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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS


ESCOLA DE BELAS ARTES
MESTRADO EM ARTES VISUAIS

GABRIELA MASSOTE LIMA


Registro: 118138258

NINGUÉM NASCE VIRIL, TORNA-SE VIRIL:


Representações do corpo masculino na arte contemporânea

Rio de Janeiro
Dezembro 2020
GABRIELA MASSOTE LIMA

NINGUÉM NASCE VIRIL, TORNA-SE VIRIL:


Representações do corpo masculino na arte contemporânea

Dissertação final apresentada ao Mestrado em


Artes Visuais – Linha de Pesquisa: Imagem e
Cultura, da Escola de Belas Artes –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito para obtenção do título de Mestra em
Artes Visuais.

Orientadora: Profª. Cláudia de Oliveira

Rio de Janeiro
Dezembro 2020

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3
AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, que me


proporcionou uma bolsa de pesquisa durante praticamente todo o período de realização do
curso de Mestrado, por meio da qual foi possível a realização desta pesquisa.

À minha orientadora, professora Drª. Cláudia de Oliveira que, com sua generosidade
intelectual, profissionalismo e disponibilidade, me acompanhou ao longo deste
trabalho, estimulando e contribuindo imensamente para a construção do mesmo.

Aos membros da banca, por gentilmente haverem aceitado o convite para participar
da defesa da minha dissertação de Mestrado, professores doutores Carlos Azambuja, Tatiana
Martins e, em especial, Tamara Quírico, pelo carinho com que me acompanha desde a
graduação. Igualmente, agradeço ao professor doutor Paulo Jordão, por ter participado de
minha banca de qualificação e muito acrescentado para o desenvolvimento posterior de minha
pesquisa.

À minha família, pelo apoio incondicional e, em especial, aos meus pais, Paulo
Roberto Siqueira Lima e Carmen Lúcia Massote Lima, que acreditaram em minha escolha,
formaram meu caráter e incentivaram, mesmo à distância, todo o processo para conclusão
desta importante etapa de minha formação.

A todos aqueles que, generosamente, cederam suas imagens; em especial, ao amigo


Marco Antonio Portela, grande incentivador do meu crescimento pessoal e intelectual e que,
certamente, fez com que eu chegasse até aqui.

E, por fim, aos colegas que partilharam de modo afetuoso deste processo, Fernanda
Estevam, Joana Martins, Júlia Calvet, Lucas Gibson, Nataly Costa e também ao sempre
prestativo e eficiente Renato Vieira, chefe da Secretaria do PPGAV.

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O material desta reflexão veio a ser muito variado (um artigo de jornal,
uma fotografia de semanário, um filme, um espetáculo, uma exposição)
e o assunto muito arbitrário: tratava-se evidentemente da minha
atualidade. O ponto de partida desta reflexão era, o mais das vezes, um
sentimento de impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a
arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade que, pelo
fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso
perfeitamente histórica. (BARTHES, 2013, p.11)

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RESUMO

LIMA, Gabriela Massote. Ninguém nasce viril, torna-se viril: representações do corpo
masculino na arte contemporânea. Orientadora: Profª. Cláudia de Oliveira. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGAV-EBA, 2020. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais, na linha de Imagem e
Cultura).

A virilidade dá forma a um conjunto de valores, de normas e rituais, ao mesmo tempo em que


se constitui um fardo. Ao longo das décadas, porém, esse sistema de representações vem
tendendo a se degenerar. A dissertação Ninguém nasce viril, torna-se viril: representações do
corpo masculino na arte contemporânea pretende tratar sobre o regime de representação
construído a partir do repertório de imagens de corpos masculinos que formaram um discurso
sobre o homem e sua virilidade a partir de um ideal não apenas físico, mas também social. O
texto visa compreender quais mitos viris e ícones clássicos ainda sobrevivem nos dias de hoje;
contudo, busca privilegiar imagens do corpo masculino na contemporaneidade que,
justamente, desviam-se dos códigos tradicionais de representação. A partir das teorias de
gênero e da noção de corpo enquanto construção social, um dos principais pontos é pensar
como um regime de representação imagético foi construído enquanto discurso de poder para a
naturalização da dominação milenar dos homens sobre as mulheres, reforçando o patriarcado
enquanto modo de produção capitalista e simbólico.

Palavras-chave: virilidade, gênero, representação, patriarcado, masculinidades.

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ABSTRACT

LIMA, Gabriela Massote. One is not born, but rather becomes, a man: representations of
the male body in contemporary art. Advisor: Prof. Cláudia de Oliveira. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGAV-EBA, 2020. Dissertation (Master in Visual Arts, line of Image and Culture).

Virility shapes a set of values, norms and rituals, while being a burden at the same time. Over
the decades, however, this system of representations has tended to degenerate. The
dissertation One is not born, but rather becomes, a man: representations of the male body in
contemporary art intends to deal with the representation regime built from the imagery
repertoire of male bodies, which formed a discourse about man and his virility from not only
a physical, but also social ideal. The text aims to understand which virile myths and classic
icons still survive today, however it seeks to privilege images of the male body in
contemporary times, which, precisely, deviate from the traditional codes of representation.
From the theories of gender and the notion of the body as a social construction, one of the
main points is to think, how an imaginary representation regime was built as a discourse of
power for the naturalization of the ancient domination of men over women, reinforcing
patriarchy as a mode capitalist and symbolic production.

Keywords: virility, gender, representation, patriarchy, masculinities.

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LISTA DE FIGURAS:

Fig. 1: Como ser macho, da série Fragmentos do Masculino, Antonio Pulgarin 22


Fig. 2: Ex-presidente americano Barack Obama e o príncipe Harry, reprodução internet 23
Fig. 3: Campanha contra menspreading no metrô de Madrid, reprodução internet 24
Fig. 4: Escolha / Escola, Francisco Hurtz 26
Fig. 5: Macho Toy #26, Fábio Carvalho 28
Fig. 6: Deus é menina e menino, Marco Antonio Portela 33
Fig. 7: Sylvester Stallone em Rambo: Programado para matar, reprodução internet 36
Fig. 8: Arnold Schwarzenegger em O Exterminador do Futuro, reprodução internet 37
Fig. 9: Homem de Marlboro, reprodução de internet 38
Fig. 10: Cartaz divulgação O Segredo de Brokeback Mountain, reprodução internet 38
Fig. 11: Meat Loaf em O Clube da Luta, reprodução internet 39
Fig. 12: O Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci 43
Fig. 13: David, Michelangelo Buonarroti 43
Fig. 14: O juramento dos Horácios, Jacques L. David 45
Fig. 15: Animal Locomotion Plate 347, Eadweard Muybridge 47
Fig. 16: Sandow the strong man, Herman John Schmidt 48
Fig. 17: Et in Arcadia ego, Wilhen Von Gloeden 48
Fig. 18: Jim Johnson, Bob Mizer Foundation, Inc. 49
Fig. 19: Capa da revista The Young Physique, reprodução de internet 49
Fig. 20: Macho Toys - publicações, Fábio Carvalho 51
Fig. 21: Ilustração de Tom of Finland, reprodução de internet 53
Fig. 22: Peça da série Fragmentos do Masculino, Antonio Pulgarin 53
Fig. 23: Hitler e o Discóbolo de Míron, Library of Congress/Corbis/VC 54
Fig. 24: O Discóbolo como logotipo, reprodução de internet 54
Fig. 25: A New Sentimental Journey, Alair Gomes 57
Fig. 26: Thomas, Robert Mapplethorpe 58
Fig. 27: Sem título, Hudinilson Jr., 59
Fig. 28: Calvin Klein underwear, reprodução de internet 60
Fig. 29: David Beckham em campanha para H&M, reprodução de internet 60
Fig. 30: Reprodução de Instagram, @ricardosfeir 63
Fig. 31: Vive la France, Pierre et Gilles 64

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Fig. 32: David, Sam Taylor-Wood 64
Fig. 33: Sleep, Andy Warhol 64
Fig. 34: Sem título, da série Sex Parts & Torsos, Andy Warhol 65
Fig. 35: Anúncios de camisa unissex American Apparel, reprodução de internet 67
Fig. 36: 8 de junio, las modelos libran, Alicia Framis 68
Fig. 37: Cássio Reis para Revista TPM #99, reprodução da internet 69
Fig. 38: Esnar Ribeiro em G Magazine #35, Bauer Studio/G Magazine 71
Fig. 39: O deputado estadual Amauri Ribeiro, reprodução de internet 73
Fig. 40: Presidentes de chapéu cowboy, reprodução de internet 74
Fig. 41: Torso/Ritmo, Anita Malfatti 76
Fig. 42: Grande Nu, Georges Braque 76
Fig. 43: O banho turco, Jean-Auguste-Dominique Ingres 79
Fig. 44: O banho turco, Sylvia Sleigh 79
Fig. 45: Object series, Alexis Hunter 80
Fig. 46: Landscape #160, Eunice Golden 81
Fig. 47: Compre maçãs, anônima séc. XIX e Compre minhas bananas, Linda Nochlin 82
Fig. 48: Pick a dick, Guerrilla Girls 83
Fig. 49: Série Still Dick, Elizabeth Ubbe 84
Fig. 50: Louise de Bourgeois, Robert Mapplethorpe 85
Fig. 51: Sem título, da série Fábrica Fallus, Márcia X 85
Fig. 52: A origem do mundo, Gustave Courbet 86
Fig. 53: A origem da guerra, Orlan 86
Fig. 54: Still do vídeo Picolés, Gloria Camiruaga 87
Fig. 55: Comece o dia com um bom café da manhã juntos, Pixy Liao 87
Fig. 56: Got a salmon on (Prawn), Sarah Lucas 88
Fig. 57: Beach Triptych #20, Alair Gomes 89
Fig. 58: Still do vídeo Ilha dos Prazeres, Anita Boa Vida 89
Fig. 59: Encounter #37, Paula Winkler 90
Fig. 60: Sem título, da série Imagens de homens, Viktoria Tremmel 92
Fig. 61: Still do vídeo Dimensões variáveis, Javier Castro Rivera 93
Fig. 62: A estátua de um sátiro, reprodução internet 95
Fig. 63: O atleta Linford Christie, reprodução de internet 95
Fig. 64: Man in Polyester Suit, Robert Mapplethorpe 97
Fig. 65: Snap Shot, Rotimi Fani-Kayode 97

10
Fig. 66: Body, John Edmonds 98
Fig. 67: Cartaz de Museu do Homem do Nordeste, Jonathas de Andrade 99
Fig. 68: Derrubador Brasileiro, Almeida Júnior 99
Fig. 69: Frame de The Mythic Being, Adrian Piper 100
Fig. 70: Self Portrait (Front, Dark, shadow), John Coplans 102
Fig. 71: Foxy Mister, Tomislav Gotovac 102
Fig. 72: Leigh Bowery, Bruce Bernard 104
Fig. 73: I Miss You, Franko B 105
Fig. 74: Ilustração de Carlos Radrígues, reprodução de internet 106
Fig. 75: David, de Miguel Ángel Rojas 107
Fig. 76: Butcher IV, Odires Mlaszho 107
Fig. 77: Rrose Selavy, Man Ray 109
Fig. 78: Diane Torr em performance, reprodução de internet 109
Fig. 79: Experiência nº 3 de Flávio de Carvalho, reprodução de internet 110
Fig. 80: Facial hair transplant, Ana Mendieta 111
Fig. 81: Bandeira BAFO 1, Tertuliana Lustosa 114
Fig. 82: Cuts: A Traditional Sculpture, Heather Cassils 115
Fig. 83: Taya Mijando, Marianne Greber 115
Fig. 84: A performance La Bête de Wagner Schwartz, reprodução de internet 118
118

11
SUMÁRIO

Introdução 12
Capítulo 1: Sobrevivência dos clássicos 18
1.1 Problemas de gênero 19
1.2 Representação e alteridade 29
1.3 Identificação visual 34
1.4 A construção do mito fálico 39
1.5 Sobrevivência dos clássicos 42
1.6 De David de Michelangelo a David Beckham 56
1.7 Cultura visual da masculinidade 66
1.8 O Homem de Marlboro não morreu 70
Capítulo 2: Novas representações na arte contemporânea 75
2.1 Lugar de falo e lugar de fala 76
2.2 Dimensões e cores variáveis 93
2.3 O rei está nu 101
2.4 O corpo desobediente 109
Capítulo 3: Discutindo a relação 116
3.1 Crise de identidade 117
3.2 Virilidade e violência 122
Considerações finais 127
Referências bibliográficas 131
1

12
Introdução

“Não somos mulheres, nem somos homens, nós somos gente”1.


Somos sujeitos culturais e incorporamos as estruturas históricas da ordem masculina
enquanto filosofia dominante. A masculinidade é estruturada em um contexto social, cultural
e político e suas formas de manifestação devem ser compreendidas dentro dos suportes
simbólicos construídos em cada sociedade, época e cultura. Pretende-se aqui, pensar como um
regime de representação sobre o corpo masculino foi construído no Ocidente enquanto
discurso de poder para a naturalização da dominação sobre as mulheres e reforço do
patriarcado enquanto modo de produção capitalista e simbólico.
A masculinidade é um sistema de valores identitários que se produziu segundo uma
virilidade ideal; virilidade enquanto um conceito ligado à bravura, demonstrações de
heroísmo e domínio das emoções, que deu forma a um sistema de representações, um
conjunto de valores, normas e rituais.

Não bastaria dizer que ela (masculinidade) atua nos discursos, ou se constitui como
uma estrutura de poder, que integra a economia psíquica dos agentes, ou que é
histórica, ideológica, identitária, predispondo comportamentos ao prescrever
atitudes especiais em situações distintas, ou que recobre um sistema de valores ou
fundamenta certo tipo de estética. Dependendo da perspectiva adotada, sempre seria
insuficiente qualquer uma dessas definições. (OLIVEIRA, 2004, p. 14)

Contudo, ao longo das décadas, esse sistema de representações vem tendendo a


degenerar-se e o conjunto dos papéis sociais que definem o masculino não podem se
reproduzir, visto que a hegemonia viril vem sendo desqualificada enquanto ordem natural.
Esta dissertação tem o objetivo principal de investigar imagens do corpo masculino na
contemporaneidade que desviaram-se dos códigos tradicionais de representação da
masculinidade viril e justificar a importância da divulgação deste corpo nu a fim de pensar
novas possibilidades iconográficas e a desnaturalização do mito fálico atrelado a esse corpo.
A presente dissertação, Ninguém nasce viril, torna-se viril: representações do corpo
masculino na arte contemporânea, parte da hipótese de que uma maior exposição do nu
masculino, antes vestido por tabus e códigos morais, é capaz de contribuir para a formação de
um novo regime identitário. Acreditamos ser possível a construção de uma nova iconografia,
de novos discursos e, com isso, subverter os estereótipos masculinos e femininos construídos
ao longo do tempo.

1
Citação do grupo Dzi Croquetes.

13
A representação do corpo humano – exposto em plena nudez ou escondido por
vestes, véus, folhas de parreira – expressa a mentalidade de uma época, os valores
predominantes em uma cultura. Esculpido, pintado, fotografado, o corpo é sempre
mais que um objeto de arte ou de mero consumo visual banalizado: desvela uma
concepção de homem. O que o encobre ou despe é, antes de mais nada, o valor ou o
desvalor que lhe é atribuído, sua dignidade ou sua abominação, sua fragilidade ou
sua força, sua natureza pecaminosa ou sua virtude. A representação do corpo está
sempre carregada de vetores axiológicos: é um campo de valores entrecruzados,
frequentemente em conflito. (PESSANHA, 1992, p. 43)

O estímulo maior para esta dissertação reside, justamente, na crença de que, a maneira
como lemos a história pode ser ressignificada e os ícones desconstruídos e, assim, permitir
novas perspectivas ao patriarcado e aos paradigmas acerca da família, do sexo e das relações
binárias de gênero. Um movimento reverso, como a propagação e expressão de um outro
modelo de corpo, sugeriria uma problematização nas relações sociais e nos parâmetros atuais
de cultura, assim como um ruído na naturalização histórica da dominação masculina.
A partir desse contexto, discutiremos a masculinidade enquanto construção histórica e,
para tal, tomaremos por base autores que pensam o corpo enquanto resultado da estrutura
social. Nos utilizaremos das teorias de gênero e da noção de corpo enquanto construção social
a partir de autores como Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Judith Butler, Paul Preciado,
e Pierre Bourdieu, entre outros. Para a leitura das imagens, tomamos como base teórica a
leitura de autores que refletem sobre cultura visual como Susan Bordo, Stuart Hall e John
Berger, entre outros. O título do trabalho faz diálogo direto com Simone de Beauvoir e a
máxima do volume dois de O Segundo Sexo, A Experiência Vivida (1949): “Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher”2 (BEAUVOIR, 1949, p.11). A filósofa já denunciava, há 70 anos, o
corpo submetido a tabus, valores e costumes, e afirmava que as condições femininas ou
masculinas não se originavam de uma ordem natural das coisas. Dados biológicos não
justificavam a supremacia masculina ou o mito fálico associado ao corpo do homem. A
virilidade tampouco é dada logo de início, segundo Corbin, Courtine e Vigarello, ao
afirmarem que “a virilidade não era um atributo natural do homem, mas fruto de um conjunto
de processos educativos e sociais visando perpetuar a dominação masculina.” (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 207). Portanto: Não se nasce homem, torna-se
homem.

