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NEGRA OU POBRE? MIGRANTE OU DESPEJADA?

CAROLINA DE JESUS E O ENIGMA DAS


CLASSIFICAÇÕES (1937-1977)

Ana Cláudia Castilho Barone1

S
ituada num terreno público, em um meandro do rio Tietê prestes
a ser canalizado, a favela do Canindé originou-se em 1948 por
estímulo da própria Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP),
que concedeu a área para o assentamento de famílias desalojadas da
ocupação de um terreno particular, e, treze anos depois, em 1961, foi
extinta. A escritora Carolina Maria de Jesus, que havia publicado seu
“best seller” Quarto de despejo no ano anterior, foi moradora da favela.
Alguns autores já estudaram o impacto do livro de Carolina de
Jesus sobre a extinção da favela do Canindé. Paulino reconhece a im-
portância da publicação para a evidenciação do tema perante a opinião
pública, desencadeando no poder público ações de intervenção em fa-
velas.2 Pereira discorre sobre diversos aspectos da racialização da po-

1 Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP),


Departamento de Projeto. anabarone@usp.br. O tema deste artigo foi-me sugerido pela soció-
loga Flávia Rios. Uma versão preliminar foi apresentada no XVI Enanpur, em Belo Horizonte,
em 2015. Desde então, tive a oportunidade de ouvir comentários de muitos colegas e amigos,
tais como Antônio Sérgio Guimarães, Márcia Lima, Edilza Sotero, Matheus Gato, Mário
Medeiros da Silva e os membros do grupo “Raça, desigualdades e política”, da Faculdade de
Filosofia, Letas e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e do LabRaça, da FAU-USP. Gostaria de
expressar meu agradecimento a todos eles.
2 Jorge Paulino, “Favela em São Paulo: uma história concisa das favelas paulistanas” (Dissertação
de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2007).

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breza presentes na obra da escritora.3 Nessa trajetória, um dos aspectos
relevantes é justamente o poder de sua obra de trazer a público a questão
da favela em São Paulo.
Revisitando a obra da escritora, documentos de época, debates na
Câmara Municipal e jornais do período, pretendemos explorar um aspec-
to relevante ainda não tratado pela bibliografia: o modo como o léxico
de Carolina de Jesus contrasta com o empregado para justificar o des-
favelamento do Canindé. Os procedimentos de pesquisa aqui adotados
são informados pela política de criação e erradicação de favelas levada
a cabo pelo poder municipal naquele momento. Apesar de o livro ter di-
vulgado para o grande público as condições de habitação da população
negra e pobre nas favelas, levantamentos municipais posteriores não
levavam em conta a composição racial desse grupo nem da população
da cidade como um todo. Dessa forma, não se atestavam evidências da
representação negra nesse grupo. Finalmente, consideramos também o
panorama no qual esses processos ocorreram, observando a orientação
da política urbana municipal no sentido da abertura de avenidas, permi-
tindo entrever importantes articulações com relação aos desfavelamentos.
O objetivo de tal esforço é duplo. Primeiramente, deslocando o
foco dos estudos de planejamento urbano dos grandes planos, persona-
gens proeminentes e debates oficiais, é possível perceber a importância de
considerar fontes que abordam a experiência vivida daqueles que sofrem
na pele os processos urbanísticos engendrados na cidade. Em segundo
lugar, procuramos ampliar a compreensão dos aspectos raciais envolvi-
dos no projeto de cidade articulado na instância municipal. A mudança
de perspectiva permitida pelo uso da obra de Carolina de Jesus como
fonte evidencia preciosos aspectos, em grande parte negligenciados, da
história oficial do urbanismo em São Paulo.
A escritora nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, onde
viveu até a adolescência. Sua mãe era nascida na vigência da Lei do Ven-
tre Livre e a memória da escravidão ainda repercutia em seu imaginário
infantil, por via das histórias contadas por seu avô, negro liberto. “No

3 Gabriela Leandro Pereira, “Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da
narrativa de Carolina Maria de Jesus” (Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia,
2015).

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mês de agosto, quando as noites eram mais quentes, nós nos agrupáva-
mos ao redor do vovô para ouvi-lo contar os horrores da escravidão”.4
Residia em casa própria, construída em adobe pelo mesmo avô.5
Mudou-se diversas vezes, pelos interiores mineiro e paulista, até chegar a
São Paulo, em 1937, para trabalhar como empregada doméstica. Perdeu
seu primeiro emprego, ao qual se sucederam outros de igual perfil, mas
ela “não gostava de limpar a sujeira deixada pelos patrões”.6 Viveu em
cortiço e teve também como endereço de moradia o espaço protegido
sob o viaduto de Santa Ifigênia.7
Em 1948, a escritora engravidou e perdeu o emprego. Naquele
momento, vivia em terreno ocupado à rua Antônio de Barros. Por ação
municipal, foi removida dali para a favela do Canindé, em formação. Sua
impressão da cidade nesse momento expressa o processo ao qual era con-
dicionada sua inserção: “São Paulo modernizava-se. Estava destruindo
as casas antigas para construir arranha-céus. Não havia mais porões para
o proletário”.8 Nota-se sua sensibilidade para a sórdida relação entre a
modernidade dos arranha-céus e a precarização contida no processo de
desenvolvimento urbano: dos porões à favela, essa parte da população
sempre se viu destituída de direitos…
No barraco improvisado, ganhou outros dois filhos. Após o parto
da última, impressionava as vizinhas: “Eu nunca vi ninguém ter filho
num dia, e levantar no outro”.9 Não por falta de galanteios e convites,
preferiu não se casar, permanecendo independente. “Não invejo as mu-
lheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas […]. Não
tenho marido, e nem quero!”.10 Mesmo para os filhos, não procurou apoio

4 Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita, Sacramento: Bertolucci, 2007, p. 68.


5 Carolina Maria de Jesus, Meu estranho diário, São Paulo: Xamã, 1996, p. 7.
6 Eliana de Moura Castro e Marília Novais de Mata Machado. Muito bem, Carolina!: biografia
de Carolina Maria de Jesus, Belo Horizonte: C/Arte, 2007, p. 27. Cf. também Jesus, Diário
de Bitita, pp. 173-181.
7 Joel Rufino dos Santos, Carolina Maria de Jesus, uma escritora improvável. Rio de Janeiro:
Garamond, 2009, p. 50.
8 Carolina Maria de Jesus, Onde estaes Felicidade?, São Paulo: Me Parió Revoluções, 2014, p.
39.
9 Jesus, Onde estaes Felicidade?, p. 71.
10 Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada, São Paulo: Ática, 2007,
pp. 17-23.

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nos parceiros. “Tudo na minha vida é fantástico. Pai não conhece filho,
filho não conhece pai”.11
O sucesso da primeira obra permitiu à autora realizar seu sonho
mais contundente: sair do lugar que considerava degradante. Assim, em
1961, Carolina de Jesus e seus filhos passaram a residir em uma casa à
rua Benta Pereira, 562, em Santana, Zona Norte.
O uso da violência contra a escritora negra não se limitou à dis-
criminação, chegando às vias físicas. Jornais da época dão conta de que
ela foi apedrejada quando saía da favela.12 No bairro de Santana, sofria
a hostilidade dos vizinhos, chegando a ter as vidraças de sua casa que-
bradas.13 Ali também a escritora não pode se manter por muito tempo.
Assediada pelo estigma – apesar da repercussão de seu livro, traduzido
para diversas línguas, e da publicação de outros títulos em seguida, já de
menor sucesso – foi impelida a sair novamente. Durante o curto período
de glória, ela recebeu por direitos autorais da transformação de seu livro
em roteiro de cinema na Itália. Com esses recursos, comprou um sítio
em Parelheiros, a cerca de 40 quilômetros do centro, para onde se mudou
logo no ano seguinte. Lá permaneceu até falecer, em 1977.

