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DIREITO E NORMA JURÍDICA. CAUSAS ESSENCIAIS DO DIREITO.

A
DIREFERENÇA ENTRE O BEM E O MAL / A VERDADE E A MENTIRA. O
BEM E O MAL: OU O ETERNO COMEÇO

Aluno: Victor Augusto Aguiar Manfredi

1. CAUSAS ESSENCIAIS DO DIREITO

Sem preocupar-se em antecipar o conceito do direito, que já foi muito


bem abordado em outro trabalho, o fato é que, conforme leciona Vicente Raó 1, o objeto
do direito são os povos e os fatos, possuindo em seu centro o próprio homem. Trata-se,
genuinamente, de um fenômeno humano, que garante a vida dos indivíduos e o bem-
estar social.

Assumindo essa perspectiva, e considerando-se a causa como aquilo “em


virtude do qual se tem a existência de algo ou do que advém um efeito”2, pode-se
afirmar que a causa do direito é o próprio homem, sua necessidade de agregar-se
coletivamente e disciplinar suas relações no âmbito dessa coletividade.

Uma outra abordagem às causas do direito é apresentada por Victor


Frederico Kumpel3, que se utiliza das teorias das quatro causas, desenvolvida no livro I
do livro Metafísica de Aristóteles, para afirmar que o direito possui quatro causas
essenciais, que condicionam sua existência e produção de efeitos. São elas:

i. Causa eficiente: É a causa engendra o direito. Segundo mencionado


autor, usualmente pautada na dicotomia entre direito natural, isto é,
aquele direito que decorre da natureza, universal e invariável, do
homem (embora sua aplicação possa variar, de acordo com o
homem, povo e momento histórico) e positivo, que é produto da
criação humana, variando, portanto, de acordo com o Estado e
ostentando a coercibilidade própria de um mecanismo estatal;

ii. Causa final: é o propósito do direito. Pode-se dizer que esse


propósito é a Justiça, em suas variadas acepções (comutativa,
1
_ O Direito e a Vida dos Direitos. 1° Volume. Tomo I. São Paulo: Ed. Max Limonad. 1960. P. 97.
2
_ DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico Universitário. 4ª Ed. – São Paulo: Ed. Saraiva. 2022. P. 118.
3
_ Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Método. 2007. P. 25/28

1
distributiva, geral e social), sempre preocupada em garantir
liberdades e igualdade e a consecução do bem comum;

ii.i. É aqui que o direito possui certo cruzamento com a moral, já que
ambos possuem um fundamento ético (tanto que, como relembra
Kumpel, é normal que normas éticas sejam convertidas em regras
jurídicas), pois não se pode admitir um direito imoral, cujo propósito
seria a injustiça;

iii. Causa formal: São as formas pelas quais o direito se exterioriza e se


apresenta ao homem e a seus operadores. São as fontes do direito,
que não se esgotam naquelas definidas pelo art 4° da LINBD, uma
vez que, à lei, à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de
direitos, definidos como fontes do direito pelo mencionado
dispositivo, soma-se também a doutrina, jurisprudência e brocados
jurídicos que contenham diretrizes para solução de casos concretos; e

iv. Causas materiais: são as diferentes disciplinas jurídicas,


segregadas, nas palavras de Kumpl, em razão dos princípios que as
norteiam, com a finalidade de permitir sua melhor aplicação.

A crítica a essa definição de quatro causas se deve ao fato de que, muitas


delas não são causa propriamente ditas, isto é, aquilo porque o direito nasce, mas dizem
respeito às formas pela qual ele se materializa. De toda forma, a causa final apresentada
pelo autor, segundo a qual a causa essencial do Direito é o próprio homem e sua
necessidade de existir coletivamente, parece-nos ser a mais adequada e alinhada à
natureza gregária do homem, que precisa da sociedade para realizar-se e, por sua vez,
do direito para conviver socialmente de forma ordenada.

Não por acaso, o filosofo grego Cícero 4 já defendia que, para conhecer o
Direito, deve-se conhecer o homem, sua essência e natureza, pois são elas que revelarão
a natureza e intersubjetividade que o homem busca.

4
Citado em RAÓ, Vicente. Ob. Cit. P. 61.

2
2. DIREITO E NORMA JURÍDICA

2.1. O HOMEM COMO CENTRO DO DIREITO

Como visto, a essência do direito está no próprio homem. Não por acaso,
o direito ampara o ser humano desde o momento em que é concebido, ainda nascituro,
após o nascimento, durante a vida e até a morte, concede-lhe proteção quanto a aspectos
necessários a esse desenvolvimento, como a liberdade e a integridade física e moral e
regula suas relações diversas na sociedade, inclusive com sua família e trabalho.

Não por acaso, Noberto Bobbio defende que a vida se desenvolve com
em um mundo de normas5 e Vicente Raó, com a clareza que lhe é própria, esclarece:

“O direito se apodera do homem desde antes de seu nascimento e o mantém


sob sua proteção até depois de sua morte. Mas, certo também é que, sempre e a
todo instante, o considera como parte de uma comunhão, que é a sociedade,
fora da qual o homem, civilmente, não poderia viver.

Por isso, é que sociedade e direito forçosamente se pressupõem, não podendo


existir aquela sem este, nem este sem aquele. Ubi societas ibi jus”6

O conceito supra revela que, na visão de seu autor, a origem do direito


está na natureza do próprio homem e em sua essência social, já que é um ser gregário
por natureza, que prefere coexistir em conjunto a existir individualmente (daí sua
tendência à aglutinação social)7, cabendo ao direito criar a proporção necessária para
que haja harmonia na sociedade.

Com efeito, uma das finalidades precípuas do direito é equacionar a vida


social, garantindo reciprocidade, isto é, direitos, poderes, faculdades e obrigações aos
seres humanos, sendo que o limite do direito de cada um é o direito dos outros, o que
um fundamento verdadeiro da ordem social.

O direito não se esgota em simplesmente permitir a convivência humana,


devendo seu propósito ser o de aperfeiçoar a coletividade em vista do aperfeiçoamento
do ser humano, pois a sociedade não é um ser em si mesmo e por isso não pode ser
indiferente à sorte de seus membros. A finalidade da sociedade é seus membros, não o
5
_ Teoria da Norma Jurídica. 6. Ed. – São Paulo: Edipro, 2016. P. 26
6
_ Ob. Cit. P. 39.
7
_Diniz, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 1º Volume: teoria geral do direito civil. 24ª Ed.
Ver. Rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2007. P. 5.

3
inverso, já que é o homem que a cria, motivo pelo qual “Assume, assim, o direito o
caráter de força social propulsora, quando visa proporcionar, por via principal aos
indivíduos e por via de consequência à sociedade, o meio favorável ao aperfeiçoamento
e ao professo da humanidade”8.

O direito existe, portanto, em função do homem9, bem como está em sua


Origem, na essência e finalidade10.

2.2. A RELAÇÃO ENTRE DIREITO, ÉTICA E NORMA JURÍDICA

É muito comum que, ao ser indagado, o leigo responda que o Direito é


Lei ou o conjunto de leis ou normas.

Essa definição, bastante simplória, realmente condiz com a ciência


jurídica atual, de modo que o direito estaria reduzido às normas jurídicas, sendo
satisfeito exclusivamente pela aplicação fria dessas normas, nos termos concebidos pelo
legislador?