XY é a fórmula cromossômica do homem. Quando não há acidente de percurso, esses


dois cromossomos desencadeiam todos os mecanismos da diferenciação sexual que

2
Do original “On ne naît pas femme, on deviant femme”.

14
fazem um homem não ser uma mulher. Identificados definitivamente em 1956, os
cromossomos sexuais definem o sexo genético masculino e simbolizam a origem da
história do homem. Mas se XY é de fato a condição primeira do ser humano
masculino, não é suficiente para caracterizá-lo. Existem pessoas XY, fisicamente
normais, que desconhecem sua identidade masculina; outras adquirem a despeito de
anomalias genéticas. O tornar-se masculino envolve fatores psicológicos, sociais e
culturais que nada tem a ver com a genética, mas desempenham papel não menos
determinante, talvez mais, do que ela. (BADINTER, 1993, p. 3)

É importante ressaltarmos que, o estudo das masculinidades se divide em duas grandes


perspectivas teóricas: as críticas das formações das identidades sexuais materialistas e as pós-
estruturalistas. Os defensores do ponto de vista materialista resgatam fundamentos sociais e
institucionais, mais ou menos estáveis, sobre os quais repousa a produção das normas
masculinas, ao passo que a proposição pós-estruturalista se esforça para desvelar
ambiguidades, instabilidades e contradições dessas normas.
Sob a perspectiva materialista, o patriarcado opera através de um conjunto de
estruturas econômicas, políticas e sociais e, em nosso regime patriarcal, os homens controlam
a produção industrial, cultural e o corpo das mulheres. Avançou-se, assim, a ideia de uma
“masculinidade hegemônica” que encarna a legitimidade do patriarcado, a posição dominante
dos homens (presumivelmente identificada em corpos brancos, heterossexuais e a
subordinação das mulheres. Ou seja, falamos em masculinidade hegemônica quando existe
correspondência entre um modelo de corpo específico, os ideais culturais e o poder
institucional. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p.160).
No entanto, essa ideia de masculinidade, como bloco homogêneo e monolítico foi
submetida a muitas críticas à medida que foi sendo oferecida uma percepção mais ampla das
maneiras de ser de um homem, suas diferenças e contradições. Assim como não podemos
falar de um tipo único de femininidade, o emprego abusivo da visão hegemônica pode
também obscurecer o que há de fluido e não fixado na masculinidade. Se até aqui, víamos o
gênero enquanto um conjunto estratificado de discursos sociais e o sexo biológico mais ou
menos estável, sob a ótica pós-estruturalista tais afirmações podem ser redutoras. O pós-
estruturalismo não rejeita o mundo material, mas insiste sobre a possibilidade de diferentes
discursos concomitantes. Classe, idade, raça ou a preferência sexual, ou seja, a
interseccionalidade, também é fator de diferenciação masculina, de modo que múltiplas
noções de masculinidades variam ao longo do tempo e de indivíduo para indivíduo.

É, então, no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais


(todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as
identidades de raça, de nacionalidade, de classe, etc.). Essas múltiplas e distintas
identidades constituem os sujeitos, na medida em que esses são interpelados a partir

15
de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa
identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer
um sentido de pertencimento a um grupo social de referência. Nada há de simples ou
de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo
tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. Somos sujeitos de muitas
identidades. Essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente
atraentes e, depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e
abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as
identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter
fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais.
(LOURO, 2000, p. 12)

Dito isto, a fim de evitarmos o reducionismo sociológico e acreditando na


subjetividade e agência de cada indivíduo diante das imposições institucionais, reunimos aqui
noções de ambas perspectivas que não são consideradas excludentes entre si. Desta forma,
nos enriquecemos para entendermos politicamente a noção do patriarcado sem mascarar seu
caráter estrutural dominante homogêneo, segundo a visão materialista, mas também nos
aproveitamos metodologicamente da possibilidade de transformação subjetiva de cada
indivíduo, compreendendo que há uma noção de pluralidade intrínseca à masculinidade, mas
sem esquecermos a relação de poder que os envolve. “Diferentes masculinidades são
produzidas no mesmo contexto social.” (CONNEL, 1995, p. 189).

O que se entende por "masculinidade"? Deixem-me oferecer uma definição – breve,


mas razoavelmente precisa. A masculinidade é uma configuração de prática em
torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero. Existe,
normalmente, mais de uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de
uma sociedade. Em reconhecimento desse fato, tem-se tornado comum falar de
"masculinidades". Existe o perigo, nesse uso, de que possamos pensar no gênero
simplesmente como um pout-pourri de identidades e estilos de vida relacionados ao
consumo. Por isso, é importante sempre lembrar as relações de poder que estão aí
envolvidas. (CONNEL, 1995, p. 188)

A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo tem como objetivo
entender teoricamente a formação histórica dos discursos de poder e dominação sobre os
corpos a partir de exemplos não só da arte, mas da cultura visual de modo geral, abrangendo
desde a mídia, cinema e publicidade. Além de apresentarmos imagens históricas da arte e
cultura visual de uma forma em geral, pensaremos a questão da alteridade a partir de Stuart
Hall relacionada à categoria do “Outro” criada por Simone de Beauvoir. Ainda discutiremos
autores como Michel Foucault, que entende o corpo como sustentáculo das relações de poder
que se articulam na história da sociedade ocidental em seus livros História da Sexualidade
(1997) e Vigiar e Punir (1975); a filósofa Judith Butler em Problemas de Gênero. Feminismo

16
e Subversão da Identidade (1990), que responde tanto a Beauvoir quanto a Foucault
defendendo a desnaturalização das perspectivas de gênero conectadas ao sexo do nascimento.
E, ainda, para pensarmos a ordem social, enquanto uma imensa máquina simbólica que tende
a naturalizar a dominação masculina sobre os corpos, sobre a divisão social do trabalho ou o
espaço doméstico, examinaremos Pierre Bourdieu em A Dominação Masculina (1998) e o
conceito de falo na psicanálise de Sigmund Freud a fim de compreender como se constrói
subjetivamente um sistema de representação.
Somos todos produtos dessa dominação. É preciso, portanto, valorizar estratégias para
sairmos desse círculo não só como produtos, mas agentes sociais. Artistas investigadores dos
estudos de gênero e do feminismo trouxeram em suas obras novas perspectivas ao patriarcado
e novos paradigmas acerca da família, do sexo e das relações sociais entre o masculino e o
feminino a partir da década de 60, quando os movimentos sociais, a luta pela quebra de tabus
relativos ao corpo, as lutas políticas pela liberdade sexual e o tema corpo ganharam releituras
em diversas esferas como na política, mídia, artes e ciência. E, com os movimentos de
liberação sexual, o modelo tradicional falocrático veio, enfim, sendo repensado à medida que
uma nova noção de corpo apareceu.

A partir dos anos 1960, com a liberação sexual propiciada pelos movimentos de
contracultura, e sobretudo nos anos 1970, quando os pressupostos da modernidade
estão sendo revistos, a cultura contemporânea propõe uma reavaliação deste modelo
tradicional falocrático. Na tentativa de repensar a diferença social é buscada um
maior visibilidade para as identidades anteriormente transparentes na cultura
ocidental hegemônica, processo dentro do qual o sistema de artes tem papel
proeminente. Neste encaminhamento são trazidos à baila novos olhares sobre o
mundo, desestruturando a virilização dos costumes que impregnava as
representações culturais do ocidente. (SANTOS, 2005, p. 31)

No segundo capítulo, apresentaremos, justamente, imagens que conseguiram escapar


dos tradicionais códigos binários de representação e pensar de que maneira a sociedade atual
ainda pode representar este corpo longe dos ideais falocêntricos. Serão analisadas imagens de
artistas contemporâneo/as que problematizaram questões na contramão do cânone viril: a
objetificação do macho a partir do desejo feminino, o corpo negro e o corpo biologicamente
desobediente, o corpo trans. Através de depoimento dos/das artistas ou do contexto cultural na
qual estão inseridas ou inseridos, conseguiremos perceber quais estratégias estão sendo
utilizadas para negar os estereótipos e problematizar as questões de gênero.
Nos chama a atenção a grande quantidade de matérias de jornais e revistas atuais sobre

17
a crise da masculinidade enquanto ideal, e também, em contrapartida, o aumento da violência
física contra as mulheres. Sendo assim, o terceiro capítulo objetiva, a partir da análise da
lógica masculinista e conservadora atual, justificar a importância desta pesquisa focada no
corpo masculino enquanto ferramenta de desmistificação do patriarcado, e também discutir
sobre a importância de envolver o gênero masculino nas discussões feministas, tentando
promover um pensamento mais inclusivo.

18
CAPÍTULO 1

Sobrevivência dos clássicos

A virilidade é uma potência inventada. A força física ou a coragem, por exemplo, são
características construídas para o corpo masculino com base em um ideal de dominação e, no
entanto, é a tradição mais complexa das sociedades ocidentais.

O que é o homem? Alguns afirmarão sem pestanejar que homem é aquele nascido
com cromossomos XY e que, em decorrência dessa condição biológica, deverá
interessar-se por mulheres, futebol, armas e, no limite, nutrir uma aversão declarada
pela cor rosa. Outros dirão que é uma simples construção social que nada tem de
natural. Há ainda a tese de que se trata de uma autoafirmação: homem é quem se diz
homem, a despeito tanto de seu fenótipo quanto das imposições da sociedade.
Homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e
mata mulheres, além de gozar de liberdades e benefícios que vão desde o direito à
cidade, ao corpo próprio, até uma diferença salarial – presente em todos os cargos,
níveis de atuação e escolaridade – que chega, no Brasil, a 53%. (AMBRA, 2019, p.
17)

Em qualquer que seja o momento histórico, a virilidade é sinônimo de força não só


física, mas também força moral valorizada como um traço essencial do masculino. Isso se
traduziria em algumas capacidades, como: aptidão para o comando e exercício do poder,
autodomínio e firmeza, o que justificaria a dominação. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 16).

A virilidade é o elemento central da memória da dominação masculina. Isto equivale


à dominação viril, sem, porém, se limitar a ela: ela pode ser exercida sem que um
homem seja fisicamente viril, basta que ele o seja mentalmente, sabendo exercer em
seu proveito a virilidade física dos outros. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO
(Org.), 2013, p. 17)

Diante disto, temos como objetivo, neste capítulo, compreender teoricamente a


formação histórica dos discursos de poder e dominação masculina sobre os corpos tomando,
como exemplos, imagens produzidas no campo da história da arte, mas também na cultura
visual, como a mídia, o cinema e a publicidade.

19
1.1 Problemas de gênero

O gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O


seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato que
as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero
se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação
inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos do
sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra particularmente útil, porque
ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e
aos homens. (SCOTT, 1989, p. 7)

Poucos pensadores influenciaram o conhecimento feminista contemporâneo sobre os


temas do poder, da sexualidade e do sujeito, como Michel Foucault. Ao partirmos do
entendimento que o corpo não é apenas biológico, mas sustentáculo das relações de poder,
tomamos como ponto de partida para nossa reflexão o conceito foucaultiano de biopolítica
apresentado pelo filósofo em História da Sexualidade (1988).

Este biopoder, sem a menor dúvida, foi o elemento indispensável ao desenvolvimento


do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos
no aparelho de produção e por meio do ajustamento dos fenômenos de população aos
processos econômicos. (FOUCAULT, 1997, p. 132)

Foucault pensa o corpo como base da realidade política e histórica, como um


invólucro, uma superfície que se modela ao longo da história e que pode ser alterada,
docilizada e transformada por técnicas disciplinares, a fim de integrá-lo em sistemas de
controles econômicos de cada época ao lado das instituições de poder como exército, família,
medicina, prisões, fábricas e escola, que doutrinariam desde a aprendizagem à sexualidade.
(FOUCAULT, 1997, p. 132).
Foucault traz a sexualidade para o centro da discussão do controle sobre as vidas. Seu
conceito de biopolítica diz respeito a práticas disciplinares utilizadas pelas instituições de
poder a partir do século XVIII, para controlar a população em relação às normas de conduta,
disciplina, controle de reprodução e natalidade, etc., como uma “grande medicina social” que
se aplicaria à população a fim de controlar a vida. (FOUCAULT, 1997, p. 132).

A masculinidade está, tanto quanto a feminilidade, sujeita às tecnologias sociais e


políticas de construção e de controle. (...) É preciso pensar o sexo, pelo menos a partir
do século XVIII, como uma tecnologia biopolítica. Isto é, como um sistema
complexo de estruturas reguladoras que controla a relação entre os corpos, os
instrumentos, as máquinas, os usos e os usuários. (PRECIADO, 2014, p. 78-79)

20
Outro conceito importante para Foucault é o corpo dócil, apresentado em sua obra
Vigiar e Punir (1975). Segundo Foucault, o corpo dócil é aquele que pode ser submetido
enquanto objeto alvo de poder, manipulável, modelável, treinável, obediente e útil às
instituições. E a produção de corpos dóceis requer, justamente, uma ininterrupta coerção
direcionada às atividades corporais, ou práticas disciplinares aplicadas aos sujeitos mais uma
vez pelas instituições de poder, arranjos sutis de aparência inocente, como formar filas, dividir
em classes escolares, controlar horários, ter boa caligrafia, controle gestual, postura, boa
relação com o objeto que manipula (desde o fuzil a uma peça na fábrica), instrumentos
coercitivos que visam a não ociosidade e ao não desperdício de tempo. Assim, vai-se
compondo um corpo mecânico, um corpo menos subjetivo, e disciplinado para os
mecanismos de poder.
Apesar de Foucault descrever as experiências de docilidade entre homens e mulheres
de formas semelhantes, sem diferenciar as distintas experiências para cada sexo na sociedade
moderna, diversas teóricas feministas como Susan Bordo, Judith Butler ou ainda Paul B.
Preciado concordam que seu paradigma do controle biopolítico das instituições de poder
sobre a população ainda é uma ferramenta analítica útil para examinar a sujeição e exploração
do corpo das mulheres, por exemplo.
Entretanto, a filósofa Judith Butler acrescenta às teorias de Foucault que os corpos e as
identidades de gênero, portanto, não podem ser apenas representados como instrumentos
passivos sem agência ou subjetividade.

A questão de situar o “agente” é geralmente associada à viabilidade do “sujeito”,


entendendo-se que o “sujeito” tem uma existência estável, anterior ao campo
cultural que ele articula. Ou então, se o sujeito é culturalmente construído, mesmo
assim, ele é dotado de ação, usualmente representada como a capacidade de
mediação reflexiva, a qual se preserva intacta, independentemente de sua inserção
cultural. Neste modelo, “cultura” e “discurso” enredam o sujeito, mas não o
constituem. (BUTLER, 1990, p. 246)

Butler defende a desnaturalização das perspectivas de gênero conectadas ao sexo do


nascimento e também questiona a maneira com a qual os sujeitos são convocados mesmo
antes de seu nascimento a corresponder às determinações da binaridade masculino ou
feminino. Em Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade (1990), Butler
defende o sexo e o gênero como frutos de um sistema discursivo formado mesmo antes do
nascimento e, segundo ela, o falocentrismo é um regime de poder normativo e, senão, um
objetivo político. Contudo, o gênero seria, sim, construído culturalmente, mas há um “eu” que
absorve essa construção individualmente. (BUTLER, 1990, p. 29). Segundo Butler, os corpos
21
são teatro de representações da ordem sexual, e a reconstrução da própria aparência é o
reflexo de características culturais e históricas específicas de cada pessoa. (SILVA, 2005, p.
37).