***

Até hoje, a questão da desigualdade urbana no Brasil tem sido ma-


joritariamente equacionada como uma das dimensões da luta de classes.
Sob esse ponto de vista, a iniquidade na ocupação da cidade decorreria
da diferença de situação econômica dos grupos sociais na disputa pelo
espaço. Perseguindo os escritos de Carolina de Jesus, poderemos recons-
tituir indícios de que, além da pobreza, deve-se acrescentar o componente
racial como fator operador dessa desigualdade. A recuperação de sua tra-
jetória ajudará a refletir sobre o lugar ocupado pelos negros na cidade.14

11 Jesus, Quarto de despejo, p. 67. Cf. também Robert M. Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy,
Cinderela Negra: a saga de Carolina de Jesus, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994, pp. 22-23.
12 “Carolina deixa o ‘quarto de despejo’ sob pedradas”, Última Hora, São Paulo, 31 ago. 1960.
13 “Carolina vem pedir aos vizinhos: Paz!”, Última Hora, São Paulo, 17 abr. 1961.
14 Neste trabalho, a obra literária de Carolina de Jesus será utilizada como fonte, não no sentido
do registro factual do texto literário, mas do testemunho do problema da desigualdade no
espaço urbano do ponto de vista de quem estava submetido às políticas de favelamento e des-

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Quarto de despejo é uma compilação de trechos de um diário
escrito entre 1955 e 1960. Revela uma rotina circular repetida no dia a
dia da personagem: a rotina da fome. A narrativa do livro constrói-se
como discurso sobre a condição da pobreza. Em sua reflexão, é visível
a relação entre a o passado escravista, a pele negra e a fome: “Eu estava
pensando na festa comemorativa da Abolição da escravatura. Mas temos
outra pior – a fome”.15
Catar papel era uma atividade com retorno nem sempre garantido.
Havia uma concorrência. “Hoje eu não fui catar papel porque sei que
não vou encontrar nada. Tem um velho que circula na minha frente”.16
Saía cedo, muitas vezes deixando os filhos ainda bebês sós no barraco.
Quando não encontrava papéis, recolhia latas, metais, vidros e “litros”.
Para complementar a refeição, pedia a uma vizinha em melhor situação,
ia ao frigorífico que distribuía salsichas às crianças, aceitava peixes do
peixeiro e pão da igreja, recolhia legumes, frutas e outros restos na fei-
ra, revirava cestos de lixo. Rejeitava parte da comida que encontrava,
pois estava estragada.
A favela, no livro, representava o cenário dessa condição: “Estou
residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero
que os políticos estingue as favelas”.17 Também sentia vergonha e ódio
de viver nessas condições. “Eu não residia na cidade. Estava na favela.
Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas”.18
A favela do Canindé era desprovida de qualquer infraestrutura.
A água era escassa: potável, não havia; as roupas eram lavadas no rio;
alguma água doce era provida por uma torneira instalada em uma caixa
d’água que atendia a toda a população do núcleo. Em sessão na Câmara
Municipal, a vereadora Mathilde de Carvalho confirma essa informação:

favelamento em curso na cidade naquele momento. Quando necessário, informações factuais


foram cotejadas com outras fontes, permitindo uma maior aproximação à realidade descrita
na obra da escritora.
15 Carolina Maria de Jesus, Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada, São Paulo: Francisco
Alves, 1961, p. 20.
16 Jesus, Meu estranho diário, p. 38.
17 Jesus, Quarto de despejo, p. 20.
18 Jesus, Quarto de despejo, p. 40.

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Existem só duas torneiras de água para abastecer cinco ruas da
favela, e uma está quase seca. As mulheres têm que lavar a rou-
pa na lagoa de água estagnada que se forma com as chuvas e as
enchentes do rio Tietê. Disseram elas que, se tivessem água, po-
deriam ganhar mais um pedaço de pão para seus filhos, com a
lavagem de roupas.19

Logo cedo, formavam filas em torno da torneira para encher latas


d’água para as residências. Era nessas filas que se dava o burburinho, a
fofoca e as tramas da vizinhança, fonte de substratos para sua literatura,
mas também local a ser evitado, para se esquivar de conflitos. O esgoto
era recolhido em fossas improvisadas que muitas vezes transbordavam
e se misturavam ao lamaçal da várzea, nos caminhos de acesso aos bar-
racos, dando ao bairro um odor fétido.
Em uma análise criteriosa, realizada em 1955 como Trabalho de
Conclusão de Curso de Serviço Social na Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo (PUC-SP), Godinho apontou que a favela, iniciada
por oferecimento da prefeitura, comportava 96 barracos, 108 famílias,
463 pessoas. “Como a área lá era grande, muitas outras pessoas depois,
com o correr do tempo, mediante o memorando de autorização do Ga-
binete do senhor Prefeito, foram para lá”.20 Em relação à infraestrutura
da favela, Godinho escreveu:

Como não havia água, não podiam cavar poços, devido à pro-
ximidade do rio Tietê, a prefeitura mandou instalar uma caixa
d’água que abastecesse toda a favela. A favela aumentou bastan-
te, vindo a atingir 300 famílias, mas, como antes da retificação
do rio Tietê as enchentes eram muito fortes, um grande número
delas foi obrigado a sair.21

19 Atas da 69a Sessão Ordinária da Câmara Municipal, 17/08/1956, Câmara Municipal de São
Paulo, p. 225.
20 Marta Teresinha Godinho, “O Serviço Social das Favelas” (Trabalho de Conclusão de Curso,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1955), p. 16.
21 Godinho, “O serviço”, p. 17.

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O terreno de que Carolina de Jesus dispunha, medido por fiscal,
tinha 6 metros de frente por 12 de fundos. O barraco fora construído
com seus próprios braços.

Eu queria fazer o meu barracão e não dinheiro para comprar ta-


buas. Estavam construindo a igreja Nossa senhora do Brasil. Eu
resolvi pedir umas tabuas para monsenhor Carvalho […]. Ele
me deu e eu não tinha dinheiro para pagar condução carreguei as
tabuas na cabeça da Avenida Brasil ate o ponto final do Canindé
[…]. Eu mesma fiz meu barracaozinho. 1 metro e meio por um
metro e meio […]. Tinha tantos homens e nenhum auxiliou-me
sobrou uma tabua de quarenta centímetro de largura era em cima
dessa tabua sem colchão que eu dormia.22

A transferência de tábuas do bairro nobre para a favela marca a


relação perversa entre elite e pobreza, na qual as sobras e descartes de
materiais consumidos pela elite tornam-se meio de sobrevivência na
pobreza. A passagem remete a um tempo em que a favela era toda cons-
truída com restos de materiais de construção civil, tapumes de obras
etc., que ajudavam a constituir um território transitório, feito para ser
demolido em seguida. Décadas depois, essa impermanência daria lugar
a uma ocupação perene, por barracos de tijolos, atribuindo maior sedi-
mentação e consolidação a esses territórios. Essa transição correspondeu
à consciência, por parte do poder público, de que as favelas não eram
uma solução temporária para a adaptação dos migrantes ao mercado de
trabalho, mas um aspecto nefasto, porém inerente ao processo de me-
tropolização, conforme veremos adiante.
Quando precisou ampliar o barraco para receber o segundo filho,
foi com parca ajuda que a escritora completou a sua construção. Era feito
de dormentes e tinha chão de terra.

Chovia dava enchente. E eu tinha passado uma enchente dentro


d’água. O antigo barraco foi construído na terra sem assoalho
passei treis dias em cima da cama. Puis o fogareiro nos pes da

22 Jesus, “Onde estaes Felicidade?”, p. 42.

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cama comprei uma lata de carvão e ali naquela posição incomoda
eu preparava minhas refeições.23

No livro, a favela era designada como o quarto de despejo da ci-


dade, o lugar onde se esconde aquilo que não deve ser visto: a população
pobre, miserável, sem condição de vida digna.

E porque a favela é o quarto de despejo de São Paulo. É que em


1948, quando começaram a demolir as casas térreas para cons-
truir os edifícios, nós os pobres que residíamos em habitações
coletivas fomos despejados e ficamos debaixo das pontes. É por
isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma
cidade. Nós os pobres somos trastes velhos.24

“Eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Pre-


feitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde
jogam os lixos”.25 O quarto de despejo era reservado para os indesejáveis,
o lixo, os elementos em desuso. Primeiro sentido possível para o despejo:
tal como nos cortiços, abaixo de viadutos, nas beiras de córregos, viviam
ali os destituídos de meios de sobrevivência. Seu testemunho apresenta-
-se como negação do acesso à cidade para os moradores de favelas, em
parte negros, assombrados pela desigualdade.

