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Lerdes Cri capitulo V Territorialidades quilombolas: quilombo, favela e periferia “A favela 6 fitha do quilombo" (Wamireh Chacon, 1995). Estado, Sociedade e Territério no Brasil © que “antigamente quilombos, hoje periferia” expressa no atual contexto? Passado mais de um século da Aboli¢do, a situacdo do afro-descendente ainda ¢ similar & da escravidao? Chegamos, assim, por dizer, ao momento em que as anélises explicativas tornam-se pertinentes a compreensdo da sociedade brasileira do século XXI. Mais ainda quando, na modernidade, se vao repondo mecanismos antigos de exploragio da forga de trabalho, fazendo reaparecer realidades reprimidas com contetidos etno-raciais na metrépole, tanto quanto ainda sobrevive no imaginario social o mito da democracia racial. 0 termo “reaparecer” néo significa que o fendmeno havia desaparecido, ao contrério, quer explicar que essa sempre foi uma condicao presente do refazer a acumulacao primitiva no capitalismo brasileiro. A urbanizacdo como forma hegemonica do capitalismo atual construiu-se trazendo consigo a aparéncia formal do trabalho, simbolizada pelo fendmeno industrial. Mas foi reproduzindo, na pratica, segmentos sociais desprovidos de relacbes contratuais modernas, como uma boa parcela de afro-descendentes, conforme Damiani (2000): Quando a cidade néo é 6 continente da atividade industrial -mas a urbanizacao propée, enquanto tal, a presenca da inddstria, especialmente a da construcio e seu aparato -, a cidade cresce, crescendo também como negécio industrial: os subterrneos produzidos, a verticalizagio, 0s viadutos e tantos outros produtos da urbanizacao. E assim, se, na periferia de Séo Paulo, a maioria se apresentar como pedreiro ou ajudante, mesmo que mencione ofatode Lourdes Car fazer bicos, no ter emprego fixe, penso que esta é a aparéncia desse trabalho proprio da urbanizagio, que inclui empreitagem e subempreitagem em grandes obras urbanas. Maseses6 eventualmente ‘trabatharem em grandes empresas? E se a participactio nos negécios ‘urbanos, como trabalhador, for s6 eventual? 0 ritmo desigual deste trabalho, por natureza, sempre me deu a certeza de sua presenga, dissimulada: reproducdo desigual do capital fixo das empresas e das cidades. Na verdade, como admitir a insercdo precéria desse trabalhador morador no ambito da capitalizagao generalizada? (2000:25), Segundo Damiani, a negatividade do trabalho é um processo fundante do capitalismo brasileiro, que se reatualiza como acumulacao primitiva e, no presente, € observado no crescimento do desemprego e na moradia precaria: So itinerantes dentro da cidade; a vida, com a violéneia -¢ esto inseridas perversamente no munda do espetaculo, que thes retira a identidade. Com o que fica? Coma negatividade absolutado processo ‘moderno do sistema produtor de mercadorias: coma miséria absoluta eavioléncia. (2000:26) A ressurgéncia do quilombo, no século XX, e sua representago na misica provocam um debate ja de longa data no Brasil, qual seja: o da consolidago da democracia social ¢ racial. Entre outros movimentos de resisténcia (Canudos, Contestado, Trombas e Formoso), que trouxeram a tona a incompleta realizacao de relagdes modernas no Brasil, os quilombos atuais explicitam as contradigées das politicas de modernizagao da economia e da sociedade brasileira. Amodernizacio brasileira implicou a materializago de um processo, aliada a discursos sempre prontos a tornar homogneo o que se fragmentou, Fundir 0 velho e 0 novo, 0 arcaico e 0 moderno. Seus beneficios nao foram mais do que promessas, enquanto enormes sacrificios foram deixados a cargo de extensas parcelas da sociedade brasileira, que até hoje no vivenciaram mais do que condigdes precérias de vida e relagdes assistencialistas com o Estado, Se sua participacdo na vida pablica fot i (uilombo, fala e perferi:a long busca da cada movimentos sociais e até por meio da representagéo das liderangas no aparelho do Estado mediante os conselhos criados na Constituigo de 1988, creio que seus limites esto postos pelo cardter ambiguo das praticas reais, das politicas piblicas. As representagées quilombolas em meio a um Brasil moderno expressam essa contradigao. A cidade de Séo Paulo é a metrépole nacional, moderna, cidade tercidria e global, portadora de equipamentos modernos, conectada as redes e fluxos mundiais que o capitalismo globalizante constituiu como esfera do reconhecimento da tecnologia relativa a Terceira Revolugéo Industrial, segundo Santos (2001): “fator motor deixa de ser a industria e passa a ser a informagao, como afirmamos no final da década de 70”. Nas condigées atuais expressas pela globalizagdo, por meio da aco das empresas multinacionais, prossegue 0 autor: “o modelo econdmico incidente sobre o territério confere maior peso as forcas centrifugas”. 0 territ6rio da cidade, entao, apresenta-se fragmentado, tempos e territérios segmentados, em que a rua torna-se simbolo da degradacdo, permeado pelos investimentos nos bairros de classe média e alta enquanto os pobres so empurrados para 0 “fundao”. Hoje, os modernos condominios fechados nas cidades, com sua propria seguranga ¢ normas de entrada e safda, revista de empregados & cameras vigilantes a observar o movimento da rua, vao estabelecendo um micropoder no territ6rio urbano ao lado de favelas e periferias controladas territorialmente pelo poder do tréfico organizado. Os toques de recolher, a oferta de seguranca aos cidadios do bairro, das lojas, de empregos € a criagao de regras quanto a praticas de roubo em seu interior e as punices severas com morte, além do controle de quem entra e quem sai das favelas sto simbolos normativos de controles territoriais nem sempre provenientes do Estado. A cidade apresenta-se de forma heterogénea, com a presenca de diversos grupos ¢ de territorialidades urbanas de ritmos diferentes. As hiperperiferias sdo fundamentais para compreender que a cidade est ainda para existir, por que esta nao se reconhece e nao € reconhecida pela metrépole. A formacao social econémica, que historicamente engendrou essa contradigio, faz pensar em um devir do territ6rio urbano questionador dela mesma. 0 Estado brasileiro ja nao é desde sua origem pouco extensivo & totalidade social? urd Gar ‘A busca dos fundamentos que construtram a idéia de um Estado no Brasil apresenta-se neste trabalho como indicadores dos tracos mais significativos da sociedade brasileira contemporénea, a0 mesmo tempo em que revela a vida no territério metropolitano, A exclusio do mercado de trabalho e a vivéncia do preconceito racial denunciadas pelos rappers nio podem ser compreendidas totalmente pela conjuntura atual da economia brasileira, ou seja, pelos impasses que 0 desemprego estrutural colocam para o trabalhador brasileiro assim como de outros paises, impostos pela reestruturagdo produtiva ou pelo processo de desmantelamento do Estado e pelo desaparecimento do trabalho. As permanéncias histéricas que se apresentam no atual cenério social se revestem dessas novas formas e conduzem & prépria constituigtio do Estado no Brasil, peculiar & nossa formagao socioeconémica. Estado que, em sua origem, se pauta pelo dedrio liberal elaborado na Europa, liberalismo econémico e politico das revolugdes burguesas, mas idéias nao concretizadas aqui. Nesse sentido, a representagdo do Estado e sua relacdo com a sociedade nem sempre se identificam com a do Estado liberal classico, traduzindo-se, pelo contrério, sob a mesma forma, mas com outro conteddo, Schwarz (2000) aponta em Idéias fora do lugar a contradi¢ao estabelecida entre a formacdo socioecondmica brasileira, em sua origem latifundidria eescravista, ea incorporagao das idéias do liberalismo europeu, no século XIX. Enquanto na Constituigao de 1824 mantinhase a escravidio, ‘20 mesmo tempo aquela adotava o idedrio liberal baseado na Declaragao dos Direitos do Homem, justificando a independéncia, mas néo alterando as formas tradicionais de mando e nao incluindo parcelas da sociedade. Segundo o autor: [..J claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lie, de ‘modo geral, 0 universalismo era ideologia na Europa também; mas la correspondiam as aparéncias, encobrindo o essencial - a exploragao o trabalho. Entre n6s, as mesmas idéias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original (2000:22). Ainversiio das idéias néo se constitufra no vazio,a economia brasileira do Segundo Reinado era resultante do sistema comercial colonialista, que impusera a prioridade do lucro, mas a pratica econémica aqui fundada nao _ 2 (dior, favelae peri: a longa busca da céadania resistiria a um exame & luz do racionalismo burgués, a considerar os principios da eficécia e da racionalizagao produtiva, uma vez que o trabalhador assalariado ofereceria como vantagem muito mais liberdade ara mobilizar o capital: ‘I... O estudo racional do processo produtivo, assim como a sua modernizacdo continuada, com todo o prestigio que Thes advinha da revolucao que ocasionavam na Europa, eram sem propésito no Brasil” (2000:14). Para 0 autor, o sistema colonial produziu trés classes distintas: 0 latifundiério, o escravo e o homem livre, nem proprietario nem proletario. Essa seria a chave para compreender as relagées que se formavam, porque, na prética, este dltimo nao estava ocupando o lugar do trabalhador assalariado, mas encontrava-se, na verdade, enredado pelas teias das relagdes de poder do proprietério de terras. Impuseram-se, assim, relacdes pessoais do favor, em vez. da autonomia individual e da remuneragao objetiva, 0 exercicio do clientelismo nas instituigdes burocriticas ao contrério de relacées cidadas e de representagto politica, a autoridade do mando em vez do contrato: “O favor 6 a nossa mediacao universal” (op.cit). Assim, tanto o escravismo quanto a constituigo das relacdes do favor sao contrarios aos princ{pios do liberalismo econémico e politico consagrados pelas revolugées burguesas do século XVIII. Conforme Buarque de Holanda (1989:119): Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrético jamais se naturalizou em nés [..] A democracia no Brasil foi sempre um mal entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou.a e tratou de acomodésla, onde fosse possivel, aos seus direitos ou privilégios, (8 mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, 0 alvo da luta da burguesia contra os aristocratas, Caminhando pela linha do tempo, constata-se na histéria da | democracia brasileira a constante reatualizagio da exclusio social ¢ territorial. Varias questdes poem em xeque o entendimento que se construira sobre o Estado ¢ a sociedade brasileira. Nao estaria sempre posta a desconsideraco das diferencas, tanto socioeconémica quanto cultural? Construfdo sob uma moldura moderna, o Estado brasileiro nao teria sido sempre apenas um simbolo do moderno? A pratica social no teria esvaziado seu significado? 