A resposta nos parece ser negativa.

Para o Professor Eduardo Vera Cruz, o Direito não está reduzido à lei ou
simplesmente ao produto da vontade das maiorias que, por terem sido vencedoras de
uma eleição, criam a Lei11. Para ele, o que ocorre é justamente o oposto, pois é o
Direito que cria a Lei e não contrário, pois:

“O Direito é que está na base da criação legislativa. E quem cria o Direito são
os juristas, com critérios de objetividade e rigor muito exigentes e fundados em
regras consensualmente aceites; isto é, aqueles na sua comunicação são
reconhecidos como tendo um saber fundado na experiência e aplicado com
equilíbrio, bom senso e sentido de justiça. Logo, só o Direito pode regular
limitando o exercício do poder legislativo e, assim, dos outros poderes do
Estado que obedecem às leis.” .12

8
_ RAO, Vicente. Ob. Cit. P. 42.
9
_ DINIZ, Maria Helena. Ob. Cit. P. 5;
10
_ RÁO, Vicente. Ob. Cit. P. 42.
11
_ PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito. Cascais: Ed. Princípia. 1ª Ed.
2010. P. 188.
12
Ob. Cit. P. 20.

4
A lição do Professor decorre da compreensão de que o Direito é produto
cultural, que se constata através de elementos de identidade da personalização da pessoa
humana. Assim, o Direito não é um dado adquirido, que nasce com a simples edição de
uma norma, mas é um verdadeiro processo constante de construção, que deve levar em
consideração fatos históricos e culturais e que importa na criação, pelo homem e para
ele, de regras voltadas ao estabelecimento da paz13.

Sob essa concepção, o direito não pode ser reduzido a um conjunto de


regras que disciplinam relações interpessoais. Ao contrário, só será Direito se congregar
elementos mínimos de defesas do homem e da concretização da justiça universal,
garantindo à pessoa humana a dignidade e liberdades que lhe são inerentes14.

A posição do Professor Vera-Cruz é semelhante àquela defendida por


Maria Helena Diniz, que aponta que o direito não se esgota apenas nas normas jurídicas,
mas deve ser avaliado à luz da realidade social subjacente, notadamente porque, uma
vez criada, a norma jurídica não se estagna, mas passa a possuir vida própria, para que
assim possa cumprir seu propósito de conservação e integração social, atenta aos
valores que busca proteger15.

Mas, apesar de tudo isso, não se pode negar que a norma jurídica ocupa
papel relevante no Direito. É necessário, porém, que se compreenda no que consiste a
norma jurídica e qual é seu papel no Direito.

O Professor Vera-Cruz aponta que o Direito, de fato, precisa da lei ou


norma jurídica como um elemento ordenador16, posição semelhante àquela apresentada
por Miguel Reale, que aponta que a norma é elemento constitutivo do direito, sua cédula
mínima17.

No que diz respeito ao conceito de norma, cabe relembrar que Reale


aponta que alguns autores, influenciados por Kelsen, sustentam que norma jurídica é
consiste em juízo ou proposição hipotética, na qual se prevê um fato que se ligará a uma
consequência. Por exemplo, “Se F é, deve ser C”, de modo que toda vez que se

13
_ Pinto, Eduardo Vera-Cruz. Ob. Cit. P. 20 P. 191
14
_ Pinto, Eduardo Vera-Cruz. Ob. Cit. P. 20 P. 21/23
15
_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 9.
16
_ Pinto, Eduardo Vera-Cruz. Ob. Cit. P. 20. P. 36
17
_ REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 18ª Ed. ver. E atual. – São Paulo: Saraiva P. 93.

5
implementar o fato enunciado pela norma (F), deverá advir a consequência (C) nela
prevista, que na teoria do Kelsen é quase sempre uma sanção18.

O problema dessa conceituação decorre do fato de que existem diversas


categorias de normas jurídicas que não estabelecem qualquer condição ou hipótese, mas
dedicam-se, verdadeiramente, a estabelecer de forma categórica e objetiva um dever ser,
isto é, algo que deve ser feito de maneira incondicional.

É o caso, por exemplo, das normas que pautam a organização do Estado,


pois não há qualquer margem condicional nessas regras (vide, por exemplo, o art. 18,
§1°, da Constituição Federal, que estabelece que Brasília é a Capital do Brasil), tal qual
ocorre com as normas que enunciam direitos (como o art. 1° do Código Civil, segundo o
qual “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”). Essas normas
estabelecem, de forma categórica, verdadeiras obrigações objetivas, que determinam o
Estado e as pessoas a ela submissas a agir para concretizá-las.

Por isso, entende que o conceito de norma jurídica não pode ser reduzido
a uma simples proposição hipotética, devendo ser compreendida como “uma estrutura
proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta que deve ser
seguida de maneira objetiva e obrigatória”19.

Desse conceito extrai-se algumas características (i) a de estrutura


proposicional, pois por vezes a norma carrega consigo mais de uma proposição, de
modo que para compreender seu significado é necessário compreender todas as
proposições nela contidas (vide art. 423 do CC); (ii) é um dever ser, porque a norma
jurídica estabelece como as coisas devem organizar-se e pautar-se, não reduzindo-se a
um mero “é”; e (iii) é obrigatória, já que estabelece regras que devem ser respeitadas
independentemente de seus destinatários.

O conceito de norma jurídica apresentado por Reale não se distância, em


essência, daquele que nos fornece Goffredro Telles Jr, que, conforme lembra Maria
Helena Diniz, pronuncia a norma jurídica como um “imperativo-autorizante. A
imperatividade revela seu gênero próximo, incluindo-a no grupo das normas éticas,
que regem a conduta humana, diferenciando-a das leis físico-naturais, e o
autorizamento indica sua diferença, distinguindo-a das demais normas.”. 20
18
_ Reale, Miguel. Ob. Cit. P. 93
19
_ Reale, Miguel. Ob. Cit. P. 95
20
_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 34.

6
O conceito apresenta uma outra característica importante, pois relembra
que o direito se inclui entre as chamadas normas éticas (como também lembram Miguel
Reale21 e o Professor Eduardo Vera-Cruz Pinto22), de maneira que as normas jurídicas
devem ser editadas em contrariedade com a Ética.

Reale relembra que “Toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude
de ter sido reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento
declarado obrigatório. Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura mister
é esclarecer, mesmo porque ele está no cerne da atividade do juiz ou do advogado”23.

Há, assim, no direito e nas normas jurídicas em geral, um valor


axiológico, que não pode ser desprezado, dado o fundamento do Direito na Ética.

De fato, no domínio da ética, a realização de um bem pode ser vista de


duas perspectivas: a individual ou subjetiva, que se efetiva no campo da consciência e
intenção, e, por isso, pode ser entendida como a moral, cujo propósito é a busca pelo
bem da pessoa; e a coletiva ou intersubjetiva, que se refere ao valor da coletividade, à
apreciação do bem social, quando a ética se desdobrará ou nos costumes/convenções
sociais ou no direito.