Favelas

A noite os barracões são todos


negros. E negra é a existência do
favelado.26

Diferentemente da cidade do Rio de Janeiro, que apresentava favelas des-


de fins do século XIX, em grande parte resultantes dos desalojamentos
de cortiços promovidos durante a reforma Pereira Passos, em São Paulo

23 Jesus, “Onde estaes Felicidade?”, p. 49.


24 Jesus, Casa de alvenaria, p. 17.
25 Jesus, Quarto de despejo, p. 32.
26 Jesus, Casa de alvenaria, p. 20.

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essa modalidade de ocupação tardou a aparecer.27 As primeiras favelas
paulistanas eram pequenas, localizadas junto ao centro da cidade. Se-
gundo Taschner, fontes diversas dão conta de que as favelas existentes
na cidade no início da década de 1950 eram a do Oratório (245 pessoas),
na Mooca, a da rua Guaicurus (926 pessoas), na Lapa, a do Ibirapuera
(144 pessoas), a Ordem e Progresso, na Barra Funda, a do Vergueiro, na
Zona Sul, e a da Vila Prudente, na Zona Leste.28 Somam-se a essas as
analisadas por Godinho: a Prestes Maia, na avenida do Estado, a Nossa
Senhora da Conceição, no Glicério, a do Piqueri e a do Canindé.29
A literatura aponta como inexpressiva, portanto, a proporção de
moradores em favelas nesse período em São Paulo. Entretanto, como
refletem Levine e Meihy, “a favela era um cenário perturbador para a
industrialização anunciada como redentora da pobreza”.30 A existência
e o crescimento das favelas representavam uma ameaça à imagem de
progresso em curso naquele momento, sendo, portanto, necessário e de-
sejável minimizá-las, fazendo-as desaparecer do cenário urbano.
Até a década de 1960, o problema de moradia para a camada mais
pobre era solucionado majoritariamente por meio da formação de corti-
ços. Lagenest sugere que cerca de 90% do déficit habitacional da cidade
era suprido por cortiços nos bairros da Consolação, Bom Retiro, Campos
Elíseos, Santa Ifigênia, Barra Funda, Liberdade, Brás, Belém, Cambuci,
Mooca, Bela Vista, correspondendo a cerca de 8,1% da população ur-
bana.31 Nota-se que são justamente os bairros onde se concentravam os
negros, imigrantes pobres e operários da cidade.32

27 Lícia Valladares, “A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais”, Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 44 (2000), pp. 5-34.
28 Suzana Pasternak Taschner, “Favelas em São Paulo: censos, consensos e contra-sensos”,
Cadernos Metrópole, n. 5 (2001), pp. 09-27.
29 Godinho, “O serviço social”.
30 Levine e Meihy, Cinderela negra, p. 18.
31 Baruel de Lagenest, “Os cortiços de São Paulo”, Revista Anhembi, n. 139 (1962), pp. 5-17
apud Andrea Piccini, Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro
urbano de São Paulo, São Paulo: Anablumme, 2004, p. 55.
32 Raquel Rolnik, “Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo
e Rio de Janeiro”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 17 (1989), pp. 1-17.

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A incidência de núcleos favelados nos anos 1940 em São Paulo
representa, portanto, o início de uma mudança de paradigma da moradia
urbana precária. Cabe, então, a pergunta: qual seria a peculiaridade do
desenvolvimento urbano de São Paulo da década de 1940 para dar-se,
nesse período, o aparecimento dessas favelas?
Em termos demográficos, o período registra um aumento, marca-
do pelo incremento das migrações internas. A partir da década de 1940,
a taxa de crescimento do município passa de 4,2% para 5,2%, subindo
para 5,6% na década seguinte (Tabela 1).
Porém, indicadores quantitativos não são suficientes para explicar
o fenômeno, já que as taxas de crescimento de São Paulo são expressi-
vas de 1870 até 1970. Uma reorientação das diretrizes urbanísticas teria
um papel central nesse processo. Basta lembrar que, nesse período, além
de serem pequenas, as favelas eram erguidas e removidas pela mão do
poder público, que indicava terrenos para serem ocupados e depois es-
vaziava os núcleos, deslocava as famílias e promovia a reconstrução dos
barracos em outra localidade, difundindo um discurso de “progresso”
em torno de suas ações em favelas.
A favela Prestes Maia, por exemplo, foi iniciada por ordem do pró-
prio prefeito, em razão das “desapropriações feitas em virtude da aber-
tura de avenidas, como a Nove de Julho e outras, nos Campos Elíseos,
etc.”.33 A favela do Glicério foi iniciada a partir do deslocamento de um
núcleo para um terreno de propriedade do Instituto de Aposentadorias
e Pensões, em 1946. A do Piqueri originou-se com a desocupação da
“favela da Lapa”, com a prefeitura oferecendo o transporte e a madei-
ra para a construção dos barracos. Igualmente, a do Canindé, em 1948,
também foi originada por consentimento do poder público, na figura do
então prefeito Adhemar de Barros, em estreita relação com as obras de
melhorias previstas para aquele local. Como já foi dito, deslocava-se,
nesse caso, um núcleo situado em propriedade particular.

33 Godinho, “O Serviço Social”, pp. 10-13.

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Tabela 1 – População e levantamento censitário: Município de e Região Metropolitana de São Paulo,
Estado de São Paulo e Brasil (1872 a 2000)

Município de São Paulo Região metropolitana de SP Estado de São Paulo Brasil

Anos Taxa de
Taxa de Taxa de Taxa de
População População População População Crescimento
Crescimento Crescimento Crescimento

1872 31.385 - - 837.354 2,8 10.112.061 2,0


4,1
1890 64.934 - 1.384.753 14.333.915
14,0 - 5,1 1,9
1900 239.820 - 2.282.279 17.318.556
4,5 - 3,6 2,9
1920 579.033 - 4.592.188 30.635.605
4,2 - 2,3 1,5
1940 1.326.261 1.568.045 7.180.316 41.236.315
5,2 5,3 2,4 2,3
1950 2.198.096 2.622.786 9.134.423 51.944.397
5,6 6,1 3,6 3,1
1960 3.781.446 4.739.406 12.974.699 70.119.071
4,6 5,6 3,2 2,9
1970 5.924.615 8.139.730 17.771.948 93.139.037
3,7 4,5 3,5 2,5
1980 8.493.226 12.588.725 25.040.712 119.002.706
1,2 1,9 2,1 1,9
1991 9.646.185 15.444.941 31.588.925 146.825.475
0,9 1,6 1,8 1,6
2000 10.434.251 17.878.703 37.032.403 169.799.170
Fonte: IBGE, Censos Demográficos. (1) Taxa de crescimento geométrico anual.

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Segundo Silva e Grostein, a partir de 1953, a atuação pública em
favelas passou a ocorrer exclusivamente por meio de convênio entre
o poder público e a Confederação das Famílias Cristãs, que promovia
remoções parciais em favelas localizadas em terrenos municipais, sem
porém conseguir erradicá-las, uma vez que os barracos removidos eram
reconstruídos por novas famílias.34 Em 1955 foi criada a Divisão de
Serviço Social do Município, com o objetivo de atuar na eliminação de
favelas, ajudando a consolidar a ideia de que a favela era um elemento
dissonante da modernidade da cidade, porém a eficiência de sua atuação
também foi limitada.
O manejo dessa população de um núcleo a outro e a fragilidade
das construções levavam o poder público, os analistas do período e
o próprio senso comum a acreditarem que se tratava de uma situação
temporária. O fenômeno da favela era compreendido como uma etapa
provisória, que seria eliminada com a consolidação do desenvolvi-
mento da metrópole e a plena adaptação da classe trabalhadora a essa
nova condição. Desconsiderando-se a origem induzida dos núcleos e
identificando a população da favela com o grupo migrante, acredita-
va-se que ela corresponderia a uma fase “transitória e necessária” do
êxodo rural, de ajuste às condições urbanas e inserção no mercado de
trabalho, por meio da qual o grupo tenderia a passar a uma condição
“normal” de moradia. Destaca-se, na visão dominante, a incompatibi-
lidade entre a favela e a noção de progresso. A posição do poder públi-
co orientava-se no sentido de incentivar a promoção social e inserção
dessa população no mercado de trabalho, juntamente com a remoção
dos núcleos favelados que ele mesmo ajudava a instituir. Além de os
resultados dessas políticas de promoção social serem questionáveis,
uma política de habitação abrangente para essa camada não estava na
ordem do dia.