0 Brasil moderno construfdo acaba por 23 Lourdes Cai a fornecer-nos os mais diversos exemplos da constituigao de leis e regras singulares de vivéncia territorial. Chauf (1986) aponta que o Brasil “ndo consegue, até o limiar do século XXI, coneretizar sequer os prinefpios (velhos de trés séculos) do liberalismo e republicanismo”, sobretudo no que se refere & diferenciac&o entre 0 piblico e o privado, Para a autora, anélises culturalistas sobre a heranga ‘ibérica ndo seriam a via mais adequada para analisar essa formacio. A sociedade brasileira conheceu a figura da cidadania pelo personagem central da economia agréria: 0 senhor de terras, que a recebia como privilégio de classe e pelo seu poder concedia esse privilégio as classes subalternas. Com a passagem da economia agréria para a urbana, 0 privilégio transfere-se sempre para as mos dos dirigentes e das elites econdmicas, ou seja, aqueles detentores de riquezas e de patriménio, Nesse sentido, forma-se uma sociedade hierarquizada entre superiores inferiores, realizando formas de tutela, da autoridade, do favor e da concessio, mecanismos de inserg4o que permitem a continuidade das desigualdades enquanto atenua a propria exclusio, As andlises da formacto da sociedade brasileira pela historia da colonizagao e do escravismo enfocam as redes de relacdes que daf advieram. no sentido do espraiamento do poder originado na propriedade latifundiéria, envolvendo os demais personagens constitutivos da sociedade agriria brasileira para explicar a escassa noctio de direitos que ainda persiste, Para Carvalho (2001:11), a visdo atribufda a inexisténcia da cidadania como dinico atributo do Estado é insatisfatéria e maniquefsta, pois “Todo sistema de dominagdo, para sobreviver, tera de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda, que seja a apatia dos cidadaos”. Segundo © autor, com a passager da Monarquia ao regime republicano no Brasil, numerosos s’o os exemplos recolhidos que evidenciam a participacio popular por meio de diversos segmentos (abolicionistas, capoeiras operérios) ¢ opcdes de correntes politicas (positivistas, socialistas ¢ anarquistas) presentes na atmosfera politica a prometer mudangas nos primeiros anos da Repablica na cidade do Rio de Janeiro, capital do pais. O afastamento do Estado dessas demandas trouxera 0 desencanto e a desilusao, produzindo, entao, outras formas de reagio. A contradicdo estava presente pela necessidade que o novo regime tinha de se realizar com base na sua real sustentabilidade, a qual ndo se * Quilon, fava pei 1 longa busca da cada 24 ‘ | encontrava entre a populagio urbana politicamente, mas, entre as forgas dominantes do Brasil agrério. (2001:33). Por isso, 0 novo pacto politico organizava-se em torno da descentralizagso do poder e do fortalecimento das oligarquias locais existentes nos estados. No pais recém-safdo da escravidao e no novo sistema politico, pobres e negros nao se sentiam por ele representados: Em termos concretos, a prevenciiorepublicana contra pobres enegros ‘manifestou-se na perseguicdo movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra os bicheiros, na destrui¢do pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cortiga do Rio, oCabeca de Porco, em1892(2001:30), As agdes das politicas pablicas traduziram-se em melhorias que as administra¢des municipais comandaram, criagdo de cédigos de posturas ‘municipais, sem a participacao da populago, ao mesmo tempo sob um. cardter de higienizagdo, cujo sentido era conter as doengas como também controlar a populacao marginal da cidade, como foi mostrado também em Sto Paulo: Noentanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participacio popular. $6 que este mundo passava ao largo do mundo oficial da Politica. A cidade nao era uma comunidade no sentido politico, ndo havia o sentimento de pertencer a uma entidade coletiva. A articipacdo que existia era de natureza antes religiosa e social e era fragmentada (2000338) ‘As medidas de regulagao e ordenago da cidade impunham normas quase impossiveis de serem seguidas, condenando os espacos de aglomeracio a fim de evitar a promiscuidade social. Mas, foi necessério que se empurrasse essa populagao pobre, habitante das estalagens, hospedarias e cortigos para espacos mais apertados, para os morros ou para os subtrbios. Varias repdblicas com vida propria estavam formadas nna Repdblica, segundo Carvalho. Comunidades criando espacos préprios de cultura, normatizando o cotidiano, produzindo arte, samba, mésica comportamentos préprios, coldnias étnicas (portugueses, ingleses, Jmigrantes de varios estados, negros). A vida privada prenhe de significados us | Ure Ca | ¢ inviolavel, razdo pela qual acabaria por opor resistencia aos préprios representantes do Estado, como a policia ou as representantes oficiais da rea da saGde (Revolta da Vacina, em 1904). Elas foram tocadas pelo poder pablico quando se tornou necessério, como foi o caso do Cédigo de Posturas Municipais de 1890, que deu a cidade ares mais europeus, destruindo as comunidades sem oferecer mecanismos que abrangessem todos os cidadaos da cidade. Porém, o que 0 autor mais destaca é a cidade pouco tocada pelos aspectos principais do liberalismo ou pela disciplina industrial do trabalho, além da formagao de uma sociedade que nao levard a sério essa Repiblica, sabendo que ela nao existe: “O povo sabia que o formal nao era sério. Nao havia caminhos de articipacdo, a Reptiblica nao era para valer” (2000:160). Em meu entender, uma das chaves para compreender a relagdo Estado-sociedade no Brasil est na formacao de um Estado e de um territ6rio, de varios grupos em movimento préprio que se entrelacam e se relacionam entre si e com o poder pablico de maneiras diversas, de forma que a representacao politica e social seja marcada pela ampliagao da cidadania a alguns e a sua reducdo a muitos. Carvalho busca analisar essa perspectiva pela hist6ria da cidade do Rio de Janeiro, entrecruzando dados hist6ricos &s singularidades da capital politica, dos tragos culturais que permitiram a alguns dos diversos grupos passar ao largo da constituicao da Republica. Entre esses tragos, a vida privada, a associativa eo espirito de desinteresse e indiferenca, 0 cinismo e a ironia, a busca do Estado para assistir a determinadas demandas, de infra-estrutura pablica ede empregos constituem a aco politica popular, fora dos canais e dos mecanismos do arranjo institucional engendrado. Quer dizer,a vida politicanaose realizava. Embora esses tragos culturais refiram-se ao espaco urbano da capital do Brasil na Repéblica e marquem o estabelecimento de uma espécie de cidade a partir de sua insergao politico-econémica desde meados do século XVIII, as relagées entre Estado e sociedade ai apresentadas devem ser compreendidas na formagao social e econémica do Estado-Nacio. Significa dizer que se fundamenta como modus vivendi da nacio e do territério brasileiro, que se estende para além do préprio periodo estudado por Carvalho, como ele apontou. 0 que € 0 territ6rio nesse contexto? Pensar nos usos territoriais no Brasil érefletir sobre as configuragées territoriais que resultaram em perfodos histéricos de sua formacio, tanto Qulombo, favel e priferia: a longa busca da ciataia 26 por sua inser¢do no capitalismo mundial quanto pelas geopoliticas que colocaram em prética sua integragao interna, implicando que a prépria obra geopolitica jé satisfaz a existencia da presenca de um dominio (MARTIN, 1994). Seria, conforme Moraes (2002), assinalar que a uma formagaio socioeconémica corresponde uma formagao territorial. No perfodo moderno, oterrit6rio constr6i-se como unidades espaciais correspondentes a dominios centralizados de poderes representados, em um determinado perfodo, pelas monarquias absolutistas e, depois, pelos atuais Estados Modernos. Ao mesmo tempo em que na Europa, do século XVI ao XVII, 0 proceso de centralizagdo obedecia a reformulagdes do conceito de soberania nacional, conceito este necessario para a expansio mercantilista, do que adveio a construcao de espacos nacionais unificados, © processo ultrapassou suas préprias fronteiras pela formagao de colénias comandadas por um governo metropolitano, logo distante do territério fundado. Se isso significou a formagao de impérios colonials, implicou também a projecdo de uma moldura mundial de organizagao territorial, que com 0s processos de independéncia ganharam hegemonia, fundando novos Estados-Nacées. 0 territ6rio colonial brasileiro, incluido como parte de um sistema mundial em formagao, permitia a criagtio de um feitio de comando politico exterior & constitui¢ao socioecondmica que aqui se desenrolava. 0 Estado encontrava'se externo ao territ6rio e & sociedade. Essa condicéo tem io das formas de representagéo modernas concebidas, pois formulou vias de construgao de poderes territoriais distintos, em uma parte extraterritoriais, e, em outra, locais. A primeira concretiza-se pela auséncia da representagao direta da sociedade e pela imposi¢ao de demandas externas e, a segunda, com formas de relacoes especificas e ligadas & sagracdo da propriedade de terras e de escravos -relacdes patrimoniais -, hierarquizando a sociedade e confluindo para a tradicao politica pessoal do favor, do clientelismo, edificando, portanto, uma sociedade autoritaria (CHAUI, 2000). 0 processo de colonizagao, no Brasil, fundado entre as agdes geopoliticas metropolitanas e a vida politica local, expressa um tipo de conseqiiéncias para o exerci ocupacdo do territério e forma as feigées de uma determinada sociedade. 0 conhecimento da histéria da formacao particular territorial brasileira mostra como a nacio nao foi contemplada (MORAES, 2002). A colonizacdo brasileira propicia uma explicagio para o territ6rio, conforme aponta Moraes (2002:84) Lourdes Gar O sentido da colonizagio em cada territério se estabelece numa conjungao entre a geopolitica metropolitana e as condigdes locais, defrontadas pelo colonizador, notadamente no que tange aos. ccontingentes demogréficos e aos recursos naturais existentes, nam jogo comandado pela lucratividade do capital mercantil Até 0 infcio do século XIX, 0 territério brasileiro encontrava-se atrelado 4 economia colonial. Isso significava que a produgio econémica visava a atender as necessidades da metrépole, suscitando um desenho territorial cujas consequéncias esto relacionadas a muitas problematicas aqui apresentadas, como a formagio de quilombos e um modelo especifico de cidades voltadas para o mercado externo, formando ilhas sem comunicacdo interna, Contudo, a histéria da formacao do territério brasileiro reflete um processo pelo qual se utilizou o indio, seu trabalho e conhecimento das matas, 0 escravo africano como mao-de-obra em todas as regives, e no Prescindiu de outras figuras, como a do bandeirante ou a do capitao-do- mato, Trata-se de uma geopolitica que, segundo Andrade (1995), configurou ‘uma ocupacao de pontos esparsos, a principio no litoral e, em seguida, nos eixos fluviais e nos caminhos - iniciando-se no século XVI e tendo continuidade até os dias atuais. Na verdade, ocupar, integrar e conservar as fronteiras territoriais compée 0 conjunto das preocupactes da elite e do Estado nascente até 0 século XX. A expans&o econdmica sobre os fundos territoriais e a manutencao da escravidao est4 na pauta desses interesses. A formacio de um projeto e de uma ideologia constréi-se sobre a valorizacdo do territorio antes que da prépria sociedade (MORAES, 2002). No século XIX, & medida que a nacio se constitui, Moraes aponta 0 discurso civilizatério como justificador do avanco sobre os recursos territoriais existentes. A apropriacao dos solos, das terras e das areas interiorizadas significaria fazer avangar 0 progresso sobre fronteiras bérbaras. No primeiro quarto do século XX, a continuidade da expansao territorial, correspondendo a um novo padréo de acumulacao capitalista, redefine 0 discurso oficial que conflui para 0 conceito de modernizacao, Moraes (2002:121) assinala que: “Pode-se dizer que modernizar é, entre outras coisas, reorganizar e ocupar 0 territério doté-lo de novos equipamentos e sistemas de engenharia, conectar suas partes com estradas e sistemas de comunicacio”. Chil, favelaeperiferia a longa busca do cdndaia 218 Nessa realidade, a temética regional 6 outra ideotogia que, ao mesmo tempo, permite 0 exercicio da centralizagio do poder no contexto de outro pacto e toma as identidades regionais como afirmacao de culturas, realocando as elites no “projeto de construgao do Brasil moderno”. A categoria regional afirma-se nas fases soguintes com o propésito de objetivar a integragio nacional por meio de rodovias e investimentos nas regides consideradas industrialmente atrasadas. Exemplo do proceso continuo de ocupaco do interior brasileiro é a “Marcha para 0 Oesti expresso de uma estratégia associada a um discurso pautado pela recuperacao da bandeira como elemento simbélico de expansio territorial. Por sua vez, a transferéncia da capital do pais para o interior foi um projeto que permitiu a concretizagao da ocupacao do Centro-Oeste e 0 avango da frente pioneira sobre novas terras. Ao mesmo tempo, a abertura do mercado para o capital internacional e o Plano de Metas no governo de Juscelino Kubitscheck tornaria vidvel uma nova divisao inter-regional do trabalho e as condigdes para a constituicdo da fase do capital monopolista. 