava-Jato” (2014-dias atuais), o que

32
nos propiciou debates muito interessantes em sala sobre os prejuízos
da corrupção para o cenário nacional e como é cada difícil confiar
em nossos representantes políticos.

Os alunos do 9° ano, durante todas as nossas aulas juntos, sempre


trataram de forma crítica a esses casos de corrupção, onde muitas
vezes acabavam levando certos casos com piadas ou até com
indignação. Por conta desses desânimos despertados diante de toda
a repercussão que a mídia faz com casos de corrupção, expostos
quase que diariamente na TV ou em jornais, foi desenvolvido com o
9° ano um projeto de intervenção, cujo selecionado foi “A
Corrupção no Brasil”.

O intuito de uma maior abordagem deste assunto, como explorar o


seu significado, como ocorre e suas consequências, além de
contribuir para a culminância do estágio de docência, foi também
relevante ao fazer com que os alunos refletissem como a corrupção,
enquanto falha de conduta fere a dignidade do nosso país, e como
nós enquanto cidadãos devemos combater a corrupção na nossa
sociedade.

“Uma definição científica aceita internacionalmente afirma que


corrupção é o comportamento que se desvia dos deveres de uma
função pública devido a interesses privados (pessoais, familiares, de
grupo fechado), de natureza pecuniária ou para melhorar o status,
ou que viola regras contra o exercício de certos tipos de
comportamento ligados a interesses privados6. Podemos, então,
afirmar, de uma forma mais didática, que corrupção é um ato de
gestão ou omissão com o objetivo de auferir vantagem, pecuniária
ou não, para si ou outrem, contrariando uma norma ou princípio da
administração pública”. (MEDEIROS, ROCHA, 2016, p. 6)

Durante a concepção da intervenção, foram pesquisados vários


casos famosos de corrupção e buscamos embasamento teórico: no
fascículo “Corrupção no Brasil e no mundo” tendo como autores os
professores Roberto Vieira Medeiros e Leonino Gomes Rocha, sendo

33
o fascículo parte integrante do curso “Transparência na Gestão
Pública – Controle Cidadão” oferecido pela Universidade Aberta do
Nordeste (Uane) e fundação Demócrito Rocha; além de utilizarmos
um artigo do Juiz Sérgio Moro intitulado “Caminhos para reduzir a
corrupção”, publicado no site “O Globo”.

Diante disto, passamos a explorar ainda mais a problemática da


corrupção nas aulas de História, ouvindo a opinião dos alunos,
dialogando sobre as imperfeições no sistema político brasileiro, mas
também trazendo para nós, cidadãos construtores da nossa
sociedade e dessa forma sujeitos históricos, um pouco da parcela de
culpa sobre esses atos corruptos que não são exclusivos apenas dos
nossos políticos, mas também comuns em ações no nosso cotidiano,
como em um ato de furar fila, ocupar a vaga de deficiente, jogar lixo
na rua, etc.

“A corrupção, em maior ou menor grau, representa uma ameaça


não somente ao meio ambiente, aos direitos humanos, às instituições
democráticas e aos direitos e liberdades fundamentais, mas também
aumenta a pobreza das populações e solapa o desenvolvimento.
Quando muito disseminada, a corrupção diminui o fluxo dos
investimentos, facilita as atividades do crime organizado e mina a
legitimidade política, podendo impedir a consolidação das reformas
pró-democráticas”. (MOREIRA, ROCHA, 2016, p. 10)

A conversa que tivemos em sala foi de fato muito proveitosa e


juntos analisamos e problematizamos estas posturas que permitem
que a corrupção aconteça, muitas vezes camufladas como “o jeitinho
brasileiro”. Sabe-se que no Brasil a corrupção gera prejuízos
gravíssimos e ao vivenciar tantos escândalos constantemente, nossa
sociedade fica cada vez mais desmotivada com a política e com o
futuro da Nação.

Ao citar os principais problemas sociais a serem enfrentados pelo


Brasil atualmente, até o próprio livro didático dos alunos escrito por
Boulos Junior (2015) aponta a corrupção como um desses
problemas. De acordo com Boulos Junior (2015, p. 325):

34
“Segundo a ONG Transparência Internacional, num total de 175
países avaliados quanto ao Índice de Percepção da corrupção, em
2015 o Brasil continuou copando a 69° posição , a mesma que tinha
quatro anos antes. Ou seja, neste quesito o Brasil estacionou. A
novidade é que as autoridades brasileiras estão tomando medidas
para enfrentar a corrupção nos casos do mensalão e da corrupção na
Petrobrás, por exemplo, ocorrem julgamentos e punição”.

Diante de todo o diálogo e reflexão, elaboramos a ação cidadã de


conscientização denominada “#TodosContraACoruupção”
e propus aos alunos que eles produzissem vídeos ou outras formas
de apresentação (Já que alguns sugeriram slides) divididos em 4
grupos (2 quartetos e 2 trios) abordando o tema da corrupção no
Brasil, seus impactos e por quê devemos combatê-la. O mais
interessante foi que em nossas discussões conseguimos visualizar
que a corrupção não é um problema recente e que assola não só o
Brasil, mas toda a humanidade ao longo de toda a sua história.

Todos contra a corrupção: Expandindo o debate e refletindo além


da sala

Após concluídos os trabalhos pelos grupos, levei a turma a proposta


de apresentarmos as produções em outro colégio, o CEWB - Colégio
Estadual Walter Brandão, para as turmas de ensino médio do
mesmo, e eles concordaram (animados e bem empolgados). No dia
13/11/2018 aconteceu então a concretização da nossa intervenção.

Logo, o projeto “#TodosContraACorrupção” não era apenas mérito


meu, mas de toda a sala do 9° ano, que através dos nossos diálogos
abraçaram a causa do combate a corrupção e de espalhar essa ideia
para além da sala de aula, com uma postura cidadã e consciente.

“A ideia básica da democracia em um estado de direito é a de que


todos são iguais e livres perante a lei e que, como consequência, as
regras legais serão aplicadas a todos, governantes e governados,
independentemente de renda ou estrato social. Se as regras não

35
valem para todos, se há aqueles acima das regras ou aqueles que
podem trapacear para obter vantagens no domínio econômico ou
político, mina-se a crença de que vivemos em um governo de leis e
não de homens. O desprezo disseminado à lei é ainda um convite à
desobediência, pois, se parte não segue as regras e obtém vantagens,
não há motivação para os demais segui-las. Pior de tudo, a
corrupção sistêmica impacta o sentimento de autoestima de um
povo. Um povo inteiro que paga propina é um povo sem dignidade.
Pode-se perquirir quando o problema começou, mas a questão mais
relevante é indagar como sair desse quadro”. (MORO,2015)

No CEWB tivemos uma sala de palestras reservada para a


intervenção, onde o 9° ano pôde apresentar seus trabalhos para dois
segundos anos, um primeiro ano e um terceiro ano – todas séries do
ensino médio. O público do colégio foi bem receptivo, e a cada final
de apresentação sempre havia um momento para socializarmos o
que debatemos.

Durante as apresentações, os alunos foram bastante exitosos na


mensagem que queriam passar: a de que nós, enquanto cidadãos
brasileiros, não devemos deixar que a marca da corrupção corrompa
toda a nossa nação. Entre os meios utilizados para a realização desse
trabalho, muitos optaram pela utilização de slides, produziram seus
próprios vídeos (uns aproveitando-se da comédia e outros de forma
mais séria) e claro, expuseram ideias e discursos sobre o tema.

“O fato é que a corrupção sistêmica não vai ceder facilmente. Deve


ser encarada da forma apropriada, não como um fato da natureza,
mas como um mal a ser combatido por todos. Os tempos atuais
oferecem uma oportunidade de mudança, o que exige a adoção, pela
iniciativa privada e pela sociedade civil organizada, de uma posição
de repúdio à propina, e, pelo Poder Público, de iniciativas concretas
e reais, algum ativismo é bem-vindo, para a reforma e o

36
fortalecimento de nossas instituições contra a corrupção”. (MORO,
2015)

O sucesso do Projeto “#TodosContraACorrupção” possibilitou que


os alunos do 9° ano do COOPEJ saíssem de sua sala e dos debates
nas aulas de História e partissem para uma ação cidadã na
comunidade, não restringindo assim o conhecimento ao ambiente
escolar, mas expandindo-o. Tratar a corrupção como um problema
histórico, com consequências das mais graves de nossa sociedade,
permite ampliarmos esse debate para todas as idades e pensar assim
na construção de uma sociedade onde se possa combater esse mal
de forma ativa e com a colaboração de todos.

Refletindo as “Mudanças e Permanências” na História para a


formação cidadã

De acordo com Rejane Márcia Ferreira de Oliveira (2008) a não


problematização da trama histórica ainda é muito enraizada nos
níveis fundamentais e de ensino médio, o que perpetua uma história
de verdades absolutas, racional e linear. Esses fatores só
empobrecem a exploração do ensino de história, que mais do que
nunca, precisa passar por uma reformulação que venha a atingir
uma “História-viva”, que possa vir a valorizar o passado e sua
reflexão.

Para a formação desses cidadãos é preciso se ter a ampliação de


debates e reflexões com os alunos, possibilitando que os mesmos
também produzam conhecimento e tenham a consciência de que são
agentes históricos e as suas próprias trajetórias também possuem
valor. Como defende Oliveira (2008, p. 46)

Assim, considera-se que o ensino de História deve criar condições


para que o aluno possa compreender criticamente e agir no e sobre o
mundo no qual se insere, desenvolvendo competências cognitivas e

37
habilidades instrumentais próprias do campo histórico, fazendo-se
sujeito da construção de seu conhecimento.

Entre as práticas metodológicas para a construção desse


conhecimento pode-se apontar a problematização da trama
histórica, debates, a produção da escrita e até mesmo a exploração
de fontes. É necessário se levar em consideração também que o
conhecimento ocorre a partir das próprias experiências desses
alunos com o mundo. “É a partir de sua existência portanto, que os
homens constroem sua visão e compreensão do mundo” (KNAUSS,
2001, p. 27).

Nota-se, portanto, que o professor de história tem um papel


importantíssimo para esse processo de construção de conhecimento.
De acordo com Fonseca (2003, p. 71)

[...] o professor de história com sua maneira própria de ser, pensar,


agir e ensinar, transforma seu conjunto de complexos saberes em
conhecimentos efetivamente ensináveis, faz com que o aluno não
apenas compreenda, mas assimile, incorpore e reflita sobre esses
ensinamentos de variadas formas. É uma reinvenção permanente.

Diante de toda a experiência vivenciada no estágio, foi possível


visualizar o quanto a dedicação do professor e o empenho em
ensinar e relacionar os conteúdos as vivências dos estudantes, são
importantes para que os alunos possam aprender e até sentir
interesse pela disciplina, empolgando-se e gostando dos assuntos
abordados. Nota-se também que é importante criar laços com os
nossos alunos, pois a afetividade permite com que o interesse pela
matéria seja maior.

“Ser professor de história é ser um educador. Isso está implícito e


explícito nas narrativas. Em sua maioria, os professores se vêem e se
sentem educadores. Mas qual o sentido de ser educador? Por
conceberem a história e seu ensino de forma distinta, cada um
ressalta uma dimensão do processo educativo e do papel da história
na formação do homem”. (FONSECA, 2003, p. 85)

38
O fato de termos vivenciado debates sobre as desigualdades sociais,
o agravamento da miséria e a perda da ética por causa dos
malefícios da corrupção serviu para mostrar que a sala de aula é um
espaço onde a história deve ser debatida de modo a analisarmos as
principais mudanças e permanências ao longo do tempo e de como
alguns problemas podem ser históricos, sendo assim precisamos
formar alunos autônomos que possam refletir sobre as
transformações sociais ao seu redor e qual papel eles devem assumir
diante de sua realidade.

Considerações Finais

De acordo com Knauss (2001) a única tarefa válida da história é


motivar o homem a se questionar. “E se essa tarefa tem como
condição interrogar as linguagens e discursos, devemos estar
convencidos de que o único caminho possível é o da leitura,
entendida como leitura de mundo” (KNAUSS, 2001, p. 44).
A possibilidade de permitir com que as aulas de História servissem
como palco para o diálogo de ideias e o debate acerca da corrupção
representou um saldo positivo diante da proposta de se atingir a
formação de cidadãos por meio do ensino-aprendizagem desta
disciplina, já que uma das potencialidades da história não é só ser o
campo de estudos dos “grandes heróis”, mas permitir que todos se
enxerguem enquanto sujeitos da história e sejam incluídos
historicamente.

O projeto desenvolvido “#TodosContraACorrupção” foi uma


experiência marcante e enriquecedora, servindo para a ampliação da
problematização histórica além da sala de aula, já que os alunos
foram instigados a levar uma mensagem para a comunidade. Tudo
isso, evidencia assim que o papel do professor é fundamental para a
condução desta disciplina e que quanto mais os estudantes
sentirem-se agentes históricos, as esferas sociais poderão ser
transformadas.
Referências Bibliográficas

Marcos de Araújo Oliveira é graduando em Licenciatura em


História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus

39
Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e
Pesquisa em Medievalística da UPE/Petrolina.

E-mail:drmarcosaroeira@hotmail.com

Referências das fontes usadas no projeto de intervenção:

BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História: Sociedade e Cidadania –


Edição reformulada 9° ano. 3 ed. São Paulo: FTD, 2015.

MEDEIROS, Roberto Vieira; ROCHA, Leonino Gomes. A corrupção


no Brasil e no mundo. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha/UANE,
2016. 16 p.

MORO, Sérgio. Caminhos para reduzir a corrupção. Out 2015.


Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/artigo-caminhos-
para-reduzir-corrupcao-por-sergio moro-17684788>. Acesso em: 04
Dez. 2018

Bibliografia:

FONSECA, Thaís Nívia L. A história do ensino de História: objeto,


fontes e historiografia. In: História e ensino de História. 2006, p. 15-
28.

FONSECA, Selva Guimarães. Como nos tornamos professores de


História: a formação inicial e continuada. In: Didática e prática de
ensino de História. 2003, p. 59-88.

FONSECA, Selva Guimarães. Interdisciplinaridade,


transversalidade e ensino de História. In: Didática e prática de
ensino de História. 2003, p. 59-88.

KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar


de pesquisa. In: NIKITIUK, Sonia. Repensando o ensino de
História, 2001, p. 26-46.

OLIVEIRA, R. M. F. História e ensino de História. In: Diálogos e


perspectivas. In: RODRIGUES, A. R. ; Barbosa, Elvis (Org.)

40
. Diálogos e perspectivas do profissional de história. 1. ed. Ilhéus:
Editus, 2008. v. 1. p. 39-56.

41
A CONTRIBUIÇÃO DO EN SINO
RELIGIOSO PARA A FORMAÇÃO DE
VALORES DO ALUNO

TALITA SOUZA DA ROCHA REBELLO[1]


ANDRÉ DIAS MARTINS[2]

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo procura entender a prática do ensino religioso no


ensino médio e a necessidade de discutir a disciplina.

O Ensino Religioso no contexto escolar vem se destacando como


área do conhecimento. Entretanto, existem demandas, motivações e
finalidades que suscitam um campo de trabalho mais consistente,
com uma metodologia mais apropriada às exigências do Ensino.
Tendo como parâmetros os valores humanos, desenvolvendo o
auto-conhecimento e a reflexão diante da possibilidade de optar por
uma vida cidadã e solidária, na dimensão do transcendente.
(SILVA,2015)

O Ensino Religioso é o estudo do sagrado Deus, da religião, das


religiosidades e culturas; No Brasil foram os padres jesuítas que
introduziram o ensino religioso que antes era o estudo do
cristianismo católico; A Lei Federal 9.457/97 Art, 33 da
LDB,estabelece uma nova concepção de ensino religioso nas escolas
públicas que possibilita por meio de uma concentração de religiões,
através de organizações inter-religiosas como o CONER (Conselho
do Ensino Religioso). Além disto, por meio da entidade civil
prevista na Lei Federal de 1997, diversos grupos religiosos podem
participar na elaboração do conteúdo dessa disciplina, ao contrário
do que ocorria anteriormente onde apenas os grupos religiosos
hegemônicos participavam nessa elaboração. Assim abre-se um
espaço para que outros grupos religiosos minoritários exerçam
alguma influencia no espaço público por meio do ensino

42
religioso.(JR,2007). Art.33 da LDB, leis diretrizes e bases da
educação nacional assegura o aluno dizendo que “O ensino
religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas
de proselitismo”.

A partir de então o novo ensino religioso dá ênfase á recuperação


para as religiões de alguma influência no espaço público, conforme
a legitimação de sua autoridade sobre a vida diária e cultural no
meio urbano, sendo vista como destruída pelo individualismo e
pela falta de valores. Estas tentativas de recuperação no entanto, se
fazem sobre novas bases, de acordo com o período ecumênico do
país, mais democráticas e preocupadas em respeitar as
individualidades presentes no esforço conjunto do grupo
estratégico. Dickie (2003)

O ensino religioso leva ao aluno alem da cultura, conhecimentos


básicos filosóficos, sociológicos e éticos; O ensino religioso consiste
em ser uma disciplina que seu objetivo principal é propor reflexões
sobre fundamentos, costumes e valores das várias religiões
existentes na sociedade.

Ela é uma disciplina que se caracteriza pela busca da compreensão


das diferentes formas de religião, explorando temas de seu interesse
de maneira interdisciplinar, através de atividades que estimulem,
sobretudo, o diálogo e o respeito entre religiões.

O presente trabalho busca mensurar as principais finalidades do


ensino religioso para o desenvolvimento do aluno, apresentando a
importância social e pedagógica da disciplina para o aluno.

Diante do exposto realizar-se-á uma reflexão dos valores herdados


pelos alunos nos quais levarão para a vida toda e auxiliarão nas suas
escolhas, identificando o nível de importância dado pelos alunos em
relação ao tema ensino religioso e identificar o nível de

43
imparcialidade que os professores adotam quanto a diversidade de
religiões e crenças.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A RELIGIÃO VINCULADA A CULTURA

Religião é algo muito complexo, pois existem várias definições desse


termo, e também várias religiões, com práticas e crenças diferentes.
De acordo com Silva (2004) “a definição mais aceita pelos
estudiosos, para efeitos de organização e analise, tem sido a
seguinte: religião é um sistema comum de crenças e práticas
relativas a seres sobre-humanos dentro de universos históricos e
culturais específicos”. Ou seja, a religião se define por ser um
conjunto de sistemas culturais e históricos, e por um conjunto de
crenças e de valores; Podendo dizer que o conhecimento religioso é
especial, e vai além do conhecimento empírico, pois o religioso
trabalha com a fé, o que não se vê e nem se pode tocar, a religião dá
sentido a vida e orienta o individuo em suas escolhas e a falta desse
conhecimento gera muitas discussões e duvidas;

Segundo Oliveira (2012) A religião tem a capacidade de auxiliar o


ser humano a definir-se no mundo, de maneira que saiba realizar
suas escolhas sem duvidas; E em relação a seus semelhantes e
emprestar-lhes um sentido de vida, de forma que a pessoa consegue
transmitir seus conhecimentos religiosos á outra pessoa sem a
ofendê-la e, mas com o intuito de ajudar e motivar o próximo. A
religião caracteriza-se como uma fonte de informações para seus
fiéis, com estudos sagrados que possibilita um conhecimento amplo
em respeito à vida, saúde, história e cultura a partir desse
conhecimento o ser humano se sente orientado para realizar suas
ações, e se sente apto á fornecer respostas ás ameaça que pesam
sobre toda a vida dos seres humanos, dando sentido á sua
existência.

A religião desperta os sentimentos de respeito, carinho, amor e


cuidado ao próximo e a si mesmo, a religião tem a capacidade de

44
mudar o comportamento do ser humano, tornando uma pessoa
mais confiante, reverente e cuidadosa estando de bem consigo
mesmo através de seus atos e escolhas. A religião liga o indivíduo
com suas origens e o homem passa a ser motivado pela fé.

Segundo Oliveira (2012) “Pode-se dizer, então, que a religiosidade é


inata, conatural ao ser humano, pois a capacidade de entrar num
relacionamento religioso é uma dimensão do humano”.
Ou seja, o ser humano nasce vinculado á fé e as primeiras reflexões
de religião do ser humano são através da família, de acordo com a
realidade, cotidiano e cultura da família, porém quando a criança
passa a freqüentar a escola são inseridos á outras realidades,
segundo Rodrigues e Junqueira(2012) “parece haver uma
inadequação entre as realidades encontradas em nosso mundo e os
saberes fragmentados ensinados na escola”.

Na vida o ser humano é educado e educa também, para Rodrigues e


Junqueira (2012) “a educação tem como o objetivo contribuir para o
desenvolvimento integral do ser humano, seja no exercício da
cidadania, seja na sua qualificação para o trabalho”. Sendo que a
partir da educação que se tem acesso á cultura, e é na escola que o
aluno aprende e vive os fundamentos de educação e cultura e esse
aprendizado vai se transferindo para seu cotidiano, na medida que
esse aluno vai crescendo e aprendendo ele começa a fazer suas
próprias escolhas e ele se sente motivado a analisar os problemas e
encontrar melhores soluções a cada dia.

A escola é lugar de estudar e aprender, a escola também contribui


muito ao desenvolvimento social e moral do aluno, ensinando os
valores éticos e com atividades e aulas diversas os alunos se
interagem e socializam a escola também deve motivar o aluno a
superar quaisquer discriminações sofridas, e incentivar os alunos á
liberdade de expressão, onde todos têm direitos iguais, valorizando
a todos e ensinando a valorizar e respeitar a todas as pessoas e
culturas brasileiras, incluindo as expressões religiosas. O ensino
religioso na escola também é uma área de conhecimento, que leva o
aluno além da cultura, conhecimentos básicos filosóficos,

45
sociológicos e éticos. E a partir do Art.33 da LDB, leis diretrizes e
bases da educação nacional asseguram o aluno dizendo que “O
ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo”.

Isso faz com que o ensino religioso se torne um componente básico


curricular, que contribui com o desenvolvimento escolar e moral,
guiando o aluno ao exercício da cidadania. O art.33 tem como
objetivo também de auxiliar os professores e gestores da escola que
são quem irá compartilhar o conhecimento com o aluno, com
exercícios de reflexão, percepção e compreensão do Ensino
Religioso.

Também nesse componente curricular não é possível desconsiderar


a influencia exercida pela formação religiosa que as pessoas trazem
de sua infância e de seu entorno, visto que elas possuem
conhecimentos e convicções com as quais constroem as condições
necessárias para viverem em comunidade e atuarem como
indivíduos e profissionais. (Oliveira, Junqueira, Alves e Keim 2007)

Assim os professores e equipe pedagógica devem ter conhecimento


da diversidade de religiões, e discutir essa diversidade e a
complexidade do ser humano entender as diversas religiões
existentes, e entender as dimensões de fé já herdadas pelos alunos.
Para Oliveira et al. (2007) O ensino religioso, na atualidade da
educação brasileira, manifesta-se como um dos lugares e espaços em
que se destacam e discutem posições sobre o sentido da vida, do ser
humano. Então cabe ao professor entender as diferentes fé e ensinar
os alunos a respeitar a opinião dos outros com atividades que os
alunos possam interagir, expondo suas opiniões de forma clara,
onde possam trocar experiências de vida e fé.

De acordo com Oliveira (2011) No Brasil por muitos e muitos anos o


ensino religioso teve um caráter catequético-doutrinal em todas as

46
escolas publicas, e esse caráter por seguir sempre a mesma linha,
sem dar espaço á outras expressões religiosas, acabou criando uma
certa rejeição em torno da disciplina, gerando desconforto para os
alunos e professores; Com a vasta diversidade cultural e religiosa do
pais com inúmeras crenças, idéias e valores diferentes que estão
presente em todos ambientes, inclusive no ambiente escolar e é de
grande importância para o desenvolvimento dos alunos que se
trabalhe com a disciplina na escola abordando as diferentes
expressões culturais e religiosas, de maneira que seja transmitido a
importância de valorizar a diversidade cultural e religiosa da
sociedade, preservando a identidade e características de cada um.

Os primeiros conhecimentos de uma pessoa são transmitidos pela


família, com o passar do tempo são transmitidos pela escola, e
depois são através religião escolhida, de redes sociais ou amigos. Os
valores nesse caso são os resultados obtidos pelo aluno no qual ele
levará para sua vida. A escola deve transmitir ao aluno a
necessidade de pensar despertando curiosidade ir atrás do
conhecimento, de questionar as coisas, a escola deve ensinar o aluno
a olhar para todos ângulos, para entender como que o outro pensa e
interpreta as coisas.

O componente curricular de Ensino Religioso, articulado com as


demais disciplinas, contribui para a construção de outra visão de
mundo, de ser humano e sociedade, considerando o religioso na
qualidade do questionamento e da atitude com que a realidade de
cada um é abordada. Oliveira, Junqueira, Alves e Keim (2007)

O ensino religioso articulado com as demais disciplinas vai auxiliar


o aluno a se encontrar, esse aluno estará pronto a traçar metas e
definir seus objetivos de vida. A partir de um bom conhecimento
religioso o ser humano está apto para fornecer respostas para sua
própria vida, nas quais antes ele não conseguia entender. Ele
também tem sua opinião formada sobre sua existência e cultura.

2.2 CONTRIBUIÇÃO SOCIAL

47
A religião está presente na vida do ser humano desde seu
nascimento, e logo em seguida será transmitido na escola o conceito
de religiões diferentes com costumes e crenças diferentes, e esse
aprendizado escolar propõe o devido respeito a diversidade
religiosa, na qual refletirá na vida social deste aluno. O aprendizado
do aluno deve construir uma personalidade com respeito, paz e
entendimento a diversidade religiosa. A escola é um dos principais
alicerces para a construção do cidadão, pois a escola ensina a ler,
escrever, calcular e ter noções de espaço; e com o convívio e
trabalhos em grupo a escola ensina a respeitar as diferenças sociais e
religiosas de cada um, contribuindo para a formação do cidadão. De
acordo com Seehaber e Machado(), “Direitos e deveres de um
cidadão devem fazer parte do contexto social, devem ser ensinados
desde a infância, devem ser compreendidos como respeito mútuo e
como necessidade da existência de regras e limites como
pressuposto básico para o convívio social”.

Desde a infância deve ser ensinado o que é certo e o que é errado e


assim as crianças vão se desenvolvendo com respeito, ética e
educação. A escola e a família são as bases da construção do
cidadão, pois ambas tem responsabilidades na formação do ser
humano; E as aulas de ensino religioso levam aos alunos de forma
clara a conhecer as diferenças religiosas de maneira que o aluno
entenda e respeite cada uma delas, assim o aluno pode escolher uma
religião ou crença a seguir, como também ele entenderá melhor a
sua própria cultura ou religião e passará a sentir orgulho de si
mesmo, se orientando para sempre estar melhorando como cidadão
e isso resultará em diversas mudanças na sociedade, mudanças de
caráter quando o aluno aprendeu as diferenças do certo e errado e
suas conseqüências, mudanças também de atitudes, pois esse aluno
terá uma visão mais crítica das coisas, mudando também sua
opinião e aumentando as responsabilidades.

O fenômeno religioso apresenta uma grande parcela de domínio na


constituição do imaginário social das pessoas, onde podemos notar
que sua influência é detectada também nas esferas política,
econômica e social. A escola dos dias atuais necessita estar

48
caracterizada como um lugar de diálogo com vista á diversidade
dos saberes religiosos, isto é, estamos partindo da compreensão de
que essa instituição social deve se tratar de um ambiente que irá
proporcionar trocas de informações necessárias para a formação da
personalidade dos seus alunos. Podemos dizer então, que sua
finalidade se constitui em ajuda-los a ter coerência em suas
concepções de mundo.( Alves, 2015)

Porém a partir da compreensão do ensino religioso o aluno estará


mais seguro ao realizar suas escolhas de vida e ele terá mais noções
dos perigos do mundo, sua personalidade estará completa esse
aluno estará preparado para viver em uma sociedade com diferentes
raças, religiões e culturas e ele saberá interagir com todos os grupos
sociais sem negar a sua própria crença e sem desrespeitar nenhuma
crença; Este aluno então se sente mais seguro com atitudes do bem,
apto a viver em sociedade de forma que só pratique o bem e se sinta
motivado a ajudar as pessoas e aprender mais.

2.3 A ACEITAÇÃO DOS ALUNOS PERANTE A DISCIPLINA

Sabendo que o ensino religioso é uma área de conhecimento que


transforma as pessoas, transmite valores e é parte fundamental da
aceitação e do convívio social, sabendo também que o ensino
religioso é uma analise das diferentes religiões e crenças que motiva
o aluno a realizar suas escolhas e está diretamente ligado a
construção de personalidade, tornando esse aluno com um olhar
crítico ao mundo de forma que saiba analisar todos itens antes de
realizar suas escolhas; Mas a questão é com tantos pontos relevantes
nessa disciplina qual o nível de aceitação que os alunos tem em
relação a disciplina? Como antes a disciplina era voltada apenas
para a doutrina católica e ensinava somente as práticas religiosas da
igreja católica muitos alunos passarão a rejeitar esse ensino,
principalmente os alunos de outras denominação que se sentiam
excluídos durante as aulas de ensino religioso.

Atualmente existe algumas considerações pertinentes com relação a


Educação religiosa. Em primeiro lugar, com relação a sua

49
denominação. A disciplina não tem mais o objetivo de catequizar,
ou ensinar as doutrinas religiosas, e sim de auxiliar no processo da
educação do sujeito de forma integral. Ou seja, de proporcionar ao
educando a construção dos saberes e também de sua capacidade
emocional e espiritual, além é claro de auxiliar na construção da
moralidade e da ética (Alvares,2018).

Assim então deixando claro que o ensino religioso não se deve


catequizar os alunos, quando deve abordar as diferentes religiões,
de modo que os alunos passem a se sentir tranqüilos e a vontade na
realização de debates onde eles possam expor suas opiniões sem se
sentir fora do compasso e explorando seus conhecimentos religiosos
e culturais.

Muitos vêem o Ensino Religioso como disciplina á parte, fora do


compasso do sistema de Ensino, e o compreendem como inferência
da religião e não da educação, não se constituindo como área de
conhecimento. É certo que a família e a Igreja são, por excelência, os
espaços da reflexão do conhecimento religioso, mas a escola pode
ser um lugar privilegiado para se realizar tais debates. Como local
de aprendizagem, a escola pode trabalhar as regras do espaço
publico democrático, buscando a superação de todo e qualquer tipo
de discriminação e exclusão social, valorizando cada individuo e
todos os grupos que compõem a sociedade brasileira, garantindo o
exercício da cidadania e o direito da expressão religiosa
(Rodrigues,2008).

Dessa forma os alunos se sentem valorizados e despertam o


interesse em participar das aulas de ensino religioso; Quando antes
muitos alunos se sentiam constrangidos por se sentirem diferentes e
não gostavam de assistir as aulas se sentindo desmotivados,
fragilizados ou incapazes; Mas com as mudanças na disciplina os
alunos se sentem importantes e para muitos a disciplina é
inovadora, pois através das aulas eles aprendem a diferenciar o
certo e errado, mudando diversos hábitos e atitudes, melhorando o
convívio familiar e social.

50
Segundo Morais (2015) Após uma pesquisa realizada, a maioria dos
alunos concordam que deve existir a disciplina de ensino religioso
na escola, pois os alunos entendem que a disciplina transmite além
de conhecimento, os auxiliam no desenvolvimento social,
contribuindo na formação de valores e aumentando o respeito
mutuo, a maioria dos alunos afirmam que com o ensino da religião
eles aprendem a respeitar outras religiões, culturas, crenças ou
outros estilos de vida, também a disciplina contribui muito para que
as pessoas se sintam bem com sigo mesmo e possuem facilidade de
identificar o bem e o mal. Os alunos também relataram que com as
aulas de ensino religioso eles passam a conhecer melhor a Deus e
começam a se lembrar de Deus em alguns momentos do dia ou em
algumas situações, surgindo assim a fé na qual os ajudam a viver
em maior harmonia. É notório o desejo dos alunos aprenderem mais
e a motivação para realizarem boas escolhas, eles se sentem
preparados para a realização de escolhas, para tomar atitudes ou
encorajados para mudarem suas atitudes.

Os alunos esperam com o ensino religioso estarem mais preparados


para a sociedade, eles esperam o aumento do conhecimento com as
diversas religiões e culturas, para que se sintam seguros e acolhidos
pela sociedade em que vive. A disciplina através de debates e aulas
de interação reforça os valores já ensinados pelos pais que são a
lealdade, respeito, solidariedade, otimismo e fidelidade; Ao debater
esses assuntos com professor e os amigos o aluno se sente mais a
vontade para mostrar suas opiniões e para por em prática o que
aprendeu, melhorando suas visões de futuro, sentindo orgulho de
fazer o que é certo e se sentindo motivado para compartilhar com
outras pessoas a paz, amor e respeito.

2.4 O POSICIONAMENTO DOS PROFESSORES COM A


DISCIPLINA

No Brasil o sistema de governo é o regime republicano e sua


principal característica é o Estado Laico, que é aquele que são livres
e iguais todas as religiões, onde o estado tem a obrigação de

51
respeitar todas as religiões e religiosidades não interferindo em
nenhuma crença.

Para os professores da disciplina de ensino religioso, eles procuram


defender ao máximo o estado laico, respeitando todos e estar
atualizados com as diversas religiões, crenças e culturas, para
poderem passar aos alunos os conceitos das diferentes religiões e
crenças existentes no Brasil. Os professores ao ensinar as diferentes
doutrinas das religiões aos alunos exploram os valores de cada
religião, de forma que os alunos aprendam a dialogar seus pontos
de vista e aprendem a respeitar o direito e pensamento do próximo.

Uma das principais finalidades da educação consiste em produzir


um melhoramento nas capacidades de cada aluno, com vista a
integrá-lo de modo eficaz no meio social e cultural, por essa
concepção, compreendemos que as mudanças culturais e sociais
precedem as da personalidade. A existência de uma disciplina
curricular que trate de assuntos ligados á natureza do ser humano,
tendo caracterizado como uma de suas dimensões também a
dimensão religiosa, trará conseqüências para a vivência entre os
indivíduos, que ao estarem em um mesmo espaço de convívio,
certamente encontrarão em suas diferenças, possibilidades para
terem disposição em conhecer, aceitar, e ouvir o diferente. (Alves,
2015)

Sendo assim o professor de ensino religioso consegue transmitir ao


aluno a importância da disciplina de ensino religioso e que as
diferentes doutrinas devem ser respeitadas e todo o conteúdo da
disciplina deve estimular o aluno a pensar, conhecer e aceitar a
religião ou cultura do outro, após esse aprendizado esse
aluno então melhora o seu convívio social e cultural e acabando
com o preconceito; Pois esse aluno agora está mais seguro de si,
pronto a encarar as dificuldades da vida e respeitando o próximo e
estando apto para viver em grupo.

De acordo com (BOEING; ITOZ, 2013, P.45) O desafio diário do


professor de ensino religioso é de fazer que esse componente

52
curricular seja significativo para o aluno, e que a família perceba em
primeiro lugar a transformação do indivíduo e que em segundo
lugar esse indivíduo transforme a sociedade, com mais amor,
humildade e respeito. Para essa transformação acontecer os
professores procura sensibilizar os alunos para a vivência de valores
para a vida, como justiça, confiança, solidariedade, respeito e
dignidade de modo que o aprendizado em sala de aula seja usado
em toda a vida e os auxilie nas escolhas, seja elas escolhas pessoais
ou profissionais.

Ou seja, é muito importante para os alunos e sociedade que a


disciplina de ensino religioso seja mantida em vigor, pois com as
influencias pedagógicas transmitida de forma correta pelo professor,
a disciplina influencia diretamente na vida do aluno, fazendo ele
pensar e analisar seus atos, e por consequência esse aluno se tornará
um cidadão de bem com caráter () que transforma a sociedade.

3 CONCLUSÃO

Podemos entender que a religião motiva a pessoa a amar, a ser


confiante, dá a pessoa fé em Deus, e desde o nascimento a criança já
tem sua fé, crença ou cultura e ao chegar na escola fica claro que a
criança se depara com outras realidades, costumes, culturas ou
religiões. E a disciplina de ensino religioso irá trabalhar com a moral
do aluno, ensinando á esse aluno os valores éticos e sociais, esse
aluno então aprenderá a respeitar as outras culturas que ele
descobriu na escola, também ele aprenderá a respeitar as pessoas e o
modo de pensar.

É claro que o ensino religioso guia o aluno para a cidadania, e o


instrui a escolher uma crença ou religião ou á interpretar a sua
cultura ou religião. A principal consequência do ensino religioso é a
mudança de caráter que resulta nas mudanças de atitudes e
transformação da sociedade.

De acordo com Teixeira (2013) “Só através do conhecimento de suas


concepções religiosas poderemos entender e respeitar o outro, livres

53
de preconceito e de intolerância, ainda mais vivendo em um país tão
rico em diversidade étnica, cultural e religiosa”.

No decorrer do trabalho podemos compreender que o ensino


religioso, contribui na vida social do aluno, de forma que o aluno
entenderá melhor a sua própria cultura ou religião e passará a sentir
orgulho de si mesmo, podendo mudar suas atitudes e opinião e
aumentando as responsabilidades. E no ponto de vista dos alunos,
eles acreditam que o ensino religioso os torna mais preparados para
a sociedade, eles acreditam que aumentando o conhecimento nas
diversas religiões e culturas, ele vão estar mais seguros e acolhidos
pela sociedade em que vive.

Já os professores da disciplina procuram a respeitar todas as


religiões e culturas e estarem atualizados em todas, para poderem
passar aos alunos os conceitos das diferentes religiões e crenças
existentes no Brasil. Contudo o presente trabalho contextualiza e
defende que o ensino religioso é importante para a vida pessoal,
social e profissional de todos.

REFERÊNCIAS:

[1] Aluna. Talita Souza da Rocha Rebello. Bacharel em Ciências Contábeis,


Especialista em Ensino Religioso, Cursando Licenciatura em História.

[2] Prof. Me. André Dias Martins (ORIENTADOR). Bacharel em Sistemas de


Informação, Licenciado em Sistemas de Informação, Licenciado em Pedagogia,
Licenciado em Matemática, Especialista em Desenvolvimento de Sistemas para
Web, Especialista em Pesquisa Educacional, Especialista em Docência no Ensino
Técnico e Profissional, Especialista em Docência com Ênfase em Distúrbios de
Aprendizagem, MBA em Gestão Empresarial com Ênfase em Gestão de
Pessoas, Mestre em Ensino e Tecnologia, Doutorando em Educação para o
Ensino da Ciência e Matemática.

Alvares, Gabriela Medina. A Prática Pedagógica em Educação


Religiosa Mediante as Mídias: Cinema e Informática. 2018. 11 pg.

54
Alves, Alan Nickerson. A influência pedagógica do ensino
religioso para a formação cidadã: Diversidade religiosa, 2015. ISSN
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55
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56
O USO DA INTERNET NAS AULAS DE
HISTÓRIA: UMA FERRAMENTA
EDUCATIVA

RAFAEL NOSCHANG BUZZO


1 INTRODUÇÃO

A resistência no uso das novas tecnologias em sala de aula diminui,


podendo ser mensurado a efetividade da ferramenta em aula. O
grande número de usuários de telefones celular privilegia o uso da
internet em qualquer lugar e a qualquer momento, o professor deve
estar atento à potencialidade do uso desta tecnologia no preparo de
seus planos de aula.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estima que desde


março de 2018, mais de 235 milhões de linhas móveis operam no
país (ANATEL, 2018). O comitê Gestor da Interne no Brasil (CGIBr)
revela que neste ano de 2018, o acesso à internet pelo telefone celular
superou o do computador e estando presente em todas as classes
sociais. Entretanto, o abismo entre classes é evidenciado nos
indicadores de acesso por faixa social. Enquanto 99% da classe alta
acessa a internet, apenas 30% das classes mais baixas conseguem
entrar na rede, sendo que da classe média baixa, apenas 69% tem
acesso à rede. Os dados, em comparação ao ano passado, têm
demostrado aumento do número de acessos em todas as classes
sociais (CGI, 2018).

O que falta para implantar o uso desta ferramenta na sala de aula é


um conjunto de práticas que ainda não está inserido na rotina destes
professores. Mesmo os mais jovens, que optam por usar a tecnologia
disponível na escola, como computadores, audiovisual e música, se
esquecem que estão com a principal ferramenta nas mãos, pois
mesmo em comunidades carentes existem muitos aparelhos
celulares. Assim, Circe Bittencourt (2008, p. 107) enfatiza que “[...] os

57
atuais métodos de ensino têm de se articular às novas tecnologias
para que a escola possa se identificar com as novas gerações [...]”.

O uso da tecnologia acompanha a informatização das ferramentas, a


transformação nas comunicações, infere obrigatoriamente na
produção de conhecimento. A alteração pressupõe uma mudança
nos métodos de ensino:

“[...] que a informatização seja o instrumento das necessárias


mudanças no atual sistema de ensino, para promover a construção
do conhecimento do aluno. E, para que ele seja um instrumento é
necessário que se desenvolvam esquemas de uso.” (DINIZ, 2001,
p.62)

Podemos compreender da seguinte forma: com a internet, sua


velocidade e capacidade de informação e a televisão, com sua
imersão das imagens e da transição instantânea, provocam
alterações na maneira de absorver o conhecimento. Neste contexto,
torna-se necessário para educação que a informatização das
ferramentas de ensino ocorra, adequando a forma dos indivíduos de
apreender as informações. (BITTENCOURT, 2008, p. 107). A
globalização transforma o cotidiano do cidadão, transporta
informações instantaneamente para toda parte do globo, assim a
forma que compreendemos estas informações são alteradas, sendo
necessário, uma nova forma de ensino. O ensino deve estar de
acordo com a forma do educando absorver as informações – e
consequentemente da tomada de consciência – utilizando
ferramentas que aproximem a linguagem habitual com o conteúdo,
para isso, usamos as tecnologias disponíveis.

A metodologia implica em organizar as atividades didáticas (os


meios) para atingir os objetivos (os fins). Os métodos tradicionais
fizeram sentido em determinada época, o que não faz na
contemporaneidade (ZASLAVSKY, 2015, p. 104), a procura de novas
ferramentas, novas maneiras de instigar o aluno e motivar a
pesquisa são necessárias. O uso da informática e das mídias, como a
internet, na educação tem função de ferramenta de ensino, que

58
facilita a tomada de consciência do aluno. Estas ferramentas são
variadas e objetivam o conhecimento, atuam e conduzem uma
linguagem mais próxima com os educandos. Entretanto o professor
deve observar alguns cuidados:

“A primeira concepção que um professor desejoso de trabalhar com


a Internet como recurso pedagógico deve tomar é colocar-se no
papel de facilitador e não ditador da aprendizagem. Compreender
que cada aluno tem seu ritmo, seu caminho a percorrer até o saber,
torna-se um desafio que precisa ser transpassado para que a Internet
seja usada como ferramenta pedagógica.” (FONTES, 2011, p. 24)

2 O USO DA INTERNET COMO FERRAMENTA EDUCATIVA

O uso das tecnologias tem a vantagem de propagar o conhecimento,


não ficando restrito somente à sala de aula: “funciona como agente
de propagação do conhecimento, colocando-se a serviço da
educação.” (DINIZ, 2001, p. 61). Somente a máquina, o computador
ou celular, não são suficientes para integrar o aluno com o
conhecimento. O principal são as estratégias, a didática que o
professor usar como intermediário entre o conhecimento e a
ferramenta, pois, mesmo com todo o conhecimento disponível na
internet, será necessário guiar o educando para as referências
externas, como a relação da vida do aluno com a informação.

O necessário para que o aluno compreenda o conteúdo, é sua


tomada de consciência, para isso, deve ser capaz de transformar a
razão teórica em razão prática. As aulas devem proporcionar uma
maneira do educando interpretar o mundo e ver-se nesta
interpretação (ZASLAVSKY, 2015, p. 95). No método ativo ou
construtivista, as ações educativas são voltadas para a assimilação
por meio das relações que o educando faz do conteúdo. No uso de
qualquer ferramenta pedagógica procura-se privilegiar o
entendimento, assimilação e a interpretação do educando.
(ZASLAVSKY, 2015, p. 106)

59
Como foi dito anteriormente, nossa lógica está relacionada com a
velocidade da informação e atratividade imagética, uma vez que a
educação deve acompanhar as transformações do mundo e demais
áreas do conhecimento: “nesse contexto o cidadão precisa ter
criatividade, ser participativo, estar preparado para encarar essas
mudanças que estão ocorrendo em nossa sociedade.” (OLIVEIRA,
2013, p. 23). Deste modo, a escola deve preparar o educando para o
mundo, pois se a sociedade está imersa no mundo da informática,
com computadores ligados na internet, celulares, tablets, e a escola
não possui acesso amplo à informática, então ela não está
cumprindo sua função.

O aluno vem de sua casa apto a utilizar o computador e a internet e


encontra na escola um baixo nível tecnológico, como a escola
preparará o educando para a sociedade? Quanto mais próximo a
educação estiver da tecnologia mais estará falando a linguagem
social.

A internet possui praticamente todas as informações e conteúdo que


utilizamos na construção dos planos de aula, assim como um
gigantesco número de imagens. Os alunos podem realizar
pesquisas, coletar as informações para auxiliar as atividades que
foram passadas previamente na aula e divulgar seus resultados
(VALENTE, 2002, p. 132). Praticamente, as possibilidades do uso da
internet são extensas, sendo assim pode ser usada apenas para
ilustrar certos conteúdos, com o uso da imagem no celular ou guiar
uma pesquisa sobre determinado assunto, por exemplo, conhecer as
diferentes comunidades que fazem parte da cidade ou os grupos
étnicos que residiram em dado território, até mesmo realizando
visitas virtuais aos inúmeros museus que disponibilizaram seu
acervo à internet ou mesmo acesso aos mais novos artigos científicos
e didáticos disponibilizados para o público.

Nas aulas em que a internet será utilizada, o professor poderá


propor a pesquisa de determinado conteúdo, esse deve representar
um desafio para o educando, onde sua contribuição será valorizada.
A elaboração de textos autorais, baseados na pesquisa, serão o

60
esperado, no momento em que o aluno domina a linguagem e
adquire o hábito da pesquisa, abandona a simples reprodução do
texto (FONTES, 2011, p. 25). O professor pode incentivar os alunos
na produção autoral dos textos, com base na pesquisa ou imagens
que foram colhidas na internet, dessa forma aflorando nos
educandos a autonomia da escrita e da pesquisa, como sugere os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do Ensino Fundamental,
nos objetivos para o quarto ciclo: “ter iniciativas e autonomia na
realização de trabalhos individuais e coletivos.” (PCN, p. 66)

Evidente que nem todas os alunos de comunidades carentes


possuem o aparelho, a situação de risco é demasiada em algumas
escolas das grandes cidades brasileiras. Ainda mais, quando
tratamos dos assuntos nas periferias, corremos o risco de
impossibilitar qualquer ação tecnológica nestas escolas, devido à
extrema carência da comunidade. Nestas áreas, mais do que em
qualquer outra, será necessário o esforço máximo do professor em
incluir os seus alunos na tecnologia, pois a informação é inclusiva e
seus alunos têm o direito a ela.

2.1 USO DE TECNOLOGIA NAS COMUNIDADES EM RISCO

Faz-se necessário a compreensão do professor da realidade local do


aluno para que se construa um currículo baseado na sociedade em
que está inserido. Para muitos alunos, em situação de risco e que
eventos tão distantes historicamente não fazem sentido, o professor
consciente deve conduzir o educando nos caminhos que ligam os
eventos do passado à sua atualidade. A fragilidade social demanda
uma atenção e dedicação extra do professor e dos demais
profissionais da escola.

O profissional, vezes bem-intencionado, procura diversificar as


ferramentas pedagógicas utilizando os materiais disponíveis da
escola. Quando estes instrumentos estão disponíveis e funcionam de
forma precária ou vezes são ausente, o professor se sente frustrado e
opta por uma aula tradicional. Circe Bittencourt (2008, p. 110)
lembra que o uso de computadores nesta ocasião – onde se fazem

61
ausentes ou precários – pode transformar-se em barreira entre os
alunos que têm acesso ao computador e os que não possuem. O uso
indiscriminado, sem a devida atenção, é instrumento de exclusão
social, sendo assim uma forma de repulsa aos menos favorecidos da
atividade, por conseguinte da sociedade.

Nestas ocasiões, o esforço do professor em introduzir a informática


na comunidade se torna imprescindível e inclusiva. Sendo o
mercado de trabalho atual permeado pela informática, o domínio do
computador e da internet possibilitará a muitos alunos a
desenvolverem as práticas e naturalizar o seu uso,

“Quanto mais cedo uma pessoa for introduzida no mundo da


computação, mais natural será seu comportamento neste novo
contexto, menos temores e preconceitos ela desenvolverá. Além
disso, terá oportunidade de desenvolver numa maior comparação
mental, técnica e efetiva para enfrentar a alta tecnologia ao seu
redor, entendendo as limitações e potencialidade da máquina que se
tornará uma ferramenta de trabalho capaz de ajudá-la na formação e
construção de seus conhecimentos e no desenvolvimento de suas
capacidades lógicas e de sua decisão para solução dos problemas.”
(DINIZ, 2001, p. 64)

Nestes casos, onde a escola não dispõe de computadores, é possível


realizar um trabalho em grupo com os estudantes que possuem
aparelhos celulares, na mesma lógica do trabalho em grupo para
outras atividades educativas. A professora Dra. Susana Zaslavsky
(2015, p. 112) discorre sobre esta forma de trabalho,

“O trabalho em grupo enriquece a reflexão, favorece a descentração,


promove a cooperação, na medida em que as elaborações
individuais contribuem para estruturar as elaborações do grupo. [...]
A escola é um local onde os alunos podem viver regras do ponto de
vista social e desenvolver as noções de cooperação. [...] Isso
promove a construção de conceitos de poder, autoridade,
dominação submissão entre outros, na ação, pela vivência das

62
relações sociais escolares e pela reflexão sobre si mesma e sobre o
outro, sujeito histórico de outros tempos que estuda em história.”

Em alguns casos, a situação financeira do aluno não permite que


possuam celular, nas comunidades de extrema pobreza o professor
terá que improvisar, assumir a manutenção dos computadores da
escola, quando esses existirem. Nestes locais, onde o Estado e os
bem materiais faltarem, estará na mão do professor o ensino
adequado. Esta realidade se comprova ao analisar os dados do
Anuário da Educação Básica 2018 (p. 11), onde apenas 59,3% das
escolas de nível fundamental possuem acesso à internet, mas
somente 49,4% possuem laboratório de informática, ou seja, metade
das escolas do Brasil não possuem nenhum acesso à internet.
Podemos contabilizar ainda 5% de todas as escolas que não
possuem nem energia elétrica.

3 CUIDADOS COM O USO DA INTERNET

A informação é inclusiva, mas demanda cuidado em seu uso. A


afirmação destina-se ao uso irresponsável de qualquer meio de
informação nas aulas, o uso crítico do material disponível na
internet é indispensável, pois nem sempre a notícia ou o fato
registrado é verídico. A má fé e o desconhecimento do que se
escreve na internet são as causas principais das informações falsas.
Já está em curso uma série de Projetos de Lei que proíbem a
disseminação de notícias falsas, as fake News, as penalidades podem
variar de multa até oito anos de detenção.

Os cuidados não se restringem às notícias falsas, mas a alienação


que as informações sem crítica produzem. A submissão da
informação pronta, que não exige reflexão, é criticada por manter a
“cultura de massa” que induzem a individualidade e o consumo
desmedido. Para evitar a leitura equivocada da informatização na
educação, o professor deve ter o cuidado em proporcionar
criticidade aos materiais trabalhados em aula, trazendo para o
paradigma da comunidade que está inserida (BITTENCOURT, 2008,
p. 109). A internet, assim como outra mídia, pode ser veículo da

63
colonização do saber, pois quem produz a mídia e seu conteúdo
pode transmitir uma série de mecanismos que transmitem uma
determinada ideologia, muitas vezes imperceptível ao receptor.
Ocorre muito nos filmes, é possível perceber os tipos e ferramentas
que são usadas para transmitir, na comunicação, determinada
ideologia (SOUZA; SOARES, 2013).

No uso de filmes na educação – ferramenta educativa que muito se


discutiu sobre seus benefícios e que hoje é largamente utilizada –
existe uma série de mecanismo que o professor emprega, tornando
essa mídia efetiva no aprendizado do educando, além de mobilizar
a sensibilidade como força criadora e motivadora dos interesses
humanos. Entrementes, caso não siga algumas normas de utilização,
o vídeo se torna apenas lúdico e algo sem sentido. (SÁ, 1967, p. 14).
Com a internet a criticidade deve ser a mesma, evitando que a
ferramenta se torne apenas uma distração, sendo que o objetivo é
tornar a aula atrativa e divertida para os educandos.

O uso da internet é uma ferramenta educativa, não a forma da


educação em si, ou seja, não é apenas a internet que ensinará, o
professor é o mediador, tomando atenção para atingir os objetivos
propostos no plano de aula, completa a ideia Sirley Diniz (2001, p.
60)

“E por fim, a Informática Educativa, que se caracteriza pelo uso da


informática como suporte ao professor, como um instrumento a
mais em sua sala de aula, no qual o professor possa utilizar esses
recursos colocados à sua disposição.”

Desta forma, devemos ter rigor na escolha de material e das páginas


acessadas para o trabalho dos educandos. O professor deverá estar
atento às referências apresentadas e da veracidade das informações,
demostrando para os alunos onde colher informações confiáveis.

Os aspectos que auxiliam na execução das aulas são voltados ao


tema, os objetivos da aula (objetivos do plano de aula) e as
condições de pesquisa dos alunos. Existem muitas formas de

64
pesquisa e disseminação do conhecimento, Maria Gerlanne Souza
(2013, p. 28), em sua monografia, sugere a criação de blog - O blog é
uma ferramenta que permite a publicação de textos, imagens, fotos,
proporcionando um espaço no qual os professores e alunos podem
disponibilizar conteúdos de aprendizagem e produzir seus próprios
textos (SOUZA, 2013, p. 27) - lista de discussão, troca de e-mails e,
até mesmo, de sites próprios para cada escola, divulgando e
auxiliando na pesquisa dos alunos:

“[...] o professor pode construir o seu próprio site e incluir diversas


interfaces que permitam a socialização do conhecimento com seus
alunos, disponibilizando textos, imagens, animações gráficas, sons e
vídeos que auxiliem no processo de ensino e aprendizagem,
estendendo esse processo para além da sala de aula.”

Assim, definido o tema da aula ou do objeto de estudo (História


antiga Grega, Império Romano, Sociedades africanas, etc.),
considerando os objetivos da aula (identificar, relacionar,
compreender, etc.) o professor poderá delimitar a ferramenta de
pesquisa (sites, blogs, jornais ou revistas eletrônicas, jogos
educativos) a forma de apresentar o trabalho ou a pesquisa
(digitado no site criado, impresso, postado no grupo da sala de
aula), sendo este o momento de compartilhar e apresentar o
trabalho, evidenciando a tomada de consciência, obtendo a resposta
do professor na mesma plataforma, com as devidas observações.

5 CONSIDERAÇÔES FINAIS

Podemos observar que, assim como outra ferramenta educacional, o


uso da internet se faz necessário e que agrega na tomada de
consciência do educando. Os desafios da educação atual perpassam
o incentivo aos alunos à criticidade de pensamento e de escolhas,
não somente o preparo para o mercado de trabalho, mas de fazer o
discente sujeito de sua história e que mobilize forças
transformadoras na sua vida.

65
Muitos já manejam com habilidade os computadores e dominam a
internet, sendo esta a lógica atual e do trabalho, mas devemos
pensar naquelas pessoas que não têm acesso diário a estas
tecnologias e que concorrem a vagas de emprego. Neste caso, o
professor tem o encargo maior de proporcionar a vivência e
preparação destes indivíduos, dando-lhes alguma chance de
concorrência ou para proporcionar acesso ao conhecimento
armazenado na rede.

Porém, o professor deve ter alguns cuidados no uso da internet


como instrumento de educação, como criticidade na escolha dos
temas, das formas de pesquisa e da divulgação/sociabilização dos
resultados. O uso crítico, voltado para a tomada de consciência, não
somente usando o comutador para achar uma informação, mas
como a forma de pesquisa, a lógica em juntar os componentes,
interpretar e formular algo racional com o retirado da internet. O
professor auxiliará, na busca pelo conhecimento, o gosto pela
pesquisa, na construção e no manuseio de recursos digitais (sites,
blogs, etc.), preparando o aluno para o mundo globalizado e
informatizado da contemporaneidade.

Assim, os mecanismos de absorção do conhecimento foram


alterados na pós-modernidade, com o uso da televisão e da internet,
a velocidade e o fluxo constante de informação. Não podemos
privar a escola desta mudança, devemos usar a tecnologia em prol
da educação, formando pessoas aptas a interagirem e descobrirem
novos rumos para a tecnologia.

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Rafael Noschang Buzzo – Pós-graduando em Metodologia do


Ensino de História – rnbuzzo@gmail.com -
http://lattes.cnpq.br/1380326098437307

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redução de 2,88% no número de acessos em operação na telefonia
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66
<http://www.anatel.gov.br/dados/destaque-1/283-brasil-tem-236-2-
milhoes-de-linhas-moveis-em-janeiro-de-2018> acesso: 13 agosto
2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria. 68. Brasília, 2012. CGIBr,


Comitê Gestor da Internet no Brasil; Acesso à Internet por banda
larga volta a crescer nos domicílios brasileiros. Disponível em:
< https://cgi.br/noticia/releases/acesso-a-internet-por-banda-larga-
volta-a-crescer-nos-domicilios-brasileiros/> acesso em: 15 agosto
2018.

DINIZ, Sirley N. F. O uso das novas tecnologias em sala de


aula. 2001. Dissertação (Mestrado Engenharia de Produção) –
Universidade Federal Santa Catarina, Florianópolis.

FONTES, M. C. S. A Internet em Sala de Aula: uma possibilidade


para aprendizagem contemporânea. 2011. Monografia
(Especialização em Mídias na Educação) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

OLIVEIRA, Patrícia. Métodos e Técnicas de Ensino na Disciplina


de História: Superando o ensino tradicional. 2013. Monografia
(Especialização em Educação) – Universidade Tecnológica Federal
do Paraná.

SÁ, Irene Tavares. Cinema e Educação. Rio de Janeiro, Editora Agir:


1967.

SOUZA, Maria Gerlanne. O uso da Internet como Ferramenta


Pedagógica para os Professores do Ensino Fundamental. 2013.
Monografia (Licenciatura em informática) - Universidade Aberta do
Brasil e Universidade Estadual do Ceará, Tauá, 2013.

SOUZA, Polyana Jessica do Carmo de; SOARES, Valter Guimarães.


CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA. XXVII simpósio nacional de
História. RN: ANPUH, 2013.

VALENTE, José. Uso da internet em sala de aula. Educar, Curitiba,


n. 19, p. 131-146. 2002. Editora da UFPR.

67
REPENSANDO O TRADICIONAL: A
NOVA HISTÓRIA POLÍTI CA E O
ENSINO DE HISTÓRIA

ERNESTO PADOVANI NETTO


DANIEL RODRIGUES TAVARES

A história política costuma ser imediatamente vinculada aos


trabalhos que buscam como objetos de pesquisas relações sociais
constituídas no âmbito do “poder”. Esta percepção não nos parece
errônea, porém o que tem se debatido já há algum tempo, é a
compreensão do que se entende por “poder”, para isso, o enfoque
dado a estes estudos, podem localizá-los dentro da velha história
política, chamada também de história tradicional ou positivista, ou
dentro do campo da nova história política.

A história política gestada no século XIX viu seus pressupostos


ruírem, inicialmente a partir das críticas da escola dos Annales, a
qual propôs novos objetos e abordagens dentro da historiografia.
Vista como ultrapassada por compreender a história a partir do
Estado, e de suas figuras proeminentes como reis, militares e
governantes em geral, a história política passou décadas sendo
estigmatizada, pois falar de poder era atrelado à uma visão
tradicional, ao mesmo tempo em que muitos historiadores
migravam para campos vistos como mais modernos, como estudar a
história da loucura, dos costumes ou do imaginário.

Pelo menos nas últimas quatro décadas o estudo da história ligado


ao poder vem sofrendo grandes reformulações e passou a ser
chamado de nova história política, essa inovação veio no sentido de
ampliar a noção de poder para além dos espaços ligados à figura do

68
Estado e de seus representantes, mas entendê-lo agora dentro de
relações estabelecidas no cotidiano, como por exemplo na família ou
em sindicatos, fugindo assim dos “grandes personagens históricos”
focados outrora, esse novo olhar possibilitou aos
historiadores, observarem as relações de força no interior da
sociedade analisando indivíduos ou coletivos, ainda que pareçam
anônimos do antigo ponto de vista dos grandes feitos. Sobre as
transformações na história política ver: “A política será ainda a
ossatura da História?” (LE GOFF, 1975).

Francisco Falcon nos diz o seguinte a cerca desta questão:

“A historiografia política passou a enfocar, nos anos 70, a Microfísica


do poder, na realidade as infinitas astúcias dos poderes em lugares
históricos pouco conhecidos dos historiadores — família, escola,
asilos, prisões, hospitais, hospícios, polícia, oficinas, fábricas etc.; em
suma, no cotidiano de cada indivíduo ou grupo social” (FALCON,
1997, p. 114).

Ao citar a concepção de “microfísica do poder”, Falcon claramente


revela a influência de Michel Foucault na produção historiográfica,
ver “Microfísica do poder” (FOUCAULT, 1979). Para além dos
novos temas, a nova história política reelaborou as abordagens
mesmo em temáticas ligadas ao poder e tratadas tradicionalmente
pela história positivista, como a figura de governantes, as guerras e
as instituições vinculadas ao Estado, estes focos de investigação
também retornaram com intensidade, porém não mais vistas pela
ótica do heroísmo e do protagonismo em termo de façanhas, mas
sim analisadas pelo prisma de suas contradições.

Optamos por trabalhar com a história regional/local, inclusive com a


escolha de uma autora radicada na região Amazônica: a professor
Magda Ricci e o seu texto “Cabanagem, cidadania, e identidade

69
revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835
e 1840”. Pensamos a perspectiva de trabalhar diretamente com os
textos de historiadores, assim como já apresentados nas propostas
de intervenções em sala de aula anteriores, uma vez que, como
apontamos, o livro didático apresenta problemas em relação às
especificidades das regiões brasileiras. Além de que, o ensino de
História, como um lugar de fronteira entre a educação básica e a
produção acadêmica (MONTEIRO, 2007, p. 9), não pode
desconsiderar o conhecimento construído na academia, apesar de
não ser prudente imaginá-lo como superior em relação aos saberes
que se podem produzir na escola.

O movimento cabano promoveu 30 mil mortes dentre cabanos e


seus inimigos. A Amplitude territorial do movimento vai do litoral
norte ao nordeste, chegando às fronteiras do Brasil central, assim
como causou “distúrbios internacionais na América caribenha,
intensificando um importante tráfico de ideias e de pessoas”. Os
cabanos se autodenominavam patriotas, que não necessariamente
significava ser brasileiro (RICCI, 2007, p. 6), até porque o contexto o
qual se vivia era de afirmação da nacionalidade brasileira e de
preocupação com a centralização e a unidade do território. A
Cabanagem ganhou notoriedade e relevância, dentre muitos
motivos, também porque foi o único movimento de então que
conseguiu tomar o poder, e na capital de uma província, a do Grão
Pará (MOURA, 2013, p. 1). Magda Ricci discute o surgimento de
uma identidade entre os cabanos que se amalgamou a partir do ódio
comum ao “mandonismo branco e europeu” (RICCI, 2007, p. 7). É
interessante discutir com os discentes as visões diferentes que se
construíram sobre a Cabanagem. Para Domingos Antônio Raiol, o
Barão de Guajará, que escreveu sobre o movimento ainda no século
XIX, foi um motim político. O Barão de Guajará vê a Cabanagem
pela ótica do Estado/Império, ou pela falta de pulso/poder/controle
na repressão ao movimento. Nas décadas de 1920 e 1930, os cabanos
deixam de ser “sediciosos”, viram “patriotas”, “adeptos da causa

70
brasileira”. Construía-se uma visão positiva a respeito do tema,
principalmente na visão Henrique Jorge Hurley (RICCI, 2007, p. 8).
Em 1930: Caio Prado Júnior traz uma versão de linha marxista, na
qual os cabanos são vistos como “rebeldes primitivos”. Em 1977,
militante do PCB, Ricardo Guimarães, sugere que as “maiores
tentativas revolucionárias da esquerda brasileira” foram a
Cabanagem e a Guerrilha do Araguaia – lutas anti-imperialistas,
num contexto de luta contra a ditadura militar (RICCI, 2007, p. 8).
Na década de 1980, Carlos Rocque, José Júlio Chiavenato e Pasquale
di Paolo lidam com a Cabanagem como “epopeia de um povo”, o
“povo no poder” e como “revolução popular”, respectivamente
(RICCI, 2007, p. 10), dando uma importância central aos cabanos na
condução do processo revolucionário.

De janeiro de 1835, a maio de 1836, Clemente Malcher, Francisco


Vinagre e Eduardo Angelim, foram os líderes cabanos que estiveram
à frente da presidência da província no Pará. Como nos fala Magda
Ricci (RICCI, 2007), ao longo do seu texto, sempre que os líderes
ordenaram que os cabanos entregassem as armas e aceitassem as
ordens do governo regencial, uma grande parte desses se recusava a
acatar o arrefecimento, continuava na linha de frente do combate,
desautorizavam o líder e aclamavam outro como presidente da
província. A autora chama isso de “experiência de classe”, um
aprendizado de luta, que nasce em meio a relação com os líderes
(RICCI, 2007, p. 13).

Após a retomada de Belém pelas tropas regenciais, o general Soares


d’Andréa foi nomeado para a presidência da província e assumiu a
responsabilidade de reconstruir o Grão-Pará e combater os cabanos.
O próprio Andréa dizia que o recrutamento de soldados para a
província havia de ser feito fora do Pará, pois havia um “pacto
secreto” entre os habitantes da Amazônia. De maio de 1836 ao ano
de 1840, os cabanos rumaram ao interior da província e até

71
ultrapassaram seus limites, mantendo viva a luta cabana, a qual
Magda Ricci relaciona a identidade revolucionária com uma noção
de cidadania que se vincula a não aceitação das imposições e dos
desmandos, imputando uma preponderância às pessoas que
construíram o movimento até maior do que de seus líderes:

“É neste rico mundo que os cabanos criaram seus próprios


mecanismos construtores de sua cidadania. É esta cidadania que o
maior repressor dos cabanos, o General Soares Andréa, vislumbrava
no povo da Amazônia e seu “pacto secreto”.

“Depois de cinco anos de luta, os cabanos criaram ódio aos brancos


e às autoridades impostas, aprendendo a amar a aclamação popular
e a revolução infinita. Cultuavam a beleza revolucionária, mas
viveram outras mazelas: a fome, as doenças, as mortes e a
instabilidade da guerra” (RICCI, 2007, p. 28).

Sugerimos como atividade a pesquisa na qual os alunos encontrem


as reconstruções da Cabanagem em períodos mais recentes, como
exemplo o Memorial da Cabanagem, no Governo de Jader Barbalho,
nos anos 1980, a Aldeia Cabana e o Governo Cabano de Edimilson
Rodrigues na virada do século XX para o XXI, para discutir
imaginário e memória sobre o movimento.

Considerações finais

Compreendemos que a dicotomia entre pesquisa e ensino, assim


como, entre saber acadêmico e saber escolar não contribui para o
desenvolvimento da ciência histórica, promovendo o afastamento
do grande público em relação à História. Assim, apresentamos
possibilidades de aproximação, de conexões entre o espaço de

72
produção da academia, que gera textos técnicos, com o locus do
ensino da educação básica, onde podemos utilizar o conhecimento
produzido academicamente como uma ferramenta que auxilia na
produção conhecimento histórico escolar.

Referências

Ernesto Padovani Netto - Licenciado e Bacharel em História pela


Universidade Federal do Pará (UFPA-2006). Concursado como
docente da Secretaria Executiva de Estado de Educação (SEDUC),
atuando, na modalidade Educação Especial do Estado do Pará no
ensino de História para alunos surdos. É especialista em Educação
especial com ênfase em inclusão pela Faculdade Ipiranga (2013), e
Mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de
História (PROFHISTÓRIA), polo da UFPA, - Campus
Ananindeua. Atualmente é doutorando em História Social da
Amazônia pelo PPHIST – UFPA. E-mail: ntpadovani@gmail.com.

Daniel Rodrigues Tavares - Bacharel e licenciado pleno em História


pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2007). Especialista em
“Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial” pela Faculdade
Integrada Brasil Amazônia – FIBRA (2013). É Mestre pelo Programa
Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA), pela UFPA,
no Campus de Ananindeua. Professor da rede pública de ensino,
pela Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC), e pela
Secretaria de Educação do Município de Belém (SEMEC). E-
mail: trdan@ig.com.br.

LE GOFF, Jacques. A política será ainda a ossatura da História?


In: O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições
70, 1975. p. 221-242.

73
FALCON, Francisco. História e Poder. In: Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia. CARDOSO, C. F. S.& VAINFAS, R.
(org.). Rio de Janeiro: Campus, 1997.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre história e


memória. In: Gilvan Ventura da Silva; Regina Helena Silva e Simões;
Sebastião Pimentel Franco. (Org.). História e Educação: territórios em
convergência. 1ª Ed. Vitória (ES): GM/ PPGHIS/UFES, 2007.

MOURA, Daniele Figuerêdo. As faces da “malvadeza”: os cabanos na


visão do presidente Soares d’Andréa e os embates pela retomada do Grão-
Pará no contexto da Cabanagem. Anais do XXVII. Simpósio Nacional de
História. Natal, 2013, p. 1-17.

RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania, e identidade revolucionária: o


problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, vol. 11,
n. 22. 2007, p. 5-30.

74
CINEMA E MEDIEVO:
MEDIEVALIDADE E REMI NISCÊNCIAS
MEDIEVAIS EM LADYHAW KE (1985)
E O NOME DA ROSA (19 86)
MARCELO GONÇALVES FERRAZ

INTRODUÇÃO

O medievo tem sido cenário de diversas produções


cinematográficas, desde o surgimento do cinema em fins do século
XIX. Este mesmo veículo, a mídia fílmica, pensada inicialmente
como produto de consumo – desde a Exposição Universal de Paris
de 1900 até o surgimento e hegemonia do cinema comercial de
Hollywood – é também ferramenta do processo ensino-
aprendizagem, especialmente de História.

Entretanto, justamente pelo fato de ser um produto que visa


obtenção de lucro, podemos observar nos roteiros de diversos
produtos fílmicos, uma fuga da narrativa histórica em direção aos
anseios do produtor, que tem no filme uma fonte de investimento.
Com o objetivo de que esse investimento se torne lucrativo e possa
gerar dividendos, os roteiros abandonam a narrativa histórica em
prol da fantasia, especialmente no que se refere à adição de
situações de romance, aventura e comicidade.

O objetivo de nosso trabalho é mostrar como o filme, excelente


instrumento pedagógico, quando contextualizado com a Idade
Média, pode estar carregado do que Macedo (2009) chamou de
“Medievalidade” ou “Reminiscências Medievais”. Para isso,
escolhemos duas películas produzidas em meados da década de
1980, período de grande interesse pelos estudos medievais.

Amparados nas pesquisas de Marc Ferro (2010), Robert Rosenstone


(2010), Victor Reia-Baptista (1995) e Peter Burke (1999), traçaremos

75
um breve panorama sobre a temática Cinema e História,
concatenando com os estudos de Macedo (2009) e Franco Junior
(2001), sobre as considerações relativas ao contexto histórico da
Idade Média.

EDUCAÇÃO, CINEMA E MEDIEVO

Alves (2006, p. 290) sintetizou o cinema como “a arte total”, capaz


de unir, em um único veículo, diversas outras expressões artísticas,
como a música, a pintura e a dança, sendo, dessa forma, a mais
completa arte do século XX. Da mesma maneira, de acordo com o
autor, o cinema é uma forma de mediação estética a serviço da
indústria de entretenimento, funcionando como experiência sócio-
catártica para as massas.

Além disso, o cinema, desde seus primórdios, tem funcionado como


repositório de costumes, comportamentos e conhecimentos, ditando
moda, influenciando mentalidades e, principalmente, aglutinando
saberes. Duarte (2009) chama a atenção para a prática social
objetivada ao frequentar o cinema, criando novas conexões sociais,
levando em conta a importância da educação como prática social.

A autora enfatiza que ver filmes é tão importante, do ponto de vista


social e educacional, quanto ler livros (DUARTE, 2009, p. 16). Além
disso, segundo a autora, grande parte do conhecimento não-formal
que adquirimos no decorrer de nossas vidas é oriunda do que
captamos das imagens cinematográficas. Da mesma forma, grande
parte dos conceitos que criamos sobre o amor romântico,
sexualidade ou relações familiares são advindas do que aprendemos
com os filmes.

Assim, o que poderemos esperar do conhecimento não-formal


adquirido do espectador comum sobre uma temática tão ampla, rica
e conflituosa como a Idade Média? Que concepção de Medievo será
criada por um público que só o conhece por meio de realidades
apresentadas nas telas do cinema?

Esse referido conflito de saberes nos leva a observar o que nos diz
Franco Junior (2001) sobre a construção da ideia do que seria a Idade

76
Média. Segundo o autor, o próprio termo “Idade Média” não seria
nada além de um rótulo, criado a posteriori, com o intuito de
diminuir, menosprezar e desqualificar o período ali compreendido.
Ora, grande parte desse (des)conhecimento ainda observado hoje
advém desses conceitos surgidos ainda no século XVI. O cinema,
como qualquer outro meio de comunicação de massa, acaba
tornando-se veículo desse (des)conhecimento, ajudando a propagar
conceitos errôneos e preconceituosos sobre um período da história
humana que, como qualquer outro, é possuidor de avanços e
retrocessos.

Além disso, o cinema detém o poder de funcionar como propagador


de ideologias, às vezes evidentes, e por vezes inseridas nas
entrelinhas. Ferro (2010) fez uma análise minuciosa dessa
potencialidade latente dos filmes quando observou tanto o cinema
soviético e sua relação de legitimação recíproca entre regime político
e cinema, bem como o cinema norte-americano e sua escrita fílmica
histórica, elevando a Guerra da Secessão ao patamar de “ato
fundador da história dos Estados Unidos” (FERRO, 2010, p. 191).

Ainda em relação ao poder ideológico inserido nos filmes,


observamos a questão da Pedagogia Afirmativa, defendida por
Reia-Baptista (1995), que, por termos o cinema norte-americano
como maior produtor cinematográfico, esbarraremos sempre no
discurso do texto fílmico em harmonia com os valores e discursos
daquela sociedade.

Quanto à temática Cinema e História, Rosenstone (2010) sintetizou a


capacidade do cinema no campo do ensino de história quando nos
disse que “A tela certamente não proporciona uma janela limpa para
um passado extinto; no máximo fornece uma construção de
realidades que se aproximam daquilo que uma vez existiu”
(ROSENSTONE, 2010, p. 234). Aqui se encontra, talvez, a maior
dificuldade no desenvolvimento de conceitos e preconceitos
difundidos pelo cinema e adquiridos no cinema: a janela em que se
projeta o passado (a tela do cinema) é apenas uma reconstituição do
passado – carregada de ideologias e conceitos, por vezes errôneos de
seus realizadores – e não o passado em si.

77
Enquanto Ferro (2010) considerou o filme como uma contra-análise
da sociedade, Rosenstone (2010) o considerou como uma contra-
análise do passado. Além disso, o autor defendeu a ideia de chamar
os cineastas de historiadores, discorrendo sobre Roberto Rossellini e,
principalmente, Oliver Stone, classificando-o como um dos maiores
cineastas/historiadores da história recente dos Estados Unidos da
América.

Burke (2004) faz uma análise sobre a facilidade/dificuldade na


produção de filmes históricos e conclui que “[...] é relativamente
difícil encontrar um filme que trate de um período anterior ao
século 18 que faça uma tentativa séria de evocar uma época passada
[...]” (BURKE, 2004, p. 202). Nosso recorte de pesquisa repousa em
uma linha temporal vivida antes do século XVI. Ou seja, as
dificuldades na concepção e geração de um produto, inicialmente
pensado para o consumo, como o filme, é infinitamente
multiplicado, quando se pensa esse mesmo produto como
ferramenta de processo ensino-aprendizagem sobre uma temática
localizada em um passado distante, como o Medievo. Devido a isso,
Burke complementa seu pensamento, afirmando que “A maioria dos
bons filmes históricos trata do passado relativamente recente”
(BURKE, 2014, p. 206), o que não diz respeito aos filmes que tratam
da Idade Média.

Dessa forma, podemos concluir que além da dificuldade em se


estabelecer uma relação fidedigna entre cinema e história, devemos
considerar as ideologias defendidas na mídia fílmica, bem como a
pedagogia inserida e a potencial informação a ser disseminada no
espectador comum.

MEDIEVALIDADE E REMINISCÊNCIAS MEDIEVAIS

Os termos “Medievalidade” e “Reminiscências Medievais” foram


cunhados por Macedo (2009), que os conceituou como referências
fantasiosas ou reais sobre o Medievo. Em relação à temática Cinema
e Medievo, Macedo (2009) nos lembra que embora sejamos levados
a acreditar que qualquer filme de temática medieval faça referência

78
a fatos históricos daquela época, somos forçados a considerar as
diversas mediações que existem entre a obra e o espectador,
fazendo-nos distinguir a Idade Média exibida nos filmes de a Idade
Média presente nos livros. Ou seja, a Idade Média propriamente
histórica e a ideia do passado medieval visto com o olhar da
posteridade – normalmente preconceituosa, herança do
Renascimento do século XVI; ou folclórica, herança do romantismo
do século XIX.

Dessa forma, observam-se duas possibilidades de exposição do


medievo: reminiscências medievais (que de alguma forma
representa algo da realidade histórica da Europa medieval) e
medievalidade (uma referência estereotipada da Idade Média).

O autor observa que a partir da década de 1960, por conta do


movimento hippie e da contracultura, a medievalidade tem inspirado
a indústria musical. Podemos encontrar referências em discos de
rock dos anos 1970, bem como em bandas de Heavy Metal dos anos
1980. A década de 1980 foi particularmente interessante, no que diz
respeito a ligação criada entre o Medievo e o Heavy Metal. A
revista Heavy, de outubro de 1986, trazia uma matéria
intitulada Venom – a vingança dos visigodos do Black Metal. Na matéria,
podia-se ler alguns trechos como: “Não há nada de macio no
Venom. Tudo é violento e forte”. Seus integrantes assumiram nomes
ditos medievais: Cronos, Abbadon e Mantas, e no seu visual
utilizavam “[...] armas brancas e símbolos cabalísticos da Idade
Média” (HEAVY, 1986, p. 17).

Ou seja, era comum a apropriação do que se acreditava ser medieval


(inclusive o próprio termo denotava algo selvagem e violento), bem
como relacionar os povos germânicos como pilhadores e assassinos.
A imagem que se queria criar dos integrantes de bandas de Heavy
Metal era a de bárbaros sanguinários. Nada melhor do que
sociedades da Idade Média, de acordo com a mentalidade da época.

Este medievo, inspirado na fantasia, ganhou grande popularidade e


influenciou a literatura, que se utilizou de dragões, monstros e
cavaleiros em suas narrativas. Prova disso é o enorme sucesso

79
alcançado por obras como O senhor dos anéis e O Hobbit, livros
transformados em filmes recentemente. Dessa forma, o cinema sobre
o Medievo deve ser analisado no contexto da medievalidade e não
da historicidade medieval.

Além disso, segundo o autor, os filmes com temática medieval


podem ser classificados em pelo menos três categorias: os filmes de
historiadores; os filmes de personagens históricos e os filmes de
aventura. Os filmes de aventura não apresentam qualquer
compromisso com a fidelidade histórica e podem estar carregados
de ideias errôneas sobre o Medievo. Normalmente são enredos
situados em algum ponto da Idade Média elaborados a partir de
duas temáticas: romance e ação, nos quais certamente iremos
encontrar cidades antigas, muralhas e cavaleiros com armaduras. A
época e o local não importam para o desencadeamento da aventura,
caracterizando, dessa forma, exemplos de medievalidade.

As reminiscências medievais podem ser observadas principalmente


em filmes de historiadores ou de personagens históricos, pelos
vestígios do que um dia pertenceu ao Medievo, alterados ou
transformados com o passar do tempo. Os filmes de personagens
históricos encontraram campo profícuo para a elaboração de
roteiros cinematográficos. De acordo com o autor, Joana d’Arc foi
certamente a personagem mais retratada, desde o surgimento do
cinema. Outras figuras sempre recorrentes são Rei Artur, Robin
Hood e Henrique V. Entretanto, o que se observa comumente é que
a maioria dos filmes sobre o medievo estão situados após o século
XI, e as temáticas preferidas estão relacionadas à peste, cruzadas,
vikings e guerras.

LADYHAWKE (1985) E O NOME DA ROSA (1986)

Franco Junior (2001) chama a atenção, no prefácio de sua obra, para


o fato de que na década de 1980 começava a haver no Brasil um
interesse crescente pela temática medieval. Os filmes escolhidos
para discorrermos sobre o assunto foram produzidos justamente
nesse período, meados da década de 1980.

80
Ladyhawke (1985), que teve como subtítulo no Brasil O feitiço de
Áquila, parte da premissa de ser um filme contextualizado no
medievo. É um bom exemplo de Medievalidade presente no cinema,
pois é um filme de ação, com boa dose de fantasia, sendo marcado
pelo romance entre seus protagonistas.

O filme nos leva a crer que seu contexto se passa na Europa


medieval. Em seu enredo, Phillipe Gaston, um ladrão conhecido
como "O Rato", escapa das masmorras do Bispo de Áquila pouco
antes de sua execução. Logo de início encontramos um dos temas
favoritos da indústria cinematográfica sobre o Medievo, segundo
Macedo (2009), o poder da Igreja. Gaston é recapturado pelos
guardas do bispo, mas acaba sendo salvo por Etienne Navarre, que
planeja utilizar o conhecimento de Gaston para entrar em Áquila e
assassinar o bispo.

Após uma emboscada dos guardas do Bispo, o falcão que


acompanha Navarre é atingido por uma flecha e levado por Gaston
para ser tratado por um ex-padre chamado Imperius. Quando
Gaston entra no aposento em que o falcão foi deixado e encontra
uma mulher com uma flecha presa ao seio, descobre que o casal foi
amaldiçoado pelo bispo de Áquila. A maldição consiste em Navarre
transformar-se em lobo durante a noite e sua amada em falcão
durante o dia, de modo a estarem sempre separados, apesar de
juntos, impossibilitando-os de qualquer encontro sexual, talvez aqui
reminiscências da temático sobre o amor cortês.

O enredo traz elementos da fantasia, tão bem explorados hoje por


outros títulos. Entretanto, embalado em uma trilha sonora rock and
roll. Um dos responsáveis pela trilha sonora foi Alan Parsons,
famoso na década de 1970 pelo grupo de rock progressivo The Alan
Parsons Project, e por ter trabalhado na produção do disco The dark
side of the moon (1975), da banda Pink Floyd. Outro fator que chama
a atenção em Ladyhawke é o figurino dos guardas de Áquila, mais
condizente com a temática Star Wars (1979) do que com o medievo
propriamente dito. O diretor, Richard Donner, seria responsável por
filmes de ação que fizeram grande sucesso anos depois, iniciados
com Máquina mortífera (1987).

81
Dessa forma, Ladyhawke (1985), acaba se tornando um bom exemplo
da “medievalidade” destacada por Macedo. Podemos observar no
filme aqui referido que a Idade Média não passa de uma alusão,
uma referência estereotipada, longínqua. Entretanto, não podemos
nos esquecer que “[...] o propósito do filme não é [...] estimular uma
reflexão sobre o passado, mas divertir [...]” (MACEDO, 2009, p. 19).
Dessa forma, Ladyhawke cumpre seu papel.

Em relação às “reminiscências medievais”, o autor as defende como


“formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao
Medievo [...]” (MACEDO, 2009, p. 15). Ou seja, monumentos
arquitetônicos, festividades, costumes populares, entre outros. Um
bom exemplo é o filme O nome da rosa (1986), dirigido por Jean-
Jacques Annaud, a partir da obra de Umberto Eco, e exaustivamente
utilizado em artigos sobre o Medievo.

Em O nome da rosa (1986), podemos, entre outras características,


observar a forte religiosidade, característica do homem do Medievo.
Além disso, tendo como cenário um mosteiro, o filme é positivo em
nos mostrar o ambiente de clausura que levava os religiosos a
desenvolver ideias misóginas, associando a figura da mulher ao mal.
A própria rivalidade entre o monge conservador, que vê o diabo em
tudo, e William de Baskerville, defensor das ciências, é uma clara
alusão ao ocaso do Medievo e a chegada de uma era da razão e das
luzes.

Macedo (2009, p. 27) chama a atenção para a dificuldade na


produção de filmes oriundos de obras literárias como no caso de O
nome da rosa (1986), devido as divergências observadas na
transposição do enredo do livro para as telas. Silva (2011) explica
que o diretor Jean-Jacque Annaud, logo no início da película,
adverte o espectador sobre o filme ser um trabalho baseado no livro
de Umberto Eco, mas, não necessariamente uma transposição literal
do mesmo. Segundo a autora, nos créditos de abertura surge na tela
o aviso de que o filme é um palimpsesto do livro. Ou seja, um texto
que foi apagado para que outro fosse escrito.

82
No enredo do filme, que se passa em 1327, o monge franciscano
William de Baskerville e seu pupilo Adso von Melk, chegam a um
mosteiro no norte da Itália e passam a investigar uma série de
assassinatos ocorridos no local. Para muitos monges ali presentes os
crimes estão sendo cometidos pelo demônio. Para William de
Baskerville os crimes não são oriundos do sobrenatural. A premissa
principal da trama é o embate entre a religiosidade e a ciência. Entre
a fé e a razão. O filme se torna uma pintura na qual observamos a
transição da Idade Média, de mentalidade deliberadamente
religiosa, para uma nova era, calcada na razão e nas ciências. E ao
final da película podemos observar a vitória do raciocínio sobre a
crença.

De fato, O nome da rosa (1986) cumpre seu papel de ser objeto de


entretenimento tão bem quanto Ladyhawke (1985). As duas fontes
fílmicas enquadram-se nos conceitos gerados por Macedo (2009).
Convém observar que qualquer produção cinematográfica sobre o
Medievo estará impregnada de Reminiscências medievais e de
Medievalidade em graus diversos, mas nenhuma terá apenas uma
destas características. Em algum momento uma produção
impregnada de Medievalidade poderá apresentar alguma
Reminiscência Medieval, bem como o contrário. Esse detalhe mostra
bem o potencial que os filmes têm no que concerne ao ensino de
história. Em especial, ao ensino da Idade Média.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observando o contexto atual podemos observar que o Cinema está


entrelaçado ao ensino de História. Desde as primeiras projeções,
personagens históricos foram retratados nas telas, levando-nos, por
vezes, a crer que o cinema surgiu para narrar a História.

O ensino de História atualmente encontra-se favorável à utilização


de novas tecnologias na sala de aula. Entre essas tecnologias citamos
o cinema, graças ao seu poder de “efeito de realidade”, sendo
considerado inclusive seu poder de prender a atenção dos alunos.

83
Macedo (2009) discorreu sobre a potencialidade do cinema no
processo ensino-aprendizagem sobre o Medievo, o que nos faz
observar como esse período é escolhido por muitos produtores
cinematográficos, ávidos por obtenção de lucros, utilizando-se de
dragões, cavaleiros, donzelas e castelos.

Dentro deste contexto, Macedo (2009) nos fala sobre a


Medievalidade e as Reminiscências Medievais, ou seja, o Medievo
sonhado e o Medievo histórico. O cinema, como repositório de
cultura e instrumento de obtenção de conhecimento, mostra-nos
vários exemplos destas potencialidades.

As produções cinematográficas aqui expostas caracterizam-se por


apresentar as propriedades definidas pelo autor citado. Produzidas
no mesmo período, meados dos anos 1980, os
filmes Ladyhawke (1985) e O nome da rosa (1986) nos permitem
observar a construção de um medievo sonhado, habitado por
cavaleiros e damas em busca do amor puro, contra as forças
tirânicas que teimam em querer reinar. Da mesma forma, podemos
observar o duelo entre a fé e a ciência, Deus e o homem. Um embate
que irá caracterizar a perda da hegemonia pela Igreja e a ascensão
do pensamento científico, a chegada da era das luzes em detrimento
da escuridão.

Assim, relacionamos os conceitos desenvolvidos por Macedo (2009),


uma pequena exposição que se mostra profícua, quando
observamos o grande manancial de títulos cinematográficos que
abordam esse período tão fascinante e controverso, o Medievo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através


do cinema. Londrina: Praxis, 2006.

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru:


Educs, 2004.

DUARTE, Rosália. Cinema & educação. Belo Horizonte: Autêntica,


2009.

84
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade média: nascimento do


ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.

MACEDO, José Rivair. A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê


Editorial, 2009.

REIA-BAPTISTA, Vitor. Pedagogia da Comunicação, Cinema e


Ensino: Dimensões Pedagógicas do Cinema. In: Educacion y médios
de comunicacion em el contexto Iberoamericano. Universidade
Internacional de Andalucia, 1995.

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história.


São Paulo: Paz e Terra, 2010.

SILVA, Edlene Oliveira. Cinema e ensino de história: a Idade Média


em O Nome da Rosa de Jean-Jacques Annaud. O Olho da História,
n. 17, dez. 2011.

85
NATUREZA E ENSINO DE HISTÓRIA
EM SANTA IZABEL DO PARÁ

LIGIA MARA BARROS RIBEIRO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta pesquisa tem por objetivo aplicar um estudo com os alunos do


ensino médio em Santa Izabel do Pará por meio do resgate das
memórias dos moradores mais antigos da cidade sobre as águas
(rios e igarapés urbanos e o rio Caraparu que compõe a bacia
hidrográfica desse município) para que a partir da análise de tais
falas compreendam as relações e usos estabelecidos entre esses
sujeitos com o meio ambiente, estimulando seu olhar sobre a
natureza.

Com tal perspectiva, pretendemos trabalhar a partir das demandas


percebidas no presente sobre abastecimento de água potável e a
poluição dos rios e igarapés urbanos, realizando uma pesquisa que
promova o resgate das memórias de moradores antigos de Santa
Izabel do Pará, para compreender a relação destes com o espaço
natural que existia anteriormente, as águas, onde os alunos utilizem
de entrevistas e fotografias para produzir narrativas históricas que
sirvam para formar uma consciência crítica sobre a realidade em que
vivem, aproximando-os de seu lugar e construindo assim uma forte
identidade destes estudantes com sua cidade e com a natureza nela
existente, tornando o ensino de história mais significativo e
estimulante. Desenvolveremos tal proposta de trabalho na Escola
Estadual de Ensino Médio Professora Marieta Emmi, localizada na
Rua 7 de Janeiro, bairro Santa Terezinha, na cidade de Santa Izabel
do Pará.

Temos como proposta de produto a organização de um e-book no


qual sejam publicados os textos produzidos pelos alunos sobre a
pesquisa realizada, articulando as entrevistas coletadas com a

86
análise das referências bibliográficas existentes sobre Santa Izabel do
Pará, para que os mesmos possam contribuir com a produção da
história da cidade por meio de um estudo que leve em conta um
aspecto pouco evidenciado nas pesquisas realizadas anteriormente,
que seria a natureza, especificamente os rios e igarapés que cortam a
cidade e a comunidade de Caraparu, possibilitando aos alunos
envolvidos na pesquisa e a todos os leitores que este livro digital
atinja, uma referência sobre a história de Santa Izabel do Pará e o
meio ambiente.

Levantar tais questões no ensino de história possibilita que os


alunos através das entrevistas feitas com os moradores antigos de
Santa Izabel do Pará e da leitura e análise das obras já produzidas
sobre a história dessa cidade, venham a conhecer mais sobre a
história deste lugar, estabelecendo reflexões sobre as relações
vivenciadas entre a sociedade e o meio ambiente que o cerca,
especificamente, os rios e igarapés urbanos e das comunidades que
formam o município numa temporalidade que vai do final do século
XIX e até o início do século XXI.

Ao propor este estudo, destacamos sua grande relevância para o


ensino da história por alguns fatores. Primeiro por desenvolver nos
alunos uma percepção de pertencimento ao lugar, preservando e
valorizando a memória e a história de sua cidade. Luiz Reznik (2002,
p. 3) constata que o exercício da história local está relacionado à
ideia de pertencimento, num processo de identificação que constitui
o sujeito moderno fragmentado, múltiplo e instável. A identidade
local seria fundamentada pelo “exercício da memória, o desejo da
convivência e a perpetuação de símbolos e imagens”. Seria então a
história local “a ‘costura’ de um retalho dos processos de
identificação do sujeito”.

Em segundo lugar, pela organização de uma estratégia de ensino


que possa ser utilizada por outros professores de história na
educação básica da cidade de Santa Isabel do Pará ou em outras
cidades do Brasil, para que venham a perceber como as demandas
sociais presentes, no caso desta pesquisa a relação entre sociedade e

87
natureza e as transformações das relações sofridas por estes espaços
naturais, no caso os rios e igarapés, servem de ponto de partida para
o estudo do passado e da relação deste com o presente, valorizando
o uso da memória, tendo as entrevistas, fotografias antigas e atuais e
as bibliografias existentes sobre a história de Santa Izabel do Pará
como fontes.

Marieta de Moraes Ferreira ao debater em artigo a importância da


memória dentro das produções de História do Tempo Presente, nos
afirma que a partir de estudos feitos na França por Pierre Nora
houve uma reavaliação das relações entre história e memória.
Considerando a distinção de Nora entre relato histórico e discurso
da memória, Marieta Ferreira conclui que

“Essa perspectiva que explora as relações entre memória e história


possibilitou uma abertura para a aceitação do valor dos
testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais críticas e
reconhecer que a subjetividade, as distorções dos depoimentos e a
falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma
nova maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte
adicional para a pesquisa”. (FERREIRA, 2002, p. 321).

Um terceiro fator seria a relevância de colocar em debate nas aulas


de história a questão da natureza, representada pelos rios e
igarapés, permitindo aos alunos perceber a relação entre meio
ambiente e sociedade nos processos históricos e estabelecendo a
possibilidade de que demandas sociais atuais como modificação da
paisagem, poluição e a relação entre a sociedade e a natureza, que
muitas vezes são debates feitos por outras disciplinas no espaço
escolar, também podem ser feitos pela história de forma inovadora e
interessante, como nos afirma Kettle:

“[...] ignorar o debate sobre os impactos ambientais ao longo da


história é não estar atento às demandas sociais do presente,
transformando a ciência histórica em um conhecimento pouco
crítico, sem vida e que não estimula ações capazes de transformar a
sociedade”(KETTLE, 2018, p. 47).

88
E por último, e não menos importante, a possibilidade de
demonstrar que o ensino de história precisa ser significativo, crítico
e transformador e para tanto e estudo da natureza e da história de
Santa Izabel do Pará pode proporcionar aos alunos do ensino médio
a construção de sua identidade com o lugar em que vivem ao
mesmo tempo em que pode estimular a leitura e a escrita, elementos
fundamentais para seu desenvolvimento intelectual e para os
processos seletivos aos quais serão submetidos, como por exemplo,
o ENEM. Assim, estimular os alunos a desenvolverem pesquisas e
analisarem o resultado de sua pesquisa com as bibliografias
existentes sobre Santa Izabel do Pará e o que estas apresentam sobre
os rios e igarapés podem despertar não só a sua curiosidade, mais
também o interesse em produzir narrativas sobre a história de sua
cidade, que podem através do e-book atingir um grande público,
tanto os alunos dos diversos níveis da educação básica quanto
professores, pesquisadores e o público em geral.

A História Ambiental e o Ensino de História.

Surge na década de 70 do século XX debates diferenciados que


visam estabelecer novos campos de pesquisa para a historiografia. A
História Ambiental é um deles. Donald Worster (1991, p. 200) nos
fala que a História Ambiental objetiva “aprofundar o nosso
entendimento de como os seres humanos foram, através dos
tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como
eles afetaram esse ambiente e com que resultados”.

Algo importante apontado pelo autor é o fato de que os


historiadores ambientais têm feito suas melhores produções levando
em conta os níveis de análise cultural, refletindo sobre como os
homens pensam a natureza. A proposta do projeto a ser
desenvolvido em Santa Izabel do Pará considera refletir por meio
das memórias de moradores antigos as relações e os valores
associados aos rios e igarapés urbanos que fazem parte do espaço
cotidiano dos alunos, bem como entender a influência do meio
ambiente na sociedade. Não podemos deixar de descartar que este
olhar sobre as questões culturais não deve fundamentar uma

89
disjunção entre a história cultura e a natureza, ao contrário, pra que
a história ambiental cumpra seu papel social ela precisa fazer com
que as pessoas construam um olhar crítico e de pertencimento a
natureza, entendendo que as relações estabelecidas entre ambos
variam de acordo com os vários tempos históricos que estão
vivenciados.

Ely Bergo de Carvalho (2012) em artigo onde analisa a natureza nas


aulas de história a partir das memórias de ex-professores da
educação básica destaca que a partir das demandas próprias do
século XX surgem a história ambiental e a educação ambiental, mas
que apesar destas romperem em parte com a disjunção história
cultura versus natureza, ainda existe uma história ambiental de
penitência e uma educação ambiental que é mais um adestramento.
No tocante a produção brasileira sobre história ambiental, Carvalho
cita como exemplo Warren Dean, em sua obra A ferro e fogo, que
teria produzido uma “história ecológica”. Segundo Enrique Leff,
essa “história ecológica” reforça a ruptura entre cultura e natureza,
pois:

“Nesta visão não se consegue conceber a complexidade ambiental,


como um processo enraizado em formas de racionalidade e de
identidade cultural que, como princípios de organização social,
definem as relações de toda sociedade com a natureza; a história
ambiental se limitaria a estudar as formas como diversos modos de
produção, formações sociais e estruturas de classe se apropriam,
transformam e destroem os recursos do seu entorno” (LEFF, 2005, p.
13 apud CARVALHO, 2012, p. 114).

Ainda segundo Carvalho (2012, p. 115), Leff aponta que a história


ecológica falha ao desconsiderar o tempo, ignorando-o em suas
análises e assim tais produções “narravam a história da relação
entre sociedades humanas e seus ambientes como
um continuum temporal, sem cortes, sem diferenças”. Para Leff
(LEFF apud CARVALHO, 2012, p.115) “perceber diferentes
racionalidades no passado e no presente abre o futuro para outras

90
racionalidades possíveis, para outras relações com o mundo natural,
para a construção de uma racionalidade ambiental”.

Podemos pensar que as análises e pesquisas ambientais, também


devem ser produzidas como reflexões que destaquem a variação do
tempo histórico, ou melhor, que façam a historicização da relação
sociedade-natureza ou cultura versus natureza, reconhecendo que o
estudo da história ambiental investiga várias questões e que numa
mesma investigação se entrecruzam natureza, sociedade, economia,
pensamentos e desejos, tratados como um todo, levando-se em
conta que “esse todo muda conforme mudam a natureza e as
pessoas, numa dialética que atravessa todo o passado e chega até o
presente.” (WORSTER, 1991, p. 202).

A temática ambiental se mostra muito relevante e o ensino de


história não poderia deixar de abordá-lo. Elenita Malta Pereira nos
alerta que os PCN’s já colocam a importância da presença dessa
temática da educação básica de forma transversal. Considerando
possibilidades de ensino, a autora cita Gerhardt e Nodari que
apontam como método de trabalho em sala de aula com a temática
ambiental o “estudo da história local, da toponímia e de fontes
visuais e arquivísticas.” (PEREIRA, 2017, p. 10). Por isso,
compreende-se que estudar a história de Santa Izabel do Pará
amplia a possibilidade dos alunos intuírem seu entorno,
“identificando o passado sempre presente nos vários espaços de
convivência – escola, casa, comunidade, trabalho, lazer - e
igualmente por situar os problemas significativos da história
presente” (BITTENCOURT, 2011. p. 168). Sendo assim, será possível
um maior conhecimento dos alunos sobre seu lugar e a percepção
das demandas sociais que o atingem como parte das questões
relevantes no mundo, principalmente por focar suas pesquisas no
tema do meio ambiente.

Entretanto, Carvalho (2016) aponta algumas dificuldades em


abordar a temática do meio ambiente nas aulas de história e
algumas possibilidades de trabalho a partir da análise de outros
pesquisadores. A falta de métodos para introduzir a história

91
ambiental nas aulas de história seria consenso entre os autores
analisados por Carvalho como a maior limitação encontrada pelos
professores, no entanto, os mesmos também contribuem
argumentando que um dos possíveis métodos para o ensino da
história ambiental seria fora da sala de aula ou que se devem usar
novas táticas de abordar temas ambientais, como a que já citamos
anteriormente com Elenita Pereira, além da reformulação ambiental
dos livros didáticos para que o tema deixe de ser apresentado
apenas como apêndice de outras temáticas como, por exemplo,
cidadania ou no contexto contemporâneo, pós Segunda Guerra
Mundial.

As aulas de história devem ser espaços para o debate e análise do


meio ambiente, pois segundo Wesley Kettle (2018, p. 45) “a
dimensão ambiental da história, além de essencial, garante a
ampliação de nossas interpretações”. Kettle ao analisar o ensino de
história e a questão ambiental apresenta propostas que podem
ajudar aos professores a pensar seu trabalho com tal temática, como
por exemplo, o uso de fontes primárias coloniais já que os relatos e
descrições nelas contidos são repletos de informações do que
chamamos de mundo natural, além apresentar e analisar uma
grande quantidade de obras brasileiras ou não “que apesar de não
se ocuparem exclusivamente do meio ambiente, permite-nos
perceber a natureza como um agente do processo histórico”.

Os debates sobre o meio natural podem contribuir para fazer o


aluno perceber sua função social e de integração com a natureza, o
que nos permite pensar que as demandas contemporâneas desses
sujeitos são relevantes para o desenvolvimento de estudos e práticas
pedagógicas no ensino de história, partindo daí para um estudo do
passado como um processo dialógico em que o conhecimento do
passado é fundamental por ser oriundo das questões atuais dos
sujeitos.

Neste projeto, pretendemos analisar várias narrativas históricas


através de linguagens diversas que sirvam de suporte para sua
realização, como a literatura produzida sobre a história de Santa

92
Izabel do Pará, o uso de fotografias antigas e atuais dos igarapés e
rios a serem pesquisados, além das memórias dos moradores
antigos presentes nas entrevistas que serão colhidas pelos alunos e a
partir das quais farão textos narrativos sobre a história de Santa
Izabel do Pará que seja significativa para os mesmos, percebendo a
relevância da natureza e as relações existentes entre a sociedade e as
águas, bem como as transformações que essas paisagens sofreram e
que resultam em uma poluição e destruição da natureza no espaço
urbano pois, como afirma Maria Auxiliadora Schmidt, a história
local pode ser vista como uma estratégia de ensino, já que:

“Trata-se de uma forma de abordar a aprendizagem, a construção e


a compreensão do conhecimento histórico, a partir de proposições
que tenham a ver com os interesses dos alunos, suas aproximações
cognitivas e afetivas, suas vivências culturais; com as possibilidades
de desenvolver atividades vinculadas diretamente com a vida
cotidiana, entendida como expressão completa de problemas mais
amplos”. (SCHIMIDT, 2007, P.190).

Segundo Gonçalves, o desafio hoje da história é produzir uma


historiografia didática na qual seja incorporado o local, partindo
dele e com ele sensibilizando crianças, jovens e adultos, num
processo de construção de uma consciência histórica e que a partir
das reflexões sobre o local, atuem “historicizando e
problematizando o sentido de suas identidades, relacionando-se
com o mundo de forma crítica, mudando, ou não, como sujeitos, a
própria vida.” (GONÇALVES, 2017, 182).

Para se construir o local na pesquisa, o uso da memória terá um


papel fundamental por meio das entrevistas que serão feitas com os
moradores antigos que tiveram contato e usufruíram de maneiras
variadas de rios e igarapés urbanos e que possam ajudar os
estudantes a construir a história de Santa Izabel do Pará.

A memória é tida como aquela que torna o passado presente,


através de uma representação seletiva, no dizer de Henry Rousso,
“um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um

93
indivíduo inserido em um contexto familiar, social, nacional”
(ROUSSO, 2006, p. 94). Citando Maurice Halbwachs, Rousso nos diz
que a memória é “coletiva”, por constituir elemento essencial da
identidade, da percepção dos outros e de si mesmo. Entretanto,
Rousso nos alerta da necessidade de vermos que se em escala
individual a memória é coletiva, ao irmos para o campo de grupo
social ou nacional, não existe “memória coletiva”, ou seja, uma
representação do passado compartilhada por uma coletividade. Para
Rousso, visando superar esse obstáculo teórico:

“(...) os historiadores em geral admitem, de maneira mais ou menos


declarada, que as representações do passado observadas em
determinada época e em determinado lugar – contanto que
apresentem um caráter recorrente e repetitivo, que digam respeito a
um grupo significativo e que tenham aceitação nesse grupo ou fora
dele – constituem a manifestação mais clara de uma “memória
coletiva” (ROUSSO, 2006, p. 95).
Ricardo Santhiago e Valéria Magalhães chamam a atenção de que a
memória “que é dinâmica, individual (porque única) e coletiva
(porque remete a experiências sociais) – é a fonte que abastece as
lembranças” (SANTHIAGO; MAGALHÃES, 2015, P. 37) e essas
lembranças que nascem individualmente, de um narrador e de suas
particularidades, também é composta pela memória, vivências e
experiências de seu meio social. Este pertencimento a uma
coletividade faz com que ele consiga criar uma identificação com
um grupo, ou seja, que tenha uma identidade. Para Santhiago e
Magalhães:

“A sensação de fazermos parte de um grupo vem, entre outras


coisas, da memória coletiva. Lembrar coletivamente une os
indivíduos e permite que eles compartilhem vivências. A idéia de
pertencimento a coletividade é reforçada por recordações comuns.
Identificamo-nos uns com os outros porque podemos dividir tais
experiências”. (SANHIAGO; MAGALHÃES, 2015, P. 41).

Construir então este projeto pautado no uso da memória tornasse


possível pela sua utilização como um recurso pedagógico, algo que

94
ultrapassa a perspectiva das definições teóricas ou metodológicas
próprias da ciência histórica e adentra o campo dos debates sobre as
práticas e experiências escolares. Transformando a concepção
tradicional do ensino, pautado na memorização, na qual o aluno
seria o receptor de conhecimentos prontos, o uso de entrevistas leva
os alunos a desenvolver novas habilidades e capacidades antes não
estimuladas, a fortalecer sua autonomia e a se interessar mais pelo
objeto de aprendizagem. Como ferramenta de ensino, aproximará o
aluno da condição de produtor de conhecimento, e conhecimento
relevante, pois está ligada a história de seu lugar.

Tal proposta precisa estar presente em sala de aula por se tratar de


temática que desperta nos alunos um interesse maior, já que
percebemos que a temática da natureza nas aulas de história não é
recorrente, no entanto se mostra interessante, transformando a aula
em algo mais atrativo e diferenciado, que estimula a curiosidade,
interesse e participação dos alunos, além de suprir a necessidade de
trazer ao espaço escolar uma metodologia de ensino que leve em
conta a participação do aluno como produtor de conhecimento.

REFERÊNCIA

Ligia Mara Barros Ribeiro é graduada em História (UFPA-2003),


especialista em História da Cultura Afrobrasileira e Africana
(FIBRA-2010) e Mestranda da turma de 2018 do Programa em
Ensino de História/Profhistória (UFPA/Ananindeua), sendo
orientanda do Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle. Atualmente, atua na
rede estadual de ensino (SEDUC) com turmas de ensino médio.

BITTENCOURT, Circe M. F. Conteúdos históricos: como selecionar?


In: BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2011. 4ª ed. Pp. 135-179.

CARVALHO, Ely Bergo de; COSTA, Jamerson de Sousa. Ensino de


história e meio ambiente: uma difícil aproximação. História e
Ensino. Londrina, v. 22, n. 2, jul./dez. 2016, p. 49-73.
CARVALHO, Ely Bergo de. “A natureza não aparecia nas aulas de
História”: lições de educação ambiental aprendidas a partir das

95
memórias de professores de História. História Oral. v. 15, n. 1,
jan./jun. 2012, p. 357-379.
FERREIRA, Marieta. História, tempo presente e história oral.
Revista Topoi, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 314-332.
GONÇALVES, Márcia de Almeida. História Local: o
reconhecimento da identidade pelo caminho da insignificância. In:
MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlete Medeiros;
MAGALHÃES, Marcelo de Souza (Orgs.). Ensino de história:
sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2007,
p. 175 – 185.

KETTLE, Wesley Oliveira. A perspectiva ambiental e o ensino de


história: propostas para compreender o passado. In: NUNES,
Francivaldo Alves; MACÊDO, Sidiana da Consolação F.
(Org.). Ensino de história: linguagens, abordagens e perspectivas.
Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, p. 43-64, 2018.

PEREIRA, Elenita Malta. Meio ambiente na aula de história:


Interações entre ensino de história, história ambienta e educação
ambiental. Revista do Lhiste, Porto Alegre, n. 6, vol. 4, jan/dez.
2017. PP. 10-13.

REZNIK, Luís. “Qual o lugar da história local?”. Apresentado no V


Taller Internacional de Historia Regional y Local. Havana/Cuba,
2002. Disponível em
www.historiadesaogoncalo.pro.br/txt_hsg_artigo_03.pdf

ROUSSO, Henry, A memória não é mais o que era. In: FERREIRA,


Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da
História Oral. 8. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 93-101.

SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria (Org.). História


Oral na Sala de Aula. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.

SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. O ensino de história local e os


desafios da formação da consciência histórica. In: MONTEIRO, Ana
Maria; GASPARELLO, Arlete Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de

96
Souza (Orgs.). Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio
de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2007, p.187 – 198.

WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. IN: Revista


Estudos Históricos, vol.4, nº 8, 1991, PP. 198-215.

97
HISTÓRIA AFRICANA E AFRO-
BRASILEIRA: CAMINHOS PARA O
RECONHECIMENTO MULTI CULTURAL
NO BRASIL
CAMÍLA JOSEANE E SOUSA RIOS COSTA

APRESENTAÇÃO

Este trabalho tem como finalidade problematizar a temática História


Africana e Afro-brasileira, tratando desde a abordagem em sala de
aula com a promulgação da lei 10.369/03, até o reconhecimento da
identidade africana. É de suma importância o conhecimento dessas
raízes históricas para que a partir do debate em classe os alunos
negros passem a construir uma imagem positiva sobre sua
identidade e outros grupos étnicos a reconhecerem estas marcam
culturais, conscientizando-se sobre a necessidade destes a mudar
suas atitudes preconceituosas.

Vivemos em uma população que está envolvida com questões


referentes a pessoas negras, atualmente já se debate mais sobre os
movimentos de culturais, preconceito, racismo, discriminação,
empoderamento da mulher negra, entre outros. Eis a questão: Essas
práticas são consideradas como fontes importantes no processo
histórico e cultural brasileiro?

No entanto, o contato com a história afro no meio acadêmico me


motivou a estudar, conhecer e procurar diversas abordagens no qual
o negro é considerado um sujeito positivo na história.Todavia, esses
foram os motivos que me levaram a tratar destas questões, também
cabe destacar que há uma escassez de estudos referentes a História
Africana e sua influência. A partir da promulgação da lei 10.639/03
foi estabelecido a obrigatoriedade da inclusão do ensino de História
da África e da cultura afro-brasileira, e é possível notar que houve
um crescente estudo relacionado a essa temática, porém é preciso

98
pensar em uma melhor aprendizagem, no qual esse conhecimento
seja ampliado e qualificado para que se torne mais interessante para
os alunos.

Como acadêmica e futura docente, observo que anteriormente e


ainda hoje vivemos em um sistema educacional que privilegia o
ensino da História do ponto de vista europeu, pouco se fala sobre a
África, sobretudo na educação básica. Portanto, será utilizado neste
trabalho discussões teóricas que mostram a importància desse
estudo, como: CIRCE BITTENCOURT (2005), CUNHA JÚNIOR
(2006),JAROSKEVICZ (2007), OLIVA (2009), CARDOSO e
FEITOSA( 2015), dentre outros.

OBJETIVOS

GERAL

Valorizar a História Africana e Afro-brasileira como componente


indispensável na formação histórica e cultural brasileira, de modo
que com a lei 10.639/03 foi instituído a obrigatoriedade de inclusão
desta temática na rede escolar nacional.
ESPECÍFICOS
· Conhecer os aspectos sociais e culturais da história africana.

· Desconstruir estereótipos forjados pelo imaginário europeu


sobre a África e seus descendentes, possibilitando os alunos negros
a construção de uma imagem positiva e os brancos a reconhecerem
as marcas culturais africanas, independente da sua origem étnica.

· Identificar elementos da cultura africana no nosso país, de


forma a assegurar o processo de afirmação da identidade e
historicidade negada.

JUSTIFICATIVA

O presente trabalho torna-se relevante em razão da necessidade de


reconhecimento da História Africana como elemento importante na

99
formação histórica e cultural brasileira. Com a promulgação da lei
10.639/03 que posteriormente foi alterada pela lei 11.645/08 foi
estabelecido nas diretrizes e bases da educação nacional a inclusão
obrigatória no currículo oficial escolar a temática História da África
e dos Afro-brasileiros, assim como aspectos da cultura negra no
Brasil e o negro na formação da sociedade e identidade nacional.

Vivemos em um sistema escolar que privilegia o ensino de história


do ponto de vista europeu, também é notório que a história africana
está sempre marcada por preconceitos, concepções racistas ou
conceitos altamente estereotipados. O africano no ambiente escolar
está geralmente associado somente a ideia de escravidão, tráfico
negreiro, colonialismo, imperialismo e processos de independência
na África. Desta maneira, sua cultura e práticas sociais que são de
extrema importância para a formação brasileira acabam sendo
ignoradas.

Após a publicação da lei houve um esforço por parte das


universidades e pesquisadores na implantação de cursos
especializados para aumentar os estudos desta área, mas ao mesmo
tempo em que a inclusão desta temática nas escolas pode ser
considerada um avanço, muito ainda deve ser feito. Desse modo,
mudanças só poderão ser mais significativas com a progressiva
atenção dedicada ao tema.

Portanto, compreende-se que é essencial a abordagem da História e


cultura Afro-brasileira e Africana nas redes de ensino, de modo que
as PCNs estabelecem a valorização da pluralidade do patrimônio
sociocultural brasileiro, para que os brasileiros reconheçam sua
formação histórica se posicionando contra qualquer tipo de
discriminação.

REVISÃO TEÓRICA

O Principal problema encontrado ao trabalhar a história africana


não é relativo à sua complexidade, mas sim com relação aos
preconceitos adquiridos no processo de informação sobre a África.

100
A imagem do africano em nossa sociedade é quase sempre a do
selvagem acorrentado a pobreza e a miséria, apresentando um
estereotipo preconceituoso e racista.

Há alguns pontos importantes que devem ser desconstruídos na


imaginação dos brasileiros sobre a África: a África não é uma selva
tropical; o Europeu não chegou a África trazendo civilização; a
África tem história. Claramente, existem outros tópicos, porém estes
aqui apresentados mostram a ideia do africano tido sempre como o
diferente em relação aos povos de outros continentes, esta
diferenciação se dá com base em uma hierarquia de valores, onde
uns são superiores e corretos, já outros inferiores e
consequentemente errados.

A presença africana no cotidiano brasileiro é imensa, entretanto há


limitações para compreendê-la devido à ausência desta temática nas
escolas, universidades e movimentos sociais ou políticos. A
aprovação da lei 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura Africana e Afro-brasileira na educação
básica foi um passo importante, no entanto, sabe-se do
desconhecimento por parte dos professores em relação aos
conteúdos exigidos pela lei. A escola é a instituição onde se deve
exemplar e contribuir para o cumprimento da norma constitucional,
sendo de sua responsabilidade respeitar as matrizes culturais e
construir identidades. A lei ainda estabelece a inclusão do dia 20 de
novembro no calendário escolar como “Dia Nacional da Consciência
Negra”.

Segundo Circe Bittencourt (2005), a concepção ensinada sobre a


história africana é que tanto estes povos como os indígenas não
possuem história, apenas influenciaram ou contribuíram para a
cultura brasileira, por meio de hábitos alimentares, música, dança,
esportes, dentre outros.

O processo cultural afro-brasileiro remonta ao período colonial,


quando o tráfico de escravos forçou milhões de africanos a virem
para o Brasil e outros países. Contudo, formou-se a maior população

101
de origem africana fora do seu continente. É comum encontrarmos a
herança africana representada em nossas práticas culturais. Porém,
antes essas manifestações, rituais e costumes eram proibidos, só
deixando de ser perseguidos pela lei na década de 1930 durante o
governo de Getúlio Vargas.

Cabe ainda destacar os dois grupos de maior influência no Brasil:


os Bantos- trazidos da região de Angola, Congo e Moçambique,
eram agricultores e viviam da caça e pesca; os Sudaneses- povos
oriundos da África Ocidental e da Costa da Guiné, povos
minoritários em relação aos Bantos, mas exerceram bastante
influência. As regiões brasileiras mais povoadas com a mão-de-obra
forçada africana foram a Bahia, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais,
São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Rio Grande do Sul.

A cultura afro-brasileira compõe costumes e tradições como será


detalhado a seguir: a mitologia, folclore, língua, culinária, música,
dança e religião.

A mitologia africana é muito diversificada levando em consideração


o extenso território dividido em países, estados, cidades e grupos
étnicos. Por exemplo, há a Mitologia Akan (Gana e Costa do
Marfim), mitologia Dinka (Sudão),mitologia Bambuti ( Congo),
dentre outras. É como se cada país tivesse sua mitologia, em geral,
sabe-se pouco sobre mitologia Africana se compararmos com a
Grega, mas na mitologia Iorubá (a mais conhecida) são criadas
várias divindades, chamadas de Orixás no Brasil, porém não são
considerados deuses e sim ancestrais divinizados após a morte.
Dentre os orixás estão: Exu- guardião do templo, das casas, cidades,
pessoas e mensageiro divino; Ogum- orixá do ferro, guerra,
tecnologia; Oxum- orixá feminino dos rios, ouro e amor; Iemanjá-
Orixá feminina dos lagos, mares e fertilidade, entre muitos outros.

Em relação a língua, a África apresenta 54 países e possui 2092


línguas faladas divididas em quatro grupos: línguas afro-asiáticas(
norte,leste e sudoeste africano), khoisan( sudoeste), Nilo-saarianas
(norte e leste) e nigero-congolesas ( abrange a África do Sul e está

102
diretamente ligada ao Brasil). Os países que falam português são:
Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné- Bissau, São Tomé e
Guiné Equatorial.

A culinária trouxe as panelas de barro, o leite de coco, feijão, quiabo,


abará, vatapá, quibebe, acarajé, pamonha, a feijoada que foi criada a
partir dos restos de carne de porco que os senhores não consumiam,
dentre outros elementos, percebe-se também que a maioria desses
alimentos se encontram presentes na culinária da Bahia.

Na música vemos os traços africanos no samba, Jongo, Carimbó,


Maxixe, Maculelê e Maracatu, esses estilos ainda eram muito
marginalizados na sociedade pelo menos até o século XX.
Utilizavam instrumentos variados como Afoxé, atabaque, berimbau
e tambor. Nas danças existem os rituais como o tambor de crioula,
há também a capoeira que seria uma mistura de dança, música e
artes marciais proibida no Brasil por muitos anos e em 2014 passou
a ser declarada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

A religião é característica do sincretismo das práticas africanas com


o catoliciamo, assim nasceram o Candomblé, a Umbanda, a
Quimbanda, Vodum, dentre outras manifestações que só a partir do
século XX passaram a ser aceitos pela população como expressões
artísticas e culturais nacionais. Portanto, com base nos argumentos
aqui expostos sobre a herança africana no Brasil, percebemos a
importância deste povo para a nossa formação histórica e cultural,
mesmo que nos dias atuais há uma desvalorização desta identidade
por conta do preconceito e da discriminação.

METODOLOGIA

Os meses que antecederam a elaboração do projeto foram feitas as


análises de pesquisas bibliográficas, tanto como textos, artigos
científicos e questionário da internet. Todos estes meios foram
utilizados em uma perspectiva crítica e reflexiva.

103
Para reproduzir este trabalho em sala de aula foram desenvolvidas
temáticas a partir de conteúdos com ênfase em história africana e
questões referentes á política, cultura e religião, sob a perspectiva de
valorizar, problematizar e democratizar tanto o ensino como os
saberes. Cabe a nós enquanto formadores de opiniões focar nas
discussões que garantam a identidade e historicidade negada dos
negros.

Após estas análises, as etapas do projeto foram elaboradas da


seguinte forma:

· No primeiro momento, que tem como duração 25 horas, está


reservado para a observação em sala de aula nas disciplinas de
História, Sociologia, Filosofia e Geografia, de acordo com o horário
disponibilizado pela direção da escola.
· A aplicação do projeto deve ocorrer em 05 horas, no qual esse
segundo momento tem seu início com a aplicação de um
questionário com o intuito de avaliar o conhecimento dos alunos
sobre o tema, dessa forma, após a verificação das respostas, o
propósito é trabalhar as idéias dos estudantes sobre o conteúdo.
· Posteriormente, haverá a aula expositiva e dialogada sobre o
assunto, com o objetivo de mostrar o aporte teórico sobre o tema, a
construção de alguns conceitos sobre a África ou os Africanos e a
importância da abordagem do conteúdo em sala de aula.
· Ao final da exposição será transmitido para a classe um
pequeno documentário denominado “ D-21- A história, o africano e
o afro-brasileiro”

· No último momento será apresentada pelos alunos uma


pesquisa sobre as seguintes temáticas: 1- culinária; 2- Dança; 3-
Música; 4-Moda; 5- Religião. A classe de 28 alunos será dividida em
5 grupos, cada um com seus respectivos temas focando esses
aspectos citados na cultura afro-brasileira.

RESULTADOS

104
No questionário prévio aplicado em sala de aula, cujo 20 alunos
responderam, foram obtidos os seguintes resultados:

01- Você considera importante a inclusão da história e cultura


africana e afro-brasileira no currículo escolar?

Todos os estudantes responderam que sim, é importante a


integração desta temática nos conteúdos escolares.

02- Em uma escala de 0 a 10 na sua opinião qual a importância


dessa temática? Justifique.

N° de Alunos Importância
1 5
1 7
5 8
6 9
7 10

Os alunos utilizaram as seguintes justificativas para o grau de


importância dado: Porque faz parte da nossa história, da cultura,
nos informa sobre os modelos de identidade e conhecimento de si,
além de nos permitir conhecer nossos antepassados. Também seria
importante por não terem conhecimento sobre o tema e possuírem o
desejo de conhecer mais sobre o assunto para quebrar os
preconceitos existentes.

01- O que você sabe sobre a história e cultura africana e afro-


brasileira?

Os estudantes disseram que sabem pouco ou até mesmo nada.


Alguns escreveram que o Africano influenciou na nossa formação e
fazem parte da nossa história, trouxeram algumas recordações da
época em que foram trazidos como escravos no tráfico transatlântico
e que sofreram influencias da cultura europeia, principalmente
portuguesa, conhecem alguns aspectos da dança, culinária, música,

105
religião, por exemplo: a capoeira, a feijoada e a macumba foram
elementos citados. Também destacaram que não existe matéria que
trate sobre o assunto na escola e o pouco que se sabe foi adquirido
na convivência em sociedade.

02- Você conhece ou já ouviu falar sobre a lei 10.639/03 que legisla
sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em
todas as escolas do país?

Sim, conheço. Sim, ouvi falar. Não conheço.


2 alunos. 5 alunos. 13 alunos.

03- Você já participou de algum curso, evento ou atividade que


tenha abordado questões étnico-raciais ou temas relacionados aos
afro-brasileiros e africanidades?

Não Sim
7 13

04- Você consegue identificar elementos da história e cultura


africana em nosso país? Quais?

Não Sim
6 14

Os estudantes destacaram as religiões e crenças como umbanda e


candomblé; Também aspectos da dança como a capoeira, da
culinária a feijoada, as roupas, músicas e festividades.

Depois da aplicação do questionário foi realizada a aula expositiva


com a exibição do vídeo, em ambos foi trabalhado a questão
relacionada aos preconceitos existentes quando se pensa em África,
atrelado somente a ideia de escravidão e inferioridade. Além disso,
também foi falado sobre a importância do tema e mostrado em
forma de slide alguns aspectos culturais da África que exercem
influência no nosso país, por exemplo, a mitologia, a dança, a
culinária, a música, os instrumentos e a religião.

106
Posteriormente, em relação ao trabalho realizado pelos alunos, o
Grupo 1 que ficou responsável pela culinária afro-brasileira, trouxe
algumas heranças africanas no slide como óleo de dendê, óleo de
coco, feijoada, cuscuz, mandioca, ervas, acarajé, vatapá, pamonha,
mingau de milho, entre outros elementos que estão na maioria das
vezes presentes na culinária da Bahia.

O grupo 2 sobre a dança faltou na data proposta. O grupo 3 que


falou sobre a música trouxe elementos oriundos da África Saariana
como samba, maracatu, assim como instrumentos tipo: conga,
surdo, tambor, atabaque, dentre outros. Também destacaram que
estas eram consideradas práticas de marginais nos tempos passados.
Falaram também em algumas bandas brasileiras que utilizam os
ritmos africanos, por exemplo, Parangolé, harmonia do samba e etc.

O grupo 4 que tratou sobre a moda trouxe nos slides elementos como
tintas utilizadas para tingir os tecidos, as estampas, figuras corporais
usadas em cerimônias e rituais, os penteados como tranças,
Dreadlocks; acessórios como pulseiras, colares, brincos, turbante e
lenços; Mostraram também vestidos com estampas, onde cada uma
possui um significado especial.

O 5° e último grupo que ficou responsável pela religião, trouxe o


Candomblé e a Umbanda, falaram do sincretismo religioso, onde os
africanos foram convertidos ao cristianismo, porém não deixaram
suas antigas práticas rituais. Destacaram a mitologia Iorubá e seus
Orixás, além dos três princípios umbandistas: fraternidade, caridade
e respeito.

Diante disso, percebe-se com o projeto aplicado nesta sala de aula


que há uma carência relacionada aos estudos africanos e afro-
brasileiros por diversos motivos e que mesmo com a implementação
da lei, a instituição, acredito que não apenas esta, mas as diversas
existentes em nosso país, não trabalham essa temática ou apenas a
mencionam em datas específicas como o Dia Nacional da
Consciência Negra, assim acabam por não promover os saberes

107
necessários para o reconhecimento dos valores e contribuições de
afrodescendentes no Brasil.

Há uma dificuldade em trabalhar este tema por conta dos


preconceitos que embora façam parte do cotidiano, são ignorados
pela prática pedagógica até mesmo pela falta de qualificação dos
próprios professores, o que se faz necessário uma política de
formação mais intensa e adequada do educador para que este possa
desenvolver a valorização e respeito destes aspectos históricos e
culturais.

Há um interesse em relação ao tema por parte dos alunos, uma vez


que a maioria da nossa população é constituída por pessoas negras e
pouco se sabe sobre o assunto, a não ser aquilo aprendido em
convivência com a sociedade, que muitas vezes traz uma concepção
discriminatória e estereotipada sobre o povo africano. Portanto,
ainda há muito a ser feito em relação a esse reconhecimento das
desigualdades étnico-raciais e o desejo desses educadores em
transformá-las.

Referências:

CAMILA JOSEANE E SOUSA RIOS COSTA- Acadêmica do 7º


período do curso de História da Universidade Estadual do
Maranhão- CESC/UEMA de Caxias-MA, sob orientação do Prof. Dr.
Jakson dos Santos Ribeiro. E-mail: Camila19k2011@hotmail.com

CARDOSO, Salete Rodrigues. FEITOSA, Diane Mendes. O ensino


da História e cultura afro-brasileira nos currículos oficiais:
desafios na formação docente. Revista fundamentos, v.2, n.1, 2015.
CUNHA JÚNIOR, Henrique. História africana para a compreensão
da história do Brasil. In: História e cultura afro-brasileira e
africana: educando para relações étnico-raciais/ Paraná. Secretaria
de estado da educação. Curitiba:SEED-PR, 2006. P. 45-46.

108
JAROSKEVICZ, Elvira Maria Isabel. Relações étnico-raciais,
história, cultura africana e afro-brasileira na educação pública: da
legalidade à realidade. 2007.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas
brasileiras. Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional
aos olhares dos especialistas(1995-2006). HISTÓRIA, São Paulo,
28(2): 2009, p. 143-172.
BITTENCOURT, Circe. Identidade Nacional e ensino de História
no Brasil. In: KARNAL, Leandro (org). História na sala de aula:
conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005.

109
OS PERIGOS DE UMA HI STÓRIA
ÚNICA: O ENSINO DE HISTÓRIA E A
DIVERSIDADE CULTURAL
RAYME TIAGO RODRIGUES COSTA

“Até que os leões tenham as suas histórias, os contos de caça


glorificarão o caçador”.

(Provérbio africano)

As histórias são constituídas de relações de poder, o sujeito que


narra e escreve pode estigmatizar e apagar a história de grupos
inteiros ou glorificar e aclamar outros, não existe neutralidade na
escrita da história, como disse Francois Furet (1990) “a história não é
nunca inocente”. Quem narra define, estabelece padrões, medidas e
necessariamente coloca a margem e exclui. Tal construção é
chamada por Certeau (1982) de escrita colonizadora, o autor
argumenta que a escrita da história não é neutra, muito pelo
contrário ela serve para cumprir propósitos do grupo que a domina,
no caso da relação da América com a Europa o objetivo da escrita
era contribuir para a colonização, “uma colonização do corpo pelo
discurso do poder”. A América seria o livro em branco no qual a
Europa escreveria a partir do seu ponto de vista, esta (Europa)
afirmava quem ela (América) era e moldaria quem deveria ser.

A escritora Chimamanda Ngozi afirma que a “história única”, que é


uma única versão de uma história contada diversas vezes por
determinados grupos sobre outros, tem um grande poder para
moldar a visão do ouvinte, gerando concepções estereotipadas sobre
países, grupos étnicos, entre outros. Diz ela:

110
“É impossível falar sobre história única sem falar de poder. Há uma
palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que
penso sobre as estruturas do poder no mundo, é a palavra “nkali”. É
um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o
outro”. Como nossos mundos econômico e político, histórias
também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como são
contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas,
tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só
contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história
definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti
escreve que se você quiser destruir uma pessoa, o jeito mais simples
é contar a sua história e começar com “em segundo lugar”. Comece
uma história com as flechas dos nativos americanos e não com a
chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente
diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não
com a criação colonial do estado africano e você tem uma história
totalmente diferente”[1].

O nkali citado pela autora se encontra nos diversos ambientes


sociais, inclusive nas histórias contadas. A própria compreensão e
estruturação do mundo moderno teve como fundamento e
legitimação a narrativa, a história. A dominação colonial que baseou
e baseia a riqueza de diversas nações foi produzida por uma ideia, o
eurocentrismo.

Segundo Costa e Grosfoguel (2016) a modernidade foi forjada no


colonialismo, pois foi o trabalho escravo e a destruição colonial que
fizeram com que a Europa tivesse “o avanço” o “progresso” e a
“civilização”. Os autores argumentam que “o colonialismo foi a
condição sine qua non de formação não apenas da Europa, mas da
própria modernidade. Em outras palavras, sem colonialismo não
haveria modernidade”. A escrita colonizadora, também chamada de

111
eurocentrismo ou ocidentalismo por Coronil (1996) teve papel
central nessa construção, pois foi a partir desse:

“[...] imaginário dominante do mundo moderno/colonial que


permitiu legitimar a dominação e a exploração imperial. Com base
nesse imaginário, o outro (sem religião certa, sem escrita, sem
história, sem desenvolvimento, sem democracia) foi visto como
atrasado em relação à Europa”.

Com esse poder de se autodescrever a Europa impôs sob o outro o


mito da modernidade, como sendo ela superior e mais desenvolvida
tendo desta feita o direito e até a obrigação moral de desenvolver os
“primitivos”, forjando a si próprio e o outro. Tal imaginário foi
fundamental para delinear todas as relações da modernidade e
colonialidade, com esse privilegio social e epistêmico muitos corpos
e historias foram inventadas, modificadas e apagadas. Esse discurso
chamado aqui de “mito da modernidade” se concretiza no século
XVI e concomitantemente subalterniza os diversos povos, indígenas,
africanos, muçulmanos e judeus são alvos de ambos (conquista
física e simbólica).

A cosmovisão e a epistemologia do conhecimento produzida no


Brasil e que pensam o Brasil teve e ainda tem como lócus a Europa e
mais especificamente o sistema-mundo moderno/colonial, pois
como citado anteriormente, é nesse momento de formação da
modernidade que o eurocentrismo está legitimando a subserviência
desse outro, classificando, hierarquizando e impondo padrões
possíveis e legítimos somente para os europeus. Diante disso é
fundamental como afirma Mignolo (2003), que outras perspectivas
sejam abordadas a partir de outros lugares, pensar através de outra
lógica, não apenas uma mudança de conteúdos, mas de olhar.

112
Hobsbawm (2013) disserta sobre o sentido do passado e mostra o
quão importante este é na formação e desenvolvimento das nações,
pois em muitas sociedades o passado direciona o rumo inclusive das
mudanças, sendo que “todo ser humano tem consciência do
passado”. Percebe-se desta feita que o domínio da narrativa é
fundamental para legitimar a conquista, a invasão e até a
desumanização. Logo, não se trata apenas de contos, estórias ou
lendas tão somente, mas de poder e domínio sobre outros. Dominar
a narrativa e torná-la hegemônica significa controle e poder.

Diante da percepção da grande importância da história como


instrumento formador de concepções de mundos, surge uma
indagação, como, quem, quando e quantas histórias, retomando os
questionamentos de Chimamanda, foram e estão sendo contadas
sobre o Brasil? Qual Brasil foi e está sendo ensinado? Onde está a
mulher negra? Seus saberes, experiências e cosmogonias foram
resgatados? Eles são apresentadas aos discentes?

É quase um senso comum entre os diversos estudiosos que


examinam a formação do Brasil que este é constituído a partir de um
processo multirracial e pluriétnico, de Gilberto Freyre a Roberto da
Mata (Muitos outros autores de matrizes diversas afirmam que o
país é pluriétnico e multirracial. Dentre eles estão Florestan
Fernandes, Darcy Ribeiro, Alfredo Bosi e Sidney Chalhoub.) essa
temática é colocada como ponto certo, fomos formados por
diferentes povos, culturas, línguas, nações, saberes e experiências,
ou seja, diversas formas de ser no mundo. Entretanto, apesar das
diversas culturas terem participado desta construção, esse processo
foi longo e doloroso, forjado a partir da desigualdade, morte e
resistência. As relações de poder hierárquicas deram espaços
díspares para as manifestações e representações da cultura africana
e ameríndia, as quais foram silenciadas e quando vistas,
representadas de modo descaracterizado e superficial. Sendo assim,

113
apesar da sociedade e da cultura brasileira nascerem plural a sua
representação e história foi formada de modo desigual,
desconsiderando tal pluralidade. Criando um Brasil homogêneo.

Essas relações de poder hierárquicas baseadas em uma concepção


racializada de sociedade fundamentam o privilégio epistemológico,
ou seja, “quem possui o privilégio social possui o privilégio
epistemológico, uma vez que o modelo valorizado e universal de
ciência é branco (RIBEIRO 2017).” A consequência dessa
hierarquização foi a legitimação de um modelo de ciência
eurocêntrico hegemônico, tornando-se o padrão de saber universal e
inviabilizando outras lógicas de saberes, gerando ausência,
invizibilização e desumanização de corpos, conhecimentos e
experiências.

Na realidade brasileira as ausências e silêncios acerca das tradições


africanas foram comuns no ambiente escolar brasileiro, a história do
ensino de história nos mostra que desde quando a ciência histórica
se tornou ensinável, em meados do século XIX, que esse vazio existe
(MATTOS 1998). Na ânsia de tornar o país em uma nação
“civilizada” os dirigentes e intelectuais brasileiros, na figura do
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (1838), vincularam a
história do país à chegada dos portugueses, considerando que o
recuo da “barbárie” existente por conta da miscigenação seria feito a
partir do embranquecimento da população, levando o país à
“civilização”. A raça branca seria o rio caudaloso responsável por
diluir as influências negras e indígenas que traziam barbárie à
nação.

Os IHGB’s que representavam a sociedade cortesã tinham como


propósito unificar a nação, construir uma história oficial que se
encaixasse a Europa e que fosse totalizante. Tal pretensão não levou

114
em consideração a diversidade do país, logo a produção material e
imaterial do que seria o Brasil levou em consideração um único
víeis, que apesar das disputas internas, tornou homogênea a nação,
o Brasil era a representação unicamente de uma elite agrária,
escravocrata e branca.

O negro (a) era visto como um elemento que degenerava a pureza


das raças, logo devia ser afastado do imaginário de construção da
sociedade brasileira ou quando isso não era possível, misturado à
raça branca para o “bem” da sociedade, causando o efeito chamado
de branqueamento. Kátia Abud considera que:

“Ao outro elemento formador do brasileiro, dominado pelo


colonizador, o negro, os livros dedicavam pouco espaço como objeto
de Etnografia/Antropologia. Ele sempre era tratado como
mercadoria, produto de outras mercadorias. Enquanto ao índio se
conferia o estatuto de contribuição racial, os livros didáticos
salientavam a importância do africano para a vida econômica do
país, mas procuravam mostrar que a negritude estava sendo diluída
pela miscigenação” (ABUD 1998).

Para além de um vazio que já seria preocupante, o negro (a) era


visto como um ser desprovido de capacidade intelectual que a partir
de sua “raça” estaria prejudicando a nação e levando- a barbárie.
Segundo Schwarcz (1993) muitos importantes pensadores do Brasil
no século XIX, tais como Silvio Romero e Vianna e muitas
faculdades de renome espalhadas pelo país pautadas em teorias
raciais diversas, afirmavam que era necessário a migração de
europeus para “branquear” o Brasil e colocá-lo no mapa da
civilização, já que o negro era incivilizado.

115
Esse ensino intangível se materializa no contexto cultural e sócio-
político do estado brasileiro que por anos considerou e preservou
bens referentes aos setores dominantes. Ricardo Oriá diz que
“preservaram-se as igrejas barrocas, os fortes militares, as casas
grandes e os sobrados coloniais. Esqueceram-se, no entanto das
senzalas, os quilombos, as vilas operárias e dos cortiços”
(FERNANDEZ 2017). Além disso ficou a violência, o racismo, a
exclusão e o lugar petrificado do negro e principalmente da mulher
negra na sociedade, ocupando ambientes subalternizados e sendo
excluídas dos espaços de poder e dos que o possibilitam, como as
escolas e universidades.

Essa concepção de ensino de história mutilada, eurocêntrica e


universal criou a ideia de uma história única, um passado
homogêneo, sem conflitos, contradições ou mesmo disputas
construindo uma identidade do povo brasileiro colada no mito
fundador instituído pela escrita dos europeus que aqui chegaram.
Joel Rufino (2016) argumenta que a história do Brasil ensinada em
muitas escolas seria a “crônica patriótica da vitória dos europeus
sobre os povos americanos e africanos”, tal homogeneização dos
saberes e conhecimentos, segundo o autor, empobrece a civilização.

Ricardo Oriá (2005) e Petronilha Goncalves (2007) afirmam que o


conhecimento e a valorização dos diversos povos, etnias e culturas
são fundamentais para impulsionar uma educação e uma sociedade
mais democrática e com menos evasão escolar, formando desta feita
homens e mulheres “empenhados em promover condições de
igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos
direitos de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes pertencimentos
étnico-raciais e sociais”. Tal pluralidade cultural faria, segundo
Petrolina que os discentes reconheçam e valorizem as diversas
visões de mundo, contribuições e experiências históricas dos
diversos povos, enxergando o país de modo mais complexo e

116
percebendo a importância histórica da raça para direcionar as
condições econômica, social e cultural da população
afrodescendente.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais ao acrescentarem a temática


da pluralidade cultural como tema transversal a percebem como
importante ferramenta para superar, em conjunto com outros
fatores, as desigualdades existentes no país, propiciando uma
cidadania cultural e um exercício democrático mais amplo. O
conhecimento destes “brasis” seria fundamental para criar atitudes e
gerar um posicionamento antirracista.

Em “uma epistemologia para a próxima revolução” Linda Alcoff


(2019) argumenta a urgente necessidade de pensar a produção do
conhecimento a partir de outras perspectivas que não sejam
unicamente masculina, elitista, eurocêntrica e universal. Segundo a
autora existe um imperialismo epistemológico ocidental, que precisa
ser questionado e acima de tudo localizado, nenhum saber pode se
julgar universal, todo conhecimento é limitado, parcial e localizado.
Nessa mesma perspectiva torna-se fundamental que se democratize
o ensino da história do Brasil, que se possibilite o acesso a outras
cosmogonias, outras geografias da razão e do saber.

Onde estão os saberes das mulheres de terreiro, das Ialorixás e


Babalorixás, das mulheres dos movimentos sociais? Das irmandades
negras, das quitandeiras, das mulheres negociantes que juntaram
bens e se locomoveram socialmente e as amas de leite? Onde estão
as mulheres negras na história do Brasil? Como elas foram
historicamente retratadas? Acreditamos que o desvendamento
destas mulheres no ensino de história é nevrálgico para conduzir o
país a uma cidadania plena, onde os diversos sujeitos sejam

117
conhecidos e reconhecidos em suas produções e consequentemente
sua humanidade.