Diante dessa íntima relação do Direito com a ética, não se pode admitir
que o Direito, ou ainda que as normas jurídicas, preocupem-se na simples ordenação.
Devem, ao contrário, buscar a satisfação dos bens individuais e do bem comum.
Lembrando que o bem comum não é apenas a soma dos bens individuais, mas consiste
naquilo que ”cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio”24 ou, nas lições de
Luigi Bagonoli “uma estrutura social na qual sejam possíveis formas de participação e
de comunicação de todos os indivíduos”25.

Essa também é a posição de Maria Helena Diniz, que defende que, para
ser jurídica, a norma deve estar atenta à sociedade política na qual inserida, sob pena de
ser incapaz de atender a um de seus principais propósitos, que é o de garantir a
organização social e equilíbrio das relações humanas, permitindo que a pessoa humana
se autorrealize26.
21
_ Reale, Miguel. Ob. Cit P.39
22
Pinto, Vera Cruz. Ob. Cit. P. 27/28
23
_ Reale, Miguel. Ob. Cit P.34
24
_ Reale, Miguel. Ob. Cit. P.56
25
Bagolini, Luigi, apud in Reale, Miguel. Ob. Cit. P.59/60.
26
_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 7.

7
De fato, para a jurisdocente, a norma jurídica deve considerar as
circunstâncias fático-axiológicas de seus destinatários, pois, se não o fizer, constituir-se-
á como elemento de desordem e de desequilíbrio, a serviço do árbitro e alheia ao
homem e à sociedade que, em sua essência, deveria ordenar 27. Inclusive, o próprio
jurista, ao interpretar a norma, deverá assimilar e captar essas circunstâncias, pois não
pode esquecer que o direito é uma integração normativa de fatos e valores28.

Na mesma linha, o professor Eduardo Vera-Cruz, que compreende o


jurídico como a Ética do humano, defende que essa Ética deve ser utilizada como um
mecanismo para formar uma solução justa ao caso concreto, por intermédio da
aplicação de regras jurídicas e da fundamentação de exceções às mesmas.29

Para ele, como se verá com maior profundidade adiante, o Homem-


Pessoa deve ser o protagonista do direito e da aplicação das regras jurídicas, cabendo
aos poderes gerais, como o político, social e religioso apenas papel secundário30.

Parece-nos, assim, bastante preciosa a conceituação de Dante Alighieri,


que, embora não fosse jurista, apresentou um interessante conceito sobre o Direito, no
sentido de que “O direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem que,
conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a”31, de maneira que deve ser
aplicado de acordo com essa proporcionalidade, que permitirá a autorrealização do
indivíduo e a realização da vida social.

De tudo isso, parece-nos que já resta vencida a compreensão segundo a


qual o direito está reduzido às normas, como propõe, por exemplo, Hans Kelsen e a
escola positivista, sem associar-se o direito a seus fins, propósitos e à necessidade de
preservação do homem.

Por fim, cabe apenas fazer uma ressalva, que, apesar de o Direito estar
relacionado à ética, já que, voltado às relações exteriores (seu viés é intersubjetivo), e
com propósito é atender ao bem comum (ou seja, de seus indivíduos e da sociedade),
não se perfilha a tese de que o Direito constitui um mínimo ético ou mínimo moral.

27
_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 7.
28
_ Diniz, Maria Helena. Ob. Cit. P. 9.
29
_ Pinto, Vera Cruz. Ob. Cit. P. 27/28.
30
_ Ibidem. P. 36.
31
_ citado em Reale, Miguel. Ob. Cit. P. 60.

8
Isso, porque como bem relembram José de Oliveira Ascensão 32 e Miguel
Reale33, apesar de existir uma verdadeira tendência de normas morais ou éticas serem
convertidas em jurídicas, não é toda e qualquer regra jurídica que possuirá conteúdo
ético ou moral, pois há regras meramente organizacionais, que são verdadeiramente
amorais, isto é, são completamente indiferentes à moral.

É o caso, por exemplo, de diversas leis de organização judiciária, pois é


completamente indiferente à ética se o legislador definiu que as causas de montante
superior a 500 (quinhentos) salários-mínimos devem ser julgados pelo Foro Central da
Comarca de São Paulo ou, ainda, se o prazo para o réu apresentar contestação é de 15
(quinze) dias ou qualquer outro.

2.3. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

Outra teoria relevante atribui valor axiológico à aplicação do Direito se


verifica na teoria tridimensional, na feição apresentada por Miguel Reale.

Essa teoria nasce da compreensão de que o Direito tem ao menos três


aspectos básicos: o normativo (direito como ordenamento), o fático (ligado aos fatos e à
efetividade social e histórica) e axiológico (o valor, Direito como Justiça). 34

Portanto, para a teoria tridimensional do direito, o fenômeno jurídico se


constitui sempre de um fato subjacente (econômico, geográfico, técnico, etc.); um valor
que atribui significação a esse fato, orientando a ação humana para atingir ou preservar
certo fim ou objetivo; e uma regra ou norma que pauta promove a integração entre o
fato e o valor.

Esses três elementos devem existir em uma unidade concreta (Não


separados) e devem atuar como verdadeiros elos do processo jurídico, de modo que a
vida do Direito deve ser resultado da integração dinâmica e dialética dos três elementos
que a integram.

32
_ ASCENSÃO. José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3. Ed. ver. E atual. Rio de Janeiro:
Renovar. 2005. Pg. 94/95
33
_ Ob. Cit. P. 45/46
34
_ REALE, Miguel. Ob. Cit. P. 65.

9
Assim, o Direito deve operar segundo uma integração normativa de fatos
e valores.35

3. A VERDADE E A MENTIRA.

A verdade é um conceito filosófico, construído secularmente,


apresentando diferentes concepções a partir de quem (ou do povo) que a apresenta.
Existe, por exemplo, a verdade revelada, aquela que supostamente é revelada ao homem
por um Deus e cujo debate é muitas vezes negado pelo conservadorismo; ou a
alcançada, que decorre da construção do próprio homem é por isso é mais simples de ser
contestada.

A ideia de verdade, inclusive, pode variar até mesmo do povo em que a


concebe. Para fins desse trabalho, consideraremos a verdade a partir da construção
linguística apresentada por Chauí, que nos remente a três diferentes idiomas: o grego, o
latim e o hebraico.36

Na língua grega, verdade é a aletheia, cujo significado é não-oculto,


não-escondido, não dissimulado. O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e
do espírito; a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é.

O verdadeiro se opõe ao falso, o pseudos, que é o encoberto, o escondido,


o dissimulado, o que parece ser e não é como parece.

O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão. Assim, a


verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas.
Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade
depende de que a realidade se manifeste, enquanto a falsidade depende de que ela se
esconda ou se dissimule em aparências.

Aletheia se refere ao que as coisas são. Essa referência sustenta a teoria


da evidência e da correspondência, que afirma que o critério da verdade é a adequação
do nosso intelecto à coisa, ou da coisa ao nosso intelecto.

Por outro lado, no latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão, ao


rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o
35
_ REALE, Miguel. Ob. Cit. P. 67
36
_ CHAUÍ, Maria Helena. Convite à Filosofia. Ob. Cit.: Ed. Ática. 2000. Pg. 122.

10
que aconteceu. O verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de
fatos acontecidos; aos enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foram ou
aconteceram.

Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia


os fatos reais. A verdade depende, de um lado, da veracidade, da memória e da acuidade
mental de quem fala e, de outro, de que o enunciado corresponda aos fatos acontecidos.

A verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos (como


acontece com a aletheia), mas ao relato e ao enunciado, à linguagem. Seu oposto,
portanto, é a mentira ou a falsificação. As coisas e os fatos não são reais ou imaginários;
os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.

Veritas se refere aos fatos que foram, de modo que as teorias que apoiam
essa concepção afirmam que o critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela
coerência lógica das ideias e das cadeias de ideias que formam um raciocínio, coerência
que depende da obediência às regras e leis dos enunciados corretos. A marca do
verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos.

No hebraico a verdade é o emunah, que significa confiança. Agora são


as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus verdadeiro ou um amigo
verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis à palavra dada ou a um
pacto feito; enfim, não traem a confiança.

A verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que


foi prometido ou pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavra de
mesma origem que o amém, que significa: assim seja, de modo que a verdade é uma
crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será ou virá. Sua
forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais perfeita é a profecia.

Emunah se refere às ações e as coisas que serão. Segundo Marilena


Chauí37, para aqueles que adotam essa teoria, a verdade se funda, portanto, consenso e
na confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores e
estudiosos

37
_ Ob. Cit. P. 123.

11
Chauí relembra ainda que todos esses três conceitos permeiam nossa
ideia de verdade até hoje38, inclusive com repercussões no direito. Palavras como
verificar (constatar a veracidade de algo passado, como no conceito grego), pronunciar
um veredito (firmar uma verdade atual, como no conceito latino) e verossimilhante
(confiança de que aquilo que se diz é e será verdadeiro, como no conceito grego),
revelam isso.

Bem delimitado o conceito de verdade, cabe, agora, definir o que seria


mentira.

Na concepção grega, a mentira seria mais difícil de ser conceituada, uma


vez que a verdade seria aquilo que é revelado ao indivíduo, de modo que seria possível
haver algo mentiroso se manifestasse ao indivíduo? Os próprios gregos respondem essa
pergunta arrematando que a mentira nesse caso, pode se dar em duas situações: (i)
quando nossa percepção falha em assimilar a essência do ser; ou (ii) quando atribuímos
ao ser uma qualidade que ele não possui (ex. digo que o homem é imortal).

Como uma falsa percepção ou juízo podem influir na nossa assimilação


da verdade, para que a alcancemos, seria necessário liberar-nos de opiniões pessoais e
pré-conceitos. Nesse caso, como a verdade é a essência do ser, ela será única e
invariável, sendo que a inconstância é um atributo que pertence à opinião e não à
verdade.

Na concepção latina, como a verdade está associada ao relato, a mentira


tem aspecto linguístico, de modo que a mentira está associada com a vontade do
indivíduo de distorcer e deformar a realidade. Ou seja, para dizer a verdade, o sujeito
tem que querer apresentar relato fiel à realidade (há correspondência entre o discurso e
os fatos), distanciando-se da verdade quando apresenta relato deformado.

Essa ideia de mentira foi relevante para teologia cristã, eis que se à
intenção do sujeito determinante para apresentar-se a verdade ou mentira, é possível
associar a mentira ao livre-arbítrio e a fraqueza do homem que incorre no erro.

A intenção de mentir como fator determinante para caracterização da


mentira é extraída das lições de Santo Agostinho 39: “Portanto, é a partir da opinião de
sua mente, e não das próprias coisas, que deve ser julgada a verdade ou a falsidade
38
_ Ob. Cit. P. 124.
39
_Sobre a mentira (Vozes de Bolso). Editora Vozes. Edição do Kindle. P. 10.

12
daquele que está mentindo ou não. E, assim, aquele que enuncia o falso no lugar do
verdadeiro, julgando ser o falso verdadeiro, pode ser considerado errôneo ou
temerário, mas não pode ser tido, de maneira isenta, como mentiroso, porque, ao
enunciar, não tem um coração duplo, nem deseja enganar, mas é enganado. Porém, a
culpa do mentiroso é o desejo de mentir enunciado em sua própria alma: ou quando
engana, caso se dê crédito àquilo que ele diz, ou não engana: seja quando não se
acredita nele seja quando enuncia uma verdade que pensa não ser verdadeira com a
intenção de enganar. Porque, quando se crê nele, em todo caso, não engana, embora
desejaria enganar: somente engana na medida em que se julga que ele sabe ou pensa
como enuncia.

E, por fim, na concepção hebraica, a mentira poderia ser entendida


como uma quebra da confiança e do consenso.

4. A DIFERENÇA ENTRE O BEM E O MAL – PERSPECTIVA JURÍDICA

Em seu livro Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito, o Professor


Eduardo Vera-Cruz Pinto atribui ao Direito um papel relevantíssimo no que diz respeito
a preservar o bem e combater o mal, com vistas a garantir paz social.

O pensamento do mencionado Professor pode ser sintetizado na seguinte


frase, “Precisamos de normatizar juridicamente o Bem para evitar o Mal, conhecendo-
o. Só pelo Direito, o Direito contra a lei, é possível combater o Mal com eficácia válida
e legítima”.

Para contextualização, a obra em exame foi publicada em momento em


que, na Europa, havia movimentos que negavam a ocorrência de alguns genocídios
históricos, como o Holocausto, o Nabka e o massacre do povo armênio pelos turcos.

Esses fatos históricos, em especial o Holocausto, são qualificados pelo


Professor Vera Cruz como absolutamente contrários ao Direito, o que impede que o
jurista o tutele, ainda que se trate de eventos fundados na lei, assim como obriga-o (o
Direito) a agir para evitar que situações semelhantes se repitam.

Para isso, defende-se que, primeiro, o ensino jurídico deve ser pautado na
ética, contra aquilo que ele denomina como “indecência antropológica” que decorre do

13
negacionismo, principalmente porque esse negacionismo, em si mesmo, já é contrário
ao direito.

Além disso, defende que o Holocausto deve ser objeto do ensino jurídico,
como forma, principalmente, de prevenção. Essa defesa tem relação especial com o fato
de que, para o Professor Vera Cruz, o Holocausto representa o mal absoluto da
humanidade, a verdadeira contradição com o direito, pois, assim como outros
genocídios, representa ruptura com o compromisso que o Direito tem de defender a
pessoa e as comunidades, devendo servir, assim, como exemplo da necessidade de o
direito agir contra a lei injusta e contra a própria política de Estado, se necessário, em
separação clara do bem e do mal.

Mas, não é a todo custo que essa separação e vencimento do mal deve
acontecer, pois o jurista deve buscar caminhos não violentos para superar o injusto, uma
vez que uma revolução violenta pode implicar resultados muito piores.

Pode-se, para o Professor Vera Cruz, empregar-se mecanismos como a


própria desobediência civil contra a lei injusta ou ainda a denúncia, pelo Direito, dos
institutos que implicarem no tratamento do homem como mercadoria ou que transforme
o Estado em seu inimigo.

Além disso, o professor defende que se socorra à Ética, como recurso


para evitar o Mal, pois, “Logo, num recurso àquilo que se designa como ética, o que se faz é
evitar que seja o Direito, só ele, a definir uma linha divisória clara entre o bem e o mal, em
situações extremas que ameaçam a pessoa humana. Falam na ética os que exercem o poder,
para aqueles que não exercem a seguirem. O Direito, e só ele, pode travar com êxito a luta
pela Justiça no sentido de Paz.”40

O trecho acima revela sugestão do Professor Vera Cruz de um Direito


Ético, consistente em um mínimo jurídico que se constitui como reserva-ética contra a
maldade humana. Nesse caso, o operador do direito deve apresentar-se como um
verdadeiro sacerdote da justiça, empenhado na defesa da pessoa humana e de sua
dignidade.

