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Mestrando em História Social do Trabalho (UNICAMP). Bolsista CNPq.
significado atribuído pelos subalternos sobre as tensões e conflitos sociais que os
levaram à justiça.
Introdução
“A história dos dominados vem à tona pela pena dos escrivães de polícia.” (REIS,
1986, p. 8).
Outro desafio para se explorar o grupo dos excluídos é que, na grande maioria
dos casos históricos, são ínfimos, ou até mesmo nulos, os testemunhos produzidos
diretamente pelos indivíduos marginalizados sobre suas experiências históricas.
Portanto, são poucos os rastros disponíveis aos pesquisadores interessados em
desvendar os entendimentos, as interpretações e os conflitos envolvendo as camadas
populares de dada sociedade. É importante ressaltarmos que, quanto mais
retrocedemos temporalmente a investigação, mesmo que seja para a primeira metade
do século XX, a imprensa e os documentos institucionais da polícia e da Justiça se
apresentam como uma das poucas fontes disponíveis, as quais ainda preservam as
palavras dos pobres, ainda que transcritas em terceira pessoa.
Afinal, se não existe verdade histórica acessível em tais fontes, o que deve ser
perseguido neste tipo de investigação? A proposta é que não nos concentremos ao
que está escrito, tomando-o ao pé-dá-letra. Deve-se considerar, na análise, aspectos
que vão além do conteúdo escrito, como os motivos que deram origem ao documento;
em qual circunstância foi escrito; por onde circulou e por quem foi lido. De mesmo
modo, é fundamental tomarmos os embates políticos que fizeram essas narrativas
“dizerem o que dizem – do modo como dizem.” (LARA, 2008, p. 30). Essa opção
metodológica não gera o abandono do propósito de “fazer história social. Ao contrário:
ao levarmos em consideração todos esses componentes [...] amplia-se as
possibilidades de conhecer e compreender as ações humanas no passado.” (LARA,
2008, p. 22). Possibilitando identificar os diversos agentes sociais envolvidos naquela
trama, delineando os motivos e os objetivos pelos quais esses se envolviam nos
eventos (LARA, 2008, p. 32). Logo, não se trata de estabelecer qualquer ‘verdade
sobre o passado’ por meio dos processos, mas analisá-los em perspectiva
“historicamente situada” (LARA, 2008, p. 32). Sendo os processos textos advindos
das instituições jurídico-policiais, devem ser investigados como um produto social,
profissional e político (MAUCH, 2013, p. 23).
I:
II:
Sendo o processo um produto textual, não difere no sentido de que “todo o texto
é um recorte estático numa realidade dinâmica” (CORRÊA, 1983, p. 28). Sabendo que
a realidade é, por excelência, impossível de ser apreendida em sua totalidade, essa
premissa acarreta sérias limitações quando tentamos alcançar critérios de verdade
nesta documentação. Outrossim, para que o historiador seja capaz de recuperar a
dinâmica social, a apresentação conjunta e contraposição de fontes variadas, tais
como a imprensa, juntamente com o debate historiográfico, são fundamentais para
transmitir ao leitor a ideia de tensão e conflito social envoltos nos fatos narrados pelo
processo.
III:
Sendo assim, os processos não podem ser utilizados como fitas magnéticas,
as quais gravam com exatidão a fala. (GINZBURG, 2007, p. 284). Pois, todo discurso
citado é apropriado e remodelado por aquele que cita (GINZBURG, 2007, p. 286).
Logo, todos os depoimentos contidos são ‘ficções’, papéis assumidos por
personagens que buscam, cada qual, influenciar o desfecho de modo que seja
favorável a seus interesses. Portanto, é da natureza deste tipo de fonte carregar
consigo incoerências, contradições e mentiras, sendo a reflexão sobre o contexto e a
lógica de produção fundamental para obtenção de resultados realmente pertinentes e
menos óbvios. (GRIMBERG, 2009, p. 127-128).
Conclusão
Mesmo que possa soar repetitivo e exaustivo, existem perspectivas que não
podem ser desconsideradas ao investigarmos o passado por meio de tais
documentos: I – as tensões e as lutas que se estabelecem na produção dos
processos; II – os complexos processos sociais que se materializam nos autos e
dependem da interpretação do historiador para serem recuperados. (ROSEMBERG;
SOUZA, 2009, p. 169).
Conforme aponta Sidney Chalhoub (1986, p. 22), “não é possível descobrir o que
realmente se passou”, deste modo, o objetivo dos historiadores envolvidos com este
tipo de investigação deve ser compreender como se produzem e se explicam as
heterogêneas versões que os diferentes agentes sociais envolvidos na trama
processual apresentam sobre os fatos. Prestando especial atenção nas relações que
se repetem sistematicamente, sendo esta repetibilidade a ‘verdade’ do historiador. O
que permite ao pesquisador construir, a partir das versões conflitantes formuladas por
diversos agentes, explicações plausíveis sobre o social. É justamente por existirem
interpretações divergentes sobre os fatos e mentiras mal escondidas que é possível,
ao historiador, penetrar nas lutas e contradições da realidade social investigada. As
diferentes versões são, por sua vez, mais do que expressão das lutas e contradições,
são também ambiente de produção dos conflitos entre os agentes sociais.
(CHALHOUB, 1986, p. 22-23).
Referências
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