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CORTAZAR,

Julio. “Do Conto Breve e seus Arredores” In: Úl#mo Round. Tomo I. Tradução
Paulina Wacht, Ari Roitman. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, pags. 57-80.

Certa vez, Horacio Quiroga tentou um decálogo do conPsta perfeito, cujo mero Stulo já vale
como uma piscada de olho para o leitor. Se nove dos preceitos são consideravelmente
prescindíveis, o úlPmo me parece de uma lucidez impecável: imagine que o relato só Pvesse
interesse para o pequeno ambiente de seus personagens dos quais você poderia ter sido um. É
a única maneira de obter a vida no conto.

A noção de pequeno ambiente dá seu senPdo mais profundo a este conselho, ao definir a
forma fechada do conto, o que em outra ocasião chamei de sua esfericidade; mas a esta noção
une-se outra igualmente significaPva, a de que o narrador poderia ter sido um dos
personagens, ou seja, a situação narraPva em si deve nascer e se dar dentro da esfera,
trabalhando do interior para o exterior, sem que os limites do relato sejam traçados como
quem modela uma esfera de argila. Em outras palavras, o senPmento da esfera deve preexisPr
de algum modo ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submePdo pela forma que
assume, exisPsse implicitamente nela e a levasse à sua tensão extrema, o que consPtui
justamente a perfeição da forma esférica.

Estou falando do conto contemporâneo, digamos aquela que nasce com Edgar Allan Poe e que
se propõe como máquina infalível desPnada a cumprir sua missão narraPva com a máxima
economia de meios; precisamente, a diferença entre o conto e aquilo que os franceses
chamam de nouvelle e os anglo-saxões de long short story se baseia nessa implacável corrida
contra o relógio que é um conto plenamente realizado: basta pensar em The Cask of
Amon5llado, Bliss, As Ruínas Circulares e The Killers. Isto não quer dizer que contos mais
extensos não possam ser igualmente perfeitos, mas me parece óbvio que as narrações
arqueSpicas dos úlPmos cem anos nasceram de uma impiedosa eliminação de todos os
elementos privaPvos da novela e do romance, os exórdios, circunlóquios, desenvolvimentos e
outros recursos narraPvos; se um conto longo de Henry James ou de D. H. Lawrence pode ser
considerado tão genial como aqueles, há de se convir que esses autores trabalharam com uma
abertura temáPca e lingüísPca que de alguma maneira facilitava sua tarefa, enquanto o mais
assombroso nos contos contra o relógio é o fato de potencializarem verPginosamente um
mínimo de elementos, provando que certas situações ou terrenos narraPvos privilegiados
podem se traduzir num relato de projeções tão vastas quanto a mais elaborada das novelas.

O que vem a seguir se baseia parcialmente em experiências pessoais cuja descrição mostrará
talvez, falando de fora da esfera, algumas das constantes que gravitam num conto desse Ppo.
Volto ao mano Quiroga para recordar que diz: “Imagine que o relato só Pvesse interesse para o
pequeno ambiente de seus personagens, dos quais você poderia ter sido um.” A noção de ser
um dos personagens geralmente se traduz num relato em primeira pessoa, que nos situa
diretamente num plano interno. Há muitos anos, em Buenos Aires, Ana Maria Barrenechea me
criPcou amistosamente por um excesso no uso da primeira pessoa, acho que com referência
aos relatos de As armas secretas, ou talvez se tratasse dos de Final de jogo. Quando eu lhe
disse que havia vários em terceira pessoa, ela insisPu que não e Pve que provar de livro em
punho. Chegamos à hipótese de que talvez a terceira pessoa agisse como uma primeira pessoa

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disfarçada, e que por isso a memória tendia a homogeneizar monotonamente a série de
relatos do livro.