É importante ter em vista que o professor Vera Cruz não defende o mal
com algo meramente ambivalente, mas que se conheça sua causa e compreenda que a

40
OB. Cit. P. 176.

14
escolha pelo bem e o mal é algo estruturante da própria liberdade humana. E restringir
a liberdade seria aplicar o direito injusto.

Voltando à temática do mal e o papel do Direito para combatê-lo, pode-


se afirmar que o Holocausto ainda representa um dever de memória, o qual deve ser
relembrado e utilizado como pauta para a prática política e relações internacionais,
fundadas na ética do Direito Comum da Humanidade. E não é só. Também para evitar
novas ocorrências da mesma natureza, já que existem diversos outros genocídios
praticados na história que, por serem tratados como tal (genocídios), não representaram
óbices para que situações semelhantes acontecessem.

E realmente assim deve ser, porque o direito, que, como visto, tem
fundamento na pessoa humana e na ética, não pode sustentar regimes ou práticas que
violem a própria essência da pessoa humana ou busquem a eliminação de povos.

Cabe assim a seus operadores serem críticos à “complacência de mundo”,


que gera riscos à pessoa humana, sob pena de também serem responsabilizados por essa
violência quando ela se concretizar. Ao fazê-lo, deve agir pela denúncia ou procurar
alternativas pacíficas para superar o mal, como a aplicação de sanções internacionais ou
o uso de recursos e mecanismos que protejam a humanidade (e.g., para que o Irã não se
produza armas nucleares a pretexto de protegê-lo de um ataque americano, mas que
serão utilizadas para o genocídio, oferece-se garantia de que esse ataque não ocorrera,
mas se acontecer, terão os iranianos o suporte necessário).

O papel do direito e do jurista é isentar-se de influências políticas e, em


atenção ao já abordado dever de memória, inserir os genocídios ocorridos em seus
estudos e incluí-los na esfera de defesa dos Direitos do Homem e dos Povos. Não para
sancionar ou censurar os criminosos; mas para, por intermédio da prevenção, garantir
que a Justiça dos Povos, assim como a dignidade da pessoa humana.

Admitir a prevalência e negação de crimes como estes seria uma


verdadeira derrota ao direito, uma negação à justiça, motivo pelo qual deve o Direito
combater àquilo que se mostrar contrário à sua essência e às liberdades individuais.

5. O MAL E O BEM: OU O ETERNO COMEÇO

15
O Professor Vera-Cruz explica que o Bem e o Mal, que podem
identificar-se como a verdade e mentira, não são temas que comumente são estudados
pelo Direito, sendo objeto de estudo (até mais apropriado) por outras áreas de
conhecimento, mas que acabaram voltando à temática jurídica em razão das
problemática do terrorismo e os mecanismos militares adotados para combatê-los, que
implicaram em certa aceitação moral e social da maldade.

Para o jurisdocente a problemática principal em se analisar o Bem e o


Mal sob a perspectiva jurídica refere-se ao fato de, além do Mal ser matéria mais ligada
a outras ciências (Deus, Liberdade, Moral etc.), refere-se à necessidade de distinguir
esses dois conceitos em cada situação analisada e quais as consequências jurídicas
podem advir da resposta que se apresentar (ou caso não se apresente resposta alguma).

Essa distinção, segundo Vera Cruz, não pode estar baseada em alguma
filosofia moralista clássica, nem em imperativos de caráter absoluto que questionam a
verdade como base ou fundamento da solução jurídica que se pretender apresentar, pois
o tema não diz respeito à filosofia do Direito. Na verdade, ele afirma que “A verdade
não resulta da vontade humana em a encontrar, nem de um complexo de jogos teóricos,
a verdade situa-se mais no plano da fé e da construção do Humano, de uma forma
eternamente aberta para o homem, como fixou Pilatos, face à certeza de Cristo (Deus-
Homem): O que é a verdade?”41.

Diante disso, deve procurar-se a verossimilhança dos fatos levado ao


jurisprudente e, com base nela, procura-se a solução compatível com as regras
jurídicas vigentes visando à paz

Noutro passo, o Mal deve ser aferido tomando como base o referencial de
degradação do homem, pois “O humanismo atual impõe como axiomas: que nenhuma
pessoa humana pode ser sacrificada na sua vida, dignidade e personalidade por uma
ideia ou instituição; e que o sofrimento das pessoas não pode ser pensado em função
da política e da história”.42

A necessidade de análise casuística do Bem e do Mal e a necessidade de


baseá-la no referencial da degradação do homem se deve ao fato de que, muitas vezes,
uma boa ação, pode mascarar algo genuinamente mau.

41
_ Pinto, Eduado Vera Cruz. OB. Cit. P. 202
42
_ Ibidem. P. 204

16
É o caso, por exemplo, do financiamento das atividades de ONGs que
trabalham na oferta de auxílios humanitários em países subdesenvolvidos e submersos
em regimes ditatoriais, em situações nas quais não há urgência, mas uma situação
consolidada de miséria e degradação.

O problema desses auxílios, que realmente fazem um bem imediato,


refere-se ao fato de, além de às vezes a pessoa que o presta buscar promoção pessoal, os
auxílios acabam por gerar nova espécie de colonialismo, que gera capital a regimes
ditatoriais, que usam dos recursos do Estado para enriquecimento pessoal e deixam que
o mínimo existencial de seu povo seja provido pela ajuda humanitária.

Ou seja, apesar do bem imediato, a ajuda humanitária, por não implicar


incentivo a longo prazo ou por não ter preocupação com o desenvolvimento local, acaba
por perenizar uma situação degradante, implicando, portanto, no mal. Vale dizer: em
virtude da perpetuação de uma situação contrária ao direito, uma ajuda inocente pode
acabar por constituir-se com um mal a se evitar – a ajuda só seria humanitária com
algum contexto político e com preocupação com a justiça.

Esses fatos revelam a impossibilidade de determinismo do Mal, como


inclusive já defendia São Tomás de Aquino (que já apontava que ações aparentemente
boas podem ser más em essência, citando como exemplo o adultério) 43. Esse
determinismo seria uma maldade em sim mesmo, defende Vera-Cruz. Deve-se por isso
mesmo refutar teses genéticas ou biológicas a respeito do mal (a pessoa é má por
natureza), porque não se pode admitir que alguém seja geneticamente mal.

Não podemos inclusive esquecer que o direito já empregou a ideia do


mal biológico (lembramos de algumas escolas positivas que acreditavam que o delito já
nascia com o sujeito), mas isso contrariaria a liberdade da pessoa humana, porque ter de
restringir direitos ou atribuir deveres em virtude de características genéticas é
absolutamente contrário ao Direito. Nem a Virtude e nem o Mal podem ser tratados
como biológicos.

Deve-se entender que aquilo que o Direito vem a censurar é um problema


de educação cultural e vontade política, não de genética. Deve-se concluir que “O Mal

43
_ Aquino, Tomás de. Suma Teológica: (Obra Completa) Edição do Kindle. (p. 2056).

