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Os processos criminais, a história vista de baixo e a voz dos excluídos da

história: breves reflexões teórico metodológicas

Luís Carboni Junior*

(Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP)

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo suscitar reflexões sobre


possibilidades de abordagens metodológicas pertinentes às produções
historiográficas que, interessadas em recuperar personagens excluídos da história
tradicional, utilizam processos criminais como fonte a fim de desvendar normas
sociais, valores culturais e modos operacionais do sistema jurídico-policial. Pretende-
se também, explorar a importância da análise e consideração do contexto histórico de
produção desse material, analisando-o como um produto profissional, social e político,
pois só assim tal documentação se converte efetivamente em fonte. Além disso, o
escrito abordará questões relativas à desigualdade de poder presente na relação
estabelecida entre os agentes legais e os acusados, bem como a transcrição dos
depoimentos, da linguagem oral para uma linguagem judicial, compreendendo esta
ação como um processo de seleção de fatos e narrativas pelos ‘manipuladores
técnicos’. Portanto, a busca pela ‘verdade’ em tais documentos é errônea, uma vez
que as diversas partes sociais envolvidas não possuíam como objetivo primário
produzir um relato linear e coerente dos fatos, mas sim produzir versões que
pudessem corroborar com seus objetivos. Entretanto, mesmo sendo o processo um
recorte estático em uma realidade social dinâmica, é possível extrairmos, a partir da
atenção em elementos indiciários, informações reveladoras a respeito dos diversos
personagens envolvidos, dos interesses que os levaram à se envolver no processo,
assim como o modo que fundamentam as versões que produzem dos fatos. Não
menos importante, ao analisarmos esse tipo de fonte devemos compreender o

*
Mestrando em História Social do Trabalho (UNICAMP). Bolsista CNPq.
significado atribuído pelos subalternos sobre as tensões e conflitos sociais que os
levaram à justiça.

Palavras-chave: Processo Crime; Metodologia; Excluídos da História; Historiografia;


História Social.

Introdução

“A história dos dominados vem à tona pela pena dos escrivães de polícia.” (REIS,
1986, p. 8).

Com o advento da crise dos modelos explicativos estruturalistas, novas


questões vieram à tona, bem como velhos problemas demandaram novas
abordagens. Sobre os fatos culturais e ideológicos, emanava a necessidade de uma
abordagem que os considerassem sob a agência dos subalternos, como integrantes
do devir social, não mais compreendidos como produto de determinantes econômicas
ou reflexo da ação do Estado. Em outras palavras, a questão em aberto era de como
integrar os conflitos envolvendo normas e valores sociais na análise de
transformações históricas (CHALHOUB, 1990, p. 22). Foi durante as décadas de 1980
e 1990 que, refletindo sobre esta temática, trabalhos elementares foram publicados,
no Brasil, por historiadores e antropólogos que impulsionaram a discussão sobre
processos criminais a outro patamar. Concomitantemente houve, não por acaso, a
difusão da História Social no Brasil, influenciada pelos Annales e pelos novos
marxistas britânicos da New Left Review.

Certamente, a primeira proposta de abordagem aos pesquisadores que


trabalham com esses documentos é a de confundir a verdade formal dos autos com a
verdade material dos fatos. Assim, para que sejamos capazes de superar esta
confusão, deveras ingênua, devemos possuir entendimento heurístico do
funcionamento, das dinâmicas, das tensões e das disputas sociais existentes em um
processo criminal e judicial, compreendendo estes como produtos de uma construção
historicamente contextualizada e fundamentada em interesses múltiplos. Portanto,
uma análise crítica deste material possibilita que os processos, enquanto documentos,
tornem-se fontes históricas. Isso implica compreendermos os processos enquanto
mecanismos de construção da verdade, localizados em um campo de luta de versões,
das instituições e dos subalternos, sobre os fatos. (ROSEMBERG; SOUZA, 2009, p.
165).

Aos historiadores que se aventuram na recuperação das vozes de


trabalhadores, escravos ou livres, que, para a historiografia tradicional, ‘jamais
viveram’, justamente por habitarem em zonas silenciosas da história, compete o
desafio de investigar nas margens sociais. Este termo justifica-se, pois, a
documentação referente a esses sujeitos históricos não constitui um corpo
documental pronto para exploração (HOBSBAWM, 1998, p. 219) estando, em sua
maioria, organizada de modo fragmentado e disperso.

