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Cúpula de vidro e aço da Galeries

Lafayette, em Paris

Autora:
Professora Ivy Judensnaider
Módulos
1 – A Sociologia: origens e escopo
Charles Darwin, naturalista inglês
2 – Auguste Comte e Física Social
3 – Durkheim e a reflexão sobre
fatos sociais
4 – Max Weber e os estudos sobre
religião, autoridade e
burocracia
5 – Cultura Monteiro Lobato, escritor e editor brasileiro
6 – A reflexão sociológica sobre educação
7 – A sociedade civil e a política
8 – Marx e o materialismo dialético histórico: um
método para a reflexão sobre as
transformações sociais e um instrumento de
luta e intervenção.

A Sociologia:
1 origens e escopo

Neste módulo, entenderemos o campo de inves- sobre nossas relações com os outros e sobre as
tigação da Sociologia, o momento em que ela se relações sociais entre diferentes povos e culturas? O
organiza enquanto ciência, os temas com os quais ela que torna, então, a Sociologia uma ciência? E o que
se ocupa e as principais características do seu olhar difere esse nosso olhar comum sobre o mundo do olhar
para o mundo que nos cerca. sociológico científico?
A resposta é bastante simples: a Sociologia aplicou
1. O contexto histórico do métodos científicos ao nosso olhar para a sociedade.
surgimento da Por isso, ela buscou ir além do senso comum, dos
julgamentos e das reflexões que fazemos de forma
Sociologia cotidiana, no nosso dia a dia.
Fotoarena

De forma extremamente simplificada, podemos


dizer que a Sociologia estuda, a partir de abordagens
científicas, as relações sociais que ocorrem entre os
seres humanos. Portanto, grupos sociais, as sociedades
e o mundo social são os principais objetos de
investigação sociológica.
Tal como a estamos definindo, podemos afirmar
que a Sociologia envolve desde a reflexão sobre
encontros entre indivíduos até eventos associados ao
terrorismo: de fato, seu campo de atuação é bastante
amplo, o que a torna extremamente complexa e, ao
mesmo tempo, fascinante. Figura 1. A Sociologia aplica procedimentos e métodos científicos para a
investigação da sociedade e das relações sociais que se constituíram com o
Você pode estar se perguntando a essa altura: mas desenvolvimento do sistema capitalista.
esses não são temas sobre os quais a sociedade está
SFIOLCOI
sempre pensando? Não estamos o dia todo refletindo 1
SOOLFOI
Enquanto ciência, a Sociologia surgiu ao final do século XIX, como resultado das transformações provocadas
GAIA
pela Revolução Industrial. O desen- volvimento vezes, com conflitos pontuais entre os interesses dos
capitalista criou o mundo como o conhecemos e proprietários de terras (em geral, escravocratas) e a
determinou as relações entre os vários grupos sociais burguesia nascente (a favor da industrialização).
com vistas à produção, à distribuição e ao consumo O capitalismo alcançou as economias mais
de bens e serviços. distantes da América e da Europa Oriental. As próprias
Dois processos marcaram o século XIX: o necessidades de mercado das indústrias da Europa
crescimento demográfico e a industrialização na Ocidental haviam tornado isso necessário: era de
Europa. De forma bastante intensa, embora desigual, importância fundamental encontrar novas fontes de
o progresso econômico espalhou-se pela Europa e por recursos naturais e novos mercados consumidores. Por
todos os continentes, alterando as formas de trabalho, isso, a Inglaterra, a Rússia, a França, a Alemanha, a
o modo de vida e, por meio dos traçados de fronteiras, Itália, a Bélgica e os Estados Unidos partiram para a
a própria geografia. conquista de territórios até então inexplorados. Índia,
Nas cidades, os bairros de operários e suas Singapura, Hong Kong, Austrália, Nova Zelândia e
moradias insalubres e precárias ergueram-se próximo Canadá foram conquistados pela Inglaterra. A França
às fábricas. O trabalho, que antes era realizado no ocupou a Argélia e a Tunísia. Os alemães invadiram a
campo ou nas pequenas manufaturas, agora acontecia Nova Guiné, a Micronésia e Samoa Ocidental. A Itália
em condições desvantajosas e num ritmo até então conquistou a Eritreia, a Somália e a Líbia; a Bélgica, o
inimaginável. Pessoas empreendedoras criavam novas Congo; a Rússia, o Cáucaso e a Geórgia; os Estados
empresas e novos processos de produção. Invenções Unidos, o Alaska, o Havaí e várias ilhas no Pacífico. As
aumentavam a produtividade do trabalho humano. A disputas territoriais por novos mercados não
Revolução Francesa do século anterior havia demorariam a levar o mundo à guerra...
incorporado, ao menos enquanto discurso, o espírito Mas não eram apenas as fronteiras, a paisagem e
de igualdade e fraternidade: por meio desse as formas de produção e consumo que se
movimento, a burguesia conseguira colocar-se à frente transformavam. A ciência acompanhou as mudanças
dos negócios e da gestão das nações. provocadas pela Revolução Industrial e pelo avanço do
capitalismo, e os anos Oitocentos abrigaram cientistas
Observação: e pensadores interessados em colaborar para a
A Revolução Francesa foi um movimento que uniu materialização das promessas de um mundo
os esforços da classe burguesa e dos trabalhadores promissor. A palavra de ordem era progresso, e o
contra a nobreza e a monarquia. Por conta desse mundo científico buscaria o conhecimento e o controle
movimento, a monarquia absolutista foi substituída da natureza, inspirado por um ideal mecanicista e por
por um regime republicano secular. meio do uso da matemática como forma de descrever
e prever fenômenos. Mais: a matemática tornar-se-ia o
símbolo do método científico perfeito: imparcial e
Na Suíça, Holanda e Bélgica, produzia-se carvão e a
objetiva, ela auxiliaria na construção de um mundo
indústria siderúrgica crescia. Na Dinamarca, a produção
mais justo, permitindo a conquista de melhores
agrícola aumentara, permitindo exportações para outros
países que necessitavam de alimentos. condições de vida para a humanidade.
Algumas nações estavam ocupadas com seus A razão era o instrumento mais importante na
processos de unificação nacional, como foi o caso da aquisição do conhecimento, sempre que possível
Alemanha. Por sua vez, as antigas colônias assistiam devendo ser submetido à experiência e ao teste de
à disseminação da economia industrial nos seus aderência à realidade. O escritor Charles Dickens (1812-
territórios, embora esse processo ocorresse, não 1870), mais do que ninguém, soube reproduzir este
raras espírito científico: na obra Tempos Difíceis, ele faz uma
crítica às crenças da sociedade inglesa do século XIX na
objetividade da ciência. Leia, a seguir, um trecho
desta obra.

? Saiba
mais O sr. Gradgrind caminhava da escola para casa
Sugerimos que você veja Lincoln (dir. Steven Spielberg, em estado de considerável satisfação. Era sua
150 minutos, 2012). Esse filme narra os conflitos nos escola, e ele pretendia que ela fosse um modelo.
Estados Unidos, entre nortistas e sulistas, tendo como Pretendia que cada criança nela fosse um
modelo
contexto as lutas pelo fim da escravidão.
– como os jovens Gradgrinds eram todos
modelos.
2 SOCIOLO Havia cinco jovens Gradgrinds, e cada um deles a mais tenra infância; adestrados, 3
como pequenas
SOFCILIO
GIA era um modelo. Haviam sido doutrinados desde lebres. Assim que puderam correr sozinhos, foram
LSOGFIA
obrigados a correr para a sala de palestras. O contabilidade botânica. Gás e ventilação, serviço
primeiro objeto com o qual tiveram uma de água e esgoto, tudo de primeira. Traves e
associação, ou do qual conservaram alguma abraçadeiras de ferro, à prova de fogo de cima a
lembrança, foi um grande quadro-negro no qual baixo; elevadores para as criadas, e todas as
um Ogro seco desenhava a giz sinistros suas escovas e vassouras; tudo que o coração
algarismos brancos. poderia desejar.
Não que conhecessem, por nome ou natureza, Tudo? Bem, suponho que sim. Os pequenos
qualquer coisa sobre os ogros. Os Fatos os Gradgrinds também tinham gabinetes para vários
livrem! Uso a palavra apenas para definir um campos da ciência. Tinham um pequeno
monstro que vivia num castelo de palestras, só gabinete de conquiliologia, um pequeno gabinete
Deus sabe com quantas cabeças manipuladas de metalurgia e um pequeno gabinete de
numa só, e capturava a infância, arrastando-a mineralogia; e os espécimes estavam todos
pelos cabelos para tenebrosos covis estatísticos. ordenados e rotulados, e as amostras de pedras
Nenhum dos pequenos Gradgrinds jamais vira e minérios pareciam ter sido extraídas com
um rosto na Lua; já ocupavam alturas lunares instrumentos extremamente rígidos, como seus
antes de falar direito. Nenhum pequeno próprios nomes; e, para parafrasear a estúpida
Gradgrind jamais aprendera a tola musiquinha: rima de Peter Piper, que nunca foi dita pelas
"Brilha, brilha, estrelinha! Lá no céu, babás dos pequenos Gradgrinds, se os
pequenininha!". Nenhum pequeno Gradgrind gananciosos Gradgrinds ganhassem mais do que
jamais fora impreciso sobre o tamanho de uma isso, o que, em nome da Grande Graça,
estrela, já que, aos cinco anos, cada pequeno ganhariam os gananciosos Gradgrinds?
Gradgrind já dissecara a Ursa Maior como um
O pai dos pequenos Gradgrinds continuava
professor Owen e dirigira o Grande Carro como
caminhando satisfeito e otimista. Ele era um pai
um maquinista de trem. Nenhum pequeno
afetuoso, à sua maneira; porém era provável que
Gradgrind jamais associara uma vaca no pasto
se descrevesse (se fosse obrigado a dar uma
àquela famosa vaca do chifre torcido que chifrou
definição, como Sissy Jupe) como um pai
o cão que perseguiu o gato que matou o rato
"eminentemente prático". Orgulhava-se da frase
que comeu o grão, ou àquela vaca, ainda mais
"eminentemente prático", que parecia ter um
famosa, que engoliu o Pequeno Polegar: nunca
significado particular quando aplicada a ele. Em
ouvira falar dessas celebridades, e fora
qualquer reunião pública em Coketown, sobre
apresentado às vacas apenas como quadrúpedes
qualquer assunto, algum cidadão decerto
graminívoros e ruminantes, com vários
aproveitaria a ocasião para aludir ao seu
estômagos.
eminentemente prático amigo Gradgrind. O que
Àquele prosaico lar, batizado de Stone Lodge, o sempre agradava ao eminentemente prático
sr. Gradgrind dirigia seus passos. Ele estava amigo. Este sabia que tal alusão não era mais do
praticamente aposentado do comércio de que lhe era devido, mas o que lhe era devido era
ferragens por atacado quando construiu Stone aceitável.
Lodge, e agora procurava uma oportunidade Ele chegara ao terreno neutro das cercanias
adequada para fazer uma figura aritmética no da cidade, que não era nem cidade nem
Parlamento. Stone Lodge situava-se numa campo e, no entanto, a perspectiva de ambos
charneca distante uma ou duas milhas de uma foi arruinada quando ele ouviu o som da música.
grande cidade – que será batizada de Coketown A banda desengonçada e desafinada,
neste fiel guia que aqui se apresenta. adjacente ao estabelecimento hípico que se
Stone Lodge era um elemento bastante regular instalara em um pavilhão de madeira, zurrava
na superfície da região. Nenhuma dissimulação a plenos pulmões. Uma bandeira, tremulando
atenuava ou obscurecia aquele intransigente fato no alto do templo, proclamava à humanidade
da paisagem. Uma casa enorme e quadrada, que o "Circo Hípico Sleary" reivindicava sua
com um pórtico pesado que obscurecia as intercessão. O próprio Sleary, uma corpulenta
janelas principais, assim como as pesadas estátua moderna com um mealheiro junto do
sobrancelhas de seu dono ensombreavam seus cotovelo, num nicho eclesiástico de arquitetura
olhos. Uma casa calculada, planejada, gótica primitiva, recolhia o dinheiro. A srta.
equilibrada e testada. Seis janelas de um lado da Josephine Sleary, segundo anunciavam
porta, seis do outro; doze no total numa ala, folhetos impressos muito longos e estreitos,
doze no total na outra ala; vinte e quatro, iniciava os entretenimentos com seu gracioso
somando-se as alas de trás. Um gramado, um carrossel tirolês. Naquela tarde, entre outras
jardim e uma pequena entrada, todos regrados e maravilhas agradáveis e sempre estritamente
medidos como um livro de honestas que se deveria ver para crer, Signor
Jupe "mostraria as divertidas proezas de seu
cão altamente treinado, Patas Felizes".
Também
4 exibiria "seu espantoso feito de lançar setenta e
SOCIOLO
sucessão por cima da cabeça, formando uma fonte de ferro
GIA
cinco pesos de cinquenta quilos em rápida em pleno ar, um feito que jamais se tentou neste ou em
qualquer outro país, arrancando aplausos
Até mesmo em função da escolha da matemática
arrebatados de multidões entusiasmadas, e por
como instrumento para a construção do saber, a
isso não pode deixar de fazer parte do
mensuração sob a forma de estatísticas e de
espetáculo". O mesmo Signor Jupe animaria "os
recenseamentos ganhou impulso na Europa. Tudo
vários números, a intervalos frequentes, com
gracejos castos e réplicas shakespearianas". Por
deveria ser medido e calculado:
último, ele brindaria a plateia interpretando seu
personagem favorito, o sr. William Button, da nascimentos, óbitos, doenças, preços, produção,
rua Tooley, na "recentíssima e hilariante comédia animais, condenados por crimes, prostituição,
hípica, 'A Viagem do Alfaiate a Brentford'". o uso do solo, da água e do ar, quantidade de
bosques, de moinhos, de rebanhos e de
É claro que Thomas Gradgrind não prestou
vinhedos (JUDENSNAIDER, 2012, p. 56).
nenhuma atenção a essas trivialidades, mas
passou como um homem prático deveria passar,
espantando do pensamento os insetos Essas eram as informações que a burguesia que
barulhentos, ou trancando-os na Casa de triunfara a partir da Revolução Industrial e da Revolução
Correção. Mas a curva da estrada levou-o aos Francesa tanto desejava: conhecer a sociedade e o
fundos do pavilhão, e nos fundos do pavilhão mundo social a partir das lentes da ciência e dos
havia numerosas crianças em numerosas métodos científicos.
atitudes furtivas, esforçando-se para espiar as
glórias secretas do lugar.
Aquilo o fez parar. "Ora, e pensar que esses
vagabundos", disse ele, "estão atraindo jovens
hordas para longe de uma escola-modelo".

(Trecho de “Tempos Difíceis”, de Charles Dickens,


reproduzido pela Folha de S.Paulo. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/12/
1558054-leia-um-trecho-de-tempos-dificeis-de-charles-
dickens.shtml>. Acesso em: 26 set. 2019.)

Figura 2. Os recenseamentos populacionais ainda são instrumentos extremamente


úteis para o estudo da sociedade e das formas de organização social. No Brasil,
Exercício de aplicação
os censos de maior amplitude territorial são realizados a cada dez anos.

Reúna seus amigos e discutam o texto de Charles Se o mundo estava em constante avanço e
Dickens. As crenças do Sr. Gradgrind ainda são progresso, fazia-se mais do que necessário conhecer
atuais? Há traços e marcas dessa concepção de esse processo para melhor administrá-lo e para dele se
ciência nas notícias dos jornais impressos e nos obter mais benefícios. Dessa forma, a Sociologia como
documentários televisivos? ciência surgiu nesse momento, em meio a profundas
transformações sociais provocadas pela industrialização,
pela crescente urbanização e pelo aumento do poder
político da burguesia.
As décadas seguintes – na verdade, o século
seguinte – tornariam as relações sociais cada vez
mais complexas, o que fez com que a Sociologia
ocupasse um lugar de destaque entre as ciências
humanas. Afinal, sem a Sociologia o mundo pareceria
? Saiba mais confuso, menos compreensível.
Para Mills (1975), a Sociologia reúne conhecimentos
mais que permitem a compreensão dos nexos estabelecidos
Com base em outra obra do mesmo autor, o diretor
Roman Polanski filmou Oliver Twist (Dir. Roman Polanski. entre as relações e os processos de interação social.
Reino Unido; República Checa; França; Itália: Sony Dito de outra forma, a Sociologia atua como
Pictures, 2005. 130 minutos). Recomendamos que você “autoconsciência” da sociedade. Ela é a ciência capaz de
assista ao filme, em especial para conhecer a situação de estimular o diálogo entre a razão e a realidade social;
mendicância das crianças nas cidades inglesas tomadas enquanto ciência, ela investiga os fenômenos sociais
pela industrialização. com rigor científico, fazendo uso de métodos
apropriados para a compreensão daquilo que é seu
objeto: a vida em sociedade e as transformações
sociais.

2. A Sociologia e
SOCIOLO o senso comum 5
GIA
Todos somos capazes de falar sobre o mundo social Claro que, muitas vezes, a ciência nega aquilo que o
em que vivemos, mesmo que não tenhamos estudado senso comum indica como verdadeiro. Na verdade, as
Sociologia. Podemos, a partir do nosso repertório de revoluções científicas acontecem quando a ciência
saberes diários, emitir opiniões a respeito de diferentes explica algum fenômeno de forma totalmente diversa
culturas, diferentes formas de viver em sociedade, daquela até então conhecida. Imagine o esforço
diferentes formas de trabalhar e de apreender o mundo. necessário para provar que a Terra se movia e girava
Todos somos dotados de senso comum, e com base em torno do Sol... Afinal, “qualquer criança” pode
nele fazemos julgamentos e previsões, tomamos perceber a imobilidade da Terra! No entanto, embora
decisões e formulamos opiniões a respeito do ambiente nossos sentidos e sensações pareçam indicar a
que nos cerca. No entanto, embora esse senso comum imobilidade da Terra, sabemos que ela se move. A
nos ajude no dia a dia, ele é insuficiente para dar conta ciência nos mostra, e nos prova, que ela se move.
da explicação e da busca de aproximação com a

Ingimage
verdade que é, em geral, obtida por meio do uso de
instrumentos
científicos.
Vejamos um exemplo: você pode afirmar que os
jovens, há algumas décadas, amadureciam mais
rapidamente do que ocorre com os jovens nos dias
de hoje. No entanto, esse discurso marcado pelo
senso comum, essa maneira descomprometida de
pensar a realidade, é insuficiente para que você
afirme, com algum grau de certeza, que os jovens
eram mais maduros em tempos passados. Para que
você possa fazer uma análise objetiva sobre o tema,
seria necessário: a) explicar o que você entende por Figura 3. Embora nossos sentidos e sensações pareçam indicar a imobilidade
da Terra, sabemos que ela se move. A ciência nos mostra que ela se
maturidade; b) mostrar de que forma é possível move.
reconhecer mais ou menos maturidade por parte dos
jovens; c) levantar dados, por meio de entrevistas ou É possível que, a essa altura, você também esteja
por meio de estatísticas; d) refletir a respeito dos se perguntando: mas, e se compararmos a Sociologia
dados levantados; e e) concluir, com algum grau de com outras ciências, por exemplo as ciências naturais?
segurança, sobre o nível de maturidade dos jovens de Podemos afirmar ser a Sociologia “tão científica”
hoje em relação aos jovens do passado. quanto as outras ciências? Esse é um tema bastante
O senso comum formula opiniões sem qualquer complexo, que não pode ser respondido de forma
compromisso com provas ou evidências. A ciência, por simples. É correto afirmar que a própria concepção de
sua vez, ocupa-se em descobrir o "porquê", em explicar ciência que temos reforçou a ideia de diferentes graus
por que as coisas acontecem da forma como de cientificidade das ciências sociais e das ciências
acontecem, em identificar as variáveis que tornam naturais. Essa crença foi se construindo ao longo do
determinados fenômenos possíveis e outros impossíveis. século XIX, persistiu no século XX e, ao que parece,
Podemos, então, afirmar que o senso comum é mantém-se viva ainda no século XXI.
irrelevante? De forma alguma! O senso comum, na A concepção de diferentes graus de cientificidade
maior parte das vezes, alimenta o espírito científico repousa no fato de as ciências naturais fazerem uso de
na formulação dos problemas de pesquisa e nos métodos “mais científicos”. Aparentemente, o fato de
questionamentos em relação à realidade. Tal ser possível medir e pesar objetos justifica concluir que
contexto nos permite, inclusive, concluir: a ciência o conhecimento alcançado pelas ciências naturais é mais
reflete sobre o senso comum. O especialista, o seguro do que o saber construído pelas ciências sociais.
detentor do conhecimento científico, é quem busca Se nossa visão do mundo e da matéria for
ultrapassar os limites do senso comum, objetivando mecanicista, quer dizer, apoiada numa concepção de que
identificar relações causais entre as variáveis: “A” faz a realidade funciona de forma mecânica (portanto,
com que “B” aconteça? O que acontece quando, em previsível), talvez a diferença de cientificidade entre as
vez de “A”, “C” interage com “B”? ciências faça sentido. No entanto, a natureza não
funciona de forma mecânica, tampouco a sociedade e a
cultura estão fora do alcance de possibilidades de
investigação racional e científica. Segundo Santos (1996,
6 p. 14): SOCIOLO
GIA
De forma quase irônica, o que antes era explicativo do “atraso” das ciências sociais hoje é
justificativa do “avanço” das ciências naturais. Ao
serem derrubados os mitos de certeza e verdade 3. Grandes temas da Sociologia
inquestionáveis das ciências da natureza, pro-
moveu-se a aproximação epistemológica entre as É improvável que um trabalhador, ao chegar na
duas vertentes científicas. fábrica, reflita a respeito das relações sociais de
produção. Quando compramos algo no supermercado,
provavelmente, sequer nos damos conta das interações
Observação: sociais que foram necessárias para que aquela
A aproximação epistemológica mencionada por mercadoria fosse produzida e colocada à nossa
Santos (1996) diz respeito à semelhança entre os disposição. Quando mandamos uma mensagem para
diferentes métodos e concepções assumidos por um amigo via WhatsApp, também não pensamos sobre
cada ciência. As transformações e os desen- a construção e os limites da vida virtual. Em resumo, no
volvimentos das ciências naturais mostraram, nas nosso dia a dia, não “[dispomos] [...] da qualidade
últimas décadas, que o conhecimento que temos a
intelectual básica para sentir o jogo que se processa
respeito dos fenômenos físicos não é tão certo e tão
entre os homens e a sociedade, a biografia e a história,
seguro quanto imaginávamos. Nossa subjetividade
o eu e o mundo” (MILLS, 1975, p. 10).
também age quando estamos medindo ou pesando
objetos. Assim, a impossibilidade de objetividade
completa alcançou as ciências naturais, tornando-as Caso, porém, resolvamos refletir sobre todos esses
próximas das ciências sociais. temas, como poderemos compreendê-los de forma a
explicá-los? Segundo Mills (1975, p. 11), a resposta a
essa pergunta é simples:
Devemos também considerar outro aspecto de
extrema relevância: não há como investigar O que precisam, e o que sentem precisar, é uma
determinados objetos sem fazer uso da colaboração de qualidade de espírito que lhes ajude a usar a
informação e a desenvolver a razão, a fim de
vários saberes e de diferentes especialistas. As
perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no
fronteiras do conhecimento, embora difíceis de serem
mundo e o que pode estar ocorrendo dentro deles
transpostas, estão se tornando mais tênues em função
mesmos. É essa qualidade [...] que jornalistas e
do necessário diálogo entre as várias áreas das ciências. professores, artistas e públicos, cientistas e editores
Portanto, não faz sentido afirmar ser a Física ou a estão começando a esperar daquilo que poderemos
Biologia mais “científicas” do que a Sociologia. Para chamar de imaginação sociológica.
Santos (1996, p. 17):
A imaginação sociológica é fruto dos valores e das
Como a Sociologia lida com esse novo paradigma
relações sociais que se constroem no tempo histórico
emergente? A resposta é simples: desen-
em que vivemos. Desenvolvemos hábitos, criamos arte,
volvendo métodos de análise que tornam a ação
social humana explicável. A Sociologia, como relacionamo-nos com nossa família a partir daquilo que
ciência, procura explicações que sejam mais existe no contexto do nosso próprio tempo. Somos
profundas, que estejam baseadas em determinados pela história e, ao mesmo tempo,
conhecimentos precisos. O conhecimento com construímos a história. Somos determinados pelo
base científica é crítico, pois procura bases mundo físico e, ao mesmo tempo, transformamos o
sólidas, justificações claras e exatas, enquanto o mundo físico, transformando-nos também. Nós
senso comum limita-se ao conhecimento construímos o nosso tempo histórico, e ele determina as
superficial. possibilidades e circunstâncias de nossas vidas.

O conhecimento científico sobre a realidade social A imaginação sociológica constitui um novo olhar. Esse
não é construído a partir de acasos ou de coincidências. olhar busca ir além do que é individual e, portanto,
Em primeiro lugar, ele é fruto de uma certa noção de envolve a busca de respostas para inúmeras questões:
ordem social; afinal, se não há ordem, não há como • Como cada sociedade está organizada?
explicar ou prever fenômenos. Em segundo, parte do • Como a organização social mudou ao longo do
princípio de que é possível compreender e explicar a tempo?
realidade social à luz da razão. • Quais os comportamentos dos homens e dos
A seguir, vamos refletir sobre os grandes temas que grupos humanos em cada sociedade e em cada
interessam à Sociologia. momento histórico? Quanto a cultura, como
produto da ação humana, é capaz de determinar as
formas de organização social?
Alamy Stock Photo

? Saiba
mais
O primeiro museu criado no Brasil foi o Museu do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano. Sugerimos uma visita ao site do museu,
acessando:

Figura 4. A imaginação sociológica buscar alcançar o conhe- cimento

Fotoarena
sobre o mundo social para além do que é individual.

Por meio da imaginação sociológica, o ser humano


torna-se capaz de ampliar a sua percepção de mundo e,
consequentemente, da sua própria vida. Aquilo que
parece ser individual (emoções, receios, angústias)
torna-se objeto de reflexão a partir de um ponto de
vista maior, qual seja, a de uma estrutura social em que
relações e interações ocorrem a partir das possibilidades
históricas.
Só podemos compreender a realidade social se
olharmos para além da nossa realidade pessoal. Assim, Figura 5. Em setembro de 2018, um incêndio destruiu praticamente todo
o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, acervo esse amealhado ao
ter consciência da realidade social implica identificar as longo de mais de duzentos anos.
ligações entre uma série de realidades individuais. É
para isso que serve a imaginação sociológica e é desses 3. Sociologia dos Processos Políticos e das
elementos que a Sociologia se ocupa. Instituições Públicas

Segundo Arruda (1994), entre os grandes temas da Essa área reúne os estudos sobre pesquisas
Sociologia, encontram-se: eleitorais, investigações sobre formas de representação
política, cidadania, violência social, políticas públicas e
1. Teoria Sociológica, Metodologia e Epistemologia relações internacionais.

Essa área compreende os estudos sobre as 4. Relações Sociais de Gênero


principais teorias sociológicas e sobre as distinções
entre a Sociologia e outras ciências. Também investiga Reúnem as pesquisas sobre a história da partici-
os métodos da pesquisa sociológica e as características pação da mulher, sobre as instituições femininas e sobre
do conhecimento sociológico. Como estudar a realidade as questões que envolvem os direitos da mulher na
social? Quais os pressupostos assumidos quando sociedade.
vamos investigar o mundo social? Como a Sociologia se
distingue de outras áreas do conhecimento? Quão 5. Sociologia da Religião
seguro é o conhecimento sociológico e quanto ele é
capaz de explicar a realidade social? Nessa área estão os estudos sobre as instituições
religiosas e a religiosidade popular, bem como sobre
2. Sociologia da Cultura e da Educação as diversas manifestações religiosas encontradas no
Brasil.
A Sociologia da Cultura e da Educação reúne os
estudos sobre as instituições culturais e sobre os 6. Estudos sobre a América Latina e a África Negra
processos históricos envolvendo as questões culturais.
Esses estudos se referem à arte, aos museus, às Nessa área, o foco de investigação é a realidade
Universidades, às escolas, aos métodos de ensino. africana e latino-americana sob o ponto de vista social,
Também envolvem as pesquisas sobre os processos político e cultural. É um tema da Sociologia que vem
sociais de consumo, de comunicação e do imaginário recebendo atenção especial dos pesquisadores em
social. função das heranças históricas que partilhamos com
outros países da América do Sul e com a África.
SOCIOLOGIA 7
A seguir, apresentamos algumas questões sobre os elementos de que tratamos ao longo deste módulo.

Exercícios Propostos

➊ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, com modificações) – Leia a charge a seguir.

(LAERTE. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/laerte/tiras/>.)

A análise da charge nos remete ao fenômeno da insegurança no emprego, que, nas últimas décadas, tornou-se um tópico de
discussão essencial dentro da Sociologia do Trabalho. Sobre os efeitos nocivos da insegurança no emprego, é correto afirmar que
a) produz sensação de apreensão quanto à continuidade futura de um cargo e/ou de um papel dentro do ambiente de trabalho.
b) o maior aumento da insegurança no trabalho ocorreu, em meados dos anos de 1990, entre os trabalhadores que exercem
atividades na área de serviços, notadamente na área de Tecnologia de Informação.
c) trata-se de um fenômeno recente, até então desconhecido, causado por profundas alterações no contexto do mercado de
trabalho.
d) os estudos apontam que a insegurança no emprego é restrita ao ambiente de trabalho, não afetando a saúde e a vida pessoal
dos empregados.

Ⓢ (CESPE/UnB – SEDUC/CE, com modificações) – Assinale a opção correta a respeito do surgimento da sociologia.
a) A sociologia surgiu devido às transformações causadas pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa.
b) Desde o princípio, os sociólogos pretenderam o distanciamento da realidade social, com o intuito de obter uma perspectiva
adequada das sociedades em estudo.
c) A sociologia é uma ciência a serviço da classe dominante e da necessidade de controlar as classes subalternas.
d) A sociedade passou a ser objeto de estudo devido ao absolutismo, pois a unificação dos estados nacionais exigiu o
desenvolvimento de uma tecnologia de administração da população.

Ⓢ Três décadas – de 1884 a 1914 – separam o século e) conteve os sentimentos xenófobos.


XIX – que terminou com a corrida dos países
europeus para a África e com o
surgimento dos movimentos de unificação nacional na Europa do século
XX, que começou com a Primeira Guerra Mundial. É o período do
Imperialismo, da quietude estagnante na Europa e dos acontecimentos
empolgantes na Ásia e na África.

(H. Arendt. As origens do totalitarismo.


São Paulo: Cia. das Letras, 2012.)

O processo histórico citado contribuiu para a eclosão da


Primeira Grande Guerra na medida em que
a) difundiu as teorias socialistas.
b) acirrou as disputas territoriais.
c) superou as crises econômicas.
d) multiplicou os conflitos religiosos.
➍ (Universidade Estadual do Ceará/2019, com modificações) das mudanças trazidas pelo desenvolvimento das
– Considerando o contexto histórico do surgimento da grandes navegações.
Sociologia, assinale a afirmação verdadeira c) A Sociologia surge a partir da Revolução Russa, no ano de
a) É no século XIX, já com a consolidação do sistema 1917.
capitalista na Europa, que se encontra a herança d) A Sociologia resulta dos estudos sobre o modo de produção
intelectual mais próxima da Sociologia como ciência desenvolvido na Ásia.
particular.
b) A Sociologia surge no século XVI em decorrência direta

Referências

Textuais
ARRUDA, M. A. do N. A trajetória da pesquisa na Sociologia. Estudos Avançados, [s.l.], v. 8, n. 22, p. 315-324, 1994.
JUDENSNAIDER, I. John Stuart Mill: a Economia Política e o debate metodológico dos Oitocentos. Revista de Economia Política e
História Econômica, São Paulo, n. 28, p. 48-66, 2012.
MILLS, W. C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. SANTOS,
B. de S. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1996.

Créditos das imagens


Figura 2. Disponível em: <https://ebvadmin.com.br/public/images/noti-1563547438.jpg>. Acesso em: 26 set. 2019.
Auguste Comte e Física Social
2

Neste módulo, estudaremos as primeiras investi- GASPARIN, 2001, p. 158).


gações sociológicas sob a perspectiva teórica de
Auguste Comte. Ao final, propomos alguns exercícios
sobre o tema.

1. O contexto histórico do
surgimento da Sociologia
e as ideias de Comte
O progresso – ou a sensação de progresso –
impregnava os ares do final do século XIX. A revolução
industrial já se alastrara por quase toda a Europa
Ocidental e parte da América do Norte. Como duvidar
que o destino humano estava irremediavelmente
atrelado ao progresso da sociedade?
Não havia quem negasse que a história da
humanidade era uma jornada rumo ao progresso. E, se
a evolução era o caminho natural desta história, seria
possível identificar as leis que explicavam e
desvendavam o progresso. A razão e o saber
permitiriam conhecer estas leis. A previsibilidade da
trajetória rumo ao progresso possibilitava o
desvendamento delas.
Tal como acontecia com o aumento da
complexidade da vida social, a ciência traduzia essa
marcha de progresso e de avanço; afinal, ela caminhava
para a frente, sempre acumulando conhecimento,
sempre somando e corrigindo os erros do passado. Ao
menos, era assim que os pensadores e estudiosos
entendiam o desenrolar do processo de construção do
saber.