Referências:
Mestrando em Ensino de História (PROFHISTORIA) pela UFPA,
Bacharel e Licenciado pela UFPA, Especialista em História e Cultura
Afro-brasileira pela Universidade Cândido Mendes (RJ) e Professor
do Instituto Federal do Pará, campus Paragominas.

[1] Palestra no TED com o tema: “o perigo de uma história única”.


Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ. Acesso em: 10
jan. 2019.

Texto referente a uma parte da dissertação em construção que tem


como título parcial: “De Dandara a Firmina: o ensino de história do
Brasil a partir de mulheres negras”.

ABUD, Katia. Formação da alma e do caráter nacional: ensino de


história na Era Vargas, Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 6
p., São Paulo, 1998. P. 6.

ALCOF, Linda Martín. Uma epistemologia para a próxima


revolução, Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1
Janeiro/Abril 2016. Disponível em:
www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00129.pdf. Acesso
em: 18. mai. 2019.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1982.

118
COSTA, Bernardino Joaze & GROSFOGUEL, Ramón.
Decolonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado –
Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. Disponível em: https://
www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00015.pdf. Acesso
em: 23 maio. 2019.

CORONIL, Fernando. Beyond occidentalism? Towards non-imperial


geohistorical categories. Cultural Anthropology, v. 11, n. 1, p. 51-87,
Feb. 1996.

FERNANDES, José, Ricardo, Oriá. Ensino de história e diversidade


cultural: Desafios e possibilidades. Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n.
67, p. 378-388, set./dez. 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v25n67/a09v2567.pdf. Acesso em:
14 de maio. 2019.

FERNANDES, José, Ricardo, Oriá. Memória e ensino de história. In:


BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São
Paulo: Contexto, 2017. P. 128-147.

FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva. 1990. P.123.

HOBSBAWM, Eric, J. Sobre história. São Paulo: Companhia das


letras, 2013. P. 17.

MATTOS, Rinaldi Selma de. In: Ilmar Rohloff de Mattos (org).


Histórias do Ensino da História no Brasil. 1998. Rio de Janeiro:
Access, 1998.

MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais.


Colonialidade, saberes subalternos e pensamento limiar. Belo
Horizonte: Editora UFMG,2003.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG):


Letramento: Justificando, 2017. P. 26.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,


instituições e questão racial no Brasil -1870-1930. São Paulo:
Companhia das letras, 1993. P. 129-175.

119
SANTOS, Joel Rufino dos. A questão do negro na sala de aula. São
Paulo: Global, 2016. P. 23.

SILVA, Goncalves, Beatriz, Petrolina. Aprender, ensinar e relações


étnico-raciais no Brasil. Educação. Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3
(63), p. 489-506, set./dez. 2007. Disponível em:
revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/download/27
45/2092. Acesso em: 14 de maio. 2019.

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS:

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro051.pdf

Palestra no TED com o tema: “o perigo de uma história única”.


Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ. Acesso em: 10
jan. 2019.

120
O USO DE FONTES HISTÓRICAS NO
PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM E AS
POSSIBILIDADES JUNTO AO CINEMA
LAYS FERNANDA OLENIUK

A História ciência há muito percebe a importância das fontes, a


partir delas são possíveis as mais diversas interpretações sobre a
humanidade. Contudo, as fontes consideradas privilegiadas durante
muitos séculos eram os documentos impressos/manuscritos,
principalmente os dos grandes fatos e heróis, qualquer outro
fragmento, vestígio ou relato era ignorado.

No início do século XX a chamada Escola dos Annales ampliou


consideravelmente a noção de fonte, possibilitando o uso de
documentos diversos no processo de escrita da História. Mais tarde,
a Nova História reafirmaria esses preceitos, transformando
definitivamente a forma de se construir essas narrativas. Defendia-
se a ampliação do termo documento, como afirma Le Goff “[...] há
que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo,
documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem ou de
qualquer outra maneira” (LE GOFF, 1984, p.98). A partir desta nova
compreensão incluíram-se como fontes: fotos, artefatos e objetos,
vídeos e filmes, relatos orais e outros vários vestígios que se
relacionam às ações do homem no tempo.

Tal movimento no campo historiográfico somado a preocupações


metodológicas do ensino de história, especialmente da década de 90,
refletiram sobre as diretrizes educacionais, as quais passaram a
incentivar o professor a utilizar as mais variadas fontes históricas
em sala de aula, objetivando a produção do conhecimento histórico
e o desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos.

121
A utilização de fontes históricas dentro do processo de ensino-
aprendizagem possibilita aos estudantes um melhor entendimento
das diferentes formas da narrativa histórica, bem como a percepção
de sua construção e não da História como algo natural e
acabado. Assim, o uso da fonte histórica permite valorizar a
problematização dos conteúdos, o questionamento sobre
determinadas temáticas se torna parte importante no processo de
formação do educando. Temáticas que muitas vezes não aparecem
de forma expressiva ou suficiente nos materiais didáticos, podem
ser problematizadas desta forma.

Neste sentido, para Pereira e Seffner, “[...] O alvo principal do


ensino de história na escola é a construção da compreensão de que
estudar esta disciplina é uma ação social que se dá no presente”
(PEREIRA; SEFFNER, 2008, p.119). Segundo os autores, ao se
aprender a problematizar a realidade, o aluno começa a entendê-la
como construção e não acaso. Quando o aluno passa a se entender
como sujeito da História, tem a possiblidade de fazer as escolhas
mais adequadas a sua vida, tomando posicionamentos em relação
aos acontecimentos de seu tempo, questionando as desigualdades
de sua realidade.

De acordo com os editais do Programa Nacional do Livro Didático,


o uso de documentos em sala de aula é imprescindível, no entanto,
devemos ressaltar que sua presença não garante sucesso na
aprendizagem, cabe ao professor problematizá-la. Ao fazê-lo de
forma correta, o trabalho com as fontes gera benefícios tanto para os
estudantes como para os professores, pois estes tem a oportunidade
de reafirmar o estatuto de ciência da História, problematizando a
complexidade e importância da construção do conhecimento da
área.

“Ou seja, queremos que o estudante se torne alguém capaz de


reconhecer na História o estatuto de uma ciência, com seus limites e
suas possibilidades. Não precisamos para isso, necessariamente,
ensinar o estudante a ler um documento, mas apenas, singelamente,
a desconfiar do documento, a olhar pra ele como uma construção do

122
seu tempo e percebê-lo como um engenho que uma determinada
civilização criou para mostrar às gerações seguintes uma imagem de
si mesma” (PEREIRA; SEFFNER, 2008, p.127).

Dentre todas as fontes históricas possíveis a partir do entendimento


ampliado do termo documento, a linguagem cinematográfica se
estabelece como fonte histórica praticável para a sala de aula. No
entanto, para que essa alternativa se fizesse viável com aval de
historiadores e estudiosos da educação fez-se necessário um longo
processo de debates em ambos os campos.

A descoberta de um equipamento que captava a imagem-


movimento no século XIX constituiu um grande passo para a
humanidade. O cinetoscópio desenvolvido por Willian Dickson
ultrapassava a inércia das fotografias e dava às pessoas a
possibilidade de assistir as imagens no próprio aparelho. Poucos
anos depois Leon Bouly foi o responsável por evoluir a criação, ele
nomeou cinematógrafo, o aparelho que reproduzia as imagens-
movimento em uma grande tela. No entanto, foram os
irmãos Lumiére que patentearam a invenção, e iniciaram exibições de
suas pequenas produções ao público. Nas três primeiras décadas do
século XX o cinema se afirmou como arte, e cresce cada vez mais
desde então. (NAPOLITANO, 2003, p. 68/69)

Lidar com tais modernidades não foi fácil para os historiadores de


início, acostumados a fazer suas análises a partir de documentos
escritos e oficiais, essa e outras fontes eram mal vistas,
marginalizadas. Segundo Marc Ferro, o filme de início era visto
pelas pessoas em geral como uma atração de feira e para os
historiadores, a desconfiança era incomensurável. Ele nos afirma
que,

“O cinema ainda não era nascido quando a história se constitui,


aperfeiçoou seus métodos, parou de narrar para explicar [...] No que
diz respeito ao filme e outras fontes não escritas, creio que não se
trata de incapacidade nem de retardamento, mas sim de uma recusa

123
em enxergar, uma recusa inconsciente, que procede de causas mais
complexas” (FERRO, 1992, p.79).

À medida que os filmes foram ganhando espaço na sociedade, os


historiadores, especialmente os que se debruçavam sobre a história
das mentalidades, passaram a incluí-los em suas pesquisas. Jorge
Nóvoa atesta que,

“ [...] quando o historiador passou a observar o filme, para além de


fonte de prazer estético e de divertimento, rapidamente ele o
percebeu como agente transformador da história e como registro
histórico” (NÓVOA, 1995, p.106).

Contudo, muitas dúvidas permeavam a relação história- cinema


neste início, seriam os filmes representações fiéis da realidade?
Quais as probabilidades de adulteração de uma imagem? Para a
grande maioria dos estudiosos no assunto, um filme testemunha
muitas coisas, quando se retrata um passado, o filme na verdade
está dizendo mais sobre o presente daquele que o constituiu, do que
o próprio passado em si. Hoje se pode afirmar, o filme é um agente
da história, e não produto dela. Ferro diz,

“Que o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção,


intriga autêntica ou pura invenção, é História. Já o postulado é que
aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções e o imaginário do
homem, é tanto a História quanto a História.” (FERRO, 1992, p. 203.)

A metodologia então desenvolvida para trabalhar com fontes


audiovisuais demanda uma análise completa por parte do
pesquisador,

“[...] analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura,


as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção,
o público, a crítica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à
compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela
representa.” (FERRO, 1992, p.190)

124
Na relação ensino-aprendizagem e filme, este esforço também se faz
necessário, haja vista que para ser entendida efetivamente enquanto
fonte histórica prescinde de uma metodologia específica aplicada
por parte do professor. Ao se trabalhar de forma correta, o cinema
cumpre uma função cultural e social, a qual muitos somente têm
acesso no ambiente escolar. De acordo com Marcos Napolitano,
“Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a
reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o
cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores
sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte.”
(NAPOLITANO, 2003, p.11)

Diversas habilidades podem vir a ser desenvolvidas nos alunos


diante de um trabalho consciente com os recursos audiovisuais.
Segundo Napolitano,

“[...] leitura e elaboração de textos; aprimoram a capacidade


narrativa e descritiva; decodificam signos e códigos não verbais;
aperfeiçoam a criatividade artística e intelectual; desenvolvem a
capacidade de crítica sociocultural e político-ideológica [...]”
(NAPOLITANO, 2003, p.18)

Além destes, o uso do cinema em sala de aula possibilita ao aluno


desenvolver um olhar mais crítico sobre obras midiáticas e a
Indústria Cultural. É preciso ressaltar que as competências possíveis
de serem desenvolvidas variam de acordo com faixa etária e em
relação ao conteúdo escolar proposto. (NAPOLITANO, 2003,
p.18/19)

Em um país de dimensões continentais como Brasil, a realidade


econômica desigual reflete diretamente no sistema educacional. A
falta de recursos nas escolas compromete o trabalho com recursos
audiovisuais, haja vista que em muitas nem os recursos básicos são
fornecidos. Os colégios privilegiados que possuem todo o aparato
instrumental necessário para a prática enfrentam dificuldades de
outra ordem: a pedagógica. Como nos coloca Caimi,

125
“São preocupações que teimam em permanecer no ideário, sem
penetrar efetivamente nos fazeres pedagógicos, ou serem assumidas
nos projetos escolares no âmbito da educação básica, senão como
experiências isoladas bem-sucedidas, protagonizadas pela iniciativa
e opção pessoal dos professores. Muitas inovações metodológicas,
não obstante terem sido concebidas com ótimas intenções,
conseguiram tão-somente dar um caráter mais lúdico e atrativo à
História escolar, sem necessariamente desafiar os conteúdos
selecionados, a perspectiva cronológico-linear, a narrativa
protagonizada pelo professor e o papel pouco ativo do estudante.”
(CAIMI, 2011, p.2)

O trabalho do professor dentro desse contexto extrapola somente o


fazer em sala de aula, torna-se necessário um elo entre a pesquisa e
o ensino, reflexões teóricas que possibilitem recortes apropriados de
tempo, espaço, tema etc. O que nos leva a necessidade de repensar a
formação dos futuros professores, dando-lhes a possibilidade de
vivenciar ainda dentro da academia essas questões. (CAIMI, 2011, p.
4).

Portanto, o atual entendimento da necessária utilização das mais


diversas fontes históricas na composição do processo de ensino-
aprendizagem, se ampara no aspecto da valorização do ensino
crítico. Os filmes neste sentido apresentam grande potencial para
problematização em sala de aula.

Referências

Lays Fernanda Oleniuk é acadêmica de História da Universidade


Estadual do Centro-Oeste, orientanda da Prof. Dra Carmen Lúcia
Gomes de Salis.

LE GOFF, Jacques. Documento/ Monumento. In: Enciclopedia


Einaudi. Porto: Imprensa Nacional, 1984.
PEREIRA, SEFFNER. O que pode o ensino de história? Sobre o uso
de fontes na sala de aula, Porto Alegre, 2008. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7961

126
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Editora Paz e Terra,
1992.
NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. Olho na
História, nº1, 2013. Disponível em:
http://www.oolhodahistoria.ufba.br/01apolog.html
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São
Paulo: Contexto, 2003.
CAIMI, Flávia Eloisa; LAMBERTI, Mayara Hemann; FERREIRA,
Mariluci Melo. O cinema como fonte histórica na sala de aula. Anais
Eletrônicos do IX Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino
de História. Florianópolis, 2011.

127
ENSINO DE CONCEITOS HISTÓRICOS
ATRAVÉS DA FICÇÃO -
POSSIBILIDADES DO USO DO
CINEMA NO ENSINO FUN DAMENTAL
KÉDSON NASCIMENTO MACIEL

Rocky era novamente o campeão mundial de boxe e após a morte do


amigo Apollo nas mãos do lutador soviético Drago, é intimado a
partir para a União Soviética, enfrentá-lo e vingar seu amigo. Esse é
o enredo do filme Rock IV (1985) e aborda de maneira criativa, e
claramente panfletária do American Way of Life, a Guerra Fria.

Utilizando-me desse enredo iniciei uma aula sobre as relações entre


os filmes e hq’s e as entrelinhas históricas da sua produção no
cotidiano da Guerra Fria. Como se tratava de um filme antigo
busquei aproximar mais do cotidiano dos estudantes com o Hulk,
personagem da editora Marvel criado em 1962, e que apresenta
elementos do medo cotidiano das pessoas daquela época das novas
tecnologias trazidas pela guerra. O cientista que se transforma em
um monstro devido a uma explosão de uma bomba – no caso, de
raios gama, não uma atômica –, acaba por mostrar como nossa vida
poderia ser mudada, de um minuto para outro, por aquelas
tecnologias.

Naquele momento não apresentei os filmes, somente cenas em um


slide e um longo discurso. Não foi, admito, a melhor das opções, já
que a experiência de assistir a cena, as cores, a luz, poderia ter
atraído os estudantes para o debate, muito mais do que só a minha
fala. O discurso, no entanto, virou pesquisa e por fim um projeto
apresentado na feira de cultura e ciências na escola, onde os outros
alunos puderam não somente ler quadrinhos, assistir trecho de

128
filmes como também conhecer as correlações entre a História e
aqueles heróis que conheciam e consumiam, muito mais por vídeo
que pelas HQ’S.

Mas o caso relatado aqui teve outro desdobramento interessante. A


aula em questão teve a presença de outra professora, no caso a
responsável pela sala de informática que utilizei. Esta chamou-me
de lado e comentou nunca ter sido capaz de enxergar nada do que
eu falava, apesar de se considerar uma amante de cinema.

Daí a pergunta que desencadeia a pesquisa. Se alguém com uma


formação acadêmica, mesmo que não nas humanidades (a
professora era de Matemática) se considera incapaz de correlacionar
a ficção com a realidade histórica, como pensar essa mesma
capacidade em estudantes adolescentes, entre 12 e 15 anos? E mais
que isso, qual o papel do professor nessa “incapacidade” e como
mudar esse quadro? A ciência histórica, escutar-se-ia, não trabalha
só com os “fatos reais”?

Este trabalho de pesquisa aborda como o ensino dos conceitos


históricos de totalitarismo e democracia a partir dos filmes Star
Wars: Episódio III - A Vingança dos Sith e Star Wars: Episódio VII - O
Despertar da Força em turmas de nono ano do Ensino Fundamental
das Escolas Municipal São João Bosco e Estadual Nilza Nascimento,
ambas situadas no município de Castanhal/Pará. Assim,
discutirá diferentes possibilidades para o ensino de História e
pretende demonstrar paralelos entre a construção da história
ficcional dos filmes da série Star Wars com narrativas da História
discutida em sala de aula, buscando dinamizar o processo de ensino
e aprendizagem e tornar o ensino mais lúdico e próximo da
realidade e da idade dos estudantes.

129
Incorporar uma história fantasiosa ao trabalho do
pesquisador/professor no ensino dos conceitos é a base norteadora
para este trabalho. Proponho desenvolver aqui um debate das
possibilidades de apresentar os conceitos históricos antes da
narrativa histórica, mas fazê-lo não através da simples explanação,
mas de elementos comuns no dia-a-dia dos estudantes: filmes,
desenhos animados, mangás, super-heróis entre outros exemplos da
cultura pop, na tentativa de atraí-los para o debate e somente depois
aprofundá-lo com o conhecimento científico.

Considerando que na internet a oportunidade de busca de


conhecimento é fácil (mesmo que nem sempre confiável) e nas redes
sociais o debate político é cada vez mais acirrado, o papel do
professor na relação ensino-aprendizagem é muitas vezes
questionada, quando não desqualificada. Repensar o papel do
historiador nesse processo tão desafiador é então essencial. Dessa
forma penso como Guimarães (2013, p. 143), onde o ensino de
História deve “preparar o aluno para a vida democrática, permitir
que os alunos possam progressivamente conhecer a realidade, o
processo de construção de História e o papel de cada um como
cidadão no mundo contemporâneo”.

Um exemplo pode nos ajudar a entender melhor esse contexto. Foi


notícia corrente na rede de internet brasileira um debate irrelevante
no meio científico, mas que acabou se disseminando e acabou
chamando atenção dos jornais e até mesmo da Embaixada da
Alemanha. A discussão dizia respeito a uma suposta mentira dita
por professores em sala de aula de todo o país sobre o Nazismo: que
este seria um regime de extrema direita. O embaixador da
Alemanha no Brasil, Georg Witschel, em entrevista à revista Carta
Capital comenta a discussão ao dizer que “Nunca ouvi uma voz
séria na Alemanha argumentando que o nacional-socialismo foi um
movimento de esquerda” e “foi uma surpresa que, mesmo no Brasil,

130
haja pessoas que neguem o Holocausto e que falem do movimento
nazista como se ele fosse de esquerda”. Usando de sites, blogs e
livros de pessoas pouco familiarizadas com o mundo acadêmico e as
discussões sobre o tema, aos estudantes apontam os professores
como mentirosos, doutrinadores mostrando a importância de o
professor buscar um contraponto.

Para o professor, a necessidade de explorar, confrontar e evitar que


revisionismo como este sejam perpetuados entre a população mais
jovem, que é, em grande medida, o público-alvo desses canais de
informação torna-se essencial o debate dessa História que se
denomina do tempo presente. Bloch nos lembra também que “… a
incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do
passado” (BLOCH, 2001: 65) e compara a antiquários aqueles que
são incapazes de olhar para o seu presente e se limita ao passado.

Antonie Prost, lembra da importância dos historiadores se


envolverem mais na História por demanda social, que é mais
interessante aos leitores, ao público em geral, mas que não
acrescenta nada de novo na discussão da História acadêmica em si

“Para a profissão de historiador, é importante que essa história seja


feita por profissionais: abandonar a vulgarização aos jornalistas
especializados seria tão perigoso quanto renunciar a formação dos
professores dos liceus e colégios. Ocorre que, em geral, a pertinência
dessa história, tal como a dos compêndios, é duvidosa: a frente
pioneira da disciplina raramente lhe presta atenção” (PROST, 2008:
83-84).

O século XXI, seu progresso científico e tecnológico constante, assim


como as mudanças políticas e sociais, além de, não menos

131
importante, a profunda ligação com as “redes sociais” em que boa
parte do mundo contemporâneo vivemos, nos traz uma quantidade
de informações tão demasiada e por muitas vezes rasas, produzidas
por pessoas que não detêm o método histórico, mas uma leitura fácil
e agradável, chamadas por Marieta Ferreira de history
maker (FERREIRA, 2002: 326), ou ainda mais preocupante, pessoas,
muitas vezes youtubers, que, por má fé ou falta de conhecimento da
História falseiam fatos vistos como verdades por seus seguidores.

Essa é uma situação que causam inquietações tanto aos estudantes


quanto aos professores/pesquisadores. Santos reitera isso ao dizer
que

“[...] se vê agigantar outras formas de levar ao alcance do público


determinadas interpretações histórica, muitas destes desprovidas de
qualquer critério científico e, até mesmo ético. E, por adotarem uma
roupagem que, propositalmente, dialoga com o tempo presente e a
linguagem do público ao que se destinam, acabam por atingir um
resultado considerável e um alcance que não deve ser
desprezado” (SANTOS, 2018: 24-25).

Portanto, ao tentar estudar o totalitarismo e a democracia a partir


dos filmes de Star Wars, procuro, não somente mostrar que a cultura
se utiliza, de maneira alegórica, de narrativas históricas, de fatos
históricos, de conceitos históricos para criar seu mundo ficcional,
mas que por ter um enredo propositalmente construído para
encantar e facilitar o entendimento do público, pode ser uma porta
de entrada valiosa dos debates em sala de aula, não sendo portanto,
um trabalho de verossimilhança, uma tentativa de utilizar a
narrativa de vida e de mundo dos Skywalkers como uma explicação
do que ocorreu nos regimes totalitários e nas lutas sociais que se
fizeram contra eles, mas apenas abrir caminho para a discussão da

132
narrativa histórica propriamente dita. Creio ser possível amplificar
os resultados, quando ao conhecimento histórico dos estudantes
com essa metodologia e não somente com estes filmes em especial,
mas em diversos outros produtos inseridos na cultura pop, popular
entre jovens e adultos.

Para relacionar o conceito e a narrativa histórica ao filme, é preciso


mostrar que os elementos que estão incluídos na palavra e que a
tornam um conceito estão presentes no universo do filme, ou seja, o
conceito se aplica mediante a perceptividade de suas características
na palavra, que no caso é o roteiro, a apresentação, o envolvimento
visual e auditivo e a narrativa que o filme possibilita em sua ficção.
Sobre isso, Kosseleck nos diz:

“Todo conceito se prende a uma palavra, mas nem toda palavra é


um conceito social e político. Conceitos sociais e políticos contêm
uma exigência concreta de generalização, ao mesmo tempo em que
são sempre polissêmicos. (...) uma palavra se torna um conceito se a
totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e
para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela” (KOSSELECK,
2006: 109).

Sobre a importância desse tipo de estudo, que a autora diz, já em


1999, vem sendo considerado substancial no ensino, Schmidt diz:

“Alguns livros didáticos, por exemplo, têm proposto que isto seja
feito sobre a forma de exercícios, do tipo “Assimilando conceitos” ao
final de cada capítulo estudado. Nesse caso, trata-se de uma
atividade de aplicação do conteúdo estudado, onde o conceito é
visto apenas como produto do conhecimento adquirido pelo aluno e
não como uma construção sistemática, que pode ocorrer em várias

133
situações, tendo como referência o próprio conhecimento do
educando” (SCHIMIDT, 1999: 147).

Nesse sentido, a autora está em consonância com Rocha, que define


como ponto de partida para o processo de ensino-aprendizagem dos
conceitos

“...os conhecimentos prévios que os alunos trazem de casa. Ao


fomentar essas atividades, a abordagem de conceitos torna-se
interessante para que o aluno possa, a partir da busca e indagação,
compreender o fenômeno observado, interpretar o problema, bem
como estabelecer vínculos entre os diferentes conteúdos do
currículo” (ROCHA, 2015: 101).

Considerar que o mundo fora da escola oferece tantas ou mais


oportunidades para que o aluno conheça e interaja com cada um
desses conceitos e forme sua própria ideia de seu significado.
Espera-se que o educando não se prenda em apenas reproduzir o
conhecimento adquirido, mas possa, para além da aquisição,
construí-lo e utiliza-lo na vida, de maneira crítica.

Ao apresentar socializar os filmes aqui propostos, onde tais


características se mostrem com mais vivacidade, o estudante
poderia ter uma aproximação mais agradável com a temática? Seria
seduzido pelo debate aprofundado, ou seria distraído ainda mais
pela narrativa mais superficial de luta entre o bem e o mal?

Ao optar pelo uso do cinema para o debate e a construção dos


conceitos históricos com os estudantes como foco desta pesquisa
espero aprofundar o debate sobre as dificuldades de apreensão dos

134
conceitos pelos estudantes. O debate sobre a arte cinematográfica e o
ensino já é bastante largo, percorrido por muitos pesquisadores
desde a invenção do cinema, tendo como precursores Marc Ferro e
Pierre Sorlin e já era proposta pedagógica como é o caso de Jonathas
Serrano, professor do Colégio Pedro II, no Brasil, que propunha o
uso dos filmes para facilitar o aprendizado da disciplina e a
considerava uma ilustração da História desde 1912
(BITTENCOURT, 2008: 371).

O cinema é parte da capacidade cultural humana de materializar


ideias, discursos e interpretações do mundo. Seja ele, um filme
histórico ou uma ficção, a produção cinematográfica só existe na
relação que faz com o público. Não existe cinema sem público e este
não se torna um espectador desse produto se não encontra paralelos
com sua própria identidade e noção de mundo. Quando se trata de
filme histórico, por exemplo, é importante a observação de Ferro
quando diz que esse, “ou, mais geralmente, de História, constitui
somente a transcrição fílmica de uma visão de História que foi
concebida por outros” (FERRO, 2010: 184)

Assim, imbuído de visões históricas, o filme pode torna-se um ponto


de reflexão para as abordagens sobre o ensino-aprendizagem de
História que pode ser debatido de diversas formas. No entanto,
ainda se observa nos ambientes escolares é o uso indevido dessa
ferramenta como mostra Santos

“Não são poucos os casos onde a utilização de determinado filme


em sala de aula tem como objetivo totalmente destoante daquele
que deveria ter, que é a reflexão crítica. Afinal vemos casos onde seu
uso é meramente ilustrativo ou, pior ainda, para ocupar o espaço de
uma aula não preparada ou para entreter o grupo de

135
alunos rebeldes e desobedientes” (SANTOS, 2018: 23). (Grifo original
do texto)

Neste trabalho, parte-se da hipótese que esse desinteresse dos


discentes por filmes não se aplica na realidade. Ao contrário, os
estudantes têm sim interesse pelo conteúdo histórico, mas nem
sempre pela maneira como é apresentado. Um filme como A lista de
Schindler (1995) ou O nome da Rosa (1986), muito apreciado por
professores, podem não ter a mesma efetividade atrativa
que 300 (2006) ou O resgate do soldado Ryan (1998). Em todo caso, a
análise dos filmes em sala de aula pode nos ajudar a debater não só
as narrativas como também conceitos históricos importantes, desde
que bem orientadas, ajudando na compreensão crítica da realidade.
Podemos perceber esse debate nas palavras de Kátia Abud

“[...] pode-se afirmar que o filme promove o uso da percepção, uma


atividade cognitiva que desenvolve estratégias de exploração, busca
de informação e estabelece relações. Ela é orientada por operações
intelectuais, como observar, identificar, extrair, comparar, articular,
estabelecer relações, sucessões e causalidade, entre outras. Por esses
motivos, a análise de um documento fílmico, qualquer que seja seu
tema, produz efeitos na aprendizagem de História, sem contar que
tais operações são também imprescindíveis para a inteligibilidade
do próprio filme” (ABUD, 2003: 191).

Além disso, o cinema, as séries, os desenhos animados, os hq’s e os


mangás são parte do cotidiano social por todo o mundo. Uns mais
outros menos, todos estão no dia-a-dia de crianças, jovens e adultos
e cada um desses meios de entretenimento tem bebido
constantemente no universo da História e, como lembra Napolitano

136
“O cinema descobriu a história antes de a História descobri-lo como
fonte de pesquisa e veículo de aprendizagem escolar. No início do
século XX, os “filmes históricos” quase foram sinônimo da ideia de
cinema, tantos foram os filmes que buscaram na história o
argumento para seus enredos” (NAPOLITANO, 2008: 240).

Partindo desse problema, neste trabalho procuro me deter na


discussão de metodologias para o ensino de conceitos históricos
antes da própria narrativa histórica, buscando assim, que o discente
seja mais capaz de compreender tal narrativa mesmo fora da sala de
aula, como diz Nadai “...ensinar história é também ensinar seu
método e, portanto, aceitar a ideia de que o conteúdo não pode ser
tratado de forma isolada. Devesse menos ensinar quantidades e
mais ensinar a pensar historicamente” (NADAI, 1993: 159).

Como aqui o foco não será o filme denominado histórico e sim o


cinema ficcional, é preciso lembrar que embora seja uma fonte
histórica tal qual uma certidão de nascimento ou um inventário, tem
uma função bastante diferenciada, que é a de entreter, o que torna
ainda mais difícil para o professor e o estudante o entenderem como
processo de ensino-aprendizagem e não como um tapa-buracos ou
uma distração. A discussão focar-se-á em apresentar os conceitos
históricos de forma alegórica na cultura pop, mas entre as inúmeras
possibilidades optei por concentrar-me no universo de Star Wars.

A série Star Wars é, além de uma das mais famosas e lucrativas da


História, perpassa por várias épocas e públicos. O primeiro filme da
série (lançado em 25 de maio de 1977 somente como Star Wars e
depois renomeado para Guerra nas Estrelas: Episódio IV – Uma Nova
Esperança, no Brasil) tornou-se um ícone cult e deu início a uma série
de épicos/space operas (subgênero da ficção científica que envolve
batalhas épicas, lugares exóticos e alienígenas, criado e difundido

137
por Wilson Tucker, autor de ficção estadunidense) que perdura até
os dias atuais. O eixo central da série é o constante atrito entre os
“lados da força”, sempre protagonizados pela família Skywalker e
sua relação com os Jedi e os Sith, usuários do lado luminoso e
sombrio da força, respectivamente. Em meio a este ambiente místico
desenvolve-se uma narrativa de disputas políticas, ideológicas e
sociais, que, bem ao estilo das space operas, se assemelha aquelas
vividas no mundo real.

O uso de um filme de ficção para debater a História quando este não


foi feito especificamente para esse fim parece desafiador, mas se
apresenta como um espaço amplo para o estudo científico e para a
prática escolar partindo do pressuposto que a própria ideia de que
se pode aprender a História mesmo no contato com atividades que
geralmente estão relacionadas à distração e não ao estudo pode ser
atrativa para os discentes. Para isso, é preciso “...perceber as fontes
audiovisuais e musicais em suas estruturas internas de linguagem e
seus mecanismos de representação da realidade, a partir de seus
códigos internos (NAPOLITANO, 2008: 236).

Assim, ao escolher o universo de Star Wars para o diálogo com esses


conceitos, pretendo não somente construir com os estudantes esses
conceitos e relacioná-los aos momentos históricos estudados, mas
também fazer perceber que estes estão para além das aulas, dos
filmes históricos e documentários e são usados no dia-a-dia social de
todas as partes do mundo, seja de forma, digamos “oficial”, para
não dizer histórica, mas também alegórica, como se apresenta no
mundo dos Skywalkers.

Referências

Sobre o autor

138
Kédson Nascimento Maciel é graduado em bacharelado e
licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Especialista em História da Amazônia, Universidade Federal do
Pará (UFPA). Professor de História e Estudos Amazônicos do
Ensino Fundamental na rede municipal de Castanhal e Estadual do
Pará. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ensino de
História pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Fontes jornalísticas.

Debate sobre nazismo de esquerda não é honesto, diz embaixador


alemão. 20/09/2018. In. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/d
ebate-sobre-nazismo-de-esquerda-nao-e-honesto-diz-embaixador-
alemao/

Bibliografia

ABUD, Kátia Maria. A construção de uma Didática da História:


algumas ideias sobre a utilização de filmes no ensino. História
online, vol.22, n.1 pp.183-193, 2003.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História:


fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de


historiador. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

FERREIRA, Marieta. História, tempo presente e história oral.


Revista Topoi, Rio de Janeiro, [online], dezembro 2002, vol.3,
n.5, pp. 314-332.

GUIMARÃES, Selva. Didática e Prática de Ensino de História. 13ª


ed. Campinas: Papirus, 2013.

139
KOSSELECK Reinhart. Sobre a teoria e o método da determinação
do tempo histórico. In: Futuro e Passado: Contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006,
p.p. 97-108.

NADAI, Elza. O Ensino de História no Brasil: trajetória e


perspectiva. Revista Brasileira de História. V.13, n 26. São Paulo:
USP, set/92/ago.93. p.143-162.

NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In. PINSKI, Carla


Bassaneri (Org.). Fontes históricas, São Paulo: Contexto, 2008.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte:


Autêntica, 2008.

ROCHA, Aristeu Castilhos da. Os conceitos e a mediação no


processo ensino e aprendizagem em história. Revista do Lhiste,
Porto Alegre, num.3, vol.2, jul/dez. 2015.

SANTOS, Rodrigo Luís. Cinema, cultura e ensino de História:


considerações sobre o uso do recurso cinematográfico em sala de
aula. Revista Espaço acadêmico, n. 201. Fevereiro/2018.

SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. Construindo conceitos no ensino


de História: A captura lógica da realidade Social. História em
ensino, Londrina, vol. 5, pp. 147-163, out, 1999.

140
“LUTA E APRENDIZAGEM ”:
VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
AFRO-BRASILEIRA NO COLÉGIO
MILITAR TIRADENTES EM CAXIAS-
MA
AYRTON COSTA DA SILVA
CAMILA JOSEANE E SOUSA RIOS COSTA
MIRIAN DA SILVA COSTA

O presente trabalho faz parte de um projeto desenvolvido numa


turma do Colégio Militar Tiradentes na cidade de Caxias-MA, com a
proposta de levar a cultura afro-brasileira para a escola, uma das
maneiras de buscar o respeito e a valorização da própria história
brasileira para com o negro, fazendo reflexões destas expressões
culturais, já que, estão inseridos no cotidiano dos educandos, sejam
elas em atividade escolar, familiar, em roda de amigos, nas religiões,
nas músicas, na linguagem, na estética, na culinária e nas danças.

Mas o que é ser negro em uma sociedade como a atual? Porque


existe discriminação racial, já que, somos todos iguais perante a lei?
Essas e muitas outras indagações permeiam o nosso imaginário.
Assim, o artigo buscou contemplar a valorização da identidade afro-
brasileira, e teve por objetivo, fazer uma conscientização e fomentar
o olhar crítico através dos relatos e fatos históricos, desde já fazendo
uma reflexão com a conjectura do presente. Já que “o Brasil figura
no âmbito internacional e nacional, como um país cuja marca maior
seria a plurietnicidades e multiculturalidade”. (LIRA. MELLO. 2017
p. 679). Levando em conta essas questões o combate ao preconceito
contra as culturas africanas na escola foi muito positivo com as
implantações da lei sancionada durante o governo Lula.

Com “[...] à aplicabilidade da lei n. 10.639/03. O desafio de superar


limitações provenientes da falta de conhecimentos da história e das
culturas africanas e afro-brasileiras, especialmente, na escola, é

141
fulcral na formação, hoje, considerando o fosso entre as politicas
educacionais de Estado e a sua implementação, especialmente no
que tange à adequação da formação inicial dos professores e à
obrigatoriedade do ensino de história e Cultura Africana e Afro-
Brasileira nos currículos escolares das redes publicas e privada de
ensino”. (LIRA. MELLO, 2017, p. 679).

Embora os educandos entendam todo o processo histórico, dos


movimentos imigratórios forçados dos negros do continente
Africano, que fez parte do processo de colonização da História deste
Brasil, foi marcado pela resistência de liberdade e de luta contra a
classe dominante. Temos enorme dificuldade em erradicar discursos
de inferioridade contra o outro, uma vez que “cotidianamente no
Brasil; negros, indígenas e outras categorias sociais excluídas são
vitimados pelo preconceito e discriminação nos mais diversos
espaços sociais” (LIRA. MELLO, 2017, p. 679). Desde que, não é raro
nos depararmos com heranças negras, em suas multiplicidades de
expressões e manifestações.

Assim foi fomentado aos educandos o respeito às heranças deixadas


pelas culturas negras, mas também foram discutidos temas que
presenciamos no cotidiano, temas que envolvem questões de
discriminação racial, de classe, da cor da pele, que se tornaram
mecanismos, uma camuflagem, de mascará uma realidade do
cotidiano da sociedade brasileira, que estes, por sua vez, são
estereótipos utilizados para ver o negro como um inferior, o
desigual.

Diante desta análise, partimos do pressuposto de pensar o negro na


atualidade, embora, o assunto já vem sendo abordado e discutido
em vários trabalhos acadêmicos. Mas porque ainda persistem cenas
de discriminação? No Brasil, quase sempre nos deparamos com os
noticiários de tevê e/ou no dia a dia, com cenas grotescas de
racismo, é árduo para uma pessoa de pele negra se posicionar diante
de um contexto de reivindicação contra seus direitos, um exemplo
nítido foi caso da vereadora Marielle Franco assassinada no Rio de
Janeiro.

142
Outro tema que chegar a gerar dúvidas, polêmicas são os sistemas
de cotas, na qual o negro, para adentrar na Universidade, precisa ser
submetido. Tendo em vista as realidades mencionadas acima, foram
discutidos, no projeto, sobre a valorização da identidade afro-
brasileira, fazendo com que os educandos possam refletir e se
conscientizarem sobre o mesmo.

“Compreender o mundo, compreender a sociedade, compreender a


si mesmo e compreender as relações socioculturais deve ser
competência necessária no processo de ensino aprendizagem.
Embora não seja fácil, nem para os professores nem para os alunos,
é possível apreender a ser mais quando se aprende a conhecer a
fazer e a viver com outros, especialmente, no direito á diferença no
contexto do multiculturalismo. A escola é o espaço em que deve
envolver os alunos na construção de saberes que garantam a
igualdade, do ponto de vista do exercício da cidadania e da
diversidade como direito”. (LIRA, 2017, p. 681).

DISCUTIDO IDEIAS DE PRENCOCEITOS DE RAÇA E CLASSE

O Afro-brasileiro, ou seja, a cultura Africana no Brasil foi uma


transposição de costumes e heranças. No passado, no período
colonial o negro foi o braço direito do êxito da empresa luso
brasileira, vieram trabalhar nas fazendas, lavouras, mineração,
afazeres domésticos. O negro desde o princípio sofreu preconceitos,
não tinham direitos, mesmo que tendo existido algumas leis, como a
Lei Ventre Livre, Lei do Sexagésimo e a abolição da escravatura
concebida em 1888. Entretanto, esse fim do regime, não garantiu e
nem assegurou seus direitos. Ainda prosseguindo com o século XIX,
o preconceito era latente, advindos das elites brancas, que
começavam a propagar discursos racistas, para com, o negro.

“[...] 1-no tocante à espécie humana, não existe ‘raça’ biológica, ou


seja, não há no mundo físico e material nada que possa ser
corretamente classificado como ‘raça’; 2-o conceito de ‘raça’ é parte
de um discurso científico errôneo e de um discurso político racista,
autoritário, anti-igualitário e antidemocrático; 3-o uso do termo

143
‘raça’ apenas reificar uma categoria política abusiva”
(GUIMARÃES, 2012, p.48-49).

Logo, foi incentivando aos educandos a tentar reeducar o olhar e os


discursos dos termos “raça” branca e negra, “não existe, é uma
invenção”, uma construção humana, um discurso produzido no
século XIX, um dispositivo utilizado nas políticas imperiais como
mecanismo de dominação do outro. Já por volta do século XX, com
o advento das políticas republicanas, aparece novamente à
discriminação contra as pessoas de pele negra, com ideias de
branqueamento da população, higienização dos centros das grandes
cidades, recolocando o negro em lugares como periferias, favelas. Já
que, o período republicano circulava as ideias de progresso, que o
país precisava ser civilizado e industrializado.

Nesse contexto, ficam nitidamente atreladas as ideias de classe, já


que o negro só fazia parte do sistema econômico brasileiro, mas,
também, temos algumas exceções de negros que se tornaram
escritores, muitas das vezes eram os que moraram com os senhores.
Mas ademais, o sistema era sempre ver o negro como ser inferior, é
obvio que são ideias de um discurso dominador no período em
vigência, já que em meados do século XIX, do imaginário da elite
branca, viam o negro como algo perigoso, que não podiam se
misturar. Embora, o termo “classe” era utilizado como instrumento
de poder, discriminação, pois, define o nível que os indivíduos se
encontram.

“[...] o termo “classe”, utilizado dessa maneira, passa a significar, ao


mesmo o tempo, condição social, grupo status atribuído, grupo de
interesse e forma de identidade social [...] “classe” não é concebido
como podendo referir-se a uma identidade social ou a um grupo
relativamente estável, cujas fronteiras sejam marcadas por forma
diversas de discriminação, baseadas e atribuídos como a cor [...]”
(GUIMARÃES, 2012, p.47)

É comum pensarmos e discriminarmos através da classe: rica e


pobre, o negro sempre foi tratado desta maneira, a questão da cor

144
está ligada diretamente com a discriminação de raça, racismo ou
também “mito das três raças: branca, negra e indígena”, partindo
deste pressuposto o termo “raça”. Foi incentivado aos alunos a rever
esses discursos que se propagaram ao longo do tempo.

MOVIMENTOS NEGROS E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA.

As discussões que envolvem os movimentos por liberdade dos


negros, sempre foram marcadas por lutas na história do Brasil,
movimentos de resistência de “Zumbi de Palmares”, As revoltas da
“Balaiada”, dos “Males”, que foram genuinamente movimentos
negros. Com o emergir dos anos 1930, no governo Vargas o
movimento de discriminação muda rapidamente, ou seja,
amenizaram devido à larga produção intelectual. Em vez de um
discurso racial, cria-se a ideia positiva da mestiçagem no Brasil,
tendo o esforço dos intelectuais, tanto no campo da literatura,
música, arte etc., para a história brasileira.

“Contudo, estereótipos e preconceitos raciais continuariam atuantes


na sociedade brasileira durante todo o período, intervindo no
processo de competição social e de acesso às oportunidades, assim
como influenciados no processo de mobilidade Inter geracional,
restringindo o lugar social dos negros” (THEODORO, 2012, p.52).

Como se percebe, as desqualificações era um fator de desigualdade


no mercado de trabalho, as oportunidades sempre foram diferentes,
além da pobreza que muitas dessas pessoas constituíam, ou seja,
não passou de um mascaramento das discriminações diante dos
negros. Até que volta dos anos 1970, ocorre o movimento negro,
passaram a protestar contra as desigualdades e mobilização social.
Já que, a cor representava um critério de seleção no mercado de
trabalho etc. Durante todos esses movimentos por melhores
condições de vida e de igualdade e valorização da identidade negra.

“Pela primeira vez no Brasil a defesa de uma posição quanto à ‘raça


à classe’ não foi marginalizada pela intelectualidade afro-brasileira
e, na verdade, passou a suplantar os modelos conformistas e

145
assimilacionista como postura dominante do movimento negro”
(DOMINGUES, 2006, p.113).

Os movimentos negros ganhavam força a partir deste período, mas


antes já havia certos movimentos como o Movimento Negro Unido -
MNU, o protesto contra o racismo, desigualdade, condições de
mobilidade social. Logo, com as constantes lutas em prol de seus
direitos, acabou conseguido colocar no calendário datas de memória
e valorização das identidades negras, como 13 de maio, marcado
pela abolição da escravatura, mas é marcado como dia Nacional de
Denúncia contra o Racismo. A outra data é de 20 de novembro dia
da Consciência Negra, como protagonista Zumbi de Palmares
escolhido como símbolo de resistência à opressão racial.

Todos estes movimentos buscam compreender a igualdade e


respeito, para com os negros. Assim, a partir destas ideias, a luta
pela cultura afro-brasileira. Devido aos problemas e visando o bem
comum foi aprovada pelo próprio MEC - Ministério da Educação e
Cidadania, para o ensino de História, a valorização e o respeito às
expressões da cultura afro-brasileira, legalizados pela lei 10.639/
2003 nos artigos 26-A: “Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficinas e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e cultura afro-brasileira.” (BRASIL, 2003). A lei
exige a inclusão da História afro-brasileira, nos ensinos educacionais
do país, para que, possam romper os preconceitos e luta pela
igualdade.

Como resultados, o Projeto obteve êxito, nossos objetivos foram


alcançados. As atividades foram realizadas com a divisão de grupos,
para fazerem uma pesquisa sobre as culinárias, danças, religiões e
estética. Cada grupo confeccionou o material da pesquisa e
apresentou para os colegas. Apesar de ser um projeto simples,
tivemos pouco tempo para a sua realização, a intenção foi levar aos
educandos o respeito às culturas afro-brasileira e também como um
instrumento de aprendizagem de valorização e de respeito para com
a nossa própria história.

146
Portanto, o Brasil é um espaço de cultura das mais variadas
expressões, que ao longo do tempo foram sendo implantadas em
nosso cotidiano, sejam elas na religião, na música, nossas maneiras
de expressar as palavras, nas questões estéticas atuais, além da
culinária. Todas essas tradições estão vivas em nosso dia-a-dia,
conquistaram um espaço que foram sendo atribuídos as mais
valiosas e identidades negras, e cabe a nós brasileiros prestigiar,
valorizar e acima de tudo respeitar.

REFERÊNCIAS

Ayrton Costa da Silva, acadêmico do Centro de Estudos Superiores


de Caxias-CESC/UEMA. Bolsista PIBIC-UEMA. É integrante do
grupo de Estudos de Justiça no Maranhão colonial. Mirian da Silva
Costa e Camila Joseane e Sousa Rios Costa também são acadêmicas
do Centro de Estudos Superiores de Caxias-CESC/UEMA. Curso
História. Ayrton e Mirian, Ambos os autores são Professores do Pré-
vestibular Revisão para o Enem.

BRASIL, Constituição. 2003

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns


apontamentos históricos. In. tempo. V. 12. n 23. A. 07. p. 100-122.
2006. Disponível em: www.scielo.br. acessado em: 29/06/19.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e


Democracia. Ed. 34. São Paulo. 2012.

LIRA, Rozalvez de. MELLO, Maria do Carmo de. Ensinar história


com religiosidade: afrodescendentes e a lei n. 10.639/03. Revista
retratos da Escola, Brasília, v.11, n. 21, p.677-695, jul./dez. 2017.
Disponível em:<http//www.esforce.org.br>. acessado em: 27/06/19.

THEODORO, Mário (org.). As políticas públicas e a desigualdade


racial no Brasil 120 anos após a abolição. IPEA, Brasília, 2008.

147
COMUNIDADES TRADICIONAIS NO
ENSINO DE HI STÓRIA: PARA ALÉM
DOS ESTEREÓTIPOS

FRANCICLEIA RAMOS PACHECO


ELBIA CUNHA DE SOUZA

1- INTRODUCÃO.

Em um contexto geral as populações tradicionais sempre foram


retratadas como um entrave ao progresso, como sendo grupos que
impedem a construção do futuro glorioso que chega através das
novas e preciosas construções, essa visão eurocêntrica não considera
a dinâmica social desses grupos, deixando de valorizar as
características que possuem, rotulando apenas como povos
atrasados.

O presente trabalho apresenta a discussão sobre as comunidades


tradicionais na Amazônia, destacando os conflitos que marcam a
região e como essas populações lidam com essa realidade,
considerando análises feitas em alguns documentos mostramos
como esses conflitos são recorrentes na história dessa região,
partindo dessas análises destacamos a importância da discussão
sobre esses grupos e como é necessário romper com o discurso que
apresentam esses sujeitos a partir de estereótipos. Destacamos
também possibilidades da utilização dessas fontes no espaço escolar,
como estratégia para desconstruir os estereótipos criados sobre esses
grupos, verificando as formas de resistência que desenvolvem para
sobreviverem a esses conflitos.

Nesse contexto, é importante destacar como esses conflitos têm em


sua origem os interesses de grupos particulares que buscam ter o
controle de um território, e não medem esforços para conseguirem
isso, nessas disputas os agentes envolvidos têm seus direitos

148
negados e o resultado disso são mortes e confrontos nesses espaços
de disputas, advindos principalmente dos interesses divergentes
entre esses grupos.

No Estado do Pará esses conflitos são recorrentes com a abertura de


estradas, construção de hidrelétricas e tantas obras que chegam à
região gerando impacto direto na vida das populações locais, “essas
novas dinâmicas têm acelerado o processo de expropriação e
exploração irracional do território, que resultam em desmatamento
e muita violência, envolvendo novos e antigos ocupantes do espaço
territorial” (SILVA/PEREIRA/SOUZA, 2012, p.1) na disputa por
esses territórios as empresas não consideram a dinâmica das pessoas
que moram nesses locais, geralmente colocam uma proposta,
impossibilitando a permanência deles no mesmo espaço, ocorrendo
assim uma mudança de território imposta por essas obras que
modificam não apenas o território, mas a vida das pessoas.

As comunidades tradicionais que têm seus territórios invadidos


lutam para manter o controle sobre esses locais, não apenas por si,
mas por todos os seus descendentes, pois é preciso garantir que os
direitos destes também sejam respeitados, para eles o território
“abrigam todas as formas de reprodução, ou seja, a dinâmica social
que inclui a econômica, a política e a cultural ” (SILVA PIMENTEL/
RIBEIRO, 2016 p.230) nesse sentido estão lutando sobretudo para
garantir a manutenção do seu território, por significar o espaço onde
desenvolvem suas dinâmicas sociais e o diálogo com diferentes
grupos.

Torna-se necessário o debate sobre a problemática da disputa por


territórios e o papel desempenhado pelas comunidades tradicionais,
verificando as estratégias desenvolvidas por esses grupos para
manterem o direito sobre esse espaço, além de pensarmos
metodologias para aplicarmos no Ensino de História ao ensinarmos
sobre esses sujeitos, buscando romper com os estereótipos que
foram criados e que muitas vezes permanecem no livro didático.

2- CONFLITOS REVELADOS NAS FONTES

149
O trabalho foi desenvolvido a partir da análise nos processos
criminais da comarca do Pará em 1837, buscou-se perceber nessas
fontes indícios sobre possíveis conflitos envolvendo populações
tradicionais na luta por seus territórios. Além de pensarmos sobre a
possibilidade de utilizar essas fontes nas aulas de História,
apresentando aos alunos a documentação dos processos criminais e
como manuseá-las para compreendermos as informações contidas
em suas páginas.

Nessa análise não existe uma menção clara e direta envolvendo o


nome das populações tradicionais, por isso é necessário o trabalho
minucioso de interpretação das fontes, percebendo nas entrelinhas
as informações que estamos buscando, mesmo não tendo o nome
desses grupos identificamos o relato de conflitos devido à invasão
de propriedade, nesses casos o proprietário faz reclamação na
Delegacia de Polícia exigindo que esses invasores sejam punidos.

Um dos documentos encontrados revela uma intimação destinada


aos sujeitos Pedro Pires e Mathias, acusados de “tiragem de madeira
(pau rosa)” solicita-se que compareçam na delegacia para darem
esclarecimentos sobre o ocorrido, percebemos como os proprietários
eram capazes de identificar os invasores, e através dessa
identificação procuravam diminuir esses ataques através das prisões
que ocorriam. É importante destacar também que nesse período as
invasões nas propriedades eram decorrentes da procura por
madeira, ou seja, alguns sujeitos eram contratados para invadirem
essas terras e tirar madeira, as constantes reclamações presentes na
comarca dizem respeito à essa prática de crime, assim como aqueles
que tem sua propriedade invadida reconhecem quem mandou
praticar tal crime exigindo que o responsável esclareça “porque
motivo mandou o seu pessoal invadir àquela propriedade ”. Assim
é possível perceber a permanência dessas reclamações, que tinham
por objetivo o controle e manutenção de um território.

Nota-se através disso que os conflitos e disputas pelos territórios


permanecem até os dias atuais, mesmo que tenha mudado os

150
personagens, o pano de fundo continua o mesmo, é a busca pelo
controle e a manutenção de um grande território, que para alguns é
sinônimo de lucros e riquezas, e para as comunidades tradicionais é
apenas o local onde vivem desde que nasceram e de onde retiram
tudo que precisam.

Um dos cenários conhecidos nessa região do Pará por essas disputas


é o campo, onde são travadas constantes lutas entre os grupos pela
posse do território, as alianças feitas entre o estado e os proprietários
busca enfraquecer o lado dos camponeses “como resultado milhares
de camponeses expulsos de suas terras passam a migrar para as
áreas urbanas em busca de trabalho, ou na pior das situações, em
busca de um lugar para morar” (SILVA/PEREIRA/SOUZA, 2012,
p.4) em síntese percebemos como essas disputas pelo território
movimenta os interesses de particulares, tanto nas Fontes que foram
analisadas do ano de 1937, quanto esses conflitos no campo atuais,
os sujeitos que ocupam um determinado lugar precisam lutar contra
o interesse de grandes proprietários, para que possam permanecer
no seu território de origem.

3-O ENSINO DE HISTÓRIA PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS

Ao que se refere ao Ensino de História das comunidades


tradicionais percebemos que o livro didático analisado não
contempla esses sujeitos como deveria, pois, as características desses
grupos e as dinâmicas sociais que possuem não são expostas,
permanecendo o discurso geral que não privilegia as relações
especificas de cada grupo, reproduzindo a ideia de que pertencem à
um mesmo grupo, quando sabemos que isso não é verdade. Por isso
é necessário desenvolvermos atividades com os alunos
possibilitando o conhecimento desses grupos, e das lutas que
travam pela conquista do seu território, como já refletimos não é
apenas sobre o local onde moram, e sim porque esse espaço abriga
todos os tipos de relações que conhecem. Para aproximar os alunos
desse debate é importante fazer um levantamento das comunidades
tradicionais existente na região, mostrando através disso que não

151
são grupos distantes, mas que permanecem na luta constante por
seus direitos.

É possível utilizar a realidade atual sobre os conflitos no campo para


iniciarmos os debates sobre as comunidades tradicionais, fazendo
comparações entre esses grupos e mostrando aos alunos as
diferentes realidades que enfrentam, despertando assim o interesse
deles de conhecerem personagens para além daqueles que o livro
didático apresenta devido o livro apresentar apenas alguns
personagens e na sua maioria com um discurso que não privilegia a
todos.

Além disso, é necessário romper com os estereótipos criados acerca


dessas populações tradicionais, que são vistas como atrasadas,
passivas, e que não reagem ao contato com outros grupos, essa ideia
desconsidera as particularidades desses sujeitos, ocultando suas
lutas e tudo que conquistaram ao longo da história, torna-se
essencial despertar nos alunos novos interesses para que conheçam
esses grupos em sua totalidade, e assim não reproduzam os mesmos
discursos.

É preciso conhecer essas populações tradicionais, fazendo com que


esse conhecimento transforme a ideia que os alunos possuem,
problematizando a ausência nos livros didáticos, mas também
oferecendo novas possibilidades de compreensão, refletindo sobre o
discurso presente nos livros didáticos nota-se que “o conhecimento
produzido não tem tido o impacto que poderia ter” (MANCINI/
TROQUEZ, 2009, p.185) isso acontece quando os educadores apenas
reproduzem os discursos, sem oferecer outras possibilidades e
possíveis caminhos de compreensão. Romper com os estereótipos é
um dos grandes desafios do professor de História, para que o seu
oficio seja um instrumento de transformação na sociedade, isso
requer dedicação e o conhecimento das populações tradicionais para
que através disso elas sejam reconhecidas e tenha seus direitos
respeitados.

152
4-CONSIDERACÕES FINAIS

A luta continua! Ela não termina quando as populações tradicionais


são retiradas de seu território, pelo contrário é o começo de uma
nova jornada, para conquistar o direito de voltar novamente, é a luta
que passa de pai para filho, no reconhecimento por aquilo que lhes
pertence, contrariando os interesses dos grandes proprietários que
buscam eliminar esses grupos, eles continuam resistindo, lutando,
fazendo história, “eles são vítimas- resistentes heróis combatentes
que não lutam por glória, mas por vida, que tentam enfrentar a
morte em cada emboscada, que olham nos olhos da tragédia, da
injustiça, sem esmorecer, sem desistir.” (SILVA/PEREIRA/SOUZA,
2012, p.17) são heróis com o poder de continuar adiante, de
enfrentar as dificuldades na conquista por um amanhã melhor.

E essa luta também é nossa quando assumimos o compromisso de


ensinar sobre essas populações, quando trazemos para as nossas
aulas esses personagens tão atuais, que estão presentes no nosso
meio, construindo uma história de superação, de alegria e,
sobretudo, de determinação, que está para além dos estereótipos,
mas possuem rosto, olhar e uma luta que também é de todos, uma
luta por direitos iguais.

REFERÊNCIAS

Autoras são da Graduação em Licenciatura em História pela UFPA-


Ananindeua.
Fonte disponível em: CATÁLOGO CRIMINAL DA COMARCA DO
INTERIOR-CENTRO DE MEMÓRIA DA AMAZONIA. Belém-PA
CMA, 2018.

MANCINI, Ana Paula Gomes E TROQUEZ, Marta Coelho


Castro. Desconstruindo estereótipos: apontamentos em prol de
uma prática educativa comprometida eticamente com a temática
indígena. Campo Grande- MS, Tellus, ano 9, n.16, p.181-206, jan.
/jun. 2009.

153
NADAI, Elza. O Ensino de história no Brasil: trajetória e
perspectiva. Rev. Bras de Hist. S. Paulo, v.13, n 25/26 pp.143-162.
Set.92/ago. 93.

SILVA, Cristiane Freitas da. PEREIRA, Tatiane da Silva. SOUSA


JÚNIOR, Aírton Silva de. “Conflitos agrários, violência e
impunidade: a luta do campesinato paraense por justiça social”. 7º
Encontro anual da ANDHEP- Direitos humanos, Democracia e
Diversidade. UFPR Curitiba (PR).2012. p.1-18

SILVA PIMENTEL, M.A; RIBEIRO, W. C. Populações tradicionais e


conflitos em áreas protegidas. Geousp – Espaço e
Tempo (Online), v.20, n.2, p.224-237, mês. 2016

VAINFAS, Ronald. (et. al.). História doc., 9º ano. 1. ed. – São Paulo:
Saraiva, 2015.

154
POR QUE ESTUDAR IDADE MÉDIA NO
BRASIL?

HENRIQUE DE MELO KORT KAMP

O interesse pela Idade Média generalizou-se; praticamente tornou-


se mundial. Nos últimos tempos, o medievo e, especificamente,
algumas de suas características mais marcantes tem levantado um
interesse crescente e constante; interesse esse que, além da conquista
de um espaço na historiografia, inclusive no Brasil (RUST; BASTOS,
2009), extrapolou os muros da academia e conquistou o fascínio do
grande público.

A construção dessa Idade Média fantasiosa, que desperta um certo


apreço e apego inegáveis, entretanto, tem servido para atender
quase única e exclusivamente a uma sociedade de consumo em
busca de lazeres, conforme podemos conferir a cada vez mais
lucrativa romancização do mundo medieval por meio dos best-
sellers e produções cinematográficas (BUENO, 2013). A grande
questão é que este tipo de produção não é, de forma alguma, neutra;
ela apresenta elementos político-ideológicos que retratam mais o
contexto em que foi produzido (FERRO, 1992, pp. 13-14) e, neste
caso, os interesses pessoais e financeiros de produtores, diretores e
grandes estúdios de Cinema – não que a produção acadêmica
também não o seja.

Entretanto, esse interesse incomensurável torna-se compreensível


quando entendemos que falar de Idade Média é, em maior ou
menor grau, falar da origem do próprio sistema moderno em que
vivemos. Podemos acrescentar ainda que, de acordo com Cristiane
Nova (1996), toda produção, neste caso a não-acadêmica,
desempenha “um papel significativo na divulgação e na
polemização do conhecimento histórico”. O maior problema talvez
seja, portanto, que a Idade Média ainda é pouco conhecida ou, de

155
fato, mal conhecida por quem não é especialista – aqui
principalmente o grande público, “vítima” das “idealizações
hollywoodianas”.

Diversas noções, fragmentadas e até mesmo contraditórias, são


transmitidas inclusive – e ironicamente – em ambientes escolares e
“dão permissão” para que todos e quaisquer conceitos relativos à
Idade Média sejam utilizados conforme a conveniência de cada
realidade. Pior ainda é a perpetuação, dada à forma arraigada deste
modo de observar, de um preconceito quanto ao período que
supostamente a humanidade foi subjugada pela ignorância e pelo
afastamento da razão. Afinal, embora antigo, continua muito
presente o rótulo de “Idade das Trevas”.

Petrarca (1304- 1374), pesquisador, poeta e filólogo, foi um dos


primeiros, senão o primeiro, a dar margem ao mito da Idade das
Trevas, por meio do termo tenebrae. Andrea (1584-1638),
bibliotecário papal referia-se a ela como media tempestas, em uma
referência literal a uma idade do meio, no sentido de flagelo e ruína.
Rafael (1483-1520) adjetivou-a grosseira, tempo de arte gótica.
Rabelais (1483- 1553) referia-se a uma espessa noite gótica. O termo,
enfim, tomou lugar sob o título “Idade Média: de 324 até 1453” no
consagrado manual escolar de 1688, Cellarius (LOYN, 1997, pp. 5-7).

Entretanto, de acordo com Jérome Baschet (2006), a Idade Média é


desmoralizada – e com a liberdade de dizer, “demonizada” – devido
a uma distância existente entre a modernidade e o medievo que não
é fruto somente de movimentos como o Renascimento ou o
Iluminismo. Para o historiador, a Revolução Industrial e o
Capitalismo criaram uma “barreira histórica decisiva, que faz da
Idade Média um mundo longínquo, um tempo de antes, no qual
tudo se torna opaco para nós”. (Idem, p. 45)

Neste breve ensaio, para tanto, pretendemos levantar algumas


questões que abarcam os motivos de se fazer História Medieval.
Além disso, apresentamos algumas das renovações historiográficas
ocorridas nos estudos sobre o medievo nas últimas décadas.

156
1. ESTUDAR IDADE MÉDIA

Uma pergunta parece bem pertinente – e até mesmo recorrente –


nesse contexto: Por que estudar História Medieval? Ou até mais
incisivamente, por que estudar História Medieval no
Brasil? (AMARAL, 2011, p. 446). Poderíamos simplificar dizendo
que a busca pela compreensão do período medieval auxiliaria na
compreensão da história e cultura das próprias nações americanas,
se considerarmos que a expansão marítima do século XV, a
“eventual” descoberta do Novo Mundo e o sistema colonial
empregado em boa parte da América encontra raízes profundas na
Idade Média europeia (FRANCO JR., 2008, pp. 80-104).

Aliás, Confúcio (551 – 479 a.C.) e Heródoto (485 – 420 a.C), podemos
assim dizer, foram os principais responsáveis por enraizar na
sociedade humana a ideia de que é necessário conhecer o passado
para compreender o presente e, de tal forma, “prever” o futuro. De
fato, a relação Tempo-Homem-História é tão antiga quanto a
própria humanidade e, por isso, é tema de inesgotáveis questões
levantadas tanto por historiadores, quanto pelos demais estudiosos
não só das ditas ciências sociais, mas também das ciências naturais
(DOMINGUES, 1996).

Há diversas concepções sobre o conceito de tempo e como ele se


articula com o próprio ser humano. Por um lado, as inúmeras
sociedades ao longo da História preocuparam-se em propor análises
sobre o tempo passado, seja em contraponto ou em reafirmação de
seu próprio tempo presente, na tentativa de perpetuar sua memória
para o tempo futuro. Por outro lado, o estudo das relações humanas
elaboradas ao longo da história – mais tarde denominado
Historiografia – também concebeu uma variedade de formas de
representar o tempo e incorporá-lo às narrativas próprias (BARROS,
2010, pp. 180-208).

Neste ponto, encontramos o argumento de Ronaldo Amaral (2011,


p. 447) para justificar o estudo da Idade Média em terras brasileiras:

157
a Idade Média é, ao mesmo tempo, europeia e brasileira, mesmo que
ela se faça presente de formas distintas nesses locais, por meio de
uma sobreposição de tempos. Se na Europa ela se encontra
materializada em uma enorme quantidade de elementos urbanos
sobreviventes da época, no Brasil ela se perpetua na tradição mental
que engendra nossa conjuntura nacional, por meio de uma estrutura
social, política, cultural e religiosa que já não é só medieval ou
europeia.

Concordamos em parte, pois além de acreditarmos não ser somente


este o motivo para os estudos medievais em terras tupiniquins, é
necessário pontuar que este “legado mental” é de difícil apreensão e,
portanto, difícil de separar e delinear suas origens. Mesmo com a
ressalva feita pelo autor de que esse legado é mais sentido do que
compreendido pelos seus agentes, não ficam claras as formas como
ele se condiciona, se conduz e se insere em uma dinâmica histórica
de estruturas inconscientes, considerando ainda que as sociedades
posteriores nem sempre – podemos dizer até mesmo na maior parte
das vezes – partilham e utilizam-se dos mesmos e exatos
significados que tais elementos tiveram em épocas precedentes
(VOVELLE, 1987, p. 276).

Preterimos – e estendemos para qualquer espaço geográfico – o


ponto de vista fornecido por Julien Demade sobre “Por que estudar
a Idade Média no século XXI?” em seu artigo para o livro Pourquoi
étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face aux usages sociaux du passé.
Actes du colloque tenu à l’université de São Paulo du 7 au 9 mai
2008, fruto do Colóquio Internacional que tinha como temática a
própria questão já colocada. O autor propôs três possíveis
argumentos que justificam o estudo da história (medieval): o
passado enquanto origem, o passado enquanto analogia e o passado
enquanto produto de “fiscalização intelectual” a respeito de mitos
que surgem sobre o próprio passado; tratar-se-ia, portanto, da
História como um estudo da alteridade (DEMADE, 2012, pp. 44-45).

Não descartamos, dessa forma, os argumentos de Amaral, já


presentes anteriormente em trabalhos de historiadores como Hilário

158
Franco Júnior. Apenas acreditamos que vá além e mereça
determinado cuidado refletir sobre os porquês de construir uma
medievalística brasileira. Como destaca Demade (2012, pp. 44-45),
para engajar o estudo da História (em específico, a medieval)
devemos nos ancorar na autonomia do medievo em relação ao
presente, em um estudo para e por ele mesmo. Seria então um
estudo da alteridade de abordagem, não da defesa do objeto por si
só, mas sim do que o autor descreve ser “unicamente por seu valor
heurístico diferencial”, interessando na medida em que permite
“abordar problemas cruciais, [...] problemas que nenhum dos
objetos dessas ciências permitiria formular corretamente”.

Logo, qualquer sublevação histórica torna-se, concomitantemente,


um produto histórico e um produto historiográfico, sendo resultado
de visões ideológicas e escolhas particulares intimamente ligadas ao
contexto em que se deu, quanto ao período em que o analisa
(AMARAL, 2012). Nesse sentido, devemos nos policiar para que
preconceitos e anacronismos não distorçam pesquisa e seus
resultados, nem prática educativa e construção do saber – para nós,
não dissociáveis – para que não se caia no mero aproveitamento e –
arbitrária – reprodução de elementos medievais, tais como em obras
destinadas ao puro entretenimento. Logo, se a realidade histórica
constitui uma malha densa, complexa e repleta de conceitos, o ofício
do historiador – incluindo nesta categoria os também historiadores
professores de todos os níveis da Educação – não é meramente
passivo, reprodutivo ou receptivo.

2. BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA


MEDIEVALÍSTICA

Haja vista essa discussão sobre os motivos de se estudar a Idade


Média e as influências sobre as óticas adotadas, torna-se ainda mais
complexo definir quando esses estudos começaram. Se nos
referirmos à sua nomenclatura, remeteríamos à Renascença Italiana.
Denominações como “o período em que a humanidade não tomou
banho” (BESSELAAR, 1970, pp. 89-95), “Idade das Trevas”
(FRANCO JR., 2001, pp. 17-19), “Civilização da Barbárie” (INÁCIO;

159
LUCA, 1988, p. 7), entre muitas outras caracterizações pejorativas
foram utilizadas por pensadores renascentistas para definir os
séculos que sucederam o fim do Império Romano do Ocidente. Ou
seja, a Idade Média era entendida como um período de extremo
retrocesso intelectual, marcado pela dominação de uma Igreja
responsável por generalizar a ignorância e a superstição. Era vista,
portanto, como uma época intermediária, de recesso da razão,
dentro de um contexto que tais pensadores logravam estar vivendo
em uma época de retomada do legado greco-romano, o retorno de
um período de esplendor, orientada pelo uso da razão e pela
liberdade individual (FRANCO JR., 2001, pp. 17-19).

Se nos concentrarmos nas críticas em relação ao pensamento


religioso dominante no medievo, voltaríamos nossas atenções à
Revolução Científica e ao Iluminismo europeu. Segundo Carlos
Eduardo Schipanski e Luizangela Padilha Pontarolo (2009, pp. 13-
16), no século XVII, a visão negativa sobre o medievo foi reforçada
através das críticas das religiões protestantes e dos novos burgueses
capitalistas à hegemonia e supremacia da Igreja que limitava a
liberdade pessoal e o desenvolvimento de novas relações
econômicas. Já no século XVIII, em uma verdadeira caçada
antiaristocrática e anticlerical, os iluministas defenderam, por
exemplo, que somente com a retomada da razão no fim do século
XV que os homens alcançaram o progresso político, social e
material. A Idade Média seria, portanto, “uma longa noite”, um
período de obscurantismo, fé exacerbada e pouco ou quase nenhum
racionalismo.

A primeira metade do século XIX vai, entretanto, alterar a noção que


se construiu sobre o período entre os séculos V e XV. O
Romantismo, como mostram Schipanski e Pontarolo (2009, pp. 13-
16), vai mostrar o medievo como uma época de ouro, a partir de
“uma supervalorização da arte e da arquitetura gótica e, também,
uma tentativa de retomar as tradições e a religiosidade que haviam
sido substituídas pelo culto exagerado ao cientificismo”. Como
destaca Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1982, p. 74), o período
medieval “atraía a sensibilidade e a imaginação românticas pelo

160
pitoresco dos seus usos e costumes”. Podemos citar como exemplos,
as lendas, as tradições, os castelos e o idealismo sobre os cavaleiros,
os monges, os santos e os cruzados, em um esforço também para a
construção de uma identidade nacional (FRANCO JR., 2001, p. 12).
“Construir-se-ia uma Idade Média idealizada que nebulava os olhos
e os entendimentos dos homens do século XIX [...]. A literatura que
idealiza essa Idade Média cheia de maravilhas, força, sentimentos
afáveis, dentre as quais estão as obras de Yvain. O cavaleiro e o
Leão, Tristão e Isolda, e toda aquela abundante escritura das gestas
de cavalaria do amor cortês [...] é exemplo de todo o material que
ajudou o século XIX a fazer da Idade Média não mais uma idade das
trevas e sim uma idade, senão das luzes, de uma suave neblina de
bem-estar e romantismo.” (AMARAL, 2012, p. 5)

Logo, ela estava distante de ser considerada histórica. Como destaca


Amaral (2012, p. 6), os pensadores desse período “romântico e
enfadado do racionalismo” conceberiam a Idade Média como “uma
época tão ou mais romântica que o próprio século XIX”. Seria o que
o autor chama de “uma ‘Idade Média do XIX’ antes de qualquer
pretensão de se chegar a uma Idade Média por si mesma”.

Por outro lado, a historiografia do século XX já revogou o caráter ora


monofásico e decadente, ora romancizado da Idade Média: na
academia, o estudo e o ensino de História Medieval passou por
profundas transformações no sentido de ampliar-se, aprofundar-se e
modernizar-se, com novas abordagens e questões norteadoras a
partir da utilização de diferentes fontes antes apenas tangenciadas –
quando não marginalizadas ou “esquecidas” – pela historiografia
tradicional. Tais modificações só tiveram lugar, podemos assim
dizer, por contribuição do grupo francês conhecido como Escola dos
Annales, o grande responsável por traçar essa nova perspectiva
sobre o mundo medieval. Expoentes como Marc Bloch, da primeira
geração, Fernand Braudel, da segunda geração, e Jacques Le Goff e
Georges Duby, da terceira geração, proporiam novas formas de
olhar para a Idade Média e a reconhecer como um período de
florescentes descobertas (COSER, 2010). Segundo Jacques Le Goff,
foi no período medieval que se fundou a sociedade moderna e que

161
se criou “a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a
máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a
consciência e, finalmente, a revolução” (LE GOFF, 1980, p. 12).

Esse novo fazer historiográfico se ampliaria, se reinventaria e se


propagaria até os nossos dias. A grande maioria dos trabalhos
recentes sobre o medievo, por exemplo, tomam lugar graças à
ampliação das fontes e de seu horizonte interpretativo
proporcionada pela História Cultural, especificamente aquela que se
pode denominar Nova História Cultural e que vai ganhar
notoriedade e espaço na academia nas últimas décadas do século
XX, apresentando uma ampla rede de diálogos entre História,
Psicologia, Antropologia, Sociologia, Linguística, Ciência Política e
demais áreas do conhecimento (VIEIRA, 2015).

Entretanto, essa nova historiografia não é homogênea e apresenta


discordâncias profundas em diversos casos. Amaral cita o caso de
Le Goff e Peter Brow que parecem falar de temporalidades
totalmente opostas ao abordarem a natureza das transformações
ocorridas durante os primeiros séculos da Idade Média (AMARAL,
2012, p. 7). Outro caso nos é apontado por Chris Wickham ao
dissertar a respeito das abordagens marxistas sobre o período
medieval (WICKHAM, 2012). Para o autor, muitos trabalhos escritos
após a década de 1980 não parecem possuir uma carga política
explícita como aqueles escritos em décadas anteriores, o que
descaracterizaria sua própria abordagem teórico-metodológica.
Seriam – traduzindo a grosso modo – pouco marxistas, ou quase não
se identificariam com as propostas desta vertente (Idem, p. 226).

Apesar dessas divergências, podemos perceber, como discorre


Coser (2010), uma diversificação nos estudos medievalísticos
derivada, principalmente, dos debates sobre curta, média e longa
duração, o trabalho com tempos históricos sobrepostos entre si, a
abertura para o estudo das mentalidades e os apontamentos para as
possíveis continuidades, reminiscências e rupturas nos planos
político, econômico, social e cultural, principalmente. Esses novos
caminhos tomados pela historiografia medieval, por sua vez,

162
tiveram grande penetração nas universidades brasileiras, já sob
influência dessas novas abordagens.

Como dissertaram, Leandro Rust e Mário Jorge Bastos (2009, p. 13),


dois grandes medievalistas nacionais, “transitando das vagas
estruturalistas das mentalidades à crítica sagital dos pós-modernos,
explorando objetos que se estendem desde a imensidão oceânica de
medos coletivos ao novelo espinhoso das relações políticas”, nossos
estudos em História Medieval “exibem-se versáteis e promissores”.
Essa questão, entretanto, merece uma análise detalhada em outro
momento.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tal modo, em um contexto que intercala momentos de crises e de


estabilidade, não devemos conceber a Idade Média como ignorante,
devaneadora ou obsoleta, mas puramente histórica, porque se
complexifica pelos homens a medida em que estabelecem suas
relações. Homens estes do passado (que viveram aquela realidade) e
do presente (que buscam alcançar a “verdade” histórica sobre ela). É
assim que (a)creditamos ser o ponto de partida para toda e qualquer
análise do medievo: o contexto social, político, econômico e/ou
cultural que o permeia e o rege.

REFERÊNCIAS

Henrique de Melo Kort Kamp atualmente é doutorando em


História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob orientação da
Profa. Dra. Carolina Coelho Fortes e fomento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). É Mestre
(2019), Bacharel (2018) e Licenciado (2017) em História pela
UFF. Contato: henrique@profhistoria.com.

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra:


Livraria Almedina, 1982, p. 74.

163
AMARAL, R. A Idade Média e suas Controversas Mensurações: tempo
histórico, tempo historiográfico, tempo arquétipo. In: Fênix: Revista de
História e Estudos Culturais. Vol. 9, Ano IX, Nº 1, Jan-Abr/2012.
Disponível em <www.revistafenix.pro.br>.
__________. O medievalismo no Brasil. In: História Unisinos, v. 15, n.
3. São Leopoldo, 2011.
BARROS, José D'Assunção. Os Tempos da História: do tempo mítico às
representações historiográficas do século XIX. In: Revista Crítica
Histórica. Ano 1, n°2. Alagoas: UFAL, 2010. p.180-208. Disponível
em <http://ning.it/hoEWu4>.
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização
da América. Trad. Marcelo Rede. SP: Globo, 2006.
BASTOS, M. J. M.; RUST, L. D. Translatio Studii. A História Medieval
no Brasil. In: Revista Signum, nº 10, p. 163-188, 2009.
BESSELAAR, J. V. D. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo:
Editora Herder, 1970.
BUENO, R. P. M. A Cultura Medieval sob o Ângulo das Imagens
Cinematográficas. In: Anais Eletrônicos do XXVII Simpósio
Nacional de História: Conhecimento Histórico e Diálogo Social.
Natal: 22 – 26/07/2013. Disponível em <http://goo.gl/fa4ZB5>.
COSER, M. Um novo conceito de Idade Média nas escolas. In: AMARAL,
C.; et al. Representações de Poder e Práticas Discursivas. RJ:
UFRRJ, Prodocência, LITHAM e Capes, 2010. Disponível em
<http://goo.gl/eH2t6b>.
DOMINGUES, I. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a
história. São Paulo: Iluminuras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996.
FRANCO JR, H. Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo:
Editora Brasiliense, 2001.
__________. Raízes medievais do Brasil. In: Revista USP, v. 1, n. 78.
São Paulo: 2008.
INÁCIO, Inês C. & LUCA, Tania R. de. O pensamento medieval.
São Paulo: Ática, 1988.
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa:
Editorial Presença, 1980.
LOYN, H. R. (org.) Dicionário da Idade Média. RJ: Jorge Zahar,
1997.

164
MÉHU, Didier; ALMEIDA, Néri de Barros; SILVA, Marcelo
Cândido da. Pourquoi étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face
aux usages sociaux du passé. Actes du colloque tenu à l’université
de São Paulo du 7 au 9 mai 2008. Paris: Publications de la Sorbonne,
2012.
NOVA, Cristiane. O Cinema e o conhecimento da História. In: O Olho
da História - Revista de História Contemporânea, nº 3. Salvador:
1996. Disponível em <http://goo.gl/p8rCkb>.
SCHIPANSKI, C. E.; e PONTAROLO, L. P. História medieval:
releitura de uma época. Guarapuava: Ed. Da Unicentro, 2009.
VIEIRA, Alboni Marisa Dudeque Pianovski. A História Cultural e as
fontes de pesquisa. In: Revista HISTEDBR On-line. Março de 2015, nº
61.
VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense,
1987.
WICKHAM, Chris. Abordagens marxistas sobre a Idade Média, algumas
questões e exemplos. In: Mare Nostrum, n. 3. São Paulo: 2012.

165
AS CONTRIBUIÇÕES DE PAULO
FREIRE PARA O ENSINO DA
HISTÓRIA
ALINE NUNES RANGEL

Os estudos de Paulo Freire trouxeram o estímulo a uma educação de


fato problematizadora e conscientizadora, recusando a educação
“bancária”, que se utilizava do “depósito de conhecimento” nos
estudantes. A Pedagogia Crítica propõe problematizar os fatos
históricos, utilizando a reflexão para compreender criticamente a
História.

“Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não


pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de
transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros
pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato
cognoscente.” (FREIRE, 1987, p. 44).

O estudante, sendo um ser cognoscente, que conhece ou que tem a


capacidade de conhecer, de aprender, não pode ser considerado um
indivíduo incapaz. Os estudantes podem e devem identificar o
contexto histórico no estudo da História e refletir criticamente sobre
os fatos históricos estudados no ambiente escolar.

Para isso, faz necessário reconhecer a importante contribuição de


Paulo Freire para se pensar a educação no Brasil. Entre essas
contribuições pode-se destacar a importância de valorizar a
realidade do aluno e entender que o mesmo, não é uma folha em
branco, que o estudante também trás consigo conhecimentos
próprios, adquiridos durante a vida.

166
Os conhecimentos da vida cotidiana dos estudantes devem ser
valorizados na hora de fazer a transposição didática nas aulas de
História. Na transposição didática, é preciso mostrar ao estudante
que os conteúdos têm ligação com o nosso dia a dia, para que os
mesmos vejam sentido em estudar a História. Conscientizar nossos
estudantes que é preciso romper com o sistema opressor,
promovendo a leitura, a interpretação, o diálogo, a reflexão e a
crítica, diante do que está acontecendo no mundo.

Conscientização nas palavras de Paulo Freire, “é um compromisso


histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na
história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que
fazem e refazem o mundo.” (FREIRE, 1979, p. 15).

Sendo assim, é notório que a Pedagogia Crítica contribuiu para


fortalecer a ideia de que o professor sozinho não detém o
conhecimento. O professor e o educando, produzem conhecimentos
juntos, dialogando e estudando a História, problematizando o
contexto e o fato histórico estudado, transformando assim, a
realidade a sua volta.

“O conhecimento é entendido pela Educação Problematizadora


como um recriar constante, jamais estático (a ideia de que ensinar é
transmitir conhecimentos é radicalmente refutada); é resultado da
busca determinada, da aplicação da curiosidade sobre o objeto,
adquirindo um valor social. Deve pertencer aos homens e às
mulheres em geral, servindo para promover o bem comum.”
(PITANO, 2017, p. 91).

167
A Pedagogia Crítica não resolve todos os problemas da educação no
Brasil e Paulo Freire não é o “salvador da pátria”. Mas é
amplamente reconhecido no Brasil e em diversos países como um
grande educador, que incentivou e ainda incentiva a buscar uma
educação conscientizadora, crítica e reflexiva.

E as contribuições de Freire foram e ainda são de grande


importância para o estudo da História, já que a mesma promove
pensar o nosso passado, problematizando e criticando seus reflexos
no nosso presente. Não é possível promover uma educação de
qualidade, sem problematizar os fatos históricos e sem conscientizar
nossos estudantes, sobre as mudanças que podem ser realizadas em
nossa sociedade, enquanto sujeitos históricos.

REFERÊNCIAS:

Aline Nunes Rangel. Professora do Ensino Fundamental II.


Licenciada em História pela Universidade do Estado da Bahia.
Especialista em História das Culturas Afro-brasileiras e em
Educação de Jovens e Adultos. E-mail:
alinenunesrangel@yahoo.com.br

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido: 17. ed. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1987.

______. Conscientização. Teoria e prática da libertação. Uma


introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez &
Moraes, 1979.

PITANO, Sandro de Castro. A Educação Problematizadora de


Paulo Freire, uma Pedagogia do Sujeito Social. Disponível
em: https://www.revistas.ufg.br/interacao/article/view/43774 -
Acesso em: 21 de janeiro de 2019.

168
A REFORMA DE LUTERO?: ANÁLISE
DA NARRATIVA SOBRE REFORMA
PROTESTANTE NOS LIVR OS
DIDÁTICOS DE HISTÓRI A
LAYANE DE SOUZA SANTOS

O presente trabalho tem como temática a análise de narrativas em


relação a reforma a protestante nos livros didáticos de história. A
necessidade desta temática advém da crescente de alunos (e
professores) que estão aderindo a religião protestante ou evangélica,
como é conhecida popularmente no Brasil. É interessante nos
ocuparmos deste tema dentro dos livros didáticos, dada a
importância deste meio de repasse de informações no Brasil, as
pesquisas relacionadas ao objeto que destacamos para análise se
voltam para demonstrar o seu aspecto axiológico, formador cultural
e social dos alunos, em especial quando falamos deste país, por isso,
é dispensada sobre o mesmo toda essa carga de importância.

Selva Guimarães (2013), em seus estudos relacionados ao livro


didático de história, aponta que, no Brasil o número de livros lidos é
de 4,7 por habitante/ano; o número de livros indicados pela escola,
incluindo os didáticos é de 3,4 por habitante /ano; logo, o número de
livros lidos fora da escola é de 1,3 por habitante/ano. Com estes
primeiros dados já podemos refletir quanto ao papel dos livros
didáticos para formação dos leitores brasileiros. Ela continua,
descrevendo que, os livros didáticos são o segundo gênero mais lido
no Brasil, perdendo somente para a bíblia. A partir disso, se
pensarmos na cultura de leitura no Brasil, o livro didático por vezes,
é o único livro que muitos brasileiros entram em contato, por conta
do fácil acesso e circulação; muito já se foi discutido e levantado
sobre os conteúdos dispostos nos mesmos. Porém, sabe-se que,
desde a institucionalização do Programa Nacional do Livro Didático

169
(PNLD) em 1985, este suporte passou por diversos questionamentos
quanto ao seu conteúdo, porém, não iremos nos ocupar destas
questões. Sabe-se também que, os livros didáticos são uma fontes
inesgotável e cada vez mais observamos trabalhos sobre temáticas
infinitas em relação a eles, buscando caminhar juntamente com os
que vem escrevendo e contribuir para os estudos sobre essa fonte, é
que nos dispusemos a fazer tal trabalho.

A Reforma Protestante é um tema bastante discutido há tempos, não


somente para o lado educacional ou de ensino, mas, também
quando falamos sobre sociologia, um dos livros mais famosos desta
ciência é o “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max
Weber (1964) onde o autor se debruça em uma teoria de como o
protestantismo teria ajudado de forma diferencial no crescimento e
efetivação do capitalismo nos países que aderiram a essa
religiosidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia, isso pode
ser observado quando nos voltamos para estas localidades ainda
hoje:

“À primeira vista, as diferenças entre os países que aderiram à


Reforma Protestante e os que não aderiram parecem encontrar
respaldo em diversos indicadores estatísticos. Nações de origem
protestantes (tais como EUA, Suécia, Suíça, Dinamarca e Reino
Unido) tendem a apresentar indicadores sociais de educação, renda
per capita e IDH superiores em média a países de predominância
católica (Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e Polônia). Os países
católicos também verificaram historicamente um desenvolvimento
industrial tardio em comparação aos protestantes, além de menor
grau médio de escolarização (a taxa de alfabetização era de 32% na
Itália em 1870, contra 76% no Reino Unido no mesmo período [...].”

(IBRE – FGV Acesso em: 20.06.2019 Disponível


em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/os-500-anos-da-reforma-
protestante-weber-tinha-razao#_ftn1 ).

170
Quando cruzamos a temática da reforma protestante com ensino de
história educação entre outros, também temos vários autores
escrevendo sobre como, Clenir Silva (2014), que escreve sobre a
representação de Lutero nos livros didáticos e ainda, faz uma
revisão bibliográfica sobre a vida do mesmo, tem como limite
temporal três décadas (1980,1990 e 2000). Com isso observa como
Lutero é levado para sala de aula e tem comenta sobre como este
personagem é importante para as mudanças culturais, religiosas e
como suas ações como a de traduzir a bíblia contribuíram com tudo
isso. Outro autor é, Lúcio Antônio Felipe (2015) que em seu trabalho
busca fazer uma analise nos capítulos dos livros didáticos, que se
referem à Reforma Protestante, e o personagem histórico Martinho
Lutero. Com vistas a perceber de que maneira esse tema é
mostrado na atualidade, para os jovens estudantes, que têm a sua
formação na escola, mediado pelos livros didáticos, distribuídos
para as escolas, pelo governo como principal leitura, e da mesma
maneira, perceber como esta sendo apresentado na academia. Já,
Edeílson Azevedo (2010), escreve sobre livros didáticos a respeito da
ausência de renovação da historiográfica nos livros e como segunda
problemática escreve sobre as generalizações feitas a partir de
contextos locais e/ou regionais, pelas quais se tenta explicar
acontecimentos de caráter nacional e/ou universal. Para isso, foram
selecionadas algumas temáticas com o objetivo de demonstrar as
lacunas que ainda persistem nesses materiais pedagógicos e uma
dessas temáticas é a reforma protestante.

Indo ao encontro destes trabalhos, foram selecionados três livros


didáticos de coleções distintas e mais um, de uma mesma coleção,
porém aceito por PNLD’s de anos diferentes, o que permite fazer
com que possamos analisar se houve alguma mudança na narrativa
do conteúdo. A seguir, tabela demonstrativa.

171
Quadro 1 Livros selecionados

Livros PNLD AUTORES SÉRIE/ ANO

História Tematica: Terra e 2008/ 2009/ 2010 Cabrini, Catelli e Montellato 7 º série

propriedade

Piatã 2017/ 2018/ 2019 Vanise Ribeiro e Carla Anastasia 7º ano

História, Sociedade & Cidadania 2008/ 2009/ 2010 Alfredo Boulos 7º ano

História, Sociedade & Cidadania 2017/ 2018/ 2019 Alfredo Boulos 7º ano

(Fonte: Autor 2019)

Todos estes livros foram ou estão sendo utilizados em escolas de


Belém e Ananindeua. Como escopo, estas obras foram analisadas
em busca das narrativas sobre a temática de reforma protestante e
buscamos pormenorizar os personagens citados e as localidades,
assim como suas ações para a efetivação de novas religiões. Como
aporte, iremos utilizar Roger Chartier (1991), para comentarmos
sobre as representações que são mostradas nos textos sobre o tema
dentro dos livros didáticos e ainda o conceito de narrativa histórica
de Helenice Rocha (2013), que tem uma pesquisa sobre tal questão
levantada a partir dos livros didáticos de História.

PROTESTANTISMO, PENTECOSTALIMO, NEO E A SALA DE


AULA

Em 2017 tivemos a comemoração dos 500 anos de reforma de


protestante e podemos obervar diversas comemorações ao longo
mundo em especial em países como Alemanha e Brasil. Alemanha
por ser o berço de Lutero e um dos locais onde mais se propagou os
seus ideais e ainda aqui nas terras brasileiras que pode conhecer o
protestantismo também por uma forte influência alemã.

172
(G1 Notícias Acesso em: 20.06.2019

Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-


nacional/noticia/2017/10/alemanha-lembra-os-500-anos-da-reforma-
protestante.html )

(Portal Terra Acesso em: 20.06.2019

Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/dino/rio-celebra-os-500-anos-


da-reforma-protestante,77c151ed7ed53b6c6aa283afd23d5db0ljlhn36g.html)

Sabe-se que a reforma deu inicio a um mar de questionamentos


sobre a igreja Católica Apostólica Romana que era quem detinha a
predominância de poder no momento em que tais pensamentos
foram expostos. E tudo isso tem revérberos até hoje, pois, de
protestantes vem os pentecostais que muitas pessoas chamam

173
somente de protestantes; e ainda, se tem os neopentecostais, que
segue uma mesma linha de raciocínio, seriam como filhos da
reforma. Tais religiões estão em crescente de forma alastradora no
país o que seria mais um motivo para averiguarmos as narrativas
que se tem dito sobre o ponta pé inicial disto. Se pensarmos
na realidade atual dos professores e de alunos para cada sala de
aula se tem pelo menos 5 alunos protestantes (incluindo aqui
pentecostais e neo), porém, dependendo da localidade de onde está
escola se encontra, o número tende a ser bem maior. O último censo
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística), indica esse
crescimento de brasileiros que vem aderindo a religião protestante.

“O número de evangélicos aumenta 61% em 10 anos, aponta IBGE.

O número de evangélicos no Brasil aumentou 61,45% em 10 anos,


segundo dados do Censo Demográfico divulgado nesta sexta-feira (29)
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2000,
cerca de 26,2 milhões se disseram evangélicos, ou 15,4% da população.
Em 2010, eles passaram a ser 42,3 milhões, ou 22,2% dos brasileiros. Em
1991, o percentual de evangélicos era de 9% e, em 1980, de 6,6%.”

(G1 Notícias Acesso em: 20.06.2019. Disponível


em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-
evangelicos-aumenta-61-em-10-anos-aponta-ibge.html ).

Esses dados são relativos ao país inteiro, quando fazemos o reorte


por regiões brasileiras, os números em relação a região Norte
indicam o maior aumento de protestantes nessa região.

O Nordeste ainda mantém o maior percentual de católicos, com 72,2%


em 2010. Apesar de ser a região do país com maior concentração do
grupo religioso, a população nordestina católica sofreu queda. Em
2000, o percentual era de 79,9%. No Sul, o IBGE também identificou
redução do percentual de católicos, saindo de 77,4% para 70,1% nos
censos de 2000 e de 2010, respectivamente.

174
A maior redução foi registrada pelo instituto no Norte, passando de
71,3% da população em 2000 para 60,6% em 2010.

(G1 Notícias Acesso em: 20.06.2019

Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-


de-evangelicos-aumenta-61-em-10-anos-aponta-ibge.html ).

Ao observarmos tais dados, vemos como em nossa região facilmente


podemos vir a encontrar alguém da religião que está sendo
abordada e consequentemente alguém que já tenha tido contato com
livro didático. Dada as primeiras informações sobre a importância
do livro didático em nosso país e também um pouco da teoria de
weber, temos um quadro propicio ao que temos como objetivo.
Quando pesquisamos sobre a temática da Reforma, facilmente
encontramos a ligação dela com Lutero, porém não existiu somente
o Lutero neste momento para contestar o que estava acontecendo
com a igreja católica nesse momento, existem outros nomes de peso
e que valem a pena ser abordados como: Wycliffe e John Huss que
são os primeiro reformadores e já estavam escrevendo sobre os
pensamentos que Lutero aponta antes dele e ainda o teriam
influenciado. Outro nome também que pode ser citado neste
momento porém, voltado mais para o campo é Thomas Muntzer,
que surgiu após a expansão do protestantismo.

ANÁLISE DOS LIVROS

Para Roger Chartier (1991), as representações, as narrativas tem um


determinado sentido e buscam atender o grupo que está se
expressando, por isso, certas informações podem ficar de fora pois,
as nossas visões são muito delimitadas para os nossos interesses. Ao
analisar os livros esses aspectos levantados por Chartier ficaram
evidentes, de certa forma pois, dependendo de qual temática o livro

175
busca abranger, como as temáticas são desenvolvidas de forma geral
dentro do livro o discurso sobre o assunto de reforma protestante
mudava incluindo os personagens.

Outra autora que decidimos utilizar para ampliar a visão sobre essa
análise foi Helenice Rocha (2013), buscando caminhar com o seu
conceito de narrativa histórica para os livros didáticos, Helenice
elenca desde as exigências do PNLD e análise perpassa sobre como
a partir dessas exigências as temáticas podem variar, os focos
podem variar etc, e isto, podemos comentar que percebemos em
especial na coleção onde tínhamos dois livros, porém, de PNLD´s
diferentes, ao fazer uma checagem geral, antes do recorte que foi
estipulado (que é o capítulo sobre reforma protestante nos livros)
podemos obervar com os textos mudam, as imagens mudam e
agregação de novos temas são colocados, justamente por conta
destas exigências que foram aparecendo ao longo do tempo, como
por exemplo a 10.639/03 que exige que sejam estudados dentro da
sala de aula, assuntos relacionados a matriz africana e cultura afro
brasileira.

Os livros selecionados mostram-se bem diversos no que tange ao


assunto de reforma, inclusive com abordagem bastante diferenciada,
aqui acredito que o livro que mais se destaca é o História Temática
de 2008, pois, tem uma linguagem mais leve, pois utiliza poesia e
música na introdução para tratar do assunto e apesar de já se ter
mais de 10 e os dados do IBGE apontarem coisas diferentes, o livro
trabalha muito o cotidiano do aluno, delimita o que estava
acontecendo com o que chamamos de Brasil nesse momento e isto é
de extrema importância para que o aluno consiga enxergar melhor,
como ele pode ser um agente ativo neste contexto ou que tudo isso
não está distante dele e que ele pode perceber isso ainda hoje ao seu
redor.

176
Busquei então analisar quais autores são citados nas obras, para
pensar sobre essa diferença de linguagem. A seguir tabela
demonstrativa.

Tabela 2. Autores citados nas obras

Livros Autores citados

História Tematica: Terra e propriedade 2008 Treza Queiroz; Adhemar Maarques e Ricardo
Faria.

Piatã 2017 Guido Zagheni; Alexander Vianna.

História, Sociedade & Cidadania 2008 Edith Simon; Fenando Sefener; Armando
Anetnore.

História, Sociedade & Cidadania 2017 Fernando Sefener (3x); Alexander Vianna; Klug
João e Pierre Cornielle.

Fonte: Autores (2019)

Como foi possível observar, os livros não seguem um fluxo de


mesmos autores, mesmo que tenham o mesmo ano ou até mesmo o
caso da mesma coleção.

Outra questão que se pode observar é como o conteúdo está


disposto no livro, quantas páginas temáticas entre outros. Veja o
quadro a seguir.

Tabela 3. Análise do capítulo

Livros Nº Folhas Tópicos Contexto histórico

História Tematica: Terra e 15 pgs Capitalismo: Religião e Política (introdução do capítulo O livro neste capítulo, não faz

propriedade 2008 como sobre as religiões de forma plural e atual). o contexto histórico entre a

Idade moderna e o
Tem tópicos bem abrangentes e diretos, o exto é curto,

177
pois, o livro cnta com diversas ilustrações sobe o tema. Renascimento, que

significaria as mudanças de
Um ponto interessante a ser comentado e o tópico sobre
visão de mundo ser humano,
os camponeses e como o livro se posiciona diante do não
ajudando a se permitir tais
apoiamento de Lutero as revoltas camponesas, seria por
questionamentos.
que ele já estava fechado com a burguesia naquele

momento e as revoltas questionavam diversas coisas do

interesse deles.

Outro ponto seriam as atividades bastante diversificadas.

Piatã 2017 15 pgs A reforma protestante e a reação católica (tópico O livro faz de forma bem
introdutório do livro. Conta com tópicos curto, apesar do sucinta o contexto em que
primeiro ter um texto bem extenso, explicando de uma surge a reforma e não busca
forma geral sobre a reforma e as pessoas que já tinham se trabalhar uma história global
rebelado e pensado tais questões, como Huss. Não contém no momento, ficando
muitas imagens e nem atividades, porém, é um livro, somente nas localidades mais
digamos “antenado”, pois, traz em sua discussão questões citadas sobre reforma.
atuais e tem a proposição para um debate em sala sobre
religiosidade.

História, Sociedade & 14 pgs Tem tópicos bastante curtos, porém tem um mix de Comenta sobre renascimento,

Cidadania 2008 informações sobre a temática. Um ponto que pode vir a faz um contexto sobre a

ser negativo é que não mostra como foi a expansão do história da igreja e o por quê

protestantismo para o campo, não cita Muntzer etc. de tantas insatisfações,

porém, não faz um apanhado


Além de, colocar de uma forma diferenciada do livro 1 o
sobre a mudança e visão de
por quê do nome de protestante, nem se quer cita a
Estado etc
documento que tratou disto. Trabalha com bastante

mapas e imagens, e não contém quase nenhuma

atividade, além de não fazer ligação com o Brasil.

História, Sociedade & 19 pgs Reforma e contrarreforma, é o tópico inicial do livro, logo O livro cita o Renascimento e

Cidadania 2017 aqui já podemos perceber diferenças entre as duas as mudanças culturais neste

unidades. Enquanto a outra começava com um quadro a momento, porém, não

respeito de uma massacre de huguenotes na França, está comenta não comenta sobre a

inicia com uma foto e um mapa do Brasil, comentando formação do Estado

sobre os imigrantes alemãs protestantes que vieram para Moderno.

o Brasil e como e onde se espalharam e fincaram por aqui.

Os capítulos apesar de ainda continuarem curtos, estão

com atualização não somente linguística, mas, com mais

178
detalhes sobre o assunto, além de se ter muitas imagens e

um visual bem mais atrativo. O ponto mais interessante

seria o tópico que comenta sobre a inquisição no Brasil,

porém, é o único contexto em que o Brasil é colocado e

ainda, o livro persisti na questão de ausência dos

camponeses e do personagem Muntzer.

O Ponto mais diferenciado da antiga unidade é o número

de atividades, que desta vez é bastante recheado

e diversificado.

Fonte: Autores 2019

Ao fim deste quadro, podemos perceber semelhanças, porém,


muitas divergências, inclusive históricas, como quando foi
pontuado sobre a documento Protestati, ou ainda divergências como
com a questão camponesa, pois, em um livro, é colocado de forma
enfática que Lutero teria escolhido os privilégios oferecidos pela
burguesia, do que ficar ao lado dos camponeses.

Outro forma de análise foi sobre o quantitativo de aparição dos


personagens principais desta temática, ao menos os mais citados. A
seguir, gráfico demonstrativo.

Tabela de número 4

179
Neste gráfico podemos perceber a figura de Lutero como a que mais
aparece quando se trata da temática, de forma bem expressiva. O
que confirma o que foi dito no início do trabalho sobre esse destaque
de Lutero e o que vai ao encontro do título do trabalho que busca
refletir estes outros personagens, abrangendo mais a temática e
ajudando os alunos também a entenderem melhor a diversidade de
religiões mesmo dentro do protestantismo, saindo daquela categoria
generalizada e buscando pensar e mostrar além.

CONLUSÃO

Ao fim do trabalho podemos comentar sobre muitas questões


relacionadas a temática e aos livros. As análises revelarem muitas
coisas, além inclusive do esperado. Foi percebido que a figura de
Lutero continua sendo a de destaque, o que nos fez lembrar por
exemplo o livro de Lucien Febvre sobre Lutero e o por quê dele o ter
escolhido e como o mesmo foi observado como uma figura que
ajudou a mudar paradigmas e todo um contexto religioso.

Quanto a questões sobre o Renascimento e o Estado Moderno,


pouco foi citado nos capítulos, apesar de ser de conhecimento que
um teria gerado o outro, pois, sem um quem sabe se o outro poderia
vir a existir. Porém, o Renascimento foi bem demarcado quanto a
sua questão de mudança cultural, de todo um pensamento já fixado
as pessoas da época, como citados por Peter Burke, que reuni em
seu escrito sobre o renascimento algumas afirmações sobre este
momento e como ele tinha mudado o movimento natural das coisas,
como: “Na Idade Média, segundo Burckhardt a consciência
humana... repousava ou semiacordava sob um véu comum. O
homem estava consciente de si próprio apenas como membro de
uma raça, povo, partido, família, ou corporação – apenas através de

180
uma qualquer categoria geral.” No entanto, na Itália do
Renascimento , este véu evaporou- se... o homem tornou-se um
individuo espiritual e reconheceu-se a si mesmo como tal.” , neste
inicio é comentado sobre como o renascimento trouxe a
modernidade, como a regeneração da arte aconteceu na Itália etc,
porém Peter Burke questiona sobre tais afirmações e se tal mudança
teria sido tão estrondosa ou singular, se teria sido somente nesta
localidade um fenômeno como este.

Outro ponto interessante de ser colocado, pensando também no


contexto daquele momento e a teria weberiana citada, somente um
livro faz a conexão destas religiosidades com a questão do
capitalismo, é o livro que mais critica duramente a igreja e comenta
sobre os camponeses e que expõem a questão da ligação de Lutero
com a burguesia etc, que é o livro história temática.

Quando pensamos de forma geral, sobre os livros selecionados,


temos dois livros de pnld de 2008 a 2010 e dois do PPNLD de 2017 a
2019, além de ter dois de uma coleção. E apesar desta semelhança,
observa-se as diferenças que foram pontuadas e fica em aberto para
muitas outras serem encontradas, pois, os livros didáticos são uma
fonte inesgotável e cabe a nós estudiosos, historiadores,
pesquisadores, irmos atrás destas perguntas sobre este objeto.

Glossário

John Wycliffe (1328-1384) foi um teólogo, professor e reformador


religioso do século XIV. Foi considerado o precursor de Lutero e
Calvino. Propôs uma reforma religiosa, na Inglaterra, que só iria se
concretizar dois séculos depois.

181
John Huss (Husinec, Boémia do Sul, 1369 - Constança, 6 de Julho de
1415) foi um pensador e reformador religioso. Ele iniciou um
movimento religioso baseado nas ideias de John Wycliffe. Os seu
seguidores ficaram conhecidos como os Hussitas. A igreja católica
não perdoou tais rebeliões e ele foi excomungado em 1410.
Condenado pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo.

Neopentecostalismo ou Terceira Onda do Pentecostalismo é uma


vertente do evangelicalismo, conglomerando igrejas do movimento
de Renovação Cristã. Essa vertente toma como base ideias do
Pentecostalismo e Carismatismo americanos.

Pentecostalismo é como se chama a doutrina de grupos religiosos


cristãos, originários do seio do protestantismo, que se baseia na
crença do poder do Espírito Santo na vida do crente após o Batismo
do Espírito Santo, através dos dons do Espírito Santo, começando
com o dom de línguas (glossolalia).

Protestati documento elaborado pelos príncipes apoiadores de


Lutero, que invocava a liberdade religiosa e teria sido do mesmo
que o nome se originou.

Thomas Müntzer foi um teólogo revolucionário alemão que se


destacou no tempo da Reforma Protestante. Nascido em Stolberg, no
Anhalt, estudou nas universidades de Leipzig e Frankfurt-am-Oder
bacharelando-se em Humanidades e Teologia Bíblica. Ordenado em
Braunschweig (1514), de 1516 a 1518 vive no mosteiro de Frohse
onde toma contato com as 95 teses de Lutero quando se decide a ir
visitá-lo em Wittenberg.

182
REFERENCIAS

Layane de Souza Santos – Graduanda na Universidade do Pará –


Bolsista CAPES Programa Residência Pedagógica.

AZEVEDO, Edeílson. Livro didático de história no contexto do


pnld: avanços e permanências. Ensino Em-Revista, Uberlândia, v.17,
n.2, p. 617-634, jul./dez.2010.

BURKE, Peter. O Renascimento. Lisboa: Texto e Grafia. 2008

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. 1991. Disponível


em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40141991000100010> Acessado em 21.06.2019.

E biografia. Acesso em 21.06.2019. Disponível


em: https://www.ebiografia.com/john_wycliffe/

FELIPE, Lúcio Antônio. A reforma de Martinho Lutero e da igreja,


Apresentado nos livros didáticos.

Acesso em: 20.06.2019

Disponível em: http://www.mpu-historico.furg.br/seminario-de-


ensino-2015?download=2074:lucio_felipe&start=140

GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História:


experiências, reflexões e aprendizados. 8ª. ed. Campinas: Papirus,
2009.

Info escola. Acesso em: 20.06.2019 Disponível


em: https://www.infoescola.com/religiao/neopentecostalismo/

183
Portal São Francisco. Acesso em: 20.06.2019 Disponível
em: https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-
geral/pentecostalismo

Protestantismo. Acesso em 21.06.2019. Disponível


em: http://protestantismo.com.br/biografias/john_huss.htm

ROCHA, Helenice. A narrativa histórica nos livros didáticos, entre a


unidade e a dispersão. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol.
6, n. 3, dez, 2013.

SILVA, Clenir. Martinho Lutero e sua representação nos livros


didáticos.

Acesso em: 20.06.2019

Disponível em: http://repositorio.unesc.net/handle/1/2994

WEBER, Max (1967). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São


Paulo: Pioneira.

184
O AGRÁRIO EM NARRATIVAS
ESCOLARES
ATHOS MATHEUS DA SILVA GUIMARÃES
FRANCIVALDO ALVES NUNES

Introdução

As narrativas são carregadas de intencionalidade por quem as


constroem e sob o que será narrado, deixando as claras seus
objetivos. A todo o momento estão desenvolvendo textos, verbal ou
não verbal, sobre uma dada característica, sociedade ou até sobre si.
É fundamental atentar-se ao fato de que as narrativas fazem parte
da construção de um grupo, narrando sobre si ou sobre o outro, a
todo o momento estão narrando para definir identidades e
memórias.
Desta mesma forma podemos realizar uma reflexão sobre as
narrativas didáticas construídas no espaço escolar. A escola é um
espaço que a todo o momento está tratando com as identidades e
memórias de alunos e alunas com diversas experiencias e
concentrando essas vivências no espaço escolar. As narrativas
desenvolvidas neste espaço têm um impacto determinante na
construção de cada discente, especialmente na construção do “eu”.

Pensando a partir desta perspectiva, analisamos a construção destas


narrativas escolares a partir de um objeto significativo para
qualquer ambiente escolar, o livro didático. Este material é
significativo para analise, pois, geralmente, é peça de peso na
construção de aulas e os sujeitos expostos para os discentes ganham
destaques a partir destas narrativas. As suas narrativas acabam
sendo decisivas para o desenvolvimento de identidades e tornando-
se um elo com as temáticas abordadas a cada capítulo.

185
Partindo desta premissa, analisamos 3 (três) livros didáticos da
editora Leya que abasteceu a Escola Estadual de Ensino Médio Prof.
Antônio Gondim Lins, escola localizada no Município de
Ananindeua – Pa. A análise foi direcionada para as narrativas sobre
a questão agrária, pois é um tema bastante sensível e cheio de
estigmatizações por parte da sociedade. Influenciados, também, a
partir das narrativas escolares. Para ressaltar, este trabalho é fruto
do projeto de iniciação cientifica, financiada pelo CNPQ, que vem
debater sobre a questão agrária nos livros didáticos. Este texto foi a
partir dos resultados encontrados. Na abordagem, trabalhamos com
os assuntos voltados para a história do Brasil, pois desejamos
entender como o agrário foi introduzido nas narrativas sobre o
Brasil nestes livros didáticos.

Nas tramas dos livros didáticos

A construção de um texto requer todo um esforço do autor ou


autora. Não somente a habilidade da escrita, para além disso, existe
a necessidade da parte da pessoa que escreve lidar com toda a
influência externa. A construção de um texto vai além da habilidade
de escrever, é saber lidar com toda a complexidade existente em
torno do autor e da autora e saber extrair para todo o texto.

A construção do livro didático envolve tudo isso citado à cima,


especialmente pelo fato da produção deste livro envolver
personagens no processo de desenvolvimento, tornando tudo
complexo na hora da montagem do material. A cada página de um
livro didático envolve um esforço de diversos personagens para que
funcione e seja introduzido, a maneira como escreve, sobre o que
escreve e a disposição do texto. Da mesma forma que a utilização de
iconografias e os objetivos do livro.

Tudo é um processo minimamente pensado para sair adequado ao


objetivo da editora, do Estado e da sociedade. Os livros didáticos
não são simples objetos para a sala de aula, estão carregados de

186
intencionalidades, possuindo os mais diversos objetivos para dentro
e fora da sala de aula. Não são apenas meros informadores para
alunos, muito mais que isso, são instrumentos decisivos na
construção dos debates que estarão no espaço escolar e está presente
no planejamento dos conteúdos para a sala de aula.

Dada a importância dos livros didáticos, é desenvolvido uma maior


atenção sobre a maneira como será construída a narrativa, por quem
e como será distribuída. É nestes pontos que aparece um
personagem na trama que vai ditar, de forma decisiva, a maneira
como se deve construir o livro didático, o Estado. O Estado, e seus
agentes, vão ditando como deve ser construído as narrativas dos
livros didáticos, não como ação pacifica, porém o poder público
acaba tendo papel decisivo na metodologia que será utilizada na
produção dos livros didáticos.

De acordo com Marcelo Soares Pereira da Silva (2017) a presença do


Estado como regulamentador da produção dos livros didáticos se dá
a partir do início do século XX, dando mais atenção a este processo
de construção dos textos didáticos. Tendo um marco a partir da
formação da consolidação Nacional do Livro didático (CNLD). A
CNLD foi um agente construído no Governo de Getúlio Vargas,
algo a se atentar e já destacar, as narrativas sempre são construídas
para alguma finalidade, e os governos passaram à também
introduzir estas perspectivas nos manuais didáticos.

Para a Sonia Regina Miranda e Tania Regina de Luca (2004) o


ministério da Educação e Saúde tomou como objetivo a introdução
de valores, valores que o governo federal acreditava ser necessário.
Desta forma, o Ministério tomou a frente no controle sobre o
processo de construção das narrativas didáticas. Assim tornando-se
peça fundamental para o desenvolvimento e potencializador desses
valores que o Estado acreditava.

187
Da mesma forma que no governo militar, no período da Ditadura
militar, também interviu no processo de construção dos livros
didáticos. Para qualquer governo federal é fundamental ter controle
sobre as narrativas que serão introduzidas no espaço escolar, são
narrativas que estarão de acordo com objetivos do Estado. Daí a
necessidade da formação de um agente regulamentador como a
CNLD. Porém os critérios vão se transformando da mesma forma
que os personagens, até surgir outro agente, como, por exemplo, o
PNLD.
O Programa Nacional dos Livros Didáticos (PNLD) é um agente
fundamental no processo de produção e compra dos livros
didáticos. O programa foi criado em 1985, momento de intensas
discussões sobre o ensino após o processo da ditadura militar (De
Luca; Miranda; 2004). O PNLD é um personagem que normatiza os
processos de construção e a maneira como deve ser escolhido.
Torna-se uma referência para as editoras desenvolverem suas
produções para conseguirem entrar na lista de livros com o selo
desta instituição e poder adentrar no processo de seleção dos
docentes do ensino básico e possibilitar a compra.

Os livros da escola analisado

Após o brevíssimo histórico dos livros didáticos e dos personagens


por de trás da construção destas narrativas, vamos nos especificar
para os livros didáticos da escola e da pesquisa. É fundamental
atentar-se ao fato de que os livros didáticos estudados pertencem a
um ambiente maior como a escola e está inserido dentro dos
processos anteriormente citados, as narrativas estão amarradas em
bases que geralmente os docentes e discentes não se atentam.

O volume analisado possui o título “Oficina de história”, produzido


pela editora Leya. O volume possui 3 (três) livros que são
correspondidos a cada ano do ensino médio, 1° ano, 2° ano e 3° ano.
Possuindo conteúdos tanto da História do Brasil e a História de

188
outras civilizações em temporalidades especificas, caracterizando
um livro didático de história integrada.

Estes livros são de autoria de professores universitários e/ou


experientes na área de produção do livro didático. O primeiro autor
é o professor Flávio Campos que é professor da Universidade de São
Paulo (USP), o segundo é o Júlio Pimentel Pinto que é professor
adjunto da USP e a segunda autora é Regina Claro que é especialista
em História e cultura africana e afro-americana. Ambos os autores
são considerados especialistas na produção de livros didáticos. As
informações citadas são trazidas pelo próprio livro didático,
apresentando seus autores e também querendo dar legitimidade a
produção.

Os livros didáticos possuem o selo do Plano Nacional do Livro


didático (PNLD), possibilitando a entrada na seleção de livros
realizada pelos docentes para o ensino básico. Esse volume traz
debates, como destacado anteriormente, sobre a História do Brasil e
História de outras civilizações. Para esta pesquisa o que mais vai ser
levado em consideração é a História do Brasil, especialmente no
debate sobre a questão agrária.

Estes livros abasteceram a Escola Estadual de Ensino Médio Prof.


Antônio Gondim Lins, localizado no município de Ananindeua, no
Estado do Pará. Esta escola é referência para a região, tanto pela
capacidade de atender uma grande demanda de alunos e alunas
quanto também pela parte estrutural que, de certa maneira, destaca-
se dos demais. A escola Antônio Gondim Lins atende discentes do
1° ao 3° ano do ensino médio, como também do ensino de Jovem e
Adolescentes (EJA). São discentes de diversas regiões do município,
principalmente urbanas, mas também rurais. A escola está
localizada em uma zona urbana, informações importantes a serem
destacadas pois influência na maneira de ensinar e aprender. Da
mesma forma na hora de construir suas identidades a partir das
narrativas dos manuais didáticos.

189
O agrário nos livros

Como salientado anteriormente, a investigação concentrou-se sobre


os debates envolvendo a questão agrária na história do Brasil. É
importante realizar esse destaque para entendermos a dimensão
dada ao agrário nas tramas das narrativas sobre o Brasil nos livros
didáticos, pois isso influenciará na maneira como a sociedade se
comportará diante destas questões, especialmente para desconstruir
discursos e/ou perpetuar “velhas” perspectivas.

Os três livros didáticos da escola demonstram narrativas que, em


muitos casos, beiram a perpetuação de ideias já tradicionais, dando
sustentação para continuar as estigmatizações de ideias sobre a
questão agrária. A seleção realizada pelos autores demonstra que os
textos seguem uma mesma linha de raciocínio sobre o agrário,
enquanto que outras temáticas no livro já demonstram uma
preocupação com aprofundamento no debate e um zelo maior na
construção da narrativa.

O livro do primeiro ano do ensino médio destaca a história do Brasil


colonial. Ao longo de suas páginas, o agrário vai aparecendo a partir
de aspectos tradicionais de narrativas que não tem como objetivo
discutir sobre cultura ou a sociedade envolvida no ambiente rural,
as narrativas que envolvem, de certa forma o agrário, acaba dando
destaque a produtos singulares e únicos. Não representam de forma
mais significativa toda um universo agrário, na verdade esvazia o
debate sobre outras perspectivas que poderiam ser abordadas.

O agrário aparece com sustentação de narrativas principais ou se


torna um agente decisivo em alguns momentos, como por exemplo
o período colonial. O livro do 2° ano do ensino médio demonstra o
agrário contido em alguns aspectos já tradicionais como o debate
sobre o açúcar, algo que se torna necessário para o desenvolvimento

190
da trama, porém não traz mais características para além da
importância política e econômica para a colônia.

São perspectivas consolidadas, ao tratar o agrário bastante especifico


e resumido. Não significa estar errado este ângulo, pois trata-se de
seleções, contudo prejudica o debate ao tratar do assunto somente
de um ângulo e não trazer ao público perspectivas mais abundantes
sobre a temática. Fica um debate em que a questão agrária se resume
a um personagem, no caso o açúcar, porém não traz discussões mais
profundas sobre o tema.

Os autores abarcam as narrativas sobre as questões agrárias de


forma a tratar como segundo plano ou como a peça inicial, não tão
importante para todo o processo, mas necessária para o desenrolar
da história. Da mesma forma existem os desaparecimentos do
debate sobre o agrário nas páginas dos livros didáticos. Contudo,
também aparecessem momentos onde os autores dão um destaque
gigantesco a certos aspectos do agrário. Realizando uma ligação
entre o agrário e a construção de referências importantes para a
fabricação da história do Brasil.

Como por exemplo sobre o café. Como o açúcar, o café toma


proporções gigantes em determinado ponto do livro sendo atribuído
como ponto fundamental para a construção da nação e da sociedade
brasileira. Tudo girando em torno deste produto, entendo que sem
aquele respectivo produto não haveria o desenvolvimento do país,
não somente na questão econômica, mas nos aspectos políticos,
sociais e culturais.

No livro do segundo ano o café ganha grande destaque. No debate


sobre a construção da República no Brasil, o produto é construído
como ponto chave para construção da sociedade brasileira, da
mesma forma para o surgimento de diversos grupos a partir deste
elemento. Algo bastante significativo para compreendermos como
os autores vão seguindo a linha de debate, pois os grupos que vão

191
surgindo nestas narrativas não pertencem aos grupos
marginalizados, mas as elites que se perpetuaram e ditaram por
muito tempo.

Abordagem dos autores não contempla de forma significativa em


outros personagens que viveram no meio agrário. Obviamente que
debater sobre a construção das oligarquias é também importante
para compreendermos a formação das relações políticas, econômicas
e sociais do país. Toda via, o debate não pode privilegiar apenas um
determinado grupo, enquanto que pode-se demonstrar aos
discentes, a partir das limitações do livro, os demais grupos sociais e
culturais existentes a partir da questão agrária.

Já no terceiro livro didático da escola, a abordagem vai se limitar aos


movimentos sociais. É interessante que o debate sobre os
movimentos sociais na questão agrária somente aparece no terceiro
livro, são debates abarcando as reivindicações para posses de terras.
Um debate muito importante, especialmente pensando os diversos
conflitos por terra no país.

Mas a forma como é pensado a perspectiva dos movimentos sociais


acaba mais por dá continuidade a pensamentos contraditórios e de
senso comum da sociedade do que desconstruir estas narrativas já
perpetuadas. É difícil para um discente compreender a luta pela
terra não é algo que começou recentemente, tradicionalmente ligado
ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), muito antes
desta entidade política aparecer. A luta pela terra já se arrasta por
séculos, especialmente entre grandes proprietários de terras e
grupos marginalizados, porém são comprimidos e não surgindo nas
páginas didáticas para contribuir para o debate.

Referencias

Athos Matheus da Silva Guimarães é graduando do curso de


história do campus da UFPA em Ananindeua. Atualmente é bolsista

192
PIBIC/CNPQ, desenvolvendo a pesquisa no Campus da UFPA em
Ananindeua com o tema “A terra, os homens e o ensino de história:
a questão agrária e o ambiente rural em livros e apostilas” sob
orientação do professor doutor Francivaldo Alves Nunes (UFPA). E-
mail para contato: athosguimaraes26@gmail.com

Francivaldo Alves Nunes é Doutor em História Social pela


Universidade Federal Fluminense (2011), com Estágio Pós-Doutoral
na Universidade Nova de Lisboa (2014). Pesquisador Produtividade
do CNPq, nível 2. Atua nos cursos de graduação e pós-graduação da
Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de História,
com estudos voltados para Ensino de História.

*Estes resultados são frutos do projeto de pesquisa “A terra, os


homens e o ensino de história: a questão agrária e o ambiente rural
em livros e apostilas”. Esse projeto é financiado pelo PIBIC/CNPQ.
Desde já nossos agradecimentos pelo investimento na pesquisa, pois
com o financiamento foi possível o desenvolvimento desta
investigação.

ABUD, K. M. O livro didático e a popularização do saber histórico.


In: SILVA, M. (Org). Repensando a história. São Paulo: Marco
Zero/ANPUH, 1984.

BATISTA, L. L.; CARVALHEIRO, R. F.; LEITE, F. Mídia e


referências: um estudo sobre interações e efeitos. Revista Ciências &
Cognição, Vol 13 (3), 2008, p. 151-161. Disponível
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DE CAMPOS, Flávio., PINTO, Júlio Pimentel. & CLARO, Regina.


Oficina de história. 2°.ed. São Paulo: Leya, 2016.

GUIMARÃES, Athos Matheus da Silva. A narrativa sobre a Adesão


do Pará à Independência nos Livros didáticos da escola prof.
Antônio Gondim Lins: Primeiros resultados. In: BUENO, Andre;

193
CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José.
(Org.). Aprendizagens históricas: Rumos e experiências. 1ed.União
da Vitória/ RJ: LAPHIS/ Edição especiais Saberes de ontens, 2018, v.
1, p. 36-42.

SILVA, Marcelo Soares Pereira da. O livro didático como política


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194
PARTE 2
P
E
S
Q
U
I
S
A
195
IDENTIDADE & MEMÓRIA: AS
“MULHERES UCRANIANAS ” EM
PRUDENTÓPOLIS/PR

NIKOLAS CORRENT

RESUMO: O presente estudo tem como tema a construção de uma


identidade feminina às mulheres de descendência ucraniana no
município de Prudentópolis (PR). A problemática que envolveu a
pesquisa foi o tratamento dado às mulheres ucranianas,
historicamente refletido na cidade paranaense, e evidenciar a
importância dessas no interior da cultura ucraniana. A realização do
estudo é justificada pelo fato de que há um fluxo cultural em
Prudentópolis que ressalta uma herança cultural e constrói um novo
olhar sobre um povo a partir de sua descendência no Brasil. A
metodologia utilizada abarcou, além de um referencial teórico, uma
pesquisa de campo com entrevistas sucintas com mulheres da
cidade sobre aspectos da feminilidade e da cultura herdada e
motivada por elas. A pesquisa apontou que há um fator
multicultural, que por vezes causa espanto em visitantes, mas que
preserva um encantamento e a possibilidade de encontro entre
povos com respeito e tolerância. Logo, considera-se que o trabalho é
relevante para a construção e desconstrução de paradigmas
engessados sobre culturas e o posicionamento do feminino.

PALAVRAS-CHAVE: Prudentópolis. Identidade. Ucrânia.


Mulheres. Cultura.

INTRODUÇÃO

O presente estudo refere-se a uma pesquisa de campo realizada em


Prudentópolis (PR) com o intuito de compreender o papel das
mulheres de descendência ucraniana no município.

196
Nesse sentido, a discussão que aqui se apresentará tem como
propósito a problematização e reflexão sobre elementos que
viabilizem a compreensão das características das mulheres
ucranianas e suas construções sociais dentro de determinada
sociedade. No caso dos pontos presentes nesta abordagem em
específico, trataremos, por excelência, de pincelar questões sócio-
culturais e regionais que sublinham o diálogo acerca do que se
entende como mulher dentro de Prudentópolis.

O problema de pesquisa que norteou o estudo se baseia no fato de


que as características demográficas e populacionais no município
brasileiro de Prudentópolis, localizado no Estado do Paraná,
condensam uma gama de mulheres com especificidades culturais
únicas. Haja vista o tema colocado, nós delinearemos a perspectiva e
as implicações da influência e, consequentemente, edificação de uma
cultura ucraniana feminina dentro da sociedade prudentopolitana.

Ainda sobre a problemática, nota-se conceitos e ideias que permitem


expressar consistentemente a questão da formação da mulher
ucraniana na constituição de um povo. Isso significa que, de um
modo bem específico, em primeiro instante, há elementos bem
nítidos em relação ao que é a feminilidade em sua formação. Assim,
procura-se relacionar as teorias abarcadas ao longo do artigo com a
formação do município de Prudentópolis enquanto município
originado, em grande parte, embora localizado no Sul do Brasil, a
partir de imigrantes europeus oriundos da Ucrânica, no início do
século XX.

Como hipótese inicial, considera-se que, em termos gerais,


queremos compreender, de saída, o que se quer dizer com a ideia de
“mulher ucraniana”. No decorrer do texto, usamos o termo
mulheres ucranianas entre aspas, pois são mulheres cuja
descendência é a ucraniana, mas não tiveram seu nascimento e
origem na Ucrânia. Mas em sequência, poderemos relacionar este
conceito com questões um tanto quanto específicas do regionalismo

197
formador das cidades, mais especificamente a partir do estudo de
caso do município de Prudentópolis (PR).

Trata-se então de entender como e se a formação da mulher implica


em manutenção completa de uma forma própria de ser da mulher
ucraniana, ou se, a partir da imigração de um povo oriundo de um
continente distante, tem-se o surgimento de um novo povo e de um
novo modo de vida, de maneira que a ideia das mulheres
ucranianas, agregadas ao Brasil, faz surgir mulheres com costumes e
criações peculiares, implicando assim, nem numa separação
completa do imigrante europeu de seu país, nem numa
desagregação ou desconstrução abrupta e radical dessa mudança
em face de uma imposição geográfica, política e sócio-cultural
brasileira e supostamente pré-determinada.

A realização do estudo é justificada pelo fato de que há um fluxo


cultural em Prudentópolis que ressalta uma herança cultural e
constrói um novo olhar sobre um povo a partir de sua descendência
no Brasil. Além dessa motivação, há outra que se deve ao fato de
que 75% da população de Prudentópolis é constituída de pessoas de
descendência ucraniana; assim sendo, tornou-se necessária a
discussão temática proposta pelo artigo.

A metodologia empregada se baseou em pesquisa bibliográfica, que


compõe obras diversas relacionadas ao multiculturalismo, às
mulheres, às tradições e identidade e à análise de dados a partir das
mesmas. A pesquisa também pode ser considerada descritiva e
exploratória, pois o problema de pesquisa aborda principalmente
esse reflexo e ressonância entre culturas, de modo que se deseja
caracterizar elementos fortes e presentes de uma cultura na outra,
numa maneira a qual se possa identificar o que de fato ocorre no
seio de um encontro entre dois modos de vida ou mais.

Espera-se que o estudo seja relevante para a compreensão da


formação identitária das mulheres ucranianas, e para o
reconhecimento das mesmas no interior de uma cidade paranaense,

198
e na projeção maior do Brasil como um polo de diversidade e
acolhimento.

IDENTIDADE E DOMINAÇÃO: AS “UCRANIANAS” DE


PRUDENTÓPOLIS

A dissertação de Sandra Mara Tenchena, intitulada Memória de


Mulheres Ucranianas: Recriação de Tradições em Prudentópolis-PR,
deflagra tanto o aspecto de acolhimento que parece imbutido na
questão, como também o eventual preconceito ou resistência que
essa mulher ucraniana irá sofrer. Logo, quando se fala da mulher
ucraniana, um estudo antropológico como o de Sandra faz pensar
diversas tonalidades do problema. Um deles é o fato de que a
mulher ucraniana toma a liderança em diversas questões. Mas ainda
assim, é preciso saber que toda a chance que a mulher adquire no
país pode mascarar ou não um problema velado que vem da própria
cultura das terras geladas do hemisfério norte.

Para Sandra Tenchena, a mulher ucraniana é extremamente forte,


meiga e divertida, bem como “[...] o homem ucraniano não é
machista e não determina a vida familiar, pois são as mulheres que
se colocam como cabeça do núcleo familiar, são elas quem
discretamente falam e decidem tudo” (TENCHENA, 2010).

Seria mesmo o homem ucraniano tão acolhedor como parece neste


relato? Ou será que, quando se trata da região sul do Brasil, muito
vem à tona, e por isso mesmo a desconfiança quanto a um processo
de adjacência do acolhimento: Há no Brasil a notória vizinhança
com países latinos tais como Paraguai, Uruguai e Argentina, a
culinária forte, peculiar e até excêntrica, o clima temperado e ainda
bastante oscilante em algumas épocas do ano, mas também, sem
dúvidas, a influência da cultura e dos costumes europeus. Teremos
nós verdadeira adoração, preconceito, ou melhor, adotaremos até
mesmo seus preconceitos velados? Considera-se isto um imaginário
que o grupo pesquisado tem de si, onde esse tipo de pensamento
afaga seus próprios egos, mas não corresponde a uma realidade

199
verdadeira. Os prudentopolitanos descendentes de ucranianos
preservam traços de memória como se fosse uma herança valiosa,
mas nada mais é do que o desejo e a busca de uma identidade, que
se constrói pela diferença.

O mote deste trabalho, como dito anteriormente, é a formação de


uma perspectiva sobre as mulheres ucranianas no município de
Prudentópolis, no Paraná. Nesse sentido, foram pesquisados dados
relativos aos moradores do município com ascendências e
descendências diretas da Ucrânia. Com isso, debateremos, como
num estudo, as questões expostas na primeira parte deste capítulo
no que concerne às teorias envolvendo contemporaneidade e
formação de culturas, inserindo, como foi dito, o problema dentro
do quadro da construção do paranaense-ucraniano (GUÉRIOS,
2007).

A mulher ucraniana, não sofreria, nesse sentido, por mais que se


tente acolhê-la, um enorme descaso machista, de seus conterrâneos
dentro de uma Terra estrangeira? Como a perspectiva global
permite, o papel da mulher como organizadora de tudo, ou seja,
como a matrona dos processos decisórios na cidade, pode esconder
uma opressão não antes imaginada do homem ucraniano, e aí, se
teria dado aval ao machismo em face de uma naturalização do
mesmo enquanto divisão social de tarefas da mulher ucraniana.

A mulher então, nessa perspectiva geral da cultura ucraniana a qual


se tem sempre que remontar, a todo momento, caso se queira
realizar uma etimologia, pode ser pintada não tanto mais como
mulher forte, tal como dizia o texto de Tenchena. Aliás, a própria
Sandra Tenchena, sem ressalvas em alguns momentos, atribui ao
homem ucraniano no Brasil o tom do machismo novo que se criaria
por aqui. Segundo ela:

As mulheres mais velhas, quando entrevistadas, relataram-me as


marcas de uma educação rígida de acordo com os costumes
ucranianos nos quais a mulher deveria ser resguardada para o
casamento, pois se observa a demarcação entre os papéis femininos

200
e masculinos, outorgando maior liberdade ao homem, porém
observa-se que a mulher ucraniana também conversava muito com
seu marido e os dois chegavam a um consenso, ou seja,
aparentemente o homem ucraniano machista aceitava sugestões de
sua esposa e estava aberto ao diálogo (TENCHENA, 2010, p. 123).

Considerando que as mulheres rutenas vieram ao Brasil,


estabelecendo-se em diferentes colônias do Paraná, cabe observar
que cada uma delas trouxe um determinado aspecto da região
respectiva a qual seus habitantes trouxeram a migrar. Assim, se
oriundos de determinada região da Ucrânia, ou de uma região
limítrofe russa, podemos dizer que a ruteno ou ucraniana “pura”,
chegou ao Brasil em completo devir, ou seja, sujeito a mudanças as
quais a nova terra poderia de alguma maneira proporcionar.

Por isso, quando se fala de mulher, mesmo nas entrevistas e nas


pesquisas de campo, procura-se construir uma perspectiva nada
agressiva, mas pelo contrário, a perspectiva da mulher como
sobrevivente a guerras e representante do povo que lutou para que
elas vivessem até ali.

A mulher aparece ainda mais como testemunho, seja de um


processo de colonização, comparado aos liames dos EUA e outros
países, seja a um processo de reconstrução de sua identidade
feminina na atualidade. Consoante as palavras ainda de Tenchena:

As mulheres mais jovens, por terem nascido em um momento


histórico mais privilegiado, no que tange às conquistas femininas e
pelo fato de terem tido mais acesso à escolaridade e à inserção no
mercado de trabalho, evocam uma educação pautada por
comportamentos menos rígidos, levando-as a usufruírem de maior
liberdade nas escolhas de seus parceiros e profissão, mas não
deixam de lado os costumes, as tradições e a religião, adaptado-as
ou recriando-as ao novo contexto (TENCHENA, 2010).

Observa-se que há uma dominação masculina fortemente presente


na sociedade ucraniana em Prudentópolis. Essa dominação acabou

201
sendo incorporada como algo natural pelas descendentes de
ucranianos considerando que elas – esposas e filhas –, acabam
implantando essa relação de obediência em sua rotina como algo
irreversível. Não percebendo sua condição de dominadas, as
mulheres, acabam reproduzindo essa subserviência.

Conexo a isso, Pierre Bourdieu, em sua obra Dominação


Masculina (1999), cita que “[...] as religiões inculcam explicitamente
uma moral marcada por valores patriarcais, e modelam estruturas
históricas do inconsciente por meio do simbolismo presente nos
textos sagrados da liturgia, do espaço e do tempo religioso” (p. 103).

Historicizando o processo de dominação, Bourdieu (1999) alerta


para a ideia de que a feminilidade da mulher é um fato pressuposto
pela sociedade e tal característica faz dela um ser “para o outro”. No
caso da mulher, então, o marcante é o fato de que a dificuldade no
mercado de trabalho é acentuada ou preservada desde os liames da
revolução industrial. O papel da mulher é ampliado, seja no
funcionamento da direção de diversas atividades cidadãs, seja como
trabalhadora a qual coloca dinheiro na vida familiar. Mas ainda
assim, o aspecto de mulher dona de casa prevalece, seja entre as
jovens ou não. Conta Tenchena que:

Contra a dominação e a vitimização surge a ideia pós-moderna de


desconstrução das perspectivas de identidade, destacando-se a
subjetividade feminina em detrimento dos conceitos essencialistas
de sujeito. Hall (1997) potencializa o conceito de “identificação” para
delinear a conceituação de identidade.

Compreende-se que a identidade é um fator construído


gradativamente no interior de discursos e que satisfaz a hierarquia
de poder. Sendo assim, o discurso de uma sociedade patriarcal
produz um sentido específico para as mulheres, fazendo com que
haja a constituição da identidade feminina. A dominação masculina
é aprendida pelo homem e absorvida pela mulher
inconscientemente.

202
Em Prudentópolis, nota-se uma função fortemente atribuída às
mulheres de descendência ucraniana: a de preservar os costumes.
Segundo Krevei, “[...] as mulheres tem que cuidar dos filhos e da
casa. As mães são responsáveis pela transmissão das tradições e
costumes aos filhos, sendo ensinado o jeito de ser ucraniano”
(KREVEI, 2017). Destaca-se aqui o papel praticado pelas mulheres
ucranianas diante da preservação e manutenção das tradições.

Na atualidade, percebe-se que as mulheres de descendência


ucraniana ainda tem como intuito ensinar principalmente os pratos
típicos ucranianos, os rituais de páscoa, a valorização da religião etc.
O padre Tarcísio Orestes Zaluski, acredita que:

A mulher é respeitada, tem um papel no cuidado da casa,


preocupação com a vida da família, costumes, educação dos filhos e
religião. A mulher é grande incentivadora de praticar costumes dos
antepassados, mulheres exercem grande papel nas festas tanto
familiares como religiosas (ZALUSKI, 2017).

Historicamente, as “mulheres ucranianas” estão/estiveram/estarão


inseridas em uma estrutura patriarcal que as direciona ao casamento
e à submissão conjugal. Por um lado, pode-se ver a mulher como
sujeita a um fardo, mas por outro, tem-se aí a força da mesma diante
da capacidade que adquire perante aos mandos e desmandos de um
possível totalitarismo e rejeição cultural brasileira contra o
estrangeiro. Tenchena, quando pesquisou sobre a memória de
mulheres ucranianas em Prudentópolis, sobre a “predestinação ao
casamento”, ela observa que:

Para as entrevistadas na faixa etária de 15 a 18 anos, elas pretendem


casar e procuram um descendente de ucranianos porque dizem que
estes são mais trabalhadores e respeitosos, os brasileiros, segundo
elas, só pensam em brincar, sendo assim, pensam em casar com
descendente de ucraniano e com os brasileiros elas só “ficam”. Elas
dizem também que querem um casamento segundo as tradições
ucranianas [...] (TENCHENA, 2010, p. 47).

203
Conforme Stuart Hall (1997) “[...] as sociedades estão
constantemente sendo descentradas” (HALL, 1997, p. 17), e a
necessidade de trazer à tona os elementos cuturais de uma
civilização ou povo, adquire outra conotação. Não se tratando assim
de manter o elemento cultural na mente como uma maneira vaidosa
e impensada de sobreviver a tradição à morte, os pressupostos de
investigação cultural, como no caso de Prudentópolis, considerada
“a Ucrânia Brasileira”, parece ainda haver uma espécie de
“concessão” à mulher para que se possa reconstruir ou
reterritorializar a Ucrânia no Brasil. Isso fica de certa forma evidente
no fato de que se deve manter, aparentemente, uma cultura casta,
recatada e que se mostre diferente de uma suposta permissividade
brasileira, de modo que, em relação à mulher ucraniana, “[...] ainda
hoje não é de bom tom engravidar antes do casamento e as festas da
comunidade ainda seguem os ritos ucranianos, mas sem o
casamenteiro” (TENCHENA, 2010, p. 81).

Segundo Bourdieu (1999), na coerência dominação e dominado, esse


último reconhece o poder exercido pelo dominante. As instituições
tais como Estado, família e escola contribuem como agentes de
propagação dessa relação de dominação, pois elaboram e impõem
princípios de dominação que são exercidos na sociabilidade
cotidiana (BORDIEU, 1999). Pertinente a essa ideia, Krevei relata
que: “[...] a força condutora do povo ucraniano é a igreja. A religião
é a força que te mantém vivo quando você se vê só. Onde o
imigrante ia pedir socorro, pedir conselho? Na igreja” (KREVEI,
2017).

Toda a projeção cultural e religiosa, conforme Perrot, promove, “[...]


nessas condições, a perpetuação do “mito” do poder masculino que
serve aos interesses dos dois “gêneros” (PERROT, 2005, p. 171). O
que se quer com isso é mostrar que uma cultura rutena precisa
preservar sua religião, talvez não por crer nela mais como os
antepassados, mas porque ela os lembra de quem são, da herança
que legam e que não conseguem e nem querem se despojar.

204
Nessa perspectiva, a relevância dada à religião em Prudentópolis,
faz com que ocorra a determinação de comportamentos, regras e
valores que são assimilados pelas famílias, de forma que através do
diálogo é aprendido instintivamente por meio de estruturas
inconscientes da ordem masculina. A depoente Nádia Morskei deixa
claro isso, pois acredita que “[...] a Igreja é a principal responsável
por estar mantendo as tradições culturais, religiosas, étnicas e
folclóricas” e que “[...] a conciliação da família com a força da igreja
foi importante pra manter os costumes, senão tinha acabado tudo.
Nós descendentes devemos muito pra igreja”. O discurso religioso
estabelece uma relação intrínseca de dependência com a dominação
masculina, inclusive fundamentada em uma perspectiva
estritamente patriarcal.

Em uma sociedade dominada pelo machismo, as Igrejas de Rito


Ucraniano aparecem como controladoras e manipuladoras das
identidades femininas, pois é nesse ambiente sacro que as mulheres
são ensinadas a praticarem rituais e costumes que ligam-nas ao
ambiente doméstico, tais como: benção de alimentos, bordado,
culinária típica ucraniana, ensinamento do idioma ucraniano,
confecção de Pêssankas (ovos decorados) etc. Tenchena aborda
sobre o papel social atribuído às mulheres, as quais deveriam

[...] preparar a comida; por a mesa; convidar para vir à mesa; lavar a
louça; arrumar a cozinha; preparar o café para o dia seguinte e
planejar o próximo almoço. Aos sábados, além das tarefas habituais,
competia à mulher lavar a casa e a cozinha, quando completava o
serviço da cozinha, a mulher pegava o cesto de roupa para
remendar ou lavar. Ela não ficava nunca sem trabalhar. Eram
poucas as mulheres que se dedicavam, nessa época, a serviços fora
da pequena propriedade, algumas trabalhavam como professoras
nas colônias, mas quando chegavam em casa também tinham os
seus afazeres domésticos (arrumar, passar, educar, etc.)
(TENCHENA, 2010, p. 29).