0 processo também terd continuidade nos governos militares, 8 medida que 0s projetos modernizadores e os planos de desenvolvimento tornam-se centrais nas acdes governamentais. A regio geografica torna-se categoria voltada para o planejamento, em que, por superintendéncias de desenvolvimento, projeta-se uma expansdo e um desenvolvimento industrial a fim de diminuir as disparidadesregionais.A partir da geopolitica expressa pela Escola Superior de Guerra (ESG), cujo pensamento se pauta pela integragao de “espacos vitais", portanto necessarios ao pleno desenvolvimento do organismo nacional, concretiza-se 0 avango sobre os fundos territoriais, isto é, sobre os recursos minerais, vegetais e hidricos, potenciais enormes valorizados pelo avanco da fronteira na Amazonia © no Centro-Oeste. Segundo Moraes (2002:128): “A tica espacialista dos | governos militares contribuiu para acentuar o divércio entre Estado. na¢ao que se sedimenta no periodo” 0 discurso de modernizagao associado a centralizagio do Estado qualifica os aparatos produtivos e as infra-estruturas como sujeitos do projeto desenvolvimentista e afastao componente social e politico, ao mesmo tempo em que logo sera constatado que seus beneficios estardo restritos a alguns setores. Mas, se as questdes sociais sao fundamentais para entender 0 capitalismo brasileiro, a formagao do territério permite-nos entender as 29 Lourdes Cae tensdes sociais e econdmicas que emergem e se aprofundam no Brasil. 0 planejamento estatal contribuiu para 0 crescimento econdmico, enquanto sua agdo territorial tornou factfvel as classes sociais engendrarem resultados diferentes no mesmo proceso. A exclusio social aumentou, enquanto a riqueza também aumentou, 0 territério se abriu aos mais diferentes atores em uma disputa acirrada. Assim, também ao territ6rio sdo langadas as valvulas de escape das areas socialmente explosivas. 0 fenémeno da migracdo que tornou possivel as explosdes metropolitanas consiste na possibilidade de diminuir as tensdes nas regides de origem, além de atender ao desenvolvimento industrial, concentrando as demandas no espaco urbano. A estrutura rigida da terra manteve-se no Nordeste, mas também se reatualizou nas éreas das fronteiras recém-ocupadas. Quilombos ¢ formacio territorial brasileira A recente historiografia procura destacar maior amplitude as relacdes estabelecidas no seio constituicao dos quilombos e em sua relagdo com a sociedade colonial, além de considerar sua influéncia sobre os movimentos sociais e politicos que caracterizam a luta pela cidadania no Brasil, para além do préprio perfodo. Ao rever a definicdo estabelecida pelo Conselho Ultramarino de 1740, que concebe diversas origens e inter-relagbes sociais construidas do mesmo fenémeno, também € visto néo como unidade isolada ou restauracao da cultura africana, mas ainda como negadora do Estado e da sociedade. A escravizagio, tanto do indfgena quanto do africano, ocorreu em Gecorréncia do tipo de economia estabelecida no perfodo colonial brasileiro como exigéncia dos interesses das nagdes colonizadoras em face da expansio da economia mercantilista. Tanto 0 trafico de escravos da Africa para o Brasil quanto as exigéncias de elevada produtividade da ‘monocultura, baseada em recursos préprios do colonizador, promovem 0 recurso & mdo-de-obra do escravo negro para a realizacao da lucratividade almejada. O prestigio da propriedade da terra e ao mesmo tempo a posse de numerosa escravaria possibilitariam a formagao escravista e monocultora, construindo assim as bases para relacdes socioeconémicas ¢ psicologicas construtoras de um tipo de sociedade. Tong busca da ciadaia ‘Tratava-se da formacéo de uma sociedade extremamente rigida e quase nao deixava margens & mobilizacdo e & ascensao social, a ndo ser pela via da not6ria presenga de tragos relativos aos que eram chamados “homens bons’, pessoas de sangue puro, brancas, possuidoras de titulos de nobreza ou que receberam concessées nobilitantes por prestagdes de servigos & Coroa, ou ainda aquelas que estavam dispostas a empreender ‘um volume de capitais para investir na empresa colonial e ocupar oterrit6rio imenso & mercé de novos invasores. A terra assim regulada passou a ser Instituto de sesmarias concedidas aos cidadaos assim considerados. Nem os findios, nem os africanos ou os homens livres pertencentes a0 conjunto da populacdo pobre formada naquela sociedade tiveram 0 acesso a terra e a autonomia garantida pela legislacio vigente, Nos séculos XVII e XVIII, a escravidao africana jé predominava sobre a indigena. Ambos, indigenas e africanos, experienciaram a exploracio do trabalho nos primérdios da formagiio social e econdmica brasileira (GOME: 2003). Suas formas de resistencia aquele sistema de coercio e exploracéo podem ser consideradas 0 marco das lutas para as atuais reivindicagées sociais pormethorias de vida, moradia ede acessoa terra, Processo continuo de constituigao da cidadania no Brasil e de resisténcia a exclusdo social. A visio de que 0 quilombo surge como negagao e resisténcia a0 sistema escravista adotaas fugas de escravos das fazendas como oresultado mais contundente da contradigio do sistema escravista: 0 escravo como forga de trabalho e o senhor a auferir os lucros da empresa. Além da participagdo em numerosas revoltas, 0 escravo no quilombo se tornara “unidade basica de resistencia” e se encontrava em toda a parte onde existia a escravidao (MOURA, 1981). Revolta organizada pela tomada do poder, insurreigio armada e 2 formagao de quilombos (CARNEIRO apud MOURA, 1981) constituem ages dos escravos. A énfase as lutas contra o sistema procura destacar a capacidade de organizacio politica e de resistencia pela aco dos sujeitos enredados pelo dominio existente como negacdo desse mesmo arranjo s6cio-econdmico, Formas de interaco dos quilombos com a sociedade, com indigenas ¢ intercdmbios com os mercados préximos podem ser entendidos como resisténcia & escravidao no sentido contrério as unidades isoladas. Ao contrério, as atividades desenvolvidas pelos quilombolas para sua sobrevivéncia foram quase sempre em torno da agricultura, caga, coleta, criagao de animais e mineracSo, tendo em vista o comércio com as regides 4m eintermedidrios proximos. Em Minas Gerais, no século XVI, tais atividades estavam presentes entre os quilombolas. Mas, écom a mineraco landestina € por meio do contrabando que obtinham 0 que necessitavam para sobreviver. E nesse sentido que um tipo de economia se desenvolvia em torno desses niicleos, assim como tipos de relacdes comerciais com contrabandistas, taverneiros, negras de tabuleiros e até com fazendeiro se desenvolviam (GUIMARAES, 2000) 0 quilombo dos Palmares, considerado uma das mais populosas comunidades de escravos fugidos, como aprendizado para as autoridades coloniais e metropolitanas sobre as mais eficazes formas de repressao e a necessidade de mudancas da legislagdo escravista contra as fugas (MAGNO apud GOMES, 2003). Fugas e formagées de quilombos fizeram-se presentes em todas as fases econémicas da Coldnia e do Império até a Abolicéo. Exemplos de relagdes entre escravos e comerciantes sao 0s quilombos do Alto Trombetas, em Eripecuru-Oriximiné, os quais desenvolveram Intenso comércio com os regatdes que subiam e desciam os rios amazénicos (ACEVEDO e CASTRO, 1993), Relagdes de comércio com os centros préximos se estabeleceram integrando 0 quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, a outras regides do entorno (CARRIL, 1995) Na andlise da insurreigao de Vassouras, no Rio de Janeiro, em 1838, Gomes (1993) indica aspectos culturais presentes por simbologias e significados religiosos reinventados pelos escravos na organizagao de uma sublevagio, além da possibilidade de integragio entre as senzalas e os quilombos ja formados, comunicagées entre escravos urbanos e rurais no planejamento da fuga para a constituicao de um quilombo, Entre senhores © escravos, as tensdes sociais existentes e 0 medo das revoltas pelos Primeiros e da repressdo pelos segundos teriam propiciado transformagées na conduta sobre o dominio dos escravos no que se refere “ao tratamento (boa alimentacao, cessagio do hordrio noturno de trabalho, cuidados dispensados aos cativos doentes etc,” e “A destinacio de lotes de terras e/ ou rogas para os escravos cultivarem alimentos” (1993:406-7), Tanto escravos quanto senhores, nesse sentido faziam concessbes, sendo que os Primeiros conquistavam, dessa maneira, espacos de autonomia no interior do sistema, Esses aspects nos levam a analisar a constituigo dos quilombos no Ambito maior da luta contra a escraviddo, para elaborar estratégias varias, incluindo as negociagdes comerciais clandestinas e até mesmo com os uilonbo, fovea priferia: a anga busca da i senhores das fazendas, a comunicagao presente entre quilombo e senzala, entre segmentos escravos urbanos e rurais (MAPA 12). Por esses caminhos, margens de autonomia foram sendo conquistadas para ampliar as possibilidades de romper o regime coercitivo, criando brechas de liberdade. Este sentido parece bem expresso pela sua insergdo no seio de um campesinato em formagao (GOMES, 2003). Segundo 0 autor: E possivel analisar as estratégias de manutengdo da economia dos grupos de escravos fugidos a parti da perspectiva dos mesmos de forjarem grupos de camponeses, tentando integrar suas atividades econémicas nao s6 com as comunidades de senzalas préximas, coma ‘também junto a pequenos lavradores, homens livres pabres, vendeiros etc. enfim, 8 economia de abastecimento (2003:453-). ‘As comunidades de quilombos atuais, herdeiras das terras de seus antepassados, realizaram essa insergio no campesinato brasileiro. A organizacao da economia familiar esta estruturada na agricultura de excedentes, no extrativismo, na caca e na pesca. A terra é fundamental para a reproducao de sua vida, sendo base para a sua sobrevivéncia tanto fisica quanto cultural. Mas 6 chave também para compreender a dinamica do pertencimento a um grupo e @ um espaco territorial. A territorialidade vincula-se situagdo especifica da alteridade (BANDEIRA, 1988). £ também investimento de uma historia particular e ideologizada, formando um territ6rio (GUSMAO, 1990). A base fisica torna-se um componente de grande importancia simbélica e politica, referindo-se as necessidades apresentadas pelas relagdes de enfrentamento entre a pequena produgio agricola e a expansao do capitalismo (SOARES, 1981). E preciso compreender a avaliacao das comunidades sobre o carter do trabalho como percepcdo interna da alteragao do ritmo de trabalho até recentemente vivenciado para abarcar os embates da modernizagao. 