Todo o investimento disciplinador no corpo para ajustá-lo ao ritmo das fábricas,


escolas, quartéis, prisões, toda a ação positivo-material do poder em adestrar o
gesto, regulamentar o comportamento, normalizar o prazer e interpretar o discurso
produziram a consciência do sujeito em relação ao seu próprio corpo, mas também a
inevitável emergência do contraefeito de reivindicação por seu domínio: a saúde
contra a economia e, principalmente, o prazer contra as normas morais da
sexualidade, do casamento, do pudor. (BARROS, 2016, p. 116)

Sendo assim, segundo a proposta de Butler, devemos compreender o gênero como


uma identidade fluida, desvinculada dos condicionantes binários masculino x feminino que
coexistem dentro de uma relação hierárquica construída e que necessariamente coloca um dos
conceitos como superior em relação ao outro. Apenas desta forma a opressão sobre os gêneros
poderia ser questionada de maneira mais eficaz, sem a obrigatoriedade da fixação de qualquer
determinação social prévia sobre eles. Ainda para Butler, a ordem naturalizante que exige
total coerência entre o sexo biológico e o gênero de forma compulsoriamente heterossexual
atrapalha nossa crítica e desconstrução. Justamente por isso, devemos analisar o aparato de
produção mediante o qual os sexos são estabelecidos, bem como a manutenção de uma ordem
que se dá pela repetição de atos, gestos e signos do âmbito cultural. E, porque não, uma
repetição de imagens que reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos.
O patriarcado é um sistema político-social que insiste que os homens são
inerentemente dominantes, superiores a tudo e a todos, especialmente às mulheres, dotados do
direito de dominar e governar os “fracos” e de manter esse domínio através de várias formas
de terrorismo psicológico e violência (hooks, 2004, p.18). Para Pierre Bourdieu, a definição
social dos órgãos genitais também é produto de uma construção a partir de escolhas pré-
orientadas, e o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas. Entretanto, se
as mulheres são submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las, os homens
também são prisioneiros da representação vigente. O privilégio masculino custa ao homem o
dever de afirmar a todo tempo sua virilidade. A virilidade tem que ser validada por outros
homens, inclusive. O verdadeiro homem é aquele que se sente obrigado a fazer crescer sua
honra e distinção pública. É a virilidade que leva ao investimento obrigatório dos jogos de
violência masculinos como signos de masculinidade, inúmeros ritos de instituição, sobretudo
escolares ou militares, que promovem verdadeiras provas de coragem e bravura
(BOURDIEU, 1998, p. 65).
22
Fig. 1: Cómo ser macho, da série Fragmentos do Masculino, Antonio Pulgarin, 2017.

Uma reação à masculinidade imposta é exatamente o que o artista colombiano


Antonio Pulgarin aborda em seu projeto Fragmentos do Masculino (Figura 1). O trabalho de
Pulgarin exprime o desconforto modelado pela masculinidade condicionada de sua cultura
que passa entre gerações. Analisando fotografias antigas de seu tio e pai no tempo que
estiveram nas forças armadas, ele as rasga e incorpora colagens feitas com cores da bandeira
colombiana. O sistema militar é uma instituição pesada, cheia de simbolismo visual, como o
uso de uniforme e utilização de armas, por exemplo, que acaba também por ditar direções que
a ideologia do machismo pode seguir, como se para um homem obter sucesso fosse
necessário seguir a direção que levasse à honra e ao respeito tal qual dos militares.

Além de abordar meus relacionamentos com esses homens, também abordo meu
próprio relacionamento com a identidade colombiana e a identidade masculina latina
– o que isso significa? O que constitui ser um homem latino, especialmente na
América, hoje? Estou tentando abordar essas ideias e essa estrutura social da
masculinidade brincando com ela, porque sinto que, em parte, é uma construção
social com a qual nossa comunidade cresceu por muito tempo. E se ele está
incorporado em nossa cultura, como desconstruí-lo? (PULGARIM, 20173)

3
Disponível em: <https://www.lensculture.com/articles/antonio-pulgarin-fragments-of-the-masculine>.

23
Um outro exemplo, também, é a inscrição da cultura na linguagem corporal concreta.
O corpo, ou o que comemos, a forma como nos vestimos, os rituais diários através dos quais
cuidamos dele, é um agente da cultura (BORDO, 2000, p. 19). A ordem masculina ou
feminina é inscrita nos corpos através das rotinas de forma quase ingênua, através das normas
domésticas, desde maneiras à mesa, hábitos de higiene e prática aparentemente triviais, mas
muito eficazes simbolicamente. Às meninas, ensina-se, ainda hoje, que devem ficar com as
pernas cruzadas, que devem ter pudor, que precisam ser contidas, belas, recatadas e do lar4.
Todo trabalho de socialização tende a impor-lhes limites, todos eles referentes ao corpo, como
se expressar, como se vestir. Já o trabalho psicossomático aplicado aos meninos, ao contrário,
visa a virilizá-los e ocupar os espaços.

Fig. 2: O ex-presidente americano Barack Obama e o príncipe Harry em uma clássica cena de
menspreading em evento esportivo no Canadá, Getty Images, 2017.5

A palavra menspreading, traduzida literalmente do inglês, significa “expansão do sexo


masculino”, mas hoje faz parte dos discursos feministas para designar as atitudes de homens
que tomam um espaço desproporcional em locais coletivos. A Figura 2, acima, é um flagrante
comum dos confortáveis ex-presidente americano Barack Obama e do ex-príncipe Harry
enquanto espremem, com suas pernas abertas, as mulheres aos seus lados, em um evento

4
A expressão “bela, recatada e do lar” ficou conhecida no Brasil após matéria publicada na Revista Veja, de
abril de 2016, sobre o perfil da então primeira dama brasileira Marcela Temer e suas qualidades enquanto objeto
decorativo ainda neste século. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-
do-lar/>.
5
Disponível em: <https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2018/04/11/principe-harry-e-
meghan-markle-nao-convidam-obama-para-casamento.htm>.

24
público. Para a professora do Instituto de Psicologia/UERJ e coordenadora do DEGENERA –
Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, Amana Matos, em matéria da revista Marie
Claire6, de setembro de 2017, o homem de pernas abertas, seja de pé ou sentado, quer evocar
uma imagem de virilidade, e também seria uma forma de se colocar enquanto macho e dono
do espaço.
Algo aparentemente inofensivo e “natural”, pode ser visto hoje como uma insistência
de dominação do espaço e transporte públicos. A ocupação desproporcional do assento por
homens nos transportes públicos nos horários de pico virou, inclusive, tema de campanha de
conscientização em cidades como Paris, Madri (Figura 3) e Nova York7.

Fig. 3: Campanha contra menspreading no metrô de Madrid, 2017.8

As estruturas de dominação são produtos de um trabalho incessante e histórico de


reprodução para o qual contribuem agentes específicos como as instituições Família, Igreja,
Escola e Estado. Segundo Bourdieu (1998), essas instituições atuam de forma orquestrada
sobre as estruturas inconscientes do sujeito, aplicando, desde os primórdios, seus pontos de
vista aos dominados, determinando a construção social dos corpos. A socióloga australiana
R.W. Connel afirma que as próprias instituições são também dotadas de gênero. O Estado e a

6
Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2017/07/o-que-e-o-mensprea
ding.html>.
7
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40235859>.
8
Disponível em: <https://observador.pt/2017/06/08/madrid-proibe-homens-de-pernas-abertas-nos-transportes/>.

25
Escola seriam, segundo ela, instituições masculinas pelas suas práticas estruturais aplicadas
relacionadas com a questão da sexualidade e reprodução. (CONNEL, 2005, p. 73).
À Família, coube o papel da repetição da dominação masculina, imposição da divisão
sexual do trabalho e os papéis destinados a cada sexo, começando a partir dos exemplos
domésticos. À Igreja e sua assumida moral antifeminista, coube, através dos textos sagrados e
missas, a tecedura de normas quanto aos trajes, moral feminina e dogmas sexuais.

Na igreja, eles aprenderam que Deus criou o homem para governar o mundo e tudo o
que nele há e que era o trabalho das mulheres ajudar os homens a executar essas
tarefas, obedecer e assumir sempre um papel subordinado em relação a um homem
poderoso. Eles foram ensinados que Deus era homem. (hooks, 2004, p. 18)

O Estado, ainda hoje, reforça o patriarcado privado no espaço público regulamentando


legalmente a vida doméstica, aprovando ou não as frágeis leis referentes ao estupro, o não
direito ao aborto, a falta de rigidez no cumprimento da ordem contra o feminicídio e outras
lutas femininas. E, por fim, a Escola nos transmite todos esses pressupostos da representação
patriarcal e suas estruturas hierárquicas desde a infância, contribuindo, ainda mais, para traçar
os destinos sociais e as imagens que temos de nós mesmos e fixar nossa biologia.
(BOURDIEU, 1998, p. 103).

Fig. 4: Escolha / Escola, Francisco Hurtz, 2013.

26
Com seus desenhos finos e minimalistas, o paulistano Francisco Hurtz apresenta
novos olhares sobre a representação do corpo masculino. Hurtz foge das características que
normalmente descrevem homens como viris e dominantes e nos passa uma ideia de
fragilidade. Em Escolha / Escola, (Figura 4), três jovens rapazes tentam se acomodar naquele
ambiente escolar e suas regras. Ao formar a tradicional fila, seus corpos parecem desajeitados,
não cabem mais nos uniformes e os sapatos estão desamarrados. Eles vestem a mesma
camiseta, assim, conseguimos perceber o desconforto causado por aquele espaço nos seus
próprios corpos e, ao mesmo tempo, uma crítica ao modelo de masculinidade imposta neste
ambiente desde a juventude a todos, como uma padronização.
A imposição se faz tão atual que a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos,
Damares Alves, afirmou em vídeo que circulou pela internet9, no discurso de sua posse, em 2
de janeiro de 2019, que o “Brasil está em uma nova era, e menino veste azul e menina veste
rosa”. A ministra ainda declarou que o governo vai priorizar políticas públicas que defendem
a vida desde a concepção, em óbvia posição contra o aborto e defesa da heterossexualidade,
da família tradicional e valores fixados para o masculino e feminino.

A família tem ocupado posição maior no que diz respeito à aprendizagem dos valores
e papéis desenvolvidos em cada sexo. Desde o berço, os pais esperam uma coisa das
meninas e outra dos meninos, o que é traduzido em condutas diferenciadas. A criança
quando aprende as primeiras lições, passa a incorporar definições pré-estabelecidas
tradicionalmente: homem não chora, menina não diz palavrão, menino não brinca
com boneca e sim de carrinho, menina não trepa em árvore como os meninos,
mulheres são frágeis e dóceis, homens são fortes e duros. Jogos e brinquedos varonis
são concebidos para exercitar a destreza, a coordenação muscular, o extravasamento
da atividade e da agressividade, o senso de domínio, enquanto os “de menina”
valorizam a ordem (como os jogos de roda) ou reproduzem o cotidiano doméstico:
bonecas, berços, fogões, panelas e máquinas de costura. Meninos são estimulados a
serem livres e independentes, a contar vantagens e alardear seus méritos,
desenvolvendo o senso de competitividade como uma das principais características
úteis à sobrevivência da vida adulta. (AMANTINO; PRIORE, 2013, p. 302)

O patriarcado é um sistema psicoideológico, um sistema de dominação que ataca


diretamente o desejo, reduzindo-o ao sexo e depois definindo sexo nos termos políticos do
gênero. Ou seja, a partir de dados biológicos, constrói-se a diferença anatômica dos sexos, e o
gênero responderia a uma estrutura de poder político, sustentáculo do patriarcado, disfarçado
em sistema de diferença natural (BORDO; JAGGAR (Org.), 1997, p. 46).

Os pais podem alertar seus filhos homens de que a tradição machista é uma
armadilha, uma severa restrição das emoções a serviço do Exército e do Estado.

9
Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral, menino-veste-azul-e-menina-veste-rosa-diz-
damares-alves,70002665826>.

27
Porque a virilidade tradicional é uma máquina tão mutiladora quanto a atribuição da
feminilidade. Ser um homem de verdade – o que é que isso exige? Repressão das
emoções. Calar sua sensibilidade. Ter vergonha da sua delicadeza, de sua
vulnerabilidade. Abandonar a infância de modo brutal e definitivo: os homens-
crianças não possuem boa reputação. Ficar angustiado pelo tamanho do seu pinto.
Saber fazer as mulheres gozarem sem que elas mesmas saibam ou queiram lhes
indicar como. Não dar sinais de fraqueza. Amordaçar a sensualidade. Vestir-se com
cores discretas, usar sempre os mesmos sapatos grosseiros, nunca brincar com os
cabelos, não usar muitas joias, nenhuma maquiagem. Sempre dar o primeiro passo.
Não possuir nenhuma cultura sexual para melhorar o orgasmo. Não saber pedir ajuda.
Ter que ser valente, mesmo sem nenhuma vontade. Valorizar a força seja qual for seu
caráter. Mostrar agressividade. Possuir um acesso restrito à paternidade. Ter sucesso
social para poder pagar as melhores mulheres. Morrer de medo de sua
homossexualidade, porque um homem de verdade não deve nunca ser penetrado. Não
brincar de boneca quando pequeno, contentar-se com carrinhos e armas de plásticos
muito feios. Não cuidar muito do seu próprio corpo. Submeter-se à brutalidade de
outros homens sem reclamar. Saber se defender, mesmo sendo doce. Ser privado de
sua feminilidade, como as mulheres se privam da sua virilidade, não em função das
necessidades de uma situação ou de um caráter individual, mas em função daquilo
que o corpo coletivo exige de tal maneira que as mulheres ofereçam sempre seus
filhos para a guerra e que os homens aceitem se deixar matar para proteger os
interesses de três ou quatro cretinos de visão curta. (DESPENTES, 2016, p.23)

Fig. 5: Macho Toy S04 (simetria), Fábio Carvalho, 2010-2011.

A série Macho Toy (Figura 5), de Fábio Carvalho, surgiu justamente como uma
reflexão a respeito dos elementos que constituem os estereótipos de gênero e sexualidade
como, por exemplo, os tradicionais brinquedos que são presenteados às crianças e
“permitidos” para cada sexo. Bonecas, panelas, flores de plástico, pires de porcelana e
elementos que representam o universo doméstico para as meninas; e bolas, carrinhos e

28
soldados para os meninos, que são utilizados para direcionar o papel sexual a ser
desempenhado pelos futuros adultos, teoricamente, de acordo com o órgão sexual de cada um.
Os brinquedos de Carvalho operam justamente na superposição entre os estereótipos da
masculinidade e elementos delicados atribuídos ao feminino, como louças ou flores.
Dito isso, se fez necessário, de antemão, percebermos como se dá a organização
sexual a partir da relação binária entre os sexos para começarmos a pensar mais
profundamente em imagens do nu masculino e, consequentemente, reconhecer que a nudez
tem significados diferentes de acordo com o gênero. “Se o gênero é um produto histórico,
então ele está aberto à mudança histórica.” (CONNEL, 1995, p. 189).
Esta pesquisa, todavia, não tem a pretensão de dar um passo à frente nas teorias de
gênero e não daria conta de tudo que essa discussão abrange, mas precisou deste bastidor
teórico a fim de avançar na pesquisa sobre imagens do corpo masculino e entendê-las como
uma linguagem da época em que vivemos. E aqui devemos entender linguagem enquanto um
mecanismo vivo de transmissão de ideias e manutenção do discurso de poder.

A narrativa convencional adota uma das formas de masculinidade para definir a


masculinidade em geral. Isso confunde hegemonia de gênero com totalitarismo de
gênero. Os dados existentes são claros em mostrar que as masculinidades
hegemônicas são produzidas juntamente – e em relação – com outras
masculinidades. […] Se as masculinidades são construídas através dessas formas,
elas são também constantemente reconstruídas. As masculinidades estão
constantemente mudando na história. Obviamente, podemos não vivenciá-las como
tais; a ideologia popular frequentemente representa o gênero como aquilo que não
muda: o estável e "natural" padrão que subsiste sob o fluxo geral. O padrão agora
frequentemente chamado de "masculinidade tradicional", e vinculado à "família
tradicional" é, na verdade, uma forma de gênero historicamente recente, um produto
claro do mundo moderno. (CONNEL, 1995, p. 190-191)

1.2 Representação e alteridade

A cultura influencia nossa experiência visual de tal forma, que precisamos nos atentar
sobre como um sistema de representação é construído. E as perguntas que, taticamente,
devemos-nos fazer são: quando vemos uma imagem, qual a mensagem subjacente atrelada a
ela? Esta imagem reforça ou subverte estereótipos? Quais as formas discursivas são utilizadas
pela mídia quando representa as diferenças? Por que raça, sexualidade e gênero são
atravessados por múltiplas perspectivas de diferentes interesses? Como a representação da
diferença relaciona-se com as questões de poder e diferença sexual?