34 Maria da Graça Plenament Silva e Marta Dora Grostein, “Economia e Humanismo: os ante-
cedentes dos programas habitacionais alternativos no município de São Paulo”, Anais do X
SHCU, Recife (2008).

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Ainda que deliberada, entretanto, a indução de formação de fave-
las não deve ter sido propriamente um desejo do poder público. Por que
passou a ocorrer, então? A resposta parece estar associada à condução
dos “melhoramentos urbanos”, ou seja, a abertura de avenidas com base
em extensas desapropriações, deixando parte da população “já residen-
te na cidade” desalojada. As duas gestões de Prestes Maia (1938-1945
e 1961-1965) foram marcadas pela implantação de uma série de obras
previstas no plano elaborado por ele mesmo, em parceria com Ulhôa
Cintra, em 1930.
É fato amplamente discutido pela bibliografia o interesse
imobiliário associado a essas obras. No caso das avenidas, Campos
demonstra como “as obras de Prestes Maia, ampliando a área central e
privilegiando o ‘centro novo’, criaram uma frente de expansão para os
investimentos imobiliários”.35 Os anos que se seguiram foram marcados
por um boom de verticalização no centro expandido, favorecido justa-
mente pela rede de vias amplas abertas na região.
Uma importante obra de melhoramentos desse período foi a retifi-
cação do rio Tietê. Iniciou-se em 1937, na altura de Osasco, e estendeu-se
até 1967, junto à Ponte da Vila Maria. A carta da Cia. Melhoramentos, de
1951, indica como a canalização do rio Tietê atingia justamente a altura
do bairro do Canindé em 1948, no local onde o poder público autorizava
a implantação dos barracos (Figura 1).

35 Cândido Malta Campos, Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo, São
Paulo: Senac, 2000, p. 596.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 55


Figura 1 – Localização da Favela do Canindé, no ponto em que finalizava a
obra de canalização do rio Tietê. Mapa Falk São Paulo (projeção hiperboloide
com rede quilométrica), escala 1:40.000

Fonte: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1951.

Nesse caso, fica clara a opção por adotar um projeto que favo-
recesse a drenagem da várzea, para a obtenção de áreas para a expan-
são urbana e a decorrente valorização desses terrenos, em detrimen-
to da responsabilidade sobre o equacionamento de questões como o
controle de vazão e a contenção de inundações em relação ao regime
hídrico do rio.

56 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


Sendo assim, é evidente a relação entre as remoções condicio-
nadas às obras de melhorias urbanas do período e a formação das pri-
meiras favelas em São Paulo. Suas origens remontam a um processo de
valorização imobiliária fomentado pelo próprio poder público quando
da opção pelos projetos de melhoramentos, os quais estavam ligados
à ideia do despejo, no caso, por exemplo, dos cortiços que porventura
viessem a ser desapropriados: proprietários eram indenizados; mora-
dores estavam na rua…
Além disso, o próprio manejo desses núcleos, com sucessivas au-
torizações de ocupação seguidas de relocações que induziam a forma-
ção de novas favelas, engendrava um processo que, por si só, alterava
os valores do solo das áreas envolvidas. A favela que Carolina de Jesus
habitou no Canindé foi, portanto, um elemento indissociável dessa arti-
culação, que teve no poder público um agente estruturador.
Em relação à estratificação do grupo favelado por cor, o que se
produziu em São Paulo no período foi um grande silêncio. Situação
diferente da que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, onde o próprio
IBGE realizou um levantamento, a partir dos dados do recenseamento
de 1950, publicado na Revista de Estatística, em 1953. Segundo esse
levantamento, a população negra (pretos e pardos) estava excessiva-
mente representada nas favelas, com 67,13% contra 29,80 no total da
cidade (Tabela 2).

Tabela 2 – Composição demográfica por cor no Distrito Federal


e suas favelas, 1950
Distrito Federal Favelas do DF
Cor NA % NA %
Brancos 1.660.834 69,86 55.436 32,87
Pretos 292.524 12,30 64.307 38,13
Pardos 415.935 17,49 48.911 29,00
Pretos e pardos 708.459 29,80 113.218 67,13
Amarelos 1.032 0,04 - -
Total 2.370.325 100 168.654 100
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 1950; IBGE, Revista de Estatística, 1953.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 57


Se fazia sentido levantar dados por cor em favelas do Distrito
Federal, o mesmo não ocorria em São Paulo. Não há dados de cor e raça
em nenhum dos levantamentos realizados pelos técnicos municipais.36
Diversos fatores contribuíram para esse silêncio, como a eficiência
da política de branqueamento em São Paulo, a eliminação do debate
racial do cenário internacional, em função do horror do holocausto, a
crença de que o Brasil vivia uma democracia racial e a predominân-
cia, decorrente dela, do recorte por classes sociais para interpretar a
sociedade brasileira. Não caberia aqui analisar esses fatores, mas fato
é que não se pode, com base nos dados disponíveis até o momento,
verificar se a composição desse grupo era mais ou menos negra que o
restante da cidade.
Ainda assim, um indício de que a composição demográfica em
favelas escurecia em relação ao total municipal está presente nas foto-
grafias publicadas pelo poder público no volume sobre o desfavelamento
do Canindé (Figura 2). Ainda que marcado pela observação seletiva do
fotógrafo, é digno de nota o registro de famílias negras em quantidade
significativa residindo na favela.
Ao analisar a composição demográfica das favelas em São Paulo
nesse período, sobressai o entendimento de que elas eram habitadas pelo
agente migrante proveniente do interior de São Paulo e de outros esta-
dos. O “Estudo sobre o fenômeno favela no Município de São Paulo”
oferece uma apresentação sistematizada de dados para a caracterização
geral das favelas paulistanas, sendo um trabalho pioneiro encampado
pelo poder público municipal nessa matéria.37 O trabalho é composto
por uma introdução em que se justifica sua relevância e filiações teóri-
cas, um texto de exposição da metodologia utilizada no levantamento
cadastral e amostral, um capítulo de resultados e conclusões. O capítulo
de resultados é dividido em dados de caracterização dos aglomerados
(por tempo de existência, propriedade, tipo de ocupação – invasão ou
cessão –, situação topográfica, número de barracos, existência de in-
36 Tanto Godinho como o relatório da PMSP, de 1962, são omissos quanto à estratificação dos
favelados por cor. Outros documentos, como o de SAGMACS, de 1958, e o de Habi, de 1974,
também mantiveram indiferenciada a categoria racial em favelas.
37 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo sobre o fenômeno favela no Município de São
Paulo”, Boletim Habi-Coped, n. 1 (1974).

58 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


fraestrutura urbana etc.), das unidades habitacionais (número de ha-
bitantes por unidade, número de cômodos, área construída, materiais,
condição da propriedade etc.) e da população residente (estrutura etária,
sexo, estado civil, procedência e tempo de residência no aglomerado,
escolaridade, ocupação etc.).
As quinze páginas dedicadas à caracterização da procedência
e do tempo de residência da população nos aglomerados indicam ser
esse um tema de interesse central. No entanto, a disposição dos dados
apresenta aspectos contraditórios que merecem ser analisados. A Tabela
IV mostra que 23,9% dos núcleos e favelas levantados foram ocupados
por cessão do terreno, uma porcentagem nada desprezível.38 A Tabela
XLI indica que 22,7% da população favelada residia no município há
dez anos ou mais, mas a Tabela XLIV mostra que 75% dos moradores
de favelas estavam nessa condição há menos de três anos. O próprio
relatório aponta a hipótese de que pelo menos 24,8% “do contingente
favelado não é oriundo de migração recente e residiram em outro local
ou aglomerado antes de se instalarem nas favelas em que residiam na
época da entrevista” e, em seguida, refina o cálculo para uma estima-
tiva de 28,5% de moradores de favelas não diretamente vinculados a
fluxos migratórios recentes.39
Ainda assim, no entanto, o texto volta-se logo em seguida para uma
análise da procedência desse grupo em termos dos diferentes estados e
regiões do país. A Tabela LXIX chega a apresentar uma relação entre a
origem desse grupo e os seus níveis de escolaridade, para concluir que
“as maiores concentrações de analfabetos e semianalfabetos” provinham
dos estados da região do Nordeste.40
Em relação à questão migratória, entretanto, a Tabela XXXVIII
indica que a contribuição das migrações para o crescimento da popula-
ção do município registrou um ritmo de 5% ao ano entre 1940 e 1950,
de 4,4% entre 1950 e 1960 e de 3,3% entre 1960 e 1970.41 Ou seja, o

38 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo”, p. 36.