0 tempo de antes ¢ 0 tempo de agora mostram a introdugdo de novos elementos em seu espaco. Os moradores de Ivaporunduva sabem que, desde seus ancestrais, organizaram uma vida camponesa, ligada @ terra, como forma substancial de se reproduzirem fisica ¢ culturalmente. s interno, ento, era regulado por condigées bastante diferentes das do _urbano, Seu tempo seguia outra cronologia Ado calendario agricola. Candido (987:36) aponta essa dinamica: "a tempo Lourdes Car ee Afi de obteroxseutados xpos, oars deve cbeecera um smo de abt inst nas ilerents unde tote ga Sloparcodi.ssemmnaeoanoagrata Puteopeiinutons con ajomade fz, ahaa reqentementeo mini assume eee i ‘marcado, ndicando orendimento do esforco.os elementos temporais ! ‘em que decompée uma opera¢do. Nao éassim para otrabalhadorrural, 1 auelaoradesla secs teas secomletm emperor ots longus. 5seretornd, ne vane spun eclo mint | Essa situagdo se estende para essa realidade dos quilombos. A conjugacéo de sua vida a dinamica da natureza tornava-os mais préximos | desta e comportava a elaboracdo de representacdes simbélicas, incluindo festas, praticas culturais, conhecimento da natureza e suas possibilidades K na cura de doencas. Por outro lado, permitia-thes a manutenco de estreitos lagos de solidariedade e ajuda métua, como era caso da pratica do mutirzo, hoje mais enfraquecida. Em certos momentos, como o da colheita, o mutirao | | era uma forma de cooperacao coletiva para minimizar o impacto do trabalho. Aeexisténcia desse tempo dimensionado por valores outros constitui @ condigdo de alteridade e de choque cultural, porque compreender a légica em que se baseia seu ritmo de vida, identificar essas caracteristicas ao fato | de serem negros e a trabalharem quando queriam ou quando necessitavam adquirir algumas mercadorias requer um repensar da cultura e da politica Visto como grupo a desaparecer uma vez que avangassem as relacdes | capitalistas modernas no campo, como residuos feudais, em processo de proletarizacio ou como parte do desenvolvimento contraditério capitalista, | esses grupos reaparecem como forga social e politica. Vio se organizando Politicamente ao perceberem ritmos externos sua l6gica, comandando sua producdo ¢ restringindo sua reprodugo. Ritmos esses comandados Pelos projetos técnico-cientificos sobre seu territ6rio e pelo avango do mercado O debate sobre o campesinato e sua participagdo no capitalismo brasileiro volta se questao inicial sobre amodernidade e suas contradicdes enelas se inserem os quilombos contemporaneos, Seu interesse teGrico dé Se pelas caracterfsticas particulares da agricultura, como atividade de producao familiar cujo célculo se baseia na continuidade cultural e econdmica e néo na acumulacéo capitalista, m4 | Wulombo ‘aes epee: a longa busca da iadonia Amodernizacdo da agricultura e as modificages que incidem sobre as relagbes de trabalho e de produgao no Brasil demonstra um painel bem complexo. A andlise da diferenciaco camponesa pela introducéo de insumos modernos aponta para sua transformagao em pequenos e médios agricultores modernos (ABRAMOVAY, 1992). Em outra ética, o camponés transforma-se em trabalhador para o capital (WANDERLEY, 1978, SILVA, 1981), ¢ € analisado como camada em vias de desaparecimento (VELHO, 3972). Também foram elaboradas andlises sobre a funcionalidade da pequena producdo (SANDRONI, 1980). Essas andlises encontram limites nas formas presentes de resistencia camponesa & subordinacao ao capital, que se recriam pelas tradigdes, pela busca incessante da terra como bem fundamental, reafirmando-se cultural eeconomicamente e, por sua ver, pela maneira como ocapitalismo brasileiro se expandiu na agricultura. A apropriagdo da renda da terrae a territorializagao do capital na agricultura sao expressdes de um processo que permitiu a subordinagao de varias fases da producto agricola. Ao mesmo tempo em que domina a circulacdo por meio do monopétio do mercado, as agroindiistrias também controlam a prépria produgao a0 atrelar o trabalhador rural as suas exigéncias (OLIVEIRA, 1981) Segundo Martins (1989:108), seria necessério compreender: [-.J como o capital articula essa diversidade de relagbes, trazendo para as determinagées do seu tempo, isto é, do seu ritmo e da sua reprodugao ampliada, os tempos das diferentes relacdes que fol reproduzindo na sua prépria légica ou, mesmo, produzindo. 0 autor recorre ao conceito de formacao econdmica e social para analisar os mecanismos utilizados pelo capital para se produzir e se reproduzir. £ a partir dessa concepgao que se torna possivel avaliar quais, foram as condigées que tornaram possfvel a formago do campesinato e sua permanéncia no Brasil contemporaneo. Mesmo quando se realizou a modernizagao do campo, nem o farmer (classe média de fazendeiros nos Estados Unidos) nem o trabalhador rural assalariado se tornaram categorias tinicas do universo rural. Em determinado momento, também | se reafirmou uma tendéncia original da propriedade da terra no Brasil: a de fundir, em uma mesma pessoa, o capitalista e o proprietério. Para Oliveira (2001:186): ns owes Car a ‘Assim, a chamadamodernizactio da agricultura nova‘ atuarno sentido da transformaciodos latifundisrios em empresérios capitalistas,mas a0 contrério, transformou os capitalistas industriais e urbanos - sobretudo do Centro-Sul do pats - em proprietérios de terras, em latifundiarios. A politica de incentives fiscal da Sudene e da Sudam fois nstrumentos de politica econdmica que viabilizaram esta fusdo. A contradiclo do capitalismo brasileiro expressa a permanéncia da propriedade da terra como simbolo de riqueza e de patriménio que se refaz. em varios momentos por meio de aliancas que sustentam 0 préprio Estado em seus perfodos mais centralizadores, autoritarios e, mesmo, nos perfodos de abertura democratica, Atendéncia do Estado em solidificar sua base de sustentaco a partir das oligarquias contribuiu para a permanéncia dessa forga politica até os dias atuais. 0 processo de redefinicao da politica econdmica no sentido da industrializagao na década de 1930, por exemplo, processou-se mediante investimentos canalizados do setor exportador, mas, em contrapartida, 0 setor agrario obteve varias concessdes nesse novo pacto politico, na manutengao dos trabalhadores rurais sem os beneficios da legislagio trabalhista ao mesmo tempo em que no realizou a reforma agréria. Na verdade, a questao camponesa compée problemética espectfica a essa formagdo social e econémica capitalista da qual esté se falando. Os tipos de relacées de trabalho e de producao que esto sendo assinalados sao pertinentes a um processo histérico que, mesmo adotando um discurso ideol6gicomodernizador, nao se traduz em um todo por relagdes capitalistas modernas, baseadas na remocao dos entraves ao desenvolvimento do capitalismo (latifdndios), na racionalizacao da produc&o agricola, com expansdo dos insumos modernos, a fim de acelerar a expanséo de unidades rurais tecnificadas, reproduzindo classes médias rurais e/ou empresas Furais modernas com trabalhadores assalariados. Martins (1989) assinala a influéncia das lutas histéricas dos camponeses na Europa sobre as concepedes formuladas no Brasil. As perspectivas da constituigdo de um proletariado e de uma burguesia de origem camponesa encobriram as reais condigées sociais e a produgo das consciéncias dos personagens envolvidos pelos antagonismos existentes na formagio socioecondmica brasileira. Segundo o autor: (uilombo, faves peritera a longa busca da Gdadania ne © ponto essencial é que a condigZo subalterna do camponés jé néo aparece nessas interpretagées como decorréncia de uma esqualificacdo pura e simples, em face da suposta superioridade e da eficdcia hist6rica do préprio desenvolvimento econdmico (19895109) A nocdo de subalternidade constréi-se, para o autor, pelo fato de os personagens vivenciarem condigdes subjetivas e objetivas que se Tepresentam mediante “desencontros entre a consciéncia e a situacdo do camponés”, diversidade que estabelece estratégias ¢ lutas também miitiplas. Veja-se o exemplo das terras de preto; esse contexto, sua anélise ndo prescinde da considerago datada do alvara do século XVIII que estabelece os quilombos como escravos fugitivos sem ranchos, nem pildes (ALMEIDA, 2002). Com base nesse alvaré, apés a Abolig&o, esse conceito deixa de fazer sentido. Mas foi a relagio com a terra © uma vida camponesa, ligada as relagdes comerciais, o que permitiu aos quilombos a defesa do territério e do modo de vida, Integradas a0 universo agrério brasileiro, as comunidades participam das condigées objetivas expostas pelo mercado, pelos precos de seus produtos, pelo dominio dos “patrées na cidade’, e passam a sofrer impactos quando projetos de carater | nacional tendem a incorporar essas terras. Quando a expansdo do capitalismo brasileiro requereu uma estratégia global de desenvolvimento, as terras quilombolas também se constituiram em dreas de conflito, Na década de 1950, acelera-se o ritmo de industrializagio do Brasil e a abertura ao capital internacional. 0 processo de integracdo territorial intensificou-se desde Getilio Vargas, que promoveu a construcdo de rodovias interligando os estados de Sdo Paulo e Rio de Janeiro ao Sul e ao Nordeste. A construcao de Brasflia promoveu a | ocupacio do Centro-Oeste e ligou varios pontos do territério brasileiro e | integrou-se a regio Norte ao Sul do pafs com a construcao da rodovia Belém-Brasflia. No periodo militar, deu-se énfase a abertura para o capital estrangeiro € houve investimentos na implantagio de rodovias, hidrelétricas e em projetos na Amazénia e no Centro-Oeste. Aintegragdo territorial possibilitou a articula as regides brasileiras sob o capital monopolista, sendo que vastas extensées de terras passaram a ser ocupadas por projetos agropecuarios e minerais. Tais estratégias geopoliticas empregavam esforcos diferentes nas regises. Nesse processo, muitos dos projetos técnico-cientificos incorporam terras, nagées, consciéncias, jo econdmica de todas nt Lourdes Car a valorizando-as, e promovem a especulago imobilidria. Varios impactos : sobre as terras de quilombos ocorrem com a construgao de construgio de barragens, pela instalagio de projetos agrominerais e extrativistas. A | implantagio de parques e areas de protegio ambiental também incorporou | aquelas terras. A légica dos projetos, em seu conjunto, considerou terras ¢ recursos naturais desprovidos de uso e ocupagao humana, acelerando a migragdo ¢ o ritmo de trabalho interno como ajuste as novas demandas. 