Nesse momento, ou mais tarde, encontrei uma espécie de explicação pela via contrária,
sabendo que quando escrevo um conto procuro insPnPvamente que seja de algum modo
alheio a mim enquanto demiurgo, que viva com uma vida independe e que o leitor tenha ou
possa ter a sensação de que de certa maneira está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si
mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais com a presença
manifesta do demiurgo. Lembrei que sempre me irritaram os relatos nos quais os personagens
são deixados meio de lado enquanto o narrador explica por sua conta (embora essa conta seja
a mera explicação e não suponha interferência demiúrgica) detalhes ou passos de uma
situação para outra. O indício de um grande conto me é dado por aquilo que poderíamos
chamar de sua autarquia, o fato de o relato se ter desprendido do seu autor como uma bolha
de sabão se desprende do cachimbo de gesso. Por mais paradoxal que pareça, a narração em
primeira pessoa consPtui a mais fácil e talvez melhor solução para o problema, porque
narração e ação são ali uma coisa só. Mesmo quando se fala de terceiros, quem o faz é parte
da ação, está na bolha e não no cachimbo. Talvez por isso, nos meus relatos em terceira pessoa
quase sempre procurei não me afastar de uma narração stricto sensu, sem esses
distanciamentos que equivalem a um juízo sobre o que está acontecendo. Acho uma vaidade
querer intervir num conto com algo além do conto em si.

O que leva necessariamente à questão da técnica narraPva, entendendo por isto o vínculo
especial em que se situam o narrador e o narrado. Pessoalmente, esse vínculo sempre se
apresentou a mim como uma polarização, isto é, se exisPsse a óbvia ponte de uma linguagem
que vai de uma vontade de expressão à própria expressão, essa ponte ao mesmo tempo se
separa, como escritor, do conto como coisa escrita, a tal ponto que o relato sempre acaba, com
a úlPma palavra, na margem oposta. Um verso admirável de Pablo Neruda – Minhas criaturas
nascem de uma longa rejeição – me parece a melhor definição de um processo em que
escrever é de algum modo exorcizar, expulsar criaturas invasoras projetando-as numa condição
que paradoxalmente lhes dá uma existência universal ao mesmo tempo que as situa na outra
extremidade da ponte, onde já não está o narrador que soltou a bolha em seu cachimbo de
gesso. Talvez seja exagerado afirmar que todo conto breve plenamente realizado, e
parPcularmente os contos fantásPcos, são produtos neuróPcos, pesadelos ou alucinações
neutralizadas por meio de objePvação e da transferência para um meio externo ao terreno
neuróPco; de todo modo, em qualquer conto breve memorável se disPngue essa polarização,
como se o autor houvesse querido desprender-se assim que possível e da maneira mais
absoluta de sua criatura, exorcizando-a da única forma em que lhe era dado fazê-lo:
escrevendo-a.

Esse traço comum não exisPria sem as condições e a atmosfera que acompanham o exorcismo.
Pretender libertar-se de criaturas obsediantes na base da mera técnica narraPva pode talvez
dar num conto, mas se faltar a polarização essencial, a expulsão catárPca, o resultado literário
será exatamente isto, literário; faltará ao conto a atmosfera que nenhuma análise esPlísPca
conseguirá explicar, a aura que sobrevive no relato e que se apossará do leitor como já se havia
apossado, na outra extremidade da ponte, do autor. Um conPsta eficaz pode escrever relatos
literariamente válidos, mas se já Pver passado alguma vez pela experiência de se livrar de um
conto como quem Pra uma alimária de cima de si, saberá a diferença que existe entre

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possessão e cozinha literária, enquanto um bom leitor de contos disPnguirá infalivelmente
entre o que vem de um território indefinível e execrável e o produto de um mero mé5er. Talvez
o traço diferencial mais penetrante – já o disse em outro lugar – seja a tensão interna da trama
narraPva. De um modo que nenhuma técnica poderia ensinar ou proporcionar, o grande conto
condensa a obsessão da alimária, é uma presença alucinante que se instala desde as primeiras
frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder o contato com a esmaecida realidade que o cerca,
arrastá-lo para um mergulho mais intenso e avassalador. De um conto assim se sai como de um
ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um
olhar de surpresa de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio, e tantas outras de
resignação. O homem que escreveu esse conto passou por uma experiência ainda mais
extenuante, porque o regresso a condições mais toleráveis dependia de sua capacidade de
transferir a obsessão; e a tensão do conto nasceu dessa fulgurante eliminação de idéias
intermediárias, de etapas preparatórias, de toda a retórica literária deliberada, porque estava
em jogo uma operação em certa medida fatal que não tolerava perda de tempo; estava lá, e
com um único tabefe ele podia arrancá-la do pescoço ou da cara. Em todo caso, assim me foi
dado escrever muitos dos meus contos; mesmo em alguns relaPvamente longos, como As
armas secretas, a angúsPa onipresente ao longo de um dia inteiro me obrigou a trabalhar
obsPnadamente até acabar o relato e só então, sem me preocupar em relê-lo, pude ir para a
rua e caminhar por conta própria, sem ser mais Pierre, sem ser mais Michele.