39 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo”, pp. 81-83.
40 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo”, p. 110.
41 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo”, p. 78.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 59


município crescia como um todo devido à atração de população, e não
apenas as suas favelas.
Além disso, a pesquisa utiliza como fundamentação teórica o tra-
balho de Paul Singer, que defendia que havia uma correlação necessária
entre o crescimento da população e a expansão da economia da metró-
pole e que, portanto, a migração tendia a crescer ainda mais com o de-
senvolvimento econômico.42 Nesse sentido, a “explosão demográfica”
não deveria ser entendida como a “causa” das desigualdades urbanas na
metrópole, uma vez que essas são uma condição estrutural do próprio
desenvolvimento econômico brasileiro. Porém, a despeito dessa filiação
teórica, o relatório manteve uma posição analítica que culpabilizava o
agente migrante pela situação drástica do déficit habitacional metropo-
litano e proliferação das favelas:

Estimou-se que, no subconjunto dos chefes de família, quase


100% são migrantes de outros estados ou de outros municípios
do interior do Estado de São Paulo […]. Entretanto, esse estudo
demonstrou que na sua maior parte, esses chefes de família e
essa população migrante são recrutados nos fluxos migratórios
de aproximadamente 5 anos. Essa experiência de vida metro-
politana é recente e não lhes permitiu a inserção no mercado da
economia capitalista em expansão.43

No afã de caracterizar essa parte da população como migrante, com


vistas a defender a tese de sua dificuldade de integração no mercado de
trabalho urbano, negligenciou-se sua origem enquanto “despejados de
suas habitações informais” pelo próprio poder municipal.

42 Paul Singer, Economia política da urbanização, São Paulo: Brasiliense, 1973.


43 Prefeitura Municipal de São Paulo, “Estudo”, p. 120.

60 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


Figura 2 – Fotografias dos moradores da Favela do Canindé

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 61


Fonte: PMSP, 1962, pp. 16, 19, 36.

Trajetória, percursos e deslocamentos

Nós somos pobres, viemos para


as margens do rio. As margens
do rio são os lugares do lixo e
dos marginais. Gente da favela é
considerado marginais. Não mais
se vê os corvos voando as margens
do rio, perto dos lixos. Os homens
desempregados substituíram os
corvos.44

O estudo de biografias, trajetórias e histórias de vida como estratégia para


a compreensão de determinados fenômenos sociais tem sido adotado,
questionado e debatido pelos diferentes campos das ciências humanas.
O sentido desse debate se inicia no questionamento quanto à legitimida-

44 Jesus, Quarto de despejo, p. 55.

62 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


de da generalização das trajetórias individuais para a análise de grupos
sociais. Retomando o argumento de Halbwachs,45 que primeiro discutiu
a memória individual como fenômeno condicionado pela experiência
social, Bourdieu questiona a utilização do método das histórias de vida
sem um cuidadoso trabalho de objetivação que as coloque em face das
contingências do meio.46
Guérios lembra que a questão levantada por Bourdieu remete à
ideia de que a trajetória, por ser subjetiva, diz respeito a um universo
particular não generalizável e que apenas o que diz respeito ao social é
objetivo, portanto legítimo, como método científico.47 Recuperando Hal-
bwachs, o autor defende que, se o propósito da análise de trajetórias de
vida se desloca da busca da legitimidade do método para a legibilidade
de fenômenos invisíveis a partir das fontes de pesquisa tradicionais, a
estratégia oferece não apenas a consistência necessária, como também
uma fonte privilegiada para o estudo “da relação entre o individual e o
social, entre o pequeno e o grande, entre a parte e o todo”.48 É com esse
propósito, o da legibilidade, que se faz aqui uma breve análise da tra-
jetória urbana de nossa escritora, no sentido de dar a conhecer a expe-
riência vivida dos sujeitos oprimidos pelas hierarquias sociais, políticas
públicas e subordinação racial.
Em sua trajetória de residência em São Paulo, sabe-se que Carolina
de Jesus viveu em um cortiço e debaixo de um viaduto antes de ir para
a favela do Canindé. Do cortiço, não se sabe a localização.

Carolina dá mostras de que morou em cortiço, como de resto um


terço dos habitantes de São Paulo na década de 1930. Já famosa,
explicando num programa de televisão o título dado a seu pri-
meiro livro, disse: quando começaram a demolir as casas tér-
reas para construir os edifícios, nós os pobres que residíamos

45 Maurice Halbwachs, La mémoire collective: ouvrage posthume publié, Paris: Presses Univer-
sitaires de France, 1950.
46 Pierre Bourdieu, “A ilusão biográfica”, in Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.),
Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
47 Paulo Renato Guérios, “O estudo de trajetórias de vida nas ciências sociais: trabalhando com as
diferenças de escalas”, Campos: Revista de Antropologia Social, v. 12, n. 1 (2001), pp. 9-29.
48 Guérios, “O estudo das trajetórias de vida”, p. 13.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 63


nas habitações coletivas fomos despejados e ficamos debaixo das
pontes. (Grifos nossos)49

Segundo significado para o despejo: aqui, ele é literal.


Morou também “num cubículo sórdido na antiga favela dos bai-
xos do viaduto Santa Efigênia”.50 Em poucas linhas, pode-se resumir sua
trajetória, na fase do anonimato, pelos lugares de precariedade por onde
passou: o cortiço, o viaduto e a favela. Uma trajetória antecedida pelo
nascimento em Minas Gerais e pelas passagens por fazendas e pequenas
cidades, e depois superada pela casa de alvenaria, logo substituída pelo
isolamento em Parelheiros. Linha descrita no espaço que revela, de for-
ma condensada, um possível percurso dos negros: a origem rural rumo
a destinos incertos como outras fazendas, cidades do interior ou direta-
mente para a metrópole, onde muitos conheceram a impossibilidade de
residirem dignamente. Ao ver-se a si mesma como uma despejada no
mundo e na cidade, Carolina de Jesus percebe os seus iguais, moradores
da favela, como corvos.
Em Quarto de despejo, são descritos também os caminhos por
onde a catadora passava durante as jornadas nas ruas do centro da cida-
de. “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu
estou sonhando”.51 Os percursos de catar papel e as distâncias entre a
favela e os lugares que Carolina de Jesus frequentava demonstram que
ela caminhava exclusivamente a pé, tendo em vista claramente o preço
proibitivo das passagens de transporte coletivo, por ela mencionado nos
livros. Quando precisava pagar condução, comparava o custo das passa-
gens com o preço do quilo do arroz e preferia não ir. Essa era a principal
razão de se residir próximo à área central, fato notoriamente conhecido
pelo órgão gestor.
O poder público, no entanto, visava outro tipo de solução para a
residência dos mais pobres: os loteamentos sem infraestrutura urbana,
distantes do centro e a ele ligados por linhas de ônibus. Sampaio aponta
que a formação da periferia de São Paulo esteve associada a três fatores

