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ituada num terreno público, em um meandro do rio Tietê prestes
a ser canalizado, a favela do Canindé originou-se em 1948 por
estímulo da própria Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP),
que concedeu a área para o assentamento de famílias desalojadas da
ocupação de um terreno particular, e, treze anos depois, em 1961, foi
extinta. A escritora Carolina Maria de Jesus, que havia publicado seu
“best seller” Quarto de despejo no ano anterior, foi moradora da favela.
Alguns autores já estudaram o impacto do livro de Carolina de
Jesus sobre a extinção da favela do Canindé. Paulino reconhece a im-
portância da publicação para a evidenciação do tema perante a opinião
pública, desencadeando no poder público ações de intervenção em fa-
velas.2 Pereira discorre sobre diversos aspectos da racialização da po-
3 Gabriela Leandro Pereira, “Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da
narrativa de Carolina Maria de Jesus” (Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia,
2015).
***
11 Jesus, Quarto de despejo, p. 67. Cf. também Robert M. Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy,
Cinderela Negra: a saga de Carolina de Jesus, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994, pp. 22-23.
12 “Carolina deixa o ‘quarto de despejo’ sob pedradas”, Última Hora, São Paulo, 31 ago. 1960.
13 “Carolina vem pedir aos vizinhos: Paz!”, Última Hora, São Paulo, 17 abr. 1961.
14 Neste trabalho, a obra literária de Carolina de Jesus será utilizada como fonte, não no sentido
do registro factual do texto literário, mas do testemunho do problema da desigualdade no
espaço urbano do ponto de vista de quem estava submetido às políticas de favelamento e des-
Como não havia água, não podiam cavar poços, devido à pro-
ximidade do rio Tietê, a prefeitura mandou instalar uma caixa
d’água que abastecesse toda a favela. A favela aumentou bastan-
te, vindo a atingir 300 famílias, mas, como antes da retificação
do rio Tietê as enchentes eram muito fortes, um grande número
delas foi obrigado a sair.21
19 Atas da 69a Sessão Ordinária da Câmara Municipal, 17/08/1956, Câmara Municipal de São
Paulo, p. 225.
20 Marta Teresinha Godinho, “O Serviço Social das Favelas” (Trabalho de Conclusão de Curso,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1955), p. 16.
21 Godinho, “O serviço”, p. 17.
Favelas
27 Lícia Valladares, “A gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais”, Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 44 (2000), pp. 5-34.
28 Suzana Pasternak Taschner, “Favelas em São Paulo: censos, consensos e contra-sensos”,
Cadernos Metrópole, n. 5 (2001), pp. 09-27.
29 Godinho, “O serviço social”.
30 Levine e Meihy, Cinderela negra, p. 18.
31 Baruel de Lagenest, “Os cortiços de São Paulo”, Revista Anhembi, n. 139 (1962), pp. 5-17
apud Andrea Piccini, Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro
urbano de São Paulo, São Paulo: Anablumme, 2004, p. 55.
32 Raquel Rolnik, “Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo
e Rio de Janeiro”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 17 (1989), pp. 1-17.
Anos Taxa de
Taxa de Taxa de Taxa de
População População População População Crescimento
Crescimento Crescimento Crescimento
34 Maria da Graça Plenament Silva e Marta Dora Grostein, “Economia e Humanismo: os ante-
cedentes dos programas habitacionais alternativos no município de São Paulo”, Anais do X
SHCU, Recife (2008).
35 Cândido Malta Campos, Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo, São
Paulo: Senac, 2000, p. 596.
Nesse caso, fica clara a opção por adotar um projeto que favo-
recesse a drenagem da várzea, para a obtenção de áreas para a expan-
são urbana e a decorrente valorização desses terrenos, em detrimen-
to da responsabilidade sobre o equacionamento de questões como o
controle de vazão e a contenção de inundações em relação ao regime
hídrico do rio.
45 Maurice Halbwachs, La mémoire collective: ouvrage posthume publié, Paris: Presses Univer-
sitaires de France, 1950.