O interesse pelas categorias de classe, de raça e de gênero assinalavam primeiro o


compromisso do(a) pesquisador(a) com a história que incluía a fala dos(as)

29
oprimidos(as) e com uma análise do sentido e da natureza de sua opressão: assinalava
também que esses(as) pesquisadores(as) levavam cientificamente em consideração o
fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo, no mínimo, estes
três eixos. (SCOTT, 1989, p. 4)

O estudo de imagens da nudez masculina ao longo da história permite a análise do


conjunto de representações sociais incorporadas nos sujeitos e nos auxilia a perceber que, a
prática de naturalizar a diferença sempre foi típica das políticas de representação. Os
significados de uma imagem são flutuantes e não há como mantê-los fixos. Acontece, que a
tentativa de fixação é o trabalho de uma prática representacional que intervém nos vários
significados em potencial que uma imagem pode ter, para tentar privilegiar apenas um deles.
A naturalização é uma estratégia representacional que visa fixar a ancorar as
diferenças para sempre. Por exemplo: as diferenças sexuais sendo consideradas naturais
estariam para além da história e não poderiam, assim, serem questionadas (HALL, 1997, p.
143). Quais as formas discursivas utilizadas pela mídia, por exemplo, para representar a
diferença? Como a representação da diferença relaciona-se com as questões de poder? Para
Stuart Hall, em Cultura e Representação (1997), todo repertório de imagens e efeitos visuais
por meio das quais a diferença é representada em um dado momento histórico deve ser
descrito como um regime de representação e formação de significados relacionados ao poder,
dirigido a um grupo subordinado; poder hegemônico e discursivo que opera, pontualmente,
por meio da cultura, da produção de conhecimento e da produção de imagens ao longo dos
séculos.

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu


instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra
todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido
e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem
oficial da separação generalizada. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas
uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. (DEBORD, 2003, p. 14)

Uma das abordagens utilizadas por Hall para lidar com as questões da alteridade é a
abordagem psicanalítica, que tem a ver com a importância do papel da diferença em nossa
vida psíquica. O “Outro” seria fundamental para a constituição do self dos sujeitos e para a
identidade sexual. De acordo com Sigmund Freud, a consolidação da nossa definição de self e
da nossa identidade sexual depende da maneira que somos construídos como sujeitos; o que

30
se daria no estágio de desenvolvimento inicial chamado por ele de Complexo de Édipo10.
Segundo Freud, o sentimento unificado de si mesmo como sujeito e sua identidade
sexual não estão fixos na criança. É a partir de certa altura que o menino desenvolve uma
atração erótica inconsciente pela mãe e encontra no pai um obstáculo à sua satisfação.
Quando a criança descobre que a mãe não possui um pênis, presume que ela foi castrada
como punição e que ela mesma, por sua vez, também pode ser punida se não reprimir seu
desejo inconsciente. Como medo, o menino transfere sua identificação para o pai, assimilando
os primórdios de uma identidade masculina. A menina se identificaria ao caminho posto, mas
como não pode ser o pai, pode apenas “vencer” ao pai, desejando, inconscientemente, ter um
filho homem (HALL, 1997, p. 158).
O psicanalista francês Jacques Lacan (1998) argumentou, pós-Freud, que a criança
não possui qualquer senso de si mesma enquanto sujeito separado de sua mãe até que se vê
em um espelho, ou como se reflete na forma como é vista pela mãe. Por identificação, a
criança deseja o objeto de desejo da mãe, centrando, desta forma, sua libido em si mesma. É o
olhar do outro que permite à criança reconhecer-se pela primeira vez como sujeito unificado.

Uma das primeiras analistas a contestar a primazia do falo foi Karen Horney, para
quem homens e mulheres teriam psicologias diferentes oriundas de influências
culturais também distintas. Josine Müller e Melanie Klein, a partir de suas
experiências clínicas, também alegaram que desde o início a vagina teria um papel
importante no desenvolvimento da sexualidade feminina, procurando dar uma
positividade à feminilidade. Nesse momento, outras analistas também tomaram a
palavra para fortalecer os postulados freudianos, especialmente Hélène Deutsch,
Jeanne Lampl de Grott e Marie Bonaparte. Seja como for, o que prevaleceu foi o
modelo masculino, em que a sexualidade feminina era compreendida a partir da falta
do pênis-falo. Assim, a mulher só pôde ser concebida como um sujeito marcado pela
inferioridade ou relegada ao lugar do enigma e da não existência. (ARÁN)11

10
A expressão Complexo de Édipo aparece pela primeira vez no texto Sobre uma degradação geral na vida
erótica de um homem (FREUD, 1910). Em Totem e Tabu (FREUD, 1912-1914), o Complexo de Édipo
aparece não apenas como núcleo das neuroses, mas no centro e na origem da cultura. O Édipo é considerado
como universal por Freud, em 1923, quando ele desenvolve a teorização da tópica do aparelho psíquico. Tem-
se a ideia de que, ao romper a fantasia de um amor com a mãe para o menino e com o pai para a menina, lhe
garante uma formação da Lei e uma identificação com seus pais. Disponível em:
<https://psicologado.com.br/abordagens/psicanalise/complexo-de-edipo-e-as-novas-configuracoes-
familiares>.

11
Psicanálise e feminismo. Revista Cult. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/psicanalise-e-fem
inismo>.

31
Esse modelo tem sido, hoje, fortemente contestado, principalmente por feministas12.
Todavia, gostaríamos de utilizar a noção de alteridade em Stuart Hall como uma das
justificativas para a dominação masculina, e relacioná-la com o conceito de Outro em Simone
de Beauvoir, também utilizado por ela em O Segundo Sexo (1949).

Não é o Outro que se definindo como Outro define o Um; ele é posto como Outro
pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é
preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na
mulher? (BEAUVOIR, 2016, p. 14)

Para Beauvoir, a experiência humana é construída linguística, ideológica e


socialmente exclusivamente como masculina. Para ela, o sexo masculino é tomado como o
representativo da humanidade, e a experiência de ser homem seria indissociável da
experiência de ser humano, a ponto de dizermos “os homens” para designar os sexos em geral
(BEAUVOIR, 2016, p. 11). E, assim, a sociedade contrapõe as mulheres como algo que é
Outro, o diferente. “O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem. Ela não é
senão o que o homem decide que seja.” Ou ainda, “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o
Outro.” (BEAUVOIR, 2016, p. 13).

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,


econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o
castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir
um indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 2016, p. 11)

Beauvoir e Hall concordam que a categoria do Outro é tão original quanto a própria
consciência e que a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano. E a
questão da diferença e da alteridade passou a desempenhar papel cada vez mais significativo.
uma vez que a diferença é transformada em oposição. A diferença é necessária para a
produção de significados, para a formação da língua e da cultura, para as identidades sociais e
para a percepção subjetiva de si mesmo como sujeito sexuado. E, por isso, é ao mesmo tempo
ameaçadora, local de sentimentos negativos, de hostilidade, tem caráter ambivalente e que

12
Luce Irigaray, feminista, filósofa e psicanalista belga, vai dialogar com essa teoria de forma crítica em meados
dos anos 1970. A autora empreende uma leitura atenta dos principais textos da filosofia e da psicanálise para
mostrar como, na lógica binária do Um e do Outro, descrita acima, o que fica de fora como uma exclusão
constitutiva é, justamente, o feminino. Nesse sentido, não bastaria positivar o significante feminino: é necessário
desconstruir a lógica falocêntrica para que surja outra economia subjetiva. Disponível em:
<https://revistacult.uol.com.br/ home/psicanalise-e-feminismo/>.

32
justificaria a dominação do que é diferente. No caso, negros, mulheres, homossexuais e
indivíduos transgêneros13.

Assim, o outro que não é espelho, e sim real, como radicalmente outro por estar no
lugar do objeto (objeto causa de desejo e causa de horror) reduzido a sua versão de
abjeto: alvo de abjeção, violentação e eliminação. Por quê? Porque a existência desse
outro é uma ameaça a minha existência identitária, pois esse outro está na
extremidade da polaridade de meu ser como objeto na estrutura. Pois eu não sou
apenas sujeito, sou também objeto separado de mim mesmo como sujeito que
encontro no outro, que me causa desejo ou angústia, atração ou repulsa. (QUINET,
2018, p. 26)

Fig. 6: Deus é menina e menino, Marco Antonio Portela, 2008.

A enigmática imagem do artista carioca Marco Antonio Portela (Figura 6), nos ajuda a
pensar a ambiguidade de um corpo biológico sem gênero pré-determinado. A princípio, não
sabemos identificar para qual parte do corpo estamos olhando, mas a partir do título Deus é
menina e menino chegamos às pistas sobre a fluidez que um corpo pode assumir. Portela
fotografa com uma macro lente a glande do seu próprio pênis, o que não fica claro de
imediato, já que o que vemos é apenas o corte, a invaginação, uma imagem que remeteria
mais diretamente ao corpo feminino. A invaginação ampliada no representante do falo dialoga

13
O termo transgênero se refere a todas as pessoas que não vivem sob a identidade macho ou fêmea que foram
identificados pelo órgão sexual de nascimento, tendo feito ou não cirurgia de mudança de sexo. (BORDO, p. 38).

33
diretamente com o mito da castração14 em Freud. O trabalho trata, justamente, da ameaça de
perder o pênis que constrói o imaginário masculino e que, talvez, justifique a necessidade de
se estar agarrado ao falo ou a necessidade de dominação sobre as mulheres, representantes da
ameaça simbólica.
Teoricamente, a falta do pênis ilustra a diferença sexual, a castração, o desprazer. E o
inconsciente masculino tem duas vias de escape para lidar com esta ordem simbólica, com a
ansiedade diante da castração. A investigação da mulher, a “desmistificação do seu mistério”
e sua consequente desvalorização ou punição do objeto culpado. Ou, ainda, a completa
negação da castração, substituindo-a por um objeto de fetiche tranquilizador e satisfatório
(MULVEY, 1989, p. 49). E, assim, na maioria dos casos, de uma forma naturalizada, o corpo
da mulher tornou-se um objeto sexual.
“Ser um homem feminino / não fere o meu lado masculino / se Deus é menina e
menino / sou masculino e feminino”15.

1.3 Identificação visual

A partir da noção de alteridade, discutida anteriormente, podemos, portanto, aplicar a


dinâmica da necessidade de dominação da diferença dentro do próprio campo da arte e da
cultura visual.
Na tradição da pintura a óleo europeia, o motivo principal era o nu feminino nas
centenas de milhares de nus pintados por homens. Mas qual seria a função sexual da nudez
feminina, na realidade? Em seu livro Modos de ver (1999), o historiador e crítico de arte
inglês John Berger discute que a nudez feminina das telas agia como provocadora de alívio.
Ele argumenta que, no momento em que a nudez era pela primeira vez percebida, um
elemento de banalidade era introduzido, fazendo-se perder então o mistério, transformando
aquela mulher em outra qualquer. Os proprietários-espectadores eram geralmente homens e as
mulheres representadas em tela, eram vistas como objetos e, assim então, nuas e sem mistério,

14
A primeira discussão publicada de Freud sobre o complexo de castração aparece em seu estudo de caso Little
Hans (1909), cuja mãe relatou ter dito ao filho que se continuasse a tocar seu pênis, ela pediria ao médico que o
cortasse. Na psicanálise freudiana, a angústia de castração refere-se a um medo inconsciente da perda do pênis
originário durante o estado fálico do desenvolvimento psicossexual que duraria toda a vida. De acordo com
Freud, quando o menino torna-se consciente das diferenças entre os órgãos genitais masculinos e femininos, ele
assume que o pênis do sexo feminino foi removido, criando-se uma angústia de que seu pênis será cortado por
seu rival, a figura do pai, como punição por desejar a figura da mãe.
15
Masculino e Feminino, música de Pepeu Gomes.

34
eram um assunto dominado (BERGER, 1999, p. 61). O outro não era mais misterioso.

Na forma artística do nu europeu os pintores e os proprietários–espectadores eram


geralmente homens, e as pessoas, em geral mulheres, eram tratadas como objetos.
Esse relacionamento desigual está tão fortemente fincado em nossa cultura que
ainda estrutura a percepção que muitas mulheres tem de si próprias. (BERGER,
1999, p. 65)

Podemos dizer que esse comportamento da tradição da pintura renascentista é o


mesmo que permanece até hoje na propaganda, jornais e televisão, onde a mulher continua
sendo representada de maneira diferente da representação do homem. Podemos fazer uma
analogia do pensamento de Berger com o artigo O Prazer Visual e o Cinema
Narrativo (1975), da feminista e crítica cinematográfica britânica Laura Mulvey, que utiliza a
teoria psicanalítica como arma política para demonstrar como o inconsciente patriarcal
estruturou também a forma de fazer cinema.

Num mundo ordenado pelo desequilíbrio sexual, o prazer do olhar bifurca-se em


ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua
fantasia na figura feminina, que é estilizada em conformidade com ele. As mulheres,
em seu tradicional papel exibicionista, são ao mesmo tempo contempladas e
expostas, ostentando uma aparência codificada para causar um forte impacto visual
e erótico, de modo que se pode dizer que conotam uma “contemplassividade”.
(MULVEY, 1975, p. 47)

“O paradoxo do falocentrismo, em todas as suas manifestações, reside em depender da


imagem da mulher castrada para conferir ordem e significado ao seu mundo” (MULVEY,
1975, p. 43). A função da mulher no inconsciente patriarcal seria, justamente, simbolizar a
ameaça da castração pela ausência do pênis. Essa construção da psicanálise freudiana,
enquanto argumento político de Mulvey, serviu para justificar a imagem do corpo feminino
no cinema ou na arte enquanto uma reprodução da linguagem patriarcal. A mulher exibida
como objeto sexual passivo para o deleite visual ativo do homem, a heroína frágil que implora
que o mocinho a salve, sua desvalorização, ou sedução, são estratégias que o homem precisa
para lidar com a inconsciente inquietação da diferença, ou da castração. Tudo é dirigido ao
espectador masculino diante do quadro. É para ele que as figuras femininas assumem sua
nudez e os olhares se dirigem; como na tradição da pintura europeia, quando a atenção da
mulher, na maioria das vezes, voltava-se para fora da tela, para seu espectador amante.
(BERGER, 1999, p. 58).

35
O heroísmo dos campos de batalha migrou para o cinema e a cama. Ali, no meio do
século XX, forjaram-se padrões de comportamento masculino em que a coragem e a
bravura eram regras. “Dar no coro” também era norma. O homem viril precisava ser
igualmente incansável. As falhas, sempre discretamente tratadas. A vida urbana –
com a velocidade, os carros, o esporte e a bebida – contribuiu para o adestramento
dos corpos. (AMANTINO; PRIORE, 2013, p. 13)

Ainda de acordo com os princípios da ideologia dominante e das estruturas psíquicas


que a sustentam, segundo Mulvey, a figura masculina não permite o peso da objetificação
sexual sobre si. Mesmo que o personagem esteja sempre sem camisa, o homem é sempre o
ativo. Assim, o espectador se identifica com o protagonista masculino heroico e, assim, se
constrói um sentimento de onipotência. As características glamorosas ou sexuais de uma
estrela masculina do cinema, por exemplo, também não passariam pelo erotismo objetificado
e, sim, por uma idealização de ego e poder de quem o assiste.

O que impõe a virilidade e a faz abandonar as margens fetichistas dos fragmentos


erotizados da cinefilia é a sua representação historicizada. Quando um corpo se
transforma em fato social graças aos poderes do cinema, ele se torna experiência de
todos e de cada um, intensificando sua percepção, e adquire a potência de cristalizar e
de dizer as expectativas, os medos ou os valores de uma sociedade. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 520)

Não podemos deixar de comentar o cinema enquanto um importante agente para a


difusão das construções sociais de gênero em larga escala. Se, ao longo dos anos, os padrões
de masculinidade e feminilidade sofreram transformações, o princípio de homens dominantes
versus mulheres objeto insiste em permanecer nas bilheterias.

O cinema nasceu musculoso, em ereção, encarnado. A exibição do corpo masculino


atlético é uma das principais atrações do cinema primitivo. Edison, Muybridge,
Marey, Mélies, em todos esses cineastas a forma viril é registrada e proposta a partir
de modelos, lutadores, boxeadores, atletas, dançarinos, corredores, marchadores, os
músculos em movimento, o corpo cheio de dinamismo. Essa representação do corpo
coloca-se de imediato no coração do dispositivo cinematográfico. Filmes são
especificamente dedicados a esses fenômenos da virilidade masculina. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 523)

36
Fig. 7: O ator Sylvester Stallone em Rambo: Programado para matar, filme de 1992.

Fig. 8: O ator Arnold Schwarzenegger em O Exterminador Do Futuro, filme de 1991.