Com essas nuances, a identidade feminina das mulheres ucranianas


foi construída pela sociedade prudentopolitana que é

205
marcadamente masculina, onde os modos de agir, de se comportar e
até de pensar são determinados e estabelecidas por outrem. Essa
identidade passa a ser formada juntamente com a aceitação da
posição de inferioridade da mulher, a qual seu recinto de submissão
é visto como normal, pela sociedade e por si mesma, que subsidiará
o consentimento da dominação.

É por isso que não vale o investimento da negação disso, tendo em


vista o machismo que ainda impera, seja do natural brasileiro do
interior, ou mesmo dos mais velhos descendentes ucranianos para
com suas mulheres (TENCHENA, 2010). Sandra Tenchena,
evidencia que:

Por um lado, esses comportamentos disciplinados das mulheres de


minhas memórias aparentemente as colocavam em um lugar de
submissão aos homens e aos preceitos religiosos, por outro lado, as
mesmas maneiras contidas as colocavam em lugar de destaque
durante o exercício de transmitir e confirmar os preceitos das
tradições ucranianas (TENCHENA, 2010).

A mulher, assim, aparece como uma construção de muitas facetas


em potencial, mas que convergem para uma, ou seja, para a
formação de uma noção de mulher ucraniana que talvez se coloque
no embate entre o sim do conservadorismo e da manutenção de
uma conservação um pouco opressora, que deixa a novidade da
mulher no meio de um futuro que empurra para o passado e de um
passado que com muito custo empurra, minimamente, para o
futuro.

Essa reinvenção é fundamental para pensar as relações vivenciadas


pelas mulheres, as quais ainda estão submetidas de certa forma a
cuidar com zelo de que algo que transmita uma mensagem pacífica.
Assim, coloca-se nos ombros da imigrante uma responsabilidade
onde muitas vezes, embora o homem tome conta, não se distancia
de um conservadorismo com o qual a historicidade se acostumou,
ou seja, urge no fim das contas, à mulher tomar conta de atividades

206
não necessariamente políticas, mas que promovam um laço ou uma
coerência a médio e longo prazo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, o objetivo do artigo e do trabalho foi de mostrar


como a mulher ucraniana é tratada em Prudentópolis (PR), e
evidenciar a importância dela no interior da cultura ucraniana.
Nota-se assim que o pesquisador conseguiu alcançar o propósito
maior do texto, que era constatar e solidificar as bases das mulheres
ucranianas em Prudentópolis, de tal modo que ela é tratada com a
dicotomia da força de uma descendente de estrangeiros que se
esforça para preservar sua a cultura de seus antepassados, mas
também com o olhar sobre um ser humano que pode talvez não
deixar às futuras gerações seus ensinamentos e descendência.
Nascendo no Brasil, os descendentes ucranianos têm consciência de
que são brasileiros como todos outros, mas praticam da cultura de
seus ancestrais ucranianos e consideram que com isso suas raízes
estão na Ucrânia.

Não se deixa de cultivar, dentre os prudentopolitanos mais velhos,


os bordados ucranianos, a religião dos antepassados ou a culinária,
assim como a relação com a Papoula com símbolo mágico contra o
mal ou o Carvalho como uma árvore sagrada.

A memória e a construção da perspectiva do cidadão de


Prudentópolis, conforme passa o tempo, ganha sua autenticação
própria, e com ela, as referências e o reconhecimento característico
de turistas originários daquele país. Mas no caso de um dia não
restar mais do que um parentesco distante com aqueles ucranianos
que primeiro chegaram, depois de duzentos ou trezentos anos,
ainda assim se poderá dizer que o Brasil tornou-se muito mais do
que um território ultra-marítimo ou uma extensão autoritária e
construída à base de uma resistência agressiva.

207
Não existe assim, um DNA fixo e eternamente imutável em todos os
seus genes, mas uma coisa mais ou menos evanescente que desperta
de onde se menos se espera, e que traz à tona, não importa quanto
tempo se passe, um cheiro, uma nota musical, um gosto, uma forma
de se vestir e um dialeto que reterritorializa sempre uma parcela do
imigrante que sempre se reconstrói numa entropia própria com a
nova casa, seja ele europeu, polonês e, no caso de Prudentópolis,
ucraniano.

O tema brevemente pesquisado não se esgota aqui, ao contrário,


possibilita outras formas pelas quais se pode investigar e ampliar
demais análises sobre as mulheres e a cultura ucraniana.

REFERÊNCIAS

Mestre em História (2019) pela da Universidade Estadual do Centro-


Oeste (UNICENTRO). Membro do grupo de Estudos em História
Cultural da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).
Graduado em Pedagogia (2019) pelo Centro Universitário
Internacional (UNINTER), Filosofia (2018) pelo Centro Universitário
de Araras Dr. Edmundo Ulson (UNAR), História (2016) pela
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e Ciências Sociais (2015)
pela Faculdade Guarapuava (FG). Especialista em Docência do
Ensino Superior (2018) e Educação a Distância com Ênfase na
Formação de Tutores (2018) pela Faculdade São Braz (FSB); Gestão
da Educação do Campo (2017) pela Faculdade de Administração,
Ciências, Educação e Letras (FACEL); Educação Especial e Inclusiva
(2016), Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia (2016) e
Ensino Religioso (2015) pela Faculdade de Educação São Luís
(FESL). Professor de Sociologia contratado pela Secretaria de
Educação do Estado do Paraná e leciona as disciplinas de Filosofia,
História e Sociologia no Colégio Imaculada Virgem Maria e
Sociologia no Colégio São José. Tem experiência na área de História,
atuando nos seguintes temas: Imigração, Identidade, Cultura,
Mulheres, Memória e História oral.

208
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.

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Casa Romário Martins, Fundação Cultural de Curitiba, v. 22, n. 108,
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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena


Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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FREITAS, Marcos Cezar de (org). Historiografia em perspectiva. São
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Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro:
DP & A Editora, 1997.

HOBSBAWM, E., RANGER T. A invenção das tradições. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2002.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e


prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Tradições Ucranianas em Prudentópolis, no Paraná. PUC-SP, 2010.

209
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outubro de 2017.

MORSKEI, Nádia. Entrevista concedida ao autor no dia 05 de


setembro de 2017.

ZALUSKI, Tarcísio Orestes. Entrevista concedida ao autor no dia 26


de setembro de 2017.

GÊNERO & HISTÓRIA: U MA


QUESTÃO DE PODER E
SUBJETIVIDADE

NIKOLAS CORRENT

A palavra gênero advém do latim genus, sendo traduzido como tipo,


nascimento ou família. A historiadora e teórica feminista Joan Scott
(1990) comenta que na contemporaneidade, o termo gênero é
designado como um sinônimo de mulheres por alguns
pesquisadores. Elucida que a substituição deste se emprega devido
ao gênero desempenhar “uma conotação mais objetiva e neutra”
quando comparado a palavra “mulheres” (SCOTT, 1990). Isto posto,

[...] o termo "gênero" não implica necessariamente uma tomada de


posição sobre a desigualdade ou o poder, nem tampouco designa a
parte lesada (e até hoje invisível). Enquanto o termo "história das
mulheres" proclama sua posição política ao afirmar (contrariamente
às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos válidos,

210
o termo "gênero" inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece,
assim, não constituir uma forte ameaça (SCOTT, 1990, p. 75).

Doravante o supracitado pela autora, percebe-se que a transferência


de mulheres para gênero alude em uma construção social que
viabiliza igualar homens e mulheres. Segundo a historiadora Louise
Tilly (1994), o emprego do gênero como uma categoria conceitual
além de promover esta igualdade, visa proporcionar “[...] o acesso
das mulheres tanto à autonomia individual quanto ao poder político
e econômico” (TILLY, 1994, p. 43), Scott em contraposição à Tilly
reitera que o termo gênero denota que uma informação a respeito da
mulher é relativamente a respeito do homem, isto é, um estudo
acerca de um, possui analogia com o outro. Desse modo, emprega-se
o termo visando associar as mulheres aos homens, onde “[...] o
mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é
criado nesse e por esse mundo masculino” (SCOTT, 1990, p. 75).
Evidencia-se então, que o estudo acerca das mulheres deve
necessariamente estar inserido no contexto dos homens,
correlacionando às relações de poder, onde as mulheres tornam-se
dependentes dos homens por meio do patriarcalismo, o qual define
o homem como superior a mulher.

Regressando à construção social, esta é fundamentada nas


diferenças notáveis entre os sexos, nas quais são estabelecidas
culturalmente no íntimo da sociedade, sendo capazes de variar de
uma para outra. Entretanto, o gênero como uma categoria de análise
consiste em uma interpelação utilizada em torno da década de 80,
anos em questão assinalados pelo imperativo de introduzir novos
conceitos, nos quais visavam à busca da legitimidade acadêmica
pelas pesquisas feministas.

De acordo com a professora e historiadora Joana Maria Pedro (2005),


a utilização de gênero como um novo conceito deve-se às
linguagens, tendo em vista que os seres animados e inanimados da
língua portuguesa, independente de possuírem um sexo biológico,
apresentam um gênero. Assim sendo, “[...] era justamente pelo fato
de que as palavras na maioria das línguas têm gênero, mas não têm

211
sexo, que os movimentos feministas e de mulheres, nos anos oitenta,
passaram a usar esta palavra ‘gênero’ no lugar de ‘sexo’” (PEDRO,
2005, p.78). A autora complementa que por meio deste contexto, os
estudiosos do período buscavam “[...] reforçar a idéia de que as
diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e
mulheres não eram dependentes do ‘sexo’ como questão biológica,
mas sim eram definidos pelo ‘gênero’ e, portanto, ligadas à cultura”.
(PEDRO, 2005, p. 78).

Nessa perspectiva, o conceito de gênero designa uma construção


social na qual estabelece as identidades subjetivas de mulheres e
homens, ou seja, a concepção de gênero distingue-se do sexo
biológico, o qual se define por um emaranhado de características
estruturais e funcionais, pelas quais classificam um indivíduo como
macho ou fêmea. O gênero se emprega, de acordo com Scott (1990,
p. 75) como “[...] uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado”, o qual “[...] oferece um meio de distinguir a prática sexual
dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens”. A autora reitera
mais adiante, definindo o gênero em duas conjecturas, sendo “[...]
um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos” e “[...] uma forma primária de
dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 86).

Em síntese, o gênero não se refere às particularidades biológicas


sexuais, no entanto, alude às diferenças sociais e culturais entre
homens e mulheres, permeadas pelas relações de poder. Dessa
forma, na concepção de gênero o indivíduo não vem ao mundo
sendo homem ou mulher, como determina o sexo biológico, mas ele
estrutura-se em um processo onde é viabilizado o ato de tornar-se
mulher ou tornar-se homem. Surge assim, a identidade de gênero,
onde o indivíduo identifica-se como sendo do gênero masculino ou
feminino, independente de seu sexo biológico. Complementando,
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira em Míni Aurélio: o dicionário da
língua portuguesa (2010, p. 376), define o gênero sendo “[...] a forma
como se manifesta, social e culturalmente, a identidade sexual dos
indivíduos”. Assim, percebe-se que o gênero, bem como sua

212
identidade, associa-se ao comportamento de um indivíduo perante a
sociedade na qual se estabelece.

Acerca das variações entre o gênero e o sexo biológico, com raras


exceções sabe-se que existem dois sexos, o feminino e o masculino,
para determiná-los verifica-se algumas características físicas,
sobretudo a genitália de ambos. Doravante uma análise destes
órgãos íntimos, o indivíduo passa a caracterizar-se como fêmea ou
macho, conforme citado anteriormente. O gênero, diferentemente do
sexo biológico, denota condições psicológicas, sociais e culturais,
pelas quais configuram o indivíduo como feminino ou masculino.
Dessa forma, evidencia-se que a quantidade de feminilidade e
masculinidade encontrada no indivíduo, identifica seu gênero
sexual. Em síntese, o que caracteriza o gênero de um indivíduo é o
seu grau de masculinidade ou feminilidade, resultando em sua
identidade de gênero, isto é, o “sentir-se homem” e o “sentir-se
mulher”. O gênero indica-se como mais importante quando
comparado as características anatômicas, tendo em vista que o sexo
biológico é algo invisível, enquanto a identidade de gênero torna-se
visível, com as linguagens e a vestimenta empregada.

Complementando, Scott (1990, p. 86-87) afirma que “[...] o gênero


implica quatro elementos interrelacionados”, sendo eles: os
símbolos culturais, produtores de inúmeras significações, bem como
“Eva e Maria como símbolos da mulher [...] na tradição cristã
ocidental”; os conceitos normativos, os quais compreendem não
somente as leis e regras, mas também as “[...] doutrinas religiosas,
educativas, científicas, políticas ou jurídicas” (SCOTT, 1990, p. 86-
87); as instituições, como escolas e igrejas; e as identidades
subjetivas e genéricas, nas quais constituem o indivíduo. Conforme
os elementos destacados por Scott, temos a composição do gênero
nos indivíduos.

A HISTÓRIA NAS RELAÇÕES DE GÊNERO

Constata-se que a história contribui para a expansão do


conhecimento de cada indivíduo, atuando como promotora e

213
detentora de informações globais, sobretudo acerca da sociedade e
sua cultura. De acordo com o historiador Boris Fausto em sua
obra História do Brasil (1995),

[...] a História é uma disciplina acessível a pessoas com diferentes


graus de conhecimento. Mais do que isso, é uma disciplina vital
para a formação da cidadania. Não chega a ser cidadão quem não
consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do
conhecimento da vivência das gerações passadas (FAUSTO, 1995, p.
13).

Diante do exposto, evidencia-se a relevância desta ciência para a


sociedade, visto que a investigação dessa disciplina apresenta-nos
subsídios para que possamos compreender melhor as relações de
gênero. Dessa maneira, regressaremos aos estudos realizados por
Joan Scott, a qual por meio da história busca analisar e compreender
as relações supracitadas. Consonante, Scott entende que a “[...]
história é tanto objeto da atenção analítica quanto um método de
análise. Vista em conjunto desses dois ângulos, ela oferece um modo
de compreensão e uma contribuição ao processo através do qual
gênero é produzido” (SCOTT, 1994, p. 13-14). Assim sendo,
fundamentados na história, alcançaremos tal compreensão acerca da
construção das relações entre os gêneros.

Defensora do pós-estruturalismo, Scott concebe esta teoria como


uma fonte de rompimento com as arcaicas tradições, as quais
definem a sociedade de forma hierárquica. Dessa maneira, o pós-
estruturalismo apresenta concepções alternativas acerca do gênero,
possibilitando essa ruptura com o remoto e indagando novos
significados nas relações de poder. Sintetizando, “[...] o pós-
estruturalismo e o feminismo contemporâneo são movimentos de
fins do século XX que compartilham uma certa relação crítica
autoconsciente diante das tradições política e filosófica
estabelecidas” (SCOTT, 2000, p. 204). A autora complementa
situando o imperativo em explorar tal relação.

214
A história das mulheres se estabelece como um “[...] agente político
no qual desafia as premissas pré-estabelecidas, questionando a
primazia concebida ao homem, em oposição às mulheres” (SCOTT,
1994, p. 81-83). Logo, evoca uma contribuição ao advento do
movimento das mulheres nos anos de 1970, no qual, sendo de
caráter feminista, buscava contemplar a igualdade entre os gêneros,
bem como impugnar as raízes culturais que permeiam nesta
desigualdade. Para Pedro,

O uso da categoria de análise “gênero” na narrativa histórica passou


a permitir que as pesquisadoras e os pesquisadores focalizassem as
relações entre homens e mulheres, mas também as relações entre
homens e entre mulheres, analisando como, em diferentes
momentos do passado, as tensões, os acontecimentos foram
produtores do gênero (PEDRO, 2005, p. 88).

Conforme a afirmação da autora, no decurso da história nos


deparamos com distintos acontecimentos dentre os quais refletiram
nas relações de gêneros perante a sociedade, sobretudo,
determinaram influências nas desigualdades entre estes. No período
neolítico, os indivíduos principiaram a produção de seus alimentos,
concomitantemente, é neste ínterim que se estabelecem as funções
de homens e mulheres nas civilizações antigas. A divisão sexual do
trabalho era contemplada pela capacidade de reprodução das
mulheres, as quais mantinham-se restritas ao ambiente e ao trabalho
doméstico, evidenciando-se os cuidados com a casa e com seus
provenientes. O ato de ‘cuidar’ se perpetuou como uma função
relativa às mulheres da época, as quais devido às suas capacidades
reprodutoras possibilitaram a reprodução da subordinação aos
homens, sendo cognominados como os patriarcas. Instala-se assim,
o sistema patriarcalista, estabelecendo as desigualdades presentes
nas relações de gênero, pelo qual emana um sistema de dominação
influente na contemporaneidade.

De acordo com Scott, as feministas “teóricas do patriarcado” buscam


elucidar as procedências deste, visando encontrar uma “[...]

215
explicação dessa subordinação na ‘necessidade’ masculina de
dominar as mulheres” (SCOTT, 1990, p. 78). Acerca deste contexto, a
reprodução é considerada a “chave” desse sistema, tendo em vista
que a descoberta da contribuição do homem no processo de
reprodução instaurou o conceito de que as mulheres, assim como
seus herdeiros, eram subordinadas aos homens, os quais tornaram-
se a “fonte” da procriação. Scott (1990, p. 78) acrescenta que “[...] o
princípio da continuidade geracional restaura a primazia da
paternidade e obscurece o trabalho real e a realidade social do
esforço das mulheres no ato de dar à luz”. Posto isso, estabeleceu-se
uma superioridade paterna devido à sua contribuição na
fecundação. Além da reprodução, algumas pesquisadoras feministas
atribuem a sexualidade ao patriarcalismo. Destarte, a mulher
evidencia-se como uma fonte de prazer ao homem, sendo
novamente, um sujeito subordinado ao patriarca.

Doravante a Revolução Industrial, as mulheres de classe baixa


inserem-se ao contexto fabril, entretanto, não abdicam das
obrigações domésticas, sendo submetidas a uma jornada de trabalho
dupla, isto é, desempenha suas funções em fábricas além daquelas
exercidas no âmbito familiar, conforme citado no parágrafo anterior.
O desenvolvimento das indústrias, em meados do século XVIII e
XIX, resultou nos conflitos sociais enfocados nas relações de
gêneros, tendo em vista que se estabeleceram neste período as
desigualdades trabalhistas. Desse modo, a mão de obra feminina foi
incorporada à masculina. Esse fator emanou a insatisfação dos
homens, dentre os quais alegavam que as mulheres ocupavam seus
postos de trabalho, enquanto que estas padeciam com as
desigualdades salariais. A industrialização em conjunto ao sistema
capitalista introduziu as mulheres no mundo do trabalho,
entretanto, ensartou a luta entre os gêneros conforme o exposto.
Diante disso, as mulheres depararam-se com uma nova
desigualdade enfrentada por meio de salários menores quando
comparado ao dos homens. Segundo Scott (1990, p. 78), as
feministas marxistas atribuem esta “[...] divisão sexual do trabalho
sob o capitalismo” como consequência às suas funções
reprodutoras.

216
Perante o século XIX e após as ideologias difundidas na Revolução
Francesa, o movimento das mulheres almejava por melhorias nas
condições de trabalho, pleiteando seus direitos trabalhistas,
sobretudo a uniformidade no expediente de trabalho. Ademais,
requeriam o direito ao voto e a candidatura aos cargos públicos, os
quais restringiam-se apenas aos homens, principalmente os mais
abastados. No século subsequente, o feminismo – denominação do
movimento das mulheres - revigorou-se, desempenhando inúmeros
protestos organizados na intercessão de seus direitos. Essas
manifestações alentaram às mulheres a delatar a sujeição pela qual
eram acondicionadas e que se evidenciava em diversos âmbitos da
vida, bem como o familiar, o político, o social, o cultural e, dentre
outros.

RELAÇÕES DE GÊNERO, PODER E SUBJETIVIDADE

Essa pesquisa não propende abordar especificamente os


movimentos feministas ao longo da história, entretanto, expusemos
sucintamente alguns aspectos visando esclarecer as relações entre os
gêneros. A partir das considerações, evidencia-se que subordinação
da mulher é análoga às relações de poder, ou seja, os homens
apropriam-se do poderio que lhes compete nas relações sociais e
dominam as mulheres. Dessa maneira, a mulher torna-se símbolo de
responsabilidade pelos ensinamentos dos filhos e dos cuidados com
o domicílio. O comando sobre o recinto doméstico incide em um dos
pontos centrais onde as mulheres desenvolvem seus subterfúgios de
antagonismos e resistência à dominação masculina. Esta dominação
masculina segundo o sociólogo Pierre Bourdieu,

Constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um


ser-percebido (percipi), tem por efeito colocá-las em permanente
estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência
simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou
seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se

217
espera que sejam "femininas", isto é, sorridentes, simpáticas,
atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas
(BOURDIEU, 2012, p. 82).

Na ótica do exposto, a mulher é limitada pelo homem, o qual


constrói uma subjetividade feminina fundamentada em seus
princípios masculinos. A respeito da subjetividade, esta incide na
personalidade do ser humano, estruturando seu modo de agir e
pensar. Para o filósofo Michel Foucault, a subjetivação consiste em
um “[...] processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito,
mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não
passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma
consciência de si” (FOUCAULT, 2004, p. 232).

Outro filósofo que disserta acerca da subjetividade é Félix Guattari,


o qual afirma que ela incide em um “[...] conjunto das condições que
torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em
posição de emergir como território existencial auto-referencial, em
adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela
mesma subjetiva” (GUATTARI, 2000, p. 19). Assim sendo, a
subjetividade manifesta-se individualmente ou coletivamente, isto é,
o indivíduo faz escolhas por si só ou, baseado nas esferas coletivas,
bem como a que é imposta pela dominação masculina.

A construção da subjetividade se estabelece na relação com o


externo, ou seja, por meio do contato com os outros indivíduos e
com o mundo, estando introduzidos em uma mesma conjuntura e
em um assinalado período sócio histórico. Nesse procedimento de
construção da subjetividade, são agregados, devido a influência da
cultura, distintos hábitos, princípios, valores e costumes, assim
como as linguagens, os arquétipos de comportamento e os modelos
estéticos. Nesse segmento, o individuo é vítima dos contatos sociais,
tendo em vista que é por meio desses que a construção se efetiva.
Dessa maneira, assimilamos a nossa subjetividade por meio do
âmbito familiar, escolar e, inclusive, por intermédio dos meios de
comunicação.

218
Portanto, temos que a subjetividade feminina é construída em
tempos remotos por meio da dominação masculina. Isto é, agentes
externos subjetivam a mulher. A histerização da mulher é resultado
desta subjetivação patriarcalista, a qual sobrepõe a mulher, de
acordo com Foucault a uma

[...] comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade


regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser
elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que
produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-
moral que dura todo o período da educação): a Mãe, com sua
imagem em negativo que é a "mulher nervosa" (FOUCAULT, 1988,
p. 98).

Assim sendo, as concepções do patriarcalismo criam uma nova


identidade às mulheres, as quais se tornam submissas a esse sistema
aderindo a subjetividade imposta. O corpo feminino, consoante
Foucault (1988, p. 101) torna-se um “[...] elemento nas relações de
poder”.

Doravante às manifestações feministas, a subjetividade da mulher


buscava contrapor a esta sujeitada pelo masculino. Dessa forma,
segundo a historiadora Margareth Rago, o feminismo

[...] abriu mão do corpo, da beleza, da estética e da moda,


considerados reificadores, apropriando-se paradoxalmente do modo
masculino de existência que questionava e, ao mesmo tempo,
desconstruía. A feminista apareceu, então, na figura da “oradora”,
da mulher que rompe o espaço público e toma a palavra,
denunciando e revolucionando como os homens (RAGO, 2004, p.
283).

Diante disso, em meio às revoluções de âmbito feministas, as


mulheres apresentavam uma subjetividade na qual não seriam mais
subordinadas aos ideais masculinos, como anteriormente, mas a
partir de agora, identificavam-se como detentoras da autonomia,
sendo libertas para optarem por suas próprias escolhas, bem como

219
serem independentes dos homens, opondo-se assim, “[...] à figura
conservadora e santificada da ‘mãe’” (RAGO, 2004, p. 283), a qual
era enaltecida pelos patriarcas. A respeito dessa nova subjetividade
impulsionada pelo feminismo, Rago (2004) complementa que as
mulheres difundiram “[...] novos padrões de corporeidade, beleza,
cuidados de si, propondo outros modos de constituição da
subjetividade” (RAGO, 2004, p. 283-284), uma vez que as feministas
preocupam-se “[...] tanto com o refinamento do espírito, quanto com
a beleza corporal, a saúde, a agilidade, a elegância e a moda, na
construção de si e de uma nova ordem social e sexual” (RAGO,
2004, p. 283-284).

O triunfo do feminismo resultou nessa construção de uma nova


subjetividade feminina, a qual empenhou-se pela “[...] libertação das
formas de sujeição impostas às mulheres pelo patriarcalismo”
(RAGO, 2004, p. 284). Desse modo, o processo construtivo da
subjetividade feminina é resultado de dois princípios essenciais, o
sistema patriarcalista e os movimentos feministas. Em suma, o
patriarcalismo reflete no entendimento social acerca da
representação da mulher no âmbito coletivo, pelo qual subestima-se
as potencialidades femininas e o consentimento da arcaica
segmentação dos postos de trabalho segundo o sexo biológico e, por
conseguinte a clássica função das mulheres no contexto doméstico e
na sociedade.

Os movimentos feministas concretizaram uma nova subjetividade


para a mulher, visto que, na era de permanência do sistema
patriarcalista, a luta feminista não se restringiu somente à igualdade
por seus direitos, contudo, empenharam-se pela libertação dos
estereótipos pré-estabelecidos socialmente por meio dos patriarcas,
sobretudo na condição feminina que as idealizaram como seres
passivos e frágeis. Assim sendo, a subjetividade da mulher se
desprende dos padrões patriarcalistas, concedendo a ela uma nova
identidade.

REFERÊNCIAS

220
Mestre em História (2019) pela da Universidade Estadual do Centro-
Oeste (UNICENTRO). Membro do grupo de Estudos em História
Cultural da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).
Graduado em Pedagogia (2019) pelo Centro Universitário
Internacional (UNINTER), Filosofia (2018) pelo Centro Universitário
de Araras Dr. Edmundo Ulson (UNAR), História (2016) pela
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e Ciências Sociais (2015)
pela Faculdade Guarapuava (FG). Especialista em Docência do
Ensino Superior (2018) e Educação a Distância com Ênfase na
Formação de Tutores (2018) pela Faculdade São Braz (FSB); Gestão
da Educação do Campo (2017) pela Faculdade de Administração,
Ciências, Educação e Letras (FACEL); Educação Especial e Inclusiva
(2016), Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia (2016) e
Ensino Religioso (2015) pela Faculdade de Educação São Luís
(FESL). Professor de Sociologia contratado pela Secretaria de
Educação do Estado do Paraná e leciona as disciplinas de Filosofia,
História e Sociologia no Colégio Imaculada Virgem Maria e
Sociologia no Colégio São José. Tem experiência na área de História,
atuando nos seguintes temas: Imigração, Identidade, Cultura,
Mulheres, Memória e História oral.

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língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.

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221
____________. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

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(Orgs.), Michel Foucault: Uma trajetória filosófica: Para além do
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222
O GOIÁS DENTRO DE UM CONCEITO
DE SERTÃO. E AS RELAÇÕES PARA
COM UM PROJETO DE NAÇÃO
CESAR AUGUSTO NEVES SOUZA

O longa metragem Grande Sertão: Veredas, baseado na obra


homônima de mesmo nome de João Guimarães Rosa, foi produzido
pela Companhia Cinematográfica de Vera Cruz Vila Rica
Cinematográfica Ltda. A película foi lançada no ano de 1965, sob a
direção de Geraldo e Renato Santos Pereira. O cenário do filme é a
Região de Minas Gerais que é marcada por disputas de terras entre
coronéis que espalhavam medo pela circunvizinhança. Também o
jeito rude do sertanejo é retratado no filme. O sertão era isolado e
habitado por um povo ensimesmado, ou seja, voltado para suas
tradições e costumes e sua relação com a natureza. Eram isolados,
pois estavam longe do poder central. Os moradores do sertão eram
resistentes às leis da capital, que regulamentavam os contratos entre
indivíduos.

O sertão era governado pela lei do mais forte, como a dos grandes
proprietários de terras. O poder legal muitas vezes dava espaço
para as pretensões pessoais, infringindo um tipo de conduta
peculiar. Um bom exemplo é quando o chefe dos jagunços, Joca
Ramiro, tem uma contenda com Zé Bebelo, um grande fazendeiro
que queria pôr fim aos jagunços da região. Joca Ramiro captura-o, e
o caso é solucionado entre eles próprios, sem a intervenção de um
órgão competente, jurídico, estatal ou institucional. Este caso é um
retrato de como os casos eram resolvidos no sertão. Sem a presença
de um juiz, ou de um órgão que regulamentasse a vida cotidiana, as
pessoas iam tecendo suas próprias leis, e não enxergavam com bons
olhos a presença do Estado. Embora o filme contemple a região
mineira, ele abre para nós a possibilidade de refletir sobre outros

223
espaços, ainda que este não esteja limitada à mesma localidade
geográfica, como a região goiana assunto desse trabalho.

Formado pela escola Militar do Rio de Janeiro, o escritor e jornalista


Euclides da Cunha, a serviço do Jornal Estado de São Paulo,
percorre as veredas do interior do Brasil. Com um olhar refinado,
faz um passeio detalhado do cenário brasileiro, tanto dos melindres
da paisagem natural, quanto das particularidades da vida sertaneja,
observando com prestimosa acuidade, a vida dessa gente, longe do
mundo urbano das capitais. Observa o modo forte, estilo de vida,
relação do homem com a natureza, e dessa observação, nasce aquela
que seria não apenas uma ‘obra-prima’ da língua portuguesa, mas
um dos mais belos relatos escritos sobre esse Brasil profundo, um
Brasil distante da vida urbana.

No livro Os Sertões, Euclides pontua: (CUNHA, 2009, p. 47) “O


Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com quem se
amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os possíveis
do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. ” Terra de
exílio e vasto presídio era esse Brasil escondido. Longe dos centros
políticos da vida na cidade. Essa parte da nação tinha características
peculiares, que iam desde os aspectos da natureza aos aspectos
humanos. O autor era influenciado pelos estudos evolucionistas da
época, e do pensamento positivista e, em seus escritos, descreve a
força do clima sobre o sertanejo, operando neste uma “evolução
regressiva.”

O autor reflete sobre as diferenças entre o homem do Sul e do Norte.


Nesta comparação expõe que o nortista não tem a força da
conquista, pois, comparando com o homem do Sul, eles são mais
ligados à terra, ao contrário dos brasileiros do Sul, que possuem o
espírito mais bravio, aventureiro e conquistador. Decerto, a

224
orientação filosófica de Euclides formatou suas lentes de percepção,
ao aventurar-se entender o mundo do sertanejo, orientado pelo
método positivista de análise, semelhante ao método etnográfico,
procurando ser o mais fiel possível aos fatos observados.

Euclides contemplava a revolta de Canudos em Monte Santo,


liderada por Antônio conselheiro. Admirava a sua oposição contra a
República. Percebia a diferença desses inúmeros sertanejos com
relação ao homem da cidade. Atônito ante o tamanho contraste
entre a rotina acelerada da cidade e o perfil do brasileiro dos sertões.
Esse Brasil longe dos centros urbanos abriga “um terço de nossa
gente. ” E sobre essa gente do sertão, acrescenta (CUNHA, 2009, p.
42): “Mais fundo o contraste do nosso modo de viver e daqueles
rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da
Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três
séculos. ” Tão distantes dos acontecimentos da cidade e do estilo da
vida urbana é que Euclides considerou que o homem do sertão
estivesse vivendo em completo atraso.

O interior do Brasil passou a fazer parte de um projeto maior. No


Século XIX, o Brasil buscou concentrar seus projetos econômicos
mais para o Oeste. Era preciso construir um conceito de nação. A
obra Comunidades Imaginadas de Anderson (2008), apresenta uma
teoria bem alicerçada, sobre conceitos e origens de nação e
nacionalismos. Ao longo dos oitocentos, as principais nações da
Europa estavam envolvidas na construção de seus Estados. E a ideia
de sociedade imaginada, trazida por Anderson, é justamente pensar
na relação que existe entre todos os indivíduos da mesma nação.

“O sertão é sozinho, o sertão é dentro da gente”, já dizia o escritor


do livro Grande Sertão: Veredas, (ROSA, 1994). Dentre as muitas
polissemias representativas do sertão, uma dela diz respeito à

225
distância que mantém em relação ao litoral. E a referência espacial
que repousa sobre a palavra sertão é de algum lugar longe do litoral,
um lugar onde a ‘civilização’ não se faz presente, um espaço de
solidão. No sertão a vida política das pessoas era fortemente
ancorada nos privilégios pessoais, no arbítrio, na troca de favores, e
no poder dos coronéis. E a fim de manter-se no poder utilizava-se
da violência, da chantagem e da imposição do medo para prevalecer
sua vontade senhoril. Esses eram fatores acentuados da vida social
dessa parte do Brasil. O sertão, portanto, é sozinho, lugar onde
permitia-se quase tudo, um lugar de refúgio em que muitos
encontravam a liberdade de fazer o que queriam, sem prestar
contas, ou seja, prestavam contas entre eles, distantes que estavam
dos órgãos oficiais do Estado. Como no conflito entre Joca Ramiro e
Zé Bebelo na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, já
relatado no início deste trabalho.

O sertão, embora sozinho, não está restringido a apenas um lugar


geográfico. O conceito, segundo o qual estudou-se a região, foge aos
parâmetros físicos impostos pelos geógrafos, por marcos
fronteiriços. Para lançar luz ao conceito de região, nada mais
oportuno no momento, do que partir do ponto em que Bourdieu
(BOURDIEU, 1989, p. 107), escreve sobre a identidade e a
representação para uma reflexão crítica sobre a ideia de Região,
discorrendo sobre o objetivo de fazer a história social das categorias
do pensamento do mundo social, e que a delimitação de Região,
parte de um conceito social e de um ato de autoridade, visando
separar o sagrado do profano. Nesta linha de pensamento delimitar
uma região constituía um ato religioso do rei, tanto expandir quanto
delimitar seu poder sobre amplos domínios. Neste sentido, a região
é o espaço de domínio real, onde o rei fixa suas regras e regula as
ações dos seus súditos. Ademais, Bourdieu (1989), convida a olhar
para a região, de uma forma sociológica e cultural, não somente
dentro de um limite pré-estabelecido.

226
É evidente, segundo Bourdieu (1989), que se deve pensar a região
para muito além do que pretendem os geógrafos. Acompanhando o
pensamento do autor, contempla-se os espaços para além dos
olhares geográficos. Pois, “o geografo prende-se talvez demasiado
ao que vê”, (BOURDIEU, 1989, p. 108), olhando muito pouco para
mais adiante das fronteiras políticas e administrativas. Embora o
pioneirismo neste tema, seja dos geógrafos, os estudos sobre região
é um palco de disputa entre os diversos estudiosos de outros
campos, como: antropólogos, historiadores, economistas, sociólogos
entre outros. Por mais que o geógrafo se concentre nos estudos
regionais, ele olha muito pouco para além das fronteiras políticas, ao
contrário de um economista, que percebe uma região como
tributária de outros espaços, seja na dependência econômica, seja no
fluxo comercial, que é estabelecido com outras localidades. Desse
modo, tanto o antropólogo, quanto o historiador, vem a contribuir
para a construção do conceito regional a partir de seus matizes
metodológicos.

No texto Região e História Agrária Linhares e Silva (1995) discutem


algumas abordagens que esclarecem as diferenças entre História
Econômica e História Agrária. É inviável estudar a História Agrária
sem pensar a região, haja vista ser um tema ligado a outro. Os
estudos similares produzidos pelos Analles, apud Burke (2010), na
França, não serviram de guia para Linhares e Silva (1995), devido ao
fato de que o modelo estudado pelos franceses não ajustava ao
contexto brasileiro. Tampouco os estudos marxistas, que mesmo
sendo fundamentais para corrigir alguns pontos abordados
pelos Analles, não supriam a expectativa da pesquisadora, tendo em
vista os seus debates se concentrarem mais nos assuntos urbanos.
Demonstrando-se, porventura, não tão eficientes para pensar a
nação como um todo. Então, recorre aos estudos geográficos que,
vinculados ao IBGE, apud Linhares e Silva (1995), que produziu um

227
vasto material sobre o espaço agrário brasileiro. No entanto, com o
tempo, esses estudos viriam a se desalinhar da proposta dos autores,
segundo a qual, praticamente todos tem seus alicerces na teoria
marxista e, deste modo, iriam abordar temas como periferia,
irradiação e se aproximando ainda mais para o espaço urbano. Além
do mais, produziram uma visão generalista o Brasil conforme
analisa Linhares e Silva (LINHARES, 1995, p. 3)

“Tal abordagem do conceito espaço/região considerada marxista


pela nova geografia, deveria claramente contrapor-se a dois outros
conceitos. De um lado a abordagem dita “positivista”: o espaço é
considerado como o suporte de uma série de fenômenos, sobre os
quais se construía a reflexão da geografia como ciência, ou seja, um
dado externo ao processo social como fenômeno em si. De outro
lado, a abordagem estruturalista: o espaço aqui é uma relação
orgânica do físico-natural com os fenômenos que nele se
desenrolam, constituindo, assim, um processo de determinações
mútuas e contínuas, determinante e determinado simultaneamente,
cabendo ao geógrafo ‘desvendar’ esta rede de determinações.”

É sobre este vértice, que procurou-se olhar a região norte goiana,


não como uma localidade geográfica entre outras Províncias, mas
um espaço que é tributário a outros espaços. É tributário no que diz
respeito ao fluxo econômico, a fenômenos de paralelismos culturais
e a questão do ambiente natural. Assim, precisamos olhar para
Goiás para além de suas fronteiras geográficas. Desta forma, os rios
não são apenas um patrimônio natural pertencentes à Região Norte
de Goiás, portanto, não precisa ser estudado somente a partir dessa
Província. Ao contrário, o rio se apresenta como um sujeito
histórico, que passa a ser o alvo central de um projeto
desenvolvimentista de caráter nacional. E por suas águas não
navegam apenas mercadorias necessárias à Província, além disso,
navegam informações que circulam de um lugar a outro, por

228
pessoas de localidades distintas, e que por sua vez configuram a
identidade dos pequenos povoados.

ALFRED TAUNAY E A PROVÍNCIA DE GOIÁS

O rio que passa por uma cidade significa a vida, tanto econômica
quanto cultural. Suas águas abastecem a milhares de pessoas que
dependem delas. Entretanto, não é somente a vida da dona de casa,
do homem do campo, que são favorecidas pelas suas benesses. As
suas águas também trazem o sopro de vida econômica à uma
cidade, estabelecendo, por intermédio de seu leito, trocas comerciais
com outros mundos e outras culturas. Ao longo de seu leito muitos
povoados são formados, transformando-se em cidades. O rio que
corta a cidade transporta riquezas, notícias, pessoas, ou seja, dá vida
a um lugar. Desta maneira estabelece contato com outras
localidades, libertando a cidade do isolamento. Ao longo dos
oitocentos, os presidentes da Província de Goiás, e diversos
estudiosos viram nas águas dos Rios Araguaia e o Tocantins, a
solução para curar a província goiana, do tão infausto isolamento,
um deles foi Alfred Taynay.

Goiás era uma província imêmore, não desfrutava de uma


população vasta o suficiente para expandir por toda a Província, e
promover uma cultura de comércio, que pudesse nivelar com outras
do Império. A escassa população ali existente, não era acostumada
ao trabalho de perfil capitalista, o que significa que não estavam
adaptadas, a ponto de produzir e usufruir dos resultados de seu
labor. Expresso nas próprias palavras de Taunay: (TAUNAY, 1876,
p. 13) “Não sente a evolução de seu progresso. ” E ainda mais: “Vive
a vida desanimada, languida e prostrada sobre as minas riquíssimas
de ouro. ” Porém, não usufrui de suas riquezas. ”

229
O trabalho de Taunay (1876), sobre a Província de Goiás descreve as
riquezas da Província, e a ‘pesada nuvem’ que repousou sobre
Goiás, com o declínio da mineração. A exposição nacional de
Filadélfia, nos Estados Unidos, em 1876, comemorativa dos 100 anos
de independência norte americana, congregou nações de todo o
mundo. O grande objetivo, era enaltecer o trabalho humano e as
conquistas tecnológicas da modernidade, e com isso colocar os
Estados Unidos no rol dos países desenvolvidos. Outra intenção
estadunidense era consagrar a união das duas Américas com fator
decisivo para o progresso entre as Américas. O Brasil estava
representado na pessoa de Salvador de Mendonça no qual em sua
fala reforçou a união comercial entre o Brasil e os Estados Unidos.
Tendo como ponto de referência à exposição de Filadélfia, Taunay
(1876), sublinha a glória norte americana graças à chegada maciça
de emigrantes, que somaram riquezas e conhecimento ao
desenvolvimento da nação americana, e acrescenta que, se o Brasil
abrisse suas portas a países estrangeiros, também daria um forte
passo rumo ao progresso, posto que é um País que goza de notável
tranquilidade, rara beleza natural, um povo hospitaleiro e de leis
que protegem a segurança da família, e com isso poderia ganhar o
mesmo prestígio que a nação norte americana.

O palácio da agricultura realizou, um ano antes, em 1875, uma


exposição nacional para reunir os produtos de cada Província do
Império. Taunay requisitava que Goiás também enviasse o que
havia de melhor na Província, e avalia que os produtos que foram
enviados, não representam, de modo algum, as riquezas da
Província, enviando apenas o que poderiam arcar com as despesas
de envio. Goiás era uma província imensa, exuberante e opulenta,
com rios caudalosos a banharem suas terras, onde se escondiam
tesouros de metais de grande valor, como o ouro. Possuía extensas
matas com farta variedade de plantas, escondidas e abandonadas.

230
Taunay reforça que foi isso que Goiás não pode enviar à exposição
nacional. Em outras palavras, não se pode julgar uma província,
partindo somente do que estava em exposição.

Goiás poderia utilizar-se dos seus rios, assim como foi utilizado o
Rio Amazonas. Embora o Estado do Amazonas, compartilhando de
semelhantes problemas, tinha seus rios navegados constantemente,
e assim, enriquecendo o comércio, dando vida econômica à região.
O Amazonas, de acordo com Tocantins (1983), era composto por
uma população mais consistente, que aproveitava os benefícios que
o rio trazia. Todavia, segundo Taunay, a mesma bonança não é
vivida pelos povos de Goiás, pois para lá chegar, o viajante tinha à
sua frente inúmeras léguas a vencer e, sobretudo, as cidades goianas
se não eram florescentes, pelo contrário, eram ‘moribundas, ’
porquanto viviam esquecidas e isoladas do restante da civilização
brasileira. A região goiana era tida como sertão e, segundo as
definições de Taunay (1875, p. 13), o sertão no Brasil, quer dizer
terreno ainda não de todo ganho ao trabalho e a civilização.

Somente um investimento de força, poderia revitalizar a Província.


A parte Sul, poderia aproveitar os lucros de São Paulo, e a parte
Norte ficaria por conta das benesses dos dois grandes Rios
Tocantins e Araguaia. A Província necessitava de um sopro de vida
para tirá-la da letal prostração, conforme analisa Taunay (TAUNAY,
1983, p. 14): ” esse dia, esse momento, Goiás terá tido o merecimento
raro de espera-lo paciente e resignadamente, que é triste viver-se em
Terra que vai em decadência sem que ao longe se veja reluzir
progresso de melhores tempos. ”

O Rio Tocantins é entendido como espaço de fronteiras, como lugar


de encontro de culturas diferentes, como marco delimitador de
espaços, como aproximação de espaços e meio de integração

231
nacional. Por um lado, os presidentes de Província reclamavam da
falta de navegação e, por outro, havia uma navegação promovida
por sertanejos e particulares, que enfrentavam os obstáculos e
perigos impostos pelo rio. E de acordo com Flores (2006) , é que
mesmo com o discurso dos presidentes de Província acerca da
dificuldade das navegações realizadas por pequenos empresários
particulares, e ainda com os perigos e obstáculos, estes bravos
sertanejos percorriam o Rio Tocantins dando vida ao comércio. O
verdadeiro objetivo por partes dos presidentes talvez era de provar
que a população da Província não era capaz de produzir na região
uma força produtiva suficiente para gerir e aquecer uma economia
de produção e exportação. Muitas tentativas foram feitas para
estimular a navegação. Praticamente todas tiveram como resposta o
fracasso.

REFERÊNCIAS

Cesar Augusto Neves Souza. Graduado em História e mestrando


em História, Literatura e Imaginário. Pela Universidade Federal do
Tocantins.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo.


Companhia das Letras, 2008.

ARAÚJO, Emanuel. Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o


sertanejo nos tempos coloniais. In: DEL PRIORY, Mary. (org.). Revisão
do paraíso. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

BLOCH, Mach. Apologia da História ou o ofício do historiador.


Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BOURDIEU, Pierre. O poder do símbolo. Lisboa: Difel, 1989.


Disponível em:
<http://monoskop.org/images/b/b3/Bourdieu_Pierre_O_poder_simb
olico_1989.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015

232
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução
francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2010.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Ática, 2009.

FLORES, Kátia Maria. Caminhos que andam: o rio Tocantins e a


navegação fluvial nos sertões do Brasil. Belo Horizonte, MG: UFMG.
2006..

LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da.


Região e História Agrária. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
FGV, v. 8, n. 15, 1995. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1998/1
137>. Aceso em: 12 fev. 2015.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 1994. Disponível em:<http://stoa.usp.br/carloshgn/files/-
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2015.

TAUNAY. Alfredo de Escragnolle. A Província de Goyaz na


Exposição Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Nacional, 1876.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação


da Amazônia. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1983.

233
DAS CIDADES-ESTADOS ITALIANAS
ÀS PROVÍNCIAS UNIDAS DA
HOLANDA: A GUERRA DO S TRINTA
ANOS SOB UMA PERSPEC TIVA
ARRIGHIANA
VICTOR DOMINGUES VENTURA PIRES
NAIANE INEZ COSSUL

INTRODUÇÃO

A complexidade da definição do que seria a “história de algo”


advém principalmente da identificação de seu ponto de partida.
Logo, definir com clareza onde algo aconteceu primeiro, quem falou
antes de todos, quem pensou o ineditismo, é uma tarefa árdua que
encontra poucos precedentes exatos.

O surgimento do Estado-Moderno não poderia fugir de tal


generalização, pois definir os pontos políticos e econômicos que
foram os pontos de inflexão à sua existência, é algo que se perdeu
nas veredas da história. Entretanto, é possível uma aproximação a
esses recantos perdidos, e isto pode ser feito a partir de três pontos:
primeiro, uma diminuição do escopo geográfico, ao qual, graças aos
diversos autores que nos precederam, apontam a Europa como
gestora do Estado-Moderno; em segundo, a busca por uma
mudança na normalidade, um fato novo que gerou os eventos que
decorreram ao desenvolvimentos do Estado, que, mais uma vez
devido aos nosso predecessores, podemos apontar em algum lugar
por volta do século XVI; e, por último, quando esses eventos
tiveram seu cume máximo, que, por intencionalidade geral dos
autores, marca o começo da era dos Estados Moderno, a Paz de
Vestefália, em 1648.

234
Contudo, os passos citados já foram perseguidos por outro autor.
Giovani Arrighi, em sua obra o Longo Século XX, desmembrou os
alicerces do capitalismo e de suas hegemonias, e, encontrou as
origens de nosso atual sistema nas cidades-estados de Genova e
Veneza, em algum ponto dos anos de 1500. Aproveitando-nos então
do autor, percorreremos os caminhos do capital do norte da Itália
até os desmembramentos da Guerra dos Trinta Anos, averiguando
como a luta pelo controle hegemônico dessa nova forma de
economia pôs as maiores economias da época em conflito, ao
mesmo tempo que observamos como a hegemonia, em meio ao caos
sistêmico da guerra, transferiu-se lentamente para o norte, rumo à
Holanda.

1. DE GÊNOVA E VENEZA: A GENESÊ DOS HABSBURGOS

Como nos apresenta Kennedy (1989), o centro europeu, se


comparado com as outras civilizações à época, tinha poucas áreas de
destaque. Os grandes e ricos impérios orientais, os vastos exércitos
otomanos e as diversas tecnologias, que veriam a ser conhecidas
apenas séculos depois de 1500, já estavam em uso nestes locais, e, ao
mesmo tempo, mas não de forma muito aparente, tomados por
extensas fronteiras desprotegidas, exércitos extremamente custosos
e governos centrais igualmente despóticos. Todavia, apesar de
serem extremamente afortunados, e não sem capacidade tal,
nenhum aventurou-se nas margens do capitalismo, pelo menos, não
aos moldes da Europa. Talvez pela falta de obstáculos ao seu
poderio, “o que estava em jogo não eram tantos os elementos
positivos, mas antes a redução do número de obstáculos que
impediam o crescimento e a diversidade política. A maior vantagem
da Europa era ter menos desvantagens do que as outras
civilizações” (KENNEDY, 1989, p. 38).

Apesar da dissonância, a pluralidade de formas políticas da Europa


foi essencial para o aparecimento de inovações. A corrida pelas
armas, pelos recursos e pelas rotas comerciais foram essenciais para
manter o continente sempre aquecido e em desenvolvimento. E,
enquanto mais riqueza se acumula, mais é necessário gastar para

235
protegê-la, o que nos faz observar aquelas cidades que Arrighi
(1996) aponta, onde a moeda deixou rentabilizar na compra de
mercadorias para valer-se mais em si mesma.

As Cidades-Estados italianas de Gênova e Veneza gozavam de um


contexto único. Independentes politicamente, cravadas cada uma
em um lado da “bota” italiana, longe dos pontos mais suscetíveis à
pirataria, mas ainda assim, aproveitando de um amplo acesso ao
Mediterrâneo, que antes do estabelecimento das rotas comerciais às
Américas, eram fonte dos maiores lucros e tesouros europeus,
advindos do comércio de especiarias do norte da África e do Oriente
Médio e dos produtos mais longínquos que chegavam a esses
lugares (ARRIGHI, 1996). O capitalismo encontrou terreno fértil
para se desenvolver ainda em seu estado mercantilista, o que veio a
arranjar as enormes acumulações das cidades italianas, todavia,
como aponta Eiterer (2016), o fechamento das rotas comerciais com
oriente distante pelos turcos otomanos e as Grandes Navegações
empreendidas por Espanha e Portugal, rumo a novas rotas para o
oriente, obrigou-as à reestruturação.

Arrighi (1996), demonstra que os grandes valores, antes investidos


no comércio, passaram a ser gastos nas posses de terras e na gestão
do Estado. Em Gênova, tal foi feito pela nobreza camponesa dos
arredores da cidade, que, além dos campos, ainda mantinha o
controle sob as maiores somas do comércio marítimo, enquanto em
Veneza, a própria classe mercantil urbana realizou os investimentos
“como um meio de que visava à dupla finalidade de descobrir uma
reserva segura para inversão do capital excedente que elas
controlavam e de reforçar seu poder, tanto interna quanto
internacionalmente (ARRIGHI, 1996, p. 113).

Logo, o sistema de controle mercantil, anteriormente exclusivo das


cidades-estados italianas, tornou-se disponível às potências da
época. Espanha, França, Holanda, Inglaterra e Portugal lançaram-se
ao colonialismo e ao metalismo característicos do mercantilismo do
século XIV, que, por sua vez, começaram a fazer fluir quantidades
significativas de mercadorias e metais preciosos ao continente

236
europeu a dentro, e, o devido tabelamento dessas novas fortunas,
levou aos países europeus a experimentarem a burocratização já
existente no norte da Itália (KENNEDY, 1989; ARRIGHI, 1996). Tal
burocratização levou ao acréscimo e a centralização do poder nas
mãos da monarquia, que, devido às disputas, não somente entre
coroas, mas entre as próprias classes burguesas, levou a um
protecionismo comercial, com a garantia do comércio único das
colônias com a metrópole que as governava e as taxas para aquelas
que desejassem o comércio, aumentando as receitas e, logo, o
acúmulo de metais (PRADO, 2008).

1.1 OS HABSBURGOS

Tais mudanças retiraram o centro economicista europeu de Gênova


e Veneza, onde esta última “foi a única que conseguiu preservar um
poder considerável enquanto Estado no cenário político emergente
na Europa durante todo o século XVI. Mas ela o fez ao preço de ficar
atrás de correntes, velhos e novos, na acumulação de capital”
(ARRIGHI, 1996, p. 131). As atividades agora, centravam-se nas
metrópoles e nas cidades/portos comerciais, como Antuérpia,
Sevilha e Lyon. O espraiamento do poder e do capital pelo restante
do continente elevou as tensões e acirramento dos embates pelos
fluxos de capital, como a guerra de independência, que começou em
1568, das sete Províncias Unidas dos Países Baixos (futura Holanda),
que pode ser dado como um dos princípios do que é referenciado
por Kennedy (1989),

“Portanto, no século XVI, as lutas pelo poder na Europa ajudaram-


na a elevar-se econômica e militarmente acima das outras regiões do
globo. No entanto, o que ainda não havia sido decidido era se algum
dos países europeus rivais acumularia recursos suficientes para
superar o resto e dominá-lo. Durante o século e meio depois de
1500, uma combinação continental de reinos, ducados e províncias
governada por membros espanhóis e austríacos da família
Habsburgo ameaçou tornar-se a influência política e religiosa
predominante na Europa” (KENNEDY, 1989, p. 69, tradução nossa).

237
Então, das nascentes monarquias mercantilistas, devemos dar o
devido destaque a dinastia dos Habsburgos, poderosa e
fervorosamente católica. Detentora, pelo seu lado espanhol, do
século XIV ao XVII, da maior parte dos territórios da América e
outros na África e Ásia, garantindo a corrente continúa, e
extremamente rentável, de metais, também manteve o controle de
toda a península Ibérica, dos territórios das atuais Bélgica e Holanda
e partes da Itália. Do lado austríaco, todos os territórios do Sacro
Império Romano Germânico, que, como define Carneiro (2006, p.
172), “não era um Estado territorial nem possuía fronteiras
definidas”, ocupando os atuais territórios de vários países do centro
europeu, sendo integralmente os atuais perímetros da Alemanha, da
Áustria, de Luxemburgo, da Suíça, e da República Tcheca, somando
uma população de cerca de 20 milhões. A maioria desses territórios,
excluindo as colônias ultramarinas, foram adquiridos através de
laços matrimoniais dos Habsburgos com dinastias locais, como o
caso Espanhol, do casamento do filho de Maximiliano I da Áustria
(1459-1519, dos quais foi imperador nos seus últimos oito anos de
vida), Felipe (futuro imperador Carlos V), com Juana, filha de
Fernando e Isabel da Espanha, trazendo a coroa espanhola para os
Habsburgos (KENNEDY, 1989; CARNEIRO, 2006).

2. A REFORMA, A GUERRA DOS TRINTA ANOS E O CAOS


SISTÊMICO

Martinho Lutero, em 1519, desafiara os poderes papais e professara


uma nova fé, sem a interferência da Igreja em Roma e de suas
indulgências (KENNEDY, 1989). Protegido pelo príncipe da
Saxônia, Lutero uniu-se aos seus defensores entorno da Confissão
de Augsburgo, em 1530, ganhando o título de “protestantes” e o
desencadeando uma série de conflitos contra os católicos, que só
vieram a ter fim no ano de 1555, com a Paz de Augsburgo, e com a
abdicação de, já sob o manto imperial, Carlos V, que se recusava a
assinar o acordo, pois este representava o fim de seu projeto contra
reformista (CARNEIRO, 2006).

238
A paz abriu espaço para a profissão da fé protestante dentro do
fragmentado Império, através do cuiús régio, eius religio (“conforme
cada rei, sua religião”), onde o rei ou príncipe de cada unidade
política podia definir sua própria religião e de seu povo, e aqueles
que não professasse a mesma fé, teriam o direito de se mudar
(CARNEIRO, 2006). Além disso, consolidavam-se outras vertentes
protestantes em um número variado de Estados, como a Inglaterra,
que passou por sua revolução a partir de 1600, que além das
disputas entre Parlamento e a monarquia, tinha entre seus ramos a
disputa religiosa (LESSA, 2008); e a França católica, que após
décadas de guerra civil religiosa, conseguiu um alívio nos conflitos
através do Edito de Nantes, por Henrique IV, em 1598, uma política
seguida pelo seu sucessor, e filho, Luís XIII. Todavia, a paz dentro
do Sacro Império não duraria muito tempo, pois,

“A exuberância da expansão do capitalismo mercantil europeu no


século XVI levou a uma crescente disputa por interesses comerciais,
especialmente ligados ao tráfico marítimo, ao controle de rotas e de
fontes de arrecadação de tributos. Os Estados tornavam-se enormes
máquinas fiscais, financeiras, burocráticas e militares. A guerra era o
comércio por outros meios. A independência dos Países Baixos
representa, assim, além de um anseio nacional e de uma dissidência
religiosa, um interesse específico de nova camada da burguesia
ascendente que se chocava contra os interesses dinásticos e
religiosos medievais da Coroa espanhola, do Sacro Império e do
Papado. Essa burguesia mercantil tornou-se muito influente,
especialmente na Holanda, na Inglaterra, nos portos do mar do
Norte, em Genebra, e adotou em todos esses lugares o
protestantismo, especialmente na sua versão mais radical, o
calvinismo” (CARNEIRO, 2006, p. 170).

A Guerra dos Trinta Anos é o ápice do caos sistêmico, como


identifica Arrighi (1996). De acordo com Arrighi (1996, p. 30), a
definição de “caos sistêmico é a seguinte: O “caos” e o “caos
sistêmico”, em contraste, referem-se a uma situação de falta total,
aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma
situação que surge por haver uma escalada do conflito para além

239
dos limites dentro do qual ele desperta poderosas tendências
contrárias, ou porque um novo conjunto de regras e normas de
comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de
regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação dessas duas
circunstâncias.

Assim, o controle sob a predominância do capital havia emigrado


para as novas zonas ricas e burgueses, onde este poderia se
desenvolver. A Holanda foi este local devido a sua predominância
em dois frontes, o militar e o econômico. Durante oitenta anos, de
1566, quando da chegada de tropas espanholas na região, que
buscavam impor um sistema de taxação, até 1648, os rebeldes
holandeses conseguiram, em termos mais comuns, fazer a Espanha
sangrar aos poucos até não poder mais lutar. Bem adaptados ao
mar, conseguiram, através da pirataria e da pilhagem, tornar a
campanha holandesa mais onerosa do que rentável para os
espanhóis, gaivando as finanças dos ibéricos e fortalecendo suas
próprias, enfraquecendo a Espanha tanto em termos absolutos,
quanto a frente de suas maiores rivais, França e Inglaterra. O
derradeiro enfraquecimento do Império após anos de guerra levou a
vitória incontestável holandesa e a garantia de sua independência e
soberania no Tratado de Westphalia (1648) (ARRIGHI, 1996).

Então, muito além da religião e da própria geopolítica, esta última


franqueada, principalmente, após a entrada da França na Guerra,
que, mesmo sendo católica, apoiou o lado dos protestantes para
evitar a hegemonia militar e territorial da dinastia dos Habsburgos,
a as batalhas de 1618-1648 foram pelo controle da hegemonia
europeia econômica, militar e geopolítica (ARRIGHI, 1996;
CARNEIRO, 2006).

O fim da Guerra representou um novo contexto do equilíbrio de


poder europeu. A Inglaterra, mesmo não participando diretamente
da Guerra dos Trinta Anos, observaria a paz no continente europeu
como necessária para os futuros empreendimentos capitalistas da
primeira fase da industrialização, ao mesmo tempo em que a
retirada do Sacro Império e da Espanha, maior rival dos ingleses

240
depois da França, colaboraria para a concentração de forças na
manutenção do equilíbrio europeu (ARRIGHI, 1996; EITERER,
2016). Assim, França, Inglaterra e Holanda saíram como as grandes
vitoriosas, enquanto a Espanha mantivera apenas aquilo que condiz
com seu atual território e com suas colônias ultramar, o Sacro
Império fora definitivamente afastado do jogo das grandes
potências e, por fim, o papado teria que conviver com a reverência a
outras interpretações das escrituras, em territórios onde antes, pode
se dizer, era a única fonte de fé (KENNEDY, 1989; CARNEIRO,
2016). Todavia, cabe-se ainda entender como o caos sistêmico deu
lugar a hegemonia holandesa e como essa trabalhou para mantê-lo.

3. A HEGEMONIA HOLANDESA

Arrighi (1996), adverte que

“À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de “ordem” -


a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! - tende a se
generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou
ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja
em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a
oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico (ARRIGHI,
1996, p. 30).”

Sabemos pelo contexto histórico, que muito diferentemente da


“velha ordem”, o fim do caos sistêmico, representados pela Guerra
dos Trinta Anos, apresentou uma nova ordem, arraigada no Estado
soberano, no espraiamento da burguesia por todo continente e pela
contenção da religião (CARNEIRO, 2006). Mas, em que medida as
Províncias Unidas ofereceram sua contribuição para esta nova
ordem? Arrighi possui a resposta.

Durante os oitenta anos de Guerra, a Holanda tirou suas receitas de


duas fontes: a espoliação dos espanhóis e o abastecimento de cereais
e suprimentos navais vindos do Báltico, essenciais para a
manutenção do conflito. O fluxo monetário contínuo garantiu a
expansão e a vitória holandesa, todavia, o que mais colaborou para a

241
subida ao capital holandês fora o contexto, praticamente sem
interferências, que se deu essa expansão (ARRIGHI, 1996). Se
retroalimentando do conflito com a Espanha, a Holanda não possuía
iguais no continente inflamado pela Guerra, onde todas as forças e
capitais estavam em uso na guerra, ou, especificamente no caso
inglês, pelas revoluções. Então,

“Foi nessas circunstâncias que as Províncias Unidas se tornaram


hegemônicas, conduzindo uma grande e poderosa coalização de
Estados dinásticos à liquidação do sistema de governo medial e ao
estabelecimento do moderno sistema interestatal. No decorrer de
sua luta anterior por tornar sua nação independente da Espanha, os
holandeses já haviam firmado uma sólida liderança intelectual e
moral entre os Estados dinásticos do noroeste da Europa, que
figuravam entre os principais beneficiários da desintegração do
sistema de governo medial. À medida que aumentou o caos
sistêmico durante a Guerra dos Trinta Anos ‘[o]s fios da diplomacia
[passaram a ser] tecidos e desemaranhados em Haia’. As propostas
holandesas para uma grande reorganização do sistema pan-europeu
de governo conquistaram mais e mais defensores entre os
governantes da Europa, até que a Espanha ficou completamente
isolada (ARRIGHI, 1996, p. 43).”

O oligopólio capitalista já formado na Holanda se aproveitou da


oportunidade para fazer valer-se de seus anseios. Liberou os
capitalistas do controle da Igreja Romana, montou uma estabilidade
necessária para a previsão e segurança dos negócios e formulou
uma ordem que manteria a paz no continente, por pelo menos
algumas décadas, algo extremamente precioso na manutenção dos
rios de dinheiro que fluíam para os bolsos holandeses, que, além de
contar com as especiarias do Novo Mundo, mantinham um rentável
ramo de empréstimos para outras nações. Tudo isso, sem
desprender de técnicas protecionistas que atendem aos interesses
dinásticos advindos das taxações (ARRIGHI, 1996). Todavia, a
Holanda, apesar dos grandes feitos, não era páreo para a Inglaterra
estabilizada e fortalecida por duas revoluções, e muito menos para

242
as futuras empreitadas do governo revolucionário francês, o que, no
entanto, é algo que não está no escopo deste trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As linhas longas, tão referenciadas por Arrighi no Longo Século XX,


encontram mais do que amparo nos acontecimentos aqui abordados.
Da queda do comércio marinho nas cidades do norte da Itália ao
despontamento da Holanda como hegemonia capitalista ao fim da
Guerra dos Trinta Anos, a sucessão de acontecimentos leva a um
claro arregimento de tensões em busca do controle do capital.

As diversas fases conectam-se em diferentes ramos, envolvendo não


somente o capital, mas todas as esferas de preocupação das casas
dinásticas dos séculos trabalhados, demonstrando que o caos
sistêmico não começara com a deflagração da guerra, mas sim,
quando a ordem vigente foi questionada ainda na cidades-estados
italianas.

Lutero e sua reforma, os protestantes, a dinastia dos Habsburgos, os


franceses temerosos e a Holanda vitoriosa foram apenas passos ou
peças do caos sistêmico deflagrado com a transferência do centro
capitalista. Isto, muito além da análise histórica ou da crítica ao
capitalismo, deve partir como um conceito amplo e inerente entre o
caos e o capital. Logo, a óbvio não é o suficiente, o mais forte não é
necessariamente o ganhador, e nem o ganhador será para sempre o
primeiro colocado. Fica aqui a sugestão, pensando na
contemporaneidade, que, ao tratar-se de hegemonia, o olhar afora
do aparente, mas que consiga ver as entrelinhas do caos sistêmico, é
necessário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Victor Domingues Ventura Pires é Graduando em Relações


Internacionais no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e
Pesquisador do Laboratório de Estudos em Defesa e Segurança
(LEDS). E-mail: victordventurap@gmail.com

243
Naiane Inez Cossul é Professora de Relações Internacionais no
Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e Coordenadora do
Laboratório de Estudos em Defesa e Segurança (LEDS). É também
Doutoranda em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-
UFRGS), Mestre e Graduada em Relações Internacionais (UFSC). E-
mail: naiane.cossul@uniritter.edu.br

ARRIGHI, Giovani. O Longo Século XX. Rio de Janeiro: Editora


Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996.

CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In. MAGNOLI,


Demétrio. História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006. p. 163-
187.

EITERER, André Fialho. Espaço e Ciclo Sistêmico de Acumulação: A


dinâmica espacial do capitalismo histórico. 2016. 107 f. Monografia
(Graduação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de
Ciências Humanas, Curso de Geografia, Juiz de Fora, 2016.
Disponível em: <http://www.ufjf.br/latur/files/2011/07/EITERER-A.-
Espa%C3%A7o-e-Ciclo-Sist%C3%AAmico-de-
acumula%C3%A7%C3%A3o.pdf> Acesso em: 17 abr. 2018.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de


Janeiro: Campus, 1989.

LESSA, Antônio Carlos. História das relações internacionais: a Pax


Britannica e o mundo do século XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

244
CAPARAÓ: GUERRILHA,
RESISTÊNCIA E DIFICU LDADES DE
INSERÇÃO (1964 - 1967)
ALAÉVERTON ANDRADE

RESUMO: O presente trabalho se propõe através de análises de


material bibliográfico e audiovisual apresentar um panorama sobre
a Guerrilha do Caparaó, conduzida essencialmente por ex-militares
expurgados após o golpe de 1964, sendo a primeira guerrilha contra
a ditadura militar brasileira.

Palavras-chave: Caparaó, Guerrilha, militares subalternos.

A deposição de João Goulart do cargo de presidente cumprindo


mandato constitucional no Brasil, realizada por setores das Forças
Armadas, contando com a ação política de alguns governadores
como Magalhães Pinto, Adhemar de Barros e Carlos Lacerda, assim
como segmentos dentro do congresso brasileiro que declararam
vacância de cargo com o presidente ainda no país e com apoio da
imprensa, financiamento de empresários, participação de órgãos
religiosos e grupos organizados da sociedade civil além de outros
setores econômicos, jurídicos e políticos, foi consolidada ainda na
madrugada de 2 de Abril de 1964 com a assunção interina da
Presidência da República pelo deputado Ranieri Mazzili. Tais fatos
não tiveram a legalidade questionada pelo Supremo Tribunal
Federal naquele momento.

No dia 9 de Abril de 1964 foi assinado pela junta militar composta


por Arthur Da Costa e Silva, Francisco Mello e Augusto
Rademaker o Ato Institucional (AI) que posteriormente recebeu o
nome de AI-1, o qual além de transformar o Congresso Nacional em

245
colégio eleitoral já deixava claro desde seu preâmbulo os objetivos
de saneamento institucional brasileiro, por parte dos grupos que
ascendiam ao poder, afastando assim opositores das mais diversas
linhas de ação e pensamento. Esse mesmo colégio eleitoral sitiado
elegeu no dia 15 de abril de 1964 o general Humberto de Alencar
Castelo Branco como presidente, cumprindo o objetivo dos citados
grupos, que buscavam uma aparência de legalidade ao golpe.
Chama atenção ainda que o governo instituído no Brasil com a
queda de João Goulart recebeu o reconhecimento oficial do Governo
dos Estados Unidos da América ainda no dia 2 de abril de 1964
muito pela ação do então embaixador Lincoln Gordon.

O golpe civil militar de 1964 inaugurou um período de intensas


perseguições políticas e expurgos no Brasil, período no qual
diversos indivíduos e grupos envolvidos em questões políticas
sofreram brutal perseguição após a deposição de João Goulart,
assim como vários expurgos foram realizados no serviço público
brasileiro e principalmente no âmbito das Forças Armadas,
atingindo não somente praças como também oficiais. As formas de
expurgo aplicadas variaram desde a prisão e expulsão, aplicada
principalmente às praças e militares subalternos, até a reserva
compulsória, a qual atingiu principalmente oficiais generais e
oficiais superiores.

“Dentro dessa nova Ordem, de inequívoco viés autoritário, não


havia espaço para a ‘desordem’ dos ‘políticos’, fossem eles homens
de partido, militantes sindicais, religiosos, estudantes ou militares.”
(PARUCKER, 1992, p. 50).

Diversos processos judiciais, administrativos militares assim como


condenações de naturezas variadas buscaram punir os militares,
principalmente subalternos que se associaram a movimentos

246
políticos construindo uma narrativa na imprensa, para a população
civil e principalmente para os demais militares sobre os atos
considerados como indisciplina e quebra da hierarquia por parte
principalmente daqueles que se organizaram em movimentos
predominantemente durante o governo Goulart, assim como
enfraquecer e desestabilizar as oposições dentro das Forças
Armadas ao regime estabelecido, adotando uma retórica
anticomunista rígida, autoproclamada nacionalista.

Além de punir militares com prisões e expurgos, a repressão


conduzida pelas Forças Armadas perseguia tais indivíduos inclusive
após a expulsão dos mesmos do serviço ativo. Após a expulsão, os
ex-militares encontraram muitas dificuldades para conseguir
trabalho em empresas civis, tendo em vista que tais empresas
recebiam pressão para não mantê-los no quadro de funcionários por
parte das estruturas coordenadas pelos militares que tomaram o
governo em 1964, como aponta Costa (2007). Alguns grupos e
também indivíduos buscaram preservar e utilizar pelo menos em
parte as estruturas e contatos estabelecidos nas associações,
organizações, clubes seja para a luta revolucionária de
enfrentamento a ditadura estabelecida, seja para obter apoio para a
sobrevivência, muitas vezes na clandestinidade.

Depois da longa e eficiente mobilização dos movimentos de


militares subalternos nos primeiros anos da década de 1960, focos
de resistência e luta pela garantia da legalidade tornaram-se
resistência à ditadura, mesmo que de forma clandestina e até mesmo
dispersa em alguns casos. Diversos ex-militares ingressaram em
organizações como AP e POLOP, fortalecendo ainda mais os laços já
existentes com estudantes e trabalhadores (RIDENTI, 2010, p. 161).
A intensa e cerrada perseguição da ditadura sobre tais elementos,
fez do exílio em outros países através de asilo político uma das
poucas opções disponíveis aos mesmos.

247
Cabe destacar a ligação fortalecida entre os ex-militares e o ex-
governador Leonel Brizola, a qual provinha principalmente da
campanha da legalidade de 1961, permaneceu e acompanhou a
conjuntura de radicalização política dos próprios militares assim
como de Brizola nos anos seguintes até 1964 e os acompanhou no
exílio. Brizola era reconhecido como a grande liderança capaz de
aglutinar em torno de si forças com capacidade de enfrentamento à
Ditadura estabelecida no Brasil. A opção inicial de enfrentamento
por parte de Brizola estava ligada a sublevação militar em quartéis
aliando-se a outros setores. O ex-governador além da opção pela
sublevação ao estilo “quartelada”, possuía uma formação política
Sul-Riograndense ligada a uma cultura política que valorizava o
enfrentamento muitas vezes violento e belicista entre grupos
armados recrutados de acordo com opção partidária, algo parecido
com a conjuntura da Revolução de 1930 que levara Getúlio Vargas
ao poder.

Reunidos Brizola, diversos ex-militares expurgados e perseguidos


após o Golpe de 1964, elementos civis como Paulo Schiling o qual
era antigo acessor de Brizola, alguns ex- deputados e outros
indivíduos formaram um grupo que recebeu a denominação de
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) (ROLLEMBERG,
2001, p. 23), o qual funcionava como um projeto a ser implantado e
não apenas como uma organização, contava ainda com apoio de
Cuba. 26 integrantes do MNR fizeram treinamento em Cuba, entre
eles quatro integraram a guerrilha do Caparaó, respectivamente os
ex-marinheiros Amaranto Jorge, Avelino Capitani e Edival de Melo,
além do ex- bancário Hermes Neto, integrante do apoio logístico e
urbano da guerrilha (ALMEIDA, 2009, p. 126-127). A opção pela luta
armada foi realizada não só por aquele grupo, como também por
outros antes mesmo do golpe de 1964, e com o fracasso da ideia

248
inicial de Brizola relacionada à “quartelada”, a opção pela guerrilha
foi definitivamente adotada.

O treinamento cubano consistia principalmente em técnicas de


sobrevivência, combate rural e preparação ideológica. Passar pelo
treinamento em cuba conferia ao guerrilheiro um status de destaque
dentro dos grupos revolucionários, apesar da precariedade do
treinamento oferecido, os mesmos recebiam inclusive a distinção de
“comandantes”. (ROLLEMBERG, 2001, p. 23)

Além de treinamento, o governo cubano oferecia apoio financeiro ao


projeto guerrilheiro. Através de Brizola, fato admitido pelo
próprio (ROLLEMBERG, 2001, p. 27), foi enviado apoio financeiro
tanto para compra de armas, munição, aluguel de aparelhos para
guerrilha, quanto para apoio na subsistência dos guerrilheiros e de
exilados políticos. Existem várias polêmicas relacionadas à
distribuição do dinheiro recebido, tendo em vista que Brizola jamais
prestou contas do mesmo. A aplicação desses recursos é incerta,
porém é fato que faltava recursos aos guerrilheiros no teatro de
operações do Caparaó.

A concepção de modelo de foco guerrilheiro adotada pelos grupos


que realizaram treinamento em Cuba nos anos 1960 e admitida por
diversos outros em várias regiões do mundo, inclusive no
Brasil sofreu forte influência da teoria elaborada pelo francês Regis
Debray sobre a Revolução Cubana.

A pretensão inicial do projeto de guerrilhas a ser implantado no


Brasil elaborado pelo MNR incluía três focos iniciais. Após uma
tentativa de guerrilha rural na região de Criciúma, esta denunciada
por moradores que confundiram os guerrilheiros com assaltantes

249
que roubaram um banco nas proximidades, a localização dos focos
foram deslocadas da região sul. Os focos iniciais seriam instalados
em área de divisa entre os estados de Goiás (território atualmente de
Tocantins), Maranhão e Pará, outro no estado de Mato Grosso, na
divisa com a Bolívia e o terceiro em um local já estudado
anteriormente por militantes da POLOP, o Parque Nacional da Serra
do Caparaó, localizado na divisa entre os estado de Minas Gerais e
espírito Santo.

A escolha da Serra do Caparaó tinha razões estratégicas. A


principal razão é a proximidade geográfica de grandes centros
urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o que
ajudava as atividades de apoio logístico além de ser um local sem
grandes corporações militares.

Entre os guerrilheiros que subiram a Serra do Caparaó havia apenas


um civil, Milton Soares de Castro, os demais eram ex-militares
expurgados após o golpe de 1964, destacando-se os ex-sargentos do
Exército Amadeu de Almeida Rocha, comandante da Guerrilha;
Amadeu Felipe da Luz Ferreira, comandante militar da guerrilha;
Anivair de Souza Leite, natural de Munhumirim, na região do
Caparaó e responsável por alugar uma propriedade em contato com
familiares, a qual serviu como base de operações da guerrilha;
Araken Vaz Galvão, subcomandante da guerrilha; Daltro Jacques
Dornellas; Edival Augusto de Melo; Jelcy Rodrigues Corrêa; o ex-
sargento da Aeronáutica Josué Gonçalves Cerejo e os ex-marinheiros
Amaranto Jorge Rodrigues Moreira; Avelino Bioen Capitani; João
Jerônimo da Silva; Jorge José da Silva e o ex-sargento da Marinha
Edival Augusto de Melo. Além dos guerrilheiros que subiram a
Serra do Caparaó, havia outros que trabalhavam como articuladores
e prestando apoio logístico à guerrilha, principalmente a partir da
cidade do Rio de Janeiro, entre os quais destacam-se os civis Bayard
Demaria Boiteux, Edson José de Souza, Gregório Mendonça,

250
Hermes Machado Neto, Itamar Maximiano Gomes e o ex-sargento
Deodato Fabrício Batista além do ex-oficial Juarez Alberto de Souza
Moreira (ALMEIDA, 2009, p. 60-61).

A Serra do Caparaó abriga o terceiro ponto culminante do Brasil, o


Pico da Bandeira a 2.891 metros de altitude. Os efeitos da altitude
são facilmente perceptíveis no clima da região, a qual apresenta
bastante umidade e frio. As características das cidades no entorno
do Parque Nacional do Caparaó são semelhantes, tratando-se de
cidades pequenas, com populações abaixo de cinco mil habitantes,
economia baseada em atividades rurais, com pequenos comércios
locais que muitas vezes realizavam trocas de produtos sem uso de
dinheiro, dada a ausência de moeda circulante na região.

O grupo inicial que se instalou na Serra do Caparaó a partir de


outubro de 1966 era composto por dezessete homens, utilizavam
armas e equipamentos transportados em bagagens rodoviárias
através de ônibus principalmente do Rio Grande do Sul até um
depósito localizado no bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro,
e de lá utilizando de veículos por estradas até a região da serra. Pela
própria necessidade de mobilidade da guerrilha, diversos
acampamentos foram montados e deslocados em várias posições na
serra, assim como trilhas e depósitos subterrâneos de armamentos,
munições e principalmente alimentos, possibilitando ressuprimento
rápido e pontual em possíveis conflitos bélicos.

As atividades iniciais do foco guerrilheiro do Caparaó incluíram


treinamentos, levantamentos topográficos empreendidos através de
longas marchas de reconhecimento pela serra, mapeando acessos e
pontos estratégicos além de preparação intelectual, visando a
interação com a população local assim como instruir a mesma sobre
questões políticas e sociais. Almeida (2009) diz que:

251
“O Objetivo da Guerrilha era espalhar [...] espírito de resistência.
Era mostrar que existiam pessoas dispostas a lutar contra a ditadura,
e encorajar outros grupos, seja na área rural ou urbana, a se unirem
motivados por esse mesmo ideal”.

Aliado a estrutura operacional, o apoio logístico da guerrilha


utilizou-se do transporte rodoviário a partir do Rio de Janeiro e de
um armazém, estabelecido sobre o controle de Dirceu Dornelas, na
cidade Guaçuí de onde conseguiam fornecer alimentos aos
guerrilheiros, tendo em vista que o objetivo principal era não
chamar a atenção da população local, pois a quantidade de
alimentos adquirida pelo elemento da guerrilha responsável por
buscá-los era sempre grande, tendo em vista a quantidade de
elementos na guerrilha.

Apesar da existência de apoio logístico, as adversidades climáticas,


assim como conflitos internos foram inviabilizando
progressivamente a guerrilha. A umidade tanto das chuvas,
predominantes nas estações do ano nas quais a guerrilha esteve
ativa, quanto da própria neblina, intensa em altitudes elevadas,
deterioraram não só os alimentos como também a saúde de muitos
guerrilheiros, fazendo com que necessidades de medicamentos e
tratamentos médicos abreviassem algumas deserções. Algumas
infecções por peste bubônica também foram constatadas entre os
mesmos, devido ao fato de ratos terem invadido alguns depósitos
de alimentos, contaminando-os. Diferenças ideológicas,
insubordinações, autoritarismo e algumas escolhas particulares
contribuíram igualmente para o processo de deserções e queda da
guerrilha.

252
Além das questões relacionadas ao clima e convivência interna,
havia o estranhamento com relação à população local, a qual o
grupo guerrilheiro não conseguiu se integrar, rompendo assim com
um dos pilares da teoria do foco que atestava a importância dos
camponeses e população local no projeto revolucionário.
Confrontado com a população das regiões nas quais a guerrilha
operou o idealismo dos guerrilheiros foi colocado à prova. Os
camponeses apesar de muitas vezes serem proprietários das terras
que cultivavam, praticavam cultivo de alimentos e criação de
animais domésticos para subsistência, produzindo pouquíssimos
excedentes, pouco se diferenciando dos camponeses não
proprietários de terra que trocavam sua capacidade laborativa por
alimentos com outros camponeses. Guimarães (2007) cita um estudo
de Cândido (2001) sobre características nas quais se enquadram
aquela população:

“Percebe-se que os habitantes dos arredores da Serra do Caparaó


possuíam uma vida rústica, muito próxima daquela investigada por
Cândido no interior do estado de São Paulo em meados do século
XX e que o autor definiu como “cultura caipira”. De acordo com
Cândido, as principais características dessa cultura seriam: “[...] 1)
isolamento; 2) posse de terras; 3) trabalho doméstico; 4) auxílio
vicinal; 5) disponibilidade de terras; 6) margem de lazer”. Destas, as
três primeiras aparecem de forma mais clara [...], principalmente o
isolamento”.

As condições de vida da população das regiões da Serra do Caparaó


eram tão precárias quanto o acesso que os mesmos tinham a
informação. Aliado ao fato da maior parte da mesma ser analfabeta
ou ter frequentado poucos anos de estudo, meios de comunicação
com televisores e jornais eram praticamente inexistentes, em alguns
poucos locais existiam rádios, e ouvi-los era quase um evento
comunitário, para o qual as pessoas se organizavam e se deslocavam

253
por distâncias consideráveis. Em alguns poucos contatos
estabelecidos entre os guerrilheiros e a população local foi possível
atestar que a mesma muitas vezes não tinha acesso a informações
básicas como nomes de representantes políticos a nível estadual e
federal (GUIMARÃES, 2007, p. 266). A estrutura de transportes na
região era igualmente precária, havia uma ferrovia que passava na
região, porém o número de estradas e automóveis era extremamente
reduzido, fazendo com que a maioria dos deslocamentos,
principalmente entre as propriedades rurais, as cidades e vilas fosse
possível utilizando muares e equinos ou veículos de tração animal
como carros de boi e carroças, por exemplo.

O isolamento geográfico, as carências estruturais e econômicas e


principalmente a religiosidade eram os moldes do imaginário da
população residente nos entornos da Serra do Caparaó. O
predomínio religioso era o cristianismo, nas vertentes católica e
protestante, além de práticas como curandeirismos realizadas
principalmente devido à ausência de serviços de saúde e
atendimentos médicos. Através de líderes religiosos e
principalmente líderes políticos locais, eram propagadas ideias
negativas sobre comunismo que o enquadravam em um espectro
extremamente amplo que incluía desde questões morais, religiosas,
sociais, porém basicamente como opostas e inaceitáveis dentro das
crenças e práticas daquela população, construindo uma imagem
negativa e muitas vezes assombrosa sobre o mesmo. Enquadrados
na ideia que os habitantes locais concebiam como comunistas os
guerrilheiros encontraram mais uma grande barreira para o
estabelecimento de vínculo com a população, essa praticamente
intransponível para os mesmos naquelas circunstâncias.

Já a partir do fim do ano de 1966 a Polícia Militar de Minas Gerais


(PMMG) passou a receber diversas denúncias sobre a presença de
elementos desconhecidos, inclusive armados nas regiões da Serra do

254
Caparaó. As operações de investigação foram realizadas pela
PMMG através de patrulhamentos na região da Serra do Caparaó,
assim como infiltrações descaracterizadas, visando levantamento de
informações.

A queda do foco guerrilheiro concretizou-se a partir do fim de


março de 1967, com a prisão pela PMMG de Jelcy Corrêa e Josué
Cerejo, os quais desceram a serra, e se encontravam em uma
barbearia na cidade de Espera Feliz, de onde embarcariam para o
Rio de Janeiro para resolver assuntos pessoais, assim como a prisão
de Amaranto Rodrigues dias depois. Em 31 de Março de 1967, uma
patrulha da PMMG subiu a Serra e cercou o acampamento dos
guerrilheiros, prendendo os sete remanescentes sem qualquer
reação armada, encerrando assim as atividades daquele foco.
Suspeitas entre os guerrilheiros levam a crer que o comandante da
guerrilha negociara a rendição visando a garantia da integridade
física dos envolvidos.

Especulações à parte, o fato é que o comandante do 11º Batalhão da


Polícia Militar de Manhumirim, Coronel Jacinto Franco do Amaral
Melo fez com que os guerrilheiros, todos com a integridade física
preservada fossem fotografados junto a armamentos e materiais da
guerrilha apreendidos e isso foi divulgado pela imprensa, incluindo
jornais de ampla circulação nacional, tal fato impediu que o Exército
os abatesse na serra justificando como reação à prisão. Frente às
notícias iniciais de prisões na serra, um grupo que estava na base de
apoio do Rio de Janeiro se deslocou até o local da guerrilha
buscando resgatar membros remanescentes e acabou preso, assim
como outros membros de apoio posteriormente também foram
capturados pela repressão.

255
Assim que os relatos de prisões chegaram aos serviços de
informação, as Forças Armadas deslocaram um contingente de
milhares de homens para a região do Caparaó, munidos de aviões e
carros de combate, ocuparam toda a região e realizaram intensos
bombardeios e operações militares na serra, mesmo não existindo
mais nenhum guerrilheiro no local, com ampla cobertura da
imprensa. Tal espetacularização visava demonstrar poder de fogo
da repressão e intimidar novas possibilidades de enfrentamento á
ditadura.

O desmantelamento da guerrilha do Caparaó por parte das forças


militares em um período de poucos meses de atuação revelou não só
a grande quantidade de dificuldades operacionais e logísticas, mas
principalmente dificuldades de integração frente a população da
região da Serra do Caparaó.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alaéverton Andrade é graduado em História pela Universidade


Castelo Branco (UCB-RJ) (2017). Cursa atualmente Especialização
em Ensino de História pelo Colégio Pedro II (CP II) e Especialização
em Antropologia Brasileira pela Universidade Cândido Mendes
(UCAM). O presente texto foi adaptado do 3º capítulo da
Monografia intitulada “O atípico pode servir para vislumbrarmos as
normas”: Os militares subalternos nacionalistas e o processo de
radicalização política brasileira nos anos 1960, orientada pelo Prof.
Dr. Renato Soares Coutinho e apresentada como requisito para
conclusão do curso de graduação em História na Universidade
Castelo Branco - Rio de Janeiro.

Contato Email: alaevertonmaicon@gmail.com

256
ALMEIDA, Dinoráh Lopes Rubin de. A guerrilha do Caparaó, o
primeiro movimento armado contra a ditadura militar no
Brasil. Alegre- ES, Espelhos do Tempo - Vol. 1, ano1, jul.-dez. 2012.

ALMEIDA, Dinoráh Lopes Rubin de. A guerrilha esquecida:


Memórias do Caparaó (1966-1967), o primeiro foco guerrilheiro
contra a ditadura militar no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em
história) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o


caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São
Paulo: Duas Cidades/ Ed.34, 2001.

CAPARAÓ. Direção e Roteiro: Flávio Frederico, Direção de


produção: Priscila Torres. São Paulo: Kinoscópio, 2006. 77 min.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=
_kmFrku0YPk. Acesso: 01 de abril de 2019.

COSTA, José Caldas da. Caparaó: a primeira guerrilha contra a


ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

GUIMARÃES, Plínio Ferreira. Entre a violência e o afago: as ações


da Polícia Militar de Minas Gerais na repressão à Guerrilha do
Caparaó (1966-1967). Uberaba: XX Encontro regional de História –
História em tempos de crise, 26 a 29 de Agosto de 2016.

GUIMARÃES, Plínio Ferreira. Quando o Comunismo bate à porta:


A guerrilha do Caparaó e o medo desenvolvido pela população
local em relação aos guerrilheiros. Juiz de Fora: Revista de História
/Nº 156, 1º Semestre de 2007.

PARUCKER, Paulo Eduardo Castello. Praças em pé de guerra: o


movimento político dos subalternos militares no Brasil (1961-
1964). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1992.

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução brasileira. São Paulo:


UNESP, 2010.

257
ROLLENBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil:
O treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

258
EM DEFESA DA PROPRIEDADE OU DA
VIOLÊNCIA NO CAMPO: A FALA DO
PRESIDENTE BOLSONARO AOS
RURALISTAS
FRANCIVALDO ALVES NUNES

Fonte: https://scontent.fbel2-1.fna.fbcdn.net/v/t1.0-
9/59393541_2306678502695993_2155654441028550656_n.jpg?_nc_cat=
102&_nc_ht=scontent.fbel2-
1.fna&oh=b20a5680378d3bad188ae4213dd3ef20&oe=5D52F836

A charge “Campo de sangue” do historiador e cartunista Walter


Pinto, publicada em 29 de abril de 2019, ganhou as redes sociais,
através do Facebook, tão logo o presidente Jair Bolsonaro anunciou
que pretendia, em curto espaço de tempo, enviar ao Congresso
brasileiro um projeto de lei que se propunha a livrar de punição o
produtor rural que fizesse disparos, através de armas de fogo, ao
que considera “invasor de terra”.

259
De acordo com o jornal Estadão, o anúncio foi feito em 29 de abril de
2019 durante discurso de abertura da Agrishow, em Ribeirão Preto,
interior de São Paulo, um dos mais importantes eventos do
agronegócio brasileiro. Para Bolsonaro, a proposta em gestação no
governo, se trata de uma promessa de campanha eleitoral. Destaca
que a medida deverá combater a violência no campo, um
sentimento oposto ao que sugere a charge. Sendo ainda responsável
em cumprir a função de proteger os donos de terras e suas
benfeitorias, uma vez que entende que “a propriedade privada é
sagrada e ponto final” (Estadão, 29/04/2019).

A edição de 30 de abril de 2019 do jornal Diário do Pará repercutiu o


anúncio, reproduzindo parte da fala do presidente aos ruralistas.

“Vai dar o que falar, mas uma maneira que nós temos de ajudar a
combater a violência no campo é fazer com que, ao defender a sua
propriedade privada ou a sua vida, o cidadão de bem entre no
excludente de ilicitude. Ou seja, ele responde, mas não tem punição.
É a forma que nós temos que proceder. Para que o outro lado, que
desrespeita a lei, tema vocês, tema o cidadão de bem, e não o
contrário” (Diário do Pará, 30/04/2019, Caderno B, p. 1).

A intenção da presidência da República é que a Câmara dos


Deputados discuta, ainda no primeiro semestre de 2019, um
segundo projeto de lei que autoriza a posse de armas de fogo em
todo o perímetro das propriedades rurais e não apenas nas
residências. Um acordo que já havia sido firmado em conversa com
o presidente da casa legislativa, Rodrigo Maia, deputado pelo
Partido Democrata (DEM) do Rio de Janeiro (Estadão, 29/04/2019).

260
A outra proposição a ser apresentada por Jair Bolsonaro é fazer com
que, ao defender a sua propriedade privada ou a sua vida, o
“cidadão de bem” entre no excludente de ilicitude. No caso, faz
referência ao artigo 23 do Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940, que exclui como prática de ilícito: o
estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do
dever legal e o exercício regular de direito (Brasil, 1940). De acordo
com o presidente “é a forma que nós temos que proceder para que o
outro lado, que teima em desrespeitar a lei, tema vocês, tema o
cidadão de bem, e não o contrário” (Estadão, 29/04/2019).

Diríamos que o excludente de ilicitude faz referência às hipóteses


em que qualquer pessoa pode cometer um crime sem ser punido por
ele, como é o caso da legítima defesa, entendida como uma situação
em que uma pessoa está prestes a sofrer alguma agressão e reage
diante dela. Nesse sentido, o advogado criminalista Allan
Hahnemann Ferreira, professor do curso de Direito da Universidade
Federal de Goiás (UFG), em entrevista publicada no portal Brasil de
Fato, explica que o Código Penal prevê situações para o excludente
de ilicitude associadas ao estrito cumprimento do dever legal para
casos específicos relacionados à atuação das forças de segurança,
mas não enquadra nesse instituto casos relacionados à proteção da
propriedade, como defende Bolsonaro. A fala do presidente viria,
portanto, num contexto extremamente punitivo e coloca a
propriedade acima do próprio bem vida, que é o bem supremo
protegido pela Constituição Federal, acrescenta Ferreira (Brasil de
Fato, 30/04/2019).

O advogado criminalista Everton Seguro, concorda que abranger a


questão para situações que não estejam enquadradas em casos de
legítima defesa é atribuir mais valor a uma propriedade do que a
vida humana (Estadão, 29/04/2019). Significa também dizer que a
medida, ao contrário do que procura demonstrar na fala do

261
presidente, em vez de permitir maior segurança sobre a propriedade
privada e o seu uso regular, acaba por estimular a violência no
campo, acirrando os conflitos rurais, tornando o espaço rural
“campo de sangue”, como ilustra a charge de Walter Pinto. Nesse
caso, para Everton Seguro “existem outros meios de se tratar as
pessoas em invasões. É preciso acionar a polícia e cabe ao juiz
acelerar o processo para tirar as pessoas de lá” (Estadão, 29/04/2019).

As reações chegaram ainda à sociedade civil organizada. Em nota


pública divulgada em 30 de maio de 2019, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), repudiou a proposta. Na nota a entidade lembrou a
questão legal que circunda as ocupações de terra, geralmente
promovidas por segmentos populares que atuam em defesa da
reforma agrária, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra (MST).

“Na sua fala, o presidente reafirma mais de uma vez que a


propriedade é sagrada, sem se atentar para a ‘função social da
propriedade’, como reza a Constituição Federal (arts. 185 e 186). [...]
Deixa de lado, também, a forma como foram constituídas tais
‘propriedades’, muitas delas frutos de esbulho e violências contra os
povos tradicionalmente ocupantes dessas terras, e outras tantas
oriundas de grilagem” (CPT, 2019).

A nota expressa ainda que a proposta do presidente é


“irresponsável”, pois a entidade ressalta que, entre os anos de 1985 e
2018, por exemplo, 1.938 trabalhadores foram assassinados em
conflitos no campo, num total de 1.466 ocorrências registradas pela
própria Pastoral, que anualmente lança um relatório temático sobre
o assunto.

262
A CPT (2019) sublinha ainda que os crimes têm histórico de
impunidade. “Dessas ocorrências, somente 117 responsáveis pelos
assassinatos foram a julgamento, tendo sido condenados apenas 101
executores e 33 mandantes. Por esses números, vê-se que o
‘excludente de ilicitude’ já existe na prática”, critica a entidade,
numa referência à expressão legal utilizada por Jair Bolsonaro (CPT,
2019).

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também


teria condenado a proposta. O diretor nacional do MST, João Paulo
Rodrigues, ressalta que atualmente os mandantes de crime nas áreas
rurais já não são condenados pelas mortes no campo. Com esse
anúncio, o governo acirra os conflitos agrários e autoriza um
proprietário matar qualquer um acusado de invadir sua
propriedade, denuncia João Paulo Rodrigues (Estadão, 29/04/2019).

Em nota de repúdio as declarações do presidente, o MST e outras


entidades vinculadas aos trabalhadores rurais destacam que ao
anunciar que encaminhará para a Câmara Federal um projeto de lei,
que dá ao proprietário rural total liberdade para atirar em caso de
“invasão” da sua propriedade sem que isto incorra em punição, o
governo estaria efetivamente defendendo e concedendo licença para
matar, potencializando a violência no campo. No caso, demonstrava
que não se tem uma política pública efetiva de segurança, e que um
dos caminhos é armar a população e terceirizar a segurança de
forma ilegal, destaca a nota (MST, 2019).

Elisabete Maniglia (2005) colabora com as reflexões de que a


violação de direitos humanos em áreas rurais está vinculada a
desigualdade social, aumento da pobreza e a falta de políticas
públicas de atenção ao homem do campo. Além disso, a ausência do

263
Estado como garantidor de direitos provoca ainda a criminalidade e
a violência (Maniglia, 2005, p. 5).

Considerando a violência como o constrangimento e ou a


destruição, quer seja física ou moral que são exercidas sobre os
trabalhadores do campo e aqueles que são aliados, diríamos que o
enfrentando de questões sociais como é o caso da concentração da
terra e de riquezas não devem ser exercido com ações de combate
armado, nem com o uso da força policial e muito menos com a
divisão da sociedade entre os que merecem viver e os que não
merecem viver, como parece apontar a fala do presidente Bolsonaro.

Importante destacar que a violação dos direitos do homem do


campo, circunscrevem locais bem delimitados e se espalham no
território brasileiro, através de indivíduos ou grupos de indivíduos
que são forçados a saírem da sua terra, que não conseguem retomar
seu território, que não são beneficiados por reforma nos espaços
rurais, consequentemente, deparam-se com a violação de seus
direitos à terra, ao trabalho, à moradia, à alimentação, à água e ao
direito de ir e vir (RECH, 2003, p. 119).

A violência tem sido muitas vezes usada para recobrir situações


como o sistemático descumprimento da legislação trabalhista, a falta
de condições mínimas de segurança nos locais de trabalho, os
processos de expulsão de trabalhadores de áreas por eles ocupadas,
por vezes há gerações, a exploração do trabalho escravo e infantil
(MEDEIROS, 1996, p. 3). Neste aspecto, a ausência de uma atuação
sistemática do Estado e das instituições de promoção da legalidade
nestas áreas, se apresenta como motivadora de conflitos e violência
no campo.

264
Ao que se observa, a garantia da propriedade da terra e a segurança
jurídica em áreas rurais não se afirma no tratamento dos
movimentos e grupos de luta social pela terra e território como
invasores, por parte do Estado, nem também deve atuar de forma
leniente para com fazendeiros e grileiros que invadem e exploram
propriedades públicas ou áreas de reservas ambientais.

A luta pela terra e pelo território é um exercício de legitimidade,


portanto, dos movimentos sociais organizados, como os
trabalhadores rurais sem terra e posseiros, que têm o direito de
reivindicar politicas de reforma dos espaços rurais e de ocupar áreas
improdutivas. Inclui-se neste debate os povos indígenas e
comunidades tradicionais e suas estratégias de manutenção das
terras ocupadas.

Ao tomar partido autorizando e fomentando que proprietários usem


da força e a violência para defender suas propriedades o Estado
pode contribuir para a intensificação dos conflitos no campo por
favorecer grupos empresariais e grandes senhores da terra. Nesse
sentido, como adverte José de Sousa Martins (1991), a segurança nas
áreas rurais deve ser de responsabilidade do Estado e não dos
particulares. Para este autor, quando o Estado não cumpre com suas
funções legítimas de proteção, acaba por multiplicar os atos
violentos contra os trabalhadores rurais e amplia a insegurança das
áreas rurais, inclusive as propriedades de terra já devidamente
regularizadas (Martins, 1991, p. 50.

Importante destacar que, ao mesmo tempo em que a Constituição


Federal no artigo 5°, inciso XXII, defende o direito de propriedade,
também revela no mesmo artigo, inciso XXIII, que a terra deve ter
função social. No caso, a função social é cumprida quando a
propriedade rural atende aos requisitos quanto ao aproveitamento

265
racional e adequado da terra, utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância
das disposições que regulam as relações de trabalho, assim como, a
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores (Brasil, 1982).

Como expressa José Reis dos Santos Filho (2001), quando


movimentos e grupos de luta pela terra e por território se organizam
contra a concentração agrária ou pela garantia de seus territórios,
eles estão lutando para que os direitos constitucionais sejam
assegurados. Neste aspecto, a defesa da propriedade privada não
está acima do direito dos camponeses ou dos povos indígenas e
comunidades tradicionais produzirem e reproduzirem seus meios
de vida.

De acordo com MST e outras entidades vinculadas a defesa dos


direitos dos trabalhadores rurais, há um princípio ético e humanista
que defende que a concentração de terra torna-se imoral sempre que
esteja descumprindo o princípio maior da sua função social, o que,
portanto, se sobrepõe ao sentido da propriedade privada em si
mesma (MST, 2019).

A fala do presidente provoca o entendimento equivocado de que se


pode subtrair do Estado, o poder de dirimir os conflitos, de
investigar, de julgar, de punir, incentivando a “justiça com as
próprias mãos”. Para Medeiros (1996), esta subtração é o principal
fator da violência no campo, pois tem sido muitas vezes usada para
recobrir situações de descumprimento da lei. Esse quadro revela
uma face da violência, que demonstra “o profundo
comprometimento do Poder Judiciário com os interesses ligados à
propriedade da terra, o que coloca um impasse nessas situações de
disputa” (MEDEIROS, 1996, p. 127).

266
Isso implica relacionar um conjunto de práticas do não
reconhecimento dos trabalhadores rurais como portadores de
direitos, e sim como sujeitos submissos por coerção diante das
formas de dominação fundadas em procedimentos aceitos pela
sociedade. Sob este aspecto a Constituição Federal não garante
salvaguarda a nenhum cidadão sob hipótese alguma, nem tão pouco
autoriza aos proprietários de terra proteger seus bens sem a
mediação das leis e do Estado.

Sobre a fala do presidente há questionamentos até mesmo no setor


produtivo vinculado ao agronegócio e empresários rurais, ruralistas.
De acordo com Luiz Roberto Barcelos, presidente da Associação
Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados,
Bolsonaro teria falado de algo que já estava na lei. “Por mais que
seja errado cometer invasões de terra, também não acho certo que a
pessoa não responda por isso. Não se pode ter abusos, nem de um
lado nem do outro”, destaca Luiz Barcelos (Estadão, 2019).

Não há dúvidas que ao discursar na abertura da Agrishow,


Bolsonaro reafirmou sua intenção de encaminhar modificações
na legislação de armas de fogo. Uma das mudanças propostas pelo
presidente já está no congresso e deve tramitar em regime de
urgência. O governo aproveitará o projeto de lei do
deputado Rogério Peninha, do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), de Santa Catarina, que autoriza posse de armas
nas propriedades rurais.

Trata-se do Projeto de Lei (PL) nº 377 e está pronto para análise na


Câmara dos Deputados. Originalmente, o projeto previa que o
registro da arma de fogo dê o direito de posse e porte “no interior de
sua residência, propriedade rural ou dependência destas”. Outros

267
deputados que formam a base de apoio ao governo, vinculados ao
Podemos e Partido Social liberal (PSL), já solicitaram a inclusão do
projeto na ordem do dia para votação (Estadão, 2019).

Quanto ao projeto de lei que trata do excludente de ilicitude ainda


está sendo elaborado. O porta-voz da Presidência, general Otávio
do Rêgo Barros, afirmou que, em breve, será enviado ao Congresso
assim que “esses estudos estiverem conclusos”, sem dar um prazo
para isso (Estadão, 2019).

Em 7 de maio de 2019, o presidente Bolsonaro cumpria a promessa


feita na Agrishow, assinando um decreto para alterar as regras sobre
o uso de armas e munições, sendo este assinado em uma cerimônia
no Palácio do Planalto e publicado no Diário Oficial da União do dia
seguinte. Entre as principais medidas do decreto, estão a permissão
para o proprietário rural com posse de arma de fogo utilizar a arma
em todo o perímetro da propriedade, como destaca o ítem I, § 1º, do
artigo 10 (Brasil, 2019B).

Com o anúncio na feira agropecuária e o decreto, se observa, a


princípio, que o presidente buscava agradar os grandes
proprietários de terra. No entanto, ao permitindo que por sua
própria vontade defendesse suas terras, acabou por tornar o espaço
rural brasileiro ainda mais inseguro, potencializando as
possibilidades de conflito, inclusive armado.

A defesa da grande propriedade rural pela presidência da


República, portanto, ganhou os contornos de possibilidade real de
aumento da violência no campo.

268
Referências

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense


(UFF). É professor na Universidade Federal do Pará, atuando na
Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua. E-
mail: francivaldonunes@yahoo.com.br.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para


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Brasil. Brasília: Senado, 1988.
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para


Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de
1940. 1940. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del2848.htm. Acessado em 18/06/2019.

BRASIL DE FATO. Portal de Notícias. Oposição e sociedade


civil reagem a proposta de Bolsonaro para conflitos no campo.
Brasília. Publicado em 29/04/2019, às 20:50.
Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2019/04/30/oposica
o-e-sociedade-civil-reagem-a-proposta-de-bolsonaro-para-
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CPT. Nota de repúdio da CPT - “Ajudar a violência no campo” é


o que quer o Presidente Bolsonaro. Goiânia. Publicado em
30/04/2019. Disponível
em: https://cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4712-nota-

269
de-repudio-da-cpt-ajudar-a-violencia-no-campo-e-o-que-quer-o-
presidente-bolsonaro. Acessado em 18/06/2019.

ESTADÃO. Bolsonaro propõe que proprietários rurais não sejam


punidos por atirar contra invasores. São Paulo. Publicado em
29/04/2019, às 16:51. Disponível
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quer-votacao-de-projeto-no-congresso-sobre-armas-de-fogo-em-
propriedades-rurais,70002809129. Acessado em 18/06/2019.

MANIGLIA, Elisabete. Criminalidade e violência no âmbito


rural: críticas e reflexões. Disponível:
http://www.saoluis.br/revistajuridica/arquivos/012.pdf.
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em: file:///C:/Users/UFPA/Downloads/415-3992-1-PB%20(1).pdf.
Acessado em 18/06/2019.

270
HISTÓRIA E POLÍTICA EXTERNA:
PERSPECTIVAS PARA O GOVERNO
BOLSONARO
DANILO SORATO OLIVEIRA MOREIRA
TIAGO LUEDY SILVA

Este ensaio procura apontar a aderência entre a História e as


Relações Internacionais, a partir de uma discussão acerca da
História da Política Exterior do Brasil. Em seguida, ele aponta
algumas perspectivas sobre o Governo Bolsonaro em termos de
inserção internacional brasileira. Conclui-se que

A relação entre História e Relações Internacionais é muito próxima


em termos de ciência. Desde 1919, com o surgimento da primeira
cátedra de Relações Internacionais na Europa, utiliza-se o método
histórico como suporte para a compreensão do principal objeto de
estudo que é o sistema internacional. Dessa forma, é comum
perceber em diversos cursos de graduação pelo Brasil, disciplinas
como, História das Relações Internacionais, História da Política
Exterior do Brasil ou História Econômica Brasileira.

No caso brasileiro, o primeiro curso de Relações Internacionais


ocorreu nos anos de 1970 na Universidade de Brasília (UnB). Nesse
espaço, surgem pesquisadores como Amado Cervo, Antônio Carlos
Lessa, José Sombra Saraiva, como expoentes científicos na utilização
da relação benéfica entre as duas ciências.

A história da Política Exterior do Brasil compreende a formação da


inserção internacional brasileira desde pelo menos o período
colonial até a contemporaneidade. Os pesquisadores Cervo e Bueno
mostram como se comporta o Estado brasileiro em sua ação externa.
Segundo eles (2002, p. 11), basicamente, o país se define no mundo
da seguinte maneira:

271
“A política exterior correspondeu, nos últimos dois séculos, a um
dos instrumentos com que os governos afetaram o destino de seus
povos, mantendo a paz ou fazendo a guerra, administrando os
conflitos ou a cooperação, estabelecendo resultados de crescimento e
desenvolvimento ou de atraso e dependência. Na história do Brasil,
após o rompimento com Portugal em 1822, a política exterior serviu
internacionalmente à paz entre os povos, com exceção de um
período nos meados do século XIX, entre 1850 e 1870. A capacidade
do setor externo de subsidiar o crescimento e a autonomia
socioeconômica do país não foi acionada, entretanto de forma
estável.”

Se o país não é afeito historicamente a conflitos provocados pela sua


vontade de expansão ou interesse geopolítico, por outro lado a
política externa não consegue ser um fator equilibrado de suporte
para o desenvolvimento econômico e social brasileiro. Há momentos
de inserção internacional mais proativa, como recentemente no
período Lula (2003-2010), ou mais reativa, por exemplo nas gestões
Dilma-Temer (2010-2018).

Se buscarmos definições de como o país vem participando no


mundo, no século XX até o momento, pode-se dizer que existe uma
busca pela autonomia, ao passo que em outros momentos existe um
alinhamento para com alguma potência externa. Como aponta
Pinheiro (2004, p. 7), a estratégia brasileira internacional, a grosso
modo, no primeiro vetor buscou ampliar seus horizontes de poder,
com a diversificação de parcerias pelos continentes, a tentativa de
promoção do multilateralismo e organismos internacionais; na
direção contrária, o segundo vetor marcou uma aproximação com as
novas potências mundiais, a fim de que fosse forjado uma parceria
profunda para ganhar benefícios e ganhos desse relacionamento.

A recente Eleição presidencial brasileira deu como vencedor o


candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Desde a campanha eleitoral, a
retórica para a Política Externa é pautada em transformar a ação
internacional brasileira. Diz o ainda candidato (2018) que o Brasil
vai acabar com a ideologia na Política Externa, apostar por parceiros

272
ocidentais como EUA, Israel, Itália, e procurar captar investimentos
e fazer acordos comerciais.

Com a posse em 1 de janeiro, o novo ministro das Relações


Exteriores, Ernesto Araújo, é escolhido para colocar em prática as
ideias esboçadas na campanha eleitoral. A sua escolha se dá em
virtude da sua proximidade com o filósofo, Olavo de Carvalho,
além da atuação no setor do Itamaraty que cuida das relações com
os Estados Unidos e Canadá. A partir da sua escolha, questiona-se a
política externa de Bolsonaro muda tudo aquilo que estava? Ou
mantém programas de continuidade com outras gestões?

Como aponta Sorato (2019a), ao analisar a gestão Bolsonaro e Temer,


encontra-se em três partes da atuação brasileira muitas semelhanças.
Nos programas de ideologização, comércio e segurança, os governos
se aproximam com ações parecidas.

No aspecto da (des) ideologização, ambos os governos defendem


que a Política Externa não pode ser feita com ideologia. Com Serra
(2016), o primeiro Chanceler de Temer, inicia-se o deslocamento e
distanciamento da Venezuela. A suspensão daquele país do
MERCOSUL é fruto dessa iniciativa. Ela é mantida pelo sucessor no
cargo, Aloysio Nunes, que amplia a aposta com a criação do Grupo
de Lima em agosto de 2017. Nesse espaço em que 12 países do
continente discutem a situação do governo Maduro é que o
Chanceler de Bolsonaro consegue o não reconhecimento da nova
administração venezuelana (2019-2025).

A ideia de ideologização inicia com Maurício Macri na Argentina


em 2015, como diz Echaide (2016). Mas é um procedimento que todo
formulador de política externa faz, pois necessita apontar um
caminho a ser seguido, como defende o autor Mendes (2015).
Portanto, a ideologia é uma marca de todos os gestores públicos de
Política Externa, ainda que alguns defendam uma possível
neutralidade.

273
No aspecto comercial, as duas gestões defendem que a Política
Exterior necessita captar investimentos e produzir acordos
comerciais para a superação da crise econômica brasileira. Na gestão
Temer, é assinado o acordo comercial com o Chile em novembro de
2018, além de acordos de facilitação de investimentos com Guyana,
etc. Além disso, são articuladas negociações coletivas via
MERCOSUL com Canadá, Coreia e EFTA. Essas negociações foram
recentemente defendidas pelo atual Chanceler, Ernesto Araújo, na
sua palestra no Conselho Argentino de Relações Internacionais
(CARI), tal como defende Sorato (2019b).

Por fim, no aspecto de segurança, os dois governos defendem uma


maior atividade de combate a crimes transnacionais e organizações
criminosas na fronteira. Com Serra (2016), iniciou-se esse programa
de Política Externa esquecido desde pelo menos os anos de 1990. Em
Nunes (2017), as ações se ampliaram para a I Reunião de segurança
nas fronteiras da América do Sul, ademais, da criação de um setor
administrativo nas Embaixadas sul-americanas para tratar do
assunto. Com Bolsonaro (2019), a perspectiva é continuar esse
assunto como disse no Congresso Nacional em fevereiro, já que é
uma plataforma de campanha, da mesma forma que determinadores
atores internos (militares, juristas) defendem maior atuação nos
limites brasileiros com os países vizinhos.

A fim de concluir o ensaio, apresentou-se a conexão da História com


as Relações Internacionais em uma área especifica que é a História
da Política Exterior. Nesse diálogo, percebeu-se que o Brasil em sua
política externa costuma ser um país pacífico, ao passo que dividido
entre a autonomia e o alinhamento durante o século XX. A partir
disso, entendeu-se que o novo governo Bolsonaro apesar da
promessa em ser uma administração de mudança, ao contrário,
possui muitos elementos de continuidade para com a administração
Temer (2016-2018). Especificamente, nos programas que versam
sobre a ideia de ideologização, comércio e segurança nas fronteiras.
As duas administrações coadunam discursos parecidos, ações e
estratégias de atuação internacional similares, inclusive com a atual

274
recebendo muitos dividendos do que foi feito pela anterior, como
por exemplo, as negociações comerciais em aberto.

Como último comentário, vale lembrar que a Política Externa é um


campo em constante transformação especialmente pela crescente
dialética com a conjuntura exterior. Portanto, a análise acerca do
governo Bolsonaro, a priori, caracteriza-se pelos elementos de
continuidade. Com o desenrolar do tempo, essa marca pode sofrer
alterações.

Referências

Danilo Sorato
Professor no Ensino Básico. Mestre em Ensino de História
(Universidade Federal do Amapá – UNIFAP). Graduado em
História (Universidade Federal do Pará – UFPA).

Tiago Luedy
Professor Efetivo do curso de Relações Internacionais da
Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Bacharel em Relações
Internacionais pelo Centro Universitário da Bahia. Especialista em
Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do
Amapá (UNIFAP). Coordenador do Curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal do Amapá. Diretor do
Laboratório de Relações Internacionais e Geopolítica (LABRIGEO).

BOLSONARO, J. Plano de Governo - O Caminho da Prosperidade.


Brasília: TSE, 2018. Disponível em:
http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/
2022802018/280000614517//proposta_1534284632231.pdf. Acesso em:
05/05/2019.

BOLSONARO, J. Mensagem ao Congresso Nacional, 2019: 1ª


Sessão Legislativa Ordinária da 56ª Legislatura. Brasília:
Presidência da República, 2019. Disponível em:
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275
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CERVO, A; BUENO. C. História da política exterior do Brasil.


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Itamaraty, 7 de março de 2017. Publicado em 07 de março de 2017.
Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-
imprensa/15829-texto-base-para-o-discurso-de-posse-do-ministro-
de-estado-das-relacoes-exteriores-aloysio-nunes-ferreira-palacio-
itamaraty-7-de-marco-de-2017. Acesso em: 05/05/2019.
PINHEIRO, L. Política Externa Brasileira (1889-2002). Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.

SERRA, J. Discurso do ministro José Serra por ocasião da


transmissão do cargo de ministro de estado das Relações
Exteriores. Publicado em 18 de maio de 2016. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/discursos-artigos-e-entrevistas-
categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/14038-discurso-
do-ministro-jose-serra-por-ocasiao-da-cerimonia-de-transmissao-do-
cargo-de-ministro-de-estado-das-relacoes-exteriores-brasilia-18-de-
maio-de-2016. Acesso em: 05/05/2019.

276
SORATO, D. Uma análise de política externa brasileira: A
continuidade dos governos Temer e Bolsonaro. 2019a. Monografia
(Graduação em Relações Internacionais) – Universidade Federal do
Amapá, Macapá, não publicado [no prelo].

SORATO, D. La nueva política externa brasileña: mudanças ou


permanências?. Publicado em 06 de maio de 2019b. Disponível
em: https://www.academia.edu/39019822/LA_NUEVA_POL%C3%8
DTICA_EXTERNA_BRASILE%C3%91A_MUDAN%C3%87AS_OU_
PERMAN%C3%8ANCIAS_THE_NEW_BRAZILIAN_EXTERNAL_
POLICY_CHANGES_OR_PERMANENCES_LA_NUEVA_POL%C3
%8DTICA_EXTERNA_BRASILE%C3%91A_MUDAN%C3%87AS_O
U_PERMAN%C3%8ANCIAS_THE_NEW_BRAZILIAN_EXTERNA
L_POLICY_CHANGES_OR_PERMANENCES Acesso em:
06/05/2019.

O PENSAMENTO DE POLÍ TICA


EXTERNA DE RIO BRANCO ANTES DE
SER BARÃO
DANILO SORATO OLIVEIRA MOREIRA

Este ensaio pretende fazer dar continuidade a pesquisa acerca do


pensamento político de Rio Branco na segunda metade do século
XIX, antes da sua titulação nobiliárquica de Barão, e no momento
em que exerce a função de jornalista no periódico A Nação entre as
décadas de 1860 a 1870. Para tal, de forma metodológica, são
analisadas a fonte primária do periódico citado em julho de 1872, da
mesma forma que consultado a literatura especializada. Portanto, a
finalidade desse texto é analisar os artigos de política externa do
personagem citado, com foco na Questão Argentina, a fim de
compreender como pensa a inserção internacional brasileira no
período imperial delimitado acima.

277
Nesse ensaio a história política e intelectual é fundamental para a
compreensão do pensamento de Rio Branco Junior. Como defende
René Remond (1996) a política é um campo importante de análise
enquanto objeto de estudo. Da mesma forma, Marieta Ferreira
(1992) reconhece que a história política renovada é um espaço em
que os historiadores podem retomar os estudos sobre o político,
ainda que com grande desconfiança por parte de outros campos de
saber.

O debate acerca da figura de Rio Branco na historiografia, como


aponta Moreira (2019), caracteriza-se pelo seu pensamento de
política externa a partir dos anos de 1890, quando é condecorado
com o título nobiliárquico de Barão pelo Imperador D. Pedro II. A
atuação como advogado nos casos de fronteira com a Argentina
(1885) e França (1900), rendem-lhe méritos para que fosse
considerado a pessoa mais indicada para assumir o Ministério das
Relações Exteriores em 1902. Essa é uma perspectiva defendida
tanto por Ricupero (2013), quanto por Santiago (2014), ao defender o
olhar mágico e mitológico sobre o “maior chanceler” do país.

As outras facetas de Rio Branco são pouco debatidas pela


bibliografia especializada, especialmente as suas atuações como
deputado estadual pelo Mato Grosso e jornalista do A Nação na
década de 1870. A estudiosa Henrich (2009, p. 5) discute a sua
atuação no citado periódico ao dizer que

“Já como Deputado Estadual, em 1872, começa a escrever naquele


que ficou conhecido como o órgão oficial do Partido Conservador e
defensor das políticas do Gabinete Rio Branco, o jornal A
Nação. Nele escreveu desde sua primeira edição e logo passou a
dividir com Gusmão Lobo a responsabilidade pela redação, sendo
sua atribuição geralmente a elaboração do editorial. Era, por
exemplo, neste espaço e também em vários artigos sob pseudônimo
que defendia ardorosamente a Lei do Ventre Livre, proposta por seu
pai, o Visconde de Rio Branco.” (HEINRICH, 2009, p. 5)

278
A defesa das ideias do pai e de seu gabinete nos anos de 1870 é uma
característica a ser destacada, já que envolve uma série de ideias
políticas do período. Como exemplifica, a atuação em causas como
A Lei do Ventre Livre, grande debate nacional da escravidão, aponta
para a sua mente mais vinculada ao pensamento conservador. Ao
analisarmos a edição n. 1, de julho de 1872, do A Nação, no editorial
se percebe o seu objetivo quando diz o seguinte:

“[...] Eis a missão deste jornal. Arauto do progresso reflectido, que é


a grande aspiração da nossa epocha, guarda das bem entendidas
liberdades, da ordem social e das instituições juradas,
a Nação aparece na imprensa diária como órgão do generoso
partido, que extinguio o trafico de africanos, acabou com a tyrania
de Rozas e Oribe, promoveu a livre navegação do Prata e seus
affluentes, fez sulcar pelo vapor as aguas do majestoso Amazonas
até o Perú, traçou as primeiras linhas da rede de estradas de ferro
que ha de ligar um dia os quatro angulos do Imperio, fundou o
credito publico, reorganizou o exercito e a armada, pôz termo com
honra e gloria á guerra do Paraguay, decretou a reforma judiciaria, e
escreveu a sua bandeira a santa legenda de 28 de setembro de 1871;
do partido, enfim, que sustentou sempre a monarchia constitucional
representativa, associando as recordações de sua passagem pelo
poder a idéa dos grandes melhoramentos politicos e
administrativos, que hão feito à felicidade do Brazil.” (Grifo nosso,
A Nação, 1872, p. 1)

Nesse espaço, os editores consideram-se como defensores do


Partido Conservador e sua atuação política no Império do Brasil.
Eles destacam os feitos políticos como o fim do tráfico de escravos, a
vitória do Rio da Prata e a atuação brasileira Guerra do Paraguai.

Entretanto, não é consenso que Rio Branco fosse editor do periódico


A Nação, pois existem alguns trabalhos especializados que
defendem a sua posição enquanto analista de política externa do
Brasil. Como defende Saiani (2018, p. 56) ao defender o papel
histórico de Rio Branco como publicista entre os anos de 1889-1912,
nos seus caminhos iniciais como jornalista ainda nos anos de 1870, o

279
autor aponta que ele atuava com os artigos de fundo e de política
externa, enquanto que Gusmão Lobo assina os assuntos de política
interna. Assim, a partir dessa perspectiva mais recente, esse ensaio
pretende analisar os artigos de política externa de Rio Branco no
periódico A Nação no ano de 1872, especialmente as primeiras
edições.

Na edição de estreia em 3 de julho de 1872, são debatidas por Rio


Branco os desdobramentos da Questão Argentina. Em sua análise da
conjuntura é saudado a aliança entre o Brasil e a Argentina lograda
com êxito na Guerra do Paraguai. Entretanto, ele chama atenção
para:

“Prende a attenção publica uma questão de grave importancia a que


não podemos ser indiferentes: a de nossas relações com a Republica
Argentina, que tão estreitas foram durante a heroica luta que
tivemos de sustentar com o dictador do Paraguay, e que, tanto se
abalaram depois do arrogante procedimento que teve em
Assumpção o plenipotenciario argentino Dr. Manuel Quintana.” (A
NAÇÃO, 1872, p. 1)

Após a declarada vitória no Paraguai, Brasil e Argentina iniciaram


negociações para alcançar bons resultados territoriais e vantagens
sobre o Paraguai. O que está em jogo nessa disputa é a supremacia
regional na Região do Rio da Prata. Então, Rio Branco, como
defensor do gabinete de 1871 do Visconde de Rio Branco, utiliza o
espaço jornalístico para apontar o negociante argentino como
culpado de não haver avançado acordo entre os países.

Na mesma seção e edição, Rio Branco continua a defender os


interesses do Partido Conservador. Quando aponta as dificuldades
de negociação de paz pela postura do Ministro argentino
“arrogante”, que inclusive lança uma nota em 27 de abril daquela
ano defendendo a posição argentina. Sem chegar a um acordo de
solução de controvérsias na reunião no Paraguai de forma conjunta,
mas “não se pode ultimar em commum a negociação, e estaria ainda
hoje o Brazil sem o tratado definitivo de paz se não usasse do direito

280
de negocial-o separadamente com o vencido.” (A NAÇÃO, 1872, p.
1) A posição brasileira na negociação acaba gerando como
consequência o protesto argentino, como apontado acima pelo
Ministro.

O interessante vem mais a frente, quando Rio Branco coloca na nota


algumas rivalidades de política interna acerca da Questão
Argentina. Ele critica o jornal Diário do Rio de Janeiro pela sua
postura “que não sacrificam as considerações de política Interna os
interesses do Brazil no exterior.” (A NAÇÃO, 1872, p 1). Uma crítica
desse periódico em relação a postura brasileira faz com que apareça
a versão mais conservadora do articulista do periódico. Segundo ele,
o “Irancudo redactor” faz “Seu ataque contra a supposta
propaganda de guerra por parte do governo [...]”. Apesar de
considerar o periódico rival como um dos baluartes na defesa das
ideias conservadores, para Rio Branco é ”[...] folha conservadora,
que tão implacável se mostra desde 22 de Maio contra o ministerio
de 7 de Março [...]”, em outras palavras, a pretensa defesa do
conservadorismo como ideia política, não diminui as críticas ao
gabinete de 7 de março do pai de Rio Branco, o Visconde. Como
responde Rio Branco na defesa das bandeiras e ações políticas do
governo? Ele aponta qual a direção do Gabinete para o Prata e
especificamente a Questão Argentina.

“Conhecendo toda a extensão de sua responsabilidade, e


acompanhando o sentimento nacional, o gabinete mostra desejar
sinceramente que se mantenha a paz, uma vez que não soffra a
menor quebra a honra do Brazil, que todos os brasileiros sabem
prezar, e defender á custa de quaisquer sacrifícios. Manifesta
tambem o justificado empenho de afastar de si a responsabilidade
pelas calamidades da guerra que não provoca; mas com igual
firmeza patêntea a sua resolução de manter invioláveis os direitos e
legitimos interesses do Imperio, ainda quando a perigosa politica do
gabinete de Buenos-Ayres torne para esse fim impotente os meios
pacificos.” (A NAÇÃO, 1872, p. 1)

281
Ao finalizar a nota de jornal, Rio Branco, demonstra mais uma vez
qual a sua opção em relação a política externa do país para o Rio da
Prata. A defesa das políticas do Gabinete de Março ficam claras ao
argumentar os interesses brasileiros na “paz”. Ademais, aparece
parte do seu pensamento político interno ao travar um conflito com
outro periódico carioca, naquele caso específico crítico ao
posicionamento brasileiro com a Argentina.

Após a primeira edição do periódico A Nação, no dia seguinte, mais


um número estava pronto para os leitores. O jornalista Rio Branco,
mais uma vez, escreve acerca da Questão Argentina discutida no dia
anterior. Novamente, o editor defende a postura brasileira em
negociar isoladamente com o Paraguai um acordo de paz, já que não
foi possível chegar a bom termo na reunião entre os países
envolvidos no conflito paraguaio. Diz Paranhos Júnior que:

“O governo brazileiro nunca desconheceu as obrigações que


contrahio, e no despacho de 22 de Março expressamente declarou
que o Brazil mantem os seus compromissos e está sempre prompto a
entender-se com os seus aliados para a inteira execução dos
empenhos communs. Se, pois, o plenipotenciario brazileiro não
violou os tratados que celebrou com o Paraguay o pacto de alliança,
como reconheceu o ministro argentino, e se o governo imperial
offereceu todas as seguranças que exigio o Sr. Tejedor, com que
direito o governo argentino reclama hoje contra os tratados que
mereceram o seu assentimento?” (A NAÇÃO, 1872, p. 1)

A passagem se refere a justificativa de Rio Branco em defender o


posicionamento do Gabinete de 22 de Março do seu pai. O detalhe é
utilizar a argumentação do representante argentino contra o
próprio, que em outro momento reconheceu o legitimo direito do
Brasil negociar em separado com o Paraguai. Além disso, ele
argumenta pela manutenção do pacto da tríplice aliança, mesmo
que a negociação não tenha sido coletiva. Em verdade, o jornalista
coloca a culpa na Argentina do fracasso do acerto conjunto, pois
segundo ele:

282
“[...] a negociação comum mallogrou-se, não por culpa do Brazil que
portou-se com toda a moderação, mas por culpa da Republica
Argentina, que fez exigencias que não poderão ser aceitas pelo
Paraguay.” (A NAÇÃO, 1872, p. 1)

No acordo com o Paraguai, diz Rio Branco que em 1º de maio de


1872, data do tratado entre as potências sul-americanas e o Paraguai,
existem duas finalidades a serem perseguidas. Em primeiro lugar, a
revanche contra Solano Lopez, algo efetivamente ocorrido com a sua
morte ainda em 1870. E em segundo lugar, ajustar as pendências do
conflito com o Paraguai. Mais uma vez, o jornalista defende a
posição brasileira em negociar individualmente com o país
derrotado na Guerra, já que não é possível um trato coletivo em
virtude dos pedidos exagerados argentinos.

Após não ter menções a Questão Argentina, na edição do A Nação


de Sábado, número 4, aprece mais uma vez uma nota de Rio Branco
sobre o tema. Dessa vez, é uma crítica direta ao jornal concorrente,
A Reforma, no qual afirma o articulista:

“Como era de esperar, a resposta do governo imperial à nota do Sr.


Tejedor, não agradou á Reforma. Mais energia na resposta teria feito
do órgão democratico um advogado estremecido dos meios brandos
e conciliatorios, senão um partidario decidido da paz; a prudencia e
a louvavel conveniencia da bem pensada nota do governo, que não
esqueceu o pundonor e os brios do imperio, fizeram-n’a por tal
modo exigente, que a tornaram quase bellicosa. E’ sempre a mesma
política! A oposição systematica é o norte da Reforma ; a contradição
será sempre o resultado do seu procedimento. [...]” (A NAÇÃO,
1872, p. 1)

A defesa das ações do gabinete de Março são claras e nítidas nas


palavras de Rio Branco. No último parágrafo da nota, ele propõe
trazer uma série de documentos e artigos para comprovar que o
posicionamento governamental está correto, ao contrário das críticas
que foram tecidas pelo periódico rival, A Reforma.

283
A fim de concluir o ensaio, analisou-se o pensamento de política
externa de Rio Branco nas folhas do periódico A Nação no ano de
1872. Pelo espaço do texto, optou-se por uma análise metodológica
entre a fonte primária, com jornais do mês de julho do ano
escolhido, e a discussão bibliográfica acerca do personagem político.
Chega-se a ideia de que ele é responsável pelas colunas que
analisam a relação do Brasil com o exterior, em especial no caso da
Guerra do Paraguai e suas consequências com seus aliados como a
Argentina. As matérias escolhidas apontam para uma defesa clara
dos interesses do Gabinete de Março do Partido Conservador,
ocupado pelo pai do jornalista, Visconde do Rio Branco. Além
defesa da ação externa, nessas mesmas linhas são contestadas as
visões dos jornais concorrentes tais como A Reforma e o Diário do
Rio de Janeiro. A contestação ocorre, especialmente se não
concordarem com o posicionamento brasileiro no Prata. Nesse
momento, Rio Branco demonstra a sua profunda ligação as ideias e
projetos conservadoras tanto em âmbito externo quanto interno, o
que de certa forma dá margem para as interpretações da conexão
umbilical e familiar entre o periódico e a agremiação política.

Referências

Mestre em Ensino de História (Universidade Federal do Amapá –


UNIFAP). Graduado em História (Universidade Federal do Pará –
UFPA).

A Nação, Anno I, Rio de Janeiro, Quarta-Feira, 3 de julho de 1872. n.


1.

A Nação, Anno I, Rio de Janeiro, Quinta-Feira, 4 de julho de 1872. n.


2.

A Nação, Anno I, Rio de Janeiro, Sábado, 6 de julho de 1872, n. 4.

FERREIRA, M. A Nova “Velha História”: O Retorno da História


Política. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.

284
HENRICH, N. O Barão do rio Branco e a sua idéia de Brasil. In:
SEMINÁRIO NACIONAL SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1., 2009,
Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR, 2009. p. 1-14. Disponível em:
http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs-
ONLINE/GT6%20online/EixoIII/barao-rio-branco-
NathaliaHenrich.pdf. Acesso em: 29/04/2019.

MOREIRA, D. O pensamento político do Barão do Rio Branco e o


Império do Brasil. In: NUNES, F; GUIMARÃES, A. (Orgs.). I
Simpósio Online de História dos Ananins: ensino, pesquisa e
extensão. Ananindeua [PA]: Cordovil E-books, 2019. p. 160-166.

RÉMOND, R. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

RICUPERO, R. José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio


Branco): A fundação da política exterior da República. In:
PIMENTEL, J. (org.). Pensamento diplomático brasileiro:
formuladores e agentes da política externa (1750-1964) – Vol. II.
Brasília: FUNAG, 2013. p. 405-438. Disponível em:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product
_id=507. Acesso em: 29/04/2019.

SANTIAGO, E. A esfinge desvelada: O pensamento político do


Barão do Rio Branco. In: ENCONTRO ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Brasília. Anais...Brasília: ABCP, 2014.
p. 1-22. Disponível em:
https://cienciapolitica.org.br/system/files/documentos/eventos/2017/
03/esfinge-desvelada-pensamento-politico-barao-rio-branco-649.pdf.
Acesso: 29/04/2019.

285
JOÃO MATTOS: UM PADR E
CORONEL NO INTERIOR DAS MINAS
GERAIS (SÃO GONÇALO DO ABAETÉ,
1920-1968)
EDIVALDO RAFAEL DE SOUZA

Existem, no Brasil, diversos trabalhos que discorrem sobre o


coronelismo, visto que tal prática originada no Brasil Império
perpetuou até meados da segunda metade do século XX. Diante
disso, esse trabalho apresenta uma pesquisa sobre o Padre João de
Almeida Mattos, que durante muitos anos era afamado como um
coronel na cidade mineira de São Gonçalo do Abaeté. Para a
atualização desse estudo buscou-se fontes primárias e bibliográficas,
além do livro autobiográfico escrito pelo padre em questão.

João de Almeida Mattos nasceu em 13 de julho de 1883,na cidade de


Morada Nova de Minas. De berço aristocrático, após morar em
outras cidades, o padre, na década de 1920, mudou-se para o arraial
de São Gonçalo do Abaeté, que nessa época se chamava Fazenda
São Gonçalo. Nesse local ele passou a celebrar missas e batismos.
Entrementes, adquiriu, juntamente com seu irmão Messias Mattos,
uma grande porção de terras por aquelas bandas. Em relação a sua
chegada no lugarejo, o padre enaltece sua coragem e bravura.
Segundo Mattos,

“a Fazenda de São Gonçalo era refúgio, esconderijo dos criminosos


dos municípios vizinhos e distantes. Transferida a minha residência,
todos que por ali passavam ou tinham notícia da minha nova
residência, admiravam-se da minha disposição e coragem.
Realmente, além de ficar afastado de outros colegas, tinha-se que

286
conviver com um sem número de assassinos, criminosos e
malfeitores. Nenhum receio tinha eu” (MATTOS, 1964, p. 37).

Não demorou muito para que Almeida Mattos, juntamente com


moradores daquele lugarejo, construísse uma capela. Logo após, o
território foi anexado ao município de Tiros – MG, através da lei Nº
843, de 7 de setembro de 1923. A partir disso, o nome escolhido
foi São Gonçalo do Abaeté, dedicado ao santo protetor e também ao
rio que se encontrava próximo ao distrito. A pequena capela
rapidamente cedeu lugar a uma nova Igreja, que passa a se localizar
no centro da cidade. Além de missas, passaram a ser realizados
batismos, casamentos e primeiras eucaristias, dentre outras
cerimônias.

“Os alicerces desta Paróquia de N. Senhora da Conceição de S.


Gonçalo do Abaeté foram por mim levantados. Quando D. Silvério
ordenou a minha transferência, deixando a sede do distrito de
Canastrão, havia aqui apenas roceiros, beirarios, malfeitores, que se
distinguiam por seus crimes e carabinas” (MATTOS, 1964, p. 42).

Com o passar dos anos, a população do arraial foi aumentando. De


maneira que vários comércios foram abrindo suas portas por ali.
Como os fazendeiros e empregados da zona rural precisavam fazer
compras de bens de consumo, as populares vendas faziam a alegria
dos agricultores.

Na região também existiam outros afamados fazendeiros, que eram


pessoas que ostentavam suas riquezas através da quantidade de
alqueires de terras ou cabeças de gado. Um deles era o coronel Zeca
Lopes (José Lopes Cançado), que, de início, tornou-se amigo do
padre; posteriormente, porém, veio a ser seu inimigo político.

287
No Brasil, os coronéis eram representados principalmente na figura
de grandes proprietários de terras, no entanto, existiam algumas
exceções, como ressalta Janotti:

“[o] coronel nem sempre era um grande fazendeiro. Mas era um


chefe político, de reconhecido poder econômico, que conseguira
apoio e prestígio junto ao governo estadual, na razão direta de sua
competência em garantir eleições situacionistas ” (JANOTTI, 1981, p.
41).

O padre João de Almeida Mattoscontinuava a sua vida religiosa,


estando, paralelamente, envolvido em todas as esferas da
administração pública. Na primeira ata de discussão sobre a
emancipação do pequeno distrito, o professor e escritor Acrísio
Braga transcreve a pauta da reunião:

“Aos oito dias do mês de dezembro de mil novecentos e quarenta e


um (1.941), em casa particular desta Vila de São Gonçalo do Abaeté,
município de Tiros, com a presença do Rvmº Sr. Vigário local, Padre
João de Almeida Mattos, (...) realizou-se a primeira reunião
preparatória dos trabalhos que se processam com o fim de pleitear-
se, junto à preclara Administração do Estado a emancipação desse
distrito” (BRANDÃO, 1993, p. 101).

Ainda sobre a reunião:

“Abriu-se a sessão que foi presidida pelo Rvmº Padre João de


Almeida Mattos que, em breves palavras, expôs as causas das

288
dificuldades que encontravam o nosso progresso, pelo que
forçosoera promover, quanto antes, os meios necessários para que
São Gonçalo do Abaeté se constituísse município independente”
(BRANDÃO, 1993, p. 101).

De acordo com Barbosa (1995, p. 314),“[o] município foi


definitivamentecriado pelo decreto-lei nº 1058, de 31 de dezembro
de 1943, com os distritos de São Gonçalo do Abaeté, Canoeiros (ex-
Canoas) e parte do distrito de Canastrão, desmembrados do
município de Tiros. ”

A participação de forma decisiva na criação do novo município


renderia frutos ao padre, pois o primeiro prefeito nomeado da
cidade foi o seu irmão, Messias Mattos. Além disso, como líder
religioso e de grande prestígio na localidade que era, abrir-se-iam
caminhos para que o próprio padre coronel se lançasse como
candidato.

Em 1951, Padre João candidata-se a prefeito de São Gonçalo do


Abaeté. Essa disputa eleitoral pôs frente a frente o líder municipal
do PSD e da UDN. O pároco era candidato pelo PSD, já Waldemar
Lopes Cançado representava a UDN. Ressalta-se que essas disputas
já estavam ocorrendo mesmo antes da candidatura de ambos, pois,
algum tempo antes, o conhecido coronel Zeca Lopes, pai de
Waldemar Lopes Cançado, já havia se desentendido com o padre
por conta de rixas políticas, principalmente.

Na eleição supracitada ocorreram vários episódios: a urna eleitoral


do distrito de São Domingos foi destruída, enquanto a do distrito de
Canoeiros, roubada. Assim,

289
“sem a apuração das seções de Canoeiros e São Domingos, o Padre
João Mattos (PSD) conseguiu se eleger. Todavia, com grande ajuda
de forças policiais, foi possível realizar novas eleições nas
localidades que haviam tido problemas. Por meio disso, o prefeito
eleito foi Waldemar Lopes Cançado (UDN)” (SOUZA, 2018, p. 146).

Waldemar Lopes Cançado, apesar de eleito, não assumiu seu cargo,


sob justificativa de temer por sua vida, em virtude dos
acontecimentos. Posteriormente, continua-se a peleja e as rixas entre
padre Mattos e seus opositores, a ponto tal de na mídia noticiarem
que “em São Gonçalo do Abaeté verificou-se um conflito que
resultou cerrado tiroteio numa rua onde passava concorrida
procissão religiosa (...)” (O Globo. Rio de Janeiro: 8 jun. 1951, p.
2).João de Almeida Mattos escreve que

“[e]m abril de 1952 assumia a direção do município, como substituto


do prefeito, o então presidente da câmara, cidadão Salvador
Guilherme Raymundo, nosso grande e decidido companheiro de
lutas, grande comerciante e fazendeiro do município” (MATTOS,
1964, p. 75).

É interessante notar que após o candidato da UDN se recusar a


tomar posse, o novo prefeito que assume o cargo vago é amigo de
João Mattos.

Em 1964, o padre foi agraciado com otítulo de monsenhor. Poucos


anos depois, em 13 de fevereiro de 1968, João Mattos falece. Após a
sua morte, o padre foi homenageado tendo o seu nome colocado na
avenida principal de São Gonçalo do Abaeté. Além de outras

290
homenagens prestadas a seus familiares, há também uma escola na
referida avenida, com o nome de Martinho Mattos, pai do ex-
prefeito.

Muitas pessoas que adentram naquela pequena cidade do interior


de Minas não conhecem muito sobre a vida deJoão Mattos; este que,
que além depadre, coronel e fazendeiro, de acordo com o concluído
na presente pesquisa, pode ser também considerado como uma
figura marcante, excêntrica e peculiar naquela região em passados
tempos.

REFERÊNCIAS:

Possui graduação em História pelo Centro Universitário de Patos de


Minas (UNIPAM). É Especialista em Metodologia do Ensino de
Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT). Pós-
graduado em Biblioteconomia pela Faculdade Futura e graduando
em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). É
também professor regente de aulas de História na Secretaria
Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG). E-
mail: edivaldorafael007@gmail.com

BARBOSA, Waldemar Almeida. Dicionário histórico geográfico de


Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995, vol. 181.

BORGES, Fernando Antônio. João de Almeida Mattos: um coronel de


batina. Monografia de graduação em História, Centro Universitário
de Patos de Minas, 2005.

BRANDÃO, José da Silva.São Gonçalo do Abaeté e sua gente. Belo


Horizonte: AMG, 1993.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato


político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001.

291
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de
compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

MATTOS, João de Almeida. 60 anos de batina: sacerdote e cidadão.