46 Pierre Bourdieu, “A ilusão biográfica”, in Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (orgs.),
Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
47 Paulo Renato Guérios, “O estudo de trajetórias de vida nas ciências sociais: trabalhando com as
diferenças de escalas”, Campos: Revista de Antropologia Social, v. 12, n. 1 (2001), pp. 9-29.
48 Guérios, “O estudo das trajetórias de vida”, p. 13.
Bairros negros
A passagem de Carolina de Jesus por diferentes bairros de São Paulo
(Santa Ifigênia, Canindé, Santana e Parelheiros) e distintas modalidades
de habitação (moradora de rua, cortiço, favela, habitação própria urbana
e rural) sugere uma reflexão acerca da participação da população negra
nesses segmentos territoriais e nessas formas de moradia no período
tratado que permite avaliar se a trajetória da personagem pode conferir
legibilidade ao fenômeno da inserção negra na cidade.
Entretanto, assim como os levantamentos técnicos municipais da
década de 1970, as fontes oficiais sobre a participação do negro na com-
posição demográfica nos anos 1940 e 1950 são escassas e demandam
fez pesquisas sobre cor e raça da população paulistana, com base em dados de nascimento,
óbito e matrículas nos grupos escolares, para o Departamento de Cultura da PMSP, onde
trabalhou de 1935 a 1938.
66 Samuel Harman Lowrie, “O elemento negro na população de São Paulo”, Revista do Arquivo
Municipal, v. XLIII, n. 10 (1938), pp. 183-304.
67 Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, 1940, p. 90.
Erradicação
Carolina de Jesus dominava as letras. Sendo autora, diferenciava-se do
passado escravista e do destino fatídico. Portanto, em primeiro lugar, ela
escrevia para se perceber como diferente de si mesma, da limitação de
condição que a realidade lhe impunha.
Na favela, a escritora “lia para as mulheres ouvir” e para os jo-
vens.68 Era ela a porta-voz da realidade política em que estavam submer-
sos os seus iguais. Além disso, a autora escrevia para dar a conhecer a
vida na favela: “Esse meu Diário eu escrevi Há dez anos atrás mas não
tinha a intenção de popularizar-me pretendia revelara minha situação
e a situação dos meus filhos é a situação de vida dos favelados”.69 Ser
porta-voz da realidade do mundo para dentro da favela era uma via de
mão dupla; o caminho inverso era fazer ouvir a voz da favela no mundo,
coisa que realizou magistralmente em 1960.
Em um outro plano, entre a solidariedade com os iletrados e a au-
tossuperação, Carolina de Jesus defendia que sua obra não pretendia ser
uma denúncia. Seu texto é, portanto, relato, registro, condizente com a
forma literária escolhida pela autora: o diário.
Durante o ano de 1955, surge um presságio na favela do Canindé:
74 Câmara Municipal de São Paulo, “Atas da 301a Sessão Ordinária da Câmara”, 23/06/1954, p.
71.
75 Câmara Municipal de São Paulo, “Atas da 255a Sessão Ordinária da Câmara”, 26/02/1954,
pp. 171-174.
Abstract
Urban inequality in São Paulo, Brazil has been largely debated as a result of economic
differences in the dispute for space. However, the writings of Carolina Maria de Jesus
offer evidence that, in addition to poverty, there is a racial component operating on
this inequality. The trajectory described by the writer is retrieved in this article as
an instrument of readability for the racial problem involved in the actions of removal
of slums in the city. Her work is a singular record of the period, from the point of
view of someone who lived within the policies of slum eviction in São Paulo. This
article aims to confront the multiple meanings of the lexicon used in her work with
the practices of the public power for housing policies in the period, allowing for a
reflection on the distance between the justifications given by the government for this
operation and the actual circumstances that have conditioned them.
Keywords: Carolina de Jesus – Canindé slum– black people in São Paulo – urban
trajectory – race and urban space.