49 Castro e Machado, Muito bem, Carolina!, p. 28. Grifo nosso.


50 Dantas apud Castro e Machado, Muito bem, Carolina!, p. 28.
51 Jesus, Quarto de despejo, p. 30.

64 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


fundamentais: a ação dos loteadores privados, o incentivo do poder pú-
blico para suas ações e a operação conjunta dos empresários de ônibus,
ao abrirem linhas de condução a esses loteamentos.52
Incentivado pelo poder público, o agente privado atuou de acor-
do com os seus próprios interesses na abertura de loteamentos distantes.
Desde o final do século XIX, o poder público municipal sugeria o deslo-
camento da classe operária para vilas que se abrissem em terrenos baldios
ao longo dos eixos ferroviários, com vistas a eliminar os cortiços existen-
tes na cidade. A sugestão incluía a concessão de favores aos loteadores,
como a desapropriação de terrenos e a isenção fiscal, subsídios para a
implantação dos loteamentos e privilégio na concessão de transportes.53
Antes disso, durante as primeiras décadas do século XX, as casas
de aluguel foram a forma da realização da renda imobiliária mais prati-
cada pelos empreendedores. A segurança e estabilidade do investimento
eram certas. Segundo Sampaio, “já na década de 20 eram inúmeros os
loteamentos que ultrapassavam os limites do município”.54 A partir de
1924, entretanto, em função de uma crise energética que comprometeu
os serviços de bondes, o ônibus emergiu como um novo fator dinamiza-
dor do sistema urbano, permitindo a independência da localização dos
subúrbios em relação aos trilhos e a abertura de loteamentos ainda mais
distantes das infraestruturas.
Dessa forma, o agente loteador e o empresário de ônibus passaram
a ser os principais definidores do desenho da cidade, difusa, espalhada,
pouco densa e descontínua. Desde a década de 1920, os mais pobres eram
mantidos afastados em bairros populares e a escassez de transportes era
a principal forma de segregar essa população.
Em 1942, no intuito de proteger os direitos dos mais pobres à ha-
bitação, Getúlio Vargas baixou a Lei do Inquilinato, congelando o valor
dos aluguéis e dificultando ações de despejo em todo o país. Até então, o
mercado de locação de imóveis era pouco regulamentado, resultando em
contratos diretos entre locadores e locatários, com baixa inadimplência,

52 Maria Ruth Amaral de Sampaio, “O papel da iniciativa privada na formação da periferia


paulistana”, Espaço e Debates, n. 37 (1994), pp. 19-33.
53 Sampaio, “O papel da iniciativa privada”, p. 20.
54 Sampaio, “O papel da iniciativa privada”, p. 22.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 65


uma vez que os últimos eram despejados se não cumprissem seus com-
promissos de pagamento. Com o congelamento dos aluguéis, o mercado
de locação, tido como um investimento seguro e rentável, foi drastica-
mente desestimulado, gerando o deslocamento da população com menos
recursos para os limites urbanos, onde se proliferou a autoconstrução,
engendrando a formação das periferias. Gradativamente, o aluguel dei-
xava de ser a forma predominante de moradia, dando lugar à aquisição
de lotes, em parcelas mínimas e a longo prazo. A busca por lotes peri-
féricos a partir da década de 1940 foi um dos fatores da construção da
cultura de almejo da “casa própria” no Brasil, que ajudava Carolina de
Jesus a sonhar com a casa de alvenaria.

Os significados da casa de alvenaria

Não fique triste mamãe! […]


Quando eu crescer, compro uma
casa de tijolos para
a senhora.55

Nos escritos de Carolina de Jesus, a casa de alvenaria aparece, ora como


sonho, ora como morada do oponente, ora como frustração frente ao de-
sejo realizado. A importância do status da casa de alvenaria em sua obra
não deve ser negligenciada, pois tem a ver com o desejo de segurança e
ao mesmo tempo com a sensação de não pertencimento que a aspiração
à casa própria representava naquele momento.
A casa de alvenaria aparece como sonho durante toda sua traje-
tória inicial em busca da realização do desejo maior de sair da favela.
“Se estou escrevendo, é porque tenho pretensões – quero comprar uma
casinha para os meus filhos”.56 O percurso dessa trajetória passa por di-
ferentes etapas, da sujeição aos empregos aos quais ela não se adaptava
à submissão a condições indignas de moradia no quarto de despejo. “Eu
não estou descontente com a profissão que exerço […]. Já faz oito anos

55 Jesus, Quarto de despejo, p. 17.


56 Jesus, Meu estranho diário, p. 71.

66 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela”.57 O sonho da
casa de alvenaria, portanto, equivale a sair da favela, a obter condição
digna de vida e de trabalho na cidade. “Enfim vou ter uma casinha e um
terreno para findar os meus dias. Vou plantar flôres, criar galinhas, e as-
sim vou ter um musico para cantar de madrugada: o seu có-có-ro-có!”.58
No entanto, a mesma casa de alvenaria aparece como a morada
do oponente quando, ainda na favela, representa os vizinhos do Canin-
dé: “Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os
favelados. Mas ainda não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos
diz: – Os políticos protegem os favelados”.59 Portanto, sua percepção
aguçada já a informava de algum modo sobre a casa de alvenaria como
um território excludente, terceiro significado para a ideia de despejo:
“Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo
seus olhares de ódio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela de-
turpou o bairro. Que tem nojo da pobresa. Esquecem eles que na morte
todos ficam pobres”.60
Nesse sentido, não é de se estranhar sua frustração quando seu
maior desejo se realiza. Em 1961, com recursos provenientes da pu-
blicação de Quarto de despejo, a autora pode finalmente comprar uma
residência em um bairro consolidado. No entanto, à realização do so-
nho correspondem não os regozijos da conquista mas as mazelas de se
haver como negra em face a uma vizinhança branca e opressiva. Nessa
passagem, o despejo assume a conotação de exclusão. É na relação dos
moradores com as crianças que essa opressão fica mais clara:
“A Vera vae brincar com as meninas brancas […]. Se um menino
branco entra na minha casa, as mães vem correndo ritirar os seus filhos
como se contagiassem ao nosso lado”.61 E prossegue: “Eu disse-lhe que
tudo que ocorre aqui êles culpam os meus filhos. Que já estou com nojo

57 Jesus, Quarto de despejo, p. 22.


58 Jesus, Casa de alvenaria, p. 29.
59 Jesus, Casa de alvenaria, p. 32.
60 Jesus, Casa de alvenaria, p. 56.
61 Jesus, Meu estranho diário, p. 135.

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 67


de morar perto dos brancos xinguei o homem e disse-lhe que arrependi
de comprar esta casa”.62
Ainda na favela, a alvenaria representava um “outro” quase ina-
tingível. A questão que determinava a segregação era a impossibilidade
de ocupar uma habitação formal. Uma vez na alvenaria, o “outro” passa
a ser o branco, denunciando a nova forma da obstrução social: a segre-
gação racial. Carolina de Jesus ascendeu socialmente mas não lhe era
permitido se integrar na cidade dos brancos. Apedrejadas suas vidraças, a
escritora negra é constrangida a refazer seus sonhos. Diante de tamanho
impasse, ela recorre ao seu derradeiro subterfúgio: retirar-se a um local
onde pudesse cultivar seu próprio alimento. “Se eu tivesse essa quantia
eu ia comprar terras para plantar arroz e feijão. A gente só é feliz quan-
do planta para comer”.63 É quando adquire um sítio a 40 quilômetros
do centro, em Parelheiros, construindo para si uma morada que se as-
semelha mais às suas origens rurais que ao desejo contraditório da casa
de alvenaria. Tem-se aqui um último sentido para a ideia de despejo: o
isolamento em relação à própria cidade. Na favela, a impossibilidade de
integração derivava da informalidade; na alvenaria, a rejeição vinha pela
raça; no sítio, a solução que viabilizou sua permanência foi excluir-se
do perímetro urbano.