Isso permite sustentar que certa gama de contos nasce de um estado de transe, anormal para
os cânones da normalidade em uso, e que o autor os escreve enquanto está no que os
franceses chamam de état second. A prova de que Poe produziu seus melhores relatos nesse
estado (paradoxalmente, reservava a frieza racional para a poesia, pelo menos na intenção),
antes de qualquer evidencia testemunhal, é o efeito traumáPco, contagioso e para alguns
diabólico de The Tell-tale Heart ou de Berenice. Não faltará quem considere um exagero essa
noção de um estado ex-orbitado como o único terreno onde pode nascer um grande conto;
recordarei que me refiro a relatos em que o próprio tema contém a “anormalidade”, como os
mencionados de Poe, e que me baseio em minha própria experiência das vezes em que me vi
obrigado a escrever um conto para evitar coisa bem pior. Como descrever a atmosfera que
antecede e envolve o ato de escrevê-lo? Se Poe Pvesse Pdo oportunidade de falar disso, estas
páginas não seriam tentadas, mas ele silenciou esse círculo do seu inferno e se limitou a
transformá-lo em The Black Cat ou em Ligeia. Não conheço outros testemunhos que possam
ajudar a compreender o processo desencadeante e condicionante de um conto breve e digno
de lembrança; apelo então para minha própria situação de conPsta e vejo um homem
relaPvamente feliz e coPdiano, envolto nas mesmas mesquinharias e denPstas de todo
habitante de uma cidade grande que lê o jornal e se apaixona e vai ao teatro e que de repente,
instantaneamente, num percurso de metrô, num café, num sonho, no escritório enquanto
revisa uma tradução suspeita sobre o analfabePsmo na Tanzânia, deixa de ser ele e suas
circunstâncias e sem razão alguma, sem pré-aviso, sem a aura dos epiléPcos, sem a crispação
que precede as grandes enxaquecas, sem nada que lhe dê tempo de apertar os dentes e
respirar fundo, é um conto, massa informe sem palavras nem caras nem princípio nem fim mas
já um conto, uma coisa que só pode ser um conto e então logo a seguir, imediatamente, a
Tanzânia que se dane porque esse homem vai botar uma folha de papel na máquina e começar
a escrever mesmo que seus chefes e as Nações Unidas em peso lhe aluguem as orelhas,
mesmo que sua mulher o chame porque a sopa está esfriando, mesmo que ocorram coisas
terríveis no mundo e ele precise ouvir as noScias pelo rádio ou tomar banho ou ligar para os