0s conflitos sociais no campo brasileiro mesclam-se, assim, de | diversos embates entre atores varios, como os quilombos, as comunidades indigenas, os trabalhadores rurais, os extrativistas, os garimpeiras, os especuladores imobilidrios, os latifandios e as fazendas modernas. 0s quilombos rurais como integrantes do campesinato brasileiro ampliam os termos do debate sobre as relacdes econémicas e politicas do capitalismo no Brasil, para esclarecer quenos movimentos sociais aparecem prerrogativas especiticas. Segundo Almeida (2003:45-6), na década de 1980, perfodo de redemocratizacéo do pats: [..1se firmou a expressto oficial ocupagées especiais, que designava entre outras situagSes, as chamadas terras de preto, terras de santoe terras de indio, tal como definidas e acatadas pelos préprios grupos sociais, que estavam classificados em zonas criticas de tensio social | A expresso quilombo reaparece identificada por essa especificidade do campo brasileiro, ¢ se inicia um movimento social de abrangéncia nacional. Mas Almeida (2002) atenta para os entraves inerentes as interpretagies derivadas do conceito cristalizado, oriundo das Ordenacées Manuelinas ¢ Filipinas. As comunidades remanescentes de quilombos nao podem ser vistas como residuais, remanescentes de um passado que ja ocorreu: “Nao € discutir 0 que foi, ¢ sim discutir 0 que € e como essa i autonomia foi sendo construfda historicamente’. AAs diferentes formas de conquista dessa autonomia passaram por mecanismos inerentes & dinamica das relacdes sociais, econdmicas e politicas no interior da escravidao - aquilombamento por fugas, doacées de terras por senhores a seus escravos, desagregacdo da economia ! escravista, abandono das terras pelos senhores ou o desenvolvimento de uma economia de auto-abastecimento nas proprias terras do senhor - e se ne —__ ae (ulombo, fae peritera longa busca da Giada 29 desdobraram em outro processo de manutengao da comunidade camponesa. Assim, nao se trata de buscar a identidade do quilombo em arquivos, em fontes e escavagées arqueolégicas, mas na identidade coletiva: “Raga ndo seria mais necessariamente um fato biolégico,mas uma categoria socialmente construfda’. Aauto-identificacdo consiste, no caso dos quilombos, em componente politico-organizativo capaz de aglutinar um grupo e formular suas demandas econdmicas, culturais e politicas em que a etnicidade proporciona um carater mobilizador. A restricdo presente na interpretacdo dos quilombos & luz de como ficaram definidos juridicamente nos séculos passados, coloca a problematica em face da efetivacao do reconhecimento e da titulagao dessas, terras. Poucas terras de quilombos j4 alcancaram essa prerrogativa, e, muitas, mesmo quando reconhecidas, ainda no receberam o registro; pelo fato de serem terras de uso comum, esses ndo podem ser entregues individualmente, mas para uma entidade associativa que os represente juridicamente. Territorialidades Quilombolas: Quilombo, Favela e Periferia © problema da moradia, como vimos, agravara-se, sobretudo, para os recém-libertos que foram colocados em situacdo de marginalidade social ¢ expostos ao preconceito racial. Nas liltimas décadas do século XIX, 0 grande perigo eram as sublevacdes escravas, o panico se generalizara nas mentes, que imaginavam a ameaca de planos de fuga em massa e assassinatos de senhores pelos escravos (MACHADO, 1994); nesse momento, nas principais cidades, Sao Paulo e Ric de Janeiro, o perigo estava nas ruas, com os desempregados, a vadiagem, as criangas abandonadas e a prostituigao (ROLNICK, 1997; CARVALHO, 2002). Os dois grandes problemas que afligiam 0 negro eram, sem diivida, as precarias condigdes de moradia, a falta de trabalho ou ocupacées mal definidas e 0 nao acesso regular a terra. A favela, seguida do cortico, tornow-se um dos primeiros nicleos de habitagao da populacao recém-egressa da escravidao. Trata-se de nticleo Lourdes Car habitacional surgido desordenadamente, em terreno piiblico, de dominio no definido ou mesmo alheio, localizado em rea sem urbanizacao ou methoramentos. 0 termo chegou ao Rio de Janeiro no século XIX para denominar exatamente uma parte do morro da Providéncia, por semelhanca com um “morro da Favela”, existente no interior da Bahia, de onde vieram, apés a Guerra dos Canudos, em 1897, alguns dos primeiros povoadores. Esse nticleo pioneiro tornou-se forte pélo irradiador da cultura negra, da mesma forma que outras favelas que se foram formando no Rio, no macigo da Tijuca, em direcéo aos subiirbios, a Baixada Fluminense e & Zona Oeste da cidade, Em Sao Paulo, segundo Rodrigues (1988), a favela expande-se por volta da Segunda Guerra Mundial. De inicio, a favela concentra majoritariamente a populagao negra, mas, a partir da década de 1950, correntes migratérias de trabalhadores negros e brancos, sobretudo nordestinos, também passardo a avolumar 0 contingente favelado. £ nesse perfodo, também, que se alude ao problema. No entanto, a forma que orientara a ago politica eptiblica e arepresentacao social sobre a questao social explicita pela presenca da favela se desdobrarao sob varios olhares. 0 othar permeado pelo estigma da marginalizagao sobre os moradores da favela cobra politicas de remoco as quais foram postas em pratica. Essa intervencio piblica, ao mesmo tempo em que afasta os favelados ¢ a miséria do campo visual, tende a liberar também o preco das terras. Remove-se um dos obstéculos para aumentar a renda da terra. Outra forma de sanear o problema tem sido a urbanizacao da favela, erradicando- se suas caracteristicas com a introducao de melhorias, como Agua, luz ¢ esgoto sanitério. A favela também passa a se destacar pelo fato de atrair politicos a fim de conseguir votos por meio de promessas de implantagdo de melhorias, € de atendimento de varias reivindicacdes dos moradores. A politica clientelista e assistencialista territorializou-se na favela. Igrejas, assistencialismos ¢ politicas de urbanizacao também tém incorporado os problemas dessa populacio que vive em moradias precarias (RODRIGUES, 1988:37-40). ‘A autora destaca também a visio de que: E preciso treinar, educar os favelados a fim de que se integrem no ‘meio urbano, passem gradativamente para uma cada de alvenaria, BO ‘avela pair: a longa busca da ciadania el familiarizem-se com os servicos urbanos para serem no futuro incorporados ao mercado de trabalho e & cidade. Esses problemas expostos neste trabalho permanecem até hoje: Nas regides em que a populaco negra ultrapassa os 40% [caso do distrito de Capao Redondo}, a alta privagdo social, entendida como forte incidéncia de familias de baixa renda e escolaridade grande presenga de jovens, alcanca até 85% dos habitantes, como 0 distrito de Marsilac, na zona sul. Nos territérios de grande maioria branca, a alta privagio é inexistente ou pequena (DIAS, 2003). Os trés nacleos habitacionais entrevistados no distrito do Capio Redondo descortinam essa realidade social que se traduz pela falta de infra-estrutura publica, emprego e ntimero insuficiente de escolas paiblicas, J4 foi analisado que o presente se traduz por uma forma de exclusao mais longa. Nesse sentido, verifica-se outra configurago que se estabelece no territ6rio. Ao ndo encontrar mais emprego, nem possibilidade de ascensao por meio da educactio publica, 0 afro-descendente vive uma espécie de confinamento, compartilhando esses territérios com os demais pobres da cidade, Ele foi sendo empurrado para além das partes da periferia que j4 foi urbanizada; tem muita dificuldade de se reempregar e é visto com temor por causa dos indices de violencia apresentados por sua posigao no ranking de locais mais violentos da cidade. A favela e a periferia sao, assim, o lugar onde o Estado néo esté. Néo € a questo do lugar, mas a concepedo de que uma parte da populace ndo tem direito ao patriménio e & riqueza, relacdes desiguais que tém origem no passado colonial. Nesse perfodo, estava claro quem possuia ou nao direitos. Com o advento da Replica, embora néo tenha sido oficial uma politica espacial racialmente segregadora, o banimento e o confinamento do negro em partes da cidade foi se constituindo, Apés a Independéncia e a constituicao do Estado moderno pressupunha-se outra ordem social, concebia'se o fim da escravidao e a formago de uma sociedade baseada no direito liberal. Joaquim Nabuco apontava que s6 havia dois caminhos para construir uma nacdo democriitica: a reforma agréria, defendida as vésperas | da Abolicdo e a instituicdo da educagao para superar aestratificagtiooriunda BI leurdes Car i + —— de trés séculos de cativeiro.! Mas, na Constituigao de 1891, 0 Estado eximia- se da tarefa de oferecer a educacio formal, deixando, assim, 3 margem da universalizagao do ensino enorme parcela da populacéo. Quando letras rap denunciam a continuidade dessa politica Segregacionista, a questéo passa por retomar o debate que se constituiu na década de 1950,* quando se critica a forga ideolégica do “mito da democracia racial’, pois a exclusdo racial permanece. A obra de Gilberto Freyre Casa-grande e senzala, ao recolocar a questio da mesticagem, positivando as relagéesraciais construfdas no Brasil desde 0 perfodo colonial, remete a essa tematica enfocando o relacionamento entre senhores, na casa-grande, e escravos, na senzala, Aponta que, longe de consistir em uma clivagem social de universos intransponiveis, a participacao cultural, tanto do “negro” como do *mestico”, exercera peso relevante na formagio da cultura brasileira. Sua obra procura retratar as bases da formacio de um tipo de sociedade a partir da adaptacdo do homem portugués as condicdes dos trépicos (Iuso-tropicalismo). Nio determinismo geografico, mas heranga cultural ibérica que jé se fazia em Contato com outros povos presentes na peninsula, como os semitas ¢ o3 mouros: Afalta de gente, queo afligia, mais doque aqualquer outro colonizador, forcando-o’ imediata miscigenacao contra o que noo indispunham, aliés, eseripulos de raga, apenas preconceltos religiosos - foi para o Portugués, vantagem na sua obra de conquista e colonizacio dos ‘téplcos. Vantagem para a sua melhor adaptacdo, sendo biol6gica, social (2002:87). Para Freyre, a miscigenagdo é o ponto-chave para a compreensao da cultura que se estabelece na fase colonial brasileira. Embora surja em sua anilise a adverténcia de que a instituigdo do cativeiro é 0 responsével pela * VAMIREH, Chacon. 0 adver d eacrvidt eo stad deorganizado" Fa de 5 Poa Sto Paulo, 5 de jan. 1995. Tendéncias/Debstes, 3. 2 Vers IANNL 0. At metamorfses do escrav apogee rise da eseravaturano Brasil Meridonal. Sto auto: bifusBe Europtia do Livro, 96a; NOGUEIRA, 0. "Relagbes Racials no Musicinic ae {auRtining.n: Relates entre Negros © Brancos em Seo Paula So Paulo UNESCO, ogg GARDOSO, FH. Capitalismoe eseraidso no Brasil meridonal. 