Outro desafio para se explorar o grupo dos excluídos é que, na grande maioria
dos casos históricos, são ínfimos, ou até mesmo nulos, os testemunhos produzidos
diretamente pelos indivíduos marginalizados sobre suas experiências históricas.
Portanto, são poucos os rastros disponíveis aos pesquisadores interessados em
desvendar os entendimentos, as interpretações e os conflitos envolvendo as camadas
populares de dada sociedade. É importante ressaltarmos que, quanto mais
retrocedemos temporalmente a investigação, mesmo que seja para a primeira metade
do século XX, a imprensa e os documentos institucionais da polícia e da Justiça se
apresentam como uma das poucas fontes disponíveis, as quais ainda preservam as
palavras dos pobres, ainda que transcritas em terceira pessoa.

Assim, o historiador social precisa ‘inventar’ suas fontes, ou seja, interrogar


textos produzidos por instituições e órgãos pertencentes a outras classes sociais de
modo que sejam capazes de fornecer informações sobre a agência dos subalternos
no processo histórico. (LARA, 2008, p. 18). Pois, conforme salientou Eric Hobsbawm
(1998, p. 220), o reconhecimento de tais materiais enquanto fontes é fruto da
insuficiência agonizante dos historiadores sociais em produzir respostas acerca das
camadas baixas. Logo, não podemos acreditar que as fontes são dadas de modo
pronto e que as perguntas e respostas surjam de modo natural, afinal “os fatos nunca
estiveram lá, de tocaia, prontos para tomar de assalto as páginas dos historiadores”
(CHALHOUB, 1990, p. 18). É necessária a crítica documental e técnicas de cunho
epistemológico e analítico para que se possa minerar a riqueza existentes em tais
registros e explorar a trajetória histórica dos subalternos, revelando uma dimensão
desconhecida do passado (HOBSBAWM, 1998, p. 219).

Consequentemente, não podemos perder de vista o contexto institucional,


político e social em que os processos foram produzidos, para superarmos a
“falsificação ideológicas” (LARA, 2008, p. 20), os exageros, as invenções e omissões
cometidas conforme o interesse de seus autores. Outro ponto a ser considerado é que
os trabalhadores retratados em tais documentos não correspondem à totalidade.
Trata-se de um grupo muito específico, os ‘indesejados’, os quais possuíam
características suficientes para serem vistos como elementos que atentavam contra a
estabilidade da hegemonia de domínio das elites.

Outro tópico, o de que não existe documento neutro, é antigo e já se encontra


suficientemente esclarecido, pois, como afirma Jaques Le Goff, todo documento “é
produto de uma sociedade que o fabricou segundo relações de forças que aí detinham
poder [...] É antes de mais nada o resultado de uma montagem [...]”. (LE GOFF, 1990,
p. 548). Sendo cabível a conclusão de que os processos, enquanto documentos, “não
existem para registrar a história” (LARA, 2008, p. 18).

Afinal, se não existe verdade histórica acessível em tais fontes, o que deve ser
perseguido neste tipo de investigação? A proposta é que não nos concentremos ao
que está escrito, tomando-o ao pé-dá-letra. Deve-se considerar, na análise, aspectos
que vão além do conteúdo escrito, como os motivos que deram origem ao documento;
em qual circunstância foi escrito; por onde circulou e por quem foi lido. De mesmo
modo, é fundamental tomarmos os embates políticos que fizeram essas narrativas
“dizerem o que dizem – do modo como dizem.” (LARA, 2008, p. 30). Essa opção
metodológica não gera o abandono do propósito de “fazer história social. Ao contrário:
ao levarmos em consideração todos esses componentes [...] amplia-se as
possibilidades de conhecer e compreender as ações humanas no passado.” (LARA,
2008, p. 22). Possibilitando identificar os diversos agentes sociais envolvidos naquela
trama, delineando os motivos e os objetivos pelos quais esses se envolviam nos
eventos (LARA, 2008, p. 32). Logo, não se trata de estabelecer qualquer ‘verdade
sobre o passado’ por meio dos processos, mas analisá-los em perspectiva
“historicamente situada” (LARA, 2008, p. 32). Sendo os processos textos advindos
das instituições jurídico-policiais, devem ser investigados como um produto social,
profissional e político (MAUCH, 2013, p. 23).