São Gonçalo do Abaeté: [s. n.], 1964.

SOUZA, Edivaldo Rafael de Souza. De distrito a cidade: a


emancipação político-administrativa de São Gonçalo do Abaeté –
MG (1923- 1952). Patos de Minas: Pergaminho (9): 138-148,dez. 2018.

JORNAIS:

O Globo. Rio de Janeiro: 8 jun. 1951, p. 2.

ENTRETENIMENTO E/OU ANÁLISE


SOCIAL? UM SUCINTO ESTUDO
SOBRE ALGUMAS LETRAS DE
MÚSICAS INTERPRETADAS PELA
BANDA MAMONAS ASSASSINAS NA
DÉCADA DE 1990
EDIVALDO RAFAEL DE SOUZA

Através da vertente historiográfica que trabalha a música em


pesquisas históricas, esse texto reflete sobre as possibilidades da
utilização de algumas letras de músicas da banda Mamonas
Assassinas para analisar sobre questões sociais no Brasil do período
em que elas foram escritas. Para isso, será discorrido sobre orecorte
temporal da década de 1990, sobretudo os anos de 1995 e 1996.

292
A banda Mamonas Assassinas alcançou o auge nos anos de 1995 e
1996 com letras engraçadas que traziam misturas musicais, entre
elas o rock, o samba e o forró.Isso contribuiu para que o grupo
assinasse contrato com uma grande gravadora, a Emi-Odeon. A
música “jumento celestino” foi apresentada ao vice-presidente da
gravadora, a que Bueno descreve como

“um forrock também arrasador, sobre a vida e a sina tragicômica de


um baiano e seu jumento com toca-fitas, fez os muitos espiões
estrategicamente espalhados pela casa terem certeza de que o
executivo da multinacional, recém-chegado do Rio, estava no papo:
ninguém riria tanto se não estivesse mesmo gostando” (BUENO,
1996, p. 10).

Em consonância à musicalidade diversa apresentada pela banda,


ressalta-se que

“[o]s sons são objetos materiais especiais, produtos da ressonância e


vibração de corpos concretos na atmosfera e que assumem diversas
características. Trata-se de objetos reais, porém invisíveis e
impalpáveis, carregados de características subjetivas, e é assim que
proporcionam as mais variadas relações simbólicas entre eles e as
sociedades” (MORAES, 2000, p. 210).

O Mamonas cativou um grande público, que lotava os seus shows.


Não à toa, em menos de um ano o grupo vendeu milhares de discos.
Esses números se tornam ainda mais relevantes quando é ressaltado
que a banda lançou apenas um LP. Como destaca Cherri Filho (2004,
p. 13), “O fenômeno dos Mamonas Assassinas foi um estouro na
música brasileira. ”

293
O grupo Mamonas Assassinas era formado pelo baterista Sérgio
Reolli, o tecladista Júlio Cesar Barbosa (Júlio Rasec), o baixista
Samuel Reis de Oliveira, o guitarrista Alberto Hinoto (Bento) e o
vocalista Alecsander Alves (Dinho). A banda originária de
Guarulhos-SP, inicialmente, era intitulada “Utopia”.

Em 2 de março de 1996, o avião, que transportava a banda depois de


ter feito um show em Brasília,caiu na serra da Cantareira, no Estado
de São Paulo. Todos os integrantes e também o piloto e co-piloto da
aeronave faleceram no local. Após ser divulgada a notícia dessa
tragédia, o país entrou em choque. Fãs em todo território nacional
prestavam homenagens ao grupo. Entretanto, mesmo após a morte,
a banda continua até hoje tendo seus hits tocados em diversos locais
do mundo, e, ainda na atualidade, comumente recebem
homenagens.

As letras de músicas, bem como as demais formas de expressão do


grupo, carregam uma carga densa de particularidades. Dessa forma,
deve-se salientar que, como já foi descrito anteriormente, o
Mamonas tinha um estilo eclético e peculiar, tanto na forma de
cantar como nade se vestir. Nesse sentido, as suas letras também
contêm palavras desconexas, ambíguas, e que,em muitas situações,
apresentam uma linguagem informal.

As músicas selecionadas para esta comunicação são“chopis centis” e


“jumento celestino”. Todavia, quandose analisa todas as canções
gravadas pela banda,é recorrente deparar-se com outras letras que
também possam ser discutidas, como, por exemplo,“robocop
gay”, “cabeça de bagre II”, dentre outras.

294
A seguir, transcreve-se a letra de “chopis centis”:

Música: Chopis centis. Intérpretes: Banda Mamonas


AssassinasCompositores:Julio Cesar Barbosa(Julio Rasec) /
Alecsander Alves (Dinho)

Eu di um beijo nela
E chamei pra passear

A gente fomos no shopping


Pra mó di a gente lanchá

Comi uns bicho estranho

Com um tal de gergelim


Até que tava gotchoso
Mas eu prefiro aipim

Quantcha gente

E Quantcha alegria
A minha felicidade
É um crediário

Nas Casas Bahia

Quantcha gente
E Quantcha alegria
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia.

Arriba!

295
Joinha, Joinha, Chupetão, Vamo lá

Esse tal Chopi Centis


É muithco legalzinho
Pra levar as namorada
E dá uns rolezinho

Quando eu estou no trabalho


Não vejo a hora de descer dos andaime

Pra pegar um cinema


Ver Schwarzeneger
Tombém o Van Diame

Quantcha gente

Quantcha alegria
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia

Quantcha gente
Quantcha alegria
A minha felicidade
É um crediário
Nas Casas Bahia

Fonte: Site Letras. Disponível


em:<https://www.letras.mus.br/mamonas-assassinas/24144/. Acesso
em: 2 mai. 2019.

Na letra da música “chopis centis”, identifica-se algumas tendências


seguidas pelos brasileiros durante o início da década de 1990. Nesse
ínterim, ecoava ainda o sentimento de união advindo
principalmente das camadas jovens da sociedade, pois havia poucos

296
anos que o Brasil conquistara a sua redemocratização após o regime
militar (1964-1985). Conquista fruto, primordialmente, das
manifestações da sociedade civil. Além disso, o presidente eleito
havia sofrido um processo de impeachment. Ou seja, a sociedade
estava envolvida com fatores políticos, sociais e econômicos daquela
época.

A canção em focofaz alusãoa um jovem que trabalhava na


construção civil durante o dia, e durante a noite vai ao shopping
center passearpara fazer o chamado “rolezinho”, se alimentando de
sanduíches que continham ingredientes desconhecidos, como o “tal
de gergelim”, grão originário do Oriente Médio. Assim, o aipim,
tipicamente brasileiro, é lembrado na letra da canção, sendo, na
perspectiva do rapaz, um alimento mais saboroso.

A mudança de comportamento da sociedade brasileira encontra-se


também em outros trechos da referida música. Um exemplo é a ida
ao cinema para ver filmes estadunidenses, com presença dos
atores Arnold SchwarzeneggereJean-Claude Van Damme, filmes
esses que ficaram muito populares no Brasil à época.

Paralelamente, a oferta de financiamentos de bens de consumo


estava também alcançando seu espaço no mercado, quando é
colocado que a felicidade estava em um crediário de uma loja
conhecida em todo cenário nacional. Dessa forma, ressalta-se que o
poder de compra das pessoas estava se estabilizado, pois, nesse
mesmo período, o Brasil estava colocando em prática o plano real,
tendo como precursor o então Presidente da República, Itamar
Franco, e continuado por seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso.
Diante disso, destaca-se que

297
“[a]s transformações que a música sofre através do tempo e espaço,
não ocorrem de forma aleatória, mas estão intimamente ligadas às
mais diversas questões culturais, geográficas, históricas e
principalmente, à mentalidade das pessoas que a produzem,
executam, ouvem e divulgam, sendo, portanto, uma interessante
ferramenta para melhor compreensão de determinadas demandas
de natureza histórica, sociológica, filosófica, etc ” (SOARES, 2014, p.
1).

Dentre as músicas da Banda Mamonas Assassinas que podem ser


analisadas em relação à questão social brasileira desse período,
encontra-se também a canção “jumento celestino”, transcrita a
seguir:

Música: Jumento celestino. Intérpretes: Banda Mamonas


Assassinas. Compositores: Alecsander Alves (Dinho)/ Alberto
Hinoto (Bento).

Tava ruim lá na Bahia, profissão de bóia-fria


Trabalhando noite e dia, num era isso que eu queria

Eu vim-me embora pra "Sum Paulo"

Eu vim no lombo dum jumento com pouco conhecimento

Enfrentando chuva e vento e dando uns peido fedorento


Até minha bunda fez um calo

Chegando na capital, uns puta predião legal

As mina pagando um pau, mas meu jumento tava mal


Precisando reformar

298
Fiz a pintura, importei quatro ferradura
Troquei até dentadura e pra completar a belezura
Eu instalei um Road-Star

Descendo com o jumento na mó vula

Ultrapassei farol vermelho e dei de frente com uma mula


Saí avuando, parecia um foguete
Só não estourei meu côco pois tava de capacete

Me alevantei, o dono da mula gritando

O povo em volta tudo olhando e ninguém pra me socorrer


Fugi mancando e a multidão se amontoando

Em coro tudo gritando "Baiano, 'cê vai morreêeê

Depois desse sofrimento, a maior desilusão

Pra aumentar o meu lamento, foi-se embora meu jumento


E me deixou com as prestação
E hoje eu tô arrependido de ter feito imigração
Volto pra casa fudido, com um monte de apelido
O mais bonito é cabeção

Fonte:SiteLetras.Disponívelem:

https://www.letras.com.br/mamonas-assassinas/jumento-celestino.
Acesso em: 2 mai. 2019.

O início da música “jumento celestino”fala sobre a figura que


representa um trabalhador rural, que apesar de todo seu esforço não
conseguia ter uma situação financeira razoável. Assim, a única
alternativa seria ir para a cidade grande. Segundo Silva (2008, p. 37),
“[a] maioria dos migrantes inter-regionais que chegou à Região

299
Metropolitana de São Paulo durante a década de 1990 era oriunda
do Nordeste”. Em relação ao enunciado, Romero expõe que

“[a] migração do Nordeste para São Paulo ocorre desde o início do


século XX, mas foidurante a década de trinta que esse fluxo se
avolumou, incentivado pelo governo Vargas, que limitou em um
terço a entrada de trabalhadores estrangeiros por empresa, e pelo
governo do estado, que estimulou o movimento de mão de obra
para as regiões produtoras de café e algodão no oeste de São Paulo e
norte do Paraná” (ROMERO, 2014, p. 6).

Posteriormente, a letra da música ressalta a vinda do interiorano


para a grande metrópole brasileira. Em primeiro momento é
descreve-se os grandes prédios da metrópole, já em segundo
momento fica bem claro a fala de alguém que estranha o
comportamento das pessoas da cidade grande. Nesse trecho é
ressaltado que mesmo após um acidente ninguém socorria o ferido,
ou seja, naquele local as pessoas não estavam muito preocupadas
umas com as outras, pois era apenas mais um estranho em meio à
multidão. Ainda sobre o tema, é importante ressaltar que

“a migração é encarada como o resultado de um cálculo


microeconômico entre as perspectivas oferecidas na sociedade de
destino diante das condições prevalecentes na sociedade de origem.
Neste balanço microeconômico, o trabalho, as melhores
oportunidades de emprego, os maiores rendimentos se
configurariam em fatores de atração; pobreza falta de oportunidade
de trabalho ou meios para produção (terra, por exemplo)
constituiria-se em fatores de expulsão” (SILVA, 2008, p. 38).

300
Continuando a compreensão da canção, pode-se identificar que na
música o interiorano estava descontente com a grande cidade,
porque não era nada daquilo que se imaginava. Inclusive,
se arrepende de ter deixado sua terra natal. Aqui abre-se discussões
sobre essa prática, a de deixar São Paulo e voltar para o local de
nascimento, de criação do imigrante; isso ocorre de forma comum
tanto no período em que a música foi gravada quanto na atualidade.

Conclui-se que através de estudos sobre canções da banda Mamonas


Assassinas, pode-se compreender sobre diferentes temas históricos e
sociais do Brasil durante o período supracitado. Destaca-se que
letras de músicas como essas podem ser trabalhadas nas escolas em
aulas de história e sociologia, por exemplo, abrangendo, assim, não
somente o conhecimento em relação adeterminadas bandas e o
conteúdo de suas músicas, mas também a análise crítica tendo em
vista o contexto de produção de tais expressões artísticas.

REFERÊNCIAS:

Possui graduação em História pelo Centro Universitário de Patos de


Minas (UNIPAM). É Especialista em Metodologia do Ensino de
Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT). Pós-
graduado em Biblioteconomia pela Faculdade Futura e graduando
em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). É
também professor regente de aulas de História na Secretaria
Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG). E-
mail: edivaldorafael007@gmail.com

BUENO, E. Mamonas assassinas: blá, blá, blá. São Paulo: LePM, 1996.

Mamonas assassinas: o show deve continuar...

301
CHÉRRI FILHO, E. Mamonas assassinas: o show deve continuar. São
Paulo: Alaúde, 2004.

MORAES, J. G. V. História e música: canção popular e conhecimento.


Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, nº 39, p. 203-221.
2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbh/v20n39/2987.pdf>. Acesso em: 2 mai.
2019.

ROMERO, M. Nordestinos em São Paulo nos anos 1950: Imprensa


popular, ciência e exclusão social. Anais eletrônicos do XXII
Encontro Estadual de História da ANPUH-SP. Santos, 2014.
Disponível
em:<http://www.encontro2014.sp.anpuh.org/resources/anais/29/140
6912950_ARQUIVO_ANPUHNordestinosemSaoPaulonosanos1950.
pdf>. Acesso em: 2 mai. 2019.

SILVA, U. V. Velhos Caminhos, Novos Destinos: Migrante nordestino


na Região Metropolitana de São Paulo.178 p. Dissertação de
Mestrado em Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), São
Paulo, 2008.

SOARES, N. S. A Pesquisa em História e Música. In: Anais do XIX


Encontro Regional de História (Anpuh – MG), Juiz de fora – 28 a 31
de julho de 2014. Disponível
em:<http://www.encontro2014.mg.anpuh.org/resources/anais/34/140
0552409_ARQUIVO_APesquisaemHistoriaeMusica.pdf>. Acesso
em: 2 mai. 2019.

Site Ecadnet. Disponível


em:<https://www.ecadnet.org.br/Client/app/#/Consulta/Obra/1?valo
r=jumento%20celestino>. Acesso em: 2 mai. 2019.

Site Ecadnet. Disponível


em:<https://www.ecadnet.org.br/Client/app/#/Consulta/Obra/1?valo
r=chopis%20centis>. Acesso em: 2 mai. 2019.

302
AS SÁTIRAS DE TOMÁS ANTÔNIO
GONZAGA: FERRAMENTAS PARA
HISTÓRIA E LITERATUR A
LEONARDO PAIVA MONTE
LILIAN BENTO

A literatura barroca e a literatura arcádica apresentam vinculação


com os elementos da cultura, destacando os seres humanos como
um todo: sua história, suas crenças, seus usos e costumes, suas
“visões de mundo”, suas linguagens, etc. No plano simbólico, a
literatura colonial ressalta o elemento nativo, com o enfoque de
áreas geográficas com seus habitantes, hoje vistas como o esteio da
cultura da memória, cujas práticas “são culturalmente determinadas
por redes discursivas que envolvem fatores de diferentes ordens –
míticos, políticos [e outros]” (FERREIRA; ORRICO, 2002, p. 136).

Desse modo, objetivamos estabelecer um diálogo entre a Literatura e


a História, utilizando as sátiras presentes em Cartas Chilenas, de
Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de averiguar como este poeta
documenta a mentalidade da época e como explicita os elementos
constituintes de um povo ainda em formação, na explicitação de
“visões de mundo”, ideologias, identidades, entre outras.

No que se refere às sátiras presentes no texto literário, que serão os


elementos observados neste artigo, podemos afirmar que

“A sátira supõe uma consciência alerta, ora saudosista, ora


revolucionária, e que não se compadece com as mazelas do presente.
Mas como o seu ímpeto vem da agressividade, que é instinto de
morte, o teor positivo, ‘tético’, dessa consciência, é, em geral, um
termo de comparação difícil de precisar, porque implícito, remoto,
embora ativo. Na sátira acham-se ocultos, às vezes ao próprio poeta,
o sentido construtivo, a aliança com as forças vitais, em suma, a boa

303
positividade, que nela se confunde com a negatividade” (BOSI, 1993,
p. 163).

A Literatura na História

Tendo em vista que, desde que a “Escola dos Annales” promoveu


uma renovação das técnicas e dos métodos da História, houve
mudanças nos conceitos de fonte histórica, fazendo com que se
ampliasse a noção de documento. Posto isto, a História deve ser feita
“com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem,
serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a
atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem” (FEBVRE, 1949
apud KHOURY et al, 1989, p. 15).

Com isso, a Literatura se tornou um vasto campo de pesquisa para o


conhecimento histórico, pois “a preservação da memória coletiva
por um grupo, embora pequeno, é uma verdadeira tabua de
salvação para a comunidade inteira” (PAZ, 1993, p. 80). Além disso,
entre as várias funções que a Literatura exerce, destacam-se a da
expansão da cultura e a de proporcionar um maior conhecimento de
mundo, contribuindo com aqueles que o analisam criticamente.

A criticidade do investigador ao analisar uma obra literária deve


basear-se no conhecimento de que:

“Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou


fonte, mas que há para ler nela é a representação que ela comporta.
Ou seja, a leitura da literatura pela história não se faz de maneira
literal, e o que nela se resgata é a representação do mundo que
comporta a forma narrativa” (PESAVENTO, 1998, p. 22).

A Literatura está em diálogo constante com a História e esta fornece


matéria para o desenvolvimento de temas tratados pela Literatura.
Salientamos o fato de que a Escola dos Annales tornou mais
abrangentes as possibilidades de pesquisa, uma vez que a Literatura
é um campo frutífero para a pesquisa histórica, e que também é
possível estabelecer contato entre outras disciplinas, para que os

304
textos possam ser abordados de diferentes formas e assim
proporcionar maior aprofundamento e aproveitamento para os
leitores que os avaliarem criticamente com um olhar
interdisciplinar.

Literatura colonial

Antônio Candido (1985, p. 88) referindo-se à literatura brasileira


colonial lembra que “não havia tradição orgânica própria, nem
densidade espiritual do meio” e, posteriormente, lembra que
estudar a literatura brasileira é fazer um estudo de literatura
comparada, principalmente, em se tratando de autores daquela
época (CANDIDO, 1993).

Não descartamos o fato de a Literatura Colonial, do Brasil, é


detentora de “visões de mundo” e ideologias, que trazem à tona
resquícios do imaginário individual e coletivo, permitindo aos
leitores fazer uma viagem de “turismo literário” ao encontro do
Brasil Colonial, nos colocando em contato com nossas raízes
nacionais, permitindo-nos redescobrir nossas identidades e discutir
as diversidades culturais.

Tomás Antônio Gonzaga pode ser compreendido como o mestre


que, sendo português, submete ao racionalismo próprio da época
uma visão de mundo que se manifesta sobreposta a interesses
individuais, enquanto percepção de mundo circundante. Daí o seu
posicionamento crítico nas Cartas Chilenas, o que visto com um
olhar contemporâneo nos faz pensar que “para se discutir cidadania
[...] penetra-se nas filigranas das relações de poder e as respostas
obtidas podem questionar ou repor significações hegemônicas que
as sustentam” (SAWAIA, 1999, p. 45), o que é comum, também,
acontecer no plano simbólico, o que foi desenvolvido na percepção
do mundo real por aqueles poetas que captaram o desenvolvimento
do processo de exclusão em relação aos nativos.

Gonzaga, patrono da cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras,


nasceu em Portugal, em 1744, e faleceu na Ilha de Moçambique, em

305
1810. Durante a infância, passou alguns anos em Recife e na Bahia
onde o pai servira na magistratura e, adolescente, regressou a
Portugal com o intuito de completar os estudos, matriculando-se na
Universidade de Coimbra na qual concluiu o curso de Direito.

A permanência em Vila Rica, Minas Gerais, se estendeu até 1789,


quando foi envolvido na Inconfidência Mineira. Em maio do mesmo
ano, acusado de cooperação na conspiração, é preso e enviado ao
Rio de Janeiro.

Nessa ocasião, Gonzaga estava noivo de Maria Dorotéia Joaquina de


Seixas, a quem dedicava poesias que comporiam parte do livro
intitulado "Marília de Dirceu" cuja primeira parte foi lançada em
Lisboa, pela Impressão Régia, no ano de 1792. Esta obra não fará
parte de nosso estudo.

As Cartas Chilenas

Gonzaga tivera desavenças com as autoridades locais, o que


motivou a escritura das Cartas Chilenas, em 1789, que ocorreram
anônimas, sendo posteriormente restituída à paternidade a
Gonzaga, antes atribuída a Cláudio Manuel da Costa.

“Nesse poema herói-cômico em decassílabos brancos, subdivididos


em treze cartas e dirigido contra as prevaricações coloquiais do
governador Luís da Cunha Meneses (o Fanfarrão Minésio), residiria
à origem primeira das desventuras políticas de Gonzaga”
(STEGAGNO-PICCHIO,1997, p. 158).

O poeta atraiu inimigos ao satirizá-los e colocar em questionamento


seus procedimentos, fazendo vir à tona as perspectivas: econômica,
política, mental, e mais a falta de conhecimento sobre as reais
condições dos homens que estavam sendo espoliados. Nas Cartas
Chilenas, Gonzaga defende um plano político em que “a história se
mostraria como um processo de súbitos avanços, longos períodos de
regressão e perdas definitivas” (KOTHE, 1997 p. 254).

306
“As Cartas chilenas, contemporâneas das reuniões que preparavam
o levante dos magnatas de Minas Gerais, retratam o confronto de
poderes entre o ouvidor-geral, representante de um Judiciário
emasculado pelo centralismo autoritário do absolutismo
monárquico, e o governador da capitania, símbolo tipificador de um
Executivo ditatorial que se imiscui em todas as esferas” (PEREIRA et
al, 1996, p. 772).

As desavenças com as autoridades locais fizeram que surgissem as


sátiras em discussão. No trecho que se seguirá, Gonzaga, ao
descrever seu personagem – o Fanfarrão Minésio, faz uma descrição
sobre a fisionomia do nomeado então governador Cunha Meneses.

“Tem pesado semblante, a cor é baça,


O corpo de estatura um tanto esbelta,
feições compridas e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta, [...]”
(GONZAGA, 1957, p.35).

Este retrato físico mostra a grande habilidade na arte da caricatura


de Gonzaga. Durante a descrição, que se encontra na Carta 1ª, os
adjetivos só aparecem quando necessários, pois o poeta não se vale
deles para o traço caricatural: este surge da sucessão encadeada dos
detalhes. Os versos têm um movimento e um ritmo para criar uma
precisão no encadeamento dos detalhes.

Eis por que o solo político foi propício, no plano histórico-social, a


que o povo se insurgisse contra a metrópole e o próprio Gonzaga
sofreu consequências no plano real das atitudes vivenciadas, no
plano simbólico, principalmente no discurso satírico das Cartas
Chilenas, em que colocava em exposição os desmandos do poder
constituído. Ao denunciar injustiças e violências que o Fanfarrão
executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio, como uma
de suas primeiras medidas.

“Pretende Doroteu, o nosso chefe


Erguer uma cadeia majestosa,

307
que possa escurecer a velha fama
da torre de Babel e mais os grandes, [...]

Desiste louco chefe dessa empresa:


Um soberbo edifício, levantado
sobre os ossos de inocentes, construído [...]

E sabes Doroteu, que edifica [...]


Pois ouve, que eu te digo: um pobre chefe,
que na corte habitou em umas casas
em que já nem se abriam janelas”
(GONZAGA, 1957, p. 38-39).

No trecho abaixo, Gonzaga colocou em xeque a figura do chefe -


Fanfarrão Minésio / Cunha Meneses - como pessoa não digna do
posto que ocupava, pois, suas posses, no Reino, eram pequenas, por
isso o interesse que o levou a assumir o cargo de governador.
Meneses pretendia não só captar os impostos da coroa, mas buscar o
próprio enriquecimento, não se importando de impor ao povo
medidas perversas e de apreendê-los quando eles faltassem com o
pagamento, infligindo aos colonos trabalhos forçados, bem como a
figura do negro sendo aprisionado nos quilombos.

“Para haver de suprir o nosso chefe


das obras mediadas as despesas,
consome do senado rendimentos
e passa a maltratar ao triste povo
com estas nunca usadas violências:
quer cópia de forçados, que trabalhem
sem outro algum jornal mais que o sustento,
e manda a um bom cabo que lhe traga,
a quanto quilombolas se apanharem [...]”
(GONZAGA, 1957, p.39).

Tomás Antônio Gonzaga descreve, sobretudo em sua obra, o


sofrimento do povo, durante a administração de Cunha Meneses
(1783-1788), na grande perspectiva histórica para a cultura de tal

308
período, reforçou o assombro ante à visualização que o autor realiza
sobre as condições de vida que a maior parte da população de Vila
Rica encontrava-se em tal período. A província das Minas Gerais,
especialmente Vila Rica, foi responsável, durante o ciclo do ouro,
por sustentar muitos gastos do Reino ao ponto de naquele período
posterior se ver quase esgotado. O povo agora estava entregue nas
mãos de um tirano, que blasfemava contra as próprias leis da Coroa.

O projeto de sociedade trabalhado por Gonzaga, era de cunho


estabelecido sobre as mudanças do período, especificamente o
cultural e social. O cidadão, portanto, teria que ser mais bem
tratado, dado que as ironias poderiam acarretar grandes
problemáticas, como no seguinte trecho:

“Aqui os europeus se divertiam


em andarem a caça dos gentios,
como a caça as feras, pelos matos.
Havia tal que dava aos seus cachorros
por diário sustento, humana carne
querendo desculpar tão grave culpa
com dizer que os gentios, bem que tinham
a nossa similhança enquanto aos corpos,
não eram como nós enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braço
e puna os descendentes de uns tiranos
que, sem razão alguma e por capricho,
espalharam na terra tanto sangue”
(GONZAGA, 1957, Carta 10ª, versos 307 a 319)

O poeta foi nos livros de História declarado como inconfidente, por


isso teria sido feito prisioneiro (MAXWELL, 2001). Quando foi
sufocada a revolta de Vila Rica, contra as espoliações
governamentais, foi degradado para Moçambique. Todavia, se tem
como certo que a grande especificidade de sua vida ficou marcada
por suas obras, o fazendo se encaixar como um dos mais ilustres
árcades e criador de uma obra testemunho, pois deixou satirizado
com as Cartas Chilenas os dramas de um povo, decorrente dos altos

309
impostos cobrados por um governador tirano em benefícios de uma
coroa omissa.

Os trechos estudados se manifestam como documentos de uma


época e mais que um plano literário faz sobressair um teor histórico.
E assim nos foi possível ver a poética colonial da fase barroca e
arcádica como um documento de época.

A partir deste tipo de análise, podemos estabelecer um diálogo da


Literatura com a História, porque esta favorece o seu
desenvolvimento em temas tratados pela Literatura. Por isto
achamos por bem traçar uma perspectiva que possibilitasse o
trânsito deste entendimento da Literatura Colonial brasileira, com as
marcas históricas que serviram de sustentáculo para sua efetivação.

As Cartas Chilenas se manifestam como documentos de uma época e


juntamente com um plano literário faz sobressair, também, um teor
histórico e por entender que a partir da análise de textos literários
poderemos estabelecer um diálogo desta com a História. São sem
dúvida sátiras, pois de seus embates com o presente em que são
produzidas tiram uma “crítica lúcida ou desesperada de toda
existência” (BOSI, 1993, p. 163). Contudo, elas também são
representações documentais, portanto um patrimônio para a
sociedade brasileira. Devem ser sumariamente discutidas como uma
rede de problemáticas que afligiam o brasileiro daquela época e
como a sua cultura era estabelecida, ficando, também, esclarecido
que Gonzaga, como arcádico, exaltava o povo e a natureza,
buscando, sobretudo, alertar a população de que sofriam
desmandos e que não necessitavam aceitar imposições de despóticos
e corrupções provocadas por seus governantes. As Cartas
Chilenas representam, em forma de poesia, o contexto cultural de
uma sociedade que se estruturava em pleno século XVIII e por isso
demonstra ser uma fonte expressiva para estudos culturais.

310
Referências

Leonardo Paiva Monte é licenciado em História (UEPB) e mestre em


História Social (USP).

Lilian Bento é licenciada em História (UEPB), mestra e doutoranda


em Ciências da Educação (UNIDA).

BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1993.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 3. ed. São Paulo: Companhia


Editora Nacional, 1985.

CANDIDO, A. Recortes. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

KHOURY, Y. et al. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 1989.

FERREIRA, L. M. A.; ORRICO, E. G. D. (orgs). Linguagem identidade e


memória social: novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro:
PP&A, 2002.

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312
O PROTAGONISMO DA “R AINHA DOS
MIL DIAS”: ANA BOLEN A (1501-
1536) E AS NOVAS NAR RATIVAS NA
HISTÓRIA E LITERATUR A JUVENIL
MARCOS DE ARAÚJO OLIVEIRA

Introdução

Ana Bolena (1501-1536) é conhecida como uma das rainhas mais


importantes da Inglaterra, tendo a sua vida e morte inspirado
diversas produções historiográficas e também obras literárias. A
“rainha dos Mil dias” torna-se uma figura histórica relevante nos
discursos feministas e a sua trajetória é levada também para obras
infanto juvenis como o livro Ana Bolena, escrito em 2017 pela
amazonense Bruna Chíxaro.

A obra apresenta a vida e morte da personagem Ana Bolena,


criando uma narrativa direcionada ao público jovem, o que
promove o interesse desses leitores a respeito da história desta
figura feminina, além de estimular a valorização das contribuições
históricas de Ana Bolena promovendo um diálogo entre história e
literatura.

A bela e trágica história da “Rainha dos Mil Dias”

Ana Bolena (1501-1536) era a filha caçula de Thomas Bolena e


Elizabeth Howard, irmã de George e Mary Bolena. Em 1515, tornou-
se dama de companhia da rainha da França, Cláudia de Valois,
esposa do rei Francisco I. Segundo Tapioca Neto (2013) todo o
tempo que aquela dama ficara fora de casa, dotaram-na de um
profundo conhecimento artístico e cultural, que, por sua vez, eram
incomuns na maioria de suas conterrâneas.

313
Em 1525, já na Inglaterra, Ana passou a atuar como dama de
companhia da rainha Catarina de Aragão (1485-1536) e em 1526, o
rei Henrique VIII, apaixonou-se por ela. O rei desejava um herdeiro
homem – já que do seu casamento com Catarina de Aragão, apenas
a princesa Mary Tudor (1516-1518) crescera saudável, Ana que era
admiradora de ideias reformadoras conseguiu fazer com que o rei
iniciasse um processo de anulação do seu casamento com Catarina
perante a Igreja Católica.

“Entretanto, a Inglaterra era bem mais tolerante com o


protestantismo (se comparada à Espanha ou França), de modo que
nela existiam muitos clubes secretos em que os membros se reuniam
para discutir a ideologia de Lutero e Calvino. Foi então nesse espaço
que Ana Bolena, já de volta do exílio no castelo de Hever e nas
graças do rei, pode melhor instruí-lo a como proceder em assuntos
referentes ao divórcio deste com Catarina de Aragão.[...] e Ana
Bolena, com sua promessa de um filho varão, se apresentou para o
rei como um meio de garantir a sucessão masculina do trono”
(TAPIOCA NETO, 2013, p. 26-27).

Entretanto, o Papa Clemente VII negara todos os pedidos de


anulação do casamento real. Henrique extremamente envolvido por
Ana não fazia questão de esconder sua relação com a jovem, o que
despertou muitos boatos diante da ascensão daquela jovem que
conquistou o coração do monarca. Segundo Fraser (2014, p. 194):

“Para Ana Bolena, 1528, foi um ano em que ela surgiu das sombras
da equipe da rainha, o objeto secreto da paixão do rei, e demonstrou
que era muita mais do que uma figura graciosa, um par de olhos
negros – e capaz de falar francês. Tal como a rainha Catarina, Ana
Bolena tinha inesperados mistérios e forças; inesperados pelo menos
para o mundo pelos homens onde ela vivia. Em primeiro lugar, ela
possuía um autêntico interesse por religião, pelo tipo de religião
reformadora que estava se tornando rapidamente moda no
continente, depois de Lutero, como uma reação as óbvias falhas e
corrupções do clero”.

314
Ana Bolena era incomum dentro dos padrões da época, sua beleza
era diferente: cabelos negros, olhos penetrantes, um pescoço fino e
elegante e uma pele da cor de oliva, o que fugia da beleza loira e de
olhos azuis na Inglaterra do século XVI, além disso ela apresentava
uma personalidade quase que francesa e tinha um interesse nada
convencional em livreiros ou folhetos anticlericais – alguns
apontados até como heréticos. Os anos foram passando sem uma
resposta positiva ao divórcio de Henrique VIII, até que em 1532
houve uma surpresa: Ana descobriu estar grávida. De acordo com
Tapioca Neto (2013, p. 28):

“Em 1533, depois de sete anos de espera, o rei e Ana Bolena


(nobilitada pelo mesmo como o título de Marquês de Pembroke), se
casam, com ela já estando na ocasião grávida. O povo, entretanto,
simpatizava nada com aquela nova rainha, e em contrapartida
prestava louvores à Catarina, que fora banida da corte, continuando
a negar que seu casamento com Henrique era inválido. Em julho
daquele ano, quando Ana já estava em estado avançado de gestação,
chegara de Roma uma bula na qual o papa declarava quaisquer
filhos provenientes da nova união do rei, bastardos, e o
excomungava, a menos que retornasse para Catarina de Aragão e
repudiasse a ‘concubina’“.

No dia 07 de setembro de 1533, Ana Bolena dera à luz não ao filho


homem tão sonhado pelo rei, mas sim a uma menina nomeada
Elizabeth. Henrique já em crise com Roma, desprezou a Igreja
Católica, e em novembro de 1534 o Parlamento aprovou o “Ato de
Supremacia”, transformando Henrique VIII no chefe da Igreja na
Inglaterra e tornando o Anglicanismo a nova doutrina oficial do
reino inglês.

Ana Bolena continuou tentando gerar o herdeiro homem para


Henrique VIII, entretanto teve duas gravidezes que culminaram em
abortos. A mulher perspicaz e ambiciosa que em 1534 adotara como
lema de Rainha “The most happy” (“A mais Feliz”), passava a
enfrentar em 1536 a ira do marido que já planejava colocar outra em
seu lugar.

315
“[,,,] sem ter conseguido dar à luz ao menino almejado pelo rei,
Anne tornou-se vulnerável as intrigas de seus opositores. Assim, foi
acusada de tê-lo seduzido através de bruxaria, de tramar a morte do
rei, da princesa Mary e do Duque de Richmond, de ter cometido
incesto com seu irmão George Boleyn, e adultério com outros cinco
homens: Henry Norris, Francis Weston, Willian Brereton, Marc
Smeaton (O único que não fazia parte da nobreza e que sob tortura,
confessou as acusações recebidas) e Sir. Thomas Wyatt (o poeta, o
único que não foi levado a julgamento e que recebeu a liberdade).
Julgada e condenada a morte pelas acusações recebidas, Anne
Boleyn foi decapitada na Torre de Londres no dia 19 de maio de
1536. [...] Com aquela terrível condenação, a memória de Anne
Boleyn foi irremissivelmente manchada com as máculas do incesto,
bruxaria e adultério” (ANDRADE, 2013, p. 92-93).

Após reinar por cerca de mil dias como rainha consorte, Ana Bolena
foi condenada à morte e decapitada em 19 de maio de 1536 na Torre
de Londres. Além de ter sua memória manchada durante muito
tempo por conta das acusações que levaram a sua condenação e
morte – que leva novas perspectivas historiográficas, como a do
campo da História das Mulheres a combater essa demonização –
Ana Bolena ficou marcada no imaginário universal como a “Rainha
de Maio”, já que o mesmo mês que foi o da sua gloriosa coroação,
também foi o mês em que seria silenciada para sempre com a morte.

Ana Bolena (2017): uma rainha “Girl Power” da literatura Juvenil

Nota-se que através das diversas conquistas do movimento


feminista entre os anos 60 e 70 e da expansão do campo de estudo
da História das Mulheres na década de 80, as figuras históricas
femininas vem ganhando notoriedade nas produções acadêmicas,
no cinema e até na literatura infanto juvenil.

O livro Ana Bolena foi publicado em 2017 pela editora Valer no Brasil
e contém cerca de 88 páginas, além de belas ilustrações de Irena
Freitas. A obra foi escrita pela bacharel em Direito, Bruna Chíxaro,
que apaixonada pela história dessa rainha escreveu o livro como
forma de levar a história de Ana para outros jovens. De acordo com

316
suas próprias interpretações, Chíxaro cria sua narrativa e defende
“Afinal de contas, quem nunca quis dar sua versão dos fatos”
(CHÍXARO, 2017, p. 8)

O livro através de uma narrativa leve vai apresentando ao leitor um


pouco da Inglaterra do século XVI: os principais costumes, a cultura
e a moda, a vida na corte e o papel dos homens e das mulheres,
sempre destacando que Ana Bolena foi uma mulher diferente de
qualquer padrão da sua época, seja como dama de companhia de
Catarina de Aragão ou como rainha consorte. Segundo Chíxaro
(2017, p. 43)

“Ela flertava despreocupadamente com os jovens rapazes, divertia-


se em grandes bailes, jogava cartas e desfilava sua coleção de
vestidos estilosos. Ela tinha se tornado a cortesã perfeita e o centro
das atenções. Ficou conhecida como uma das garotas mais elegantes
da corte. Além disso, sua beleza diferente destacava-se no meio das
tantas loiras de olhos azuis”.

Bruna Chíxaro enfatiza a personalidade de Ana como a de uma


mulher ambiciosa, sincera, forte e inteligente, opondo-se à muitos
discursos depreciativos que sempre enaltecem Henrique VIII e
colocam Ana em segundo plano.

Observamos assim que a narrativa da autora ao dar novas


ressignificações a Ana Bolena, apresentando-a a um público mais
jovem, acaba elevando o status desta personagem/figura histórica, a
de uma verdadeira “Girl Power” (em tradução, “Garota Poderosa”),
termo muito usado em discursos feministas direcionado a jovens
garotas, como forma de valorizar e incentivar meninas a mostrarem
suas potencialidades e por prezar a igualdade de gênero.

“O relacionamento de Ana e Henrique, além de tudo, tinha sido um


encontro de mentes. Ele encontrou nela uma companheira para
discutir sobre assuntos, como política e teologia. Além disso,
divertiam-se muito juntos. Era raro encontrar uma mulher
inteligente assim, e creio que isso em parte, fez com que ele se
encantasse por ela” (CHÌXARO,2017, p. 75).

317
Seria anacrônico apontar Ana Bolena como uma figura feminista no
século XVI, entretanto a sua personalidade e a sua trajetória servem
para a elaboração de novos discursos para o campo da história das
mulheres e para a própria literatura. Ao lermos uma obra juvenil
tendo esta figura histórica como protagonista, fica evidente que a
criação da narrativa apesar de retratar fatos históricos do passado,
está intrínseca as próprias aspirações do presente.

Isto não necessariamente quer dizer que o livro Ana Bolena seja uma
obra feminista, porém ao evidenciar o papel feminino e ao
apresentar uma nova narrativa da vida de Ana Bolena para um
público mais juvenil - que está tendo sua personalidade formada e
que está despertando o interesse pelo conhecimento histórico - a
obra revela-se como um produto cultural do século XXI, oriunda do
reflexo desta onda de empoderamento feminino.

“Mas, a partir da década de 1960, e, sobretudo nas décadas de 1970 e


1980, o pensamento político feminino começou a ter grande
aderência entre as massas populares de outros países. [...] Esse
discurso de independência, por sua vez, deslocara-se um pouco da
oralidade e começou a adentrar na própria literatura. Alguns
romances da segunda metade do século XX passaram a trazer a
figura da mulher emancipada como personagem principal da trama.
Não obstante, se verificou um resgate de personalidades femininas
do passado, reinterpretadas à luz dos atuais acontecimentos, tais
como: Cleópatra, Joana d’Arc, Elizabeth I, Maria Antonieta, e a
própria Ana Bolena” (TAPIOCA NETO, 2013, 52-53).

O livro Ana Bolena abre assim um leque de possibilidades sobre a


construções de narrativas a respeito de Ana, ao apresentar a
trajetória da “Rainha de Maio” ao público jovem, principalmente na
perspectiva de valorização do papel feminino, onde Ana Bolena não
é apresentada nem como heroína e nem como vilã, mas como uma
mulher capaz de mudar a história de um país e de marcar o
imaginário universal através de suas ações, sendo eternizada e
tendo por meio de diversas formas de narrativas, sua história
resgatada.

318
A literatura quando mesclada com fatos históricos, como no caso do
livro de Bruna Chíxaro, pode tomar como propósito também a
insurgência contra modelos narrativos já cristalizados, fazendo
emergir assim novos discursos. A Literatura assim, não toma a
história como sua inimiga, mas apropria-se de registros históricos
para elaborar um novo discurso, que pode coincidir com o que é
reproduzido pela história ou apresentar novos olhares diante do
tema abordado.

História e Literatura: uma relação necessária

Ao se analisar a crescente expansão das metaficções historiográficas -


narrativas que mesclam ficção com história - vemos que a utilização
de Ana bolena como protagonista para romances históricos só
reafirma o quanto a mesma exerce um fascínio sobre as pessoas na
contemporaneidade.

A literatura surge assim como um modelo de narrativa daquele


passado que já está distante ao leitor, ela não necessariamente
precisa estar fundamentada em verdades absolutas pois ao usar-se
da imaginação para criar situações fictícias, o escritor tece assim sua
versão dos fatos, assim como o próprio historiador. Segundo Santos
(2000, p. 47)

“A escrita da história é portanto, uma forma de interpretação –


entendida como mecanismo seletivo que, através de inclusões e
exclusões, propõe uma ordenação e uma coerência (ou seja: um
sentido) para as informações. O trabalho do historiador se dá em um
espaço no qual as ações ao decifrar e inventar não podem ser
distinguidas nitidamente. Um trabalho de reconstrução, como é
sugerido em Respiração Artifical”.

Ainda segundo Santos (2000) ler documentos do passado com o


intuito de escrever história assim como constituir um discurso a
partir de fragmentos de linguagem, pressupõe estabelecimento de
elos. “Tais elos não são dados pelos documentos-letras, mas
propostos pelo historiador-leitor a partir de um repertório cultural
de associações possíveis” (SANTOS, 2000, p. 47)

319
Neste sentido pode-se entender o relato histórico como uma
narrativa hibrida: pois mescla a análise do historiador acerca dos
registros históricos e fontes, com as suas próprias interpretações
resultantes da sua realidade social. Sendo assim, o historiador tem
as suas limitações humanas - ele não é um ser neutro. Tudo que é
passível de interpretação possui essas especificidades e logo a
distinção entre o que carrega veracidade ou o que carrega
ficcionalidade torna-se um debate de convenções – selecionando-se
a versão que será melhor aceita.

“Isso ocorre porque a história tem por objetivo documentos-


monumentos: todo documento é verdadeiro – incluindo os
deliberadamente falsos – e falso;é simultaneamente referência e
construção. O material da história são experiências-relatos, corpos-
imagens, realidade-virtualidades, vigílias-sonhos” (SANTOS, 2000,
p; 51).

Ao se tratar do campo da Literatura, vemos que a mesma não possui


compromisso com a verdade absoluta, usando até mesmo da ficção
como método da construção de sua narrativa. “Na literatura está
incorporada a forma como algo – qualquer objeto ou ação social - faz
ou pode vir a fazer sentido” (SANTOS, 2000, p. 52). A literatura
desta forma não se restringe apenas a um jogo de apostas arbitrário
do escritor, mas há uma intima abordagem daquilo que é literatura
com o que se é possível e não como algo meramente casual, mas
como uma ligação entre o imaginário e o real, entre a linguagem e a
ação. De acordo com Santos (2000, p.53)

“Na literatura manifestam-se formas de percepção e construção de


sentidos que já estão presentes, circulando na cultura. É nessa
perspectiva que um texto literário jamais é arbitrário, mas uma
tradução de tais modelos perspectivos e construtivos. É nessa
perspectiva que o campo do possível já é uma delimitação. [...]O
efeito antecipatório propiciado pela literatura ocorre quando essas
formas encontram, em textos literários, um espaço aberto para se
manifestarem, um espaço de visibilidade incipiente”.

320
Neste sentido, a utilização de elementos históricos nas narrativas
literárias consideradas infanto juvenis – destinados a um público
entre os 12 e 17 anos - serve assim para instigar novos leitores a se
interessarem tanto pelo que é contado no livro e posteriormente
pelo conteúdo historiográfico.

“O que se vê no quadro da literatura infanto-juvenil brasileira,


atualmente, é que há uma maior conscientização da importância
desse gênero literário, até por uma questão de cidadania, pois é
inegável o fato de que, por meio de livros, são trabalhadas diversas
questões importantes para a constituição de um cidadão no futuro.
No entanto, ainda é necessário mais incentivo à questão da literatura
infanto-juvenil, a fim de cada vez mais manter crianças e jovens
ligados aos livros” (BIASIOLI, 2007, p. 98).

De acordo com Thomson (2016) faz parte da disciplina de história


contribuir para a formação do leitor crítico, capaz de interpretar
textos literários e articulá-los de forma coerente com o campo do
saber histórico. O procedimento de leitura é muito mais do que
realizar uma eficiente decodificação da linguagem de um texto: ”é
compreender seu contexto, relacioná-lo com seu cotidiano, criticá-lo
segundo métodos definidos e, até mesmo, surpreender-se com suas
possibilidades” (THOMSON, 2016, p. 273).

Thomson (2016) aponta assim que para que se tenha clareza sobre a
abordagem mais adequada de utilização desses materiais e para que
se perceba as possibilidades da literatura infantil/juvenil no
processo de aprendizagem histórica, deve-se atentar para
aprendizagem histórica que é se é buscada. Segundo Thomson
(2016, p. 274)

“[...]quando o conhecimento histórico passa a desempenhar um


papel na constituição mental do sujeito é que se constitui o processo
de aprendizagem. Fatos, ações e concepções sobre o passado,
quando apreendidas pelo sujeito passam a interagir com seu modo
de pensar e tornam-se um ‘assunto do conhecimento consciente’”.

Ao se fazer a leitura de uma obra infanto juvenil com elementos


históricos, como no caso do livro Ana Bolena (2017) da autora Bruna

321
Chíxaro, o jovem leitor depara-se assim com uma nova narrativa
acerca daqueles fatos vivenciados na corte Tudor e é desafiado a
exercitar o senso crítico de reflexão e construção de um
“conhecimento consciente”.

Considerações finais

A apropriação que a literatura faz da figura histórica de Ana Bolena,


além de uma maior interdisciplinaridade com a história, através de
novos modelos de narrativa, permite também novas formas de
diálogo com o público infanto juvenil, além de uma maior
valorização do papel de Ana - enquanto mulher, dentro da história
da Inglaterra.

A narrativa de Bruna Chíxaro reflete assim as próprias conquistas


feministas, que possibilitaram o resgate da memória de Ana Bolena.
Nesta obra infanto juvenil, vemos uma abordagem menos
depreciativa acerca de Ana, sem os estigmas de sua condenação,
mas uma nova visão da “Rainha dos mil dias”, com características
de uma “Girl Power”.

A personalidade forte de Ana é evidenciada, destacando assim a


facilidade que a obra tem em comunicar-se com o seu público,
levando uma mensagem de que independente do gênero, é possível
ocupar vários espaços, sendo que estes novos métodos narrativos de
se contar a história de Ana Bolena podem contribuir com novas
perspectivas que impeçam o seu apagamento histórico.

Referências Bibliográficas:

Marcos de Araújo Oliveira é graduando em Licenciatura em


História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus
Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e
Pesquisa em Medievalística da UPE/Petrolina.

E-mail:drmarcosaroeira@hotmail.com

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na literatura contemporâneas. 2013. 390 f. Tese (Doutorado) –

322
Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2013.

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panorama entre o passado e o presente. Terra roxa e outras terras –
Revista de Estudos Literários. v.9, 2007. p. 91-96

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no processo de aprendizagem histórica. História & Ensino,
Londrina, v. 22, n. 2, p. 263-279, jul./dez. 2016

TAPIOCA NETO, R. D. A condição da mulher na Inglaterra do


século XVI: O discurso feminista em The Secret Diary of Anne
Boleyn (1997). Monografia de conclusão de curso (História) –
Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus, 2013. 62 p.

323
AS INTERAÇÕES SOCIAI S NO
COTIDIANO NA AMÉRICA
PORTUGUESA: CONCEBEN DO OS
DESCLASSIFICADOS COMO SUJEITOS
HISTÓRICOS
DANIEL FAGUNDES DE CARVALHO
MACHADO

INTRODUÇÃO.

O presente ensaio visa discutir as interações sociais no cotidiano da


América portuguesa, fundamentando-se a partir das vivências dos
desclassificados, figura abordada no importante escrito de Laura de
Mello e Souza (2004), concebendo-os como agentes históricos.
Tomando por base as novas perspectivas feitas pela historiografia
da década de 1960 e 1970 que amplia o olhar ao dito
“marginalizado”, o transformando como objeto de estudo
acadêmico em diversas perspectivas.

O intuito é abordar, inicialmente, a própria concepção do cotidiano


como forma daquilo que vivenciamos todos os dias, e o “invisível”
de relações que vão se delineando na figura, como apresenta
Certeau (1998), do “homem ordinário” em seu conjunto de práticas
que vão inventando seu cotidiano no entendimento de suas “artes
de fazer”.

Nas Relações sociais que se desenham ao longo de toda a América


portuguesa, tomaremos como espaço de análise o período de
exploração das Minas, no século XVIII e também no processo de

324
urbanização de São Paulo, no século XIX, explicitando a figura dos
escravos urbanos e desclassificados sociais, à qual este último
inserido no processo do regime escravista, não apresentam grandes
vantagens em relação à figura do próprio escravizado.

Neste sentido, vemos a constituição do trabalho na forma de


autoconsumo de gêneros de primeira necessidade, e as relações
entre pequenas proprietárias e os escravos de ganho, assim como os
serviços feitos de forma imposta ou não, por diversas figuras
marginalizadas nas minas, o que nos objetiva analisar a própria
constituição do espaço de interação entre esses agentes históricos,
que possuem, dentro de um sistema que considera a honra e status,
uma classificação que deixa a desejar.

No mais, será possível entenderemos também o espaço de


resistência que aqui se permeava, na medida em que os negros
escravizados que chegavam forçados iam praticando suas tradições
culturais e formas de resistência a diversas restrições impostas.

Será permitido avaliar a figura desses desclassificados em seu papel


direto na sociedade do período, trazendo-os como seres que se
organizavam na manutenção de sua sobrevivência e na criação de
mecanismos, caminhos e estratégias que foram permitindo uma
melhor vivência, sejam nas vendas nas ruas, na continuação de
tradições religiosas, nas fugas urbanas de escravizados, no
assassinato de pequenos proprietários, e, até mesmo, na junção do
dinheiro de seu comércio clandestino na compra de alforrias.

O cotidiano: seu sentido na delineação das interações entre os


sujeitos.

325
As práticas cotidianas seguem certa dependência de um conjunto
muito grande que está imbrincado nas relações de homens comuns e
outros de uma maior condição social, que vão delimitando espaços
que possuem em comum. O cotidiano se constitui no que nos é dado
a cada dia, seja em suas formas de opressão, ou na forma como nos
prende intimamente, na busca de caminhos até nós mesmos (e
também ao outro). O que interessa, neste sentido, é o “invisível”,
aquilo que não enxergamos nas relações, que vai se desenhando no
interior do privado e que toma dimensões do público, refletido aqui
na figura dos marginalizados que evidenciam muito a instituição de
uma história a partir das estratégias de sobrevivência e também de
resistência.

“Uma distinção entre estratégias e táticas parece apresentar um


esquema inicial mais adequado. Chamo de estratégia o cálculo (ou a
manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder (...) pode ser isolado.
A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como
algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com
uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os
concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos
e objetos da pesquisa, etc).” (CERTEAU, 1998, p.99).

Dentro desse cotidiano, Certeau (1998) vai conceber o sentido de


táticas e estratégias. As táticas são atalhos das estratégias, ou seja, as
estratégias seguem a elaboração de algo imposto, e as táticas vão se
concretizando nos caminhos diversos de desviar dessa imposição.
Trazendo a discussão para o sistema escravista no Brasil, mesmo
com a imposição determinada por esse regime, os desclassificados
vão delimitando táticas que fogem à sua condição social, permeando
espaços de resistência para uma sobrevivência mais branda.

326
“Certeau, ao contrário, nos mostra que “o homem ordinário”
inventa o cotidiano com mil maneiras de “caça não autorizada”,
escapando silenciosamente a essa conformação. Essa invenção do
cotidiano se dá graças ao que Certeau chama de “artes de fazer”,
“astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os objetos
e os códigos, e estabelecendo uma (re) apropriação do espaço e do
uso ao jeito de cada um. Ele acredita nas possibilidades de a
multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos
impostos pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um
procura viver, do melhor modo possível, a ordem social e a
violência das coisas.” (DURAN, 2007, p.119).

Na conjuntura da assimilação desse sujeito ordinário nas minúcias


do cotidiano, vale trazer o olhar da historiografia que se amplifica
em seu objeto de estudo, trazendo novas abordagens acadêmicas
para se pensar o cotidiano das relações de poder na colônia, assim
como em outros períodos. Na apreensão dos homens livres e pobres
pela historiografia, Pedroza (2014) avalia que ao longo de décadas a
inserção desses sujeitos na história foi se fazendo no âmbito
econômico e social a partir da oposição aos escravos e ao sistema
das plantations, o que fez que os homens livres fossem vistos sem
razão de ser, mostrando um quadro decadente deste pequeno
produtor, deixando-o à margem de concepções mais abrangentes
sobre seus papeis nesse contexto. A renegação destes
marginalizados não se deu apenas na sociedade colonial, mas
também pela própria História que por muito tempo relegou espaços
de análise a esses sujeitos históricos. Esse cenário muda a partir da
segunda metade do século XX.

“Além de tantas outras viradas bruscas, os anos 1960 e 1970 do


século XX revelaram um interesse súbito pelas minorias, pela
marginalidade, pela exclusão - a tal ponto que, no futuro, ao lado da
revolução comportamental, do movimento estudantil, da

327
incorporação (latu sensu) do Oriente, talvez fique esse súbito
interesse dos estudos acadêmicos pelo louco, pelo criminoso, pelo
mendigo, pelo migrante miserável que o capitalismo selvagem dos
países latino-americanos despejou sobre os seus principais centros
urbanos.” (SOUZA, 2004, p.21).

A historiografia vai permitindo abarcar novos horizontes nos


estudos acadêmicos, com o estudo, por exemplo, de Maria Odila
Dias (1984), que apresentou a contribuição do trabalho das mulheres
no processo de urbanização de São Paulo em fins do século XVIII até
próximo o período da abolição, remontando que a historiografia das
últimas décadas (ela escreve na década de 1980) “favorece uma
história social das mulheres, pois vem se voltando para a memória
dos grupos marginalizados do poder”, abrindo espaço para uma
escrita da história partindo do microssocial do cotidiano. (DIAS,
1984, p.07)

A circularidade na ordem pública e privada: os mecanismos


criados para a sobrevivência na América portuguesa pelos
marginalizados.

Neste espaço de junção de poder, na opressão sentida a cada dia,


muitos mecanismos se tornam como ferramentas táticas de
livramento adaptando-se como formas de resistência, como por
exemplo, o assassinato de pequenas proprietárias em São Paulo por
escravizadas urbanas, abarcadas em diversas correspondências
policiais no século XIX.

“Dentro das casas, embora menos visíveis e mais acobertadas, as


violências também vinham à tona em crimes escandalosos, que
causavam impactos sobre a cidade intriguenta; em 28 de setembro

328
de 1841, uma escrava assassinou a proprietária a punhaladas...”
(DIAS, 1984, p.113).

Nas intensas relações cotidianas, é interessante destacar o próprio


papel da ordem do privado não apenas nesses “crimes
escandalosos”, mas também na propagação de ideias dentro de um
contexto internacional, insuflando o desejo de sedição, apontando as
injustiças que a Coroa realiza na cobrança de altos impostos e roubo
no cofre público. Essas ideias que se caracterizam muitas vezes na
intimidade do privado vão ganhando as ruas, na própria interação
da ordem pública, fundamentando um desejo de organização do
Estado, “em especial aquelas resultantes das Revoluções Americana
e Francesa, mas revela-se, também, na emergência de uma nova
cultura política, assim como no aflorar de novas formas de
sociabilidade” (JANCSÓ, 1997, p.392).

Jean Baptiste Debret – O colar de ferro, castigo dos negros fugidos.


Primeira metade do século XIX. Disponível
em: http://www.iar.unicamp.br/disciplinas/am540_2003/edu/produt
o/escravidao/repressao3.htm

329
Nesta pintura de Debret é possível analisarmos essas formas de
interações sociais no cotidiano das ruas. Essa interação se estabelece
tanto nas conversas, como nas trocas e vendas de produtos. A
pintura evidencia a marca deixada ao escravizados que fugiam
(ficando preso ao colar de ferro), que os identificava dessa maneira,
deixando claro os seus espaços de resistências. Esse comércio
realizado por eles revela as esperanças no cotidiano, e as formas de
manterem suas tradições vivas no contato com o outro, e também
para ajuntar lucro, em muitos casos, para a obtenção da alforria.

O espaço social destes marginalizados perpassava nas esferas


públicas e privadas (e que tanta influência teve no processo da
urbanização de São Paulo), pois como lembra Novais (1997), nossa
história já nasce na relação entre o público e o privado, e para a
análise das relações imbrincadas nos dois âmbitos, é necessário
entender as condições de privacidade na colônia, mas sem perder de
vista a compreensão do público.

O autor vai pensando esses ambientes de interação, até mesmo na


construção do “ser brasileiro”, na medida em que vai delineando
como a colônia foi “deixando” de lado o desejo de ser colônia, pois
não se identificava mais naquela relação de mando estabelecida pela
metrópole. As inter-relações na colônia vão demonstrando a
diversidade do convívio nos espaços, até mesmo quando os colonos
vão se descobrindo como paulistas, baianos, enfim, na identidade
que vão construindo até mesmo pelos movimentos anticoloniais,
que vão dando base a nossa própria identidade, revelando nesta
discussão, a importância dessas interações sociais.

Discutindo a figura destes desclassificados, Souza (2004) os entende


a partir de uma expressão bem definida, ou seja, remete ao próprio

330
conceito de uma ordem classificadora, no sentido de que no período
colonial a sociedade se entende por termos estamentais (2004, p.25),
se constituindo nesse sujeito livre e pobre (miserável), não chegando
a vantagens maiores que os escravizados, permitindo também
avaliar uma interação entre esses sujeitos, principalmente na busca
por subsistência, nos mecanismos de ações que permitam se
sustentar, e também aos seus.

Esses mecanismos se faziam na venda de gêneros de víveres de


primeira necessidade, no aluguel de escravos de ganho para
atividades diversas, como lavadeiras, costureiras, para angariar
também uma renda a seus proprietários (lembrando que
explicitamos aqui as pequenas proprietárias, que adquiriram
escravizados por contratos de casamento, no caso de viúvas, através
de favores e até mesmo por herança), na presença de escravos no
comércio ambulante, na venda de quitandas e outros gêneros
alimentícios. Nas ruas era evidente o ir e vir de diferentes formas de
angariar lucro, até mesmo no comércio clandestino de escravizados,
mas também dos brancos pobres, forros e roceiros.

Nas minas os desclassificados trabalhavam na construção dos


presídios, localizadas em terras remotas às conquistas, assim como
em obras públicas e na lavoura. Sua presença também se fazia na
segurança (como guardas, por exemplo) e neste contexto abarca
toda uma discussão a respeito da visão que possuíam sobre os
considerados vadios, o trabalho e recrutamento forçado, porém não
me atentarei a essa discussão, cabendo apenas explanar brevemente
as formas de trabalho a que realizavam.

Ainda dentro da discussão das interações no público e privado e


quem eram os taxados vadios, é significativo lembrar as prostitutas,
por exemplo, na medida em que era alto o número de prostituição

331
no contexto das minas, pois eram obrigadas a esse modo de vida, e
mesmo assim recebiam uma forte repressão, principalmente pela
Igreja, entendendo como situação de imoralidade.

As chamadas lojas também se tornavam espaços onde se escondiam


escravos fugidos, se delineando como espaço de encontro,
concretizando novas formas de sociabilidades, novas redes de
interação. Um fato interessante foi a revolta dos malês de 1835 na
Bahia, que se encontravam nas lojas e debatiam as estratégias de
luta, conseguindo de fato, fazer uma grande revolta que abalou a
sociedade no período.

As conexões se faziam no encontro nas ruas, nos caracterizados


“ajuntamentos” e festas escravas das irmandades, em pontos de
encontros, como no Chafariz do largo da Misericórdia, em São
Paulo, e na forma como essas relações se cruzavam, no sentido
mesmo de um “diálogo” entre culturas. Tomemos, por exemplo, a
base alimentar de diferentes grupos sociais do litoral brasileiro: a
mandioca. As suas técnicas de cultivo possui forte influência
indígena, assim como na própria organização do trabalho de
produção. Os portugueses vão explanando e “integrando” essas
técnicas no cultivo da mandioca, assim como esse produto foi se
delimitando como alimento dos escravizados e também
bandeirantes, possibilitando adequar a forma como um alimento
permeia diferentes grupos, e que por isso vão se constituindo como
uma ligação, pois por mais que ocorriam relações de poder e
opressão, as técnicas de cultivo de um grupo perpassa toda uma
sociedade, possibilitando a dinâmica que constitui a cultura.

Isso se explicita quando pensamos também na manutenção da


subsistência, pois “a área urbana repleta de matagais, pesca e caça,
favorecendo a coleta e a subsistência improvisada, logo tornava

332
possível aos escravos familiarizar-se com técnicas indígenas de obter
iguarias do sertão, com o conhecimento topográfico necessário para
saber onde esconder, fugir, defender-se”. (DIAS, 2004, p. 115)

Como remete Certeau (1998), a cultura precisa ter um significado


para quem a realiza, e se pensarmos na própria figura dos
escravizados, na continuação de suas tradições de origem, seja nos
seus atos religiosos, como o candomblé, por exemplo, que foi
duramente reprimido; assim como a capoeira, e nas barreiras
impostas pelas autoridades na tentativa de dificultar a realização de
festas escravas e também nas vendas nos comércios locais,
percebemos que essas ações fugiam do alcance dessas autoridades,
pois a cultura possui uma circularidade e continuidade
transformando-se em identidade e resistência no cotidiano
escravista.

Breves considerações.

Tentamos analisar que é no cotidiano que esses espaços de


resistência e sobrevivência foram se delineando, na busca por táticas
que amenizassem a dura vivência, mostrando quais foram os papéis
desses marginalizados na construção da história do Brasil e também
de suas figuras como sujeitos históricos, que se organizaram
também politicamente a toda uma gerencia do poder que se impôs a
muitos, restando à esperteza e improviso para afastar a morte, como
pontua Dias (1984).

Percebemos o intenso desejo de sobreviverem a essas duras


condições cotidianas também com intervenções divinhas, tanto em
suas religiosidades, como rogando por missas pós-morte, pois

333
muitas escravizadas urbanas clamavam por um enterro condigno,
como roga Josefa de Souza Ribeiro em 1791:

“(...) Pelo amor de Deus e por caridade, me faça esta esmola, por eu
na Ocasião viver muito pobre e não ter com que possa enterrarme,
nem fazer disposições algumas por minha alma e por isso torno a
pedir e rogar em mandarem dar o meu corpo a Sepultura e, fazerem
alguns sufrágios por minha alma, conforme lhe parecer...” (DIAS,
1984, p. 119).

Nesse clamor em um ambiente que os torna miseráveis, a ponto que


não se “classificam”, no caso de pobres e livres dentro de um
sistema de trabalho forçado, e como os próprios escravizados criam
uma base na manutenção e busca por sua liberdade e provisão de
víveres, formando-se por diversos contextos, seja nas fugas, nas
vendas nas ruas de gêneros alimentícios, na continuação de suas
tradições, na constituição das Irmandades, e de encontrar meios de
constituir lucros para a obtenção de sua alforria.

A resistência escrava sempre esteve presente nas relações do


cotidiano, que vão tornando-se não apenas espaço de relações
sociais e políticas, mas sinais de brechas que ocasionavam pequenas
conquistas aos agentes trazidos à tona neste texto, ajudando a
ampliar a luta pela resistência, sejam nas revoltas, fugas e até
mesmo na continuidade de aspectos culturais de sua origem.

A manutenção de vivência no sistema escravista passava também


não apenas nas fugas para os quilombos, mas também nas
negociações realizadas para adquirirem melhores condições de
trabalho e em pequenas conquistas, porque em muitas situações a
liberdade também era recorrida de forma não violenta, como por

334
exemplo, o depósito em caderneta de poupanças, empréstimos
pagos com a força do trabalho, entre outras condições,
possibilitando analisar o cotidiano como amplo espaço de interações
e improvisos nas formas de sobreviver, ou minimamente de afastar
a morte, em toda uma conjuntura de poder que os marginalizava e
diminuía as esperanças, porém não as erradicava.

Os escravizados não desejaram tornar-se aquilo que o regime


instaurava muito menos se dispor aos interesses do senhor, forjando
novos comportamentos e preservando tradições de suas origens
africanas. A ideologia branca foi incapaz de penetrar de forma
profunda a mentalidade escrava.

“(...) os escravos tinham diversos meios de criar elos de associação


ou formas de parentesco, tanto dentro das estruturas da sociedade
predominante quanto fora delas. Os laços criados pela etnia, pela
língua, pela religião e pela política africanas continuaram a
funcionar no Brasil, como demonstram as rebeliões etnicamente
organizadas do início do século XIX.” (SCHWARTZ, 2001, p. 267).

Suas práticas culturais não se encerraram na experiência do


cativeiro, ainda mais quando retomamos as acepções de Slenes
(2011) quando defende a família nuclear escrava em contraponto da
visão pejorativa do “desregramento sexual” dos escravos, o que
demonstrou a ampla rede de solidariedade existente. Por mais que
essa política senhorial de incentivo à família mostre um desejo do
mesmo de diminuir as fugas em sua fazenda, compreendemos que a
resistência não se prende apenas ao desejo de ser “livre”, mas de
passar pelas mazelas do trabalho forçado de uma forma menos
dolorosa, transformando sua própria relação no dia-a-dia da
colônia.

335
Refletimos, portanto, que esses agentes históricos possuíram
importante papel na constituição econômica, política e social na
América portuguesa, em todo o contexto de exploração das Minas,
assim como no processo de urbanização, ampliando a perspectiva
histórica desses sujeitos e fundamentando as diversas formas de
resistir, seja nos espaços públicos ou privados, e na explanação de
ideias, o que observamos também até que ponto a opressão
permeava o cotidiano desses marginalizados.

Referências Bibliográficas.

Daniel Fagundes de Carvalho Machado é graduado em História


pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três
Lagoas. Atualmente é mestrando pelo PPGH da Universidade
Estadual Paulista/Campus de Franca.

DIAS, Maria Odila Leite Silva. Quotidiano e poder em São Paulo


no século XIX. 1984.

DURAN, Marília Claret Geraes. Maneiras de pensar o cotidiano


com Michel de Certeau. Diálogo Educ., Curitiba, v.7, n.22, p.115-
128, set./dez. 2007.

JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e constestação


política no final do século XVIII. In: NOVAIS, Fernando e SOUZA,
Laura de Mello e (Orgs.). História da vida privada no Brasil –
América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

NOVAIS, Fernando. Condições da privacidade na colônia. In:


NOVAIS, Fernando e SOUZA, Laura de Mello e (Orgs.). História da
vida privada no Brasil – América portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

PEDROZA, Manoela. A roça, a farinha e a venda: produção de


alimentos, mercado interno e pequenos produtores no Brasil

336
colonial. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O
Brasil Colonial. (vol. 1; 2 e 3). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2014.

SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – Esperanças e


recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século
XIX – 2° ed. Corrig. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza


mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4° Ed, 2004.

337
NAS LENTES DA HISTÓR IA: UM
ESTUDO ACERCA DA PRESENÇA
NEGRA E INDÍGENA A P ARTIR DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DE
PALMEIRA DOS ÍNDIOS - AL
ALINE DE FREITAS LEMOS PARANHOS

O LUGAR, O CONTEXTO E A TRAMA

Pretende-se com está pesquisa, discorrer sobre o conflito identitário


que ocorre no Museu Xucurus de História Artes e Costumes,
situado no centro da cidade de Palmeira dos Índios, município
localizado no interior de Alagoas, marcado pela forte presença
negra e indígena. Desse modo, o museu que será aqui analisado,
conta com um considerável acervo memorialístico constituído a
partir de doações feitas por diversos moradores de sua
microrregião. Com isso, será apresentado neste trabalho, os diversos
objetos encontrados naquele espaço, sua relação com a sociedade
palmeirense, inclusive, as formas como estão organizados os objetos
referentes ao branco, ao negro e ao índio, nesse acervo.

Vale destacar que, o município de Palmeira dos Índios, como o


próprio nome já sugere, é marcado pela presença indígena dos
Xukuru-Kariri, etnia essa que nasce da fusão dos Xukuru da Serra
de Ororubá, vindos de Pesqueira- PE e dos Kariri de Porto Real do
Colégio- AL; além de dispor da presença da comunidade
Quilombola da Tabacaria, que foram se estabelecendo na região
devido a sua posição geográfica na zona de transição entre o agreste
e o sertão alagoano, que lhes serviu como rota de fuga das tramas
sociais que lhes foram impostas no período colonial.

De acordo com conversas informais realizadas no local, foi depois


da morte de Zumbi dos Palmares que seus antepassados se

338
organizaram e começaram a migrar para outros espaços em busca
da sobrevivência. A partir disso, uma parte do grupo étnico dirige-
se às serras do atual município de Palmeira dos Índios e firmam
residência no território que hoje pertence à esta comunidade.

Em relação aos índios Xukuru-Kariri, eles se distribuem em nove


aldeias situadas entre as serras palmeirenses, sendo elas: Fazenda
Canto, Mata da Cafurna, Cafurna de Baixo, Boqueirão, Serra do
Amaro, Serra do Capela, Riacho Fundo de Baixo, Coité e Jarra. Essa
fragmentação do grupo é tida por dois fatores; o primeiro
relacionado à falta de demarcação de terra contínua e, o segundo,
referente aos conflitos internos que segmentaram as famílias na
disputa pelo poder. Já em relação aos negros, a comunidade
Tabacaria, situada na zona rural, a partir da constituição de 1988,
lutam por direito à posse da terra e o processo de reconhecimento
que se dá em 2005, mas o título da posse coletiva da terra só é tido
em 2016.

A partir disso, o levantamento do aparato teórico foi feito a partir de


cinco momentos, o primeiro ligado ao contexto de formação de
Palmeira dos Índios. Na segunda parte é levantada uma discussão
sobre a memória coletiva do município. Já a terceira gira em torno
do conceito de patrimônio histórico e cultural, o que nos leva à
discussão seguinte, da importância de um museu que represente e
faça sua população se sentir representada nela. Por último e não
menos importante, trabalharemos em cima das teorias de imagem e
representação.

Nesse sentido, a pesquisa se materializa a partir de visitas


periódicas ao museu e seu entorno para coleta de fotografias,
conversas informais e entrevistas. Além disso, foram visitadas: a
aldeia indígena Mata da Cafurna e a comunidade quilombola da
Tabacaria, no intuito de conversarmos e fotografarmos a realidade
em que eles vivem, bem como investigarmos sobre o que eles
pensam em relação aos objetos de sua cultura étnica encontrados no
acervo do Museu Xucurus, como uma forma de ouvir e dar voz a

339
esses povos, confrontando, desse modo, os aspectos do visível e do
dizível.
Além das conversas informais feitas com os moradores da cidade, o
período de coleta de documentação e informações nos proporcionou
a realização de entrevistas feitas com: Kátia Cadengue (professora
da rede estadual de ensino e responsável pela última reorganização
do Museu Xucurus), Lenoir Tibiriçá (ex-pajé da aldeia indígena
Mata da Cafurna), dona Domicilia Silva (esposa de seu Gerson, um
dos membros mais antigo e influentes da comunidade quilombola
da Tabacaria) e Maria Aparecida (também quilombola).

Desse modo, relacionando o presente e o passado, buscaremos


analisar, neste trabalho, a influência desses grupos tradicionais no
cotidiano da sociedade local através da memória coletiva e da
cultura material. Serão acentuadas ainda algumas discussões acerca
das formas como os negros e os índios são vistos na região por meio
das representações impressas no acervo do Museu Xucurus e, o que
de fato, eles simbolizam para a comunidade palmeirense.

PALMEIRA DOS ÍNDIOS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E


IDENTIDADE

A história de Palmeira dos Índios, desde sua constituição, encontra-


se entrelaçada a um processo de disputas memorialísticas e
territoriais. Segundo Peixoto (2013), os dois grupos indígenas que
deram início ao povoamento do território, os Xukuru e os Kariri,
foram submetidos ao catolicismo pelo frei Domingos de São José,
que no ano de 1773 solicitou a D. Maria Pereira Gonçalves, herdeira
da sesmaria de Burgos, meia légua de terra para construção de uma
capela.

Com a documentação lavrada em cartório, começava então a ganhar


forma o território de Palmeira dos Índios. Após construção da
primeira capela e com o desenvolvimento da catequese indígena, o
frei construiu uma segunda, na parte mais elevada da planície,
tendo como principal objetivo o povoamento daquele local. Desse
modo, com a criação da igreja, aumentara o fluxo de pessoas

340
naquela região, e entre elas alguns comerciantes que foram
estabelecendo residência no entorno da capela, criando assim um
pequeno aglomerado populacional.

Diante do processo de povoamento dessa região, começa então a


desencadear-se as primeiras disputas territoriais, tendo em vista que
os indígenas eram privados de entrarem em determinados locais
pelos novos moradores da localidade. De acordo com algumas
documentações encontradas no NEPEF (Núcleo de Estudos
Políticos, Estratégicos e Filosóficos da Universidade Estadual de
Alagoas, campus de Palmeira dos Índios - AL), a elevação do
povoamento à categoria de vila foi em 10 de abril de 1835, a partir
da resolução nº 10. Em 1853 foi elevada à categoria de cidade e em
1872 teve a criação da sua comarca. Seu termo fazia parte da
comarca de Atalaia, passando para Anadia em 1838.

Outra versão encontrada com frequência na região é a do


memorialista Luiz Barros Torres, que vem sendo construída a partir
de uma série de elementos que contribuem para a criação de um
discurso que ecoa pela municipalidade, como a lenda sobre a
fundação da cidade (a lenda da fundação de Palmeira dos Índios,
criada por Luiz B. Torres em 1971 foi feita em formato de
quadrinhos. A versão original está no acervo de Luiz Byron Torres
que se encontram no Núcleo de Estudos Políticos, Estratégicos e
Filosóficos - NEPEF da Universidade Estadual de Alagoas, campus
de Palmeira dos Índios - AL), sua bandeira e imagens de índios
encontrados ao longo do território palmeirense, além da
constituição do Museu Xucurus.

MUSEU XUCURUS: ENTRE COLECIONISMOS, IMAGENS E


REPRESENTAÇÕES

“[...] o Museu Xucurus de História, Artes e Costumes perpetuou-se


como local de memórias em Palmeira dos Índios, configurando-se
num ambiente que transmite uma imagem própria, uma narrativa
sobre a história da cidade, tecida a partir da visão dos seus
idealizadores. (SOARES, 2017, p. 133).”

341
A princípio, como Luiz Torres era responsável por uma contribuição
significativa sobre a história do município e vinha de uma série de
escavações feitas na cidade e seu entorno, onde foram encontradas
igaçabas e outros artefatos indígenas que, de acordo com o Termo
de Convênio entre a Secretaria da Educação e Cultura e o Museu
Xucurus, publicado no Diário Oficial do Estado (D.O.E de
20/04/1983) na Portaria nº 497, de 19 de abril de 1983, cláusula
primeira; o objetivo deste “museu-popular” era promover o
desenvolvimento cultural, a conservação do acervo indígena e o
fomento da indústria do turismo.

Partindo desta premissa, é criado o Museu Xucurus, que nasce da


parceria entre o memorialista Luiz Torres, o bispo Dom Otávio
Aguiar e o tenente Alberto de Oliveira; que o instaurou no prédio
que outrora formava a Igreja do Rosário dos Pretos, erguida pelos
escravos que viviam nessa localidade durante o século XVIII, que
estava desativada. Face a isso, se por um lado Luiz Torres
fundamenta a ideia de construir uma instituição memorialística para
salvaguardar os artefatos indígenas; por outro, o bispo cedeu o local
para que essas aspirações fossem concretizadas. Além do mais, sua
presença foi fundamental para a coleta de objetos que seriam
expostos no museu devido a campanha que ele criou para a
arrecadação de peças que durou de dois a três meses e teve como
apoio a Rádio Educadora Sampaio (dados retirados de acordo com o
relatório feito pela Biblioteca de Palmeira dos Índios no dia 25 de
novembro de 1974 e assinada por Luiz Torres, presidente do Museu
Xucurus, em 16 de julho de 1979).

Desse modo, em 1971 foi fundado o Museu Xucurus de História,


Artes e Costumes; contendo um acervo bem diversificado,
constituído a partir de doações feitas pelas elites da região que
pertencia à diocese de Palmeira dos Índios, na época, através dos
objetos como armas, louças, moedas, máquinas de escrever, bem
como uma parte destinada a arte sacra, correntes e objetos que
serviam para torturar os negros, além de um acervo de artefatos
indígenas. Durante a inauguração, não há relatos da presença de

342
indígena e quilombola no local, no entanto, comerciantes,
empresários, vereadores e outros personagens do tipo, lá estiveram.

Nos dias atuais, ao nos deparamos em frente ao museu, observamos


paredes com suas tintas descascadas, ao entrar a primeira imagem
que se tem é a de um altar com algumas imagens de santos e caixas
de vidro com as vestes de um padre da igreja católica que viveu e
atuou na cidade. Na nave direita, estão expostas fotografias de
alguns prefeitos do município, e à esquerda, uma coleção de
santuários e fotos da primeira paixão de Cristo que aconteceu na
Serra do Goití. Subindo a escadaria, nos deparamos no topo da
escada, com três manequins: à direta, uma figura com calça branca
acorrentada com a frase “Ladrão e Fujão” estampada no peito. No
centro, a representação de uma mucama e à esquerda, um
manequim acorrentado com uma mordaça tapando-lhe a boca. Na
última sala estão expostos alguns artefatos indígenas como arcos,
flechas, igaçabas e vestes religiosas.

A partir disso, acentua-se uma discussão acerca das formas como


estão expostos os artefatos da cultura branca, negra e indígena e
como cada um deles se percebem neste espaço. Quando pergunto a
Dona Domicília Silva se ela já havia visitado o Museu Xucurus que
fica na antiga igreja que havia sido construída por negros ela me
responde que nunca foi no museu, mas que já ouviu falar nessa
igreja. Então, ao ver algumas fotos referentes a cultura negra que
estão expostas no museu (fotos dos manequis acorrentados, do
tronco e das telhas e potes de barro) ela diz emocionada, o seguinte:

“É muita, é muita coisa minha fia... [...] Eu sinto muito probrema,


porque você ver a gente que é negro... Hoje tá melhor, porque no
tempo dos antepassados a gente era humilhado [...]” (SANTOS, D;
2019)

Em contrapartida com a fala de Dona Dominícia, durante uma visita


ao Museu com outra entrevistada, a quilombola Maria Aparecida
ela diz o seguinte em relação aos manequins dos negros que estão
expostos no museu:

343
“Olha a estética... Esse negro está totalmente europeu, não que ele
não tenha havido a miscigenação, só que pra um negro requinto,
com a pele super escura, como é que ele vai ter esses traços? Esses
olhos que não são escuros? [...] Ai você trás um período tão longo
que foi a escravidão e você traz três negros que foram responsáveis?
[...] Você trás três negros pra representar [...] ai tipo, só foram esses
três que ajudaram a construir aqui? Ai quando você coloca... olha a
formosura que está no inicio do museu. Olha a riqueza de detalhes
[...] protegido... Olha como está exposto! Olha a cor que está! Não é
tirado, não é tido manutenção e além do mais não é valioso [...] Um
manequim de plástico que vai ser substituído, que eles tentaram
escurecer. Eles pintaram [...] foram tentar modificar o nariz e alargar
[...] E olha só como eles colocam as marcas e os lábios tentando
recortar os lábios dando aquela ideia de negro europeu [...] E outra
coisa, só tem isso aqui relacionado à escravidão da população negra
[...] e a maioria dos quilombos não é isso. Os quilombos não são isso.
Eles tem a sua história !” (SANTOS, M; 2019)

A partir das narrativas de Maria Aparecida fica evidente a


divergência que há em relação a imagem negra que está contida no
Museu Xucurus e o que de fato eles simbolizam na atualidade.
Corroborando com isso, destacamos alguns elementos que
envolvem a divergência entre aquilo que é projetado através das
representações negras e indígenas contidas no museu e o que de fato
simbolizam para os povos esquecidos pelo conjunto de relações
econômicas, políticas e sociais. Para alguns Quilombos da Tabacaria,
ver os objetos da cultura negra expostos no museu os trazem
lembranças de dor e embora façam parte de sua trajetória, não
mostram de fato o que eles são hoje. Já na perspectiva dos Xukuru-
Kariri, os artefatos do sagrado indígena expostos são tidos como
uma ofensa para sua cultura e para sua religião, além de seus
mortos terem sidos desenterrados e se tornado peça de museu.

NOVOS HORIZONTES, VELHOS PROBLEMAS

344
Ao compreendermos a impossibilidade de preenchermos
completamente lacunas historiográficas, ao considerarmos suas
continuidades e rupturas presentes na produção de documentos, ou
na memória dos envolvidos nos processos históricos;
apresentamos, nessa pesquisa, várias faces do cotidiano
palmeirense, descritas a partir do Museu Xucurus de História, Artes
e Costumes e, com isso, um pouco de como sua identidade é
construída, transparecendo sua singularidade à medida em que
deixa florescer as múltiplas expressões étnicas que dão, tanto o índio
quanto o não-índio, o valor simbólico de sua cultura e marca as
fronteiras sociais existentes entre eles.

Baseada nas relações socioculturais que ocorrem em meio a


diversidade cultural do município, as análises e reflexões aqui feitas
nascem da ideia de Certeau (2011), vinculadas a operação
historiográfica, onde as imagens projetadas dos índios Xukuru-
Kariri são influenciadas pelo tempo e espaço e assim pela
subjetividade de cada indivíduo que está disposto a analisá-las,
buscando romper com as barreiras que geram poucos ou um só eco,
causadas pelos silenciamentos e pelos esquecimentos.

Assim, discutimos sobre como o museu pode representar o contexto


de conflito em que se encontra o local no qual foi fundado. Esse caso
nos faz refletir sobre quais são as histórias, as artes e os costumes
neles representados, privando os usos e/ou desusos da capacidade
memorialística e patrimonial. Compondo enfim, uma instituição
capaz de demostrar a predominância e o prestígio de mais de uma
memória e, assim, mais de uma história que descreve o município
de Palmeira dos Índios.

REFERÊNCIAS

Aline de Freitas Lemos Paranhos é licencianda em História pela


Universidade Estadual de Alagoas. Ex-bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, Bolsista do

345
Programa Residência Pedagógica e Voluntária no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Integrante do Grupo
de Estudos sobre o Patrimônio Histórico, Imagem e Memória.
Atualmente desenvolve pesquisas com temas voltados a:
Identidade, Memória, Museus e Patrimônio. Orientadora. Francisca
Maria Neta.

CHAGAS, Mário. Memória e poder: dois movimentos. Cadernos de


Sociomuseologia, [S.I.], v.19, n.19, jun, 2009. p. 43 – 80.

CHAVES, Julio Cézar. “Eu não queria que índio se tornasse peça
de museu”: polifonias dos Xukuru-Kariri sobre museus.
Especialização – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, 2014.

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(Org.). Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

SANTOS, Maria Aparecida da Silva. Entrevista realizada por Aline


de Freitas Lemos Paranhos em 16 de abril de 2019. Transcrição por
Aline de Freitas Lemos Paranhos com duração de 1h23min.

346
SANTOS, Domicília. Entrevista realizada por Aline de Freitas
Lemos Paranhos em 19 de março de 2019. Transcrição por Aline de
Freitas Lemos Paranhos com duração de 2h04min.

SOARES, Brunemberg da Silva; SILVA, Edson. Os indígenas


Xuhuru-Kariri em Palmeira dos Índios/Al: entre relatos e espaços
de memórias. In: MARIA NETA, Francisca; PEIXOTO, José Adelson
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TEIXEIRA, Luana. Para além da “pedra e caco”: o patrimônio


arqueológico e as igaçabas de Palmeira dos Índios, Alagoas.
Monografia (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
Cultural) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
Iphan/ Superintendência Estadual de Alagoas, Rio de Janeiro, 2012.

TORRES, Luiz B. Tilixí e Txiliá. Lenda da fundação da cidade de


Palmeira dos Índios. Texto não publicado. 1971.

347
CURAS E BENZEÇÃO EM IRATI-PR
WILLIAM FRANCO GONÇALVES

Introdução

“Eu te benzo, eu te curo” caracterizam-se como as palavras mais


utilizadas pelos benzedores para a realização de suas orações e suas
benzeções. A busca pela cura através da benzedeira ou benzedor
fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, independentemente do
grupo social. Estes homens e mulheres são requisitados para
auxiliar na cura de doenças físicas e espirituais.

“Na cultura popular, corpo e espírito não se separam, tampouco


desliga-se o homem do cosmos, ou a vida da religião. Para todos os
males que atingem o corpo e a alma do homem sempre há uma reza
para curar... acreditando ou não no poder da reza, tem sempre
aqueles que procuram, nas rezas e nas benzeções, uma cura para sua
doença ou um alivio para sua dor” (NERY, 2006, p. 1).

Neste artigo iremos abordar a experiência de vida da benzedeira


Leoni Ferreira Gasparetto, seu iniciou no trabalho como benzedeira
e algumas das praticas que executa. Esta benzedeira é moradora da
cidade de Irati, no interior do Paraná, a qual segundo o censo do
IBGE, de 2015, conta com 59.708 moradores, com 80% destes
concentrados na zona urbana e 20% na zona rural.

O benzedor ou benzedeira, para Moura, é o “sujeito que cura por


meio de orações, simpatias e remédios naturais em sua própria casa,
sem cobrar por isso” (MOURA, 2011, p.344). Os curandeiros seriam
aquelas pessoas dotadas de poderes sobrenaturais e com condições
de lançar mão de feitiços para solucionar alguns pedidos de seus
clientes. Ainda, segundo Moura, “benzedores são capazes de
desfazer um feitiço, mas jamais de fazer um” (2011, p.345).

348
A partir concepção, sugerida por Moura (2011), podemos perceber
que a Leoni se encaixa na categoria de benzedeira, pois suas praticas
giram em torno de orações e simpatias. Ela utiliza sua própria casa e
não cobra nada por seus serviços.

A benzedeira Leoni tem oitenta anos; começou com os benzimentos


quando tinha por volta de vinte e dois anos e hoje já possui sessenta
anos de experiências. Ela é moradora do bairro Rio Bonito; sua
atividade é reconhecida por muitos moradores da cidade e até
mesmo de outras regiões. Segundo ela, sua iniciação se deu através
da prática de costurar machucadura e que isso ela aprendeu com
outra benzedeira da cidade de Ponta Grossa, quando Leoni ainda
morava naquela cidade.

A respeito do processo de iniciação das benzedeiras, Alterto


Quintana (1999) sintetiza que podem existir dois tipos: ou imitativo
e outro de experiência mística. O primeiro , se caracteriza pela
aprendizagem baseada no intermédio da imitação, de um outro
benzedor, isso pode ocorrer, às vezes, em um ambiente familiar,
quando ainda se é criança ou muito jovem. Já no segundo tipo, a
aprendizagem ocorre pela transmissão de uma entidade espiritual,
que pode ser entendido como um anjo ou um guia.

Leoni relatou que aprendeu a benzer porque necessitava tratar seus


próprios filhos. Segundo a dissertação de Vania Vaz, As benzedeiras
na cidade de irati: suas experiências com o mundo, e o mundo da
benzeção, a prática de costurar machucadura é muito comum entre os
benzedores da cidade de Irati.

“os clientes alegam que machucam a “carne” e que só esse


benzimento resolve. Para realiza-lo, as benzedeiras geralmente
utilizam um pequeno pedaço de pano, que simboliza a parte do
corpo machucada, fio e agulha, que representam a costura” (VAZ,
2006, p. 133).

Podemos observar que os utensílios utilizados para a costura de


machucadura são associados à significados que os transformam em

349
uma representação de uma extensão do corpo humano. Assim, o
pano que simboliza a parte do corpo machucada é costurado
enquanto a benzedeira faz suas orações e seus pedidos.

Como podemos perceber na fala da benzedeira, ela aprendeu a


prática da benzeção com a ajuda de outra benzedeira. Esta é uma
das maneiras de se iniciar nesta pratica, mas que, segundo Leoni,
não é qualquer pessoa que consegue aprender e que irá conseguir
seguir com a benzeção. Existe a necessidade do dom:

“Não é para qualquer um também, que você pode passar, porque já


veio gente aqui. “você me ensina?”. Eu posso até te ensinar, se você
não tiver vocação para isso, resolve? Não resolve. Porque você fazer
uma coisa a esmo, sem saber o que esta fazendo não adianta nada. E
gente que vem aqui, que pede pra mim, “você me ensina?”. Posso
até te ensinar, mas você tem que ter o Dom, que quem não tem esse
direito que é adquirido por Deus, não adianta. E tem outra coisa, a
pessoa que se submete a isso tem que ter respeito, tem que ter uma
cultura, tem que ter fé, muita fé e ser aquela pessoa de respeito.
Porque isso exige muito da pessoa, exige muito, muito. Acaba tudo,
você tem que se desligar das coisa, porque se não, não adianta
nada” (GASPARETTO, 2014).

Segundo Oliveira (1985), a questão do dom é algo relacional para o


benzedor ou benzedeira, pois não basta apenas que perceba sua
manifestação, mas, fundamentalmente, que os parentes, os vizinhos,
enfim a comunidade reconheça a posse do dom. Esse processo,
segundo a autora, é marcado por alguns passos:

“Primeiro, como já disse, quando ela [a benzedeira] percebe o seu


dom. Segundo, quando ela começa a acreditar na sua capacidade de
curar, reconhecendo-se preparada para tanto, ou seja, quando ela
começa a produzir benzeções às pessoas da sua esfera familiar, às
pessoas das suas relações consanguíneas, como aos filhos, irmãos e
sobrinhos[...] Terceiro, quando ela estende a sua prática de benzeção
aos vizinhos, amigos e familiares que moram na sua comunidade[...]

350
Quarto, quando ela começa a ficar mais conhecida, sendo procurada
por pessoas de fora da comunidade” (OLIVEIRA, 1985, p. 40-41).

Ao ser questionada se gostava de ser benzedeira Leoni nos


respondeu com um grande sorriso no rosto “adoro, faço com
carinho, com amor porque eu to me dedicando a Deus. Tudo o que é
feito com Deus é feito com amor” (GASPARETTO, 2014). Sua
devoção pode ser sentida nestas palavras, e a todo momento ela
enfatizava que só era uma transmissora; quem curava, mesmo, eram
seus santos e Deus. Dona Leoni já tem uma longa experiência como
praticante da benzeção e vários pesquisadores a buscam para
entrevistas. Ela conta com orgulho que uma das pessoas a quem ela
concedeu uma entrevista logo lançaria um livro e que seu nome
estaria lá. Durante a entrevista com ela, também pudemos perceber
que já possuía certa experiência e não se sentia incomodada com a
presença do gravador e enfatizou que poderíamos voltar lá, quantas
vezes fosse necessário.

Quando perguntamos a Dona Leoni se muitas pessoas buscam seus


benzimentos ela nos respondeu:

“nossa, você não imagina. É fora, é fora do normal, esses dias eu


atendi oitenta e poucas pessoas. Até cento e vinte eu já cheguei
atender em um dia. Já aconteceu, graças a Deus né, que é por Deus
isso daí né e ele me da força. Porque é ele que me dá força, porque
tem dia que você ta baquiado. Porque a gente tem os problemas da
gente, tem familia, tem casa, tem tudo, mas Deus te dá força”
(GASPARETTO, 2014).

Durante a entrevista quando perguntamos sobre o porque essas


pessoas buscam seus serviços, sua ajuda, suas rezas; ela nos
respondeu que era a fé, destes indivíduos, que os moviam na
procura por este caminho. Porém, a benzedeira também enfatizou
que, para determinadas “doenças”, só os homens e mulheres
benzedores teriam condições de “curar”. Nesse sentido, é
representativa a frase dita pela benzedeira. Em um determinado
momento da entrevista ela mencionou: “Que nem uma

351
machucadura, um sapinho, um cobreiro, jamais um medico cura
disso. Eles entender o corpo humano diferente, não como nos
entendemos”(GASPARETTO, 2014). Por esta frase da benzedeira
Leoni podemos compreender que para ela as doenças possuem duas
causas, uma natural e outra sobrenatural, sendo que a primeira o
médico pode resolver e para a segunda existe a necessidade de um
benzedor.

Lidiane Alves da Cunha, no artigo Saberes e religiosidades de


benzedeiras (2012), escreve sobre as
“perturbações/enfermidades/problemas” que acometem os seres
humanos e apresenta uma espécie de distinção entre doenças
tratadas por médicos e aquelas cuidadas por benzedeiras. A esse
respeito, ela diz:

“As benzedeiras alegam que existem ‘doenças de médico” e “doença


de benzedeira”. Essas doenças das quais se ocupam são mais do que
conjuntos de sintomoas e de sinais físicos. Elas se caracterizam por
possuírem uma serie de significados simbólicos, psicológicos, sociais
e morais para os membros de grupos sociais específicos. As doenças
curadas pelas benzedeiras se confuguram como perturbações que
afligem não apenas o corpo, a esfera física, mas estão relacionadas a
questões sociais, psicológicas e/ou espirituais que afetam a vida
cotidiana como um todo” (CUNHA, 2012, p.2).

Podemos perceber pelo argumento de Dona Leoni, juntamente com


as reflexões de Lidiane Alves da Cunha, que existe esta separação
entre a cura de um médico e aquela empreendida por um benzedor
ou uma benzedeira. De certa forma, entende-se que a cura feita por
este segundo grupo estaria ligada não apenas ao corpo físico, ao
mundo terreno. Mas existiria uma conexão com a esfera espiritual,
numa ideia de que as “perturbações/ enfermidades/ problemas/
doenças” seriam fruto de algum tipo de desequilíbrio. O praticante
da benzeção, sendo visto como portador de um poder especial, é
considerado como alguém capaz de controlar e manipular forças
ocultas, tendo em vista a cura da pessoa que busca por sua ajuda.

352
Mas essa grande busca também pode causar alguns transtornos e
muito cansaço, pois é uma atividade que também consome bastante
energia física, tal como nos relatou a benzedeira que antes de se
aposentar ela chegava do serviço e já estava cheio de gente para ser
atendida. E que agora, já aposentada, tem dias que passa o dia todo
benzendo:

“eu fico sem comer, sem beber, eu fico as vezes, quatro, cinco horas
aqui fechada, sem tomar um gole de água, fico em jejum. Já fiquei,
desde as sete da manhã até meio dia sem comer, sem tomar água,
porque tinha muita gente, gente precisando de mim. Então me
dedico ali, fico ali e não sinto fome, não sinto vontade de comer
nada, já brigaram comigo por causa disso. De eu ficar sem me
alimentar, que meus filhos me cobram né, “de onde já se viu, a mãe
ficar sem comer”. Se preocupam e ficam brabo comigo, eles não
gostam que eu passe do horário de comer, mas as vezes é preciso.
Às vezes eu to descendo, meio dia para almoçar, chega uma pessoa
doente ou com alguma dor. Ai eu tenho que largar de tudo e vir
aqui. Já deixei meu prato pronto de comida e vim aqui, porque é
uma missão que eu tenho, como é que vou dizer “eu não faço”. É o
que eu sei, eu vou fazer, não posso dizer que não para ninguém”
(GASPARETTO, 2014).

Mesmo comentando que tem dias em que chega a ficar sem comer e
sem beber, para poder atender o grande número de pessoas que
buscam suas rezas, podemos perceber que ela faz isso com carinho e
que gosta do que pratica. Entende que é um trabalho extremamente
gratificante “adoro, faço com carinho, com amor porque eu to me
dedicando a Deus. Tudo o que é feito com Deus é feito com amor”
(GASPARETTO, 2014).

Espaço de benzimento

Para os praticantes da benzeção, o local onde as pessoas são


recebidas para os atendimentos é concebido como um lugar “santo”,
um ambiente especial em que se sentem mais próximos do sagrado
e de suas divindades. Durante a pesquisa percebemos que a escolha

353
deste local pode variar de benzedor para benzedor. Pode ser um
cantinho da sala com um sofá confortável, um quarto de visita
pouco usado, a cozinha da casa ou até mesmo um local construído,
separadamente da casa, para ser usado exclusivamente para a
benzeção.

Neste estudo entendemos o espaço a partir da ideia de que os


significados atribuídos à este se configuram e reconfiguram a partir
de práticas sociais (BRAZ; OLIVEIRA, 2013). Letícia Dias Fatinel, na
tese Os significados do espaço e as sociabilidades organizacionais: estudo
de um café em Salvador (2012), argumenta que esta operação de
construção de práticas sociais acontece a partir de uma série de
ações que

“colocam em relação o masculino e o feminino, a casa e a rua, o


privado e o público, o local e o global, o jovem e o velho, nós e os
outros, sagrado e profano, tempo e espaço, cotidiano e
extraordinário, lazer e trabalho, e, também, sociabilidade“
(MENEZES, 2009 apud FANTINEL, 2012, p. 45).

Para o entendimento do espaço sagrado, embasamos nosso estudo,


também, a partir das considerações oferecidas por Mircea Eliade na
obra O sagrado e o profano, na edição de 1992. Eliade define o espaço
sagrado como sendo aquele que se opõem ao profano. E este
processo de “sacralização” acontece quando há manifestação da
hierofania, a qual é constituída por objetos do nosso mundo, como
uma árvore ou uma pedra, mas que não constituem apenas como
algo material. Para algumas pessoas, esses objetos tem um tipo de
significado que os torna mais do que isso, que os transforma em
algo sagrado. Eliade explica:

“mas [...] não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de


um culto da arvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada,
não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente
porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem
pedra, nem árvore, mas o sargrado” (ELIADE, 1992, p.13)
Gilson Xavier de Azevedo e Janice Fernandes Azevedo, no
artigo Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível (2014),

354
desenvolvem um estudo sobre “aplicabilidade” da teoria deste
pesquisador das religiões, no caso Mircea Eliade, em relação ao
desenvolvimento do universo das benzedeiras e benzedores,
buscando entender melhor como se dá essa prática milenar e como
se constitui a figura destas mulheres. No que se refere à hierofanias,
os autores vão argumentar que a construção do sagrado é
“justamente como se vê um fenômeno natural”. Ou seja, o sagrado
consiste em um objeto/acontecimento que se encontra no mundo
natural, e não no sobrenatural. Todavia, este algo do “mundo
natural”, do “mundo biológico e físico”, é percebido de maneira
diferente (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014, p. 60).

No caso da Dona Leoni, o local utilizado para as benzeções foi


construído fora do espaço doméstico e para ser utilizado
exclusivamente para as benzeções. Segundo Leoni, ela sempre teve
um lugar separado para trabalhar, pois para ela, isso precisa ser
feito fora de casa, porque algumas pessoas chegam com “maus
fluidos” e isso podia acabar ficando dentro do espaço domiciliar:

“Porque tem pessoas que às vezes, tem mal fluído e dentro de casa
ai fica na casa. E aqui já está preparado, com proteção do Divino
Espírito Santo para não acontecer nada. Porque eu vou fazer as
coisas em casa, fica as vezes, uma pessoa que chega aqui mal-
intencionados, porque vem. Você não pense que não vem, porque
tem gente que vem aqui para explora, vem gente com segundas
intenções e isso não presta dentro de casa. Mistura com a família e
isso não pode, tem que ter o lugar certo” (GASPARETTO, 2014).

Gilson Azevedo e Janice Azevedo, no artigo já


mencionado Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação
possível (2014), afirmam que “o sagrado e o profano constituem duas
modalidades de ser no mundo”, e em relação às benzedeiras, os
autores argumentam que a perspectiva do sagrado estaria
relacionada com a saúde, felicidade, bem-estar, alegria, realização. Já
o profano teria ligação com as palavras doença, sofrimento, dor,
traição, reprovação e acidente (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014, p. 61).

355
Assim, podemos entender a preocupação da benzedeira Leoni com
os “maus fluidos”, que denotam o significado de profano, descrito
acima. Para ela ter um local separado, e principalmente, um “local já
preparado e com a proteção do Divino Espírito Santo”
(GASPARETTO, 2014), é fundamental para defender sua família
desses “maus fluidos” (HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2012). Pois
neste local, Dona Leoni poderá “manipular o profano, a força
negativa do mundo presente do cliente” (AZEVEDO; AZEVEDO,
2014, p. 62) sem se preocupar que estas forças fiquem dentro da sua
casa e a prejudique mais tarde.

Considerações finais

A partir da entrevista com a benzedeira Leoni, nos foi possível


acessarmos dados, dos quais julgamos importantes, passiveis a
novas interpretações e novas pesquisas mais aprofundadas.
Pudemos compreender que uma pessoa ao aceitar seu dom da
benzeção, pode acabar abrindo mão de seu dia a dia. E que, às
vezes, em dias movimentados, mal consegue arranjar tempo para
fazer suas refeições principais. Mas ao mesmo tempo, para esta
benzedeira é uma questão de solidariedade abrir a porta de sua casa
para atender todas estas pessoas que a procuram por seus
atendimentos. A benzeção é entendido como um trabalho
extremamente gratificante “adoro, faço com carinho, com amor
porque eu to me dedicando a Deus. Tudo o que é feito com Deus é
feito com amor”.

Também notamos através da entrevista com esta benzedeira, que os


benzedores estão cercados por elementos simbólicos. Os objetos
usados para as benzeções podem se transformar e representar uma
extensão do corpo humano, como é o caso da benzeção de costura
de machucadura, no qual o pano costurado simboliza a carne da
pessoa que busca a cura. E até mesmo o espaço onde as rezas e
benzeções acontecem podem possuir um poder se transformar um
local sagrado onde o benzedor se tornará um mediador entre as
divindades e as pessoas.

356
Referências
Autor: William Franco Gonçalves, graduado no curso de história na
Universidade Estadual do Centro Oeste – UNICENTRO, mestrando
do curso de mestrado em história na Universidade Estadual do
Centro Oeste – UNICENTRO orientado pelo Dr. José Adilson
Campioto.
AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes.
Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação
possível. Protestantismo em Revista, v. 35, p. 54-64, 2014.

AZEVEDO, Gilson Xavier de. Das vassouras aos ramos: o arquétipo


das benzedeiras nas antigas bruxas medievais. Mandrágora, v.21. n.
21, 2015, p. 119-133.

BRAZ, Graziele Margarida; OLIVEIRA, Oseias. Territorialidades


religiosas e devoção privada em Irati, PR. Interações (Campo
Grande), 14 (1), 107-112, 2013.

CUNHA, Lidiane Alves da. Saberes e religiosidades de


benzedeiras. Anais dos Simpósios da ABHR, v. 13, 2012.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. 1° edição, São Paulo: Martin


Fontes, 1992.

GASPARETTO, Leoni Ferreira. Entrevista de Leoni Ferreira Gasparetto:


depoimento. [28/03/2014]. Irati. Entrevista concedida a William
Franco Gonçalves.

FANTINEL, Leticia Dias. Os significados do espaço e as sociabilidades


organizacionais: estudo de um café em Salvador. Salvador: 2012.

HOFFMANN-HOROCHOVSKI. Marisete T. Benzeduras, garrafadas


e costuras: considerações sobre a prática da
benzeção. Guaju. Matinhos, v.1, n.2, p. 110-126, jul./dez. 2015.

HOFFMANN-HOROCHOVSKI. Marisete T. Velhas


benzedeiras. Mediações, Londrina, v. 17 n. 2, p. 126-140, Jul./Dez.
2012.

357
MOURA, Elen Cristina Dias de. Eu te benzo, eu te livro, eu te curo:
nas teias do ritual de benzeção. Mneme Revista de Humanidade, p. 340-
369, 2011.
NERY, Vanda Cunha. Rezas, Crenças, impatias e Benzeções:
costumes e tradições do ritual de cura pela fé. VI Encontro dos
Núcleos de Pesquisas da Intercom. Disponível em:
http://intercom.org.br. Acesso em 18 de Agosto de 2016.
OLIVEIRA, Elda Rizzo. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985.

OLIVEIRA, Oseias. KAVILHUKA, Rosenilda. Cultura, memória e


religião em Irati, PR: narrativas sobre Albertina Nascimento dos
Santos. Multitemas (UCDB). Campo Grande: UCDB, 46, 13-26, 2014.

QUINTANA, Alberto M. A ciência da Benzedura: mau olhado, simpatias


e uma pitada de psicanálise. Bauru : EDUSC, 1999.

VAZ, Vania. As benzedeiras da cidade de Irati: suas experiências com o


mundo, e o mundo da benzeção. 2006. Dissertação (Mestrado em
História) -Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2006.

358
A PEÇA VOYAGEURS IMMOBILES DE
PHILIPPE GENTY – ENSAIO TEÓRICO
ENTRE SEXUALIDADE E PAPEL
MAICON DOUGLAS SANTOS KOSSMANN

O vivo e o inanimado: as representações

1. Philippe Genty – Voyageurs Immobiles, os humanos e o


inanimado

Foto de Guto Muniz. Disponível em:


http://www.focoincena.com.br/voyageurs-immobiles/3895

D’ávila nos deixa a base das associações entre a matéria viva e a


inanimada, de uma forma que possamos compreender como essas
se articulam e como fazem para representarem e atuarem de forma
harmoniosa de igual para igual, o interessante na trajetória de Genty
é que suas apresentações anteriores, de bonecos e um universos
repleto do inanimado, deram espaços aos humanos participarem e
não o oposto. Cito:

359
[...] O atraente coabita a cena com a matéria inerte, e dentro desses
estados performativos, o seu corpo fica sujeito a sofrer modificações
em sua aparência, estatuto e presença. Assim, há uma via de mão
dupla entre o atuante e os materiais inertes, pois, as ações de um
refletem na presença do outro. Eles se influenciam diretamente, em
relações de reciprocidade que fazem as suas realidades autônomas
ora se confundirem ora se completarem. (D’ÁVILA, 2018, p. 90)

Na peça, os materiais são variados, sacos plásticos, bonecos,


manequins, maquetes de cidades, rios representados com lonas,
nuvens com montanhas de plásticos etc. Destaco, o primeiro
material que aparece o mais influente na peça toda, o papel kraft, ele
configura forma e atua junto, preenchem senário e formam
personagens, mas não adquire vida própria, ainda é respeitado sua
condição de papel, há várias cenas em que aparecem os próprios
atores manipulando o papel como marionetes, ou ainda,
modificando a natureza dos atores.

Genty deixa aberto para interpretações pessoais sendo esses


elementos o principal meio de comunicação entre espetáculo e
público, o que normalmente, é a voz, mas como D’ávila (2017, p.
119) nos elucida: “A voz é aqui um elemento importante da
dramaturgia, não como fala dramática, mas como disparadora de
paisagens sonoro-culturais diversas.”. Os atores falam em diversas
línguas, que respeitam a nacionalidade de origem de cada um deles,
francês, japonês, espanhol, inglês etc. Porém, a voz é muito pouco
presente, e geralmente não é um fator relevante de compreensão
entre os personagens, ela preenche a cena como referente a cena,
gargalhadas que indicam um viés ideológico, falas simultâneas em
diversas línguas, mas que qualquer nacionalidade compreende que
é uma referência as frases decoradas e repetidas em todo lugar do
mundo de um atendente de supermercado ou ainda, sons

360
incompreensíveis que representam algumas das fazes do
desenvolvimento humano.

Um último aspecto que gostaria de abordar nessa etapa


introdutória, seria a forma que é construída a cena como um todo
como D’ávila (2017, p. 114) diz: “Genty tenta transformar o espaço
da cena em um lugar onírico, onde o espectador pode ter
experiências pessoais ‘[...] o meio caminho entre o real e o
imaginário’ (GENTY, 2013, p. 134).”. A obra referente conta com
essa ausência de um material explícito do sentido e construção da
cena, deixando o publicar representar, utilizando esse aspecto
onírico na peça; acredito que o público invoque essas representações
do subconsciente, configurando, assim, o sonho, que por si, é uma
representação fantasiosa. Os sentimento ocorridos durante o sono
são reais, porém, provido de simbolismos, o sonho em si, para Freud
são desejos que vêm a tona durante esse momento íntimo, os
simbolismos apresentados objetivam satisfazer esse desejo,
apresentados nas instâncias de: desejo, defesa e recalque; o
pensamento onírico é interpretado com a finalidade de visualizar
esse pensamento, classificando esses símbolos, em outras palavras,
interpretar a subjetividade do pensamento, e como falamos de uma
teoria freudiana, o sonho na maioria das vezes, são os impulsos
sexuais, mas não devemos leva-los a exclusividade. (FREUD, 2017.).

361
2.Bebês Paraquedistas

"Voyageurs Immobiles". Espace Jacques Prévert, théâtre d'Aulnay-sous-Bois. Fotos:


ciclodrama. Disponível em: https://ciclodrama.wordpress.com/2010/11/15/voyageurs-
immobiles-philippe-genty/

Genty talvez esteja nos chamando para esse exercício de auto


compreensão através de sua arte hibrida, apresentando conceitos
inovadores e que esperam uma resposta que exige interação e
representação do público com o próprio público, dos atores com os
atores e entre atores e entre espetáculo e público. Para quem for
pesquisar mais a fundo sobre a metodologia gentyniana, irá deparar
com um fazer teatral hibrido, que entrelaçam as criações dos atores
com os desejos de direção através de exercícios que buscam laços
afetivos com o material presente na peça. Enfim, para discorrer
sobre a peça, selecionei dois assuntos que para mim foram de maior
relevância: os aspectos sexuais e culturais.

Sexualidade

A peça permeia por excelência, de forma subjetiva, toda a


constituição da sexualidade humana e traz como critica e
posicionamento algo totalmente anti-freudiano. Por vezes a

362
perversidade (ou será que são os impulsos latentes de nossa infância
no primeiro contato com uma cultura externa?) é demonstrada em
momentos que um dos personagens se atiram no mar, um tenta
ajudar e os outros a proíbem; nos desertos de papel kraft bebês
surgem de pés de couve, em barrancos de areia e no ventre de uma
figura híbrida, esses bebês são arremessados e explodidos na
presença de uma “cidade grande”. Por ordem de exibição, seleciono
três cenas que achei pertinente para o debate sobre a construção da
sexualidade e posicionamento teórico da peça.

A primeira de 05:30min até 06:40min, quando surge uma Mulher


com grandes seios cobertos de faixas, das três fugiras masculinas ali
presente, duas delas se encantam com a enorme expressividade, a
Mulher percebendo, pega a mão de um deles e acaricia-os
demonstrando prazer ao toque, que aos poucos a expressão de
prazer se converte em gargalhadas difamatórias, o homem que
também excitado com a ação, rapidamente expressa em pavor
enquanto a Mulher retira algumas das faixas diminuindo o
tamanho, a ação se repete diminuindo ainda mais, até perderem o
interesse. Essa cena reflete no que Freud chamaria de “mulher
histérica”, e citando Kiehl (2008, p. 265) “[...] Feminilidade acaba
sendo equivalente a histeria, e há uma valorização da mulher
histérica como aquela que sabe manejar a mascarada da
feminilidade e colocar-se na posição feminina frente ao homem.”.
Interpretei de uma forma, que logo no início na peça reflete a
Mulher numa posição que possui consciência, sabe seu lugar, sabe
se impor, e fundamentalmente empodera.

363
3. Fragilidade do Homem

Captura própria 00:06:01

Numa segunda parte de 25:00min até 26:50min, quatro caixas com


bebês, representando diferentes fases do desenvolvimento, e destaco
o que fica na parte superior direita, em que este, brinca e exibe seu
pênis para os demais, até a chegada de um quinto bebê, (que é
“uma”) ela olha para o pênis desse já citado, compara com a vagina
dela, fica intrigada, para de brincar, o menino incentiva ela a voltar a
brincar, ela brinca de novo com mais energia até que, arranca o
pênis dele, enquanto o menino grita de desespero, não por dor, mas
por perder o único objeto que lhe garantia visibilidade e poder, a
Menina engole o pênis com tranquilidade. Nesse caso, a primeiro
momento, a Menina seria o objeto de desejo, que por fim não se
consolidou em tornar-se o objeto. E para trazermos o cerne da
discussão, cito Kiehl numa leitura crítica de Freud:

364
No caso das mulheres, a sexuação se dá pela assumpção da
diferença inscrita no corpo (até aí, tal como nos homens), que as
coloca de um lado da barra fálica – o lado dos sujeitos sem pênis.
Não há como recusar esta inscrição. Porém, para avançar deste
ponto à castração simbólica, as meninas, assim como os meninos,
têm que passar pelo pai. Primeiro, na percepção de sua função em
relação ao desejo da mãe, o que por si só já interdita o gozo materno
para a criança. Segundo, em consequência disto, pela constituição de
um eu a partir de identificações com atributos paternos,
fundamentais para que ela possa se separar de mãe fálica e percebe-
la (portanto, perceber-se) como uma mulher. (KIEHL, 2008, p. 261)

4. Eu tenho um pênis!

Captura própria 00:25:05

Lembrando que o complexo de castração se deve a percepção


consciente do menino da diferença entre o sexo masculino e
feminino, em que este, identifica que o pênis da menina foi

365
removido e forma-se uma angústia da figura paterna (pai) remover
seu pênis como punição por desejar a figura da mãe. Complexo de
castração está lado a lado com o complexo de Édipo. Se fosse dessa
maneira, a figura da Mulher seria montada de uma forma
em ser mulher só ganharia consistência de forma imaginária e
fantasiosa por desejo de um falo que através da sedução ou
privação, na espera e uma figura que substituía o desejo pelo pai
que foi introduzido pelo discurso da mãe, em outras palavras, dessa
forma, ser mulher significaria saber ser desejada. Por essas que
venho dar destaque a cena que representa, no íntimo, o anti-
freudismo, a Menina engolindo o pênis com uma expressão
tranquila, a menina representou uma alternativa para o complexo de
castração. Interpretei de várias maneiras cabíveis, talvez algumas
delas seja mais relevante para discussões, ou ainda, criticar a seleção
que fiz: a) poderia ser uma afirmação de igualdade de maneira
cômica, em que agora os dois são indivíduos sem pênis; b) uma
afirmação feminina que revela sua construção enquanto Mulher
diferente de tudo que Freud já escreveu; c) crítica a nossa sociedade
estruturalmente machista e falocêntrica. Dentre tudo, acredito
veemente ser um posicionamento feminista muito bem construído
entre toda a companhia.

366
5. Complexo de Castração

Captura Própria 00:26:46

Por último, uma cena que ocorre de 34:40min até 35min. Um ator,
homem, vestido de mulher, porém, sem mais características físicas
além das roupas, caminha enquanto cai de seu ventre(?) bebês
(bonecos, brinquedos). O ator representa uma figura hibrida que,
apesar de escolherem manter a aparência que entendemos como
“masculina”, atua espasmos e expressões de dor enquanto os bebês
caem no chão, semelhante a um parto de uma Mulher, mas
estranhamente, em pé, igual animais que diferem dos humanos.
Nesse sentido cito:

Na área das ciências sociais, em 1972, Ann Oakley escreveu Sexo,


Gênero e Sociedade, primeira obra neste campo científico a utilizar
gênero como construção sociocultural que transcende a diferença
biológica entre homens e mulheres bem como
a binariedade masculino e feminino. (FERNANDES, 2019.

367
Disponível em: <http://sairdagrandenoite.com/identidade-de-
genero-base-historica-introdutoria/>.)

6. Hibridização

Captura própria 00:34:40

A peça possui esse caráter reflexivo do espectador, o propósito


talvez seja de causar a estranheza e a confusão, uma forma para
podermos identificar nossas representações e que filtro ideológico
classificamos para isso, qual intencionalidade e impulso é ativado ao
nos depararmos com uma representação não binária da sociedade?
Evidenciamos nessa etapa o corpo do quem atua e como representa
essa reflexão, precisa ser algo específico, como revela D’ávila:

O corpo do atuante, dentro desse processo, pode sofrer uma série de


modificações em sua aparência, estatuto e presença: a diluição do
seu caráter de individualidade, a sua duplicação, a hibridização, o

368
travestimento do humano por manequins e formas variadas, a sua
aparente essência de vida e autonomia etc. Essa humanidade,
perturbada pela inerte com sua transformação em outra coisa,
impregna estranheza toda a poética gentyniana. (D’ÁVILA, 2017, p.
117)

A Metáfora Papel Kraft

O papel é como parte de outras pessoas, culturas, representações e a


cada contato, é amassado mais e mais, novos seres surgem, seres de
papel, emaranhados de cultura, são a síntese de diversos
punhadinhos de outros papéis que aos poucos ganham forma e
identidade quando entram em contato com humanos. O papel é a
cultura, as vezes singela, carinhosa, outras, temerosa e agressivas,
mas independente da forma que se manifesta, precisa ser domada e
manipulada por seres humanos, a cultura é o que nos difere de
qualquer outro ser natural.

Às vezes, os humanos são encobertos por esses papéis, que por fora
parecem uma coisa, e vão se desmontando conforme se
transformam, mas aqueles pedaços deixados para trás nunca se
desvinculam, sempre retornam, as vezes mais amassados, as vezes
retinhos e brilhosos de tão novos, o papel preenche o cenário,
formam um deserto, dele, bebês são gerados e esses humanos
cuidam com doçura ou provocam travessura, mas nunca deixa de
estar lá. Mas o que mais me chamou atenção, além de toda essa
parte de modificar o corpo, de privar a individualidade, de
participar das danças, de eternizar a silhueta humana de provocar a
raça humana, o papel, possui uma vontade, uma figura se ergue em
meio a confusão de outros seres munidos de papel, e no papel um
rosto, um simulacro da vida humana, um papel, que talvez, queria
ser humano, queria ser vivo, mas embaixo da pele, um papel, que

369
embaixo do papel, um humano, não poderia o papel se contentar em
dar forma a vida humana? O papel quer ser humano por ele mesmo,
mas o humano não consegue ser humano por ele mesmo, é preciso o
papel, é preciso a cultura, se não, é vazio.

7. Vazio

Disponível em: http://caroleallemand.com/portfolio-


item/voyageurs-immobiles/#.XKXtaKRG1PY

Existe um outro ser inanimado, parecido com o papel, mas provoca


outros efeitos, o papel é reciclável, dilui rápido e mesmo que, às
vezes, tente de maneira trágica, representar algo que não é, é em
suma, respeitável a sua condição. Desse outro me refiro ao plástico,
aparece diversas vezes sufocando, sendo disputado, é útil para
sublimar os impulsos agressivos (?) ou apenas incentiva a
agressividade (?). O plástico embala os bebês recém gerados como
um processo de linha de produção, passa por uma canhoneira, um

370
tubo, que é embalado e contabilizado numa caixa, dessa forma no
sorriso de uma Mulher que que expressa uma fala de uma atendente
de supermercado. Existe uma outra cena para o plástico,
incrivelmente o “paraíso”, as nuvens são o plástico em si, existe
também uma linha de produção, um conferente que classifica as
almas que chegam lá com plásticos retirados da boca, embalam e
mandam a vida eterna, que sobem como produtos numa vida,
aparentemente, deveria ser sem propriedade privada que nem
roupa possuem, mas a ambição e o desejo sexual ainda existem,
afinal, não foram como produtos do mercado que subiram? Apenas
mudou a riqueza.

Encerro o texto com o trecho mais metafórico que consigo exprimir e


com uma citação pertinente ao significado entre as representações
de imagem material e imagem imaterial e a forma como se articulam
no ser. “Didier Plassard chama a atenção para o fato de que, nas
trocas sociais cotidianas, a diferença entre corpos e simulacros não
tem muita relevância.” (D’ÁVILA, 2017, p. 116).

8. Paraíso

371
Disponível em: https://culturebox.francetvinfo.fr/scenes/voyageurs-
immobiles-de-philippe-genty-poursuit-sa-tournee-69005

Referências

Maicon Douglas Santos Kossmann, Graduando em História,


Faculdade Porto-Alegrense - FAPA

Grupo Autônomo de Pesquisa – Sair da Grande noite

Sairdagrandenoite.com

D”ÁVILA, Flávia. Humano em cena: reflexões a partir da obra de


Philippe Genty. Corpos no Teatro de Formas Animadas, [s.i.], v.
17, n. 1, p.107-121, Não é um mês valido! 2017. Disponível em:
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/moin/issue/view/10596
52595034701172017/showToc>. Acesso em: 03 abr. 2019.

D’ÁVILA, FlÁvia Ruchdeschel. UM TEATRO DE


METAMORFOSES: PHILIPPE GENTY ENTREO HUMANO E O
INANIMADO. 2018. 275 f. Tese (Doutorado) - Curso de Artes,
Universidade Estadual Paulista JÚlio de Mesquita Filho Nstituto de
Artes, São Paulo, 2018. Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/154462/davila_
fr_dr_ia.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2018.

372
FERNANDES, Carolina. Identidade de gênero: base histórica-
introdutória. Sair da Grande Noite. 2019. Disponível em:
<http://sairdagrandenoite.com/identidade-de-genero-base-historica-
introdutoria/>. Acesso em: 03/04/2019

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre:


L&PM, 2017.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2. ed. Rio de


Janeiro: Imago, 2008.

PHILIPPE Genty - Voyageurs Immobiles 2010. Direção de Patrick


Savey. [s.i.]: Zycopolis Productions, 2010. Son., color. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=z4Iwo-
oYdAg&fbclid=IwAR1NcNBSNw1DDocDzv7KB_JhBYbsfJoI6ebloF-
GQtAHIV2u7kaGFqKHC6o>. Acesso em: 03 abr. 2019.

373
JUÍZO FINAL E DANSE MACABRE: A
MORTE E A ARTE NA IDADE MÉDIA
PABLO RODRIGO BARRETO COELHO

INTRODUÇÃO

O período conhecido como idade média não é um bloco


homogêneo. Seu início e seu fim são um consenso, afinal, ninguém
vai dormir servo pela noite e ao acordar pela manha se vê um
iluminista. Aceitamos como o início da Idade Média a queda do
Império Romano do Ocidente (476 da nossa era) e a queda de
Constantinopla (1453 da nossa era) como seu marco final, ou seja,
temos um recorte temporal de quase mil anos.

Não tratamos aqui de um acontecimento global, sendo as


concepções sobre a morte uma variante em diversos locais não
presentes no nosso estudo, ou seja, não postulamos uma verdade
universal. Vamos nos deter nas formas como a morte foi encarada
nos períodos finais da Idade Média (séc. XII – XIV), em especial na
França.

Nosso objeto de estudo são duas visões sobre a morte e como elas
foram retratadas na arte.

O MORRER E A IDADE MÉDIA

As incertezas que a morte carrega são uma constante na vida


humana. Para além, as organizações religiosas e sociais também

374
possuíam suas formas específicas de tratar os assuntos do outro
mundo. Ao morrer seriamos separados entre os que vão entrar no
reino dos céus e desfrutar da vida eterna no Paraíso e os condenados
ao Inferno para sofrer por toda a eternidade.

As interpretações sobre o nosso fim sofrem são variadas, bem como


é variada a sua utilidade. Existiam também aqueles que não
possuíam sua maior preocupação nas questões da alma, mas sim
dos corpos e da vida. Para eles, a morte serve para lembrar ao ser
humano que ele é mortal, serve para mostrar a materialidade e
finitude do corpo, e das glórias.

ICONOGRAFIA E O JUÍZO FINAL

O medievo é marcado pelo analfabetismo. Em verdade, saber ler e


escrever não era, nem de longe, uma das principais preocupações do
Homem comum. Estas são atividades da nobreza, do clero e de
letrados, ou seja, grupos onde os trabalhadores braçais não
preenchem fileiras. Sabendo da sua grande massa de iletrados a
Igreja católica, em torno dos séculos XII e XIII, buscou alternativas
para fazer com que o conhecimento bíblico fosse passado para a
população não alfabetizada que frequentavam os cultos.

A alternativa encontrada foi a produção de um tipo específico de


material pedagógico e artístico. Obras de arte contendo os
ensinamentos bíblicos, ou as mensagens que a Igreja queria passar,
deveriam estar bem visíveis para os fiéis e, uma vez que todos
devem entrar na igreja pelos seus portais, os ornamentos dos
tímpanos tornaram-se uma das principais áreas onde eram
colocadas tais obras, por isso, José Rivair Macedo (2000) em seu
trabalho sobre o riso na Idade Média escreve que “a estatuária

375
constitui um tipo privilegiado de criação na arte sacra, destinada ao
olhar do grande público.”, e que “aquilo que os simples, os iletrados,
não pudessem entender através da escrita poderia ser aprendido
com o recurso da imagem”. Ainda de acordo com Macedo, temos
Eco, que diz que as representações artísticas dentro das igrejas, ou
de carácter sacro, são além de tudo ferramentas pedagógicas, “a
literatura dos laicos” (Macedo, pg. 75, 2000). Ou seja, é uma forma
de propagar a ideologia da Igreja para os grupos que não são
capazes de ler a bíblia ou entender a linguagem das missas.

Podemos notar que a preocupação da Igreja é a transmissão de seus


conhecimentos, basicamente, temos um grupo erudito querendo
interpelar um grupo humilde com suas crenças, entendemos que
isso é parte do pensamento de Ginzburg, quando remete aos
“desníveis culturais” (2014, pg.12), onde existiriam camadas
diferentes de cultura, visto que existem grupos culturais diferentes
numa mesma sociedade.

Segundo a fé cristã, aquele que em vida se desvia do caminho


correto é condenado ao inferno para sofrer por seus pecados por
toda a eternidade. Logicamente, quem sofre esse infortúnio não se
vê numa situação confortável, mas e aqueles que estão no inferno
para realizar o trabalho para a qual foram criados? A riqueza nas
representações entre os mortos e as criaturas sobrenaturais é uma
ótima fonte para entender a mensagem que se busca passar.

Para ser efetiva, a obra criada precisa ser marcante, ela deve entrar
na mente de quem a observa e o seu ensinamento deve ser cunhado
no subconsciente de quem a lê, de modo que o que foi visto não seja
esquecido. Demônios, inferno e castigos, Macedo (2000) qualifica
essa forma de ensinar como “a pedagogia do medo”, ou seja, o
medo do inferno e do sofrimento como o ferro que marca na alma o

376
ensinamento. A concepção de medo encontra paralelo no livro
Religião e Cristianismo (1977), segundo este manual (produzido
pelo Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, da PUCRS), o que é
Santo provoca “medo e admiração”, ou seja, aquilo que é sublime.
Evitando o anacronismo, essa visão é contemporânea, mas pode-se
perceber que ela anda de acordo com os pensamentos religiosos do
medievo. É importante lembrar que o ensinamento religioso através
das imagens não pode se desvincular dessas duas faces, senão ele é
incompleto. Se for belo e não carregar uma mensagem, não é útil, se
possui uma forte face pedagógica, mas não é belo, não consegue
interpelar quem o observa.

Segundo Hilário Franco Júnior (1999), para compreendermos uma


situação, precisamos observar o contexto que a precede e sucede,
bem como as camadas culturais que se fazem presentes nesse
recorte. Tal pensamento é basilar para compreendemos as ações dos
personagens retratados nas obras e qual é o ensinamento que se
pretende passar. Macedo (2000) ainda nos diz que a relação entre
riso, fé e medievo é mutável e que o sorriso passa de algo
completamente repreensível para algo bem visto através do riso
sincero de alegria e amor para com Deus. Para nós fica então a
percepção de duas ações, o riso bem visto e a risada (ou a
gargalhada) destemperada que reflete o descontrole da alma ou
maldade. Assim, surgem as concepções onde o descontrole e
maldade se faz presente nas gargalhadas desformes, na falta de
controle dos corpos e ações dos demônios retratados, enquanto aos
que sofrem resta apenas uma face de sofrimento com poucas
expressões.

Cristo, sempre é visto com uma expressão séria julgando e


separando os que morreram entre os bem-aventurados e os
condenados, é interessante notar a dualidade entre o bem e o mal
sendo o riso maligno e a seriedade benigna, características opostas

377
ao que poderíamos pensar em um primeiro momento onde Jesus
seria o que ri e o demônio aquele que é sério ou raivoso. A
explicação para tal está na própria bíblia, afinal, não se sabe se Jesus
sorriu, mas o texto confirma sobre o seu chorou (João 11,32-36;
Lucas 19, 41-42).

Podemos compreender como a ligação entre Deus e os homens se


faz no próprio corpo humano. Cristo, os anjos e os homens
comumente possuem semelhanças. Com um olhar atento
conseguimos ver a humanidade pelos seus traços, braços, pernas e
movimentos similares, por isso, todos se parecem humanos. Ainda
voltamos nossa análise para as suas expressões, todos sérios e
austeros, quando pretendem demonstrar alegria ela é sutil e não
mais que um leve sorriso, os seus movimentos e posições são todas
humanas. Sorriso para os anjos que levam os eleitos para o Paraíso e
sorriso para aqueles que veem sua fé recompensada.
Imageticamente, as semelhanças entre nós e as criaturas celestiais
traduzem a pregação que somos a imagem e semelhança do Criador
(Gênesis 1,26).

As criaturas infernais já se fazem o completo oposto, elas


desfiguram suas faces de tanto rir, não possuem qualquer simetria
em seus corpos, isso quando não são monstros completos que mais
se parecem com animais e outras criaturas fantásticas, portanto, não
se parecem com Deus, anjos ou homens.

378
Figura 1 – Tímpano leste de Notre Dame retratando o Juízo. Disponivel
em: http://www.mountainsoftravelphotos.com

Cristo, sério em seu trono, está sob o mundo e separa as almas. Para
a sua direita vão os que estão salvos, a frente deles temos um anjo
que os protege ao mesmo tempo em que carrega uma balança. Para
a sua esquerda são lançados os condenados ao inferno. Aqui não é
um anjo que os protege, mas existe um demônio que os conduz com
uma corrente, enquanto atrás deles outro demônio os assedia, todos
estão sorrindo, são distorcidos e animalescos.

A morte, aqui, separa entre bons e maus, não leva em conta a


materialidade do mundo, mas sim as preocupações celestiais.
Segregados pedagogicamente entre bem-aventurados e malditos.

MEMENTO MORI

A segunda visão que trazemos nesse trabalho trilha um caminho


diferente da anterior, é o memento mori (“lembra-te que és mortal”),

379
que nos é trazido por Huizinga (1996, pg.104). Aqui o devir não é a
escatologia católica, tão pouco existe esta preocupação, o que
importa é do futuro terreno, é a decadência da carne e da honra.
Não pensamos o morrer como um meio teológico ou pedagógico,
agora a morte serve para lembrar-nos que somos frágeis e
humanamente iguais. Basicamente temos aqui a concepção de que
toda a glória, vida e beleza são temporárias.

Para lembrar que nada é eterno busca-se algo chocante, segundo


Johan Huizinga “a alma medieval exige uma incorporação mais
concreta do perecível: o cadáver que apodrece” (1996, pg.105). Esse
é um ponto de ruptura com as representações sacras dos tímpanos
ou pinturas sobre o Juízo. Nas obras antigas o sangue, a dor e a até
mesmo a sujeira são “limpas”, não são viscerais, agora nos
deparamos com os horrores da decomposição, basicamente,
passamos do campo imagético simbólico para o realista.

Huizinga, no seu texto O Declínio da Idade Média nos diz “um


pensamento que tão fortemente se vincula ao lado terreno da morte
dificilmente poderá considerar-se autenticamente religioso” (1996, -
g. 106), é uma espécie de contra ponto em relação à hierofania tão
marcante, continuar ele, “a renuncia é fundada no desgosto, não
brota da sabedoria cristã”.

Ao nos trazer textos que relatem essa perspectiva, Huizinga


apresenta o Parement et Triumphe des Dames, a obra nos lembra como
o corpo reage ao tempo, “nariz e boca apodrecerão” e “tua beleza
mudar-se-á em fealdade”, mas nem somente da decadência física
são os alertas. Ainda pesa sobre os ombros de quem ousa envelhecer
o medo da solidão “... neste mundo só causareis estorvo”, uma vez
que a decrepitude se aproxima não existem mais perspectivas, “se
tiverdes uma filha para ela será uma sombra”, portanto a idade e a

380
vida não são fontes de prazer, e se o forem, tais prazeres não se
sobrepõem às dores da idade, da morte e da invalidez.

DANÇA MACABRA

Um dos principais motivos para o novo olhar foi a Peste negra, uma
das grandes propagadoras do memento mori. Essa doença era algo
totalmente novo, os enfermos contraiam sintomas similares aos da
gripe, logo a sudorese se manifestava dando início a pústulas negras
que marcavam o corpo do doente, em torno de três dias a vitima
morria. As condições sanitárias, o descuido com os corpos e o
grande volume de cadáveres ajudou na banalização da morte,
segundo Boccaccio que viveu os males da Peste (sendo o Decameron
uma história ambientada neste contexto) os cidadão das cidades
“dug for each graveyard a huge trench, in which they laid the
corpses as they arrived by hundreds at a time, piling them up tier
upon tier as merchandise is stowed on a ship”, outro caso conhecido
é o de Agnolo di Tura del Grasso, que enterrou os seus cinco filhos e
sua esposa “with his own hands”. Ou seja, a morte banalizou-se,
estava dentro e fora de casa e qualquer um poderia ter a vida
ceifada.

Por isso, Huizinga prega que o macabro, tal como conhecemos,


surge ai “[...] o sentimento que ele encarna, algo horrível e funesto, é
precisamente a concepção da morte [...]”(1996, pg.108), a morte do
corpo, a morte da beleza e da glória, essas que não são mencionadas
no Paraíso.

Tais formas de compreender e se relacionar com o fim da vida foram


percebidas pelos seus contemporâneos, o que desencadeou uma
nova produção artística sobre a morte e o morrer, este desvinculado

381
da produção religiosa. Segundo Coelho “A arte é uma síntese entre
o que o autor inspira do mundo e expira, essa devolução que ele faz
do ar respirado carrega toda sua interpretação do mundo e junto
dela sua produção” (2018, pg.223), tanto é que a produção de obras
que encaram essa nova visão se intensifica. Consoante

“Cerca do ano 1400 a concepção da morte na arte e na literatura


revestiu-se de uma forma espectral e fantástica. Um novo e vivo
arrepio veio juntar-se ao primitivo horror da morte. A visão
macabra surgiu das profundezas da estratificação psicológica do
medo; o pensamento religioso imediatamente reduziu a um meio de
exortação moral.” (HUIZINGA, 1996, pg.180)

Nesse contexto onde a fé está posta de lado, emerge o danse macabre.


O surgimento (séc. XIII) é com um conto sobre três jovens nobres
que em algum momento encontram três mortos-vivos, ao passo que
os mortos exortam os vivos sobre a morte e as penúrias da vida
avançada. Afinal, a vida tem um fim, a morte tem apenas um início.
A espera não foi grande até os três jovens serem substituídos por
outros três arquétipos, o nobre, o clérigo e o plebeu. As variações
ainda se aplicam aos mortos, existem versões onde os são “versões
futuras” dos vivos, ou até o surgimento da Morte em si. Assim, a
dança da morte ao mesmo tempo prega uma espécie de igualdade
que não era tão presente nessa sociedade estamental, a morte nivela
as várias categorias sociais e profissões, sem se preocupar com o
status social do futuro defunto, todos à ela sucumbem.

382
Figura 2 - The Lübeck Danse Macabre. Disponivel
em: https://hyperallergic.com/331875/lubeck-danse-macabre-chapel/

Podemos observar que na tapeçaria de Lübeck (figura 2), mortos e


vivos estão de mão dada, caminhando juntos, os que não querem
dar suas mãos para os mortos se veem sendo puxados por estes.
Nessa representação temos um membro do alto clero e um rei sendo
conduzidos enquanto os mortos dançam e mostram certa alegria em
seus movimentos.

É importante lembrar que a dança dos mortos, em sua essência, não


é a dança da Morte. Aqui o protagonista é o morto e não a Morte
enquanto “entidade” que vem buscá-lo, Huizinga (1996, pg.109) “O
infatigável dançarino é o próprio homem vivo na sua futura forma,
um duplo horrendo da sua pessoa.”.

EQUALIZANDO A VIDA NA MORTE

A vida de uma sociedade onde a flutuação entre as camadas sociais


é praticamente nula resulta em estagnação, as elites se perpetuam e

383
as massas humildes não conseguem uma ascensão social. Assim,
podemos entender como que era necessária a ideia do Paraíso e suas
recompensas para os bons cristãos, lá todos seriam iguais, algo que
em vida era impossível. O danse macabre fez o máximo possível para
trazer à materialidade humana essa igualdade. No Paraíso todos
somos iguais, a Morte vem buscar a todos.

Um exemplo que corrobora nossa ideia de nivelamento é o


Cemitério dos Inocentes, na França. Nesse local, existe uma mistura
entre o profano e o religioso. Huizinga (1996 pg.111) “em nenhuma
outra parte como no Cemitério dos Inocentes, em Paris, atingiram
estas imagens tanta intensidade na evocação do horror da morte. Ali
podia a alma medieval, sedenta do temor religioso, saciar-se do
horrível.”, afinal

“sob os claustros a dança macabra exibia as imagens e as instâncias.


Não havia lugar mais adequado para a figura simiesca da morte de
dentes arreganhados, arrastando na terra papas e imperadores,
monges e malvados.” (HUIZINGA, 1996, pg.111)

A rotação dos cadáveres era muito grande, “acreditava-se que nesta


terra um corpo humano se decompunha até aos ossos em nove
dias”. Outro fato interessante e que corrobora a banalização da
morte é que “as caveiras e os ossos eram amontoados e ali jaziam à
vista para edificação de milhares de pessoas, dando a todas uma
lição de igualdade, Huizinga (1996, pg 111).

Retomando Ginzburg, compreendemos que essas produções e


concepções proveem de camadas mais letradas da sociedade, não
sendo a produção das massas, mas sim para as massas (2014, pg.
13).

384
CONCLUSÃO

Percebemos que as visões da morte são um reflexo das estruturas


culturais concomitantes que a entendiam de formas diferentes. A
Igreja buscava na morte uma forma de educar os fiéis, de ensinar o e
cativar o seu público, para tal, viu nas obras artísticas sobre Juízo e a
morte a ferramenta que precisava. O mundo secular, chocado pela
banalização do morrer e surpreendido com a onda de morte que
varreu a Europa, percebe que independente do status social, todos
tem o mesmo fim, por isso, com a percepção da decadência e
podridão do corpo. O ensinamento agora é outro, é o de igualdade,
é o memento mori que também encontra na literatura e nas obras
gráficas o seu meio de propagação.

Por fim, as duas visões são o reflexo de mundo de dois grupos


distintos e que apesar do senso comum, a fluidez artística e
filosófica da Idade Média não se fazia uma prisioneira de dogmas e
ordens da Igreja Católica.

REFERÊNCIAS:

Pablo Rodrigo Barreto Coelho: Especialização em Ciência da


Religião (FAVENI); Graduado em História pela FAPA – Faculdade
Porto-Alegrense; Membro fundador do GAP (Grupo Autônomo de
Pesquisa) - Sair da Grande Noite. https://sairdagrandenoite.com/;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7732722572974282

COELHO, Pablo; PSICANÁLISE, ARTE E REPRODUÇÃO: do


Sentimento Oceânico ao fim da Aura no capitalismo. In: NUNES,
Francivaldo (org.). I IMPÓSIO ONLINE DE HISTÓRIA DOS

385
ANANINS: ENSINO, PESQUISA, EXTENSÃO. Pará: Editora
Cordovil, 2019. p. 222-229

GINZBURG, Carlo. O QUEIJO E OS VERMES: O cotidiano e as


ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Editora
Schwarcz S.a., 2014.

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. Lisboa: Editora


Ulisseia, 1996.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. O ANO 1000: Tempo de medo ou


esperança?. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média.


São Paulo: Unesp, 2000.

CORREIO DO POVO:
MODERNIZAÇÃO, ASCENS ÃO E
QUEDA DO JORNALISMO GAÚCHO
PABLO RODRIGO BARRETO COELHO

Introdução

Para se compreender as ações que levaram a constante atualização e


modernização da empresa jornalística da família Caldas o trabalho
baseou-se em uma abordagem de natureza básica e de uma
produção direta de conteúdo sobre o tema, caminhando pela
história de Caldas Júnior até a venda do jornal por Breno Caldas. O
procedimento utilizado foi de revisão bibliográfica e análise
documental das fontes, buscando apoio em autores como Juremir

386
Machado e o próprio Breno Caldas, através do livro “Meio Século de
Correio do Povo”.

O(S) HOMEM(S) POR TRÁS DO CORREIO

O jornal Correio do Povo nasce por iniciativa de Francisco Antônio


Vieira Caldas Júnior (1868 – 1913). Caldas Júnior já vem ao mundo
em um ano emblemático, os 60 anos da chegada da família real no
Brasil, consequentemente, sessenta anos do surgimento da imprensa
no país. Com origem familiar em Sergipe, sua família mudou-se
para Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, quando ele
possuía apenas quatro anos de idade, no ano de 1872.