Através do uso de métodos de investigação,


como a observação, experimentação, dedução e
comparação, a ciência se apresenta, nesse
período, como um instrumento capaz de
desvendar, explicar e resolver os problemas
enfrentados pela humanidade. Para tanto, fazia-
se necessário descobrir, através de pressupostos
científicos, as leis ou postulados que regiam o
mundo, para que a realidade pudesse se tornar
inteligível. (...) Como os procedimentos
científicos haviam proporcionado inúmeras
descobertas no campo das ciências exatas e
naturais, caberia então às ciências sociais
descobrir as leis que possibilitassem o
conhecimento do homem. A partir daí foram
criadas, no século XIX, sociedades científicas
encarregadas de desenvolver pesquisas na área
de ciências sociais e humanas (FAUSTINO e
Ingimage
A biologia era o paradigma da investigação [...] E o que significa isso? Significa que é o
científica: por meio de intensa e sistemática século onde a burguesia já se instalou no
observação, Charles Darwin conseguira provar poder[,] é uma época onde outra ordem política
que as espécies evoluíam em função da sua é reinante. As revoluções burguesas têm o
capacidade de adaptação, da sua capacidade de significado de serem exatamente aquelas em que
responder aos desafios do ambiente. Os anos a burguesia, [que] já era hegemônica do ponto
Oitocentos, então, tingiram-se dos tons daquele de vista econômico, passa a ser hegemônica
que era considerado o modelo perfeito e acabado também do ponto de vista político. Pode-se dizer
de ciência: um conjunto de conhecimentos sem meneios que o século XIX é o século
advindos do uso de métodos científicos, assim burguês. Além disso (e um tanto por conta
entendidos os métodos empíricos e indutivos. disso), o século XIX é o século do otimismo com
Segundo Fonseca, relação aos prodigiosos progressos científicos e
tecnológicos que então se verificam, progressos
ser uma teoria do século XIX significa, em esses sem par na história, até mesmo se
primeiro lugar, dizer que se trata de uma compararmos com progressos tecnológicos dos
reflexão que se dá num ambiente liberal séculos anteriores quando nasceu a ciência
(ou que assim vai se tornando moderna. (FONSECA, 2009, p. 143).
progressivamente) e pós-revo- lucionário.
organização social e política seria produto das
Observação:
luzes da razão. Essa ideia tornar-se-ia um dos
Os métodos pontos
empíricos são os da
fundamentais instrumentais.
filosofia de Comte
Também são (GIANNOTTI,
chamados 1978,
de métodos
p. V). indutivos
porque partem do estudo de casos particulares em
Comte também entrou em contato com as ideias do
direção à generalização. Por exemplo: estudam-se
vários tipos utópico
pensador Claude-Henri
de folhas e, então, De Rouvroy, uma
propõe-se o Conde de
Saint-Simon,
elaboração deque
geral quem foi secretário
dê conta pessoal.
de explicar todosSaint-Simon
os
(1760-1825)
tipos de folhas. era um nobre aristocrata que se ocupava
Osemmétodos
sonhar empíricos,
e imaginar portanto,
mundos utópicos
opõem-se nosaos
quais não
existiriadedutivos,
métodos injustiça que
social, tampouco
partem da razãooutros
para problemas
a
causados pelo avanço do capitalismo.
compreensão das regras gerais para, só então, A relutância de
Figura 1. Os métodos empíricos são mais frequentemente utilizados Saint-Simon
explicar em admitir as limitações impostas pela
casos particulares.
nas ciências da natureza (Física, Química e Biologia). realidade acabariam por transformar em religião seu
O pensador que simbolizou essa crença no estranho conjunto de ideias,
progresso e na aplicação dos métodos empíricos para uma religião do trabalho [que] [...] denunciava
alcançar o conhecimento foi Auguste Comte (1798- graves injustiças na distribuição da riqueza da
1857). Nascido na França, a 19 de janeiro de 1798, sociedade, mas oferecia um guia frustran-
Comte era filho de um fiscal de impostos. A sua vida temente pequeno para os que queriam pôr as
familiar foi muito instável e turbulenta, o que explica coisas no lugar (HEILBRONER, 1996, p. 116).
os inúmeros problemas no seu desenvolvimento
emocional. Na Escola Politécnica de Paris, instituição
extremamente respeitada ao tempo da Revolução
Francesa, teve aulas com importantes intelectuais,
como Adam Smith, Jean-Baptiste Say, David Hume e
Condorcet.
O fator mais decisivo para sua formação foi,
porém, o estudo do Esboço de um Quadro Histórico
dos Progressos do Espírito Humano, de Condorcet
(1743-1794), ao qual se referiria, mais tarde,
como ‘meu imediato predecessor’. A obra de
Condorcet traça um quadro do desenvolvimento
da humanidade, no qual os descobrimentos e
invenções da ciência e da tecnologia
desempenham papel preponderante, fazendo o
homem caminhar para uma era em que a
Era uma religião estranha, meio mística e Em outros termos, esta filosofia defendia ser
desorganizada, mas admirável, pois fora
possível que a ciência elaborasse instrumentos
constituída sobre um inacabado edifício de
ideias ao qual faltava um lado. [...] Talvez seja para debelar todos os problemas da
mais adequado compará-la a uma irmandade; humanidade, até porque, e principalmente, o
seus discípulos vestiam-se em tons de azul e modo de produção era fortemente influenciado
tratavam-se entre si como ‘pais e filhos’. E, pela ciência (FAUSTINO e GASPARIN, 2001, p.
como um bonito símbolo daquilo pelo qual seu 279).
fundador havia lutado, usavam um colete
Era necessário dominar as emoções e permitir que a
especial que não podia ser vestido nem
ordem conduzisse a humanidade na direção do
despido sem ajuda, o que simbolizava e
enfatizava a dependência de cada homem de
desenvolvimento harmonioso.
seus irmãos. Mas a igreja logo degenerou para Exatamente por isso o positivismo não poderia
pouco mais que um culto (HEILBRONER, 1996, nascer em outra época que não o século XIX. O
p. 115). positivismo, como veremos mais adiante, tem em
suas bases epistemológica, sociológica e historio-
Comte acabou por romper com Saint-Simon.
gráfica uma confiança na capacidade de
Depois de casar-se, publicou sua principal obra, O conhecer, na capacidade de fazer uma ciência de
Curso de Filosofia Positiva. Curiosamente, embora fato pura, que nós só podemos enquadrar como
atuasse como professor de Matemática, não hesitou sendo algo típico do século XIX (FONSECA, 2009,
em atacar a abstração matemática: apenas a Química, p. 143).
a Biologia e a Sociologia correspondiam ao modelo de
Separado da mulher e vivendo momentos difíceis do
ciência apoiada em métodos experimentais.
ponto de vista financeiro, Comte foi sustentado por
As ideias de Comte, até por conta do título de
amigos. Confirmando sua tendência emocional ao
sua obra, formaram uma escola de pensamento que
recebeu o nome de Positivismo. Quais eram os êxtase religioso, ele acabou por transformar em devoção
propósitos desta filosofia? Ela ansiava por encontrar a sua paixão por Clotilde de Vaux, esposa de um
soluções para os problemas sociais trazidos pelo homem que estava preso. Embora combatesse
progresso capitalista. Era função da ciência colaborar justamente as crenças religiosas e defendesse a
para o processo evolutivo na direção de uma separação entre o Estado laico e as instituições
sociedade que primasse pelo progresso e pela ordem. religiosas, Comte acabou por inaugurar uma quase
religião.

2. O positivismo de Comte modificação da sociedade, permitisse a reforma prática


das instituições. A esse sistema deve-se acrescentar a
Para Comte, era condição essencial que a sociedade forma religiosa assumida pelo plano de renovação
passasse por transformações para que o futuro glorioso social, proposto por Comte nos seus últimos anos de
vida (GIANNOTTI, 1978, p. VIII).
Observação: A Física, a Química e a Biologia eram os modelos
A metafísica diz respeito àquilo que está além da perfeitos de ciência, e a racionalidade impunha que fossem
natureza física das coisas. mantidas distantes a religião e a metafísica.

da humanidade se confirmasse. Era fundamental


construir uma nova forma de pensar o mundo, uma Nos termos comtianos, o conhecimento “positivo”
nova maneira de construir o conhecimento. No novo e tinha como base as seguintes premissas:
futuro maravilhoso mundo, o ser humano deveria ser
1. na história está presente uma lei que tende, através
capaz de pensar cientificamente.
de graus ou etapas, à perfeição e à felicidade do
Por essa razão, o sistema comteano estruturou- gênero humano; 2. tal processo de aperfeiçoamento é
se em torno de três temas básicos. Em primeiro geralmente identificado com o desenvolvimento e com
lugar, uma filosofia da história com o objetivo de o crescimento do saber científico e da técnica; 3.
mostrar as razões pelas quais certa maneira de ciência e técnica são a principal fonte do progresso
pensar (chamada por ele filosofia positiva ou político e moral, constituindo a confirmação de tal
pensamento positivo) deve imperar entre os progresso (ROSSI, 2000, p. 96).
homens. Em segundo lugar, uma fundamentação
e classificação das ciências baseadas na filosofia Para Comte, as transformações históricas provavam que
positiva, finalmente, uma sociologia que, o homem havia evoluído da teologia (religião) para a
determinando a estrutura e os processos de metafísica (filosofia). Nada mais natural, portanto, que
evoluísse da metafísica para a ciência positiva. Tal No estado teológico – estado natural e primitivo
processo exigia o nascimento de uma Física Social, um da inteligência humana – que corresponde à
corpo de ideias que possibilitasse a compreensão da antiguidade, os fenômenos explicam-se pela
vida social sob a ótica da ciência. Aliás, seria esse intervenção arbitrária de agentes sobrenaturais
justamente o arsenal teórico que a burguesia desejava que dão conta de todas as irregularidades do
construir para manter a ordem e para propiciar as universo. No estado metafísico, que corresponde
condições mais favoráveis para o desenvolvimento ao chamado período medieval, forças abstratas
capitalista. tomam o lugar dos agentes sobrenaturais na
explicação da experiência humana. No estado
positivo, correspondente à modernidade, a
inteligência do homem não deve buscar noções
absolutas ou conjecturar sobre a origem do
universo, mas, sim, buscar, através do uso da
razão, da observação e de leis efetivas, as
relações que ligam todos os fenômenos. Nesse
modelo explicativo, o real não é estático, porém,
a dinâmica que ocasiona a transformação se dá
de forma evolutiva, linear e previsível. Apresen-
ta-se com um encadeamento objetivo, pois o
estado da civilização humana em cada geração
depende do estado da geração precedente e que
irá produzir o seguinte. Essa forma de entender
e explicar a sociedade nega o conhecimento a
priori adotado pelos filósofos escolásticos e cria
um encadeamento temporal entre passado,
presente e futuro (FAUSTINO e GASPARIN,
2001, p. 159).

Qual o conceito de “positivo” para Comte? O termo


“positivo” significava muitas coisas ao mesmo tempo,
mas estava associado, em especial, ao abandono de
superstições e crenças sem fundamentação empírica.
Positivo, portanto, deveria ser o corpo de conhecimento
destinado a explicar e organizar o mundo.

Ingimage

Figura 2. A filosofia positiva “indica uma das mais eminentes propriedades


da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua
própria natureza, não a destruir, mas a organizar” (COMTE, 1978, p. 61). Era
necessário proceder como os biólogos, botânicos e zoólogos, pesquisadores
que haviam categorizado um grupo de “órgãos” interdependentes e
relacionados.

A classificação e a categorização eram fundamentais para a elaboração de leis que permitissem ao homem
operar, agir. O homem necessita dominar a natureza, e
por isso precisava compreendê-la, bem como às suas
leis de funcionamento. Ainda: tal como a ciência havia ? Saiba
evoluído por meio de estágios, e da mesma forma como mais
a natureza havia evoluído dos organismos mais simples Para saber mais sobre a vida de Darwin e sobre as ideias
para os mais complexos, o conhecimento também expostas em A Origem das Espécies, sugerimos consultar:
deveria percorrer esse caminho de progresso evolutivo. converted/pdf/2009_OriginPortuguese_F2062.7.pdf>.
Acesso em: 23 jul. 2014.
Concebe-se, com efeito, que o estudo racional
de cada ciência fundamental (...) não pode fazer
progressos reais (...) a não ser depois de um
grande desenvolvimento das ciências anteriores, Herbert Spencer (1820-1903), um dos mais notáveis
relativas a fenômenos mais gerais, mais representantes do darwinismo social, aplicou o conceito
abstratos, menos complicados e independentes de evolução e de seleção natural ao contexto da história
dos outros. É pois, nessa ordem que a social e criou uma teoria sobre o progresso. Em tempos
progressão, embora simultânea, necessitou ter de viagens marítimas, de conquista de terras distantes e
ocorrido (COMTE, 1978, p. 34). de contato com povos do Novo Mundo, esta parecia ser
a explicação ideal para justificar a colonização de
3. As influências do positivismo nativos na América, na Ásia e na África. Afinal, todos
eles estavam em um estágio inferior de
nas investigações sociais desenvolvimento, problema que seria resolvido se o
homem branco conseguisse educá-los e trazê-los para a
O positivismo exerceu uma profunda influência na modernidade. Assim, o darwinismo social deu um cunho
forma de pensar dos anos Oitocentos, associado ou não científico para o etnocentrismo do século XIX.
a outras teorias. Em especial, a partir das suas relações
com o darwinismo, ele acabou por ensejar a concepção
Observação:
do darwinismo social.
O darwinismo social mesclou elementos da teoria O etnocentrismo diz respeito à percepção de
darwiniana da evolução com elementos do outras culturas a partir da sua própria, ou seja,
positivismo. Se as espécies evoluíam por conta da sua tomando a sua própria cultura como parâmetro de
habilidade de adaptação, as manifestações sociais só comparação e de ideal a ser atingido.
poderiam obedecer a essa mesma trajetória. Assim,
supunha-se que comunidades mais primitivas, aos
poucos, houvessem evoluído para formas mais No início do século XX, o darwinismo social ainda
complexas de organização social. influenciou outras concepções, em especial as teorias
eugênicas, que defendiam a melhoria da raça humana a
partir de processos artificiais de seleção: como a
evolução e o progresso eram a marca do
desenvolvimento humano, parecia razoável imaginar que
seres humanos melhores surgissem por meio da
combinação de portadores de “bons genes”.
O estatístico inglês Francis Galton (1822-1911) foi
um dos maiores defensores da eugenia, concepção que
se manteve viva até o final da Segunda Guerra Mundial,
quando a crueldade e o absurdo das experiências
nazistas provaram o quão equivocada era a crença de
“melhoria” genética dos seres humanos.
Por mais surpreendente que possa parecer aos
nossos olhos de hoje, vigorou nos Estados Unidos, até
os anos de 1920, uma legislação que defendia a
esterilização de pessoas portadoras de deficiências,
impedia o casamento de indivíduos portadores de
Figura 3. Charles Darwin (1809-1882), naturalista inglês. “genes” inadequados (ou casamentos interraciais) e
estimulava à procriação os indivíduos supostamente
“superiores”. Até a década de 1970, também era
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permitido utilizar negros ou deficientes como cobaias para testes experimentais de remédios.

4. O positivismo no Brasil
O positivismo exerceu uma profunda influência no
pensamento político do Brasil ao final do século XIX e
início do século XX. Afinal, a apologia do progresso
parecia servir perfeitamente às necessidades de um
país em construção: a República era uma experiência
recente e a escravidão fora extinta há pouco. Assim, a
ideia de evolução social encontrava aderência aos
ideais da intelectualidade brasileira que havia sido
instruída na Europa.
Os ideais positivistas acabaram por se alastrar,
constituindo, inclusive, um contexto que negava as
bases do positivismo comteano. Criou-se a Igreja
Positivista do Brasil, veículo por meio do qual se
expressava a adoração por Clotilde de Vaux; as vacinas
e outras aplicações científicas foram rechaçadas;
cultos foram realizados e instituíram-se Semanas
Santas para homenagear Comte e Clotilde. Todo esse
entorno religioso acabou por construir um halo místico
em torno de Comte, imagem essa que batia de frente
Figura 5. Incansável defensor da ciência, Lobato utilizou a literatura infantil
com aquilo que o pensador havia proposto a vida toda: para ensinar Matemática, História e Geografia às crianças. Também valorizou a
o apoio à construção de um aparato científico e cultura e o folclore brasileiro por meio das lendas e fábulas.
racional que permitisse a compreensão do mundo.
A influência dos positivistas pode ser percebida na Amigo de Rui Barbosa, Lobato conviveu com os
nossa bandeira, que contém os dizeres “ordem e políticos de sua época, quase todos eles sob forte
progresso”. Afinal, ordem e progresso eram as ideias influência das ideias positivistas. Convidado pelo
que apoiavam a ciência positiva. presidente Washington Luiz, assumiu o cargo de
adido nos Estados Unidos, país no qual morou por
muitos anos e que se constituiu no exemplo de
desenvolvimento e progresso que ele tanto almejava
para o Brasil.
Com a chegada do Estado Novo, Lobato envolveu-
se na luta política pelo fim da repressão e das práticas
autoritárias da ditadura varguista e do regime de Gaspar
Dutra. Ainda, por conta do momento político do país,
acabou por se aproximar do Partido Comunista.
A trajetória não linear da carreira de Lobato –
algumas vezes até contraditória – pode explicar, em
Figura 4. No Brasil, o movimento republicano apoiou-se em ideias positivistas
parte, as críticas que seu trabalho recebeu, nos
para a formulação da ideologia da ordem e do progresso. primeiros anos do século XXI, em referência aos
elementos preconceituosos e racistas na sua obra. De
fato, admirador da eugenia, Lobato acreditava que a
O positivismo também está materializado na obra miscigenação (a “mistura” entre raças)
de um dos maiores escritores brasileiros: Monteiro “comprometia” a formação do povo brasileiro. As
Lobato (1882-1948). Promotor e fazendeiro, Lobato personagens negras dos seus livros, inclusive os
lutou pela implantação de um parque editorial no Brasil infantis, em geral eram retratadas como ignorantes e
e se dedicou à literatura infantil e didática. Nacionalista, incapazes de entender o progresso. No entanto, é
participou da campanha pela exploração do petróleo necessário considerar que o escritor, ao mesmo
apenas pelas empresas brasileiras. tempo em que atribuía aos negros um papel de
inferioridade racial, demonstrava respeito pela
sabedoria popular da qual eram portadores e pela
importância da África na nossa formação cultural.
Defensor da ordem e do progresso capitalista, ao joão-de-barro. Pura biboca de
Lobato acreditava que a “catequização” do caboclo bosquímano.
brasileiro era necessária para que a sociedade brasileira Mobília, nenhuma. A cama é uma
pudesse progredir e evoluir. Um de seus mais famosos espipada esteira de peri posta sobre
personagens, Jeca Tatu, simbolizou a crença do autor o chão batido.
no caráter deformado do caipira caboclo: como
podemos perceber no trecho de Urupês, obra de 1918,
Jeca Tatu é indolente, preguiçoso, um sujeito sem
ambição política, econômica ou cultural. Conformado
com o estado de miséria no qual vivia, e de índole
fatalista, Jeca Tatu tornou-se símbolo do atraso e do
subdesen- volvimento contra os quais Lobato lutaria por
toda a vida.

Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba,


maravilhoso epítome de carne onde se resumem
todas as características da espécie.
Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou.
Seu primeiro movimento, após prender entre os
lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e
disparar a cusparada de esguicho, é sentar-se
jeitosamente sobre os calcanhares. Só então
destrava a língua e a inteligência.
– Não vê que...
De pé ou sentado as ideias se lhe entramam, a
língua emperra e não há de dizer coisa com
coisa. De noite, na choça de palha, acocora-se
em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da
mulher e da prole.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um
café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra
posição será desastre infalível. Há de ser de
cócoras.
Nos mercados, para onde leva a quitanda
domingueira, é de cócoras, como um faquir do
Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúva
ou o feixe de três palmitos.
Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e
feio na realidade!
Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...
Quando comparece às feiras, todo mundo logo
adivinha o que ele traz: sempre coisas que a
natureza derrama pelo mato e ao homem só
custa o gesto de espichar a mão e colher –
cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuparis,
maracujás, jataís, pinhões, orquídeas; ou artefatos
de taquara- poca – peneiras, cestinhas,
samburás, tipitis, pios de caçador; ou utensílios
de madeira mole – gamelas, pilõezinhos,
colheres de pau.
Nada mais.
Seu grande cuidado é espremer todas as
consequências da lei do menor esforço – e nisto
vai longe.
Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz
sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar
Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas — limita-se, cada vez que chove, a aparar numa
para os hóspedes. gamelinha a água gotejante...
Três pernas permitem equilíbrio; inútil, portanto, meter a Remendo... Para quê?, se uma casa dura dez
quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão. Para que anos e faltam “apenas” nove para ele abandonar
assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados aquela? Esta filosofia economiza reparos.
calcanhares sobre os quais se sentam? Na mansão de Jeca a parede dos fundos bojou
Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo — para fora um ventre empanzinado, ameaçando
colher, garfo e faca a um tempo? ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam
No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a na podriqueira do baldrame. A fim de neutralizar
pichorra e a panela de feijão. o desaprumo e prevenir suas consequências, ele
Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só grudou na parede uma Nossa Senhora
tem dois parelhos; um que traz no uso e outro na lavagem. enquadrada em moldurinha amarela – santo de
Os mantimentos apaiola nos cantos da casa. Inventou um mascate.
cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta e um disco de – Por que não remenda essa parede, homem
lata no alto: ali pendura o toucinho, a salvo dos gatos e de Deus?
ratos. – Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?
Da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinho de Não obstante, “por via das dúvidas”, quando
chifre, o são Benedito defumado, o rabo de tatu e as palmas ronca a trovoada Jeca abandona a toca e vai
bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem de agachar-se no oco dum velho embiruçu do
gaveta os buracos da parede. quintal – para se saborear de longe com a
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. eficácia da escora santa. Um pedaço de pau
Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? dispensaria o milagre; mas entre pendurar o
Vive-se bem sem isso. Se pelotas de barro caem, abrindo santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar a
seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las. Ficam pelo madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a
resto da vida os buracos abertos, a parede, o sacerdote da Grande Lei do Menor
entremostrarem nesgas de céu. Esforço não vacila. É coerente.
Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato
onde pinga a chuva, Jeca, em vez de remendar a tortura, o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem
flores — nada revelador de permanência.
Há mil razões para isso; porque não é sua a mãos do chefe Coisada, que lho retém para maior
terra; porque se o “tocarem” não ficará nada que garantia da fidelidade partidária.
a outrem aproveite; porque para frutas há o Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena
mato; porque a “criação” come; porque... no livro eleitoral, arabescando o aranhol de
– Mas, criatura, com um vedozinho por ali... A gatafunhos e que chama “sua graça”.
madeira está à mão, o cipó é tanto... Se há tumulto, chuchurreia de pé firme, com
Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de heroísmo, as porretadas oposicionistas, e ao cabo
moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e segue para a casa do chefe, de galo cívico na testa e
cuspilha. colarinho sungado para trás, a fim de novamente lhe
– Não paga a pena. depor nas mãos o “dipeloma”.
Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o
nessa palavra atravessada de fatalismo e heroísmo, flagrantemente documentado pelo latejar
modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a
comodidades. De qualquer jeito se vive. promessa, para logo, duma inspetoria de quarteirão.
Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A Representa este freguês o tipo clássico do sitiante já
primeira, por ser um pão já amassado pela com um pé fora da classe. Exceção, díscolo que é, não
natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca
brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O Tatu.
plantio se faz com um palmo de rama fincada em O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento
qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca recheio de superstições, vale o do casebre. O
a formiga. A mandioca é sem-vergonha. banquinho de três pés, as cuias, o gancho de
[...] toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro de
O fato mais importante de sua vida é sem dúvida seus miolos sob a forma de ideias: são as noções
votar no Governo. Tira nesse dia da arca a roupa práticas da vida, que recebeu do pai e sem
preta do casamento, sarjão furadinho de traça e mudança transmitirá aos filhos.
todo vincado de dobras; entala os pés num
alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um
colarinho de bico e, sem gravata, ringindo e
mancando, vai pegar o diploma de eleitor às
O sentimento de pátria lhe é benta, três raminhos de arruda, três ovos de pata
desconhecido. Não tem sequer a noção do preta (com casca; sem casca desanda) e um
país em que vive. Sabe que o mundo é saquinho de picumã; mete-se tudo numa gamela
grande, que há sempre terras para d’água e banha-se naquilo o doente, fazendo-o
diante, que muito longe está a Corte com tragar três goles da zurrapa. É infalível!
os graúdos e mais distante ainda a Bahia, (LOBATO, 2014, p. 152/6).
donde vêm baianos pernósticos e cocos.
Perguntem ao Jeca quem é o presidente da
República.
– O homem que manda em nós tudo?
– Sim.
– Pois de certo que há de ser o
imperador. Em matéria de civismo
não sobe de ponto.
– Guerra? Te esconjuro! Meu pai viveu
afundado no mato pra mais de cinco anos
por causa da guerra grande. Eu, para
escapar do “reculutamento”, sou inté
capaz de cortar um dedo, como o meu
tio Lourenço...
Guerra, defesa nacional, ação
administrativa, tudo quanto cheira a
governo resume-se para o caboclo numa
palavra apavorante – “reculutamento”.
Quando em princípios da presidência
Hermes andou na balha um recenseamento
esquecido a Offenbach, o caboclo tremeu e
entrou a casar em massa. Aquilo “haverá
de ser reculutamento”, e os casados, na
voz corrente, escapavam à redada.
A sua medicina corre parelhas com o
civismo e a mobília – em qualidade.
Quantitativamente, assombra. Da noite
cerebral pirilampejam-lhe apózemas,
cerotos, arrobes e eletuários escapos à
sagacidade cômica de Mark Twain.
Compendia-os um Chernoviz não escrito,
monumento de galhofa onde não há rir,
lúgubre como é o epílogo. A rede na qual
dois homens levam à cova as vítimas de
semelhante farmacopeia é o espetáculo
mais triste da roça.
Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um
Eusébio Macário de pé no chão e cérebro
trancado como moita de taquaruçu. O
veículo usual das drogas é sempre a pinga
– meio honesto de render homenagem à
deusa Cachaça, divindade que entre eles
ainda não encontrou heréticos.
Doenças hajam que remédios não faltam.
Para bronquite, é um porrete cuspir o
doente na boca de um peixe vivo e soltá-lo:
o mal se vai com o peixe água abaixo...
Para “quebranto de ossos”, já não é tão
simples a medicação. Tomam-se três
contas de rosário, três galhos de alecrim,
três limas de bico, três iscas de palma
Exercícios Propostos

➊ O filósofo Auguste Comte (1798-1857) preenche sua d) neutralidade, fraternidade e aplicação de princípios
doutrina com uma imagem do progresso social na metafísicos.
qual se conjugam ciência e) reflexão filosófica, êxtase religioso, sociedade regulada por
e política: a ação política deve assumir o aspecto de uma ação científica e a
leis semelhantes às da natureza e neutralidade científica.
política deve ser estudada de maneira científica (a física social). Desde
que a Revolução francesa favoreceu a integração do povo na vida social,
o positivismo obstina-se no programa de uma comunidade pacífica. E o
Estado, instituição do “reino absoluto da lei”, é a garantia da ordem que
impede o retorno potencial das revoluções e engendra o progresso.
(C. Ruby. Introdução à filosofia política. São
Paulo: Unesp, 1998. Adaptado.)

A característica do Estado positivo que lhe permite garantir Ⓢ (IFRR, com modificações) – O fato novo que orientava a
não só a ordem, como também o desejado progresso das reflexão de um conjunto de intelectuais, entre eles Comte, no
nações, é ser início do século XIX, era a indústria. Os observadores da época
a) espaço coletivo, onde as carências e desejos da população percebiam que algo de original estava acontecendo em relação
se realizam por meio das leis. ao passado.
b) produto científico da física social, transcendendo e Podemos afirmar que, para Comte:
transformando as exigências da realidade. a) a oposição entre empresários e operários era secundária,
c) elemento unificador, organizando e reprimindo, se pois era reflexo da má organização da sociedade industrial
necessário, as ações dos membros da comunidade e poderia ser corrigida por meio da liberdade religiosa e de
d) programa necessário, tal como a Revolução Francesa, expressão.
devendo portanto se manter aberto a novas insurreições. b) Os economistas liberais eram metafísicos, já que se
e) agente repressor, tendo um papel importante a cada esforçavam para considerar os fenômenos de economia
revolução, por impor pelo menos um curto período de política separados da materialidade do setor social.
ordem. c) a oposição entre empresários e operários seria central e
conduziria a crises cíclicas, cuja saída seria a constituição
de uma sociedade plenamente positiva e socialista, cuja
base seria a aplicação da ciência no processo de
organização do trabalho.
d) existe um desejo de construir uma sociedade justa,
igualitária e fraterna, no marco da Revolução Francesa, ao
entender que os problemas sociais que abalavam as
Ⓢ (UERR, com modificações) – Os séculos XVIII e XIX foram estruturas da época poderiam ser solucionados por meio da
palco de crises e desordens na organização da sociedade, insurreição popular e da instauração de um governo
advindas das transformações trazidas pela industrialização da socialista.
produção econômica e no aparecimento do e) a produção industrial, que levou à concentração de massas
trabalho assalariado. A necessidade de buscar soluções a esse de trabalhadores nas cidades, seria o cerne de um tipo de
clima de mudanças na ordem social fez surgir o sociedade cuja ciência deveria ser positiva, levando em
positivismo, movimento que influenciou as primeiras formas consideração a dinâmica organizadora e a incapacidade de
de pensamento social no Brasil. as crenças religiosas darem conta de explicar a natureza.
As principais características do positivismo são:
a) objetividade científica nortada pela experiência e pela
indução, e sociedade regulada por leis semelhantes às da
natureza.
b) progressismo, evolucionismo e relativismo cultural.
c) organicismo, materialismo e aplicação de métodos
metafísicos e filosóficos.
➍ (FGV, com modificações) – Leia atentamente o texto decorrência das crescentes demandas de substâncias
abaixo e depois assinale a alternativa correta: estimulantes por parte das sociedades que experimentavam
a intensificação do ritmo de vida e da cadência do trabalho.
As bases de inspiração dessas novas elites eram as
correntes cientificistas, o darwinismo social do inglês (N. Sevcenko. “Introdução”. In: História da vida privada no Brasil.
Spencer [...] e o positivismo francês de Auguste São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 14.)
Comte. Sua principal base de apoio econômico e
político procedia da recente riqueza gerada pela a) A difusão das teorias cientificistas e evolucionistas ao longo do
expansão da cultura cafeeira no Sudeste do país, em século XIX forneceram argumentos para a crítica das práticas
neocolonialistas, favorecendo o processo de
descolonização.
b) A influência das teorias cientificistas no Brasil é
exemplificada, principalmente, pela formação de uma elite
que buscou excluir da sociedade todos os membros de ➎ A eugenia, tal como originalmente conce- bida, era
organizações religiosas. a aplicação de “boas práticas de melhoramento”
c) Apesar de o consumo do café estar adequado à aceleração ao aprimoramento da
do ritmo social no século XIX, a industrialização brasileira espécie humana. Francis Galton foi o primeiro a sugerir com destaque o
acabou por expulsar, nesse período, o comércio de valor da reprodução humana controlada, considerando-a produtora do
produtos naturais. aperfeiçoamento da espécie.
d) A incorporação do positivismo pelos militares brasileiros foi (M. Rose. O espectro de Darwin. Rio
impedida pelas definições de Comte sobre o tipo militar de Janeiro: Ziai, 2000. Adaptado.)
como característico do regime teológico, marcado pelo
domínio da força, da guerra e do comando irracional, ao Um resultado da aplicação dessa teoria, disseminada a partir da
contrário do tipo industrial que se manifestava na segunda metade do século XIX, foi o(a)
cooperação, na livre produção e na aceitação racional. a) aprovação de medidas de inclusão social.
e) A adoção do ideário cientificista favoreceu a separação da b) adoção de crianças com diferentes características físicas.
Igreja e do Estado, bem como repercutiu no projeto de c) estabelecimento de legislação que combatia as divisões
modernização conservadora das elites brasileiras no sociais.
período republicano. d) prisão e esterilização de pessoas com características
consideradas inferiores.
e) desenvolvimento de próteses que possibilitavam a
reabilitação de pessoas deficientes.

Referências

Textuais
COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores.
FONSECA, R. M. O positivismo,“historiografia positivista” e história do direito. Argumenta Journal Law, Jacarezinho, v. 10, n. 10, p.
143-166, 2009.
FAUSTINO, R. C.; GASPARIN, J. L. A influência do positivismo e do historicismo na educação e no ensino de história. Acta
Scientiarum. Human and Social Sciences, Maringá, v. 23, p. 157-166, 2001.
GIANNOTTI, J. A. Auguste Comte: vida e obra. In COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os
Pensadores.
HEILBRONER, R. A história do pensamento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Coleção Os Economistas.
LOBATO, M. Contos completos. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.
ROSSI, P. Naufrágios sem espectador: a ideia de progresso. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

Créditos das imagens


Figura 3. Disponível em: <http://www.objetivo.br/conteudoonline/imagens/conteudo_8188/14.png>. Acesso em: 09 jul. 2014.
Durkheim e a reflexão sobre fatos
3 sociais

Neste módulo, estudaremos as ideias de Durkheim

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no contexto da França do final do século XIX. Ao final,
propomos alguns exercícios sobre o tema.

