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E qual seria, então, a ideia elementar de Direito?

O Direito é um
fenômeno essencialmente cultural, o que lhe possibilita fomentar
diversas ideias que permeiam a estrutura social da humanidade ao
longo da sua história. Numa primeira perspectiva, faz parte do senso
comum afirmar que a ideia do Direito não pode ser distinta da de
justiça – havendo quem sustente, aliás, que o Direito deriva da
própria Justiça, como se infere da seguinte máxima de ULPIANO
(150-223): Iuri operam daturum prius nosse oportet, unde nomen
iuris descendat. Est autem a iustitia appellatum: nam, ut eleganter
Celsus definit, ius est ars boni et aequi36. A justiça não é apenas
uma categoria de virtude universal por meio da qual a vida social se
pauta37 mas, concretamente, um valor entre os mais significativos
de nossa sociedade, de onde se afirma a busca de valores
correlatos, sobretudo a igualdade38, manifestando-se propriamente
só onde se encontram as ações e exigências de mais de um sujeito,
com a função específica de outorgar a proporcionalidade, sem
perder de vista os atributos de alteridade, bilateralidade, paridade e
reciprocidade39. Mas a justiça sem a força é impotente40, daí que a
ideia de Direito também está correlacionada às ideias de ordem e
lei. Mais precisamente, seria possível arriscar, ainda que
prematuramente, que o direito é um conjunto ordenado de leis para
se garantir a justiça.41 Assim, além de se idealizar o valor do justo
para o Direito, torna-se imperioso estruturá-lo por meio de um poder
capaz de assegurar adequadamente o que foi estabelecido42, o que
nos remete à personificação da ideia mais representativa do Direito
– uma lei ou regra. Realmente, sob o impulso do senso comum o
Direito é justiça – mas ao mesmo tempo é lei e ordem, formando um
instrumento específico da convivência social, estabelecendo regras
obrigatórias e limitadoras para a atuação de cada um de seus
membros.
Por fim, não menos importante, é fundamental a compreensão de
que ideia de Direito somente pode se desenvolver no único
ambiente possível, mais precisamente, em sociedade.
O exemplo utópico de Robinson na ilha deserta não interessa,
em princípio, à ciência jurídica, até o momento em que se dá uma
interação social fundamental: o encontro com o Sexta-Feira. A
pessoa, sob a perspectiva do universo, não representa
originalmente mais que uma entre inúmeras outras nervuras que
formam o esplendor da vida43 e, como tal, atua sobre a natureza,
para sobreviver enquanto espécie. Essa atuação não se verifica
apenas pelo viés biológico, mas, essencialmente, se desenvolve de
maneira consciente, isto é, o ser humano tem consciência de que
transforma a natureza para adaptá-la às suas necessidades.
Se essa consciência se afigura ora como um poder totalmente
estranho, onipotente e inabalável, com o qual o ser humano se
relaciona de um modo puramente animal, ora como uma
necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam44, a
verdade é que ela trará a definitiva distinção para com os demais
animais: a experiência será transmitida às futuras gerações
essencialmente por meio da cultura. Dentro desse contexto, o ser
humano não vive definitivamente isolado, tratando-se,
apropriadamente e por natureza de um animal político, destinado a
viver em sociedade45, de maneira que, como fenômeno social, o
Direito não existe senão na sociedade e jamais poderá ser cogitado
fora dela: ubi societas, ibi ius46. Sob a perspectiva dos indivíduos, o
Direito é um fenômeno singular na vida das pessoas, tutelando cada
indivíduo desde a concepção e enquanto estiver no ventre
materno47, seguindo-se desde o nascimento e advento de sua
personalidade jurídica, acompanhando por todas as eventualidades
e vicissitudes em sua vida, disciplinando a sua capacidade para a
contratação de obrigações em geral e a fruição de direitos, e até
mesmo após a sua morte. Também regra o direito de estar só, como
também lhe assegurará as prerrogativas para estabelecimento de
entidade familiar, matrimonial ou mediante união estável, assim
como permitirá a anulabilidade do matrimônio se atendidos os
requisitos da lei, bem como facultará a dissolução dessa união.
O Direito fixa um manto de proteção contemplando os mais
diversos valores patrimoniais e extrapatrimoniais, tanto no âmbito do
direito privado como do público: liberdade, vida, corpo, integridade
física e moral, honra, imagem, nome, intimidade, privacidade,
propriedade intelectual, herança, patrimônio, dignidade sexual. Os
incapazes gozam de proteção especial, assim como a família é
instituída como a célula mais importante da sociedade. Da mesma
forma, o Direito tutela as mais diversas possibilidades de atividade
empresarial, com ampla assistência às pessoas jurídicas, como
também disciplina a relação de emprego, de trabalho e todas as
prerrogativas aos empregados, entre tantas outras regras.
Ainda sob o viés das relações privadas, o Direito dispõe sobre a
modulação de vontade nas mais diversas formas, tais como a venda
e compra, permuta, prestação de serviços, locação de imóveis e
móveis, depósito, empréstimo, arrendamento, entre outras.