O cinema estadunidense impôs ao mundo seu ideal masculino com suas imagens de
hipervirilidade; do caubói de John Wayne, passando por Rambo, ao Exterminador (Figuras 7
e 8). Rambo, branco e herói de guerra, não possuía um cavalo, mulher, sequer um amigo.
Apenas um corpo malhado e um punhal que lhe servia como amuleto fálico. Já o
Exterminador, nem mais humano era. O homem-máquina em cima da sua moto Harley
Davidson deleitava os espectadores masculinos identificados com tal potência e virilidade que
não existem na vida real. Enquanto identificados como homem máquina, esses indivíduos
ficam impossibilitados de problematizar a maneira como socialmente tornaram-se homens. E,
de tanto ser promovido, esse modelo masculino acabava suscitando frustração por sua
inacessibilidade. É bastante óbvia a existência de defasagem entre as representações sociais e

37
as práticas reais. “Assim cavou-se uma lacuna traumática entre os triunfos virtuais dessa
‘virilidade fantasma´ nas telas, e os infortúnios da virilidade real nos conflitos guerreiros.
Rambo, surpreendentemente, estava ausente no ataque terrorista de 11 de setembro.”
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 576).

Os efeitos da cultura da celebridade sobre os homens vão muito além do realce


dados aos heróis de ação e roqueiros. O homem comum não é bobo: ele sabe que
não pode ser um Arnold Schwarzenegger. Não obstante, a cultura dá nova forma a
sua ideia mais básica de masculinidade ao lhe dizer, como também à celebridade,
que a masculinidade é algo para ser jogado sobre o corpo como um casaco vistoso,
não para se buscar numa reserva interior; que ela é pessoal, não societária; que ela é
exibida, não demonstrada. As qualidades interiores antes ditas como personificação
da masculinidade – segurança, força interior, firmeza de propósitos – são vendidas
ao homens para realçar a sua virilidade. O que passa por essência da masculinidade
está sendo extraído e engarrafado – e vendido de volta para os homens.
Literalmente, no caso do Viagra. (FALUDI, 2000, p. 47)

É dado fundamental notar que filmes com os personagens de Rambo e Exterminador


persistem e foram relançados em 201916. Isto posto, nos perguntamos: como a sociedade atual
representa e significa o corpo masculino? Existe um modelo e um imaginário de corpo
masculino possível que não passe pela representação histórica?

Fig. 9: Homem de Marlboro, reprodução de internet e Fig.10: Cartaz de divulgação de O Segredo de


Brokeback Mountain, filme de 2005.

16
Rambo: até o fim e O Exterminador do Futuro: destino sombrio.

38
Acreditamos que sim. Se o cowboy de outrora era o selvagem Homem de Marlboro
(Figura 9) e alguns meninos ainda sonham em ser John Wayne, em O Segredo de Brokeback
Mountain (Figura 10), o ousado drama dirigido por Ang Lee, lançado em 2005, os jovens
vaqueiros representados por atores do alto escalão hollywoodiano, símbolos da masculinidade
absoluta, eram homossexuais. O roteiro se fez polêmico, pontualmente, por trazer esses dois
personagens, caracterizados pela imagem dos ícones mais representativos da virilidade na
história do cinema hollywoodiano, e desconstruí-los.

Fig. 11: Meat Loaf como o personagem desmasculinizado Bob, em O Clube da Luta, filme de 1999.

O filme O Clube da Luta do diretor David Fincher, de 1999, retrata de forma crítica a
hipermasculinidade imposta aos homens e a forma de lidar com seu fracasso. O personagem
principal tinha que lidar com os estereótipos másculos do corpo, ser bem sucedido no
trabalho, ter poder de consumo e demonstrar agressividade. Para extravasar a pressão, exercer
a agressividade e conquistar a virilidade, criou um grupo secreto, onde homens brigavam
entre si como forma de terapia. O personagem Bob (Figura 11), ex-halterofilista que criou
mamas de tanto esteroide tomado, representava o homem desmasculinizado em crise na vida
fora das telas.

A hipermasculinidade se tornou em um elemento central da cultura do corpo na


América de hoje e, além disso, de uma cultura visual global. Ela possui em relação a
essa cultura um valor de sintoma, revelando-a ao inchá-la, literalmente, até o seu mais
extremo limite. Porque o músculo está em toda parte. Há muito tempo ele escapou
dos limites do estádio e das cordas e do ringue. [...] Ele (o corpo do body builder) é

39
um dos modos privilegiados de visibilidade do corpo masculino no anonimato urbano
das fisionomias, a própria assinatura do hábito viril na multidão. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 559)

1.4 A construção do mito fálico

A discussão sobre o masculino e suas vicissitudes não nos parece algo muito
frequente, como se sobre o ser homem não pairassem dúvidas ou coubesse qualquer
indagação. Nesse raciocínio, o homem e o masculino aparecem como mitos, no
sentido barthesiano do termo: narrativas que, naturalizadas, concertem-se em
verdades últimas, materializadas a seguir em imagens marcadas pela tautologia,
como o sedutor do cinema hollywoodiano, o bom malandro ou o cowboy solitário.
Imagens que mostrariam o homem como ele é, sem contudo nunca reduzi-lo a
objeto. Imagens diante das quais, em geral, não temos muito a fazer senão aceitá-las.
(CUNHA, 2019, p. 25)

Hoje em dia o que é um mito? Essa pergunta é tratada por Roland Barthes em seu
livro Mitologias (2013) e pode ser pertinente para a desnaturalização da obrigação viril.
Segundo Barthes, todo mito é uma fala. Naturalmente, não é uma fala qualquer. O mito é um
sistema de comunicação, uma mensagem criada em certas condições especiais. Essa fala não
necessariamente precisa ser oral, pode ser escrita ou criada por representações pictóricas. O
discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a
publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica. O mito é uma fala justificada que
acaba naturalizando certos conceitos. E, por isso, o mito é visto como uma fala inocente. Não
porque as intenções estão escondidas, mas porque soam naturais. “O mito não nega as coisas;
a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as,
fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de
constatação.” (BARTHES, 2013, p. 235).
Vivemos em uma cultura que encoraja homens a pensarem sobre si a partir dos seus
pênis e sua representação como mito fálico. Segundo os dicionários, o falo seria a forma de
representação do órgão reprodutor masculino como símbolo de fertilidade. Essa construção
simbólica de que o falo é representado pelo pênis colabora, justamente, com o discurso de
uma superioridade masculina. Não apenas sobre as mulheres, mas sobre todas as outras
espécies. “Ter um pênis não faz o homem”. (SILVA, 2005, p.39).

À mulher caberia estar a serviço do homem? Seria uma categoria humana secundária
à masculina? Ou o mito apontaria, ainda para outra inversão – esta, podemos dizer,
de cunho reparador: a de que o homem fálico e autossuficiente não se sustenta,
sendo a introdução da mulher em sua vida não a prova do poder de Deus a serviço

40
do gozo masculino, mas sim a constatação da fragilidade humana e sua dependência
de um outro para sobreviver e criar descendentes? Enfim, teria nosso mito
civilizatório comprometido gravemente a condição mesma de civilidade, ou seria
sua formulação o indicador dessa impossibilidade? (MUSZKAT, 2019, p. 22)

No artigo intitulado A organização sexual infantil – uma interpolação à teoria da


sexualidade, Sigmund Freud (1923, p. 158) introduz o primado do falo. Segundo Freud, o
elemento organizador da sexualidade é o falo. Não podemos esquecer que ele não o confunde
com o órgão sexual masculino, mas sim com a representação que se constitui com base nesta
parte anatômica. Para a psicanálise de Freud, o falo nada tem a ver com o órgão sexual
masculino na sua forma literal (mas que remeteria a ele também). O falo psicanalítico, de
forma bastante breve, significaria a representação de uma completude, de um não sentimento
de falta, o qual as mulheres teriam.

Os homens de certo não esperaram pela psicanálise para enaltecer o pênis e construir
imponentes obeliscos em sua glória. Contudo, Freud depois Lacan, cada qual a seu
modo, concederam uma caução teórica decisiva à superioridade e unicidade do
órgão macho, mesmo vendo-o como um símbolo. (BADINTER, 1993, p. 139)

Ou seja, o falo é uma ideia, um conceito, e não uma parte do corpo, o símbolo de
fecundidade, de poder, mas que foi, ao longo do tempo, tornando-se iconicamente
representado pelo pênis. E isto contribuiu enormemente para a construção do discurso da
dominação masculina. “Nada se parece mais ao pensamento mítico do que a ideologia
política” (LÉVI-STRAUSS, C., L’Anthropologie structurale, p. 233, apud CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 574).
Ou seja, o falo também é uma criação da cultura, não faz parte da biologia humana e
ninguém nasceu com um. Não é o falo que organiza e fundamenta essa visão de mundo e,
sim, essa visão de mundo que, organizada segundo a divisão de gêneros constituiu o falo
enquanto um símbolo masculino e tornou-o um marcador de superioridade, inscrevendo-o na
natureza biológica. Ao desconsiderar o falo como a construção imaginária do pênis, o genital
masculino perde seu papel de representação do poder, ou seja, ele retorna ao corpo tornando-
se mais um órgão que o compõe. “Existe o falo mítico, o símbolo cultural da masculinidade e
existem os pênis de carne e sangue.” (BORDO, 2000, p. 43).

41
Diante disto, é muito pertinente trazermos o pensamento de Butler, avesso ao conceito
freudiano de inveja do pênis17. Butler aponta que os homens se comparam o tempo todo com
o ideal de falo exatamente porque são dotados de um pênis, e não de um falo, estando, pois,
obrigados a demonstrar sua virilidade de maneira compulsiva; uma prova que as mulheres não
têm que passar, já que, diferentemente do homem, têm a capacidade de simbolizar outras
partes do corpo. (BUTLER, 1993, p. 57-91, apud PRECIADO, 2014, p. 77). As mulheres não
representariam mais a castração, por serem completas.

Agora as mulheres veem a sua relação com o pênis nesse mesmo contexto – no seu
caso, recusando-se de qualquer maneira a deixar o órgão limitar a sua independência
sexual e política. Com o início da década de 1960, as imagens culturais
predominantes do pênis, todas concebidas por homens, foram investigadas através
de uma nova lente, segura pelas mulheres, que as usaram para desconstruir os
excessos fálicos que mais as exploravam – estupro, pornografia, até mesmo
intercurso consensual. Visto dessa maneira, o pênis não era nem divino, nem
demoníaco, nem biológico, nem psicológico. O que os homens jocosamente
chamavam de sua “ferramenta” foi seriamente (e às vezes, sem humor) criticado
como uma ferramenta de opressão. O significado e o propósito do pênis – não
somente no quarto, mas na cultura – foram debatidos como nunca antes. A era de
Freud foi obrigada a ceder à era de Friedan18, e o então tornou-se AGORA. Se a
primeira metade do século XX viu o pênis psicanalisado, a segunda o viu politizado.
(FRIEDMAN, 2002, p. 177)

1.5 Sobrevivência dos clássicos

“I will be back”.19
A história da representação do nu masculino inicia-se em meados do século 5 a.C com
os conhecidos atletas da Grécia antiga, inspirados nas poses egípcias de um pé na frente do
outro, punho fechado cheio de energia, braço à frente do corpo e perfeito equilíbrio. Os
princípios matemáticos e de proporcionalidade eram essenciais para representar o belo ideal.
(LEOPOLD; NATTER, (Org.), 2013, p. 38). Desde a Grécia antiga, a nudez masculina
ocupava um lugar maior, um conjunto de ética e estética, o corpo nu ligado a uma condição
sagrada. Estátuas de deuses e heróis nus tinham o fim de atrair os fiéis. A beleza física estava
totalmente ligada à virtude divina, mas não só. As estátuas de atletas também eram uma
convenção social, e a beleza física se relacionava com as qualidades morais do homem, sua

17
Referente à publicação de Sigmund Freud em seu texto Organização genital infantil, de 1923, em que a
menina nota o pênis do irmão ou de um colega e reconhece-o imediatamente como superior ao seu órgão
correspondente e, assim, se tornam vítimas da inveja do pênis, pela esperança adquirida de que ainda terá um
pênis, tornando-se igual ao homem.
18
Betty Friedan, ativista feminista que escreveu The Feminine Mystique, em 1963.
19
“Eu estarei de volta”, famosa fala do personagem de Arnold Schwarzenegger que vem sido repetida desde o
primeiro filme O Exterminador do Futuro, em 1984.

42
educação e, o mais importante, sua virilidade. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.),
2013, p. 41).
A beleza do nu masculino grego foi retomada no Renascimento italiano. O corpo
masculino prevaleceu, então, como imagem central da arte renascentista, como objeto de
perfeição e equilíbrio das formas, encarnando os valores culturais e supremos. A exegese
teológica cristã prega que, se Adão é semelhante a Deus, ao tratar as questões estéticas, o
corpo do homem era o único verdadeiramente digno de admiração, pois refletia a beleza de
Deus. Esse privilégio exclusivo do macho se verificou na escolha de um corpo masculino, e
não feminino, para ilustrar os primeiros tratados de anatomia na época. A intenção dos artistas
era trabalhar sobre o melhor do material humano, isto é, o corpo viril masculino, derivado de
Deus, enquanto a mulher seria considerada menos perfeita. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 418). O homem foi criado à semelhança de Deus e é
responsável pelas leis e a forma que contamos nossa história. “Façamos o homem à nossa
imagem, à nossa semelhança.” (Genesis 1,26).

Fig.12: O Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci, 1492 e Fig. 13: David, Michelangelo Buonarroti, 1504.

43
O Homem Vitruviano (Figura 11) é baseado numa famosa passagem do arquiteto
romano Vitrúvio em seu tratado De Architectura20, que descrevia as proporções ideais do
corpo humano masculino. Neste ideal, o comprimento dos braços estendidos de um homem
seria igual à sua altura, entre outras equivalências corporais. Vitrúvio já havia tentado
encaixar as proporções do corpo humano dentro da figura de um quadrado e um círculo, mas
foi apenas com Leonardo da Vinci que o encaixe ficou perfeito e dentro dos padrões
matemáticos exigidos. Este desenho ilustra perfeitamente a tese filosófica própria do
Renascimento, segundo a qual, o homem seria a medida de todas as coisas.

Nesse sentido, compreende-se a influência de Vitrúvio sobre os artistas


renascentistas, pois estabelecia regras de proporções humanas corretas e defendia que
o homem é um modelo de proporção porque, com pernas e braços estendidos, encaixa
nas formas geométricas perfeitas, o quadrado e o círculo. Para o Renascimento, mais
do que regra prática, isso se constitui no fundamento de toda uma filosofia.
(MATESCO, 2009, p. 209)

Ainda desta época e sob esta mesma filosofia, a estátua de cinco metros de mármore,
de Michelangelo Buonarroti, do herói bíblico David (Figura 12), virou símbolo de Florença.
David também alcançou o lugar de ideal máximo de masculinidade, juventude e força heroica
neste momento histórico em que a nudez masculina era pública em conjunto com
demonstração de poder e autonomia. (LEOPOLD; NATTER, (Org.), 2013, p. 38). A imagem
do homem deveria ser realizada de modo que reunisse as perfeições dos indivíduos, e a
correspondência harmônica de tais componentes tornavam o conjunto belo. Nesse contexto, a
procura de um modelo “canônico” abriu espaço para que vários artistas se empenhassem em
estudar as medidas ideais do corpo humano. (PANOFSKY, 2011, p. 129).

Pois nela o contorno das pernas é belíssimo, enquanto os flancos esbeltos têm
inscrições divinas; nem se viu jamais pose tão suave e graciosa que se equipare,
sequer pés, mãos, cabeça ou quaisquer membros com a mesma qualidade e maestria,
nem desenho feito com tanta harmonia. E quem a vir não deve pensar em ver
nenhuma outra obra de escultura feita em nossos tempos ou em outros por qualquer
artista. (VASARI, 2011, p. 719)

O nu heroico terá sido, provavelmente, a fórmula mais utilizada para representar o


homem, aquele que melhor evocava a sua virilidade e força, como ser lutador supremamente
dotado, tanto mental como fisicamente. O nu heroicizado encarnava a beleza ideal e refletia
valores e atitudes morais da época.