0 negro na secedade enone, (4 Rio Grande do Sul. 5a od. Rode Janeiro Clvilizact Brailes, soo uilombo oes e peter longa busca da Giadana ee Oe degradagto fisica e moral dos escravos, a casa-grande teria permitido a possibilidade de convivéncia harmoniosa ¢ construtiva entre as classes sociais. Mas, para além dessa categoria, seria o ponto de intercambio ¢ mitua influéncia da lingua, das representagées simbélicas e culturais entre obranco e o negro, trocas entre 0s sujeitos. A fusdo das trés etnias - 0 indio, © portugueés e 0 negro - 6, segundo o autor, uma das bases da formagio do povo brasileiro, No entanto, ele ressalta o africano como anteparo e como fator de plasticidade nesse intercambio, sobretudo apontado pela superioridade dos que vieram para o Brasil e a posigdo secundaria dos indigenas para contribuir culturalmente. A miscigenagdo que podia ser vista por alguns intelectuais? como prejudicial ao povo brasileiro, € revista como fator positivo. A casa-grande, nko de forma quantitativa, mas qualitativamente, definira os tipos de relagées predominantes. Nela se encontravam o poder econémico (senhores), os trabalhadores (escravos) e a Igreja (os capeldes), todos interagindo naquele universo. Onde quer que se instale uma unidade econdmica, lé se reproduziriam os tragos sociopsicolégicos estabelecidos pelo regime patriarcal. Mesmo quando a vida urbana floresce, 0 que ¢ analisado em Sobrados e mucambos (1977:LXIX), essas relagées se tornam. definidoras do caréter social: [uh pois dentro desse sisterna muita comunicagae houve entre casas grandes e senzalas, entre sobrados e mucambos ¢ no apenas separacdo ou diferenciacdo. Sintese ¢ no apenas antitese. Complementacio afetiva endo apenas diversificagao economnicamente afetiva. Nem se explicaria de outro modo o relevo que ver tomando, centre nés, manifestacdes hibridas nio s6 de cultura como de tipo fisico. sistema original, mal reponta do oceano da mesticagem que | vern avassalando; e dentro do qual os valores absolutamente puros de uma origem ou de outra-européia ouamerindia,lusitana ov africana, civilizada ou primitiva, senharial ou servil-sobrevivem apenas soba forma de ithotas cada dia mais insignificantes: antes curiosidades etnograficas, étnicas ou estéticas que realidades sociolégicas. 5, Ver: RODRIGUES, N-Os afrcanos no Brasil. Cleo Temas Braslers, rasa: UNB, 988. (957) © VIANNA, 0. Raga Assimilagz, Sao Paulo: Companhia Eaitora Nacional, 1938 23 Lourdes Cari $$ Se essas obras contributram para divulgar a existéncia de uma emocracia racial no Brasil (FELIX, 2000), partiram mesmo do fato de que nio haviam sido constitufdos mundos étnicos separados, a exemplo do que ocorrera nos Estados Unidos. Segundo Félix (2000:34), 0 imaginério social brasileiro parece se imbuir dessa idéia: “..] o brasileiro, seja ele ‘negro’ “mestigo’, "branco’ ou “indio’ no consegue propor uma sociedade em que as diferencas ‘raciais’ sejam respeitadas e garantidas; mesmo porque ndo ‘consegue, entre os mesmos, delimitar fronteiras de cor”. A integrago do afro-descendente a sociedade de classes ocorreu gradativamente, e, de inicio, em posi¢go marginalizada, como apontou Fernandes (1978). Embora sua participacao tenha-se efetivado, inclusive, consolidando uma classe média negra, em todas as etapas de desenvolvimento econémico é possivel verificar a permanéncia de disparidades sociais e econémicas que se verificam por diferencas salariais, niveis de escolaridade e frequéncia de um padrdo habitacional irregular. 0 que significa dizer que, mesmo inserido na ordem burguesa, o negro ndo aleangou os mesmos padres dos trabalhadores brancos. No perfodo atual, quando ocorrem as mudangas no padrao tecnolégico do capitalismo, que incidem sobre o desaparecimento de postos de trabatho, com exigencias de qualificagio e reordenamento das fungdes do Estado, os impactos resultantes do processo recaem com maior peso sobre essa Populagdo, reavivando a histérica exclusdo do trabalhador negro do mercado. Novamente coloca-se em xeque a democracia racial, jé que a segregacdo fica mais vistvel. Trata-se, na verdade, de como se formulou e colocou em prética um Projeto socialecondmico e politico para o Brasil. 0 territério é a Tepresentacaio desse projeto, porque nele se estabelecem os embates entre as camadas sociais, Isso quer dizer que nfo se efetivou um pacto politico ue permitisse a participagéo das camadas subalternas. Elas foram sendo vistas como reserva de trabalhadores que poderia receber 0 menor Pagamento possivel e sempre dispostos a aceitar as mais precérias Condigées de trabalho, Negros, brancos e pardos compuseram essa oferta demao-deobra. Enquanto o Brasil crescia economicamente, tal contingente de trabalhadores urbanos e rurais néo se beneficiou da riqueza, A retomada das obras de Gilberto Freyre é importante para refletir sobre a importancia que o mito da democracia ainda exerce como parte das representacdes sociais, ¢ como impée uma invisibilidade as formas de ulombe, faeaeperitera: longa busca da didadania identidade que as comunidades negras constroem. O territ6rio, como relaco ‘com o grupo, deixa de ser um territério homogeneo. As letras de rap acabam por explicitar a ruptura com a idéia de uma linha contigua entre casagrande € senzala, e, consequentemente, questionar a democracia racial. No territ6rio estabelecido manifestam-se territorialidades que traduzem as contradigdes entre a vida local ¢ as estratégias globais. As territorialidades nascem da vida territorial e fazem parte do viver humano, das condigées objetivas e subjetivas. Sao frutos de identidades culturais ¢ da vida material. Tanto quanto a cultura, a territorialidade que nela se funda corresponde aos usos e &s necessidades humanas, 0 quilombo rural funda uma territorialidade expressa pelo modo de vida camponés, que tem a terra como base fundamental para sua recriagao cultural e econémica, No entanto, seu pertencimento ao universo camponés 6 intercedido pela especificidade étnica, pela meméria e pela luta histérica os quilombos contra a exploragdo escravista. A vida cotidiana construiu a nogio de uso comum da terra, diferenciando-a de outras comunidades. Os dilemas enfrentados os aproximam dos quilombos urbano. Assim, no se trata do quilombo que ja foi, mas do que se constr6i como representacio social capaz de mobilizar uma afirmaco étnica contra a exclusao. A identidade nao € forjada no vazio, mas pela reatualizagao das tensées | historicamente engendradas. No quilombo de Ivaporunduva, muitos que migraram para os centros urbanos préximos voltaram para as terras @ Wt cece eee ee para Sao Paulo, outro para as favelas, para debaixo das pontes, e outros esto por aft | 0 quilombo representado pelo rap busca identificé-lo & periferia, i aludindo a um territério de liberdade de expressio, construido sobre um determinado cédigo cultural que contemple sua forma de ser e de manifestar os que foram exclufdos pelo sistema. A idéia subjacente é a da segregagdo territorial, marcada pela territorialidade com seus préprios signos que, dificilmente, s&o compreendidos pela metrépole, pois s4o estranhos a ela, Mas esse viver territorial se diferencia do rural, pois neste a representaco do territério se constréi sobre a terra, as aguas e aos animais. Assim, 2 questo acaba por retomar a totalidade social para explicar a insergo do negro a sociedade capitalista brasileira “¢ Entrvits com sr. Genedito Antinie da Silva, da Comunidade de Ivaporunduva, em 1996 BS laurie Cari ——EEEEE Estamos nos referindo aos movimentos quilombolas como instancia de organizacao social e politica diante das desigualdades existentes porque estas expressam presses populares frente ao Estado e aos projetos econémicos que véem as terras e os trabalhadores negros como categorias disponiveis para o capital e para a acumulacdo. As hiperperiferias so constituidas por migrantes e negros, ou seja, or comunidades desenraizadas. A territorialidade implicada na aluso a0 quilombo corresponde a sua representagao simbélica sem a materialidade da base ffsica. Mas € justamente a concepgao da condigtio de serem despossufdos, moradores de favelas, o que reforca os movimentos negros organizados, a inser¢&o em partidos politicos, em movimentos sociais e em ‘uma expressio como a do hip-hop. © quilombo, em ambas as situacdes, mostra a origem comum, da luta € da resistencia, No rap aparece a referéncia a luta do Quilombo dos Palmares, por ser o que combateu a sociedade escravista por mais tempo; no rural, hé a busca da histéria da formag&o das terras por comunidades escravas. Penso que as territorialidades quilombolas apontam para essa relagio presente/ausente do Estado brasileiro. Um projeto e uma ideologia que consolidam a base fisica e territorial, contemplam o projeto modernizador do territério, atendendo, assim, as demandas hegemdnicas das classes dominantes rurais ¢ urbanas. 0 territério, como fragdo da presenca das camadas sociais subalternas, é considerado terra de ninguém. Essa relacéo se exemplifica pelo abandono do Estado, pela implantaco de unidades de conservacdo sobre terras de quilombos e de outras comunidades e mesmo pelo mimero ainda pequeno de titulacées entregues as comunidades Quilombolas. Nos bolsées de pobreza, a auséncia do Estado é reconhecida pela falta de infra-estrutura e melhorias urbanas apesar da pressao dos ™movimentos sociais ter suscitado acriagio de politicas pablicas, Noentanto, 8 mais pobres tém sido empurrados para os limites municipais e para as reas de mananciais, Essa auséncia do Estado para uma parcela da sociedade brasileira revela'se na relacdo Estado, Sociedade e Territério. Assim, nos lugares em que ele atende as demandas apresentadas, a modernidade se territorializa, Onde ele nao esta presente, constroem-se territorialidades diversas, como 0 quilombos rurais e os representados pelo rap. E evidente que hi outras manifestagdes territoriais. Podemos citar o exemplo do tréfico organizado 2B6 Qulombo, fora periferia: a longa busca da idadaia nas periferias. Embora, ndo haja, exatamente, poder paralelo, porque 0 Estado possui dominio da base territorial, nem haja um projeto que desafie o poder do Estado (CALDEIRA, 2003), 0 tréfico tem-se territorializado nessas areas. Nao seriam formas de identidade territorial de um viver especifico do territ6rio nas quais incidem as condigdes socioeconémicas e politicas aludidas neste trabalho? Trafico de drogas,roubos, sequestros e assassinatos ligam-se no imaginério social ao medo das classes perigosas, que, conforme citamos anteriormente, estava também presente no século XIX com a revolta dos escravos. Nos primeiros anos da Repdblica, eram chamados desocupados, “vadios” e ladrées os que estavam & margem do sistema. E, agora, quando 0 confinamento tende a se estabelecer, prisées territoriais, isoladas pelos muros e pela seguranga dos condomfnios fechados, 0 panico coma violencia eo aumento da criminalidade aumentam, a sociedade clama por novas medidas. Na pratica, os justiceiros e a policia privada nao reatualizam formas de entrosamento da ordem com a desordem? Vale lembrar a presenca de capoeiras e capangas tradicionalmente empregados por politicos e poderosos, em geral, como instrumentos de justica privada ‘como om fases anteriores da repGblica brasileira. O Estado, como representante das demandas da sociedade, no perfodo atual, encontra-se legitimado, segundo Berger et al (2002), por universos simbélicos que fornecem significago no interior de realidades diferentes, inclusive nas que pertencem & experiencia da vida cotidiana, uma vez que agora toda a experiéncia humana encontra-se contida no interior dele. De que maneira os universos simbélicos realizam a legitimacdo da biografia individual e a ordem institucional? Para os autores, trata-se de um proceso némico