17
não é uma anomalia biológica do ser humano, (...)mas sobretudo uma questão
educativa de ordem jurídico-cultural.”44

A bondade, por sua vez, deve ser entendida como um dos elementos da
fruição da dignidade da pessoa humana. No nosso estado de coisas, de grande
degradação, devemos nos empenhar para traçar barreiras entre bem e mal, lícito e ilícito,
legítimo e ilegítimo, do legal e do legal.

Os operadores de direito devem tratar essas barreiras justamente pela via


do Direito, pois, para Vera Cruz, “O Direito não é só o meio ou o instrumento para
fazer a separação válida e eficaz entre Bem e Mal na concretização da justiça para a
pessoa pela aplicação de normas jurídicas, mas o ambiente cultural propício à
realização serena de tal tarefa.”45

A paz vem da justiça e a justiça se cumpre pelo Direito como


ordenamento normativo antropo-axiológico, que equilibra liberdade e responsabilidade
pessoal na realização do interesse geral e do interesse público.

Posição semelhante é adotada por Georges Ripert, que defende a moral


deve ser um dos fundamentos do direito, adotada em sua função normativa, para
impedir que o direito seja utilizado para fins que ela repele, como para legitimar a
malícia de um contratante ou o abuso do direito.46

Assim, para separar o bem e o mal, deve-se renunciar à análise descritiva


e analítica, em prol de uma preocupação prescritiva e normativa na avaliação da
experiência quotidiana da pessoa humana como fonte e fim do Direito.

Há um personalismo axiológico, em que o deverá agir-se aplicar o direito


de acordo com normas que promovem o ser humano, este considerado o valor supremo
do Direito. O jurisprudente deve comprometer-se com o bem face à comunidade e seus
respectivos integrantes. Ou seja, há uma obrigação de entender o eu em cada um dos
outros, com abertura ao dialógico, reciprocidade e afastada a ideia de individualismo.

Deve haver empenho em separar o que está bem, do que está mal,
tomando o Bem como referência, de uma ideia oposta de Mal.

44
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Ob. Cit. P. 208
45
_ Ibidem. P. 209
46
_ RIPERT, Georges. La Règle Morale dans les Obligations Civiles. P. 5/7 apud. RAÓ, Vicente. Ob. Cit. P.
71/72

18
6. ALGUNS MECANISMOS JURÍDICOS QUE PODEM SER UTILIZADOS
PARA A REALIZAÇÃO DO BEM E CONCRETIZAÇÃO DA VERDADE

6.1. A EQUIDADE

6.1.1. DEFINIÇÃO

Vicente Raó47 defende que a equidade é um atributo do próprio direito,


que deve ser utilizada pelo legislador para elaborar a norma e pelo jurista para aplicá-la.
Trata-se, para referido autor, de reflexo do princípio da igualdade, que pode ser
entendida como o “preceito segundo o qual o direito deve ser aplicado de forma modo
humano e benigno”

A equidade traduz o princípio da igualdade, podendo ser entendida como


o “preceito segundo o qual o direito deve ser aplicado por modo humano e benigno”48,
podendo ser conceituada como “uma particular aplicação do princípio da igualdade às
funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em
suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos,
sem exclusão, sejam tratados igualmente com humanidade, ou benenignidade,
corrigindo-se, para este fim, a rigidez das formulas gerais usadas pelas normas
jurídicas, ou seus erros, ou omissões.” (P. 96)

Segundo esse conceito, a equidade constitui-se como mecanismo que


pode servir a flexibilizar a lei, que, se aplicada friamente, poderia causar desigualdade
condenada pelos princípios e violadoras da humanidade e benigdade a que a Justiça
serve. Essa flexibilidade também pode servir para ampliar o alcance da norma, para que
ela alcance situações não previstas inicialmente, seja porque o legislador não as anteviu,
seja porque elas não existiam quando de sua edição.

Assim, para a Raó, são funções da equidade (i) adaptar a lei aos casos em
que deva ela incidir, ainda que não previstos textualmente, com igual rigor (expressos
ou não); (ii) aplicar a lei considerando todos os elementos que circundam o caso

47
_ Raó, Vicente. Ob. Cit. P. 87/88.
48
_ Ibidem. Pg. 88

19
concreto (pessoais e reais); (iii) suprir lacunas; e (iv) garantir a aplicação da lei com
benignidade e humanidade49.

Além disso, a equidade, desde Aristóteles, é apresentada como uma


forma de fazer justiça ao caso concreto 50, além de servir para amenizar o rigor da lei às
circunstâncias do caso concreto. A equidade, contudo, não é carta branca para julgar
contra a lei. Se deparar-se com uma lei injusta, cuja aplicação, pelas condições sociais e
do tempo, não mais se justificam, é melhor dizer que a lei não se aplica ao caso concreto
do que socorrer-se da equidade51.

Não por acaso, Ascensão52 nos lembra que deve haver cautela no
deslocamento das decisões dos casos da lei à equidade, com o propósito de
individualização da solução jurídica, pois, embora isso possa sugerir uma maior justiça
relativa, isso pode custar a segurança jurídica, dada a evidente falta de previsibilidade
da forma pela qual a situação será resolvida.

6.2. INTERPRETAÇÃO CORRETIVA

Essa modalidade de interpretação é proposta por Ascensão, que relembra


que Aristóteles (Ética a Nicômaco, livro x, C. X) já explicava que a lei, inevitavelmente,
cuida de casos gerais, nucleares, motivo pelo qual deixa lacunas, o que bastante natural.
Nesses casos, quando a se deparar que, por ter falado em termos absolutos, o legislador
se enganou ou se calou a respeito de certa situação concreta, é imprescindível que se
empreenda interpretação restritiva, para corrigir ou legislador ou superar seu silêncio,
como se ele mesmo tivesse feito isso. A interpretação corretiva, para ele, seria uma
manifestação da equidade.53 (P. 408)

A interpretação corretiva, portanto, seria cabível, para evitar que, por ter
o legislador emitido declaração de vontade ampliativa demais, que não considera sua
efetiva consequência, cuja aplicação estrita violaria o bem comum e os princípios

49
_ Raó, Vicente. Ob. Cit. Pg. 88.
50
_ Conforme relembra Ascensão (Ob. Cit. P. 295).
51
_ Raó, Vicente. Ob. Cit. P. 95
52
_ Ob. Cit. P. 238/239.
53
_ OB. Cit. P. 408

20
fundamentais, é permitido ao intérprete corrigir e restringir o alcance da lei, para evitar
resultados nefastos.

A interpretação corretiva, contudo, não servir para violar a lei, mas


apenas corrigir seu rumo naquelas hipóteses que não integram o próprio núcleo e
propósito da Norma, nas quais sua aplicação fiel representaria ofensa ao bem comum54.

6.3. A TUTELA DA CONFIANÇA

Nossos estudiosos costumam apontar que a eticidade é um dos princípios


basilares do Código Civil, coisa que está clara na própria exposição de motivos da
referida norma, na qual se fez constar “como princípio condicionador de todo o
processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em
consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da
boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o
enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação
das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”.