“Após passar pelo Jornal do Comércio, Caldas Júnior, em 1895,


funda o Correio do povo, com auxílio de José Paulino de Azurenha
e Mário Motta. Estes dois parceiros eram respectivamente “um
negro porto-alegrense, de 34 anos com experiência de gráfico e
redator no Jornal do Comércio, e um branco, também poeta, de 21
anos de idade [...]” (MACHADO, 2015).

Ou seja, não foi uma empreitada solitária, foi muito além. Caldas
Júnior desenvolveu um grupo heterogêneo, alvo de preconceitos,
tendo em vista um grupo formado por um nordestino e um negro.
Juremir Machado, autor de uma obra sobre a primeira semana do
jornal descreve o seu surgimento:

“O Correio do Povo veio à luz, numa terça-feira, com quatro


páginas, como era comum, de 39 por 56 centímetros, divididas em
seis colunas, impresso, em papel importado da Europa, numa
modesta máquina Alauzet, com redação na Rua dos Andradas, 132,

387
e uma tiragem de dois mil exemplares [...]” (MACHADO, 2015, pg
34)

O contexto político era delicado e entre chimangos e maragatos,


Caldas Júnior optou pela fuga de um posicionamento político, esse
era o tom do jornal que não se interessava pelas lutas partidárias ou
panfletistas.

Morre Júnior, espera-se por Caldas

Com a morte de Caldas Júnior, o empreendimento passou para as


mãos do seu primogênito, Fernando Caldas, contudo, em 1929,
Fernando deixa a direção do jornal, momento em que Breno Caldas
começa a percorrer desde baixo a trilha para a direção do jornal
(STRELOW, 2010). Os ventos só soprariam em favor do Correio
quando Breno ocupasse o cargo mais alto da empresa.

Passando por um período de crise financeira, até sua colocação


como um dos maiores jornais do país, o Correio do Povo, bem como
a Rádio e Televisão Guaíba encontraram um fim. A falência do
grupo ocorreu durante o controle de Breno Caldas, onde após uma
série de tentativas frustradas os custos e gastos tornaram inviável a
manutenção do jornal.

A VISÃO DE BRENO

Modernização, delegação de poder e política, esses são os pontos


que Breno Caldas aponta para explicar o fim do grupo. Contudo,
como o sexto homem mais rico do Brasil, segundo uma reportagem

388
paulista (CALDAS, 1987) conseguiu ruir com um império
jornalístico de tal grandeza?

O papel do Jornal

Algo que entra em contraste com o passado narrado por Juremir


Machado quando ele descreve o surgimento e o primeiro dia do
Correio do Povo é o império que este se torna em meados de 1970
em contraste com a empresa (relativamente) modesta, contudo
promissora do início do século.

Caldas recorda uma visão. Ao ver a grande maioria de seus


funcionários com familiares reunidos, “Estavam lá 8 mil pessoas que
de certa forma dependiam de mim.” (CALDAS, 1987) ao comentar
uma confraternização realizada à 1975. A visão de Breno era a de
responsabilidade. A de Caldas Júnior também era, mas podemos ver
que a relação de Caldas Júnior com seus outros dois colegas de
empreitada em muito difere (ao menos na questão numérica) do
sentimento de Breno. Fator numérico esse que somente em
funcionários se sobrepõe gigantescamente sobre o número inicial de
exemplares vendidos.

Partindo da primeira tiragem de dois mil unidades o Correio do


Povo chegou ao teto de 93 mil assinaturas. É claro, devemos
ponderar a diferença entre os tempos, as transformações que
ampliaram o número de leitores e demais transformações, contudo,
o número bruto é de 93 mil exemplares referidos a assinantes, esse
montante não engloba os jornais vendidos avulsos.

389
E ainda temos as instalações, prédios e equipamentos que sempre se
manteram no mais alto nível tecnológico é o caso da reunião
da American National Publishers Association, evento estadunidense
ocorrido no ano de 1977, onde Breno foi buscar tecnologia e a mais
moderna aparelhagem para o Correio do Povo. Nesse momento
Breno queria atualizar o seu maquinário, encontrava a possibilidade
de substituir o serviço de composição por linotipo por um método
eletrônico, uso de salas com computadores e demais avanços. Faz-se
inegável a relação entre o Correio do Povo com a própria
modernização do jornalismo gaúcho.

Percebemos que a aspiração da família Caldas em manter a


excelência na produção está marcada na própria essência familiar,
primeiro foi em 1910 com Caldas Júnior. Sob sua direção, montou-se
no Estado a primeira impressora rotativa, um grande avanço que
permitia a impressão de até dez mil exemplares por hora, para
poucos anos depois, ser implantado o sistema de linotipos, onde a
composição das partes metálicas que serão usadas para a produção
das linhas e páginas são completamente revolucionarias (FONSECA
2008)

Logicamente, essas transformações só seriam possíveis no contexto


histórico vivido por Caldas Junior, a conhecida terceira revolução
industrial. Ainda segundo Fonseca:

“Durante o século XIX o aprimoramento das técnicas de impressão,


a evolução dos meios de comunicação, de transporte e a ampliação
do público leitor com a difusão da alfabetização contribuíram para o
aumento da produção de periódicos. Foram importantíssimas, para
a constituição da indústria gráfica, invenções como a prensa
cilíndrica, a rotativa, o linotipo, a estereotipia, a
fotografia, e também a modernização nas comunicações através

390
das agências telegráficas de notícias. Há que ressaltar que esse
processo funcionou com efeito cumulativo: o aumento do consumo
de jornais contribuiu para o aumento do
capital das empresas jornalistas e, com isso, elas investiram na
pesquisa de
tecnologias que aumentassem a tiragem e reduzissem o tempo
de produção sem que os custos operacionais fossem muito
onerados.” (FONSECA, 2008, pg. 61)

Ou seja, Caldas Júnior buscou se manter com um alto nível


competitivo, com Breno não foi diferente. O desponte de uma
modernização ao horizonte é uma marca do século XIX e XX. Uma
marca entre Caldas pai e filho.

Entretanto, as transformações em sociedades em desenvolvimento


(ou em setores em expansão) não param tão facilmente. É o caso das
mudanças nas interações sociais e nas relações de convívio entre as
pessoas. Os hábitos se adaptam as mudanças, mas não deixam de
existir em sua essência.

A sociedade gaúcha, em especial a porto-alegrense entrou em um


processo de modernização muito forte em meados dos anos 1950.
Essa modernização é entendida e observada em diferentes pontos
entre eles a urbanização, questões sociais e a industrialização
(D’Avila, 2002). Com a modernização do Brasil no pós II Guerra
Mundial o país passa por um processo de urbanização, aumentando
assim a quantidade de pessoas que buscam uma alternativa à vida
do campo, engrossando dessa forma as fileiras de trabalhadores
industriais. Como já referenciado anteriormente, o Correio do Povo
era um desses pontos modernizadores, era uma empresa
jornalística, uma indústria de notícias que absorvia uma parte de

391
trabalhadores nas mais diferentes funções, editores, motoristas,
distribuidores, trabalhadores do galpão e do escritório e etc.

A VIDA, RÁDIO E A TELEVISÃO

A vida é pautada por questões do cotidiano e dentre as atividades


mais populares e corriqueiras de entretenimento temos o convívio
dos vizinhos e as conversas às portas das casas e nas calçadas.
Porém, com a forte urbanização e modernização do estilo de vida, as
ruas e calçadas que outrora eram o palco do convívio social entre os
adultos e o espaço de interação infantil acabam cedendo espaço aos
automóveis, às multidões e perdem a sua calmaria, as interações e
troca de informações acabam se adaptando as circunstancias.

Na vida

Devemos ter em mente que por mais dificultosa que possam se


tornar as formas de interação elas não vão se desfazer, apenas se
adaptarem, assim, temos as alternativas que cada vez vão receber
mais público, o rádio e a televisão. É a modernização no campo
pessoal e cultural. Pode-se tratar de uma transformação que é um
reflexo de um quadro maior, ela não é pensada e buscada pelas
pessoas, contudo, ela é uma consequência (D’Avila, 2002). Ainda
para D’Avila:

“Consideramos o lazer como a utilização de um tempo livre das


atividades institucionais para a realização de tarefas que envolvam
prazer físico ou mental. A dinâmica do lazer pode expressar-se em
vários momentos. [...] Nas praças e nos cafés, após cumprirem suas

392
tarefas diárias, variados grupos de porto-alegrnses reuniam-se para
fazer o que gostavam.“ (D’Avila,2002, pg 34)

Porém essa realidade já estava sofrendo uma transformação. A


especulação imobiliária “destrói” os elementos naturais da cidade,
acaba com seus espaços livres e de convívio . Coloca-se “na verdade,
essa especulação está dentro de um processo maior de mudanças da
modernidade, onde as formas arquitetônicas e urbanas dificultam
ainda mais a articulação entre o público e o privado”, vemos aqui a
linha entre o público e o privado como o lazer privado das pessoas
sendo realizado em locais públicos.

Ao mesmo tempo em que vão desaparecendo antigos pontos de


encontro, de lazer, outras formas de diversão vão aparecendo ou
enraizando-se. O rádio vive uma fase áurea, apresentando
programas como novelas e musicais. Ele possui aspectos ligados a
um velho padrão de cultura. Sendo apenas auditivo, prima pelo uso
da imaginação. Esse pensamento que liga a imaginação com o
entretenimento é, como diz o excerto acima, uma ligação com as
antigas rodas de conversa, onde a imaginada dava cor e vida ao que
era narrado.

É nesse contexto pós II Guerra Mundial de transformações que no


ano de 1957 surge a Rádio Guaíba, a modernização da noticia e da
informação. Agora não mais se viva com tanta frequência a vida
compartilhada com os vizinhos, a relação entre noticia e
entretenimento com as pessoas mudara, era um produto a ser
oferecido.

A sua idealização era voltada a uma programação de grande


qualidade, que deveria fugir dos modismos e vulgaridades da época

393
(CALDAS, 1987). A rádio para Breno Caldas era de uma relação
quase pessoal “Sim... Pelo menos junto ao público que eu desejava
atingir! O que eu queria fazer... a minha fórmula era fazer uma
estação de rádio que eu pudesse ouvir! Uma rádio que eu tivesse
prazer em ouvir.”, ele continua quando mostra a sua aversão a uma
midiatização medíocre:

“Eu não queria nada disso. Queria uma coisa que ficasse, uma
espécie de Correio do Povo no ar... Uma forma de veicular
publicidade discreta, que tivesse bons anunciantes... Não se
aceitavam anúncios escandalosos, não havia jingles, que era para não
nivelar com os outros nesse terreno. Na guaíba, a propaganda era
lida por locutores de muito boa voz que eram
selecionados”.(CALDAS, 1987, pg 68)

Contudo, nesse mundo de constante cambio e de avanços


jornalísticos, Caldas encontra uma nova empreitada, a televisão.
Criar uma televisão era algo que o próprio Breno admite ser difícil,
caro e arriscado. É com o surgimento da Televisão Guaíba que os
problemas reais começam a afetar as empresas da família. A “rádio
com imagens”, como Breno chama, deveria ser uma extensão do
Correio do Povo, assim como era a ideia em relação a Rádio Guaíba.
Porém, esse afã pela televisão, por mais um empreendimento era
realmente necessário? “Algumas coisas que não precisavam ser
feitas, foram feitas, com custos altíssimos. A TV Guaíba foi uma
delas. A TV desequilibrou a empresa.”, comenta Breno, que
continua, “Eu tinha uma experiência vitoriosa com a em rádio [...],
achei que também seria fácil me sair bem com a TV.” (CALDAS,
pg.31, 1987).

Talvez, ao criar a sua própria televisão, Breno tenha tentado à frente


em uma época que se fazia propicio esse tipo de atividade. Em

394
especifico, nos anos 1950, 1960, o Brasil passa pela importação da
cultura estadunidense, é a explosão da cinematografia, da música e
do american way of life. Assim:

“Quanto ao cinema, além de ter sido a grande diversão da época foi


um propagador dos novos padrões culturais americanos, através da
tela, entrava-se em contato com o “novo mundo” [...]” (D’Avila, pg
80, 2002)

Assim, em 1979, nasce a Televisão Guaíba, destinada a ser um


sucesso. Deveriam ser traçados paralelos entre televisão, rádio e
jornal. É nesse momento que o império da família Caldas começa a
ruir.

A implantação da televisão se dá ao mesmo tempo em que Breno


Caldas está atualizando as instalações e maquinário do Correio do
Povo. As despesas começam a ficar delicas bem como a situação
econômica e política do Brasil que passa por ajustes na moeda.

Se o tamanho do Correio do Povo, com seus “oito mil dependentes”


já era algo delicado para Breno lidar, como ele trataria o aumento de
pessoal com a rádio e a televisão. Como já vimos, Breno mantinha
um caráter centralizador de poder, estava sempre no comando de
todas as ações e se botava no cargo de responsável por tudo que
poderia acontecer com relação aos seus negócios, “A questão é que
um jornal precisa ter direção única, uma orientação unificada e bem
definida. Alguém tem que ter a última palavra.”, era assim que
Breno pensava, e teria lidado com a Televisão Guaíba, contudo com
o crescimento da empresa ele se viu obrigado delegar funções, a
esperar por setores e pessoas para por em prática suas ordens e as
necessidades da empresa.

395
Assim, para Breno, a combinação de inexperiência, descentralização
de poder e gastos econômicos foram as marcas do fim do Correio do
Povo, da Rádio e Televisão Guaíba. A venda das empresas se deu
em 1984 para Renato Bastos Ribeiro. Hoje em dia o jornal Correio do
Povo e a Rádio Guaíba são propriedades do Grupo Record, tendo a
Televisão Guaíba cedido espaço para a Televisão Record.

Ainda nos dias de hoje, o jornal Correio do Povo e a Rádio Guaíba


buscam sua modernização. A transformação cultural proporcionada
pelos novos hábitos, como o uso dos smartphones, fez com que esses
veículos sejam acessíveis através de plataformas digitais, como os
aplicativos para celular e cópias digitais para assinantes do jornal.

Conclusão

Nesse trabalho, apontam-se as relações do jornal Correio do Povo,


Rádio Guaíba e Televisão Guaíba com o seu tempo histórico.
Buscamos entender o contexto de surgimento e desenvolvimento
destas empresas através do recorte temporal e cultural, tendo como
pano de fundo Caldas Júnior e Breno Caldas.

Passando pela terceira revolução industrial, período que


proporcionou o avanço tecnológico do grupo e a onda de
modernização industrial/urbana que alterou as formas de convívio
entre as pessoas, estas, que se tornaram público consumidor de uma
cultura de massa.

396
REFERÊNCIAS:

Pablo Rodrigo Barreto Coelho: Especialização em Ciência da


Religião (FAVENI); Graduado em História pela FAPA – Faculdade
Porto-Alegrense; Membro fundador do GAP (Grupo Autônomo de
Pesquisa) - Sair da Grande Noite. https://sairdagrandenoite.com/ ;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7732722572974282

CALDAS, Breno; MACHADO, José Antonio Pinheiro. Meio Século


de Correio do Povo: Glória e agonia de um grande jornal. Porto
Alegre: L&pm Editores, 1987.

D’Avila, Naida Lena Menezes. NA TRAJETÓRIA DA


MODERNIDADE: O lazer e a moral nos anos 50 em Porto
Alegre. In: KRAWCZYK, Flávio(org.). Da Necessidade do Moderno:
O futuro da Porto Alegre do século passado. Porto Alegre: Unidade
Editorial, 2002. P. 69-93.

FONSECA, Letícia Pedruce. A Construção visual do Jornal do


Brasil na primeira metade do século XX. 2008. 214 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Artes & Design, Departamento de Artes &
Design, Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=11855@1>. Acesso
em: 24 jun. 2018.

SILVA, Juremir Machado da. CORREIO DO POVO: A primeira


semana de um jornal sentenário. Porto Alegre: Editora Sulina,
2015.

STRELOW, Aline. Breno Caldas: Poder e declínio de um dos mais


influentes jornalistas gaúchos. Disponível em:
<http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-imprensa-strelow.pdf>. Acesso
em 24 jun. 2018

397
NAS TRILHAS DO (I) MATERIAL:
HISTÓRIA E MEMÓRIA DO CASARÃO
PADRE SÃO PALÁCIO, EM
PIRACURUCA-PI
PAULO TIAGO FONTENELE CARDOSO
PEDRO PIO FONTINELES FILHO

1 INTRODUÇÃO

Piracuruca é uma cidade localizada ao norte do Estado do Piauí,


possui ainda um vasto acervo arquitetônico de suas construções,
insere-se nas cidades que testemunharam a colonização,
povoamento e desenvolvimento do estado. Ao observarmos suas
construções podemos ver de perto, sua formação religiosa, os
períodos econômicos pelos quais a cidade passou e o modo de
habitar de sua antiga população, pois “o desenho das ruas e das
casas, das praças e dos templos, além de conter as experiências
daqueles que os construíram, denota o seu mundo.” (ROLNIK,
2004). Sendo assim, as obras de arquiteturas das cidades são
organismos vivos capazes de serem lidos e decifrados.

Cada marca e traço presente na arquitetura urbana da cidade denota


uma referência do passado, sendo este sempre revisitado quando há
uma atualização permanente da memória, pois “a cidade não conta
o seu passado, ela o contem como na linha das mãos, escrita nos
ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das
escadas...” (CALVINO, 2001).

Piracuruca, por ser uma povoação surgida ainda no século XVIII,


detém um acervo de construções com estilos arquitetônicos

398
distintos, apresentando assim, em seu perímetro urbano construções
capazes de evidenciar o percurso de sua história, fundamental para
o processo de formação das identidades com os espaços regionais e
locais dos citadinos com a urbes, pois:

“Andando pelas ruas de Piracuruca é possível conhecer de perto a


história da arquitetura piauiense. Com vários estilos que marcaram
cada época, suas construções mostram os períodos de prosperidade,
dificuldade e superação da sociedade piracuruquense.”
(ESCÓRCIO, 2003, p.18).

Através da perspectiva do autor pode se sentir que o espaço em que


se encontra o objeto de estudo em questão pode ser entendido como
sendo uma paisagem cultural, local esse onde as marcas deixadas
pelo tempo existem como o resultado de diferentes momentos
históricos que se cristalizam no espaço geográfico, no caso a
paisagem é formada pelas edificações existentes no entorno da Praça
Irmãos Dantas, um dos principais logradouros da cidade e de
interessante importância histórica, pois era nesse local que se
desenrolava o cotidiano da maioria da população e que no decorrer
do tempo produziram uma realidade transformando através de
acréscimos ou eliminações resignificando essa paisagem através do
tempo. A importância social e histórica que o referido prédio possui
no entorno do centro histórico e patrimonial da cidade, pode ser
entendida com suas variações de significado para a história e a
população da cidade, onde o espaço passa por uma reapropriação
no modo se sentir o casarão.

Nesse sentido, destacar o casarão como objeto não é reduzir a


análise. Pelo contrário, é trabalhar com a noção de escala, como
sugerem autores como Geovanni Levi, que encabeçam princípios da
micro-história. Princípios tais que ressaltam que

399
“Dado um episódio, um lugar, um documento, devemos aplicar
nele uma redução de escala. A micro-história é uma prática que
implica o rompimento de hábitos generalizantes. Não buscamos a
generalização das respostas, e sim das perguntas: quais são as
perguntas que podemos criar e aplicar também em situações
totalmente diferentes? Sendo bem sintético: estamos interessados na
pergunta geral que emerge de uma situação local.” (LEVI, 2009, p. 2)

Não se pretende aqui dizer que o presente estudo está sendo


embasado nas teorias da micro-história, mas, sim, dizer que ela é
importante para compreender um dado objeto – o casarão – em suas
inter-relações com outras esferas, consideradas macro, como a rua, a
praça, o bairro, a cidade. Assim, o casarão é o fio condutor para o
entendimento de sua história, mas não unicamente. O casarão
conduz para a (re) construção da história e da memória da própria
cidade.

Por esse diapasão, tomar o casarão como objeto é seguir o lastro das
pesquisas históricas que valorizam a cidade material, com todos os
seus componentes, na produção do próprio conhecimento histórico.
Nesse “grande acervo”, é necessário que cada “documento” seja
pensado como integrante de tal acervo. O casarão um desses que
constituem esse acervo e seus registros, ao longo do tempo, remetem
aos diferentes usos, funções e significados que o prédio foi tendo.

Aplicado-se aos aspectos históricos e artísticos, o Casarão Padre Sá


Palácio também se constitui em um discurso sobre o passado cuja
referencia é um conjunto de valores arbitrados por determinados
agentes sociais no sentido de legitimar status vigentes. Insere-se
nesse contesto o que Pierre Nora define como lugares da memória:
“locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam ou cristalizam

400
as memórias de uma nação, e onde se cruzam memórias pessoais,
familiares ou de grupos: monumentos, uma igreja, um sabor, uma
bandeira”. (NORA Apud PARREIRAS HORTA, 2008).

Relacionado à memória pode-se observar que os casarões históricos


são instrumentos que vinculam e fazem parte da memória de uma
civilização, de uma cidade e de um grupo social, pois “A memória,
como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que
ele representa como passadas”. (LE GOFF, 2012).

2 O CASARÃO PADRE SÁ PALÁCIO NA MEMÓRIA DO


MUNICÍPIO DE PIRACURUCA

A trajetória da história do município pode ser visualizada através de


algumas de suas construções, entre elas duas merecem especial
destaque: a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo e a antiga
casa da Intendência, hoje casarão Padre Sá Palácio, onde muito
tempo foram desenvolvidas atividades ligadas a diversos aspectos
tais como educação, lazer, diversão, justiça e serviços públicos,
contribuindo assim com o crescimento da cidade de Piracuruca nos
aspectos mencionados. Ambas as construções estão localizadas a
Praça Irmãos Dantas, um dos principais logradouros públicos de
Piracuruca e considerado o marco zero de surgimento da cidade,
pois no seu entorno surgiram as primeiras residências, casas
comerciais, prédios administrativos e religioso, ou seja, a vida
pulsante da cidade tinha como cenário descrito.

401
Fig. 01- Casarão Padre Sá Palácio

O Casarão Padre Sá Palácio pode ser nos tipos de construções


caracterizadas como sendo pertencentes ao ciclo do couro, pois são
as mais antigas de Piracuruca, e seu uso era quase totalmente
residencial. Pertenciam principalmente aos criadores de gado, visto
que esta era a atividade econômica muita expressiva principalmente
no século XIX, época a qual pertence a maioria das residências
históricas localizadas no centro da cidade. Suas tipologias
obedeciam a determinações de Portugal, que expedia Cartas-Régias
especificando o tipo de planta baixa e as fachadas a serem seguidas.
As Cartas-Régias, além das determinações mencionadas,
regulamentavam o traçado e o alinhamento das ruas, a construção
de praças, igrejas, etc., ou seja, de todo um aparato imobiliário civil e
oficial.

“Ainda no século XVII, no entanto, as atitudes racionalizadoras do


despotismo esclarecido estenderam-se às normas de construção, que
se tornaram mais rígidas, buscando impor características
tipicamente portuguesas às vilas e cidades. Fixando-se critérios para
definir a altura dos prédios, o alinhamento, o número e o tamanho
de portas e janelas, além de serem proibidas as urupemas (cercas de
taquara) ou de outros materiais que vedavam as construções,
prejudicando a estética e a ventilação”. (WEHLING, 1999, p.260)

402
Segundo Dagoberto de Carvalho (1983) a edificação em estudo foi
construída ainda no início do século XIX a mando do Padre José
Monteiro de Sá Palácio, vigário da Freguesia de Piracuruca na
época, afim de nela fosse montada uma fábrica de fiação. A
instalação de um estabelecimento que beneficiasse a matéria prima
produzida na região pode ser pensada ao constatar que nas
primeiras décadas do século XIX na povoação de Piracuruca “os
seus habitadores fazem grandes plantações de algodoeiros,
mandiocas e cannas d’assucar para aguardente e rapadura” (CASAL
apud SILVA FILHO, 2007).

Ainda relacionando-se ao espaço regional, o Casarão Padre Sá


Palácio faz parte das casas chamadas de “moradas” e suas tipologias
de construção foram influenciadas pela morada inteira maranhense
e adaptada as exigências e recursos locais. Ao ser adaptada ao nosso
meio físico a morada piauiense teve suas formas de construção
distintas em três tipos, a saber, meia morada, morada inteira e
morada e meia, cada um desses modos de construir a morada
dependia das condições econômicas dos proprietários. Ao observar
as afirmações acima percebe-se que a estrutura da construção em
estudo enquadra-se na tipologia da morada inteira já que:

“A morada inteira era composta por um corredor central de acesso


ladeado por duas alcovas de cada lado, interligada entre si. Tal
corredor dá acesso a uma varanda de viver, área de maior
convivência da casa. Desse corpo central formado por um corredor,
alcovas e varandas de viver, pela maior necessidade dos cômodos,
criam-se as “puxadas”, que podem ser unilaterais ou não. Nessas
“puxadas” estão, a cozinha, a despensa, o quarto de banho,
depósitos, que dão acesso para o quintal, onde encontra-se o pomar,
horta e o poço”. (ALBUQUERQUE, 2003, p.54)

403
Amparado na informação já mencionada de que a possível primeira
atividade a ser desenvolvida nas dependências do casarão (fábrica
de fiação) tem-se a possibilidade de se justificar que sua função não
foi primeiramente de uma moradia residencial, comum as demais
construções vizinhas já que:

“Segue a tipologia da arquitetura residencial tanto na implantação


como na compartimentação interna. Mas se afasta da natureza
residencial pelos salões frontais que remetem a função pública. O
sistema construtivo de pedra e abobe, pisos de ladrilhos de barro
cozido, cobertura de carnaúba, a grande altura da comeeira, além da
compartimentação e localização na Praça da Matriz, colocam esse
imóvel entre os mais antigos da cidade, possivelmente da primeira
metade do século XIX, já de vergas em arco pleno com bandeiras em
alvenaria e como faz crer a data de 1838 sobre a porta de entrada.
Como as demais não possui foro.” (SILVA FILHO, 2007, p.264)

Os salões mencionados na citação acima se adequariam muito bem


a arquitetura industrial e, além disso, o prédio está localizado
próximo a um curso de água, elemento esse essencial aos
estabelecimentos de produção, sejam eles grandes ou pequenos.
Ainda, segundo Dagoberto de Carvalho (1983) o estabelecimento
para a fiação de algodão fracassou, passando então o casarão a
abrigar a casa de Câmara e Cadeia tendo permanecido como cadeia
até a construção de um novo estabelecimento abrigaria essa função
em 1904.

No período entre guerras, caracterizado pela modernização e


implementos de aparatos que viabilizassem e dessem conforto ao
viver da população em muitas cidades brasileiras e ainda pelos
lucros auferidos pela inserção da cera da carnaúba no mercado
internacional, Piracuruca a partir de 1929 e por falta de sede própria
funcionou desde sua implantação em uma das salas da Intendência,

404
até que um prédio que a abrigasse fosse construído, o que
finalmente aconteceu em 1943.

Nessa mesma época, os demais salões da Intendência prestigiavam


animados bailes carnavalescos da elite piracuruquense e entre
confetes e serpentinas surgiram animados blocos, a saber: As
Marinheiras, As Columbinas, os Cowboys, formados por rapazes e
moças pertencentes a mais fina flor da sociedade nas décadas de
vinte e trinta. Mas, não só os bailes das épocas de Momo aconteciam
no Palacete da Intendência, cada etapa de desenvolvimento era
festejada, como por exemplo, o baile de inauguração da Estrada de
Ferro Central do Piauhy, quando os trilhos finalmente chagaram a
Piracuruca no ano de 1923, fazendo com que a cidade tivesse ligação
direta com Parnaíba, o principal centro exportador do estado. Como
se pode observar, o casarão da Intendência “testemunhou em
alternadas vezes, a prática de lazer, da justiça e da cultura em suas
dependências. Em seus amplos salões já funcionaram a cadeia
pública (século XIX) Fórum de Justiça e residência de juízes (início
do século XX), biblioteca pública (anos 1930) e um cinema de 162
lugares (Cine Roxy).

Após ser readquirida pela prefeitura em 1947, parte do casarão


passa a ter a função de escola, passando a abrigar o Ateneu
Piracuruquense, antiga escola primária, que ao final de um curso de
cinco anos submetia os alunos ao teste de admissão ao ginásio. Esta
escola atendeu ao alunado do município até inicio da década de
1970. Com o fim do Ateneu Piracuruquense, o prédio da antiga
Intendência, sem receber os devidos cuidados começa a entrar em
estado de arruinamento. A partir desse período algumas de suas
dependências são ocupadas por bares e outras serviram de moradia
para pessoas carentes. No ano de 1992, o imóvel foi doado ao
Serviço Social da Indústria (SESI) pelo então prefeito em exercício
Adelino Fortes de Moraes Melo, causando discussões entre as

405
autoridades legislativas municipais, o que fez com que o casarão
retorna-se ao patrimônio municipal no ano seguinte. A discussão
gerada pela doação fez com que surgisse em seu bojo a Lei nº
1359/93 que versa sobre o tombamento de bens considerados
históricos, paisagísticos e artísticos localizados no Município de
Piracuruca.

Apesar de sancionada pela Câmara Municipal em abril de 1993, a lei


nunca entrou em vigor efetivamente, pois apenas uma pequena
parcela da população tomou conhecimento de sua existência, e
também depois de sancionada muito do patrimônio histórico da
cidade foi destruído, descaracterizado e modificado sem que
ninguém do legislativo municipal fizesse alguma coisa.

3 ALÉM DAS RUÍNAS: REVITALIZAÇÃO DA ANTIGA


INTENDÊNCIA

O estado de conservação em que o casarão da antiga Intendência


permaneceu até o ano de 2003 era precário, mesmo o imóvel em
questão já sendo tombado pela Fundac. Com isso pode pensar no
que diz Françoise Choay "já que [...] os monumentos são, de modo
permanente, expostos às afrontas do tempo vivido. O esquecimento,
o desapego, a falta de uso faz que sejam deixados de lado e
abandonados" (CHOAY, 2006). Concordando com a afirmação da
autora a cerca do processo de arruinamento dos monumentos,
percebesse que o mesmo aconteceu ao prédio em questão a partir do
final da década de 1970 pela perda de sua função social, mais ainda
assim servindo como um detonador de sentimentos e experiências
vividas.

No ano de 2003, a Prefeitura Municipal de Piracuruca, com o


investimento de recursos próprios do município, depois de muitos

406
meses de serviço restaura completamente o casarão da Intendência e
passa a fazer uso dos amplos espaços de suas dependências para o
desenvolvimento de atividades voltadas para a comunidade local
como aulas de música, computação e academia de ginástica. Com a
reforma em questão percebe-se que os valores atribuídos pela
população são reapropriados e transformam-se os modos como está
sente o espaço, pois preservação dos bens históricos não estão na
capacidade de eles permanecerem como estão, mas sim na
capacidade de se adequar as mudanças sociais e culturais da
sociedade.O extinto jornal Folha de Piracuruca, que circulou em 18
de outubro de 2003 traz a matéria intitulada: Prefeitura de
Piracuruca restaura Casarão Histórico, onde o redator além de
convocar a população para a inauguração do agora Casarão Padre
Sá Palácio mostra o seu ponto de vista quanto à realização das obras
de restauro e uso dos espaços:

“O resultado desta obra transborda aos olhos de quem chega a


Piracuruca e pode defrontar-se com o estilo mais antigo embalado
pela beleza e o carinho como cada detalhe foi conservado, e com a
hegemonia de um tempo se transporta para o presente com extrema
elegância e bom gosto. O espaço criado para levar à juventude
múltiplas oportunidades de qualificação profissional e
aprimoramento de conhecimentos e outro destacado ponto se
denota, de forma admirável, a incomensurável preocupação com a
educação e formação juvenil”. (Jornal Folha de Piracuruca,
18/10/2003)

Podemos perceber neste caso o que é apontado por José Reginaldo


Santos Gonçalves como ressonância, ou seja, o patrimônio realmente
cria no indivíduo um sentimento de ligação; as várias funções
adquiridas pelo prédio não impedem que aquele espaço seja
ressignificado pela comunidade da cidade de Piracuruca. O
patrimônio ressignifica-se para que a geração atual possa enxergar

407
ali não algo velho e monótono, mas algo que possa vir a ter uma
utilidade em suas vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A memória de uma cidade se dá por um leque variado de


elementos, levando em conta seus componentes materiais e
imateriais. As casas, ruas, praças, igrejas, prédios públicos,
iluminação, sistemas de abastecimento de água, são alguns
exemplos da materialidade a ser observada, pensada e discutida. No
entanto, essa materialidade não possui uma existência ou
significado isolado do âmbito subjetivo, das simbologias, do
imaginário, das representações e das identidades.

A história de um prédio, seus usos e funções, ao longo do tempo,


representam esse diálogo entre a materialidade e a imaterialidade,
de forma pulsante e, em larga medida, conflituosa e cheia de
tensões. E são essas tensões, por meio das permanências e
mudanças, que fazem ou recriam a própria História. As disputas da
(re) construção da memória de um prédio, como no caso do casarão
desse estudo, apontam para a dialética de que a cidade, e todos os
seus componentes, por mais que se pretendam preservá-los, não se
pode esquecer-se do processo dinâmico com os quais os agentes
consomem e produzem os espaços.

As lacunas que se formam, em decorrência da falta de mais e


detalhados registros de cada momento, de cada fase do casarão,
principalmente em sua fase inicial, para além dos desânimos da
pesquisa, são indicadores da própria memória que se constitui por
meio do jogo do esquecimento e da lembrança. O esquecimento, ou
o silêncio, de muitas informações sobre tal prédio, apenas
direcionam para o fato de que o trabalho de historiadores e demais

408
pesquisadores deve ser constante e, até certo ponto, vigilante. Trata-
se de um trabalho que perpassa pela atuação conjunta, que leva em
consideração uma atitude ampla: a educação patrimonial. A
educação patrimonial deve, então, abrir espaço para o debate de que
a preservação e a conservação se tratam de concepções distintas,
mas que devem coexistir no percurso de manutenção das memórias.
Não se trata, por certo, de uma tentativa de cristalização de um
tempo no presente, mas da percepção de que as temporalidades
devem ser percebidas mediante, inclusive, os anacronismos, os usos
e as funções. Nesse estudo, buscou-se abrir as portas e janelas do
casarão, para que as luzes da história e da memória pudessem
circular melhor entre a poeira e a escuridão do esquecimento. As
marcas deixadas por essas poeiras também são importantes para a
compreensão dessa história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES

Paulo Tiago Fontenele Cardoso – Piracuruca – Piauí

Graduado em licenciatura Plena em História (UESPI). Especialista


em História do Brasil (UCAM). Especialista em História, Cultura e
Sociedade (UESPI). Atualmente é professor da disciplina de História
da Secretaria do Estado da Educação do Piauí (Seduc-PI).

Pedro Pio Fontineles Filho – Teresina – Piauí

Doutor em História Social (UFC). Mestre e Especialista em História


do Brasil (UFPI). Graduado em História (UESPI). Graduado em
Letras-inglês (UFPI). Professor do PPGHB (UFPI). Professor do
PROFHISTÓRIA/UESPI. Professor do Curso de História
(UESPI/CCM). Menbro do Núcleo de Pesquisa em História e
Educação (NUPEHED)

409
AFONSO, Alcília. Arquitetura e Cultura no Piauí. IN: SANTANA ,
R. N. Monteiro. Apontamentos para a História Cultural do Piauí.
Teresina: Fundapi, 2003, p. 51-57.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das


Letras, 2001.

CARVALHO JR, Dagoberto Ferreira de. Piracuruca de Nossa


Senhora do Carmo. IN: Revista Presença. Teresina, Ano IV, Nº 8, p.
14-18, Julho/Setembro, 1983.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar.


10 ed. Petrópolis: Vozes, 2011

CHOAY, François. A alegoria do Patrimônio. 3. ed. São Paulo:


EDUNESP, 2006.

ESCÓRCIO, Fabrício. Uma arquitetura em mudança. IN: Revista


Ateneu. Piracuruca, Ano I, n.1,p. 18-19, jan., 2001.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 6. ed. Campinas, SP:


EDUNICAMP, 2012.

LEVI, Giovanni. A História é uma ciência da busca


infinita. <www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/giovanni-
levi>Acessado em: 12/12/14.

PARREIRAS HORTA, Maria de Lourdes. Os lugares da


memória. IN: COSTA SILVA, René Marc da. Cultura Popular e
Educação. Brasília. Ministério da Educação. Brasília. 2008, p. 111-
118.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 2004.

SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na


capitania de São José do Piauhy. Belo horizonte: Edição do autor,
2007.

WEHLING, Arno. Formação do Brasil Colonial. 2. Ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

410
411
A IMIGRAÇÃO AÇORIANA PARA O
GRÃO-PARÁ NA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XVIII (1748 - 1778)

LARISSA RAFAELA PINHEIRO ALENCAR


ANDRÉ VINICIUS SILVESTRE CARDOSO

O Sarampo Grande

Vários contágios assolaram a Amazônia colonial ao longo dos


séculos XVII e XVIII, moldando a sociedade e a composição de sua
população, assim também como os modos de organização do
mundo do trabalho naquele território. (CHAMBOULEYRON;
BARBOSA; BOMBARD; SOUSA, 2011). Mas foi principalmente a
epidemia entre os anos de 1748 a 1750 que instigou a tomada de
soluções mais eficazes por parte do Estado com relação à
fiscalização de quarentena na Capitania do Grão-Pará, e também
intensificou a demanda na região por mão-de-obra (MARTINS,
2016, p. 14). Devido a pouca imunidade perante agentes
patogênicos, os que mais sofriam pelo o que veio a ser chamado de
“Sarampo Grande” eram os indígenas.

Segundo a correspondência oficial do governador do estado do


Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier Mendonca Furtado
(MENDONÇA, 1963), para tentar amenizar a crise de mão-de-obra,
africanos e açorianos foram enviados para a Amazônia.
Diferentemente dos escravizados africanos, a vinda dos migrantes
do Açores não foi requerida pelo governador Mendonça Furtado ou
pelos moradores locais, foi o próprio Conselho Ultramarino, órgão
que mediava as relações entre as colônias e a coroa, que
recomendou a entrada de migrantes oriundos do arquipélago.

412
As trajetórias dos açorianos que analisaremos se remonta após os
impactos da epidemia de 1748-1750. Esta grande doença foi
importante para a inserção pontual de Açorianos no Grão-Pará.

O Arquipélago e os imigrantes

Antes de explicar o perfil dos colonos ilhéus que rumaram às


capitanias do Grão-Pará na metade do século XVIII, decorreremos
brevemente sobre o arquipélago e as migrações anteriores para
melhor situar o artigo.

O arquipélago dos Açores está localizado no Atlântico Norte,


constituídos de nove ilhas em três grupos geográficos, sendo: o
grupo oriental, abrangendo Santa Maria e São Miguel; o grupo
Central, incluindo a Ilha Terceira, Graciosa, Pico, Faial e São Jorge; e
o grupo Ocidental, que compreende as ilhas Flores e Corvo
(TORRES, 2004 e ROSA & SCHEMES, 2013).

Tal região sedimenta-se na historiografia como polo de emigração,


cujos habitantes teriam uma suposta vocação de migrar para
trabalhar e/ou povoar. O que seria justificado em parte pelas
catástrofes naturais que geravam fome e a pobreza, pois há a
presença de vulcões nas ilhas, atividade sismica além frequentes
crises na produção de alimentos: “A emigração surgia, assim, como
forma de fuga a estas situações mais críticas” (ROCHA;
RODRIGUES; MADEIRA; MONTEIRO, 2001 .p. 116).

413
Vale ressaltar que as migrações dos açores para o Estado do Brasil e
do Maranhão – como política de povoamento – ocorriam desde o
século XVII, seguindo até o século XVIII. Caracterizado como sendo
um movimento populacional demasiadamente incentivado pela
coroa portuguesa, pois também abarcavam os interesses de povoar e
defender as terras da América lusitana (RODRIGUES, 2002).

No século XVIII tem-se, por exemplo, a ida de açorianos para o


Estado do Maranhão, patrocinada pela Coroa, que já “agia como
promotora, mas também como meio para viabilizar a migração dos
habitantes das ilhas e consequentemente, promover a ocupação da
região” (CHAMBOULEYRON, 2008, p. 190). Na maioria das vezes
eram os próprios açorianos que requeriam a sua saída das ilhas,
devido às catástrofes naturais que lá ocorriam, como já foi dito
acima.

Mas nos resultados práticos, a Coroa não conseguiu povoar o


território do Grão-Pará com os casais vindos da ilha na época. “É
sintomático o fato de que a Amazônia teria que esperar até meados
do século XVIII para receber novas levas de açorianos”
(CHAMBOULEYRON, 2010, p. 71).

A Travessia

A lista nominativa da primeira leva de migrantes ilhéus rumaram ao


Brasil na Fragata São Francisco de Paula em 1751 não me esteve
disponível, e a de 1754 teve apenas 15 casais embarcados em
conjunto com sete pessoas solteiras, em um total de 80 pessoas: 40
pessoas do sexo feminino e as outras 40 do masculino. Esta
embarcação sofreu um naufrágio, quando chegava às proximidades
do Marajó, encalhou e naufragou, deixando 44 mortos. Por sua vez a

414
lista de 1752 possuía mais dados: 77 casais embarcaram, em um total
de 428 pessoas, sendo 214 homens e 214 mulheres.

Os que faziam a travessia do arquipélago até as terras brasileiras


recebiam da monarquia de Portugal os subsídios e o transporte
necessário para a viagem, além da promessa de posse de terras. Para
os que se submetiam ao recrutamento e viajavam com destino ao
Grão-Pará, a Coroa de Portugal buscou formar um perfil para os
emigrantes das Ilhas: nisso estava incluído a política de “casais”. Era
uma medida que estava de acordo com a política de povoamento da
Amazônia, pois a intenção era inserir unidades nucleares, onde os
indivíduos embarcados deveriam está em unidade familiar; embora
agregados fossem permitidos. Os governantes portugueses
preferiam o deslocamento das famílias “completas”, porque isso
poderia garantir uma maior ocupação da terra e multiplicação dos
povos (MENESES, 1999).

Sendo este um recrutamento familiar com determinadas normas,


por exemplo: os migrantes deveriam ter uma faixa etária máxima de
40 anos para os homens e 30 anos para as mulheres (TORRES, 2004.
p.180). Logo os que mais estavam interessados nas viagens se
alistavam e não tardavam a partir, com o passar do tempo era
natural que o recrutamento de novos casais fosse se tornando mais
difícil. Em 1754, diante da dificuldade de voluntários para o
embarque, que foi autorizada a exceção da emigração de pessoas
solteiras e independentes.

No ato do recrutamento, se necessitava informar as identificações do


cabeça de casal, como por exemplo o nome; a idade; a profissão; a
cor de pele, cabelo e olhos; a estatura; seus traços particulares do
corpo; e sua origem. E também se registrava informações sobre os

415
familiares do cabeça, além dos agregados, embora fossem
informações mais superficiais. (MENESES, 1999).

E tudo isso era registrado na hora alistamento para a viagem: cada


indivíduo era classificado a partir de sua relação com o “cabeça” do
casal. Todas as chefias eram masculinas devido às exigências de
recrutamento da coroa portuguesa; mas, muitas chefias femininas
poderiam vir disfarçadas sob a classificação de “companhia”
(VIEIRA JUNIOR, 2017). Por isso, o tamanho dos os casais da
Fragata que viajou em 1752 variavam bastante, então havia alguns
casais com apenas três pessoas enquanto outros tinham mais de
treze indivíduos.

Um exemplo de famílias que vinham agregadas a um casal está


presente no casal 12 do ano de 1752: Manoel Correa Betencourt de
50 anos era o cabeça do casal, era casado com Maria Betencourt de
45 anos, os dois tinham as profissões de lavrador e fiandeira,
respectivamente. O filho deles, chamado Jorge de 25 anos também
embarcou em conjunto com Paula dos Anjos Betencourt e Maria
Francisca, a cunhada e a “moça” do cabeça. Além destas cinco
pessoas da mesma família estavam mais outros cinco indivíduos:
Catarina, que não informou seu sobrenome, mas que tinha titulação
de Dona, um indicativo de distinção social, e que também tinha o
oficio de fiandeira, com seus 36 anos já era viúva de um açoriano
chamado Baltazar de Ornela, vindo ao Grão-Pará com três filhos
menores de 15 anos: Rosa, Florêncio e Maria vieram também no
casal de numero 12. Mas eles eram um outro grupo familiar, que iria
se separar da formação original assim que chegasse no Grão-Pará.

Afinal, 26 anos depois que embarcaram juntos, a família de Manoel


residindo na vila Ourem e a família de Dona Catarina morando na

416
freguesia da Sé. Para rastreá-los utilizamos de outras duas fontes
que explicaremos brevemente antes de continuar a trajetória.

A Devassa de Bragança de 1764 e os Mapas dos cabeças de Família


de 1778

Nossa investigação também se utilizou dos Anais do Arquivo


Público do Pará de 1997, contendo informações do ano de 1764 onde
foi realizada devassas nas seguintes vilas e freguesias: Monçarás,
Salvaterra, Monforte, Colares, Cintra, Bragança, Vila Nova del Rei,
Ourém e Soure.

Também se usou o “Mapas de família que a exceção das dos índios


aldeados se achavão existindo em cada uma da maior parte das
freguesias de ambas as capitanias do Estado do Pará e de sua
possibilidade a aplicação no anno de 1778” que por questões de
síntese chamaremos de “Mapas dos cabeças de Família de 1778”, ele
informa os nomes dos chefes de domicilio das freguesias e vilas do
Grão-Pará. Onde algumas localidades seriam prováveis destinos de
açorianos; tanto que tabelei no Microsoft Excel as localidades da Sé,
Campina, Bragança, Ourem, Macapá e Vila vistosa. Daremos
atenção especial neste artigo para a vila Ourem e, principalmente,
Bragança.

No documento da Devassa de Bragança havia as informações da


“Relação dos povoadores que se achão nesta Vila de Bragança athé
11 de Março de 1764 ”, em um total de 201 pessoas divididas em 51
domicílios onde todas seriam açorianos e s seus descendentes.
Apenas se informava o nome dos que eram casados e seus filhos
maiores e menores. Não especificando a idade ou a profissão.

417
Na parte da documentação que se referia a Ourem há os mapas com
somente os nomes dos moradores brancos casados e dos moradores
índios casados, divididos entre homens e mulheres. No Mapa dos
Moradores Brancos Casados achamos o nome de Manoel Correa
Betencourt. Infelizmente a documentação não identificava outras
informações.

O que ocorre de maneira distinta na documentação dos Mapas dos


Cabeças de Famílias de 1778. É nesta fonte onde encontramos os
mesmos Açorianos 12 anos depois, com informações mais
completas; a saber: a numeração dos nomes informados, separando
os homens das mulheres; em seguida o nome completo do Chefe de
domicilio, denominado Cabeça; a sua Situação, ou seja, o local em
que reside; a qualidade que definia sua etnia; seu Estado que
informava sua Conjugalidade; o emprego e o ofício, que significava
a atividade exercida pelo individuo. Na segunda folha estava a
parte das “Pessoas de que as famílias se compõem”, começando
informando o número da parte de mulheres, filhos, parentes e
agregados; seguindo pela contagem de soldados e por último os
escravos. Separando cada parte em machos e fêmeas de idade
menor ou maior. Depois de informar a quantidade de cada categoria
indicava o número do total de pessoas que moravam no domicilio
incluindo o cabeça. Por fim, ainda as “Notas da possibilidade e
aplicação dos cabeças de família”, sendo as perspectivas
socioeconômicas dos Chefes de Domicílio, identificados por pobres,
ricos, possibilidades medianas ou possibilidades inteiras.

O Mapa de Família de 1778 constitui- se de “uma fonte que permite


conhecer o estado populacional, com muitas limitações, e verificar
as possibilidades de apropriação de riqueza na Capitania do Pará, a
partir das categorias socioeconômicas e de cor nomeadas pelo

418
documento” (CARDOSO, 2010. P. 5); afinal por ser uma
documentação fundamentalmente socioeconômica, classifica os
chefes de domicilio em categorias de ricos a pobres, embora haja
outras categorias situações intermediárias do plano econômico da
sociedade escravista da época que eram as denominadas
“possibilidades medianas”, estes eram o que possuíam poucos
escravos. Já os de possibilidade inteira ficavam próximos da
condições dos declarados Ricos (VELOSO, 1998).

Mas algumas das suas limitações estariam no fato de que a


documentação não permite definir quem são os agregados, porque
quando estes são contabilizados “entre familiares e parentes, de
modo que não é possível a distinção entre os membros da família, os
parentes mais próximos e os referidos elementos, os recenseadores
nos dão o total de pessoas da casa, sem no entanto identificá-los”
(VELOSO, 1998, p. 27).

A idade da população também não é algo explicito, os machos


menores teriam qualquer idade até 15 anos, os machos maiores de
15 pra frente; as fêmeas menores englobavam as faixas etapas até 14
anos, as fêmeas adultas teriam de 14 pra frente. (CARDOSO, 2010, p
5). Então o olhar da documentação acaba tendo um caráter mais
socioeconômico, onde a profissão, o trabalho e as possibilidades dos
chefes de família são o que permitem boas perspectivas de análise
para desse momento da vida dos habitantes.

Em 1778, ainda em Ourem, Manoel Correa Betencourt, continua


casado e declara como oficio ser lavrador. Mora com duas fêmeas
adultas – sendo que uma destas é sua esposa e um macho menor.
Possui dois escravos machos adultos, duas escravas menores e três
adultas. Apesar da quantidade de escravos não é declarado como

419
Possibilidade Inteira, como era de se esperar, mas sim como “muito
aplicado e remediado” além de “Lavrar farinhas, algodão e tabaco”.

Lembrando que o casal 12 também veio Dona Catarina e seus filhos


como agregados, mas eles não estavam em Bragança. Também não
os achei na documentação dos Anais, mas tive êxito ao rastreá-la nos
Mapas de família de 1778. Estava residindo na Freguesia da Sé, não
tinha emprego nem oficio declarado. Morava com um homem
adulto, e quatro mulheres menores, não possuía escravos e estava
declarada como pobre nas possibilidades e aplicações.

As duas famílias residiam em localidades distintas, o que reforça a


tese de que Dona Catarina disfarçou- se de agregada, quando na
verdade era uma cabeça de família e ao chegar no Grão-Pará
separou-se de do ramo principal do casal 12 e seguiu para outra
localidade, a freguesia da Sé. Enquanto Manoel Correa Betencourt
seguiu com sua família para Bragança.

Mas nem todas as companhias que vinham estavam em condição


semelhante à de Dona Catarina, algumas vinham solteiras e
findavam por casar com moradores locais, tantos os agregados
homens quanto às mulheres. Um exemplo disto está no casal 70
também da embarcação de 1752, já que o ano deste carregamento
teve maior número de pessoas do que o de 1754, ele fornece mais
dados para análises.

As trajetórias de Luzia de Mendonça, Manoel de Azevedo e Maria


Antônia

Luzia veio na Fragata São Francisco de Paula em 1752 agregada ao


casal 70, mas não era viúva e sim solteira e sem filhos. No casal 70,

420
Manoel de Azevedo era o cabeça com 20 anos de idade e Maria
Antonia era sua esposa com apenas 18 anos, os dois tinham a
profissão de alfaiate e costureira, respectivamente. Vieram para o
Brasil sem ter nenhum filho, apenas traziam dois agregados:
Marcos, irmão de Maria com apenas 10 anos e como já mencionei
vinha Luzia, que veio como companhia com 20 anos de idade, sem
sobrenome, embora informasse o nome de seu pai: Brás Pacheco de
Melo. Por fim, não declarava profissão.

Já em 1764, por meio dos Anais do Arquivo Publico do Pará, é


possível rastrear Manoel de Azevedo e Maria Antonia residindo em
Bragança, os dois moravam sozinhos e ainda sem filhos, em uma
casa coberta por telhas. O cunhado Marcos não está morando com
eles assim como Luzia. Mas ela que veio sem sobrenome agora está
denominada na documentação como Luzia de Mendonça, casada
com Joaquim Ferreira, provavelmente um morador local, os dois
também não possuem filhos, residindo em uma casa coberta por
palhas. A Devassa de Bragança ainda informa que eles “receberam
éguas” de sua majestade ao mesmo tempo em que “lhe devem duas
éguas”.

Em 1778 por meio dos Mapas dos Cabeças de Famílias se vê Manoel


de Azevedo como chefe de domicilio, ainda casado e na informação
no documento sobre a quantidade de mulheres, filhos, parentes e
agregados, tem- se apenas um individuo que podemos afirmar que é
Maria Antonia, sua esposa. O casal não teve filhos, afinal. Mas
moravam com sete escravos: um macho menor, três machos adultos,
uma fêmea menor e duas fêmeas maiores. Nas possibilidades,
Manoel de Azevedo aparece com possibilidade mediana, ainda
exercendo o oficio de alfaiate.

421
Já Luzia de Mendonça que provavelmente deve ter 46 anos em 1778,
já que embarcou rumo ao Grão-Pará com 20 anos em 1752, está à
frente da chefia de sua casa, pois já se encontra viúva e mora
sozinha, sem filhos agregados ou escravos. Ela não declara
novamente emprego ou ofício e em suas notas sobre possibilidades
apenas é declarada como “pobre”.

Ritmos e Destinos

A partir principalmente dos nomes dos ilhéus que embarcaram na


Fragata em 1752, da Devassa de Bragança em 1764 e do Mapa de
Família de 1778 é possível acompanhar três momentos distintos da
vida destes migrantes. Há outras trajetórias, mas estes foram
escolhidos para analises por demonstrar dois “casais”. Um que tinha
duas famílias, uma que embarcou em conformidade com as normas
da Coroa Portuguesa e outra que teve que encontrar um modo de
viajar apesar de ter uma chefia feminina. E outro que tinha jovens já
casados e uma companhia que aqui consolidou e se conjugou com
um morador local, mas que em um intervalo de 12 anos ficou viúva
e se tornou a frente da chefia de seu domicilio. Não esquecendo
também de Marcus, o cunhado embarcado no casal 70, e que
desapareceu dos registros.

O detalhamento da vida desses Imigrantes nos mostra além das


determinações impostas pela metrópole, nos ajudando a vislumbrar
não apenas o processo de inserção pontual dos açorianos no Grão-
Pará ocorreu, mas também as suas estratégias individuais.

422
Referências

A autora Larissa Alencar é graduanda do 9° semestre de História-


licenciatura da UFPA. Integrante do GP RUMA, Núcleo Gera e Casa
Brasil-África. Possui experiência em ensino em bolsa PIBID – CAPES
(2015 e 2017-2018), experiência em pesquisa através de bolsa PIBIC -
CNPQ (2015-2017) e extensão como bolsista voluntaria PIBEX –
PROEX/UFPA(2018-2019). Atualmente é Bolsista do Programa
Residência Pedagógica da CAPES-UFPA. Pretende ingressar no
PPHIST-UFPA. E-mail: alencar_rafaela@hotmail.com.

É orientada pela professora Msc Antônia Brioso no âmbito da


extensão; pelo professor Dr. Otaviano Vieira Junior no âmbito da
pesquisa e pela professora Franciane Lacerda no âmbito do ensino.
Agradece a CAPES, CNPQ e PROEX/UFPA.

O autor André Cardoso é Graduando do curso História-licenciatura


da UFPA. Integrante do GP RUMA e Casa Brasil-África. . Possui
experiência em ensino em bolsa PIBID – CAPES (2014-2015),
monitoria na disciplina história da África na faculdade de história
da UFPA(2018) em pesquisa através de bolsa PIBIC - CNPQ (2015-
atualmente). E-mail: andre.academico.ufpa@gmail.com.

É orientado pelo pelo professor Dr. Otaviano Vieira Junior,


Agradece a CAPES, CNPQ

Referências Bibliográficas

CARDOSO; Alanna Souto. Fotografia Demográfica dos Cabeças de


Família da Capitania do Pará a Partir Do Recenseamento De

423
1778. In: XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. 2010.
Caxambu- MG – Brasil. Anais.... UFMG. Disponhivel em
< http://www.abep.org.br/~abeporgb/publicacoes/index.php/anais/a
rticle/download/2307/2261> acesso em 01 de 06 de 2019.

CHAMBOULEIRON, Rafael. Povoamento, ocupação e agricultura


na Amazônia Colonial (1640-1706). Editora Açaí, 2010, p.62-72.

CHAMBOULEYRON, Rafael Ivan. A Amazônia colonial e as ilhas


atlânticas. Canoa do Tempo: Revista do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas,
Manaus, v.2, n.1, p. 187-204, jan./dez. 2008.

CHAMBOULEYRON, Rafael; BARBOSA, Benedito Costa;


BOMBARDI, Fernanda Aires; SOUSA, Claudia Rocha
de. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na
Amazônia colonial. (1660-1750). v.18, n.4, out.-dez. 2011, p.987-1004

MARTINS; Roberta Sauaia. Em busca dos “remédios para tanta


ruína”: Epidemia de Sarampo na Capitania do Grão-Pará (1748-
1750). In: XX Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP) e
VII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Población
(ALAP). 2016. Foz do Iguaçu. Anais.... Disponível
em: http://www.abep.org.br/xxencontro/files/paper/812-797.pdf.
Acessado em: 01/06/19

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1963.

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organizado pela Asociación de Demografía Histórica (ADEH). 2001.

424
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Ciências Sociais, Universidade dos Açores.

RODRIGUES, José Damião. Entre Duas Margens: A Circulação


Atlântica Dos Açorianos Nos Séculos XVII E XVIII. Arquipélago •
História, 2ª série, VI. 2002. pp. 225-245.

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imigração entre açores e o Grão-Pará do século XVIII. ACERVO:
REVISTA DO ARQUIVO NACIONAL, v. 30, p. 87-104, 2017.

425
“CONFLITOS E PODER”: AS
DENÚNCIAS DOS MORADORES
CONTRA OUVIDOR JOÃO MENDES DE
ARAGÃO NO GRÃO PARÁ E
MARANHÃO NO SÉCULO XVII E XVIII

AYRTON COSTA DA SILVA.


ORIENTADOR: DR. ELOY BARBOSA DE
ABREU.

O presente trabalho é parte integrante do projeto intitulado “As


dimensões do poder local e conflitos de jurisdição na trajetória de
João Mendes de Aragão no cargo de ouvidor geral do grão Pará e
Maranhão nos séculos XVII e XVIII”, visando fazer uma discussão
sobre as questões do poder judicial e administrativo no território
das cidades de Belém-PA e São Luís-MA. Desse modo, deve ser
ressaltado o papel da câmara que “[...] esteve atrelada às atividades
de conquista, defesa e organização do território, com a intenção de
consolidar o domínio luso-imperial” (CORRÊA, 2016, p. 63). O
objetivo não é se atentar para os processos de conflitos entre os
indígenas e colonos, mas sim para com as medidas administrativas e
judiciais que foram sendo implantadas no território.

“A aplicação da justiça, desde os primórdios da colonização


portuguesa na América, foi uma das preocupações essenciais da
coroa. Fazer cumprir a lei, evitar abusos e crimes, garantir a
‘tranquilidade social’, tais são os propósitos do aparelho judicial em
qualquer época” (SALGADO, 1986, p. 73).

As conquistas das terras longínquas no ultramar fez parte do projeto


arquitetônico administrativos da coroa portuguesa. Portanto, trata-
se especificamente da América do Norte, que é o foco da pesquisa.
Os territórios do Grão Pará e Maranhão estavam atrelados a esse

426
processo de organização. Após a expulsão dos franceses do
território do Maranhão foi consolidada e instituída em 1621, a
câmara como uma Instituição de controle organizacional dessa
região. Fez com que ocorresse o povoamento do território com
moradores, advindo de outras localidades, como
Pernambuco. Foram constantes as mudanças principalmente com
implantação de cargos administrativos, ou seja, os funcionários do
rei. E entre esses, o ouvidor, que era o homem responsável pela
justiça na capitania, sua função era fiscalizar e fazer as correições,
aplicar a lei e coibir fraude.

“[...] a lei portuguesa tornou-se a lei dos territórios que acabavam de


ser incluídos em seus domínios, e ministros da justiça semelhantes
aos de Portugal assumiram cargos nas colônias para aplicar a lei. as
condições locais e as relações particulares da colônia com a coroa,
entretanto, determinavam, em certa medida, a natureza da
administração judicial”. (SCWARTZ, 2011, p.35).

Manter a tranquilidade no território era alguns dos objetivos da


coroa portuguesa, através da lei, já que era símbolo de ordem e
controle. Quando é que o ouvidor, um dos cargos mais elevado,
torna-se motivos de denúncias e queixas dos moradores? As fraudes
do ouvidor João Mendes de Aragão estavam ligadas ao seu interesse
com o poder local e fizeram parte da sua rotina aonde acabou se
envolvendo em vários conflitos com os próprios moradores, capitães
e governador, fazendo com que seus vícios pelo poder e ganância
gerasse abusos de poder, se vingando dos moradores da localidade
de São Luís do Maranhão.

Os Males ou Franqueza de um Homem.

João Mendes de Aragão é formado pela Universidade de Coimbra,


onde se formou em Direito, logo, é um sujeito da elite que assumiu
os cargos de Ouvidor e provedor da fazenda, que era a arrecadação
de impostos para a Coroa. A trajetória que se tem notícia através das
cartas disponíveis no Arquivo Histórico Ultramarino, consta a
presença do ouvidor Aragão em Belém-PA, e posteriormente na

427
região da cidade de São Luís- MA. Os conflitos foram constantes
durante todo o seu percurso no território do Grão Pará e Maranhão.

“filho de Francisco de Aragão, João foi provido ao cargo de ouvidor


geral e Provedor mor da Fazenda Real da Capitania do Pará em 20
de dezembro de 1710. [...] recebeu a mercê do rei D. João V logo
após ter feito sua leitura de Bacharel no desembargo do Paço, em
virtude da boa formação que havia feito na Universidade de
Coimbra e também de forma como administrava a justiça” (ABREU,
2017, p. 135).

A sua atuação como ouvidor geral da cidade de Belém do Pará,


responsável pela fiscalização, iniciou-se com a matéria de sonegação
dos dízimos, Aragão detectou que os religiosos da cidade de Belém
não pagavam dízimos para a Coroa Portuguesa, ocasionando assim
enormes prejuízos. Apesar de fazer seu trabalho, considerado o
homem da justiça dentro da capitania, acarretou em inúmeros
descontentamentos entre o próprio ouvidor e os religiosos.

“Cristovão da Costa Freyre. [...] fazendo se me prezente os raros


prejuízos q recebe a fazenda real [em] não pagarem dízimos as
relligiões desse estado das fazendas que [possuem] fora dos dottes
das suas creações adquiridas por compras heranças, e outros
semelhantes títulos, e convirá averiguação desta matéria, por ser de
tanta importância. Fuy servido mandar ordenar ao procurador de
minha fazenda desse estado faça citar perante o provedor mor della
aos religiosos que possuem terras, e [...] pagar delas dízimos,
oferecendo Libello contra cada uma’ das taes
relligiões”(AHU_ACL_CU_013, CX.6, D.464. (sic).

O início de seus trabalhos na capitania de Belém do Pará, ficou


nítido as irregularidades que aconteciam, como exemplo, a
sonegação de impostos conforme descrito no trecho
acima. Segundo Prado Junior. “O principal tributo é o dizimo, que
constitui um antigo direito eclesiástico, cedido pela igreja nas
conquistas portuguesas, à ordem de Cristo” (PRADO JR. 1961, p.
319). Isso ocasionava perda irreparável advindo das religiões. Mas

428
os conflitos na região continuavam, analisando detalhadamente as
cartas, Aragão tem um forte conflito com Capitão de Guerra João de
Barros sobre a ocupação da presidência na ausência do Governador.

“Entre o capitão mor desta praça, João de Barros da Guerra, er


Provedor da fazenda. João Mendes de Aragão, se tem oferecido
[algumas] duvidas, querendo [ado] Provedor [...] presidir-nos [mos
traz] na minha ausência, [e passar] as ordens para se fazerem as
[despesas], nos serviço da [Vossa majestade] sem dependência do
capitão mor, o que tudo e contra as ordens de
majestade.” (AHU_ACL_CU_013, CX. 6, D. 500.(sic))

A disputa pelo poder resultou em desânimos entre os próprios


agentes administrativos, o capitão por defender o território e o
provedor por preocupar-se em fazer as despesas das paradas
militares. Já que o próprio governador, Cristovão da Costa Freire,
estava ausente do seu cargo, e alguém tinha que sucedê-lo, isto é, o
provedor da fazenda. No entanto, usufruir dessa posição fazia com
que ele utilizar-se do abuso de poder. Diante desse fato, só
aumentou as inimizades, entre Aragão e Capitão João Barros e além
de outros motivos, fazendo com que fugisse para a cidade de São
Luís do Maranhão devido as ameaças de morte.

“Que conservando se assim nesta boa [conformidade] por tempo de


dois annos, no fim delles trouxe [ado] Governador consigo da
[Cidade] do Pará [para] esta do Maranhão o baxarel João Mendes de
Aragão, q avia acabado de servir o cargo de ouvidor [geral] na
[Cidade] do Pará aonde pelas insolências q avia feito o intentavam
matar, e [para] livrar da morte, e das [muitas] descortesias de se lhe
aviam de fazer, o trouxe como dito e, [dado] Governador [para] esta
dita [Cidade].” (DOC. AHU_ACL_CU_009, Cx. 11, D.1159). (sic)

A vinda de Aragão, para a cidade de São Luís foi muito mais


conturbada. Hospedou-se na casa do ouvidor do Maranhão, aonde
acabou sendo seu sucessor, é claro que em virtude da formação em
direito que tinha começou advogar na cidade. Analisando as
documentações com olhar mais atento, com ênfase para a rede de

429
clientela que foi se formado, quem trouxe o ouvidor para São Luís
do Maranhão foi o Governador.

“Que [ado] João Mendes sendo assim como he assessor, e em tudo


director das obras [dado] Ouvidor, está advogando em [muitas]
cauzas q correm perante o ouvidor sentenciados sempre a favor das
suas [apelações] por [quem] Advoga, como aconteceu e nas causas
de Carlos de Faria Machado com Manoel Frz’ de oliveira. Em sua
mulher, e na causa de [Francisco de Andrade], preto com seu sogro
Anastácio Dias, e uma’ do [tenente General] Custodio [Pereira] com
o procurador da [Fazenda] Real, e em outras [muitas] de q há geral
escândalo da republica”. (DOC. AHU_ACL_CU_009, Cx. 11,
D.1159)(sic).

Enquanto advogado e sucessor do ouvidor do Maranhão, João


Mendes causou enormes prejuízos aos próprios moradores de São
Luís do Maranhão, onde prevaleciam suas reais intenções que
fizeram de suas atitudes e práticas motivos de muitas queixas. Os
interesses locais eram advindos de relações com alguns moradores
que acabavam participando dessa natureza ilícita. Como advogado
sempre agia em favor das suas apelações, que são pedidos para o
que fosse favorável.

“Que de todos os articulados e [tem] escandalozos [procedimentos]


[dado] Ouvidor he a principal origem [ado] Bacharel João Mendes
de Aragão, Homem de maglino e perverso coração, a qual tem [ado]
Ouvidor en sua caza por seu assessor, ele dirige todas as suas acçoes
e despoziçoens, e despachos tendo na sua mão as [prisões], e
solturas dos prezos, q [ado] João Mendes quer que se soltem, se
prendam, em tal [forma], que ainda que [ado] Ouvidor queria dar
[alguns] bons despacho ou mandar soltar [alguns] prezo; [ado] João
Mendes o reprende”. (DOC. AHU_ACL_CU_009, Cx. 11, D.1159)
(sic)

O jogo de interesse e os desagrados causados pelo Aragão na cidade


de São Luís do Maranhão ocasionaram as inimizades promovidas
pelos os próprios moradores da localidade, que fizeram com que o

430
governador do estado, Bernardo Pereira de Berredo, tomassem as
devidas decisões. Após os vários atos cometidos pelo Aragão, abuso
de poder, alianças com o próprio Ouvidor e provedor do Maranhão
foram resultados de práticas inadequadas. Na citação acima, e mais
um modelo da fragilidade desse agente judicial, já que soltura e
prisão era só uma maneira de autoridade.

“[...] os irreparáveis danos, q da existência do bacharel João Mendes


de Aragão [em] caza do [ouvidor Geral] Vicente Leite Ripado, se
[ocasionavam] ameaçando mayores ruinas, contra a mayor [poder].
hoz moradores deste povo, com notória perturbaçao da
tranquilidade; q antes da referida a [existência] se gozava, vingando
suas próprias payxões com amas’ o cargos [dado][ouvidor]; foy
preciso a este senado, movido dos clamores do povo recorrer [ado].
[Governador e Capitão Geral], como justo requerimento de cuja
copia, que com esta será [presente]. a V. Mag de. se manifestão os
verdadeyros [fundamentos], e justificada razão de suas queixas. e
por lhe constar há [notoriedade ]. dellas, ainda [muito] a custa de
sua própria experiência, o mandou retirar [para] a fortaleza do Rio
Itapecuru [...]”(Doc. AHU_ACL_CU_009, Cx. 12, Doc.1236)(sic)

Portanto, as fortes alianças entre Aragão e outros funcionários do


rei, ou seja, que também eram responsáveis pela justiça, estavam
muito preso aos interesses. Longo trecho transcrito anteriormente é
um dos mecanismos do poder da justiça no território, pelo menos o
projeto inicial da coroa portuguesa, manter a tranquilidade e a paz
era um desses objetivos. Talvez a ausência da majestade na colônia,
tenha ocasionado tantas práticas inadequadas. Embora Romeiro,
menciona que:

“A opção por privilegiar a questão da distância não é arbitrária nem


fortuita. Ela apenas reflete uma tópica disseminada nos escritos que,
a partir do século XVI, dedicam-se a esclarecer as implicações
morais e políticas do governo da periferia, onde a distância tendia a
favorecer o surgimento das práticas ilícitas, convertendo esses
lugares em cenários de opressão e tirania” (ROMEIRO, 2017, p.37)

431
Ao trata sobre a distância do rei nos territórios do ultramar, isso
torna-se verídico, mas assim como havia sujeitos que cometia as
práticas ilícitas, também havia o vassalo obediente. Mas a vinda de
João Mendes de Aragão foi movida por fuga, as práticas de
vinganças, poder e atos inadequados advindos do ouvidor geral,
foram constantes no Maranhão colonial os abusos de poder, os
escândalos na estrutura administrativos movidos pela ganância,
fizeram deste sujeito protagonista de inúmeras queixas por parte
dos moradores que moravam nas respectivas localidades. A rede de
clientela também foram traços marcantes dentro desse sistema
administrativo colonial e os interesses que estavam envolvidos.

REFERÊNCIAS.

Acadêmico do Centro de Estudos Superiores de Caxias-


CESC/UEMA. Curso. História. O trabalho é fruto do projeto de
pesquisa “AS TEIAS QUE A JUSTIÇA TECE: REDES DE
OUVIDORES GERAIS E CONFLITOS SOCIAIS NO ESTADO
COLONIAL DO MARANHÃO E GRÃO PARÁ (SÉC.XVII E XVIII)”
sob orientação do professor Dr. Eloy Barbosa de Abreu, como
fomento da Universidade Estadual do Maranhão. PIBIC/UEMA.

FONTES DIGITAIS.

CAPITULOS DE ACUSAÇÃO dos moradores da cidade de São Luís


do maranhão contra o ouvidor geral da capitania do maranhão,
Vicente Leite Ripado e o bacharel João Mendes de Aragão.
DOC. AHU_ACL_CU_009, Cx. 11, D.1159.

CARTA da câmara da cidade de São Luís do maranhão ao rei D.


João V, sobre a perturbação provocada pelo bacharel João Mendes
de Aragão.
Doc. AHU_ACL_CU_009, Cx. 12, Doc.1236

CARTA do [Governador e Capitão-general do Estado do Maranhão]


Cristovão da Costa Freire, para o rei [D. João V], relatando as que
nelas de competência e jurisdição existentes entre o capitão-mor da

432
capitania do Pará, João de Barros Guerra, e o provedor da fazenda
real do Pará, João Mendes de Aragão, quanto a ocupação da
presidência das paradas militares na ausência do Governador.
AHU_ACL_CU_013, Cx. 6, D. 500.

LIVROS, TESES.

ABREU, Eloy Barbosa. Gregório de Andrade da Fonseca: Judeu


sutil ou Santo Beato? Trajetórias, conflitos e redes sociais no
mundo Atlântico. Tese de doutorado apresentada como requisito
obrigatório para obtenção de titulo de doutor em história, na área de
história do Norte e Nordeste do’ Brasil, ao programa de pós-
graduação em história da Universidade Federal de Pernambuco.
Recife. 2017.

CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Vínculos entre a câmara de São


Luís do Maranhão e a politica luso-imperial da conquista do
espaço p. 61-78. In: CHAMBOULEYRON, Rafael. JUNIOR, Alves de
Sousa (orgs), Novos Olhares Sobre a Amazonas Colonial. 1ed.
Paka-Tatu. Belém-Pa. 2006.

PRADO JR, Caio. A Formação do Brasil Contemporâneo. 6 ed.


Editora Brasiliense. 1961.

ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história,


séculos XVI a XVIII. 1 ed. Autêntica editora. Belo Horizonte. 2017.

SALGADO, Graça (orgs). Fiscais e Meirinhos: a Administração no


Brasil Colonial. 2ed. Nova Fronteira. Rio Janeiro. 1985.

SCHWARTZ, Stuard B. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial:


o tribunal Superior daa Bahia e seus desembargadores, 1609-1751.
Companhia de Letras. São Paulo. 2011.

433
JAPÃO DO SÉCULO XVI E XVII: DA
EXPANSÃO COMERCIAL AO
ISOLAMENTO

KLEITON TARIGA DE MATTOS


NAIANE INEZ COSSUL

A terra do sol nascente por muitas décadas foi um país


desconhecido para grande parte da Europa, que segundo Yamashiro
(1978), apenas com o relato de Marco Polo, o qual acreditava que o
Japão era uma terra rica em ouro, o país ficou conhecido além da
Ásia. Isso atraiu o interesse de muitos países europeus, como
Portugal e Holanda, os quais estavam em processo de colonizar
diversos países da África, América e Ásia. No entanto, a terra do sol
nascente vai ter diferentes resoluções comparadas as outras
colônias, não tendo o processo de colonização. Esse texto buscará
abordar as relações internacionais e nacionais do Japão do séc. XVI
até XVII, principalmente o que impediu a colonização de países
europeus no país.

“Em resumo, o Japão não sofre nenhum arranhão na integridade do


seu território, numa época em que muitos países orientais caem sob
o domínio ocidental, ou perdem parte do seu território”
(YAMASHIRO, 1978). Antes disso, é preciso entender a unificação
de um país que viveu séculos em guerras de senhores feudais
(daimyos), onde a figura do Imperador acabou se tornando apenas
figurativa. Além disso, tudo isso envolverá o comércio exterior e a
entrada de novas religiões no país, como o catolicismo.

O primeiro grande contato entre os japoneses e europeus foi em


1543, onde portugueses foram informados sobre a ilha do sol
nascente. Assim, partiram para o sul do País, onde desembarcaram
em Tanegashima, hoje a região é conhecida como Kagoshima, bem
no sul de Kyushu. Essa relação teve uma grande mudança no

434
sentido militar e comercial do país. O maior impacto para o Japão, e
o que mudaria totalmente o rumo das guerras no país, foi à
introdução dos arcabuzes, pelo fato que os japoneses nunca tinham
tido antes o contato com uma arma de fogo. Isso causou impressões
positivas e gananciosas de senhores feudais japoneses, tendo
rapidamente importado para o exército e até a criação de fábricas
em Sekai. Isso foi um bom começo para uma relação duradoura
entre Japão e Portugal, tendo os portugueses ampla preferência
comercial no sul do país, desembarcando em diversos porto de
Kyushu. E assim, o país do sol nascente foi introduzido no sistema
econômico mundial, antes por tantos séculos desconhecidos.
Anteriormente, apenas mantinha relações com seus vizinhos como
Coreia e China, tendo destaque o segundo, que impactou a cultura
japonesa.

Em seguida, começou um período curto, menos de 30 anos, mas que


será responsável por mudar estruturas econômicas, religiosas e
sociais no país: o Período Azuchi-Momoyama, ou também
conhecido como época de Oda e Toyotomi (1543-1600). Por muitos
anos no momento anterior a este, Período Muromachi (1336-1573), o
Japão era um país em uma grande guerra civil interminável onde
nem o Imperador poderia mudar isso. No entanto, Nobunaga Oda,
um senhor de um pequeno e humilde feudo mudaria a história do
país, através de uma aliança com um poderoso vizinho, Ieyasu
Tokugawa, que armaram com mosquetes mais de 3.500 soldados
contra uma sangrenta guerra contra Katsuyoshi Takeda, um dos
generais mais poderosos e influentes. Conseguir essa vitória mudou
totalmente o modo de batalhar no Japão e consagrou Oda como um
grande estrategista militar. Adiante disso, para unificar todo o
Japão, era preciso derrotar os seus três grandes adversários:

“1. Os grandes templos budistas proprietários de enormes shoen que


mantêm forças militares próprias (os sohei-soldados sacerdotes); 2.
Os grandes daimyo como os Asai de Ohmi, Asakura de Echizen,
Takeda de Kai, Uesugi de Echigo, Moori de Chugoku etc. e 3. os
rebeldes budistas da seita Ikkô, das regiões Nordeste, Tokai e Kinki,

435
organizadores nas aldeias que resistem à autoridade
dos daimyo nessas áreas (YAMASHIRO, 1978, p. 102).”

A questão religiosa foi um dos grandes desafios de Oda, onde o país


estava dominado pelo período de decadência do budismo, onde
diversos templos estavam sendo liderados por monges corruptos,
que tinham grande força e até seus exércitos populares. Para
combater isso, Oda permitiu e favoreceu a entrada de jesuítas, que
vieram para o país em uma Companhia de Jesus, liderados por
Francisco Xavier, muito parecido com o que fizeram em outras
colônias. Todavia, diferente dos outros países, no Japão os jesuítas
seriam mais supervisionados, mas tinham total liberdade para levar
a palavra para o povo japonês, podendo até mesmo dar seminários
para nobres e seus filhos, até a construção de igrejas para a
catequese. Isso foi uma grande ofensa para diversos templos
budistas que armaram resistências contra Oda, os quais foram
massacradas por exércitos do senhor feudal que cada vez mais
estava dominando o país inteiro.

Durante o processo, Oda não conseguiu unificar o país, pelo fato


que foi traído por um dos seus mais confiantes generais, Mitsuhide
Akechi, que tinha um grande relacionamento com Oda. Quem
conseguiu realizar o grande sonho de Nobunaga Oda, foi o seu
braço direito, Hideyoshi Toyotomi, que vai ser conhecido na
História do Japão, como uma das figuras mais impressionantes do
país. De origem humilde, filho de camponeses, Hideyoshi, que tinha
a alcunha “Sarumen Kanja”, que se traduz literalmente como “Cara
de Macaco”, devido à grande semelhança de Hideyoshi com o
animal. Depois de Hideyoshi vingar o seu mestre matando Akechi,
se foca em terminar o que Oda começou e conseguiu de forma
próspera para o país.

Voltando para a relação com religião, no começo, Hideyoshi estava


positivo em relação ao cristianismo, no entanto, com a chegada de
espanhóis no país e rumores que estavam tramando revoltas cristãs,
para assim, transformar o país em uma colônia espanhola,
Hideyoshi vê isso como uma grande afronta e muda totalmente a

436
política que seu mestre falecido construiu, e agora volta-se contra
todos os cristãos, tendo executados vários sacerdotes e fiéis em
praça pública, para assim, mostrar para europeus que o Japão não
iria permitir tamanhas afrontas.

No sentido comercial, principalmente depois de conquistar alianças


com Tokugawa e Moori, o seu foco foi à boa relação com grandes
comerciantes, onde todos apoiaram a causa de Hideyoshi. Assim, o
país que passou mais de 200 anos em guerra civil, agora se torna um
país centralizado e Hideyoshi se torna o grande senhor do país, mas
não recebe o título de Xogum, pelo fato de ser de origem humilde.
Além disso, ainda matinha um grande respeito à família imperial,
mesmo tendo retirado o poder do Império, algo que dura até os dias
de hoje no Japão.

A política de Hideyoshi vai se preocupar em reestruturar o país,


com uma administração direta controlando grande parte da
plantação de arroz, principal atividade econômica do país. Além de
incentivar a explorar minas de prata e ouro. Todas essas atividades
foram reformuladas e colocadas em áreas de mais fácil
administração, tudo para ter o total controle da economia do país,
que se destacava na arrecadação de tributos. Para isso, continuou a
sua perseguição a templos budistas que por anos dependiam desses
impostos, para isso, segundo Yamashiro (1978): “Nobunaga e
Hideyoshi não somente eliminam a influência religiosa da esfera
mundana, como quebram a organização monopolista no mundo
comercial. Abrem um novo horizonte nas atividades industriais e
comerciais.”

Tendo o total controle do comércio interior, as próximas atividades


serão o comércio exterior onde o país vinha em desenvolvimento
com países europeus como Portugal e Holanda. Hideyoshi queria
“Uma vez consolidada a obra de unificação nacional, procurar
exercer sua influência sobre os países vizinhos. O objetivo era o
comércio” (YAMASHIRO, 1978) com a anexação de países como
Coreia, China e Filipinas. Essa seria a ideia fatal para Hideyoshi, que
segundo Kennedy:

437
“Esse cenário animado, embora turbulento, seria modificado logo
com o uso de armas europeias importadas. Como estava
acontecendo em outras partes do mundo, o poder gravitava na
direção das pessoas, ou grupos, que dispunham de recursos para
comandar um grande exército com mosquetes e, o que era mais
importante ainda, canhões. No Japão, o resultado foi a consolidação
da autoridade do grande senhor guerreiro Hideyoshi, cujas
aspirações acabaram levando-o a duas tentativas de conquistar a
Coreia. Com o fracasso destas e com a morte de Hideyoshi em 1598,
a guerra civil voltou a ameaçar o Japão. Dentro de cinco anos,
porém, todo o poder se consolidava nas mãos de Ieyasu e seus
companheiros xoguns do clã Tokugawa. Desta vez, o governo
militar centralizado não podia ser abalado (KENNEDY, 1989).”

A morte de Hideyoshi marcou um ponto fulminante para o Japão, e


estabeleceu o seu antigo aliado Ieyasu Tokugawa como o grande
governante do Japão. O fracasso na guerra da Coréia e a repressão
contra cristãos fez o país que estava em ascensão econômica, seja em
relação exterior ou interior, fechar as suas portas. Tokugawa em
seus primeiros anos ainda mantinha relações econômicas com
outros países, mas segundo Yamashiro:

“Na época em que Ieyasu instala seu regime (1603), a situação


mundial sofre considerável transformação. Espanha e Portugal, até
então países mais poderosos da Europa, entram em decadência. Em
seu lugar surgem as novas potências, Inglaterra e Holanda. Esta, de
possessão espanhola passa a Estado independente e, em pouco
tempo, começa a competir com a antiga metrópole no palco
mundial. A rivalidade entre os dois grupos de nações se manifesta
tanto no terreno comercial como no religioso, pois enquanto os
países ibéricos são católicos, a Holanda e Inglaterra professam o
protestantismo. E em solo japonês as duas forças se defrontam em
forma de competição comercial. Os holandeses levam a melhor
porque os portugueses e espanhóis acabam sendo proibidos de
entrar no Japão com a proscrição do catolicismo.

438
Tokugawa manteve relações econômicas mais restritivas, apenas
poucos navios podiam desembarcar em um porto japonês. O Japão
observava o que estava acontecendo na China, Índia, Filipinas etc,
onde grandes impérios estavam se transformando em meras
colônias para a exploração e “divertimento” para monarquias
europeias. Sendo assim, quando o Xogunato de Tokugawa
conseguiu total controle do Japão, foi decretado o fechamento do
país, conhecido como Período Edo, começando uma forte repressão
contra estrangeiros e desenvolvimento modernizante do país. Ao
mesmo tempo, foi o período de paz mais abrangente do país, quase
268 anos sem grandes guerras, até mesmo transformando inúmeros
samurais em meros burocratas. Isso só irá mudar em 1868 com a
ascensão do Império Japonês, tendo a queda do Xogunato
Tokugawa, conhecida como Restauração Meiji, onde o governo
imperial retornou ao poder e abriu as portas para o exterior e para
modernização do país.

Portanto, o texto tenta elucidar os motivos para o total isolamento


do país em relação ao exterior por mais de 200 anos. Muito
aconteceu para que um país que buscava o comércio exterior e
tentativas fracassadas de dominar os países vizinhos se
transformasse em um país fechado. A ascensão do cristianismo que
pegou diversos fiéis que estavam desiludidos com o velho
xintoísmo e a corrupção de monges budistas, trouxe novo
pensamento para essa população, inclusive pensamentos até mais
liberais, mas que foi totalmente reprendido pelo medo de serem
culturalmente e religiosamente dominados por forças europeias.
Muitos historiadores tentam entender se isso foi benéfico para o
povo japonês, já que no Período Imperial tudo isso foi absolvido e
abriu portas para a dominação cultural americana nesse período da
Era Meiji.

439
Referências bibliográficas:

Kleiton Tariga de Mattos é Graduando em História no Centro


Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). E-mail:
kleiton.mattos@gmail.com

Naiane Inez Cossul é Professora de Relações Internacionais no


Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e Coordenadora do
Laboratório de Estudos em Defesa e Segurança (LEDS). É também
Doutoranda em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-
UFRGS), Mestre e Graduada em Relações Internacionais (UFSC). E-
mail: naiane.cossul@uniritter.edu.br

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de


Janeiro: Campus, 1989.

YAMASHIRO, José. Japão: Passado e Presente. São Paulo: Hucitec,


1978.

LEUPP, Gary. Male Colors: The Construction of Homosexuality in


Tokugawa Japan. California: University Of California Press, 1995.

440
AÇÚCAR E ESCRAVIDÃO NO OESTE
PAULISTA: POSSE DE CATIVOS EM
CAMPINAS, 1790-1810
CARLOS EDUARDO NICOLETTE

1. Introdução

Os primeiros engenhos do que hoje é o Estado de São Paulo datam


ainda do século XVII, com pequenos produtores de aguardente e
açúcar espalhados, principalmente, pela costa. Com o transcorrer do
século XVII e a expansão das trocas comerciais com outras províncias,
houve uma constante ocupação de terra no planalto paulista, aumento
sua povoação e transformando o espaço num ambiente de produção
agrícola, ainda que voltado para os alimentos. Durante todo o século
XVIII, existem relatos da produção de açúcar no Oeste Paulista, não
mais apenas na região ao redor da cidade de São Paulo, foi a vila de
Itu que teve o maior desenvolvimento de sua produção. Contudo, foi
após o aumento da demanda pelo açúcar na Europa no fim do XVIII e
a revolução de escravos no Haiti (maior produtor de açúcar do mundo
naquele período) que foi criado o complexo açucareiro de São Paulo,
no que foi chamado posteriormente de Quadrilátero do Açúcar.

É nesse quadro histórico que entra a vila de Campinas, a qual se


tornou vila apenas em 1797, justamente pelo rápido crescimento de
sua economia baseada na lavoura canavieira. Apesar da montagem do
complexo canavieiro não ter sido, enquanto fato histórico,
negligenciada pela historiografia, é preciso salientar a inexistência de
tratamentos mais detidos em relação aos seus efeitos demográficos e
do ritmo de crescimento das escravarias a partir das listas nominativas
de habitantes. O primeiro objetivo deste texto é investigar as variações
na demografia escrava de algumas senzalas de Campinas,

441
categorizando suas transformações para melhor analisá-las. O
segundo é comparar as mesmas escravarias durante 20 anos para
perceber se existe a possibilidade de manutenção dos mesmos cativos
durante o período. Deve-se reiterar que esta é uma pesquisa em
andamento que possui resultados preliminares e com intuito de serem
discutidos e debatidos em eventos para seu aperfeiçoamento, pois
pretende-se, ao continuar desta pesquisa, estudar todas as escravarias
que alcançaram, entre 1790 e 1810, ao menos 30 cativos.

Este texto, deve-se salientar é uma versão curta, porém mais refinada,
advinda do debate realizado na apresentação ocorrida 9º Encontro de
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Buscar-se-á, assim,
entender a formação das senzalas da vila que viria a ser o maior polo
econômico da primeira metade do século XIX em São Paulo e que faria
nessa província a transição da grande lavoura canavieira para o
cultivo de café perante a discussão das continuidades dos
escravizados ou não nas mesmas senzalas. Como afirma Robert W.
Slenes (1998, p. 17), é crucial estudar as transformações do regime
demográfico escravo, pois “açúcar e escravidão rapidamente
tornaram-se praticamente ‘sinônimos’ em Campinas e o crescimento
da população cativa foi explosivo: em torno de 18% ao ano entre 1789
e 1801, e 5% ao ano entre 1801 e 1829”.

A documentação base para o debate aqui proposto é a lista nominativa


de habitantes, também chamada de maços população, fontes seriais
valiosas que tem encontrado bastante adesão nas pesquisas históricas
feitas pelas universidades paulistas mineiras. É relevante discutir
rapidamente a confecção das listas nominativas. Para conhecer melhor
a população e organizar as tropas, Morgado de Mateus ordenou o
início imediato do levantamento populacional das vilas de São Paulo e
da condição econômica de cada vila. Isso foi realizado por meio das
listas nominativas, também chamadas de maços de população, foram
elaboradas, em grande parte, sob a orientação de uma estrutura

442
militar, as Companhias de Ordenança de terra. Porém, já no século
XIX, sua finalidade não era apenas atender às demandas da Bacia do
Prata e à organização econômica de São Paulo. O levantamento de
dados da população foi feito quase que anualmente pelas milícias
constituídas por Companhias, através dos capitães-mores, sargentos
de milícias e cabos de esquadra (BACELLAR, 2015, p. 315-316).

Vale dizer que o potencial da metodologia nominativa não reside no


simples delineamento da trajetória do indivíduo, mas no momento em
que se extraem de sua experiência ensinamentos sobre a sociedade do
qual ele faz parte. Dito isso, deixa-se mais claro o papel central que a
reincidência dos cativos nas senzalas de Campinas nas diferentes listas
nominativas, pois apenas assim é que esta investigação poderá criar
um quadro amplo do que teria sido a trajetória de vida de cada um
desses indivíduos ao longo dos anos. Também por isso se escolheu
trabalhar com todas as listas nominativas do período, pois caso se
utilizasse apenas uma lista com um determinado intervalo de tempo,
poder-se-ia incorrer em equívocos na continuidade das escravarias, já
que existem escravizados que saem em alguns anos e voltam
posteriormente a aparecer na senzala. (BACELLAR, 2008, p. 117).

2. Transformações demográficas na construção das senzalas de


Campinas entre 1790 a 1810

Para a realização desta pesquisa observou-se todas as listas


nominativas de habitantes de Campinas disponíveis e fez-se o
acompanhamento das escravarias longitudinalmente entre os anos de
1790 e 1810, visto este ser um período crucial para o desenvolvimento
da lavoura canavieira da vila, com os fazendeiros tendo aproveitado a
alta no preço da commodity no mercado internacional para ampliarem
suas produções, além da constituição de novos engenhos por outros
sujeitos.

443
Para selecionar as escravarias que seriam acompanhadas no tempo,
adotou-se o ano de 1790 como base e o recorte de 10 cativos. Em outras
palavras, optou-se por acompanhar todos aqueles fogos que possuíam
10 ou mais escravizados no primeiro ano do estudo pois entendeu-se
que, assim, se trabalharia com todos os grandes escravistas da vila
naquele ano. Foram encontradas cinco escravarias com este perfil
descrito, as quais dividiu-se as escravarias em algumas categorias.

Numa primeira análise geral, percebe-se dois grupos distintos entre as


escravarias: o primeiro, formado pelos proprietários Antônio Ferraz de
Campos, Felipe Neri Teixeira e Joaquim José Teixeira, os quais viram
suas senzalas crescerem ao longo do período selecionado. Já o segundo
grupo, formado por Maria Teresa do Rosário e João Rodrigues da
Cunha, viu suas senzalas diminuírem no mesmo período.

As escravarias do primeiro grupo não apenas foram ampliadas, como a


população acrescida teve um perfil bastante específico, foram em sua
maioria homens jovens, ou seja, o auge da idade produtiva e da força de
trabalho. Peter Eisenberg (1989, p. 326) trouxe à baila os preços do
açúcar branco na praça de Amsterdã, no qual percebe-se um aumento
de 174% no valor do artigo entre 1789 e 1799. Sendo assim, a
demografia dessas escravarias e o aumento no preço do açúcar,
evidenciam uma estratégia destes proprietários em aumentar sua
produção, visto serem todos senhores de engenho e a mão de obra
principal no eito canavieiro ser a masculina. Em outras palavras, foram
três sujeitos que aproveitaram a conjuntura de aumento no preço do
açúcar no mercado internacional e prosperaram na economia colonial.

444
A mesma divisão entre donos de cativos campinenses realizada
anteriormente pode ser feita em relação aos recém-nascidos nas
senzalas, conforme avança a década de 1790, cresce o número de
nascimentos nas grandes escravarias, enquanto no segundo grupo
apenas se mantém. A hipótese principal é que o crescimento do número
de escravizados também tenha gerado um aumento de casamentos e da
formação de famílias cativas; não à toa, a maior escravaria do período
estudado, pertencente a Antônio Ferraz de Campos, possui igualmente
a maior média de crianças e recém-nascidos. Porém, é necessário
ressaltar que até o ano de 1798, as informações sobre os casados não
seguem um determinado padrão, ou seja, em alguns anos existem as
informações, noutros somem e voltam a aparecer para os mesmos
sujeitos.

Em relação ao número de mulheres cativas em idade produtiva, é


interessante notar que, se comparado anualmente aos homens,

445
variaram razoavelmente mais no tempo, não mostrando um constante
crescimento entre as maiores escravarias e tampouco um padrão
demográfico, com uma alta mudança na razão de sexo ano a ano nas
três maiores escravarias. Por outro lado, as senzalas de Maria Teresa e
João Rodrigues tenderam ao equilíbrio entre os sexos. A diferença na
razão de sexo pode se relacionar ao trabalho na produção açucareira, já
que os homens eram o principal meio de força de trabalho; assim, se
sugere que a economia campinense que se encontrava em plena
expansão voltada para o mercado internacional após 1790, a escolha dos
proprietários de terras que procuraram expandir suas produções foi a
de manter e focar seus recursos prioritariamente em escravizados
homens jovens e não em mulheres.

3. Ruptura ou continuidade nas senzalas?

Como dito anteriormente, é inviável uma pesquisa comparativa sobre


a continuidade ou não dos cativos, pois não fez parte da historiografia
uma discussão sobre esse tema; exceção foi o artigo “Sobreviver na
senzala: estudo da composição e continuidade das escravarias
paulistas, 1798-1818”, de Carlos Bacellar e Ana Volpi Scott, publicado
em 1990. Nesse texto, os autores trabalharam com os resultados de
suas respectivas dissertações de mestrado, discutindo as listas
nominativas de 1798, 1808 e 1818, das vilas de Atibaia, Mogi das
Cruzes, Santana de Parnaíba, São Roque, Nazaré e Itu, comparando as
economias não-exportadoras das primeiras vilas com Itu, uma
economia voltada para a produção açucareira.

As cinco escravarias selecionadas apresentam casos de ruptura e


continuidade. Antes de entrarmos em suas especificidades, é
relevante ressaltar a dificuldade no acompanhamento desses cativos.
Como dito anteriormente, as idades dos sujeitos variam muito nos
documentos, não apenas dos escravos, mas inclusive dos livres –

446
pobres ou ricos. Essa característica da documentação da época
aumenta a dificuldade no acompanhamento das senzalas, pois ela se
integra à outra característica: os escravos são identificados, na maior
parte dos casos, apenas pelo primeiro nome. Dessa forma, por vezes
encontram-se vários escravos na mesma senzala com o nome Antônio
e idades similares, quando se analisa a lista nominativa seguinte, as
idades variam bastante, gerando o questionamento se seriam os
mesmos ou quem sabe outros que teriam sido adquiridos. Procurou-
se, assim, realizar o acompanhamento levando em conta cada senzala
e, apesar das dificuldades, muitos cativos conseguem ser
acompanhados durante todo o período.

O primeiro fator em comum que se observa no gráfico 1 é que em


todas as escravarias analisadas existem sujeitos que permaneceram
por todo o período analisado, em números significativos. Excetuando
as cativas mulheres de João Rodrigues da Cunha, ao menos 50% dos
cativos homens de todos os senhores continuam entre 1790 e 1810.
Fenômeno que chama a atenção é a ausência de escravos em
determinadas listas nominativas, eles somem e voltam a aparecer
posteriormente – deve-se lembrar o ano de 1791 em que somem todas
as mulheres dos fogos dos irmãos Teixeira, as quais retornam em
1792. É o caso, por exemplo, de Escolástica, cativa de Antônio Ferraz,
na primeira lista nominativa ela possuía apenas algumas semanas e
cresce na senzala, possuindo em 1800 a idade de 8 anos, segundo a
lista; porém ela não aparece na lista de 1797, levantando o
questionamento sobre presença na senzala, com a possibilidade de
ter sido esquecida pelo recenseador ou se existe a possibilidade de
que naquele ano ela não estivesse presente na escravaria. Bacellar e
Scott encontraram questão parecida, afirmando que “muitos escravos
desaparecem bruscamente do plantel, seja pelo falecimento, pela
venda ou mesmo por haverem sido enviados a uma outra
propriedade do mesmo senhor – a causa é difícil de ser precisada”
(BACELLAR; SCOTT, 1990, p. 215).

447
É relevante discutir sobre a existência de um possível padrão
demográfico dessa população escrava que permanece nas senzalas
campinenses. Nesse sentido, são os homens que representam o maior
percentual dos cativos que continuam nas senzalas ao longo das
décadas e 1790 e 1800. Ressaltando as escravarias dos irmãos Felipe
Neri Teixeira e Joaquim José Teixeira, os quais mantêm,
respectivamente, quatro cativos (50%) dos oito presentes em 1790 e
também quatro cativos (66,6%) dos seis iniciais.

Ao observar das idades dos cativos também se destaca aspectos


relevantes, pensando, principalmente, na alta mortalidade, pois o que
se encontrou foram cativos já adultos, porém jovens, como
característica do perfil demográfico na continuidade nas senzalas.
Percebeu-se que escravizados com mais de 40 anos foram a exceção
em permanecer por longos períodos, o que pode ser explicado não
apenas pela mortalidade, mas pela estratégia senhorial que naquela
conjuntura econômica de expansão da lavoura decidiu renovar sua

448
mão de obra. Quanto aos casados, para a década de 1790 é difícil
precisar se tiveram maior continuidade que os solteiros, pois as
informações parecem estar com qualidades distintas. Já no início de
1800 a mobilidade de escravos casados é menor e apresentam maior
taxa de permanência, contudo, pode ser um movimento natural, pois
aqueles que se encontram há mais tempo na mesma propriedade
também tiveram mais oportunidades para casamentos.

A única senzala que contém informações sobre os casamentos


durante todo o período é a de Antônio Ferraz de Campos e, nesse
caso, pode-se afirmar que a união matrimonial, ou seja, a formação de
famílias, facilita a continuidade desses sujeitos na senzala, isso
porquê daqueles 10 escravizados casados em 1790 (do total de 27), 9
permanecem na mesma senzala em 1800 – sendo que continuaram
para o mesmo período 18 escravos. A hipótese é de que João, o único
cativo casado que não chegou em 1800, tenha falecido em 1796, visto
apresentar no ano anterior 61 anos. Pode-se aventar a mesma
hipótese de Bacellar e Scott de que os cativos casados poderiam
receber melhores tratamentos, sejam dos senhores ou mesmo por
possuírem familiares próximos (BACELLAR; SCOTT, 1990, P. 216).

Se a continuidade nas senzalas é relevante para os estudos da


escravidão, as listas nominativas de habitantes também permitem
visualizar as descontinuidades. Este tópico não se estenderá,
contudo, a tabela 2 ilustra que nos 20 anos estudados, passaram mais
cativos adultos pelas senzalas do que o total estabelecido ao final do
período.

No caso de Antônio Ferraz de Campos, viveram ao longo de 15 anos


um total de 44 cativos em sua senzala, enquanto a de Joaquim José
Teixeira parece ter tido uma circulação bastante maior, com 58 adultos
no total, para formar uma senzala de 37 cativos. É possível entender

449
que as maiores escravarias também tenham passado por maiores
instabilidades, argumento respaldado pelos casos de Maria Teresa do
Rosário e João Rodrigues da Cunha, os quais têm pouca movimentação
dentro de suas senzalas, são os únicos, aliás, que diminuem a mão de
obra escrava – sendo, possivelmente, este o fator determinante para
uma maior porcentagem de escravos de 1790 presentes e 1810, visto que
não teriam capital para investir em novos cativos, prezaram por aqueles
poucos já existentes.

A razão para a saída dos escravizados das senzalas não pode ser
precisada utilizando-se apenas as listas nominativas, pode ter sido por
fugas, mortes ou vendas, porém, sugere-se que essa descontinuidade
nas escravarias menores possa revelar uma preferência senhorial por
aqueles escravizados antigos, visto que os já poucos novos escravos de
João Rodrigues e Maria Teresa somem rapidamente da documentação,
permanecendo, em geral, os cativos mais antigos.

4. Considerações Finais

A grande expansão da lavoura canavieira que ocorreu a partir da


década de 1790 trouxe transformações profundas à Campinas, sua
população cresceu enormemente, especialmente no número de

450
escravizados, bem como de sua exploração no ritmo de trabalho. Este
texto propôs uma análise longitudinal das cinco maiores escravarias
dessa vila entre 1790 e 1810, a fim de entender a montagem dessas
senzalas nesse período de expansão, as acompanhando por 20 anos.
Apesar dos resultados serem iniciais, pode-se observar a continuidade
de cativos dentro da mesma senzala, ao contrário do que se poderia
imaginar – seja pela alta mortalidade ou mesmo venda. Assim como a
importância dos escravos presentes no início da expansão canavieira no
desenvolvimento daqueles engenhos, visto existir uma razoável
circulação de escravos nas senzalas, porém, com alguns cativos
presentes em todos os anos.

Deve-se ressaltar que a dimensão das escravarias analisadas, superiores


à média do período, bem como a longevidade dos proprietários –
levando o processo sucessório ser mais tardio – favoreceram o processo
de estabilidade dentro dessas senzalas. Entretanto, estas tentativas
inicias de acompanhamento foram ricas ao possibilitar refletir sobre a
continuidade dos cativos numa mesma escravaria, o que pode levar no
aprofundamento da pesquisa e discutir as possibilidades e limitações
da continuidade nas relações familiares e de compadrio dentro do
sistema escravista de uma vila em expansão açucareira.

5. Bibliografia

Mestrando em História Social pela FFLCH/USP, sob a orientação do


Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar.
Contato: carlos.nicolette@usp.br. Agradeço à CNPq pelo
financiamento inicial de minha pesquisa de mestrado e à Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo auxílio atual sob
o processo nº 2018/05314-7.

451
5.1 Fontes

LISTAS NOMINATIVAS DE HABITANTES. JUNDIAÍ. São Paulo:


Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo Manuscrito. Anos:
1790, 1791, 1792, 1793, 1794 e 1796.

LISTAS NOMINATIVAS DE HABITANTES. CAMPINAS. São


Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo. Repositório Digital.
Anos: 1797, 1798, 1799, 1800, 1801, 1803, 1804, 1805, 1806, 1807, 1808,
1809 e 1810. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/
site/acervo/repositorio_digital/macos_populacao. Visto em:
10/01/2019.

5.2 Referências Bibliográficas

BACELLAR, Carlos de A. P. As listas nominativas da capitania de


São Paulo sob um olhar crítico (1765-1836). Anais de História de
Além-Mar. Vol. XVI: 313–338, 2015. Disponível em:
<https://run.unl.pt/handle/10362/19813>. Acesso em: 09/01/2019.

BACELLAR, Carlos de A. P. Arrolando os habitantes no passado: as


listas nominativas sob um olhar crítico. Locus: revista de história. Juiz
de Fora, v. 14, n. 1, 2008. Disponível em:
<http://www.ufjf.br/locus/files/2010/02/55.pdf>. Acesso em:
06/02/2019.

BACELLAR, Carlos de A. P.; SCOTT, Ana Silva Volpi. “Sobreviver


na senzala: estudo da composição e continuidade das grandes
escravarias paulistas, 1798-1818”. NADALIN, Sergio Odilon;
MARCÍLIO, Maria Luiza; BALHANA, Altiva Pilatti
(Orgs.). História e população: estudos sobre a América Latina. São
Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990.

EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: escravizados e trabalhadores


livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da
Unicamp, 1989.

452
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.

453
ALTERNATIVAS EDUCACIONAIS
PARA ABORDAGEM DA HERANÇA
AFRICANA E DA MEMÓRIA DA
ESCRAVIDÃO
VANESSA DE ARAÚJO ANDRADE

A formação do povo brasileiro, seja em seus aspectos sociais ou


culturais, origina-se da multiplicidade étnica encontrada no país,
originalmente habitado pelo nativos indígenas, em seguida pelos
europeus colonizadores, e posteriormente pelos africanos trazidos
para o país pela escravização. Compreender e estudar esta
multiplicidade é um dos caminhos para garantir respeito à
diversidade étnica, cultural e social do país, e o ensino de história é
determinante para o atingimento deste respeito.

O objetivo desta comunicação é discutir a relevância do ensino de


história e cultura afro-brasileira através de ações educacionais
voltadas para o público mais amplo que apenas o escolar. Para tal,
usaremos o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, ambos
elementos físicos da diáspora africana e da memória da escravidão
no Rio de Janeiro, como exemplos de objetos para trabalhar a
questão da cultura e presença afro-brasileira, pensando mais
particularmente na ações educacionais empreendidas pelo Instituto
dos Pretos Novos.

Falar da importância que os africanos escravizados e os indígenas


tiveram na formação do povo e da cultura brasileiros é de tal forma
importante que existe um artigo constitucional que protege as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e
de outros grupos “participantes do processo civilizatório nacional”
(art. 215), trazendo um reconhecimento da relevância da
contribuição destes povos para nossa formação cultural.
Posteriormente, a legislação atua também no ensino escolar, para

454
que haja maior conhecimento do assunto e para que a memória
destes grupos étnicos não seja silenciada, através da promulgação
da lei 10.639/2003, que tornava obrigatório o ensino de história
africana e afro-brasileira, complementada pela lei 11645/2008, que
acrescenta também o ensino de história indígena De acordo com as
referidas leis, a educação deve abordar “diversos aspectos da
história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir de dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e
o índio na formação da sociedade nacional”.

A partir da entrada da lei em vigor, mudaram alguns parâmetros


tanto na formação de alunos como na de professores, tais como a
inclusão curricular de disciplinas que preparassem o educador para
sua abordagem no ambiente educacional. Havia até então uma
grande lacuna no conhecimento dos educadores quanto à história da
África. Esta, até então, se limitava à civilização egípcia – muitas
vezes sequer referenciada como africana – e posterimente, quando
do início do tráfico escravista, como fornecedora de “carga humana”
para os navios negreiros. O africano surgia na história apenas como
escravizado, e era como se sua relevância se esvaísse nas
abordagens historiográficas do pós-abolição.

Com o centenário da abolição em 1988 houve um aumento dos


estudos sobre a temática da escravidão e do pós abolição, e ficou
evidente a necessidade de maiores discussões acerca do tema, mas
ainda seriam necessários mais de 20 anos para que houvesse
reflexos legislativos, resultando nas referidas leis e na inclusão de
disciplinas específicas nos cursos de História. Esta mudança na
formação dos educadores se refletiria na dinâmica do ambiente
escolar e nas discussões no meio acadêmico com a inserção de
temas relativos à escravidão e ao pós abolição.

Mesmo com a legislação de obrigatoriedade do ensino, ainda


permanece uma lacuna nos estudos sobre dos povos formadores da
cultura brasileira aos que tiveram sua formação anterior à

455
promulgação da lei. Existem várias discussões acadêmicas sobre a
questão da importância da cultura negra na sociedade brasileira,
mas ainda falta um longo caminho para que isso se reflita
adequadamente nos livros didáticos. Para muitas pessoas do
público leigo ainda permanece a visão dos índios como “indolentes”
ou vítimas de morticínio e os africanos apenas como escravizados.
Não são publicizadas suas revoltas ou estratégias de resistência, e no
pós abolição é como se eles “sumissem” da história. É necessário
discutir e estudar a participação destas pessoas no cotidiano e na
cultura brasileira.

O Cais do Valongo, considerado o local de desembarque e


comercialização de cerca de um quarto dos africanos escravizados
no continente americano, localiza-se na região Portuária do Rio de
Janeiro, e foi escavado em 2011 nas obras de renovação urbana para
os eventos esportivos Copa e Olimpíadas. A região do Valongo
concentrou o comércio de africanos escravizados do fim do século
XVIII até 1831, quando da proibição do tráfico negreiro. Na década
de 1840, o local foi reformado e antigo mercado de escravizados foi
transformado numa praça pelo arquiteto Grandjean de Montigny,
da missão artística francesa, e por ali desembarcou em 1843
a imperatriz Tereza Cristina, momento em que o cais foi rebatizado
como Cais da Imperatriz. Durante as reformas urbanas do início do
século XX, levadas a cabo por Rodrigues Alves e Pereira Passos, o
cais foi aterrado – num processo de “modernização” da cidade que
culminou em um silenciamento da memória da escravidão e do
período imperial. Já na contemporaneidade, havia conhecimento do
local do cais mas não havia interesse no resgate desta memória,
mesmo após proposições de historiadores e ativistas do movimento
negro a partir da década de 1980. Com as obras de reforma da
região portuária a partir de 2009 e a escavação do sítio arqueológico,
houve um fortalecimento das reivindicações por sua manutenção, e
em 2017 o Cais foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio
Cultural da Humanidade e determinado como sítio sensível, ou seja,
que evoca a memória de crimes contra a humanidade. Para efeito de
comparação, outros dois lugares considerados como sítios sensíveis
pela Unesco são o campo de concentração nazista Auschwitz, na

456
Polonia, e a cidade de Hiroshima, vítima de uma bomba atômica na
Segunda Guerra Mundial.

O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1769 a 1830, para


resolver a superlotação do cemitério de Santa Rita, e abrigava os
corpos dos escravizados que morriam durante a travessia atlântica
ou logo após sua chegada ao Brasil. Uma vez que o mercado havia
sido transferido para a região do Valongo, era mais sensato manter
um cemitério nas proximidades. Através de pesquisas realizadas
nos registros de óbitos da Santa Casa, concluiu-se que foram
enterradas ali milhares pessoas, mais de 6 mil apenas entre 1824 e
1830, em condições de bastante precariedade. Foi descoberto por
acaso, quando a família que adquiriu três casas na rua Pedro
Ernesto foi fazer uma reforma e começou a se deparar com ossadas
humanas em 1996. Lutando por auxilio governamental sem sucesso,
em 2005 criaram o IPN – Instituto dos Pretos Novos, que se dedica a
preservar a memória da escravidão e do tráfico negreiro, e desde
2015 promove uma série de ações educacionais voltadas ao grande
publico, com o intuito tanto de prover a subsistência do Instituto,
atualmente sem nenhuma forma de patrocínio governamental,
quanto de popularizar a importância cultural e histórica daquela
área e dos africanos escravizados que por ali passaram. A história da
utilização do local como cemitério, de sua redescoberta e da
fundação do Instituto encontra-se no livro À Flor da Terra, do
historiador Júlio Cesar Pereira.

Com a elevação do Cais do Valongo a patrimônio cultural da


Humanidade em 2017, houve um aumento da visibilidade tanto do
Cais quanto do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da
Herança Africana por parte da mídia, conjugado a ações
educacionais para fomentar o conhecimento sobre esta parte da
nossa história. O Circuito foi criado em 2011 pela Prefeitura, e o
próprio consórcio Porto Maravilha, que coordenava as obras da
região portuária, tinha um projeto de visitas guiadas ao Circuito,
bem como o projeto Porto Cultural que previa a aplicação dos
recursos arrecadados para as reformas em projetos que resgatassem
a diversidade cultural da área (que estão paralisados, uma vez que

457
há uma grande discussão em torno do repasse dos recursos de
investimento das obras portuárias, impactando até mesmo em
serviços básicos como iluminação e saneamento públicos).

Gostaria de destacar aqui, como possibilidades do ensino de história


atreladas à Lei 11645-2008, as iniciativas educacionais do IPN, que
trabalha em parceria com historiadores, antropólogos, arqueólogos e
museólogos, não só para preservação do acervo mas também para
difusão do saber ali pesquisado. E para tal, empreende uma série de
ações educacionais, que vão de oficinas livres a dois cursos de pós-
graduação. Uma das suas principais atividades é a visita guiada ao
Circuito da Herança Africana, aula a céu aberto realizada no
mínimo uma vez por mês desde 2012, e que percorre os principais
pontos da zona portuária ligados à escravidão, como o Cais do
Valongo, o Largo de São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal e por
fim o próprio Instituto dos Pretos Novos. Esta visita é realizada
tanto com grupos de alunos em idade escolar quanto com o público
geral interessado, trazendo uma conexão entre o passado escravista,
a vivência destas pessoas escravizadas durante o período de
cativeiro e no pós abolição, e o cotidiano urbano do Rio.

Além deste circuito, destacamos outras ações que o IPN vem


realizando desde 2015, e que vão ao encontro do objetivo proposto
pela Lei 11.645, de discutir a relevância da diáspora africana na
composição étnica, cultural e da personalidade brasileira, que
obedecem a uma temática de introdução ou ampliação do
conhecimento sobre a cultura e a história negras, baseada
essencialmente na ligação da região portuária com a escravidão, e de
forma transversal por outros aspectos culturais, como a cosmogonia
ou os contos de tradição oral, que permeiam a cultura e a religião de
matriz africana em nossos dias.

Consideramos as ações e a própria iniciativa do IPN como dignos de


nota, não só pela sua relevância pela perspectiva histórica, mas
também por tratarem com respeito a cultura diaspórica. As culturas
de diáspora são, via de regra, guiadas pela necessidade de
reinvenção da identidade e da vida através dos laços que são

458
formados no ambiente de destino. A diáspora pode representar
ligação, neste sentido, mas também isolamento, a partir do
momento em que os povos diaspóricos são segregados ou
discriminados. E, conforme mostra a história do Brasil, foi
exatamente o que aconteceu com os africanos escravizados,
forçosamente trazidos ao Brasil. Sua exclusão e marginalização
perdurou ao longo da história, tendo reflexos na
contemporaneidade, no entanto é inquestionável sua participação na
formação da identidade e da cultura brasileira.

O ponto que gostaríamos de ressaltar consoante a estas ações


educacionais é seu atingimento de uma parcela maior de pessoas do
que apenas alunos de instituições escolares. O público participante
dessas ações era composto de professores, historiadores, ativistas de
movimento negro, e de inúmeras pessoas interessadas em
urbanismo e em história do Rio de Janeiro, que através das
atividades teriam a oportunidade de ampliar seu conhecimento
acerca da história do Rio e de sua população negra, como também
estabelecer conexões sobre sua importância na nossa cultura e
população atuais.

Atualmente o educador em história enfrenta diversos desafios, da


própria estrutura educacional a discussões acerca de sua autonomia
em sala de aula, e dentre as estratégias de atuação, os espaços
educacionais não convencionais podem ser uma saída para uma
discussão mais ampla e com geração de um saber significativo,
ancorado em vivências e percepções dos aprendizes com relação à
sua vivência cotidiana. Consideramos, portanto, que iniciativas
externas ao ambiente escolar, como de museus, centros culturais ou
institutos como o IPN podem ser vistas como uma alternativa de
resposta e auxílio às questões colocadas perante o educador,
concernentes às revisões curriculares e novas dinâmicas escolares,
uma vez que proporcionam uma conexão entre a realidade cotidiana
do aluno e uma perspectiva global de inserção da cidade e do país
na dinâmica da história da escravidão e da resistência.

Referências Bibliográficas:

459
A autora é licenciada em História e especialista em História e
Cultura no Brasil - Unesa
Mestranda em História, Política e Bens Culturais – Fundação
Getúlio Vargas
Profª Orientadora Ynaê Lopes dos Santos

ANJOS, Ana Maria de La Merced G.G.G. dos; PEREIRA, Júlio C. M.


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e a história: revitalização urbana e novas historicidades no porto
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memória – o Rio de Janeiro e suas “maravilhas”. Odeere: revista do
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2016.
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2007
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GUIMARÃES, Roberta Sampaio. A Utopia da Pequena África:
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Carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.

460
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chegaram: o Cais do Valongo e a institucionalização da memória
do tráfico negreiro na região portuária do Rio de
Janeiro. Horizontes Antropológicos: Porto Alegre, ano 21, nº 43, p.
239-271, jan/jun 2015.

461
REFERENCIAL LATINO-AMERICANO
NA OBRA DE RAUL SEIXAS:
PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
JEFERSON DO NASCIMENTO MACHADO*

INTRODUÇÃO

Raul Seixas foi um cantor multifacetado, que buscou explorar

variados estilos, tendo como intuito traduzir questões filosóficas e

suscitar o imaginário popular para outras formas de sociabilidades.

Para além das referências já conhecidas, como o rock e o misticismo

inspirado em Aleister Crowley, o músico também buscou

inspirações na musicalidade latino-americana. Este último

referencial, em especial, foi pouco explorado e carece de estudos.

Assim sendo, buscamos refletir sobre estes referenciais e suas

implicações na construção da identidade latino-americana e na obra

de Raul Seixas.

DE ELVIS À VIOLETA PARRA

Raul Seixas conheceu o rock e o blues em 1957, quando sua família

mudou para uma casa próxima do Consulado Americano em

Salvador. Nessa época, ele tinha onze anos e passou a ter contanto

com alguns garotos estadunidense, os quais apresentaram para ele

462
Elvis Presley, Chuck Berry, Eddie Cochran, bem como toda a cultura

da juventude transviada americana, que passava pelas atuações de

James Dean (JORGE, 2012). É nítido a influência da cultura

estadunidense, mas Raul gostava de frisar o caráter negro e caipira

da cultura que inspirava-o:

“Nunca liguei muito pras letras das músicas. Apesar que eu aprendi

inglês, meu primeiro inglês, o dos caipiras (hillbilies) e dos negros

cheios de sotaque. Era o ritmo tribal que me amarrava mesmo,

gostoso, empolgava [...]” (SEIXAS apud PASSOS, 1993, p. 15).

Vale acrescentar que Raul conheceu o rock quando já estava imerso

no caldo cultural brasileiro, que ia do baião ao samba. Assim sendo,

ele capturava a estética produzida pela ala marginal estadunidense

(negro e caipira), realizando filtragens e combinações com a estética

e a realidade social brasileira. Através disso, ele enriquecia o seu ser

social e, por meio da música, ele dividia este ser enriquecido.

Entretanto, as referências de Raul não podem ser reduzidas a

música estadunidense, pois ele buscava inspirações em muitos

outros lugares. Entre esses lugares, encontramos também a América

Latina.

Deste modo, à semelhança de outros artistas brasileiros da sua

época, como Belchior, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,

463
Milton Nascimento etc., que realizaram constante conversa com o

mundo latino (PAULA, 2011), Raul também se alimentou deste

caldo cultural. Acerca de partes desse caldo, podemos destacar o

Tango argentino e uruguaio, o Bolero, as músicas cubanas e o

folclore chileno, levado ao mundo por nomes como Victor Jara e

Violeta Parra.

Do Tango é notável a influência de Carlos Gardel, que é literalmente

citado na letra de Sociedade Alternativa, presente no álbum Gita de

1974. Também fica evidente a influência de Enrique dos Santos

Discépolo, que Raul chegou a regravar, no álbum Uah-Bap-Lu-Bap-

Lah-Béin-Bum! de 1987, a sua canção Cambalache, no qual realizou

uma interpretação em português. O Tango também aparece

enquanto ritmo, como pode ser verificado no Canto Para minha

Morte, que é a faixa de entrada do álbum Há 10 Mil Anos Atrás de

1976.

Em relação ao Bolero, pode-se apontar para Sessão das Dez, faixa do

álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez,

composto em 1971. Conforme o próprio Raul: “Eu faço boleros,

tangos e canto pra quem curte isso também. Minha música é pra

todo mundo. Não é hermética, porque não complico” (SEIXAS apud

PASSOS, 1993, p. 107).

464
Quando criança, Raul gostava de ouvir a orquestra cubana Lecuona

Cuban Boys e quando estava com doze anos colocou em seu diário

que “o disco que eu mais gostei na vida mais de que rock’ n’ roll

mais que samba mais que mambo foi ‘Cubanacan” (SEIXAS, 1983, p.

14).

Raul Seixas, além de escutar músicas latinas e interpretá-las em

português, também buscou gravar músicas próprias em espanhol.

Entre essas canções podemos citar as versões em espanhol de

Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo, que aparecem no álbum

póstumo, O Baú do Raul, produzido por Sylvio Passos em 1992.

Além disso, também podemos encontrar intervenções em espanhol

em faixas como Réquiem Para uma Flor, presente no álbum Por

quem os Sinos Dobram de 1972, no qual notamos a fala:

“Incapaces LOS HOMBRES. Que hablan de todo. Y sufren

callados.”.

Acerca da música chilena, Raul Seixas passa a tomar nota dela nos

seus últimos anos de vida. Em 1982 aparece pela primeira vez a

referência a uma cantora chilena, a Violeta Parra. A cantora é citada

na faixa Na Rodoviária, música de 1982: “[...] Violeta Parra e Nero

iluminaram Roma. Assim como a vela [...]”. A letra mostra que Raul

conhecia as críticas anticlericais presentes na obra de Violeta, por

465
isso associa ela a Nero, que teria incendiado Roma para fazer

música, como sugerem algumas versões.

Para ele, Violeta fazia música a partir de críticas a Igreja, que seria

uma representante da velha Roma. Talvez seja um ponto de

encontro de Raul Seixas e a cantora chilena, pois ambos produziram

críticas a Igreja em suas letras. Em uma entrevista dada Revista

BIZZ, em 1987, ele comenta que:

“[...] Estou descobrindo uma cantora, a Violeta Parra. Descobri esse

ritmo e ainda vou fazer uma música com aquele feeling. Apesar de

ser difícil aquela batida, difícil pra burro. Estou em cima disso. Ela é

demais. [...]”.

Entretanto, dois anos depois ele faleceu, não podendo realizar a

música com o feeling de violeta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos ter conseguido, no decorrer deste texto, apresentar parte

do referencial latino-americano da obra de Raul Seixas e sobre as

implicações na construção da identidade latino-americana.

Esperamos ter mostrado que Raul, como outros cantores de sua

época, também esteve imerso no diálogo entre as nações vizinhas,

catalisando, incorporando e compartilhando ao público elementos

466
socializadores. No geral, ansiamos que, longe do texto encerrar a

discussão, que ele impulsione outras discussões e estudos acerca do

assunto.

REFERÊNCIAS

*Jeferson do Nascimento Machado possui graduação em História

pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati.

Atualmente é mestrando em História pelo Programa de Pós-

Graduação em História, PPGH-UNICENTRO, sob a orientação do

Dr. Oseias de Oliveira. E-mail:

jefersondonascimentomachado@gmail.com

JORGE, Cibele Simões Ferreira Kerr. Raul Seixas: um produtor de

Mestiçagens Musicais e Midáticas. São Paulo, 2012.

PASSOS, Sylvio (Org). Raul Seixas Por Ele Mesmo. São Paulo:
Martin Claret, 1993.
SEIXAS, Raul. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Rio
de Janeiro: Shogun Editora e Arte, 1983.
PAULA, Marcelo Ferraz de. A América Latina na Música Popular
Brasileira: dois idiomas e um coro-canção. Rio de Janeiro:
Darandina, 2011.

467
CAPOEIRA PARANAENSE (XIX-XX):
ENTRE O LÚDICO E O MARCIAL
*JEFERSON DO NASCIMENTO MACHADO

INTRODUÇÃO

Este texto é um fragmento das discussões que estou realizando na

minha dissertação: “História da Capoeira na cidade de Ponta grossa:

entre relatos e fotografia”. No I Simpósio On Line de História dos

Ananins (2018), eu publiquei um esboço sobre a história da Capoeira

no Estado do Paraná, na qual dividi parte das descobertas realizadas

até naquele momento. Lá eu busquei discutir a sua chegada em

Curitiba e o seu desdobramento para as outras cidades. Entretanto,

durante aquela discussão eu tomei a década de setenta como o início

da Capoeira paranaense. Posteriormente, em contanto com novos

documentos, notei que as referências a Capoeira eram mais antigas,

existindo referências a ela desde o século XIX. Assim sendo,

aproveito este segundo evento para atualizar a discussão realizada

no primeiro evento, bem como para inserir outras questões que

acreditamos serem importantes.

468
A CAPOEIRA DO SÉCULO XIX

Ainda não há dados suficientes, mas existem indicativos que a

Capoeira tenha sido praticada no Paraná durante o período da

escravidão. É uma hipótese possível. Por exemplo, a memória

coletiva presente no Quilombo de Água Morna-PR faz referência a

uma possível capoeirista, que teria vivido no contexto da Guerra do

Paraguai (1864 - 1870). Conforme relatos de Djair Alves de Lima,

descendente quilombola, essa capoeirista se chamava Mãe Romana

e teria lutado “[...] na Guerra com navalha na mão e no vão dos

dedos dos pés”. O uso de navalhas nos pés era algo comum aos

capoeiristas deste período e destaca o caráter marcial da

capoeiragem.

Outro elemento que alimenta a nossa hipótese está relacionado ao

Estado de Santa Catarina, pois ali existe referência a um capoeirista

que viveu no século XIX. Este capoeirista se chamava Preto

Desidério e ficou conhecido pelas constantes referências que Lauro

Müller fazia a ele. Müller se referiu a ele em diversos jornais

(DIÁRIO DO PARANÁ, 1958; O ESTADO DO PARANÁ, 1926; O

ESTADO, 1934; PARANÁ NORTE, 1948), sempre acrescentando que

aprendeu Capoeira com ele.

Todavia, devemos acrescentar que temos apenas hipóteses sobre a

Capoeira nesse período. Por outro lado, podemos afirmar que já

469
havia Capoeira no final no do século XIX, pois encontramos uma

referência direto a ela no Diário da Tarde de 1889. Neste jornal

encontramos a seguinte uma notícia sob o título de “Brinquedos e

Cacetadas”, onde é narrado que:

“Brincavam hontem Filippe Gonçalves e Izidoro Mendes na rua

Borges de Macedo, ás dez horas da noite. Consistia o brinquedo em

jogos de capoeiragem.

Dahi á momentos chegou ao local Manoel Ramos que acreditando

tratar-se de uma briga, manejou o cacete que possuía e deu forte

cacetada em Filippe, no lado esquerdo da fronte, prostanto-o em

seguida.

O ferido poude ainda descarregar o seu revolver contra o agressor; a

bala alcançou-o ferindo-o levemente.

Ambos estão presos “(DIÁRIO DA TARDE, 1899, s/p.).

Note-se que o termo usado para se referir a Capoeira é “jogo” e o

título da matéria introduz a palavra “brinquedos”, buscando

apontar um aspecto mais lúdico e menos marcial da prática.

Interessante observar que o capoeirista não usou de golpes de

Capoeira para se defender e sim de um revólver.

470
No ano de 1900, surge outra referência ao jogo de Capoeira desse

século, que foi vinculada ao Diário da Tarde, no qual aparece a

seguinte notícia:

“As 7 horas da manhã, deu-se hoje na rua Barão do Serro Azul, um

fato escandaloso, de que a polícia não teve conhecimento. Um

soldado embriagado, jogava capoeira com uma mulher. Conclusão:

tabefes e sangue” (DIÁRIO DA TARDE, 1900).

Essa referência destaca o caráter lúdico da Capoeira, que aparece na

concepção “jogo”, o caráter marcial dela expressado nos “tabefes e

sangue” e o aspecto da apropriação dela enquanto instrumento de

opressão.

A CAPOEIRA DO SÉCULO XX

Se no ano de 1900, a Capoeira foi usada como instrumento de

opressão, no ano de 1979 ela foi usada enquanto instrumento de

libertação. O Diário do Paraná (1979) noticiou o seguinte:

“O barulho na boate da Nadir, na Vila Guaíra, era prenúncio de

muita confusão, na noite de anteontem. Logo após às primeiras

horas da madrugada, não deu outra. A bailarina Joana da Silva, uma

bailarina de 23 anos, que luta capoeira e sabe brigar como qualquer

471
homem, quase decapitou seu parceiro João Fernandes, no interior de

um dos quartos do prostibulo.

A mulher, que diz saber ser “danada”, quando preciso, foi presa e

autuada em flagrante na delegacia do 8º Distrito policial onde

confessou o crime. Segunda ela, “ele quis me matar, quis me

“amassar” muito e eu tive que me defender”. Para ela, “ele deve ser

maníaco, logo que nós entramos no quarto ele foi me acertando um

soco no olho e me derrubando no chã” [...] mesmo assim, conseguiu

dar uma gravata e cravar a faca no pescoço da vítima” (DIARIO DO

PARANÁ, 1979, p. 10).

O desfecho do caso parece ter tornado Joana Silva, que era vítima,

em criminosa. Mas fato é que ela soube usar da Capoeira com

maestria, fazendo despontar mais uma vez o caráter marcial e de

autodefesa da Capoeira.

Posteriormente, em 1983, outro capoeirista, dessa vez um mestre,

também utilizou da Capoeira como autodefesa, fomentando o

aspecto de luta da Capoeira. Conforme o Diário da Tarde (1983, p.

4):

“O mestre de capoeira Oriel Feliciano Lopes, estava no interior de

um bar na Marechal Floriano, 7043, quando pela madrugada foi

provocado e agredido pelo militar Orvaldo Gonçalves Ferreira, de

472
33 anos, que portava um cabo de aço. Na briga porém acabou

levando a melhor e o militar precisou ser medicado no Pronto-

Socorro do Cajuru, A delegacia de Homicídios foi comunicada da

ocorrência e passou o caso para a delegacia do 7.º Distrito.”

Assim, até aqui fica notável a faceta de capoeira-luta, de arte-marcial

da Capoeira, presente na capoeiragem paranaense.

O jornal O Dia de 1951, fez uma segunda referência a Capoeira. Essa

alusão pode ser verificada na notícia sobre um lutador, conhecido

como Mossurunga, que estava fazendo uma série de lutas no norte

do Paraná. Um de seus adversários, segundo o jornal foi “o maior

capoeira do Paraná”, no entanto, não cita o nome: “trouxe 14

vitórias e 1 empate, em Mandaguari, lutou com o maior capoeira do

Paraná, venceu no 2º round.” (O DIA, 1951, p. 6).

Outra referência a presença de capoeiristas na cidade de Curitiba

data de 1962, quando alguns capoeiristas estiveram acompanhando

a peça O Pagador de Promessas, dirigido por José Renato. Estes

capoeiristas fizeram apresentações no Teatro Guaíra durante os

quatro dias que a peça esteve na capital. Isso aconteceu em julho

durante os dias 13, 14, 15 e 16, do ano de 1962. A peça foi anunciada

pelo Diário do Paraná (1972, p. 2), que descreveu que junto com a

peça haveria “uma roda de capoeira com sete integrantes”.

Devemos frisar que essa peça ajudou bastante na divulgação da

473
Capoeira, especialmente, no aspecto mais lúdico, já que era parte de

uma peça teatral.

Posteriormente, passaram pela cidade Mestre Lampião de Goiás

(Eurípedes) e Alabamba. Mestre Lampião de Goiás, passou pela

cidade no ano de 1970. Depois dele, passou Mestre Alabamba, que

fez alguns shows no Teatro Guaíra, em 1972 (SERGIPE, 200). Ali no

teatro ele encontrou alguns alunos de Mestre Lampião que haviam

sido recém iniciados mas, conforme Sergipe (2006), ele não realizou

nenhum projeto na cidade. Logo mais, no ano de 1973, o próprio

Mestre Sergipe aportou na cidade e começou a desenvolver a prática

institucionalizada, dando início a uma outra etapa da história da

Capoeira paranaense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste texto trouxemos algumas discussões tratadas na

dissertação e buscamos atualizar o texto publicado no primeiro

Simpósio. Assim, esperamos ter exposto outros elementos da

trajetória da capoeira no Estado do Paraná, mostrando o seu aspecto

lúdico e marcial.

Em geral, ansiamos para que este texto traga alguma contribuição os

interessados nos estudos sobre a Capoeira e que ele seja um

instigador de eventuais interessados, podendo também servir de

474
suporte para professores da rede pública do Paraná que busquem

abordar a temática negro e da própria Capoeira no Estado.

FONTES E REFERÊNCIAS

*Jeferson do Nascimento Machado possui graduação em História

pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati.

Atualmente é mestrando em História pelo Programa de Pós-

Graduação em História, PPGH-UNICENTRO, sob a orientação do

Dr. Oseias de Oliveira. E-mail:

jefersondonascimentomachado@gmail.com

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Fis=105674& >. Acessado em 05 de fev. 2019.

SERGIPE, Mestre. O Poder da Capoeira. Curitiba: Imprensa oficial,


2006.

477
A QUESTÃO DOS LIMITE S
TERRITORIAIS NAS PÁGINAS DO
BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO
E GEOGRAPHICO PARANAENSE
(1900-1925)
MEGI MONIQUE MARIA DIAS

INTRODUÇÃO

O Instituto Histórico e Geographico Paranaense (IHGP) nasceu de


um momento específico da política nacional brasileira num tempo
de interiorização da oficialidade do Estado Nacional, neste contexto
ele terá papel fundamental para o projeto de expansão do programa
de unificação nacional. Pensar o Paraná no contexto nacional de
princípios do século XX consiste em refletir sobre os elementos que
forjaram sua historicidade, que por sua vez, sempre tendiam para
noção de progresso (SOUZA, 2002). Revestido por fins patrióticos,
tinha o Instituto Histórico e Geográfico Paranaense,

“a utilidade, desempenhar certa influência em questões de alta


transcendência para o Paraná (...) existência de nome dos seus
melhores filhos, influência histórica de seus acontecimentos,
descrevendo o curso de seus rios, delimitando a altitude de suas
regiões esplendentes e expor com acentuada feição nossas
características” (Boletim do IHGP, 1918, p. 06).

O Instituto significaria uma associação ímpar no ramo das pesquisas


científicas, isto porque pela primeira vez os conhecimentos da
história e da geografia não estariam subsumidos às demais áreas,
representando, portanto, o início de uma trajetória de sistematização
dos conhecimentos produzidos pelo grêmio. A criação de
Instituições científicas desse porte no estado, foi conduzida pela elite
local de Curitiba o que demonstrava como tal grupo buscava
solidificar e ampliar os espaços de sua atuação e da circulação dos

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ideais republicanos no Paraná expandindo suas atividades através
da criação e uma porção de centros e associações literárias, bem
como revistas, jornais e toda uma série de produções históricas e de
espaços culturais e sociais, utilizados para consolidar um projeto
político cultural específico para o Paraná.

O Instituto Histórico e Geographico Paranaense nasceu em meio a


ideia de edificação da escrita da história, sustentado pela aura
patriótica de comemoração ao IV Centenário do Descobrimento do
Brasil e, simultaneamente, do 47º ano da Instalação da Província do
Estado do Paraná. A Assembleia que aprovou o instrumento
normativo do IHGP, através do estabelecimento das propostas em
Estatuto e lhe concedeu direito de funcionamento, aconteceu no dia
03 de Junho de 1900.

Já a publicação do primeiro Boletim do Instituto Histórico e


Geographico Paranaense em 1918 significou um momento de
realização para os membros da instituição, bem como de
modernização da história paranaense em princípios do século XX.
Dando continuidade ao programa do Instituto, o segundo periódico
publicado pelo IHGP completava a proposta dos editores, o material
veio à tona no ano de 1919. O terceiro Boletim do IHGP seria
publicado somente no ano de 1925, tendo em vista que incidentes
concorreram para o adiamento da publicação dessa edição. Em sua
grande maioria, os intelectuais do grêmio eram personalidades de
destaque a política nacional, cuja maior preocupação era vincular a
entidade com as diretrizes da política oficial.

Temática importante que aparece como uma discussão proeminente


no Instituto Histórico e Geographico Paranaense (IHGP) entre 1900
e 1925, é a questão de limites territoriais, sendo este o eixo norteador
do debate que vamos expandir nessa pesquisa. Essa problemática foi
destaque naquele período, não só no Paraná como em todo o Brasil,
os institutos históricos estão discutindo esses limites.

479
História e geografia apareciam como conhecimentos essenciais para
as definições da vida social e do meio físico brasileiro. A atuação do
grêmio mostra que tais propostas foram levadas adiante. As
iniciativas do Instituto Paranaense incidiam com o propósito de se
construir a região Paraná através da elaboração de uma história
capaz de vencer os obstáculos e construir imagens homogêneas e
hegemônicas do progresso paranaense.

Percebem-se peculiaridades nos debates intelectuais e políticos,


travados no interior do IHGP, em princípios do século XX,
sobretudo em relação às indefinições geográficas do seu território,
especialmente, quanto aos seus limites com os Estados de São Paulo
e Santa Catarina, e suas fronteiras internacionais, com Argentina e
Paraguai, sendo estas, motivo de disputas, até meados do século
passado.

Muitos foram convidados a fazer parte das atividades proposta pelo


IHGP, sobretudo pela atuação na defesa dos limites com Santa
Catarina. Entre eles, foram lembrados o Desembargador Bento
Fernandes de Barros, original do Ceará, mas que desde o final da
década de 1870 produzia trabalhos sobre os limites . Ermelino de
Leão também escreveu obras dessa temática, e agiu
diretamente como um dos representantes legais do Estado, além de,
Manoel Francisco Ferreira Correia (1831-1905), outro bacharel,
também possuía folhetos e mapas sobre o Paraná, alguns deles
juntamente com Cândido de Abreu (1856-1918), engenheiro,
Secretário Estadual de Obras e Viações Públicas nos anos que
antecedem a fundação. (BELTRAMI, 2002, p. 23).

DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Os silêncios sobre os aspectos geográficos brasileiros deveriam ser


cessados por meio da execução de escritos e estudos cujos dados
ajudariam no conhecimento das regiões brasileiras. Em Método
crítico e escrita da história em Capistrano de Abreu (1853-1927), Maria da
Glória, nos ajuda a entender a partir de Capistrano de Abreu, um

480
dos historiadores mais influentes do período, o panorama da escrita
da história no Brasil. Segundo a autora, a insistência no uso da
geografia foi uma constante na narrativa histórica daquele
momento, de forma que àquele historiador trouxe à cena dos
escritos historiográficos assuntos que estavam relacionados com o
problema da unificação do espaço territorial brasileiro. Percebe-se o
alcance que esta problemática iria assumir nos estudos históricos,
segundo Capistrano de Abreu, essa temática se consolidaria como
algo especial. A importância da questão do espaço territorial
brasileiro, fez com que, defendesse a investigação da ocupação do
território interior, e não apenas o litoral, uma vez que, para
Capistrano, somente assim “se completaria o projeto de uma
verdadeira história pátria” (OLIVEIRA, 2006, p. 47).

Outra estudiosa de João Capistrano de Abreu é Denise Botmann,


que em Padrões Explicativos da Historiografia Brasileira (1999) afirma
que esse tema será uma das expressões máximas da sua história
nacional, pois entende que a força desse país “encontra-se na
conjugação do vasto território que se expande continentalmente – e
não litoraneamente” (BOTMANN, 1999, p. 31), de onde, afirmava
ser esse o movimento que deu os “contornos efetivos do território”
(idem). O movimento de adentrar as regiões do interior significava,
antes de tudo, “as vitórias sobre a geografia do território” (idem,
ibidem). O interesse pelo sertão, de olhar o interior do território, nos
fez perceber a proximidade de alguns aspectos da produção de João
Capistrano de Abreu entre as publicações do Boletim do IHGP.
Cabe dizer que além de sócio do IHGB, foi admitido pelo Instituto
Paranaense, em 05 de Agosto de 1916. Aludimos para o fato de que
essa aproximação pode significar certa influência da obra de
Capistrano nas escolhas das temáticas históricas dos textos
selecionados para figurar no periódico do IHGP, que por sua vez,
deveria reunir e publicar mais e mais documentos que
comprovassem a história da formação do território paranaense.

A exploração do “sertão desconhecido” (Boletim do IHGP, 1918, p.


194), era uma das tarefas dos estudos realizados. Uma publicação no
Boletim do IHGP, Investigações sobre o sertão paranaense, questões a

481
estudar em relação aos princípios da nossa história, de Guilherme Shüch
(1820-1908) - Barão de Capanema -, consiste em prova incontestável
desse movimento de exploração ao interior do país,
tais investigações seriam importantes para o objetivo de demarcação
do território nacional principalmente através da abertura de
estradas. Isso seria possível mediante o levantamento de
documentação de estradas antigas que pudessem cooperar para com
o prolongamento das viações existentes até aquele momento, para o
Barão de Capanema, nas considerações que fez após a sua passagem
pelo sertão paranaense, era importante, que as estradas fossem
planejadas de forma a “estabelecer comunicação com o litoral para
transporte de productos” (SHÜCH, 1918, p. 310).

Lembramos que Guilherme Schüch (1820-1908), Barão de


Capanema, estudou engenharia, matemática, botânica e foi
responsável pela instalação da rede telegráfica nacional. Participou
de diversas instituições científicas que surgiram no século XIX e
dentre elas foi um membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, no qual foi diretor da Seção Geológica e Mineralógica
(ROSEVICS, 2009, p. 101).