1. O contexto histórico
Na França do final do século XIX e início do XX, a
sociedade burguesa discutia o divórcio, o ensino
religioso, a educação cívica e várias outras questões,
relacionadas aos problemas causados pela
industrialização, pela urbanização, pelo desenvolvimento
tecnológico e pelo aumento populacional.
As sucessivas crises econômicas e políticas
combinavam-se com a euforia com as invenções e o
avanço da ciência, que modificavam o modo de vida da
sociedade moderna. A admiração pelos aviões e
submarinos, pelas vacinas e pelas inovações
tecnológicas somava-se ao medo das revoltas
populares, da miséria e da violência.
Paris realizara a Exposição Universal de 1900, um
evento que trouxera para a França o que havia de
mais moderno no mundo e que anunciara novos
tempos de progresso e desenvolvimento científico.
Móveis e utensílios feitos à mão foram substituídos
por produtos fabricados em massa. O conhecimento
científico era disseminado por meio da ação de uma Figura 1. Ao final do século XIX e início do XX, a art nouveau
invadiu as artes e a arquitetura, mesclando elementos geométricos
progressiva indústria gráfica que colocara em circulação com padrões florais.
livros baratos e acessíveis. O cinema enchia os olhos
dos espectadores com imagens em movimento. Nas
grandes cidades, a população urbana e abastada
divertia-se em cabarés, imersos em um clima que 2. Durkheim e
festejava a paz enfim conquistada após intensos e as bases da Sociologia
sangrentos conflitos por toda a Europa: a Belle
Époque e a art nouveau representavam a cultura urbana
David Émile Durkheim (1858-1917), nascido no seio
da diversão e da apologia da beleza.
de uma família judaica, bacharelou-se em Filosofia e,
logo em seguida, interessou-se pelo estudo da

? Saiba sociologia, ciência que nascia àquele instante. Depois de


completar seus estudos na Alemanha, voltou para a
mais França e começou a lecionar.
O artista Toulouse-Lautrec (1864-1901) é um dos nomes Entre os vários temas a respeito dos quais se
mais significativos da Art Nouveau. Suas obras retrataram a interessou, são importantes os relacionados à
vida boêmia parisiense, típica da Belle Époque, da qual ele
formulação de leis e de métodos para o estudo do reino
também participou ativamente. Para conhecer o seu
social, um campo distinto dos reinos animal e mineral.
trabalho, sugerimos a visita ao site: <http://www.toulouse-
lautrec- foundation.org/>. Acesso em: 2 dez. 2019. Para Durkheim, a sociologia possuía características
próprias e requeria métodos de investigação específicos
e apropriados.
Durkheim acreditava que a vida social era
essa geração é a grande responsável por
constituída pelos meios morais (as ideias) colocados à fomentar, por exemplo, aplicativos de
disposição do indivíduo e aceitos pela comunidade. delivery. Para Adilson, os millennials também são
Assim, cabia à Sociologia investigar os fenômenos responsáveis por outras tendências de
sociais coletivos. Com este propósito, o sociólogo mercado como vegetarianismo e veganismo,
estudou as formas elementares da vida religiosa, consumo consciente e aluguel de casas.
buscando compreender as concepções de mundo Dessa forma, o mercado tem voltado seus
implícitas nas práticas e crenças religiosas. olhos para os novos hábitos de consumo da
O método utilizado por Durkheim para realizar esta geração Y. “Esse público, que vive conectado
investigação envolveu, inicialmente, a descrição e a à tecnologia, espera ter off-line a mesma
relação e experiência com as marcas
classificação dos dados coletados por meio da
proporcionada pelos meios digitais. Acesso a
observação. Separando as coisas simples das
informações sem fronteiras, agilidade no
complexas, comparando-as e classificando-as e, atendimento, diversidade e disponibilidade de
finalmente, fazendo uso da análise estatística, o produtos, suporte para escolhas e
sociólogo mostrou ser possível apreender como a conveniência na compra são apenas algumas
sociedade comportava-se, em quais valores ela das expectativas trazidas por essa geração”,
acreditava, quais as suas percepções da realidade e explica Camila Costa, sócia e CEO da agência
quais os seus projetos para o futuro. iD\TBWA. No entanto, acrescenta que as
marcas tradicionais precisam buscar, urgente-
mente, inovação. Do contrário, startups

? Saiba nascidas com o mindset millennial tornam-se


uma ameaça.
mais
Ainda hoje, os métodos desenvolvidos por Durkheim são (Disponível em: <https://www.meioemensagem.
utilizados no estudo de comportamentos, atitudes e com.br/home/marketing/2019/07/12/millennials-
nos-dois-lados-da-mesa.html>. Acesso em: 2 dez. 2019.)
crenças de grupos sociais, ou para fins de formulação de
políticas públicas, ou com o objetivo de desenvolver
campanhas de marketing. Abaixo, apresentamos um
Durkheim acreditava que a investigação sociológica
exemplo de pesquisa realizada a partir dos métodos
desenvolvidos, em grande parte, pela sociologia francesa merecia métodos próprios. Em consequência, em vez
do final do século XIX e início do século XX. de adotar uma abordagem mecanicista do mundo
social (abordagem esta comum em outras áreas do
Os millennials (geração Y), aqueles nascidos entre janeiro de conhecimento), o sociólogo buscou conceber o reino
1983 e dezembro de 1994, [...] são menos ambiciosos do que social como um ambiente organicista, cujo elemento
gerações anteriores. Em vez de importarem-se com filhos e casas principal não era a máquina ou a tecnologia, mas o
próprias, preferem viajar e causar resultados positivos na
homem.
sociedade. De olho nesses novos hábitos, as marcas passaram a
criar estratégias diferentes para esse público e, inclusive, a incluir
a geração Y na sua grade de colaboradores.
A pesquisa foi realizada, em 2018, via entrevista com 13.416 Observação:
millennials — espalhados por 42 países — e 3.009 pessoas da
Embora Durkheim tivesse a ambição de
geração Z (aquelas nascidas entre janeiro de 1995 e dezembro
2002) — por dez países. [...] De acordo com Alex Pinhol, CEO desenvolver métodos próprios e exclusivos, é
da Webfoco, empresa de consultoria em marketing digital, os possível observar a notável influência que os
millennials prezam qualidade de vida. “O tempo sempre foi e métodos utilizados nas ciências naturais exerceu
sempre será o bem mais precioso que temos, mas, estamos em um sobre o seu trabalho. A observação, a coleta e a
momento em que precisamos de alta performance e de seleção de dados eram comuns no campo da
produtividade”, fala. O executivo acredita que Biologia e da Química, e Durkheim desejava que
estes métodos também pudessem ser empregados
para o conhecimento do mundo social.

A metodologia sugerida era simples: o objeto de


estudo do sociólogo deveria ser o fato social, e esse
objeto era distinto de outros objetos investigados pelas
ciências naturais.
Um fato social não pode ser explicado senão sociedade, mas também exerciam controle sobre essa
por outro fato social e, ao mesmo tempo, mesma sociedade.
mostramos como esse tipo de explicação é
possível ao assinalar no meio social interno o
motor principal da evolução coletiva. A Sociologia
não é, pois, o anexo de qualquer outra ciência;
é, ela mesma, uma ciência distinta e autônoma,
e o sentimento do que tem de especial a
realidade social é de tal maneira necessário ao
sociólogo, que apenas uma cultura
especialmente sociológica pode prepará-lo para a
compreensão dos fatos sociais (DURKHEIM,
1895, apud RODRIGUES, 1984, p. 27).

A educação foi um dos temas mais frequentes nas


obras de Durkheim. Extremamente preocupado com o
culto ao individualismo que se acentuava na sociedade
industrial, ele defendia a educação moral como condição
para a existência da própria sociedade.
A consciência coletiva era o fundamento para o
consenso social; para o desenvolvimento desta
consciência, era fundamental que a escola pública e
laica educasse os jovens para a vida em sociedade.
Era necessário fortalecer os laços sociais,
desenvolver o amor pela coletividade, facilitar a
internacionalização de uma ordem normativa e
envolver-se em valores e objetivos comuns, de
acordo com suas crenças nas possibilidades do
Estado de resolver os problemas da nação
(TURA, 2006, p. 28).

Na verdade, Durkheim pretendia diminuir a


influência da Igreja e da monarquia nas instituições
educacionais.
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Figura 2. De acordo com a Constituição Federal de 1988, é dever do Estado


garantir o ensino fundamental, obrigatório e gratuito. Tal obrigação se estende,
inclusive, ao atendimento àqueles que não tiveram acesso à educação na
idade apropriada.

Para Durkheim, os fatos sociais, enquanto coisas,


correspondiam a maneiras de fazer, de agir e de pensar
que, conquanto tivessem a vida social como origem,
exerciam sobre o indivíduo uma coação exterior. A
ordem social resultava da soma das ações e
manifestações individuais e, ao mesmo tempo, exercia
uma ação coercitiva, obrigando os indivíduos a se
comportarem e a agirem conforme as normas, ficando
impedidos os comportamentos não autorizados. Os
fatos sociais, portanto, resultavam da vida em
Vejamos um exemplo prático. Conforme o texto a educação exercia a função de “moldar” o indivíduo à
respeito dos millennials anteriormente apresentado, sociedade, era possível caracterizar a educação como
vimos que esta geração, também chamada de Geração um fato social.
Y, desenvolveu uma série de comportamentos distintos
das gerações anteriores. Podemos dar como Para entender como a educação é um fato social
exemplo um típico comportamento que cresceu nas basta observarmos que o comportamento das
últimas décadas em função da percepção dos limites crianças não é espontâneo, e sim ensinado pelo
dos recursos naturais à disposição da humanidade. A grupo à sua volta, que impõe valores,
sociedade articulou o que chamamos de consumo sentimentos e costumes, como os hábitos de
consciente, e o fez de tal forma que, atualmente, higiene, alimentação, vestuário etc. Quando o
todos nós nos sentimos obrigados a consumir de processo educacional é bem-sucedido, a coerção
forma consciente, evitando desperdícios e respeitando que o grupo exerce sobre cada membro nem é
a sustentabilidade ambiental. O consumo consciente, sentida, parecendo a todos que são hábitos
portanto, resultou das formas a partir das quais a naturais e espontâneos de cada um (PILETTI,
sociedade percebeu o mundo e, ao mesmo tempo, 2010, p. 28).

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vem moldando a vida em sociedade.
Para compreender esses fenômenos, Durkheim Figura 3. Cada sociedade constrói um sistema educacional que se encarrega de
transmitir as características e os valores tidos como adequados.
desenvolveu os conceitos de coerção, solidariedade,
autoridade e representações coletivas. Para ele, a
Para Durkheim, na educação não era uma questão
educação era responsável pela transmissão de normas,
individual; na medida em que ela era responsável pela
culturas e valores, impondo, de forma coercitiva, os
formação do cidadão, e de acordo com as necessidades
costumes e valores vigentes na sociedade. Como a
do espaço público, ela se transformava em um fato
social. O professor, por meio da autoridade, transmitia verdade, porém, há em toda sociedade
aos alunos os valores e as crenças aceitos pelo grupo um grupo determinado de fenômenos
social; apenas posteriormente os alunos poderiam com caracteres nítidos, que se distingue
exercer autonomia, escolhendo ou declinando de daqueles estudados pelas outras ciências
da natureza.
normas aprendidas no ambiente escolar.
[...]
Esse talvez seja um dos motivos de crítica às ideias Esses tipos de conduta ou de
de Durkheim: conservador, ele não percebeu o quanto a pensamento não são apenas exteriores
educação poderia ser também um instrumento de ao indivíduo, são também dotados de um
transformação da sociedade. Ainda, ele não incluiu a poder imperativo e coercitivo, em virtude
questão de classes sociais em sua análise. do qual se lhe impõem, quer queira, quer
A seguir, apresentamos alguns trechos da obra de não. Não há dúvida de que esta coerção
não se faz sentir, ou é muito pouco
Émile Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Nesta
sentida quando com ela me conformo de
obra, Durkheim buscou apresentar o conceito de fatos bom grado, pois então torna-se inútil.
sociais, diferenciando-os de outros objetos de Mas não deixa de constituir caráter
investigação científica. intrínseco de tais fatos, e a prova é que
[...]
Antes de indagar qual o método que convém ao
estudo dos fatos sociais, é necessário saber que
fatos podem ser assim chamados. A questão é
tanto mais necessária quanto esta qualificação é
utilizada sem muita precisão. Empregam-na
correntemente para designar quase todos os
fenômenos que se passam no interior da
sociedade, por pouco que apresentem, além de
certa generalidade, algum interesse social.
Todavia, desse ponto de vista, não haveria por
assim dizer nenhum acontecimento humano que
não pudesse ser chamado de social. Cada se afirma desde que tento resistir. Se
indivíduo bebe, dorme, come, raciocina e a experimento violar as leis do direito,
sociedade tem todo o interesse em que estas estas reagem contra mim de maneira a
funções se exerçam de modo regular. Porém, se impedir meu ato se ainda é tempo; com
todos esses fatos fossem sociais, a Sociologia o fim de anulá-Io e restabelecê-Io em sua
não teria objeto próprio e seu domínio se forma normal se já se realizou e é
confundiria com o da Biologia e da Psicologia. Na reparável; ou então para que eu o expie
se não há outra possibilidade de reparação. Mas, coerção é menos violenta; mas não deixa de
e em se tratando de máximas puramente existir. Se não me submeto às convenções
morais? Nesse caso, a consciência pública, pela mundanas; se, ao me vestir, não levo em
vigilância que exerce sobre a conduta dos consideração os usos seguidos em meu país e na
cidadãos e pelas penas especiais que têm a seu minha classe, o riso que provoco, o afastamento
dispor, reprime todo ato que a ofende. Noutros em que os outros me conservam, produzem,
casos, a embora de maneira mais atenuada, os mesmos
efeitos que uma pena propriamente dita. Noutros
setores, embora a coerção seja apenas indireta,
não é menos eficaz. Não estou obrigado a falar o
mesmo idioma que meus compatriotas, nem a
empregar as moedas legais; mas é impossível
agir de outra maneira. Minha tentativa
fracassaria lamentavelmente, se procurasse
escapar desta necessidade. Se sou industrial,
nada me proíbe de trabalhar utilizando processos
e técnicas do século passado; mas, se o fizer,
terei a ruína como resultado inevitável. Mesmo
quando posso realmente me libertar destas
regras e violá-Ias com sucesso, vejo-me sempre
obrigado a lutar contra elas. E quando são
finalmente vencidas, fazem sentir seu poderio de
maneira suficientemente coercitiva pela
resistência que me opuseram. Nenhum inovador,
por mais feliz, deixou de ver seus
empreendimentos se chocarem contra oposições
deste gênero. Estamos, pois, diante de uma
ordem de fatos que apresenta caracteres muito
especiais: consistem em maneiras de agir, de
pensar e de sentir exteriores ao indivíduo,
dotadas de um poder de coerção em virtude do
qual se lhe impõem. Por conseguinte, não
poderiam se confundir com os fenômenos
orgânicos, pois consistem em representações e
em ações; nem com os fenômenos psíquicos,
que não existem senão na consciência individual
e por meio dela. Constituem, pois, uma espécie
nova e é a eles que deve ser dada e reservada a
qualificação de sociais. Esta é a qualificação que
lhes convém; pois é claro que, não tendo por
substrato o indivíduo, não podem possuir outro
que não seja a sociedade: ou a sociedade política
em sua integridade, ou qualquer um dos grupos
parciais que ela encerra, tais como confissões
religiosas, escolas políticas e literárias,
corporações profissionais, etc. Por outro lado, é
apenas a eles que a apelação convém; pois a
palavra social não tem sentido definido senão
sob a condição de designar unicamente
fenômenos que não se englobam em nenhuma
das categorias de fatos já existentes, constituídas
e nomeadas. Estes fatos são, pois, o domínio
próprio da Sociologia. É verdade que o termo
coerção, por meio do qual o definimos, corre o
risco de amedrontar os zelosos partidários de um
individualismo absoluto. Como professam que o
indivíduo é inteiramente autônomo, parece-Ihes
que o diminuímos todas as vezes que fazemos
sentir que não depende apenas de si próprio.
Porém, já que hoje se considera incontestável
que a maioria de nossas ideias e tendências não
são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora, con-
clui-se que não podem penetrar em nós senão mesmo sentido, cavou para si própria, etc. Sem
através de uma imposição; eis todo o significado dúvida, se os fenômenos de ordem morfológica
de nossa definição. Sabe-se, além disso, que
toda coerção social não é necessariamente
exclusiva com relação à personalidade individual.
[...]
Esta definição do fato social pode, além do mais,
ser confirmada por meio de uma experiência
característica: basta, para tal, que se observe a
maneira pela qual são educadas as crianças. Toda
a educação consiste num esforço contínuo para
impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de
agir às quais elas não chegariam
espontaneamente, observação que salta aos
olhos todas as vezes que os fatos são encarados
tais quais são e tais quais sempre foram. Desde
os primeiros anos de vida, são as crianças
forçadas a comer, beber, dormir em horas
regulares; são constrangidas a terem hábitos
higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais
tarde, obrigamo-Ias a aprender a pensar nos
demais, a respeitar usos e conveniências,
forçamo-Ias ao trabalho etc. Se, com o tempo,
esta coerção deixa de ser sentida, é porque
pouco a pouco dá lugar a hábitos, a tendências
internas que a tornam inútil, mas que não a
substituem senão porque dela derivam. É
verdade que, segundo Spencer, uma educação
racional deveria reprovar tais procedimentos e
deixar a criança agir em plena liberdade; mas
como esta teoria pedagógica não foi nunca
praticada por nenhum povo conhecido, não
constitui senão um desiderato pessoal, não
sendo fato que possa ser oposto àqueles que
expusemos atrás. Ora, estes últimos se tornam
particularmente instrutivos quando lembramos
que a educação tem justamente por objeto
formar o ser social; pode-se então perceber,
como que num resumo, de que maneira este ser
se constitui através da história. A pressão de
todos os instantes que sofre a criança é a
própria pressão do meio social tendendo a
moldá-Ia à sua imagem, pressão de que tanto os
pais quanto os mestres não são senão
representantes e intermediários.
[...]
A estrutura política de uma sociedade não é mais
do que o modo pelo qual os diferentes
segmentos que a compõem tomaram o hábito de
viver uns com os outros. Se suas relações são
tradicionalmente estreitas, os segmentos
tendem a se confundir; no caso contrário,
tendem a se distinguir. O tipo de habitação a nós
imposto não é senão a maneira pela qual todo o
mundo, em nosso redor – e em parte as
gerações anteriores –, se acostumaram a
construir as casas. As vias de comunicação não
passam de leitos que a corrente regular das
trocas e das migrações, caminhando sempre no
fossem os únicos a apresentar esta fixidez, (DURKHEIM, 1972, p. 1-11).
poder-se-ia acreditar que constituem uma
espécie à parte. Mas as regras jurídicas Vejamos um exemplo prático da aplicação das ideias
constituem arranjos não menos permanentes de Durkheim. Você certamente já ouviu falar em tribos
do que os tipos de arquitetura e, no entanto,
urbanas. Pois bem: as tribos urbanas são grupos de
são fatos fisiológicos. A simples máxima moral
pessoas que apresentam hábitos e interesses comuns.
é seguramente mais maleável; porém,
apresenta formas muito mais rígidas do que os
Temos tribos urbanas que deixaram de existir (por
meros costumes profissionais ou do que a exemplo, os hippies das décadas de 1960 e 1970) e
moda. Existe toda uma gama de nuanças que, temos tribos urbanas que surgiram em função de novos
sem solução de continuidade, liga os fatos de contextos culturais e econômicos.
estrutura mais característicos a estas livres Uma das tribos urbanas mais conhecidas é a dos

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correntes da vida social que não estão ainda nerds. Os nerds são pessoas tímidas, extremamente
presas a nenhum molde definido. O que quer interessadas em atividades intelectuais, apaixonadas por
dizer que não existem entre eles senão ficção científica e games. Este grupo tem atitudes e
diferenças no grau de consolidação que
crenças próprias, características estas que o diferenciam
apresentam. Uns e outros não passam de vida
dos demais grupos. Porém, ao mesmo tempo em que
mais ou menos cristalizada. Pode, sem dúvida,
ser mais interessante reservar o nome de
cria essas normas, o grupo impõe essas normas às
morfológicos para os fatos sociais concernentes pessoas que desejam dele participar. Em outras
ao substrato social, mas sob a condição de não palavras, caso você queira se juntar a um grupo de
perder de vista que são da mesma natureza nerds, deverá comportar-se de uma forma bastante
que os outros. Nossa definição compreenderá, específica, de acordo com o que é esperado de alguém
pois, todo o definido, se dissermos: É fato que faça parte de grupo. Como explica Durkheim, há
social toda maneira de agir, fixa ou não, condutas que exercem um poder coercitivo sobre os
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma membros de um grupo, ou sobre membros que desejam
coerção exterior; ou, ainda, que é geral ao
fazer parte de determinados grupos. Estas condutas não
conjunto de uma sociedade dada e, ao mesmo
são de natureza orgânica, tampouco psíquica: são
tempo, possui existência própria, independente
condutas sociais.
das manifestações individuais que possa ter
Estaríamos hoje expostos a sofrimentos que os
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selvagens não conhecem e, portanto, não


seria “completamente certo que o balanço se
salde em nosso proveito”. [...]. A felicidade não
seria a soma desses prazeres, ela não seria o
estado momentâneo de uma dada função
particular e sim a saúde da vida psíquica e moral
no seu conjunto. Enquanto o prazer decorre de
causas efêmeras, a felicidade decorreria de
disposições permanentes (HERCULANO, 2006,
p. 26).

Figura 4. Os hippies formaram uma das tribos mais conhecidas durante as


décadas de 1970 e 1980. Usando roupas coloridas e assumindo um
discurso que pregava a paz e o amor, eles influenciaram o
comportamento de jovens do mundo todo.

? Saiba Figura 5. Para Durkheim, é mais favorável ao ser humano uma existência
modesta. O prazer é algo efêmero, enquanto a felicidade é duradoura
mais (HERCULANO, 2006).
Um filme extremamente interessante sobre o poder
coercitivo do grupo é A ONDA (direção de Dennis Gansel.
Alemanha: Christian Becker, Nina Maag e Anita
Schneider, 2008, 107 minutos). Responsável por ensinar
aos alunos a natureza de aparelhos estatais autocráticos
um professor adota a estratégia de permitir que os alunos,
por meio da coerção, submetam os colegas a práticas
autoritárias e violentas.
Para Durkheim, a divisão do trabalho ocorre à
medida que cresce a complexidade da sociedade e os
desafios da sobrevivência. Na verdade, ao invés de se
configurar como causadora de hostilidades e
Voltemos aos fatos sociais: para Durkheim, a
divergências entre os homens, a divisão de trabalho
sociedade poderia ser investigada a partir dos hábitos
protegeria o indivíduo de lutas e conflitos
coletivos estabelecidos, materializados sob a forma de
desnecessários. Em outras palavras, a divisão do
códigos, estatísticas, monumentos históricos e tradições
trabalho representaria um
culinárias, bem como quaisquer outros comportamentos
determinados pela sociedade e por ela impostos. “desfecho brando”, pois substitui a eliminação
A partir deste ponto de vista, Durkheim investiga a mútua pela convivência. A divisão do trabalho,
questão da divisão do trabalho. Tida como resultado do por isso, só é possível em uma sociedade já
desejo humano de aumentar a felicidade (resultante da constituída, pois ela precisa de laços morais
posse de bens materiais, do status social e da (HERCULANO, 2006, p. 27).
intensidade de prazer experimentada), Durkheim Afinal, “é preciso que haja um sentimento de
apresenta outra interpretação. Para ele, identidade, de união, de partilhamento de coisas em
comum, de fraternidade, para que exista cooperação”
ao contrário, a capacidade de felicidade humana
(HERCULANO, 2006, p. 27).
é restrita e tende a ser estável, assim como a
Com base nesta análise, Durkheim elabora o
saúde. Ambas – felicidade e saúde – dizem
respeito a um estado de equilíbrio geral e conceito de anomia social, fenômeno associado ao
constante: quem busca mais saúde adoece, esgarçamento do tecido social e à ausência de regras
assim como quem busca mais felicidade, que é para o convívio social. Nas sociedades modernas, a
definida por Durkheim como sendo a saúde da anomia ocorreria em função de a industrialização
vida psíquica e moral. [...] O ser “civilizado” não obrigar os homens ao trabalho repetitivo e monótono; a
seria mais feliz que o selvagem [...], uma vez falta de um ideal moral, portanto, reduziria o homem à
que a civilização trouxe também uniformidade e dimensão econômica, impedindo o seu aperfeiçoamento
impôs ao homem trabalhos monótonos e e debilitando a vida social.
contínuos.
Na verdade, sublinha Durkheim, é só na
sociedade organizada que podemos falar de
indivíduo e de liberdade individual, pois ambos
se desenvolvem
com a divisão do trabalho social. Enquanto as
Para Durkheim, há dois tipos de solidariedade:
sociedades inferiores, segmentares, têm seus
laços, sua solidariedade, assegurados pela comu-
nidade das crenças e dos sentimentos, as a) a mecânica, típica das sociedades mais
sociedades organizadas têm na interdependência, primitivas, ocorre quando os indivíduos estão
trazida pela divisão do trabalho, o seu vínculo conectados diretamente ao grupo por meio do
moral (HERCULANO, 2006, p. 33). compartilhamento de crenças e interesses.
Neste grupo, a divisão de trabalho é mais rara e
Amber / Custilow / Ingimage / Fotoarena

os mecanismos de coerção e punição são mais


imediatos;
b) a orgânica, típica das sociedades mais
complexas, nas quais a divisão econômica do
trabalho social é mais frequente. Esta
solidariedade ocorre em função de os indivíduos
terem crenças e interesses distintos; portanto, a
interdependência fortalece – e exige – laços de
colaboração. Assim, a coesão ocorre por meio
de códigos e regras que estabelecem direitos e
deveres.
Figura 6. Toda sociedade tem seus códigos, regras, maneiras de pensar e
agir. Assim, toda sociedade tem uma natureza moral, segundo Durkheim
(HERCULANO, 2006).
Exercícios Propostos

➊ A sociologia ainda não ultrapassou a era das Ⓢ (ENADE-com modificações) – Émile Durkheim, consi-
construções e das sínteses filosóficas. Em vez de derado fundador das ciências sociais, desenvolveu
assumir a tarefa de lançar luz sobre interpretações e conceitos sobre o mundo social que
uma parcela restrita do campo social, ela prefere buscar as brilhantes permanecem como referências de análise até os tempos
generalidades em que todas as questões são levantadas sem que atuais. Nesse sentido, assinale a opção correta a respeito de
nenhuma seja expressamente tratada. Não é com exames sumários e por interpretações e conceitos elaborados pelo referido autor.
meio de intuições rápidas que se pode chegar a descobrir as leis de uma a) Émile Durkheim, ao analisar a determinação da sociedade
realidade tão complexa. Sobretudo, generalizações às vezes tão amplas sobre o indivíduo, formulou os conceitos de consciência
e tão apressadas não são suscetíveis de nenhum tipo de prova. coletiva e fato social.
(E. Durkheim. O suicídio: estudo de sociologia.
b) Émile Durkheim, ao desenvolver o conceito de fato social,
São Paulo: Martins Fontes, 2000.)
afirmou que os indivíduos exercem um poder coercitivo
sobre determinados grupos sociais.
O texto expressa o esforço de Émile Durkheim em construir c) Émile Durkheim sustentou que o indivíduo determina a
uma sociologia com base na sociedade, não sendo possível o processo inverso (a
a) vinculação com a filosofia como saber unificado. sociedade determinando o indivíduo).
b) reunião de percepções intuitivas para demonstração.
d) Émile Durkheim desenvolveu, em detalhes, a ideia de a
c) formulação de hipóteses subjetivas sobre a vida social. propaganda incentivar determinados hábitos de consumo.
d) adesão aos padrões de investigação típicos das ciências
e) Émile Durkheim desenvolveu a ideia de pessoas estarem
naturais. sempre sujeitas à coerção do grupo em função de
e) incorporação de um conhecimento alimentado pelo características biológicas e orgânicas.
engajamento político.
Ⓢ (IFRN-com modificações) – Um fato social reconhece-se pelo
poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre
os indivíduos.
(E. Durkheim. As regras do método sociológico.
São Paulo: Martin Claret, 2001.)

Nessa perspectiva, a coerção


I. pode ser reconhecida através das sanções aplicadas caso
haja violação de determinado fato social.
II. traduz-se como uma reação direta da sociedade com
relação à moral, crenças, usos ou mesmo moda.
III. é um produto da vida comum, resultante das
consciências individuais, caracterizando-se como uma
realidade que não é imposta, mas que é constituída
naturalmente.

Em relação às afirmativas anteriores, está correto apenas o


que se afirma em
a) I e II.
b) I e III.
c) II.
d) III.
e) I.

Referências

Textuais
DURKHEIM, E. "O que é fato social?" In As regras do método sociológico. Trad. por Maria Isaura Pereira de Queiroz. 6. ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972. p. 1-4, 5, 8-11.
HERCULANO, Selene. Em busca da boa sociedade. Niterói/RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense (EDUFF), 2006.
PILETTI, N.; PRAXEDES, W. Sociologia da Educação. São Paulo: Ática, 2010.
RODRIGUES, J. A. Introdução: a Sociologia de Durkheim. In DURKHEIM, E. Sociologia. São Paulo: Ática, 1984.
TURA, M. L. R. Sociologia para educadores. 4. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2006.

Audiovisual
A Onda. Dir. Dennis Gansel. Alemanha: Christian Becker, Nina Maag e Anita Schneider, 2008. 107 minutos.
Max Weber e os estudos sobre religião,
4 autoridade e burocracia

Neste módulo, estudaremos as principais ideias de mesmo esquema lógico de prova, tanto nas
Max Weber (1864-1920), dentre as quais aquelas
relacionadas à sociologia da religião e aos fenômenos
da autoridade, da racionalização e da burocratização. Ao
final do módulo, vamos propor alguns exercícios sobre
esses temas.

1. Introdução
Max Weber, por pertencer a uma família alemã de
alta classe média, teve uma excelente educação
secundária e pôde desenvolver estudos superiores,
especialmente nas áreas de história, filosofia e
economia.
Depois de um colapso nervoso, abandonou o
exercício da docência na Universidade de Berlim e foi
trabalhar como editor de uma revista voltada aos
estudos sociológicos. Sua abordagem estava centrada
na extração do conteúdo simbólico das ações humanas,
ou seja, na captação da relação de sentido originada
nas interações sociais.
Ingimage / Fotoarena

Figura 1. Quando, em uma cerimônia de formatura, alguém recebe um canudo


de papel, há um significado e um sentido nesse canudo bem diferente do que
existiria em outras situações ou circunstâncias. Em outras palavras, os
diferentes contextos permitem atribuir diferentes sentidos às ações humanas.

Weber acreditava que as ciências sociais envolviam


métodos específicos quanto à objetividade e à
observação dos fatos, bem distintos daqueles utilizados
nas ciências naturais.

Contudo, Weber não pretende cavar um abismo


entre os dois grupos de ciências. Segundo ele, a
consideração de que os fenômenos obedecem a
uma regularidade causal envolve referência a um
ciências naturais quanto nas humanas. acredita serem dirigidas a ele, independente das
Entretanto, se a lógica da explicação causal é consequências possíveis da ação;
idêntica, o mesmo não se poderia dizer dos c) De forma afetiva: ação dirigida por afetos em
tipos de leis gerais a serem formulados para geral ou estados emocionais atuais;
cada um dos dois grupos de disciplinas
d) De modo tradicional: encontra-se no limite de
(TRAGTENBERG, 1997, p. 8).
uma ação orientada pelo sentido, pois acaba,
não raras vezes, sendo expressão de uma reação
A sociologia weberiana, chamada de sociologia surda a um estímulo habitual (WEBER, 1999
compreensiva, buscou analisar as manifestações apud OLIVEIRA, 2008, p. 4 ).
sociais concretas, ou seja, as ações sociais, que, nesse
sentido, seriam quaisquer ações realizadas pelo O método de análise compreensiva de Weber
indivíduo no seu contexto social, impregnadas de resultou na construção de tipos ideais. Note: o idealismo,
valores e sentidos. Para Weber, era possível identificar aqui, não está associado ao que se pretende definir
quatro tipos de ações sociais: como ótimo ou como meta, mas como uma
generalização tipológica que busca fazer um “recorte”
a) De modo racional referente a objetivos: do fenômeno social observado.
partindo de uma análise objetiva e
considerando possíveis consequências, o
O tipo ideal é um modelo conceitual, em outros
indivíduo utiliza racionalmente as expectativas
termos. Vejamos: caso queiramos analisar o sistema
e comporta- mentos dos objetos ou de
indivíduos do mundo exterior como meio para o político de um país, poderemos usar como parâmetro o
alcance de um objetivo próprio; grau de democracia ali existente. O modelo
democrático, portanto, construído por meio da
b) De modo racional referente a valores:
caracteriza uma ação na qual o agente age identificação das características mais frequentes e
segundo mandamentos ou exigências que comuns de governos tidos como democráticos, é um
tipo ideal.
Como explica Tragtenberg (1997, p. 8), existência de diferentes classes sociais e defendia o
conformismo do ser humano a essas condições “dadas”.
as leis sociais, para Weber, estabelecem relações Afinal, o feudalismo consa- grara a ideia de que os homens
causais em termos de regras de probabilidades, estavam destinados à vida que Deus lhes havia reservado,
segundo as quais determinados processos fosse como senhor feudal ou servo. O lucro e a usura eram
devem seguir-se, ou ocorrer simultaneamente, a
símbolos do pecado e da ganância: a vida eterna, após a
outros. Essas leis referem-se a construções de
“comportamento com sentido” e servem para
morte, reservaria o melhor para todos, não sendo necessário
explicar processos particulares. que todos alcançassem fortuna e riqueza na vida terrena.
A revolução comercial e a ascensão da burguesia haviam
O imenso conjunto de obras escritas por Weber tornado esses valores inadequados à nova realidade
inclui estudos de diferentes vertentes. Há os estudos econômica. Assim, a Reforma Protestante trouxe consigo a
relacionados à burocracia e à racionalização do trabalho, defesa de uma outra moral: o trabalho era meritório e poderia
há estudos sobre os tipos ideais e há outros servir de instrumento para a mobilidade social. O trabalho não
relacionados à sociologia das religiões. Esses são, afinal, era um castigo divino ao ser humano que havia sido expulso
os elementos presentes na sociedade do final do século do paraíso, mas uma forma de consagrar Deus. A piedade e
XIX e início do século XX, quando o capitalismo já havia a virtude poderiam ser reconhecidas em função das formas
se consagrado como modelo econômico e as como se usava a riqueza: em outras palavras, o fruto do
organizações empresariais alcançavam a maturidade em trabalho era sagrado; caso o dinheiro não fosse utilizado para
termos de seus processos e regras de funcionamento. sustentar o luxo e outros vícios, nada havia de errado na
conquista de dinheiro, o luxo e os vícios é que manchavam a
2. A sociologia da religião santidade do trabalho. A Reforma Protestante não somente
passou a defender o espírito do capitalismo, mas também
Weber constatou que a Reforma Protestante preconizou o ascetismo como forma de poupar recursos
havia introduzido na sociedade novos hábitos e valores.
Por um lado, havia rompido com a crença do mundo
católico existente àquele momento, mundo esse que
defendia a imobilidade social e o conformismo diante da
desigualdade social. Lembremos que a ética católica,
herança do Período Medieval, entendia como normal a
financeiros que poderiam, posteriormente, ser hierárquico no qual as congregações escolhiam seus
investidos em novos negócios. próprios pastores.