O debate entre historiadores e antropólogos

I:

Dentre os historiadores que mobilizaram os processos criminais e judiciais


destacamos Boris Fausto (1984) e Sidney Chalhoub (1986; 1990), os quais fizeram
dos processos, fontes históricas para ampliar as possibilidades dos estudos da cultura
popular, permitindo acesso aos discursos e interpretações sociais, bem como valores
e normas emanadas pelas classes populares de uma determinada conjuntura
histórica. Através de um esforço de decodificação e contextualização dos
documentos, o historiador pode desvendar a dimensão social do pensamento que
fundamenta o discurso incriminatório e a repressão exercida contra os indesejados.
(CHALHOUB, 1990, p. 16). Ao mobilizar processos criminais para realizar sua
investigação, Boris Fausto (1984, p. 17) acreditava que a transgressão da norma
penal era capaz de expressar uma relação entre o indivíduo e o social, ou ainda, entre
a classe e o social, indicando, assim, padrões de comportamentos, costumes e
valores sociais.

Em contrapartida, a antropóloga Mariza Corrêa (1983), pretendeu perseguir a


lógica de produção dos profissionais do sistema jurídico-policial para revelar os
valores e percepções partilhadas por este grupo em relação às camadas populares,
ou ainda, como bem formulou Carlos Ribeiro (1995, p. 20), a antropóloga pretendeu
analisar as versões dos comportamentos populares contidos nos processos como
produtos de profissionais interessados em suprir as expectativas e necessidades
jurídicas.

Portanto, podemos concluir que existem, ao menos, duas formas de


analisarmos tal documentação: pretendendo recuperar o discurso dos dominados, tal
como optaram os historiadores; ou compreendermos a lógica de construção discursiva
dos construtores dos processos, como proposto pela antropóloga (RIBEIRO, 1995, p.
21). Além disso, a abordagem pode ser quantitativa, como fez Fausto (1984),
envolvendo um grande número de processos para perseguir as regularidades dos
valores, representações, comportamentos e normas sociais vigentes; ou ainda,
qualitativa, como propôs Chalhoub (1986), que a partir de um único processo,
formulou hipóteses de conhecimento histórico sobre os populares.

Consenso entre historiadores e antropólogos é que a complexidade dos


processos não podem ser apreendidas e analisadas por meio da reprodução ou
descrição pura e simples de seus elementos componentes que são, por definição,
múltiplos e contraditórios. Ocorrido o crime, o fato é imediatamente despojado de seu
peso concreto e transformado em uma fábula, suas particularidades são descartadas,
havendo uma simplificação demandada pela aplicabilidade jurídica. Ao investigarmos
um processo, não estamos diante do evento, mas do desdobramento: o processo é
um segundo ato. O aparato policial e jurídico é o mediador e selecionador dos
elementos que serão incluídos e excluídos das várias versões (CORRÊA, 1983, p.
23).

II:

Sendo o processo um produto textual, não difere no sentido de que “todo o texto
é um recorte estático numa realidade dinâmica” (CORRÊA, 1983, p. 28). Sabendo que
a realidade é, por excelência, impossível de ser apreendida em sua totalidade, essa
premissa acarreta sérias limitações quando tentamos alcançar critérios de verdade
nesta documentação. Outrossim, para que o historiador seja capaz de recuperar a
dinâmica social, a apresentação conjunta e contraposição de fontes variadas, tais
como a imprensa, juntamente com o debate historiográfico, são fundamentais para
transmitir ao leitor a ideia de tensão e conflito social envoltos nos fatos narrados pelo
processo.

Ao produzirem uma narrativa que pretendam estabelecer como ‘verdadeira’


para atender seus objetivos pretendidos juridicamente, os atores jurídicos vão
deixando rastros dos elementos usados na construção deste discurso incriminatório,
que deve se adequar ao molde da legislação e da normativa social do seu contexto,
havendo assim, coerência entre as normas escritas da lei e as vividas na dinâmica
social (CORRÊA, 1983, p. 33). É justamente esta relação entre delito e sociedade que
deve ser cuidadosamente analisada.
Por outro lado, a relação entre direito e sociedade está suscetível a varações
ao longo do tempo. Sem o conhecimento da legislação vigente no período não é
possível compreendermos a lógica do processo, além disso, esta abordagem nos
permite vislumbrar as relações entre os agentes sociais: entre os trabalhadores e o
aparato institucional. (GRIMBERG, 2009, p. 121-124). Diante desta realidade, não
podemos nos esquecer que não existem fatos criminosos em si, mas um julgamento
criminal que os funda, acompanhado de um discurso incriminatório que o fundamenta.
Portanto, é fundamental a compreensão de como esse discurso incriminatório se
articula e se transforma ao longo do tempo e, não menos importante, em que medida
exprime o real ou supervaloriza uma ameaça. (GRIMBERG, 2009, p. 128).