Seguindo a descrição dos eventos que, naquele momento, eram


considerados de relevância histórica e que contribuíram para a
consolidação do território paranaense, o Boletim do IHGP, traz na
edição de 1919, Viagem de Exploração, o resumo do itinerário de uma
viagem exploradora, realizada pelo norte-americano radicado no
Brasil John Henrique Elliot, e que tinha como um de seus objetivos
demarcar o traçado do território que nascia. John Henrique Elliot
nasceu nos Estados Unidos e aos 16 anos mudou-se para o Brasil,
terra que se tornou sua pátria após alistar-se ao exército e ser
convocado como tenente para lutar na guerra da Cisplatina. Além
da patente militar, também foi escritor, geógrafo e aquarelista,
participando de diversas expedições nas regiões dos atuais estados
do Paraná, São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul
(ROSEVICS, 2009, p. 92).

482
Cabe lembrar, que Elliot contribuiu com tal questão sendo
responsável pela elaboração de materiais corográficos que muito
contribuíram para a então Província do Paraná. Podemos notar a
concentração de esforços para adentrar ao interior do território
paranaense contribuindo para a definição dos contornos do Estado,
pelo menos a sul, oeste e norte. Esta expedição foi nomeada pelo
Barão de Antonina, que buscou realizar tal empreendimento pelos
“rios Verde, Itararé, Paranapanema e seus afluentes, pelo Paraná,
Ivahy, e sertões adjacentes” (ELLIOT, 1919, Vol. II, p. 73). João da
Silva Machado (1782-1875). Nascido no Rio Grande do Sul, iniciou
sua vida como alfaiate e feitor de fazenda, até decidir seguir carreira
militar e política e fazer fortuna na região do Paraná. Encarregou-se
de diversas explorações no território e enquanto representante da
Quinta Comarca na Assembléia Provincial de São Paulo, foi
encarregado de dirigir uma série de obras públicas como abertura
de estradas, recuperação e conservação de antigas. Quando da
emancipação do Paraná, assumiu uma vaga no senado imperial
(ROSEVICS, 2009, p. 91).

Através das publicações do grêmio podemos notar que, a questão de


limites territoriais se configurou num importante debate no interior
do IHGP. A publicação de Partilha Internacional – Dos Grandes Saltos
do Iguassú, de Edmundo Barros, por exemplo, era um indicativo da
dimensão dessa discussão. O texto busca ressaltar a importância em
se estabelecer uma linha divisória que demarcasse o domínio
eminente nacional naquela fronteira internacional (Brasil-
Argentina), baseado no princípio do talweg, expressão jurídica alemã
tratada para os assuntos relativos a fronteiras que utilizam rios ou
volumes de água como limite (ROSEVICS, 2009, p. 84). A utilização
dos rios para a demarcação e organização das fronteiras
paranaenses, também significava a possibilidade de
“aproveitamento de quedas para os fins industriaes” (BARROS,
1919, p. 16), demonstrando, por extensão, a importância estratégica
de incorporação desse espaço regional a nação brasileira.

É importante notar como e por quais meios o território nacional foi


aos poucos sendo consolidado. Nesse sentido, o estudo de

483
Edmundo Barros publicado pelo IHGP contribuiu para o
levantamento topográfico da região, cujo território de 25.000
hectares seria utilizado no futuro para a construção do “Parque
Nacional”. A ocupação territorial de fronteira internacional
paranaense passou a ser lugar e cenário de novos empreendimentos
e personagens que apareceram mediante o processo de exploração e
colonização desta área.

A demarcação das fronteiras pátrias também foi tema do artigo


de Ermelino de Leão, publicado no Boletim de 1925 e intitulado A
Conquista do Guayra, que buscou evidenciar tais avanços fronteiriços
a partir das reduções jesuíticas e das incursões bandeirantes no
século XVII. O fato da história do Paraná ser atravessada por
eventos que se inserem no contexto da história das bandeiras
paulistas levou o autor a descrever a importância da campanha
decisiva de 1628, investida bandeirante “fatal para as reduções do
Guayrá, qual eficaz para a causa nacional” (LEÃO, 1925, p. 8). Tal
escolha demonstra que uma das tentativas era a ideia do autor em
consolidar a história do Paraná como um desdobramento dos feitos
dos bandeirantes os ‘civilizadores’ dos nossos sertões.

Outra publicação que buscou expor a jurisdição das fronteiras do


Estado do Paraná, a fim de legitimar os limites geográficos sob
domínios paranaenses, foi o trabalho: Os limites dos municípios do
Paraná – Relatório de 1916, de autoria de Enéas Marques dos Santos, à
época Secretário do Interior, Justiça e Instrução Publica. Neste texto
se atentou em descrever as informações prestadas pelas prefeituras
municipais, dos limites administrativos e jurídicos dos 50
municípios existentes no Paraná desde as primeiras povoações no
século XVII até aquela época. Seus limites foram instituídos
mediante a execução de leis, subsidiadas por diversos estudos
realizados a partir da tentativa de legitimar por meio da fabricação
de documentos históricos e geográficos (relatórios, mapas,
opúsculos) os contornos do território paranaense.

Mais uma preocupação latente foi com relação aos limites de


Curitiba. No texto O Rio da Villa, de João Pamphilo Veloso

484
d’Assumpção tal questão fica evidente, sobretudo porque procurou
expor versões da localização do rio da Vila, esclarecendo algumas
questões da história contemporânea de Curitiba. A possibilidade de
verificar aspectos geográficos que contribuíram para a formação
histórica da região, a exemplo dos rios, foi importante para que a
região fosse descrita e reconhecida. Seu interesse e posicionamento,
em relação às opiniões sobre o rio da vila, iam à contramão daqueles
que afirmavam ser esse o Rio Ivo, para ele, “pode-se pois dizer-se
que o chamado Rio da Villa naquela época, era o Bacachery”
(ASSUMPÇÃO, 1925, p. 13).

Seu estudo foi resultado da análise que realizou após o


levantamento de uma série de documentos que acabaram
contribuindo para a descrição do Paraná do século XVIII. Segundo o
autor, foram “ dois documentos preciosos collectaneados [...], falam
no ribeiro chamado Rio da Villa [...]” (ASSUMPÇÃO, 1925, p. 12),
sendo eles, os “termos de medição que fizeram os officiaes da
Camara em 16 de Setembro de 1721 e a 17 do mesmo mez e anno,
ambos para se demarcar o Rocio da Villa, a rumo de nordeste e
noroeste” (idem, ibdem).

A já reconhecida Vila de Curitiba foi incorporada aos domínios do


Estado Português no século XVII, quando então a região passou a
ser alvo das iniciativas de exploração do estado brasileiro. Esse
processo de exploração e reconhecimento do território brasileiro nos
fez pensar no papel dos viajantes para a compreensão da história
paranaense, sobretudo, pela dimensão e importância dos seus
relatos de viagem e das narrativas que faziam alusão ao contexto
histórico de lugares distantes do território paranaense. Essas
narrativas ajudaram a moldar discursos e projetos de exploração no
interior do Estado, de forma que tais descrições a respeito das
paisagens, natureza, riqueza do solo foram essenciais para a
consolidação das fronteiras do Paraná.

Exemplo disso foi o relato elaborado por José Candido da Silva


Muricy, Francisco Antonio Monteiro Tourinho e José Loureiro de Sá
Ribas e publicado com o título de Descrição Geral da Província do

485
Paraná em 1867, como resultado das expedições realizadas por esses
três políticos paranaenses, que, dentre outras finalidades, buscou
expor as condições fronteiriças da província, que naquele momento
se limitava

“ao norte com a de São Paulo; ao sul e sudeste com a província


argentina de Corrientes; ao sul e sueste com as províncias de Rio
Grand e Santa Catharia; e, finalmente a leste é banhada pelo
Atlântico [...]. Servem-lhe de extrema os rios Itararé, Paranapanema,
Paraná, Iguassú, Santo Antonio, Peperi-guassú, Uruguay, Sahy-
guassú, e as serras do Espigão e do mar” (MURICY et. al., 1919, p.
89).

Sobre o perfil dos autores, José Cândido da Silva Muricy (1827-


1879), médico natural de Salvador, enviado ao Paraná em 1853 como
tenente cirurgião, chegando a cargos políticos como de deputado da
província e um dos fundadores do Museu Paranaense (ROSEVIS,
2009, p. 90); Francisco Antonio Monteiro Tourinho (1835-1883),
natural do Rio de Janeiro, era militar e engenheiro, exercia a função
de auxiliar na comissão da estrada de rodagem Dona Francisca,
além de ter dado continuidade ao projeto da estrada da Graciosa
José Lourenço de Sá Ribas (1820-?), advogado e membro da
Assembléia provincial (ROSEVICS, 2009, p. 90).

Além de elaborar um texto sobre as condições geográficas e


capacidades fluviais, buscou-se apresentar o Paraná como um lugar
promissor, possuidor de riquezas naturais e minerais. Assim, era
importante ressaltar as potencialidades, consideradas atrativos de
colonização para a região. Segundo os dados apresentados, o Paraná
deste período possuía “tão vasto território apenas habitado por
102.000 almas” (MURICY et. alii, 1919, p.90), de onde se permitiam
pensar que esta região do país era considerada um espaço que
estava a espera de civilização.

O trabalho analisado também pode ser considerado uma produção


que serviu de propaganda da recém-emancipada Província. Além

486
disso, os autores destas descrições deixaram claro, a importância da
participação dos poderes do Estado quanto à necessidade de
“aproveitar todos os meios de engrandecimentos nacional [...]
estudando as necessidades mais urgentes, já mandando explorar os
rios, já novas veredas de comunicação terrestre” (MURICY et. alii,
1919, p. 94).

Disso resultaria a possibilidade de fazer levantamentos sobre seus


rios, tipos de solo, clima e a infra-estruturas existente até então, de
maneira que fica evidente que a publicação do relatório no periódico
do IHGP contribuiu para a consolidação da visão e dos projetos de
colonização e civilização previstos ao Paraná por um grupo político
específico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância da questão da consolidação do espaço territorial


brasileiro, fez com que, a investigação da ocupação do território
nacional fosse uma das temáticas e abordagens exploração pelos
historiadores do período, como por exemplo, Capistrano de Abreu
(OLIVEIRA, 2006). Assim, percebe-se o alcance que esta
problemática iria assumir nos estudos históricos, notamos que o
periódico do Instituto Histórico e Geographico Paranaense (IHGP)t
trouxe em suas páginas pesquisas que refletissem as preocupações
latentes no período pelos membros da agremiação.

Os limites históricos e geográficos do estado do Paraná foram


instituídos mediante a execução de leis, subsidiadas por diversos
estudos realizados a partir da tentativa de legitimar por meio da
fabricação de documentos históricos e geográficos (relatórios,
mapas, opúsculos) os contornos do território paranaense. É
importante notar como e por quais meios o território nacional foi
aos poucos sendo consolidado.

As iniciativas do Instituto Paranaense incidiam com o propósito de


se construir a região Paraná através da elaboração de uma história

487
capaz de vencer os obstáculos e construir imagens homogêneas e
hegemônicas do progresso paranaense.

FONTES E REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

Megi Monique Maria Dias. Guarapuava-PR. Universidade Estadual


do Centro-Oeste / UNICENTRO. Possui graduação em História pela
UNICENTRO-PR (2009); É Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
de História da UNICENTRO-PR (2016); E-mail:
megidias1@gmail.com;

FONTES

SHÜCH, Guilherme. Investigações sobre o sertão paranaense, questões a


estudar em relação aos princípios da nossa história. In: Boletim do IHGP,
1918, p. 299-310.

ELLIOT, John. Viagem de Exploração. In: Boletim do IHGP, Livraria


Mundial: Curitiba, 1919, p. 70-80.

BARROS, Edmundo. Partilha Internacional dos grandes saltos do


Iguaçu. In: BIHGP, 1919, p. 70-80.

LEÃO, Ermelino de. A Conquista do Guayrá. BIHGP, Empreza


Placido e Silva & Cia Ltd.:Curitiba, 1925, p. 3-8.

MARQUES, Enéas. Os limites dos Municipios do Estado do Paraná


em 1916. In: BIHGP, 1919, p.27-49.

ASSUMPÇÃO, João Pamphilo Veloso. O Rio da Villa. In: BIHGP,


Empreza Placido e Silva & Cia Ltd: Curitiba, 1925, p. 9-14.

João Pamphilo Veloso d’Assumpção (1868-?), exerceu os ofícios de


advogado e professor de direito na Universidade do Paraná
(ROSEVICS, 2009, p. 91).

488
MURICY, José Candido da Silva et. alii. Descrição Geral da
Província do Paraná em 1867. In: BIHGP, Livraria Mundial:
Curitiba, 1919, p. 87-101.

REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS
BELTRAMI, Rafael C. de C. Da Poesia na Ciência – Fundadores do
Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, uma história de suas
idéias. Dissertação (Mestrado em História) – UFPR: Curitiba, 2002.

BOTTMANN, Denise. G. Padrões Explicativos da Historiografia


Brasileira. Aos quatro ventos: Curitiba, 1999, 2. Ed.

SOUZA, Fabrício Leal. Nação e herói: a trajetória dos intelectuais


Paranistas. Dissertação (Mestrado em História), UNESP: Assis, 2002.

MYSKIW, Antonio Marcos. Curitiba “República das Letras (1870-


0920)”. Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 2, n. 3 – UFGD -
Dourados Jan/Jun, 2008, p. 1-27.

OLIVEIRA, Maria da Glória. Método crítico e escrita da história em


Capistrano de Abreu (1853-1927). Dissertação (Mestrado em História),
UFRS: Porto Alegre, 2006.

ROSEVICS, Larissa. O Instituto Histórico e Geographico Paranaense e a


construção de um imaginário regional. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – UFPR, Curitiba, 2009.

489
NOTÍCIA HISTÓRICA: O INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRAPHICO
PARANAENSE (1900)
MEGI MONIQUE MARIA DIAS

INTRODUÇÃO

O Instituto Histórico e Geographico Paranaense nasceu em meio a


ideia de edificação da escrita da história, sustentado pela aura
patriótica de comemoração ao IV Centenário do Descobrimento do
Brasil e, simultaneamente, do 47º ano da Instalação da Província do
Estado do Paraná. A rigor, esse evento ganhou notoriedade na
imprensa local no jornal A Republica sendo publicado como uma
solenidade.

O imaginário republicano se fazia presente em diversas esferas: era


publicado em jornais, nos periódicos e em revistas, verdadeiros
porta-vozes da manifestação desse ideal. O principal responsável
pelas críticas à Monarquia foi o jornal A República, órgão que
veiculou a notícia histórica de fundação do IHGP e que serviu no
Paraná para a divulgação das ideias republicanas, ferrenho crítico
das manobras políticas feitas pelo Império e por seus partidos de
sustentação (PEREIRA, 1998). O periódico surge como primeira
impressão dos republicanos na capital paranaense em 1886 e é
extinto em 1930, completando 44 anos de existência (CORRÊA,
2006).

A questão nacional movimentou o pensamento dos intelectuais


brasileiros no início do século XX sendo que fazer a história da
pátria era um exercício cívico. Informações sobre esse debate podem
ser encontradas em Lúcia Lippi de Oliveira (1990), sobretudo, a
investigação histórica que realizou sobre as origens do nacionalismo
no Brasil, principalmente, o da I República, momento privilegiado

490
pela autora em sua análise do universo da cultura política da
sociedade brasileira.

Divulgada como Notícia Histórica, a nota trazia à disposição os


nomes de “pessoas que (...) se preocupam com os assumptos de que
pretende ocupar-se o Instituto”(Boletim do IHGP, 1918, p. 06). Na
ocasião, Romário Martins, um dos principais idealizadores desse
projeto, exprimiu algumas preocupações pertinentes ao seu tempo e
que considerava como condições necessárias para o desempenho
das tarefas do Instituto em prol do Estado do Paraná e, por
consequência, da Pátria. Para ele, “critério, patriotismo e trabalho”
(Boletim do IHGP, 1918, p. 6).

DESENVOLVIMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Para os festejos de inauguração do IHGP, foram convidados


representantes da elite local que viam nesse evento uma
oportunidade de inserção num cenário de discussões e produção de
saberes, além de significar para alguns a conquista de visibilidade
perante uma elite letrada e restrita. A festividade contou com a
participação de figuras proeminentes da sociedade paranaense,
nomes de “pessoas que [...] se preocupam com os assumptos de que
pretende ocupar-se o Instituto”, conforme anunciava o próprio
periódico da instituição (Boletim do IHGP, 1918, p. 06). Essa
nomeação fazia parte do ritual de legitimação do panteão cívico que
a história da República buscava firmar através dos seus discursos e
produções historiográficas os movimentos de construção dos heróis
e dos símbolos nacionais. Seguindo essa tendência, segue-se abaixo
o público a que se destinava esse empreendimento,

“[...] o Dr. Sebastião Paraná, Dario Velloso, General J. Bernardino


Bormann, Dr. Emiliano Pernetta, Dr. Candido de Abreu,
JulioPernetta, Nestor de Castro, Dr. Manoel Ferreira Correia, Lucio
Pereira, Capitão José Muricy, Coronel Jocelyn Borba, Dr. Camillo
Vanzolini, Luiz Tonisse, Dr. Ermelino de Leão e Desembargador

491
Bento Fernandes de Barros. No entanto, reunidos no Club
Curytibano, estavam os cidadãos: Romário Martins, Julio Pernetta,
Dr. Sebastião Paraná, Dr. Camillo Vanzolini, Dr. Luiz Tonisse e Dr.
Ermelino Agostinho de Leão.” (RIHGR, Vol. I, 1918, p. 8) Não
compareceram, mas justificaram a ausência por motivos de ordem
pessoal os cidadãos: General José Bernardino Bormann, Coronel
Jocelym Morosini Borba, Dario Velloso, Dr. Manoel Francisco
Ferreira Correia, Dr. Emiliano Pernetta e Nestor Pereira de Castro;
Não compareceram e nem justificaram ausência: Desembargador
Bento Fernandes de Barros, Dr. Candido Ferreira de Abreu, Tenente
José Candido da Silva Muricy e Lucio Pereia.” (Boletim do IHGP,
1918, p. 08).

Ao analisarmos o percurso do grêmio entre os de 1900 e 1925, a fim


de perceber os antecedentes institucionais que promoveram a
publicação dos Boletins, verificamos o seu percurso instável,
marcado por intensas dificuldades e de inúmeras tentativas de
reorganizações revelando uma série de problemas estruturais que
acabaram adiando suas atividades de pesquisa, dentre as quais se
inseria a consolidação da publicação de seus periódicos. Notamos
que as atividades do grêmio se realizavam de acordo com a
frequência dos encontros dos integrantes e das aproximações entre
os membros em prol da execução desse projeto cultural que
buscavam manter ativa as atividades do grêmio e dar continuidade
na publicação de estudos científicos referentes ao Paraná. Em nossas
análises podemos observar alguns aspectos do perfil da política de
publicação da entidade, cuja participação nos editoriais se dava
principalmente através da atividade dos membros no executivo da
instituição.

Mesmo em âmbito de reunião, ainda no salão onde se davam as


comemorações acerca da fundação do Instituto, decisões sobre os
nomes que comporiam a diretoria e até mesmo quem daria
prosseguimento a reunião eram assuntos debatidos pelos
idealizadores do Instituto Histórico e Geográfico Paranaense. A
Assembleia que aprovou o instrumento normativo do IHGP, através
do estabelecimento das propostas em Estatuto e lhe concedeu direito

492
de funcionamento, aconteceu no dia 03 de Junho de 1900, na cidade
de Curitiba, mediante a definição dos programas e das atividades
que deveriam ser priorizados pelo grêmio. Tais demarcações dessas
orientações podem ser observadas na composição do seu Estatuto,
cuja Comissão responsável por redigir tal documento contou com a
participação de nomes como Romário Martins, Camillo Vanzolini e
Dario Velloso, nomeados pelo General J. Bernardino Bormann,
presidente do IHGP na diretoria composta aos 24 de maio de 1900.

É importante destacar as contribuições dos intelectuais acima


citados, Alfredo Romário Martins (1874-1948) nasceu em Curitiba.
Tipógrafo, jornalista, desempenhou vários cargos públicos como, o
de Oficial da Secretaria de Obras Públicas e Colonização, o de
Diretor do Museu Paranaense, além de, membro do Centro de
Letras do Paraná foi também um dos fundadores do Instituto
Histórico e Geográfico Paranaense, sendo laureado pela entidade
com o título de ‘Presidente Perpétuo’. Ativo na questão de limites
entre Paraná e Santa Catharina, publicou inúmeros trabalhos sobre a
questão. No campo político, foi eleito deputado ao Congresso
Legislativo em 10 legislaturas (MENDES et. al., 2013, p. 88-89).
Inserido definitivamente no cenário político-cultural paranaense
após a publicação de sua obra História do Paraná, onde Romário
Martins, apresenta um rol de detalhes acerca do Estado do Paraná
(IURKIV, 2002, p. 128).

Por sua vez, Camillo Vanzolini, era italiano, residente em Curitiba,


era médico, demonstrando a presença do imigrantes e sua
integração a sociedade paranaense mediante a participação em
associações culturais, à exemplo do IHGP (BELTRAMI, 2002). Já
Dario Persiano de Castro Vellozo nasceu no Rio de Janeiro (1869-
1937), mudou-se para Curitiba anos mais tarde. Conviveu com
talentos do seu tempo, entre os quais Ermiliano Pernetta, Romário
Martins, Nestor Victor, Leôncio Correia e Olavo Bilac (MENDES et.
alii, 2013).

O reduto paranaense contou com a presença de militares,


parlamentares, escritores, jornalistas, engenheiros, médicos, dentre

493
outras profissões liberais, uma constante entre os sócios, sobretudo
nos vinte e cinco anos iniciais de atividade do grêmio. Em relação à
definição das categorias Dos Socios, consta em seu Estatuto que
seriam seis: fundadores, efetivos, beneméritos, honorários,
correspondentes e auxiliares (Cap. III, nos artigos I ao VI – 03 de
Junho de 1900; Boletim do IHGP, 1918, p. 19-20).

A possibilidade de se discutir o Instituto Histórico e Geográfico


Paranaense e suas contribuições para formação da história da
sociedade paranaense inclui a percepção do legado que esse espaço
significou para a construção de um passado da história do Estado
do Paraná, além disso, com a vasta produção intelectual seus
agentes seriam responsáveis por colocar em prática, no início do
século XX, um projeto político de cunho científico-cultural que
revela aspectos históricos e encaminhamentos específicos cruciais
para a compreensão das nuances do ofício de escrever história
daquele tempo.

Na pesquisa sobre a trajetória do IHGP, e dos discursos contidos nas


publicações do grêmio desenvolvida por Larissa Rosevics (2009), O
Instituto Histórico e Geographico Paranaense e a Construção de um
Imaginário Regional, a autora afirma ser o Instituto um lugar que
passa a instituir significados no âmbito do imaginário e no
simbólico, aspecto esse que seria evidenciado justamente em
decorrência da sua inatividade em alguns momentos da instituição.
Isso nos faz refletir sobre as instabilidades estruturais a que esteve
submetida, significando um projeto cultural que delegou ao Paraná
a autoridade de possuir um espaço cultural de produção de história
nacional. Embora reafirmar a ideia de Paraná seja assumir seu
compromisso histórico com o nacional, buscamos perceber a
importância do IHGP na definição dos parâmetros e na construção
de uma história do Paraná.

Além de outras intenções que possuía o IHGP, existiam as que


versavam sobre a sua estabilidade e progresso e que estavam
previstas em seu Estatuto, como por exemplo, a garantia da
execução das propostas elaboradas neste documento sobre as

494
atividades da Diretoria, à ela competia também, “Nomear comissões
para o estudo de trabalhos scientíficos apresentados ao Instituto por
sócios ou extranhos” (Cap. II, Art. 8º, inciso 3 – Da Diretoria; Boletim
do IHGP, 1918, p. 19) e “Organisar o Regimento Interno do Instituto,
Bibliotheca e Archivo Publico” (Cap. II, Art. 8º, inciso 4 – Da
Diretoria; Boletim do IHGP, 1918, p. 19) o que demonstra que suas
atividades e influências se estendiam para além dos círculos do
IHGP.

Os problemas vivenciados pelo Instituto poucos anos após a


solenidade de fundação favoreceram para que parte das intenções
desta entidade não fosse cumprida com algumas tentativas de
reorganização empreendidas sem sucesso. Por meio da formação de
sucessivas Diretorias (antes da publicação de sua primeira revista), o
Instituto buscava a manutenção de sua existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação de Instituições científicas do porte do Instituto Histórico e


Geographico Paranaense foi conduzida pela elite local de Curitiba
como uma notícia histórica, o que demonstra como tal grupo buscava
solidificar e ampliar os espaços de sua atuação e da circulação dos
ideais republicanos no Paraná expandindo suas atividades através
da criação e uma porção de centros e associações literárias, bem
como revistas, jornais e toda uma série de produções históricas e de
espaços culturais e sociais, utilizados para consolidar um projeto
político cultural específico para o Paraná. O Instituto significaria
uma associação ímpar no ramo das pesquisas científicas, isto porque
pela primeira vez os conhecimentos da história e da geografia não
estariam subsumidos às demais áreas, representando, portanto, o
início de uma trajetória de sistematização dos conhecimentos
produzidos pelo grêmio.

Destinado, então, a promover e estimular todas as iniciativas úteis


ao progresso e à civilização, o IHGP pode ser observado a partir das
preocupações que o norteavam. Uma delas era a busca por se

495
instituir no Paraná uma história que o fizesse ser reconhecido aos
seus, a si e à Nação, pautada na crença no progresso e no
desenvolvimento social. Levando em conta que no Brasil esse
ideário atingiu o apogeu nas duas primeiras décadas do século XX, a
proposta do grêmio estava em consonância com as preocupações
daquele tempo.

Assim, buscou-se ressaltar algumas características deste espaço nos


quais os saberes circulavam e daqueles que promoveram sua
difusão, de forma que o que nos interessa averiguar são os
procedimentos e escolhas históricas da produção científica através
dos quais se realiza a construção do conhecimento histórico
brasileiro. Ao compreender o IHGP como um espaço dinâmico do
debate das idéias correntes e dos múltiplos conhecimentos de Brasil
devemos ser considerar a seleção e inserção das temáticas que
obtiveram o aval da história numa configuração coesa e homogênea,
mesmo diante de um Brasil historicamente tão heterogêneo.

FONTES E REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

Megi Monique Maria Dias. Guarapuava-PR. Universidade Estadual


do Centro-Oeste / UNICENTRO. Possui graduação em História pela
UNICENTRO-PR (2009); É Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
de História da UNICENTRO-PR (2016); E-mail:
megidias1@gmail.com;

FONTES
Boletim do Instituto Histórico e Geographico Paranaense. Livraria
Mundial: Curitiba, 1918.

REFERENCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

PEREIRA, Luís Fernando. PARANISMO: O Paraná inventado;


cultura e imaginário no Paraná da I República. 2. Ed. Curitiba: aos
quatro ventos, 1998.

496
CORRÊA, A. S. Imprensa e política no Paraná: prosopografia dos
redatores e pensamento republicano no final do séc. XIX. Dissertação
(Mestrado em Sociologia), UFPR: Curitiba, 2006.

MENDES, Antônio Celso et. al.; Um século de cultura: História do


Centro de Letras do Paraná 1912-2012. Núcleo de Mídia e
Conhecimento: Curitiba, 2013.
IURKIV, José Erondy. Romário Martins e a
Historiografia Paranaense. In: Educere – Revista da Educação, p.
123-132, vol. 2, n. 2, jul./dez., 2002.

BELTRAMI, Rafael C. de C. Da Poesia na Ciência – Fundadores do


Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, uma história de suas
idéias. Dissertação (Mestrado em História) – UFPR: Curitiba, 2002.

ROSEVICS, Larissa. O Instituto Histórico e Geographico Paranaense e a


construção de um imaginário regional. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – UFPR, Curitiba, 2009.

497
RESILIÊNCIA IDENTITÁRIA NO
ANTIGO ISRAEL, UM ES TUDO DE
CASO
FREDERICO MOURA IGNÁCIO

1 - Introdução

Abro a presente exposição com a seguinte proposta: é parte integral


da natureza humana a incessante, e nem sempre consciente, busca
por segurança (ou então pela sensação de segurança), no sentido em
que se configura como atividade constante de todo indivíduo
humano, desde seu nascimento até a sua morte. Partindo desse
pressuposto se torna então possível realizar uma leitura específica
do nosso costume ancestral de se reunir e viver em comunidade: tal
prática pode ser entendida como uma forma elementar de garantir
um mínimo de segurança para cada membro participante do grupo,
mais do que conseguiriam sozinhos, seja em questão de prática ou
de sensação.

Contrapartida do dito acima é o fato de que, quando em situação de


convivência, individualidades múltiplas e diversas acabam
representando perigo potencial umas para as outras, na medida em
que agem com base em seus desejos, vontades, interesses, ou em
outras palavras, com base em seus impulsos privados. Tal questão é
de extrema importância pois se apresenta como inviabilizadora
básica da vida coletiva, sendo, portanto, necessário remediá-la. É
fundamental em uma comunidade que existam laços de
proximidade e confiança entre seus membros, é necessário que
tenham uma mínima certeza que certos acordos entre eles serão
mantidos, muitas vezes superando até mesmo o passar de gerações
(ASSMANN, 2006). Esses acordos em comum entre todos, laços
pessoais intracomunitários, são o que possibilitam a vários
indivíduos, de baixa potência autopreservativa, que ajam em

498
conjunto, como se fossem um único corpo, agora com alta potência
de se proteger, de garantir segurança.

Uma de tais ferramentas de coesão comunitária é a “identidade”,


fundada em uma memória coletiva (ASSMANN, 2006) que une
todos os membros da comunidade na medida em que escolhem, de
modo coletivo e nem sempre consciente, o que vão esquecer e o que
vão relembrar juntos (ASSMANN, 2011). Dessa forma, todos os
indivíduos presentes naquela coletividade passam a ter um “algo
em comum”: um passado em comum, práticas e tradições em
comum, mitos e crenças em comum, etc., de tal modo que acabam
forjando um substrato de união, em geral mais profundo do que
qualquer impulso pessoal.

Dito isso, se faz necessário explorar brevemente como funciona na


prática essa “relembrança dos laços coletivos”. A identidade de um
povo pode ter bases de apoio das mais diversas, variantes de acordo
com o caso em questão, e são essas bases que precisam ser
reforçadas, em âmbito comunitário, periodicamente (ASSMANN,
2006). Em geral, isso se dá através da execução de práticas rituais
(BELL, 2009). Seja por meio da exposição oral de contos (referentes à
história daquele povo, mitos, etc.), da refeição coletiva, do sacrifício,
etc., os rituais acabam por simbolizar, através da repetição
sistemática e da rigidez de execução, a renovação do ordenamento
cósmico (GEERTZ, 1973), ou seja, se fazem garantidores de que as
leis que regem o mundo, no âmbito universal, e as leis que regem a
comunidade, no âmbito mais particularizado, se mantém íntegras,
portanto, unindo todos sob seu julgo e proteção.

A partir do já exposto é também possível concluir que, da mesma


maneira que sua presença se mostra fundamental para a integridade
social, a ausência ou destruição da memória coletiva, em geral, pode
ter consequências desastrosas para a comunidade em questão. Os
destinos mais comuns para os grupos que têm suas bases
identitárias arrancadas de si é a dissolução e esquecimento, salvo os
raros casos em que são capazes de se revitalizar, adotando e
promovendo novas bases, mais de acordo com a situação em

499
questão. A seguir, analisaremos o caso do Antigo Israel, um dos
raros momentos na história humana em que um povo foi capaz de,
apesar de toda a adversidade, se reinventar como comunidade
portadora de poderosa identidade (CARR, 2014).

2 - Os judeus na Babilônia

Levante antigo, 586 AEC. As tropas do Império Neo-Babilônico


marcham sobre a arrasada capital judia de Jerusalém. Ao que tudo
indica sem grande dificuldade, o exército do novo império
hegemônico do Antigo Oriente Médio foi capaz de superar as
defesas desesperadas do povo judeu e arrasou com o reino,
submetendo suas principais cidades, eliminando sua família real,
destruindo o Templo de Jerusalém (seu centro de culto) e enviando,
em forma de exílio, o que restou de sua aristocracia para a Babilônia.
O que aconteceu com o reino de Judá também aconteceu com
inúmeros outros pequenos Estados da região, culturas essas que
hoje são praticamente irrecuperáveis, eternamente perdidas,
esquecidas por nós. Dito isso, chama então a atenção o caso que
estamos abordando. Apesar do contexto catastrófico que acabamos
de emoldurar, a identidade judia permanece viva nos dias de hoje,
2500 anos passados — claro que tendo sofrido diversas outras
transformações no meio desse longo trajeto —, inclusive tendo sua
comunidade reconquistado o direito à ocupação da região que hoje
abriga o Estado moderno de Israel. Como isso aconteceu? O que
aqueles sobreviventes do massacre fizeram de tão diferente e
inovador, no contexto da região?

Segundo o que nos conta a Bíblia, o reino de Israel nasce quando o


rei David consegue unir as doze tribos que viviam na região,
formando assim uma só comunidade. Como vimos aqui
anteriormente, para que doze grupos humanos diferentes possam
viver juntos é necessário que rapidamente se forme também uma
identidade comum entre eles. Isso se fez através da junção de duas
figuras centrais: David e YHWH, ou Jeová, divindade própria
daquela cultura (ARMSTRONG, 2008). Importante ressaltar que
sabemos que muito provavelmente o povo judeu só adotou de

500
forma disseminada o monoteísmo javista num período posterior,
mas aqui no presente texto adotaremos tal ideia de imediato, para
facilitar a compreensão do entendimento que o povo exilado tinha
de si mesmo, ou seja, de sua identidade.

David se apresenta na memória judaica não só como unificador,


conquistador e lendário líder político, ele também é aquele com que
Deus estabeleceu sua aliança, aquele que Ele prometeu proteger,
promessa que abrange inclusive sua linhagem, os subsequentes reis
de Israel. Dessa forma, a linhagem davídica passa a figurar na
memória coletiva como símbolo máximo de proteção e segurança,
na medida em que o povo também acredita na potência ilimitada de
seu Deus. A divindade ainda colabora para a sensação de segurança
de outra forma fundamental: é conhecimento geral do povo que o
Templo de Jerusalém não se trata apenas de local de culto, mas
também, e principalmente, é a moradia de Jeová, portanto local
altamente sagrado e intransponível, inatingível, eterno. Jerusalém e,
por extensão, o reino, acabam também desfrutando de proteção
divina, como local próprio de habitação da divindade. De forma
geral, a identidade do povo de Israel, no século VI AEC, se faz então
baseada nesses dois princípios básicos e tangíveis: a linhagem
davídica e o Templo de Jerusalém.

Continuando a narrativa semi-histórica, semi-mítica, do reino,


sabemos que após a morte de David, Israel se divide em dois reinos
menores: Israel, de mesmo nome, no Norte, e Judá, no Sul.
Importante também aqui dizer que é em Judá que fica Jerusalém,
sua capital. O imperador assírio Sargão II (rei entre 722 e 705 AEC)
no segundo ano de seu mandato derrota e conquista o reino do
Norte, porém sem estender sua campanha para o reino do Sul.
Dentro do contexto de nossa presente análise, se faz muito
interessante o entendimento do reino do Sul a respeito desse
episódio: tendo assistido a total aniquilação de seu reino irmão,
porém tendo saído ileso do conflito, a aristocracia de Judá acabou
por interpretar o ocorrido como uma espécie de punição divina
contra seus irmãos que haviam praticado culto a outras deidades,
além de Jeová. Ao realizar tal afirmação, estão ao mesmo tempo

501
dizendo que, tendo sua segurança garantida durante a guerra, eles
do reino do Sul só poderiam estar então cultuando do modo “certo”,
ou seja monoteísta, tendo portando a aprovação divina.

Tal possibilidade de leitura se faz ainda mais instigante quando


conjugada com o que discutimos no momento inicial do texto em
mãos. Ao interpretar a força avassaladora do exército assírio como
mera ferramenta de Jeová, o povo judeu se nega a reconhecer sua
total falta de controle sobre sua própria segurança e estabilidade e,
pelo contrário, reforça sua sensação subjetiva de domínio sobre seu
próprio futuro. É como se dissessem “as tropas assírias são
vastamente superiores às nossas? Sim, elas são. Porém, nós temos o
controle, basta cultuar Jeová, somente Jeová, respeitar suas tradições
e rituais, que estaremos salvos, seguros em Jerusalém, sua casa, sob
sua protegida linhagem davídica”. Dessa forma, o pequeno reino
levantino consegue manter sua ilusão de segurança ao mesmo
tempo em que reforça sua identidade e seus laços de união (CARR,
2014).

Dito isso, revisitemos a queda do reino do Sul, em 586 AEC, fato já


citado anteriormente nesta dissertação. Para qualquer comunidade
genérica a perda de seu território e de seu sistema de organização
política já configurariam golpes duros demais para uma possível
subsequente revitalização identitária, porém a aristocracia judia não
passou somente por isso. Além, ela perdeu, de forma brutal, seus
dois principais pilares de união e, na sequência imediata, foram
lançados em terra estrangeira, que não conheciam, em meio a
nativos de costumes e língua completamente diferentes, onde não
detinham mais nenhum tipo de influência política. Retomemos
então o questionamento anterior: como foi possível uma total
revitalização identitária nesse contexto? De onde vem tamanha
resiliência?

Uma pequena sobrevida da memória coletiva é natural que tenha


existido, os exilados imediatos ainda detinham muitas memórias de
sua terra natal, do dia a dia, cotidiano, costumes, sabiam
perfeitamente a língua, conheciam uns aos outros, etc., porém,

502
igualmente natural é que seus filhos, netos, bisnetos, fossem
perdendo tudo isso gradativamente, até que se tornassem
completamente babilônios. Para que isso não acontecesse, a
comunidade deveria fazer o que já dissemos anteriormente: não
deixar morrer seus costumes e práticas rituais. Com a linhagem
davídica morta e o Templo de Jerusalém, local por excelência da
prática ritual, destruído, se fez então necessária a troca de pilares de
identidade, para que a nova configuração estivesse de acordo e em
harmonia com a também nova condição social de existência.

Finalmente, nossa hipótese é de que os judeus exilados fizeram isso,


principalmente, através do resgate de um passado comum ainda
mais remoto: as narrativas patriarcais. Um tempo majoritariamente
mítico, temporalmente muito distante, a história israelita pré-David
se mostra como uma boa escolha de nova base identitária na medida
em que reflete as inúmeras incertezas e inseguranças
proporcionadas pela situação de exílio e, mais do que isso, as rebate
com promessas divinas de proteção e de prosperidade futura, tendo
passado esse período momentâneo de dificuldades. Mais uma vez
podemos ler a situação como uma tentativa, desesperada, da
sociedade judia de se agarrar como pode à noção de que são sim
donos e responsáveis pelo próprio futuro, seu Deus não os
abandonou, só está os punindo por erros de conduta e os provando
em sua fé, ou seja, no fundo só depende deles a garantia de um
futuro melhor (CARR, 2014).

É com base em argumentos como esse que boa parte dos


especialistas hoje acredita que o livro do Gênesis, como o
conhecemos, fora majoritariamente composto nesse período. Ali
encontramos diversas histórias sobre personagens nômades,
portanto sem pátria, que enfrentam a todo tempo diversas
tribulações e dificuldades, mas que, sempre que agem com fé e de
acordo com Jeová, conquistam a confiança e a proteção do Deus e,
mais importante, conseguem superar as adversidades. Desse modo,
a nova narrativa passa então a pregar que antes mesmo do rei
David, antes mesmo do Templo de Jerusalém, já existia o povo
judeu, eles já cultuavam seu Deus protetor e, portanto, agora que os

503
antigos pilares não existem mais, a identidade deve resistir,
independente do que se perdeu, mas agora com base na memória de
seus mais longínquos ancestrais.

Observado sob a ótica que apresentamos, o processo pelo qual


atravessa a comunidade judia no exílio acaba marcado então por
dois principais momentos: em primeiro lugar temos o choque
inicial, resultado da quase completa fragilização do tecido social e,
em um segundo momento, desses escombros identitários nasce uma
nova estrutura de coesão social, ligada intimamente à tradição
anterior, porém adaptada para a nova configuração de realidade
enfrentada por aquele povo. O momento se faz digno de estudo por
escancarar o quão difícil é para um sujeito social realizar o salto
entre o primeiro e o segundo momento supracitados. Acreditamos
que o presente texto consiga transmitir para o leitor a importância
do estudo do livro do Gênesis no que diz respeito aos processos
identitários judaicos. Porém, mais do que somente para que
alcancemos uma maior compreensão sobre àquele contexto
específico, esse esforço se mostra importante também em função de
um clareamento mais geral de toda a questão do relacionamento
entre indivíduos humanos e de como coletividades reagem em
situações de crise.

REFERÊNCIAS:

Frederico Moura Ignácio é graduando do curso de História da


FFLCH-USP. O texto apresentado faz parte do processo de execução
do projeto de iniciação científica “Sacrifício e Coesão Social no
Antigo Israel: uma leitura de Gênesis 22”, sendo desenvolvido sob a
orientação do Prof. Dr. Marcelo Rede, parte integrante do
Departamento de História da FFLCH-USP.

Bibliografia:

ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: Quatro milênios de


busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.

504
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e
transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp,
2011.
ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory. Stanford: Stanford
University Press, 2006.
BELL, Catherine. Ritual: Perspectives and Dimensions. Nova York:
Oxford University Press, 2009.
CARR, David M. Holy Resilience: The Bible’s Traumatic Origin.
New Haven & London: Yale University Press, 2014.
GEERTZ, Clifford. “Religion as a Cultural System”. In: The
interpretation of Cultures: Selected Essays. New York:
HarperCollins, 1973.

505
A POSSE DE ESCRAVOS EM UMA
ECONOMIA DE ABASTECI MENTO
COLONIAL: SÃO LUÍS DO
PARAITINGA (1798 -1818)
DIEGO ALEM DE LIMA

1. Introdução

Como tem demonstrado a historiografia sobre a história de São


Paulo, a introdução sistêmica de cativos negros como forma
principal de mão de obra para a lavoura se inicia nos anos 1770,
tendo íntimas relações com o processo de crescimento econômico
vivenciado pela região paulista durante o século XVIII, quando
exerceu importante papel no abastecimento dos redutos
mineradores (LUNA; KLEIN, 2006).

A vila de São Luís do Paraitinga (Localizada no vale do Paraíba


paulista), mesmo durante o século XIX, quando as principais
culturas exportadoras tomam vulto expressivo em diferentes regiões
paulistas, manteve-se em grande parte como uma localidade
especializada no abastecimento regional. A produção local,
majoritariamente centrada em produtos como o tabaco, o algodão e
a criação de suínos, sempre se destinou a suprir as demandas
regionais em cidades como Paraty, Ubatuba e Rio de Janeiro. Como,
então, teria se estruturado a escravidão negra nesse contexto
econômico específico?

A posse de escravos tem sido um tema bastante explorado pelos


pesquisadores da escravidão brasileira, sobretudo no campo da
Demografia Histórica. Entretanto, poucos se dedicaram a
compreender a lógica do sistema escravista em contextos que não os
diretamente ligados à grande lavoura de exportação (BACELLAR,
2001, p.143). Logo, o presente texto se apresenta com os objetivos de,

506
em primeiro lugar, buscar estabelecer apontamentos quanto à
distribuição da posse de cativos em tal contexto social, e em
segundo momento, levantar hipóteses acerca das bases comerciais
que teriam possibilitado a acumulação de capital na forma de
escravos em uma vila que, até o momento estudado, jamais tivera se
integrado diretamente às redes mercantis atlânticas.

Acreditamos que o estudo da estrutura da posse de escravos em


uma comunidade colonial é crucial para a compreensão da forma
pela qual a riqueza se distribuía em tais sociedades, posto que a mão
de obra cativa figurava entre os seus principais fatores de produção,
ao lado do próprio trabalho familiar.

As fontes documentais aqui utilizadas como base para as análises


foram as listas nominativas de habitantes referentes à vila de São
Luís. A confecção de tais maços de população se insere em um
cenário de reformas administrativas de cunho mercantilista,
introduzidas pela coroa portuguesa sob a égide pombalina. O
responsável por instaurar a prática dos recenseamentos no território
paulista foi o então governador, o morgado de Mateus. A partir de
1765, sob a dupla orientação de angariar informações demográficas
para objetivos militares (por conta dos infindáveis conflitos com os
castelhanos na região do Prata) e econômicos (posto que o Estado
português buscava incentivar a produtividade agrícola das vilas
como forma de combater a conjuntura econômica desfavorável), as
listas passaram a ser concebidas em todas as localidades paulistas
(MARCÍLIO, 2000).

Assim sendo, tal conjunto nominativo configura um valioso aporte


documental que permite ao historiador demógrafo abordar o
passado a partir das mais variadas posições, seja a partir de um
olhar de sobrevoo com a extração de dados globais de cada uma das
vilas, seja buscando uma análise mais detida através do
acompanhamento longitudinal das trajetórias de vida desses
indivíduos listados.

507
Aqui, decidimos trabalhar com as listas referentes aos anos pares do
intervalo entre os anos de 1798 e 1818, para que pudéssemos cobrir
maior espaço de tempo e analisar uma maior quantidade de dados.
Cabe ainda ressaltar que o presente texto faz parte de uma pesquisa
ainda em andamento, e que poderão ser elaboradas conclusões mais
robustas com a continuidade da pesquisa.

2. Quadro Social e Estrutura da posse de escravos: 1798-1818.

Apesar de ser uma das regiões de povoamento mais antigo de que


se tem notícia para a história paulista, até meados do século XVIII,
alguns rincões isolados do Vale do Paraíba paulista permaneceram
alheios à ocupação humana. O local onde hoje se encontra a
pequena cidade de São Luís do Paraitinga nos serve para
exemplificar um desses casos. Apenas com a restauração da
autonomia administrativa da então capitania paulista, no ano de
1765, decidiu-se então povoar a área compreendida entre o Vale e o
litoral, região drenada pelos rios Paraitinga e Paraibuna (SAIA;
TRINDADE, 1977).

Em trabalho pioneiro sobre a pequena vila colonial, Jaelson


Trindade e Luís Saia afirmam que o povoamento da região do
Paraitinga deve ser compreendido como uma das consequências da
abertura do Caminho Novo, que ligou diretamente as zonas
mineradoras ao Rio de Janeiro, concluído entre os anos 1780 e 1790.

A nova via teria feito com que as antigas rotas de ligação, que
passavam pelo Vale, deixassem de ser frequentadas pelos
comerciantes e viajantes, e os antigos moradores que ocupavam a
região teriam sido compelidos a buscar novas alternativas de
sobrevivência, sobretudo buscando áreas para desenvolver a
lavoura de subsistência. Ademais, a política empreendida por
morgado de Mateus tinha como uma de suas principais diretrizes a
fundação de novas vilas, visando um aumento da produção e
consequentemente da arrecadação por parte do aparato estatal
(MONT SERRATH, 2017).

508
Assim, a origem do pequeno povoamento teria ligações com a
migração e pequenos sitiantes e produtores, posseiros, que
plantavam e criavam para a própria subsistência. O relevo
extremamente acidentado que caracteriza a região, bem como a
ausência de jazidas minerais que despertassem o interesse em sua
exploração econômica, teriam feito com que a povoação mais
sistemática da região se desse apenas com a chegada do café ao
Vale, já próximo à segunda metade do XIX. Até então, as pequenas
comunidades e aglomerados populacionais ali instalados se
caracterizariam pela quase exclusiva lavoura de subsistência, que no
caso de São Luís, baseou-se, inicialmente, no plantio de milho e
feijão (PETRONE, 1959, p.251).

Esse povoamento rarefeito e baseado na pequena produção para


consumo interno caracteriza a vila durante os anos aqui analisados,
bem como o predomínio de pequenas propriedade policultoras,
dedicadas ao cultivo de gêneros para a subsistência, como arroz,
milho, tabaco, feijão e toucinho.

Entretanto, desde o inicio de nossas análises foi possível identificar a


existência de um comércio de excedentes, sobretudo voltado à
venda de alguma quantidade de açúcar, tabaco e porcos vivos.

Em 1798, foram listados apenas 379 domicílios, número pequeno se


comparada com vilas vizinhas, como Lorena, que em 1804 já
contava com mais de 1100 fogos listados. Mais do que isso, no
decorrer do período analisado, São Luís não apresenta crescimento
acelerado no número de fogos, o que pode ser um efeito do relativo
isolamento econômico da vila em relação às grandes atividades de
exportação.

Domicílios listados ano a ano

509
Porém, ainda que relativamente isolada das principais teias
mercantis exportadoras da colônia, e sendo dependente dos núcleos
regionais para a comercialização da produção sobressalente, a
economia de São Luís do Paraitinga se mostrou, ao longo do
período analisado, portadora de um grau de dinamismo capaz de
possibilitar a acumulação de capital na forma de escravos por parte
de uma parcela de sua população: havia, em 1798, 583 cativos
listados nos domicílios da paróquia; dez anos depois, em 1808, já
eram 793 os indivíduos escravizados; no último ano da série
analisada, o número atingiu o total de 977 cativos.

Percebe-se que, no decurso das duas primeiras décadas do século


XIX, a população cativa da pequena vila se amplia de forma
consistente. Mais do que isso, o número de domicílios listados como
possuidores de mão de obra escrava também aumenta
significativamente ao longo do tempo. Eram 102 domicílios
escravistas em 1798, passando para 125 em 1808, e chegando a 143
fogos possuidores de cativos em 1818. Entretanto, tal crescimento
não parece ter sido acompanhado por uma distribuição do acesso à
mão de obra escrava no tecido social. A proporção de domicílios
escravistas em relação ao total de fogos listados permanece quase

510
inalterada ao longo de todo o período, variando em torno dos 25%
da população livre listada, o que é um indício de que a acumulação
de capital na vila teria se dado de forma concentrada. Tal proporção
se aproxima da encontrada por Francisco Vidal Luna como média
de proporção de domicílios escravistas em todo o Vale do Paraíba à
época: 24,17% dos domicílios eram proprietários de escravos, em
1804 (LUNA, 1998, p. 114).

A taxa de aproximadamente 25% para a parcela relativa aos


proprietários de escravos no seio da pequena vila é um dado que
nos permite avançar sobre a realidade do universo cotidiano da
paróquia. Desprovida das condições necessárias para ter acesso ao
mercado negreiro, a esmagadora maioria de sua população
depositava, na mão de obra familiar, as esperanças e expectativas
para suprir as necessidades diárias. Pequenos roceiros e roceiras,
cultivando suas roças rústicas que bastavam para seu próprio
sustento e, eventualmente, possibilitavam a extração de pequenos
excedentes. Cenário semelhante foi encontrado por Bacellar, ao
estudar a vila de Sorocaba nos séculos XVIII e XIX (BACELLAR, op
cit, p.133).

Mas é preciso delinear, ainda que brevemente, o quadro da


distribuição dos escravos em relação aos plantéis para que possamos
compreender de forma mais abrangente a dinâmica escravista da
pequena paróquia. Durante todo o intervalo analisado, os pequenos
plantéis representaram a esmagadora maioria numérica do total das
escravarias inventariadas. Quadro este que é semelhante ao
encontrado por outros estudiosos da escravidão paulista. José Flávio
Motta, ao analisar a disseminação da lavoura cafeeira em Bananal
durante a primeira metade do século XIX, atesta quadro semelhante,
no qual os pequenos proprietários de escravos aparecem como fatia
majoritária entre o total dos senhores, sobretudo na primeira fase da
introdução da lavoura da rubiácea (MOTTA, 1991).

Não é escusado lembrar que, aqui, optamos por dividir os plantéis


da vila em duas faixas distintas de tamanho: foram considerados
como pequenos plantéis os que declararam possuir até 5 cativos;

511
médios e grandes plantéis foram aqueles que apresentaram um
número igual ou superior a 6 escravos. Preferimos não empregar as
tipologias já consagradas, como a de Ricardo Salles (SALLES, 2008),
em nossas análises, posto que o universo aqui explorado destoa
bastante da natureza das zonas monocultoras onde tais
classificações adquirem maior representatividade.

Entretanto, ainda que a pequena posse de escravos tenha sido


predominante numericamente frente às demais faixas de
propriedade, um exame detido acerca do número de cativos
pertencentes aos médios e grandes plantéis nos revela uma
realidade que, guardadas as devidas proporções e considerando as
diferentes tipologias adotadas, se assemelha a encontrada em zonas
que se notabilizaram como centros exportadores da monocultura
colonial.

Como se percebe, com o passar dos anos e o aumento da entrada de


cativos negros no âmbito da vila, cada vez mais indivíduos são
listados como pertencentes às maiores faixas de plantéis aqui
consideradas. Em recente artigo em que estuda a disseminação da

512
escravidão ligada à plantação cafeeira em Bananal, Breno Moreno
atenta para fenômeno semelhante: com o passar do tempo, a
propriedade escrava torna-se cada vez mais concentrada nas mãos
dos grandes proprietários (MORENO, 2019). É bem verdade que a
classificação das faixas de plantéis utilizadas pelo autor em seu
estudo contrasta com a aqui adotada. Entretanto, se considerarmos a
natureza singular da economia abastecedora de São Luís, pode-se
trabalhar com a hipótese de que o quadro observado em nossos
dados seja um equivalente ao diagnóstico estabelecido para algumas
áreas exportadoras durante o século XIX. Hipótese que necessita de
maior desenvolvimento para sua comprovação.

Mas já nos é possível afirmar que, nesse contexto pouco ligado à


agricultura monocultora de exportação, a compra de braços cativos
para o trabalho no eito agrícola não só era possível, como era
caracterizada por um quadro onde a parcela majoritária dos
proprietários escravista detinha a minoria dos escravos declarados.
Restam-nos as perguntas: como se configurava a rede mercantil a
qual estava inserido o pequeno povoado? Quais os principais
gêneros vendidos por seus habitantes? E para quais localidades
eram exportados tais artigos? Para responde-las, lançaremos mão de
um conjunto secundário de fontes, os Mapas Estatísticos de
População, que condensavam as informações estatísticas extraídas
das listagens, sobretudo os referentes à balança de comércio.

As exportações de excedentes produzidos na vila sempre tiveram


como destino três localidades que variaram em importância ao
longo do tempo: o Rio de Janeiro foi sempre o principal comprador
de gêneros; Paraty e Ubatuba, respectivamente, são as outras duas
vilas compradoras. Entretanto, é possível identificar uma alteração
no perfil dos produtos comerciados ao longo do tempo. De início,
quando do começo de nossas análises (1798), os principais produtos
a comporem a pauta de exportações da paróquia são o toucinho e o
tabaco, em ordem de importância. Entretanto, sobretudo após o ano
de 1808, a participação do toucinho na balança comercial decai
bruscamente e de forma quase linear até o fim do período, sendo
substituído pelos porcos vivos, que se torna o principal produto

513
vendido, seguido pelo tabaco. O açúcar praticamente deixa de ser
produzido na vila com o intuito de ser vendido, perdendo por
completo sua importância nas trocas comerciais. Ao que parece, a
vila se especializa, ao longo do tempo, na produção de tabaco e
criação de porcos vivos.

Artigos exportados pela paróquia


ano a ano:

A exportação de tabaco aparece como uma constante do universo


econômico da vila durante o período, enquanto que aparentemente
a criação e venda de porcos vivos seriam uma resposta a uma
conjuntura, um estímulo externo. Quando cruzamos o volume de
artigos exportados e as vilas para onde são destinados, o quadro
torna-se mais claro. Com o passar do tempo, o Rio de Janeiro se
torna o destino da majoritária produção comerciada pela paróquia
de São Luís. Quase a totalidade dos capados vivos exportados pela
paróquia é destinada à capital da colônia, bem como a produção
intermitente de açúcar.

Trabalhamos aqui com a hipótese de que, com o desenvolvimento


urbano e demográfico do Rio de Janeiro após ter se tornado capital
colonial (1763), houve um significativo crescimento da demanda
local por gêneros básicos, o que teria criado uma rede de

514
abastecimento substancialmente lucrativa, a qual estaria inserida
São Luís do Paraitinga, o que tornava possível a acumulação de
capital na forma de cativos, a partir de trocas favoráveis na balança
comercial. O Rio de Janeiro teve papel importante no abastecimento
das regiões mineradoras, entretanto, com o declínio da extração
aurífera das Gerais, os papeis teriam se invertido: as regiões
limítrofes à capital teriam se especializado cada vez mais no cultivo
de gêneros de exportação (durante o chamado Renascimento
Agrícola) e a lavoura de abastecimento perdera espaço (CAMPOS,
2010, p 25-27). A carência de gêneros básicos teria se agravado ainda
mais com a transferência da corte portuguesa para a colônia, em
1808. É possível observar como as vendas de tabaco e capados
vindos de São Luís aumentam após a data, bem como a entrada de
negros escravos no universo da vila.

Entretanto tal hipótese carece de maiores estudos para sua


comprovação, pois outros fatores locais como o desenvolvimento da
cafeicultura no Vale, e o fim da proibição do comércio
interprovincial (1807), podem ter, também, tido efeitos consideráveis
sobre as redes mercantis de abastecimento locais.

3. Conclusões

Como já dito, a raridade dos estudos que abordam o mercado


interno de abastecimento colonial tem sido um fator prejudicial para
a compreensão da economia e sociedade do nosso passado não tão
distante, sobretudo no que se refere aos setores majoritários das
populações coloniais.

Tal qual buscamos demonstrar no presente texto, tais núcleos


sociais, diferentemente do que pregou certa historiografia
tradicional, estavam inseridos em redes comerciais movimentadas e
economicamente dinâmicas, que além de suprir o sustento dos
indivíduos que habitavam essas pequenas vilas, possibilitavam a
acumulação de capitais por parte de seus participes.

O caso de São Luís do Paraitinga nos parece exemplar. Pequena


comunidade fundada no final do século XVIII, a paroquia se

515
especializou na produção dos gêneros básicos de abastecimento e
estabeleceu redes de trocas com vilas circunvizinhas. Além disso, e
preciso lembrar a posição sui generis da pequena vila no contexto
abastecedor. Sua localização geográfica parece ter permitido que
estabelecesse laços com o maior núcleo urbano da colônia, a capital,
que apresentava crescimento vertiginoso e alta demanda por
gêneros essenciais.

Tal inserção econômica possibilitara a compra de cativos por parte


(minoritária, sabemos) da população local, domicílios que, em sua
maioria, galgaram adquirir cativos para auxiliar os membros da
família no eito agrícola. A outra parcela dos domicílios escravistas,
composta por poucos fogos que detinham quantidade considerável
de cativos, concentrava a grande maioria dos escravos que entraram
na paróquia, um indício que aponta para a natureza concentradora
da capitalização. Tal padrão da posse escrava, ao que parece, se
assemelhava ao de outras localidades, as quais por vezes estavam
ligadas à grande lavoura de exportação: poucos senhores de
escravos concentravam a larga maioria dos cativos em suas mãos.

Por mais que os dados aqui analisados nos permitam traçar


hipóteses interessantes acerca da economia de abastecimento do
passado, uma infinidade de perguntas ainda paira no ar: qual era o
perfil dos cativos adquiridos por uma economia abastecedora?
Seriam majoritariamente mulheres e/ou crianças? Teriam, esses
escravos, um perfil largamente diferente dos cativos destinados às
áreas da lavoura de plantation? Qual a relação existente entre as
flutuações do tráfico negreiro e a entrada de cativos nessas
pequenas vilas? Quais eram as estratégias desenvolvidas pelos
pequenos plantadores para se inserirem no mercado de escravos e
montarem seus pequenos plantéis? E qual a relação entre o ciclo de
vida dos pequenos senhores e a compra de cativos?

Essas e muitas outras perguntas, cruciais para o entendimento de


nossa sociedade colonial, carecem, para serem minimamente
respondidas, de muitos outros estudos sistemáticos que tragam para

516
o centro da questão, os setores majoritários da nossa população
colonial.

4. Referências

Graduando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH-


USP). Desenvolve pesquisa de iniciação científica sob a orientação
do Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar. Agradeço à CNPq pelo
financiamento de minha pesquisa (edital PIBIC 2018-2019).

5. Fontes

LISTAS NOMINATIVAS DE HABITANTES: SÃO LUÍS DO


PARAITINGA. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo,
referente aos anos 1798, 1799, 1802, 1804, 1806, 1808, 1810, 1812,
1814, 1816 e 1818.
MAPAS ESTATÍSTICOS: SÃO LUÍS DO PARAITINGA. São Paulo:
Arquivo Público do Estado de São Paulo. Referente aos anos: 1798,
1799, 1801, 1808, 1810, 1812, 1814, 1816 e 1818.

6. Bibliografia :

BACELLAR, de A.P. Viver e Sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba,


séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001.

CAMPOS, Pedro H.P. Nos caminhos da acumulação: negócios e poder no


abastecimento de carnes verdes para a cidade do Rio de Janeiro (1808-
1835). São Paulo: Alameda, 2010.

LUNA, Francisco Vidal. São Paulo: população, atividades e posse de


escravos em vinte e cinco localidades (1777-1829). ‘’Revista Estudos
Econômicos’’ São Paulo, vol. 28, n.º 1, 1998.
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e
economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp,
2006.

MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária


paulista (1700-1836). São Paulo: Edusp, 2000.

517
MONT SERRATH, Pablo Oller. São Paulo restaurada: administração,
economia e sociedade e uma capitania colonial (1765-1802). São Paulo:
Alameda, 2017.

MORENO, Breno A. S. (prelo do evento ‘’Encontro Escravidão e


Liberdade no Brasil Meridional’’ ocorrido entre 14 e 18 de Maio de
2019, em Florianópolis). A estrutura da posse de escravos no médio vale
do Paraíba: Bananal, 1830-1880.

MOTTA, José Flávio. O advento da Cafeicultura e a Estrutura de


Posses da Posse de Escravos (Bananal, 1801-1829). In: Estudos
Econômicos, São Paulo, V.21, Nº3, 1991.

PETRONE, Pasquale. A Região de São Luís do Paraitinga. In: Revista


Brasileira de Geografia, julho-setembro, 1959.

SAIA, Luís; TRINDADE, Jaelson. São Luís do Paraitinga. In:


Publicação Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado – CONDEPHAAT- 1977.

SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores


e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.

518
O REGISTRO DAS PLANTAS
MEDICINAIS
CARLA CRISTINA BARBOSA

A partir do jornal “O Patriota”, buscamos verificar o registro das


plantas medicinais do Brasil, quais foram descritas e seus usos. Essa
verificação teve como objetivo reconhecer se um grupo de plantas
faz parte de uma tradição antiga de uso. Assim, pesquisamos o
jornal “O Patriota”- considerado o primeiro periódico dedicado à
difusão do conhecimento científico no Brasil. Dedicamos às
publicações dos números 3ª (maio e junho) e 4ª (julho e agosto), que
tratam das plantas medicinais indígenas de Minas Gerais e do mapa
das plantas do Brasil com suas virtudes.

O objetivo da análise no jornal foi de verificar o registro das plantas,


quais foram descritas e seus usos. Partimos do pressuposto da
tradição do uso das plantas com fins medicinais para cura. Assim,
realizamos o levantamento das plantas medicinais indígenas de
Minas Gerais feito pelo Doutor Luiz José de Godoy Torres. A
publicação descreve 23 espécies de plantas com nome vulgar e os
usos. Na publicação do periódico nº4 Julho e Agosto de 1814,
analisamos o artigo sobre Medicina- Matéria médica que apresenta o
mapa das plantas do Brasil com suas virtudes e lugares em que
florescem.

Sendo assim, realizamos estudo comparativo entre as plantas


mencionadas no jornal com o levantamento das plantas medicinais
presentes no mercado de Montes Claros no norte de Minas Gerais.
Esse trabalho permitiu verificar que muitas das plantas utilizadas
hoje pela população foram descritas pelo periódico e, a maioria
delas, com os mesmos usos medicinais, o que confirma a nossa

519
hipótese sobre o conhecimento tradicional indígena de usos das
plantas sendo utilizado pela população no norte de Minas Gerais. A
trajetória do trabalho fundamenta-se em três camadas de estudos:
historiográfica que se desenvolve a partir da reflexão sobre o saber
tradicional das plantas medicinais; tecido social que mostra o
conhecimento das pessoas e a tradição e epistemológica, que trata
dos documentos e das fontes.

Referências:

Universidade Estadual de Montes Claros-


UNIMONTES, barbosacristinacarla@gmail.com

520
LUGARES DE COMER: OS BARES E A
ALIMENTAÇÃO EM BELÉM
SIDIANA DA CONSOLAÇÃO FERREIRA DE
MACÊDO

De Campos Ribeiro, em Inesquecível Despedida[1], nos diz que:

A década de vinte, com suas noites de fina boêmia iniciadas no Bar


“Paraense” e no “Pilsen”, ali na Independência, para terminar no
“Kean” em São Braz, depois de obrigatório giro pelo City Club, no
prédio onde está o Cedro, vizinho do Olimpia, que interessantes
episódios registrou, com seus tipos estranhos que eram como parte
da paisagem noturna (...).[2]

Essa realidade dos bares compondo o cenário da cidade de Belém,


ganha muito destaque nas noites da cidade. Os bares ganham
destaque eram locais de sociabilidade e consumo de uma variedade
de comidas e pessoas circulando como nos aponta De Campos
Ribeiro. Assim, o que se come e onde se come permite o
entendimento da cidade de Belém, ao mesmo tempo em que
também permite compreender como os moradores da primeira
metade do século XX, vão construindo hábitos alimentares e
consequentemente a sua própria identidade. Nesse sentido,
lembramos as palavras de Simmel: “Por ser algo humano
absolutamente universal, esse elemento fisiológico primitivo torna-
se, exatamente por isso, o conteúdo de ações compartilhadas
permitindo assim o surgimento desse ente sociológico à
refeição”.[3] Ora, ao estudar os locais de vendas de comidas
podemos visualizar as ações dos indivíduos durante uma refeição, e
igualmente as relações sociais em torno dessa prática em Belém.

521
Os estabelecimentos de consumo de alimentos tinham
frequentadores heterogêneos. Os bares surgem como locais de arte,
luxo e moralidade, muitos deles destinados as famílias. Conforme
veremos os espaços de consumo de alimentos em Belém certamente
tinham códigos e regras específicas, considerando ainda a
diversidade do público de consumidores que desejavam atrair ou
repelir, socializando permissões e interdições que faziam do ato de
comer também uma forma de aprendizagem social. De fato,
conforme sugere Simmel, as regras em relação ao ato de fazer uma
refeição iam “desde segurar a faca e garfo, até os temas mais
convenientes de se falar à mesa, para regular o comportamento
dessas camadas”.[4]

A cidade de Belém do Pará, então, compreendia diversos tipos de


estabelecimentos destinados à venda de alimentos. Em cada um
desses espaços, pessoas circulando, bem como as disputas e tensões
aflorando entre os sujeitos, que buscavam fazer do comércio de
comida esteio de sua sobrevivência ou até mesmo fortuna, e aqueles
que eram seus fregueses e frequentadores. Por muito tempo a
localização destes estabelecimentos se situava quase sempre no
entorno do centro comercial, o bairro da Campina, face o “grande
movimento da Rua João Alfredo” que, na descrição dos médicos
Victor Godinho e Adolpho Lindenberg, no início do século XX,
tinha: “Grandes sobrados (…) ocupados por importantes casas de
negócios: grandes edifícios como os de alguns bancos; (...)
Extraordinariamente movimento de transeuntes, carros, carroças e
bondes”.[5] Ao longo da primeira metade do século XX, no entanto,
outros bairros também vão abrigar estabelecimentos de consumo de
alimentos, tais como o Umarizal, o Jurunas e a Pedreira.[6]

Na busca do entendimento dessa contextualização alimentar de


Belém, observamos que à medida que novos bairros foram se
constituindo surgiam juntamente novos estabelecimentos para
comprar e comer, que mantiveram uma constância no que tange sua
funcionalidade e seus fregueses. Lugares tais como as tabernas,

522
botequins, mercearias e pensões não desapareceram.[7] Isso quer
dizer que, a dinâmica existente em fins do século XIX para
determinados lugares mantiveram-se ao longo da primeira metade
do século XX. Contudo, houve surgimentos de novos espaços para
alimentação como os bares que, além de servirem o alimento,
traziam novas propostas de lazer e arte. Ao longo desse período,
então, percebemos um aumento no número de estabelecimentos
para consumo de alimentos, fenômeno ligado ao crescimento
espacial da cidade, bem como populacional e econômico.

A contextualização alimentar da cidade de Belém no período


estudado nos traz à tona variedades de locais, formas de
funcionamento e de frequentadores ressaltando um mapa social dos
usos dos espaços da cidade que é desenhado pelo viés da
alimentação. Lembrando que não é muito fácil nomear exatamente
estes espaços abertos ao consumo de alimentos, uma vez que os
estabelecimentos de alimentos e bebidas eram bem diversificados
quanto a sua função.[8] Muitos desses estabelecimentos tinham mais
de uma função sendo hotéis, restaurantes e casa de espetáculos. Um
bom exemplo disso era o Coelho, que conforme anúncio publicado
na Folha do Norte servia de Hotel e Restaurante e funcionou no
mesmo local por várias décadas. Ou então, o Hotel Garés que
também comportava um restaurante e ainda tinha em sua
dependência um bar chamado de Tropical. Sendo que, em anúncio
de 14 de maio de 1950, era anunciada a volta dos serviços de
cozinha do restaurante após completa reforma e
melhoramentos.[9] É sobre os bares que vamos tratar essa
comunicação.

Bares: “ARTE! LUXO! ALEGRIA! CONFORTO! MORALIDADE”.

Em Belém do Pará, à medida que o século XX avançava, os


estabelecimentos de cafés vão dando lugar aos bares. A cidade
começava a ter número significativo de bares, que de acordo com os

523
anúncios de jornais ofereciam aos seus clientes divertimento,
alimentação e bebidas. Um exemplo disso é o Bar Paraense descrito
como um “agradável centro de diversões”, que, em 9 de janeiro de
1910, realizava sua festa artística, qualificada como um
“espectaculo” segundo se anunciavaa na Folha do Norte. De acordo
com a propaganda, o programa era “organizado de fórma a attrahir
para alli grande número de apreciadores deste gênero variado e
inoffensivo”. Em 14 de janeiro de 1910, outro anúncio informava
que no Bar Paraense seria levada à cena uma bem urdida comédia
em um ato, “produção de um reputado comediographo nacional, e
que fará rir a bandeiras despregadas”. Segundo o mesmo anúncio,
neste “espectaculo” haveriam “números de encantar”,
“cançonetas deliciosas e intermezzos tão ao sabor do nosso
público”.[10]

O Bar Paraense, era um dos mais tradicionais e antigos da cidade,


tanto que o primeiro anúncio deste, por nós encontrado, data de
1910. Em 14 de fevereiro de 1931, cerca de 21 anos depois, lá estava
o Bar Paraense anunciando a realização de seu Carnaval.[11] Ainda,
no mesmo ano e mês, além da garantia de uma boa diversão
com “jazz band”, o Bar Paraense anunciava ao público o serviço de
bebidas como o “schopp”,[12] bem como um: “Menu variado,
destacando-se saborosos patos no tucupi”.[13] No mesmo mês, aliás,
o dito estabelecimento noutro anúncio enfatizava que seria servido:

“Gorda paca no tucupy e o saboroso Bratwurst (salsicha)”.[14]

Notando-se, portanto, um cardápio bastante variado incluindo


pratos internacionais e outros com elementos mais amazônicos
como o tucupi.

A realização de espetáculos em bares parecia comum em Belém. Em


5 de fevereiro de 1931, às oito e meia da noite, no Sousa Bar, tido
como ponto de recreação da família paraense, haveria mais uma
estrondosa estreia do show de ilusionismo com os aplaudidos Los

524
Rodrigues, chegados do Sul, divertimento que prometia “arte, riso e
sucesso”, uma vez que contava com: “Números de gargalhadas,
destacando-se o de alta illusão”. Em pleno carnaval, nos idos de
1931, o Souza Bar parecia se destacar com sua programação,
apresentando o teatro de revista intitulado: “No reino da Alegria-
Emporio do Riso- Onde vive o carnaval”. A propaganda,
certamente visando atrair foliões, sem falsa modéstia informava que
a “opinião pública”, que circulava pelos “cafés” da cidade,
igualmente afirmava que a “hilariante revista Depois não chora” era
o “único divertimento aproveitável do carnaval” daquele ano. Desse
modo, concluía o anunciante: “Não ir ao SOUSA BAR é lesar o bom
gosto”, até porque, além das atrações artísticas, se “tinha ainda
Menu extraordinário com “SCHOPP GELADINHO – Doces e
guaraná”.[15]

Além de espaços para consumo de bebidas e comidas, alguns bares,


conforme já apontamos, se tornavam espaços de apresentação de
atividades artísticas tais como as revistas teatrais, a exemplo de “À
Procura do Badallo”, encenada no Bar Pilsen em fevereiro de 1931,
sendo como outros tantos um espetáculo destinado às famílias, uma
vez que tudo aconteceria com muita “ARTE! LUXO! ALEGRIA!
CONFORTO! MORALIDADE”.[16] No mesmo mês, o dono do bar
anunciava ainda que para melhor servir sua distinta freguesia
acabava de inaugurar um novo e luxuoso salão, no qual existia um
serviço de “confeitaria, café, leite, chocolate, fructas nacionaes e
extrangeiras, bom-bons, marrons glacês, etc, etc, servido por um
grupo de educados garçons”.[17]

Algumas décadas depois, em 1950, o Bar Barbinha, pertencente a


Oliveira Leite & Cia., localizado na Travessa Campos Sales, número
21, segundo o anúncio do jornal Folha do Norte, seria o “ponto
preferido pela elite paraense”, oferecendo seus serviços com muito
asseio, higiene e ordem estava.[18] Naquele momento, então, os
bares apareciam como uma opção de recreação para as boas famílias
da cidade, com música e arte. Segundo a Folha do Norte:

525
Belém é metrópole que oferece já bom número de centros
recreativos, propiciando horas alegres à sociedade. Ouve-se música
e delicia-se com o canto. Um pouco de arte enfeitando a vida, em
todos, com esse rigorismo de seleção característicos dos grandes
centros. O ‘Tropical Bar’, do ‘Hotel Garés’, enquadrou-se no grupo
das realizações que atraem o espírito aristocrático dos nossos
círculos sociais. Com uma pequena orquestra, vem prodigalisando
horas agradáveis aos seus inúmeros frequentadores, a quem Domi
Spada oferece o encanto das melodias, prestigiando pela acolhida
que o público lhe dispensa em noites de programação caprichosa.
Disseram-nos, os seus proprietários, que pretendem contratar outros
famosos artistas, proporcionando-nos audições mais amplas, a
começar de fevereiro próximo, com maravilhosas surpresas durante
o carnaval. O prelúdio dessa temporada tê-lo-emos amanhã, quando
o ‘Tropical’, em combinação com o Clube dos Aliados, fará ecoar o
seu brado carnavalesco destinado a grande e compensador
sucesso. [19]

Assim, nesse contexto, os bares não eram associados apenas ao


consumo de bebidas, e se tomarmos como exemplos as propagandas
veiculadas na imprensa, aparecendo igualmente como espaços
voltados para as camadas médias e elites da capital, da mesma
forma que poderiam ser frequentados pela família, não só por
homens. Por outro lado, ainda que fossem lugares de diversão
marcadamente noturnos, lembremos que havia, por exemplo, o Bar
Pilsen que, em seu novo salão, oferecia os serviços de confeitaria. E é
justamente entendendo a importância do estudo da alimentação
para a compreensão de um determinado momento da história de
uma dada sociedade, que foi pensada essa comunicação, tendo
como espaço de interesse a cidade de Belém e os bares como locais
de sociabilidade. Assim, foi possível fazer uma contextualização dos
espaços e sujeitos em torno do mundo da alimentação na cidade de
Belém e suas práticas a partir dos bares da cidade.

526
Referências:

A autora é professora Adjunta da Faculdade de História, da


Universidade Federal do Pará/ Campus de Ananindeua. Autora do
livro MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se come:
uma história da alimentação e do abastecimento em Belém (1850-
1900). São Paulo: editora Alameda, 2014. Essa comunicação é fruto
de minha tese de doutorado, a qual teve apoio da Capes.

[1] DE CAMPOS Ribeiro. Gostosa Belém de Outrora. 1966.

[2] DE CAMPOS RIBEIRO. op. cit., p. 129.

[3] SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Revista Estudos


Históricos, n. 33, 2004, p. 1.

[4] SIMMEL. op. cit., p. 3.

[5] GODINHO, Victor; LINDENBERG, Adolpho. Norte do Brasil:


através do Amazonas, do Pará e do Maranhão. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 88.

[6] Sobre um estudo da geografia urbana de Belém ver:


PENTEADO. Antônio Rocha. Belém do Pará Estudo de Geografia
Urbana. Belém: Universidade Federal do Pará, 1968.

[7] Sobre os espaços de distribuição, venda e consumo dos produtos


alimentícios em Belém, tais como tabernas, cafés, quitandas, hotéis,
casas importadoras e outros existentes na segunda metade do século
XIX. Ver: MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Do que se
come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém,
1850-1900. São Paulo: Alameda, 2014.

[8] Algranti lembra que “mais do que indicar a pouca precisão na


forma de nomear os espaços (...) a variedade de designações sugere

527
a multiplicidade de funções destes locais como a de servirem como
locais de encontros e divertimentos”. ALGRANTI, op. cit., p. 30.

[9] Folha do Norte, 14 de maio de 1950, p. 2.

[10] Folha do Norte, 9 de janeiro de 1910, p. 3; Folha do Norte, 13 de


janeiro de 1910, p. 3.

[11] “CARNAVAL! CARNAVAL! CARNAVAL! É SÓ NO OLHO”.


E, ainda, “No Bar Paraense, durante a quadra carnavalesca!
ALEGRIA! - ESPECTACULOS PURAMENTE FAMILIARES -
VERVE!”. Folha do Norte, 17 de janeiro de 1910, p. 2.

[12] Folha do Norte, 7 de fevereiro de 1931, p. 5. O Schopp parece


ser bem consumido, uma vez que o mesmo pode ser observado em
1929, no Bar Pilsen, que oferecia aos seus fregueses “schopp
geladinho”. Cf. Folha do Norte, 5 de janeiro de 1929, p. 4.

[13] Folha do Norte, 17 de fevereiro de 1931, p. 4.

[14] Folha do Norte, 26 de fevereiro de 1931, p. 4.

[15] Folha do Norte, 7 de fevereiro de 1931, p. 4.

[16] Folha do Norte, 7 de fevereiro de 1931, p. 5

[17] Folha do Norte, 14 de fevereiro de 1931, p. 5

[18] Folha do Norte, 8 de janeiro de 1950, p. 8.

[19] Folha do Norte, 13 de janeiro de 1950, p. 2.

528
PASSANDO A BOLA DO CAMPO DE
FUTEBOL PARA O CAMPO
HISTORIOGRÁFICO:
UM ENSAIO SOBRE AS CORRENTES
HISTORIOGRÁFICAS PARA PENSAR O CASO DOS
IRMÃOS REFUGIADOS NOS TIMES DA EUROCOPA 2016
LARA NOVIS LEMOS MACHADO

“A História se preocupa com o homem em seu tempo, mas o seu


fazer é uma prática no presente por indivíduos que são, de alguma
forma, influenciados pelo seu tempo. O elo com o presente se torna
obvio quando o processo de compreendê-lo tem muito em comum
com o processo de compreender o passado, não obstante o fato de
que compreender como o passado se converteu no presente nos
ajuda a compreender o presente, e provavelmente algo no futuro
(HOBSBAWM, 1998).”

A crise humanitária dos refugiados pode ser considerada uma das


maiores questões contemporâneas e demanda responsabilidade
internacional na tomada de uma ação coletiva, cujo principal
objetivo é a proteção dos direitos humanos, que é uma questão –
também – cara aos Estados que acolhem esses indivíduos.

A categoria de refugiado carrega em si as noções de transitoriedade,


provisoriedade e temporalidade. Os refugiados se situam entre o
país de origem e o país de destino. Ao transitar entre esses dois
universos, ocupam uma posição marginal assentada na falta de
pertencimento pleno enquanto membro da comunidade receptora.
(MOREIRA, 2014)

Ao indicar a relação entre nacionalismo e exílio/refúgio como uma


“associação essencial”, é possível pensar em ambos como
experiências correlatas e antagônicas. O refúgio surge da

529
descontinuidade; da experiência de não pertencimento; o
nacionalismo, como seu contrário, sustenta-se na vivência comum e
continuidade de um povo. O nacionalismo afirma-se na identidade
de um grupo, no pertencimento ao lugar, à história, à cultura.

O futebol é um excelente exemplo de nacionalismo e de como a


cultura pode influenciar a sociedade na sua forma mais cotidiana,
logo a partir dessa ótica, inspirada no livro do historiador Boris
Fausto “Crime do restaurante chinês” que pretendo nesse ensaio
desenvolver a ideia de “fio da invisibilidade” (BORIS, 2009 p.157)
tecendo uma relação entre tempo e história.

Para tanto farei um percurso pela historiografia a partir dos


Annales, da Escola de Chicago e da Micro-história para apresentar
as múltiplas possibilidades de se fazer História e apresentar o tema
dos refugiados no contexto de Eurocopa que ocorreu em 2016 na
França a partir dos times de futebol para fazer uma relação do
presente com o passado sugestionado pela citação de abertura do
Hobsbawm.

Em 2016, ocorreu na Franca a 15º edição do Campeonato Europeu


de Futebol e os times apresentavam um mosaico de múltiplas
origens: os irmãos Xhaka iriam se enfrentar em lados opostos:
nascidos na Basileia, Suíça e filhos de pais kosovares-albaneses
Taulant optou pela nacionalidade albanesa, enquanto Granit pela
suíça. A partir do confronto Albânia x Suíça é possível aprofundar
as redes que ligam esses irmãos ao passado e à historia.

Em 1986 Ragip Xhaka é preso no Kosovo por participar de uma


manifestação estudantil. Sua mulher, Elmaze só podia visita-lo de 15
em 15 dias e assim foi por três anos e meio. Quando Ragip, um
kosovar de herança albanesa saiu da prisão, decidiu fugir da guerra
e foi se refugiar na Suíça com Elmaze. Estabeleceram-se na cidade
de Basileia onde anos mais tarde seus filhos nasceram.

A biografia pode ser considerada uma das primeiras formas de


história. Desde a Antiguidade os relatos eram uma forma de saber e

530
foi a partir da narrativa que o modelo biográfico se desenvolveu.
Exemplos como Heródoto e Tucídides deram ao gênero biográfico o
poder de expressarem o que era a história naquela época.

Inicialmente, o pensamento de história mestra da vida forjou que as


vidas dos heróis do passado eram um espelho e exemplo a ser
seguido. Havia uma noção de moral e de buscar no passado
ensinamentos. Esse tipo de pensamento da Antiguidade seguiu-se
na Idade Média com as hagiografias. A vida dos santos eram
modelos de mártires e essa santidade deveria ser observada por
toda sociedade. A santidade passou a servir de exemplo no
cotidiano e se refletia na narrativa sobre a vida dos cavaleiros na
época.

A partir do Renascimento surgiu uma nova maneira de conceber o


mundo. O individualismo, a razão e a ciência voltaram sua atenção
para a modernidade. O homem passou a ser o centro e, portanto,
projetava-se uma imagem de progresso, de futuro. A ideologia do
progresso continuou se afirmando nos séculos seguintes.

No século XIX, as biografias tiveram um papel importante na


construção do ideal de “nação”, fundamentando símbolos de
patrimônio, monumentos, tradições. A corrente positivista associou-
se às biografias para a exaltação das glórias nacionais na concepção
de uma história factual.

Além do positivismo, o marxismo também buscou uma nova


ideologia apoiada no papel das massas e menos no indivíduo. As
análises mais estruturalistas acabaram provocando uma
marginalização da biografia como produção histórica, apesar de ela
continuar existindo como gênero narrativo.

O retorno da biografia à cena principal com o aumento de estudos


de caso e da micro-história em detrimento da história quantitativa
ocorreu em meados dos anos 1980 com a crise do paradigma
estruturalista. A escola dos Annales, aos poucos, foi incorporando
ao seu modelo macroestrutural o estudo das trajetórias individuais.

531
Desta vez os atores históricos são pensados como testemunhas de
uma época. A biografia não apresenta mais o indivíduo como herói
ou exemplo a ser seguido, mas sim como um representante de
correntes de pensamentos e movimentos próprios de seu tempo.

A história narrativa voltou à cena na década de 1980 com a


valorização do indivíduo no bojo do crescimento dos estudos no
campo histórico da História Oral que a partir da construção das
trajetórias individuais pôde dar destaque à história dos “de baixo”.

A linearidade factual da curta duração do tempo de vida do


indivíduo passa a dar lugar às análises das múltiplas relações com o
contexto social, político, econômico, cultural na qual a vida se
desenvolve. Esse novo olhar permite o esclarecimento da trajetória
de vida, das escolhas e da inserção do indivíduo na sociedade.

O campo da escrita biográfica é para o historiador uma via de mão


dupla entre o cientifico e o ficcional uma vez que ela envolve uma
narrativa que pretende contar a real história de vida de um
indivíduo e seus lugares de fala na sociedade. Tais posições são
marcadas pelas trajetórias individuais que se inserem num quadro
maior capaz de reconstruir laços de sociabilidade, redes de
solidariedade, especialmente no caso dos migrantes.

A aproximação da história com a literatura nesse caso permite uma


reflexão acerca das possibilidades da biografia como escrita da
História. Através da narrativa o indivíduo consegue ou tenta-se ao
máximo, ser representado em suas múltiplas identidades uma vez
que os vários aspectos de sua vida não são mais conduzidos de
forma linear e nem se fixam em uma única abordagem.

A Escola de Chicago foi uma das primeiras correntes


historiográficas a se debruçar sobre os migrantes. Devedora de seu
passado nos EUA, país de imigrantes e sendo constituída numa
universidade que recebeu influências de pessoas de todo o mundo, a
articulação da sociedade e do mundo intelectual que já vinha sendo

532
feito na escola Inglesa com os estudos culturais, percebeu na
sociologia e na antropologia um diálogo fecundo para entender o
fenômeno do estrangeiro, das trocas culturais entre o de fora e a
população local.

Os historiadores têm cada vez mais a sensibilidade de apresentar a


vida de forma a não esgotarem uma representação única. E tal
abordagem contribui cada vez mais para a análise do macro. As
escolhas de vida, os pensamentos, os contextos são explorados de
forma que o indivíduo e a narrativa histórica não formem uma
narrativa literária somente, mas sim uma fonte de pesquisa
histórica.

Ao pensar as fontes de pesquisa na História é necessário ressaltar


que as narrativas são bastante utilizadas e foram consideradas
importantes para o estudo e desenvolvimento da área dos estudos
sobre migração onde as pesquisas são proeminentes em Economia,
Demografia, Antropologia, Geografia, como fruto do
desenvolvimento do capitalismo, industrialização e urbanização.

A Escola de Chicago se preocupou com os processos migratórios no


que diz respeito à assimilação desses indivíduos, integração e
adaptação deles na sociedade, vendo surgir a xenofobia, etnicidade
e instabilidade. Essa complexidade fez com que nova abordagem
não estivesse apenas preocupada com o sentido das ações dos
“grandes homens” de antigamente que eram inseridos em seus
contextos por meio das análises dos acontecimentos que
participavam, mas sim à visão complexa da vida e do mundo,
buscando ver as conjunturas e as estruturas, os indivíduos e os
grupos, o micro e o macro a fim de não simplificar a história de vida
à uma visão linear e simples.

O indivíduo passa a ser mais universal, plural e por isso possibilita a


leitura da sociedade por meio de sua biografia evidenciando as
complexidades, os contextos e as múltiplas visões do seu mundo.

533
O novo contexto político que surgiu com o fim da Guerra Fria
associado às novas tecnologias da informação e à crescente
interdependência, redefiniu as relações de espaço e tempo,
ampliando simultaneamente as incertezas do mundo
contemporâneo uma vez que reforça a dependência da relação
assimétrica, que no geral, fortalece os padrões de dominação criados
por formas anteriores de dependência ao longo da história
(HALLIDAY, 1999).

A globalização que ao mesmo tempo consegue diluir, em certa


medida, o poder da esfera nacional para a esfera global, através do
mercado financeiro e dos organismos internacionais, consegue
também o processo inverso com o ressurgimento de novas
identidades locais, tais como os movimentos nacionalistas baseados
na valorização da cultura regional e na forca da tradição.

O território é um espaço carregado de referências simbólicas onde se


dá a produção material e permite que as práticas sociais identitárias
no processo de vivenciar o espaço aconteçam, criando assim um
patrimônio cultural. Uma vez que se pode considerar que os
vestígios das relações vividas e imaginadas em um espaço traz
consigo uma ideia de pertencimento, de modo de vida, o território
passa a ser lugar de memória, lugar de identidade, de referência
histórica e por isso um lugar socialmente construído (BARROSO,
2016)

Desta maneira, a identidade se trona fonte básica de significado com


capacidade para organizar formas distintas de reação ao processo de
globalização. A análise dos conflitos étnicos modernos pode ajudar a
traduzir a história mais recente do século XXI sob a perspectiva da
luta por autonomia política e por identidades – coletivas e
individuais – atribuídas ou construídas. Portanto, um país que
representou por muito tempo uma mistura étnica e cultural pode ser
uma boa lente de observação.

A Iugoslávia foi um país que se constituiu após a 1º Guerra Mundial


abarcando múltiplas nacionalidades, organizando-se de forma

534
federativa com: Sérvia e mais as províncias de Vojvodina e Kosovo,
Croácia, Montenegro, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia.

Durante o comunismo, sob o comando de Tito os indivíduos eram


incentivados a pensar numa nacionalidade única: Iugoslavos.
Contudo as diferenças étnicas começaram a se manifestar e a
multiplicidade de minorias étnicas em cada republica apresentava
um problema: cerca de 15% da população da Croácia era composta
por sérvios e na Bósnia-Herzegovina eles representavam 1/3 da
população. (LOWE, 2011)

Em 1991, a Iugoslávia começou a se fragmentar em sangrentos


conflitos dos quais os jogadores da Eurocopa de hoje são
descendentes. A questão étnica pode ser uma opção para olhar
conflito especialmente no Kosovo onde a maioria albanesa era
profundamente contraria às políticas do presidente sérvio Milosevic.

Os protestos, inicialmente pacíficos, começaram em 1989, liderados


por Ibrahim Rugova e em 1998 formou-se o Exército de Libertação
do Kosovo (ELK) e então começou uma guerra civil. Em 1999, a
ofensiva sérvia cometeu atrocidades contra os albaneses e isso
chamou a atenção da opinião pública externa. A partir de então
iniciou-se as negociações de paz e a comunidade internacional se
deu conta de que precisava proteger os albaneses de Kosovo.

A OTAN passou a bombardear a região, na tentativa de forçar o


governo sérvio uma rendição, mas Milosevic determinou uma
“limpeza étnica” que expulsou milhares de pessoas de etnia
albanesa para os Estados vizinhos como a Albânia, Macedônia e
Montenegro. O acordo de paz negociado pela Rússia e Finlândia fez
com que as tropas de Milosevic recuassem e com elas grande parte
da população servia se retirou da região com medo de represálias
albanesas. (LOWE, 2011)

O gatilho para esse breve panorama partiu da disputa “pacifica”


entre dois irmãos que por razões históricas especificas reivindicam

535
nacionalidades diferentes. O contexto inicial de analise foi a partida
da Eurocopa de 2016 que os colocou em lados opostos do campo.

Assim como nos mostra Fausto na sua obra citada nesse ensaio, uma
investigação histórica pode nos levar a abrir um leque de várias
chaves interpretativas para problemas como refúgio, conflitos da
guerra fria, política de imigração, futebol, questões raciais,
nacionalismo.

Recuperando o ideal de nação, apontado anteriormente, como um


“guia político” para o século XIX, a história dos grandes homens, ou
melhor o questionamento da histoire événementielle, veio da abertura
para o diálogo com outras áreas como a sociologia e Durkheim vai
influenciar diretamente na revolução que a Escola dos Annales,
provocou a partir da revista L’Année Sociologique.

Inicialmente Michelet ao escrever sobre a revolução francesa, mas


especialmente nos aos 1930 quando Marc Bloch e Lucien Febvre
dedicam-se a ir contra o positivismo cientifico, uma nova
perspectiva se irradiou pelo mundo e começou a florescer em outros
lugares depois da 2º Guerra Mundial.

Nos anos 1950, a história dos movimentos populares ganhou


especial atenção dos marxistas e weberianos com o crescimento do
movimento operário. E revisitar o passado com esse novo olhar
significa explorar uma nova dimensão desconhecida do passado e
descobrir novas fontes e objetos que antes eram desconsiderados
para o estudo e a pesquisa.

Então nos anos 1970-80 a micro-história apresenta uma


possibilidade do fazer histórico que ganhou força com a Escola
Italiana, sendo um de seus maiores expoentes o historiador Carlo
Ginzburg. Trata-se de uma abordagem que utiliza uma reduzida
escala de observação para o desenvolvimento de temas
correlacionando o contexto social, político, cultural e econômico.

536
A possibilidade de que o micro se conecte com o macro, permitindo
novos olhares, novas abordagens e novas possibilidades a partir de
um fazer histórico que passa a dialogar com outras áreas do
conhecimento como a sociologia, antropologia, geografia, psicologia,
resultando numa relação de influência é uma via de mão dupla.

A história se preocupada com o homem em seu tempo mas o seu


fazer é uma prática no presente por indivíduos que são, de alguma
forma, influenciados pelo seu tempo. Num mundo em que o global
e as fronteiras estão cada vez mais tênues, o lugar que o outro ocupa
e que constrói para si é um lugar de transitoriedade.

O termo ‘integração local’ faz referência ao processo que se


desenvolve quando o refugiado passa a interagir em novo contexto,
no país de destino, em meio à comunidade receptora. O debate
conceitual em torno do que constitui integração, quais fatores
devem ser considerados para aferi-la é um campo bastante fértil,
ensejando diversas definições e abordagens teóricas e metodológicas
entre pesquisadores dedicados ao estudo sobre o tema dos
refugiados. (ANDRADE; MARCOLINE, 2002)

Evidenciando a dimensão multifacetada do fenômeno, uma opção


de análise é uma espécie de tipologia da questão nacional em função
das seguintes entradas: conflito, conciliação, refúgio e
humanismo. Edward Said (2003) ao refletir sobre as nações e
nacionalismos em suas obras expõe a dualidade da formulação da
questão nacional que de um lado, refere-se ao sentimento de vínculo
nacional e à problemática do pertencimento; e do outro se refere à
formação do estado nacional propriamente dito. No primeiro caso,
pode-se pensar sobre exílio/refúgio e identidade e já no segundo, a
questão dos movimentos de resistência. Esses dois eixos acabam por
se complementar, numa concepção de uma visão humanista.

Ao indicar a relação entre nacionalismo e exílio/refúgio como uma


“associação essencial”, é possível pensar em ambos como
experiências correlatas e antagônicas. O refúgio surge da
descontinuidade; da experiência de não pertencimento; o

537
nacionalismo, como seu contrário, sustenta-se na vivência comum e
continuidade de um povo. O nacionalismo afirma-se na identidade
de um grupo, no pertencimento ao lugar, à história, à cultura. E o
lugar do “outro” que adentram o “território do não-pertencer” que
aparece para além das fronteiras e se faz presente na sociedade
implicando desafios de identidade, integração e pertencimento que
é uma das problemáticas da história do século XXI.

A política, os grandes homens, os grandes fatos e acontecimentos


eram o objeto da História por muito tempo, mas o desejo de ver a
História por outro ângulo, pensar com o suporte de outras ciências,
dar voz aos nunca ouvidos e deixar que o “vagalume” se transforme
em farol para iluminar um contexto maior foi o que busquei elucidar
nesse ensaio.

Dando ênfase à micro-história com o aporte da biografia ela nos


permitiu reduzir a escala de observação a fim de perceber algo que
poderia passar desapercebido quando visto nos grandes quadros;
concentrar a escala em pessoas comuns e não em grandes
personagens, buscando ouvir sua voz; extrair de fatos
aparentemente corriqueiros uma dimensão mais relevante; apelar
para o recurso da narrativa para alcançar lugares que antes
poderiam ser apenas fachos de luz (FAUSTO, 2009).

A micro-história não está isenta de críticas especialmente quando ela


se apresenta não passando de um estudo de caso; assim como a
Escola de Chicago que se prende bastante à etnografia, ou a Escola
dos Annales quando subverte a ordem e não dá o devido valor ao
factual mas o caminho que o campo historiográfico percorreu é
muito devedor dessas três escolas e a análise passa a ser muito mais
enriquecedora quando podemos contar com cada uma de suas
contribuições.

A história dos refugiados possui muitas origens e o caso dos irmãos


Xhaka possibilitou pensar a mudança na historiografia desde os
seus paradigmas positivistas. A virada histórica dos anos 30 com a
escola dos Annales, a aproximação com a sociologia, antropologia,

538
psicologia, geografia e outras áreas do conhecimento permitiu
romper o que é tradicional e periférico na História.

Sendo assim, ao refletir sobre as pequenas coisas, sobre os detalhes,


sobre o olhar micro, sobre o que antes não era o foco, fica o
questionamento se não são justamente essas pequenas coisas que
mudam o curso da história.... a historia, talvez. O curso não.

Referências:

Ensaio apresentado pela mestranda Lara Novis Lemos Machado do


Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais
da Fundação Getúlio Vargas PPHPBC – FGV, sob orientação do
Prof. Dr. Marco Aurélio Vannucchi.

ANDRADE, José H. Fischel de; MARCOLINI, Adriana. A política


brasileira de proteção e de reassentamento de refugiados – breves
comentários sobre suas principais características. Rev. bras. polít.
int. vol.45 no.1 Brasília Jan./Jun. 2002
BARROSO, Eloísa Pereira. Patrimônio cultural: Possibilidades de
territorialização. In: COSTA, Cléria Botelho da. RIBEIRO, Maria do
Espirito Santo Rosa Cavalcante. (Orgs.) Fronteiras móveis:
territorialidades, migrações. 1. ed. - Belo Horizonte, MG: Fino Traço,
2016. P. 301-308
HALLIDAY, Fred. Revolution and world politics. The rise and fall of the
sixth Great Power. Durham: Duke University Press, 1999. Pp. 94-160
BURKE, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: a Escola dos
Annales, 1929 – 1989. São Paulo: Editora Universidade Estadual
Paulista, 1991.
BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São
Paulo: Editora Unesp, 2011. 368p.
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes, AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. 8.ed Rio de
Janeiro: FGV, 2006, p. 183-191.
EUFRASIO, MARIO A. Estrutura urbana e ecologia humana: a escola
sociológica de Chicago (1915-1940). São Paulo: Ed. 34, 1999 304p.

539
FAUSTO, Boris. O crime no restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça
na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
248p.
FREITAS, Marcos Cezar. Da micro-história à historia das ideias. São
Paulo: Cortez, 1999 110p.
GINZBURG, Carlo. Controlando a evidencia: o juiz e o historiador.
In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério F. da (Org.). Nova história em
perspectiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2013, vol. 1. Pp. 341-358
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-
1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 600p.
________________. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. 336p.
LIMA, Maria Regina S. e HIRST, Monica. “Brasil como país
intermediário e poder reginal”. In: HURRELL, Andrew et all. Os
Brics e a ordem global. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2009, pp 43-73.
LE GOFF, Jacques. “A história nova”. In: NOVAIS, Fernando;
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Cosac & Naify, 2013, vol. 1. Pp. 128-176
LOWE, Norman. Historia do mundo contemporâneo. Porto Alegre:
Penso, 2011. 656p.
MOREIRA, Julia Bertino. Refugiados no Brasil: Reflexões acerca do
processo de integração local. REMHU – Rev. Interdiscip. Mobil. Hum.,
Brasília, Ano XXII, n. 43, p. 85-98, jul./dez. 2014
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
SALAZAR, Fernando. Los refugiados de la Eurocopa. EOM, 16 de
agosto de 2016. Disponivel em: https://elordenmundial.com/los-
refugiados-la-eurocopa/ Acesso em: 01 de fevereiro de 2019
WHITE, Hayden. “A questão da narrativa na teoria histórica
contemporânea”. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério F. da
(Org.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2013,
vol. 1.

540
HISTÓRIA, LITERATURA E PÓS-
COLONIALISMO: UM BREVE OLHAR
SOBRE A ESCRITA DE MIA COUTO
JEANE CARLA OLIVEIRA DE MELO

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar, de modo preliminar,


determinados marcadores da escrita do escritor moçambicano Mia
Couto, buscando fazer uma análise com enfoque cultural,
abrangendo os realces pós-coloniais em sua literatura. Nesse
sentido, Mia Couto é observado por este estudo como um tradutor
de realidades pós-coloniais, que, em sua obra ficcional é capaz de
tecer questões profundas acerca da identidade africana, da relação
colonizador e colonizado e do multiculturalismo.

Assim, a literatura tem, como uma de suas funções, trabalhar como


um campo de questionamento – e de reflexão – cultural,
possibilitando vislumbrar o imenso repertório cultural e simbólico
nas mais diversas sociedades. Dessa maneira, considerando-se a
diversidade dos estudos nos campos literário e
historiográfico, procura-se buscar a relevância dos estudos acerca
das obras de um único autor, almejando agregar sua coerência
narrativa ao seu engajamento ideológico e discutindo, assim, sua
urdidura do mundo através da linguagem.

2 Os estudos pós-coloniais na fronteira entre História e Literatura

Os estudos pós-coloniais fazem parte de um contexto mais amplo de


estudos culturais, que nasceram na virada dos anos 1950, na
Inglaterra. Os temas mais candentes destas análises giram em torno
de questões ligadas à raça, ao hibridismo, ao multiculturalismo e ao
deslocamento do sujeito na pós-modernidade.

541
O fenômeno da globalização também é analisado, no entanto, no
sentido de desvelar as contradições desse processo, sobretudo, nos
países e continentes pós-colonizados, respectivamente, a Índia e a
África. No campo da sociologia, os estudos empreendidos pelo
indiano Homi Bhabha se configuram como dois mais importantes e
na literatura, destacam-se as obras de Mia Couto, autor
moçambicano bastante prolífico, que em seus livros, tenta pensar a
complexidade da sempre problemática identidade africana pós-
colonial.

Tempos mais tarde, sobretudo nos anos 60 e 70, os estudos feitos


pelo anglo-jamaicano Stuart Hall, diretor do Centro de Estudos
Culturais da Universidade de Birmingham, contribuíram para a
gama de reflexões acerca da identidade cultural na pós-
modernidade. Os estudos de Hall fogem um pouco da abordagem
economicista que dominou o pensamento acadêmico de sua época
para propor análises que fugiam à formalidade descritiva do
estruturalismo indo ao encontro da compreensão dos fenômenos da
sociedade dita pós-moderna e seu impacto nas relações sociais em
um contexto mais amplo (FIGUEREDO, 2005).

Na contemporaneidade, os estudos culturais persistem na afirmação


do multiculturalismo, ocupando-se do estudo dos diferentes
aspectos da cultura e dialogando com outras disciplinas, como a
antropologia, a filosofia, a teoria literária, etc. De acordo com Vianna
Neto (2005), o mundo atual no qual o ser humano se movimento é
confuso e instável. Nesse sentido, o conceito de cultura deve ser
repensado porque já não se consideram segundo esta perspectiva, só
os fenômenos produzidos pelos seres humanos, mas também todos
os fenômenos naturais considerados em seu valor simbólico e
material. Segundo Figueredo (2005, p. 34),

“os estudos pós-coloniais afirmam-se, por sua vez, quando a idéia


de modernidade, com a sua complexa herança estruturalista e
formalista, principia, nos finais da década de 70, a declinar.
Atualmente, estes estudos indicam, “o espaço teórico, político e
poético reconhecido não só como o que vem ‘depois’ do

542
colonialismo, ou seja, depois dos acontecimentos históricos da
descolonização iniciados na segunda metade do século XX (...) mas
também como o ‘pós’ pós-colonialismo: uma situação que, histórica
e geo-politicamente, é já uma situação de globalização em que as
razões profundas do colonialismo, juntamente com os conflitos pós-
coloniais e a violência mundializada que transforma as minorias em
êxodos, abriram cenários novos”.

Desta forma, o conceito de pós-modernismo, ainda sem encontrar


um consenso entre os teóricos, busca um caminho no qual abunda
uma crise histórica sem precedentes. Diante deste quadro, criou-se
um caminho fértil para a insurgência de teorias pós-coloniais, que se
referem essencialmente às teorias descontrucionistas.

Conforme assinala Vianna Neto (2005), embora não possuindo uma


metodologia rigorosamente unificada, os estudos pós-coloniais têm
um objeto de investigação bem claro: querem estudar os confrontos
entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja,
estudar a marginalidade colonial, considerada segundo uma
perspectiva espacial, política e cultural.

Assim, com a crise dos paradigmas e das grandes narrativas, torna-


se necessário repensar o conceito de cultura, que vem acompanhado
de sua série de novas reflexões e de novas questões, que se mostram
cada vez mais urgentes de serem debatidas. Assim, tem cada vez
mais lugar a noção de sujeito, visto em suas dimensões identitárias
políticas, sexuais e ideológicas. O antigo conceito de estado-nação e
de identidade são questionados à luz de conceitos como o
hibridismo, migração e mestiçagem. Aprofundando essas análises,
Bhaba (p. 11-12) afirma que

“Os conceitos de classe e gênero como particulares e fundamentais


categorias conceptuais e organizadoras deram o lugar à consciência
das especificidades do sujeito – raça, gênero, geração, situação
institucional, ambiente geopolítico, orientação sexual – intrínsecas a
cada revindicação identitária no mundo (...) É nos interstícios –
criados do sobrepor-se e do desenvolver-se das diferenças – que são

543
negociadas as experiências inter-subjetivas e coletivas de ‘pertença a
uma nação’, de interesse da comunidade ou de valor cultural”.

Segundo Canclini (2008), a cultura volta-se para a lembrança dos


marginalizados pelo eurocentrismo e transforma-se em um ato
político fundante de novas identidades. Desta forma, o campo
literário torna-se também transnacional. Portanto, o colonialismo
surge cada vez mais como um conceito-chave de suma importância
para compreender o presente. Nesse sentido, destacam-se as
produções de Homi Bhabha (2007), Edward Said (1990) e Stuart Hall
(2002), que buscam repensar a contemporaneidade a partir desses
novos lugares sociais.

A partir dos anos 1980, os estudos pós-coloniais assumem uma


característica predominantemente literária, tendo como referência a
produção narrativa das ex-colônias e, sobretudo às obras escritas na
língua do país colonizador. De acordo com Said (1990), é na
literatura onde se expressam melhor os conflitos identitários
próprios do período pós-colonial. Nesse sentido, a obra do autor
moçambicano Mia Couto representa uma das literaturas mais
representativas produzidas dentro deste quadro.

3. Imagens da África na obra de Mia Couto: considerações


preliminares

As representações correntes que foram disseminadas sobre a África,


comumente, a punham no lugar da barbárie e selvageria. Tais
imagens corroboram de uma ótica eurocêntrica, que afirma o sujeito
branco europeu em detrimento da complexidade cultural do
continente africano. Diante dessa construção arbitrária, resta a
indagação: como o sujeito africano se enxerga diante de tais
representações culturais sobre si? Como a África se defronta com
esse “outro” construído sobre ela mesma?

Com efeito, esse processo resultou em complexas negociações e re-


significações de identidades. É simplista demais analisar a questão
apenas de forma binária, o branco colonizado versus o negro

544
colonizado. Nesse ínterim podemos encontrar uma multiplicidade
de categorias culturais que podem ser trazidas à tona para se pensar
os arranjos políticos, econômicos, culturais e ideológicos do pós-
colonialismo.

De acordo com Figueiredo (2005), a troca de olhares sobre o outro e


sobre a própria identidade é um instrumento dinâmico, em
constante reelaboração e com múltiplas variáveis. A mudança de
perspectiva em relação ao continente africano teve início um pouco
antes das lutas pelas independências, nos anos 1950 e 1960,
estendendo-se até o final da década de 1970.

A segunda metade do século XX assistiu a uma espécie de revolução


nos estudos sobre a África, em parte pela necessidade de construir
“histórias nacionais” para cada região "inventada" pelos europeus e
reinventada pelos africanos, em parte porque foram os intelectuais a
perceberem a importância da elaboração das identidades africanas
dentro do continente e perante o mundo. O retorno ao passado em
busca de legitimação, de mitos fundadores e heróis passou a ser
uma forma de engendrar essas novas identidades e a literatura pós-
colonial provou ser profícua nesse aspecto (FERRO, 1998).

Também é necessário pôr em relevo as implicações que as diferenças


culturais entre Portugal e Moçambique (o que chamaríamos de
“conflito de culturas”) trazem para esta última, sendo que o país
descolonizado tem que deglutir e transformar aquilo que outrora foi
imposto e que agora é assimilado junto com sua cultura própria –
aglutinando à isso mestiçagens, trocas e assimilações. A relevância
da criação de uma cultura – e, logicamente, também de uma
literatura – propriamente moçambicana é muito cara aos escritores
africanos lusófonos, sendo que Mia Couto também está incluído
nesse rol.

Antonio Emílio Leite de Couto, mais conhecido como Mia Couto,


jornalista, biólogo, ex-militante político e descendente de
portugueses, é hoje considerado uma das vozes mais ativas no
tocante à questão da identidade africana na contemporaneidade. A

545
partir do conjunto de sua obra, Couto lança olhares contemporâneos
sobre a África e seu país de origem, Moçambique.

Por meio da ficção, Couto consegue ir além das questões políticas e


sociais através da recorrência constante às tradições africanas. O
novo, para Mia Couto, deve se dar em comunicação com as raízes
africanas, contudo, o autor não desvela para o purismo ou enxerga a
tradição como um passado mítico e nostálgico. Mia Couto reinventa
a identidade africana a partir de uma retórica original, criando
palavras novas assim como novos recursos lingüísticos e
semânticos.

Couto opta, em suas criações, por uma linguagem fragmentada, um


português amalgamado às expressões tipicamente africanas,
acabando com a chamada “pureza da língua portuguesa” quando
intenta, e consegue misturá-la aos dialetos moçambicanos, num
insistente mesclar cultural. Seus escritos demonstram um sujeito
afinado com as questões existenciais de sua época e, se recorre com
freqüência à ficção, é na tentativa de tatear essa identidade africana
por meio da histórica de Moçambique, tornada prosa em sua obra,
sobretudo em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003),
onde estão em jogo as tradições moçambicanas, envoltas em um
contexto acelerado de modernidade capitalista.

Em entrevistas concedidas recentemente durante sua passagem pelo


Brasil, Mia Couto disse pretender ironizar e questionar alguns
arquétipos sobre o homem africano, principalmente a idéia de
pureza ou autenticidade, bem como os lugares-comuns em sua
representação: as crendices, a feitiçaria e a sexualidade. É na criação
de um mundo de ficção, mediado entre a prosa e a poesia que Mia
Couto re-significa suas raízes. A África para o escritor é o lugar de
construção da identidade, da preservação da memória e de
questionamentos culturais que vão para além do binômio
colonizador/colonizado.

546
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme, podemos perceber no conjunto da obra de Mia Couto


uma ironia que diz respeito ao ceticismo da história contemporânea
da África. Sobre isto, Vianna Neto (2005, p.43), pondera que,

“Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas


literaturas africanas de língua portuguesa é também a consciência
pós-colonial, na visão mais emblemática da perda inocência, e
confrontada com o começo do tempo da distopia: através de
situações que representam uma reedição dos objetivos e métodos do
“antigo período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-
independência, é posto a descoberto o modo como este também
participa na “larga história de crueldade em que o colonialismo é
uma página a mais”.

Desta forma, As imagens criadas por Couto para a representação de


sua cultura, costumes e tradições são intensas, de cores fortes, mas
não procuram mostrar uma faceta penalizada da nação, antes o
contrário: representa as várias identidades da Moçambique atual,
isso quer dizer tanto nas suas tradições como no seu cosmopolitismo
atual, abrindo as portas na literatura para um revelar-se sempre
novo.

BIBLIOGRAFIA

Jeane Carla Oliveira de Melo é professora de História do IFMA


Campus Alcântara e doutoranda em História Social da Cultura pela
UFMG.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP,


2008

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003

547
FERRO, Marc. A manipulação da História no ensino e nos meios de
comunicação. São Paulo: Ibrasa, 1998

FIGUEREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Rio de


Janeiro: UFF, 2005

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de


Janeiro: DP&A, 2002

SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras,


1990.
VIANNA NETO, Arnaldo Rosa. Multiculturalismo e
pluriculturalismo. In: FIGUEREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e
cultura. Rio de Janeiro: UFF, 2005.

548
AS ESTRUTURAS MENTAI S NA IDADE
MÉDIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DE
‘TRISTÃO E ISOLDA’
CÉSAR AQUINO BEZERRA

INTRODUÇÃO

O período da história europeia conhecido como Idade Média é


marcado por preconceitos e visões equivocadas. Segundo Daniela
Buono Calainho (2014), as imagens negativas provêm dos
renascentistas, que consideravam que o período entre a Antiguidade
Clássica e o Renascimento, fases de progresso e esplendor, tinha
sido uma fase intermediária, a Idade das Trevas. Essas concepções
perduraram com os iluministas. Uma mudança ocorre no século
XIX, quando os ideais de identidade nacional revisam
favoravelmente a Idade Média. Apenas a renovação historiográfica
promovida no século XX permitiu alterar esses estereótipos, com
novas formas de pensar e escrever a história medieval.

Para analisar a Idade Média, a partir do campo da história das


mentalidades, Calainho propõe as seguintes questões: “De que
maneira viam o mundo ao seu redor? Quais eram seus sonhos,
medos, esperanças, angústias, crenças? O que eles imaginavam?”
(2014, p. 111). Segundo Hilário Franco Júnior (2006), a historiografia
tornou objeto de estudo os sonhos, fantasias, angústias e esperanças
do ser humano ao perceber ser fundamental a compreensão desses
elementos para que seu trabalho, leis e guerras ganhem sentido.
Dessa forma, o presente trabalho propõe-se discutir a mentalidade
medieval através do livro ‘Tristão e Isolda’ (1987).

TRISTÃO E ISOLDA

Os acontecimentos de ‘Tristão e Isolda’ transcorrem entre a queda


do Império Romano e a coroação de Carlos Magno como imperador

549
do Ocidente. Segundo Calainho (2014), Carlos Magno foi coroado
pelo papa no ano 800. Desta maneira, o enredo se enquadraria em
algum momento da Alta Idade Média (séculos V a X). Usando essa
informação, podemos situar a história entre o final do século V e o
século VIII.

Para Márcio da Silva Oliveira (2012), ‘Tristão e Isolda’ é um romance


de cavalaria enquadrado dentro do ciclo arturiano, que transcorre
ao redor do rei Artur e a Távola Redonda. Para Oliveira, as diversas
versões e adaptações nos remetem à questão da autoria
desconhecida, pois possivelmente o mito nasceu a partir de lendas
celtas, recebendo uma forma mais conhecida a partir de autores
normandos, no século XII, e sendo no século seguinte incorporada
ao ciclo arturiano e influenciando outras histórias posteriores.

Brancaflor, irmã de Marcos, rei da Cornualha, se apaixona por


Rivalino, filho do rei de Leônis, e engravida. Órfão, Tristão é criado
pelo escudeiro Gorvenal, que o leva para a corte do seu tio, em
Tintagel. Tristão põe-se ao serviço de Marcos, sem que este saiba
que ele é seu sobrinho, e ganha sua confiança.

Quando os irlandeses cobram da Cornualha um pesado tributo,


Tristão revela sua identidade, e luta com o gigante Morholt. Ele
vence, mas fica ferido mortalmente, e navega sem destino, indo
parar na Irlanda, onde, sem ser reconhecido, é curado pela rainha
Isolda, irmã do gigante, e sua filha, Isolda, a donzela loura.

Tristão regressa, e Marcos quer fazê-lo seu herdeiro. Entretanto, os


barões traidores exigem que o rei se case. Ele encontra um fio de
cabelo louro, e manda procurar a dona dele para ser sua esposa.
Tristão parte em busca de Isolda. Ao chegar, Tristão mata um
dragão que aterroriza o reino, para conquistar o prêmio, que seria a
mão da princesa, mas fica mortalmente ferido, e novamente Isolda o
cura. A donzela descobre a identidade de Tristão, mas mesmo assim
o rei da Irlanda cumpre a palavra e entrega sua filha.

550
A rainha Isolda prepara uma poção do amor, para ser tomada por
Marcos e Isolda, mas a criada Brangia, na viagem para Cornualha,
entrega a poção para Tristão e Isolda, que ficam completamente
apaixonados. Mesmo casada com o rei Marcos, Isolda e Tristão
entregam-se continuamente ao amor, levantando a desconfiança e
denúncias dos barões. A história desenrola-se com as dúvidas de
Marcos e as estratégias dos amantes para escapar do rei.

Porém, através do anão Farcin, os barões descobrem o lugar dos


encontros do casal, e contam ao rei. Isolda o engana, para acreditar
que jamais foi traído. A imprudência dos amantes leva a novas
denúncias dos barões, que tornam a usar Forcin para provar a
traição. Através da artimanha do anão vidente, o rei flagra Tristão e
a rainha. Enfurecido, manda matá-los, mas Tristão consegue
escapar, com a ajuda divina. Isolda é entregue aos leprosos, porém
Tristão a salva, e, com Gorvenal, eles vão morar na floresta.

Após dois anos na floresta, o rei os encontra deitados lado a lado,


com uma espada nua separando seus corpos. Marcos interpreta isso
como sinal da castidade, e não os mata. Ao acordarem, Tristão e
Isolda percebem que foram descobertos e perdoados. Com o fim do
sortilégio que os unira, eles resolvem voltar. Tristão entrega Isolda
ao rei, e este a aceita, mas manda Tristão embora. Isolda precisa
provar sua inocência, com um juramento diante das relíquias dos
santos. Ela monta um artifício, e Tristão se disfarça de leproso, e leva
Isolda nas costas, dada a dificuldade do caminho. A rainha então
jura, diante dos corpos de santos e do rei Artur, que nunca outro
homem além do rei e daquele leproso estiveram no meio de suas
pernas.

Tristão vai servir na Bretanha, e se casa com a Isolda das mãos


brancas. Mas, não consuma o casamento. Seu cunhado, Kaherdin,
descobre o fato, e após conhecer toda a história, viajam para ver a
rainha. Os amantes se reencontram, mas um mal-entendido faz
Isolda desprezar Tristão. Ele retorna desolado para a Bretanha, mas
torna a encontrar sua amada, disfarçado. De volta à Bretanha,
Tristão conhece o gigante Beliagog e constrói uma casa, com

551
diversas esculturas, representando suas aventuras e a figura da
loura Isolda. Tristão é ferido por uma lança envenenada, e pede que
Kaherdin busque a rainha para que o cure.

Isolda foge para salvar seu amado, mas a Isolda das mãos brancas,
que descobrira a verdade, mente para Tristão, fazendo-o acreditar
que sua amada não veio. Tristão desfalece, enquanto Isolda aporta
na cidade. Corre para Tristão, e em sofrimento, também morre.
Kaherdin embalsama os corpos e os envia para Tintagel, onde são
enterrados próximos. Como último sinal do amor que viveram, os
arbustos nos túmulos se entrelaçam fortemente, e não há nada que
os faça se separar.

AS ESTRUTURAS MENTAIS

Para Calainho, a religiosidade é a primeira característica importante


da mentalidade medieval. O sobrenatural tinha importância
significativa, pois o homem medieval via o universo em luta
constante entre as forças do bem e do mal. “Deus e o diabo estavam
em todas as partes, em todas as manifestações concretas da vida”
(2014, p. 112). A dualidade se mostrava em todos os momentos; o
homem precisava atuar com obras positivas para agradar a Deus, e
recebia armas da Igreja para participar dessa luta, com orações,
exorcismos, sacramentos e amuletos.

A primeira vez que vemos no livro essa organização tão poderosa


que moldou a Idade Média é quando Rivalino é aconselhado a
desposar Brancaflor segundo a lei da Igreja, para validar o
casamento, assim como o filho ainda no ventre. Entretanto, poucas
vezes figuras da hierarquia católica são apresentadas na história.
Quando Tristão e Isolda pretendem voltar para Marcos, é o capelão
que lê a carta para os nobres e escreve a resposta. Assim que a
rainha retorna, a corte real é recebida no mosteiro de Saint-Samson.
É a única vez que o livro apresenta o bispo, monges e abades, que
estão devidamente trajados com seus paramentos.

552
Um personagem com mais destaque é o velho eremita, irmão Ogrin,
que habita na floresta. O monasticismo ganhou evidência no
Ocidente durante a Alta Idade Média, com pessoas que se afastavam
da vida comum para contemplar a Deus, primeiro, solitários, em
grutas, desertos e lugares ermos, e depois em mosteiros e conventos.
Segundo Calainho (2014), a primeira ordem monástica importante
do Ocidente surgiu no século VI, com os beneditinos. Ogrin,
todavia, recluso em sua capela, pertence a um momento de busca
individual, em que o monasticismo ainda não estava tão
desenvolvido. O ancião tenta convencer o casal de seus pecados e
chamá-los ao arrependimento. Ele lembra-os da condenação do
mundo futuro, da maldição que os persegue, do castigo que se deve
a quem trai seu senhor. Para que sua alma seja salva, Tristão devia
retornar aquela que casara de acordo com as leis da Igreja.

Em um dos momentos mais importantes da trama, a Divindade e o


espaço sagrado salvam Tristão, que estava a caminho da execução.
Tristão pede para entrar em uma capela, construída à beira do
rochedo, onde algumas pessoas rezavam pelo cavaleiro e a rainha.
Tristão quer rezar pelo perdão de seus pecados, e convence os
guardas a soltá-lo, pois não era respeitoso à sacralidade do ambiente
entrar em cadeias. O herói salta pela janela do vitral, em direção à
morte, mas Deus intervém, fazendo que o vento o salve e aterrisse
em segurança. Os fiéis, que tudo viram, chamam aquilo de milagre.

As peregrinações também são expressões da religiosidade desse


período, “que induziam, na mentalidade medieval, à remissão dos
pecados e a salvação” (CALAINHO, 2014, p. 113). Marcos, ao testar
Isolda, conjectura viajar, em peregrinação e visitar os sítios
sagrados, como um caminho para sua salvação. Tristão, sua esposa e
Kaherdin acompanham a peregrinação dos Sete Santos da Bretanha.
Quando viaja com Kaherdin, para ver a rainha Isolda, eles usam
como desculpa o voto de irem visitar os mosteiros onde se
veneravam os túmulos dos santos da Inglaterra.

Calainho relata que as peregrinações aconteciam a lugares com


relíquias, “instrumentos importantes para a salvação da alma”

553
(2014, p. 113). As relíquias, que podiam ser restos mortais de santos,
dos apóstolos, da cruz de Cristo, etc., punham o fiel em contato com
Deus, para que alcançasse todo tipo de bênçãos. Tristão jura sobre as
relíquias dos santos que levará Isolda como esposa para seu rei. E
quando julgada, para provar sua inocência, Isolda precisa jurar
diante das relíquias dos santos. Ela tem medo, pois não quer atrair o
juízo divino por mentir diante dos objetos sagrados. E é só depois
do artifício, que a rainha jura diante dos corpos de santos, retirados
das igrejas que os guardavam.

A figura do diabo, de importância significativa na mente medieval, é


mencionada quando os barões traidores creditam ao diabo as
conquistas de Tristão: como o jovem derrotara Morholt, saíra em um
barco sem remo e vela e voltara curado de uma doença mortal?
Tudo seria resultado de pacto com demônios. Brangia também
culpa ao diabo por tê-la induzido a servir a poção mágica. Ainda
que não tenha tanta força quando terá na Baixa Idade Média, com
suas representações, quase onipotência e majestade, a figura
demoníaca exercia considerável influência no pensamento cristão no
período da lenda.

Outra noção marcante da mentalidade medieval é a contratualidade,


na qual as relações feudais eram baseadas. O exemplo mais claro
desse contrato pessoal é a relação de suserania e vassalagem. Os
nobres se punham ao serviço de outros, como Rivalino, que serve ao
rei Marcos. Quando Tristão desafia Morholt, o rei entrega-lhe como
símbolo de investidura, uma espada da família. Tristão reluta em
entregar-se ao amor por Isolda, procurando honrar o juramento feito
ao seu suserano, sendo nessa sociedade “a fidelidade pessoal
extremamente importante, mais até do que os laços familiares”
(CALAINHO, 2014, p. 57). Ogrin, depois, tem como certo que Deus
castigaria o vassalo Tristão por trair seu suserano.

Parte dos deveres do vassalo era o apoio militar ao seu suserano.


Porém, quando um tocador de harpa irlandês ameaça Marcos,
nenhum de seus vassalos se dispõe a lutar por seu rei e assegurar a
permanência da rainha. Em outras ocasiões, estes mesmos barões se

554
insurgem contra o rei, ameaçando-o, o que resultava em Marcos
ceder à vontade deles. Ou seja, alguns dos nobres na corte não
demonstravam o grau de fidelidade e dependência que deveriam
marcar as relações entre suseranos e vassalos.

Calainho afirma que “a mentalidade do homem medieval associava


simbolismos variados” (2014, p. 117). Um exemplo disto é Marcos
encontrar uma espada desembainhada entre os amantes. Ele lembra-
se que os clérigos dizem que esse símbolo representa a castidade, e o
rei acredita na inocência dos infiéis. No fim do livro, o simbolismo
do amor, tão forte a ponto de transcender a morte, é retratado
quando os arbustos nos túmulos se entrelaçam e não se separam.

O último aspecto das estruturas mentais medievais é exposto por


Calainho através do imaginário fantasioso. Especialmente marcante
são as criaturas míticas. Os gigantes estão presentes em diversos
momentos, como Morholt, que cobra os tributos pela Irlanda, e
Beliagog, vizinho das terras do sogro de Tristão. Tristão enfrenta e
mata o mítico dragão, descrito como um monstro com corpo com
partes de diversos animais e soltando rajadas de fogo.

A magia também é encontrada, primeiro na lança envenenada de


Morholt, enfeitiçada por sua irmã, uma feiticeira experiente. Depois,
Tristão lembra-se dos contos celtas, sobre fadas e seres mágicos que
curavam com seus encantos, e por isso decide lançar-se em uma
viagem sem destino, esperando encontrar a cura. É com espanto que
Tristão vê sua aventura no mar coincidindo com sua cura pela
mesma feiticeira, a rainha Isolda. É essa rainha que procura a magia
para assegurar a felicidade de sua filha e o futuro esposo, criando
uma poção do amor. O feitiço, misturado em vinho, garantiria que
quem o tomasse seria tão tomado pelo amor pelo período de três
anos que não aguentaria afastar-se da pessoa amada. A rainha
entrega a poção do amor para Brangia para que a servisse a Marcos
e Isolda. Mas, Brangia tem a ideia de dar aos jovens o vinho mágico,
que no mesmo instante são tomados pelo amor e desejo um pelo
outro. Segundo seu propósito, o feitiço funciona exatamente durante
três anos.

555
Outro usuário da magia é o anão corcunda Frocin, que usa seu
conhecimento dos astros e estratégias para provar a traição de
Tristão e Isolda. Em duas ocasiões também, Tristão usa ervas
mágicas para disfarçar seu rosto e ver Isolda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos neste trabalho, que não se pretende exaustivo, seguir os


nortes apontados por Calainho (2014), em nossa proposta para
analisar a Idade Média, a partir da mentalidade medieval, em
diálogo com ‘Tristão e Isolda’ (1987). Franco Júnior considera
necessário a análise do pano de fundo mental “para se ver em
profundidade as motivações e os moldes da história econômica,
política, social e cultural” (2006, p. 138).

A primeira estrutura mental, a religiosidade, torna-se clara, como


afirma Calainho, pois “Deus e o diabo estavam em todas as partes,
em todas as manifestações concretas da vida” (2014, p. 112). A todo
instante, os homens e mulheres da lenda ligam seus pensamentos e
ações à divindade. A ideia de que Deus julgará a todos está sempre
presente, sendo Ele que tem misericórdia do casal condenado,
permitindo que fiquem livres, ou com Ogrin, que liga o castigo
vindouro à desobediência pela infidelidade às leis da Igreja e ao
suserano. Após o juramento de Isolda, todos esperavam por algum
sinal, pois não há espaço para dúvidas de que Deus se manifestaria
com castigo iminente.

Entretanto, observamos que mesmo sendo tão poderosa, a Igreja


Católica não exerce tanto controle no decorrer da história, pois há
espaço para uma relação com o sobrenatural que não se pauta
apenas pelo que a Igreja ensina, como a confiança em que Deus
sempre ajudará o casal adúltero. Apesar de ser a única instituição
que sobreviveu ao fim do Império Romano, e que se tornou
hegemônica, percebemos que sua influência ainda está em
desenvolvimento. A resposta para isso pode estar no fato dos
eventos de ‘Tristão e Isolda’ se situarem antes da ascensão de Carlos

556
Magno, quando as relações entre o reino franco e a Igreja se
fortalecem. Essa aliança entre Estado e Igreja influenciaria ainda
mais a vida medieval no fim da Alta Idade Média e principalmente
na Baixa Idade Média, “apogeu da Cristandade Ocidental”
(CALAINHO, 2014, p. 93).

Mesmo que os servos sejam destaque no decorrer do livro, como


Brangia, é principalmente na relação entre nobres que se atém a
noção de contratualidade. É notório que apesar de seus juramentos
de lealdade, os barões apresentam durante todo o livro rebeliões
contra seu suserano, por este não fazer suas vontades. Podemos
perguntar se isso realmente acontecia, tendo em vista as relações
feudais basearem-se na fidelidade e dependência, ou se foi apenas
um recurso literário, usado para nos identificarmos com os
protagonistas, que precisam enfrentar nobres invejosos para
poderem viver seu amor.

Os simbolismos também definem sua presença na mentalidade


medieva, principalmente quando encontramos Marcos, pronto a
matar o sobrinho e a esposa infiel, ser paralisado pela lembrança do
ensino dos sacerdotes, que a espada nua é sinal de pureza. Isso é
forte o suficiente para o rei desistir da vingança, mesmo com tudo
que já tinha acontecido.

A última característica das estruturas mentais tratadas por Calainho,


o imaginário fantasioso, é intrínseca à lenda. Os personagens
míticos, como Morholt e o dragão, são essenciais para o
desenvolvimento da história. Nos dois casos, Tristão vence o
inimigo mais poderoso, fica mortalmente ferido, e é salvo pela
donzela loura. A magia também tem seu papel no romance, pois
Tristão é ferido por uma lança enfeitiçada, sai à deriva esperando
uma cura mágica, o casal se apaixona pela poção do amor, e são
descobertos pelo anão.

O trágico romance medieval, até os dias hodiernos, tem encantado


gerações, além da literatura, encontrando ainda lugar na ópera, no
teatro e no cinema. Através de sua análise também, com a História

557
das Mentalidades, é possível nos aprofundarmos no conhecimento
de uma época da história humana ainda marcada por preconceitos,
mas que se torna assim mais conhecida para o homem moderno.

REFERÊNCIAS

César Aquino Bezerra é Acadêmico do Curso de Licenciatura em


História da Universidade do Estado do Amazonas – Centro de
Estudos Superiores de Parintins. Pesquisador do Grupo de Estudos
Históricos do Amazonas (GEHA). E-mail:
cesaraquinobezerra@gmail.com

CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do


Ocidente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média – nascimento do


Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.

OLIVEIRA, Márcio da Silva. Tristão e Isolda: aspectos do trágico e


da tragédia grega no romance de cavalaria medieval. Anais da
Jornada de Estudos Antigos e Medievais. 2012. Disponível em
http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2012/pdf/j-q/27.pdf.

TRISTÃO e Isolda. Trad. Maria do Anjo Braamcamp Figueiredo.


Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.

558
EVANGELIZAR POR MEIO DA
EDUCAÇÃO: OS IRMÃOS MARISTAS
EM CANUTAMA
CÉSAR AQUINO BEZERRA

INTRODUÇÃO

A Igreja Católica, a partir do Concílio de Trento, lançou-se ao


desafio de recristianizar a sociedade, e a educação tinha um papel
fundamental para alcançar esse objetivo (PARRILHA, 2016). No
Brasil, a influência e a presença da Igreja também marcaram a
história da educação. A Companhia de Jesus dirigiu o programa
educacional na América Portuguesa, com o projeto de expandir a
religião católica nas novas terras. A educação confessional toma
forma e cresce nos séculos seguintes, alcançando maior importância
durante o Império, principalmente por causa das limitações do
Estado. Mas, é na República, segundo Alessandra Parrilha (2016),
que haverá sua maior consolidação, com o advento das
congregações religiosas, em meio às lutas da Igreja para manter seu
domínio na educação e cristianizar a sociedade, especialmente após
a separação entre Igreja e Estado.

Uma das muitas congregações religiosas que se lançaram a essa


cruzada alfabetizadora foram os Irmãos Maristas. Da França, em
1817, o Instituto dos Irmãos Maristas espalhou-se pelo mundo,
educando e evangelizando, para formar bons cristãos e virtuosos
cidadãos. Os Maristas intentam “promover a educação de
qualidade, somando-se aos vários esforços já empreendidos por
alguns setores da Igreja e do Estado” (GUTEMBERG, 2009, p. 251).

Este artigo surge a partir da obra de Sebastião Antônio Ferrarini,


“Irmãos Maristas em Canutama (1973-1999)” (Edições Loyola, 2000).
O paranaense Ferrarini formou-se em Ciências Sociais pela PUC-SP
e lecionou em várias partes do Brasil. Ingressou nos Irmãos Maristas

559
em 1967, e exerceu atividades na região do rio Purus, Amazonas, a
partir de 1975, como educador e evangelizador, além de
memorialista do Instituto Marista e das cidades do Purus. Na
apresentação do livro, o propósito e o que a própria comunidade
Marista espera do livro são revelados: a obra beneficiaria não apenas
os Maristas, que celebravam seu Jubileu de Prata na cidade de
Canutama, mas, principalmente, aos próprios cidadãos que teriam
sua história preservada.

A escolha do presente tema parte do envolvimento do autor com a


Escola Estadual Eduardo Ribeiro, dirigida pelos Maristas em
Canutama, no centro da cidade. Foi o local onde cursou o ensino
fundamental, nos últimos anos da atividade dos Irmãos na cidade.
Entretanto, a relevância desta pesquisa não é apenas o interesse
particular pela história da pequena cidade do interior amazonense,
mas enquadra-se na conjuntura das ações das congregações
religiosas no Brasil. Além disso, se o historiador procura por tudo
que o homem fez, não há irrelevância na presente investigação, que
apresentará aos cidadãos canutamenses parte de sua trajetória
histórica, ainda não investigada, especialmente no período de três
décadas da atuação Marista. Da mesma forma, procuramos suprir
uma das lacunas na historiografia a respeito da história
amazonense, tendo em vista que Ferrarini é o único autor conhecido
a tratar da história, não só dos Irmãos Maristas no Purus, mas de
Canutama e das demais cidades vizinhas.

A delimitação em analisar os religiosos Maristas, atende ao


conhecimento da atuação da Igreja Católica na educação brasileira,
não só em grandes centros populacionais, mas sua contribuição no
esquecido interior brasileiro. Ferrarini, como defensor do seu
Instituto, intenta desvelar a importância dos Irmãos Maristas para a
educação em Canutama, destacando a atuação em um ensino
precário, com imensas dificuldades, atividade na vida paroquial e
envolvimento com a população.

560
OS IRMÃOS MARISTAS

Os Irmãos Maristas são um instituto autônomo e de direito


pontifício, aprovado pelo Vaticano. Em seu bicentenário, conforme a
Rádio Vaticano (2017), mais de três mil Maristas encontravam-se em
81 nações, divididos em 27 unidades administrativas, e, com a ajuda
de 72 mil leigos, alcançavam aproximadamente 654.000 crianças e
jovens estudantes. Nas palavras da Rede Marista (2019), sua missão
é “colaborar na construção de um mundo mais humano por meio da
educação e da evangelização”.

O fundador e patrono dos Irmãos Maristas é São Marcelino


Champagnat (aportuguesamento de Marcelin Joseph Benoit
Champagnat). Segundo a União Marista do Brasil (2017),
Champagnat nasceu em 20 de maio de 1789, em uma região rural da
França, e “experimentou uma educação escolar degradada”, que o
teria marcado. Fez o seminário em Lyon, onde percebeu ser
necessário “formar religiosos educadores capazes de dar uma nova
resposta à situação da juventude que estava mergulhada na
ignorância, abandono moral e social”. Foi ordenado padre em 1816,
e designado vigário de La Valla. Assim, “fazendo a leitura de seu
tempo e tomando uma atitude corajosa”, o jovem padre fundou a
Congregação dos Irmãozinhos de Maria, em 2 de janeiro de 1817,
formando educadores religiosos, que depois enviou para o ensino
de crianças e adultos na paróquia. Inaugurou uma escola primária, e
depois uma casa de formação, gerando novas escolas primárias.
Com o reconhecimento da Igreja Católica, em 1836, os Maristas
iniciaram sua expansão para outros países. Champagnat faleceu em
6 de junho de 1840, e foi canonizado em 18 de abril de 1999, pelo
Papa João Paulo II.

OS MARISTAS NO BRASIL

Os Irmãos Maristas estabeleceram-se no Brasil em 1897, em


Congonhas do Campo, Minas Gerais, com o propósito de “formar
bons cristãos e virtuosos cidadãos”, espalhando-se pelo país
(FERRARINI, 2000, p. 7). De acordo com a Rede Marista, o Brasil

561
abriga mais de 30% da atuação mundial marista. Segundo o que
identificam como sendo seu carisma para a Igreja, os Maristas
brasileiros se propõem a levar a vida e a evangelização através “da
educação, da solidariedade e da promoção e defesa dos direitos de
crianças, adolescentes e jovens, contribuindo para uma sociedade
justa e solidária nos diversos contextos e públicos” (UMBRASIL,
2019). Estão presentes em 98 cidades brasileiras, com 3 mil Irmãos,
mais de 27 mil colaboradores, e atendendo mais de 650 mil pessoas.
Em 2005, foi criada a União Marista do Brasil (UMBRASIL), com
sede em Brasília/DF, associação das unidades administrativas
brasileiras, denominadas Províncias Maristas: Centro-Norte, Sul-
Amazônia (Rede Marista) e Centro-Sul (Grupo Marista).

A Província Rede Marista, surgida no Rio Grande do Sul, expandiu-


se, alcançando também a região amazônica, estando presente em
Boa Vista (Roraima), Cruzeiro do Sul (Acre), Manaus, Tabatinga e
Lábrea (Amazonas). Desta forma, “a presença marista percorre
comunidades nativas, regiões ribeirinhas e a imensidão de rios,
lagos e florestas desse riquíssimo universo de biodiversidade”. Em
sintonia com a Igreja Católica na Amazônia, buscam “uma ação
inculturada em meio às crianças, jovens e famílias, preservando seus
valores, superando limitações, defendendo a vida em plenitude em
todas as suas formas” (REDE MARISTA, 2019).

OS MARISTAS CHEGAM A CANUTAMA

Sebastião Ferrarini (2000) relata que os Irmãos Maristas chegaram a


Lábrea em 1967, em Canutama em 1973, e em Tapauá em 1974; as
três cidades situam-se às margens do rio Purus. Destacando a
harmonia com a estrutura católica da região, considera que o
trabalho marista está dentro dos limites da Prelazia de Lábrea,
administrada pelos padres agostinianos recoletos (FERRARINI,
1980; 2000). Erigida em 1925, a Prelazia de Lábrea compreende as
paróquias de Nossa Senhora de Nazaré em Lábrea (sede), Santa Rita
de Cássia em Tapauá, Santo Agostinho em Pauini e São João Batista
em Canutama, esta instalada em 1897.

562
Canutama é um município da mesorregião Sul Amazonense, da
microrregião Purus, distante 615 km da capital amazonense. A
população em 2014 era de 14.944 habitantes, em uma área de
29.819,70 km². Seu fundador é Manoel Urbano da Encarnação, que
iniciou o povoado conhecido como Nova Colônia de Bela Vista. Em
26 de maio de 1879, o presidente da província do Amazonas criou a
freguesia de Nossa Senhora de Nazaré. Em 10 de outubro de 1891, o
governador do estado eleva a freguesia à vila, sendo instalada em 10
de setembro de 1892 (FERRARINI, 1980).

As primeiras escolas do baixo Purus foram criadas ainda no


Império, em 1877 (FERRARINI, 2000). Em 1880, uma lei provincial
criou mais cinco escolas de ensino primário, uma inclusive na
freguesia de Nova Colônia da Bela Vista. Com o aumento da
produção de borracha, outra escola foi aberta na região de
Canutama. Com o governador Eduardo Ribeiro, foi criada uma
escola mista em 1891. Após a instalação, a administração dessas
escolas foi passada ao município. O pároco Frei Isidoro Irigoyen,
nomeado em 1942, iniciou a construção de um prédio escolar, em
1957. Devido à carência escolar, as séries iniciais foram abertas antes
do término da construção. O então Colégio foi batizado em agosto
de 1967 como Educandário Eduardo Ribeiro, em homenagem ao ex-
governador. A situação do ensino canutamense continuava difícil,
com falta de recursos materiais e humanos, ocasionada pelo
isolamento da região.