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amigos. Lembro-me de uma passagem curiosa, creio que de Roger Fry; um menino
precocemente dotado para o desenho explicava seu método de composição dizendo: First I
think and then I draw a line round my think (sic). No caso desses contos acontece exatamente o
contrário: a linha verbal que os desenhará começa sem nenhum think prévio, há como um
coágulo enorme, um bloco total que já é o conto, isto é claríssimo embora nada possa parecer
mais obscuro, e justamente aí reside essa espécie de analogia onírica de sinal inverPdo que
existe na composição desses contos, porque todos nós já sonhamos coisas medianamente
claras que, uma vez acordados, eram um coágulo informe, uma massa sem senPdo. Será que
se sonha acordado ao escrever um conto? Os limites entre o sonho e a vigília, já se sabe: basta
perguntar ao filósofo chinês ou à borboleta. De qualquer maneira, se a analogia é evidente, ao
menos no meu caso a relação é de sinal inverPdo, pois parto do bloco informe e escrevo algo
que só então se transforma num conto coerente e válido per se. A memória, traumaPzada sem
dúvida por uma experiência verPginosa, guarda detalhadamente as sensações desses
momentos e me permite racionalizá-los aqui na medida do possível. Há a massa que é o conto
(mas que conto breve? Sei e não sei, tudo é visto por uma parte minha que não é a consciência
porém vale mais que ela nessa hora fora do tempo e da razão), há a angúsPa e a ansiedade e a
maravilha, porque as sensações e os senPmentos também se contradizem nesses momentos,
escrever um conto assim é simultaneamente terrível e maravilhoso, há um desespero
exaltante, uma exaltação desesperada; é agora ou nunca, e o temor de que pode ser nunca
exacerba o agora, faz dele máquina de escrever correndo a todo teclado, esquecimento da
circunstância, abolição do circundante. E então a massa negra vai clareando à medida que se
avança, incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade como se o conto já esPvesse
escrito com um Pnta invisível e a gente lhe passasse um pincelzinho em cima para despertá-lo.
Escrever um conto assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo aconteceu
antes e esse antes, que se deu num plano onde “a sinfonia se agita na profundeza”, para dizer
com Rimbaud, foi o que provocou a obsessão, o coágulo abominável a ser arrancado com
safanões de palavras. E por isso, porque tudo está decidido numa região que diurnamente me
é alheia, nem sequer o arremate do conto apresenta problemas, sei que posso escrever sem
interrupções, vendo se apresentarem e se sucederem os episódios, e que o desenlace está tão
incluído no coágulo inicial quanto o ponto de parPda. Lembro-me da manhã em que Uma flor
amarela caiu em cima de mim: o bloco amorfo era a noção do homem que encontra um
menino parecido com ele e tem a deslumbrante intuição de que somos imortais. Escrevi as
primeiras cenas sem a menor vacilação, mas não sabia o que ia suceder, ignorava o desfecho
da história. Se nesse momento alguém me interrompesse para dizer: “No final o protagonista
vai envenenar Luc”, eu teria ficado estupefato. No final o protagonista envenena Luc, mas
aconteceu como tudo o que veio antes, como um novelo que se desenrola à medida que
puxamos; na verdade, em meus contos não há o menor mérito literário, o menor esforço. Se
alguns deles se salvam do esquecimento é porque fui capaz de receber e transmiPr sem muitas
perdas essas latências de uma pisque profunda, e o resto é uma certa veteranice para não
falsear o mistério, mantê-lo o mais próximo possível de sua fonte, com seu tremor original, seu
balbucio arqueSpico.

O que foi dito acima deve ter colocado o leitor na pista: não há diferença genéPca entre essa
espécie de contos e a poesia tal como a entendemos a parPr de Baudelaire. Mas se o ato
poéPco me parece uma espécie de magia de segundo grau, tentaPva de possessão ontológica
e não mais usica como na magia propriamente dita, o conto não tem intenções essenciais, não
indaga nem transmite um conhecimento ou uma “mensagem”. A gênese do conto e do poema

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é contudo a mesma, nasce de um repenPno estranhamento, de um deslocar-se que altera o
regime “normal” da consciência; num tempo em que ePquetas e os gêneros entram em
estrepitosa bancarrota, não é inúPl insisPr nessa afinidade que muitos considerarão fantasiosa.
Minha experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que tentei
caracterizar não tem uma estrutura de prosa. Toda vez que fui rever a tradução de um dos
meus relatos (ou tentar traduzir outros autores, como certa vez com Poe), senP a que ponto a
eficácia e o senPdo do conto dependem dos mesmos valores que dão seu caráter específico ao
poema e também ao jazz: a tensão, o ritmo, a pulsação interna, o imprevisto dentro de
parâmetros pré-vistos, aquela liberdade fatal que não admite alteração sem uma perda
inestancável. Os contos dessa espécie se incorporam como cicatrizes indeléveis em todo leitor
que os mereça: são criaturas vivas, organismos completos, ciclos fechados, e respiram. Eles
respiram, não o narrador, tal como os poemas perduráveis e ao contrário de toda prosa
desPnada a transmiPr a respiração do narrador, a comunicá-la à maneira de um telefone de
palavras. E ante à pergunta: Mas então não há comunicação entre o poeta (o conPsta) e o
leitor?, a resposta é óbvia: a comunicação se opera a par5r do poema ou do conto, não por
meio deles. E essa comunicação não é a mesma que o prosista tenta, de telefone a telefone; o
poeta e o narrador urdem criaturas autônomas, objetos de conduta imprevisível, e suas
conseqüências ocasionais nos leitores não se diferenciam essencialmente das que tem para o
autor, primeiro a ser surpreendido por sua criação, leitor ávido de si mesmo.