Lutero e Calvino haviam provocado uma Observação:


revolução no cristianismo. O ascetismo está relacionado à disciplina do corpo
Martinho Lutero (1483-1546), alemão, havia e do espírito. A parcimônia (a maneira econômica e
lutado contra o comércio de indulgências realizado simples de viver) requer uma vida humilde, sem
pela Igreja Católica, que vendia o perdão mediante luxos e sem gastos excessivos.
favores financeiros. Também havia se oposto à
autoridade papal, defendendo o fim do celibato, da Figura 2. Martinho Lutero foi um dos precursores do protes- tantismo.
excomunhão e do luxo religioso de Roma. Dentre as suas principais iniciativas, destaca-se a luta contra o comércio do
perdão realizado pela Igreja Católica daquele momento.
O francês João Calvino, por sua vez, havia
disseminado pela Europa uma vertente do
Ao estudar a situação econômica dos países mais
protestantismo que defendia hábitos
desenvolvidos, Weber identificou a existência de uma
extremamente austeros, inclusive os religiosos: o
relação muito clara entre desenvolvimento econômico e
calvinismo retirara a música dos ritos cristãos,
valores éticos e religiosos. Mais: ao final do século XIX e
abolira o Natal, eliminara quadros, vitrais e
início do XX, os países mais ricos eram aqueles
imagens das igrejas e estabelecera um sistema
alcançados pela Reforma Protestante. Segundo Weber, o efeito apontado. É bem verdade
esse fenômeno poderia ser explicado a partir dos novos que a maior participação relativa dos
Protestantes na propriedade do

David Keith Jones / Alamy / Fotoarena


costumes e da nova moral preconizados pelo
protestantismo, em especial o de Calvino. O
protestantismo pregava a poupança e a abstinência do
consumo: esses eram valores que aderiam à moral da
burguesia que buscava o sucesso por meio do
capitalismo comercial.
Em sua obra A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, Weber explicitou suas hipóteses e
conclusões a respeito das relações entre vida econômica
e valores religiosos.

Filiação religiosa e estratificação social

Uma simples olhada nas estatísticas ocupa-


cionais de qualquer país de composição religiosa
mista mostrará, com notável frequência, uma
situação que muitas vezes provocou discussões
na imprensa e literatura católicas e nos
congressos católicos, principalmente na capital, na direção e nas esferas
Alemanha: o fato que os homens de negócios e mais altas das modernas empresas
donos do capital, assim como os trabalhadores comerciais e industriais pode em
mais especializados e o pessoal mais habilitado parte ser explicada pelas
técnica e comercialmente das modernas circunstâncias históricas oriundas de
empresas é predominantemente protestante. um passado distante, nas quais a
Este fato não se verifica apenas onde a diferença filiação religiosa não poderia ser
de religião coincide com uma nacionalidade, e apontada como causa de condição
portanto com seu desenvolvimento cultural, econômica, mas até certo ponto
como no caso da Alemanha oriental e da Polônia. parece ser resultado daquela.
Observamos a mesma coisa onde se fez A participação nas funções
levantamentos de filiação religiosa, por onde econômicas envolve geralmente
quer que o capitalismo, na época de sua grande alguma posse de capital e uma
expansão, pôde alterar a distribuição social dispendiosa educação e, muitas
conforme suas necessidades e determinar a vezes, de ambas. Hoje tais coisas
estrutura ocupacional. são largamente dependentes da
Quanto maior foi a liberdade de ação, mais claro posse de riqueza herdada ou, no
mínimo, de certo bem-estar material. Certo Os resultados de tais circunstâncias favorecem
número dos domínios do velho império, que os protestantes, até hoje, na sua labuta pela
eram mais economicamente desenvolvidos, mais existência econômica. Surge assim a indagação
favorecidos pela situação e recursos naturais, histórica: por que os lugares de maior
particularmente a maioria das cidades mais ricas, desenvolvimento econômico foram, ao mesmo
aderiram ao Protestantismo no século XVI. tempo, particularmente propícios a uma
revolução dentro da Igreja? A resposta não é tão
simples como se poderia pensar.
A emancipação do tradicionalismo econômico
parece sem dúvida ser um fator que apoia
grandemente o surgimento da dúvida quanto à
santidade das tradições religiosas e de todas as
autoridades tradicionais. Devemos porém notar,
fato muitas vezes esquecido, que a Reforma não
implicou a eliminação do controle da Igreja sobre
a vida quotidiana, mas a substituição por uma
nova forma de controle. Significou de fato o
repúdio de um controle que era muito frouxo e,
na época, praticamente imperceptível, pouco
mais que formal, em favor de uma
regulamentação da conduta como um todo, que,
penetrando em todos os setores da vida pública
e privada, era infinitamente mais opressiva e
severamente imposta.
A regra da Igreja Católica, ”punindo o herege,
mas perdoando o pecador”, mais no passado
do que no presente, é hoje tolerada pelas
pessoas de caráter econômico completamente
moderno, e nasceu entre as camadas mais
ricas e economicamente mais avançadas do
mundo por volta do século XV. Por outro lado,
a regra do Calvinismo como foi imposta no
século XVI em Genebra e na Escócia, entre o
século XVI e XVII em grande parte da Holanda
e no século XVII na Nova Inglaterra e, por
algum tempo na própria Inglaterra, se tornaria
a forma mais intolerável de controle eclesiástico
do indivíduo que já pôde existir. E foi
exatamente isso que foi sentido por uma
grande parte da velha aristocracia comercial da
época de Genebra, da Holanda e da Inglaterra. E
a queixa dos reformadores, nestas regiões de
grande desenvolvimento econômico, não era o
excesso de controle da vida por parte da
Igreja, mas a sua falta.
Como, pois, aconteceu que os países mais
economicamente avançados da época, e suas
classes médias burguesas, não só não se
opuseram a esta tirania inédita do
Puritanismo, como chegaram a desenvolver
sua heroica defesa? A burguesia raramente
mostrara tal heroísmo antes e nunca o
mostrou depois. Foi o “nosso último
heroísmo”, como disse Carlyle não sem-razão.
Além disso há algo especialmente importante:
pode ser, como já foi aventado, que a maior
participação dos protestantes nas posições de
proprietário e de dirigente na moderna vida
econômica seja entendida hoje, pelo menos
em parte, simplesmente como resultado da maior
riqueza material herdada por eles. Contudo, há induzido seus seguidores a uma maior
certos fenômenos que não podem ser explicados indiferença para com as boas coisas deste
por esse caminho. Só para citar alguns, há uma mundo. E tal explicação reflete a tendência de
grande diferença perceptível, em Baden, na julgamento popular de ambas as religiões. Do
Baviera e na Hungria, no tipo de educação lado protestante, é usada como base das
superior que católicos e protestantes críticas de tais ideais ascéticos (reais ou
proporcionam a seus filhos. O fato de a imaginários) do modo de viver católico,
porcentagem de católicos entre os estudantes e enquanto os católicos respondem com a
os formados nas instituições de ensino superior acusação de que o materialismo resulta da
ser proporcionalmente inferior à população total secularização de todos os ideais pelo
pode, certamente, ser largamente explicado em protestantismo (WEBER, 1985, p. 12/14).
termos de riqueza herdada. Porém, entre os
próprios formados católicos, a porcentagem dos
que receberam formação em instituições que
preparam especialmente para os estudos
técnicos e ocupações comerciais e industriais, e ? Saiba
em geral para a vida de negócios de classe mais
média, é muito inferior à dos protestantes. Por Sugerimos que você assista ao filme Lutero (direção de
sua vez, os católicos preferem o tipo de Eric Till. Alemanha/Estados Unidos, 2003. 120 minutos),
aprendizagem oferecido pelos ginásios obra que narra a vida e os conflitos vividos por Martinho
humanísticos. Essa é uma circunstância à qual Lutero.
não se aplica a explicação acima apontada, mas Também recomendamos o filme Elizabeth (direção de
que, ao contrário, é uma das razões do pequeno
Shekhar Kapur. Reino Unido, 1998, 124 minutos), que
engajamento dos católicos nas empresas
narra os conflitos entre os anglicanos e católicos na
capitalistas.
Inglaterra do século XVI.
Mais notável ainda é um fato que explica
parcialmente a menor proporção de católicos
entre os trabalhadores especializados na
moderna indústria. Sabe-se que as fábricas
arregimentaram boa parte de sua mão de obra 3. A racionalidade
especializada entre os jovens artesãos; contudo,
isso é muito mais verdadeiro para os diaristas e a burocracia
protestantes que para os católicos.
Em outras palavras, entre os diaristas católicos Para Max Weber, o capitalismo exigia instituições
parece preponderar uma forte tendência a organizadas, que funcionassem de acordo com critérios
permanecer em suas oficinas, e tornar com racionais de precisão e de eficácia. Para poder crescer,
frequência mestres artesãos, enquanto os as empresas precisavam funcionar de forma a reduzir
protestantes são fortemente atraídos para as
custos e aumentar lucros; isto só poderia acontecer
fábricas, para nelas ocuparem cargos superiores
caso elas operassem dentro de padrões extremamente
de mão de obra especializada e posições
administrativas.` rigorosos e estritos, a partir dos quais todos saberiam o
A explicação desses casos é, sem dúvida, que as que fazer e como fazer. A especialização e a burocracia
peculiaridades mentais e espirituais adquiridas eram, portanto, condições necessárias para o desen-
do meio ambiente, especialmente do tipo de volvimento capitalista.
educação favorecido pela atmosfera religiosa da A especialização resultaria da fragmentação do
família e do lar, determinaram a escolha da trabalho e da repetição mecânica de etapas dos
ocupação e, por isso, da carreira.
processos de produção ou de administração. Por sua
[...]
vez, a burocracia ordenaria as relações sociais.
Nossa tarefa será investigar essas religiões com
o intuito de descobrir as particularidades que Especialização e burocracia seriam responsáveis pelo
têm ou que tiveram, que resultaram no compor- fortalecimento de um mundo onde a importância das
tamento descrito acima. Numa análise super- relações humanas seria secundária, como também seria
ficial, e com base em certas impressões secundária a satisfação pessoal e existencial. Assim,
comuns, poderíamos ser tentados a admitir que Weber colocou em evidência como o crescente
a menor mundanidade do catolicismo, o caráter processo de racionalização da vida social conduziria à
ascético de seus mais altos ideais tenha
burocratização e ao desencantamento do mundo.
normatizadas. A

Ingimage / Fotoarena?

Figura 3. O ser humano, ao longo do tempo, foi se afastando


das tradições e das crenças místicas. Assim, simultaneamente à
crescente racionalização do trabalho e da organização social, houve
um esgarçamento do sentido mágico até então atribuído ao
mundo.

Para Weber, existiam duas formas de racionalidade:


a formal, associada aos procedimentos do sistema
jurídico e econômico e à organização dos aparelhos
institucionais; a substantiva, que não era voltada para
fins, ou seja, que levava em consideração o contexto
social e era racional em relação aos valores que
orientavam esse contexto. Mas, por que a racionalização
havia conduzido a sociedade moderna à burocratização?
A base deste raciocínio estava na questão da autoridade
que, para Weber, poderia se manifestar a partir de três
formas:
a) a autoridade tradicional, apoiada em tradições e
costumes (como, por exemplo, o papel dos
homens nos modelos patriarcais ou das mulheres
nos modelos matriarcais);
b) a autoridade carismática, apoiada nas caracterís-
ticas físicas ou de personalidade de líderes;
c) a autoridade racional-legal, apoiada em regras e
regulamentos, todos reconhecidos e aceitos pelo
grupo.

O processo de racionalização que ocorreu na


história do Ocidente, segundo Weber, poderia ser
atribuído a uma mudança na conduta dos indivíduos,
que aos poucos deixavam de agir em função dos
costumes, da tradição, do impulso ou de princípios
éticos, morais e religiosos. O capitalismo exigia
racionalidade, e isso só seria possível com a submissão
do grupo à organização rígida e aos critérios lógicos por
ela estabelecidos, em suma, com a submissão à
autoridade racional-legal.
Weber associou a burocratização ao processo de
desenvolvimento do capitalismo, pois o sistema ganhou
impulso quando passaram a predominar as ações do
tipo racional com relação aos fins, ou seja, a
produtividade e o lucro. Hierarquia, atribuições e
funções seriam normatizadas a partir de critérios
racionais. As pessoas seriam selecionadas segundo
esses critérios e desempenhariam funções rigidamente
estrutura administrativa submeteria todos a uma quais podem dispor os funcionários. 3. O cumpri-
cadeia de autoridade e de comando na qual a mento normal e continuado desses deveres,
criatividade, a originalidade e a livre-iniciativa seriam bem como o exercício dos direitos corres-
pondentes, é assegurado por um sistema de
erradicadas.
normas; somente podem prestar serviços
Não apenas as empresas, mas também os Estados
aquelas pessoas que, segundo as regras gerais,
modernos funcionariam de maneira burocrática. A
estão qualificadas para tanto.
burocracia seria, então, uma forma de dominação
Estes três elementos constituem, no governo
legítima, à qual todos teriam que se subordinar e
público e legal, a “autoridade burocrática”. No
obedecer. No entanto, há que se considerar: se por
âmbito econômico privado fazem parte da
um lado a burocracia evitava arbitrariedades, por outro “administração” burocrática. Tal como a descre-
impunha sua autoridade de forma a não deixar espaço vemos, a burocracia somente está totalmente
para questionamentos. Veja, abaixo, trechos da obra desenvolvida nas comunidades políticas e
de Weber na qual ele explica os fundamentos da eclesiásticas do Estado moderno; no caso da
burocracia moderna. economia privada somente o está nas
instituições capitalistas mais avançadas. Uma
A burocracia moderna opera do seguinte autoridade burocrática perdurável e pública,
modo específico: jurisdicionalmente determinada, constitui
I. 1. Existe o princípio de setores jurisdicionais normalmente uma exceção e não uma regra
estáveis e oficiais organizados, em geral, histórica. Isto é válido ainda em grandes
normativamente, ou seja, mediante leis ou formações políticas, tais como as do antigo
ordenamentos administrativos. As atividades Oriente, os impérios conquistadores germano e
normais exigidas pelos objetivos da estrutura mongólico, bem como a maioria das formações
governada burocraticamente dividem-se de feudais de Estado. Em todos estes casos, o
forma estável como deveres oficiais. 2. A governante executa as disposições mais
autoridade que dá as ordens necessárias importantes mediante administradores pessoais,
para a alternância desses deveres é distribuída colegas de mesa e cortesãos. As comissões e
de forma estável e rigorosamente delimitada autoridade destes não estão delimitadas com
por normas referentes aos meios coativos, precisão, mas se estabelecem de forma
físicos, sacerdotais ou de outra espécie, dos temporária e para cada caso.

II. Os princípios de hierarquia de cargos e de funda-se em documentos escritos (“arquivos”) que serão
diversos níveis de autoridade implicam um conservados de forma original ou como projetos. Existe,
sistema de subordinação ferreamente assim, um pessoal de subalternos e escribas de toda
organizado, onde os funcionários superiores classe. O conjunto dos funcionários “públicos” estáveis,
controlam os funcionários inferiores. Este bem como o correspondente aparato de instrumentos e
sistema permite que os governados possam arquivos, integram uma “repartição”; isto é o que na
apelar, mediante procedimentos preestabe- empresa privada chama-se “escritório”. A organização
lecidos, a decisão de uma repartição inferior moderna do serviço civil separa, em princípio, a
à sua autoridade superior. Um alto desen- repartição do domicílio privado do funcionário e,
volvimento do tipo burocrático leva a uma geralmente, a burocracia considera a atividade oficial como
organização monocrática da hierarquia de um âmbito independente da vida privada. Os fundos e
cargos. O princípio de autoridade hierárquica equipamentos públicos estão separados da propriedade
de cargos dá-se em qualquer estrutura privada do funcionário: este fator condicionante é, em
burocrática: nas estruturas estatais e eclesiás- todos os casos, o resultado de um longo processo.
ticas, nas grandes organizações partidárias e nas Atualmente, dá-se tanto nas empresas públicas quanto nas
empresas privadas. Carece de importância para privadas; nas privadas, o princípio atinge, inclusive, o
a índole da burocracia que a sua autoridade seja empresário principal. O escritório do executivo está, em
considerada “privada” ou “pública”. A plena princípio, separado do lar, e também o estão a
realização do princípio de “competência” correspondência de negócios da privada e o capital do
jurisdicional na subordinação hierárquica não negócio das fortunas particulares. Estas separações são tão
implica – pelo menos nos cargos públicos – que sólidas quanto mais arraigadas se encontra a prática do
a autoridade “superior” esteja simplesmente tipo de administração empresarial moderna.
autorizada a cuidar dos assuntos da “inferior”. O [...]
normal é, na realidade, o contrário. Uma vez
criado e depois de ter cumprido a sua missão,
um cargo tende a continuar existindo e a ser
desempenhado por outro titular.
III. A administração do cargo moderno
IV. Administrar um cargo, e
administrá-lo de forma especializada,
implica, geralmente, uma preparação
cabal e experta. Isto exige-se cada vez
mais do executivo moderno e do
empregado das empresas privadas,
bem como exige-se do funcionário
público.
V. Se o cargo está em pleno
desenvolvimento, a atividade do
funcionário requer toda a sua
capacidade de trabalho, além do
fato de que a sua jornada
obrigatória no escritório está
estritamente fixada. Normalmente,
isto é somente produto de uma
prolongada evolução, tanto nos
cargos públicos quanto nos privados.
Anteriormente, em todas as situações,
o normal era o contrário: as tarefas
burocráticas consideravam-se uma
atividade secundária.
VI. A administração do cargo ajusta-se
a normas gerais, mais ou menos
estáveis, mais ou menos precisas, e
que podem ser aprendidas. O
conhecimento destas normas é um
saber técnico particular que o
funcionário possui. Envolve a
jurisprudência, ou a administração
pública ou de empresas. A natureza
em si da administração moderna
de um cargo requer o ajuste a normas.
Por exemplo, a teoria da administração
pública moderna supõe que a
autoridade, para dispor certos
assuntos por decreto – legalmente
concedida às autoridades públicas –
não lhe dá à repartição direito algum
para regular a questão por meio de
ordens dadas para cada caso, mas
Ingimage / Fotoarena
somente para regulá-la de forma
geral (WEBER, 2012, p. 9-12).

Figura 4. Segundo Weber (2012, p. 28), “ainda que o


desenvolvimento avançado de uma economia monetária não
seja um requisito indispensável para a burocratização, a
burocracia como estrutura permanente está ligada à pressuposta
existência de certas receitas constantes que permitam a sua
sustentação”, tais como aquelas advindas da cobrança de
impostos.
? Saiba
mais
Sugerimos que você assista ao filme Eu, Daniel Blake (direção de Ken Loach, Reino Unido/França/Bélgica, 2017, 101
minutos), que narra a trajetória de um homem de meia-idade que não consegue transpor as barreiras da burocracia para receber
o seguro-desemprego.

Exercícios Propostos

➊ A crescente intelectualização e racionali- Assinale a alternativa correta.


zação não indicam um conhecimento maior a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
e geral das condições sob as quais b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
vivemos.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
Significa a crença em que, se quiséssemos, poderíamos ter
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
esse conhecimento a qualquer momento. Não há forças
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
misteriosas incalculáveis; podemos dominar todas as coisas
pelo cálculo. RESOLUÇÃO:
A cidade moderna surge enquanto forma de organização do capitalismo.
Tal como apresentada no texto, a proposição de Max Weber a É a partir do aparato burocrático e administrativo da cidade que as
relações de poder e de dominação entre o Estado e a sociedade estão
respeito do processo de desencantamento do mundo materializadas. Weber não desenvolveu qualquer teoria a respeito da
evidencia o(a) inevitabilidade histórica.
a) progresso civilizatório como decorrência da expansão do Resposta: E.
industrialismo.
b) extinção do pensamento mítico como um desdobramento
do capitalismo.
c) emancipação como consequência do processo de
Ⓢ O impulso para o ganho, a perseguição do lucro,
racionalização da vida. do dinheiro, da maior quantidade possível de
d) afastamento de crenças tradicionais como uma dinheiro não tem, em si mesma,
característica da modernidade. nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu.
e) fim do monoteísmo como condição para a consolidação da Pode-se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humanas
ciência. em todos os tempos e em todos os países, sempre que se tenha
apresentada a possibilidade objetiva para tanto. O capitalismo, porém,
identifica-se com a busca do lucro, do lucro sempre renovado por
Ⓢ (UEL, com modificações) – Weber compreende a cidade meio da empresa permanente, capitalista e racional. Pois assim deve ser:
como uma expressão tipicamente ligada à racionalidade numa ordem completamente capitalista da sociedade, uma empresa
ocidental. Com base nos conhecimentos da sociologia individual que não tirasse vantagem das oportunidades de obter lucros
weberiana sobre a racionalidade ocidental, considere as
estaria condenada à extinção.
afirmativas a seguir.
(M. Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São
Paulo: Martin Claret, 2001. Adaptado.)
I. A compreensão da cidade ocidental moderna é possível
quando se considera a teoria weberiana da inevitabilidade
O capitalismo moderno, segundo Max Weber, apresenta como
histórica.
característica fundamental a
II. A existência do capitalismo como sociedade específica do
a) competitividade decorrente da acumulação de capital.
mundo ocidental moderno explica o surgimento das
b) implementação da flexibilidade produtiva e comercial.
cidades.
c) ação calculada e planejada para obter rentabilidade.
III. A explicação da cidade no Ocidente exige
d) socialização das condições de produção.
compreender a existência de diferentes formas do poder e
e) mercantilização da força de trabalho.
da dominação.
IV.Um dos traços fundamentais da cidade no Ocidente é a
constituição de um corpo burocrático administrativo
regular.
➍ (UNISC) – Leia atentamente o texto e responda à questão burocracia era o sistema de utilização de energias para
assinalando uma das alternativas abaixo. a execução de tarefas específicas. O membro de uma
burocracia “é apenas uma peça em um mecanismo
Max Weber frequentemente utilizou a imagem móvel que lhe prescreve uma marcha essencialmente
da máquina na análise da natureza da organização fixa”. A burocracia, em comum com a máquina,
burocrática. Tal como uma máquina, a poderia ser posta a serviço de muitas questões
diferentes. Mais ainda, uma organização c) os funcionários burocráticos podem se expressar
burocrática funciona tão eficientemente a ponto livremente, desde que dentro de regras prescritas de forma
de seus membros serem “desumanizados”: a impessoal e calculada.
burocracia “desenvolvida mais perfeitamente... d) a burocracia é um sistema arcaico que deve ser superado
mais completamente tem sucesso em eliminar por outros processos de administração do trabalho típicos
das atribuições dos funcionários amor, ódio e da modernidade.
todos os elementos puramente pessoais, e) nenhuma das alternativas acima pode ser afirmada
irracionais e emocionais que escapem ao corretamente sobre o conceito de burocracia.
cálculo”. [...] O avanço da burocracia aprisionava
as pessoas na Gehäuse der Hörigkeit, a “jaula de
ferro” da divisão especializada do trabalho da
qual dependia a administração da ordem social e
econômica moderna [...].
(Anthony Giddens. Política, sociologia e teoria social:
encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 58-59.
Adaptado.)

Segundo o texto acima, sobre o conceito de burocracia de Max


Weber, é correto afirmar que
a) a burocracia é um sistema eficiente de organização do
trabalho somente quando é aplicado em poucas
questões específicas.
b) a burocracia consiste em um sistema de divisão
especializada do trabalho que busca a eficiência a partir de
atribuições impessoais, racionais e calculadas impostas aos
seus funcionários.

Referências

Textuais
OLIVEIRA, Carla M. Método e Sociologia em Weber: alguns conceitos fundamentais. Revista Eletrônica Inter-Legere, Rio Grande do
Norte, n. 3, 2008. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/18501>. Acesso em: 20 dez. 2019.
TRAGTENBERG, Maurício. Apresentação. In WEBER, Max. Textos selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 4. ed. São Paulo: Pioneira, 1985.
. Textos selecionados. Traduções de Maurício Tragtenberg, Waltensir Dutra, Calógeras A. Pajuaba, M. Irene de Q. F.
Szmrecsányi, Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
. O que é a Burocracia. Brasília: Conselho Federal de Administração, 2012.

Audiovisuais
ELIZABETH. Direção: Shekhar Kapur. Reino Unido, 1998, 124 minutos.
EU, Daniel Blake. Direção: Ken Loach. Reino Unido/França/Bélgica, 2017, 101 minutos.
LUTERO. Direção: Eric Till. Alemanha/Estados Unidos, 2003, 120 minutos.
Cultura
5

Neste módulo, estudaremos várias questões Entendemos neste caso que a cultura diz
relacionadas à cultura. Veremos as várias formas de respeito a uma esfera, a um domínio, da vida
conceituá-la, investigaremos seu caráter dinâmico e social (SANTOS, 1987, p. 21).
discutiremos algumas ideias enviesadas que costumam
impregnar os debates sobre a cultura. Ao final do Não faz o menor sentido hierarquizar culturas em
módulo, proporemos alguns exercícios. termos de qualquer escala evolutiva: não há culturas
melhores do que outras, não há culturas mais
1. Introdução avançadas que outras. Cada cultura deve ser julgada a
partir de seus próprios critérios, e não é legítimo
Segundo Santos (1987), a cultura é o conjunto de traçarmos uma linha que suponha o “avanço” de uma
modos a partir dos quais uma sociedade se organiza, ou cultura no tempo ou em função de localização geográfica
seja, a cultura reúne as formas que a sociedade escolhe da sociedade que a construiu.
para viver, habitar, vestir, trabalhar, comer e criar Claro está que esta é uma moderna contemporânea
filhos, entre outros aspectos. Evidentemente, essas de investigar a questão. No século XIX, até mesmo por
formas são construídas ao longo do tempo, e resultam conta das políticas imperialistas, tornou-se comum tratar
da história de cada sociedade e das maneiras como ela os nativos das colônias como selvagens. O europeu
enfrenta e se relaciona com as condições materiais de bran- co representava a cultura a ser apreendida pelos
sua existência. Assim, “o estudo da cultura contribui no nativos, e a inferioridade cultural destes era, inclusive,
combate a preconceitos, oferecendo uma plataforma uma das justificativas para a sua submissão às nações
firme para o respeito e a dignidade nas relações europeias.
humanas” (Santos, 1987, p. 8).
Não foi difícil perceber nessa concepção de
Há duas formas de definirmos cultura. A primeira
evolução por estágios uma visão europeia da
concebe a cultura como conjunto formado por todos
humanidade, uma visão que utilizava concepções
os aspectos referentes à realidade social, ou seja, europeias para construir a escala evolutiva, e
envolve múltiplos aspectos da vida social, tais como que além do mais servia aos propósitos de
tradições, ritos, vestimentas, hábitos nutricionais e legitimar o processo que se vivia de expansão e
manifestações culturais (música, artes, teatro). A consolidação do domínio dos principais países
segunda forma trata mais especificamente das ideias e capitalistas sobre os povos do mundo. As
crenças, do conhecimento de determinada sociedade. concepções de evolução linear foram atacadas
Cultura, nesse sentido, está associada ao arsenal de com a ideia de que cada cultura tem sua própria
saberes de uma comunidade. verdade e que a classificação dessas culturas em
escalas hierarquizadas era impossível, dada a
multiplicidade de critérios culturais (SANTOS,
A primeira dessas concepções preocupa-se
1987, p. 12).
com todos os aspectos de uma realidade
social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo
que caracteriza a existência social de um povo
Marcos Amend / Pulsar Imagens

ou nação, ou então de grupos no interior de


uma sociedade. [...] [No segundo caso],
quando falamos em cultura estamos nos
referindo mais especificamente ao
conhecimento, às ideias e crenças, assim
como às maneiras como eles existem na vida
social. Observem que mesmo aqui a referência
à totalidade de características de uma realidade
social está presente, já que não se pode falar
em conhecimento, ideias, crenças sem pensar
na sociedade à qual se referem. O que ocorre
é que há uma ênfase especial no Figura 1. A concepção de uma escala evolutiva a ser aplicada junto às
conhecimento e dimensões associadas. diferentes culturas sempre esteve, do ponto de vista histórico, associada ao
preconceito e à discriminação racial (SANTOS, 1987).
viajarmos do sul ao norte do Brasil, encontraremos

? Saiba diferentes expressões culturais, todas elas legítimas e


construídas em função de distintos processos de
mais formação econômica e social.
Sugerimos que você assista ao filme Inimigo meu (direção
de Wolfgang Petersen, 1985), que narra a história fictícia A sociedade nacional tem classes e grupos
das relações entre um soldado e um alienígena (Dennis sociais, tem regiões de características bem
Quaid e Louis Gossett Jr.), que acabam por se perder em diferentes; a população difere ainda
um planeta deserto. Embora inimigos de guerra, e de internamente segundo, por exemplo, suas faixas
culturas completamente distintas, eles acabam se tornando de idade, ou segundo seu grau de
grandes amigos. A narrativa está centrada no conflito e no escolarização. Além disso, a população nacional
choque entre diferentes culturas. foi constituída com contingentes originários de
várias partes do mundo. Tudo isso se reflete no
plano cultural (SANTOS, 1987, p. 16).

As culturas são percebidas a partir do ponto de para dar um exemplo. Assim, se

Rubens Chaves / Pulsar Imagens


vista do observador, e esta perspectiva também é fruto
de uma herança cultural. Olhamos o mundo a partir das
lentes que forjamos ao longo de nossa vida, lentes estas
que são resultado de tudo que aprendemos e
desenvolvemos a partir das nossas relações sociais.
Dessa forma, quando estamos diante de uma
manifestação cultural que nos é estranha, é comum que
a julguemos a partir da nossa cultura. Este
comportamento pode nos impedir de apreender essa
manifestação cultural de forma isenta de vícios e
opiniões preconcebidas. Assim, é importante que as
culturas – em especial aquelas que são diferentes das
nossas – sejam tratadas e percebidas de forma
totalmente livre do etnocentrismo, quer dizer, do
julgamento do outro a partir de sua própria experiência
e da sua própria cultura.

Observação:
O etnocentrismo diz respeito à visão da sua própria
etnia como superior às demais.