20
Série de dez livros intitulados De architectura libri, por volta de 25 anos antes de nossa era.

44
A partir do século XVII, foi organizado um treinamento de alto padrão para os
artistas mais privilegiados. Na escultura e na pintura histórica, o objetivo final desse
ensino era dominar a representação do nu masculino: isso era central no processo
criativo, pois os estudos preparatórios tinham que capturar a articulação do corpo o
mais próximo possível, independentemente ou não da roupa. Na França, os alunos
estudaram na Académie Royale e depois na Académie des Beaux-Arts, trabalhando
a partir de desenhos, gravuras, esculturas e modelos vivos. Até o final do século XX,
esses modelos eram exclusivamente masculinos, por razões de moralidade social,
mas também porque o homem era considerado como tendo a forma humana
arquetípica. (Masculine / Masculine. The Nude Man in Art from 1800 to the Present
Day, catálogo da exposição)21

Virilidade, força e heroísmo são reforçados na linguagem do Neo-Classicismo francês,


após a queda do Antigo Regime. A obra O juramento dos Horácios (1784), por exemplo, de
Jacques Louis David (Figura 14), pintor oficial da corte de Luis XVI e, posteriormente, de
Napoleão Bonaparte (um dos heróis mais viris da história da ocidentalidade) retrata três
irmãos em pé, vestidos para a guerra, com braços de músculos bem definidos estendidos na
direção do pai, que ergue três espadas no centro da pintura. Em segundo plano, três mulheres
sentadas no canto inferior direito, resignadas. O contraste é evidente. Os homens ostentam
expressões de bravura e olhares destemidos. O vermelho de seus trajes remete ao sangue do
triunfo e à violência da guerra. Já as mulheres, por sua vez, têm semblantes de tristeza e
sofreguidão, corpos curvados, as cores das suas roupas são em tom pastel, os corpos sem
tônus e submissos à dor. Podemos afirmar que a tela reforça a ideologia masculinista ao
atestar a virilidade e o voluntarismo dos homens.

Fig. 14: O juramento dos Horácios, Jacques L. David , 1784.

21
Disponível em: <https://www.musee-orsay.fr/en/events/exhibitions/archives/exhibitions-archives/page/2/
article/masculin-masculin-37292.html?cHash=04365eb801>.

45
Concluída em 1784, a pintura encomendada por Luís XVI tinha a intenção de resgatar
valores da Antiguidade Clássica, como o civismo e a supremacia do bem comum e da
razão. Para isso, as virtudes são exaltadas nas figuras masculinas, ao passo que as
mulheres ali estão apenas para ilustrar a fraqueza e a inércia que não se constatam nas
atitudes dos homens, heróis que superam os vínculos familiares para servirem à
pátria. O juramento dos Horácios celebra os ideais republicanos e,
concomitantemente, materializa os preceitos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
no atinente às funções a serem exercidas por homens e mulheres na sociedade. Assim,
trata-se de uma síntese bem-sucedida que, ao glorificar a prevalência do interesse
comum sobre o individual e ao destacar a importância dos homens para assegurar, de
todas as formas, a manutenção da República, situa as mulheres em uma posição
menos prestigiosa, tanto em comparação com os homens quanto em relação a seu
envolvimento nos assuntos de Estado. (MATSUDA, 1991, p. 6)

Como afirmou Foucault, entre os séculos XVIII e XIX, intensificaram-se os discursos


sobre sexo e o poder político se estendeu sobre a sexualidade em forma de política de
povoamento, da família, do casamento, da hierarquização social, da propriedade, da saúde e
do triunfo da raça. (FOUCAULT, 1997, p. 140).

Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o
surgimento da “população”, como problema econômico e político. […] No cerne
deste problema econômico e político da população: o sexo; é necessário analisar a
taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a
precocidade, e a frequência das relações sexuais. (FOUCAULT, 1997, p. 28)

É no século XIX que as democracias burguesas liberais ascendem e nelas a separação


entre os gêneros é reforçada pela própria dinâmica do capitalismo como sistema de opressão
operado pelos homens. É dentro desse sistema ideológico que o nu clássico encaminha-se
para o modernismo e sofre transmutações, às quais vão de encontro às ambições políticas da
burguesia, enquanto classe dominante. Não que o nu masculino tenha desaparecido como
imagem. Mas seu significado foi transformado. Ou seja, as narrativas mitológica, religiosa ou
heroica tenderam a ser substituídas pelo cientificismo.
Assim, o corpo nu masculino não era mais visto a partir da distância decorosa da
imagem idealizada. Na construção artística do século XIX, a representação da masculinidade
não pode desvelar um homem despido, uma vez que este perde seu poder viril e aproxima-se
do obsceno. O nu masculino, então, só é aceito para justificar um discurso científico, onde os
corpos masculinos não estão dispostos para contemplação, mas, ao contrário são regulados e
estrategicamente velados. O corpo do homem passa a servir a propósitos políticos sustentados
pelos discursos apoiados na anatomia, onde os modelos masculinos posavam assertivamente
ativos ou esportivos, enquanto os modelos femininos posavam passivas a contemplá-los ou,
ainda, a atraí-los de forma provocante. Assim, para reforçar a virilidade, nas imagens

46
masculinas há uma proliferação de imagens de mulheres despidas imitando as poses das
Vênus renascentistas ou odaliscas deitadas. (CALLEN, 2018, p. 56).

Entre idealismo e realismo, a arte moderna imputa severas tensões à representação


do nu uma vez que um artista moderno tem que tratar de temas modernos dentro da
cotidiana realidade. Charles Baudelaire celebra nas suas escritas, especificamente
no Pintor da vida moderna (publicado em 1863), duas figuras da modernidade; uma,
o artista como dandy e outra, seu objeto de observação, a prostituta, cujo corpo se
torna o código da modernidade. Reconciliar a diferença entre o nu acadêmico e o nu
moderno significa desvelar a nudez e responder à pergunta crucial: qual seria o
processo argumentativo na narração ao colocar um nu numa pintura realística? Esta
transição do nude para o naked gerou uma crise de representação. (BATISTA,
2011)22

Fig.15: Animal Locomotion: Plate 347 (Nude Men Wrestling), Eadweard Muybridge, 1887.

O estudo científico do nu masculino foi auxiliado por novas técnicas, como fotografias
tiradas em rápida sucessão, ou cronofotografia, que trouxe avanços no estudo da anatomia e
transformou o ensino de estudantes de arte. Os primeiros nus masculinos da história da
fotografia surgiram em 1872, para fins científicos, com o inglês Eadweard Muybridge e seus
estudos do movimento humano. Muybridge captava imagens separadamente em stop-motion,
tornando visíveis as fases da locomoção, utilizando como modelos animais, mulheres e
homens nus (Figura 15). Apesar da associação comum entre nudez e erotismo, as imagens de
Muybridge não tinham tom erótico e seu trabalho foi libertador em sua violação do tabu
contra a nudez masculina.

Mesmo que as imagens de Muybridge não sejam sensuais, e mesmo que tenha
desfrutado do patrocínio acadêmico da Universidade da Pensilvânia em seu trabalho,
ele ainda tinha de enfrentar as forças poderosas do puritanismo vitoriano ao fazer
fotografias de homens e mulheres nus. Apesar dos modelos masculinos serem atletas
respeitáveis e instrutores de educação física na universidade, as modelos femininas

22
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/corpo_academia.htm>.

47
eram, principalmente, modelos de artistas profissionais, consideradas, na época,
mulheres perdidas, e entre elas parecia haver algumas prostitutas.23

É curioso que as representações modernas da medicina sobre a anatomia do corpo


masculino também seguiram as convenções e proporções clássicas para receber legitimação.
A herança greco-romana do ideal clássico permaneceu como o ideal de perfeição física e
saúde. Poses clássicas e imitações de David de Michelangelo serviam como a estética para
aproximar a anatomia da arte. (CALLEN, 2018, p. 56).

Os homens fortes da virada do século, George Windship ou Eugene Sandow,


haviam sido precursores: poses à antiga, acessórios gregos ou romanos, a memória
visual de uma aristocracia longínqua da força europeia continuava a atribuir ao
músculo democrático seu patronato guerreiro. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 497)

Este conceito foi literalmente incorporado pelo fisiculturista Eugene, de quem os


ensaios sobre anatomia, em 1898, eram ilustrados com sua própria imagem em posturas
gregas. Sandow, ele mesmo um artista performático no século XIX, é considerado o pai da
musculação e criador do fisiculturismo, tendo sido o primeiro a divulgar o método nas revistas
e cinema no fim do século XIX e início do XX, quando não havia nada que legitimasse mais a
virilidade do que homens fisicamente fortes e lutadores. Em suas performances, Sandow se
apresentava como um atleta grego e, assim, abusava da sensualidade sem culpa, driblando a
censura do corpo. Ficou conhecido por suas alusões à arte clássica e estátuas como álibi, que
funcionavam como uma desculpa para posar praticamente nu. Em suas apresentações cobria-
se de talco para confundir-se com uma escultura de mármore. Ao utilizar poses clássicas, as
fotografias de Sandow passavam como "arte", em vez de pornografia (Figura 16).

Assim como a arte e a medicina, esportes de combate providenciavam um espaço


lícito para observar de perto e representar o corpo masculino seminu e,
consequentemente, construir ou subverter ideais físicos normativos e seus
significados. Esportes de combate ofereciam ao público um espetáculo voyeurístico
do corpo masculino, de suas aptidões físicas, violência, força bruta e virilidade, suor
e sangue. (CALLEN, 2018, p. 65)

23
Disponível em: <https://blogdoims.com.br/eadweard-muybridge/>.

48
Fig. 16: Sandow the strong man, Herman John Schmidt, 1912; e Fig. 17: Et in Arcadia ego, Wilhen Von
Gloeden, 1890.

Também é importante citar outro pioneiro do nu masculino em fotografia, o barão de


Taormina Wilhen Von Gloeden, no fim do século XIX. Von Gloeden fazia, justamente, um
tipo de fotografia em que o fetiche erótico era transportado para o classicismo antigo.
Mancebos nus eram produzidos ainda sob a influência acadêmica tentando velar o
homoerotismo e possibilitar o comércio dessas imagens (Figura 17). Entretanto, essa
produção – que pode ser considerada um embrião para os magazines de fisiculturismo e seu
consumismo pós anos 40 (SANTOS, 2004, p. 28) – acabou sofrendo processo judicial por ser
considerado material obsceno. “Trata-se de algo mais perturbador, que escapa da ordem
fetichista, onde a pornografia – o erotismo comercial – encontra sua certeza contável: a
identidade viva (e logo moral) dos modelos, sua irredutível singularidade de homens.”
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 497).

49
Fig. 18: Jim Johnson, Bob Mizer Foundation, Inc., 1964; e Fig. 19: Capa da revista The Young Physique, 1963.

Até as décadas de 1950-70, as revistas masculinas ainda exibiam imagens de nus


masculinos com temas da cultura clássica. Os corpos masculinos nessas revistas exibiam
poses, vestimentas e cenários inspirados nas imagens da cultura clássica criando, assim, um
verdadeiro álibi, já que a exploração de temas da antiguidade autorizava o uso e a
comercialização dos nus masculinos, mesmo que para fins eróticos, disfarçados nas revistas
de musculação.

De fato, o que permanece proibido é a nudez real. Para evitá-la e evitar o olhar
concupiscente que suscita é necessário moralizá-la, vestí-la de intenções morais e
estetizantes, sublimá-la e platonizá-la pela submissão ao Belo. (PESSANHA, 1992,
p. 43)

As fotos de Sandow também circularam em formatos de cartões-postais que se


intensificaram com a banalização da própria fotografia na segunda metade do século XIX,
abrindo caminho para o fotógrafo Americano Bob Mizer, que fundou a agência Athletic
Model Guild, em Los Angeles, especializada em fotografias de homens nus e, em 1951,
fundou a revista homoerótica Physique Pictorial, dissimulada enquanto material para
promover exercícios físicos, também se utilizando do cenário clássico para vender nus (Figura
18). “De fato, o que permanece proibido é a nudez real. Para evitá-la e evitar o olhar
concupiscente que suscita é necessário moralizá-la, vestí-la de intenções morais e estetizantes,

50
sublimá-la e platonizá-la pela submissão ao Belo.” (PESSANHA, 1992, p. 43).

Dessa forma, quando Bernarr “Body Love” Macfadden fundou em 1899 a Physical
Culture, primeira das publicações de massa dedicada ao desenvolvimento muscular
e pedra angular de um império da imprensa que iria cantar a glória do corpo
masculino na primeira metade do século XX, seus editoriais martelavam
incansavelmente: “Seja 100% homem! A fraqueza é um crime. Não seja criminoso!”
No entanto, não se pode, diante de tamanha insistência, pressentir uma surda
inquietação diante de um súbito esmorecimento do sexo forte. Esses slogans são
confissões: o desenvolvimento em massa muscular do tipo ideal masculimo nos
primeiros anos do século e a hipertrofia que se seguirá, são também uma denegação
implícita do reequilíbrio simbólico dos lugares respectivos dos homens e das
mulheres, e das mudanças de relações entre os sexos que acontece no decorrer do
século. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 576)

A revista The Young Physique (Figura 19), nos anos 60, e seus modelos de Beefcake24,
aqui, neste caso, disfarçado de guerreiro romano mesmo mais de 200 anos após O Juramento
dos Horácios, são exemplos de que o corpo masculino camuflado de herói podia ser exibido
sem perder seu status viril e preservar os mesmos arquétipos dos cânones clássicos. Até então,
imagens de nudez masculina ainda eram bastante questionadas e o sexo entre homens era tido
como um tabu socialmente inaceitável, sendo a pederastia um dos crimes mais combatidos,
porque, evidentemente, um pederasta, para o século XIX, é a representação mesma da falta de
virilidade e poder masculino. O pretexto utilizado para mostrar homens nus em público eram
justamente as poses ligadas à saúde ou à arte erudita. (SILVA, 2015, p.82).

Ao isolar o nu de sua nudez através de diversas camadas de interpretações, a história


da arte o transforma em elo de uma cadeia legível e constrói seu discurso a partir da
desqualificação do desejo. Por intermédio de um idealismo que funda a proeminência
do desenho pelo enquadramento de tudo que se relaciona à fenomenologia do corpo e
da carne, a historiografia tradicional analisa o nu a partir das fontes, das palavras
gregas ou latinas, das descrições relativas ao mito, dos cânones da estatuária grega; ou
seja, a nudez é abstraída. (MATESCO, 2009, p. 232)

A distinção de Kenneth Clark entre o “nu” e o “despido” em The Nude. A Study in


Ideal Form (1956), se faz relevante aqui. Clark dedica-se a distinguir entre esses dois estados.
Um nu estaria dentro da categoria da representação, ou seja, um corpo “vestido” pela arte e
produzido pela cultura que celebra a forma humana de acordo com as convenções formais de
uma época. Enquanto que, um corpo “despido”, seria um corpo sem roupa, fora das
representações estéticas e culturais, para quem é permitido um olhar erótico e onde o nu
masculino, tipicamente representados como agentes e não objetos de desejo, não podem se
colocar.
24
Os modelos beefcake, nas décadas de 1930 a 1960, eram jovens, bonitos e musculosos em poses atléticas.
Embora seu principal público fosse gay, apareciam como se fossem revistas destinadas a promover o
condicionamento físico e a saúde, devido à atmosfera conservadora e homofóbica da época.

51
Podemos agora começar a ver a diferença entre a nudez e o nu. Em seu livro The
Nude, Kenneth Clark sustenta que a nudez é simplesmente estar sem roupa, enquanto
que o nu é uma forma de arte. Segundo ele, um nu não é o ponto de partida de uma
pintura, mas uma forma de ver, que a pintura consegue efetuar. Até certo ponto, isso é
verdade – embora a forma de ver “um nu” não se confine necessariamente à arte: há
também fotografias de nus, poses de nus, gestos de nus. O que é verdade é que o nu
sempre é convencionado – e a autoridade para as convenções do nu deriva de uma
certa tradição da arte. O que significam essas convenções? O que um nu significa?
Não é suficiente responder a essas questões meramente em termos de forma artística,
pois é bastante claro que o nu também se relaciona com a sexualidade vivida.
(BERGER, 1999, p. 55)

Fig. 20: Macho Toys - publicações, Fábio Carvalho, 2009-2013.

"Macho Toys – publicações" são colagens feitas em 2009 a partir de capas e


propagandas das antigas revistas de fisiculturismo (Figura 20) indicando qual o tipo perfeito e
ideal físico para a representação de um corpo masculino. O artista carioca Fábio Carvalho
procurou, nesse trabalho, questionar o senso comum de que força e fragilidade, virilidade e
poesia, masculinidade e vulnerabilidade não podem coexistir e, ao atualizar essas capas, nos
lembra que tudo aquilo que nos parece eterno e definitivo, como tudo na cultura humana, são,
na verdade, resultado de acordos no tempo e espaço que podem ser transmutados, assim como
ele transforma as clássicas capas. Em suas obras, ao incorporar flores ou elementos delicados
nas antigas revistas de fisiculturismo, visa questionar a força e a violência que os meios de
comunicação atribuem ao corpo masculino e ressignificam a maneira que encaramos por tanto
tempo as falsas imposições daquelas revistas.