Yvonne Maggie (1988, p. 24) ressalta que os princípios culturais e normativas


sociais que orientam a lógica de produção do discurso incriminatório dos agentes
legais possui consonância com princípios ordenadores presentes na sociedade em
seu aspecto mais amplo. Portanto, na mesma medida em que os processos são
construções dos profissionais do sistema jurídico-policial, eles carregam expressões
de ideais dominantes da sociedade em geral. Conforme Ribeiro (1995, p. 23-25), esta
relação pode ser descrita como uma reciprocidade entre direito e sociedade, ou seja,
os aspectos narrativos e incriminatórios presentes nos processos seriam
condicionados pelas estruturas e ideias dominantes na sociedade. Entretanto, esta é
uma relação ambivalente e dialógica, pois do mesmo modo que o direito estaria
condicionado aos valores sociais, este também possui força normatizadora para
fomentar a consolidar de novos valores e representações sociais, sendo capaz de
definir sujeitos como novos inimigos, ameaças e indesejáveis. Assim, o direito, através
de sua autoridade de palavra pública e oficial, detém o poder de estabelecer
‘verdades’ sobre o mundo social.

Em suma, a produção de um processo é uma construção que, “apesar de seguir


regras predeterminadas, viabiliza a entrada de valores e representações sociais extra-
jurídicas nos procedimentos oficiais”. (RIBEIRO, 1995, p. 27). Assim, a relação de
disputa de interesses e poderes deixa de pertencer somente aos diretamente
envolvidos, passando a abranger a polícia, a imprensa e outras esferas do social. É
no momento que ocorre essa superposição entre as esferas sociais que os atos
deixam de ter importância em si, passando a ser debatidos, seja pelos juristas ou pela
sociedade ampla. O crime é um questionamento que opera para o conhecimento da
aceitação, ou não, do acusado dentro das normas do convício social, produzindo o
reforço ou enfraquecimento de tais normativas (CORRÊA, 1983, p. 24).

[...] no momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em


versões, o concreto perde quase toda sua importância e o debate se dá entre
atores jurídicos (e diferentes agentes sociais), cada um deles usando a parte
do ‘real’ que melhor fornece o seu ponto de vista. Neste sentido, é o real que
é processado, moído [...] (CORRÊA, 1983, p. 40).

Portanto, a partir desta inversão de importância: dos ‘atos’ para os ‘autos’,


passamos a operar no nível do simbólico, ou seja, discursos que pretendem ordenar
a realidade. Assim, a analogia à fábula, empreendida por Mariza Corrêa (1983, p. 26),
tem como objetivo designar que os fatos estão suspensos, não havendo a
possibilidade de reconstituir o ocorrido que, a esta altura, está imbricado em uma
trama de versões. Além dos diferentes agentes sociais envolvidos, as diversas vozes
contidas no processo, a seleção e conversão dos ‘atos’ em ‘autos’, contribuem para
que existam múltiplas versões sobre um mesmo fato. (RIBEIRO, 1995, p. 31).

III:

Novamente, os documentos produzidos pelas instituições repressoras não são


neutros, tão pouco objetivos, deste modo, devem ser lidos como produtos de uma
relação específica, profundamente desigual no que diz respeito aos planos de poder
que envolvem os interrogadores e os interrogados. Portanto, devemos captar o
silencioso jogo de ameaças e medos presentes nos diálogos dialógicos do
interrogatório. (GINZBURG, 2007, p. 287). Sabemos que um interrogatório possui uma
estrutura dialógica, havendo perguntas e respostas (GINZBURG, 2007, p. 285),
contudo, as perguntas não são transcritas ao depoimento. Além disso, a relação entre
interrogador e interrogado é marcada por uma desigualdade de poder, portanto, não
raro são casos em que as respostas dos réus apenas fazem eco às perguntas
(GINZBURG, 2007, p. 286).

Cabe ressaltar que os processos são capazes de revelar a polarização entre


os que detêm o poder e os que estão submetidos a ele. Como bem assinalou Fausto
(1984, p. 22), para as pessoas das classes populares, o aparelho policial e judiciário
representavam uma perigosa máquina orientada por regras que lhes eram
desconhecidas. Assim, a tática de falar o menos possível era constantemente
empregada pelos de baixo, portanto, a condição em que estas falas são produzidas
dificulta a apreensão de informações, pois os populares tinham conhecimento que
uma armadilha espreitando sua fala.