Vejamos um exemplo: caso visitemos uma aldeia de


índios no interior do norte do Brasil, podemos
estabelecer juízos de valor a respeito das formas a partir
dos quais eles vivem. Eles não usam dinheiro? Eles não
sentem faltam da televisão? Os filhos não vão para a
escola aprender matemática? Um desavisado poderia
até dizer: são incultos, atrasados em relação à nossa
cultura. No entanto, essa é uma maneira muito rasa de
compreender a cultura do outro, em especial se ela é
diferente da nossa: nem atrasados, tampouco incultos.
Eles são apenas diferentes, e estabeleceram suas
formas de organizar a família, de comer e de
celebrar tradições segundo um contexto histórico e
social distinto do nosso. Percebemos essas diferenças
culturais dentro de uma própria sociedade. Do ponto
de vista cultural, há diversidade dentro de uma
mesma sociedade, ou por conta de fatores
religiosos, ou por conta de fatores históricos, apenas
escala de importância?
A nossa história recente está repleta de momentos
horríveis nos quais determinadas culturas agiram como
se fossem superiores ou melhores do que as outras.
Falemos de dois exemplos distintos, e igualmente
marcantes:
a) O genocídio judaico durante a Segunda Guerra
Mundial
O programa de extermínio de povos e pessoas
indesejáveis pela Alemanha teve início logo nos
primeiros anos do governo de Adolfo Hitler, quando foi
tomada a decisão de eliminar pessoas incapacitadas ou
Figura 2. Uma sociedade não é homogênea do ponto de vista com necessidades especiais. Aqueles eram indivíduos
cultural. Assim, dentro de uma mesma sociedade, encontra- mos que deveriam ser sacrificados para que a pureza da
diversidade cultural. linhagem ariana não fosse comprometida e, por conta
desse mesmo raciocínio, ciganos, homossexuais e
Nesses termos, é possível falarmos de uma judeus foram caçados e enviados para campos de
cultura mais avançada que outra? Faz sentido extermínio nazistas. Esses matadouros, instalados nos
compararmos modos de vida totalmente distintos, territórios ocupados da Europa Oriental e Ocidental,
buscando compa- rá-los de acordo com alguma foram o destino final de milhões de pessoas, em sua
maioria de origem judaica.
A estratégia de matança fazia parte da política de ocupantes de cargos públicos, resolveram eliminar a
conquista territorial promovida pelos nazistas, e a etnia adversária, os tsutis, promovendo um verdadeiro
matança em massa de pessoas em câmaras de gás ou massacre. É possível que tal estratégia tivesse a
fuzilamento, todas “inimigas” do regime, mostrou até intenção de desunir os ruandenses e facilitar a
que ponto Hitler estava disposto a realizar uma limpeza colonização belga. A matança só foi interrompida com a
étnica na Europa. intervenção de forças da ONU.
O julgamento dos nazistas em Nuremberg, após o
final da Segunda Guerra Mundial, tornou público os
milhões de assassinatos promovidos pelo regime de
Hitler. Estes crimes, em função da sua extensão e
? Saiba
quantidade, transformaram-se em exemplos dos
2. O relativismo
mais cultural e a
Sugerimos que você assista ao filme Hotel Ruanda (2004),
extremos que uma política racista, xenofóbica e cultura como fator de
que narra os conflitos étnicos entre hutus e tutsis, em
etnocêntrica pode alcançar.
identificação nacional
Ruanda, em 1994.

Observação: O relativismo cultural, esta perspectiva livre do


A xenofobia é a manifestação de aversão ou ódio preconceito, também pode, caso seja levado ao
contra estrangeiros. extremo, acabar ignorando o que há de concreto e
objetivo no processo de formação cultural. Assim, não
se trata apenas de relativizar, mas de compreender os
b) O conflito entre tsutis e hutus em Ruanda, em
aspectos históricos, econômicos e sociais que fizeram
1994
emergir determinadas formas de cultura.
Entre 7 de abril e 15 de julho de 1994, aproxima-
damente 70% dos tsutis foram massacrados pelos
hutus, em Ruanda: alguns cálculos mencionam quase
um milhão de mortos em apenas quatro meses de
conflito.
País africano colonizado pela Bélgica, Ruanda teve
suas fronteiras delimitadas de forma a colocar num
mesmo país duas etnias inimigas. Os hutus, em geral

? Saiba mais
tty Images
Sugerimos que você assista ao filme Hannah Arendt – Ideias que
chocaram o mundo (2012), que narra a cobertura jornalística feita
pela filósofa Hannah Arent do julgamento do nazista Adolf
Eichmann. Arendt, sobrevivente da perseguição nazista, e já
àquele tempo filósofa de renome, foi convidada por uma revista
norte-americana para fazer a cobertura do julgamento de um
dos mais conhecidos colaboradores do nazismo. Eichmann havia
escapado dos julgamentos de Nurembert (série de julgamentos
realizados pelos países vitoriosos da Segunda Guerra Mundial,
que buscaram culpabilizar e punir os criminosos de guerra
nazistas); oficial de segundo escalão das SS (forças especiais do Figura 3. O nazismo foi a ideologia que orientou a ação da
regime nazista), ele atuou na organização e na execução do Alemanha ao tempo de Adolf Hitler. Fortemente
transporte dos judeus de toda a Europa para os campos de marcado pelo anticomunismo, pelo antissemitismo e pelo
autoritarismo, o regime nazista defendeu a guerra como
extermínio. Após o final da guerra, Eichmann escondeu-se na forma de expandir os territórios alemães e escravizar os
Argentina; em 1961, foi capturado por agentes secretos povos conquistados.
israelenses; julgado e condenado à morte em Israel, foi
enforcado em 1962.
normas, regras e leis.
Alexandre Tokitaka / Pulsar Imagens

Entre a desordem carnavalesca, que


permite e estimula o excesso, e a ordem,
que requer a continência e a disciplina
pela obediência estrita às leis, como é
que nós, brasileiros, ficamos? Qual a
nossa relação e a nossa atitude para com
e diante de uma lei universal que
teoricamente deve valer para todos?
Como procedemos diante da norma
geral, se fomos criados numa casa onde,
desde a mais tenra idade, aprendemos
Figura 4. O carnaval, em suas mais diversas expressões regionais, é
uma marca bem significativa da cultura brasileira.
que há sempre um modo de satisfazer
nossas vontades e desejos, mesmo que
isso vá de encontro às normas do bom
É necessário esclarecer, entretanto, que apesar senso e da coletividade em geral?
[...]
das diferenças regionais, apesar dos inúmeros e
De fato, como é que reagimos diante
diferentes grupos que compõem uma mesma
de um “proibido estacionar”, “proibido
sociedade, é possível falarmos dos traços culturais
fumar”, ou
que mais caracterizam um povo. De fato, as relações
entre a cultura dominante e outras culturas existentes
no país cria a percepção de nação: pertence à nação
todos aqueles que compartilham determinados
valores, tradições e crenças. Nesse sentido, e talvez
apenas nesse, faça sentido fazermos referência à
"nação brasileira", ou seja, àqueles hábitos, valores e
comportamentos que constroem o que entendemos
como brasileiro, especificamente nosso, que nos
identifica e nos diferencia como povo.
Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro, dedicou-se
a investigar a cultura brasileira a partir de um olhar
sociológico. Dentre os seus livros, destaca-se O que faz o
Brasil, Brasil, obra em que ele busca identificar as
manifestações culturais que formam a nossa identidade.
Abaixo, você poderá ler um trecho da obra de DaMatta;
nesta, o autor analisa o famoso "jeitinho" brasileiro, ou
seja, ele investiga as formas pelas quais os brasileiros
buscam e legitimam soluções independentemente das
diante de uma fila quilométrica? Como é que se faz um servidor público que é uma autoridade e dela
diante de um requerimento que está sempre errado? Ou está imbuído. A autoridade não sabe quem é a
diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma pessoa que chegou e nem quer saber. Essa
multa automática que não foi divulgada de modo distinção entre a humildade de quem chega e a
apropriado pela autoridade pública? Ou de uma taxação superioridade de quem está protegido pelo
injusta e abusiva que o Governo novamente decidiu balcão da instituição é, aliás, um elemento forte
instituir de modo drástico e sem consulta? na hierarquização das posições sociais. Pois bem,
[...] o humilde cidadão chega e pede o que deseja...
O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. Mas que 2.o Ato: o funcionário custa a atender a
modo é esse? É lógico que ele indica algo importante. É, solicitação. Diz que não pode ser assim e ainda
sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano complica mais as coisas, indicando as
de relacionar o impessoal com o pessoal; nos casos — confusões do solicitante e as penalidades legais
ou no caso — de permitir juntar um problema pessoal a que poderá estar sujeito. Cria-se, então, um
(atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis por falta de impasse. Diante de um usuário honesto, há a
divulgação, confusão legal, ambiguidade do texto da lei, opinião do funcionário que representa a lei e,
má vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça por isso mesmo, não enxerga qualquer razão
da própria lei, feita para uma dada situação, mas pessoal ou humana para tratar o solicitante de
aplicada universalmente etc.) com um problema modo agradável. De fato, a lei, e o fato de ele
impessoal. Em geral, o jeito é um modo pacífico e até ser o seu representante, cega-o completamente
mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando para essas razões humanitárias que decerto
essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa estabeleceriam e seriam parte e parcela de uma
que a está utilizando O processo é simples e até mesmo concepção de cidadania positiva, isto é, uma
tocante. Consta de um drama em três atos que todos cidadania na qual os indivíduos têm os seus
conhecem: direitos assegurados e respeitados em todas as
1.o Ato: uma pessoa que não é vista por ninguém, situações. Nessa situação, o solicitante não é
ignorada em razão de sua aparência e modo de nada. É apenas um indivíduo qualquer que,
apresentação, chega a um local para ser atendida por como um número, um caso complicado, um
estorvo ou um requerimento, solicita algo.
Temos aqui um alguém que é ninguém. Ele, documentos que normalmente implicam as
obviamente, representa o humano e o pessoal confusões que mencionei linhas antes, ao
numa situação impessoal e geral... descrever detalhadamente o “jeitinho”. O
3.o Ato: diante do impasse — pois o funcionário despachante, como figura sociológica, só pode ser
diz que não pode e o cidadão deseja resolver o visto em sua enorme importância quando
seu caso —, há a solução que denuncia e ajuda novamente nos damos conta dessa enorme
a ver o mapa de navegação social. Nos países dificuldade brasileira de juntar a lei com a
igualitários, não há muita discussão: ou se pode realidade social diária. Assim, o despachante
fazer ou não se pode. No Brasil, porém, entre o parece mais um padrinho. Tal como o padrinho,
“pode” e o “não pode”, encontramos um ele é um mediador entre a lei e uma pessoa. Do
“jeito”. Na forma clássica do “jeitinho”, solicita-se mesmo modo que um patrão deve dar emprego e
precisamente isso: um jeitinho que possa boas condições de trabalho a seus empregados, o
conciliar todos os interesses, criando uma despachante deve guiar seus clientes pelos
relação aceitável entre o solicitante, o estreitos e perigosos meandros das repartições
funcionário-autoridade e a lei universal. oficiais, fazendo com que sigam o caminho certo.
[...] Só que o despachante é um padrinho para baixo.
A malandragem, como outro nome para a forma Digo para baixo porque as classes média e alta do
de navegação social nacional, faz Brasil têm verdadeira aversão a tudo que a faça
precisamente o mesmo. O malandro, portanto, sentir-se como pessoa comum, indivíduo sujeito a
seria um profissional do “jeitinho” e da arte de rejeições e desagradáveis encontros com
sobreviver nas situações mais difíceis. Aqui, autoridades sem o menor traço de boa vontade.
também, temos esse relacionamento complexo e Assim, se não se tem um amigo ou uma relação
criativo entre o talento pessoal e as leis que que possa imediatamente facultar o “jeitinho”,
engendram — no caso da malandragem — o contrata-se um despachante, que realiza
uso de “expedientes”, de “histórias” e de precisamente essa tarefa. Por tudo isso, não há
“contos do vigário”, artifícios pessoais que nada no Brasil quem não
mais são que modos engenhosos de tirar partido
de certas situações. [...]
Do lado do malandro, e como o seu oposto
social, temos a figura do despachante, esse
especialista em entrar em contato com as
repartições oficiais para a obtenção de
conheça a malandragem, que não é só um tipo encontram qualquer respaldo na ciência. No entanto, de
de ação concreta situada entre a lei e a plena forma às vezes bastante dissimulada, esses argumentos
desonestidade, mas também, e sobretudo, é ainda são utilizados para justificar o preconceito étnico.
uma possibilidade de proceder socialmente, um
Vejamos, então, como combatê-los.
modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens
O determinismo biológico diz que atributos
absurdas, uma forma ou estilo de conciliar
ordens impossíveis de serem cumpridas com genéticos podem explicar o melhor ou o pior
situações específicas, e — também — um modo desempenho de indivíduos nas mais diversas áreas; por
ambíguo de burlar as leis e as normas sociais sua vez, o determinismo geográfico afirma que a
mais gerais. (DaMatta, p. 79/89) geografia pode explicar os motivos de considerarmos
uma cultura “mais avançada” do que outra. Como diz
Laraia,

3. Algumas concepções são velhas e persistentes as teorias que atribuem


enviesadas a respeito da capacidades específicas inatas a "raças" ou a
outros grupos humanos. Muita gente ainda
cultura: o determinismo acredita que os nórdicos são mais inteligentes do
biológico e o que os negros; que os alemães têm mais
habilidade para a mecânica; que os judeus são
determinismo geográfico avarentos e negociantes; que os norte-ame-
ricanos são empreendedores e interesseiros; que
Pessoas loiras são mais inteligentes do que os portugueses são muito trabalhadores e pouco
pessoas que têm cabelos castanhos? Europeus são inteligentes; que os japoneses são trabalhadores,
mais criativos do que latino-americanos? Afinal, a traiçoeiros e cruéis; que os ciganos são nômades
biologia e a geografia podem explicar diferenças por instinto, e, finalmente, que os brasileiros
culturais? herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência
As ideias que deram sustentação ao determinismo dos índios e a luxúria dos portugueses (Laraia,
biológico e/ou ao determinismo geográfico já não 1997, p. 17).

Essas suposições não são endossadas pela um arco, arma de uso exclusivo dos homens. Até
comunidade científica. Não há qualquer associação muito pouco tempo, a carreira diplomática, o
quadro de funcionários do Banco do Brasil, entre
entre características genéticas e padrões culturais. Mais:
outros exemplos, eram atividades exclusivamente
a biologia sequer justifica determinados padrões de
masculinas. O exército de Israel demonstrou que a
comportamento em função do gênero biológico. Não há sua eficiência bélica continua intacta, mesmo depois
nada, biologicamente falando, que determine que uma da maciça admissão de mulheres soldados (LARAIA,
mulher deva cozinhar e passar roupa, enquanto o 1997, p. 19).
homem é responsável por trabalhar fora de casa e
prover a família. Homens e mulheres estão igualmente Da mesma forma, não há qualquer evidência científica de
aptos a dirigir helicóptero, jogar futebol ou trabalhar na que a geografia determine padrões de comporta- mento. Isso
área de Física Aplicada. não equivale a negar a influência de fatores geográficos na
construção de traços culturais. No entanto, uma coisa é
A espécie humana se diferencia anatômica e reconhecer a influência da geografia na formação cultural de
fisiologicamente através do dimorfismo sexual, uma comunidade; outra bem distinta é afirmar que a
mas é falso que as diferenças de comportamento geografia determina traços culturais, quer dizer, define total e
existentes entre pessoas de sexos diferentes completamente as características da cultura deste grupo de
sejam determinadas biologicamente. A indivíduos. Por exemplo, o fato de os pampas terem
antropologia tem demonstrado que muitas influenciado a cultura do povo gaúcho não permite que
atividades atribuídas às mulheres em uma afirmemos ser a cultura gaúcha o que é tão somente por
cultura podem ser atribuídas aos homens em conta da presença de pampas na região sul do Brasil. Outros
outra. A verificação de qualquer sistema de
fatores além dos geográficos colaboraram para o
divisão sexual do trabalho mostra que ele é
desenvolvimento desta cultura, tal como a influência de
determinado culturalmente e não em função
correntes migratórias da Europa para o sul brasileiro, ou a
de uma racionalidade biológica. O transporte
de água para a aldeia é uma atividade
proximidade com fronteiras internacionais (e, portanto, a
feminina no Xingu [...]. Carregar cerca de vinte existência de uma tradição militar de defesa do território).
litros de água sobre a cabeça implica, na
verdade, um esforço físico considerável, muito
maior do que o necessário para o manejo de
Caso uma criança nascida no Japão seja habitam o Norte do Parque, são excelentes
adotada por uma família brasileira, os hábitos, os caçadores e preferem justamente os mamíferos
costumes e as tradições que esta criança absorverá de grande porte, como a anta, o veado, o caititu
serão as da família adotiva; em outras palavras, o etc.
fato de ter nascido no Japão não determinará a Figura 5. Parque Indígena do Xingu. Segundo Laraia (1997, p. 24),
presença de características culturais tipicamente "não é possível admitir a ideia do determinismo geográfico, ou seja, a
admissão da 'ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade
japonesas no comportamento nesta criança. Da
puramente receptiva'".
mesma forma, se uma criança brasileira for
adotada por uma família tradicional japonesa, ela
absorverá os padrões culturais e comportamentais
da família adotiva, e não os do seu país de origem. 4. Alguns processos
Aliás, caso a geografia determinasse padrões
culturais, não haveria diversidade cultural num culturais: endoculturação,
mesmo espaço geográfico. Como exemplifica aculturação, hibridação e
Laraia (1997, p. 24), podemos encontrar tal
fenômeno no Parque Nacional do Xingu. apropriação cultural
Os xinguanos propriamente ditos Por ser um produto histórico, social e economi-
(Kamayurá, Kalapalo, Trumai, Waurá etc.) camente determinado, a cultura é construída por meio
desprezam toda a reserva de proteínas de um processo dinâmico: ela se transforma ao longo
existentes nos grandes mamíferos, cuja do tempo, assumindo novas características, adaptando
caça lhes é interditada por motivos ou abandonando outras. O reconhecimento do seu
culturais, e se dedicam mais intensamente caráter dinâmico, portanto, torna imprescindível que
à pesca e caça ele aves. Os Kayabi, que investi-
guemos os fenômenos culturais a partir do contexto do comportamento, crenças, hábitos e rituais; por meio do
qual emergem: a cultura não é um estoque imutável de convívio social, somos colocados em contato com a
Marcos Amend / Pulsar Imagens

hábitos, tradições e crenças, ela não está imobilizada no cultura da comunidade da qual fazemos parte e vamos,
tempo e no espaço. Ao contrário, ela é porosa e, no
contato com outras condições materiais ou outras
relações sociais, modifica-se.
A endoculturação (ou enculturação) é o processo
por meio do qual os homens aprendem e absorvem a
cultura do grupo ao qual pertencem. Nascemos no meio
de comunidades que desenvolveram padrões de

aos poucos, apreendendo e internalizando esse


repertório cultural. A escola, a família, o ambiente de
trabalho, todos esses são lugares em que temos a
oportunidade de aprender o que o nosso grupo social
considera como fundamental e que, também,
transmitiremos sob a forma de herança cultural.
? Saiba
mais
Caso uma criança seja criada entre lobos, ela não mostrará qualquer capacidade inata para desenvolver hábitos e
comportamentos que nós consideramos absolutamente normais e “humanos”: ela não aprenderá a caminhar de forma ereta,
mas imitará as formas animais de postura e locomoção; ela irá grunhir, ao invés de desenvolver a linguagem; ela não irá rir,
por que o riso é uma atividade tipicamente humana, ela não será capaz de manifestar emoções da maneira como fazemos.
Sobre o tema, sugerimos que você assista ao filme O enigma de Kasper Hauser (1974). Tendo como base o caso de um
adolescente que viveu preso e solitário na Alemanha, no século XIX, sem qualquer contato social, o filme narra a história de
Kaspar Hauser, jovem encontrado sem que se pudesse identificar em que lugar vivera. Distante da sociedade, o jovem não
aprendeu a falar, a se alimentar e a se comportar como outros indivíduos educados. Aos poucos, e por meio do convívio social,
ele deixa de ser um selvagem e torna-se cada vez mais adaptado à sociedade.

Temos também que considerar que culturas símbolo de alguma luta ou representa algo importante
distintas entram em contato e podem trocar para a cultura da qual foi extraído. Um exemplo clássico
informações ou entrar em conflito, construindo é o estilo dread de cabelo. Caracterizado por mechas
processos de aculturação ou hibridação. emaranhadas, o dread foi símbolo do movimento
Falamos de aculturação quando há o domínio de rastafari (movimento jamaicano das primeiras décadas
uma cultura sobre a outra. Como exemplo, podemos do século XX, que mesclou elementos do cristianismo,
citar a evangelização dos índios brasileiros durante a
do misticismo e da política de autoafirmação das
colonização; afinal, por meio da força e da opressão, os
comunidades negras) e também esteve presente em
colonizadores obrigaram os índios a desistir de sua
algumas manifestações religiosas na Etiópia, na Índia,
cultura, absorvendo valores e crenças europeias.
no Japão, no Senegal, na Nova Zelândia e em Angola.
A hibridação ocorre quando há troca de infor-
Tem sido associado ao movimento de empoderamento
mações entre duas culturas de maneira natural.
da etnia negra (fortalecimento da identidade negra) e
Como exemplo, podemos citar o sincretismo religioso
seu uso por pessoas brancas é considerado apropriação
brasileiro, que estabeleceu conexões entre os santos
cultural.
católicos e os ritos religiosos africanos.
Na sua opinião, a fantasia carnavalesca de índio é
Finalmente, falamos de apropriação cultural quando
uma apropriação cultural? Propomos essa reflexão e, em
uma cultura apropria-se (toma posse) de um elemento
seguida, sugerimos que você resolva os exercícios
de outra cultura. Em geral, a apropriação cultural é
apresentados a seguir.
criticada quando o elemento apropriado é um
Exercícios Propostos

➊ O sociólogo espanhol Manuel Castells Ⓢ


sustenta que a comunicação de valores e a
mobilização em torno do sentido são
fundamentais. Os movimentos culturais (entendidos como movimentos
que têm como objetivo defender ou propor modos próprios de vida e
sentido) constroem-se em torno de sistemas de comunicação –
essencialmente a internet e os meios de comunicação – porque esta é a
principal via que esses movimentos encontram para chegar àquelas
pessoas que podem eventualmente partilhar os seus valores, e a partir
daqui atuar na consciência da sociedade no seu conjunto”.
(Disponível em: www.compolitica.org.
Acesso em: 2 mar. 2012. Adaptado.)

Em 2011, após uma forte mobilização popular via redes


sociais, houve a queda do governo de Hosni Mubarak no
Egito. Esse evento ratifica o argumento de que
a) a internet atribui verdadeiros valores culturais aos seus
usuários.
b) a consciência das sociedades foi estabelecida com o
advento da internet.
c) a revolução tecnológica tem como principal objetivo a
deposição de governantes antidemocráticos.
d) os recursos tecnológicos estão a serviço dos opressores e
do fortalecimento de suas práticas políticas. (WILL. Disponível em: www.willtirando.com.br.
e) os sistemas de comunicação são mecanismos importantes, Acesso em: 7 nov. 2013.)
de adesão e compartilhamento de valores sociais.
“Opportunity” é o nome de um veículo explorador que
aterrissou em Marte com a missão de enviar informações à
Terra. A charge apresenta uma crítica ao(à)
a) gasto exagerado com o envio de robôs a outros planetas.
b) exploração indiscriminada de outros planetas.
c) circulação digital excessiva a autorretratos.
d) vulgarização das descobertas espaciais.
e) mecanização das atividades humanas.

Ⓢ É amplamente conhecida a grande diver- sidade ➍ Após a Declaração Universal dos Direitos
gastronômica da espécie humana. Humanos pela ONU, em 1948, a Unesco
Frequentemente, essa diversidade é utilizada para publicou estudos de cientistas de todo o
classificações depreciativas. Assim, no início do século, os americanos mundo que desqualificaram as doutrinas racistas e demonstraram a
denominavam os franceses de “comedores de rãs”. Os índios kaapor unidade do gênero humano. Desde então, a maioria dos próprios
discriminam os timbiras chamando-os pejorativamente de “comedores cientistas europeus passou a reconhecer o caráter discriminatório da
de cobra”. E a palavra potiguara pode significar realmente “comedores pretensa superiori- dade racial do homem branco e a condenar as
de camarão”. As pessoas não se chocam apenas porque as outras aberrações cometidas em seu nome.
comem coisas variadas, mas também pela maneira que agem à mesa. Como (SILVEIRA, R. Os selvagens e a massa: papel do racismo
utilizamos garfos, surpreendemo-nos com o uso dos palitos pelos científico na montagem da
japoneses e das mãos por certos segmentos de nossa sociedade. hegemonia ocidental. Afro-Ásia, n. 23, 1999. Adaptado.)
(LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. c) comportamento hostil em zonas de conflito.
São Paulo: Jorge Zahar, 2001. d) constatação de agressividade no estado de natureza.
Adaptado.) e) transmutação de valores no contexto da modernidade.

O processo de estranhamento citado, com base em um


conjunto de representações que grupos ou indivíduos formam
sobre outros, tem como causa o(a)
a) reconhecimento mútuo entre povos.
b) etnocentrismo recorrente entre populações.
A posição assumida pela Unesco, a partir de 1948, foi c) morte de milhões de soldados nos combates da Segunda
motivada por acontecimentos então recentes, dentre os Guerra Mundial.
quais se destacava o(a) d) execução de judeus e eslavos presos em guetos e
a) a ataque feito pelos japoneses à base militar americana campos de concentração nazistas.
de Pearl Harbor. e) lançamento de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki
b) desencadeamento da Guerra Fria e de novas pelas forças norte-americanas.
rivalidades entre nações.
➎ A recuperação da herança cultural africana deve c) derivam da interação entre valores africanos e a
levar em conta o que é próprio do processo experiência histórica brasileira.
cultural: seu movimento, plura- d) contribuem para o distanciamento cultural entre negros e
lidade e complexidade. Não se trata, portanto, do resgate ingênuo do
brancos no Brasil atual.
passado nem do seu cultivo nostálgico, mas de procurar perceber o
e) demonstram a maior complexidade cultural dos africanos
próprio rosto cultural brasileiro. O que se quer é captar seu movimento
em relação aos europeus.
para melhor compreendê-lo historicamente.
(MINAS GERAIS. Cadernos do Arquivo 1:
Escravidão em Minas Gerais.
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1988.)

Com base no texto, a análise de manifestações culturais de


origem africana, como a capoeira ou o candomblé, deve
considerar que elas
a) permanecem como reprodução dos valores e costumes
africanos.
b) perderam a relação com o seu passado histórico.

Referências

Textuais
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Coleção Primeiros Passos.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 11 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997 [1986].
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Audiovisuais
Hannah Arendt – Ideias que chocaram o Mundo. Dir. Margarethe von Trotta. França, Alemanha, Luxemburgo: Heimatfilm,
Bayerischer Rundfunk e Westdeutscher Rundfunk, 2012. 109 minutos.
Hotel Ruanda. Dir. Terry George, Reino Unido, Itália, África do Sul, Estados Unidos, 2004. 121 minutos.
Inimigo Meu. Dir. Wolfgang Petersen, Estados Unidos, 1985. 108 minutos.
O enigma de Kaspar Hauser. Dir. Werner Herzog. Alemanha Ocidental, 1974. 110 minutos.
A reflexão sociológica sobre
6 educação

Neste módulo, iremos estudar alguns aspectos científicos e preparar a mão de obra necessária nas
relacionados à educação e ao seu papel na transmissão indústrias e nos empreendimentos capitalistas.
dos valores de uma sociedade. A escola, junto com a Émile Durkheim (1858-1917), sociólogo francês,
família, é um dos ambientes mais importantes para a preocupou-se com o fato de a educação estar a serviço
socialização dos indivíduos, e tanto uma quanto a outra das necessidades das indústrias e da economia; em seu
relacionam-se entre si, moldando e fortalecendo os ponto de vista, era preciso não apenas treinar as
modos de vida adotados pelos grupos sociais. Ao final pessoas no espírito do capitalismo, como também
do módulo, trazemos alguns exercícios que poderão provê-las de uma educação moral capaz de propiciar
ajudar na reflexão sobre os temas aqui discutidos. uma formação ética que estimulasse o amor pela
coletividade, dentro dos parâmetros defendidos pelo
1. Um breve panorama Estado e pela nação.
histórico: Durkheim, Marx e Na opinião de Durkheim, a educação era essencial
para a sociedade industrial; no entanto, além da
Engels formação profissional, era fundamental que a sociedade
desenvol- vesse um mínimo de consenso social. Por
A educação é um dos temas mais importantes da
isso, o sociólogo consagrou-se como um incansável
Sociologia, já que por meio dela ocorrem os processos
defensor da escola pública e laica.
de socialização dos indivíduos e a transmissão dos
sistemas morais da sociedade. Em especial nas
sociedades modernas, é por meio da educação que os Observação:
grupos sociais preparam seus membros para dar A escola laica é aquela que não defende quaisquer
continuidade às suas tradições e aos seus modos de valores religiosos específicos. É uma escola que
vida; também cabe ao contexto educacional – e a suas pretende pautar-se pela ciência e pelos valores do
instituições – a reprodução dos valores associados às cotidiano, ao contrário das instituições religiosas, que
formas de produção e consumo adotados pela orientam e são orientadas por um repertório
sociedade. religioso, independentemente de qual seja ele.
Ingimage

Para Durkheim, o ser humano construía o seu


ambiente social e, ao mesmo tempo, era fruto dele.
Assim, a educação se apresentava como um produto do
desenvolvimento coletivo. Nesse sentido, era correto
imaginar que cada sociedade construía um sistema
educacional apto a transmitir os valores tidos como
legítimos. Tratava-se de um espaço de formação cidadã,
onde a criança apreenderia os valores sociais do grupo
ao qual pertencia. O professor era a autoridade à qual
os alunos deveriam obedecer: a posse do conhecimento
permitia ao mestre ocupar essa posição. A autonomia
do aluno, por sua vez, seria forjada ao longo do
Figura 1. Por meio da educação, os indivíduos são apresentados ao arsenal processo educacional; afinal, era preciso que ele
cultural e científico construído pelo seu grupo social e são preparados para
que cumpram suas funções, cada vez mais especializadas.
absorvesse o conhecimento necessário para a tomada
de decisões de forma não supervisionada.
As primeiras universidades surgiram no contexto da Uma das críticas que o trabalho de Durkheim sobre
Escolástica; ao tempo da Revolução Industrial e da educação recebeu por parte dos educadores diz respeito
Reforma Protestante, várias destas instituições bus- ao caráter “conservador” e “conformista” do seu
caram distanciar-se do ambiente religioso, pretendendo pensamento: afinal, caberia às instituições educacionais
estimular a pesquisa da natureza segundo critérios a reprodução do status quo vigente, devendo elas manter
distância de quaisquer ações revolucionárias.
encarregar-se da educação da classe operária.
Observação:
Status quo é uma expressão em latim que quer dizer
no estado das coisas. Assim, manter o status quo é não
provocar qualquer mudança no estado em que as
coisas estão.

Esta análise conformista do papel da educação na


sociedade foi abandonada por Karl Marx (1818-1883) e
Friedrich Engels (1820-1895). Embora eles não tenham
desenvolvido uma reflexão sistemática sobre a
educação, a abordagem dos autores em relação ao
sistema de produção e ao modelo econômico capitalista
possibilitou que a problemática educacional fosse vista
por um ângulo diferente.
Para Marx e Engels, a industrialização havia criado
um sistema no qual o trabalhador vendia sua força de
trabalho ao capitalista que, utilizando-a para a produção
de bens e serviços, obtinha lucros. Como isso era
possível? Segundo os autores, a geração de lucro
ocorria em função de o capitalista apropriar-se da
produção gerada nas horas de trabalho que não eram
remuneradas na sua totalidade. Se o trabalhador
precisasse trabalhar apenas 5 horas por dia para
“pagar” o seu salário, ele trabalharia 8 horas por dia,
apropriando-se o capitalista das 3 horas “a mais”. Essa
situação era possível única e exclusivamente porque o
capitalista detinha os meios de produção necessários
para a fabricação dos bens. Dada essa situação, caso se
desejasse mudar o status quo, caso se buscasse acabar
com a exploração do trabalhador, não bastava que
fossem alterados os modos de produção: como cabia ao
ambiente escolar reproduzir os valores fundamentais
para a sociedade, era importante que se transformasse
também o sistema educacional; se a educação fazia
parte de um sistema maior, a transformação do sistema
requeria que mudanças também fossem realizadas no
contexto educacional.
A crítica radical ao sistema capitalista, e a análise
da perspectiva de formação de uma sociedade
socialista, não levou Marx a considerar a
educação como atividade de promover por si
mesma a transformação da sociedade. Para
Marx, “a atividade do educador era parte do
sistema e, portanto, não podia encaminhar a
superação efetiva do modo de produção
entendido como um todo (KONDER, 2004, p.
19).

Marx e Engels defenderam a revolução como


instrumento para as mudanças que eles pretendiam
realizar: a revolução permitiria que os meios de
produção fossem retirados dos capitalistas e colocados
em posse dos trabalhadores. Assim, a exploração da
força de trabalho não ocorreria mais. Educadores
forjados nos princípios revolucionários, então, poderiam
A transformação radical da sociedade seria
obra da classe operária e para esta atuação
a “classe precisava esclarecer-se a si
mesma no plano teórico, paralelamente às
ações no plano prático”. Desenvolve então
o conceito de práxis que significa a
atividade de quem faz escolhas conscientes
e para isso precisa de teoria (KONDER,
2004, p.15)

Do ponto de vista do contexto educacional,


como isso aconteceria? Comissões de
trabalhadores seriam responsáveis pela gestão
das escolas. Estas, por sua vez, buscariam
conciliar o trabalho teórico com o prático. Afinal,
historicamente, a produção de conhecimento
científico ficara a cargo das classes mais ricas,
restando ao trabalhador apenas a execução de
trabalhos manuais. A revolução deveria mudar
esse cenário, fazendo da classe operária a
produtora do conhecimento a ser consumido. A
escola politécnica, que associava prática e teoria,
era a melhor alternativa para a revolução no
contexto educacional.
A ideia de uma educação politécnica tem
por base combinar a instrução escolar com
o trabalho produtivo, pois eles acreditavam
que essa relação constituiria um dos mais
poderosos meios de transformação social
(TOMAZI, 1997, p. 7).