Após a promulgação da Lei 5.692/71, que implantou o ensino de


primeiro grau, nasce a Escola de Primeiro Grau Eduardo Ribeiro,
em convênio da SEDUC com a Prelazia de Lábrea, em 2 de junho de
1972. Frei Villanueva foi nomeado diretor da escola, então com 132
alunos até a quinta série e 42 no curso noturno do MOBRAL. A
autorização para funcionamento da escola veio em 13 de abril de
1973 (FERRARINI, 2000).

Nesse momento, os Maristas, já trabalhando na cidade de Lábrea,


decidem estabelecer uma “obra assistencial em Canutama”. Os
Irmãos chegaram à cidade em 1º de março de 1973, e no ano

563
seguinte a Prelazia de Lábrea entregou-lhes oficialmente o encargo
pela Escola Eduardo Ribeiro, sendo o convênio assinado em 4 de
fevereiro de 1974 (FERRARINI, 2000, p. 7-8).

Os religiosos passam a morar nas dependências da escola, antes de


passarem a outro local reservado pela paróquia. Devido à
precariedade do ensino, diversas vezes atuam como professores.
Entre suas atividades nesse período, até 1999, Ferrarini aponta:
constroem salas de aula, salão nobre, marcenaria, o Ginásio
Esportivo Marcelino Champagnat (em 1992), a Biblioteca Manoel
Urbano (em 1994), promovem cursos de formação para os alunos
(como datilografia e costura), e formam professores, a partir de 1976,
treinados no magistério em Manaus, especialmente mulheres
(FERRARINI, 2000). O autor também destaca as dificuldades
constantes, como falta de professores, de materiais, de livros, e de
merenda escolar, percebidas a partir de citações dos Anais da
comunidade Marista: “faltam agora seis [professores]” (p. 29), “a
merenda escolar [...] foi a pique” (p. 29), “pela primeira vez, neste
ano, chegou a merenda escolar [...] não vai dar nem para 15 dias” (p.
31), “chegaram os restantes dos livros didáticos [...] muita demora e
atraso” (p. 32).

Os Maristas participam ativamente da vida paroquial, ajudando na


liturgia e catequese, colaborando com os festejos de São João Batista,
encontros vocacionais, auxiliam na ausência dos freis, ou nas
atividades familiares e comunidades de base (FERRARINI, 2000). A
promoção da religião católica acontece inclusive na escola. Alguns
exemplos são a distribuição dos certificados realizada dentro da
igreja, depois da missa, e o momento marial antes do início das
aulas. Sendo atendida pelos mais diversos alunos, percebe-se que
não há uma separação entre a religião e a educação. Um Marista em
visita afirma ter ficado impressionado com a recepção e a influência
benéfica dos irmãos na população, já que a escola é “freqüentada
praticamente por toda a população escolar de Canutama” (idem, p.
35). Um registro diz que Ir. Demétrio Herman, então diretor da
escola, promove os festejos juninos nas salas, e que “muitos
afirmaram ser Santo Antônio brasileiro, cearense, baiano, paulista,

564
paraense... percebe-se a ignorância total sobre Santo Antônio e
outros personagens” (idem, p. 42).

Esses comentários tornam nítidos os dois lados da atuação da


missão marista na Amazônia (GUTEMBERG, 2009): mesmo tendo a
educação como prioridade, os Maristas não são proprietários das
escolas, mas “trabalham em escolas ou universidades públicas ou
conveniadas com o governo e as dioceses” (p. 252); e, além disso,
tem forte atuação nas pastorais, procurando suprir a carência da
Igreja na região.

Seu envolvimento com a população em geral é, enquanto cidadãos


do município, depreendido em outros comentários, tanto de
participação quanto de crítica ao comportamento dos habitantes
(FERRARINI, 2000). Ferrarini apresenta as contradições da
população diante daqueles que procuram o seu bem, os Maristas.
Mesmo quando revela tensões em seu texto, essas são devidas à
incompreensão de autoridades e populares. Assim, indispõem-se
com a juíza que proíbe os alunos de ajudarem na escola (p. 31); mais
adiante, ainda é mostrada a ajuda das crianças no pomar ou na
construção do ginásio (p. 50, 51). No ano de 1985, anotam a chegada
da televisão, a visita do governador, inauguração e primeiro assalto
ao Banco Bradesco (p. 39, 40). Ao saírem nas ruas uma noite, não
veem ninguém, pois todos estavam “pregados na novela ‘Roque
Santeiro’”, com que a Rede Globo “anda narcotizando o povo
simples” (p. 40). Comentam a falta de médico, telefone e pão, bem
como a proliferação de doenças (p. 40-41). No centenário de
Canutama, a escola realizou passeata e comemorou no salão nobre,
enquanto “por parte da Prefeitura não houve nada mesmo para
comemorar os 100 anos da cidade” (p. 41). Maristas e freis chamam
a população para a vacinação infantil (p. 42), mas não são totalmente
atendidos. Ainda destacando suas ações sociais, os anais registram
que, com a enchente de 1974, bem como em outros anos, a escola
“suspende as aulas e agasalha as primeiras famílias refugiadas”. A
comunidade marista também financia a instalação de energia
elétrica em uma residência, realiza mutirão para construir casa para

565
um pobre, e compram motor de rabeta para dois indivíduos com
hanseníase (p. 50, 51).

Ferrarini relata que, até o jubileu, 25 Irmãos Maristas serviram em


Canutama. Seguindo a Frei Villanueva, oito Maristas foram
diretores da escola (p. 54). Após três décadas de trabalho, os Irmãos
deixaram a cidade em 2005. A situação da escola, que vinha se
deteriorando por falta de manutenção, se agravou, tendo que ser
fechada em 2013, por risco de desabamento e deterioração do
prédio. Nessa ocasião, o contrato de aluguel com a SEDUC, em voga
desde 1972, se encerrou, e a escola foi devolvida à Prelazia de
Lábrea. Esta então inicia obras de recuperação do prédio,
conseguindo depois recursos estaduais, através de uma indenização.
Dessa forma, a escola foi reinaugurada em 8 de dezembro de 2015.
Segundo informações da Prefeitura de Canutama (2015), 36.070
alunos passaram pela Escola Estadual Eduardo Ribeiro entre 1972 a
2013.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Instituto Marista e suas ações devem ser compreendidos dentro


da conjuntura do conflito entre a Igreja e o Estado laico. A França de
Champagnat experimentava os efeitos da Revolução Francesa,
laicizando-se, inclusive no sistema educacional, excluindo a Igreja
de suas antigas posições de poder. E a fundação dos Maristas
enquadra-se dentro dessa tentativa da Igreja Católica de
reconquistar sua hegemonia na educação (PARRILHA, 2016).
Segundo seus biógrafos, o fundador do Instituto percebia a
educação como elemento singular para o desenvolvimento integral
do ser humano e a transformação do mundo (REDE MARISTA,
2019). Quanto ao Brasil, o estabelecimento dos religiosos se deu após
o fim do regime monárquico e a separação entre Igreja e Estado,
promovidos pela República. Nesse contexto, de evangelização da
sociedade através da educação, que essa chegada ao Brasil deve ser
analisada.

566
A identidade católica é indissociável das ações do Instituto, o que se
expressa na avalição positiva da Igreja Católica sobre a atuação
Marista dentro da esfera educacional. Dentro das comemorações do
bicentenário, durante um encontro do Superior Geral, Irmão Emili
Turú, e seu líder máximo, o Papa Francisco, em 10 de abril de 2017,
o pontífice os instou “a continuar promovendo a vocação laical”, e
também valorizou a “extraordinária importância da educação das
crianças e jovens e insistiu no fato que a escola continua sendo um
lugar privilegiado para essa educação” (IRMÃOS MARISTAS, 2017).
O reconhecimento da importância do Instituto e do seu trabalho foi
igualmente dado no Amazonas. Em 2016, os irmãos Sebastião
Ferrarini e Demétrio Herman receberam o Título de Cidadão do
Amazonas, da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, pelo
trabalho educacional realizado no estado. Herman trabalhou como
diretor da Escola Estadual Eduardo Ribeiro, a partir de 1994
(FERRARINI, 2000), sendo o último dos Maristas a atuar nessa
função, até os primeiros anos do século XXI.

Uma das discussões que podem ser levantadas é a abrangência


social da educação Marista. Gutemberg (2009, p. 252) diz que “as
comunidades maristas procuram ser inseridas na grande
comunidade do povo”, e em sua missão na Amazônia, buscam
“inserir-se em realidades sociais necessitadas, capacitar as
lideranças locais e migrar para outras fronteiras sociais mais
carentes”. Entretanto, trabalhos que estudam a ação pedagógica
Marista, como o de Andressa Parrilha (2016), buscam desvelar seu
caminho da educação aos pobres à educação elitista, determinada
pelo sistema capitalista.

Este artigo voltou-se aos textos de Ferrarini, mas, para melhor


compreensão das experiências da sociedade canutamense a respeito
da atuação Marista, abre-se a possibilidade para consulta a Anais da
comunidade Marista, livros de tombo da Paróquia São João Batista,
pesquisas bibliográficas e a realização de entrevistas. Neste caso, é
necessário o uso da metodologia da história oral, que garante “o
registro de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ e,
dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do passado”

567
(ALBERTI, 2014, p. 155). Entrevistar e gravar Irmãos Maristas,
professores e funcionários da Escola Eduardo Ribeiro, e outros
indivíduos, que tenham participado ou testemunhado
“acontecimentos e conjunturas do passado e do presente” (idem),
permitiria revelar essas experiências, dentro de suas perspectivas,
bem como as relações e tensões entre a comunidade dos religiosos e
a comunidade ao seu redor. O presente trabalho, por suas
militações, deseja inspirar pesquisas que alcancem essa atuação
Marista em Canutama.

Por mais de três décadas, os Maristas participaram ativamente do


lócus da pesquisa, a Escola Estadual Eduardo Ribeiro e a sociedade
canutamense, dentro do projeto católico de inserção na sociedade,
através da evangelização pela educação. Seu impacto atravessou a
escola que dirigiram, alcançando milhares de alunos, na tentativa de
formar bons cristãos e virtuosos cidadãos, seguindo o carisma
Marista.

REFERÊNCIAS

César Aquino Bezerra é acadêmico do Curso de Licenciatura em


História da Universidade do Estado do Amazonas – Centro de
Estudos Superiores de Parintins. Pesquisador do Grupo de Estudos
Históricos do Amazonas (GEHA). E-mail:
cesaraquinobezerra@gmail.com

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla


Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO


AMAZONAS. Irmãos Maristas recebem homenagem por
dedicação a educação no Amazonas. Disponível em
http://www.ale.am.gov.br/2016/04/06/irmaos-maristas-recebem-
homenagem-por-dedicacao-a-educacao-no-amazonas/. Publicado
em 06 de abril de 2016. Acesso em 09 de junho de 2017.

CANUTAMA. Disponível em http://www.canutama.am.gov.br/.


Acesso em 17 de junho de 2017.

568
FERRARINI, Sebastião Antônio. Canutama – conquista e
povoamento do Purus. Manaus: Edições Governo do Estado do
Amazonas, 1980.

FERRARINI, Sebastião A. Irmãos Maristas em Canutama (1973-


1999). São Paulo: Loyola, 2000.

GUTEMBERG, João. Missão Marista na Amazônia. Rev. Pistis Prax.,


Teol. Pastor., Curitiba, v. 1, n. 1, p. 251-252, jan./jun. 2009.

IRMÃOS MARISTAS. Ir. Emili Turú fala do encontro com o Papa


Francisco. Disponível em
http://champagnat.org/400.php?a=6&n=4299. Publicado em 17 de
abril de 2017. Acesso em 09 de junho de 2017.

PARRILHA, Andressa Messias. A Educação Marista no Brasil:


origens, implantação e conflitos. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Pedagogia) – Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, 2016.

569
CONSIDERAÇÕES SOBRE UM
DIÁLOGO ESSENCIAL: OS MANUAIS
ESCOLARES COMO VESTÍ GIOS À
HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS
ESCOLARES
FELIPE AUGUSTO DOS SANTOS VAZ

A história das disciplinas escolares enquanto campo de pesquisa

Por muito tempo desprezada enquanto campo investigativo, a


história das disciplinas escolares passou a despertar o interesse por
parte dos intelectuais apenas no decorrer da década de 1970 - num
contexto profundamente marcado pelos entusiasmos que
desencadearam uma série de problematizações acerca dos aspectos
que permeavam o campo educacional.

Decerto, buscando promover uma nova forma de olhar para a escola


do passado - “(...) permitindo perceber que a história da educação
vai além da história dos ideários e dos discursos pedagógicos”
(SOUZA JÚNIOR; GALVÃO, 2005, p. 393) -, estas problematizações
impulsionaram, "(...) em diferentes países quase que
simultaneamente (...)” (Ibid, p. 393), significativos debates – cujos
propósitos trouxeram à tona "(...) a gênese e os diferentes momentos
históricos em que se constituem os saberes escolares, visando
perceber a sua dinâmica, as continuidades e descontinuidades no
processo de escolarização" (BITTENCOURT, 2003 apud Ibid, p. 393).

Destes debates, duas vertentes se destacaram como as mais


significativas: aquela que, desenvolvida por Yves Chevallard, toma
a disciplina escolar como resultante de uma transposição didática;
tal como aquela que, pensada por André Chervel, a considera como
fruto de um conhecimento relativamente autônomo.

570
Com efeito, quando analisada detalhadamente, a explícita diferença
entre estas perspectivas desvela, em certa medida, a complexidade
que marca os argumentos que cada qual produz. Atentando-se à
primeira dessas vertentes, para Chevallard a transposição era
compreendida como a transformação do conhecimento erudito em
conhecimento escolar – processo que se desencadearia em diferentes
níveis e instâncias. Nesse sentido, o saber que compõe a disciplina
seria visto como algo elaborado no âmbito externo à escola, cabendo
ao professor a necessidade de melhor adaptá-lo, tornando-o mais
assimilável aos alunos.

Não tardaria para que uma série de críticas passasse a se


desencadear em relação a tais colocações. Estabelecidos por
intelectuais como André Chervel, Ivor Goodson, Antônio Viñao
Frago e tantos outros, estes pareceres denunciavam o exercício de
vulgarização do conhecimento que a transposição didática acabava
por colocar em prática. Para além, eles evidenciaram a
responsabilidade depositada sobre o ofício docente acerca do
sucesso ou fracasso da transmissão dos saberes, bem como
destacaram o fato de tal lógica interpretar a escola apenas como um
"(...) lugar de recepção e de reprodução do conhecimento externo,
variando sua eficiência pela maior ou menor capacidade de transpô-
lo e reproduzi-lo adequadamente” (BITTENCOURT, 2008, p. 37).

Além de se disporem a apresentar tais considerações, certo é que os


críticos da transposição didática também propuseram outras leituras
sobre a formação e legitimação do conhecimento das matérias
escolares. André Chervel, por exemplo, tomado como referência
básica a muitos outros historiadores que se dispõem a investigar as
historicidades das disciplinas, evidenciou que estas podem ser
interpretadas como produtos das próprias experiências cotidianas
que pautam a cultura escolar - engendrada no interior das escolas de
maneira complexa e relativamente autônoma.

Essa relatividade se pautaria pelo fato de as instituições escolares se


apresentarem emancipadas em relação à academia, mas, ainda

571
assim, se encontrarem submetidas às disputas estabelecidas no
âmbito do social.

Tais disputas, protagonizadas por diferentes sujeitos inseridos, cada


qual, em um lugar de poder específico, se justificam pelos anseios
em autenticar determinados objetivos às escolas - ratificando,
concomitantemente, certos modelos de cultura. Ademais, deve-se
pontuar que tais modelos carregam consigo um conjunto de
representações e práticas que visam autenticar determinadas visões
de mundo que, então, seriam propagadas por meio das instituições
de ensino.

Sem dúvida, este processo de difusão é observado quando das


práticas docentes em sala de aula – que, assim como a escola,
manifestam uma relativa autonomia. Tal situação se esboça, por
exemplo, quando das apropriações que determinados professores
fazem dos conteúdos apresentados pelos currículos oficiais – objetos
que pretendem corroborar certas noções sobre a realidade, mas que
nem sempre são trabalhados da forma como seus elaboradores
esperavam que o fossem.

Estas apropriações, que constituem aquilo que Sacristán (2013)


compreende como "currículo real” variam conforme as percepções
que os docentes possuem acerca de suas experiências em sala de
aula – produzindo, assim, novos sentidos e pensando, certamente,
novas fins ao ensino e à escola.

Tais finalidades, que perpassam tanto os programas curriculares


prescritos quanto os reais, podem ser compreendidas como uma
totalidade composta pelos vínculos entre as “finalidades de
objetivo” e as “finalidades reais” - que, com efeito, corroboram a
definição dos próprios propósitos que as disciplinas escolares têm
em si.

Interpretados por Circe Bittencourt como resultado da articulação


entre os objetivos educacionais gerais e os objetivos instrucionais
específicos, estes propósitos estabelecem “(...) uma teia complexa na

572
qual a escola desempenha o papel de fornecedora de conteúdos de
instrução (...)” (BITTENCOURT, 2008, p. 42)

Tais conteúdos tem origem nas próprias matérias escolares e podem


ser interpretados, segundo Chervel, como o elemento de maior
relevância na constituição de uma disciplina. Pautado por um "(...)
corpus de conhecimentos providos de uma lógica interna,
articulados em torno de alguns temas específicos, organizados em
planos sucessivos claramente distintos e desembocados em algumas
idéias simples e claras (...)” (Chervel, 1990, p. 203), eles também
garantem a distinção entre o aprendizado escolar e as outras formas
de aprendizagem - uma vez que, para isso, necessitam de
determinados métodos que garantam seu ensino.

Compreendido como outro elemento significativo e integrante da


disciplina escolar, os métodos de ensino-aprendizagem podem ser
definidos como um "(...) conjunto de ações, passos, condições
externas (...)" (PIMENTA; CARVALHO, 2008, p. 9) as quais
viabilizam os delineamentos do diálogo entre docentes e discentes -
"(...) ou ainda, do mundo adulto com as novas gerações, com o nível
de interesse e motivação dos alunos" (BITTENCOURT, op. cit., p.
43).

Tal motivação encontra respaldo no processo de seleção do


conteúdo realizado pelo professor, que busca textos e narrativas que
possibilitam ao aluno se "(...) engajar espontaneamente nos
exercícios nos quais ele poderá expressar sua personalidade"
(CHERVEL, 1990, p. 205). Para além, pontua-se que alguns
destes alguns exercícios apresentam, de acordo com Chervel, um
regime próprio de especialização, concebido em vista da
indispensabilidade em se empregar certas formas de avaliação do
conhecimento adquirido.

Interpretadas como outro constituinte fundamental de uma


disciplina, tal como meios nos quais se situa o maior poder de
controle por parte dos professores, as avaliações manifestam uma
significativa variabilidade, pois são pensadas de maneira

573
concomitante "(...) com um tipo determinado de compreensão da
disciplina escolar: tem certas características se a disciplina escolar é
entendida apenas como transmissora de conteúdos, e outras se a
disciplina escolar é concebida como produtora de conhecimento"
(Ibid, p. 44).

Contudo, não obstante esta sujeição dos métodos avaliativos em


relação aos modos pelos quais as matérias são organizadas, certo é
que, quase sempre, elas podem interferir de maneira significativa na
manutenção ou mesmo nas mudanças que incidem sobre os dois
principais elementos que compõem aquilo que Chervel (1990)
considerara como o núcleo de uma disciplina: os conteúdos e
métodos - estando tais componentes intrinsecamente articulados
com o próprio conceito de aprendizagem.

Para mais, ressalta-se que este núcleo disciplinar legitima não


apenas a construção, mas também as permanências das matérias
escolares - que, apesar de estabelecerem determinados mecanismos
de perpetuação, se valem, do mesmo modo, de outros meios que
corroboram, no mais das vezes, a tal permanência: como, por
exemplo, através dos livros didáticos.

Os manuais escolares e a história das disciplinas escolares

Objetos de cultura complexos, pautados por uma série de


interferências, os livros didáticos carregam consigo um conjunto de
determinadas representações do mundo social. Depositários de uma
significativa centralidade nas práticas pedagógicas; bem como
importantes dispositivos de normalização da cultura, estas
ferramentas de ensino são podem ser encarados como mercadorias
de uma pujante indústria cultural, direcionada a atender um nicho
específico do mercado - mais precisamente, do mercado escolar.

De certo modo, estas considerações apenas sustentam seus sentidos


quando incluímos a análise destes instrumentos “(...) no âmbito
mais amplo da história das disciplinas (...)" (FRAGO, 2008, p. 192) -
cujas reflexões estabelecem estreitas relações com o domínio de

574
investigação, intitulado por Alain Choppin, como a história dos
livros e das edições didáticas.

Marcadas por um eminente diferencial no grau de influência que o


campo das disciplinas escolares exerce sobre o dos estudos ligados
aos livros didáticos, estas relações colocam em evidência que a
história das edições didáticas não apresenta, na plenitude de seus
aspectos, vínculos estáveis com a história das disciplinas - que, por
seu turno, opera em sua totalidade, maior domínio sobre as
investigações acerca dos manuais escolares.

Em certa medida, estes apontamentos acabam por justificar o


repúdio à "(...) idéia de que a história de uma disciplina se reduz, no
que se refere à análise de seus conteúdos, à dos manuais utilizados
em seu ensino (...)", ou então, a noção de que seja plausível "(...)
fazer a história de uma disciplina sem analisar seus livros de texto
ou o material empregado em seu ensino" (Ibid, p. 192).

Por certo, este último apontamento dispõe de uma profunda


insustentabilidade graças ao fato de os livros didáticos
apresentarem, conforme já pontuado, o corpus de conhecimentos
que determinam o conteúdo de uma disciplina, bem como
os exercícios por elas definidos - comportando-se, então, como
fontes fundamentais à sua compreensão, dado que se pautam como
importantes veículos à sua difusão e perpetuação.

Contudo, torna-se válido lembrar que esta perenidade não deve ser
compreendida, única e exclusivamente, como resultante da
capacidade que os manuais didáticos apresentam na transmissão
dos conteúdos disciplinares - afinal, a própria disciplina concebe
certos mecanismos que auxiliam ao processo de sua preservação.
Promovendo a criação de determinados modelos, cujas bases
servirão de molde à produção das obras didáticas, tem-se que tal
circunstância apresenta aquilo que Chervel (1990) intitulara como
“fenômeno de vulgata”, o qual os

575
“(...)manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase
isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleção de
rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimentos,
mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados
são idênticos, com variações aproximadas” (CHERVEL, 1990, p.
203).

De certa forma, a julgar por estas reflexões, se por um lado o livro


didático transmite, de maneira repetitiva, os conteúdos e os
exercícios de uma determinada disciplina - cuja vulgata acaba por se
cristalizar -; por outro, ele também pode suscitar as transformações
consequentes destas variações referenciadas - proporcionando, até
mesmo, a publicação de novos modelos de manuais, depositários
dos novos prismas estabelecidos pela nova vulgata.

Compreender os aspectos que delineiam estas vulgatas e,


concomitantemente a isso, dos livros escolares “(...) permite
acompanhar as transformações no campo pedagógico e as
tendências metodológicas que, em diferentes épocas, presidiam os
processos de ensino-aprendizagem” (LUCA, 2006, p. 3) - os quais as
disciplinas escolares figuram pautadas por uma significativa
relevância. Nesse bojo, se estas disciplinas podem ser interpretadas,
segundo Ivor Goodson, como significativos blocos de um mosaico
cuidadosamente construído - que caracteriza o sistema educacional -
, se torna inequívoco considerar que os livros didáticos, por sua vez,
correspondam às massas que justapõem, harmonicamente, tais
blocos. Tomados como verdadeiros indícios da cultura escolar, eles
corroboram às percepções de como o mundo da educação esteve - e
ainda está - organizado.

Referências bibliográficas
Mestrando em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH - Unifesp).

BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2.


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577
MEMÓRIAS DO TRABALHO COM A
JUTA DA COMUNIDADE SÃO
SEBASTIÃO DA BRASÍLI A,
PARINTINS-AM (1950-1980)
EVERTON DORZANE VIEIRA

INTRODUÇÃO

Neste artigo analisamos a história e a memória de ex-trabalhadores


que atuaram no cultivo da juta no período de 1950 a 1980, na
Comunidade de São Sebastião da Brasília, localizada
aproximadamente a 7 km do município de Parintins, no interior do
Estado do Amazonas, região do Baixo Amazonas. Também
buscamos analisar a história das experiências com o trabalho e suas
condições no processo do cultivo da juta a partir da metodologia da
História Oral.

Metodologia essencial para o desenvolvimento deste trabalho, pois


realizamos entrevistas com ex-trabalhadores, que atualmente
moram na comunidade, e por meio dessas narrativas, identificamos
quais foram às atividades laborais diretamente relacionadas à
produção de juta, conhecemos quais foram às condições de trabalho
e percebemos como era a divisão social do trabalho entre homens e
mulheres.

Entrevistamos seis colaboradores da comunidade, nos quais


são: Antônio Soares Ribeiro Filho, conhecido como Pampam e
companheiro de Dona Maria do Rosário dos Anjos Ribeiro; o Sr.
Valdo Monteiro Gama, conhecido na comunidade como Fadô, e sua
companheira, Dona Luzia Cândida da Silva Gomes; e o Sr. Valdino
Jacaúna Franco, conhecido na comunidade como Careca, e sua

578
companheira, Dona Cecília Soares Ribeiro Franco, também irmã do
Pampam.

Com base nestes relatos, nossa intenção é valorizar suas vozes,


iluminar o seu sentido histórico, e através de suas trajetórias de vida
evidenciar quais foram às consequências econômicas do trabalho
deixadas na comunidade para estes homens e estas mulheres no
período do apogeu da produção da juta na Amazônia.

Abordaremos uma breve comunicação sobre a introdução da juta no


município de Parintins; sobre a fundação da comunidade São
Sebastião da Brasília; a importância da história oral para este tipo de
trabalho de pesquisa e as memórias dos ex-trabalhadores da juta da
comunidade, que através dos seus relatos podemos identificar
aspectos que objetivaram nossa comunicação.

A JUTA NO MUNICÍPIO DE PARINTINS

A juta chegou a Parintins por volta da década de 1930, com


imigração japonesa, e a partir deste município, a juta foi
espalhando-se para outros municípios e outros estados do país. Para
Schor e Marinho (2013) “a história da juta em Parintins inicia-se com
a chegada de uma missão, chefiada pelo deputado, Dr. Tsukasa
Uetsuka”. Os autores também afirmam que a viajem do político
tinha por finalidade a escolha de um local em Parintins, cujo
objetivo era “destinado à instalação do núcleo de Kotakuseis (como
eram chamados os alunos diplomados pela Escola Superior de
Colonização do Japão)”. (p. 241).

De acordo com Ferreira (2016), a juta foi uma modalidade crescente


na década de 1930, afirmando que “a partir do êxito de Ryota

579
Oyama em 1934, essa modalidade agrícola não parou mais de
crescer e alcançar novas áreas” (p.145). O autor ainda afirma que
“de Parintins, ela se espalhou por quase todo o Amazonas, Pará, e
em algumas localidades dos estados do Amapá e Espírito Santo” (p.
145). Mas no estado do Amazonas, a juta e posteriormente a malva
foram por um longo período a “atividade responsável por
expressivo percentual na formação da renda do estado”. (p.145).

Os acordos políticos feitos nesses dois estados condizem com vasta


facilidade da imigração japonesa, como argumentado acima.
Ferreira (2016) mostra que “no estado do Pará, um dos maiores
entusiastas da imigração japonesa foi o governador Dionísio Ausier
Bentes (1881-1947)” (p.147). No Amazonas, o autor afirma que “o
protagonismo das ações ficou a cargo do governador Ephigenio
Ferreira de Salles (1926-1930)” (p.147).

A falta de mão de obra era um problema encontrado pelos dois


governadores, e o então presidente Washington Luís decretou na
época a solução pra este problema, afirmando sobre “sanear para
povoar, povoar para prosperar”. Foi através desse mito sobre “terra
sem homens”, que os povos ribeirinhos ficaram cada vez mais
invisíveis (FERREIRA, 2016).

Os autores Ferreira (2016) e Saunier (2003) nos afirmam que o


processo de implantação da juta no Amazonas deu-se por dois
momentos. O primeiro momento foi no período de 1927, com a
assinatura do governador Ephigenio Salles para conceder terra aos
japoneses para cultivação da juta no estado do Amazonas
(FERREIRA, 2016). O segundo momento, foi o processo de saída dos
imigrantes japoneses das terras amazônicas, por conta dos acordos
de Vargas com os norte-americanos, obrigando a retirada dos
japoneses do Brasil, neste período (SAUNIER, 2003).

580
Após a retirada dos japoneses, o negócio com a juta ficou nas mãos
de empresários brasileiros, que no caso do Amazonas, utilizaram
bastante à mão de obra ribeirinha por conta das áreas de várzeas na
qual se localizam as comunidades (FERREIRA, 2016). E uma dessas
comunidades que participou deste ramo de trabalho foi comunidade
de São Sebastião da Brasília, na qual escolhemos o recorte temporal
de 1950 a 1980 no período em que a juta se integrava
gradativamente a comunidade.

COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO DA BRASÍLIA

A comunidade São Sebastião da Brasília está localizada à margem


esquerda do Rio Amazonas, com cerca de 7 km do Município de
Parintins, estado do Amazonas, região do Baixo Amazonas (IBGE,
2010). De acordo com Dom Arcângelo Cerqua, primeiro bispo de
Parintins, esta foi criada oficialmente em 28 de março de 1968, pela
Igreja Católica, por meio da Comunidade Eclesial de Base (CEB),
tinha como missão, reorganizar as localidades rurais a levar
ensinamentos religiosos católicos aos comunitários do interior
(CERQUA, 1980).

Na comunidade São Sebastião da Brasília, iniciamos nossas


entrevistas com o Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho, um dos
moradores mais antigo da comunidade. Antônio é conhecido como
Pampam, e a partir deste momento, mencionaremos Antônio como
Pampam no intuito de valorizar sua história na comunidade. As
comunidades ribeirinhas tem por características utilizar nomes
diferentes no que se referem à personalidade dos seus comunitários.
Assim, cada comunitário, no caso dos homens, são chamados e
conhecidos por apelidos, que em sua maioria são registrados pelos
pais ou pelos próprios moradores da comunidade (WAGLEY, 1988).

581
No período de 1950 a 1980, a juta foi um gênero agrícola de grande
relevância econômica e social, influenciando o modo de vida das
populações ocupantes das várzeas do Rio Amazonas (SOUZA,
2008). Rendendo economia ao município de Parintins, empregando
homens e mulheres que trabalharam nas chamadas “prensas”,
antigos armazéns, onde principalmente mulheres atuavam no
trabalho de prensar a fibra para exportação (SAUNIER, 2003).

Mas antes da juta chegar ao município de Parintins, ela era cultivada


e passava por vários processos de trabalho de mão de obra, isso nos
interiores do Amazonas. Neste caso, a comunidade pesquisada, foi
uma das que atuaram praticamente em grande proporção dos seus
comunitários para o cultivo da juta (FERREIRA, 2016). A juta
proporcionava uma escassa economia a esses comunitários, e
conforme seus relatos tinha que entregar certa quantidade de juta
conforme o combinado com o “patrão”, e este lhe “servia” com
produtos alimentícios e dinheiro (MCGRATH, 1999).

Naquele período, os ribeirinhos usavam o termo “patrão” a


pequenos empresários que faziam a compra e venda da juta, ou seja,
compravam dos cultivadores nos interiores, essa compra era feita
conforme exigências e regras desses patrões, e depois vendiam aos
armazéns que faziam outros serviços derivados da juta para a
exportação. Esse método de “patronagem” é relacionado ao sistema
de aviamento no período da exploração da borracha na Amazônia,
também registrado pela literatura da região. Segundo McGrath
(1999) “aviar significa fornecer mercadoria a prazo com o
entendimento que o pagamento será feito em produtos extrativos
dentro de um prazo especificado” (p. 37).

HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA

582
Nesta seção abordamos a importância da história oral e memória
para este tipo de produção. Sendo a história oral a metodologia
principal deste trabalho, utilizamos alguns autores que abranjam
deste conhecimento científico para este tipo de pesquisa.

Marieta de Moraes Ferreira (2012) questiona “o que é, afinal, história


oral?” (p.169). Para encontrar respostas a essa questão, a autora
mostra o processo historiográfico sobre a implantação dessa
ferramenta utilizada por muitos historiadores e outros estudiosos, e
demais profissionais, no que tende a utilização da história oral como
uma disciplina, como uma técnica, ou como um método
(FERREIRA, 2012).

Sobre a valorização da memória, Ferreira (2012) afirma que “na


história oral, objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado
por intermédio da memória dos informantes” (p. 172). A memória é
valorizada através da narrativa, esta que é “a forma de construção e
organização do discurso são valorizadas pelo historiador” (p. 172).

Desta forma, Verena Alberti (2011) mostra sobre as possibilidades


de pesquisa e a especificidade da fonte oral, a importância deste
contexto para os historiadores, e também dá abordagens sobre como
usar fontes orais na pesquisa histórica, relatando sobre a preparação
de entrevistas nos projetos de pesquisas, e os roteiros de entrevistas.
No decorrer desta análise, instrui sobre como se deve agir na
realização de entrevistas, e tratar sobre estas importantes fontes,
utilizando os recursos tecnológicos para a gravação, e interpretação
e análise das entrevistas. (ALBERTI, 2011).

583
No que consiste Ferreira (2012), sobre história oral como
metodologia, Alberti (2011), afirma que “a história oral é uma
metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo
da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a
invenção do gravador a fita” (p. 155).

Porém, Motta (2012) afirma sobre a memória e tempo presente como


colocações do problema, como o historiador deve analisar as
questões de memória conforme o tempo presente. E também a
compreensão da memória com o passado relaciona-se com a
seletividade de quem narra, “quando falamos de memória, devemos
levar em conta que ela constrói uma linha reta com o passado,
alimentando-se de lembranças vagas, contraditórias e sem nenhuma
crítica as fontes que embasariam essa mesma memória” (p. 25).

Michael Pollak (1992), afirma que o historiador pode trabalhar a


memória acerca da identidade do indivíduo a ser pesquisado. A
concepção de valorizar os de baixo faz com estes novos personagens
estranhem a procura por sua pessoa, e a dificuldade de uma
entrevista torna-se notória pelo entrevistador, neste caso, “uma
pessoa a quem nunca ninguém perguntou quem ela é, e de repente
ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem muita dificuldade
para entender esse súbito interesse, já é difícil fazê-la falar, quanto
mais falar de si” (POLLAK, 1992. p. 208).

NARRATIVAS DO TRABALHO COM A JUTA

Na comunidade, fizemos entrevistas com seis colaboradores sobre o


trabalho que tiveram com cultivo da juta, no período de 1950 a 1980.
A história e a memória desses ribeirinhos foram analisadas segundo
suas narrativas, ou seja, são de cunho autobiográfico. Em uma
entrevista o pesquisador tem que conformar-se com que está sendo

584
narrado, principalmente quando não há registros literários de quem
está narrando (BOURDIEU, 1996).

Nas análises das narrativas, iniciamos com o Sr. Antônio Soares


Ribeiro Filho. Como descrito anteriormente, Pampam nasceu na
comunidade de São Sebastião da Brasília no dia 2 de novembro de
1940. O ex-trabalhador da juta, na data da entrevista, contava com
77 anos de idade. Segundo seus relatos o trabalho com a juta parecia
ter sido um legado de seus pais e iniciado em sua infância.

Sendo a juta um trabalho familiar, seus pais o introduziram


juntamente com seus irmãos neste ramo de trabalho, pois a mão de
obra é a ferramenta principal do trabalhador ribeirinho, e esta força
de trabalho auxilia diretamente no sustento da família (WAGLEY,
1988).

O trabalho que eles faziam consistia no plantio da juta, no corte, no


afogamento, na lavagem, na secagem, no enfardamento, e por fim
na entrega dos fardos aos destinados patrões, conforme o negócio
entre as partes.

O processo de plantação era feito com uma máquina, que segundo


Pampam, eles chamavam de tico-tico. Pampam às vezes passava de
três dias plantando uma quitaria (100m²), “não acabava e no outro
dia, dois dias, três dias acabava uma quitaria de plantar”, afirma.

Após o plantio da juta, eles faziam o processo de corte conforme o


tamanho decidido pelo agricultor ou quando fosse o melhor para a
colheita. Pampam também nos relatou ainda sobre o processo de
plantio da juta, o período até a colheita, “o plantio da juta era em
novembro”. Esse período foi um exemplo utilizado por Pampam, e

585
continuou: “e o senhor contava, dezembro, janeiro, em fevereiro o
senhor cortava por causa da água que vinha”.

Na Amazônia acontece o período de enchente e vazante das águas, a


agricultura, a piscicultura e a agropecuária são organizadas
conforme esse período (FERREIRA, 2016). Na subida das águas, a
juta tinha que ser cortada e passar por vários processos até o
momento da entrega, “a água vinha e a gente ia cortando, ia
cortando e afogando”.

O processo de “afogar” era a parte mais árdua do trabalho com a


juta. Eles faziam um sistema para realizar este tipo de afogamento,
que mesmo sendo na água não era o processo de lavagem.

A lavagem da juta era realizada para a retirada de uma película que


havia nos feixes de juta, “a água era suficiente e senhor a sacudia na
água pra lá, pra cá, tirava tudinho aquela pelica que é a casca”.
Segunda as narrativas das mulheres, esse trabalho de lavagem da
juta era realizado em grande parte por elas, mas elas também faziam
os demais processos da juta.

A secagem da juta era realizada em uma espécie de madeira com


grande comprimento conhecida como “vara” pelos ribeirinhos. Os
feixes de juta secavam, após ficarem dias expostos ao sol, e então
eles recolhiam os feixes para serem prensados ou enfardados.

O enfardamento da juta era realizado na comunidade, pois tinha


que ser entregue em fardos e pronto para a pesagem. Esse sistema
era o último processo a ser feito antes da entrega para o patrão.
Pampam nos mostrou como funcionava esse sistema em uma prensa
manual feita de madeira.

586
O último processo era considerado a parte principal para estes
trabalhadores, pois era o momento da entrega conforme o
combinado, ou seja, seguir com os acordos. Primeiramente a
produção era transportada de canoa para ser entregue ao “patrão”
(FERREIRA, 2016).

Assim como Pampam, também entrevistamos sua companheira,


Dona Maria do Rosário dos Anjos Ribeiro; o Sr. Valdo Monteiro
Gama, conhecido na comunidade como Fadô, e sua companheira,
Dona Luzia Cândida da Silva Gomes; o Sr. Valdino Jacaúna Franco,
conhecido na comunidade como Careca, e sua companheira, Dona
Cecília Soares Ribeiro Franco, também irmã do Pampam.

Sobre o início do trabalho com a juta, assim como Pampam, Fadô


também iniciou na juta desde criança trabalhando com seus pais,
“eu sofri muito na juta, eu trabalhava desde os meus 11 anos na
juta” afirma Fadô. E após a cegueira derivada da idade avançada de
seus pais, Fadô teve que assumir a responsabilidade do trabalho
com juta da sua família.

A companheira de Pampam, Dona Maria do Rosário, afirmou sobre


seu trabalho na juta. Segundo seus relatos, ela afirmou que
“ajudava” o marido na juta, juntamente com seus filhos, “todo
mundo ia pra juta”. Dona Luzia nos relatou que iniciou cedo a
labuta com a juta, “eu comecei bem novinha com a juta, tive que
ajudar minha mãe”. E afirmou que conheceu o Fadô na juta,
“quando tinha 17 anos, eu fui morar com ele, já era nós dois na
juta”. A mulher era vista como “ajudadora” do homem, e o seu
trabalho não era visto como principal e sim como coadjuvante
(TORRES, 2012).

587
A narrativa de Careca sobre seu início na juta deu-se pelo fim do
trabalho com o cacau, “quando eu tinha 10 anos, minha mãe me
colocou pra juntar cacau”. E nos afirmou que logo após o trabalho
com o cacau, foi para o ramo da juta, “quando eu tinha 18 anos, aí
eu fui trabalhar na juta já, entrei na juta com meu pai”.

Dona Cecília relatou que trabalhou na juta com Careca, mas afirmou
que quase não trabalhava com seus pais, passou a trabalhar mais
quando passou a conviver com Careca, “eu não trabalhei muito com
meus pais, mas o Pampam, eu ajudei mais o Careca quando a gente
começou a viver junto, a gente precisava né”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A juta foi uma atividade laboral que trouxe diversas consequências


para aqueles que trabalhavam dia a dia com este vegetal. No caso da
comunidade pesquisada, houve mortes durante a execução do
trabalho, além de ser um trabalho árduo e sofrido, o pagamento que
estes recebiam era praticamente um desprezo total ao ser humano.
Pampam e Dona Rosária, Fadô e Dona Luiza, Careca e Dona Cecília,
foram apenas algumas de diversas pessoas do Amazonas, que
tiveram suas vidas transformadas pela experiência do trabalho com
a juta.

Para estes homens e mulheres a juta foi à única forma de


sobrevivência desse período, mesmo utilizando outras fontes renda,
a juta era a principal para o comércio da época. Todos sofreram na
juta, principalmente economicamente, onde havia muito trabalho e
pouco lucro. Não tinha como negar o trabalho com a juta, um
trabalho que envolvia toda a família, homens, mulheres, crianças,
idosos, todos trabalhavam para o sustento de todos, que na maioria
dos casos era apenas por uma simples cesta básica.

588
No decorrer de 1950 a 1980, para estes moradores da comunidade
São Sebastião da Brasília, a juta foi um marco na história na vida
desses casais, utilizando-a dela para o sustento de suas famílias.
Com origem na Índia, a juta foi sendo semeada por muitos lugares
do planeta, mas apenas alguns países aclimataram a semente. E a
região amazônica foi melhor terra para esta semente, fazendo fibras
longas, melhorando o processo do trabalho para os cultivadores.

Os sete passos do trabalho com a juta estão até hoje na memória de


milhares de ex-cultivadores, que alguns tiveram apenas a juta como
única opção de sobrevivência. O trabalho de plantar, cortar, afogar,
lavar, secar, enfardar e entregar, foi diversas vezes repetido durante
décadas na vida daqueles que moram até hoje às margens do rio
Amazonas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Everton Dorzane Vieira é licenciado em História pela Universidade


do Estado do Amazonas – UEA, no Centro de Estudos Superiores de
Parintins – CESP. E-mail: everton.parintins@gmail.com

Este artigo é resultado de Trabalho de Conclusão de Curso, no ano


de 2018, sob orientação do Prof. Dr. Júlio Cláudio da Silva.

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Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. ed. – São Paulo: Contexto,
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http://www.amazoniaecobags.com.br. Acessado no dia 25 de maio
de 2018.

Entrevista com a Sra. Luzia Gama, no dia 26/03/2017, na


comunidade de São Sebastião da Brasília.

Entrevista com s Sra. Maria do Rosário, no dia 26/03/17, na


comunidade de São Sebastião da Brasília.

Entrevista com Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho (Pampam) no dia


26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da Brasília.

Entrevista com Sr. Valdino Jacaúna Franco (Careca) no dia


26/03/2017, na comunidade de São Sebastião da Brasília.

Entrevista com Sr. Valdo Monteiro Gama (Fadô) no dia 26/03/2017,


na comunidade de São Sebastião da Brasília.

Entrevista com Sra. Cecília Franco, no dia 26/03/2017, na


comunidade de São Sebastião da Brasília.

FERREIRA, Aldenor da Silva. Fios dourados dos trópicos: culturas,


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Índia). Universidade Estadual de Campinas, 2016.

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WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do


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591
HISTÓRIA DE VIDA: IDENTIDADE,
CULTURA E RELIGIOSID ADE
VANIA MARIA CARVALHO DE SOUSA

O presente artigo trará uma discussão muito interessante acerca das


religiões de matriz africana, como o candomblé angola. As mesmas
são oriundas de diversas nações do continente africano, que tem
sido palco de grande discursão na sociedade brasileira. É importante
lembrar que essas religiões ao longo do tempo buscaram se
legitimar em seus cultos, ritos e religiosidade, pois desde o início
encontraram grandes barreiras para se auto afirmarem por parte de
alguns indivíduos na sociedade que movidos pela intolerância não
aceitavam essa nova expressão religiosa, com seus costumes, cultura
e uma riqueza indescritível.

A organização do ponto de vista cultural e religiosa se deu a partir


da contribuição valiosa do negro que aportou em terras brasileiras.
Essa presença foi decisiva na formação da cultura brasileira,
contribuindo com patrimônio mágico-religioso, com suas dimensões
materiais e simbólicas do sagrado, de uma importância enorme para
a identidade do País. Como afirma Reginaldo Prandi (1996), quando
aborda a questão do negro na formação da sociedade brasileira.

“A presença do negro da formação social do Brasil foi decisiva para


dotar a cultura brasileira dum patrimônio mágico-religioso,
desdobrando em inúmeras instituições e dimensões materiais e
simbólicas, sagradas e profanas, de enorme importância para a
identidade do País e de sua civilização”. (PRANDI, 1996; p. 55)

Muito se tem estudado sobre as religiões de matriz africana, seus


espaços sagrados, como também as experiências religiosas de líderes
que coordenam seus terreiros. Porém, é interessante notar que cada
história de vida possui suas especificidades, sobretudo no que está
relacionado ao trânsito religioso desses sacerdotes e sacerdotisas.

592
Neste particular, levantarei dados importantes sobre a identidade
religiosa de mãe Beth Pantoja, como ela começou sua trajetória no
candomblé angola e como ela é vista pela comunidade local.

Ao trazer presente a identidade de homens e mulheres das diversas


religiões de matriz africana, quero dar voz aos meus informantes
que trazem em suas narrativas discursos sobre a gênesis dos cultos
candomblecistas em Belém do Pará, a partir de sua trajetória
religiosa, bem como o pertencimento no universo religioso com suas
tradições, costumes e seus conhecimentos ora transmitidos para as
gerações futuras.

Trago também neste contexto, algumas referências sobre o


candomblé angola nos discursos de pesquisadores, como Roger
Bastide, Pierre Verger, entre outros, que definem a religião como
uma manifestação religiosa, que foram se instalando no Brasil em
meados do século XVI. Neste sentido, contamos com a contribuição
de pais e mães de santo que incorporaram ao longo de suas
trajetórias aspectos que fundamentam as expressões religiosas
realizadas em seus espaços sagrados. Portanto, quero lançar um
olhar sobre o candomblé angola, analisando a identidade cultural-
religiosa, a constituição de elementos identitários através da dança,
da música, dos ritos e dos cultos as divindades, sobretudo a
presença dos afro-religiosos que pela sua história de vida
contribuem com a cultura e as manifestações religiosas.

Neste contexto, pretendo analisar a história de vida de mametu


Muagile Beth Pantoja que é uma das lideranças do candomblé
angola. A sacerdotisa vem ganhando destaque na sociedade
Belenense pela sua participação em associação beneficente que ajuda
a comunidade local, rodas de conversas e em diálogos que abordam
temáticas referentes as religiões afro-brasileira. Serão analisados
fenômenos ligados ao candomblé angola vivenciado pela
sacerdotisa mãe Beth, bem como suas experiências religiosas no
terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema.

593
Neste particular, levantarei dados importantes sobre a identidade
cultural-religiosa de mãe Beth Pantoja, elencando aspectos ligados a
seu processo iniciático na religião e sua trajetória de vida. Os
elementos ora apresentados inicialmente começam a partir de sua
história que está ligada a outras matrizes religiosas, como por
exemplo a umbanda. Essa experiência de trânsito religioso é muito
perceptível em outros religiosos que são iniciados no candomblé.

MÃE BETH DE BAMBURUCEMA: DO SUJEITO CIVIL À


EXPERIENCIA RELIGIOSA.

Ao trazer presente a história de vida de religiosos pertencentes as


religiões de matriz africana, um dos meus objetivos é apresentar
suas experiências religiosas a partir do sujeito religioso que compõe
o espaço sagrado, bem como a composição dos ritos, entre outros
elementos que fazem parte da identidade cultural-religiosa desses
sacerdotes.

No Estado do Pará, nota-se a presença de religiões afro-brasileiras,


enriquecendo nossa cultura brasileira e amazônica. Essas expressões
religiosas começaram a surgir a partir do período colonial com as
irmandades religiosas, segundo Daniela Cordovil “foram um dos
espaços onde essa religiosidade pode se organizar e perpetuar
costumes e crenças” (CORDOVIL, 2014; p. 25). Vale lembrar que
neste período não existiam terreiros de matriz africana em Belém.
Os registros existentes datam a presença dos primeiros religiosos
que aqui chegaram do Maranhão no período do ciclo da borracha.
As expressões religiosas do Maranhão é o que conhecemos como
Tambor de Mina, trazidos por migrantes maranhenses no século
XIX. (CORDOVIL, 2014; p. 31)

Concomitantemente, ligado a essa religiosidade a partir da década


de 1950 chega em Belém do Pará o candomblé, atraindo adeptos de
outras matrizes, como a pajelança, umbanda e o tambor de mina. O
candomblé trazido da Bahia abre novas possibilidades para
a feitura no santo, pois neste período muitos pais de santo viajavam
para Salvador para serem iniciados, gerando o que é definido por

594
Cordovil (2014: p.34) como trânsito religioso. A este fenômeno
religioso, a autora assegura que isso acontece pela busca de
legitimação e pela melhor profissão de fé.

Com o estabelecimento do candomblé em Belém, das diversas


nações: ketu, jeje ou angola, percebe-se uma busca pela iniciação
feita por diversos pais ou mães de santo, oriundos de outras
expressões religiosas como a pajelança, tambor de mina ou a
umbanda. A essa identificação é o que caracterizamos como “maior
conhecimento no santo, e assim ascender nos degraus da hierarquia
religiosa da cidade” (CORDOVIL, 2014; p. 36). No entanto, mesmo
sendo iniciados em Salvador os sacerdotes tem dificuldades na
execução dos ritos, incorporando ao candomblé rituais ligados a
outras religiões afro-brasileiras.

A inserção do candomblé angola e ketu em terras paraenses ganha


visibilidade a partir da década de 1970, quando alguns pais e mães
de santos vão do Pará a Salvador para serem iniciados. Essa é uma
prática comum, sobretudo para aqueles que desejam abrir seus
próprios terreiros e formarem seus filhos de santo. A experiência de
vida desses afrorreligiosos, como de mãe Beth, ganha notoriedade
pelas práticas ritualísticas que são desenvolvidas no terreiro e pela
participação em eventos de inclusão social, sobretudo as famílias de
baixa renda, com distribuição de cestas básicas.

A trajetória desses sacerdotes marca a história das religiões afro-


brasileira, no Estado do Pará na segunda metade do século XX,
quando dá início a experiência religiosa do candomblé das mais
variadas nações, como ketu, angola, jeje. Neste particular, abordarei
a experiência religiosa de mametu Beth Pantoja, que desde o
período de 1990 começou seu processo de iniciação no candomblé
angola. Mãe Beth começa sua apresentação dizendo que é da cultura
afro-brasileira e que sua nação angola cultua a natureza, o ouro ou
o próprio vulcão. Neste aspecto mametu muagile fala sobre sua
identidade afro-brasileira e diz que a mesma surge a partir de uma
conferência sobre os afros descendentes, que segundo ela, cada
sacerdote haveria de fazer sua identificação, mãe Beth se definiu

595
como mestra de cultura na culinária afro-amazônica, pois é ela
mesma que prepara as comidas para os nkisis.

Ainda de acordo com mãe Beth, a palavra mestre significa pessoas


que tem mais de 20 anos na religião, e ela já possui quase 30 anos de
vida religiosa. Não obstante, há de reconhecer que essa identidade é
algo que marca a vida da religiosa, além de preparar também as
indumentárias que são utilizadas durante as festas dos rituais. O
candomblé angola dedica-se a adoração aos nkisis, que são deuses
ligados as energias, como por exemplo, seu nkisi iansã que está
relacionado com o vento.

Enquanto religiosa no candomblé angola, ela diz que sua religião


trabalha com o tempo, e que a religião é uma faculdade, ou seja, a
iniciação, o tempo de obrigações, a direciona para essa
compreensão, “porque a gente cresce no candomblé, e sempre está
aprendendo alguma coisa”. Quanto ao tempo de pertencimento no
candomblé angola Beth diz que começou na fase adulta, com mais
de 20 anos.

A história de Elisabeth Pantoja, ou mãe Beth como é popularmente


conhecida, começou na infância, marcada por muitos problemas de
saúde, por isso, deixou o município de Acará e veio morar em Belém
do Pará, a fim de resolver essas mazelas. Esse fato aconteceu quando
ela tinha apenas 7 anos de idade. Em algumas entrevistas realizadas
com mãe Beth ela traz relatos sobre sua história de vida no mundo
religioso, da umbanda até chegar ao candomblé angola. A angoleira
nasceu no município de Acará, numa pequena comunidade
quilombola, no meio da mata, na colônia de Guajará-Mirim.
Segundo ela, seu pai tinha um terreno grande e alguns recursos
financeiros. Porém, nesta mesma localidade sua mãe começaa ter
alguns problemas de saúde, levando-a procurar ajuda espiritual na
umbanda, uma vez que havia um terreiro neste quilombo.

Ao se definir como candomblecista angoleira, mametu Beth Pantoja


traz em seu ser uma particularidade de sua religião. Sua experiência
enquanto sacerdotisa se expressa pela transmissão de

596
conhecimentos para os que a procuram e pelas feituras de santo que
são realizadas em sua casa. A acessibilidade em seu terreiro, marca
de forma positivamente a figura de pesquisadores que a procuram e
pela realização de rodas de conversas sobre a religião e a cultura
afro em seu terreiro.

Sobre a identidade religiosa de Elisabeth Pantoja, posso dizer que


suas raízes estão ligadas a uma linhagem familiar que tem uma
experiência religiosa voltada para as religiões de matriz africana. E,
por outro lado, também apresentam características de pessoas
batalhadoras, que tem uma vida simples em sua comunidade de
origem. Uma grande marca de mãe Beth é como ela se auto define
sobre sua cultura. Em uma de suas entrevistas ela faz a seguinte
revelação: “Sou baixinha, pretinha, quilombola, mulher e ainda mais
macumbeira era uma palavra que se usava antigamente”.
(BARBOSA, 2015; p. 174).

No âmbito de seu discurso, nota-se em sua expressividade o orgulho


que a angoleira têm em ser de origem quilombola, isso de certa
forma dá legitimidade aos ritos que são realizados pela sacerdotisa e
pelo papel representativo na comunidade. Percebe-se que Mãe Beth
vem de uma família de tradição umbandista. Sua mãe, segundo ela,
frequentava terreiros de umbanda. Ela tinha diversas visões, as
entidades cantavam para ela. Neste período Beth ainda criança
acompanhava sua mãe nesses terreiros e por diversas vezes via os
caboclos cantar, e ela cantava junto com os caboclos mariana e
outras entidades.

Quando me reporto a figura de Beth Pantoja, observo em sua fala o


quanto foi difícil o início de sua iniciação nas religiões afro-
brasileira. Primeiro porque havia resistência por parte dela para não
adentrar neste mundo ritualístico da religião. E, por outro lado, não
havia uma definição quanto a religião pela qual gostaria de fazer
parte. Porém, o que a fez ir em busca deste fenômeno religioso foi o
agravamento de seu estado de saúde, fazendo-a tomar consciência
que era necessário fazer uma experiência no candomblé angola.

597
A experiência religiosa na vida de mãe Beth é algo fundante, porém,
é necessário observar o trânsito desses afrorreligiosos que costumam
passar por muitas matrizes africana, como a umbanda, pajelança,
tambor de mina, antes de se auto afirmarem em sua própria religião.
Foi o que aconteceu com Beth Pantoja, que antes de ser
candomblecista passou por alguns terreiros de umbanda. Pois
segundo ela, sempre acompanhava sua mãe para fazer tratamento
espiritual. Além do terreiro de D. Anésia, Mãe Beth também foi na
casa do pai Orlando Bassú, situada no bairro do Guamá, já que os
males ainda eram frequentes em sua vida.

No discurso Mametu Muagile diz que o processo de incorporação


começa com 17 e 18 anos. E, a partir daí, dá-se início a busca de
tratamento para se desenvolver. Porém, havia certa resistência e
uma não aceitação para começar seu processo de iniciação. Essa
resistência decorre da falta de conhecimento sobre religião e por não
se sentir bem participando dos rituais, quando era conduzida por
sua mãe. Segundo Beth Pantoja, sua mãe a conduzia porque
acreditava que ficaria curada após sua iniciação. Entretanto,ela não
tinha uma casa de santo fixa para se desenvolver, uma vez que
sempre fugia da religião, só procurava os terreiros quando estava
muito nervosa, dançava, “dava passagem”, mas depois que se
recuperava passava três meses sem ir ao terreiro, retornando apenas
quando estava doente.

Esse momento de fuga teve uma duração de 4 anos em que mãe


Beth dançava o tambor, caía em alguns terreiros como do seu
Manuel Bolacha, que fica situado no “Beco do Relógio” no Bairro
do Jurunas e do seu cunhado Ronaldo Pereira Lobato que é
umbandista. Seu terreiro está localizado na rua dos caripunas, no
bairro do Guamá, lá ela começou a se desenvolver, ficando um
período de um ano. Em seguida, um irmão de santo, Antônio Alves
Guimarães lhe apresentou seu pai de santo, Valter Torodê, e a partir
daí começa a frequentar sua casa, que é sacerdote do candomblé
angola Seu terreiro é o Rudembo Axé Di Jaciluango, mãe Beth
começou a frequentar em 1989 onde se inicia no candomblé.

598
A sacerdotisa Beth Pantoja mesmo transitando em outros espaços
religiosos, como a umbanda, decide submeter sua feitura de santo,
juntamente com uma irmã de santo, Kuoboasi de Katendê, seu nome
civil é Cátia Simone de Sousa Pereira. Porém, ao relatar sua decisão
ao marido, não houve a aceitação por parte dele. Mesmo contra a
sua vontade, mãe Beth toma a firme decisão de iniciar no
candomblé, pois segundo ela, sua vida estava toda errada, bem
como seu casamento também, por isso, decidiu “fazer o santo”. A
partir daí a angoleira em um diálogo com seu pai de santo relata o
que pensa seu esposo em relação a sua tomada de decisão, que a
aconselha a dar início a sua iniciação, uma vez que ela não tem nada
a perder, pois se ele sair de sua vida o santo lhe dará uma pessoa
melhor.

É interessante lembrar que, mãe Beth percorreu em muitos terreiros


antes de sua iniciação. Entretanto, a cura foi algo decisivo em sua
vida para começar seu processo de iniciação, visto que, o mal que
ela sentia e os desmaios eram frequentes em sua vida. Tudo isso
aconteceu para que ela tivesse certeza que deveria começar sua
iniciação.

Sua iniciação foi muito difícil, segundo ela, existe uma tradição nos
terreiros de candomblé, que não se faz nada para o nkisi ou orixá no
dia de sexta-feira, pois neste dia faz-se homenagem a oxalá, e em
respeito não se pratica nenhum ritual neste dia. Mas, segundo mãe
Beth sua casa não é orixá e sim nkisi por ser da nação angola.
Entretanto, é interessante perceber que, seu pai de santo mesmo
sendo angoleiro, cultuava elementos identitários da nação ketu,
mesmo tendo suas características e especificidades próprias. Todo
processo de iniciação requer cuidados específicos, na qual os
momentos ristualísticos fazem parte desse processo. A sacerdotisa
após adentrar no terreiro de seu pai de santo Valter Torodê, passou
21 dias de recolhimento, juntamente com sua irmã de santo que
também fez sua iniciação no angola.

Nesse período, mãe Beth já tinha mais de 30 anos de idade, pois já


havia passado por algumas experiências em terreiros de umbanda.

599
Numa sexta-feira da paixão ela foi conduzida a “maionga”, que para
os angoleiros é o lugar onde se prepara para essa nova etapa de
vida. Lá se toma o banho, faz os descarrego, a fim de ser enviada
para o quarto do santo, que é um dos momentos mais importante na
vida do filho de santo.

Neste particular, o recolhimento é algo inerente aos fundamentos da


religião. Pois para os religiosos afro-descendentes, esse processo é
de extrema importância na vida de seus seguidores, pois para se
tornar uma candomblecista de verdade é necessário passar por esses
rituais. Foi o que aconteceu com Beth Pantoja, que mesmo negando
sua iniciação e a não aceitação do marido, ultrapassa essas barreiras
e se deixa conduzir pelos princípios da religião.

Esse processo de iniciação chama atenção no aspecto do trânsito


religioso que é uma constância na vida desses religiosos. Aqui no
Pará além do candomblé baiano, outras expressões religiosas foram
se consolidando, como a umbanda altamente cultuada em algumas
regiões do Estado e na região metropolitana de Belém, como o
Tambor de Mina que veio do Maranhão e que teve grande aceitação
na região.

Vale lembrar que, a pajelança também exercia forte influência na


vida dos afrorreligiosos, esta tem uma ligação estritamente com a
cultura indígena e cabocla. Por isso, o hibridismo cultural, ritos,
costumes e cultos as divindades nas diversas religiões afro-
brasileira, nos leva a compreender a identidade e o papel exercido
por cada religioso e porque eles transitam nas diversas religiões de
matriz africana. A busca pela autoafirmação em sua religião os
levam a outras experiências, como algo importante e necessário em
suas vidas.

É interessante notar que, na identidade cultural-religiosa dos


afrodescendentes se caracterizam de diversas formas, entre elas,
encontramos uma legitimação aos ritos que são concernentes a sua
religião, ou como observamos em algumas falas, ao se reportarem
como a sua religião sendo “a melhor, a mais original”. Nesse

600
discurso, nossos informantes apresentam as formas ritualísticas
como algo original que se diferenciam de outras religiões,
sobretudo, o candomblé angola, bem como a originalidade em sua
identidade religiosa.

A história de vida desses sacerdotes de diferentes nações traz


aspectos interessantes a serem analisados, seja pela transmissão de
valores religiosos ou pela participação política, social e religiosa. O
que caracterizam sua inserção na religião são as práticas ora
vivenciadas pelos seguidores, por isso, há um forte discurso de
legitimação de suas práticas ritualísticas.

Referências:

Vânia Maria Carvalho de Sousa. Graduada em História pela


Universidade Vale do Acaraú, Especialista em Estudos bíblicos pelo
Instituto Esperança de Ensino Superior, mestra em Ciências da
Religião pela Universidade Estadual do Pará (UEPa). Especialização
em História Agrária na Amazônia contemporânea. Diretora do
Instituto de Pastoral Regional da CNBB Regional Norte 2.

CORDOVIL, Daniela. Religiões afro: introdução, associação e


políticas públicas. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.

PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé: Sociologia das religiões


afro-brasileiras. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996.

601
A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO
E CONSERVAÇÃO DE FONTES DE
PESQUISA
ESTHER SALZMAN CASTELLANO

Para historiadores as fontes históricas são elementos extremamente


importantes uma vez que é por meio delas que temos a
possibilidade de produzir pesquisas historiográficas. Portanto, é
basal que a preservação das fontes de pesquisa integre políticas de
Governo uma vez que por meio delas e da produção de
conhecimento historiográfico que conseguimos manter e recuperar a
memória coletiva.

No texto que segue, realizamos algumas aproximações a questão da


conservação do patrimônio no Brasil parafraseando com outras
experiências de outros países em que vemos um grande
investimento na questão da preservação da memória coletiva. Essa
reflexão proveio da inserção do autor no programa de Mestrado em
História da Unesp em Assis-SP, onde realizamos um
aprofundamento sobre os objetos de pesquisa do Historiador e
sobre a relevância de que tais meios de pesquisa sejam preservados
pelo Estado. Nesse texto apresentamos parte dessas reflexões.

O texto foi elaborado com base nas colocações de autores como


Garrafoni, Funari e Carlan que nos apresentam colocações
importantes sobre a conservação das fontes de pesquisa. Além disso,
também inserimos alguns exemplos de situações contemporâneas
em que as fontes de pesquisa foram objeto de degradação. Que esse
texto nos inspire a sempre em defender a preservação das fontes e
da memória cultural das sociedades, em especial dos brasileiros.

602
Conservação de Fontes pelo Estado e a importância da memória
coletiva

Foi no dia dois de setembro de 2018 que o país assistiu ao incêndio


do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Apesar de isso ter produzido
muitas colocações nos meios sociais sobretudo em redes sociais
sabemos que os segmentos mais afetados com essa situação foram
aqueles que vivem da pesquisa. O assunto tomou ainda maiores
proporções nos meios acadêmicos à medida que o principal
motivador pelo incêndio que devastou o Museu Nacional ter
acontecido para ausência de investimento financeiro do Estado para
a manutenção do Museu e das atividades de preservação desse
espaço.

Infelizmente a realidade observada em relação ao Museu Nacional


perpassa outros espaços de conservação de fontes de pesquisa.
Frequentemente fazemos ponderações sobre o acesso as fontes da
antiguidade clássica para aqueles que estudam cultura material e de
como a conservação traz impactos para a produção acadêmica.
Retomando o incêndio, a imagem que ficou, além do desespero
nítido de quem vive da pesquisa de incontáveis peças de valor
inestimável, é a fragilidade da história quando não bem cuidada,
quando não bem preservada. Luzia é um marco pois é um fóssil
divisor de águas no que se refere aos estudos das origens do homem
americano e foi a estampa da negligência ao nosso patrimônio. Por
que nossas políticas de preservação não são tão eficientes quanto as
que vemos em outros países, como Portugal, por exemplo?
(CASTELLANO,2018).

Portugal até 2011 possuía dois organismos públicos que eram


encarregados de preservação de fontes, sendo eles o Instituto de
Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR) e o
Instituto dos Museus e da Conservação. Ambos compunham a
Direção-Geral do Património Cultural que “tem por missão
assegurar a gestão, salvaguarda, valorização, conservação e restauro
dos bens que integrem o património cultural imóvel, móvel e
imaterial do País, bem como desenvolver e executar a política

603
museológica nacional” (Disponível em<
http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/quem-somos/missao/>.
Acesso em: 13/02/2019). A Direção-Geral, além dos institutos, é
composta por vinte e cinco bibliotecas e inúmeros centros de
documentação. Os centros de documentação, em sua grande maioria
possuem o acesso público, ou seja, a informação conferida é
acessível a todos que desejarem realizar pesquisas. Para o acesso as
informações dos centros de documentação o governo português
compôs uma sólida base de dados informatizada e que conta com
seis sistemas, sendo esses: MatrizNet; MatrizPCI; MatrizPix;
Ulysses; Endovélico e SIPA. Cada uma dessas bases tem uma função
de consulta mais específica, podendo o pesquisador acessar fontes
das mais variadas naturezas, quer seja iconográfica, arqueológica,
imaterial e/ou arquitetônica.

Portugal possui ainda uma relação diferenciada com o passado no


que diz respeito aos possíveis achados arqueológicos. Assim, o
Estado Português mantém convênios com empresas privadas para
analisar construções e reformas arquitetônicas. Assim, antes de
construções e reformas as empresas realizam a análise do terreno
buscando identificar a possibilidade de haver nesses locais qualquer
indício arqueológico. Dessa maneira, busca-se preservar os possíveis
achados arqueológicos. O que vemos, considerando a digitalização
das fontes e também o cuidado com a reforma e a construção dos
terrenos é grande preocupação com o passado, e, isso é parte da
política de governo do Estado português.

Possivelmente isso advém do fato de que em Portugal, cidades


como Évora e Coimbra mantém aquedutos romanos atravessando
suas cidades, ruas e estradas pavimentadas. Há uma convivência
com o passado cotidiana e constante. Isso faz com que o povo e o
Estado estabeleçam uma outra relação com as fontes de pesquisa
história. Outros países como Espanha, França, Inglaterra, Itália
também buscam a preservação e o respeito às fontes históricas.
Apenas a título de exemplos vemos que na Espanha temos áreas de
preservação ambiental e também arquitetônicas, as quais são

604
protegidas pelo governo espanhol que também busca garantir seu
cuidado e conservação (CASTELLANO, 2018).

Consideramos que as políticas de conservação de fontes de pesquisa


e também dos monumentos e achados arqueológicos que
observamos em países como Portugal e Espanha sejam de vital
importância ao Brasil que, poderia também usar esse tipo de
intervenção desde que destinasse recursos a tal finalidade. Outra
prática de preservação importante para além das que foram
retratadas acima são as exposições. As exposições devem ser
realizadas de maneira a despertar a curiosidade do público além de
ser vital nesse caso o estabelecimento de uma conexão com o
visitante. Os recursos audiovisuais e interativos são grandes
auxiliares nesse sentido, podendo despertar o instinto de
pesquisador no público que dela participa. É esse instinto que
resulta em pesquisas científicas e em métodos para padronizar a
recuperação, restauração, manutenção e preservação da história.

Esses recursos, essas informações, devem, no entanto, falar a


linguagem do homem comum, chegar ao público em geral para que
a relevância atribuída às fontes históricas não seja algo apenas do
pesquisador. Nesse sentido, além das fontes digitalizadas e das
exposições temos também os elementos de natureza audiovisual.
Vejamos alguns exemplos. O filme Gladiador do ano 2000 que se
tornou um clássico e a primeira temporada de Império Romano –
Cômodo: Império de Sangue (produção original Netflix) trazem a
figura de Cômodo, um dos muitos “maus” imperadores de Roma e,
em suma, sobre sua personalidade fria, egocêntrica e sua famosa
entrada na arena de gladiadores. A segunda temporada
intitulada Júlio César: O Senhor de Roma e Roma (HBO) trazem a
figura de Júlio César, uma das mais importantes da história romana,
assim como diversos filmes e até mesmo quadrinhos de Asterix e
Obelix e, por fim, Espártaco (filme de 1960, de Stanley Kubrick) e a
série Spartacus (FX) retratam o cotidiano do gladiador de forma que
lembra muito os estudos da jornada do herói de Joseph Campbell –
o que faz muito sentido na construção de uma licença poética para
uma obra fictícia baseada na história do gladiador que liderou um

605
exército de rebeldes contra a República Romana. Uma ressalva sobre
a série Spartacus foi a decisão da produção em exibir cenas de nudez
sem censuras, cenas de sexo e a orientação sexual romana, temática
encontrada no mundo acadêmico com frequência.

Isso faz com que o conhecimento historiográfico, chegue até a uma


parcela da população, afinal, por que é tão difícil a linguagem
acadêmica se adaptar a pessoa “comum”? Pesquisas científicas, em
sua grande maioria, são voltadas para pessoas que também são da
academia. Existe realmente a necessidade da seriedade e da técnica
para resultar em credibilidade? São em momentos como esse que
nos deparamos com “grandes” obras intituladas como “Guia
Politicamente Incorreto da...”, redigidos por um jornalista de forma
agradável e polêmica, que retoma ao assunto da ludibriação do
espectador em relação aos fatos, já que o guia se sustenta na
insistência de que o autor juntou provas de que os historiadores
mentem. E é neste ponto que passamos a pensar: quem é
responsável pelo desenvolvimento do olhar crítico e mais, quem
pode colaborar para mobilização da população em geral em prol das
fontes de pesquisa histórica? A nosso ver não adianta somente um
pequeno segmento compreender e defender a necessidade de
preservação da memória se grande parcela da sociedade, sobretudo
a brasileira, permanece alheia a esse movimento. Portanto, a nosso
ver seria vital no Brasil que os estudos por nós realizados chegassem
até a população em geral e não se mantivessem circunscritos apenas
nos espaços acadêmicos.

No Brasil os arquivos públicos ou de livre acesso foram sendo


criados para atender as necessidades da Administração Pública. A
princípio eram arquivados documentos produzidos pelo Estado e
órgãos públicos a ele vinculados. De acordo com Garrafoni (2014) os
primeiros acervos foram sendo consolidados ao final de 1844
quando tivemos a criação do Arquivo Nacional. A partir disso, ao
longo dos anos muitos outros meios para o registro de documentos
oficiais foram sendo criados como Museus, Bibliotecas, dentre
outros afins. No entanto, esses espaços não se ocupavam apenas de
documentos oficiais, mas de outros elementos que integram a

606
cultura humana. Atualmente no Brasil a preservação de arquivos é
condicionada pela Lei 12.682 de 09 de julho de 2012 e ainda por
algumas legislações: Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei
nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, Lei nº 8.394, 30 de dezembro de
1991, Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991 , por exemplo.

Para além da ausência estatal e da necessidade de inserção da


população no entendimento sobre a importância das fontes
históricas, é preciso um contra ponto final e que se refere a
importância que a conservação de fontes traz para os pesquisadores,
sobretudos para aqueles que como nós voltamos o nosso olhar para
a Antiguidade. Vemos que no Brasil os estudos de História Antiga
se consolidam a partir dos processos de abertura política. Os autores
nos colocam ainda que em meados dos anos 70 e 80 tivemos a
ampliação dos cursos de pós-graduação nacionais e internacionais o
que resultou também na publicação de estudos em História Antiga
do nosso país Atualmente, a produção desse tipo de conhecimento
acaba centrada nos cursos de graduação e pós-graduação que
também vêm sentido cada vez mais a retração de recursos públicos
impactando diretamente na produção de conhecimento científico
(FUNARI; GARRAFFONI, 2010). No entanto, hoje, atualmente, para
que as pesquisas dessa natureza continuem sendo desenvolvidas é
vital a intervenção de recursos públicos com essa finalidade, o que
corresponde na consolidação de espaços de conservação das fontes e
também de possibilidades de difusão do saber acadêmico
produzido.

Além da produção em Antiga, obviamente que a ausência de


investimento público influencia outros saberes, das mais variadas
áreas de conhecimento. No entanto, é a produção de conhecimento
em História Antiga a mais penalizada pela ausência de conservação
de fontes. Para que essa questão desperte o interesse público e
também seja alvo de recursos e demais elementos que são basais a
conservação aquilo que pesquisamos deve integrar a realidade da
sociedade brasileira. Enquanto os brasileiros olharem para as fontes
de pesquisa história como algo alheio e eles, e, portando de forma
dissociada de sua cultura, dificilmente haverá uma comoção

607
nacional em prol da preservação de nossa história. Lembremos uma
vez mas do triste incidente envolvendo o Museu Nacional em que
nem toda a sociedade brasileira demonstrou preocupação,
indignação ou qualquer outra forma de comoção em relação ao que
aconteceu.

A guisa de conclusão desejamos destacar que a nosso ver a


preservação de fontes não é algo que interessa somente àqueles que
lidam com tais itens, mas interessa a toda uma sociedade. A
preservação de fontes e o saber que dela provém deve gerar um
conhecimento sobre a cultura de um povo, preservando assim sua
memória coletiva. De tal maneira, para que a preservação aconteça
de fato é basal que exista um investimento público para a
conservação dos espaços destinados a tal fim. A preservação de
fontes de pesquisa histórica não acontece sem recursos financeiros,
sem o investimento constante e contínuo. Na verdade, a preservação
das fontes requer uma política de estado constante e contínua em
prol daquilo que é coletivo. Como fazer isso no Brasil? Seria
importante a digitalização das fontes, a preservação dos terrenos
como em Portugal? Com certeza sim, além de outros elementos que
possam ser incorporados pelo Estado visando a preservação da
cultura brasileira.

Integram, a nosso ver, o rol de dispositivos necessários a


preservação da memória os Programas de Graduação e Pós-
Graduação públicos nos quais esse conhecimento é produzido. No
caso, não apenas aqueles que pesquisam Antiga, mas todos os
estudiosos que buscam a produção de conhecimento. Nesses
espaços o investimento de recursos financeiros também é algo vital,
incluindo nesse sentido mesmo os recursos financeiros que custeiam
bolsas de estudos, participação em eventos e pesquisas de campo.
Para além dessa questão é vital que essa produção de conhecimento
também alcance a sociedade como um todo e que não permaneça
enclausurada nos espaços acadêmicos. No mais, a luta pela
preservação do patrimônio é algo que deve estar presente na
sociedade brasileira como um todo.

608
Referências Bibliográficas
Esther Salzman Castellano é aluna da Pós-Graduação em História
onde cursa Mestrado.

CASTELLANO, E.S. A cultura material a favor da antiguidade


clássica In: BUENO, André; CREMA, Everton; ESTACHESKI,
Dulceli; NETO, José [org.] Aprendizagens Históricas: ensino de
história. União da Vitória/Rio de Janeiro: LAPHIS/Edições especiais
Sobre Ontens, 2018.

FUNARI, P. P.; GARRAFONI, R. S. Considerações sobre o estudo da


Antiguidade Clássica no Brasil. Acta Scientiarum. Education, v. 32,
n. 1, 2010. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciEduc/article/view/9
474> Último acesso em: 09 de março de 2018.

GARRAFFONI, R. S. Reconfiguração dos estudos sobre a


Antiguidade na atualidade: os desafios de novas abordagens. In
SILVA, H. R. (org.) Circulação das ideias e reconfigurações dos
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609
ARQUIVO E HISTÓRIA: A
IMPORTÂNCIA DOS DOCU MENTOS
ARQUIVÍSTICOS PARA O ESTUDO DA
OCUPAÇÃO E POVOAMENT O DA
BAIXADA MARANHENSE- SÉCULO
XVIII
ALESSANDRA CRISTINA COSTA
MONTEIRO

1. ARQUIVO, MEMÓRIA E A PESQUISA HISTÓRICA.

Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005,


p. 27), o conceito de arquivo pode ser entendido de quatro formas
diferentes: a primeira ligada a ideia de um “conjunto de
documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva,
pública ou privada, pessoa ou família”; a segunda como uma
“instituição ou serviço que tem por finalidade a custódia, o
processamento técnico, a conservação e o acesso a documentos”; a
terceira como “instalações onde funcionam arquivos”, e, por fim,
“móvel destinado à guarda de documentos”.

Um documento pode ser útil por vários motivos. Para as Ciências


Humanas, com destaque especial a área de História, os documentos
arquivísticos vistos como centros de memória, são fundamentais
para o desenvolvimento das pesquisas. Desse modo, cabe entender
as instituições arquivísticas como o laboratório do historiador onde
ele poderá, através dos documentos, comprovar (ou não) suas
hipóteses.

610
Philippe Ariès (1998, p. 175-169) destaca que “talvez os homens de
hoje sintam a necessidade de trazer para a superfície da consciência
os sentimentos de outrora, enterrados numa memória profunda”.
Segundo Ariès, o historiador relê hoje os documentos utilizados por
seus predecessores, porém com um novo olhar e outro gabarito. Ele
busca as chaves das estratégias comunitárias, dos sistemas de valor,
das organizações coletivas, ou seja, de todas as condutas que
constituem uma cultura rural ou urbana, popular ou elitista.

Indolfo considera os documentos como formas de memória e


ressalta sua importância para a história da humanidade.

“O documento ou, ainda, a informação registrada, sempre foi o


instrumento de base do registro das ações de todas as
administrações, ao longo de sua produção e utilização, pelas mais
diversas sociedades e civilizações, épocas e regimes. Entretanto,
basta reconhecer que os documentos serviram e servem tanto para a
comprovação dos direitos e para o exercício do poder, como para o
registro da memória (INDOLFO, 2007, p. 29)”.

Nessa perspectiva, coube a história e aos arquivos a conservação e


transmissão de uma memória que já não aparece e não se mantém
de forma natural, surgindo para essas sociedades o que Nora (1993,
p. 13) chamou de “lugares de memória”. Contudo, por se tratar de
uma construção histórica, estes espaços estão sujeitos a interesses
particulares que desejam torná-los “marcos testemunhais de uma
outra era, das ilusões de eternidade”. Com isso,

“os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não


há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios

611
fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais
(NORA, 1993, p. 13)”.

Ademais, concordemos com o historiador Marc Bloch (2001, p. 08)


para o qual “documentos são vestígios”, ou ainda, “as fontes são
testemunhos da história”. Contudo, Bloch conclui que “mesmo o
mais claro e complacente dos documentos não fala senão quando se
sabe interrogá-lo”. Enquanto isso, Le Goff (2003, p. 535-536) chama
atenção para a importância de uma análise crítica destas fontes já
que “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do
passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as
relações de forças que aí detinham o poder”.

De Certeau (DOSSE, 2004, p. 197) também nos “convida a não se


contentar em restituir o passado tal como foi, mas a reconstruí-lo, a
reconfigurá-lo ao seu modo em uma dialógica articulada a partir da
distância irremediável entre o presente e o passado”. Sobre este
processo, Droysen acredita que

“a operação historiográfica deve começar com uma pergunta, com


uma questão histórica e com o reconhecimento dos traços do
passado no presente, nas lembranças e nos vestígios, que servem de
fontes ao historiador. Em seguida, entra a metodologia que reúne a
heurística, interpretação e crítica das fontes, na qual as hipóteses são
levantadas e testadas, onde o historiador se torna autorreflexivo e
percebe sua relação ou não com aquela tradição [...] (DROYSEN,
2009, p. 18)”.

Conforme Certeau (2002, p. 34) não podemos esquecer que “uma


leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos
documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente”. Dito

612
isto, tanto uma quanto a outra se organizam em função de
problemáticas impostas por uma situação. Isso significa que elas são
conformadas por premissas, ou seja, por "modelos" de interpretação
ligados a uma situação do presente.

Mas, afinal, qual a importância das instituições de memória para a


prática historiográfica?

2. O ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO E AS CARTAS DE


SESMARIAS

Levando em consideração a importância dos Arquivos para a


História, este artigo trata de um estudo centrado em documentos
manuscritos, especificamente correspondências trocadas entre os
sesmeiros (pessoas que recebiam os lotes de terras da administração
portuguesa) e a Coroa. O nosso objetivo é tratar do povoamento da
região do rio Pericumã, situado na Baixada maranhense, a partir das
doações de sesmarias e da implantação das fazendas e das lavouras,
em um recorte temporal que vai de 1767 à 1804, momento da
conquista deste espaço pelos requerentes. Para tanto, os documentos
do Arquivo Histórico Ultramarino, compuseram a rica
documentação levantada para tal pesquisa.

De modo geral, o acervo desta Instituição compreende a


documentação proveniente do antigo Conselho Ultramarino, órgão
responsável por todas as esferas da administração portuguesa no
ultramar. Explorado e prospectado ao longo de décadas, o Arquivo
Histórico Ultramarino é considerado referência obrigatória para os
historiadores brasileiros.

613
Durante todo o período colonial foi aplicado no Brasil o sistema das
sesmarias, porções de terras doadas a particulares para o cultivo e
aproveitamento, pelos capitães donatários ou governadores. Ou
ainda, “as sesmarias eram terrenos incultos e abandonados
entregues pela Monarquia portuguesa, desde o século XII, às
pessoas que se comprometiam a colonizá-los dentro de um prazo
previamente estabelecido” (DINIZ, 2005, p. 02).

Assim sendo, “essas doações de terras constituem uma velha


tradição portuguesa ligada ao processo de conquista do território da
península contra a presença mulçumana” (CHAMBOULEYRON,
2010, p. 101-102). Baseado nisso, houve uma transposição desse
sistema de concessões de terras para a América portuguesa. Para
Nozoe, “a transposição deste instituto jurídico para terras brasileiras
deuse em face do desejo da Coroa portuguesa de promover o
povoamento e o aproveitamento por particulares, de um lado, e, de
outro, da ausência de um meio legal alternativo para viabilizar
aqueles intentos” (NOZOE, 2006, p. 588).

Para a realização desta pesquisa buscou-se a análise de Cartas de


Sesmarias referentes a esta parte da América portuguesa combinada
com o uso de metodologias convencionalmente utilizadas pelos
historiadores, uma delas foi o método crítico de Marc Bloch. Tal
como Bloch (2001, p. 08) expõe, é o método por excelência do
historiador convencional. Desse modo, comparar as informações das
fontes primárias com os dados oferecidos pela bibliografia
especializada, fazendo problematizações e interpretações, tornou-se
relevante para o estudo em questão.

614
2.1 Ocupação, Povoamento e Cultivo no Rio Pericumã: um estudo
arquivístico.

A região do rio Pericumã faz parte de uma vasta rede hidrográfica


com extensas planícies fluviais inundáveis, estendendo-se por 20 mil
quilômetros quadrados, nos baixos cursos dos rios Mearim e
Pindáré, e médios e baixos cursos dos rios Pericumã e Aurá,
chamada de Baixada Maranhense.

A análise dos documentos oficiais - Cartas de Sesmarias- revela


aspectos essenciais que permitem uma leitura do espaço físico e
socioeconômico do local analisado, contribuindo assim, para o
conhecimento da ocupação e povoamento da região do rio Pericumã
no período colonial.

A análise histórica da formação territorial da bacia do rio Pericumã


mostra que o processo foi marcado por lavradores e criadores que
solicitavam os lotes de terras para estabelecer principalmente áreas
de cultivo e criação do gado. Dessa forma, constata-se que a política
de expansão e ocupação da região estava com frequência ligada às
atividades agrícolas e à escravização, bem como com a pecuária.

Assim, “possuindo bastantes Escravos que empregava em lavouras”


sem ter “terras suficientes para continuar” (AHU, MA, cx. 76, doc.
6516), ou sendo “possuidor de huma fazenda de Gado, [...], sem que
para apascentar tivesse terras próprias” (AHU, MA, cx. 43, doc.
4215), apresentavam-se como fatores preponderantes para pedir que
ao Rei que lhe “comcedesse em nome se Sua Majestade toda dita
Terra declarada para a cituação dos Seus gados, como para Suas
Lavouras [...]” (AHU, MA, cx. 43, doc. 4215).

Em 1767 o requerente Antonio Inocêncio indica que sendo


“possuidor de huma fazenda de Gado Vacum e cavallar, sem que

615
para apascentar tivesse terras próprias nem tão pouco para as suas
Lavouras” (AHU, MA, cx. 43, doc. 4215), usaria as áreas recebidas
para o dito fim. Em outros casos como o de Antônio Francisco de Sá,
apontam somente para a necessidade da lavoura, tendo como
objetivo “cultivar todas e quaisquer gênero do Paiz, também para
suas plantações e de seus escravos” (AHU, MA, cx. 93, doc. 7641).

Os sesmeiros tinham o direito de possuir as terras como


propriedade sua, de seus ascendentes e descendentes. Isso fica claro
na correspondência enviada a José da Silva Leitão [...] para que o
dito José da Silva Leitão, haja, logre possua as sobreditas Terras
como cousa sua própria, para ele e seus herdeiros, ascendentes, e
descendentes, Sem tributo algum, mas que o dízimo a Deoz dos
frutos que nela tiver, e lavrar [...] (AHU, MA, cx. 71, doc. 6172).

Essas vantagens, como a de transformar a aquisição das terras em


domínio próprio, de seus herdeiros, ascendentes e descendentes, era
uma forma de incentivar a sua ocupação, além de estimular a vinda
de colonos.

Ademais, a determinação régia de se pagar o dízimo a Deus dos


frutos da terra esteve sempre presente nas solicitações de sesmarias
no rio Pericumã, pois “muitas dessas terras estavam sob a jurisdição
eclesiástica da Ordem de Cristo e lhes eram tributárias, sujeitas ao
pagamento do dízimo para a propagação da fé” (DINIZ, 2005, p. 02).

A obrigatoriedade do aproveitamento da terra recebida, isto é,


ocupá-la e ter condições de fazer uso dela” (SILVA, 2010, p. 49), foi
uma imposição que para o rio Pericumã esteve sempre presente nas
solicitações. Do mesmo modo, a determinação posta por Provisão
Régia de 11 de março de 1754 na qual dentro do limite recebido o

616
contemplado deveria deixar o acesso livre às fontes, pontes e
pedreiras, etc., também ficaram demarcados em todas as solicitações
para a região.

Comparando esses documentos, é notório que a maioria das


solicitações de terras localizadas na região do Pericumã, geralmente
não ultrapassava três léguas de extensão, prevalecendo esta em 25%
dos 32 requerimentos. Enquanto isso, duas léguas foi dimensão mais
solicitada, predominando em torno de 70% dos pedidos. Por outro
lado, a partir de 1794, as terras concedidas não excediam duas
léguas em quadro. Se tomarmos os dados das doações desse
período, constata-se que em alguns casos apesar dos requerentes
solicitarem três léguas de terra, somente duas são confirmadas.

É o caso de Maria Joaquina Correia de Azevedo Coutinho que


“possuía alguns escravos os quais pretendia empregar na lavoura de
cultura de terras e porque não tem próprias em que o faça”, pedia
que lhe fosse concedido “em Nome de Sua Majestade três léguas de
terra de comprido e huma de largo”. Contudo, o Governador Dom
Fernando Antonio de Noronha acha “por bem conceder-lhe somente
duas léguas em quadro”, com a confirmação desta sesmaria em 1802
(AHU, MA, cx. 86, doc. 7188).

Diante disso, podemos aventar a possibilidade da diminuição de


áreas para a distribuição, não que isso significasse que houve uma
quantidade expressiva de doações na região, pois de 1767 a 1804
foram concedidas somente 32 datas de terras. Um período de 37
anos apresentando espaços temporais de até seis anos sem nenhum
registro de doação, como de 1771 a 1776. E de 1771 a 1783, isto é, em
doze anos, foi encontrado apenas um único registro de carta de
sesmaria para a região. Nesse sentido, a distribuição das sesmarias
teve sua maior concentração no período entre 1788 a 1796, onde 20

617
concessões foram dadas, totalizando 62,5% das terras distribuídas,
num período de oito anos.

Ademais, é notório que a implantação da agricultura e pecuária


deveu-se em parte à disponibilidade de terras férteis e recursos
naturais abundantes o que viabilizava a plantação de gêneros do
país e a criação do gado. Com isso, as concessões de sesmarias e a
atividade agropastoril desenvolvida ao longo do rio Pericumã,
permitiram uma movimentação e transformação destes campos
através dos deslocamentos com gados, famílias e escravos, além da
consolidação de uma elite proprietária de terras.

Nos requerimentos de concessões de terras, nota-se o uso recorrente


do argumento sobre a fertilidade do solo. Todavia, a produtividade
das terras junto ao rio destinadas a agropecuária acabava, muitas
vezes por se esgotarem, haja vista as necessidades exigidas por tais
atividades como relatava os próprios requerentes.

Observa-se este fato no pedido de Teodoro Correia de Azevedo


Coutinho, feito em 1777, no qual solicitava uma sesmaria nos
campos do Pericumã e onde consta a afirmação de que já havia
recebido uma, todavia, ela não estava mais própria para o cultivo.
Desse modo, [...] possuindo bastantes Escravos que empregava em
Lavouras não tinha terras suficientes para continuar, porquanto as
que possuíam, que tinhão Sido dos proscritos Jesuítas, arrematadas
na Real Fazenda que Continhão terras de lavrar, crear gados,
estavam já destruídas e Cançadas (AHU, MA, cx. 76, doc. 6516).

Nessas circunstâncias, as riquezas naturais foram de grande


importância para a sobrevivência das plantações e animais. Isso
significa que havia uma relação direta entre o ambiente escolhido e

618
as práticas econômicas desenvolvidas. A terra escolhida deveria
facilitar, entre outras coisas, a criação das pastagens, tendo em vista
que o gado era de extrema importância para auxiliar no trabalho do
engenho, alimentar a população, além de permitir o mercado do
couro.

Nota-se dessa forma que as principais atividades econômicas


estavam ligadas aos rios, onde se encontravam as terras mais férteis
e propícias para a criação do gado. Assim, a ocupação dos solos do
Maranhão, com algumas exceções, quase sempre esteve atrelada à
agricultura e à pecuária. Isso se explica porque o território da
Baixada maranhense, “[...] situado relativamente próximo ao local
de chegada dos colonizadores português, é composto por solos
relativamente mais férteis se comparados aos da ilha do Maranhão
[...]” (FARIAS, 2012, p. 29).

Afirma Marques (1970, p. 514- 15) que o Pericumã facilitava “o


comércio pelo interior dos distritos de Alcântara e Guimarães”, além
disso, tal rio “essencialmente agrícola, sendo o seu principal ramo a
plantação da cana-de-açúcar”; possuía “engenhos, movidos por
água e por animais, e como as terras são de produção espantosa,
tendo todos êles campos de criar do lado, e o pôrto do embarque em
distância mandam os lavradores ao mercado grande quantidade de
açúcar”.

Caracteriza-o ainda como “abundante de peixe [...] e como é


acompanhado de campo por ambas as margens oferece vistas
pitorescas. É essencialmente agrícola [...], é criadora, e nesses férteis
campos existem muitas fazendas de gado até de lavradores [...]”
(MARQUES, 1970, p. 515). Ademais, fazendo a análise dos
requerimentos das áreas adjacentes ao Pericumã, verifica-se a
presença de expressões que caracterizam o rio, “[...] havendo nas

619
sobreditas terras Estradas públicas que atravesse Rio Caudaloso que
necessite de barca para a Sua passagem” (AHU, MA, cx. 71, doc.
6172).

3. CONCLUSÕES

Os documentos analisados mostram que a conquista desta região


teve relação direta com a prática de distribuição das terras sob o
regime das sesmarias. Este sistema constitui-se como o principal
instrumento de reafirmação do poder metropolitano bem como para
o estabelecimento de uma elite proprietária de terras, gados e
escravos na região do rio Pericumã. Logo, através da adoção do
regime de Sesmarias, a distribuição das terras aconteceu atrelada ao
seu cultivo.

Ademais, a orientação expressa pela administração colonial era


explorar, defender e ocupar a terra com a intenção de expandir o
território e aumentar seus rendimentos. Neste ponto, a agricultura
como justificativa central para as solicitações, algumas vezes
associada à pecuária, teve um significado importante para o
pensamento político-econômico daquela época. Nesse sentido, as
áreas concedidas em sesmarias para os agentes coloniais foi uma
prática encontrada pela Coroa para povoar e aumentar a produção
agrícola da região.

Nota-se ainda que a existência dos campos naturais aparece como


aspecto indispensável para o desenvolvimento das atividades
econômicas. Com base nisso, o rio Pericumã mostrou-se como um
fator importante na consolidação de uma economia voltada para o
cultivo e para a criação de animais, uma vez que suas águas
abundantes e fartas de alimentos favoreceram para que isso
acontecesse. Concomitante a isso, as autoridades metropolitanas

620
incentivam a produção agrícola, algumas vezes concedendo
privilégios aos produtores, como a isenção de impostos.

Além disso, diretamente ligada ao movimento de conquista e


ocupação do espaço para a implantação das lavouras e criação do
gado, esteve a formação de adensamentos populacionais e vilas,
pois, foi a partir destas atividades que as povoações começavam a
ser formadas. Nessa perspectiva, a configuração espacial das
margens do rio Pericumã foi sendo moldada no século XVIII pelas
doações de terras aos requerentes que provinham principalmente de
Alcântara.

Não resta dúvida assim, de que a mobilidade desses sujeitos


históricos empreendida no processo de conquista e ocupação destas
áreas foi fundamental para formar e reforçar suas relações
econômicas e familiares, uma vez que as concessões de sesmarias e a
atividade agropastoril desenvolvida ao longo do rio permitiram
uma movimentação e transformação destes campos através dos
deslocamentos com gados, familiares e agregados.

Desse modo, ficou evidente que a proximidade dos rios era um


aspecto que acarretava grandes vantagens para os requerentes de
sesmarias. Por isso, a conquista não pode ser entendida somente
como um reflexo da necessidade de espaço para a criação de
animais e desenvolvimento de lavouras, mas como um projeto de
homens e mulheres de uma colônia isolada da América portuguesa
que estavam em busca de melhores condições sociais.

O estudo apresentado buscou, para além de uma análise das Cartas


de Sesmarias, mostrar também a importância dos Arquivos nos
estudos da ocupação e povoamento do território ao longo do século

621
XVIII. Portanto, a memória da sociedade, registrada nos
documentos arquivísticos formam um patrimônio documental.
Diante disso, é perceptível a necessidade da preservação da
documentação armazenada nos arquivos.

REFERÊNCIAS

Graduação em Ciências Humanas- História- Universidade Federal


do Maranhão; Pós Graduação em Filosofia das Ciências Humanas-
Universidade Federal do Maranhão; Mestrado em História Social-
Universidade Federal do Maranhão; Professora Estadual do Ensino
Básico.

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AHU, Maranhão, caixa 71, doc. 6172.

AHU, Maranhão, caixa 76, doc. 6516.

AHU, Maranhão, caixa 92, doc. 7616. AHU, Maranhão, caixa, 93,
doc. 7641.

AHU, Maranhão, caixa 86, doc. 7188.

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625
ESTUDOS JUDAICOS COMO ESTUDO S
CULTURAIS: UMA REFLEXÃO SOBRE
OS SEPHARDIC STUDIES
LUCAS DE MATTOS MOURA FERNANDES

Os Sephardic Studies são uma vertente laica dos estudos judaicos que
buscam evidenciar o estudo das identidades periféricas que
compõem a população judaica, de modo a, inclusive, mobilizar a
defesa de um estado multicultural como modelo para uma pátria
com judeus.

Dentro dos limites deste ensaio pretendemos correlacionar algumas


questões levantadas ao longo do desenvolvimento dos estudos
culturais com as problematizações mais recentes colocadas pela
historiografia judaica relacionada aos Sephardic Studies, sendo
necessário por isso uma breve exposição inicial de como se formou a
identidade sefaradim por meio de seus marcos históricos.

Na Rota dos Sefaradim

O termo Sefarad provém de uma citação bíblica do livro do profeta


Obadias em referência a uma cidade antiga da Ásia menor, mas ao
longo dos séculos de migração do povo hebreu, passou a relacionar
toponimicamente com a península ibérica, pois apesar da ampliação
dos limites do mundo conhecido, os judeus continuavam se
orientando pelas noções dadas a partir do conhecimento do mundo
bíblico. Os primeiros judeus a ali chegarem, talvez os responsáveis
por esta nomenclatura, teriam instalado suas residências na região
juntamente com a chegada do Império Romano, se tornando uma
presença constante apesar do posterior domínio visigótico, marcado
pela perseguição.

Apesar da fragmentação política da península ibérica durante a


idade média e da ocasional hostilidade de seus governantes, as
comunidades judaicas de Sefarad experimentaram ali um período

626
de prosperidade ímpar, se tornando referencial cultural para outras
comunidades judaicas de todo o mundo.

Foi na Península Ibérica de domínio muçulmano que a comunidade


judaica de Sefarad alcançou o seu auge, se alimentando da interação
entre as culturas das três grandes civilizações monoteístas bem
como da recuperação promovida pelos conquistadores e mercadores
muçulmanos dos tesouros da antiguidade clássica, reinseridos na
Europa pelos territórios islâmicos de Córdoba e Sardenha.

A “Era de Ouro” do judaísmo despontou então em Al-Andaluz


(BRENNER,2013,P.80). A verdade a dicotomização entre territórios
cristãos e territórios islâmicos como chave explicativa para a
península ibérica anterior a Reconquista acaba por ofuscar as
diversas trocas culturais que aconteciam nesta Península, contando
com a participação não apenas dos povos cristãos, judeus e
muçulmanos, mas de outros grupos góticos e berberes.

Principalmente entre os séculos X e XII, as comunidades judaicas em


Sefarad produziram grandes filósofos, poetas, exegetas bíblicos,
cientistas e estadistas(BRENNER,2013,P.81). Com o início as guerras
de Reconquista e principalmente com a escolha das coroas de
Aragão e Castella de legitimarem a luta pelos territórios ao sul de
seus reinos por meio do discurso religioso, a situação judaica
começou a se deteriorar. Assim em 1391, como resultado das
pregações de um padre denominado Ferrán Martínez, iniciou- se
uma onda de violência e mortes, bem como de batismos forçados
que deu origem a uma crescente presença de criptojudeus na
sociedade espanhola.

O século seguinte foi decisivo na formação da identidade dos judeus


que participavam da comunidade de Sefarad. Em 1481 foi
estabelecida o Tribunal do Santo Ofício na Espanha perseguindo de
modo primordial os conversos e judaizantes,enquanto os judeus que
haviam resistido dentro da lei judaica permaneciam confinados em
bairros denominados juderías. Contudo a penetração das ordens da
Inquisição, bem como a proliferação do uso de motivos religiosos

627
para legitimar o ataque contra o patrimônio de judeus enriquecidos
não deixava nenhum destes isento.

Em 31 de Março de 1492 foi expedido um ultimato. Após algumas


consultas, os reis católicos declararam suas decisões de dar aos
judeus apenas duas opções, o batismo ou o exílio, tendo um prazo
breve de quatro meses para saírem. Com esse Edito a maior parte
dos que não se converteram, se exilaram no vizinho Portugal, que
para firmar um pacto de casamento entre as coroas em 1497, teve
que ceder às condições impostas pela família da noiva, que todos os
súditos portugueses fossem batizados. Apesar desta imposição ter
sido burlada de várias maneiras, mais uma vez a comunidade
judaica viu as portas se fecharem para a manutenção de sua religião
e identidade cultural, de forma ainda mais acelerada após 1536, com
a instalação da Inquisição em Portugal.

Esses judeus que saíram da península ibérica (Sefarad) a partir das


perseguições do século XIV, tendo como marco o edito de 1492,
trilharam caminhos diversos, seguindo para a Europa protestante,
para as cidades gregas há pouco conquistadas pelo Império Turco-
Otomano e principalmente para o Norte da África, já que desde o
governo visigótico havia trânsito de tribos e grupos germânicos
entre o norte da Península Ibérica e as montanhas berberes. Esses
judeus a partir de então distinguiram-se dos judeus locais por onde
emigraram, por conta da língua, cultura e liturgia próprias
desenvolvidas ao longo dos séculos em Sefarad, passando a
denominarem-se sefaradim ou sefarditas (BORGER, 2002, P.139).

A expressão “exílio do exílio”(SIESS, 2013) é de forma corrente


utilizada pela literatura produzida sobre a rota dos sefaradim
orientais. Como judeus, vinculados à Terra de Israel, como
sefaradim, vinculados à península ibérica; encontraram no Norte da
Africa especialmente a dificuldade de se relacionarem com os
judeus de cultura árabe, os mizrahim, literalmente orientais,
participantes das sociedades locais a mais tempo e de modos de
vida totalmente diferentes, a ponto serem necessárias a criação de
sinagogas separadas, inclusive com ritos próprios em ladino e

628
português, casamentos mistos em alguns lugares foram proibidos e
até mesmos criaram-se mais subclassificações distinguindo uns de
outros. No Marrocos se separavam em toshavim e megorashim, na
Tunísia, granas e touansas (BORGER,2002,P.143).

Identidades migrantes: um breve comentário sobre o


desenvolvimento dos estudos culturais

Em “Pensamento crítico desde a subalteridade” Maldonado-Torres


traça ao longo do desenvolvimento de sua argumentação uma
genealogia dos estudos Étnicos e Culturais, tendo como foco não
apenas o surgimento e relação entre as disciplinas que lançaram
bases para os estudos culturais, mas principalmente a análise da
trajetória dos temas “afro-orientais” no interior das ciências
desenvolvidas no sistema universitário (MALDONADO-TORRES,
2006).

Durante o século XIX, com o decréscimo da autoridade da teologia e


dos grupos sociais que se sustentavam nela como meio explicativo
da realidade natural e social, a Universidade europeia mobilizou a
antropologia e o orientalismo como instrumentos de informação aos
seus fins coloniais e “civilizatórios”. Enquanto o desenvolvimento
das ciências naturais permitia ao ser humano, especificamente o
colonizador, intervir racionalmente no mundo físico, o
desenvolvimento das ciências humanas permitiria então uma
projeção sobre o Estado Moderno e as colônias. A partir do século
XIX esta estrutura epistemológica oferecia a compreensão e o
controle da natureza, da sociedade moderna e do mundo colonial.

Contudo os estudos religiosos se mantiveram presentes na


universidade por meio de nichos conservadores, de modo que,
como aponta Maldonado, ilustram de forma clara a relação entre
conhecimento e poder, lançando as bases metodológicas para
os Estudos de Área, que apareceram como um passo a frente em
relação às ciências sociais desenvolvidas pela academia europeia no
século XIX. Enquanto a antropologia e a sociologia buscavam
compreender o Estado Moderno e as sociedades não europeias, a

629
partir de uma visão evolutiva da história, o desenrolar do século XX
e a ascensão do “império americano”, além dos processos
decoloniais, trouxeram à universidade americana a necessidade de
especialistas que se voltassem para o conhecimento do mundo além
da visão eurocêntrica, mobilizando metodologias interdisciplinares -
aspecto fundamental dos Estudos de Área.

O desenvolvimento de perspectivas teóricas sobre a


multiculturalidade por meio da análise do contexto de
colonialidade/pós colonialidade, se deu principalmente por uma
segunda geração de interpretes da multiplicidade de inscrições que
as identidades sofriam e por meio das quais interagiam nestas
condições. Leitores de Fanon, Derrida e Foucault, autores
como Eduard Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha
problematizaram a questão da subalternidade e da construção de
identidades num mundo (pós?)moderno e pós colonial(?), onde as
principais fontes de referência identitária são fluidas .

No que se refere a epistemologia dos estudos culturais, Gayatri


Spivak levanta em sua obra (SPIVAK, 2010) a questão da
possibilidade de o subalterno falar por si. Ou seria ele meramente
um sujeito passivo a ser retratado pelas elaborações literárias e
científicas ocidentais à revelia de sua própria expressão? A autora
expressa sua posição sobre a impossibilidade da figura do
subalterno, mencionada e tratada como objeto de estudos culturais,
revelar algo além daquilo que seus expectadores constroem como
relacionado a ele. Em Spivak, a origem dos Estudos Subalternos
estaria na investigação de grupo, buscando a identidade na
diferença, os desvios no ideal colonial, os silêncios no texto, aquilo
que a fonte se recusa a dizer (SPIVAK, 2010, P.61).

Assim compreendemos o fato de que uma geração de intelectuais do


Terceiro Mundo tenha se levantado para produzir conhecimento
científico elaborado por meio de suas concepções epistêmicas e
percepções de mundo que não são completamente alcançadas pelas
formulações da academia ocidental, trabalhando assim com
categorias e temas relacionados a questões de formação de

630
identidades periféricas, fazendo releituras dos processos de
(re)construção de identidade nos países recém desocupados pelas
tropas coloniais, e nos grupos originados dos mais diversos fluxos
migratórios, oriundos do terceiro mundo em direção às metrópoles.

Talvez ainda não possamos falar de uma transição do domínio do


espaço acadêmico para grupos correspondentes às comunidades
que demandam produção de conhecimento, podemos dizer de fato
que a abertura deste espaço para outras perspectivas
epistemológicas, formando a linhagem de pesquisadores que
ultrapassou os limites da educação religiosa e conservadora e de
acordo com seu contexto histórico respondeu às concepções que
dividiam o mundo em religiões e raças, em áreas geográficas e em
grupos étnicos.

Estudos Sefarditas como Estudos Culturais

A transição dos estudos judaicos no meio universitário,


transformando-se em um campo dividido entre os estudos
religiosos e os estudos étnicos ao longo do século XX, foi resultante
da demanda por conhecimentos da questão judaica ascendente entre
os principais temas estratégicos internacionais a partir da Segunda
Guerra Mundial e posteriormente, no contexto da Guerra Fria,
ganhou dimensão especial sendo relacionada a Estudos árabes e
islâmicos por conta da inserção da questão palestina entre os temas
de interesse norteamericanos em seus mais diversos aspectos.

A militância em favor de um Estado israelense multicultural e


mesmo as vozes acadêmicas que sugerem o estado palestino como
solução do conflito instalado tem sido retroalimentados por uma
retaguarda acadêmica que busca reler a história de Israel e a
historiografia do povo judeu de modo a dar voz a grupos
subalternos como as minorias étnico-religiosas da região palestínica,
bem como enfatizar a pluralidade de culturas e etnias que deram
corpo ao projeto de nação.

A crença religiosa de que o exílio era parte do desígnio divino e o


retorno à Israel uma promessa divina a se cumprir com o advento

631
messiânico, não apenas manteve unificada uma fé comum entre os
mais diversos setores do povo judeu, mas também correlacionava
sua identidade a um espaço territorial entendido como ponto de
partida e de chegada de todos os que com partilhavam desta fé
(BRENNER,2013, P.XXXI). Contudo essa noção de identidade única
do povo judeu tem sido analisada como uma construção de mito
fundador do Estado Israelense, que motivada por fins políticos
propaga uma homogeneidade questionável.

Em “A Invenção do Povo Judeu”,Shlomo Sand, que inicia expondo


sua própria genealogia judaica, analisa as principais bibliografias
sobre a história dos judeus, acompanhando outros autores- como
Boaz Evron e Uri Ram (EVRON,1995;RAM,1995)- propõe que a
História de Israel seria apenas devidamente compreendida se
tratada como a das demais nações, uma comunidade construída por
meio de uma delimitação, de uma memória nacional, de um
conjunto de mitos fundadores e de uma multiplicidade grupos
sociais e ideológicos que foram gradualmente deslocados e por
vezes silenciados (SAND,2011,P.23).

Dentre as proposições de Sand estão a de que a maioria dos que hoje


são considerados judeus seriam na verdade oriundos das fases de
proselitismo religioso, como as conversões do povo idumeu e de
outras tribos semíticas na antiguidade. Deste modo os judeus
asquenazim, originários das Europa centro-oriental, e os sefaradim,
da península ibérica, dois dos principais grupos étnico-culturais
judaicos, seriam histórica e geneticamente descendentes de povos
estrangeiros convertidos ao judaísmo.

Por outro lado, Sand advoga a tese de Abraham Polak, de que


nunca houve uma expulsão definitiva dos judeus do território
palestino, mas que nos períodos de domínio romano-cristão e
islâmico muitos dos “povos da terra” aderiram às novas fés.
Conclusão polêmica de que parte dos ditos palestinos atualmente,
seriam na verdade descendentes de judeus- Sand usa o termo
judaenses para diferenciar da atual concepção de judeu- que
perderam sua identidade religiosa(SAND,2011,P.189)..

632
Com a ascensão da questão palestina e os conflitos àrabe-israelenses
como tema de interesse estratégico, não apenas para compreender a
formação política do Estado de Israel, mas também para o estudo da
formação da identidade judaica do mundo contemporâneo, as
universidades, especialmente americanas, seccionaram os estudos
judaicos para apreciação específica da história e produção cultural
dos judeus não ocidentais, a saber os sefaradim do mundo islâmico
e os mizrahim (literalmente orientais, judeus de cultura árabe)
(GERBER, 1995)
A grande quantidade de correlações entre questões levantadas nas
principais áreas de estudos de periferia das universidades ocidentais
e as questões propostas sobre a trajetória dos sefaradim ao longo a
história judaica deu margem a uma apropriação de conceitos que
enriqueceram o campo dos Sephardic Studies com o vocabulário-
conceitual analítico que os estudos culturais mobilizam no
desenvolvimento de suas pesquisas.

De fato a identidade sefaradim ser constituída por meio da


experiência diaspórica, entendida aqui não apenas como dispersão
de um povo, mas uma dispersão onde se mantém um vínculo
afetivo, cultural e/ou religioso com a terra de origem. Desta forma a
questão do exílio se apresenta como um tema fundamental para as
releituras sobre as especificidades sefaradim em relação ao todo da
identidade judaica construída nos moldes nacionalistas.

Assim as pesquisas recentes sobre a formação da identidade


sefaradim tem dialogado com o enfoque relacional das teorias de
identidades, a partir das quais a percepção de identidade é
considerada em termos da dinâmica social, sendo construída
coletivamente e tendo um caráter polissêmico, aberto e inacabado,
sempre sujeita a ressignificação segundo as condições históricas
(CHIRIGUINI, 2008,P.61).Essas identidades socialmente construídas
são oriundas de um processo de apreensão e reconhecimento de
procedimentos e valores que nos aproximam dos que os
compartilham e nos afastam/separam dos outros, aqueles que não os
compartilham.

633
Consideramos que a partir desta intensa dinâmica em que se
formam e se modificam as identidades étnicas e nacionais devemos
nos manter sempre atentos contra a ilusão de uma identidade
homogênea que a partir de seu rótulo externo representa
plenamente as mais diversas dimensões individuais de seus
membros. É fundamental, portanto, a noção de que as diásporas
múltiplas vivenciadas por várias gerações de judeus de origem
ibérica teria deixado a marca em sua cultura e por conseguinte na
formação da identidade sefaradim, objeto principal de estudo
dos Sephardic Studies (WAKS,2015,P.20).

Assim o conceito de dupla diáspora mobilizado para explicar a


identidade sefaradim não interpreta a expulsão dos judeus ibéricos
como um momento de ruptura, mas como um novo princípio, a
origem de um segmento judaico com especificidades culturais que o
distinguem dentre os outros “filhos de Sião”. Como conhecemos da
história sefaradim, os expulsos da península ibérica que migraram
para países islâmicos como o Marrocos e os domínios do Império
Otomano, passaram a se posicionar nas sociedades em que estavam
como grupos subalternos.

Nesta condição os sefaradim se situavam em um entre-lugar


(BHABHA,1998,P.27), uma posição social ambivalente, que ao
mesmo que participa e compõe, também não se enquadra no espaço
reservado aos dhimmi do contexto muçulmano. De modo que , por
exemplo, Daniel Rivet, especialista em história do Marrocos,
considera que os judeus “não são incluídos, nem excluídos” da
sociedade marroquina (RIVET,2012).

A complexidade da formação e manutenção de sinais identitários da


comunidade sefaradim pelo mundo, principalmente com relação a
propriedade que os elementos ibéricos de sua cultura foram
relevados a uma tradição de origem própria não apenas tornaram
esse segmento judaico um povo dentro de um povo, mas também o
tornou objeto de um campo de estudos próprio que busca analisá-lo
além das possibilidades dos tradicionais estudos judaicos.

634
Nos Sephardic Studies busca-se compreender as especificidades da
cultura sefaradim como referência para o estudo de outras culturas
de formação periférica, que tem passado pelas múltiplas
experiências diaspóricas.

De forma concisa, compreender como a produção acadêmica


voltada para a perspectiva descolonial pode ter importante papel de
mobilização de opiniões abrindo espaço para conhecimento de um
grupo subalterno, colonizado. Assim como os estudos culturais têm
sido desenvolvidos pela postura de seus pesquisadores diante das
dificuldades de emancipação daqueles grupos que construíram sua
identidade em uma experiência diaspórica ou colonial, seu
vocabulário teórico-analítico tem fomentado no campo dos estudos
judaicos uma ruptura com os paradigmas que se atinham a
homogeneidade do projeto de nação. A experiência sefaradim não é
apenas um elemento que compõe a cultura judaica, mas que se
relaciona com a história mundial e os mais diversos grupos que
compartilham da imigração, dominação, e que se identificam não
apenas por conta de onde estão , mas pelo caminho que
percorreram.

Referências

Lucas de Mattos Moura Fernandes é Historiador e Professor de


História,Filosofia e Sociologia (SEEDUCRJ).Mestre em História
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também
participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Árabes e Judaicos.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura.Belo Horizonte: Editora


UFMG,1998
BIBLIA SAGRADA. Edição Contemporânea de Almeida.São
Paulo:Editora Vida ,1998
BORGER, Hans. Uma História do povo judeu.v.2. das margens do Reno
ao Jordão.São Paulo: Sêfer,2002.
BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. São Paulo: Martins
fontes,2013.

635
CHIRIGUINI, M.C. Identidades socialmente construidas. in:
CHIRIGUINI, M.C. (compil.): Apertura a la Antropología: alteridad,
cultura, naturaleza humana. Buenos Aires:Proyecto editorial, 2008
GERBER, Jane (org.).Sephardic Studies in the
University. Cranbury:Associated University Presses,1995.
MALDONADO-TORRES,Nelson. Pensamento crítico desde a
subalteridade: os estudos étnicos como ciências descoloniais ou para
a transformação das humanidades e das Ciências Sociais no século
XXI. Afro-Ásia,2006,n.34
RIVET, Daniel.Histoire du Maroc de Moulay Idrís a Mohamed VI. Paris:
Fayard, 2012
SAND, Shlomo. A invenção do povo judeu.São Paulo: Benvirá,2011
SCHAMA, Simon. A História dos Judeus. À procura das palavras.
1000 a.C.-1492 d.C. São Paulo : Editora Schwarcz, 2013.
SIESS,Joseph. Exile from Exile The Moroccan Jewish Cultural Exile and
Experience Under French Colonial Rule -1912-1960’s. in Journal of
Undergraduate Research, Fall 2012-Spring 2013.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar?Belo Horizonte :Editora
UFMG,2010
WACKS, David. Double Diaspora in Sephardic Literature.
Bloomington: Indiana University Press, 2015.

636
ELEAZAR VERSUS CASEZ : UM
ESTUDO DE CASO SOBRE A
CONSULARIZAÇÃO DO COTIDIANO
NA COMUNIDADE JUDAIC A -
BRASILEIRA NO MARROCOS
CONTEMPORÂNEO
LUCAS DE MATTOS MOURA FERNANDES

Partindo da análise da documentação consular produzida sobre


imigrantes brasileiros residentes no Marrocos nas últimas décadas
do século XIX, este trabalho compõe uma pesquisa voltada para
a compreensão de quais elementos contribuíram para que uma
grande quantidade de marroquinos, formados em uma matriz
cultural judaica sefardita e regressos do Brasil, mesmo ao se
reestabelecerem em sua terra natal, se identificarem ainda como
brasileiros. Buscamos este objetivo por meio da análise de fontes
documentais selecionadas, mantidas pelo Arquivo Histórico do
Itamaraty, que permitem um perfilamento dos indivíduos
implicados em demandas jurídicas e negociações comerciais, nas
quais a cidadania brasileira era evocada.

Alguns judeus marroquinos que migraram para o Brasil ao longo do


século XIX, ao regressarem ao Marrocos, decidiram manter a
cidadania brasileira como forma de acesso a uma determinada
segurança jurídica, tendo em vista a condição judaica na sociedade
marroquina e as vantagens do tratamento dispensado a
estrangeiros, após a interferência francesa de 1863 e o Tratado de
Madri de 1880, que regulamentara a condição de protegido por
nação estrangeira enquanto residente em território
marroquino. Buscaremos neste artigo reconstituir, a partir do estudo
de caso envolvendo a querela entre Abraham Eleazar e Mordokay
Casez, as condições em que a as autoridades consulares eram

637
invocadas em favor de judeus marroquinos com naturalidade
estrangeira, em especial brasileira.

Perfil demográfico da comunidade brasileira no Marrocos em 1900

Em 1900, com o objetivo de reorganizar o Consulado brasileiro em


Tânger (Marrocos), o novo Cônsul Adoniram Maurity Calimerio
decide recensear os cidadãos brasileiros no país, como uma
estratégia de identificação da comunidade local. Sob as ordens do
Cônsul Geral do Brasil no Marrocos, os Vice-Consulados realizaram
um recenseamento da comunidade brasileira naquele país
norteafricano, de modo que qualquer cidadão brasileiro em terras
Marroquinas que se apresentasse ao posto consular mais próximo
de sua residência, munido de documentação oficial emitida pelo
governo brasileiro, fosse certidão de nascimento, de naturalização,
título de eleitor ou passaporte, seria submetido a uma inquirição
para que se registrasse os dados de sua família.

Desta forma, os escritórios consulares em Tânger, Rabat,


Marraquexe, Mogador, Tetuan, Arzila, Casablanca, Mazagão,
Larache e Alcácer acumularam durante o ano de 1900, informações
sobre as principais famílias brasileiras que residiam no país, e após
esses dados serem reunidos pelo Consulado Geral em Tânger, o
Consul Geral Adonyram Maurity Calimério editou o “ Livro de
Registro de Súditos Brasileiros no Marrocos em 1901”, fonte a qual
recorremos para iniciar uma tipologia desta comunidade brasileira.

Devemos evidenciar que este não foi o primeiro recenseamento de


cidadãos executado pelas autoridades consulares brasileiras no
Marrocos. Em nossa pesquisa encontramos relatos de pelo menos
dois censos anteriores, realizados em 1880 e 1890 (AHI 265-1-10).
Ainda assim, nossa pesquisa em nada é prejudicada, tendo em vista
que no censo de 1901, o funcionamento das instituições consulares
brasileiras no Marrocos estava em seu auge, devido não apenas às
chegadas e partidas de imigrantes entre o Marrocos e o Brasil, mas
especialmente por conta das demandas consulares por parte da
comunidade local; assim como estavam em evidência as

638
características desta comunidade brasileira, que devem ser
ressaltadas para os fins histórico-sociológicos de nossa pesquisa.

Outro elemento que cabe mencionar, é o contexto histórico local e


internacional no qual o “Livro de Registro de Súditos Brasileiros no
Marrocos” foi produzido. O processo de recenseamento que deu
origem a este livro de registro dos cidadãos brasileiros no Marrocos
não deve ser entendido somente como uma elaboração de
estatísticas de cidadania pelo recém proclamado governo
republicano. É mais do que isso. Manter postos consulares num país
como o Marrocos, nesta conjuntura geopolítica, significava também
garantir auxílio e proteção jurídica à comunidade brasileira, que
colocada numa condição especial de internacionalidade, como
“protegidos”, acionaria sempre que necessário o apoio das
instituições brasileiras ali representadas. Neste contexto qualquer
país, ocidental ou não, que mantinha postos consulares no
Marrocos, tinha sua soberania respeitada por qualquer motivo que
envolvesse risco jurídico para o interesse de um nacional ameaçado.

Por meio deste censo realizado em 1900, somos informados a partir


da fonte histórica em análise que 110 cidadãos brasileiros se
apresentaram aos Consulados locais marroquinos apresentando
carta de naturalização, 7 apresentaram-se com o título de eleitor
brasileiro e 24 registraram-se por meio de passaporte; totalizando
141 indivíduos, tidos como “chefes de família” (pais em um núcleo
familiar restrito, solteiros independentes financeiramente ou
viúvas). Além desses números, de forma curiosa, o relatório final
emitido neste recenseamento, soma aos 141 registrados, ainda 70
cidadãos brasileiros que não teriam se registrado, mas que foram
incluídos como brasileiros no recenseamento, mas que estavam
ausentes do Marrocos no momento do recolhimento dos dados. Não
fica claro por que motivo estes setenta indivíduos tenham sido
incluídos no quantitativo final de cidadãos brasileiros, mesmo sem
ter correspondido à convocação de recenseamento. Uma explicação
plausível talvez seja o reconhecimento pessoal, e relação próxima
entre a comunidade e o Consulado em questão.

639
Assim a documentação que trabalhamos ao longo desta pesquisa
relata uma série de situações particulares nas quais o governo
brasileiro, e de outras nações, tendo seus cidadãos envolvidos,
reclama apoio institucional para dirimir causas jurídicas.

Por isso ressaltamos que muito além de um debate sobre a natureza


da nacionalidade e de outras características destes cidadãos
brasileiros no Marrocos, também devemos entender que, há um
contingente de membros juridicamente ativos da república que se
valem de uma interpretação tática do direito brasileiro e marroquino
para solucionar suas adversidades cotidianas.

Os cidadãos brasileiros que se apresentavam aos Consulados locais


para se registrarem, não buscavam apenas o reconhecimento como
brasileiros, mas especialmente desejavam que com esse
reconhecimento obtivessem os benefícios estabelecidos no Tratado
de Madri (1880), do qual tiravam proveito para obterem proteção do
governo brasileiro tendo em vista a situação geopolítica do
Marrocos naquela conjuntura norteafricana oitocentista.

A consularização do cotidiano

Abraham Eleazar era natural de Tânger, no Marrocos, mas assim


como muitos de sua geração, emigrou para o Brasil, numa viagem
que, para muitos dos comerciantes como ele, era uma oportunidade
de negócios: capitalizar-se e retornar para um investimento maior
(AHI 265-1-11). Eleazar residiu em Teffé, distrito de Manaus, onde
em 27 de março de 1884 coseguiu obter a carta de naturalizado
brasileiro.

Somente quatro anos depois de naturalizado foi que Abraham


Eleazar reuniu condições de retornar para sua cidade natal. Seu
investimento foi justamente a compra de uma casa, que seria
reformada e daria lugar a um estabelecimento comercial. Dois ou
três meses depois, Eleazar abriu duas portas de seu estabelecimento
para o comercio, empregando dois pedreiros nas obras de adaptação
do imóvel.

640
A rua que Eleazar escolhera para adquirir seu imóvel era muito
movimentada e como era costume em endereços deste tipo, havia
diante das portas das casas a presença de tendas comerciais, nas
quais comerciantes itinerantes marroquinos, tanto judeus como
muçulmanos, residiam provisoriamente enquanto ofereciam suas
mercadorias (265-1-11). Ao perceber que o investimento de
Abraham Eleazar logo se tornaria uma loja concorrente, um desses
comerciantes alojados em tendas, de nome Mordokay Casez, judeu
protegido da Itália, foi até o local da obra e advertindo aos
pedreiros que naquele local, em frente a sua tenda, não poderia ser
aberto uma porta, os persuadiu a parar o trabalho.

Poucos dias depois, Casez decidiu acionar Abraham Eleazar na


justiça, mantendo o esforço para que o possível futuro concorrente
não conseguisse abrir seu negócio. Sendo os dois comerciantes,
protegidos por nações estrangeiras, de acordo com o Tratado de
Madri (1880), deveriam ter sua querela resolvida nos tribunais
consulares, brasileiro ou italiano. Contudo, Casez apelou para o juiz
local Chraa, tribunal marroquino com atribuições pautadas nos
costumes religiosos, como afirma o então Cônsul brasileiro que
acompanhou o caso

“O protegido italiano Mordokay Casez foi mais esperto que o Sr.


Eleazar, e por isso reclamou que a questão fosse submetida ao Chraa,
sendo fato que este tribunal, consultado em matérias análogas,
manda por via de regra fechar portas e mormente janelas defronte
de portas ou casas, tendo essa deliberação por base o princípio
fanático de que as mulheres mouras não podem ser vistas.” (AHI
265-1-11)

A sentença contrária à prosperidade do empreendimento de


Abraham Eleazar, foi emitida pelo tribunal quando ele estava fora
da cidade e lidando com um problema de saúde. Tal sentença exigia
que o comerciante naturalizado brasileiro fechasse suas portas.
Como forma de recorrer do problema e tentar salvar seu negócio,
Eleazar enviou uma correspondência direta ao Ministro das
Relações Exteriores Brasileiro, Quintino Bocaiúva.

641
A cobrança de resultados melhores no caso por parte de Quintino,
enfurecera o então Cônsul geral J.D. Colaço, em Tânger, que em
resposta ao ministro afirmou que o Sr. Eleazar foi “tão torpe como
parte interessada” que nem sequer lhe ocorreu ir até o Consulado
brasileiro e explicar a situação, sendo inclusive claro o fato de que
estas portas estavam abertas para uma rua pública e que o caso não
devia chegar a tal ponto. Como demonstração de seu empenho,
mesmo após a emissão da sentença, Colaço investigou outras opções
possíveis e descobriu a propriedade de um outro protegido italiano
que tinha as janelas abertas para dentro do terreno do sítio de um
muçulmano marroquino e recorrendo ao ministro Mohammed
Torres, para que se cumprisse a medida judicial para os dois casos,
ou para nenhum ( AHI 265-1-11).

O litígio entre Eleazar e Casez, que iniciou-se pelo receio de um


comerciante de ver um possível concorrente ameaçar seu negócio e
alcançou as mais altas instâncias, envolvendo o Ministro das
Relações Exteriores Brasileiro e seu correlato marroquino, nos serve
de exemplo de como querelas cotidianas que antes das
interferências europeias eram decididas por tribunais locais e
mesmo pela corte rabínica da comunidade judaica, passaram a
invocar autoridades superiores de outros países. A saturação das
correspondências oficiais das repartições brasileiras no Marrocos de
denúncias e discussões sobre situações de conflito, reflete a
consequência do Tratado de Madri que marcou a sociedade
marroquina da época, como a sociedade da consularização.

De acordo com Mohammed Kenbib, o neologismo “consularizado”


(m’qûnssô) que se popularizou na última década do século XIX
marroquino, era adjetivo ambicionado por muitos nativos do país,
sendo símbolo de “posses, poder, e de arrogância”
(KENBIB,2016,P.69). A ampliação dos grupos sociais participantes
da condição de protegidos, que por sua vez nada mais era que uma
abertura dos privilégios anteriormente inerentes ás funções
consulares estrangeiras no Marrocos para a sua respectiva colônia
no país, contribuiu, aos olhos marroquinos, para a dissolução da

642
ordem e das instituições do Estado. Entretanto, aos olhos do
Itamaraty e de outras instituições que lidavam com esses
protegidos, o resultado foi a sobrecarga do sistema consular.

O ponto é que os Consulados instalados no Marrocos, atendendo a


demanda de seus protegidos, passaram a dirimir situações em que a
naturalidade ou condição de protegido passou a ser mobilizada em
situações vulgares, como relata J.D. Colaço em reunião de Cônsules
para resolver “atribuições municipais,” como os problemas de
abastecimento de água em Tânger, a constituição de um quebra-mar
em Casablanca e a ativação de um cais em Tânger (AHI 265-1-10).
Até mesmo problemas interpessoais de comunicação passaram a
gerar trabalho para a organização consular, como no caso de Isaac
Bensimão:

“O Sr. Isaac Bensimão, natural desta cidade de Tânger, naturalizado


nesse Império [brasileiro], por carta patente de 26 de junho de 1877,
apresentou-se no referido dia à tarde, desde logo com maneiras
inconvenientes e tendo eu [J.D. Colaço] sido informado, depois que
se retirou, que se apresentara com desusada altivez ao porteiro da
Representação que não tinha obrigação de conhecer quem era e
desejou anunciá-lo antes de entrar [...] convidei o Sr. Isaac Bensimão
a comparecer perante mim com o objeto de [...] aclarar o incidente,
assistindo também o dito porteiro.

O Sr. Isaac Bensimão nem sequer me deixou falar, e levantando a


voz repentinamente disse que não podia admitir diante dele o meu
porteiro e que a mim mesmo não tinha obrigação de respeitar
[...](265-1-10).”

O comportamento impetuoso de Bensimão, que adiante na narrativa


continua a ofender a autoridade do próprio Cônsul, resulta numa
ordem de prisão e, que, como informa Colaço, estaria acompanhado
de sua filha de cinco anos. Ao permitir que Bensimão levasse sua
filha para casa e depois se entregasse para a autoridade policial, o
naturalizado brasileiro aproveita a ocasião para se evadir, dirigindo-
se “à casa de um hebreu súdito britânico, onde ficou, de sorte que,

643
quando os soldados do bachá, governador local, foram procurá-lo,”
tiveram de aguardar na rua a ordem do Cônsul inglês para que este
fosse preso (AHI 265-1-10).

Apesar do desagravo causado por Bensimão, sua fuga para a casa de


um protegido inglês demonstra que de forma astuta um
naturalizado brasileiro encontrava a possibilidade de jogar com as
fraturas e incoerências do sistema de proteção e, por meio de
atitudes individuais avançar por entre os limites jurisdicionais
pautados na nacionalidade. Enquanto estava na casa do protegido
inglês, Bensimão não poderia ser punido pelo próprio Cônsul
brasileiro.

Conclusão

Buscamos demonstrar que a comunidade judaica em questão, ao


mobilizar dentre seus recursos possíveis a naturalização em um
contexto de interferência colonizadora, passa a ocupar o entre-lugar
típico de um grupo social de posição intersticial em uma sociedade
marcada pela colonização, traduzindo a cidadania brasileira em seus
próprios termos, para uso em situações adversas, em que as normas
sociais por eles conhecidas, tanto brasileiras como marroquinas,
eram tensionadas em seu limite.

Por meio do conceito de “consularização do cotidiano” pudemos


analisar de que modos o uso tático das brechas e fraturas no sistema
jurídico, tanto marroquino quanto brasileiro, expõe também as
limitações e possibilidades dos cidadãos que compõem o segmento
social em apreciação e indicando uma contribuição mais ampla aos
estudos de cidadania e migração.

REFERÊNCIAS

Lucas de Mattos Moura Fernandes é Historiador e Professor de


História,Filosofia e Sociologia (SEEDUCRJ).Mestre em História
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também
participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Árabes e Judaicos.

644
Documento AHI 265-1-10
Documento AHI 265-1-11
KENBIB, Mohammed. Juifs et Musulmans au Maroc. Paris:
Editions Tallandier, 2016.

645
A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS
SAGRADOS EM IRATI -PR
WILLIAM FRANCO GONÇALVES

Introdução

Para os praticantes da benzeção, o local onde as pessoas são


recebidas para os atendimentos é concebido como um lugar “santo”,
um ambiente especial onde se sentem mais próximos do sagrado e
de suas divindades. Durante a pesquisa percebemos que a escolha
deste local pode variar de benzedor para benzedor.

Para a realização desta pesquisa foi escolhido o método da História


Oral. O método da História Oral se apresentou como o melhor e
mais completo método para se pesquisar as benzedeiras e os
benzedores de Irati. Pois assim como cita Ferreira e Amado no
livro Usos e abusos da história oral,

“possibilita a história oral esclarecer trajetórias individuais, eventos


ou processos que às vezes não tem como ser entendidos ou
elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos,
rebeldes, mulheres, crianças, miseráveis, prisioneiros, loucos... São
histórias de movimentos sociais menosprezados; essa característica
permitiu inclusive que uma vertente da história oral se tenha
constituído ligada à histórias dos excluídos ( 2006, p. 14)”.

O documento da História Oral possui algo singular, é o resultado do


diálogo entre entrevistador e entrevistado. Para a construção desse
diálogo fomos em busca de praticantes de benzeção, alguns já eram
conhecidos e os outros foram indicados pelos benzedores e
benzedeiras no momento da pesquisa. Importante dizer que a
Historia Oral nem sempre foi o recurso mais utilizado para o
desenvolvimento de pesquisas. Ela passou a ser mais empregada a
partir de 1970, com o advento da “Nova História”, quando a história

646
do indivíduo e de situações singulares ganhou maior importância.
No artigo, Fontes Orais: testemunhos, trajetórias de vida e
História (2005), Antonio Cesar de Almeida Santos argumenta que.

“notadamente, desde as décadas iniciais do século XX, diversos


sociólogos e antropólogos norte-americanos fizeram uso de relatos
orais em suas investigações. Mesmo no Brasil, a utilização de relatos
orais em pesquisas acadêmicas remonta aos anos 1950, também nas
Ciências Sociais. Contudo, foi apenas no contexto da “Nova
História” que as fontes orais fizeram sua reentrada no campo desta
disciplina (SANTOS, 2005, p.2)”.

Os documentos orais possuem informações tão importante quanto


documentos escritos, neles conseguimos ter acesso a memórias dos
indivíduos pesquisados, mas devemos levar em conta que o sujeito
não revive o passado através das lembranças, ele as reconstrói, a
refaz com seus valores do presente. O historiador ao fazer uma
entrevista e sua transcrição, cria sua própria fonte, mas Dinoráh
Almeida nos mostra no artigo Desafios da memória como fonte histórica:
esquecimento, silêncio, mutações e realidades, que o trabalho do
historiador não deve se resumir “a simples técnica de coleta e
transcrição, ele deve ser capaz de fazer as análises e ponderações
que conduzam às reflexões esperadas pelo estudo”.

Voltando para a conceituação sobre o termo espaço, para nosso


estudo, entendemos o espaço a partir da ideia de que os significados
atribuídos a este se configuram e reconfiguram a partir de práticas
sociais. Letícia Dias Fatinel, na tese Os significados do espaço e as
sociabilidades organizacionais: estudo de um café em salvador (2012),
argumenta que esta operação de construção de práticas sociais
acontece a partir de uma série de ações que

“colocam em relação o masculino e o feminino, a casa e a rua, o


privado e o público, o local e o global, o jovem e o velho, nós e os
outros, sagrado e profano, tempo e espaço, cotidiano e
extraordinário, lazer e trabalho, e, também, sociabilidade
(MENEZES, 2009 apud FANTINEL, 2012, p. 45)”.

647
Para o entendimento do espaço sagrado, embasamos nosso estudo a
partir das considerações trazidas por Mircea Eliade na obra O
sagrado e o profano, publicada em 1992. Eliade define o espaço
sagrado como sendo aquele que se opõem ao profano. E este
processo de “sacralização” acontece quando há manifestação da
hierofania. Hierofanias são objetos do nosso mundo, como uma
árvore ou uma pedra, mas que não constituem apenas como algo
material. Para algumas pessoas, esses objetos tem um tipo de
significado que os torna mais do que isso, que os transforma em
algo sagrado. Eliade explica:

“Mas [...] não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de


um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada,
não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente
porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem
pedra, nem árvore, mas o sagrado (ELIADE, 1992, p. 13)”.

Gilson Xavier de Azevedo e Janice Fernandes Azevedo, no


artigo Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação possível (2014),
desenvolvem um estudo sobre “aplicabilidade” da teoria deste
pesquisador das religiões, no caso Mircea Eliade, em relação ao
desenvolvimento do universo das benzedeiras e benzedores,
buscando entender melhor como se dá essa prática milenar e como
se constitui a figura destas mulheres. No que se refere à hierofanias,
os autores vão argumentar que a construção do sagrado é
“justamente como se vê um fenômeno natural”. Ou seja, o sagrado
consiste em um objeto/acontecimento que se encontra no mundo
natural, e não no sobrenatural. Todavia, este algo do “mundo
natural”, do “mundo biológico e físico”, é percebido de maneira
diferente (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014, p. 60).

De acordo com a bibliografia estudada para a pesquisa, na maior


parte dos casos, a prática de benzeção acontece dentro da casa dos
benzedores. Hoffmann-Horochovski, no artigo Velhas benzedeiras,
argumenta que “o caráter sagrado do benzimento é geralmente
anunciado no próprio espaço físico” (2012, p. 131). Nesse sentido é
representativa a história da benzedeira Dona Zonaide Ribas Inglês,

648
uma senhora de oitenta e dois anos e que benze desde seus vinte e
cinco anos. Ela explicou que aprendeu com outra benzedeira e diz
que “benzer é fazer o bem para o povo”.

Construção do espaço sagrado

A Dona Zonaide, ao ser questionada durante a entrevista, o que


havia de diferente naquele espaço utilizado para as benzeções, dos
outros espaços da casa, deu a seguinte resposta: “aquele é um lugar
sagrado, lá está minha devoção, meus santos, lá é um lugar
sagrado”.

Fonte: Site da Rádio Najuá

A casa da Dona Zonaide é um local singular. Ele é repleto de


enfeites pelas paredes, e até mesmo no teto, como podemos ver na
foto acima. Existem inúmeros objetos espalhados pela casa, desde
bonecos até artigos de materiais recicláveis. Também é possível

649
observar uma coleção de santos. Podemos ver, através da imagem
acima, várias imagens de Nossa Senhora na geladeira e imagens do
Espírito Santo, que é representado por uma pomba. A casa desta
benzedeira está cheia de imagens e objetos que são considerados
sagrados por Dona Zonaide. Quando tivemos o primeiro contato
com ela, pensamos que o benzimento acontecia na sala, pois
estávamos cercados por todos aqueles objetos e santos. Todavia,
durante a entrevista ela comentou que, na verdade, os benzimentos
eram feitos em outra peça da casa, em um quarto.

Zenny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa, na obra Espaço e religião:


uma abordagem geográfica (2002), trabalham com a perspectiva que
“tudo é potencialmente sagrado, mais apenas em alguns lugares
escolhidos o potencial é realizado. A manifestação de poder do
sagrado em determinados lugares o diferencia dos demais
ambientes”(2002, p. 68). Podemos encontrar objetos considerados
sagrados na sala, na cozinha e em outros quartos. Porém, o quarto
onde acontecem as benzeções, é diferente para Dona Zonaide. Este
cômodo possui algo a mais que as outras peças da casa. E para a
pessoa religiosa, poderíamos dizer que é “natural” identificar essa
diferença entre um local sagrado e outro que não possui essa
sacralidade, embora tenhamos assinalado que é um processo de
construção.

Quando entramos no quarto específico onde a benzedeira Zonaide


exerce suas práticas é possível ver uma espécie de altar dos santos,
instalado sobre uma cômoda. Além destas imagens, também se
observou quadros com referências a santos, instalados nas paredes.
É importante registrar que o processo de construção da sacralidade
daquele espaço obedeceu a seguinte ordem: Dona Zonaide contou
que primeiro escolheu aquele quarto para fazer os benzimentos e
depois é que foi comprando as imagens de santos e os objetos para
colocar naquela peça especial da casa. Como indicam Gilson
Azevedo e Janice Azevedo, “aparentemente de forma intuitiva”,
Dona Zenaide foi transformando um local, antes considerado
profano (ou seja, apenas um quarto), em um espaço sagrado. Um

650
local onde “se manipula força negativa do mundo presente no
cliente” (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014, p.62).

Para o benzedor Nadir, setenta e cinco anos, que benze no bairro


Alto da Lagoa (Irati) e descobriu seu “dom” a cerca de vinte e cinco
anos atrás. O local escolhido para ser o espaço sagrado, utilizado
para a benzeção, foi o quarto.

Foto do altar do senhor Nadir, foto tirada por William Franco


Gonçalves no dia 28/10/2014.

Nesta imagem, podemos ver o altar organizado pelo Sr. Nadir. O


altar encontra-se em seu quarto e, quando alguma pessoa chega
precisando ser benzido, é levada para frente do altar. É naquele
cômodo onde as benzeções acontecem. Podemos notar na fotografia
as imagens de algumas santas, de Jesus Cristo e uma vela apagada.
Esta vela, no momento das orações, é acesa. Segundo o benzedor

651
Nadir, para que a cura aconteça, ele precisa se concentrar, fazer seus
pedidos e ele considera que as imagens das santas é que lhe dão
força.

O quarto também foi escolhido por um outro benzedor entrevistado.


É o Senhor Francisco Macedo, morador do bairro Conjunto Santo
Antônio (Irati), que tem cinquenta e seis anos, e benze há mais de
trinta anos. No cômodo adotado, podemos notar a presença de
quadros, com imagens de santos na parede e, segundo o Sr.
Francisco, era com a ajuda simbólica desses quadros que ele se torna
um transmissor entre Deus, os santos e as pessoas. A todo o
momento, durante a entrevista, ele dizia que “quem curava não era
ele, que quem realmente curava era Deus” e que ele era apenas um
mediador. Como se nota, temos aqui a retomada do argumento dos
benzedores e benzedeiras como sujeitos intermediadores entre as
forças sobrenaturais e o mundo físico.