Sob uma perspectiva mais complexa, o Direito estrutura e
organiza o Estado, delimitando sua gestão, competências, esferas
de poder, relações internas e externas, assim como também regula
as dimensões dos direitos fundamentais, sociais, políticos,
nacionalidade, definindo a ordem social, defesa do Estado,
tributação e orçamento, ordem econômica e financeira, entre outras
regulamentações.
Sofisticada, permanente e ilimitada se mostra a atuação do
Direito em face do indivíduo, da sociedade e, bem assim, do Estado,
nos parecendo que o Direito se apropria dos desígnios do indivíduo
– só que não: é apenas o espectro da proteção aos valores mais
importantes e significativos em nossa sociedade, porquanto ele se
afigura como o fundamento maior da ordem social.
Por conseguinte, fica suficientemente claro que a ideia do Direito
não se distancia da ideia de justiça e, ainda, encontra-se
essencialmente lastreada nas ideias de lei, ordem e sociedade, sem
perder de vista a elementar estruturação empregada ao Estado.
Mas nenhuma ideia de Direito se mostra perfeitamente pertinente
se não for acompanhada, essencialmente, de um panorama da sua
contemporaneidade. A ciência do Direito, já foi dito, está em
constante evolução, de maneira que a formulação de sua
concepção deve, necessariamente, se render à adequação
temporal.
3. O Direito na Contemporaneidade 48
O positivismo jurídico inundou a ciência do Direito, a partir do final
do século XIX, com teorias que, em essência, objetivavam excluir
todo o enfoque ideológico do direito, com o intuito de revelar
claramente a sua protagonista e objeto maior do jurista: a norma
jurídica. Além disso, vislumbrava-se que o Direito somente poderia
ser conhecido e classificado por meio de seus referenciais técnicos
e objetivos que lhe fundam e lhe dão sentido: a norma e suas
variáveis normativas, como os costumes, a jurisprudência, o
contrato, os princípios gerais.
Para essas teorias, a política, a sociologia, a história, a filosofia e,
por conseguinte, a ética e a justiça, são referenciais estranhos ao
direito. Estava lançada, assim, a pedra fundamental de uma ciência
pura, que tinha por escopo ordenar e garantir a segurança da
sociedade.
Foi um tempo em que a positivação da norma jurídica bastava
para outorgar e estabelecer a ordem – sobretudo quando servia
como mecanismo de simulação para dar legitimidade a diferentes
ordens, inclusive aquelas revestidas de autoritarismos e tiranias. A
ideia de direito estava alicerçada mais a um instrumento de
dominação do que de distribuição de justiça, propriamente dito. Sob
o prisma da validade formal, eficácia e existência, o direito estava
reduzido a um conjunto de normas. Mas isso não perdurou por
muito tempo.
O século XX, que ao mesmo tempo foi palco de intensa evolução
social, cultural e tecnológica, flertou com a morte, a dor e a
destruição em massa, em manifesta desumanização, atravessando
duas grandes guerras, entre tantos outros conflitos, a ponto de ser
identificado como século sangrento49. Cessada a segunda grande
guerra e por ocasião dos Julgamentos de Nuremberg50 que tinham
por finalidade processar e julgar os membros da liderança política,
militar e econômica nazista, por todos os crimes cometidos contra a
humanidade, toda a aparente fortaleza dos fundamentos dessas
teorias positivistas desmoronou. Afinal, como sustentar a
legitimidade de ordens que, de uma só vez, atentaram
covardemente contra a humanidade e conspiravam cruelmente
contra o protagonista de toda a proteção do direito, isto é, o ser
humano?
Mas não bastava simplesmente reconhecer os crimes contra a
humanidade. Era preciso declarar51 e não necessariamente legislar
que a pessoa humana traduz o valor fundamental da ordem jurídica
e que o direito à vida, ao lado de tantos outros direitos, faz parte dos
chamados direitos humanos básicos que deverão ser respeitados e
garantidos por todos os povos. Nessa ordem de ideias, adotou-se e
proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos52, em
10 de dezembro de 1948 pela ONU – Organização das Nações
Unidas, especialmente com o escopo de se atingir novos
paradigmas ideológicos. À evidência que esse momento não é
histórico apenas para a humanidade, mas sobretudo para a ciência
jurídica, na medida em que se viu florescer novas perspectivas para
a compreensão do fenômeno jurídico, já que a norma jurídica,
protagonista, pois, da teoria positivista jurídica, não mais se
mostrava apta e adequada para abarcar toda a ciência jurídica.
E assim é que posteriormente a esse histórico momento, firme na
concepção de frustração da teoria positivista jurídica, novas opções
teóricas surgiram, lastreadas sobretudo na releitura das estruturas
normativas que posicionam o jurista para além da sua delimitada
atitude cognoscitiva fundada em juízos de fato, alcançando-se,
assim, juízos de valor.

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