Com quais conteúdos a educação politécnica


deveria se ocupar? Com as ciências, as línguas
? Saiba
(nacional e estrangeira), a matemática, a
mais
literatura e os estudos tecnológicos. Os A Revolução Russa, em 1917, colocou em prática as
operários deveriam entender de recomendações teóricas de Marx e Engels. Ela acabou
com o regime monárquico russo e criou um modelo de
sociedade baseado na posse dos meios de produção por
parte do Estado. Uma das primeiras medidas tomadas
pelo novo governo revolucionário foi assumir
integralmente a educação das crianças: não apenas era
necessário educar o enorme contingente de analfabetos,
mas também educar as crianças dentro dos princípios
revolucionários. Sabedor da importância da família na
socialização de normas pelas crianças, o governo
revolucionário buscou diminuir a influência do ambiente
familiar na educação dos jovens, transferindo essa
responsa- bilidade para as escolas mantidas pelo Estado.
Em outras palavras, era fundamental que a família fosse
impedida de reproduzir os valores pré-revolucionários, em
geral associados à posse privada de bens, ao
individualismo e ao pensamento religioso.
matemática tanto quanto de máquinas e atividades
Observação:
produtivas manuais. Ainda, em função das ameaças que
nações não socialistas representavam para a revolução A ideologia é uma forma de consciência social por
russa, as escolas também deveriam preparar as crianças meio da qual determinados grupos sociais enxergam
para o conflito físico, daí a importância das aulas de o mundo e defendem seus interesses. Assim, ela
educação física para os jovens. funciona como óculos que moldam e possibilitam a
visão do mundo conforme as possibilidades
oferecidas pelas lentes.
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Para Althusser, a sociedade desenvolve mecanismos


que protegem a reprodução das condições e das
relações de produção. Esses mecanismos dividem-se
em Aparelhos Repressivos de Estado (ARE) – tais
como o governo, a administração, o exército, a polícia,
os tribunais, as prisões etc. – e Aparelhos Ideológicos
de Estado (AIE) – tais como a igreja, a escola, o
sistema jurídico, o político, o sindical, o cultural e o da
informação. A coerção é o meio pelo qual os
Aparelhos Repressivos de Estado operam; os
Figura 2. Ainda nos dias de hoje, é comum encontrarmos nas instituições ideológicos, por sua
educacionais muitas distinções entre os estudos técnicos e os estudos
vez, são responsáveis pela difusão das ideias.
ditos científicos. Os cursos superiores tecnológicos, de alguma forma,
têm buscado defender um conceito de educação mais amplo e plural,
associando a formação científica com a formação técnica.

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2. Althusser e a escola como
Aparelho Ideológico de
Estado (AIE)
A partir da metade do século XX, estava claro aos
sociólogos e educadores que a educação era
fundamental no processo de socialização e apreensão
das regras do grupo. No entanto, algumas perguntas
continuavam sem resposta: deveriam os educadores Figura 3. Os aparelhos repressivos fazem uso da força para manter suas
se preocupar com a exclusão social, com a prerrogativas e garantem as condições políticas necessárias para que os
ideológicos possam funcionar.
concentração de renda, com as reduzidas
oportunidades profissionais para segmentos imensos Podemos ser mais precisos, retificando essa
da sociedade? Deveriam os educadores educar para distinção. Com efeito, diremos que todo
superar as diferenças sociais? Afinal, quais eram as Aparelho de Estado, seja repressor ou
relações entre a educação e o entorno social e ideológico, “funciona”, simultaneamente, por
econômico, e quais as possibilidades transformadoras meio da violência e da ideologia, mas com
passíveis de serem realizadas por meio da educação? uma diferença muito importante (…) o
Aparelho (repressor) de Estado funciona, de
O filósofo e sociólogo francês Louis Althusser (1918-
maneira maciça e predominante, por meio da
1990), sob nítida influência do marxismo, desenvolveu a
repressão (inclusive, física), embora
ideia de que a escola era parte integrante do Aparelho funcionando, secun- dariamente, por meio da
Ideológico de Estado (AIE). A partir dessa perspectiva, a ideologia (…). Da mesma forma, mas
escola passava a ser reconhecida como instrumento de inversamente, deve-se dizer que, por sua
reprodução da ideologia do Estado capitalista, conta, os Aparelhos ideológicos de Estado
dificultando os movimentos sociais interessados em pôr funcionam, de maneira maciça e
fim à exclusão e à desigualdade social. predominantemente, por meio da ideologia,
embora funcionando secundaria- mente por
meio da repressão, nem que fosse no limite,
mas somente no limite, muito atenuada,
dissimulada, até mesmo simbólica
(ALTHUSSER, 1999, p. 266).

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De que maneira a escola funciona como aparelho criança criada em um ambiente familiar bilíngue, ou de
ideológico? Ela funciona através da reprodução da uma criança que pôde viajar com a família para
ordem vigente ou da ordem que se pretende vigente. A diferentes cidades e países, ou de uma criança que
escola reproduz a ideologia do grupo dominante e, ao pôde assistir a óperas e frequentar museus. Da
mesmo tempo, reforça essa ideologia. mesma forma, parece razoável considerar a situação
de desvantagem de crianças que moram em regiões
sem saneamento básico, sem acesso a serviços de
? Saiba saúde, ou de crianças que precisam trabalhar para
mais colaborar com a renda familiar. Assim, a distinção
Sugerimos que você assista ao filme A Onda (2008). A social do ambiente familiar das crianças manter-se-á
narrativa envolve a estratégia de um professor ao ser também na escola, ou seja, crianças com maior capital
perguntado por seus alunos se seria possível que uma cultural irão ter mais facilidades e oportunidades
ditadura violenta se estabelecesse na Alemanha moderna. comparativamente a outras crianças. Mais: o capital
Evidentemente, tal questionamento faz alusão ao regime cultural faz parte do que Bourdieu chamou de habitus.
nazista que, durante as décadas de 1930 e 1940, provocou
uma guerra mundial e executou uma política de genocídio A cada classe de posições corresponde uma
étnico. Ao orientar seus alunos na direção de posições classe de habitus (ou de gostos) produzidos
autoritárias e estimular a exclusão de opiniões divergentes, pelos condicionantes sociais associados à
o professor vai construindo, aos poucos, um cenário condição correspondente e, pela intermediação
bastante similar ao de governos ditatoriais. Dentre os desses habitus e de suas capacidades
vários elementos interessantes abordados pelo filme, vale a geradoras, um conjunto sistemático de bens e
pena atentar para os seguintes aspectos: o poder de de propriedades vinculadas entre si (…) Uma
convencimento da maioria e o papel da escola na formação das funções da noção de habitus é a de dar
de padrões conta da unidade de estilo que vincula as
de comportamento. práticas e os bens de um agente singular ou
de uma classe de agentes (…) Os habitus são
princípios geradores de práticas distintas e
distintivas – o que o operário come, e
sobretudo sua maneira de comer, o esporte que
3. Bourdieu: capital cultural e pratica e sua maneira de praticá-lo, suas
habitus opiniões políticas e sua maneira de expres- sá-
las diferem sistematicamente do consumo ou
O sociólogo e filósofo Pierre Félix Bourdieu (1930- das atividades correspondentes do empre-
2002) desenvolveu a ideia de que a escola seria uma sário industrial; mas são esquemas classifica-
das instituições responsáveis pela reprodução do status tórios, princípios de visão e de divisão e gostos
quo, portanto, da estrutura desigual da sociedade. Sob diferentes. (BOURDIEU, 1996, pp. 21-22).
influência de Durkheim, Bourdieu concluiu que a escola
e a família, ambientes primários do processo de O habitus seria o conjunto de preferências, saberes
socialização, reproduziam os valores associados a uma e práticas condicionados socialmente por meio da
sociedade dividida em classes sociais e organizada em ação familiar e que, interiorizado, acompanharia o
termos das necessidades do sistema capitalista. Era da indivíduo até a escola ou ao ambiente profissional.
natureza da escola evitar qualquer mudança que Assim, caso a escola não tivesse em mente as
alterasse a ordem social estabelecida; por sua vez, este limitações e as condições proporcionadas pelo habitus
caráter reprodutor estendia-se também à família, já que de origem dos alunos, acabaria por reforçar as
a ação familiar seria responsável pela formação do diferenças sociais dadas em momento anterior ao início
repertório cultural de cada indivíduo. da vida escolar. Em outras palavras, alunos com grande
Para Bourdieu, tudo o que a criança aprende em capital cultural ou que viviam em ambientes mais
casa forma algo chamado capital cultural que pode se favorecidos social e culturalmente continuariam a ter
transformar em vantagem no ambiente escolar. vantagens em relação a outros alunos, legitimando e
Vejamos um exemplo: parece razoável supormos a reproduzindo a desigualdade social.
vantagem em termos de capital cultural de uma
seja ela dedicada a manter o status quo social ou a provocar
transformações deste mesmo ambiente.
De forma quase análoga, o ambiente escolar
equipara-se ao ambiente militar, onde a disciplina, a
ordem e o treinamento são colocados a serviço da
adequação do comportamento do indivíduo ao que é
esperado e desejado. A escola, portanto, colabora para
condicionar e ajustar o comportamento das pessoas,
fazendo uso da organização hierárquica, do controle das
relações sociais e da divisão do trabalho (MANNHEIM,
1977).
Figura 4: Para Bourdieu (1996, p. 53 apud PILETTI e PRAXEDES,
2010, p. 84-85),“as diferenças entre as classes são ignoradas pelo
processo escolar, possibilitando aos que chegam à escola com os saberes e 5. Foucault: vigiar e punir
competências mais valorizados a chance de serem mais bem-sucedidos nas
atividades do cotidiano escolar e nos exames, obtendo diplomas mais As questões relativas à vigilância e à punição são
respeitados socialmente”. A escola, então, coloca-se a serviço da legitimação
das desigualdades sociais e culturais existentes na sociedade. elementos essenciais na obra do filósofo e sociólogo
francês Michel Foucault (1926-1984). O que o
preocupou foram, em essência, a falta de limite das
? Saiba estruturas de poder e o excessivo controle sobre os
indivíduos. Do ponto de vista da educação, duas
mais perguntas emergem dessa abordagem teórica: como a
Sugerimos que você assista ao filme O Preço do Desafio classe dominante exerce o poder? Como o ambiente
(1988). Um professor de origem mexicana convence os escolar se relaciona com as estruturas de poder e qual é
alunos de uma escola pobre de Los Angeles a prestarem o seu papel no controle social?
um exame de matemática bastante complexo e que, por Foucault estabeleceu uma profunda relação entre a
isso mesmo, só costuma ser realizado por alunos de escolas
escola e o presídio. Em Vigiar e Punir, obra em que
privilegiadas do ponto de vista social. É interessante
explicita essas preocupações, o sociólogo explica o
observar que, em alguns casos, a família do aluno é o
funcionamento da disciplina no ambiente escolar, bem
maior obstáculo a ser enfrentado pelo professor.
como seu papel no adestramento e na vigilância.

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4. Mannheim e a planificação
democrática
O sociólogo húngaro Karl Mannheim (1893-1947) foi
outro pensador que reconheceu a importância da
educação para a construção de uma sociedade viável e
democrática. Para ele, a educação, enquanto técnica
social, prestar-se-ia a colaborar para a manutenção e o
controle de uma sociedade pautada por critérios Figura 5. Os regimentos escolares colaboram para a eficácia dos instrumentos
racionais. As técnicas sociais seriam instrumentos de controle que buscam conter a insubordinação, a independência, o corpo e a
sexualidade. O silêncio é imposto para que a comunicação entre os alunos
fundamentais para evitar a desordem e o caos no
não afronte a autoridade do professor. As punições servem para o
ambiente social, sendo a educação uma das mais adestramento, desestimulando atitudes de confronto ou rebeldia.
estratégicas: por meio dela, seria possível fortalecer e
reproduzir práticas democrá- ticas, eliminando as Cabe ao ambiente escolar vigiar e punir, padro-
imperfeições e colaborando para o fortalecimento de nizando as condutas sociais, preparando-as para a vida
uma sociedade pautada por valores democráticos. em sociedade.
Para Mannheim, a técnica social é um conjunto de A escola torna-se uma espécie de aparelho de
práticas que têm como objetivo influenciar o compor- exame ininterrupto que acompanha em todo o
tamento humano, de forma a enquadrá-lo nos padrões seu cumprimento a operação de ensino,
desejáveis de interação social. Nesse sentido, a submetendo os indivíduos à disciplina exigida
educação escolar pode ser compreendida como uma pelos examinadores que detêm o controle sobre
a situação do exame. (PILETTI; PRAXEDES,
técnica social,
2010, p. 92).
É sobre esse ambiente que Foucault reflete em lições avançando para o meio da sala... Cada um
Vigiar e Punir. dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o
Pouco a pouco – mas principalmente depois de deixará nem trocará sem a ordem e o
1762 – o espaço escolar se desdobra; a classe consentimento do inspetor das escolas. [Será
torna-se homogênea, ela agora só se compõe de preciso fazer com que] aqueles cujos pais são
elementos individuais que vêm se colocar uns ao negligentes e têm piolhos fiquem separados dos
lado dos outros sob os olhares do mestre. A que são limpos e não os têm; que um escolar
ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a leviano e distraído seja colocado entre dois bem
definir a grande forma de repartição dos comportados e ajuizados, que o libertino ou fique
indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sozinho ou entre dois piedosos.(18) As
sala, nos corredores, nos pátios; colocação disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e
atribuída a cada um em relação a cada tarefa e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo
cada prova; colocação que ele obtém de semana tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos.
em semana, de mês em mês, de ano em ano; São espaços que realizam a fixação e permitem a
alinhamento das classes de idade umas depois circulação; recortam segmentos individuais e
das outras; sucessão dos assuntos ensinados, estabelecem ligações operatórias; marcam
das questões tratadas segundo uma ordem de lugares e indicam valores; garantem a obediência
dificuldade crescente. E nesse conjunto de dos indivíduos, mas também uma melhor
alinhamentos obrigatórios, cada aluno, segundo economia do tempo e dos gestos. São espaços
sua idade, seus desempenhos, seu compor- mistos: reais pois que regem a disposição de
tamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois
desloca o tempo todo numa série de casas; projetam-se sobre essa organização
umas ideais, que marcam uma hierarquia do caracterizações, estimativas, hierarquias
saber ou das capacidades, outras devendo (FOUCAULT, 1987, s/p).
traduzir materialmente no espaço da classe ou
do colégio essa repartição de valores ou dos
méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos 6. A educação e sua pesquisa
substituem uns aos outros, num espaço
escondido por intervalos alinhados. A
no Brasil
organização de um espaço serial foi uma das
grandes modificações técnicas do ensino Afinal, que tipo de educação deve existir? Quais
elementar. Permitiu ultrapassar o sistema conhecimentos devem ser garantidos a todos os
tradicional (um aluno que trabalha alguns cidadãos? São necessários projetos educacionais
minutos com o professor, enquanto fica ocioso e diferentes para as populações urbanas e para as
sem vigilância o grupo confuso dos que estão populações rurais? É importante conceber escolas
esperando). Determinando lugares individuais distintas de acordo com as potencialidades econômicas
tornou possível o controle de cada um e o
das cidades? Alfabetizar um adulto requer os mesmos
trabalho simultâneo de todos. Organizou uma
métodos utilizados para alfabetizar crianças? O que deve
nova economia do tempo de aprendizagem. Fez
ser levado em consideração quando a educação for
funcionar o espaço escolar como uma máquina
de ensinar, mas também de vigiar, de pensada como etapa fundamental do
hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle desenvolvimento de cada indivíduo? É função da
imaginava uma classe onde a distribuição educação combater as desigualdades sociais?
espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda Este cenário justifica a existência de inúmeros
uma série de distinções: segundo o nível de estudos sobre o papel da escolarização na construção
avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, das identidades e sobre as novas formas de
segundo seu temperamento melhor ou pior, socialização. Ainda, paulatinamente, os estudos a
segundo sua maior ou menor aplicação, segundo respeito dos usos de novas tecnologias no processo
sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais.
educativo têm oferecido oportunidades para novas
Então, a sala de aula formaria um grande quadro
vertentes de investigação e pesquisa.
único, com entradas múltiplas, sob o olhar
cuidadosa- mente "classificador" do professor: Podemos considerar a ocorrência de duas perspec-
Haverá em todas as salas de aula lugares tivas distintas na Sociologia da Educação, em especial
determinados para todos os escolares de todas no caso brasileiro. Uma delas, mais vinculada aos
as classes, de maneira que todos os da mesma modelos teóricos marxistas, entende que a educação se
classe sejam colocados num mesmo lugar e coloca a serviço da reprodução das desigualdades do
sempre fixo. Os escolares das lições mais modelo capitalista. Outra corrente, chamada de
adiantadas serão colocados nos bancos mais funcionalista, tem como objetos de interesse os
próximos da parede e em seguida os outros processos sociais produzidos no ambiente escolar e seus
segundo a ordem das efeitos nas comunidades onde ocorrem.
Consideremos, de maneira a conciliar as duas sionais. Assim, a pobreza reproduz a pobreza.
vertentes, que a Sociologia da Educação tem como
principal objetivo investigar como a educação contribui
para a produção e reprodução de normas e grupos
sociais e, em especial, como a escola “participa na
formação e consolidação da ordem social. Para isto é
decisiva a transmissão e inculcação diferenciada de
certas ideias, valores, modos de percepção, estilos de
vida, em geral sintetizados na noção de ideologia”
(SILVA, 1990, p. 4). Da mesma forma, também é
papel da Sociologia da Educação estudar o ambiente
escolar e as relações entre ele e outros processos
sociais.
É evidente que, no Brasil, dada a diversidade
cultural existente no país e as desigualdades sociais que
permeiam as relações, os temas associados à
dominação e à submissão, e ao preconceito e à
discriminação são cons- tantes nas investigações sobre
o contexto educacional e as práticas educativas. De fato,
as mudanças ocorridas nos primeiros anos deste século
provocaram transformações profundas nas formas de
viver e trabalhar: as mulheres aumentaram sua
participação no mercado de trabalho; tornaram-se
comuns as unidades familiares chefiadas por elas;
finalmente, a percepção da vulnerabilidade de minorias
étnicas e de portadores de necessidades especiais
passou a demandar políticas públicas destinadas à
redução do quadro de desigualdade.

Observação:
Os dados revelam que o homem branco tem uma
renda 56% mais elevada do que a mulher branca.
Ainda, a mulher branca recebe 14% a mais, em
termos de renda, do que o homem negro. O abismo
torna-se maior quando comparamos a renda da
mulher negra com a do homem negro: o homem
negro tem uma renda 53% maior do que a renda da
mulher negra. Resumindo, e para deixar mais claro o
quadro de desigualdade social, o homem branco
ganha 174% a mais do que uma mulher negra.

Se a sociedade brasileira abriga tantas


desigualdades sociais, é razoável esperar que ela
também apresente significativas desigualdades
educacionais. Embora seja de imensa complexidade
determinar a relação de causalidade entre essas duas
variáveis (o que provoca o que), é legítimo supor que
exista uma forte associação entre as duas.
Vejamos, como exemplo, o analfabetismo. A
pobreza produz o analfabetismo, pois pessoas
vulneráveis socialmente são mais expostas à exclusão
social (elas não têm acesso aos equipamentos
educacionais). Por sua vez, o analfabetismo reforça a
situação de pobreza já que, na nossa sociedade, o
analfabeto tem pouquíssimas oportunidades profis-
contribuir para aumentar, ao invés de diminuir,

Ingimage / Fotoarena
as desigualdades de oportunidades (RIBEIRO,
2010, p. 2).

Figura 6. Os últimos dados do IBGE mostram que o Brasil tem mais de


11 milhões de pessoas analfabetas. Embora o índice de analfabetismo
venha caindo, ainda é imenso o contingente de brasileiros que sequer
sabe ler e escrever.

É interessante observar como nosso sistema


escolar, em vários momentos, reproduz o status quo
social, sem se preocupar com as possibilidades de
transformação da realidade: os menos vulneráveis
socialmente estudam nas melhores universidades e
se dedicam a carreiras profissionais em que
exercem funções de grande especialização; em
contraste, os mais vulneráveis socialmente são
encaminhados, desde cedo, ao ambiente do trabalho
mecânico. Em outras palavras, os mais pobres são
preparados para o trabalho manual e braçal; os mais
ricos, para o trabalho intelectual, para o ensino
superior e para os cargos de gerência na iniciativa
pública ou privada.
A universalização do acesso ao ensino
fundamental no Brasil diminuiu de forma significativa
essa situação de desigualdade. Para isso também
colaboraram as políticas públicas relacionadas às ações
afirmativas.

A educação é um dos principais meios de


acesso a posições ocupacionais e de renda
hierarqui- camente superiores, logo a
diminuição das desigualdades de acesso à
educação seria uma das principais maneiras de
combater a transmissão de desigualdades ao
longo das gerações. Além dos recursos
familiares, as próprias características dos
sistemas educa- cionais podem influenciar as
chances de progressão dos alunos
independentemente de suas origens sociais.
Quanto maior for a capacidade das escolas de
oferecer ensino de qualidade capaz de superar
as desvantagens de origem social dos alunos,
maiores são as chances de o sistema diminuir
as desigualdades de oportunidades
educacionais e, consequente- mente, promover
a mobilidade social intergera- cional.
Infelizmente muitos sistemas educa- cionais
são altamente estratificados e acabam por
Observação:
As ações afirmativas são estratégias que têm como objetivo promover a equidade de oportunidades, tais como
estabelecer cotas em concursos públicos para afrodescendentes e mulheres. Elas partem do princípio da existência
de grupos sociais que foram historicamente marginalizados e que, por isso, precisam receber incentivo e apoio para
equiparar-se a outros que tiveram privilégios.

Exercícios Propostos

➊ Um volume imenso de pesquisas tem sido conformação dos eventos internacionais quanto o Conselho de Segurança
produzido para tentar avaliar os efeitos dos Nacional. As instituições religiosa, educacional e familiar não são
programas de televisão. A maioria desses centros autônomos de poder nacional; pelo contrário, essas áreas
estudos diz respeito às crianças — o que é bastante compreensível
descentralizadas são cada vez mais moldadas pelos três grandes poderes,
pela quantidade de tempo que elas passam em frente ao aparelho e pelas nos quais ocorrem hoje os eventos de consequência decisiva e
possíveis implicações desse comportamento para a socialização. Dois
imediata.
dos tópicos mais pesquisados são o impacto da televisão no âmbito do
(WRIGHT-MILLS, C. A elite do poder: militar, econômica e política.
crime e da violência e a natureza das notícias exibidas na televisão.
In: FERNANDES, H. R. (org.). Wright-Mills: sociologia.
(GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.)
São Paulo: Ática, 1985, p. 70.)

O texto indica que existe uma significativa produção científica


De acordo com o texto, é correto afirmar que
sobre os impactos socioculturais da televisão na vida do ser
I. as instituições sociais menos poderosas nas sociedades
humano. E as crianças, em particular, são as mais vulneráveis
modernas são as religiões, as escolas, as universidades e as
a essas influências, porque
famílias.
a) codificam informações transmitidas nos programas infantis
II. as universidades são instituições autônomas e indepen-
por meio da observação.
dentes dos interesses econômicos, políticos e militares.
b) adquirem conhecimentos variados que incentivam o
III. as instituições familiares, educacionais e religiosas
processo de interação social.
frequentemente se submetem aos interesses militares,
c) interiorizam padrões de comportamento e papéis sociais
políticos e econômicos.
com menor visão crítica.
d) observam formas de convivência social baseadas na
Está(ão) correta(s):
tolerância e no respeito.
a) I, II e III. b) III, apenas.
e) apreendem modelos de sociedade pautados na observância
c) I e II, apenas. d) I e III, apenas.
das leis.
e) II, apenas.

RESOLUÇÃO:
As religiões, as escolas, as universidades e as famílias são instituições
extremamente poderosas e que exercem influência nos processos de
Ⓢ (UEM, com modificações) – Dentro da sociedade norte- socialização dos indivíduos, bem como na formação de comportamentos.
americana, o principal poder nacional reside hoje nos domínios As universidades, assim como outras instituições, estão sob a influência
de grupos dominantes e de interesses de determinados segmentos sociais.
econômico, político e militar. Outras instituições
Resposta: B.
parecem colocadas do lado de fora da história moderna e, de vez em
quando, subordinam-se convenientemente àqueles domínios. Nenhuma
família é tão diretamente poderosa em questões nacionais quanto
qualquer grande corporação: nenhuma igreja é tão diretamente
poderosa nas histórias de vida externas dos jovens norte-americanos Ⓢ (UEM, com modificações) – Considerando as análises
hoje quanto o Exército dos EUA; nenhuma universidade é tão sociológicas sobre a família, é correto afirmar que
poderosa na I. a família, em nossa sociedade, é responsável pelos
processos iniciais e informais de socialização.
II. a família é uma instituição social rígida que não está
submetida a transformações históricas ou sociais.
III. a diversidade social, as políticas sociais de
proteção às famílias e as lutas por direitos civis, verificadas
no Brasil e no mundo nas últimas décadas, têm favorecido
a proteção de organizações familiares que não se encaixam
perfeitamente nos moldes tradicionalmente associados aos
papéis de pai, de mãe e de filhos.
Está correto o que se afirma em: c) I e III, apenas. d) I e II, apenas.
a) I, II e III. b) II e III, apenas. e) III, apenas.
III. ao ocultar seu papel na legitimação e na reprodução dos
saberes, dos valores e das experiências dos grupos
dominantes, a instituição escolar esconde também os seus
➍ (UEM, com modificações) – A escola exclui, como sempre, mas
ela exclui agora de forma continuada, a todos os níveis de curso, e mantém mecanismos “sutis” de exclusão dos grupos marginalizados.
no próprio âmago daqueles que ela IV.um dos principais desafios colocados para os atuais
exclui, simplesmente marginalizando-os nas ramificações mais ou menos sistemas de ensino no Brasil tem sido a necessidade de
desvalorizadas. Esses “marginalizados por dentro” estão condenados a assegurar a inclusão educacional de indivíduos e de grupos
oscilar entre a adesão maravilhada à ilusão proposta e a resignação aos sociais que historicamente foram marginalizados pela
seus veredictos, entre a submissão ansiosa e a revolta impotente. escola regular.
(BOURDIEU, P. (org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 485.)
Está correto o que se afirma em:
Tendo como base as ideias expostas no texto acima, podemos a) I, apenas. b) I e II, apenas.
afirmar que c) III e IV, apenas. d) I, III e IV, apenas.
I. o melhor desempenho escolar de certas pessoas está e) II, III e IV, apenas.
ligado ao dom natural para os estudos que desperta logo
no nascimento, pois as aptidões intelectuais facilitam o
aprendizado e permitem conseguir notas mais altas.
II. Historicamente, a escola tem sido uma instituição
democrática que respeita as diferenças econômicas, sociais
e culturais da sociedade e garante oportunidades iguais
para as pessoas que se esforçam nos estudos.

Referências

Textuais
ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
KONDER, L. Marx e a Sociologia da Educação. In: TURA, Maria de L. R. (org.) Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet,
2004.
MANNHEIM, Karl. A educação como técnica social. In: PEREIRA, Luiz; FORACCHI, Marialice (orgs.). Educação e sociedade:
leituras de Sociologia da Educação. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.
PILETTI, N.; PRAXEDES, W. Sociologia da Educação. São Paulo: Ática, 2010.
RIBEIRO, C. A. C. Desigualdade de oportunidades e resultados educacionais no Brasil. Dados: Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 41-87. 2011.
Disponível em: <http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/vrp/ribeiro.pdf>. Acesso em: 15 set. 2014.
SILVA, T. T. A Sociologia da Educação entre o funcionalismo e o pós-modernismo: os temas e os problemas de uma tradição. Aberto:
Brasília, v. 9, n. 46, 1990.
TOMAZI, N. D. Sociologia da Educação. São Paulo: Atual, 1997.

Audiovisuais
A ONDA. Direção: Dennis Gansel. Alemanha: Constantin Film; Highlight Film, 2008, 107 minutos.
O PREÇO DO DESAFIO. Direção: Ramón Menéndez. Estados Unidos: American Playhouse; Olmos Productions; Warner Bros.,
1988, 103 minutos.
A sociedade civil e a política
7

Neste módulo, estudaremos várias questões A ausência do Estado que gera boa parte dessas
relacionadas à política, ao Estado e à sociedade civil. situações de vulnerabilidade. Não por acaso são
Estas questões envolvem tanto os aspectos
relacionados à organização e às funções do Estado,
como também os conflitos que surgem a partir das
relações que ocorrem entre os indivíduos e o
aparelho estatal. Ainda, entenderemos que as formas
como o Estado se organiza, em grande parte, são
resultado das mudanças que a sociedade promove no
sentido de proteger direitos e ampliar as condições de
cidadania. Ao final do módulo, proporemos alguns
exercícios.

1. Introdução
No início de 2020, a revista Isto É publicou a
seguinte notícia:
Quase 132 anos após a abolição da
escravatura no Brasil, situações análogas ao
trabalho escravo ainda são registradas.
Somente o Ministério Público do Trabalho
(MPT) tem hoje 1,7 mil procedimentos de
investigação dessa prática e de aliciamento e
tráfico de trabalhadores em andamento.
Segundo dados do Radar da Subsecretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT) da Secretaria
Especial de Previdência e Trabalho do Ministério
da Economia, em 111 dos 267
estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve
a caracterização da existência dessa prática
com
1.054 pessoas resgatadas em situações desse
tipo. O levantamento apresentado hoje (28)
aponta ainda que, no ano passado, o número de
denúncias aumentou, totalizando 1.213 em todo
o país, enquanto em 2018 foram 1.127.
[...]
O levantamento mostra que entre 2003 e 2018,
cerca de 45 mil trabalhadores foram resgatados
e libertados do trabalho análogo à escravidão no
Brasil. Segundo dados do Observatório Digital do
Trabalho Escravo, isso significa uma média de
pelo menos oito trabalhadores resgatados a cada
dia. Nesse período, a maioria das vítimas era do
sexo masculino e tinha entre 18 e 24 anos. O
perfil dos casos também comprova que o
analfabetismo ou a baixa escolaridade tornam o
indivíduo mais vulnerável a esse tipo de
exploração: 31% eram analfabetos e 39% não
haviam sequer concluído o 5º ano.
em municípios com baixo IDH [Índice de escravidão, como é possível que pessoas trabalhem
Desenvolvimento Humano], com pouca como escravas, impedidas de se movimentar, vivendo e
infraestrutura estatal, com pouca oferta de trabalhando em condições insalubres e sem qualquer
serviços públicos que esses trabalhadores remuneração? Para que respondamos a essas questões,
são encontrados ou saem para serem devemos nos deslocar para o campo da reflexão a
explorados, são traficados”, ressaltou o
respeito da política, do Estado e da sociedade civil.
chefe da Divisão de Fiscalização para a
O termo política tem sua origem na palavra grega
Erradicação do Trabalho Escravo
polis, que significa “cidade”. A polis é soberana e dona
(DETRAE), Matheus Alves Viana. Segundo
ele, hoje os desafios são muito grandes, de seu destino, não se submetendo a qualquer poder
especialmente porque os exploradores externo. Por sua vez, o politiko é o indivíduo que
desenvolveram uma contrainteligência e participa das decisões sobre o destino da polis, o
sabem se esconder. “O sucesso se dá cidadão que encontra nessa atividade uma extrema
quando e Estado está presente e se faz satisfação já que a comunidade política, o Estado (ou
forte. Nenhuma instituição de nenhum seja, o conjunto de instituições e pessoas que detêm o
Poder consegue fazer nada de forma poder sobre um determinado território ou conjunto de
isolada”, ressaltou Viana. pessoas) é quase que uma extensão da própria
condição humana.
Disponível em: https://istoe.com.br/brasil-teve-mais-de-mil-
Em tempos anteriores ao surgimento do Estado, o
pessoas- resgatadas-do-trabalho-escravo-em-2019/;
20 maio 2020. senhor feudal era o dono da vida e da morte das
pessoas que viviam sob o seu poder; o Estado surge
justamente com a desestruturação do feudalismo,
O texto choca pelo fato de, nos dias de hoje, constituindo-se em fonte de poder que, num primeiro
em pleno século XXI, ainda ser possível encontrar instante, é exercido pelo rei e soberano. O Estado irá
pessoas vivendo em condições análogas às dos criar as leis que regerão a vida social, distanciando-se
escravos. A escravidão, afinal, não foi extinta ao dos costumes e das tradições. Assim, quando do
final do século XIX? Se há leis condenando a nascimento dos
estados modernos, o sistema monárquico irá garantir a (Rousseau).
centralização do poder para que impostos possam ser
instituídos e cobrados, fronteiras estejam em condições Como Maquiavel (1469-1527) bem descreve na sua
de serem defendidas, e exércitos profissionais possam obra maior, O Príncipe, o Estado não era o terreno em
ser mantidos e organizados. que se materializavam comportamentos naturais dos
Há várias vertentes do pensamento sociológico que seres humanos, tampouco em que operavam ideais
buscaram refletir a respeito do Estado e dos direitos éticos. O Estado era a organização que resultava da ação
civis. Uma abordagem foi a do jusnaturalismo, que humana, e sua atuação não se submetia (ou não deveria
entendia existirem leis naturais no universo, cabendo se submeter) ao poder da fé ou dos valores morais
aos homens a tarefa de descobri-las. Essas leis naturais individuais; ao contrário, o Estado deveria ser laico e
teriam como origem a ordem do mundo (ou as leis suas leis poderiam ser diversas daquelas que
divinas), a partir da qual o Estado organizaria a sociedade. organizavam as vidas privadas dos indivíduos que o
O iluminismo tingiu a ideia do jusnaturalismo com o constituíam. Na verdade, os indivíduos abriam mão de
princípio do contratualismo. Para os contratualistas, o seus direitos individuais em prol da segurança e da
contrato social teria determinado a passagem da vida preservação da vida de todos, elementos esses que
humana do estado de natureza para o estado civil. Ao eram defendidos pelas instituições criadas para dar
Estado (inicialmente representado pelo monarca e, conta das funções atribuídas ao Estado.
posteriormente, pelo parlamento ou outras formas de
governo) ficaria a tarefa de fazer cumprir as normas Observação:
estabelecidas nesse contrato. Segundo Cintra (2017, p. O Estado laico é a organização regida por leis
28), elaboradas pelos indivíduos, não se submetendo a
valores ou juízos de ordem religiosa. Vejamos um
as teorias jusnaturalistas tiveram grande exemplo: caso a religião predominante em um
influência na própria configuração dos Estados determinado país proíba o consumo de certos
territoriais modernos e nas revoluções do século alimentos, não é esperado que todos os cidadãos
XVII e XVIII. Elas afirmam o primado do poder
respeitem, obrigatoriamente, essa norma.
temporal/secular sobre o poder espiritual
(Maquiavel, Hobbes), os princípios liberais de
limitação do poder estatal (Locke) e a
fundamentação democrática do poder político
Não houve unanimidade entre os pensadores Esta tradição liberal e iluminista vai encontrar
iluministas em relação às percepções sobre a oposição na obra e nas ideias de Karl Marx (1818-1883).
natureza humana e o papel do Estado. Thomas Para compreender a origem do lucro, Marx empreendeu
Hobbes (1588- 1679) e John Locke (1632-1704) uma análise histórica na qual as condições materiais de
acreditavam que o contrato social que instituía o sobrevivência do homem haviam determinado sua
Estado tinha como principal objetivo proteger a vida organização social e política. Dessa forma, a posse dos
ou a propriedade (direitos tidos como naturais); em meios de produção por parte de um segmento da
outras palavras, o Estado surgia como uma sociedade (a burguesia) havia permitido a apropriação
continuação de direitos dados, já existentes. Para das horas trabalhadas e não pagas ao trabalhador, que
Locke, inclusive, era legítimo um Estado que apenas tinha a sua força de trabalho para vender em
protegesse e respeitasse o direito da maioria. Jean- troca do salário necessário à subsistência.
Jacques Rousseau (1712-1778), ao contrário, Neste contexto, o Estado não representava os
considerava que o Estado surgira justamente para dar interesses sociais, mas tão somente os interesses de
conta dos males gerados pela sociedade: antes da vida uma determinada classe social, a burguesia, que detinha
social, o homem era bondoso e generoso e, se a vida o poder econômico em função de ter a posse dos meios
em sociedade havia corrompido o ser humano, era de produção.
importante que o Estado preservasse a ordem por
meio da contenção desta corrupção natural. Trata-se de uma concepção do Estado-
instrumento, isto é, que o entende como um
O Estado de natureza de Rousseau é caracte- aparelho que é mobilizado pela classe dominante
rizado não só pela igualdade e liberdade, mas para ampliar e conservar seu domínio. Ganham
também pela felicidade e pela paz. A guerra relevo nessa análise os aspectos repressivos do
não surge no estado de natureza, mas já no Estado que funcionam para conservar a ordem
estado civil, isto é, quando os homens já estão burguesa: a polícia, o exército, as garantias
socializados e vivem em sociedades políticas. jurídicas à propriedade privada, enfim, toda a
Nesse sentido, a guerra só pode ser uma estrutura estatal que tem como objetivo
relação entre Estados – jamais uma relação conservar e ampliar a dominação da burguesia
entre indivíduos (CINTRA, 2017, p. 26). sobre os trabalhadores assalariados (CINTRA,
2017, p. 31).