ou ordenador, pois 0 universo simbélico oferece a ordem para a apreensdo subjetiva da experiéncia biogréfica, 0 que significa que os individuos devem se encontrar abrangidos por esse sistema, Entao como pensar 0 nao se sentir abarcado por essa instancia? Quer dizer, como instancia de representacao politico-social? Da organizagao que esta acontecendo entre o5 varios personagens quilombolas, indigenas, trabathadores rurais sem-terra, trabalhadores urbanos sem-teto e outros - deve haver ampliacao do projeto politico Numerosos exemplos podem ser oferecidos. Na periferia de Capo Redondo atuam muitas ONGS; tais como: Casa dos Meninos, Casa do Zezinho ¢ CEDHEP, além da atuacao das Igrejas, sindicatos, associagdes de moradores BI Lourdes Cari a € partidos politicos. Além disso, mensalmente, 0s movimentos sociais organizados da regio de Capo Redondo, Campo Limpo e Jardim Angela se reinem em um férum para discutir suas prioridades. Todos os anos as comunidades de varios bairros realizam, no Dia de Finados, uma “Caminhada pela Paz” até o Cemitério do Jd. Sao Luis onde esto enterrados ‘muitos jovens assassinados na regio, Esse evento é também um momento importante para organizar demandas por agées piblicas, como pude acompanhar, em 2003, quando o tema esteve relacionado & necessidade da criacdo de um hospital no distrito de Jd. Angela. Portanto, néo estamos tratando totalmente de um universo anémico, pois existem mecanismos de acao politica organizada. Porém, aluta é4rdua, uma vez que a desorganizacao do mundo do trabalho e o subemprego concorrem para a desagregacto ¢ a entrada de jovens no trafico, & degradacao moral e & descaracterizagdo dos mecanismos formais de convivio com o Estado ‘Trata-se de uma secular exclusao e de permanéncias histéricas que conduzem a ver 0 poder pablico, cedendo as pressées, para dar continuidade a um mesmo projeto, e a deixar a descoberto as injusticas sociais. Essa ago, desde sua origem, atinge um nGmero concentrado de afro. descendentes. Penso assim que o quilombo reapareceré enquanto a democracia racial tiver também forca de mito para encobrir as desigualdades sociais e raciais. Segundo Chauf (2000:9), 0 mito, no sentido etimolégico, recorre aos feitos lendérios da comunidade, como momentos fundadores, mas também pode ser expresso no sentido antropol6gico, “no qual essa narrativa € a soluco imagindria para tensées, conflitos ¢ contradicdes que no encontram caminhos para serem resolvidos no nivel da realidade’. Arepresentacio do quilombo encontra-se concebida como referéncia de um imaginario de resisténcia, uma vez que a democracia social e racial do esté consolidada para o afro-descendente. Além disso, os quilombos nunca foram totalmente negros, pois brancos e indios também fazem parte de sua hist6ria. Dessa maneira, ele tornou-se um forte simbolo de luta de liberdade. A favela e a periferia também so compostas por pobres de todas as cores, por isso, nao se trata de retomar a andlise da presenca do negro na sociedade e no territ6rio brasileiro pela noco de raga, até porque quando essa categoria pautava-se pela cientificidade, era para justificar a condicao de subalternidade daquela populagao. A questo da cor é retomada pelo 28 (uilombe, fala «peri longa busca a iadaia Be debate da desigualdade que ainda confere &s matizes raciais uma condicao social. Vemos que cor sempre foi mecanismo de representacdo ideol6gica encobrindo um abismo social entre as diferentes camadas sociais brasileiras. Sua presenga/auiséncia € a condicio para o desenvolvimento de relagées capitalistas desiguais. Os processos modernizadores néo climinaram essas permanéncias - a de ser negro e pobre, pelo contrario, concretizaram-sea partir delas. Ahierarquia social seguemesmo no interior dos bolsées de pobreza dividindo os mais brancos e os mais negros. No conjunto social, as nuancas quase desaparecem, mas ao fim deste trabalho a segregacio espacial e racial vai se encontrando com a afirmaciio de Oracy Nogueira para quem, no Brasil, “Preto rico é branco e branco pobre é negro" ‘A questo aqui presente é a constituicdo de territorialidades concernentes a tempos distintos e pertencentes a uma modernidade inconclusa. As comunidades quilombolas ¢ os negros da periferia lutam pela cidadania, pela consideracdo de sua presenga no territério. Reivindicam a reparagdo dessa exclusdo. Entéo, retomar a cor como base para aconstrucio de identidade significa reivindicar uma categoria politica, tomar o assento do lugar como atores sociais e néo remanescentes de um passado ou confinados aos presidios e aos territérios-prisdo. Lourdes Gal ‘Mapa 12 - Principais quilombos e revoltas com participagdo de povos negros no territ6rio brasileiro - séculos XVII / XIX PRINCIPAIS SITIOS QUILOMBOLAS. Ormco @ +0 200100, JezTOR BF cranoeconcrnAcrO SERIES PRINCIPAIS REVOLTAS E INSURREICOES He Rairglgton ements Fonte: Anjos, S.A. dos (org. Batista, S.C. Oliveira, W.F.(2003) uo —_e Quiombo, ave priferia: longa busca da ciadaia consideracoes.finais Este trabalho abordou o quilombo como uma das mais antigas formas de representacao e prética social e espacial das comunidades negras no Brasil. Em trabalho anterior, comunidades rurais quilombolas foram estudadas como parte do universo agrério, apontando que essas identidades esto fundadas na terra e na histéria comum com base na etnicidade e na territorialidade. Quando uma comunidade de rappers brasileiros do Capac Redondo chama para a periferia essa mesma identidade, a categoria conceitual de quilombo passa a ser refletida de forma comparativa para entender o que essa representacto quer mostrar. Quanto a este fato, acreditamos ter atingido alguns dos objetivos propostes inicialmente, explicitando a segregacio socioespacial e racial em Sao Paulo. No entanto, por tratar-se de um tema de elevada complexidade, muito hé que se investigar ainda para se compreender os mecanismos de confinamento racial urbano. Exemplo disso séo as reagdes da sociedade brasileira as discussées sobre pendéncias raciais no Brasil ou as reivindicagées dos ‘movirentos sociais negros quanto a reparacées sociais ou cotas raciais. Na maioria das vezes, surge a questo sobre quem € negro no Brasil. Isso significa que 0s mecanismos de exclusdo racial ainda nao esto suficientemente esclarecidos e mostra que ainda ndo se admite a questéo racial como fator essencial presente na formacao do capitalismo brasileiro. Para tanto, neste trabalho procurei ressaltar que a cor no se coloca como origem do problema, mas como elemento que cria raizes na reproducio do sistema socioeconémico brasileiro. O fato de que a aboligtio da escravidao tenha posto fim a um motor da economia colonial no significou o desaparecimento desse mecanismo na recriacio do sistema, nao mais pela escravizacao do corpo do negro, mas pela sua substituicdo pelo mecanismo hierarquizante da cor. Esta se torna signo de ai | [ew or subalternidade na nova e moderna sociedade e repde aqueles mecanismos coloniais baseados na superexploracao do trabalhador. 0 desaparecimento da figura jurfdica do escravo foi seguido pela metamorfose deste por cor da populagdo. Sua presenca nas atividades econémicas, na verdade, tornou- se aus@ncia, uma vez que os imigrantes passaram a substitui-lo. Nao obstante, 0 fizeram, muitas veres, reproduzindo relacées semi-escravistas, mecanismos explicitados pelo fato de que os trabalhadores realizavam a producao dos meios de vida, adicionando, inclusive, a mao-de-obra dos familiares ao trabalho no interior das Fazendas de café. Discussées e debates em torno da formacao da nacdo foram constantes no pés-aboligio, muitas delas preconizando a necessidade da | entrada de trabalhadores estrangeiros e, ao mesmo tempo, desqualificando amao-de-obra do escravo e do trabalhador nacional. A questo era tratada | ideologicamente entre intelectuais que atribuam carter inferior a cultura negra na sociedade em construgio e entre os que a viam no sentido da construgto de um ideal democrético representado pela miscigenacdo. A saida para a negatividade que a presenca do negro trazia torna-se presenca/ auséncia, uma vez que engendra sua invisibilidade social ao mesmo tempo ‘em que proporeiona o abastecimento do contingente de trabalhadores & disposicdo da reposigdo de acumulacao, Em outras palavras, imensa reserva de forga de trabalho sempre esteve & disposicao do capitalismo brasileiro. Bssa sociedade constituiu-se altamente hierarquizada, 0 que foi aprofundado pela consolidaco da miscigenacao em seu interior. Aclivagem social em uma sociedade assim se baseia em mecanismos de corte racial. Uma sociedade mestica na qual nos perguntamos quem € negro e quem & branco. Oracy Nogueira responde: “No Brasil, o negro rico é branco, o branco pobre é negro”. 0 branco, o negro, 0 cabocto e 0 mameluco sio hibridos de um processo hist6rico de unides inter-raciais, ressaltando que o mito da democracia racial se construiu ideologicamente pela miscigenacao, ocultando as distancias entre as classes sociais. A valorizacao do fator etno-racial encontra-se em Casa-grande ¢ senzala e Sobrados e mucambos. Nessas obras, Gilberto Freyre concebe a miscigenacao de forma positiva ao apontar a contribuicao da cultura africana e indigena para a sociedade brasileira. Parte da nogao de cultura endo de raca, além de relativizar as determinagées do meio. No século XIX, © tema racial tornara-se uma referéncia para debater as novas representagées realizadas sobre a nagao brasileira. Explicagdes como as m Quilombo, va periferia:a longa busca x cidadaia m3 de Nina Rodrigues, Silvio Romero e Oliveira Vianna, entre outros, apontavam. para os fatores negativos presentes em uma sociedade miscigenada, sobretudo para a influéncia negativa da contribuicdo do negro (SCHWARCZ, 1993). Com Gilberto Freyre reforgou-se a idéia de democracia racial, embora trouxesse a explicagao do peso que as relagdes patriarcais exerceriam para uma sociedade tao hierarquizada e desigual como a brasileira Entretanto, a aproximago entre senhores e escravos expressa no territério contiguo de Casagrande e senzala e em Sobrados e mucambos forma, para © autor, uma via de duas maos na interpenetracio cultural. No entanto, 0 universo de dominacio ideolégica e psicosocial € dominado pelo paternalismo. Quanto a esse aspecto, reafirma Florestan Fernandes (1978): discriminagao se deu de maneira t&o sutil que o ‘negro’e o ‘mulato’ no tiveram condicao de tomar consciéncia de sua existénci 1a”, Em vista disso, a populagao negra pautou-se pelos padrées dos “brancos” como modelo para se inserir socialmente e no mundo do trabalho livre. Nesse sentido, passo a considerar que foi a negatividade da cor 0 que permaneceu no imaginario social, se estendendo aos pobres. Quero dizer com essa afirmacio que a desigualdade radicada na estrutura social brasileira tem carater racial. Ela € profunda e se remete & auséncia de direitos, a exclusao da voz. social e & superexploracao tfpica da condicdo do escravo negro. A vinculacao desses dois componentes nao permite separar ‘um do outro, mas 6 possivel destacar nfveis hierarquicos, estabelecendo clivagens internas aos grupos sociais e nao anula o total abandono dos escravos no mundo apés a Abolicao. Vimos, por isso, que os fendmenos sociais ndo podem ser examinados isoladamente, sob 0 risco de no serem apreendidos em profundidade. Mas, quando inseridos nos processos historicos e nas relagdes sociais fundantes, temos a possibilidade de desvendar os discursos e as acdes ideolégicos que procuram ocultar o tema. Este € 0 caso aqui discutido. 