Neste contexto, é plausível reconhecermos que a fala do depoente é dirigida


pelos interrogadores. Além do mecanismo defensivo de discorrer somente sobre
aquilo que é perguntado, parte da narrativa das testemunhas é sintetizada e até
mesmo descartada pelas autoridades, conforme critérios de pertinência para o
esclarecimento dos fatos. Outros elementos da linguagem popular são soterrados
para fazer prevalecer as regras altamente formais da linguagem judicial. (FAUSTO,
1984, p. 24):

Em um procedimento análogo ao da imprensa, os manipuladores técnicos [...]


encerram as diferentes falas de uma camisa-de-força padronizada, tecida
segundo os cânones do jargão judiciário e da linguagem erudita. Apagam-se
os traços da emoção mais autêntica [...] ao passar na transcrição da primeira
pessoa para a terceira. (FAUSTO, 1984, p. 24).

Sendo assim, os processos não podem ser utilizados como fitas magnéticas,
as quais gravam com exatidão a fala. (GINZBURG, 2007, p. 284). Pois, todo discurso
citado é apropriado e remodelado por aquele que cita (GINZBURG, 2007, p. 286).
Logo, todos os depoimentos contidos são ‘ficções’, papéis assumidos por
personagens que buscam, cada qual, influenciar o desfecho de modo que seja
favorável a seus interesses. Portanto, é da natureza deste tipo de fonte carregar
consigo incoerências, contradições e mentiras, sendo a reflexão sobre o contexto e a
lógica de produção fundamental para obtenção de resultados realmente pertinentes e
menos óbvios. (GRIMBERG, 2009, p. 127-128).

A partir do discurso técnico e constritor, construído pelos agentes legais,


mesmo com a transcrição e manipulação das falas dos depoentes, é possível
identificarmos nas entrelinhas dos depoimentos, as tensões, os valores morais, as
redes de sociabilidade, bem como o comportamento dos atores sociais envolvidos no
processo. E mesmo quando sabemos que os depoentes estão mentindo ou
inventando sobres suas condutas morais, podemos presumir, com razão, que as
versões que articulam nos dão pistas para identificar os limites da moralidade comum,
entre o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável. Nesta mesma perspectiva, o
próprio discurso incriminatório construído pelo sistema jurídico-policial contra os réus
possui consonância com as ideias e valores morais dominantes da sociedade,
revelando representações sociais mais amplas, ou seja, justificativas socialmente
aceitas para privar a liberdade ou incriminar as ações de determinado indivíduo ou
grupo social. (ROSEMBERG; SOUZA, 2009, p. 162-164).

A fala dos depoentes, sejam réus, denunciantes ou testemunhas, produzem um


efeito de realidade que nos seduz pelo poder de nos aproximar das vidas e das visões
de mundo destes indivíduos. Entretanto, a transição da palavra dita para a palavra
escrita, característica do processo de colheita de depoimentos, acarreta uma
problemática sobre até que ponto a fala dos subalternos está, verdadeiramente, ali
contida. (MAUCH, 2013, p. 20).

Conclusão

Mesmo que possa soar repetitivo e exaustivo, existem perspectivas que não
podem ser desconsideradas ao investigarmos o passado por meio de tais
documentos: I – as tensões e as lutas que se estabelecem na produção dos
processos; II – os complexos processos sociais que se materializam nos autos e
dependem da interpretação do historiador para serem recuperados. (ROSEMBERG;
SOUZA, 2009, p. 169).

Apesar de os processos possuírem uma multiplicidade de versões exprimidas


por diversos agentes, o que, consequentemente, não nos possibilita tomar
conhecimento do que ‘realmente se passou’, os envolvidos são constituídos de ‘carne
e osso’ e sobre elas a documentação jurídica nos deixa ricas informações como grau
de instrução, residência, estado civil, etnia, profissão, idade e a rede de sociabilidade
na qual estes indivíduos estavam inseridos: os locais que frequentavam, as pessoas
com quem desenvolviam, ou não, laços sociais efetivos. (GRIMBERG, 2009, p. 129).
Os processos criminais são fontes oficiais produzidas pela Justiça a partir de
um evento específico: o crime. Por isso devem ser tomados como mecanismos de
controle social, com aspecto textual marcadamente jurídico, produto da mediação do
escrivão. (GRIMBERG, 2009, p. 126). O escrivão, por sua vez, traduzia as
informações para um código mais claro e judicialmente aplicável, o que resulta em
uma documentação contaminada pela interpretação dos agentes legais. Assim, a
justiça ao redigir os processos estava produzindo interpretações próprias a partir das
interpretações que os trabalhadores possuíam de suas experiências e conflitos
sociais. (GINZBURG, 2007, p. 290).