O Estado não era necessariamente uma estrutura Estado e sociedade. O Estado está acima da sociedade,
a favor dos interesses coletivos; ao contrário, atuava tendo sido por ela criado justamente para dar conta de
de acordo com os interesses da classe dominante. Por organizar a vida de todos, de forma autônoma. Considera- se,
isso, em função de o capitalismo ter sido assim, que a sociedade civil nasce com a criação do Estado:
historicamente engendrado por essas classes em outras palavras, a sociedade civil surge como fruto da
dominantes, não era possível dissociar o Estado dos ação do Estado, o ente que criará as condições para a
modos de produção de uma sociedade. Assim, “o existência de uma esfera privada. Em resumo: os indivíduos
Estado é compreendido no interior de uma totalidade criaram o Estado, e a sua existência fez surgir a esfera da
histórica caracterizada pelas contradições do modo de sociedade civil, privada.
produção capitalista que se traduzem politicamente no
conflito entre capital e trabalho, entre burgueses e
proletários” (CINTRA, 2017, p. 32).
Qual o caminho proposto por Marx para destruir o
capitalismo e o Estado por ele constituído? Em primeiro
lugar, os operários deveriam tomar o poder, assumindo
a posse dos meios de produção. A ditadura do
proletariado significaria, portanto, a extinção da ordem
burguesa, bem como dos aparatos jurídicos por ela
constituídos. Posteriormente, o Estado deixaria de ter
qualquer razão para existir: o comunismo significaria o
fim da propriedade privada e, nesses termos, não
haveria qualquer razão que justificasse o aparelho Figura 1. No patrimonialismo, as esferas públicas e privadas confundem-se de
estatal. forma indevida. Um servidor público pode, por exemplo, fazer uso de um bem que
pertence ao Estado enquanto no exercício de sua atividade. No entanto, ele não pode
As atuais doutrinas modernas da teoria política têm agir como se esse bem lhe pertencesse. Da mesma forma, um agente público não
focado seu interesse na questão da separação entre pode abusar do seu poder e da sua autoridade, já que estes (e seus limites) são
estabelecidos por lei.
entre dois territórios, a criação do Estado determinou a
A ideia do surgimento da sociedade civil a partir do construção de uma fronteira entre o que é resultado da
nascimento do Estado é de fundamental importância. sua ação e o que é fruto da ação espontânea ou
Da mesma forma como uma fronteira estabelece o organizada da sociedade. Assim, a sociedade civil
limite engloba iniciativas e ações que não emanam do Estado,
tampouco são por ele tuteladas. Um bom exemplo são
as Organizações Não Governamentais que atuam nas
mais diferentes áreas (educação, saúde e outros
projetos de cidadania): essas organizações não surgem
a partir da ação do Estado; ao contrário, elas surgem
por decisão de grupos de indivíduos que se organizam
em prol de determinados objetivos, em geral no
contexto de áreas em que o Estado falha no
atendimento às necessidades dos indivíduos ou ao
respeito de direitos elementares.
Evidentemente, quanto mais democrático for o
Estado, maiores oportunidades para a sociedade civil se
organizar. Em contrapartida, quanto mais autoritário,
menos chances a sociedade civil tem de participar da
vida política e defender seus interesses.

Observação:
Não foram poucos os casos em que o Estado acabou
por se tornar uma ameaça aos indivíduos: em geral,
isso tem ocorrido com governos extremamente
autoritários e em regimes não democráticos.

Para Motta (2008), é no campo democrático que


surgem os espaços para os conflitos entre os diferentes
grupos sociais que lutam por novos direitos. Isso
equivale a dizer que os direitos não nascem sozinhos;
ao contrário, eles são gestados pela sociedade e pelas
transformações pelas quais ela passa.
As leis mudam em função das mudanças pelas quais
passa a sociedade: há trinta anos, caso comprássemos
uma mercadoria com algum defeito, dependeríamos da
boa vontade do comerciante para que fosse realizada a
troca ou a devolução. Atualmente, contamos com o
Código de Defesa do Consumidor, que nos garante o
direito de sermos reembolsados ou o direito de
devolvermos uma mercadoria que não nos agradou.
As leis são criadas pois parte da sociedade já
internalizou aquilo que elas defendem. Na maior parte
das vezes, as leis surgem exatamente por que a
sociedade mudou seus valores e entendeu que normas
deveriam proteger esses novos valores. Aliás, é usual
que, diante de novas leis, alguns se perguntem se elas
“vão ou não pegar”, como se a concordância da
sociedade fosse condição necessária para que uma lei
fosse respeitada. O fato é que a ideia de “pegar” não
está associada à necessidade ou não de respeitar
determinada norma, mas à percepção de que, se a
sociedade entende ser aquela norma importante, torna-
se desnecessária uma lei para proteger seu conteúdo. direitos – e os conflitos que surgem para defendê-los –
Atualmente, usamos cinto de segurança no carro não
por que haja uma lei que nos obriga a isso, mas porque
entendemos que o respeito a essa norma garante a
nossa segurança e a dos outros.
Nas vertentes modernas da sociologia, parece haver
consenso em relação ao fato de o Estado moderno e
a sociedade civil serem arenas de lutas nas quais os
grupos sociais confrontam-se e buscam conquistar
direitos. É importante, no entanto, esclarecer que a
imagem de uma arena de luta não necessariamente
corresponda ao que o imaginário popular sempre
associou à violência e ao confronto sangrento: na
verdade, com raras exceções, foi no dia a dia e no
cotidiano que os grupos sociais conquistaram direitos
que até então não existiam, ou não eram legitimados
pelas instituições e pela burocracia. Nesse sentido, a
democracia vem se apresentando como o modelo
que, por excelência, permite que grupos sociais
manifestem- se e se façam representar politicamente,
inclusive – e especialmente – buscando construir
novos direitos e ampliar a cidadania (MOTTA, 2008).
Nessa arena de luta não há um único agente
detentor do poder, mas inúmeros agentes que são
portadores de direitos que desejam ver afirmados,
agentes esses dos mais diferentes segmentos da
sociedade, em posição privilegiada ou não. Estamos
falando, portanto, de grupos sociais que fazem pressão
para que os direitos dos consumidores sejam
respeitados, de mulheres que lutaram pelo direito ao
voto, da sociedade que buscou penalizar o trabalho
infantil, de indivíduos que entenderam a importância da
preservação ambiental.
RKO/Album/ Fotoarena

Figura 2. O movimento sufragista no Brasil (o movimento em prol do voto


feminino) conseguiu, em 1932, que fossem retiradas do Código Eleitoral
todas as restrições à participação das mulheres nos processos eleitorais. Os
analfabetos, entretanto, tiveram que esperar até 1985 para que tivessem
garantido o direito ao voto.

À essa altura, você já deve ter percebido que os


são em grande parte fruto dos desenvolvimentos proteger novos direitos. Por isso, no século XXI, juristas,
históricos e sociais. No século XVIII, por exemplo, políticos e pensadores têm discutido sobre direitos que
não havia legislação ambiental, embora houvessem surgiram em função de mudanças tecnológicas
problemas ambientais; no entanto, a sociedade ocorridas recentemente, tais como as associados à
ainda não havia entendido, àquele momento, que a engenharia genética ou à clonagem, apenas para citar
preservação do meio ambiente era um valor que alguns exemplos. Por conta disso, as ONGs
deveria ser defendido por todos, inclusive por força (Organizações Não Governamentais) têm representado
de lei. Segundo Motta (2008, p. 3), setores da sociedade em busca de direitos relacionados
às minorias, ao meio ambiente e às novas formas de
o dinamismo do direito deve-se à sua organização familiar, ações essas que ocorrem
articulação ao momento histórico no qual independentemente de partidos políticos e de
surge. O século XVIII, por exemplo, foi sindicatos. Aliás, são movimentos sociais que não
marcado pela constituição de direitos
correspondem de forma alguma aos antigos conflitos
individuais que visavam, sobretudo, a liberdade
entre capital e trabalho, entre empresários e
religiosa e de propriedade. O século XIX, por
sua vez, através das lutas populares que se
trabalhadores; afinal, não se trata de lutar por uma
travaram de modo generalizado nos países sociedade alternativa ao sistema capitalista, mas de
europeus, teve como marco a conquista dos fazer valer os direitos sociais apesar do modelo
direitos políticos. Assim sendo, o operário e o econômico e político hegemônico. No dizer de Michel
analfabeto conquistaram o direito de votar e Foucault (1926-1984), trata-se das micropolíticas, da
ser votado naquele contexto histórico. Já o atuação dos agentes sociais em favor da pluralidade
século XX caracterizou-se pela formação de política (MOTTA, 2008).
direitos sociais, resultado das lutas sociais Disso resulta que o Estado não é um bloco
travadas pelos sindicatos e partidos operários, monolítico e homogêneo; ao contrário, ao invés de
desde o fim do século XIX.
materializar uma vontade única e hegemônica, ele se
constrói a partir de uma multidão de vontades, todas
Novos tempos fazem emergir novos problemas e legítimas e desejosas de exercer poder político. Como
novos dilemas, e em torno deles, ou por conta deles, a afirma o sociólogo alemão Jürgen Habermas (1929),
sociedade desenvolve instrumentos para criar e
será então a ação comunicativa o fenômeno que
permitirá a ultrapassagem da concepção de mundo
centrada no sujeito, exercendo a função de possibilitar o 2. Democracia e
diálogo para a realização do consenso por meio da
racionalidade comunicativa. Será a fala, a manifestação
organização política
linguística, que permitirá que os sujeitos reconheçam
Nos regimes democráticos representativos, acredita-se
reciprocamente os seus discursos e as suas diferentes
que o poder seja exercício pelo povo. O termo democracia,
percepções do mundo que os cerca.
inclusive, resulta da junção de duas palavras gregas, demos
(povo) e kratos (poder).
O poder político exercido pelo povo teve seu marco na
Ingimge / Fotoarena

Revolução Francesa, que derrubou o antigo regime


monárquico e conquistou uma maior participação popular
nas decisões do governo. Outro marco importante foi a
Revolução Americana que, no início do século XIX, consagrou
a independência dos Estados Unidos do jugo colonial da
Inglaterra.
Em geral, a democracia representativa é materializada
sob a forma de regimes parlamentaristas ou republicanos.
Seus elementos principais são o sufrágio universal (o direito
de voto a todos), a vigência de constituições que norteiam a
vida dos cidadãos, a alternância no poder, e a eleição de
Figura 3. A questão ambiental, e portanto dos direitos ambientais, tem sido
fonte de discussões entre governantes, políticos, pensadores e agentes
representantes diretos para as funções executivas e
sociais desde o final do século XX. Nada mais razoável que, diante de um legislativas. O Brasil é um exemplo de democracia
panorama de crescente escassez de recursos naturais, a sociedade se representativa, na qual os três poderes (Executivo,
organize em prol da defesa das próximas gerações no que diz respeito ao
direito de viver em um planeta ecologicamente sustentável. Legislativo e Judiciário) agem livremente, mas de forma
interdependente.
O poder judiciário é o que julga os cidadãos a partir
Observação: das leis elaboradas pelo poder legislativo. O poder
As democracias participativas caracterizam-se pela judiciário reúne os juízes, os promotores de justiça, os
existência de mecanismos de participação direta da desembargadores, os ministros e os vários tribunais de
população, em geral por meio de plebiscitos ou justiça do país, sendo o STF (Supremo Tribunal Federal)
representantes distritais. a instância maior.
Este modelo de três poderes é a base dos sistemas
As modernas democracias organizam-se em republicanos modernos. Nos regimes parlamentaristas,
torno de três poderes políticos: os poderes inexiste a figura da Presidência da República, sendo o
executivo, legislativo e judiciário. Primeiro-Ministro o encarregado de executar os atos da
O poder executivo é aquele que executa os administração pública.
atos públicos. São exemplos de representantes do Nos países em que ainda há sistemas monárquicos
Executivo os prefeitos, os governadores, os (como na Inglaterra, na Espanha e na Holanda), os
ministros, as secretarias especiais da Presidência, monarcas exercem um papel apenas simbólico, sendo o
os dirigentes dos órgãos de administração pública e poder, em geral, exercido pelo Parlamento. Nos regimes
a Presidência da República. Esses são os agentes monárquicos constitucionais, portanto, o monarca é o
responsáveis pela execução e fiscalização dos atos Chefe de Estado, e o Primeiro-Ministro é o Chefe de
de administração pública. Governo.
O poder legislativo é aquele que produz as leis
que irão governar a vida dos cidadãos. O poder Observação:
legislativo estabelece as leis por meio do Congresso Se a democracia é o regime de governo amparado
Nas monarquias absolutistas, os poderes dos
Nacional (que reúne a Câmara dos Deputados e o pela participação popular por meio de eleições livres e
monarcas são absolutos e concentram as funções
Senado). É importante ressaltar que o poder diretas, a ditadura é o seu oposto, já que representa um
executivas, judiciárias e legislativas. Omã e a Arábia
legislativo também tem a função de fiscalizar o regime de imposição das decisões políticas, sem
Saudita são exemplos de monarquias absolutistas.
poder executivo. qualquer participação do povo.

Considera-se que há ditadura quando as eleições


não são realizadas de forma justa, quando não há b) As Jornadas de 2013
pluralidade de partidos, tampouco alternância no poder,
e se não há liberdade e autonomia para a atuação do Em 2013, várias manifestações sociais eclodiram no
parlamento. No Brasil, tivemos dois períodos ditatoriais: país, a princípio protestando contra o aumento nas
entre 1930 e 1945, sob o governo Getúlio Vargas, e tarifas de ônibus (que passariam a custar 20 centavos a
entre 1964 e 1985, quando o país foi governado por mais). Essas manifestações ecoaram na sociedade
militares não eleitos pelo povo, e as eleições do brasileira que, em peso, foi para as ruas para protestar
Legislativo tiveram que obedecer a regras restritivas contra a corrupção, a precária prestação de serviços
para a participação de candidatos. públicos e os gastos com megaeventos esportivos (tais
como as Olimpíadas e a Copa do Mundo).
Na história da democracia brasileira, dois marcos
extremamente importantes foram:

a) O Movimento das Diretas-Já


Durante os anos de 1983 e 1984, milhões de
brasileiros foram às ruas exigindo eleições diretas para a
Presidência da República. Apesar da intensa mobilização
da sociedade civil, a Emenda Dante de Oliveira, que
previa eleições diretas em 1985, extinguindo-se o
Colégio Eleitoral (reunião de representantes do
Congresso Nacional e dos governos estaduais, que
elegiam indiretamente o Presidente da República) não
foi aprovada. Apesar da não aprovação da Emenda, os
militares afastaram-se do poder, e um civil (Tancredo
Neves) foi eleito para substituir o General Figueiredo na
Presidência. A partir dali, todos os presidentes do Brasil
foram eleitos democraticamente.

? Saiba
mais
em Preto e Branco (2014). Reunindo os acontecimentos na
música, na política e no futebol, o documentário tem a
Campanha das Diretas-Já como cenário para as narrativas
Inicialmente,
sobre os manifestantes
a Democracia Corintiana, foram tratados pela
um movimento que
imprensa
procurouedemocratizar
pela polícia as
de decisões
forma violenta
no clubee de
negativa.
futebol
AoCorinthians,
longo das semanas; no entanto,
sob a liderança uma mudança
dos jogadores Sócratesnae
percepção
Casagrande. O documentário está disponível noprotestos
da mídia fez com que os Youtube,
ganhassem
no link publicidade e apoio, da mesma forma como
acesso em 02 com
aconteceria jun. 2020.
protestos no mundo árabe
(conhecidos como Primavera Árabe, nos quais a
população exigiu que regimes ditatoriais fossem
substituídos por regimes democráticos) e no mundo
ocidental (por exemplo, com o Occupy Wall Street ).
As manifestações de 2013 também ficaram
conhecidas como Movimento dos Vinte Centavos, ou
Jornadas de Junho.

Dave Sanders/ The New York Times/ Fotoarena


Figura 4. Em 2011, nos Estados Unidos, um movimento que se
autodenominou Occupy Wall Street (em português, Ocupe Wall Street)
realizou uma série de protestos contra a desigualdade econômica e contra
o setor financeiro, responsável pela crise econômica de 2008.

Questões sobre o Estado e as relações sociais ? Saiba


entre este e a sociedade têm tido presença constante mais
nos principais vestibulares e no ENEM. A seguir, Sugerimos que você assista ao documentário Junho
trazemos alguns exemplos de conteúdos que já foram (2014), que narra as várias fases das Jornadas de Junho de
alvo de cobrança em provas. 2013, desde os momentos de intensa repressão policial até
a adesão da mídia e da sociedade às reivindicações
populares. O documentário está disponível no Youtube, no
link
=2116s; acesso em: 02 jun. 2020.
Exercícios Propostos

➊ Na década de 1990, os movimentos sociais c) restringe o direito de voto a apenas uma parcela da
camponeses e as ONGs tiveram destaque, ao lado sociedade civil.
de outros sujeitos coletivos. Na d) resulta em uma situação em que algumas pessoas
sociedade brasileira, a ação dos movimentos sociais vem construindo possuem mais direitos que outras.
lentamente um conjunto de práticas democráticas no interior das escolas, e) consagra a ideia de que as diferenças devem se basear na
das comunidades, dos grupos organizados e na interface da sociedade capacidade de cada um.
civil com o Estado. O diálogo, o confronto e o conflito têm sido os
motores no processo de construção democrática.
(M. A. Souza. Movimentos sociais no Brasil.
Disponível em: http://www.ces.uc.pt.
Acesso em: 30 abr. 2010. Adaptado.)

Segundo o texto, os movimentos sociais contribuem para o


processo de construção democrática, porque
Ⓢ A atuação do Judiciário deve ser avaliada mais por
seu aspecto geral, pois sua missão- mor transcende
a) determinam o papel do Estado nas transformações os processos vistos
socioeconômicas. isoladamente. Sua tarefa é produzir uma ordem estável que paire sobre a
b) aumentam o clima de tensão social na sociedade civil. sociedade. Independentemente da matéria-prima que tenha em mãos, o
c) pressionam o Estado para o atendimento das demandas da Judiciário deve produzir uma ordem que permita à sociedade, com suas
sociedade. diferenças e paradoxos, viver e se desenvolver de modo seguro. Por
d) privilegiam determinadas parcelas da sociedade em esse prisma, decisões questionáveis quando vistas isoladamente se
detrimento das demais. justificam quando olhadas sistemicamente, pois foram proferidas tendo em
e) propiciam a adoção de valores éticos pelos órgãos do vista a importância que trariam para a construção da ordem.
Estado. (T. O. H. Vilela. O ativismo judicial e o jogo dos três poderes.
Valor Econômico. 14 jun. 2011. Adaptado.)

Considerando que a sociedade é uma estrutura complexa, com


interesses contraditórios, segundo o texto, as decisões do
Ⓢ Atualmente, a noção de que o bandido não está
Poder Judiciário
protegido pela lei tende a ser aceita pelo senso
a) devem ser infalíveis e imparciais.
comum. Urge mobilizar todas as
forças da sociedade para reverter essa noção letal para o Estado b) interferem na organização da sociedade.
Democrático de Direito, pois, como dizia o grande Rui Barbosa, “A lei c) constroem a ponte entre os demais poderes.
que não protege o meu inimigo, não me serve”. d) eliminam as contradições e as diferenças.
(P. A.Sampaio. Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e) são inquestionáveis.
e direitos. In.: Os Direitos Humanos desafiando o século XXI. Brasília: OAB;
Conselho Federal; Comissão Nacional de Direitos Humanos,
2010.)

No texto, o autor estabelece uma relação entre democracia e


direito que remete a um dos mais valiosos princípios da
Revolução Francesa: a lei deve ser igual para todos. A
inobservância desse princípio é uma ameaça à democracia,
porque
a) diminui o poder de contestação dos movimentos sociais
organizados.
b) favorece a impunidade e a corrupção por meio dos
privilégios de nascimento.
➍ É verdade que nas democracias o povo parece
fazer o que quer; mas a liberdade política não
consiste nisso. Deve-se ter
sempre presente em mente o que é independência e o que é liberdade. A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um
cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais
liberdade, porque os outros também teriam tal poder.
(Montesquieu. Do Espírito das Leis. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. Adaptado.)
A característica de democracia ressaltada por Montesquieu diz
respeito:
a) o status de cidadania que o indivíduo adquire ao tomar as
decisões por si mesmo.
b) ao condicionamento da liberdade dos cidadãos à
conformidade às leis.
➏ Ao longo dos anos 1990, a luta pelas condições
de circulação por parte das pessoas com
c) à possibilidade de o cidadão participar no poder e, nesse necessidades especiais foi
caso, livre da submissão às leis. uma constante na sociedade. Tal mobilização ocasionou ações como o
d) ao livre-arbítrio do cidadão em relação àquilo que é rebaixamento das calçadas, construção de rampas para acesso a pisos
proibido, desde que ciente das consequências. superiores, para possibilitar o acesso ao transporte coletivo, entre
e) ao direito do cidadão exercer sua vontade de acordo outras.
com seus valores pessoais. (M. A. Souza. Movimentos sociais no Brasil contemporâneo:
participação e possibilidades das práticas democráticas. Disponível
em: http://ces.uc.pt. Acesso em: 30 abr. 2010.)

As lutas pelo direito à acessibilidade, movidas, principalmente,


a partir dos anos de 1990, visavam garantir a
a) distribuição de renda.
➎ b) participação política.
c) inclusão social.
d) igualdade jurídica.
e) liberdade de expressão.

De acordo com algumas teorias políticas, a formação do


Estado é explicada pela renúncia que os indivíduos fazem de
sua liberdade natural quando, em troca da garantia de direitos
individuais, transferem a um terceiro o monopólio do exercício
da força. O conjunto dessas teorias é denominado:
a) despotismo.
b) contratualismo.
c) anarquismo.
d) liberalismo.
e) socialismo.
Ⓖ Para que não haja abuso, é preciso organizar as a) exercício de tutela sobre atividades jurídicas e políticas.
coisas de maneira que o poder seja contido pelo b) consagração do poder político pela autoridade religiosa.
poder. Tudo estaria perdido se o c) concentração do poder nas mãos de elites técnico-científicas.
mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou d) estabelecimento de limites aos atores públicos e às
do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as instituições do governo.
resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos e) reunião das funções de legislar, julgar e executar nas mãos de
indivíduos. Assim, criam-se os poderes Legislativo, Executivo e um governante eleito.
Judiciário, atuando de forma independente para a efetivação da
liberdade, sendo que esta não existe se uma mesma pessoa ou grupo
exercer os referidos poderes concomitantemente.
(B. Montesquieu. Do espírito das leis.
São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Adaptado.)

A divisão e a independência entre os poderes são condições


necessárias para que possa haver liberdade em um Estado.
Isso pode ocorrer apenas sob um modelo político em que
haja:
No texto, relaciona-se a consolidação da democracia na África
do Sul à superação de um legado
a) populista, que favorecia a cooptação de dissidentes
políticos.
❽ Tendo encarado a besta do passado olho no olho, b) totalitarista, que bloqueava o diálogo com os movimentos
tendo pedido e recebido perdão e tendo feito sociais.
correções, viremos agora a c) segregacionista, que impedia a universalização da cidadania.
página — não para esquecê-lo, mas para não deixá-lo aprisionar-nos d) estagnacionista, que disseminava a pauperização social.
para sempre. Avancemos em direção a um futuro glorioso de uma nova e) fundamentalista, que engendrava conflitos religiosos.
sociedade sul-africana, em que as pessoas valham não em razão de
irrelevâncias biológicas ou de outros estranhos atributos, mas porque são
pessoas de valor infinito criadas à imagem de Deus.
(Desmond Tutu, no encerramento da Comissão da Verdade
na África do Sul. Disponível em:
http://td.camara.leg.br.
Acesso em: 17 dez. 2012. Adaptado.)
Há dois pilares para a concepção multilateral de
justiça: a ideia de que a relação entre Estados é
baseada na igualdade jurídica e a
noção de que a Carta da ONU deveria promover os direitos humanos e
o progresso social. Do primeiro pilar derivam as normas de não
intervenção, de respeito à integridade territorial e de não ingerência. São
as normas que garantem as condições dos processos deliberativos
justos entre iguais.
(G. Fonseca Jr. Justiça e direitos humanos.
In: R. Nasser (Org.). Novas perspectivas sobre os conflitos
internacionais. São Paulo: Unesp, 2010.)

Nessa concepção de justiça, o cumprimento das normas


jurídicas mencionadas é a condição indispensável para a
efetivação do seguinte aspecto político:
a) Voto censitário.
b) Sufrágio universal.
c) Soberania nacional.
d) Nacionalismo separatista.
e) Governo presidencialista.

.
$

Texto I

Não é sem razão que o ser humano procura de boa vontade


juntar-se em sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem
unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a
que chamo de propriedade.
(J. Locke. Segundo tratado sobre governo:
ensaio relativo à verdadeira origem, extensão
e objetivo do governo civil. São Paulo: Abril Cultural, 1978.)

Texto II

Para que essas classes com interesses econômicos em conflitos


não destruam a si mesmas e à sociedade numa luta estéril, surge a
necessidade de um poder que, na aparência, esteja acima da sociedade,
que atenue o conflito, mantenha- o dentro dos limites da ordem.
(F. Engels. In: L. Gallino. Dicionário de sociologia.
São Paulo: Paulus, 2005.
Adaptado.) (Disponível em: www.redes.unb.br.
Acesso em: 25 maio 2014.)
Os textos expressam duas visões sobre a forma como os
indivíduos se organizam socialmente. Tais visões apontam, A discussão levantada na charge, publicada logo após a
respectivamente, para as concepções: promulgação da Constituição de 1988, faz referência ao
a) Liberal, em defesa da liberdade e da propriedade privada – seguinte conjunto de direitos
Conflituosa, exemplificada pela luta de classes. a) civis, como o direito à vida, à liberdade de expressão e à
b) Heterogênea, favorável à propriedade privada – propriedade.
Consensual, sob o controle de classes com interesses b) sociais, como direito à educação, ao trabalho e à proteção
comuns. à maternidade e à infância.
c) Igualitária, baseada na filantropia – Complementar, com c) difusos, como direito à paz, ao desenvolvimento susten-
objetivos comuns unindo classes antagônicas. tável e ao meio ambiente saudável.
d) Compulsória, na qual as pessoas possuem papéis que se d) coletivos, como direito à organização sindical, à
complementam – Individualista, na qual as pessoas lutam participação partidária e à expressão religiosa.
por seus interesses. e) políticos, como o direito de votar e ser votado, à soberania
e) Libertária, em defesa da razão humana – Contraditória, na popular e à participação democrática.
qual vigora o estado de natureza.

$ Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o preferência para decidir, pois a democracia se confunde com a
protagonista da sociedade industrial é o especialização.
especialista, impossível que venha a ser o d) uma forma de democracia na qual todos podem opinar, mas
cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos apenas dentro de sua especialidade.
podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende e) a inclusão do conhecimento técnico como critério de julgamento,
que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detém visto que ele serviria para agilizar o processo de escolha.
conhecimentos específicos.
(N. Bobbio. O futuro da democracia.
São Paulo: Paz e Terra, 2000.)

Na democracia, a participação dos cidadãos nas decisões deve


ser a mais ampla possível. De acordo com o texto, o exercício
pleno da democracia pressupõe
a) que as decisões sejam tomadas a partir de um princípio
$ A democracia deliberativa afirma que as partes do
conflito político devem deliberar entre si e, por meio
democrático, ou seja, todos têm o direito de opinar a de argumentação
respeito de tudo. razoável, tentar chegar a um acordo sobre as políticas que seja satisfatório para
b) que aqueles que detêm conhecimento técnico em todos. A democracia ativista desconfia das exortações à deliberação por acreditar
determinado assunto sejam os únicos a poder opinar e que, no mundo real da política, onde as desigualdades estruturais influenciam
decidir sobre ele. procedimentos e resultados, processos democráticos que parecem cumprir as
c) que os detentores do conhecimento técnico tenham normas de deliberação geralmente tendem a beneficiar os agentes mais
poderosos. Ela recomenda, portanto, que aqueles que se preocupam
As concepções de democracia deliberativa e de democracia
com a promoção de mais justiça devem realizar principalmente a
ativista apresentadas no texto tratam como imprescindíveis,
atividade de oposição crítica, em vez de tentar chegar a um acordo com
respectivamente,
quem sustenta estruturas de poder existentes ou delas se beneficia.
a) a decisão da maioria e a uniformização de direitos.
(I. M. Young. Desafios ativistas à democracia deliberativa. Revista
b) a organização de eleições e o movimento anarquista.
Brasileira de Ciência Política. n. 13. jan.-abr. 2014.)
c) a obtenção do consenso e a mobilização das minorias.
d) a fragmentação da participação e a desobediência civil.
e) a imposição de resistência e o monitoramento da liberdade.

O conceito de democracia, no pensamento de


Habermas, é construído a partir de uma dimensão
procedimental, calcada no
discurso e na deliberação. A legitimidade democrática exige que o
processo de tomada de decisões políticas ocorra a partir de uma ampla
discussão pública, para somente então decidir. Assim, o caráter
deliberativo corresponde a um processo coletivo de ponderação e análise,
permeado pelo discurso, que antecede a decisão.
( Denise Vitale. Jügen Habermas, modernidade e democracia deliberativa.
Cadernos do CRH (UFBA), v. 19, 2006. Adaptado.)

O conceito de democracia proposto por Jürgen Habermas


pode favorecer processos de inclusão social. De acordo com o
texto, é uma condição para que isso aconteça o(a)
a) participação direta periódica do cidadão.
b) debate livre e racional entre cidadãos e Estado.
c) interlocução entre os poderes governamentais.
d) eleição de lideranças políticas com mandatos temporários.
e) controle do poder político por cidadãos mais esclarecidos.