Um dos reflexos dessa eticidade foi positivado no art. 422 do Código


Civil, segundo o qual “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão
do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Anderson Schereiber explica que a boa-fé, em nosso ordenamento, possui


três funções primordiais, (i) a de orientar a hermenêutica do negócio jurídico; (ii) a de
criar direitos e deveres anexos ou acessórios à obrigação principal; e (iii) a função
restritiva do exercício de direitos. 55

A primeira função exige que, ao interpretar qualquer negócio jurídico,


privilegie-se aquele sentido que for mais aderente à honestidade e lealdade entre as
partes, vedando-se que se acolha sentidos maliciosos ou prejudiciais a uma das partes. É
isso, aliás, que dispõe o art. 113 do Código Civil, que estabelece que “Os negócios
jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração”.

54
_ OB. Cit. P. 409/410.
55
_SCHEREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório. Rio de Janeiro: Renovar.
2005. P. 81

21
A segunda função diz respeito à criação dos deveres anexos ou
acessórios, os quais, em caráter integrativo ao conteúdo do contrato, mostram-se
relevantes para o bom cumprimento da avença. Esses deveres, cuja fonte é a boa-fé
objetiva e não a vontade das partes (Schereiber inclusive o denomina como não
voluntaristas56). Esses deveres variam a depender do negócio jurídico (a boa-fé será
interpretada em cada caso), mas podem ser citados os deveres de informação, de
segurança, de sigilo, de lealdade, entre outros.

E última função atribuída à boa-fé refere à restrição do exercício de


direitos que se mostrem contrários à lealdade e confiança que se espera de ambas as
partes do negócio. Aqui, a boa-fé possuirá um viés de negativo, vedando
comportamentos que, embora legitimamente assegurados em norma ou pela própria lei,
violam a legitima confiança criada na outra parte.

As funções relatadas revelam que a boa-fé tem grande intimidade com a


condição alheia, e confiança que ela deposita na lealdade e honestidade da outra parte,
motivo qual se remete verdadeiramente à tutela da confiança.

Essa tutela, dá razão ao nascimento de diferentes institutos jurídicos, que


podem criar ou suprimir direitos, como é o caso da venire contra factum proprium
non potes: segundo a qual “determinada pessoa não pode exercer um direito próprio
contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever
de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva”57; da supressio: a definida por Wambier
como “o desaparecimento de um direito, não exercido por um lapso de tempo, de molde
a gerar no outro contratante ou naquele que se encontra no outro polo da relação
jurídica a expectativa de que não seja mais exercido. Pode-se dizer que o que perdeu o
direito teria abusado do direito de se omitir, mantendo comportamento reiteradamente
omissivo, seguido de um surpreendente ato comissivo, com que já legitimamente não
contava a outra parte” 58; e da surrectio: que implica a ampliação do contrato ou no
surgimento de um direito em razão das práticas e condutas adotadas pelas partes no
curso de sua relação.

56
Ibidem. P. 82
57
Tartuce, Flavio. Manual de Direito Civil, 2. Ed, rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2012. P. 548
58
WAMBIER, Luiz Rodrigues. A supressio e o direito à prestação de contas in Revista Luso-Brasileira,
Ano 1, 2015, nº 02, p. 1197-1214.

22
Há diversos outros institutos pertinentes à boa fé objetiva (como tu
quoque, exceptio doli e duty to mitigate the loss), porém, as figuras jurídicas já relatadas
revelam que a tutela da confiança (e, portanto, o art. 422 do Código Civil), constitui-se
como verdadeiro mecanismo de respeito ao bem individual e coletivo (lembrando que o
contrato deve possuir e respeitar sua função contratual, nos termos do art. 421 do
Código Civil), pois, além de buscar a isentar a parte da improbidade e malícia do outro,
ainda serve para garantir que a verdade externada pela atuação de cada contratante seja
preservada .

A tutela da confiança, está, portanto, bastante próxima do conceito de


verdade hebreu (emunah), pois busca garantir que aquilo que é prometido, que o
consenso gerado pelo comportamento e atitude seja quebrado por ato malicioso de uma
das partes, causando prejuízos ao outro contratante.

Há na própria jurisprudência que relacionam o instituto da boa-fé


objetiva com a verdade:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. PRELIMINAR DE PERDA


SUPERVENIENTE DO OBJETO. REJEITADA. NÃO ENTREGA DA
CERTIDÃO NEGATIVA DE PENHORA PELO VENDEDOR.
DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO SECUNDÁRIA. EXCEÇÃO DE
CONTRATO NÃO CUMPRIDO. ART. 476 DO CC. INAPLICABILIDADE NO
CASO CONCRETO. ENTREGA DA TOTALIDADE DO PRODUTO NA
QUALIDADE CONTRATADA. CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
PRINCIPAL. COMPROVAÇÃO DE QUE A ENTREGA DE CERTIDÃO NÃO
ERA REQUERIDA EM CONTRATOS PRETÉRITOS. APLICAÇÃO DO ART.
113 DO CC. BOA-FÉ DO VENDEDOR CONFIGURADA. INCIDÊNCIA DO
ART. 422 DO CC. VEDAÇÃO DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DO
COMPRADOR. DEVER DE PAGAR PELO PRODUTO QUE LHE FOI
ENTREGUE. EMBARGOS à EXECUÇÃO JULGADOS IMPROCEDENTE.
DETERMINAÇÃO PARA RETOMADA DA AÇÃO DE EXECUÇÃO.
SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. 1.As normas jurídicas não
devem ser interpretadas de forma isolada, mas sim de forma sistêmica,
notadamente quanto aos negócios jurídicos que possuem como vetores de
interpretação, entre outros, os usos do lugar de sua celebração e a boa-fé,
consoante se depreende dos artigos 113 e 422 do Código Civil. 2. A melhor
interpretação do 476 do CC é de que, embora seja – em regra - defeso a

23
exigência de implemento contratual antes de cumprir a sua obrigação, o
cumprimento da obrigação principal do contrato não retira da parte que
estiver de boa-fé e tiver agido com probidade, o direito ao recebimento dos
valores devidos pelo cumprimento da obrigação. Logo, a perda do direito de
receber o avençado apenas se dará em caso de prejuízo efetivo a parte adversa
ou no caso de evidente má-fé, a exemplo de entrega de produto em quantidade
menor do que o contrato ou de qualidade diversa da contratada. 3. A vedação
do da exigência do implemento da obrigação contratual antes de cumprida a
sua obrigação deve ser interpretada segundo a cláusula geral da boa-fé
objetiva prevista no art. 422 do CC, de modo que a proibição que imposta pelo
art. 476 do CC é aplicável para inadimplemento absoluto da obrigação e
posturas de má-fé, ou seja, que lesionem interesse da parte contrária, tais como
entregar produto diverso do contrato, ou em local diferente, faltar com a
verdade, entre outras que venham a afetar os deveres de colaboração e
lealdade recíprocos. 4. No caso concreto, restou comprovado que o vendedor
[apelante] agiu de boa-fé e conforme prática já existente entre as partes, pois,
a empresa compradora [apelada] em contratos pretéritos não exigia a entrega
de certidão negativa de penhora para efetuar o pagamento pelos produtos.
Além disso a empresa apelada recebeu a totalidade do produto, motivo pelo
qual o recorrente tem direito ao pagamento. 5. Sentença reformada. 6. Recurso
provido. (TJ-MT 10017973920188110015 MT, Relator: SEBASTIAO
BARBOSA FARIAS, Data de Julgamento: 05/04/2022, Primeira Câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 08/04/2022)

Inegável, portanto, a relação entre a boa-fé objetiva e a tutela da


confiança.