Nesse sentido,

“o espaço sagrado é um campo de forças e de valores que eleva o


homem religioso acima de si mesmo, que o transporta para um meio
distinto daquele no qual transcorre sua existência. É por meio dos
símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de
mediação entre o homem e a divindade (ROSENDAHL; CORRÊA,
2002, p. 30)”.

O argumento apresentado por Rosendahle e Corrêa auxilia a


compreender as escolhas feitas pelos benzedores Nadir e Francisco,
que utilizam seus quartos para exercer suas práticas de benzeção.
Naquele momento, seus quartos não são apenas mais um cômodo
da casa. Aquele espaço se torna um local sagrado, onde eles
conseguem se tornar mediadores entre suas santidades e seus
clientes. Por outro lado, Claudir Burmann, no artigo Espaço e espaço
sagrado: um olhar a partir de uma comunidade luterana (2009), também
escreve sobre a possibilidade desses espaços serem multiuso, sendo
possível contemplar tanto o caráter sagrado quanto o profano:

652
“O espaço sagrado tem assumido seu caráter sagrado por vezes em
determinados instantes, sendo que logo após pode estar servindo a
fins distintos, denomináveis profanos. Há espaços que possibilitam
multiusos sem que haja necessidade de consagração ou
desconsagração a cada uso (BURMANN, 2009, p. 63)”.

Podemos compreender então, que esses espaços podem se tornar


sagrados em um momento e outro não haver essa sacralidade. Um
espaço com caráter multiuso. Devemos levar em conta também que
muitos desses praticantes do universo da benzeção possuem uma
vida simples e que suas casas não possuem cômodos suficientes
para que haja um espaço próprio e exclusivo para as benzeções.
Entre nossos entrevistados apenas uma benzedeira tinha um espaço
distinto para as benzeções.

No caso da Dona Leoni Ferreira Gasparetto, de oitenta anos,


moradora do bairro Rio Bonito (Irati), o local utilizado para as
benzeções foi construído fora do espaço doméstico e para ser
utilizado exclusivamente para as benzeções. Segundo Leoni, ela
sempre teve um lugar separado para trabalhar, pois para ela, isso
precisa ser feito fora de casa, porque algumas pessoas chegam com
“maus fluidos” e isso pode acabar ficando dentro do espaço
domiciliar:

“Porque tem pessoas que às vezes, tem mal fluído e dentro de casa
ai fica na casa. E aqui já está preparado, com proteção do Divino
Espírito Santo para não acontecer nada. Porque eu vou fazer as
coisas em casa, fica as vezes, uma pessoa que chega aqui mal-
intencionados, porque vem. Você não pense que não vem, porque
tem gente que vem aqui para explora, vem gente com segundas
intenções e isso não presta dentro de casa. Mistura com a família e
isso não pode, tem que ter o lugar certo (Entrevista de Leoni Ferreira
Gasparetto a William Franco Gonçalves, Irati, 28/03/2014)”.

Gilson Azevedo e Janice Azevedo, no artigo já


mencionado Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação
possível (2014), afirmam que “o sagrado e o profano constituem duas

653
modalidades de ser no mundo”, e em relação às benzedeiras, os
autores argumentam que a perspectiva do “sagrado” estaria
relacionada com a “saúde, felicidade, bem-estar, alegria, realização”.
Já o “profano” teria ligação com as palavras “doença, sofrimento,
dor, traição, reprovação e acidente” (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014,
p. 61). Assim, podemos entender a preocupação da benzedeira
Leoni com os “maus fluidos”, podendo estes conectar-se com o
significado de profano. Para ela, ter um local separado, e
principalmente, um “local já preparado e com a proteção do Divino
Espírito Santo”, é fundamental para defender sua família desses
“maus fluidos”. Pois neste local, Dona Leoni poderá “manipular o
profano, a força negativa do mundo presente do
cliente” (AZEVEDO; AZEVEDO, 2014, p. 62) sem se preocupar que
estas forças fiquem dentro da sua casa e a prejudique mais tarde.

A benzedeira Maria Iolanda também possui o temor que Dona


Leoni nos relatou. Para Dona Maria Iolanda, as benzeções devem ser
feitas próximas da porta, pois assim essas forças são logo jogadas
para fora de sua casa. Como refere Elen Cristina Dias de Moura, no
artigo Eu te benzo, eu te livro, eu te curo: nas teias do ritual de benzeção,
“no plano simbólico temos o mal sendo varrido” (2011, p. 353). De
certa forma, esta pode ter sido a maneira que a benzedeira
encontrou para continuar praticando sua benzeção e se proteger
dessas “forças”, pois sua casa é pequena e ela não possui condições
financeiras, e nem espaço, para construir um local separado. Não
deixa de ser uma estratégia para lidar com essas forças.

654
Foto do altar da Benzedeira Leoni Ferreira Gasparetto, foto tirada
por William Franco Gonçalves no dia 28/03/2014.

Retornando à benzedeira Leoni e seu cômodo exclusivo para a


benzeção, podemos ver pela fotografia acima que existe um altar
com imagens de santos e anjos. Destaque-se que, no centro do altar,
em um local privilegiado, está a imagem de Nossa Senhora. Durante
a entrevista, Dona Leoni olhava constantemente para esta imagem.
Notou-se que a benzedeira tinha um vínculo particular, mais
afetivo, com aquela imagem, sentimento que podia ser percebido
pelo tom da sua voz:

“Nossa Senhora Aparecida, para quê mais poderosa do que ela, para
quê mais poderosa que Nossa Senhora Aparecida, que é minha mãe
(Entrevista de Leoni Ferreira Gasparettoa William Franco
Gonçalves, Irati, 28/03/2014)”.

655
Em outro momento da entrevista, no qual ela contava sobre um
quadro que ganhou de um chileno, que foi atendido por Dona
Leoni, perguntamos se ela colocaria aquele objeto ali na parede e ela
respondeu: “não, vou deixar no quarto, que aquele é meu”.

Podemos compreender através dessa fala que, diferente dos


benzedores Francisco, Nadir e Zonaide, onde seus locais de
benzeção são um espaço multiuso, onde convivem o “espaço
sagrado” e o “espaço profano”, a benzedeira Leoni separa
completamente o espaço sagrado, utilizado para as benzeções, do
seu espaço doméstico. Para ela, aquele local, mostrado na fotografia
acima, é exclusivamente para as benzeções. De certa forma, quando
Dona Leoni informa que não vai colocar um quadro com sua foto na
parede daquele cômodo, está nos dizendo que não quer misturar
aquele local sagrado com seus objetos não sagrados.

Conclusão

Durante a pesquisa realizada com os benzedores e benzedeiras da


cidade Irati, percebemos que os locais escolhidos por esses
praticantes para a realização de seus exercícios podem varias muito.
Tudo irá depender dos locais disponíveis em sua casa, das
atividades que irá realizar e até mesmo de sua situação financeira.
Alguns benzedores abrem mão de um espaço de seu quarto, ou de
um sofá de sua sala e outros constroem um espaço separado de sua
casa. Mas independentemente do espaço utilizado por estes
benzedores, todos eles após serem escolhidos passam uma espécie
de transformação de um espaço antes “profano” para um espaço
agora sagrado. Onde estes praticantes fazem suas rezas, suas curas e
dissolvem o profano e a doença contida na pessoa a ser benzida.

Referências:

ALMEIDA, Dinoráh Lopes Rubim. Desafios da memória como fonte


histórica: esquecimento, silêncio, mutações e
realidades. Memórias, traumas e rupturas. 1°ed. Vitória/ES, v.1, p. 1-
45, 2013

656
AZEVEDO, Gilson Xavier de; AZEVEDO, Janice Fernandes.
Benzedeiras em Mircea Eliade, uma aproximação
possível. Protestantismo em Revista, v. 35, p. 54-64, 2014.

BURMANN, Claudir. Espaço e espaço sagrado: um olhar a partir de


uma comunidade luterana. Protestantismo em Revista, v.19, p. 60-68,
2009.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. 1° edição, São Paulo: Martin


Fontes, 1992.

FANTINEL, Leticia Dias. Os significados do espaço e as sociabilidades


organizacionais: estudo de um café em Salvador. Salvador: 2012.

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da


história oral. 8°ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

HOFFMANN-HOROCHOVSKI. Marisete T. Velhas


benzedeiras. Mediações, Londrina, v. 17 n. 2, p. 126-140, Jul./Dez.
2012.

MOURA, Elen Cristina Dias de. Eu te benzo, eu te livro, eu te curo:


nas teias do ritual de benzeção. Mneme Revista de Humanidade, p. 340-
369, 2011.
ROSENDAHL, Zenny; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Espaço e
Religião: uma abordagem Geográfica. 2°ed. Rio de Janeiro: EdUERJ,
2002.

SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Fontes orais: testemunhos,


trajetórias de vida e história. Curitiba, 2005.

657
DOS QUE VISITAM AOS QUE
HABITAM: A REPRESENT AÇÃO DOS
URUBUS NA AMAZÔNIA DO SÉCULO
XIX
TALITA ALMEIDA DO ROSÁRIO
WENDELL P. MACHADO CORDOVIL

Com as crises ambientais ganhando cada vez mais espaço no cenário


global de discussões desde a década de 1960, muitos historiadores
empenham-se em buscar em suas fontes e enfatizar em seus
trabalhos agentes não humanos que também constroem a história.
Na década de 70 do século XX emerge a chamada História
Ambiental (WORSTER, 1991) e com ela o esforço de historiadores
em mostrar que a história humana não se desenvolveu separada da
natureza, mas sempre precisou dessa, e fez parte dela. As florestas
ganham espaço nas narrativas históricas, os rios e os animais.

Dentro dessa perspectiva esse trabalho visa expor as representações


sobre os urubus na Amazônia do século XIX. Presença atual na
região, o urubu muitas vezes é ignorado e pouco aparece em
trabalhos historiográficos, mas desde muito tempo é um
personagem amazônico. Nesse breve texto temos a pretensão de
apresentar os urubus como sujeitos históricos presentes ao longo da
história da Amazônia, ora aparecendo como objeto de observação de
viajantes, ora como figura indispensável para a limpeza das ruas,
importância reafirmada nos páginas dos jornais e nas leis
municipais.

A figura do urubu na Amazônia pelo olhar dos viajantes

Os viajantes estrangeiros ao visitarem durante o século XIX o norte


do Brasil não deixaram de registrar a presença do urubu no

658
cotidiano urbano, mas também para além dele; observaram em seu
modo de viver nas áreas de florestas e de campos amazônicos, nos
quais estabeleceu relações com os humanos que neles moravam. Um
desses viajantes foi Wallace Russel que na manhã de 26 de Maio de
1848 chegou à Baia do Guajará e de lá relatou a sua vista da cidade
de Belém. Wallace (2004, p.36) a descreveu circundada por uma
“densa floresta”, o que segundo ele proporcionava aos olhares um
“espetáculo duplamente belo” com sua paisagem repleta de espécies
de vegetações tropicais; entre as quais se destacavam a bananeira e a
palmeira.

Nessa paisagem, também incluiu os urubus que sobrevoavam no


alto da cidade ou então, apareciam “indolentemente” caminhando
na praia (Ibid, p. 36). A imagem do urubu que está inserido no
momento do desembarque na cidade de Belém pelo Vero o peso ou
por quem passa próximo à praça do relógio e os ver junto aos
peixeiros e apanhadores de açaí que abastecem a região, não é
exclusiva de atualmente. Guardada as peculiaridades do tempo e
espaço, as experiências visuais de um cotidiano belenense marcado
pela figura do urubu já se fazia presente no sec. XIX, como pode ser
constatado nas descrições de Wallace. Mais detalhadamente em um
cotidiano que essa ave compartilhava os céus com andorinhas
pousando sobre os telhados das casas e da igreja e sobre negros e
índios que atravessavam a baia por canoas (Ibid, p. 36).

Esse cotidiano da cidade de Belém do século XIX relatado por


Wallace que o urubu participa também foi registrado em pintura
pelo italiano Joseph Léon Righini, o qual se estabeleceu em Belém
em 1857. Em sua pintura “Estrada do Arsenal da Marinha”, o urubu
aparece sobrevoando o céu, assim compondo uma paisagem urbana
junto com os casarões, vegetações e escravos realizando suas tarefas.
Tal pintura é parte do álbum intitulado “Panorama do Pará em
Doze Vistas”.

659
Estrada do Arsenal da Marinha. Joseph Léon Righini, 1967.
Disponível em: http://www.ufpa.br/cma/imagenscma.html

Visitando as localidades mais interioranas do Pará, Wallace chegou


ao Marajó. Essa região era abundante em espécies de pássaros, o que
saltou aos olhos do viajante que registrou muitos deles, entre os
quais se encontra o urubu em lugares de mata e de campos.
Sobretudo, registrou o modo como os seres humanos mantinham
uma relação com os urubus que ali se encontravam. Neste sentido,
descreveu a descamação e salga do peixe, a qual se tratava de uma
prática empreendida pelos habitantes dessas áreas distantes da
cidade que os urubus também participavam. O campo e a floresta
são ambientes preenchidos por rios, assim o peixe representava aos
moradores humanos uma fonte para a própria subsistência, ao
mesmo tempo em que era visto também como produto
comercializável (Ibid,p.141). Assim, a salga também era percebida
pelo urubu como uma forma de adquirir alimento, o que mantinha
esses dois grupos de sujeitos em uma relação de convivência.

Segundo Wallace, após retirar as escamas e extrair a carne do peixe,


era salpicado com sal e colocado para secar em varas ou sobre o solo
por 2 a 3 dias (ibid, p. 141). As sobras dos peixes como as espinhas e
as cabeças “forneciam ao urubu um fino repasto” (ibid, p. 141) e
logo a noite, as vezes, “algum jaguar, também as carrega”, mas esses
eram diferentes dos urubus pois preferiam os peixes inteiros

660
quando estavam ao seu alcance (ibid. p. 141). As sobras de animais
mortos deixadas pelos humanos na mata davam possibilidades do
urubu garantir alimento, uma vez que a caça era uma restrição em
seu hábito por causa da sua fisiologia, pois segundo o biólogo Menq
(2016) os urubus não eram caçadores por não possuir garras
adaptadas para capturar e matar presas como os gaviões. Por outro
lado assumia na floresta a função mais notavelmente de decompor
as sobras de animais mortos de forma mais acelerada,
principalmente aqui resultados da ação humana, fazendo por não
ficarem expostos por muito tempo.

Podemos observar esta função de decompositores dos restos de


alimentos deixados pelos humanos na representação feita por James
Champney Well no álbum de gravuras intitulado “Travel in the
North of Brazil”. O viajante registrou várias cenas da vida
amazônica nas regiões de campo e mata, por exemplo, como a caça
noturna, a extração do leite da seringueira e outros mais como temos
também a presença de um bando de urubus que aparecem
destacados sobre um cercado em meio a vegetação nas margens de
um rio. O título da obra “catadores da cidade” demonstra a
observação do viajante sobre o urubu como uma ave peculiar que
tinha uma função especifica de limpador das cidades ou vilas

661
CHAMPNEY, James Wells. City Scavengens. [S.l.: s.n.], 1860. 1 desenho,
bico de pena e aguada, pb.
Disponível em:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=22006. Acesso
em: 30 jun. 2019.

Wallace o encontrou também nas matas do Amazonas, nessas


constatou algumas questões precisas sobre os urubus. Primeiro que
nas florestas das margens do rio Negro, os “comuns urubus pretos”
eram abundantes e andavam famintos de carniça. Entretanto, na
falta de carniça ou outra coisa que pudessem comer, acabavam se
alimentando de “frutos da palmeira na floresta” (WALLACE, 2004,
p.235). Mostrando que em situações de carestia recorriam à
possibilidades que a vida na floresta dava a eles, adaptando sua
alimentação para a não ingestão de carne. Em segundo, após
observações do urubu em diversos momentos, desde do Pará até o
Amazonas, Russel Wallace (Ibid, p.236) considerou que dependiam
muito mais da boa visão para conseguir alimentos do que seu olfato.

662
E por esse motivo, diz ele, escolhiam posições mais elevadas para
enxergar o alimento.

“Às vezes, voando a grande altura, descem na floresta, procurando


o local onde morreu, ou foi abatida uma rês, e isso antes de a carne
putrefazer-se ou exalar qualquer mau cheiro. Algumas vezes, eu
enrolava um pedaço de carne semipútrida num pedaço de papel, e
atirava-o ao chão. Desciam logo; mas após passarem sobre ele,
retiravam-se inteiramente satisfeitos de que aquilo era somente
papel e nada do que quer que fosse para comer.” (Ibid, p.236)

Estar em vigilância nos céus e descer na mata eram estratégias para


a busca de comida, o que na Amazônia foram fundamentais, pois
possivelmente deveriam encontrar dificuldades em encontrar
carcaças vistas de cima diante da densidade da mata, o que poderia
ser um fator que contribuía às mudanças de rotina alimentar dos
urubus, como foi posto acima. Tratando sobre a fisiologia dessa ave
e seu modo de viver, Willian Menq (2014) afirma que normalmente
encontram com maior facilidade os animais mortos que estão em
terra firme, pois são aves de “excelente visão”; exceto os da espécie
de gênero Cathartes que tem um olfato aguçado e conseguem
encontrar cadáveres com pequenas distâncias através do odor.

Os urubus serviram de inspiração a muitos artistas como Leon


Righini no século XIX e Oswald Goeldi no século XXque os
pintaram em gravuras, revelando a constante presença do urubu nas
diferentes temporalidades da sociedade. Apesar disso, este animal
pouco foi percebido nas produções historiográficas, sobretudo da
Amazônia, embora existam documentações como o significativo
escrito de Wallace que constatam essas aves no passado, o que
contribuiu para trazermos neste trabalho o protagonismo do urubu.

663
Urubus na Amazônia: de fiscais sanitários do século XIX a
opositores da criação bovina no século XX

Seja voando em bando para avisar que a chuva se aproxima ou em


suas empreitadas individualistas em meio ao lixo de ruas, o urubu
está presente em todo o Brasil. Em Belém do Pará, por exemplo, é
personagem que se destaca na paisagem do Ver-o-peso ou em
praças como a Batista Campos. Ignorado por alguns e observado
atentamente por outros se torna personagem de quadrinhos, como
nas histórias do urubu “Caroço” de Amanda Barros, e de músicas,
como “No meio do pitiú” de Dona Onete, assim reafirmando sua
atualidade no cenário de cidades como Belém.

Mesmo sendo tão visível nos dias de hoje ganha pouco destaque nos
trabalhos historiográficos, mas ao olhar do pesquisador mais atento
esse personagem se faz presente na história do Brasil desde o
período colonial.

No livro “O Nordeste: Aspectos da influência da cana sobre a vida e


a paisagem do Nordeste do Brasil”, de Gilberto Freyre, mais
especificamente no capítulo 4 o autor comenta brevemente sobre a
importância do urubu para a sociedade canavieira colonial:

“Útil foi também, até certo ponto, à civilização do açúcar no


Nordeste o urubu, ainda hoje, e apesar de todos os perigos de sua
presença repugnante, considerado insubstituível em certos trechos
rurais e até urbanos da região, como consumidor de carniça e
devorador de restos de bicho morto. Ao urubu deve-se também a
propagação do dendezeiro pelo Nordeste da cana-de-açúcar, que foi
uma propagação útil. Útil e esteticamente significativa.” (FREYRE,
2004, p. 114).

Gilberto Freyre possuiu a sensibilidade em se atentar para a


importância desse animal não humano na construção da paisagem
do Nordeste, uma construção que, segundo o autor, possui utilidade
e ajuda a definir a estética da região. Uma dessas contribuições

664
estéticas que Freyre encontra na figura do urubu é a de propagar o
dendezeiro. Ainda hoje o urubu é tido como o maior agente de
distribuição das sementes dessa árvore, pois após o consumo do
coco o animal as defeca por toda a região (BIONDI et al, 2008, p. 19).

Outra contribuição dos urubus para a sociedade colonial destacada


por Gilberto Freyre é a da limpeza de trechos rurais e urbanos. A
resistência dos urubus às bactérias presentes na carne em
decomposição permitiu que esses fossem vistos em muitos
momentos como agentes da limpeza pública ao livrar as ruas dos
restos de carne de animais mortos.

A relação que se construiu no Brasil para com esses animais talvez


tenha sido uma particularidade em relação aos outros países. Um
indício disso é o “Almanach de lembranças luso-brasileiro” para o
ano de 1859. O almanaque, fundado por Alexandre Magno Castilho
com publicações de 1951 a 1932, apresentava vários conteúdos entre,
como poesias, passatempos e curiosidades. Na publicação de 1859,
uma das curiosidades apresentadas trata sobre a relação de uma
cidade do Pará com esses “corvos negros”, mais especificamente
sobre Belém e os urubus:

“O estrangeiro que chega a essa cidade do Pará fica admirado ao ver


em todos os seus largos e praças, bandos de corvos negros, a que
aqui chamão Urubús, passeando muito á vontade proximo á gente e
mimoseando-a com o seu cheiro repugnante. [...] ” (p. 129).

Nesse momento o urubu é destacado como algo que causa surpresa


nos estrangeiros que chegam, mas que é muito frequente nos
espaços da cidade, porém possuidor de um “cheiro repugnante”.

Após comentar sobre a batalha dos urubus na praça do mercado,


onde esses são os “combatentes” que guerreiam entre 40 ou 50 para
conseguir “alguma tripa de pirahiba, que os vendedores d’este peixe
lhes atirão” (p. 129), o texto do almanaque apresenta grande
surpresa sobre a postura da Câmara Municipal para esses animais:

665
“O descanço e liberdade de que os urubús aqui gozão no Pará são
devidos a uma postura da Câmara Municipal, em que se impõe a
multa de 10$000 réis a quem matar estes prestantes cidadãos, visto
serem os únicos zeladores da Câmara, e terem a seu cargo a limpeza
das ruas e praias, cargo que desempenhão escrupulosamente! O que
é o progresso!... Quando pensarião nossos avós que até os urubús
havião de vir a ser empregados municipaes!...” (p. 130).

A relação da sociedade do Pará com os urubus aparecendo como


curiosidade no almanaque nos permite compreender que essa
relação não era comum em todos os países, principalmente quando
o trecho final destaca sobre nunca se poder imaginar que até os
urubus se tornariam empregados municipais. No entanto, as fontes
indicam que no Brasil diversas regiões mantinham a preocupação
com a segurança desse animal, pois era tido quase como um agente
sanitário que cuidava da limpeza das ruas.

Exemplo da importância do urubu para a manutenção da limpeza


em cidades da Amazônia é a publicação do dia 28 de Fevereiro de
1871 do jornal “Diário de Belém”. Na primeira página dessa edição
do jornal é possível ler sobre “o immenso gato que estava a
desfazer-se lentamente em podridão” na Rua Formosa, entre as
travessas São Matheus e Passinho desde o dia 22 daquele mês. O
jornal afirma que “Quem quer que desembocasse nessa rua até o dia
26, ou tinha que recuar e arripiar carreira, ou tapar o nariz com um
lenço”.

Em seguida o jornal critica o presidente da Câmara Municipal, o Dr.


José da Gama Malcher, por conta de mesmo após supostamente ter
atolado o cavalo “nas entranhas putrefactas” do gato morto, e cuspir
de nojo, nada fazer. O jornal agradece outro personagem histórico
como agente público responsável pela limpeza das ruas: “A
caridade dos urubús é finalmente que acaba de socorrer-nos, pois
que lhe estava fazendo o enterro [do gato]. Bem hajam eles,
enquanto dorme o sr. dr. Malcher e os seus fiscaes.”

666
Nessa nota intitulada “É muito zelosa a Câmara Municipal dessa
cidade” fica clara a importância dos urubus para o consumo dos
animais mortos pelas ruas da cidade, mas também é evidente que a
figura do animal é usada para criticar a gestão do município. Em
quanto os fiscais não executam seu trabalho de limpeza o urubu age
e aparece quase como um empregado municipal.

Aparecem também como personagens da cidade de Manaus, no


Amazonas, ajudando na limpeza da cidade quando comem a carne
de gatos mortos. Na publicação do dia 26 de Julho de 1898 do jornal
“Commercio do Amazonas” a página inicial destacava em uma nota
que: “Os urubús prestaram hontem pela manhã todas as honras á
que tinha direito, um pobre representante da raça felina, que teve a
infelicidade de morrer em plena Avenida de Palácio”.

A representação do urubu como um agente sanitário aparece


também nos escritos de Friedrich Dahl sobre a Amazônia. “A fauna
do Pará” (DAHL, 1896), traduzido e comentado para o português
por Emilio Goeldi, apresenta um breve comentário sobre “o abutre
preto”, na página 359, chamando-o de “[...] o varredor das ruas do
Pará, vive na verdade em número avultadissimo na cidade. [...] Não
é arisco, tão pouco, que quasi se deixa tocar”.

Ainda nos escritos de Friedrich Dahl (DAHL, 1896) é comentado


algo importante para se compreender a postura dos municípios da
Amazônia, e do Brasil, sobre os urubus quando o pesquisador
explica o motivo desses animais não serem ariscos: “Explica-se isto
pelo faço, de ser prohibido com multa alta, matar este rapineiro útil
dentro da cidade”.

A multa alta a que Dahl se refere, que também é citada no


“Almanach de lembranças luso-brasileiro”, aparecia não apenas nas
leis da capital paraense, mas também no Código de Posturas de
cidades como Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, e no
Código Municipal de Manaus.

667
Em quanto no Código de Posturas do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais o artigo que proibia a população de matar urubus aparecia
em uma seção de “higyene”, em localidades como Manaus e Villa da
Bôa-Vista do Rio Branco o artigo aparece em seção intitulada “Dos
animaes”. No Capítulo IX do Código Municipal de Manaus (Lei Nº.
23 de 06 de maio de 1893) encontra-se: “Art. 143. É prohibido matar
urubús. O infractor incorrerá na multa de 5$000 réis ou um dia de
prisão”. Já na Intendência de Silves, no Amazonas, a Lei Nº 2 de 20
de janeiro de 1896 define em seu artigo 52, no Capítulo VI intitulado
“Utilidade comum”, que a pena para quem matar urubus é de 5$000
réis ou dois dias de prisão.

As fontes mostram que pelo menos desde a década de 50 do século


XIX existia legislação no Pará que protegia os urubus, e sabe-se que
também em Manaus no mesmo período (IANSEN, 2017). Já a partir
da década de 90 do mesmo século é possível encontrar artigos nos
Códigos de Posturas de diversas cidades do Brasil a mesma
preocupação com esses animais. Os urubus mantém até o início do
século XX um status de agentes essenciais para a manutenção da
higiene nas cidades brasileiras.

Como o leitor pôde perceber, esse status era assegurado não apenas
nos jornais, que em alguns momentos publicavam até poemas de
leitores onde o eu lírico dizia que apenas Deus e o urubu o
salvariam do descaso da municipalidade com a higiene das ruas
(CORDOVIL, 2018), mas também em leis de diversas províncias
brasileiras. Porém, a partir das fontes é possível perceber que a
situação muda no início do século XX.

Antes representados como varredores das ruas, limpadores e


agentes municipais a partir do XX se tornam os “importadores de
moléstias”. No “Relatório sobre a marcha do Museu Goeldi no anno
de 1909” comenta-se que foi um ano de prosperidade para o Jardim
zoológico, mas alguns animais foram afetados pelo carbúnculo
acabaram morrendo. O relatório é enfático em afirmar:

668
“Não pode haver dúvida que a importação d’esta molestia perigosa
deva ser attribuida aos urubús que costumam infestar o Jardim
zoologico durante as horas quentes do dia, mostrando uma
predileção marcada para o cercado das antas. Para livrar-nos d’estas
visitas importunas e perigosas, não há outro meio senão de fazer-
lhes uma guerra contínua, matando-os a tiros de espingarda” (p. 27-
28).

O carbúnculo não era a única enfermidade pela qual culpavam o


urubu de ser o agente “importador”. Uma batalha contra esses
animais se inicia também por conta da expansão da febre aftosa no
Brasil. Identificada em 1870 na América Latina, mais
especificamente na Argentina (NAGATA, 2014), o primeiro caso no
Brasil foi identificado em Minas Gerais no ano de 1895 (LYRA, 2003,
apud MARQUES, 2013, p. 13). Na primeira página do “Jornal do
Commercio”(AM) de 28 de maio de 1917 um pequeno artigo
intitulado “Como tudo muda” exemplifica bem a mudança de
posições da sociedade da Amazônia para com os urubus. No texto
fala-se sobre a discussão das “corporações legislativas” de Manaus
sobre revogar a lei “carrancuda, systematica imperativa” de
proteção aos urubus para combater “o transmissor da aphtosa”.

Antes a população agradecia esses fiscais sanitários que limpavam


áreas urbanas e rurais. Agora com a possibilidade de serem
transmissores da febre aftosa para a criação bovina “os fazendeiros
vão dando cabo dos urubus”. Mesmo apoiando a batalha contra os
urubus o artigo do jornal termina indagando: “Resta, porém, uma
ultima prova: será mesmo conductor da aphtosa o urubu?”.

REFERÊNCIAS:

Talita Almeida do Rosário é graduanda de licenciatura em História


pela Universidade Federal do Pará. Bolsista de Iniciação Científica
orientada pela Profa. Dra. Sueny Diana Oliveira de Souza.

669
Wendell P. Machado Cordovil é graduando de licenciatura em
História pela Universidade Federal do Pará. Bolsista de Iniciação
Científica (UFPA) orientado pelo Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle
em uma pesquisa sobre Educação Ambiental e ensino de História.

ALMEIDA, Tunai Rehm Costa de. Belém, uma história Ambiental:


Representações da Natureza na capital paraense (1897 a 1902).
In: XXVII Simpósio Nacional de história: Conhecimento histórico e
diálogo social. Natal (RN), 2013. Disponível
em: http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364772276_ARQU
IVO_historiaambiental-anpuh.pdf Acesso em: 11/07/2018.
BIONDI, Antonio; MONTEIRO, Mauricio; GLASS, Verena. O Brasil
dos Agrocombustíveis–Impactos das Lavouras sobre a Terra, o
Meio e a Sociedade-Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão
Manso. ONG Reporter Brasil, 2008.
CORDOVIL, Wendell P. Machado. Belém e os urubus: entre
sobressaltos e gratidão, as representações do urubu em favor de
políticas de higienização da cidade (1870-1883). Disponível
em: http://escoladosananins.blogspot.com/2018/07/belem-e-os-
urubus-entre-sobressaltos-e.html Acesso em: 26/06/2019.
DAHL, Fr., “A Fauna do Pará”, Boletim do Museu Paraense de
História Natural e Etnografia, Belém, 1(4), 1896, p. 357-374.
FREYRE, Gilberto. A cana e os animais. In: _________. Nordeste:
Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do
Nordeste do Brasil, 7ª Ed., São Paulo: Global Editora, 2004, p. 97-119.
IANSEN, Marta. Os urubus de Manos no XIX. Disponível
em: https://martaiansen.blogspot.com/2017/03/urubus-de-
manaus.html Acesso em: 26/06/2019.
MARQUES, G. H. F. A experiência brasileira na erradicação da
febre aftosa e o emprego do sistema I-ELISA 3ABC/EITB para
certificação sanitária de bovinos e bubalinos. 2013. 70 f.
Dissertação (Mestrado em Sanidade, Segurança Alimentar e
Ambiental no Agronegócio) - Instituto Biológico, São Paulo, 2013.

670
MENQ, W. (2014) Urubus do Brasil - Aves de Rapina Brasil.
Disponível em: <
http://www.avesderapinabrasil.com/arquivo/artigos/Urubus_do_br
asil.pdf > Acesso em: 13 de Novembro de 2018. Fonte:
http://www.avesderapinabrasil.com/ © Aves de Rapina Brasil
NAGATA, Walter Bertequini. Perfil epidemiológico da febre aftosa
no Brasil: a evolução do programa nacional de erradicação e
prevenção da febre aftosa. Conclusão de curso, 2014.
Wallace, Alfred Russel, 1823-1913. Viagens pelo Amazonas e Rio
Negro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. v. 17, 630
p.

671
GEADA NEGRA E O DECL ÍNIO DA
LAVOURA CAFEEIRA: HISTÓRIA E
MEMÓRIA EM SÃO PEDRO DO IVAÍ -
PR (1970-1990)
ELIANE APARECIDA MIRANDA GOMES
DOS SANTOS

Introdução

A proposta deste artigo é discutir e analisar a necessidade local de


conhecer os fatos ligados à história do município de São Pedro do
Ivaí. Dessa maneira, propõe-se através deste trabalho, com a
colaboração dos depoentes, a (re) construção da memória dos
trabalhadores e proprietários da lavoura cafeeira (re) memorando os
acontecimentos do período de 1970 a 1990 que contribuíram com o
desenvolvimento de tal município. Esses relatos orais obtidos ao
longo de nossa pesquisa muito cooperaram para a compreensão de
como essas pessoas chegaram a São Pedro do Ivaí, como pensaram o
plantio da lavoura de café, e quais foram às decisões tomadas por
eles após a Geada de 1975.

Nesse caso, é indispensável à História Oral que em muito contribui


com o processo de rememoração da história do município de São
Pedro do Ivaí.

Como destacado pelo historiador Robson Laverdi (2012, p. 187)

“Enaltecida ou hostilizada, a história oral, com muita frequência, é


vista como uma chave para o tratamento de temas contemporâneos
ou da chamada história do tempo presente e mesmo relacionada a
outras temporalidades”

672
No caso de São Pedro do Ivaí, observa-se que as falas dos
entrevistados fazem essa conexão entre passado e o presente.
Durante as entrevistas, compreendemos melhor os processos que
envolvem o cultivo do café em São Pedro do Ivaí. Atualmente,
conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o
município possui 10.167 habitantes, está localizado geograficamente
ao noroeste do Paraná.

Aparecido refere-se à movimentação do plantio de café no


município, onde os trabalhadores estavam empenhados no cultivo
da lavoura, pois se tratava de uma cultura que rendia lucros as
famílias que investiam na produção da lavoura.

A história de São Pedro do Ivaí é semelhante à de muitos outros


municípios do Estado do Paraná, que teve a sua formação devido à
expansão do cultivo da lavoura de café. Semí Cavacanti Oliveira
(2009, p 6) apresenta que “o avanço por novas regiões pioneiras do
Norte do Paraná justifica a ampliação da área plantada e também do
número de propriedades incluídas na economia cafeeira”.

O entrevistado, senhor Aparecido, hoje com a idade de 83 anos,


chegou ao município aos dez anos de idade, é descendente de
italianos e na entrevista relata que o seu pai chegou ao município
com sua mãe, ele e os irmãos ainda bem pequenos, vindos da cidade
de Águas de Lindóia localizada no oeste do estado de São
Paulo. “As terras aqui eram muito boas e tudo que plantava dava,
não havia necessidade de usar adubos e nem herbicida”
(APARECIDO, 2014).

Analisando os depoimentos dos entrevistados e contrapondo com os


documentos disponibilizados pela Prefeitura Municipal e
juntamente com a bibliografia local, Compreende- se que o
município foi sendo construído pela presença dos cafezais
(PREFEITURA MUNICIPAL, 1987 s.p). Como já mencionado o
objetivo da pesquisa é analisar a construção ou (re) construção da
memória da cultura do café e o declínio da lavoura em São Pedro do
Ivaí de 1970 a 1990. Seria quase impossível à construção dessa

673
pesquisa se não fosse à colaboração dos trabalhadores e produtores
de café com os relatos orais de experiências vividas nos anos iniciais
do município em questão. O recorte temporal é de 1970 a 1990
(declínio do café).

1.História Oral

A história oral é uma ferramenta que possibilita ao pesquisador


esmiuçar não somente documentos escritos, mas também
documentos orais, como sujeitos importantes para resgatar a
história. No que tange a história oral, entende-se que segundo José
Carlos Sebe B. Meihy (2000, p.79) [...] chamamos história oral os
processos decorrentes de entrevistas gravadas, transcritas e
colocadas ao público segundo critérios predeterminados pela
existência de um projeto estabelecido (MEIHY, idem, ibidem).

Dessa maneira descortina-se a importância do método de pesquisa


oral para levar a sociedade local fatos que colaboraram para a
formação do município que se habita. Porém, Meihy (2000, pg.89)
apresenta a história oral como nova, sendo fortalecida no ano de
1983.

De acordo José Carlos Sebe B. Meihy

“[...] Até o começo dos anos 90, a história oral brasileira não
figurava nos currículos dos cursos universitários, nem aparecia com
frequência mínima como tema de congressos e documentações nas
humanidades em geral. Ao mesmo tempo, era confundida com a
mera prática de entrevistas derivada do jornalismo, antropologia,
sociologia e psicologia (MEIHY, 2000, p.92)”

Percebe-se que a história oral era tratada com cautela, para que a
história não fosse entendida como mera entrevista e também não
caísse na vulgaridade ao demonstrar fragilidade nas analises que
corroboram com a historiografia. Sendo assim, cabe ao historiador
ter clareza do ofício procurando manter o foco das analises das
entrevistas.

674
2. A construção ou (re) construção da memória dos ivaienses

Quando usamos o termo (re) construção, nos referimos a busca do


entendimento do período da cultura da lavoura cafeeira em São
Pedro do Ivaí através das entrevistas com indivíduos que
participaram desse período da história do município.

Robson Laverdi (2013, p.38 apud Pablo Ariel Vommaro 1997, s.p)
apresenta que [...] Nessa conjuntura, a História Oral, para o autor, é
mais do que uma metodologia, mas uma maneira de aproximação
da realidade. A pesquisa não tem o objetivo de buscar verdades,
pois a concepção de verdade depende do que se entende por
verdade, mas, busca-se conhecer o passado do lugar que se habita
(São Pedro do Ivaí), “a história oral-prática de pesquisa não
“ressuscita vozes” e [...] ninguém está autorizado a falar por outrem
e nem ao menos tem o poder de “salvar” o tempo
passado” (LAVERDI, 2012, p. 18).

A História oral e a memória se interligam, assim, a memória que os


depoentes trazem sobre o município desde sua gênese. “É esse
passado vivido, bem mais do que o passado apreendido pela
História escrita, sobre o qual mais tarde apoiar-se sua memória.”
(HOBWACHS, 1992 p.71). Essa memória vai dando forma e (re)
construindo a história local. Aparecido nos fala da dificuldade de
colher o café que ele e outros que gostam de cultivar o café, não
aguentam mais lidar com o café “o povo da cidade não sabe nem
como que panha” (APARECIDO, 2014).

Eclea Bosi (1994, p.39) nos escreve que “lembrança puxa lembrança
e seria preciso um escutador infinito”. Sendo assim, a cada narrativa
dos fatos da história por eles vividos, se renova suas lembranças.
Para tanto, reserva-se aos indivíduos do município de São Pedro do
Ivaí o [...] direito do conhecimento do passado (DUARTE, Geni
Rosa, 2012 p. 289). O que os entrevistados relatam são experiências
vividas por eles, ou seja, eles compartilham trechos de suas vidas e
do seu cotidiano que auxiliam a visualizar uma parte da história do
município.

675
Para Michael Pollak (1992, p. 1):

“[...] A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo


relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs,
nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser
entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e
social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes
(POLLAK, 1992, p.1)”.

Na coleta dos depoimentos dos entrevistados percebe-se que uma


fala interliga a outra, mesmo quando os indivíduos não possuem
acesso um com o outro. Na história oral são coletados depoimentos
que fazem parte da vida de cada indivíduo e que de uma maneira
ou de outra está interligada com a história local e como citada
acima, contribuirá para preservação da memória histórica do
município.

Conforme Halbwachs (1990, p.83).

“[...] É possível que no dia seguinte de um acontecimento que


sacudiu, destruiu em parte, renovou a estrutura de uma sociedade,
um outro período comece. Mas disso nos aperceberemos somente
mais tarde, quando uma nova sociedade, realmente. tiver tirado de
si mesma novos recursos, e quando ela se propuser outros
objetivos”.

A sociedade ivaiense conforme as entrevistas, após a Geada Negra


de 1975 conseguiu tirar de “si” novas maneiras de sobrevivências,
procurando “esquecer” o fenômeno climático de 1975.

Quanto à memória e o que os indivíduos nos apresentam sobre o


passado de São Pedro do Ivaí, Halbwachs (1990, p.77):

“Não esquecemos nada, porém esta proposição pode ser entendida


em sentidos diferentes. Para Bergson, o passado permanece
inteiramente dentro de nossa memória, tal como foi para nós; porém
alguns obstáculos, em particular o comportamento de nosso cérebro,

676
impedem que evoquemos dele todas as partes. Em todo caso, as
imagens dos acontecimentos passados estão completas em nosso
espírito (na parte inconsciente de nosso espírito) como páginas
impressas nos livros que poderíamos abrir, ainda que não os
abríssemos mais”.

As entrevistas fazem com que os entrevistados abram novamente


esse livro e revejam o que lá foi registrado para contribuírem no tear
da história local.
Sendo assim, com as entrevistas dos indivíduos analisam-se como os
trabalhadores rurais na época do café no município (1970) lidaram
com a ascensão e o declínio do ouro verde (café) que conforme
coletas de dados por meio de documentos cedidos pela Prefeitura
Municipal foi a cultura inicial DE São Pedro do Ivaí, a presença do
café foi marcante e importante para a economia e para cultura local,
tanto que a bandeira deste município traz em seu centro um galho
de café demonstrando a relevância da cultura a essa terra
(PREFEITURA DE SÃO PEDRO DO IVAÍ,1971, s.p).

Analisando as entrevistas dos indivíduos, os mesmos relatam que


seus familiares vieram para São Pedro do Ivaí devido à expectativa
de melhora de vida e as terras serem promissoras para o cultivo da
lavoura do café. “[...] No Paraná, além dos fatores já mencionados,
contribuíram também para o desenvolvimento da economia
cafeeira, a terra de boa qualidade” (OLIVEIRA, 2009, p. 1).

3.São Pedro do Ivaí e a lavoura do café.

A formação de São Pedro do Ivaí deu-se por volta dos anos de 1948
com famílias oriundas de várias partes do Estado do Paraná e de
outros estados como São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco
(RAINATO, Luiz Gonzaga, 1997, p.9). O coronel Gabriel Jorge
Franco foi “[...] o primeiro a lotear quadras para o projeto de
urbanização, dessa maneira foi ele que nomeou o município como
Cidade do Ivaí”.

677
Conforme Rainato (1997, p. 9) para o bom êxito comercial o coronel
realizou uma estratégia comercial.

“[...] Afonso Junqueira fez uma promoção especial prometendo um


premio de 500 cruzeiros (velhos) a cada comprador que construísse
uma casa de madeira até dezembro de 1950. Com essa oferta, houve
certa animação e afluíram muitas famílias para a localidade em
busca de prêmio” (RAINATO, 1997 p. 9).

A vista disto aumentou o número de famílias que chegavam ao


município em busca de uma melhor condição de vida vislumbrada
por meio da economia cafeeira. As famílias que aqui se
estabeleceram e adquiriram seu pedaço de terra para o cultivo da
lavoura de café, contavam com o conhecimento passado de geração
a geração. Pode–se dizer que “era um desenfreado desespero para
plantar café de qualquer jeito e enriquecer rapidamente” (KAISER
2008, apud COSTA 2012, p.5)

Os moradores que chegaram às terras de São Pedro do Ivaí


conforme os depoimentos, não demonstravam medo, pois havia
nesse espaço (São Pedro do Ivaí) grandes extensões de terras, livres
de qualquer conflito e disputas. Na concepção de Certeau (1998,
p.200).

“Todo relato é um relato de viagem- uma prática do espaço. A este


título tem a ver com as táticas cotidianas, faz parte delas, desde o
abecedário da indicação espacial. [...] Essas aventuras narradas, que
ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os
lugares comuns de uma ordem [...]”.

A viagem (relato) dos entrevistados é formidável, pois falar do


ocorrido no município é tratar sobre um espaço praticado e
conforme analisa Certeau (1998), o espaço é praticado e se não
fossem os trabalhadores (independente da intenção) das lavouras
praticarem esse espaço das roças com grandes plantações de café
talvez não existisse, pois, através do relato percebe-se como se foi
construindo a historia da localidade e como cada indivíduo deixou
praticou aquele local com sua maneira de viver.

678
Os entrevistados descreveram a insegurança em relação às geadas,
esse depoente relata a geada de 1953, de 1955, 1968 e a geada negra
de 1975 como sendo um dos motivos de os produtores de café
olhassem sem esperança para a lavoura.

Conforme as falas dos entrevistados, por onde olhasse em São Pedro


do Ivaí se via a lavoura cafeeira e em uma extensão considerável na
localidade em seus primórdios. Aparecido (2014) relata que o
município “[...] era tudo cafezal, era inteiro tudo café”.

4. O Declínio do Café no município.

Após a Geada Negra, a lavoura de café começa a sofrer os impactos


que esse fator climático causou as plantações da época (1975).
Como destacado por Baltazar Oliveira (1975, p. 1).

“[...] Na região do Vale do Ivaí os lavradores estão desesperados,


com muitos deles querendo, antes mesmo de qualquer solução dos
órgãos competentes, erradicar os cafezais queimados, pois – como
afirmaram a coluna – “tudo acabou e até o caule das plantas foi
atingido”” (OLIVEIRA, JORNAL TRIBUNA DA CIDADE 1976, p.
1).

Observa-se que, além do fator climático a lavoura cafeeira enfrentou


uma grande desvalorização comercial (antes e pós-geada), de 1976
que forçou os trabalhadores a buscarem novas alternativas de
sobrevivência.

Assim, vai se findando em São Pedro do Ivaí a lavoura de café que


abre espaço as lavouras com ciclos anuais como a soja, trigo, feijão e
outros. Augusto (214) nos fala, a vida foi melhorando com o cultivo
das lavouras da soja e trigo, pois eram mais fáceis de cultivar. As
entrevistas com os indivíduos seguem por esse viés que “era sofrido
tocar o café e que a vida deles melhorou com o fim da lavoura”,
para os entrevistados quem ganhava dinheiro com o cultivo da
lavoura cafeeira eram os grandes fazendeiros. Augusto (2014) relata

679
“[...] nóis larguemo do café em 85 porque o preço era ruim, não
compensava”. Dessa maneira as famílias foram aos poucos
evadindo das áreas rurais em rumo aos grandes centros.

De acordo João Paulo P.Rodrigues e Sandra C. A.L. Pelegrini (2009,


p. 8).
“[...] Segundo o Instituto Brasileiro do Café, no espaço de menos de
um ano, no estado do Paraná, 300 mil hectares de café foram
erradicados. Com esse fenômeno climático, novas técnicas de
produção foram inseridas na região de Ivatuba e ocasionaram
significativo impacto na estrutura populacional, na medida em que
a introdução da mecanização e da modernização da agricultura (...)
reduziu drasticamente a necessidade de mão-de-obra no campo da
agricultura, a geada provocou o êxodo populacional para os grandes
centros urbanos.” (RODRIGUES E PELEGRINI, 2009, p.8).

Percebe-se que essa evasão rural aconteceu em grande parte dos


municípios do Paraná que tinham como base econômica a cultura
do cultivo da lavoura de café. E assim como no município citado
acima, esse fato permanece na memória dos cidadãos avaienses.
Segundo a entrevistada Maria (2017) “os políticos da época fizeram
de tudo para manter o povo na cidade, porém os esforços foram em
vão e muitos foram embora para São Paulo”.

Essa fala ecoa das bocas de alguns depoentes, o povo foi embora do
município de São Pedro do Ivaí após a Geada Negra de 1975. Às
vezes notamos certo saudosismo nas falas dos depoentes, ao
relembrar como o tempo do café, era bom, pois tinha muita fartura e
de repente eles se contradizem dizendo que “era sofrido dimais”
(BENEDITA, 2014).

Percebe-se que conforme nos relata Halbwachs (1990, p. 73) a


memória é:

“[...] Imagem flutuante, incompleta, sem dúvida e, sobretudo,


imagem reconstruída: mas quantas lembranças que acreditamos ter
fielmente conservado e cuja identidade não nos parece duvidosa,

680
são elas forjadas também quase que inteiramente sobre falsos
reconhecimentos, de acordo com relatos e depoimentos!”

Os relatos sobre as histórias vividas no início da colonização de São


Pedro do Ivaí precisam ser ouvidas, porém devem ser analisados
para compreender o que é da memória e o que se construiu a partir
dessa memória.

Na atualidade São Pedro do Ivaí tem 10.167 habitantes, porém em


1975 foi realizada uma estimativa de 24.367 habitantes e após a
Geada de 1975 alguns trabalhadores e produtores da lavoura
cafeeira, devido aos prejuízos, “venderam suas terras e foram
embora para as cidades maiores como Curitiba, São Paulo”

Conforme os depoentes, um grupo de pessoas e entre eles o prefeito


da época o Sr. Silvério Seco, buscando evitar a saída dos moradores
da localidade, rumo às cidades maiores em busca de novas
oportunidades de emprego, instalam no município a Empresa
Destilaria de álcool.

Na atualidade a empresa tem o nome de Usina de Açúcar e Álcool


Renuka Vale do Ivaí S/A emprega pessoas várias pessoas do
município e região.

CONSIDERAÇÕES

Observa-se no desenvolvimento da pesquisa conforme os relatos


dos depoentes, que mesmo após a Geada Negra de 1975, os
moradores de São Pedro do Ivaí, embora abalados pelos impactos
do fenômeno climático, buscaram alternativas para as carências
ocasionadas pelo declínio da lavoura. A cafeicultura empregou uma
quantia razoável de pessoas nesse município que colaboraram com
sua formação, e os que aqui chegaram, vendo que o quadro geral do
Paraná estava mudando devido à modernização da lavoura.
Começando a aparecer meio timidamente o cultivo da soja, do trigo
e também o uso de maquinários para colaborar no manejo das
lavouras de ciclos anuais. A saída encontrada foi à construção da
Usina Vale do Ivaí que conseguiu, de certa forma, conter evasão

681
rural. Usina esta, que emprega na atualidade uma grande parcela da
população ivaiense.

Fontes Orais:

APARECIDO. Aposentado. 78 anos. Entrevista Concedida a Pós-


graduanda Eliane Aparecida Miranda. São Pedro do Ivaí, 01 de
maio de 2014.
AUGUSTO. Trabalhador Rural. 59 anos. Entrevista Concedida a
Pós- graduanda Eliane Aparecida Miranda. São Pedro do Ivaí, 30 de
março de 2014.
BENEDITA. Aposentada. 83 anos. Entrevista Concedida a Pós-
graduanda Eliane Aparecida Miranda. São Pedro do Ivaí, 30 de
março de 2014.
FRANCISCO. Aposentado. 73 anos. Entrevista Concedida a Pós-
graduanda Eliane Aparecida Miranda. São Pedro do Ivaí, 21 de
julho de 2014.
MARIA. Aposentada. 64 anos. Entrevista concedida a Pós-
graduanda Eliane Aparecida Miranda Gomes dos Santos. São Pedro
do Ivaí, 21 de Julho de 2017.

Informações sobre a autora do trabalho:


Eliane Aparecida Miranda Gomes dos Santos é Mestranda do
Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Estadual
do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). Licenciada em História
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Especialista
em História Cultura e Arte também pela UEPG, Especialista em
Religião, Sociologia e Filosofia pela Faculdade Eficaz, Especialista
em Metodologia de Ensino de História pelo Centro Universitário
Leonardo da Vinci (UNIASSELVI), Especialista em Educação do
Campo pela Faculdade de Tecnologia do Vale do Ivaí (FATEC).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. História, historiadores e


imagem: algumas notas introdutórias. In: História, linguagens e

682
temas: escritor e ensino de história. Guarapuava, Unicentro, 2006,
p.25-58.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. Ed. São


Paulo. Companhia das letras. 1994

COSTA, Tatiane Lourenço da. Do Ouro ao Pó. Cafeicultura e erosão


no norte do Paraná. Universidade Federal de Santa Catarina, 2012,
p. 1-15.

FERREIRA, Marieta de Morães. História Oral. Desafios para o


século XXI. Rio de Janeiro. Fiocruz. 2000, pg.11-115.

HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva, São Paulo, 1990.

LAVERDI, Robson. Et.al. História Oral, Desigualdades e


Diferenças. Recife. Edit. Universitária, 2012, p. 15- 333.

MEIHY.José Carlos Sebe B., HOLANDA, Fabíola. História Oral.


Como fazer, como pensar. São Paulo. Contexto, 2007.

MIRANDA, Eliane Aparecida. Os Efeitos da Geada Negra de 1975


para os Trabalhadores da Lavoura de Café de São Pedro do Ivaí-
Paraná. Ateliê de História. Ponta Grossa-Pr. V.2, n°02.2014. p.67-75.

OLIVEIRA, Semí Cavalcante. Importância do Café. Curitiba-Pr.


2009.

OLIVEIRA, Baltazar. Jornal Tribuna da Cidade. O jornal do Vale.


Apucarana, Pr. 20. Jul.1975. Ano V. n.228, p.20.

PADIS, Pedro Calil. Formação de uma economia periférica: O caso


do Paraná. Curitiba, Pr, 2006.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Rio de Janeiro.

RAINATO, Luiz Gonzaga. A história do nosso município. São Pedro


do Ivaí, Pr, 1997.

683
RODRIGUES, João Paulo; PELEGRINI, Sandra C.A.L. Memória e
história. Os dissabores da Geada negra em Ivatuba- Paraná.
Disponível em
http://www.mbp.uem.br/cim/pages/arquivos/anais/TS5/TS5-11.pdf.
Acesso em 20 Ago.2013.

684
A MARQUESA DE ALORNA (1750-
1839) E SEU “ESPELHO DE
CASADAS”
RICARDO HIROYUKI SHIBATA

D. Leonor de Almeida Portugal, a Marquesa de Alorna (1750-1839),


é uma daquelas raríssimas mulheres escritoras que mereceram a
atenção e o interesse dos historiadores da Literatura e da crítica
contemporânea. Ela foi “mecenas” dos salões aristocráticos na
Arcádia Lusitana; embaixatriz em Viena e Londres; predileta da
rainha Carlota Joaquina; defensora das Luzes; e, sobretudo,
defensora de um papel mais ativo da mulher (ANASTÁCIO, 2007).

É neste último aspecto que flagramos a sua obra “Cartas a uma filha
que vai casar”, endereçada D. Leonor Benedita, sua filha
primogênita, que iria casar com o Marquês da Fronteira, D. João de
Mascarenhas Barreto, a 10 de novembro de 1799. Essa obra se
enquadra no gênero “espelho de casadas”, cujo teor refere-se à
educação de uma jovem da nobreza e às suas respectivas
responsabilidades no interior da família e da casa. São seis cartas,
que desvelam um número considerável de atribuições, tarefas e
atividades, que cabem à esposa desempenhar no espaço do lar e nos
espaços públicos.

I.

A primeira carta se abre com os esclarecimentos, advertências e


conselhos sobre o novo papel que a jovem deverá desempenhar na
sociedade. O que permite enquadrar a argumentação da mãe
segundo os parâmetros de determinado um ethos aristocrático e a
partir de uma voz racional e experiente, cuja autoridade é
constituída pelos laços afetivos que unem mãe e filha e pelos
ensinamentos que se darão em forma de um código de
comportamento e modos de agir específicos. (CIDADE, 1941, p.75)

685
Não se trata de educação, no sentido restrito de uma série de
conteúdos que visem a uma mudança de saberes, valores morais ou
mesmo práticas sociais, porém, de reforço quanto às virtudes que a
filha constituiu ao longo do tempo e que, neste momento de
mudança de “estado” – a de “donzela” para “mãe de família” –,
devem ser justamente ratificados. Esse caráter de mera “lembrança”
permite que os enunciados sejam formulados em caráter didático,
em estilo simples, direto e objetivo.

É que todos os cuidados e a formação que a filha recebeu desde a


tenra infância encontrarão, agora, a sua devida retribuição e
consecução: sua saída do ambiente materno, em que se exercia um
papel subalterno, para a constituição de sua própria casa, cuja
administração e aumento dependerá de seu legítimo protagonismo.
É possível então entender que o universo feminino se completa com
o desempenho de seu papel no interior de sua própria família, com
marido, filhos e agregados.

Dessa forma, ao sair do âmbito da casa familiar, cuja proteção e


vigilância são a salvaguarda da mãe e seus prepostos de confiança, a
filha haverá de enfrentar o desafio de constituir a própria casa e, de
forma correlata, todo um novo círculo social, que se governa por
uma dinâmica particular.

Alorna adverte primeiramente que o sucesso da filha depende de


não se passar por uma mulher “elegante, distraída e bela”, para
angariar estima e prestígio. Esse seria o caminho para uma vida
miserável e infeliz. O cuidado com a aparência exterior (esse “dom
da natureza”, esse “tesouro hereditário”) é virtude, certamente, pois
é um aspecto relevante da saúde física, da integridade corporal e da
apresentação social de si mesmo, porém seu excesso conduziria a
desvios morais e à falsa vida (a “vida languida”), cujo termo é o
“desprezo”, “esquecimento” e a “indiferença” dos outros.

A segunda carta inicia justamente explicitando o conceito de


economia (“governo da casa”). Segundo Alorna, a base da doutrina
econômica são as regras e os modos corretos de dispender os

686
recursos financeiros com prudência e racionalidade, sem avareza ou
excesso de apego aos bens materiais, mesmo porque, se fosse isso,
teria o mesmo sentido da mulher que só preocupa com a beleza
física. De fato, gastar pouco ou nunca repartir com quem mais
precisa são as práticas preferidas do “mesquinho” e do “miserável”.

“O verdadeiro econômico é aquele que pelos meios mais fáceis, mais


simples, se procura o maior número de satisfações; que, sem abuso
dos seus cabedais, faz reinar a abundância na sua casa, e que, à força
de ordem, pode, do excedente das suas próprias precisões acudir às
alheias, e sacrificar à beneficência somos capazes de tirar os outros
da miséria”. (Apud CIDADE, 1941, p.79)

Importante destacar que o dispêndio dos recursos e das posses da


família por parte da mulher casada não se restringe ao âmbito dos
bens materiais, pois o tempo dedicado às ações quotidianas deve
seguir a mesma lógica e racionalidade dos cuidados com o dinheiro.
Vale dizer, a boa gestão do tempo deve enfatizar as “obras de
misericórdia” que, segundo a Marquesa de Alorna, constituem-se
em prioridade nos momentos de ócio da mulher casada. É este
dever que é o passatempo por excelência da mulher de família,
porque refere-se ao seu “caráter de cristã”. Aquela que vive apenas
em favor de si mesma e cuidando exclusivamente de seus próprios
interesses não merece o privilégio de viver em sociedade; deve, isso
sim, “solicitar uma caverna, onde, à maneira dos tigres, seus
semelhantes, fosse fartar-se de egoísmo e barbaridade” (CIDADE,
1941, p.80).

Posto isto, a vida de casada é a entrada em outros domínios, cujas


demandas extrapolam os exíguos deveres da mulher solteira. Para
tanto, Alorna aconselha que se durma sete horas por noite (o
suficiente para recuperar o corpo e conservar a saúde) e que se
levante sempre bem cedo. O dia então deve se iniciar com uma
prece curta, fervorosa e humilde; e, após isso, breves cuidados com
a toilette; das 7 às 8 da manhã, dedicação à leitura e ao estudo para
cultivar o espírito; das 8 às 9, café da manhã em família e arranjos
domésticos; das 9 às 10, estudo e aprimoramento das qualidades

687
artísticas; das 10 ao meio dia, cuidado com os filhos; do meio dia até
o jantar, ela deve estar preparada (devidamente vestida e adornada)
para as suas próprias demandas, as do marido e dos agregados. Esse
último período é também aquele reservado para se dedicar à
costura, aos bordados e à música.

Alorna adverte do perigo da “ociosidade”, sobretudo às tardes, que


é período dedicado aos “outros”. Trata-se do momento em que mais
se recebe visitas e se é alvo de “obséquios” e “galanterias”. Aqui, a
mulher casada deve observar as “leis da civilidade” e as regras de
convivência, resguardando-se sempre de críticas e da maledicência
alheia. Se o convívio social é necessário, é preciso se valer de “juízo
claro” e de “constante modéstia”, com boas doses de discernimento
e polidez, para transformar um tempo considerado inútil em
proveitosa paz e prosperidade. A agenda feminina termina à meia
noite, depois disso arruína-se a saúde e se desarranjam as ocupações
do dia seguinte. Além disso, criam-se demandas aos criados que
causam incômodo e trazem pouco benefício para a dona da casa. A
eles, deve-se determinar as obrigações e tarefas, regulando as horas
de serviço e descanso.

Se essa segunda carta se dedica à questão do tempo, na terceira carta


será desvelada a economia de espaço. Temos uma longa explicitação
de uma das responsabilidades da esposa, qual seja: cuidar do espaço
físico da moradia. Aquela “ordem” e aquele “método”, que haviam
sido propostos, são retomados aqui como elementos estratégicos,
criando uma analogia de proporção, pois do mesmo modo que se
deve dividir e organizar o tempo entre os inúmeros afazeres, da
mesma maneira deve-se atentar para o correto ordenamento,
arrumação e adorno da habitação. Para Alorna, a boa organização e
a beleza da casa começam com a limpeza e com o devido cuidado
com a conservação dos móveis. Equivale a dizer que os modos de
expressão exterior são o espelho de um espírito cultivado; nesse caso
específico, de uma esposa elegante, prudente e virtuosa. (CIDADE,
1941, p.83)

688
Para o nosso pensamento contemporâneo, em que as ideias
burguesas de privacidade e intimidade prevalecem, não faz sentido
articular uma certa maneira de decorar a casa com o grau de virtude
que alguém adquiriu ao longo do tempo. Segundo a matriz liberal,
mais lógico seria entender a habitação como expressão da
ostentação, do luxo e da riqueza material de seus proprietários.
Entretanto, para Alorna, isso seria equivocado, além de empobrecer
o debate sobre o papel social da mulher, já que a verdadeira nobreza
não possui correspondência alguma com gastos suntuosos e
exorbitantes, porém com o dispêndio ordenado e disciplinado do
dinheiro – a uma “boa educação”, como ela se refere –, o que
rivaliza com a “desordem”, o “desarranjo” e a “sordidez”. No polo
oposto, há um outro: o da falta de móveis e da má conservação dos
objetos da casa. É que esses aspectos exteriores são signo da
“preguiça” e da “indolência” de seus moradores. O aumento e a
“alegria” da família dependem da limpeza e elegância dos
aposentos; o espaço da casa é um “teatro da felicidade”, em que a
simplicidade elegante deve vigorar e nunca as extravagâncias, que
só atraem dívidas, e a familiaridade pouco amistosa.

A quarta carta é dedicada à “economia doméstica”, cujo assunto se


refere à escolha e à administração da criadagem. A regra
fundamental se anuncia logo de início: deve-se ter poucos e bons
criados, o que reverte em favor do serviço prestado por eles. É
justamente nesta carta que a marquesa de Alorna afirma
explicitamente que o “governo doméstico” é de responsabilidade da
esposa e que os serviçais são êmulos dos filhos de sangue, portanto
membros eméritos da família, com respectiva retribuição em amor.
(CIDADE, 1941, p.85)

A partir disso, Alorna reduz seus conselhos a algo (digamos)


comezinho ou ao dia-a-dia da casa, como ter um mordomo, que se
responsabilize pela administração geral e pelo comando dos outros
criados; e que estes, por sua vez, devem ter as suas atribuições bem
definidas. Para o controle do orçamento familiar, basta anotar tudo
em livros específicos; depois, ao final de cada mês, verificar, com
diligência, a contabilidade de receitas e despesas, e, caso necessário,

689
fazer os devidos ajustes ou correções de percurso. Esse “livro de
razão” (ou de contabilidade, por assim dizer) é parte da “escritura
doméstica”, assim como as cartas de caráter pessoal.

Nesta parte, é impressionante o caráter prático dos conselhos da


mãe para a filha. Se a argumentação começou pelas primeiras lições
recebidas na casa materna pela futura esposa, agora o sentido
discursivo das cartas particulariza as responsabilidades com a
administração da casa, sobretudo com o controle dos recursos
financeiros. Portanto, quando ordenados segundo uma disciplina
que não é apenas de caráter pecuniário, mas também revelam a
robustez do espírito e o compromisso com uma constante busca pela
perfectibilidade.

Na quinta carta, pode-se perceber que as demandas mais imediatas


do espaço doméstico cedem lugar às preocupações com os deveres
de caráter público. A primeira advertência é tomar cuidado com as
companhias, sobretudo, com aquelas que, pela frequência do
convívio, aparentam virtude. É que a maledicência – esse “mal da
língua”, como afirmavam os moralistas do período – possui na
contrafação da virtude suas armas mais poderosas e que a vida em
sociedade, fora, portanto, do âmbito da família e da casa, apresenta
outra lógica de funcionamento, em que as regras de civilidade
devem presidir as relações humanas. (CIDADE, 1941, p.88)

Assim, se a alta estirpe, a beleza e a juventude são a razão para as


demandas sociais constantes, isso pode reverter em boa
oportunidade para angariar reputação, distinção social e honra. O
conselho é certeiro: “modéstia” e “austeridade” dos modos,
prudência na escolha dos eventos públicos em que se comparece e
polidez no trato. Lembrando que os divertimentos são dissipações
do espírito, se desregrados, e se movem pelo turbilhão dos sentidos,
causando desvios em relação ao reto caminho e causam “dores” e
“aflições”. Porém, esquivar-se dos eventos sociais é tão pernicioso
quanto o excesso deles; pior ainda, a busca incansável pela
“indulgência dos outros”.

690
O tom admoestatório das cartas anteriores se agrava nesta última, a
sexta. O tema retoma a questão da esposa mais preocupada com
frivolidades de “toucador” e com as “regras da moda”, já
enunciadas na quinta carta, do que em angariar boa reputação e
renome para a si mesma, e assim proporcionar o aumento de sua
família. Particularmente, em estilo grave e pesaroso, os conselhos da
Marquesa de Alorna se adensam e insistem no cultivo e
aperfeiçoamento das virtudes. Isto porque uma existência que se
volta exclusivamente para o mundo exterior e para a convivência
pública tem por efeito apenas importunação, tristeza e enfadamento.
(CIDADE, 1941, p.93)

Por fim, a mãe experiente e cautelosa aconselha à filha a evitar o


“tom grotesco” das “zombarias” e “chufas” (essas brincadeiras
espirituosas com ar inofensivo), pois são o terrível algoz do
princípio fundamental da “caridade”, estrategicamente a mais
importante virtude a ser cultivada pela esposa. É a partir da
centralidade dessa virtude, entendida conforme a doutrina da
economia que Alorna vem expondo, que se determina o
contentamento dos demais membros da família e a correta aplicação
da justiça distributiva.

II.

Ora, os enunciados da Marquesa são amplamente tributários dessa


nova forma de organização política, como aquela saída da
Revolução francesa e da filosofia iluminista. Assim, não haveria
mais espaço para uma mulher frívola, fraca e passiva, preocupada
com adornos ou o grau de fascínio que poderia exercer sobre os
homens; o momento demandava mulheres enérgicas, dignas e
ativas.

Numa sociedade estratificada, havia uma divisão clara entre os


deveres da esposa e do marido. Se para o universo masculino a
atuação no espaço público era a tônica principal, para a mulher,
restavam as atribuições domésticas e alguns deveres sociais
(ANTUNES, 1982). A escritora portuguesa Marquesa de Alorna

691
(1750-1839) dedicou assim, nessas cartas à filha, espaço considerável
à educação de uma jovem da nobreza e as suas respectivas
responsabilidades no interior da família.

No Antigo regime é central o conceito de “civilidade”: um código de


condutas, que recobre um amplo espectro de interesses que vai do
ordenamento dos corpos, dos modos à mesa, passando pelo cálculo
das interações sociais e pelos modos de vestir, até o governo de si
mesmo e da família (ALVIM, 1988). Nesse sentido, o próprio
conceito de “educação” abrange uma dinâmica social de maior
envergadura que movem as várias maneiras de dizer e de fazer.
Civilidade e educação são faces complementares, pois
compreendem ensino e aprendizagem, e disciplinam os modos de
agir.

Por fim, o que possível dizer é que a “era das revoluções”


(HOBSBAWN, 1998) testemunha o surgimento de uma voz
feminina, que está ligada a essa atuação codificada, fundada no
princípio hierárquico que estabiliza toda a comunidade política.
Conforme diz Godineau, “o Século das Luzes é efectivamente o
século das mulheres” (1997, p.311). Elas estão presentes nos
ambientes aristocráticos dos salões literários, nas páginas dos
ensaios filosóficos e dos romances, nos espaços populares das
tabernas e das ruas, transitando entre o espaço privado e o espaço
público, entre o ideal de mulher submetida ao marido e a sua maior
participação nas relações sociais.

Referências

O autor é Doutor em Letras (Unicamp/Universidade Nova de


Lisboa)
Pós-Doutor em História da Cultura (UFPR)
Prof. Adjunto do Delet/UNICENTRO

ALVIM, Maria Helena V. De defensora das Luzes à agente contra-


revolucionária. Revista de História das Ideias. Coimbra/Faculdade de
Letras, v.10, 1988, pp.265-276.

692
ANASTÁCIO, Vanda. Introdução. In: PORTUGAL, D. Leonor de
Almeida. Marquesa de Alorna. Sonetos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007,
p.11-72.

ANTUNES, José. Notas para o sentido ideológico da reforma


pombalina: a propósito de alguns documentos da imprensa da
Universidade de Coimbra. Revista da História da Idéias, IV (II): 181-
183, 1982.

CIDADE, Hernâni. Prefácio. Marquesa de Alorna. Inéditos. Cartas de


outros escritos. Lisboa: Sá da Costa, 1941.

GODINEAU, Dominique. A mulher. In: VOVELLE, Michel et al. O


homem do Iluminismo. Lisboa: Presença, 1997, pp.311-335.

HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1998.

HISTÓRIA E SOCIEDADE NO
TESOURO DE MENINAS ( 1774)
RICARDO HIROYUKI SHIBATA

Um dos maiores best-sellers do século XVIII na América Portuguesa


foi o Tesouro de meninas, da Pauline de Montmorin, condessa
Leprince de Beaumont, traduzido para o portuguiês em 1774. A
importância e a vitalidade dessa obra de cunho didático-
moralizante, cujo público em potencial seria crianças em fase de
letramento e jovens leitores, é testemunhado pelos títulos de livros
submetidos à censura lisboeta entre 1808 e 1826 com destinação ao
Rio de Janeiro (ABREU, 2003, p.107s). Nessa lista de obras mais
encomendadas para veiculação em terras brasileiras, é fato curioso
perceber que, ao lado dessa obra (de aparente) matriz doutrinal,
estão outras, de cariz ficcional, que narram os feitos heroicos de

693
Telêmaco, as peripécias do picaresco Gil Blas, os contos das Arábias
contados em mil e uma noites, os feitos de Carlos Magno e seus
doze pares de França, e, mais ainda, um correlato de gênero,
o Tesouro dos meninos. Outro fato curioso é que a completar essa lista
estão a obra poética de Manuel Barbosa du Bocage, porém sem a
causticidade de suas composições mais desbocadas, e o insuspeitado
pastoril Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, réu confesso
de Inconfidência e amargando condenação no exílio.

É bem certo que o Tesouro de meninas é “poderosa fonte de


conhecimento da história de uma nação” (LAJOLO e ZILBERMAN,
1998, p.121), em particular, quanto à ordenação do mundo da leitura
no Brasil e que, a partir disso, é perfeitamente possível mapear o
circuito de produção e difusão de obras impressas no interior de
uma dada comunidade de leitores nos alvores do Iluminismo e sua
respectiva ambientação nos trópicos. É igualmente certo que essa
obra também consegue levantar pistas relevantes quanto à questão
da educação feminina, com detalhamento de seus processos
institucionais ou domésticos, respetivo programa pedagógico,
sobretudo de um plano de conteúdo a ser devidamente estudado, e
princípios gerais de ordenamento (ALGRANTI, 2014; ALGRANTI,
1998). Tratava-se de material oficial com chancela da monarquia e
dos poderes corporativos a ela associados, justamente aquilo que
escapou as prescrições, as interdições e os vários modos de atuar da
censura institucional, bem como os usos do livro impresso por parte
dos leitores a partir de estratégias hermenêuticas voltadas para os
significados ilustrados, o que significa a partir da heresia e da
sedição (VILLALTA, 2015).

De qualquer forma, o que se pode flagrar no interior dessa obra são


normas ou regras de comportamento social, como aqueles
doutrinados em manuais de civilidade que não difundiam um
programa pedagógico específico, conquanto possuíssem caráter
didático, pois tratavam basicamente da etiqueta (a pequena ética,
como se diz) e da Ética propriamente dita (a educação moral e
religiosa). Ou seja, a ênfase era dada a partir de conselhos e
admoestações de ordem prudencial, conforme o gênero

694
deliberativo. Essa ordem do discurso é relevante, pois os
enunciados performativos se davam estrategicamente no interior
dessa matriz sapiencial, o que demandava necessariamente a sua
correta expressão por um modo específico de dizer. Assim, não se
trata de uma “moralidade performativa” (BROWN, 2008,
p.157s) stricto senso, em que os ditames para a educação feminina se
autonomizavam em relação a outros elementos do sistema
educacional. Aqui, também, vale esclarecer que a educação não era
um campo autônomo de conhecimento, mas se articulava a outras
instâncias de domínio e de disciplina.

Mesmo porque havia uma variedade considerável de discursos que


visavam à produção, disseminação e afirmação dos valores sociais
mais prestigiosos com o objetivo de legitimar uma certa concepção
de ordem e de hierarquia. É que o campo ético se dinamiza a partir
de outros campos, que lhe são complementares e dependentes (o
campo político, o campo das relações familiares, o campo espiritual);
lugares estratégicos, onde se formam e se cristalizam ideais e
normas de comportamento particulares (BETHENCOURT, 1988,
p.251).

Mais ainda, como se referem os estudos de Arno Mayer (1987), o


Antigo regime não foi sepultado, em definitivo, com a Revolução
francesa de 1789. Após, um período de turbulência e convulsão
social, com a guilhotina decepando cabeças coroadas e com o
liberalismo sendo disseminado como moeda corrente, os regimes
monárquicos europeus, de caráter hereditário, buscaram, num
primeiro momento, repostar com mecanismos violentos de censura,
repressão e violência, porém logo se adaptaram à nova realidade,
justamente para manter privilégios e a lógica hierárquica
tradicional. Ainda com Mayer, a “força da tradição” causava uma
inércia social que buscou ratificar os alicerces econômicos da antiga
ordem. O velho regime possuía uma excepcional “elasticidade”, cujo
modo de atribuição de poder, estabelecimento de convenções e de
hábitos, se mantiveram estabilizados num sistema cultural coerente
e complexo, portanto com enorme capacidade de resiliência e de
sobrevivência. Nesse sentido, basta pensar, para o caso brasileiro,

695
que os grandes proprietários de terra e os negociantes de grande
escala receberam paulatinamente estatuto nobiliárquico por
nomeação régia, resultado imediato da transferência da Corte para o
Rio de Janeiro.

A estratégia de cooptação das elites locais foi um esforço consciente


de adaptação da monarquia lusitana à nova situação em que uma
colônia se tornava capital de Império. Esses grupos sociais, por sua
vez, acabaram por incorporar, com ênfase, a lealdade fundada em
vínculos de matriz familiar, disseminação das virtudes heroicas e
prestação de serviço público ao Estado. Dito de outro modo, eles
conseguiram aplicar com sucesso a apropriação dos valores e
insígnias aristocráticos, conformando uma espécie de
“biculturalismo”(BURKE, 2010, p.30s). A interação entre as duas
culturas se moveu estrategicamente em direção à assimilação por
parte da cultura local com sua face tropical à cultura lusitana,
europeia e cosmopolita.

Tudo isso está correto em grande medida, porque conseguem


destacar muito dos conceitos civilizacionais que estão em jogo a
partir do contexto histórico em que estes textos estão imersos.
Porém, é preciso ressaltar, desde já, a textualidade desse período
conforme sua dinamização num campo discursivo particular,
portanto com sua própria lógica de criação e disseminação de seus
enunciados, vale dizer, a recepção e a hermenêutica por parte do
leitor se dava necessariamente a partir de gêneros textuais e, nunca,
somente como forma de acesso a conteúdos. Dito de outro modo, os
conselhos e admoestações se normatizam conforme o gênero
discursivo de matriz deliberativa, cujo fundamento se dá pelo
argumento exemplar – aquele em que as ações do presente levam
em conta casos semelhantes que ocorreram no passado.

De modo complementar, a base para a deliberação, no momento


presente, ocorre seguindo a lógica dos valores sociais e morais de
maior prestígio, e de um conjunto de virtudes. No século XVIII, o
objetivo é buscar a honra, o aumento de si mesmo, a grandeza da
família (de sua “casa”) e, por conseguinte, o ser “republico” ou,

696
como dizem os tratados oitocentistas de educação, a “civilidade”. É
preciso ressaltar igualmente que essa noção de “civilidade”, sem
dúvida alguma relevante para o correto entendimento das práticas
letradas desse período, deve ser considerado segundo um contexto
histórico mais verossímil para este momento em particular. Tratava-
se do último âmbito doutrinal que articulava e estabilizava as várias
hierarquias sociais, pois, como afirma, Blanchard:

“O termo Civilidade é derivado de outro, que significa Cidade,


assim, na primitiva acepção, Civilidade, quer dizer maneira de viver
dos habitantes de uma cidade entre si. Com efeito, a Civilidade
compreende todas as regras, segundo as quais nós devemos
conduzir na Sociedade”. (BLANCHARD, 1851, p. 158)

Assim, no século XVIII, em Portugal, é possível flagrar, de maneira


certamente peremptória, o esforço, por parte das diversas instâncias
da monarquia, de conjugar certas práticas narrativas de caráter
imaginativo e literário com mecanismos de interiorização da
disciplina de viés moral e doutrinal. De fato, como advertia Luís
Antonio Verney, um grande pedagogo do período:

“Os romances, a que os Portugueses chamam novelas, são


verdadeiras epopeias em prosa, e devem ser feitos da mesma sorte.
Contudo, acham-se poucos que mereçam este título; pois os
portugueses e espanhóis que se acham nada mais são que histórias
de amor mui inverossímeis. O Telémaco de Monsieur de Salignac é
uma epopeia das mais bem feitas e escritas que tem aparecido”.
(VERNEY, 1746, v.1, p.172)

Nesse sentido, o leitor coetâneo tinha a seu dispor uma enorme


quantidade de discursos normativos, de variada natureza, em que
era perfeitamente possível reconhecer, com bastante
verossimilhança, um conjunto coeso de virtudes, modos de
comportamento e conselhos práticos (com as respectivas
admoestações por não as seguir a contento) para constituir e se
aproximar do ideal de homem civil, aristocrata e político. O ponto
de aglutinação era dado pela mediania – justamente aquilo que

697
Aristóteles afirmava ser o equilíbrio sempre instável entre dois
vícios extremos –, em que concorria, no contexto epocal imediato da
normativa oitocentista, os cuidados com a aparência física
(incluindo, os tratos com o vestuário), a relação cordial e amistosa
com os outros, a polidez das ações e uma grande dose de
devotamento e altruísmo.

Para a mulher, entretanto, era notória a escassez desses tipos de


discurso. Daí, a importância de uma obra votada exclusivamente a
elas, como o Tesouro de Meninas. O que surpreende, em particular, é
que conquanto o Renascimento do século XVI e mesmo certos
teóricos da filosofia política iluminista do século XVIII tenham se
esforçado por destacar a importância das mulheres na dinâmica
social, a elas ainda era atribuída preferencialmente o papel de mãe
de família e, por conseguinte, a de educar e transmitir
conhecimentos uteis a seus filhos. A despeito disso, é preciso
reconhecer, desde logo, que, em vários momentos particularmente
estratégicos, a figura feminina está presente de modo decisivo nas
rodas de conversação em público e nas sofisticadas reuniões nos
seletos salões aristocráticos, nos cuidados com a higiene pessoal, na
postura do corpo em ambientes de socialização, nos diferentes tratos
com a moda e no convívio harmônico entre os membros do círculo
familiar. O que era dado, em verdade, com certa dose de cautela e as
devidas ressalvas.

De qualquer forma, tratava-se, então, de uma ambiguidade de base,


mesmo porque, se de um lado, o destaque ia para o papel de mãe de
família e seu restrito universo da casa, lastreado numa continuidade
histórica em longa duração que se pode remontar muito bem pelo
menos à Idade Média; de outro, havia um esforço (fragmentário e
intermitente) de ratificação de sua função moduladora no interior
das regras de etiqueta e na constituição de uma sociabilidade menos
voltada para o controle de si e mais para a atuação no convívio com
os outros.

Nesse sentido, conquanto podemos flagrar o surgimento de um


espaço maior quanto ao papel das mulheres na sociedade e à

698
educação feminina, o que revertia em respectiva maior cobrança
quanto ao seu efetivo exercício em suas diversas funções (esposa,
mãe, amiga...), havia de igual modo a queixa por parte de muitos
teóricos quanto à total ausência de virtudes ou mesmo mecanismos
em que elas poderiam cultivá-las e aprimorá-las. (CLANCY, 1982)

Ou seja, como se refere Mónica Bolufer, a inferioridade atribuída ao


gênero feminino acaba por colidir de frente com o argumento de
que a mulher é fundamental no processo civilizatório e na
estabilização dos diversos estratos sociais. Dito de outro modo:

“De forma creciente, se atribuíria a las mujeres una responsabilidad


particular em la construcción de una sociedad civilizada, con todas
sus ambigüedades, lo que llevaría, por una parte, a ensalzarsu papel
mediador y, por otra, a culparlas de forma especial por los ‘excesos’
de la civilización y la “corrupción” associada al refinamento”.
(BOLUFER, 2009, p.220).

A civilidade, com uma rede densa e coercitiva de preceitos e de


interdições, se impôs em meios cada vez mais numerosos; por isso
mesmo, ela perdeu seu valor de distinção para as “pessoas
mundanas” que se afastaram dela e que, rejeitando seus
formalismos opressivos, definiram outro código de
comportamentos, mais livre, qualificado de polidez.
A Enciclopédia considera que a civilidade foi inculcada à maioria e
que se tornou uma norma para as condutas populares. (CHARTIER,
2004, p.74-75)

A todo esse contexto, articulava-se um outro, em que concorria a


própria dinâmica específica da casa dinástica portuguesa. Como se
sabe, D. João VI era filho secundogênito e ascendeu ao trono após o
falecimento de seu irmão mais velho D. José, que pela morte
repentina não deixou descendência, e da derrocada de sua mãe D.
Maria, incapacitada por “uma afecção melancólica” que se
degenerou em “insânia” e “frenesim” (BEIRÃO, 1944, p.411-412).
Sua sagração como rei de Portugal acabou acontecendo em terras
brasileiras, tempos depois da transferência da corte para o Rio de

699
Janeiro, o que se deu com vários lances pitorescos. Alguns
historiadores desse período reputam esse fato à ambição da grande
nobreza lisboeta em ascender aos cargos de primeiro escalão do
Estado; outros, às maquinações perversas de sua esposa Carlota
Joaquina em arrebatar-lhe o cetro real por meio da usurpação do
governo; outros, ainda, à sua índole pessoal, sempre mais
interessada, quando jovem príncipe, em matéria religiosa do que nas
práticas administrativas do Reino.

De qualquer forma, a construção da persona ficta do rei


(APOSTOLIDES, 1981, p.34-38) – a figura do governante, sua
personalidade política – se deveu em grande parte à tradição
educativa da corte portuguesa, particularmente visível na Dedução
cronológica e analítica, de José Seabra da Silva, porém mais
correntemente atribuída a Sebastião José Carvalho e Melo (Marquês
de Pombal). A pedagogia principesca contemplava, com doses
bastante variáveis a depender do interesse do pupilo, de devoção e
das razões da Corte. Tratava-se de articular uma educação religiosa,
portanto, com ênfase nos aspectos espirituais e doutrinais da
ortodoxia católica, com matéria de caráter cívico e prudencial, isto é,
aquela parte dedicada aos assuntos mundanos e mais
comezinhos, aos de vertente política e da governança do Estado.
Tudo isso entremanhado com lições de geometria (rudimentos da
matemática), música, geografia, línguas estrangeiras (em especial, a
língua francesa, que era considerada era a língua de cultura e da
diplomacia do século XVIII) e noções de direito e legislação.

Esses aspectos educativos são mais visíveis em sua forma


mentis particular em dois pontos culminantes das festas públicas de
representação da Coroa: a aclamação (o termo jurídico mais preciso
era “alçamento” e pode-se crer que nada mudara mesmo com a
corte ambientada nos trópicos) de D. João VI como rei e as núpcias
entre D. Pedro, herdeiro do trono português, e D. Leopoldina.
Ambas ocorridas em terras brasileiras. A Gazeta do Rio de Janeiro,
órgão oficial de divulgação dos atos governativos da Coroa,
concedia largo espaço à narração desses acontecimentos de júbilo
em que estava presente D. João, quer quando ainda era regente e

700
depois no papel de monarca soberano. A repercussão podia ser
ouvida com alegria e entusiasmo pela população, nas mais
longínquas vilas e cidades que, muito dispersas geograficamente,
compunham o Brasil da época.
É que as várias instâncias da vigilância policial – não apenas no
sentido de salvaguarda da proteção e salvaguarda física dos súditos,
mas igualmente também da integridade moral (a assim chamada
“moralidade pública” – recaía sobre qualquer desvio das normas. A
esfera da polícia se fazia mais necessária numa atmosfera de tensão
política gerada pela invasão francesa, pela pressão inglesa e pelas
dificuldades inerentes à lógica da regência joanina. Também se fazia
necessária pela elevação da temperatura no espaço público como
lugar de exposição de opinião e debate de ideias, em especial, pelos
jornais em língua portuguesa publicados em Londres: o Correio
Braziliense, de Hipólito da Costa, e o Investigador português em
Londres, de José Liberato Freire de Carvalho. O perigo de contágio
em solo brasileiro dos ideais revolucionários ameaçava macular a
natureza paradisíaca do Brasil e convulsionar toda a sociedade,
desarranjando as hierarquias instituídas.

Por fim, o que fica claro é que a disseminação do saber livresco,


como o exemplo daquele constituído pelo Tesouro de Meninas, vinha
preencher a intenção de constituir uma sociabilidade como
dispositivo disciplinador de atitudes, comportamentos e valores –
uma nova urbanidade, em que o processo civilizador – para usar
uma expressão de Norbert Elias (1994) – destacava feições inéditas.
É aquela “violência doce” do poder, conforme se refere António
Manuel Hespanha (1984), com seus mecanismos de inculcação de
normas de respeitabilidade, atribuições de honra e controle social,
ou seja, da disseminação do “bom gosto” e das “boas maneiras” por
meio da lei e da ordem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

O autor é Doutor em Letras (Unicamp/Universidade Nova de


Lisboa)
Pós-Doutor em História da Cultura (UFPR)

701
Prof. Adjunto do Delet/UNICENTRO

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703
RESPONSABILIDADE SOCIAL E
EDUCAÇÃO AMBIENTAL N O ESTADO
DO PARANÁ: EXEMPLOS DE BONS
PROJETOS
TALITA SENIUK

Introdução

O presente artigo tem por finalidade apresentar de modo sucinto


algumas iniciativas sobre a educação ambiental efetivada através de
projetos e programas no Estado do Paraná, promovidas por
entidades cooperativas e privadas e realizadas nas escolas
municipais e colégios estaduais da rede pública. Vale ressaltar que
algumas parcerias governamentais também merecem ser citadas,
pois mediaram a implantação muitas vezes, como as Secretarias
Municipais de Educação e de Meio Ambiente dos municípios que
aderiram e o Governo do Estado do Paraná, também através de suas
Secretarias envolvidas. Como forma de demonstrar a importância
dessas ações no âmbito escolar, apresenta-se um recente contexto da
temática sustentabilidade, tema inerente à educação ambiental na
contemporaneidade, além da importância social da docência e da
escola em nossa sociedade.

Breve contexto da sustentabilidade mundial

Desde o início da década de noventa, dois modelos de


desenvolvimento se digladiam a nível internacional no cenário
global: o modelo neoliberal, propagado pela globalização e pelos
interesses econômicos das grandes corporações, e o modelo do
desenvolvimento sustentável, timidamente defendido às margens
do sistema dominante (SANTOS, 2014, p. 346).

Contudo, no desenvolver dos anos 90 e no início do novo século,


especialmente marcado por crises econômicas, impactos ambientais

704
e crescimento das desigualdades sociais nos países hegemonizados
pelo sistema capitalista, a globalização embasada no neoliberalismo
tornou-se insustentável. As dívidas dos países menos desenvolvidos
e as suas participações no comércio mundial diminuiu na última
década, contribuindo com os empobrecimentos nacionais. Fato é
que haveria menos fome no mundo se os países menos
desenvolvidos pudessem proteger as suas atividades econômicas da
voracidade das 200 maiores empresas multinacionais que detêm
quase 30% do comércio global, mas apenas 1% do emprego global.
Se os países, endividados em dólares, pudessem resistir à
desvalorização das suas moedas, não veriam as suas dívidas
aumentarem por mero efeito da desvalorização. A balança comercial
dos países menos desenvolvidos não se deterioraria tão
drasticamente se os seus produtos não estivessem sujeitos ao
protecionismo dos países ricos e não tivessem que competir com
produtos altamente subsidiados.

Assim, os governos nacionais estão hoje reféns dos grandes


interesses econômicos, enquanto que a democracia disfarça essa
dependência ao ser mais ou menos efetiva nas áreas que não
interferem tais interesses, sem formas de controle político
democrático efetivo, em nível local, nacional e global. A busca
incessante do lucro cria disparidades eticamente repugnantes entre
ricos e pobres e causa danos irreversíveis ao meio ambiente. Dados
recentes mostram que entre os 100 maiores PIB’s mundiais, 50 não
pertencem a países, mas a empresas multinacionais. O capitalismo
global, ao mesmo tempo que provoca a desregulamentação da
economia dos países, impõe uma nova legalidade que, por exemplo,
torna ilegal proteger os direitos dos trabalhadores e do meio
ambiente (SANTOS, 2014, p. 301 a 304).

Com o enfraquecimento das ações dos Estados Nacionais, a


Sociedade Civil recebe o papel protagonista na atuação em prol do
desenvolvimento social e sustentável, com exercício de cidadania.
Para Carvalho (2002), a natureza histórica da cidadania se
desenvolveu dentro do fenômeno de Estado-nação e data da
Revolução Francesa de 1789. O lema da Revolução Francesa

705
profetizou a sequência histórica dos Direitos Fundamentais, do que
decorre sua divisão em três gerações: direitos da liberdade, da
igualdade e da fraternidade. Os direitos de liberdade referem-se aos
direitos civis e políticos. Os direitos de igualdade são os sociais,
culturais e econômicos, derivados do princípio da igualdade,
surgiram com o Estado social e são vistos como direitos da
coletividade. A princípio, são identificados cinco direitos como
sendo da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, à paz, ao
meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum
da humanidade e o direito de comunicação. Podem, entretanto,
surgir outros direitos de terceira geração, à medida que o processo
universalista for se desenvolvendo.

O Brasil foi o berço de uma das iniciativas sociais mais marcantes no


tocante às discussões sobre desenvolvimento mais justo e
sustentável: Fórum Mundial Social, ocorrido inicialmente em Porto
Alegre em 2001, que foi uma demonstração de que não existe
globalização e sim globalizações. Para além da globalização
neoliberal do capitalismo que só aceita as regras que ele próprio
impõe, há uma globalização alternativa, a globalização de um
desenvolvimento democraticamente sustentável, das solidariedades
e das cidadanias, de uma prática ecológica que não destrua o
planeta, e de uma sociedade global que só aceite o comércio livre
enquanto comércio justo.

O papel da docência e a cobrança da sociedade

O processo de transmissão de conhecimento, normas, valores,


ideias, ideologias, tradições, etc., ocorre por meio da transmissão
formal e informal. Enquanto que a transmissão informal trata do
processo de socialização, realizado pela família e comunidade, a
transmissão formal é dada pela ação de pessoas maduras, de forma
a suscitar o desenvolvimento do estado físico, intelectual e moral
(LAKATOS, MARCONI, 2014). Na construção do cidadão pela
educação formal, a escola precisa atuar na sociedade em que está
inserida de forma conjunta com a sociedade local e com vistas à
sociedade global, trazendo a tona debates sobre temas que vão além

706
dos muros escolares e da educação contemplada nos currículos
obrigatórios.

“Precisamos considerar o sistema educacional como um aspecto da


sociedade global, à luz dos processos gerais de mudança cultural.
As escolas não funcionam como algo a parte, que podem modelar a
sociedade. Não são agências extra-societárias: encontram-se
inseridas no sistema social e não acima e sobre ele” (PEREIRA,
FORACCHI, 1973, p. 81-82).

A escola, enquanto ambiente de aperfeiçoamento intelectual, credita


na figura do professor a responsabilidade pelo ensino. Mesmo que
essa carga seja dividida com toda a equipe pedagógica, é ele que
está diretamente ligado à sala de aula. Todas as suas ações tem por
finalidade o comprometimento com o ensino-aprendizagem,
auxiliando aos alunos a desenvolverem suas competências
intelectuais, para que se tornem cidadãos mais reflexivos e críticos,
capazes de mudar a realidade da sociedade/comunidade em que
estão inseridos. Nesse contexto, a escola deve proporcionar o
conhecimento e aquisição de novas habilidades, possibilitando o
trabalho produtivo, formação de conceitos, informações e ideias que
venham a contribuir com a mudança do paradigma.

“O sistema educacional deve ser considerado com um aspecto da


sociedade global, à luz dos processos gerais da mudança cultural.
Portanto cabe à escola estimular mudanças no campo material e
tecnológico, devendo, porém, manter inalterados os padrões de
relações, normas e valores de dada sociedade” (LAKATOS,
MARCONI, 2014, p. 323-324).

Dessa forma, a escola é o ambiente determinante da mudança


cultural e social e pode vir a possibilitar um desenvolvimento
embasado na preocupação com o meio ambiente e com as gerações
futuras. Tal ambiente tem o professor como protagonista da
transformação social.

Cabem ao docente algumas escolhas durante seu planejamento, sua


metodologia, mas seu cotidiano é cheio de tarefas. Em contrapartida

707
sua profissão lhe permite ser um articulador do conhecimento,
sendo juntamente de seus educandos os sujeitos ativos na
aprendizagem, há um intercâmbio. Tem o poder de formar opiniões,
ação que traz consequências que extrapolam os muros escolares. A
sociedade como um todo cobra da educação escolar que o ensino
contemple além dos conteúdos obrigatórios, outros que o discente
utilizará fora desse local e que lhe servirão para o resto da vida,
como assuntos ligados à cidadania, consumo, diversidade, política,
entre outros, que recentemente reafirmaram-se nos novos
documentos norteadores da educação no país.

Dessa maneira, compete à escola formar o indivíduo como aluno e


como cidadão, subsidiando seus conhecimentos, fornecendo
elementos que integrem sua personalidade e ajudem a lapidar sua
moral e carácter, procedimento iniciado no seio familiar. Logo,
percebe-se que todas as práticas que venham a contribuir durante o
processo de educação escolar para a formação do aprendizado, são
válidas e de extrema importância, ainda mais se forem iniciadas
logo na formação inicial do aluno, durante os anos iniciais do ensino
fundamental I e II; nesse período os jovens estão mais receptíveis a
absorver informações e multiplica-las em sua comunidade.

Exemplos de projetos/programasde educação ambiental no Estado


do Paraná

Tratando-se da educação ambiental muitos projetos de iniciativa


pública e privada almejaram mediar à importância desse conteúdo
já desde o início da vida escolar dos discentes nos últimos anos. Este
entre inúmeros outros temas são abordados complementando os
currículos escolares obrigatórios, na tentativa de promover uma
melhora na qualidade de vida onde está sendo aplicado. Busca-se no
desenvolvimento social a chancela para mudar a realidade local,
através da conscientização das pessoas e de ações simples que fazem
toda a diferença. Para tanto, nosso recorte espacial para citar
algumas práticas positivas nessa área será o Estado do Paraná e
nosso recorte temporal será até o ano de 2018.

708
O sistema Federação da Agricultura do Estado do Paraná - FAEP em
parceria com outros segmentos sociais já há alguns anos realiza o
Programa Agrinho, que além de estar presente em todas as cidades
do estado, já abrangeu outras localidades. Seu objetivo permeia
levar informações para as crianças do meio rural, já que “se
consolida como instrumento eficiente na operacionalização de
temáticas de relevância social da contemporaneidade dentro dos
currículos escolares (FAEP, 2015)”. Há duas décadas oferecendo
experiências significativas na conscientização dos alunos e mediação
de temas ligados ao exercício da cidadania, sua proposta inicial tem
sido atendida pelo número de participantes e de projetos, ao se
verificar a quantidade de inscritos cada vez maior a cada ano. As
empresas que desejam se envolver no projeto, conseguem benefícios
legais, como abatimento de impostos e deduções fiscais. Como se
trata de um concurso para eleger os melhores trabalhos realizados
durante o ano escolar, professores, alunos e escolas vencedoras
recebem prêmios, o que motiva a participação da comunidade
escolar em desenvolver trabalhos complexos e importantes para a
formação dos alunos.

Outra proposta que já foi aplicada e que comoveu o grupo escolar e


seu entorno foram as hortas comunitárias. A empresa Brasil Foods –
BRF patrocinou a criação de hortas escolares cedendo seus
colaboradores (que foram convidados a participar do programa) e
mudas ou sementes, as Prefeituras Municipais cederam o espaço e
através das Secretarias de Educação mobilizando as escolas e as
Secretarias de Meio Ambiente, realizaram o cultivo. Os educandos
tiveram a oportunidade de plantar e colher os vegetais, assim como
degusta-los na merenda. São iniciativas como esta que ajudam os
jovens a buscarem uma alimentação mais saudável e ainda,
cuidando do meio ambiente.

Nesse segmento, o Consórcio Intermunicipal para a Proteção


Ambiental do Rio Tibagi - COPATI, promovido pela Organização
da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, entre outros
associados públicos e privados através do Programa Pingo D´Água,
buscou “contribuir para uma relação construtiva e harmônica entre

709
o ser humano e o seu ambiente” (COPATI, 2015). O foco desse
trabalho são as bacias hidrográficas e a importância da água para a
sociedade. Geralmente são tratados temas como poluição,
sustentabilidade, economia de materiais, meio ambiente,
saneamento, tudo numa cartilha repleta de muitas imagens e
atividades pedagógicas.

Já o Programa COOPERJOVEM, realizado pelo Serviço Nacional de


Aprendizagem do Cooperativismo - SESCOOP é uma iniciativa que
além de promover os valores da cooperação entre os alunos e deles
com a comunidade, revela também a importância da
sustentabilidade, tratando de temas ligados ao meio ambiente e
como a colaboração da sociedade influencia a natureza.

Na esfera privada, a Concessionária do Grupo CCR atuou no


Programa Estrada para a Cidadania, que contemplou inúmeros
assuntos voltados ao exercício da cidadania, mas que teve em
especial no ano de 2015 toda sua atenção ao tema educação
ambiental, contemplado numa apostila repleta de ilustrações, textos
e atividades lúdicas que os alunos aprenderam brincando,consumo
responsável e reciclagem são pontos bastantes presentes na edição
do ano citado. Atualmente o programa teve uma mudança no seu
nome, para Caminhos da Cidadania, mas almeja os mesmos
objetivos iniciais. É a responsabilidade social do âmbito privado
que além de conseguir abatimentos nos encargos, ajuda a
comunidade local a perceber a importância da sustentabilidade e
nossa responsabilidade sobre o meio ambiente.

Os educandos agem como multiplicadores nesse processo de


conscientização da população: realizam essas atividades na escola e
ao chegar a seus lares dividem esse conhecimento com a família,
muitas vezes cobrando melhores atitudes e mudança na postura de
seus familiares. Buscando desenvolver as potencialidades de cada
aluno, esses projetos além de explicarem os pormenores de cada
temática, demonstraram o “como” agir, ou seja, como um gesto
considerado pequeno pode transformar o planeta. Através dessa
prática iniciada na escola e que se estende até a casa posteriormente,

710
ela amadurece e torna-se hábito para o sujeito, que ainda pequeno,
mostra-se capaz de fazer algo grande pela sua comunidade.

Considerações

A escola busca desenvolver inúmeras competências em seus alunos,


que vão muito além dos conteúdos curriculares considerando a
complexidade da vida em sociedade, almejando tornar-lhes pessoas
mais conscientes, críticas e reflexivas, para que além dos muros
escolares possam exercer sua cidadania de forma plena, como
agentes transformadores da realidade que os cerca. Infelizmente, a
escola sozinha muitas vezes não consegue desenvolver todas as
potencialidades de que deseja, que a própria sociedade lhe impõe
como essenciais, e é nesse sentido que emergem iniciativas voltadas
à responsabilidade social que lhe amparam muitas vezes,
corroborando com o desenvolvimento dos discentes e acima disso,
impactando positivamente nas comunidades em que atuam.

Referências

Talita Seniuk: Licenciada em História pela Universidade Estadual de


Ponta Grossa/UEPG; Especialista em Metodologia do Ensino de
História pelo Centro Universitário de Maringá/UniCesumar;
Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São
Paulo/UMESP. Atualmente é pós-graduanda em Ensino de
Sociologia pela Universidade Cândido Mendes/UCAM e Professora
de História da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso/SEDUC MT na cidade de Campo Novo do Parecis.

BRF. Disponível em <https://www.brf-


global.com/sustentabilidade/comunidade/instituto-brf/>. Acesso em
27 de junho de 2019.

CAMINHOS PARA A CIDADANIA. Disponível em


<http://www.caminhosparaacidadania.com.br/>. Acesso em 27 de
junho de 2019.

711
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

COOPERJOVEM. Disponível em
<http://www.paranacooperativo.coop.br/ppc/index.php>. Acesso
em 27 de junho de 2019.

COPATI. Disponível em <http://www.copati.org.br/>. Acesso em 27


de junho de 2019.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Sociologia Geral. 7ª ed. São


Paulo: Atlas, 2014.

PEREIRA, L.; FORACCHI, M. M. Educação e sociedade. 6ª ed. São


Paulo: Nacional, 1974.

PROGRAMA AGRINHO. Disponível em


<http://www.agrinho.com.br/institucional>.Acesso em 27 de junho
de 2019.

SANTOS, B., S. A cor do tempo quando foge: uma história do


presente. Crônicas 1986-2013. São Paulo: Cortez, 2014.

712
PARTE 3
E
X
T
E
N
S
Ã
O
713
REFLEXÕES SOBRE A VI VÊNCIA
INICIAL DE PROFESSOR : CORPO,
ESCOLA E ENSINO
FELIPE ARAÚJO DE MELO¹

O seguinte trabalho faz parte de uma rede de considerações que


englobam o uso das artes cênicas no ensino de história. A dança e o
teatro se fazem no e pelo corpo, contudo o mesmo é alvo de
controles desenvolvidos pela sociedade e permeiam instituições.
Sendo necessário problematizar esses espaços, as abordagens deste
texto se referem a escola e as dinâmicas dentro dela e também a
formação de professores em meio a essas dinâmicas. O projeto de
extensão “Processos de Formação Docente: ações de ensino-
aprendizagem em história”, coordenado pela Profª Drª Siméia de
Nazaré Lopes, proporcionou na Escola Municipal de Ensino
Fundamental José Maria Moraes e Silva, a imersão do futuro
profissional da educação dentro de seu ambiente de trabalho.
Captadas não apenas pelo diário de campo, mas também pela
sensibilidade da pele, as experiências aqui retratadas são colocadas
sob o olhar do sujeito em um primeiro contato com a escola. A
cultura escolar foi objeto de observação com o intuito de
desenvolver o saber docente. Ser permeado, observar e ser
observado. O texto aborda o cotidiano da escola, os alunos e seus
comportamentos, as formas de quebrar os controles sobre o corpo
desenvolvidas pelos indivíduos. O olhar sobre o futuro professor
por ele mesmo, e acima de tudo a visão de seus alunos sobre seu eu-
profissional e sua pratica é fundamental para o desenvolvimento do
fazer. O texto está dividido em três partes, a primeira levanta a base
bibliográfica para problematizar a escola, o corpo e o ensino. A
segunda parte se refere especificamente as situações anotadas que
revelam as dinâmicas de poderes e subversões esclarecidas na
primeira parte. E por fim se tem um tópico onde o autor expressa
sua opinião diretamente ao leitor. Não se busca generalizações com
as ideias apresentadas, apenas retratar a visão sobre o espaço escolar

714
e suas marcas em um futuro professor buscando formar sua prática
em sala de aula.

Lentes Para Enxergar o Corpo

Entrar em contato com a escola sendo um professor em formação é


uma experiência riquíssima. A pluralidade de sujeitos é evidente.
Durante os acompanhamentos o cotidiano escolar é esclarecido. As
relações professor-aluno se estreitam na medida em que ambos
desenvolvem confiança e admiração, com o passar do tempo. Com
base em Doris e Millani (2011) se buscou a partir destas vivências
questionar a pratica docente. Segundo as autoras, o professor
precisa estabelecer uma postura de reflexão acerca de seu local de
trabalho, o que oferece um desenvolvimento crescente enquanto
educador. Desconstruir e reconstruir o saber docente conforme Célia
Nunes (2001) se dá pela reflexão na e sobre a prática. Reforçando a
posição do professor-pesquisador, sempre refazendo sua
docência e seus saberes originados do meio escolar. A articulação
de teorias para esta tarefa é necessária , contudo se faz importante
que as mesmas sejam confrontadas com a realidade da escola. Desta
forma, sabendo que a escola é um espaço permeado de controles e
produtor de uma cultura própria, que interferem na ação do
professor, é necessário “lentes" para perceber tais relações. A
importância de problematizar tais elementos é que assim o professor
observa seu trabalho, seu fazer e como fazer percebendo a
necessidade de inovar práticas.

Em busca da construção de uma visão sobre a ação docente e


consequentemente a formulação do saber, autores como Selva
Fonseca(2003), Paulo Freire (1987) , Foucault (1987), Gadoti (1981),
Bourke (2010), Diana Vidal (2006;2009), Cândida Maria (2006), foram
convocados para serem os filtros pelos quais os olhares a respeito do
corpo na escola e do futuro professor em sua prática, atravessam.
Refletir sobre o ensino de história ou a formação docente pela
escola, exige problematizar o corpo, pois nele se fazem os controles
de conduta, de disciplina e também de aprendizagem. Se estabelece
um corpo para aprender e para ensinar. Para absorver ou

715
memorizar os conteúdos, alunos são colocados em fileiras,
olhando atentos para o professor, que por sua vez é colocado em um
nível acima dos alunos, inquestionável. A docilidade dos corpos,
como aponta Foucault (1987), impera na escola. A respeito disso
Cândida Maria (2006) em suas considerações expõem que existe
um padrão de “aluno ideal", este fica em silêncio, passivo perante o
mestre. A escola domina o corpo, simbolicamente e fisicamente. Tais
questões já foram problematizadas por Paulo Freire (1987) que
denomina este modelo de ensino de “educação bancária”. A pratica
docente portanto precisa ser reformulada, em busca de mudar o
ambiente e também o aluno. Permitir transformações como aponta
Ubiratan Rocha (2001).

A relação ensino- aprendizagem é moldado por essas normas, o


que dificulta o desenvolvimento do senso critico dos alunos devido
a sua posição e o professor é colocado como autoridade e se sair
desse posto buscando novas formas de ensinar é condenado pelos
pais e a direção. Diana Vidal (2006; 2009) define a essas relações no
espaço da escola de cultura escolar. O professor está imerso na
mesma cotidianamente, na verdade tal indivíduo é elemento que
ajuda a produzir tal conceito. Não refletir sobre sua ação para com
os alunos promove a manutenção do sistema da imobilidade e
passividade. Vale ressaltar, que a autora também coloca que os
elementos materiais que constituem a cultura material
escolar são modeladores do corpo do aluno. O lápis, a caneta, a
carteira, compõem exemplos desta materialidade, que precisam ser
indagados.

Ao se fala de escola, corpo, ensino e controle não se pode esquecer


de discutir em um contexto maior. Estes são simples elementos que
compõem a educação. A macroestrutura pode-se dizer assim. O que
ela representa? O que a faz tão importante? Estas
indagações ajudam a esclarecer a importância da reflexão sobre o
ensino, a pratica, o papel do professor. A respeito disso Selva
Fonseca(2003) coloca que a educação é um “lugar estratégico”, pois
nela as classes dominantes da sociedade operam com o intuito de
prolongar seus poderes e interesses. Com isso se entende a falta de

716
mobilidade dos corpos, os ideais, as normas, as prisões em forma de
carteiras, o silêncio, a memorização mecânica. Existe um projeto de
educação que atende a classes sociais específicas. Outra
contribuição para esta análise é posta por Gadoti (1981) quando
aponta que “a educação sempre foi política. O que precisa é ter
clareza do projeto que ela defende, politizando-a"(p. 13). Vieira et
al (2007), também expressa que:

“O poder e a dominação não se localizam apenas no aparelho de


estado ou no nível do econômico , mas existe todo um processo de
disciplinarização necessária da população, que permeia toda a
atividade social, desde o trabalho, escola, familia, até as formas
aparentemente mais ingênuas de lazer" (p. 8)

Desta maneira a pratica do professor precisa refletir sobre


os corpos de seus alunos. A aula quebra ou fortalece essas normas.
Bourke (2010) comenta que “o corpo é apresentado como totalmente
construido por regimes culturais de poder, deixando o indivíduo
escravizado a discursos e instituições disciplinadoras" (p.306).
Contudo, falar que os alunos são tão controlados assim seria um
erro. Os indivíduos criam formas de desviar dos controles, isso é
visto como indisciplina, entretanto ao levar em consideração os
pontos debatidos anteriormente estas ações passam a ser
resistência. O professor tem que enxergar novos meios de trabalhar
com o corpo dos seus alunos, ou como defende Cândida Maria
(2006), desenvolver sua pratica de ensino a partir indisciplina ou
melhor das resistências dos alunos aos moldes impostos.

Vivências e Sensibilidades

Após essa discussão teórica, serão apontadas nesta parte as


dinâmicas anotadas na experiência inicial de um futuro professor,
não pelo simples fato de descrever, mas porque estão interligadas
as resistências ou segundo Diana Vidal (2006; 2009), as
subversões dos alunos. Dentre as observações desenvolvidas
durante o acompanhamento na escola, optou-se pelo recolhimento
dos relatos dos alunos a respeito do professor e sua pratica,

717
procurando entender como o enxergavam sua ação. Esse olhar
é importante na medida em que o professor o acrescenta em seu
saber e procura a partir disso melhorar a sua prática. Foram
acompanhadas duranfe o ano de 2018 turmas de 6°, 7° e 8° ano.
Começaremos expondo alguns exemplos de situações abordadas no
6° ano:

17 de sentembro de 2018: O corpo fala uns baixam a cabeça, outros


fixam o olhar no professor, outros vagam pela sala com suas
mochilas.

25 de setembro de 2018: Atividade com material audiovisual- Se


perguntou a opinião dos alunos sobre o uso do video na sala de
aula. Eles responderam que gostaram pois “Todos os dias a gente
escreve".

25 de outubro de 2018: Alunos se acomodam na mesma carteira,


esticam as pernas apoiando o calcanhar em outra carteira. Uma
aluna em especial chama atenção, vai até a porta da sala e ao voltar
faz combinações singulares com as mãos o que pode ser
interpretado como dança. Ao escrever a matéria no quadro os
alunos exclamam frases como, “ Tio já tá bom” ou “Tio já tá
ótimo”.

30 de outubro de 2018: A escola é local da pluralidade de


sexualidade. Uma aluno exclama np seu fazer “Cadê meu leque
para abanar aqui?” após usar o corretivo logobem seguida cruza as
pernas.

13 de dezembro de 2018: Um aluno pegou a caneta do seu colega,


em outro momento pega o caderno do mesmo colega o que o faz se
exaltar. Uma aluna se posicionou no meio de das fileiras para
copiar.

Sobre o 7° ano:

30 de outubro de 2018: A caneta pode ser (re) significada como uma


arma com mira. O celular se torna objeto de interesse.

718
12 de dezembro de 2018: Alunos fora da sala se comunicavam com
alguns alunos de dentro, fazendo com que estes últimos subssem
em cima das carteiras para vê-los ou pulassem. Neste momento uma
aluna exclama para a professora “Tia minhas fãs, Tia suas fãs“.

Sobre o 8° Ano:

25 de outubro de 2018: Alunos usam o celular. Alunas brincam com


estojo de maquiagem, passam uma no rosto da outra utilizando um
pincel. A fala de uma aluna intriga a visão sobre o professor, ela
comenta “Se eu fosse professora eu ia dizer ei! Podem brincar".

13 de dezembro de 2018: A sala de aula é um espaço para se cuidar,


uma aluna coloca um pouco de creme na mão e passa no cabelo,
logo depois a mesma aluna estava com um tipo de protetor labial,
percebeu que eu a observava e guardou o objeto.

Os acontecimentos aqui retratados demonstram um pouco do


cotidiano escolar vivido, observado. Indagações como, O que a
imagem do professor representa? Como incentivalos a estudar?
Como não exigir ou impor controle em meio a essa situações?
Não é objetivo desse texto responder tais indagações pois, o
professor sempre se reinventa conforme a sociedade muda e os
ideais de educação e ensino também se transformam. Assim
modelos podem ficar ultrapassados. O importante, contudo,
não é construir juizos de bom ou ruim aos comportamentos dos
alunos. Como foi defendido anteriormente neste texto, tais
questões fazem parte da cultura escolar, é necessário tomar tais
situações com o intuito de construir novas praticas e saberes
docentes.

Os alunos são sujeitos que precisam ser ouvidos, em busca de uma


“educação problematizadora". Construir o conhecimento com o
aluno, alterar os controles perceber que estes indivíduos é
testemunha de seu período histórico como aponta Ubiratan Rocha
(2001). Desta forma como podemos colocalos em passividade? Isto
retira do aluno o refltir sobre si e o mundo que o cerca. Pensando no

719
valor da consciência destes sujeitos, suas visões sobre o professor
serão expostas agora. Vale ressaltar que nesta parte do trabalho
não se dividido tais olhares por turmas.

Aluno A: “O senhor é professor legal, companheiro, muito


divertido, inteligente. Quando o senhor chegou eu falei é outro
chato, chato, chato, chato, chato. Mas é legal. Professor segue o teu
caminho não desista dos teus sonhos não olha para trais. O seu
passado o senhor já vivel, o seu presente começa agora, e o teu
futuro ainda vai surpreender muita gente.”

Aluno B: “Ele é divertido, gosta de se relacionar com os alunos faz


os assuntos chatos ficarem divertidos.”

Aluno C: “Felipe eu acho você um professor muoto bom, eu gosto


como você explica as coisas por exemplo: eu faço uma perguntinha
e você já faz um texto eu gosto de professor assim mas as vezes
você é um pouco chato, mas todo professor é assim. Muoto
obrigado por nos ensinar mais de história.”

Aluno D: “O senhor é muito legal, bonito, dança bem, escreve


pouco explica super bem o assunto é um bom professor. Tio do
Egito"

Aluno E: “O professor Filipe é um professor muito legal quando


fala do Egito a gente chama ele de tio do egito ele explica muito bem
todo mundo entende ele também faz algumas brincadeiras a gente
se diverte muito.”

Aluno F: “O professor Felipe é muito legal eu gpsto muito das aulas


dele, porque eu me enteresso muito por história sobre os deuses.
Ele explica direitinho, e da pra entender ele passa videos na
televisão sobre o assunto. Todas as turma gosta muito dele, e o bom
e que ele fica com agente aqui na sala só um horário.”

Aluno G: “Quando o professor Felipe veio, ele trouxe uma outra


forma de aprendizafem para o cotidiano da sala, ele aparenta ser
simpático, paciente com os alunos, mesmo os alunos sendo agitafos

720
(Maioria). As aulas dele são dinamicas e ludicas, são um diferencial
de aprendizagem.”

Aluno H: “Bom eu acho ele muito legal acho ele


engraçado divertido simpático ele parece um ursinho de tão fofo
você é o professor mais legal você é muito amoroso com todos
nós e espero que você continue sendo essa pessoa legal engrasado
ti amo do fundo do meu coração.”

Aluno I: “Ele tem uma forma de ensinar bastante divertida. Bom,


cada prof° tem a sua maneira de ensinar e isso deve ser respeitado,
então eu acho que não deva mudar nada, apenas explicar com o
coração.”

Como se pode pode observar o aluno filtra o professor que se


apresenta, uma imagem é formada, juizos são formados. O
professor em formação precisa se ver pelo olhar do aluno pois sua
pratica interfere diretamente neste. Como se pode refletir sobre a
pratica e o saber sem recorrer ou considerar a opinião daquele que é
o alvo de toda forma de ensino?

Fragmentos que Formam: Olhar pessoal do autor

Para finalizar esta discussão acredito ser valido, se me permite,


expor em primeira pessoa a minha visão acerca de tudo que foi
colocado. Como professor em formação esta experiência mostrou
direções a serem seguidas, manter a pratica contudo sempre
permitindo sua mudança. O saber que construi e que continua a se
desenvolver fizeram o meu olhar se direcionar cada vez mais ao
ensino. No inicio do texto comento que este trabalho faz parte de
uma rede. Problematizo o uso de artes cênicas no ensino de história,
no entanto é preciso estudar o local e as relações neste, onde tais
inovações serão propostas. Portanto me dediquei a escrer esta
consideração. A escola sendo complexa exige tal cuidado. A cultura
escolar apreendida aqui brevemente com toda certeza modelam a
minha partica docente futura. Influenciam cada vez mais a procura
de entender as dinâmicas escolares e da educação, os poderes
que terei de enfrentar em busca da construção do conhecimento

721
para e principalmente, com o aluno. O modelo que vivenciamos
abordado e criticado pelos autores destacados nesta
consideração não permite esse desenvolvimento. A pratica envolve
contato, precisa de reflexão, saber absorver e estabelecer uma
posição de aluno mesmo sendo professor pois se aprende com os
alunos também. Desta forma agradeço aos meus alunos que me
ensinaram ainda na graduação caminhos que com certeza
continuarei a aprimorar depois de formado.

Referências Bibliográfica

¹ Graduando em História na Universidade Federal do Pará (UFPA)


e discente do curso técnico de Interprete-criador na Escola de
Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA).
Bolsista projeto de extensão “Processos de Formação Docente: ações
de ensino-aprendizagem em história”, coordenado pela Profª Drª
Siméia de Nazaré Lopes.

ALVES, Cândida Maria Santos Daltro. (In)Disciplina na


escola: cenas da complexidade de um cotidiano escolar. Ilhéus, Ba:
Editus, 2006.
BOLZAN, Doris Pires Vargas; MILLANI, Silvana Martins de
Freitas. Docência e Formação: Reflexões sobre a gestão pedagógica
na escola. Políticas Educativas, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 16-31, 2011.
BOURKE, Joana. Como corpos físicos afetam a transformação
cultural ? In: SWAIN, Harriet (Org.). Grandes questões da
história. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de
história: Experiências, reflexões e aprendizados. Campinas, SP:
Papirus, 2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.
Petrópolis, Vozes, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. Ed. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1987.
GADOTI, Moacir. Concepção Dialética da Educação e Educação
Brasileira Contemporânea. In: Educação: Instrumento de Luta.

722
Educação & Sociedade, Revista Quadrimestral de Ciência da
Educação, Cortez, Autores associados, pp. 5-32, março de 1981.
ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário
do aluno. In: NIKITIUK, Sônia M. Leite (org.). Repensando o ensino
de história. 4 ed. – São Paulo, Cortez, 2001.
NUNES, Célia Maria Fernandes. Saberes Docentes e Formação de
Professores: Um breve panorama da pesquisa brasileira. Educação
& Sociedade, ano XXII, nº 74, Abril/2001.
VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e Práticas Escolares: A Escola
Pública Brasileira Como Objeto de Pesquisa. Ediciones Universidad
de Salamanca, Hist. Educ. , 25, 2006, pp. 153-171.
VIDAL, Diana Gonçalves. No Interior da Sala de aula: ensaio sobre
cultura e prática escolares. Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp. 25-
41, Jan/Jun 2009.
VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da
Cunha; KHOURY, Yara Maria Aun. A Pesquisa em História. 5. ed.
São Paulo: Ática, 2007.

723
CARTOGRAFIA DA CULTU RA AFRO-
BRASILEIRA E INDIGEN A: EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA E EDUCAÇÃO PARA
A DIVERSIDADE
LARISSA RAFAELA PINHEIRO ALENCAR

Introdução

“A Cartografia apresenta-se como o conjunto de estudos e operações


científicas, técnicas e artísticas que, tendo por base os resultados de
observações diretas ou da análise de documentação, se voltam para
a elaboração de mapas, cartas e outras formas de expressão ou
representação de objetos, elementos, fenômenos e ambientes físicos
e socioeconômicos, bem como a sua utilização”. (IBGE. Acesso em
25/05/19)

Como bem constatou FIGUEIREDO (2014, p. 1) o conceito de


cartografia utilizado para a o Projeto de mesmo nome na EAUFPA é
o estabelecido pela Associação Cartográfica Internacional (ACI) em
1966. O conceito cartográfico reitera o caráter das atividades práticas
que geram um ambiente que permite a interdisciplinaridade,
ensejando a interpretação dos vários elementos que evidenciem o
multiculturalismo e a plurietnicidade.

O conhecimento aprofundado pelo projeto dá continuidade ao


currículo traçado na Escola de Aplicação, posto que, um de seus
maiores objetivos é superar a visão estereotipada e racista que faz
parte de nossa cultura. Para tal, atrelou-se ao ensino outras novas
metodologias didático-pedagógicas para que os alunos possam não
apenas apreender, mas também produzir conhecimentos novos e
desenvolver trabalhos de pesquisa e extensão que rompem as
barreiras da sala de aula.

724
O Projeto Cartografia da Cultura Afro-Brasileira e Indígena tem por
objetivo a educação para a diversidade, através da pedagogia
decolonial e da interdisciplinaridade. Para alcançar esse fim, os
alunos realizam, orientados por determinados professores,
atividades e pesquisas bibliográficas e de campo ao longo do ano
letivo. Destaca-se os momentos da excursão à Comunidade
Quilombola de Jacaraquara; o dia da Consciência Negra, grande
evento na EAUFPA; e o Forúm COPEX, geralmente realizado em
dezembro.

O Projeto Cartografia está no seu oitavo ano de execução, neste ano


de 2019 temos as seguintes disciplinas envolvidas com suas
respectivas temáticas:

1) Biologia: Click: Biologia e Multiculturalismo em Foco, do


professor André Cunha

2) História e Sociologia:
2.1. Sociabilidade, Devoção e Resistência: o universo cultural
entorno da igreja do Rosário dos homens pretos em Belém, das
professoras Antônia Brioso, Júnia Vasconcelos e Rita de Cassia
2.2. Diversidade Religiosa: conhecer pra não
discriminar, dos professores Rodrigo Peixoto, Elis e Antônia Brioso

3) Geografia e História: Memórias de Jacarequara: uma etno-


história no interior da Amazônia, dos professores Daniel Barroso e
Mario Benjamim

4) Física: O som e seu significado na cultura indígena e afro-


brasileira, do professor Ivan Neves

5) Artes: Rejeito Bruto: ecologias experimentais entre


feminismo e arte, do professor Breno Filo

São 6 grupos de estudos, divididos em 10 professores, em 5 áreas


que trabalham de forma multidisciplinar.

725
Metodologia

Como o Projeto Cartografia da Cultura Afro-Brasileira e Indígena


está vinculado ao ano letivo de 2019 da Escola de Aplicação da
UFPA, foi decidido que o projeto funcionaria com programações
condicionadas aos bimestres da referida escola.

No primeiro bimestre foi realizado a revisão bibliográfica, sessões


de estudos pelos professores, monitores e bolsistas sobre a educação
para as relações étnico-racial e planejamento dos temas a serem
oferecidos ao alunado da escola. Vale destacar que a revisão
bibliográfica perpassará em todas as etapas do projeto.

Tivemos ampla divulgação do projeto para o alunado do 2º Ano.


Sendo em seguida apresentado a todos os alunos do 2º Ano da
Escola de Aplicação, ação denominada de Lançamento do Projeto, um
evento onde todos os professores integrantes participaram; lá eles
demonstraram seus planejamentos e objetivos específicos para cada
disciplina, ao mesmo tempo que não deixavam de considerar a
interdisciplinaridade.

No auditório do ensino médio da EAUFPA, no dia 06/05/19, os 10


professores apresentaram seus temas e, com o auxílio de folders e
slides, discorreram acerca de suas temáticas e metodologias de
pesquisa. Após esse dia, iniciamos as inscrições dos alunos nos
temas que eles escolheram. Ao total, tem-se em média 140 alunos
inscritos. No ato da inscrição busca-se unir discentes de diferentes
turmas nos projetos, potencializando as trocas de experiência.

Importante destacar que o Projeto Cartografia tem diminuindo os


índices de retenção no ensino médio. Pois, os alunos integrantes, de
acordo com sua participação nas atividades, podem conseguir até 2
pontos que são contabilizados como ponto extra na avaliação
bimestral, válidos para todas as disciplinas que participam do
Cartografia. Embora alguns professores não-integrantes do projeto

726
também possam contabilizar esses pontos em sua prova, se assim
desejarem.

No segundo bimestre, os alunos, organizados em equipes (de


acordo com o tema escolhido na inscrição), passarão a ser orientados
pelos professores das respectivas temáticas. Iniciando assim os
grupos de estudos temáticos, realizado em turno contrário.
Iniciaremos assim revisão bibliográfica, etapa na qual os alunos se
subsidiarão teoricamente. As leituras serão indicadas pelo professor
orientador e também a critério da equipe que deve produzir um
texto, ficando livres para utilizar diferentes linguagens textuais.
Acontecem nesse bimestre, oficinas temáticas de acordo com as
pesquisas dos grupos de estudos.

No terceiro bimestre que esta por vir, as equipes serão orientadas


para a pesquisa de campo: elaboração de roteiros de entrevistas e
técnicas de coletas de dados. A partir disso, faremos a pesquisa de
campo que será numa comunidade quilombola do Estado do Pará.
Há três anos essa excursão vem acontecido na comunidade de
Jacarequara, no Acará.

Na comunidade, os alunos devem realizar a pesquisa de campo de


acordo com seus objetivos/temas pré-estabelecidos, os dados são
coletados através de entrevista, principalmente. Mas os alunos
também planejam brincadeiras e gincanas para as crianças da
comunidade. Todos almoçam na comunidade, seguindo com as
conversas, pesquisa e brincadeiras durante a tarde; após isto a vista
de campo termina com um banho de igarapé entre os alunos.

Os dados coletados na excursão à Jacarequara serão sistematizados


no formato de texto, revista em quadrinho, jornalzinho ou blog. E os
resultados parciais desses levantamentos serão expostos no Dia da
Consciência Negra, o 20 de novembro. “O inventário do projeto
demonstrou ainda que o Cartografia gestou uma “invenção da
tradição” no espaço escolar da EAUFPA de celebrar a diversidade
brasileira no Dia da Consciência Negra”. (BRIOSO, 2019, p. 3)

727
A comunidade escolar, estudantes universitários, professores de
outras escolas e a comunidade ao redor da escola vem prestigiar O
Dia da Consciência Negra na EAUFPA. Este é um dos principais
eventos da escola. Não apenas o ensino médio participa, mas
também o ensino fundamental I e II.

O 2 ano do ensino médio organiza as salas, enfeitando - as com


temáticas africanas, criando gincanas, oficinas, exposições,
interpretando músicas e, às vezes, interpretações teatrais. O Dia da
Consciência Negra é o principal exemplo do esforço do Projeto
Cartografia para com a aprendizagem e a afirmação identitária dos
estudantes afrodescendentes, indígenas e mestiços.

Por fim, no quarto bimestre, as equipes devem sistematizar os


dados coletados e socializá-los, de forma criativa e em diferentes
linguagens, os resultados do trabalho de investigação. A
socialização deve acontecer na Mostra científica- cultural das escolas
onde o projeto acontece.

Os trabalhos finais são expostos em formato de painel, no mês de


dezembro, no Fórum COPEX da EUAUPA. O evento é aberto a
todos os acadêmicos que queiram submeter trabalhos; no entanto, é
quase uma tradição que os trabalhos do Cartografia sejam expostos
no referido evento.

Em janeiro, o projeto encerra oficialmente seu clico. Ciclo este que


com certeza se reiniciara em 2020.

Relato de Experiência

Iniciei meu trabalho de Extensão Universitária no Cartografia como


bolsista do PIBEX-UFPA, no projeto “Cartografia da cultura afro-
brasileira e indígena: uma experiência multidisciplinar no 2º Ano do
Ensino Médio na EAUFPA” coordenado pelo Prof. Dr. Daniel Sousa
Barroso. Sai da bolsa remunerada para participar do Programa

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Residência Pedagógica, fomentado pela Capes. Mas continuei no
Projeto Cartografia como Bolsista Voluntária, ao qual permaneço até
hoje.

Em minha percepção o Projeto Cartografia tem a capacidade de


mobilizar e unir a coordenação do ensino médio da EAUFPA, os
alunos, professores, técnicos e acadêmicos em prol de um único
objetivo: valorizar e fomentar a cultura Afro-Brasileira e Indígena.

Por mais que a metodologia do Projeto, na divisão por bimestres,


não sofra grandes alterações de um ano para outro, as experiencias
vivenciadas em cada ciclo do Cartografia são únicas. Afinal, o
material humano que compõe o projeto se renova a cada ano letivo.

Há novos professores, novos temas, novos alunos e, às vezes, novos


coordenadores. Alguns professores permanecem de um ciclo para
outro. Em comparação ao ano letivo passado, cinco professores
continuaram no Projeto em 2019. No caso, os professores André
Cunha, Antônia Brioso, Daniel Barroso, Mario Benjamim, Breno Filo
permaneceram.

No ano de 2018, tínhamos 10 grupos, divididos em sete áreas de


conhecimento, a saber:

1) Biologia:

1.1. Ecologia e Etnobotânica em Comunidades Quilombolas;


coordenador: Ramon Araujo
1.2. Kizumba: Cultura afro-brasileira e indígena; coordenador:
André Cunha

2) História:

2.1. O Canto negro pela liberdade – A “Black Music”;


coordenadora: Antônia Brioso
2.2. Capoeira: A defesa do negro na Amazônia; coordenadora:
Antônia Brioso

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2.3. Escravidão negra na Amazônia: sociabilidades e resistências;
coordenador: Daniel Barroso

3) Geografia: Quilombo: identidade, memória e resistência;


coordenador: Mario Benjamim

4) Português: Palavra e discurso; coordenador: Milton luz

5) Matemática: Conexão matemática, arte e tecnologia;


coordenador: Junior Neri

6) Artes: Aceitam-se rejeitos para a poesia; coordenador: Breno Filo

7) Literatura: Mulheres negras e indígenas: a diversidade de vozes


na literatura brasileira; coordenador: Elizier Santos

Os grupos de 2019 já foram expostos no inicio do texto.

Pode-se perceber que o Projeto é dinâmico, com rupturas e


continuidades. Os alunos que passam para o terceiro ano do ensino
médio, mas não desejam se distanciar do Cartografia, podem se
inscrever como Monitores dos professores, auxiliando os alunos do
2 ano.

O Projeto Cartografia da Cultura Afro-Brasileira tem esse caráter de


resgatar as raízes afro-indígenas dos alunos, empoderando-
os. Além de promover estudos e debates acadêmicos acerca do
tema com o alunato e comunidade em geral.

Ressalto também o envolvimento do Projeto com a comunidade


Quilombola de Jacarequara. Os grupos de alunos, professores e
moradores da comunidade interagem entre si sem hierarquização
institucional. O contato com a comunidade quilombola é fomenta o
caráter de extensão ao projeto.

Atualmente o Cartografia é coordenado pela Professora Msc.


Antônia Maria Brioso, criadora do Projeto. O “Cartografia da

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cultura afro-brasileira e indígena: uma experiência de educação
intercultural do ensino médio da EAUFPA da 2° série” foi aprovado
pelo Programa PIBEX-UFPA neste ano de 2019. Atualmente, o
Projeto conta com um Bolsista de Psicologia e comigo como Bolsista
Voluntária.

Resultados acadêmicos

A Professora Msc. Antônia Brioso defendeu sua dissertação do


Mestrado Profissional de Ensino de História da UFPA do
PROFHISTÓRIA no ano de 2018, demostrando em seu trabalho o
Cartografia como produto educacional. O Cartografia foi tema de
uma monografia em Sociologia no ano de 2015. E em breve será um
capítulo de doutoramento em Artes Visuais.

Conclusão

O Projeto Cartografia possui uma metodologia alicerçada em quatro


pilares que são “a interdisciplinaridade, a interculturalidade, um
currículo de conhecimentos subalternizados pelo conhecimento
oficial e a ludicidade” (BRIOSO, 2019, p. 5). Assim, o Projeto se
instala na Escola de Aplicação da UFPA como uma experiência
multidisciplinar e de extensão, capaz de proporcionar aos
estudantes do ensino básico uma aprendizagem significativa acerca
da educação étnico-racial e indígena, incentivando e reafirmando a
identidade afro-indígena dos discentes.

Referências

A autora é graduanda do 9° semestre de Historia-licenciatura da


UFPA. Integrante do GP RUMA, Núcleo Gera e Casa Brasil-Africa.
Possui experiência em ensino (Bolsa PIBID - CAPES), pesquisa
(Bolsa PIBIC - CNPQ) e extensão (Bolsa PIBEX – PROEX/UFPA).
Atualmente é Bolsista do Programa Residência Pedagógica da
CAPES-UFPA. Pretende ingressar no PPHIST-UFPA. Email:
alencar_rafaela@hotmail.com.

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É orientada pela professora Msc Antônia Brioso no âmbito da
extensão; pelo professor Dr. Otaviano Vieira Junior no âmbito da
pesquisa e pela professora Franciane Lacerda no âmbito do ensino.
Agradece a CAPES, CNPQ e PROEX/UFPA.

Referências Bibliográficas

BRIOSO, Antônia Maria Rodrigues. Práticas e representações de


educação intercultural na EAUFPA: a experiência do projeto
cartografia da cultura afro-brasileira e indígena. In: 9 Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. 2019. Florianópolis –
SC. Anais.... Universidade Federal de Florianópolis.
FIGUEIREDO, Evillys Martins de. Políticas de ação afirmativa – a
experiência do projeto cartografia da cultura afro-brasileira e
indígena no ensino médio da escola de aplicação da UFPA.
Disponível:http://www.evento.ufal.br/anaisreaabanne/gts_downloa
d/_Evillys%20Martins%20de%20Figueiredo%20-%201020493%20-
%203729%20-%20corrigido.pdf. Acessado em 30/05/19.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Paz e Terra,
1996.

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INÍCIO E FIM DO IMPÉRIO
BIZANTINO: NOVA ERA
JOSIANE ARAUJO ROCHA

O Império Bizantino foi constituído de forma gradual, em 306 d.C.


Constantino foi o primeiro imperador a se dominar cristão, tornou-
se imperador do Império Romano e em meio a muitas guerras com
invasões bárbaras decidiu fundar uma Nova Roma, em outro
espaço, que se tornou Constantinopla a partir de sua morte, em sua
homenagem.

Constantinopla era uma cidade capital do Império Romano do


Oriente, conhecido como Império Bizantino que se encontrava do
lado oposto do Império Romano do Ocidente, fica hoje localizada na
atual Istambul da Turquia, cidade pela qual se tornou rica e
importante no período da idade média com a movimentação do
comércio, pois tudo passava por Constantinopla, sendo que ficava
no meio entre o Oriente e Ocidente, a transição de trocas de
mercadorias ou dinheiro passava por ela se tornando importante
para esse período histórico. Está cidade foi uma das mais ricas da
idade média, ela era um dos pontos que acolhia peregrinos que
viajavam para a Terra Santa, um centro econômico que atraía
mercadores alemães, genoveses e venezianos, se destacava pelo luxo
conduzido pela aristocracia, pelas escolas, universidade e
bibliotecas, foi construído um sistema de muralha bem sofisticado
para proteger contra invasores.

O principal Imperador de Bizâncio foi Justiniano que utilizou do


vasto dinheiro que era arrecadado, conseguindo comandar frotas
para proteger os comércios de piratas, acabou conquistando ainda
mais lugares com: Itália, Grécia, Turquia, África, Espanha e Egito.
Após a morte de Justiniano tudo foi se perdendo e as invasões de
eslavos e do islã tomaram algumas terras bizantinas, além dessas

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percas os bizantinos sofreram com a infestação de pragas e
epidemias por um certo período.

O Império Bizantino continuou existindo mesmo após a queda do


Império Romano, durando cerca de mil anos, foram construídos
vários monumentos como, grandes igrejas representando o
crescimento do cristianismo, o mais longo aqueduto do mundo
constituído no governo Valente, Bizâncio era um estado grego
fundado em 600 d.C. foi crucial para conceder heranças de leis e
literaturas, acelerou o processo do cristianismo, nos deu artesões,
construtores e artistas que fizeram parte da Renascença até chegar
ao século XXI.

Neste período o papa que vivia em Roma não aceitou a forma de


como era praticado o cristianismo no oriente fazendo críticas a
Justiniano, fez com que se dividissem e Roma se tornou a Igreja
Católica Apostólica Romana enquanto o Império Bizantino
dominou-se como Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, tomavam
decisões separadamente e com isso tinham suas diferenças para
tratar das questões de guerras.

No século XI os turcos conquistaram Jerusalém que era uma cidade


muito importante da época onde se encontrava o santo sepulcro
para os cristãos visitarem e para os muçulmanos foi onde o profeta
Maomé ascendeu aos céus, ameaçavam invadir o império do
oriente, no entanto, o imperador Aleixo II pediu para que o papa os
apoiassem enviando seus soldados, a partir disso papa passou a
controlar o Império Bizantino através de Roma.
Diante da desavenças que os cristãos tiveram com invasores, iniciou
muitas guerras que ficaram conhecidas como cruzadas, por conta
das vestimentas dos cristãos as batalhas, essas guerras começaram
em 1096 e duraram quase dois século, Constantinopla sofreu um
grande desgaste ao ser saqueado na quarta cruzada sofrendo muitas
perdas como foi discutido em “O Saque de Constantinopla durante
a Quarta Cruzada: uma visão árabe dos acontecimentos”:

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“O rei dos rum fugiu sem ter combatido, conta Ibn al-Athir, e os
franj instalaram seu jovem candidato no trono. Mas do poder ele
tinha apenas vestígio, pois todas as decisões eram tomadas pelo
franj. Estes impuseram ao povo pesadíssimos tributos, e quando o
pagamento foi dado como impossível eles tomaram todo o ouro e as
joias, mesmo os que estavam nas cruzes e nas imagens de Messias, a
paz esteja com ele! Os rum então se voltaram matando o monarca,
depois expulsando os franj da cidade, barricaram as portas. Como
suas forças eram reduzidas, despacharam um mensageiro a
Suleiman, filho de Kilij Arslan, mestre de Ronya, para que viesse em
seu auxilio. Mas ele foi incapaz disso. Todos os rum foram mortos
ou desposados, relata o historiador de Mossul. Alguns de seus
notáveis tentaram refugiar-se na grande igreja que chamavam de
Sofia, perseguidos pelos franj. Um grupo de padres e de monges
saiu então, carregando cruzes e evangelhos, para suplicar aos
atacantes que lhes preservassem a vida, mas os franj não deram
nenhuma atenção ás suas preces. Massacraram-no a todos, depois
saquearam a igreja”. (IBN AL-ATHIR apud MAALOUF, 1989. p.
207).

Os turcos foram avançando pouco a pouco até conseguirem


derrubar Constantinopla, Maomé II utilizando canhão de pólvora e
passou a assumir o controle mudando o nome para Istambul em
1453. A Europa perdeu todo o seu controle sobre o comércio que
não conseguiam adentrar pelas terras turcas, foram obrigados,
então, a buscarem novos caminhos, surgindo várias expedições de
navios, uma delas foi a que estava Cristóvão Colombo que ao se
deparar com as novas terras na América acreditou estar na Índia.

A queda de Constantinopla foi crucial para o início da idade


moderna e de uma grande Era na história do mundo, forçando o
deslocamento das rotas do comércio do Mar Mediterrâneo para o
Oceano Atlântico, estimulando a busca por novos caminhos
marítimos para o oriente, os europeus começaram a descobrir outros

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lugares pelos quais os levaram a riquezas imensas com o início de
colônias na América descoberta por Colombo 1451/1506, formando
novas sociedades e expandindo os trabalhos e comércios, Huizinga
destaca:

“A transição do espírito característico do declínio da Idade Média


para o humanismo foi muito mais simples do que à primeira vista
somos levados a supor. Habituados a opor o humanismo à Idade
Média supomos muitas vezes que a adesão ao novo sistema
implicou o repúdio do outro”. (HUIZINGA, 1996, p. 240).

É possível notar a importância da história de Constantinopla para


entender como a sociedade se constituiu hoje, mesmo pelas questões
comerciais, foi um local com muita riqueza em culturas tradições e
línguas que ainda é relevante para serem utilizados, com isso a
historiografia vem demostrando através de grandes pesquisas o
quanto é fundamental estudarmos nosso passado.

REFERÊNCIAS:

MAALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo:


Brasiliense, 1989.

VISÃO DO MUNDO, Documentários. Construindo um Império:


Bizâncio Documentário. 2015. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=NodK1I07GJA>. Acesso em: 20
mai. 2019.
HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Braga, Portugal:
Ulisseia, 1996.

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