$ Em um governo que deriva sua legitimidade de


eleições livres e regulares, a ativação de uma Um dos teóricos da democracia moderna, Hans
corrente comunicativa entre a sociedade Kelsen, considera elemento essencial da democracia
política e a civil é essencial e constitutiva, não apenas inevitável. As real (não da democracia ideal,
múltiplas fontes de informação e as variadas formas de comunicação e que não existe em lugar algum) o método da seleção dos líderes, ou
influência que os cidadãos ativam através da mídia, movimentos sociais seja, a eleição. Exemplar, neste sentido, é a afirmação de um juiz da
e partidos políticos dão o tom da representação em uma sociedade Corte Suprema dos Estados Unidos, por ocasião de uma eleição de
democrática. 1902: “A cabine eleitoral é o templo das instituições americanas, onde
(N. Urbinati. O que torna a representação democrática?
cada um de nós é um sacerdote, ao qual é confiada a guarda da arca da
aliança e cada um oficia do seu próprio altar".
Lua Nova, n. 67, 2006.)
(N. Bobbio. Teoria geral da política. Rio
Esse papel exercido pelos meios de comunicação favorece de Janeiro: EIsevier, 2000. Adaptado.)
uma transformação democrática em função do(a)
a) limitação dos gastos públicos. As metáforas utilizadas no texto referem-se a uma concepção
b) interesse de grupos corporativos. de democracia fundamentada no(a)
c) dissolução de conflitos ideológicos. a) justificação teísta do direito.
d) fortalecimento da participação popular. b) rigidez da hierarquia de classe.
e) autonomia dos órgãos governamentais. c) ênfase formalista na administração.
d) protagonismo do Executivo no poder.
. e) centralidade do indivíduo na sociedade.
Referências

Textuais
CINTRA, Wendel Antunes. Estado e Sociedade. Salvador: UFBA, 2017.
GOMES, Ronaldo Martins. A democracia deliberativa de Jürgen Habermas. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em
Filosofia da UFSCar, 2012. Disponível em: http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-content/uploads/2012/05/39-Ronaldo-Martins-
Gomes-A-democracia-deliberativa-de-Jurgen-Habermas.pdf. Acesso em: 07 jun. 2020.
MOTTA, Luiz Eduardo. Estado e sociedade civil num contexto democrático: arenas de conflitos e de constituição de direitos. Alceu,
v. 8, n. 6, 2008. Disponível em: http://revistaalceu-acervo.com.puc-rio.br/media/alceu_n16_Motta.pdf; 20 maio 2020.

Audiovisuais
Democracia em preto e branco. Dir. Pedro Asberg. Documentário. Brasil, 2014. 90 minutos.
Junho. Dir. João Wainer. Documentário. Brasil, 2014. 91 minutos.
Marx e o materialismo dialético histórico: um método
para a reflexão sobre as transformações sociais e um
8 instrumento de luta e intervenção

As mudanças ocorridas ao final do século XIX e início do do produto do trabalho. A práxis (as práticas da vida) não era
século XX provocaram transformações profundas nas maneiras de determinada pelas ideias, mas as ideias eram construídas por
se ver e entender a realidade. Neste módulo, estudaremos as meio da práxis material (MARX; ENGELS, 2009).
ideias de Marx e como elas determinaram, a partir dali, a Karl Marx (1818 – 1883) nasceu na Alemanha, filho de um
abordagem das relações econômicas e o conflito entre as classes advogado público. Inicialmente, seus estudos superiores foram na
sociais. área do Direito, mas, depois de ter sua carreira pública impedida
por sua oposição ao governo, Marx resolveu estudar Filosofia.
Sem conseguir sucesso nas suas tentativas de trabalhar como
1. Introdução professor, dedicou-se ao jornalismo econômico. Depois de o seu
jornal ter sua circulação proibida, Marx casou-se com a filha de
Foram muitas as mudanças ocorridas ao final do século XIX um barão alemão (FUSFELD, 2013).
e início do século XX, inclusive no contexto do desenvolvimento
do conhecimento científico. Àquele instante, o positivismo de
Auguste Comte (1798-1857) havia levado a sociedade a acreditar
que o mundo caminhava – de forma linear e sistemática – em direção

Ingimge / Fotoarena
a um futuro em que o progresso era inevitável; a genética,
inclusive, poderia ser utilizada para eliminar indesejadas
características da espécie humana e comprovar a suposta
superioridade racial dos europeus (HOBSBAWM, 2009). A
matemática, por sua vez, distanciava-se de qualquer
correspondência com o real, impedindo que as pessoas – por
meio da experiência e dos sentidos – conseguissem entender seus
postulados. No campo da Física, as teorias da física quântica, de
Max Plank (1858-1947) e da relatividade, de Albert Einstein (1879-
1955) davam um golpe mortal na concepção de um mundo
mecânico cujo funcionamento poderia ser acessado por meio dos
sentidos e da lógica. Afinal, aquele foi um tempo de muitas
indagações: se a Terra já existia antes do surgimento da espécie
humana, seriam os objetos criação do pensamento humano? Era o
pensamento que criava os objetos (conforme afirmavam os
idealistas) ou a matéria precedia o pensamento (como
preconizavam os materialistas)?
A concepção materialista histórica tem como
origem os trabalhos de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Figura 1: Karl Marx
Engels (1820-1895), e a base desta concepção foi a realidade
material, um mundo que envolvia pessoas reais, vivendo num Segundo Fusfeld (2013), Marx passou a circular por entre os
mundo real e buscando satisfazer necessidades reais. Para os dois
círculos socialistas; lá, conheceu Proudhon, que o influenciou de
pensadores, as estruturas construídas socialmente – o Estado, a
forma significativa. A ideia de Proudhon a respeito de a propriedade
linguagem, a religião, as ideologias e as formas de organização
privada ser um roubo ecoou na mente de Marx. Posteriormente, ele
familiar – haviam resultado da luta do ser humano pela
romperia com Proudhon em função da discordância sobre a pressão
sobrevivência, dadas as condições materiais que determinavam
do aumento populacional sobre os níveis de salários, mas é inegável
a divisão do trabalho e a luta entre classes sociais pela
a influência do filósofo francês na obra marxista. Nesse círculo de
apropriação
amizades, Marx também conheceu Engels (1820-1895), filho de
um rico industrial alemão.
Marx e Engels formaram uma longeva e produtiva parceria.
Foram amigos, além de colaboradores: por várias vezes, Engels
socorreu a família Marx, especial- mente quando esta se via 2. O contexto revolucionário do
envolta em problemas financeiros. final do século XIX e início do
século XX
Não foi apenas a oposição ao idealismo filosófico que
? Saiba mais
estimulou a investigação materialista histórica: os resultados da
A dialética, segundo Stalin (1945), “quer dizer diálogo ou
segunda onda da Revolução Industrial haviam deixado rastros de
polêmica. Os antigos entendiam por dialética a arte de
miséria, fome e degradação das condições de vida dos
descobrir a verdade evidenciando as contradições
trabalhadores. Não à toa, a Europa assistia, assustada, às
implícitas na argumentação do adversário e superando essas
inúmeras greves e manifestações revolucionárias promovidas
contradições. Alguns filósofos da antiguidade entendiam
pelos trabalhadores. Era necessário não apenas explicar o caos
que o descobrimento das contradições no processo
histórico mas, acima de tudo, esclarecer como os conflitos entre o
discursivo e o choque das opiniões contrapostas era o melhor
capital e o trabalho poderiam ser resolvidos.
meio para encontrar a verdade. Esse método dialético de
pensamento, que mais tarde se fez extensivo aos fenômenos
naturais, converteu-se no método dialético de conhecimento da

?
natureza, consistente em considerar os fenômenos naturais
Saiba como sujeitos a perpétuo movimento e transfor- mação e o
mais desenvolvimento da natureza como o resultado do
Esse período ficou marcado pela disseminação das desenvolvimento das contradições existentes nesta última,
correntes do socialismo utópico, pela publicação do como o resultado da ação mútua das forças contraditórias no
Manifesto Comunista (1848), pela organização da seio da natureza” (STALIN, 1945).
Primeira Internacional (1864), pela Segunda Josef Stalin (1878-1953), autor do trecho acima citado, foi
Internacional (1889), pela publicação de O Capital um dirigente soviético que comandou a União Soviética
(1867), pelos escritos anarquistas, pela Comuna de Paris durante mais de três décadas. Segundo uma corrente
(1871) e pela mobilização política sindical e partidária do historiográfica, Stalin foi um ditador, tendo perseguido de
operariado. forma implacável seus inimigos políticos, entre eles Leon
Sugerimos que você assista ao filme Os Miseráveis Trotsky (1879- 1940), que acabou sendo assassinado no
(2012). A narrativa fala sobre a reinserção social de um México por um agente stalinista.
ex-condenado (e a busca obsessiva de um policial que O pensamento de Trotsky é ainda uma vertente
deseja prendê-lo novamente) e tem como pano de fundo extremamente importante do marxismo, da mesma forma que o
os movimentos revolucionários de julho de 1830, quando são as ideias de Stalin. As ideias de Stalin formaram o que
o povo francês e a burguesia liberal realizaram contínuos se convencionou chamar de marxismo-leninismo, tornando-se
atos de levante contra o rei. a base do governo revolucionário e da ação comunista fora da
União Soviética. Após a sua morte, inúmeros documentos
comprovaram os atos de violência sob o seu comando, e
que incluíram deportações, repressões em massa e
A concepção materialista da história previra isso: a história
execuções.
nada mais era do que uma sucessão de relações recheadas de
Sugerimos que você assista ao filme O Eleito (cujo título
conflitos e contradições. O mundo sensível era “um produto
original é El Elegido), de 2016, que narra o assassinato de
histórico, resultado de várias gerações; sem a sobrevivência
Trotsky.
material dos seres humanos, não haveria fazer histórico”
(ENGELS, 2016,
p. 21). Ainda, havia sido o processo dialético entre o sujeito e o
Segundo o materialismo histórico, se os fenômenos da natureza
objeto o que determinara a formação da consciência e da
ocorriam de forma articulada e única, e se esses fenômenos eram
inteligência humana.
interdependentes, o estudo do mundo material e da sociedade
exigia a compreensão do contexto, dos seus movimentos e das
suas trans- formações.
O mundo estava em constante movimento, e a história não
era uma sucessão de fatos isolados:
se todos os fenômenos estão vinculados entre si e se (STALIN, 1945).
condicionam uns aos outros, é evidente que todo regime
social e todo movimento social que aparece na história Qual era o fator determinante dos eventos históricos e dos sistemas
deve ser julgado não do ponto de vista da ‘justiça eterna’ econômicos? Para Marx e Engels, as necessidades materiais
ou de qualquer outra ideia preconcebida, que é o que determinavam as ações humanas, o modo de produção determinava a
costumam fazer os historiadores, mas do ponto de vista das vida em sociedade e a posse dos meios de produção determinava as
condições que engendraram esse regime e esse relações sociais. O modo de produção compreendia as formas como as
movimento sociais e às quais se acham vinculados
quais bens e serviços eram produzidos; os meios de produção – venção e luta. Os fenômenos do mundo material e da história
incluído o trabalho – eram os recursos necessários para que os poderiam ser transformados, e Marx e Engels, em o Manifesto
bens e serviços pudessem ser produzidos. Comunista, propuseram novas alternativas para um futuro melhor
para o proletariado (os operários). Afinal, havia uma contradição
inerente ao modelo capitalista:

O fato de que enquanto a produção em si é cada vez mais


socializada, o resultado do trabalho coletivo, a
apropriação, é privado, individual. O trabalho cria, o capital
se apropria. No capitalismo, a criação pelo trabalho já se
tornou uma empresa conjunta, um processo cooperativo
com milhares de operários trabalhando em conjunto
(frequen- temente, para produzir apenas uma coisa, como
por exemplo o automóvel). Mas os produtos, socialmente
produzidos, são apropriados não pelos seus produtores,
mas pelos donos dos meios de produção – os capitalistas.
E ai está o problema – a origem do conflito. A produção
Figura 2. Marx e Engels, no Memorial em Berlim. socializada contra a apropriação capitalista
(HUBERMAN, 1974, p. 293).
O capitalismo tinha como característica básica a posse dos
meios de produção por parte de uma determinada classe social,
Marx e Engels desenvolveram um raciocínio bem simples:
restando à outra apenas o seu trabalho para vender no mercado
se o fato de possuir os meios de produção havia possibilitado ao
como se fosse uma mercadoria. O capitalista era proprietário
capitalista realizar a exploração da mão de obra, o trabalhador
das máquinas e do capital que permitia a contratação dos fatores
poderia conseguir sua liberdade desde que novas estruturas
de produção; por sua vez, o trabalhador tinha apenas a sua mão
sociais fossem propostas, ou seja, era possível tirar o trabalhador
de obra para vender.
do jugo do capital por meio de novas estruturas sociais. Em outras
Como essas classes sociais haviam se constituído? A
palavras, a realidade histórica, como fruto das contradições
insuficiência dos meios de produção teria feito surgirem as
existentes no sistema produtivo, era passível de transformações
classes sociais, e os conflitos entre eles se converteriam no motor
por meio das ações dos sujeitos sociais. A história não devia ser
da história (ENGELS, 2016). Havia a classe capitalista, dona dos
apenas narrada, mas transformada, e por meio do materialismo
meios de produção, e a classe trabalhadora, dona da sua força de
histórico era possível perceber que o futuro do capitalismo não
trabalho.
apenas estava ameaçado, mas que o seu final poderia ser
Os modos de produção determinavam a existência de
antecipado por meio de uma ação revolucionária por parte dos
diferentes classes sociais, e o materialismo histórico não constituía
trabalhadores.
apenas um poderoso método de análise da histórica, mas também
Em Bruxelas (1848), e após Marx ter sido expulso da França,
oferecia uma dialética filosófica a ser utilizada como
os dois publicaram o Manifesto Comunista. Por meio deste
instrumento de inter-
documento, Marx e Engels explicaram a natureza do capitalismo e
do comunismo e convocaram os trabalhadores à extinção da
exploração do trabalho pelo capital.

Os comunistas são, pois, na prática [praktisch], o sector


mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos
operários de todos os países; na teoria, eles têm, sobre a
restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência
das condições, do curso e dos resultados gerais do
movimento proletário. O objetivo mais próximo dos
comunistas é o mesmo do que o de todos os restantes
partidos proletários: formação do proletariado em classe,
derrubamento da dominação da burguesia, conquista do que se processa diante dos nossos olhos. A abolição de
poder político pelo proletariado. relações de propriedade até aqui não é nada de
As proposições teóricas dos comunistas não repousam peculiarmente característico do comunismo.
de modo nenhum em ideias, em princípios, que foram Todas as relações de propriedade estiveram submetidas
inventados ou descobertos por este ou por aquele a uma constante mudança histórica, a uma constante
melhorador do mundo. transformação histórica.
São apenas expressões gerais de relações efetivas de A Revolução Francesa, p. ex., aboliu a propriedade feudal a
uma luta de classes que existe, de um movimento histórico favor da burguesa. O que distingue o comunismo não é a
abolição da propriedade em geral, mas a abolição da O capital não é, portanto, um poder pessoal, é um poder
propriedade burguesa. Mas a moderna propriedade privada social.
burguesa é a expressão última e mais consumada da geração Se, portanto, o capital é transformado em propriedade
e apropriação dos produtos que repousam em oposições comunitária, pertencente a todos os membros da sociedade,
de classes, na exploração de umas pelas outras. a propriedade pessoal não se transforma então em
Neste sentido, os comunistas podem condensar a sua teoria propriedade social. Só se transforma o carácter social da
numa única expressão: supressão [Aufhebung] da propriedade. Perde o seu carácter de classe.
propriedade privada. Vejamos agora o trabalho assalariado: [...]
Têm-nos censurado, a nós, comunistas, de que Queremos suprimir apenas o carácter miserável desta
quereríamos abolir a propriedade adquirida apropriação, em que o operário só vive para multiplicar o
pessoalmente, fruto do trabalho próprio – a propriedade capital, só vive na medida em que o exige o interesse da
que formaria a base de toda a liberdade, atividade e classe dominante.
autonomia pessoais. Na sociedade burguesa o trabalho vivo é apenas um meio
Propriedade fruto do trabalho, conseguida, ganha pelo para multiplicar o trabalho acumulado. Na sociedade
próprio! Falais da propriedade pequeno- burguesa, comunista o trabalho acumulado é apenas um meio para
pequeno-camponesa, que precedeu a propriedade ampliar, enriquecer, promover o processo da vida dos
burguesa? Não precisamos de a abolir, o desenvolvimento operários.
da indústria aboliu-a e abole-a diariamente. [...]
Ou falais da moderna propriedade privada burguesa? Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não
Mas será que o trabalho assalariado, o trabalho do têm. Na medida em que o proletariado tem primeiro de
proletário, lhe cria propriedade? De modo nenhum. Cria conquistar para si a dominação política, de se elevar a
o capital, i. é, a propriedade que explora o trabalho classe nacional, de se constituir a si próprio como nação,
assalariado, que só pode multiplicar-se na condição de ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no
sentido da burguesia.
gerar novo trabalho assalariado para de novo o explorar. A
Os isolamentos e as oposições nacionais dos povos vão
propriedade, na sua figura hodierna, move-se na oposição
desaparecendo já cada vez mais com o desenvolvimento da
de capital e trabalho assalariado. Consideremos ambos
burguesia, com a liberdade de comércio, com o mercado
os lados desta oposição.
mundial, com a uniformidade da produção industrial e
Ser capitalista significa ocupar na produção uma posição
com as relações de vida que lhe correspondem.
não só puramente pessoal, mas social. O capital é um
A dominação do proletariado fá-los-á desaparecer ainda
produto comunitário e pode apenas ser posto em
mais. A unidade de ação, pelo menos dos países
movimento por uma atividade comum de muitos civilizados, é uma das primeiras condições da sua
membros, em última instância apenas pela atividade libertação. À medida que é suprimida a exploração de um
comum de todos os membros da sociedade. indivíduo por outro, é suprimida a exploração de uma
nação por outra. Com a oposição das classes no interior
da nação cai a posição hostil das nações entre si.
As acusações contra o comunismo que são levantadas
sobretudo a partir de pontos de vista religiosos, filosóficos
e ideológicos não merecem discussão pormenorizada.
Será preciso uma inteligência profunda para
compreender que com as relações de vida dos homens,
com as suas ligações sociais, com a sua existência social,
mudam também as suas representações, intuições e
conceitos, numa palavra, [muda] também a sua
consciência?
Que prova a história das ideias senão que a produção
espiritual se reconfigura com a da material? As ideias
dominantes de um tempo foram sempre apenas as
ideias da classe dominante (MARX; ENGELS, 1999,
trechos selecionados).
O materialismo histórico enriqueceu a reflexão sobre a realidade e
a ação política. Contrariamente ao que os marxistas haviam previsto, a
revolução teve início na Rússia, e não na Alemanha. Esta encontrava-
se num estágio muito mais avançado em termos de organização
capitalista; no entanto, as condições de extrema pobreza no território
russo haviam se somado ao espírito revolucionário, dando origem a um
processo de ruptura do mundo capitalista russo ainda em
desenvolvimento. Em março de 1917, o czar russo Nicolau II (1868-1918)
foi deposto; a burguesia, que havia participado do processo de Posteriormente, Vladimir Ilyich Ulianov, conhecido pelo nome de
destituição do czar, sob a liderança de Alexander Fyódorovich Lenin (1870-1924), rompeu com o governo de Kerensky: seu
Kérensky (1881-1970), montou o governo provisório em objetivo era estabelecer a ditatura do proletariado. Com Léon
substituição à administração czarista. Trotsky (1879-1940) à frente da milícia revolucionária, em outubro
de 1917, o Partido Bolchevique derrubou o governo burguês que até
então comandara a Rússia, instituindo enfim um governo
socialista. Os operários passaram a fazer parte dos conselhos que
administravam as esferas da economia e as propriedades privadas
foram estatizadas. As forças livres do mercado haviam sido
substituídas pela concentração de poder nas mãos do Estado
governado pelos trabalhadores revolucionários.

3. O lucro do capital.
A mais-valia. A alienação
Para Marx, o capitalismo seria uma forma de organização
econômica em que diferentes agentes se inter-relacionavam e se
comunicavam. O papel que cada um dos agentes desempenhava
dependia do papel que os demais desempenhavam. Assim, o
capital era capital porque era investido em atividades produtivas,
comprando força de trabalho. Em outras palavras, o capital não seria
capital sem a força de trabalho. A força de trabalho não faria
Figura 3. Nota de cem rublos impressa em 1910. sentido algum tomada individualmente; ela só era força de trabalho
quando pensada como insumo de produção que o capitalista iria
adquirir para produzir mercadorias.
A sociedade funcionava de forma análoga a um prédio: a base (a
infraestrutura) era formada pelas relações de classes
? Saiba estabelecidas em determinado sistema econômico. A
mais superestrutura, por sua vez, correspondia ao aparato estatal e às suas
instituições, à cultura, às ciências, às artes e aos demais
A família imperial foi presa pelo Governo Provisório de
componentes ideológicos (superestrutura ideológica).
Kerensky. Em 1918, os bolcheviques executaram a tiros o
czar Nicolau II e sua família, com o objetivo de impedir
que a família imperial fosse resgatada por anticomunistas.

Ingimge / Fotoarena
Os corpos foram enterrados em dois locais diferentes,
depois de queimados. Até hoje, as pesquisas históricas
não encontraram evidências sobre a identidade do
mandante da execução.

Figura 4. Para Marx, a sociedade poderia ser descrita de forma análoga às


formas como descreveríamos um edifício: havia uma infraestrutura (a base)
e a superestrutura (conjunto de regulamentações, sanções e coerções
impostas para o funcionamento do sistema).
A superestrutura havia sido construída por meio dos conflitos Outra questão dirigia a análise de Marx: como, afinal, se
de interesses das diferentes classes que faziam parte da concretizava a exploração da mão de obra? Como surgia o lucro,
sociedade, e sua função era manter as relações econômicas que se o valor de uma mercadoria dependia da quantidade de trabalho
sustentavam o sistema. Esse controle era realizado por meio da nela incorporado e esse valor era pago por meio de salários?
regulamentação, das sanções e coerções impostas pela Para Marx, a exploração ocorria por meio da apropriação da
superestrutura política e pela força persuasiva da superestrutura mais-valia, já que o trabalho era uma mercadoria diferente: ele era
ideológica.
oferecido pelo trabalhador, adquirido pelo capitalista e utilizado para deles expropriada e convertida em capital, ou seja, em
a produção de mercadorias. O lucro vinha do fato de o trabalhador instrumento da continuada subjugação daqueles que o haviam
vender o seu trabalho ao custo de sua sobrevivência, mas criado” (GORENDER, 1986, p. IX). Alienados e massacrados
produzir mercadorias que eram vendidas a um preço maior. pelo sistema, aos trabalhadores sobrava a esperança de um
Assim, enquanto o trabalhador trabalhava para se manter (e vendia emprego e de um salário; os desempregados, em contrapartida,
o seu trabalho pelo valor necessário para a sua manutenção), o formariam o exército industrial de reserva e competiriam pelos
capitalista utilizava esse recurso para produzir mercadorias e auferir poucos postos de trabalho. Não havia outra saída: quaisquer que
lucro. Essa diferença surgia da apropriação das horas fossem as circunstâncias, o proletariado sempre perderia;
trabalhadas pelo operário, mas não remuneradas. A essa diferença, quaisquer que fossem as condições, o capital sempre conseguiria
Marx deu o nome de mais-valia (PRADO JÚNIOR, 1973). sobreviver. Por isso, em Manifesto Comunista, Marx e Engels
Como o capitalismo precisava sempre crescer, a concorrência conclamam os trabalhadores à revolução.
entre as empresas levaria à substituição do trabalho humano pela
tecnologia; no entanto, o lucro não vinha da máquina, já que o Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e
capitalista pagava por ela exatamente o seu valor. O lucro só propósitos. Declaram aberta- mente que os seus fins só
poderia vir da compra de trabalho e da produção de mercadorias, podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a
ou seja, da apropriação das horas trabalhadas pelo trabalhador, mas ordem social até aqui. Podem as classes dominantes
não remuneradas. Como a taxa de lucro tendia à diminuição, a tremer ante uma revolução comunista! Nela os
única forma de compensar essa queda era aumentar a exploração do proletários nada têm a perder a não ser as suas
trabalhador, mantendo os salários ao nível de subsistência. cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os
Assim, a própria competição capitalista acabaria por levar o países, uni-vos! (MARX; ENGELS, 1999, p. 65).
sistema à destruição.
A partir desse cenário, Marx desenvolveu o conceito de
alienação: “a alienação constituía o processo por meio do qual a ? Saiba
criação da riqueza pelos operários era mais
Segundo Marx, a alienação ocorre quando o traba- lhador
já não se reconhece mais no trabalho que faz. Em outras
palavras: se ele participa apenas de uma ínfima etapa do
trabalho, ele perde a visão do conjunto; ao perder a visão
do conjunto, ele não consegue mais reconhecer o que é o
fruto do seu trabalho.
Sugerimos que você assista ao filme Tempos Modernos
(1936), disponível em: Acesso em: 11 set. 2020. Neste
filme, há uma sequência na qual pode ser visto um
operário operando uma máquina, completamente sem
visão do todo e do conjunto do seu trabalho, ele mesmo
também se transformando em máquina.
Exercícios Propostos

➊ Na produção social que os homens realizam, Ⓢ (FGV) – Com base no materialismo histórico de Karl Marx, o estudo
eles entram em determinadas relações da sociedade deve ter como ponto de partida
indispensáveis e independentes
de sua vontade; tais relações de produção correspondem a um estágio a) uma ideia ou conceito previamente fixado pelo pesquisador.
definido de desenvolvimento das suas forças materiais de produção. A b) o entendimento das intenções subjetivas dos atores sociais.
totalidade dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade – c) as ideias da classe dominante e sua relação de dominação com a
fundamento real, sobre o qual se erguem as superestruturas política e sociedade.
jurídica, e ao qual correspondem determinadas formas de consciência d) a análise das relações do homem com a natureza e das relações
social. entre homens na atividade produtiva.
(K. Marx. Prefácio à Crítica da economia política. In. K. e) o comportamento humano diante dos problemas nascidos nas
Marx, F. Engels. Textos 3. São Paulo. Edições Sociais, relações familiares.
1977. Adaptado.)

Para o autor, a relação entre economia e política estabelecida no sistema


capitalista faz com que
a) o proletariado seja contemplado pelo processo de mais- valia. Ⓢ (UEG) – Para Marx, diante da tentativa humana de explicar a realidade
b) o trabalho se constitua como o fundamento real da produção e dar regras de ação, é preciso considerar as formas de conhecimento
material. ilusório que mascaram os conflitos sociais.
c) a consolidação das forças produtivas seja compatível com o progresso Nesse sentido, a ideologia adquire um caráter negativo, torna- se um
humano. instrumento de dominação na medida em que naturaliza o que deveria ser
d) a autonomia da sociedade civil seja proporcional ao explicado como resultado da ação histórico- social dos homens, e
desenvolvimento econômico. universaliza os interesses de uma classe como interesse de todos. A partir
e) a burguesia revolucione o processo social de formação da de tal concepção de ideologia, constata-se que
consciência de classe. a) a sociedade capitalista transforma todas as formas de consciência em
representações ilusórias da realidade conforme os interesses da
classe dominante.
b) ao mesmo tempo que Marx critica a ideologia ele a considera um
elemento fundamental no processo de emancipação da classe
trabalhadora.
c) a superação da cegueira coletiva imposta pela ideologia é um produto
do esforço individual principalmente dos indivíduos da classe
dominante.
d) a frase “o trabalho dignifica o homem” parte de uma noção genérica e
abstrata de trabalho, mascarando as reais condições do trabalho
alienado no modo de produção capitalista.
➍ ➎ (UNICAMP) – A história de todas as sociedades tem sido a
história das lutas de classe. Classe oprimida pelo despotismo feudal, a
burguesia conquistou a soberania política no Estado
moderno, no qual uma exploração aberta e direta substituiu a exploração
Texto I velada por ilusões religiosas. A estrutura econômica da sociedade
Cidadão condiciona as suas formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas. Não é a consciência do
Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a Eu nem posso olhar pro prédio Que eu
levantar ajudei a fazer.
Foi um tempo de aflição Eram
quatro condução Duas pra ir, (L. Barbosa. In: ZÉ RAMALHO. 20 Super Sucessos. Rio de
duas pra voltar Hoje depois Janeiro: Sony Music, 1999. Fragmento.)
dele pronto Olho pra cima e
fico tonto Mas me vem um Texto II
cidadão E me diz desconfiado
“Tu tá aí admirado O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua
Ou tá querendo roubar?” produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma
Meu domingo tá perdido Vou mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. Esse fato
pra casa entristecido Dá simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o seu
vontade de beber produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força
E pra aumentar meu tédio independente do produtor.
(K. Marx. Manuscritos econômicos-filosóficos (Primeiro homem que determina o seu ser, mas, ao contrário, são as relações de
manuscrito). São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. Adaptado.) produção que ele contrai que determinam a sua consciência.
(K. Marx e F. Engels, Obras escolhidas. São
Com base nos textos, a relação entre trabalho e modo de produção Paulo: Alfa-Ômega, s./d., vol 1, p. 21-23, 301-302.
capitalista é Adaptado.)
a) baseada na desvalorização do trabalho especializado e no aumento da
demanda social por novos postos de emprego. As proposições dos enunciados acima podem ser associadas ao
b) fundada no crescimento proporcional entre o número de pensamento conhecido como
trabalhadores e o aumento da produção de bens e serviços. a) materialismo histórico, que compreende as sociedades humanas a
c) estruturada na distribuição equânime de renda e no declínio do partir de ideias universais independentes da realidade histórica e
capitalismo industrial e tecnocrata. social.
d) instaurada a partir do fortalecimento da luta de classes e da criação da b) materialismo histórico, que concebe a história a partir da luta de
economia solidária. classes e da determinação das formas ideológicas pelas relações de
e) derivada do aumento da riqueza e da ampliação da exploração do produção.
trabalhador. c) socialismo utópico, que propõe a destruição do capitalismo por meio de
uma revolução e a implantação de uma ditadura do proletariado.
d) socialismo utópico, que defende a reforma do capitalismo, com o fim da
exploração econômica e a abolição do Estado por meio da ação direta.
➏ (UNESP-2019 – modificada) – Um homem transporta o fio d) a produtividade do artesanato e o conhecimento da totalidade do
metálico, outro endireita-o, um terceiro corta-o, um quarto aguça a processo produtivo pelos trabalhadores ingleses, relacionando a
extremidade, um quinto prepara a extremidade noção de riqueza ao acúmulo de metais nobres.
superior para receber a cabeça; para fazer a cabeça são precisas duas e) a disciplina no trabalho e o parcelamento de tarefas presentes nas
ou três operações distintas; colocá-la constitui também uma tarefa manufaturas e fábricas inglesas, associando o crescimento da riqueza à
específica, branquear o alfinete, outra; colocar os alfinetes sobre o papel produtividade do trabalho e que, segundo Marx, alienavam o trabalhador
da embalagem é também uma tarefa independente. [...] Tive ocasião do resultado do seu trabalho.
de ver uma pequena fábrica deste tipo, em que só estavam empregados
dez homens, e onde alguns deles, consequentemente, realizavam duas .
ou três operações diferentes. Mas, apesar de serem muito pobres, e
possuindo apenas a maquinaria estritamente necessária, [...]
conseguiam produzir mais de quarenta e oito mil alfinetes por dia. Se
dividirmos esse trabalho pelo número de trabalhadores, poderemos
considerar que cada um deles produz quatro mil e oitocentos alfinetes por
dia; mas se trabalhassem separadamente uns dos outros, e sem terem
sido educados para este ramo particular de produção, não
conseguiriam produzir vinte alfinetes, nem talvez mesmo um único
alfinete por dia.
(Adam Smith. Investigação sobre a natureza e as
causas da riqueza das nações, 1984.)

O texto, originalmente publicado em 1776, evidencia


a) o avanço tecnológico representado pelo surgimento da fábrica na
Inglaterra e o consequente aumento da produtividade, fatores
fundamentais para o desenvolvimento dos movimentos
revolucionários em toda a Europa.
b) o crescimento do mercado consumidor e a maior velocidade na
distribuição das mercadorias inglesas, destacando o vínculo entre
riqueza e uma boa relação entre oferta e procura.
c) a força crescente dos sindicatos e das federações de trabalhadores
na Inglaterra, enfatizando o princípio marxista de que apenas o trabalho
permite a geração de riqueza.
Referências

Textuais
ENGELS, Friedrich. Ludwing Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. São Paulo: Edições Iskra, 2016. GORENDER, J. introdução. In:
Karl Marx. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
FUSFELD, D. A Era do Economista. São Paulo: Saraiva, 2013.
HEILBRONER, R. A História do Pensamento Econômico. Coleção Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1996. HUBERMAN, L. História
da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
MARX, K. H.; ENGELS, F. O Manifesto Comunista. Ebooks Brasil, 1999.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. 1. ed., São Paulo: Expressão Popular, 2009.
PRADO JÚNIOR, C. Teoria marxista do conhecimento e método dialético materialista. In: Discurso. Revista do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ano IV, no. 4, pp. 41-78, 1973.
STALIN, J. V. Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico. Rio de Janeiro: Horizontes, 1945. Disponível em: Acesso em: 11 set.
2020.

Visuais
O Eleito (El Elegido). Direção: Antonio Chavarrias. Espanha: Oberón Cinematográfica, 2016). 125 min.
Os miseráveis. Direção: Tom Hooper. Reino Unidos; Estados Unidos: Working Title Films, 2012). 158 min.
Tempos Modernos: Direção: Charles Chaplin. Estados Unidos: Charles Chaplin, 1936). 86 min. Disponível em: Acesso em: 11 set. 2020.
Anotações
Anotações

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