Realizar a leitura a contrapelo, o cruzamento dos processos com a imprensa e


outros documentos é de suma importância, já que torna possível afirmações de
conclusões mais amplas sobre o contexto histórico em que foram produzidos.
(GRIMBERG, 2009, p. 125).

[...] cada história recuperar através dos jornais e, principalmente, dos


processos criminais é uma encruzilhada de muitas lutas: das lutas de classes
na sociedade, lutas estas que se revelam na tentativa sistemática da
imprensa em estigmatizar os padrões comportamentais dos populares [...]
nas estratégias de controle sociais dos agentes policiais e judiciários, e
também na reação dos despossuídos a estes agentes [...] (CHALHOUB,
1986, p. 23).

Conforme aponta Sidney Chalhoub (1986, p. 22), “não é possível descobrir o que
realmente se passou”, deste modo, o objetivo dos historiadores envolvidos com este
tipo de investigação deve ser compreender como se produzem e se explicam as
heterogêneas versões que os diferentes agentes sociais envolvidos na trama
processual apresentam sobre os fatos. Prestando especial atenção nas relações que
se repetem sistematicamente, sendo esta repetibilidade a ‘verdade’ do historiador. O
que permite ao pesquisador construir, a partir das versões conflitantes formuladas por
diversos agentes, explicações plausíveis sobre o social. É justamente por existirem
interpretações divergentes sobre os fatos e mentiras mal escondidas que é possível,
ao historiador, penetrar nas lutas e contradições da realidade social investigada. As
diferentes versões são, por sua vez, mais do que expressão das lutas e contradições,
são também ambiente de produção dos conflitos entre os agentes sociais.
(CHALHOUB, 1986, p. 22-23).

Portanto, o objetivo deste tipo de investigação é localizar os conflitos de


interesses entre os agentes sociais, as práticas e mecanismos de controle da classe
trabalhadora, deslocando o ângulo de análise para a experiência de vida dos
trabalhadores, os quais vão reinventando seus métodos de luta e organização
conforme as interpretações que realizam de sua vivência. Isso implica considerarmos
a produção social dos processos como um parâmetro para a questão social do
controle dos ‘indesejados’, sem perdemos de vista que as relações de vida dos
agentes expropriados são sempre relações de luta e de embate entre os interesses
divergentes das classes. (CHALHOUB, 1986, p. 31-32).

Como optou Corrêa (1983, p. 26), ao tentarmos construir conhecimento


histórico através dos processos, uma escolha plausível e razoável não é escolher uma
das versões como mais próxima da verdade, mas apontarmos a nossa própria leitura
indireta, paradigmática e conjectural das variadas versões difusas ao longo do
processo. Concluindo, uma investigação histórica com processos criminais:

[...] bem-sucedida não é igual a caso encerrado: tão importante quanto


desvendar o caso e extrair dele todas as informações possíveis e disponíveis,
é ter a sensibilidade de perceber onde estão as ausências, os pontos
obscuros, as entrelinhas. E buscar suprir o silêncio, na medida do possível,
com outras informações e documentos, fazendo as devidas – e as possíveis
– inferências. Mas claro que isso só faz sentido se a leitura da fonte não ficar
restrita ao universo do próprio processo. Sua análise é pertinente na medida
em que pode ajudar a iluminas um contexto mais amplo, bem como a discutir
a produção historiográfica mais geral sobre um período ou uma questão.
(GRIMBERG, 2009, p. 137).

Referências
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Paulo: Brasiliense, 1984.
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falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. In: Sobre história. São Paulo:
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MAUCH, Claudia. O processo crime para além dos crimes. In: XI Mostra de Pesquisa
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partir de fontes primárias, Porto Alegre, p. 17-31, 2013.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade: estudo e análise da justiça no
Rio de Janeiro (1900 – 1930). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
ROSEMBERG, André; SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Notas sobre o uso de
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