Bairros negros
A passagem de Carolina de Jesus por diferentes bairros de São Paulo
(Santa Ifigênia, Canindé, Santana e Parelheiros) e distintas modalidades
de habitação (moradora de rua, cortiço, favela, habitação própria urbana
e rural) sugere uma reflexão acerca da participação da população negra
nesses segmentos territoriais e nessas formas de moradia no período
tratado que permite avaliar se a trajetória da personagem pode conferir
legibilidade ao fenômeno da inserção negra na cidade.
Entretanto, assim como os levantamentos técnicos municipais da
década de 1970, as fontes oficiais sobre a participação do negro na com-
posição demográfica nos anos 1940 e 1950 são escassas e demandam

62 Jesus, Meu estranho diário, p. 235.


63 Jesus, Meu estranho diário, p. 71.

68 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


esforços de pesquisa. Por motivos que não caberia aqui analisar, os cen-
sos de 1910, 1920 e 1934 foram omissos em relação a dados de raça. O
Recenseamento Geral de 1940 traz dados de cor agregados apenas por
estado, inviabilizando pesquisas mais detalhadas. Apenas o Censo de
1950 apresenta dados agregados para o município:

Tabela 3 – População do Município de São Paulo por cor, 1950


Cor Total Homens Mulheres %
Brancos 1.929.410 958.546 970.864 87,77
Pretos 169.569 77.441 92.128 7,71
Amarelos 41.457 21.990 19.467 1,88
Pardos 55.342 26.892 28.450 2,51
De cor não declarada 2.323 1.096 1.227 0,10
Total 2.198.096 1.085.965 1.112.136 100,00
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 1956.

Segundo o Censo, a participação dos pretos na composição geral


da população é de 7,71% e de pardos 2,51%, somando parcos 10,22%.
Uma extensa reflexão sobre a inexpressividade de pretos e pardos na
demografia oficial revelada nesses dados foi realizada em 1964 por Flo-
restan Fernandes, buscando compreender o que ele denominou “déficit
negro”, ou seja, a redução significativa da participação desse grupo no
total da população da cidade na primeira metade do século XX. Em sua
análise, buscou refutar argumentos como a superioridade racial do branco
ou a tendência de desaparecimento do negro, em voga naquele momento,
fazendo emergir dois fatores explicativos: a transferência de indivíduos
anteriormente classificados como “negros” para a categoria “brancos”,
condicionada pelos agentes classificadores, e a imigração branca para a
cidade, ambos provocando diferentes formas de branqueamento da po-
pulação.64 Fernandes retira esses argumentos do levantamento realizado
pelo sociólogo Samuel Lowrie, defendendo que o negro estava subme-
tido a um processo de anomia e pauperização.65

64 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes: vol I: o legado da “raça


branca”, São Paulo: FFCL/USP, 1964.
65 Sociólogo, professor da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) de 1933 a 1938, Lowrie

Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75 69


Em suas pesquisas, Lowrie analisou dados de matrículas por gru-
po escolar, concluindo que a população urbana de cor representava entre
8 e 12% do total dos habitantes da cidade. Seus dados permitem uma
aproximação, ainda que imprecisa, ao modo como os negros estavam
distribuídos na cidade.66 Segundo os resultados da pesquisa, as esco-
las que concentravam mais de 15% de crianças pretas e pardas entre as
matriculadas (portanto as que concentrariam mais negros que a média
da cidade) localizavam-se nos bairros de Ipiranga (mais de 25%), Bela
Vista (de 20 a 25%), Santana, Casa Verde, Bom Retiro, Barra Funda,
Santa Cecília e Saúde (de 15 a 20%).
Esses dados não refletem a composição da população por cor nos
bairros, uma vez que a taxa de analfabetismo no município em 1934 era
de 341.437 em 1.033.202 (33,05%).67 Lowrie considerou que cerca de
26% das crianças matriculadas frequentavam escolas particulares e que
outros 26,8% não estavam matriculadas, faixa em que se concentrariam
mais crianças negras que o geral na cidade. O sociólogo também ponde-
rou que o afastamento de crianças negras da tabulação pesaria mais que
o de crianças brancas, contribuindo para o branqueamento da população
em geral, dado que havia crianças negras em muito menor quantidade,
donde concluiu que os dados de composição racial por bairro a partir de
matrículas escolares estariam subdimensionados.
Além disso, é preciso considerar que os grupos escolares não es-
tavam distribuídos de maneira uniforme pelo território, deixando algu-
mas áreas sem atendimento. Na imagem 05 pode-se notar uma maior
concentração de escolas na Sé, Consolação, Santana e paralelamente ao
eixo ferroviário no sentido oeste, tornando-se rarefeitas e por vezes ine-
xistentes nos demais bairros. Pode-se considerar também que a concen-
tração de crianças não atendidas, provavelmente residentes em situação
precária, que ajudariam a compor os 26,8% não matriculados, também
não seguia a mesma estrutura de distribuição, e é plausível supor que,

fez pesquisas sobre cor e raça da população paulistana, com base em dados de nascimento,
óbito e matrículas nos grupos escolares, para o Departamento de Cultura da PMSP, onde
trabalhou de 1935 a 1938.
66 Samuel Harman Lowrie, “O elemento negro na população de São Paulo”, Revista do Arquivo
Municipal, v. XLIII, n. 10 (1938), pp. 183-304.
67 Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, 1940, p. 90.

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nesse grupo, a população negra estivesse sobrerrepresentada em relação
ao total. Ainda assim, os dados permitem perceber que os locais onde
Carolina de Jesus viveu e circulou tinham uma presença negra impor-
tante em relação à cidade como um todo.

Figura 3 – Porcentagem de alunos negros nos grupos escolares


(elaboração: Victor Martins)

Fonte: Lowrie, 1938.

Como pode ser verificado, Santana tem um índice acima da média


de negros na composição demográfica. No entanto, as sucessivas vezes
em que a escritora apontou a discriminação e rejeição sofridas por seus
filhos no bairro por causa da cor da pele sugerem que o segmento ocupado
por residências formais era majoritariamente habitado por brancos. Os
negros, nesse e em outros bairros, estavam apartados em outros lugares,
talvez cortiços e favelas, longe das ruas “Benta Pereira” e impedidos de
experimentar uma sociabilidade equânime com seus vizinhos brancos.
Assim, ainda que não se possa dizer que existiam bairros estrita-
mente negros em São Paulo nos anos 1940 e 1950, é possível constatar,
a partir da reunião dessas fontes, concentrações significativas no centro
da cidade e em alguns bairros em um entorno próximo. A trajetória de
Carolina de Jesus na cidade e seus escritos literários revelam-se, dessa
forma, como importante fonte para a produção de um olhar para a desi-
gualdade e a segregação urbana de um ponto de vista que considere não

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apenas a situação das classes de rendimentos, mas também sua intersec-
ção com a questão racial.

Erradicação
Carolina de Jesus dominava as letras. Sendo autora, diferenciava-se do
passado escravista e do destino fatídico. Portanto, em primeiro lugar, ela
escrevia para se perceber como diferente de si mesma, da limitação de
condição que a realidade lhe impunha.
Na favela, a escritora “lia para as mulheres ouvir” e para os jo-
vens.68 Era ela a porta-voz da realidade política em que estavam submer-
sos os seus iguais. Além disso, a autora escrevia para dar a conhecer a
vida na favela: “Esse meu Diário eu escrevi Há dez anos atrás mas não
tinha a intenção de popularizar-me pretendia revelara minha situação
e a situação dos meus filhos é a situação de vida dos favelados”.69 Ser
porta-voz da realidade do mundo para dentro da favela era uma via de
mão dupla; o caminho inverso era fazer ouvir a voz da favela no mundo,
coisa que realizou magistralmente em 1960.
Em um outro plano, entre a solidariedade com os iletrados e a au-
tossuperação, Carolina de Jesus defendia que sua obra não pretendia ser
uma denúncia. Seu texto é, portanto, relato, registro, condizente com a
forma literária escolhida pela autora: o diário.
Durante o ano de 1955, surge um presságio na favela do Canindé:

Ouvi uns buatos que os fiscais vieram requerer que os favela-


dos desocupem o terreno do Estado onde eles fizeram barracões
sem ordem. Várias pessoas que tinham barracões aqui na favela
transferiram para o terreno do Estado, porque lá quando chove
não há lama. Eles disseram que vão construir um parque infan-
til. O que eu acho esquisito é que o terreno tinha alvenaria. E foi
desapropriado. E agora o Zé Povinho está construindo barraco.70

68 Jesus, Quarto de despejo, p. 61.


69 Jesus, Meu estranho diário, p. 115.
70 Jesus, Quarto de despejo, p. 73.

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O presságio permanece em 1958: “Disse-lhe que circula um boato
de que a favela vai acabar porque vão fazer avenida. Ele disse que não é
para já. Que a Prefeitura está sem dinheiro”.71 E está registrada também
em outras passagens: “Falei com um nortista que é meu visinho que o
dr. Adhemar esta pensando se êle vae acabar com a favela Ele disse-me
que ouviu dizer que nós íamos para o Tremembé”.72
O medo ali reinante aparece como ameaça constante. Até o ano em
que a escritora realmente saiu da favela, nenhuma intervenção aconteceu,
embora estivesse em discussão nas esferas do poder público municipal.
Na Câmara de Vereadores, estava em pauta desde 1949, por via do re-
querimento de Antenor Berttarello.