Breve coda sobre os contos fantásPcos. Primeira observação: o fantásPco como nostalgia. Toda
suspension of disbelief age como uma trégua no seco e implacável assédio que o determinismo
faz ao homem. Nessa trégua, a nostalgia introduz uma variante na afirmação de Ortega: há
homens que em determinado momento deixam de ser eles e sua circunstância, chega uma
hora em que você deseja ser você mesmo e o inesperado, você mesmo e o momento em que a
porta que antes e depois dá para o vesSbulo se abre lentamente mostrando um prado onde
relincha um unicórnio.

Segunda observação: o fantásPco exige um desenvolvimento temporal normal. Sua irrupção


altera instantaneamente o presente, mas a porta que dá para o vesSbulo foi e será a mesma no
passado e no futuro. Só a alteração momentânea dentro da regularidade delata o fantásPco,
mas é necessário que o excepcional também passe a ser a regra sem Prar o lugar das
estruturas habituais entre as quais se inseriu. Descobrir numa nuvem o perfil de Beethoven
seria inquietante se durasse dez segundos antes de se desmanchar e transformar-se em fragata
ou pombo; seu caráter fantásPco só se afirmaria caso o perfil de Beethoven conPnuasse ali
enquanto o resto das nuvens se conduz com sua involuntária desordem eterna. Na má
literatura fantásPca, os perfis sobrenaturais costumam introduzir-se como cunhas instantâneas
e efêmeras na sólida massa do consuetudinário; assim, uma senhora que conquistou o ódio
minucioso do leitor é meritoriamente estrangulada no úlPmo minuto graças a uma mão
fantasmal que entra pela lareira e sai pela janela sem grandes circunlóquios, sem falar que
nesses caos o autor se sente obrigado a fornecer uma “explicação” baseada em antepassados
vingaPvos ou maleucios malásios. Mas acrescento que a pior literatura desse gênero é a que
opta pelo procedimento inverso, ou seja, a subsPtuição do temporal normal por uma espécie
de full-5me do fantásPco, invadindo o cenário quase inteiro com grande ostentação de confete
sobrenatural, como no baPdo modelo da casa encantada onde tudo exala manifestações
insólitas, desde que o protagonista faz soar a aldrava das primeiras frases até a janela do sótão
onde culmina espasmodicamente o relato. Nos dois extremos (insuficiente instalação na

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circunstância habitual e rejeição quase total desta úlPma) peca-se por impermeabilidade,
trabalha-se com matérias heterogêneas momentaneamente vinculadas mas nas quais não há
osmose, arPculação convincente. O bom leitor sente que nada têm a fazer ali essa mão
estranguladora ou esse cavalheiro que em decorrência de uma aposta se instala para passar a
noite numa tétrica residência. Essa espécie de contos que assola as antologias do gênero
recorda a receita de Edward Lear para fabricar um empadão cujo glorioso nome esqueci: pega-
se e amarra-se um porco numa estaca, bate-se nele violentamente, enquanto com ingredientes
diversos se prepara uma massa cuja cocção só se interrompe para conPnuar espancando o
porco. Se em três dias não se conseguir que a massa e o porco formem um todo homogêneo,
pode-se considerar que o empadão é um fracasso e então se solta o porco e se joga a massa no
lixo. Que é justamente o que fazemos com os contos em que não há osmose, onde o fantásPco
e o habitual se justapõem sem que nasça o empadão que esperávamos saborear
comovidamente.

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