0 quilombo tem sido pensado como uma das estratégias de resistencia & sociedade escravista, ¢ quando sua aproximagio & favela e & periferia pelos préprios excluidos € investigada revelam-se permanéncias reeditadas pelos processos sociais ¢ espaciais e engendrados na contemporaneidade. Quanto ao conceito de quilombo, tem sido pensado como uma das formas de resistencia dos escravos contra a exploractio escravista. Mas a historiografia vem propondo novas abordagens a fim de ampliar a visio Louris Car para combaté. sobre essas insurgéncias e compreendé-las em um conjunto de agdes € estratégias diversas que, na verdade, resultaram em maiores margens de autonomia do trabalhador escravo. Logo, deixa-se de pensar 0 quilombo como forma de transposigo da cultura africana, de ser vista como algo cristalizado que os quilombolas tentavam recuperar para se opor & sociedade escravista. Também se procura ultrapassar a visao de que o quilombo se torna uma unidade auténoma, pautada pelo isolamento e se volta para uma vida na natureza. Por fim, ao formar 0 quilombo, 0 escravo transcende os limites restritivos e abre brechas de negociacao que perpassam toda a sociedade escravista, dos quilombos as senzalas, em relagao aos senhores, a0 comércio regional. Criaram mecanismos que Ihes permitiram constituir uma vida baseada na producto para 0 auto- abastecimento e de comércio de excedentes. A categoria quilombo, assim entendida, restituiu a seus atores um status politico de organizacao e intervengao social. As lutas dos quilombolas séo parte de varias lutas de resistencia empreendidas pelos trabalhadores brasileiros. A escravidao indigena e a africana corresponderam a uma fase de constitui¢ao do capitalismo nacional, inaugurando as contradigées vividas pela sociedade brasileira atual, como é ainda a luta pela reforma agréria, Procurei apontar os elos estruturais que permeiam os dilemas vivenciados, tanto pelas camadas sociais pobres do campo quanto da cidade, nas quais 0 quilombo representa um imaginério social fundador de revolta contra um sistema opressor que nao deixou de existir. No campo, essa realidade € trazida pela organizacdo de um movimento nacional quilombola, consubstanciado pelos assédios as terras, por projetos desenvolvimentistas e ambientalistas que véem a terra sem homens. Aaprovacao do artigo 68 da Constituigao de1988, 0 qual reconhece o direito & terra pelas comunidades remanescentes de quilombos, tornou factivel a obtencao do titulo de propriedade da terra, observando aespecifica ogo de uso comum dos camponeses moradores dos quilombos. No urbano, o quilombo é recuperado pelas comunidades de rappers que procuram denunciar por meio das letras a realidade socioespacial da periferia. A representacao quilombola é construfda pelas semelhancas apontadas entre a vida do escravo e a dos negros na periferia, Nao houve ainda a alforria, segundo algumas das interpretacdes, porque falta emprego, infra-estrutura urbana, ¢ a exploracao do trabalho destitui o acesso aquilo __|aw ‘ule, vel pri alga Buca a dana us que a sociedade de consumo apresenta como modelo de cidadania, Retira mesmo as condigées minimas de reprodugo social. Os capi foram substitufdos pelos policiais, aludindo a uma populacdo étnica especifica como alvo de controle policial. Ficou patente em nosso trabalho a existéncia de uma segregagao socioespacial e racial, ou seja, passado um século da aboli¢ao da escravidao a populacao afro-descendente foi sendo empurrada para as dreas mais distantes da cidade, onde predominam a escassez, a auséncia de equipamentos e melhorias urbanas. Apesar das estatfsticas socioecondmicas apontarem para a cor da pobreza, ndo apontavam para sua concentragao espacial. A invisibilidade da segregacao socioespacial do negro pode ser remetida a dois fatores. Com a aboligo da escraviddo e com 0 advento da Repiblica o Estado ndo implementou uma politica racial e segregacionista, como nos Estados Unidos e na Africa do Sul. Nem guetos, nem bantustées ou outro tipo de reserva territorial foi criado especificamente para segregar o exescravo de origem africana. Mas a exclusdo social-histérica do negro ¢ a criagio de um imagindrio de democracia racial tornaram posstvel, também, a segregacio espacial. Por essa via, abordamos 0 quilombo para além do proceso hist6rico em que se produz como luta contra a escraviddo, pela permanéncia de um quadro social, econémico e psicolégico em que os negros ainda esto inseridos. A pesquisa realizada no distrito do Capto Redondo, utilizando fontes primarias e secundarias, como entrevistas, questiondrios, artigos de jornais e revistas, bem como estatisticas do IBGE e de outros institutos, me permitiu tragar linhas de continuidade da hist6rica exclusdo do negro brasileiro, {As condigdes socioeconémicas atuais, em um quadro de desemprego, pobreza e marginalizacdo, agravam-se com a politica de reduce do Estado na Grea social. E nesse momento que o territério da cidade nos apresentou um novo tipo de exclusao. Constata-se a formagtio de novas periferias (as hiperperiferias), ou seja, bolsées de pobreza em locais mais distantes, nos quais houve poucas melhorias urbanas, 0 “fundao” € uma denominagio encontrada no Capéo Redondo para expressar a distincia do lugar em relagio aos centros da cidade ¢ onde predomina a auséncia de infra estrutura urbana, E como a cidade tem limites territoriais, as areas de protegto de mananciais também foram sendo ocupadas irregularmente, Lourées Ca Embora a exclusto seja uma caracteristica do capitalismo, no atual perfodo, segundo Martins (1997), a sua duragao € maior do que antes, Na perspectiva de que também tudo pode ser vendido, 0 emprego informal, a droga ¢ 0 corpo sto meios de se ganhar algum dinheiro. Nesse sentido, na década de 1950 0 migrante que vinha para a cidade em busca de trabalho podia até morar na favela, mas esta se encontrava incorporada como moradia de trabalhador. Os movimentos sociais pressionaram o poder Pablico, conseguindo efetivar a urbanizacio da periferia. Agua, esgoto e luz podem, hoje, ser vistos em bairros populares, Na década de 1990, a aplicacdo de um novo modelo econdmico aliado a reestruturaco produtiva e as novas tecnologias, sustentado por um novo discurso liberal, produziu a faléncia de empresas, desemprego e novas exclusdes. A cidade de Sao Paulo jé vinha apresentando transformagées territoriais caracterizadas pela desconcentracao industrial e por um processo de crescimento do setor terciario desde a os anos de 1970. Nesse momento, a nova centralidade pautou-se pela consolidagao de uma metr6pole tercidria e global Um processo socioespacial antigo vem se reproduzindo nesta fase de modernizacao da metropole. So os bairros ocupados pela populagao de mais alto poder aquisitivo, os que registram maiores quantidades de investimentos piblicos, enquanto estes escasseiam nos bairros populares, Rolnick (2997) aponta que, desde o final do século XIX, a formulagio de cédigos municipais, com o objetivo de reordenar o espaco da cidade acaba por criar duas cidades em Sao Paulo. A persisténcia desse modelo de urbanizagao no século XX resultou na continua produgio da legalidade e da ilegalidade. Ou seja, o poder pablico, ao definir uma legislagao urbana, ndo tem conseguido evitar sua subversto na aplicagao real a todos os. moradores da cidade, Ao mesmo tempo, ele tem fechado os olhos para as ocupagdes ilegais, porque se trata de um problema social de grande envergadura, para o qual também deveria sedestinar uma politica namesma Proporcao, Esta posto que a segregacao socioespacial, hoje, ndo s6 distancia as lasses sociais, mas tende a realizar uma espécie de confinamento dos Pobres (WACQUANT, 20012). A marginalizagio do territ6rio traz a imagem @ a realidade de um lugar do qual nao ha como sair, o territério-prisao. Comparado aos presidios, o territério altera 0 antigo padrao de divisio territorial do trabalho, Seus moradores nao tém conseguido se realocar no M6 Quilombo faveaeperiera aloega busca da idadoia un mundo do trabalho formal, seus meios de vida esto pautados pela informalidade e ha um poder local. 0 trafico de drogas também subvorte a ordem legal do Estado e produz uma territorialidade marcada por leis e seguranga locais e por um mercado de trabalho préprio. A caracteristica étnica da exclusio realiza a formag&o de territérios negros na cidade, separados de outros bairros pela presenca/auséncia do Estado, pelo patriménio, pelo acesso ao emprego ¢ as melhores escolas. & evidente que a geografia da cor dessa populacao revela limites, uma vez, que a exclusdo no Brasil também se fez.em relaco aos diversos conjuntos dos trabathadores - brancos endo-brancos. A afirmacao faz-se pelocontraste entre a pequena presenga de populagao afro-descendente nos bairros mais equipados da cidade e sua grande presenga nos que aqui formam a hiperperiferia. Por sua vez, ao crescimento da criminalidade e da violéncia correspondem a reificagao da cor do crime. E 0 retorno das classes perigosas que traz de volta o medo que as elites do século XIX tinham das sublevacées, dos escravos. Agora, a mfdia reforga o preconceito ao enfatizar a categoria, racial quando relata 0 assalto, 0 furto ¢ 0 seqiiestro.! Pensamos, no entanto, néo se tratar de universos “andmicos”, pois & possivel constatar a existéncia de organizagao social por meios de diversos atores (associagdes de moradores, igrejas, ONGs e movimentos sociais). A presenca da policia, em muitos casos, também tem ultrapassadoa tendéncia A repressao. A participacao de policiais civis e militares nos féruns, realizados, mensalmente, nos bairros atestam Reverter a segregagdo caracterfstica do atual perfodo é uma tarefa que requer a ampla pressao social organizada sobre 0 poder piiblico. As politicas pablicas ao oferecerem renda minima, tiquete-leite ou bolsa-escola devem ter consciéncia de que se trata de um momento apenas. Investimentos mais estruturais devem ser realizados, inclusive na revalorizacao da escola piiblica como espaco social de conquista da fato. cidadania, Com este trabalho pretendemos ter contribufdo para a ampliacao do debate sobre a cidadania no Brasil e para explicitar o reaparecimento do quilombo. Ele tem sido, na verdade, uma estratégia de luta que se originou no interior do sistema escravista, continuando para além desse perfodo 1. 0s programas do “Cidade Aleta’, sistematicamente, sfo eloqentes a0 caractorizar 0 bandido, chamando a atengo para a corde sua pele, denominando- prortivarmente de “negro Lourdes Car como auto-identificacto da luta pelo existir afro-descendente no campo e na cidade, Com o passar do tempo, as lutas dos trabalhadores rurais ¢ urbanos continuam a enfrentar condicées semelhantes aquelas fundadas no perfodo colonial. Dessa maneira, a reivindicagio de quilombo por esses atores leva a constatag#o da permanéncia de relacées socioeconémicas ainda opressoras ¢ aponta que, no Brasil, enquanto a democracia e a igualdade social ndo se consolidarem, elas s6 podem se realizar no imaginario quilombola, ee Me uiomb,faveaeperiera:alonga Buca da cdadania

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