Considerando que a Prefeitura Municipal de São Paulo sempre


teve, como bem público em seu patrimônio municipal, uma lon-
ga faixa de terras no Canindé, contígua ao terreno do São Paulo
Futebol Clube; considerando que esse bem patrimonial foi inva-
dido por terceiros que se apossaram de porção de terras e ali edi-
ficaram prédios e construíram uma vila, sob o olhar negligente
de certas administrações municipais, também convenientes talvez
nessa usurpação.73

Durante o período de comemorações de IV Centenário, em 1954,


a questão voltou à tona em diversas sessões, indicando a emergência de
diferentes posições em torno do problema de remover ou dar assistência
aos moradores da favela. Luiz Miranda defendia a remoção das famílias
e recuperação do terreno do Parque Infantil do Canindé.

Recebi do Executivo Municipal resposta a um requerimento de


minha autoria, o qual fazia referência a irregularidades que estão
ocorrendo na construção do Parque Infantil do Canindé. A situa-
ção é a seguinte: o terreno destinado a essa construção pertence
ao Município, não havendo, portanto, necessidade de que fosse
desapropriado. Entretanto, sua área é ocupada por algumas fa-

71 Jesus, Quarto de despejo, p. 131.


72 Jesus, Meu estranho diário, p. 53.
73 Câmara Municipal de São Paulo, “Atas da 190a Sessão Ordinária da Câmara”, 26/08/1949.

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mílias […]. O que me causa espécie, Sr. Presidente, é o fato de
esta família que reside no local citado não ter recebido intimação
alguma para desocupar o terreno. Trata-se de casas muito mal
construídas, verdadeiras “favelas”.74

Já o vereador Cantídio Sampaio apresentava os trabalhos de assis-


tência realizados pelo jornal A Hora na favela, criticando a Comissão de
Assistência Social do Município de São Paulo (Casmu) no atendimento
a essas famílias. “Existe uma Casmu, a quem nós demos no Orçamento
12 milhões de cruzeiros. Essa gente a procurava e não era atendida. Sa-
bem por quê? Porque já recebia da Prefeitura um pedaço de chão onde
haviam plantado suas sinistras moradas”.75
A remoção definitiva viria em seguida, após uma enchente que
colocou em risco seus moradores. Em 1961, o poder público elegia a
favela do Canindé como primeira a ser extinta, de um conjunto que in-
cluía as favelas da Barra Funda, Ibicaba e Piqueri, que não chegaram a
ser eliminadas nesse contexto. Além disso, a extinção da favela estava
associada à retomada das obras de canalização do rio Tietê.
O poder público jamais chegou a formular solução para o proble-
ma de forma ampla e abrangente. Culpabilizando o agente migrante pela
formação de favelas, continuou remanejando-as, na tentativa de cum-
prir um programa de desfavelamento cujo propósito era omitir o efeito
perverso do aclamado progresso enquanto promovia a produção de uma
periferia loteada pelo capital privado, desprovida de infraestrutura e
descolada de uma política estrutural de habitação. Apenas na década de
1970 começaram a ser realizados cadastros mais precisos, que permiti-
riam perceber que a favela não era um estágio adaptativo da migração do
campo para a cidade, mas um problema que não podia ser “removido”.
A nova orientação política criava condições técnicas para as primeiras
concepções de programas de urbanização de favelas que seriam prati-
cadas a partir dos anos 1980, mas a contagem dos moradores de favelas
por raça persistia em não aparecer.

74 Câmara Municipal de São Paulo, “Atas da 301a Sessão Ordinária da Câmara”, 23/06/1954, p.
71.
75 Câmara Municipal de São Paulo, “Atas da 255a Sessão Ordinária da Câmara”, 26/02/1954,
pp. 171-174.

74 Afro-Ásia, 59 (2019), 43-75


Os ex-moradores da favela foram transferidos para bairros dis-
tantes: dezoito para Vila Mascote (Sul), dezesseis para Jardim Etelvina,
treze para Cidade A. E. Carvalho, nove para Itaim, sete para Jardim Vila
Rio Branco, cinco para Vila Itaim (Leste), dez para Jardim Brasil, seis
para V. Gustavo (Norte), para citar os principais destinos. Ou seja, sua
extinção levou os moradores para os extremos mais distantes da cidade,
onde suas atividades econômicas já não eram mais possíveis, a despeito
de todo o conhecimento por parte do agente mobilizador em relação à
necessidade de proximidade ao centro por essa população.
A existência das favelas em São Paulo e sua relação com a desi-
gualdade racial foi lançada pela obra de Carolina de Jesus com um im-
pacto efetivo. Como vimos, o significado do Quarto de despejo, assume
diversas formas. Pode ser entendido literalmente, no quadro dos despejos
de cortiços realizados pelo poder público, ou relacionado à imagem do
lixo a que a autora remete como metáfora da própria favela, do ocultamen-
to e da exclusão, como no caso das ameaças à permanência dos negros
no bairro de alvenaria, e do isolamento, por meio do seu confinamento
nas bordas mais distantes da cidade. Qualquer uma das dimensões do
despejo, entretanto, contrasta com o entendimento técnico oficial de que
a população favelada da cidade naquele período era majoritariamente
migrante. Dessa forma, a obra assume seu destino: dar legibilidade ao
até então invisível. É retumbante a ressonância e o significado de sua
voz. A perspectiva de não haver mais diferenças entre pretos e brancos,
porém, também intensamente presente no seu grito de alerta, ainda per-
siste como dívida da cidade para com a autora.

Recebido em 4/12/2017 e aprovado em 16/5/2018

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Resumo
A desigualdade urbana em São Paulo tem sido majoritariamente debatida como de-
corrência de diferenças econômicas na disputa pelo espaço. A obra de Carolina Maria
de Jesus, no entanto, oferece indícios de que, além da pobreza, deve-se acrescentar
o componente racial como fator operador dessa desigualdade. A trajetória descrita
pela escritora é recuperada neste artigo como instrumento de legibilidade para o
problema racial implicado nas ações de remoção de favelas nessa cidade. Os escritos
de Carolina de Jesus oferecem um registro singular do período, do ponto de vista
de alguém que vivenciou por dentro as políticas de desfavelamento em São Paulo.
Confrontam-se os múltiplos significados do léxico empregado em sua obra com
as práticas do poder público para as políticas habitacionais do período, permitindo
entrever a distância entre as justificativas dadas para essas operações e as efetivas
circunstâncias que as condicionaram.
Palavras-chave: Carolina de Jesus – favela do Canindé – negros em São Paulo – trajetória
urbana – raça e espaço urbano.

Abstract
Urban inequality in São Paulo, Brazil has been largely debated as a result of economic
differences in the dispute for space. However, the writings of Carolina Maria de Jesus
offer evidence that, in addition to poverty, there is a racial component operating on
this inequality. The trajectory described by the writer is retrieved in this article as
an instrument of readability for the racial problem involved in the actions of removal
of slums in the city. Her work is a singular record of the period, from the point of
view of someone who lived within the policies of slum eviction in São Paulo. This
article aims to confront the multiple meanings of the lexicon used in her work with
the practices of the public power for housing policies in the period, allowing for a
reflection on the distance between the justifications given by the government for this
operation and the actual circumstances that have conditioned them.
Keywords: Carolina de Jesus – Canindé slum– black people in São Paulo – urban
trajectory – race and urban space.

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