7. CONCLUSÕES

De todo conteúdo apresentado, parece-nos que, independentemente da


quantidade de causas que possua, o Direito tem fundamento e causa última no homem e
na sua natureza gregária, de modo que sua produção deve ser voltada a garantir o bem
individual desse homem, assim como o bem coletivo (cuja satisfação é importante para
que o próprio homem se desenvolva).

24
E, estando o direito inserido no campo da Ética, operando como uma
verdadeira integração normativa de fatos e valores, não se pode admitir que seja
utilizado para fins maléficos ou para incentivar a mentira, sob pena de atuar despido de
qualquer valor axiológico.

Adere-se, neste ponto, à posição do Professor Vera-Cruz, segundo a qual


o direito pode e deve ofertar medidas para coibir novos males, já que a inércia do
Direito muitas vezes autoriza sua repetição.

Basta ver o exemplo do Brasil. Não deu o legislador e o Estado em geral


a devida importância à manifesta violação aos direitos humanos que aconteceu na
Ditadura Militar (veja, foi proferida uma Lei de Anistia), de modo que hoje há quem
relativize essa violação e rogue pela volta desse momento político.

Também, mais recentemente, houve em maio de 2021 operação militar


no Rio de Janeiro que implicou a morte de ao menos 25 pessoas, a maior da história até
então, sendo que a mídia noticiou claros indícios de execução em vários dessas mortes.
Acontece que nenhuma sanção foi imposta aos envolvidos no evento (13 inquéritos
foram abertos, mas apenas 2 denúncias foram oferecidas até 05/05/2021 59), mesmo que
à época estivesse vigente proibição do Supremo Tribunal Federal, o que certamente foi
coisa determinante para que, em poucos dias após a conclusão do inquérito, houvesse
uma operação militar semelhante, novamente com dezenas de morte.

Outros países tratam a situação de forma diferente. A França, por


exemplo, aprovou em 2011 uma Lei que qualifica como crime “a negação da existência
dos genocídios reconhecidos pela lei” e aplica pena de prisão e multa a quem incorrer
nessa conduta; a Alemanha, por sua vez, tipifica como crime quem “em público ou em
ajuntamento, perturbar a paz pública de forma que viole a dignidade das vítimas,
aprovando, glorificando ou justificando o regime nacional-socialista de violência e
despotismo é punido com pena de prisão até três anos ou multa”, o que nos parece ser
medida interessante para coibir que tamanho mal se repita.

Por isso, tem razão o Professor Vera Cruz quando diz que o direito não
pode calar a verdade, nem admitir a cumplicidade com a mentira em submissão a
qualquer Poder Político, máxime porque, como visto acima, o dogmatismo é uma

59
_ https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/05/jacarezinho-1-ano-apos-28-mortes-10-
de-13-investigacoes-do-mp-foram-arquivadas.ghtml

25
tendência natural humana, que costuma aceitar que aquilo que vê e percebe é verdadeiro
e bom, de modo que se a mentira for reiteradamente apresentada às pessoas, elas
tenderam a acreditar nelas, fazendo com que o mal prevaleça, seja pela sua repetição,
seja por isentar os malfeitores de qualquer consequência.

Por isso, realmente, é papel do direito o reconhecimento do direito à


verdade das pessoas, por meio do estabelecimento de normas e institutos que assegurem
que essas verdades sejam conhecidas, sob pena de aviltamento da própria dignidade da
pessoa prejudicada pelo mal.

Em nosso ordenamento já existem alguns institutos que se prestam a


garantir a verdade, como é o caso, como é o caso da tutela da confiança, positivada no
art. 422 do Código Civil, que preserva a verdade em seu sentido hebraico; ou da calúnia,
tipificada no art. 138 do Código Penal, que preserva a verdade em seu sentido grego; ou
o art. 342 do Código de Processo Penal, que ao tipificar o crime de falso testemunho
preserva a verdade em seu sentido latino, dentre outros.

Além disso, também estamos de acordo com a conclusão de que o direito


deve agir para que, por meios pacíficos, seja atingido o bem, pois, realmente, quando as
próprias partes, sem violência ou qualquer tipo de coerção, decidem aquilo que é melhor
para elas, o sentido de justiça e bem-estar social prevalecem em maior escala, o que se
vê com grande intensidade no direito de família.

Embora não nos pareça questionável o dever de o direito agir e criar


institutos para preservar a verdade e o bem, comum ou individual, estabelecendo
normas jurídicas que prescrevam medidas voltadas a assegurá-los, a questão não parece
tão simples quando se trata de cometer “legalicídio” para preservação da verdade e do
bem.

Não desconhecemos que o art. 5° da LINDB determina que juiz deve


aplicar o direito ao bem comum, mas também não nos parece adequada que o operador
do direito desconsidere a lei sempre que a entender injusta ou contrária a um bem
comum, pois pode criar um mal que vai além da insegurança jurídica, principalmente
porque, repetimos, o direito pode ser entendido como conjugação de fatos e valores
ligados por uma norma.

26
À vista disso, apesar de não adotar uma posição extremista, como aquela
apresentada por Alf Ross, que aponta que não cabe ao jurista avaliar a retidão da lei 60,
não nos parece que seria adequado o juiz simplesmente deixar de aplicar a lei porque
não a considera justa ou adequada ao bem comum, pois, se o fizesse, estaria
substituindo seu Juízo ao do legislador, que é aquele que congrega, no Estado
Democrático de Direito, o papel de editar as normas que prescreverão os
comportamentos sociais.

Aliás, por vezes, o juiz sequer pode aferir se, ao fazer o bem, não está
fazendo verdadeiramente um mal. Em causas envolvendo a saúde, por exemplo, o juiz
faz o bem atendendo a qualquer pedido de medicação formulado pelo autor? É bom
evitar o despejo de uma família que não terá condições de habitar outro local? Em
ações previdenciárias, é bom flexibilizar o que dispõe a lei para ofertar benefícios a
quem solicitar?

A questão não é simples e muitas vezes importa em processo de escolha


de um mal a se causar (ou de um bem a se prestigiar), como já dissemos anteriormente
quando ressaltamos a recomendação do Professor Vera Cruz de que se analise o bem e o
mal de acordo coma situação concreta, de modo que não nos parece que seja razoável
que esteja exclusivamente nas mãos do aplicador da lei definir o que é o bem e o mal.

Em um Estado Democrático de Direito, essa escolha deve ser feita pelo


próprio Estado, pelas leis que edita, de modo que, ao aplicar a lei, inclusive
considerando qualquer método corretivo ou de promoção da justiça, não deve
simplesmente desconsiderar a norma que entenda maléfica. Deve, ao contrário, perquirir
seu valor subjacente e os princípios jurídicos que irradiam sobre a situação concreta,
somente não a aplicando caso esses princípios e valores recomendem solução diversa
daquela prevista em norma.

60
_Direito e Justiça. Bauru: EDIPRO, 2ª ED. 2007. P. 421.

27
BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO, Santo. Sobre a mentira (Vozes de Bolso) Editora Vozes. Edição do


Kindle.

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