Stephen M. Whitehead, em seu livro Men and Masculinities (2002), sugere que, em
meados dos anos 1970, surgiu um movimento onde homens gays começaram a se
“clonar” a partir dos estereótipos do “machão” heteronormativo, para se posicionar

52
contra a ideia geral de que os homens homossexuais eram fracos, frágeis,
efeminados, que acabou por abrir caminho para o surgimento da cultura das “Muscle
Queens”, dos anos 1990 (no Brasil, as Barbies, hoje em dia também conhecidos por
“padrãozinho”, ao menos no Rio de Janeiro); os homens gays com corpos
musculosos. Sugiro como um possível exemplo desta época a música Macho Man
(1978), do grupo norte-americano Village People, com seus figurinos que
representam estereótipos (e fetiches) de virilidade – marinheiro, policial, soldado,
atleta, indígena, motociclista vestido de couro, cowboy, operário: Macho, macho
man. I’ve got to be a macho man. (CARVALHO, 2017)25

Nas décadas de 70 e 80, Tom of Finland, artista finlandês, fetichizava esses clichês
dentro do universo homoerótico colaborando nas páginas das revistas Physique Pictorial.
Finland realçava com clareza os aspectos acima comentados, e seus desenhos eram marcados,
justamente, pela representação de homens sempre musculosos, viris e robustos que, na maior
parte das imagens, aparecem semivestidos com roupas militares, de operários, cowboys ou
demais figurinos que remetiam sempre a homens másculos, bravos e heroicos (Figura 21).
Um homem gay, porém não necessariamente efeminado ou frágil. Estabelece-se, aí, um
vínculo entre a visão da masculinidade hegemônica com aquela que o homem gay acaba
identificando-se. Esse vínculo resulta na associação de elementos que historicamente
representa uma visão tradicional de masculinidade, que incluem um corpo atlético, viril, com
o pênis sempre ereto e sexualmente agressivo. A força surge como um elemento estruturante
da representação de um corpo que, por ser masculino, precisaria automaticamente se impor.
Um corpo que precisa ser rijo, definido e esculpido em academia. (SILVA, 2015, p. 202).

No extremo oposto temos os gays masculinizados que cada vez mais cultuam os
modelos masculinos típicos, representados por tipos caricaturais, tais como
cowboys, mecânicos, operários e a mais nova sensação: musculosos fisiculturistas.
Kleinberg nos diz que o culto à violência e à agressividade é algo crescente dentro
da comunidade gay americana. Nas salas de condicionamento, a busca do corpo
perfeito coincide com a busca de valores masculinos, e estes, em última análise,
representam a busca dos valores da sociedade straight que os tiraniza. […] O
fascínio e a sedução que a masculinidade hegemônica exerce sobre os gays pode ser
a explicação mais fácil para esta tentativa de adequação que os gays empreendem,
atualmente, em direção aos estereótipos masculinos. (OLIVEIRA, 1998, p. 18)

25
Disponível em: <https://www.fabiocarvalho.art.br/machoman-flsh.html>.

53
Fig. 21: Ilustração de Tom of Finland, anos 80; e Fig. 22: peça da série Fragmentos do Masculino,
Antonio Pulgarin, 2017.

Desde os fins da década de 1980, toda uma literatura escrita por homens aponta para
um suposto colapso da identidade masculina. O macho seria um estereótipo em
crise. Segundo Lima (1995), desde o século XIX, há um declínio progressivo dos
valores que estão associados à masculinidade. Entretanto, a linguagem visual
utilizada para retratar os corpos nas revistas repete elementos do discurso alçado
pela heterossexualidade compulsória, de um “erotismo macho”. O termo macho é
utilizado porque implica uma conformidade ao papel tradicional de gênero
masculino com significado de virilidade. As imagens voltadas para homens gays
remetem a esse homem “macho”. Ele, inclusive, pode até ser gay, no entanto, nas
fotos não deve transparecer efeminação. (SILVA, 2015, p. 201)

É impressionante pensar que alguns elementos identificadores do macho como jaqueta


de couro ou uniforme militar são tão fortes que ainda sobrevivam e continuam como temas
abordados por artistas contemporâneos. O colombiano Antonio Pulgarin se utiliza de bens
pessoais reais de seu pai e seu tio para questionar o desconforto gerado pela masculinidade
condicionada de sua cultura passada de geração em geração, como nesta peça acima (à
direita) da série Fragmentos do Masculino, criada há menos de três anos e que ainda carrega
os mesmos símbolos de virilidade de tempos atrás (Figura 22).

54
Fig. 23: Adolf Hitler com a cópia romana do Discóbolo de Míron, Library of
Congress/Corbis/VC, 1938; e Fig. 24: O Discóbolo como logotipo de academias de ginástica
atuais. Reprodução de internet.

As medidas do corpo dos estudos de anatomia moderna ajudaram à busca da perfeição


do corpo masculino. Não só um ideal de beleza, mas uma perfeição para uso político, mais
produtivo e, ainda, como fora tomado pelas ideologias nazista e fascista, para melhorar a raça
humana, uma vez que, em torno de 1900, com a persistência dos atributos viris, o uso político
do corpo clássico e perfeito serviu à estas ideologias. Uma das mais célebres estátuas da
antiguidade continua sendo a “Discóbolo de Míron” 26 (455 a.C.), elogiada como a
personificação do equilíbrio, força, beleza atlética e por simbolizar as grandes realizações da
civilização, virou garoto propaganda de Adolf Hitler, que comprou a cópia romana em 1938
(Figura 23). Nazistas e fascistas fizeram do homem sua pedra angular, e o discurso da
superioridade da raça ariana se valia, justamente, da legitimidade da cultura antiga e dos
arquétipos históricos de virilidade (CALLEN, 2018, p. 109). A Itália fascista e a Alemanha
nazista celebraram a virilidade louvando sua beleza, e o recurso do nu masculino se deu de
forma frequente na estatuária. O nu da escultura – livre do erotismo ou da pornografia –
poderia ser colocado no espaço público trazendo o cânone estético ao qual o homem deveria
corresponder.

A virilidade fascista e nazista exclui, portanto, qualquer elemento de feminilidade:


não somente a feminilidade das outras raças (judia, etíope), mas feminilidade em si,
assimilada a uma fraqueza incompatível com a definição do homem. Mas,
geralmente, ela exclui o estrangeiro, o alógeno. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 344)

26
Diskobólos, ou lançador de disco, é uma estátua do escultor grego Míron, que representa um atleta momentos
antes de lançar um disco, produzido em bronze, em torno de 455 a.C.

55
O projeto alemão pretendia fazer surgir uma nova virilidade, na qual à mulher cabia
apenas servir ao marido, e todas as antíteses supostas ao masculino deveriam ser excluídas.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 336). A feminilidade se encontrava,
portanto, ao lado do inimigo. Para os ideólogos nazistas, somente a raça nórdica era
completamente viril. E, assim como as mulheres, os judeus e os homossexuais
enfraqueceriam e amoleceriam o homem.

A perfeição, porém, tem o seu preço. Como figura do pensamento, engendra-se na


pureza. Mas, como figura do ser, depende da materialidade. Como se sabe, o método
nazista é o do corte e da eliminação. Só aquilo que é perfeito torna-se digno deste
mundo. Legitima-se, dessa maneira, a supressão do resto. Como não estamos mais
aqui falando de estátuas, pinturas, filmes ou livros, mas de seres humanos, o vínculo
entre arte e ciência se estabelece. Trata-se de eugenia, trata-se de ciência altamente
depurada, trata-se de uma racionalidade que impõe, tranquila e inexoravelmente, a
pureza genética. Não é preciso muito esforço para compreender que, dentro do atleta
admirável em sua perfeição, esconde-se o monstro. Porque ele é, em tudo, semelhante
ao modelo esculpido, menos num ponto: não é de pedra, mas de carnes. Sua
identificação à sublime estátua significa o avesso de qualquer postura humanista, já
que lhe falta a consciência de que é vulnerável e imperfeito. A dimensão humana se
oculta em nome de uma visível imagem.

Em verdade, o mestre do perfeito é o imperfeito. É o imperfeito que ensina. A utopia


do corpo, onde a perfeição se perfila no horizonte enquanto meta, não cessou de
sensibilizar as preocupações dos séculos 19 e 20. A ciência mostrou-se como o
instrumento por excelência para atingi-la; e a parábola de Frankenstein configura-se
como lição filosófica. A busca da perfeição corpórea, não como projeto de harmonia,
mas como plenitude do ser, incide sobre a crítica da própria ideia de perfeição. Ela
contém em si um caráter exclusivo, em evidência que se basta a si própria,
eliminando todo o resto. Numa prática coletiva, a celebração da pureza corpórea entra
em coerência com a utopia nazista. A eliminação do imperfeito pelo perfeito significa
a eliminação da diversidade do mundo, pressupondo a tirania. (COLI, 2002)27

O que nos chama a atenção é que, por mais distante temporalmente que possa parecer,
a temática do ideal físico da cultura grega se estende até hoje. A influência do Discóbolo
sobre a cultura, em especial do ocidente, ainda é grande nos nossos dias. É uma das imagens
mais publicadas na literatura sobre esportes, educação física e fisiculturismo e hoje, por mais
que tenha tido sua interpretação esvaziada e não carregue mais os ideais subjetivos de
perfeição moral da época grega, ainda é, hoje, um dos mais conhecidos ícones da cultura do
corpo (Figura 24). “A beleza do atleta grego obriga e suscita a emulação do homem alemão
contemporâneo: saído da mesma raça que seu ancestral grego, ele deve encarnar, dar carne
novamente à beleza antiga, conservada para a posteridade pela obra de arte.” (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 348).

27
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0206200204.htm>.

56
Estamos lidando aqui com um ideal de corpo ou raça, visando uma melhora física e
eugênica em escala nacional ou essa criação de um corpo ideal é uma questão de
subjetividade individual, um ideal mirado em super-heróis, em uma elite social
como era nos tempos greco-romanos? Eu acredito que ambos. Esses são dois lados
independentes de uma mesma moeda. Existe uma riqueza de evidências visuais, seja
na arte, fotografia ou em representações médicas que atestam uma fascinação com o
corpo masculino nu assim como se preocupa com sua condição física e status
estético. As questões-chave para a representação do corpo masculino são virilidade,
sexualidade e identidade de gênero que são inseparáveis de raça, classe e poder.
(CALLEN, 2018, p. 20)

1.6 De David de Michelangelo a David Beckham

“De Narciso, narcotizo-me” (Hudnilson Jr.).


Sobre o culto ao corpo viril na arte homoerótica, não podemos deixar de analisar as
imagens dos fotógrafos Robert Mapplethorpe e Alair Gomes. O fotógrafo carioca Alair
Gomes foi um dos maiores cultuadores do corpo nu masculino. Gomes reuniu, entre os anos
70 e 80, mais de 120 mil fotografias homoeróticas em seu apartamento. Alair celebrava o
homem, porém, não era qualquer homem. O personagem central de suas cenas era sempre
jovem em pleno vigor físico, de sunga, se exercitando nas praias do Rio de Janeiro. Gomes
conseguiu ver no nu masculino expressões para além da pornografia com seus modelos dentro
dos padrões clássicos.

Contudo, não se trata de garotos quaisquer. A beleza e a graça desses moços são
especificadas. Alair não fotografa crianças nem idosos, tampouco registra imagens
de pessoas com necessidades especiais, lateralmente avantajadas, capilar ou
altimetricamente desprivilegiadas e, muito menos, figuras efeminadas. É bem
verdade que ele não registra a presença de negros com a mesma ênfase – todavia,
isso implica outra questão, fora do escopo deste ensaio. Os corpos fotografados são
invariavelmente jovens, altos, esbeltos, atléticos, cabeludos, quase olímpicos. […] O
padrão de beleza recortado nessas fotografias é tipicamente aquele valorizado e
desejado no universo homoafetivo masculino, seja na arte escultórica e pictórica
greco-romana e renascentista, seja na arte homoerótica de desenhistas
contemporâneos do porte do alemão Ralf König ou do finlandês Touko Laaksonen
(Tom da Finlândia) e, principalmente, seja nas imagens que povoam o frenético
mercado pornográfico direcionado ao público homoafetivo masculino (LIMA, 2017,
p. 133-134)

Todavia, para além do seu famoso exercício voyeur na orla carioca, é mais
interessante para este projeto pontuar sobre A New Sentimental Journey (1993) (Figura 25)
durante viagem à Europa, e seus registros inusitados e ângulos pornográficos do nosso ícone
sagrado David de Michelangelo, de quem Gomes escancarou a sexualidade da estatuária, uma
vez protegida pelo belo humanista.

57
Fig. 25: A New Sentimental Journey, Alair Gomes, 1993.

Alair Gomes se disse maravilhado com a flexibilidade e a clareza evidente com que
seu botão do amor, seu pálio tumultuoso, sublinha vigorosamente o centro de seu
corpo em pé... uma pequena volta em torno do pedestal o ajuda a ajustar a cabeça
entre os pés de Davi, para ver melhor o seu zênite – na esperança de ascender às
abençoadas visões do templo solar de Davi... Entre os cartões postais de Davi
encontrados nos quiosques de Florença, nenhum o representa sob esse ângulo, único,
além de outros fotógrafos de revistas masculinas americanas, ditas pornográficas, a
tirar fotos de contra plano entre as pernas de um belo efebo, de um belo homem...
Suas nádegas salientes, que se sobressaem ao arredondado de suas coxas vistas por
trás, são perfeitamente lunares, mesmo em seu esplendor – no cruzamento das
convergências das coxas, elas compõem a forma do templo isolado. As palle (bolas)
se tornam um coração firmemente encravado... e a ponta do seu sexo de amor se
sobressai exatamente na cúspide do coração.... o cuidado que Michelangelo não podia
dedicar à representação da ereção de Davi, transparece, porém, na amorosa atenção e
minúcia que dedicou às zonas mais sagradas da mais sagrada figura: a intumescência
das palle corresponde à possibilidade de turgidez, a ideia mesma de ereção. (GOMES,
2009, p. 45)

Já o fotógrafo americano Robert Mapplethorpe, conhecido por suas fotografias de nu


masculino de teor ultrassexual que escandalizou a classe artística dos anos 80, recorria a
estratégias formais de composição e ao estúdio. Assim, seu classicismo se sobrepôs na
imagem, muitas vezes neutralizando o pornográfico e prevalecendo em evidência o erótico ou
apenas as questões estéticas do belo. (VICENTE, 2012, p. 199). Dessa forma, ao encenar o
clássico, como neste retrato de Thomas (Figura 26) que remete à estatuária greco-romana,
Mapplethorpe conseguiu, no conjunto da sua obra, trazer a cultura marginal, como o
sadomasoquismo e o homoerotismo, para o centro da arte contemporânea.
58
Fig. 26: Thomas, Robert Mapplethorpe, 1986.

Tanto Gomes quanto Mapplethorpe registraram, cada um a sua maneira, a nudez


masculina em corpos erotizados e sexualizados. Contudo, ainda que esses corpos estivessem
em um lugar seminal de objeto de desejo e os trabalhos fossem contestadores em sua época,
não podemos deixar de apontar que são corpos masculinos idealizados e exaltados em sua
grandiosidade máscula. A arte, aqui, ainda é utilizada enquanto apologia do corpo ideal e
sobrevivência do mito de perfeição de David, de quem é a imagem remanescente em ambos
trabalhos.

No caso de Mapplethorpe, é óbvio que assim seja: todo o seu trabalho é uma ode à
sexualidade vivida no masculino e à identidade do próprio artista. Mas, no caso do
nu masculino do jovem David – no original exposto na Academia de Florença, ou na
sua cópia, visível aos milhares de turistas que todos os dias passam pela Piazza da
Signoria da mesma cidade, ou na sua reprodução maciça em postais e souvenirs –,
esta apropriação enquanto símbolo da cultura “gay” não é assim tão óbvia. É mais
fácil colocar o David num cânone de escultura, grega, romana, ou renascentista,
onde o nu responde a determinadas expectativas estéticas esvaziadas de erotismo,
reconhecíveis ao olhar da maior parte do observadores e onde os representados estão
distantes no tempo, do que fazê-lo com muitos dos nus masculinos de
Mapplethorpe. (VICENTE, 2012, p. 199)

59
Fig. 27: Sem título, Hudinilson Jr., 1980/2009.

É muito impressionante notar que nos anos 2000, David de Michelangelo ainda
sobreviva como o eleito dos nossos artistas para representar o ideal de beleza masculina como
vemos nas colagens de Hudinilson Jr. (Figura 27). O artista paulistano Hudinilson Jr. também
tinha fascínio pelo corpo masculino e sua jovialidade e perfeição. Na obra de Hudinilson, a
beleza não estava no aspecto formal do trabalho, mas, sim, na nudez masculina, ou na beleza
entre dois homens fazendo sexo, frequentemente escondida pela sociedade machista,
acostumada apenas a enaltecer de todas as formas o corpo feminino, vulgarizando-o até torná-
lo mercadoria. Inspirado pelo mito de Narciso, trabalhava com uma estética considerada
marginal para o sistema de arte vigente, com seus famosos cadernos, recortes de revista e
xerox do próprio corpo. Em suas colagens, Hudinilson pregava, justamente, o resgate da
vulgaridade, dando novo sentido a essas imagens e levando-as a um público que não teria
acesso a esse material homossexual. (RESENDE, 2016, p. 123). Mas o que buscava, ainda,
era a retratação de um homem de proporções físicas perfeitas. Um adorador da imagem de si
mesmo e propagador de um ideal físico perfeito.

Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um
reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica estático
diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore
de Paros. Deitado no chão, contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de
Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que
cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio.
Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva.
(OVÍDIO, 1992, p. 59)

60
Fig. 28: Calvin Klein underwear, anúncio de 1999; e Fig. 29: O jogador inglês David Beckham em
campanha para H&M, anúncio de 2012.

A força do nosso herói David de Michelangelo enquanto representante de um ideal


físico extrapola o campo da arte e ressoa ainda hoje na cultura de massa ou na publicidade. Os
famosos anúncios de cuecas Calvin Klein, inaugurados na década de 90, também representam
a estetização do ideal do corpo musculoso, remanescente das esculturas gregas, abdômen
esculpido, peito depilado, que apesar de sensuais, não ofendem os valores normatizados da
história falocrata desacostumados do lugar de objeto ou, porque não afirmar que, quinhentos
anos depois, são uma releitura da própria imagem de David (Figura 28).

Imagens publicitárias se utilizam frequentemente de esculturas ou pinturas para


emprestar dignidade ou autoridade a suas mensagens [...] Todavia, não é só no nível
da exata correspondência pictórica que a continuidade é importante: é no nível
conjunto de signos usado. (BERGER, 1999, p. 137-140)

Há uma noção de beleza e sucesso associada à imagem do físico controlado e


disciplinado que se difunde na publicidade. Para o corpo enquanto mercadoria, normalmente
não existem imperfeições, doenças, falhas, e se estabelece um modelo ideal de exposição
corpórea, belo, definido, saudável e produtivo. Assim como o corpo feminino tem sido objeto
constante de especulação do mercado publicitário com ênfase no aspeto físico e da
sexualidade, o masculino tem sido alvo de um crescente processo semelhante. O body-
building se constituiu como uma das maiores manifestações da aparência viril, mas, enquanto
uma representação ideológica, é produzida por uma indústria e um mercado da boa forma.

61
Conforme sugere Goldenberg (2002), nessa cultura que classifica, hierarquiza e
julga a partir da boa forma física, não basta ser magra(o). É preciso construir um
corpo firme, musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento ou moleza,
que significa falta de investimento em si. Nesse processo de responsabilização
pessoal pelo próprio corpo, ressalta Goldenberg, a mídia e a publicidade têm papel
fundamental. O corpo virou “objeto de consumo” e a publicidade, que antes só
chamava a atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje serve,
especialmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto
próprio: o consumidor, eternamente insatisfeito com a aparência. (SILVA, 2005, p.
47)

Entretanto, é pertinente destacar o crescente narcisismo social e a necessidade de se


enquadrar formalmente pelo discurso da disciplina do corpo. O homem, na atualidade, deixa-
se representar, como é o caso das cuecas Calvin Klein, mas a intenção não é apenas vender as
roupas íntimas e, sim, gerar uma sensação, um resultado, um estatuto de virilidade através do
seu corpo esculpido (JANUARIO; CASCAIS, 2012, p. 142). A musculatura definida também
é um produto social. Como se um corpo de homem, musculoso, não estivesse, jamais,
verdadeiramente nu.

Ao findar do século, os ditames de uma cultura do consumo e da mídia tinham


aprisionado homens e mulheres num mundo em que estar em evidência era mais
importante que construir, onde a representação superava a produção, e o que contava
eram as aparências. Isso não foi bom para ninguém, de nenhum dos sexos, mas pelo
menos a “feminilidade” se encaixava mais facilmente na nova ética – o tipo de
feminilidade que fosse a continuação da suposta “vaidade” feminina que as
mulheres um dia foram relegadas. Se este era ou não o único papel que elas
desejavam – e, como o sucesso do movimento das mulheres deixou excessivamente
claro, a maioria não concordava com isso – ele, continuava sendo, para elas, um
papel familiar com regras familiares, privilégios e deveres. As mulheres podiam se
consolar com a garantia que, por mais humilhante que fosse a sua objetificação, pelo
menos a sua identidade sexual não estava ameaçada. A sociedade podia desprezar
uma mulher fútil, porém jamais questionaria a sua feminilidade, pelo contrário, o
próprio fato de se olhar no espelho confirmava que era uma mulher. Mas o que
significaria ser homem neste novo reino? Narciso não foi celebrado por sua
virilidade. Haveria um caminho para a masculinidade através do espelho? O que a
masculinidade significaria numa cultura da exibição? (FALUDI, 2006, p. 445)

O esporte sempre foi um delineador de virilidade e, ainda no século XXI, continua a


ser de suma importância para a veiculação do ideal de masculinidade. Sua disseminação como
um dos principais espetáculos de atividade ou lazer transformou-se em vitrine para a
aclamação dos protótipos do macho ideal e fornecem espaços públicos para que os homens
possam projetar sua imagem heroica (OLIVEIRA, 2004, p. 64). Na Figura 29, acima à
direita, o nosso David, não o de Michelangelo, mas, desta vez, o jogador de futebol inglês
David Beckham é quem inaugura um novo movimento da imagem masculina: o

62
metrossexual.28 Este termo foi criado para definir um novo tipo de consumidor masculino:
vaidoso, morador da metrópole, com alto poder aquisitivo e hábitos de consumo que
envolvem desde gastronomia a roupas de grife e tratamentos de beleza.
Com a invenção do termo metrossexual, que os exime de qualquer conotação
homossexual, os homens sentiram-se livres para comprarem tudo o que sempre sonharam
secretamente em seus devaneios antes considerados femininos (GARCIA, 2004, p. 207).
Assim, este homem ganhou a liberdade de explorar vaidosamente seu corpo atlético e manter
sua virilidade nem um pouco abalada. A metrossexualidade apropria-se do sistema
hegemônico, aparentemente heterossexual, branco, de classe alta e mantém, mesmo através da
mercantilização do corpo masculino, o status quo de um corpo a ser desejado, um corpo ideal
a ser contemplado. O metrossexual coloca-se como objeto do próprio desejo, de forma
extremamente narcisista.

Nunca o modelo valorizado do desportista fora tão transformado. David Beckham,


eleito em 2002 o homem “mais elegante e sexy da Inglaterra”, introduz igualmente
uma nova imagem. A figura do desportista compacto e forte foi substituída com ele
pela imagem do desportista sofisticado, aquele cuja doçura singular, cuja aprência
tão cuidada que chega ao refinamento, pode associar-se à determinação e à
brutalidade do jogo. Autor de uma “mestiçagem” totalmente nova, descrito como
estando a “meio caminho entre um macho man e o efebo preso a seu espelho”,
David Beckham é igualmente lembrado por algumas enquetes como sendo o
desportista que deslocou os “códigos da virilidade”. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 295)

Crescer com esse tipo de representação de um ideal de corpo cria expectativas irreais
de perfeição e virilidade ainda nos dias atuais. Assim, o artista Ricardo Sfeir começou, este
ano, via rede social Instagram, uma campanha para promover a diversidade dos corpos como
resposta à propaganda das cuecas Calvin Klein (Figura 30), que permanece no imaginário
masculino.

28
O termo foi utilizado pela primeira vez pelo escritor e jornalista inglês Mark Simpson, em novembro de 1994,
no jornal inglês The Independent.

63
Fig. 30: reprodução de Instagram, @ricardosfeir, 2020.

Outros artistas contemporâneos criticam a idealização heroica vinda do esporte, ou do


futebol, principalmente. A dupla francesa Pierre et Gilles conhecida por misturar elementos
da cultura pop com ícones religiosos, mitológicos, do mundo da publicidade e da cultura gay,
brinca com o heroísmo aclamado do futebol na obra Vive la France, e causou polêmica, em
2006, ano de Copa do Mundo, ao expor três jogadores de futebol nus, vestindo apenas meias e
chuteiras – um negro, um árabe e um branco – representando a diversidade social e racial na
França com cores fazendo alusão à bandeira do país (Figura 31).

A imbricação entre mercado, masculinidade e esportes pode ser auferida a partir de


alguns fatos típicos da civilização contemporânea. A publicidade, por exemplo,
dirigida à venda de acessórios esportivos, normalmente explora a vinculação das
características dos produtos aos atributos reconhecidos pelo senso comum como
essencialmente masculinos. Quando busca tornar viril um certo produto, tal como
desodorante, loção de barbear, cigarros ou bebidas, apela-se pra ambientes ou
símbolos masculinos associados às atividades esportivas. (OLIVEIRA, 2004, p. 65)

64
Fig. 31: Vive la France, Pierre et Gilles, 2006.

Em 2004, a artista inglesa Sam Taylor-Wood, fez o filme “David”29, que mostrava 67
minutos não editados do jogador-celebridade Beckham como nunca visto antes, dormindo.
Taylor-Wood é uma artista inglesa que pretendeu, assim, mostrar o lado mais vulnerável do
novo ícone. Um raro aspeto intimista do corpo masculino deitado em contraposição às
verticais posturas heroicas clássicas, ou o belo adormecido que nos permite aludir a todo um
gênero cansado de obedecer às regras viris (Figura 32).

Fig. 32: Frame de “David”, Sam Taylor-Wood, 2004; e Fig. 33: Still de Sleep, Andy Warhol, 1963.

29
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EgplHs4WynA>.

65
Fig. 34: sem título (da série Sex Parts & Torsos), Andy Warhol, 1977.

Não podemos deixar de citar que Taylor-Wood prestou uma clara homenagem ao
filme Sleep30 (1963) (Figura 33) do artista norte-americano Andy Warhol – uma de suas
primeiras experiências de vídeo – que também consistia, simplesmente, em um plano-
sequência de John Giorno, seu amante na época, dormindo por cinco horas e vinte minutos.
Para Warhol, o nu masculino sempre foi tema principal. Com seus nus fragmentados,
cabeças, torsos ou pênis fotografados separadamente, Warhol criou uma linguagem própria.
Entre os anos 60 e 80, ao misturar referências da história da arte com publicidade, também
criou desenhos magistrais de nus masculinos, detalhes de pênis e outras partes íntimas em
várias poses, principalmente de celebridades. Warhol criou sua interpretação contemporânea,
sexualizada do corpo masculino, mas ainda referente ao nu clássico ideal: homens com
musculatura bem definidas, rijos, tórax largos, de nádegas arredondadas, que respondiam aos
interesses da arte homoerótica da época, como pode ser visto na série Torsos (Figura 34).

Os Torsos, com seus corpos bem-definidos, sem cabeças nem pernas, em descanso e
em movimento, ecoam fragmentos da antiguidade. O nome que o artista deu para
estas pinturas é significativo neste contexto, porque 'torso' é um termo da arte
histórica tradicional. Mas Warhol definiu o termo livremente, enfocando em
segmentos do corpo de tamanhos diferentes, desde os ombros até os joelhos,
ressaltando a genitália, as nádegas e o físico de suas figuras. Este enfoque dos
Torsos os relaciona com a erótica gay, cujos exemplos o artista colecionou, e aos
corpos masculinos perfeitamente esculpidos, que eram o ideal do cultivo ao corpo na
30
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KaiEM2lUoZg>.

66
década de 70. Vistos lado a lado, principalmente nos trabalhos em escala mural de
múltiplas imagens, os Torsos de Warhol parecem clones do corpo ideal (como os
corpos verdadeiros esculpidos em ginásios que acabam parecendo todos iguais)31.

1.7 Cultura visual da masculinidade

W.J.T. Mitchell (2002, p. 170-171), também defende que a Cultura Visual surge
quando compreendemos que experimentamos o visual por meio da cultura, por meio
de construções simbólicas, como “um sistema de códigos que interpõem um véu
ideológico entre nós e o mundo real”. Assim, os processos que constroem as
visualidades que se manifestam como práticas da cultura visual resultam de
aprendizados durante o curso de nossa vida social. Portanto, pensar o contexto
histórico e local no qual estamos inseridos como parte de um universo cultural
torna-se indispensável para qualquer análise que almeje aprofundar-se na
compreensão de experiências visuais. (SÉRVIO, 2014, p. 199)

É preciso perceber de que forma as imagens, através de interesses específicos, são


produzidas, circuladas ou consumidas com os mais diversos objetivos – sejam políticos,
econômicos ou culturais. Através da nossa compreensão simbólica e práticas de olhar, é
fundamental compreendermos o discurso que destilam as imagens de corpos masculinos e
como elas se comportam em diferentes aspectos sociais, não apenas no âmbito da história da
arte, mas também na cultura visual como um todo: televisão, cinema, publicidade ou internet,
ou mídia em geral. É necessário considerar o valor das imagens, seus significados desde a
produção à recepção, assumindo que significados são sempre construídos, sempre mutantes e
por isso é preciso pensá-los nos contextos históricos em que estão inseridos.

Não se pode, no entanto, perder de vista a eficácia do estereótipo construído e/ou


mantido pelas diversas instâncias de representação simbólica da sociedade, através
de seus produtos e veículos: mitos, narrativas, slogans, ideais, caricaturas etc. Todo
este conjunto de elementos simbólicos auxilia na modelação da própria "face
social", constituindo indivíduos à sua imagem e semelhança para que eles possam
reproduzir a própria sociedade que os fabrica. (OLIVEIRA, 1998, p.15)

Se quisermos compreender melhor a sociedade na qual vivemos, devemos procurar


entender, sem dúvida, também a forma como consumimos. Os meios de comunicação e a
publicidade sempre incitaram estereótipos como produto e, com isso, delimitaram padrões de
comportamentos sociais, padronizaram modelos de masculinidade ou feminilidade, muitas
vezes engessados e preconceituosos, e reproduziram ideais de dominação entre os gêneros. É
preciso compreender como os corpos, enquanto produtos, adquirem valor e transformam-se
em representações.

31
Disponível em: < http://www.23bienal.org.br/especial/pewa.htm>.

67
A mídia atua na construção do imaginário coletivo ao produzir imagens simbólicas e
intermediar a relação entre os leitores e a realidade. Nas sociedades ocidentais atuais,
os indivíduos, por meio da leitura dos textos midiáticos a que estão expostos o tempo
todo, vão tecendo os fios da construção de sua identidade, incorporando sentidos e
representações presentes no cotidiano. Tais discursos produzem efeitos de sentido
que influenciam profundamente muitos aspectos da vida diária. (GHILARDI-
LUCENA, 2012)32

As imagens abaixo (Figura 35), por exemplo, são dois anúncios publicitários da marca
americana American Apparel para o mesmo produto, uma camisa de flanela unissex. As
propagandas são uma clara ilustração das diferenças nas representações dos corpos de homens
e mulheres. O corpo feminino seminu, submisso aos olhos do espectador se contrapõe ao
corpo do homem vestido, não sexualizado, desafiando a câmera com seu olhar, projetando
uma imagem de autocontrole. Ela está para ser olhada, dominada, e ele para identificar-se
com o espectador. Ele vende a camisa que veste, ela, quase sem camisa, vende uma fantasia
onde o produto é o menos importante. Essa desumanização é percebida frequentemente nas
propagandas produzidas para o homem e que retratam o feminino enquanto objeto sexual.
Nessas propagandas, as mulheres são observadas como objeto decorativo e atrativo para o
olhar masculino, fato que não se percebe na autoimagem que o homem cria a partir da
exploração do corpo masculino para seu próprio consumo.

Fig. 35: Anúncios de camisa unissex, de American Apparel , 201333.

32
Disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/redisco/artic le/viewFile/900/819>).
33
Disponível em: <https://cmst254.wordpress.com/2015/04/08/kimberly/>.

68
Fig. 36: 8 de junio, las modelos libran, Alicia Framis, 2006.

“Escolha uma imagem e transforme a mulher num homem. Em seguida observe a


violência que essa transformação faz. Não à imagem, mas às expectativas de um possível
espectador.” (BERGER, 1999, p. 66). É assim que a performance 8 de junio, las modelos
libran (algo traduzido como “8 de junho, as modelos tiram folga”) da artista espanhola Alicia
Framis (Figura 36) nos faz sentir. Framis inverte a lógica do mercado publicitário e denuncia,
justamente, a exploração da imagens das mulheres no mundo da moda. Ela contratou apenas
homens que desfilaram completamente nus carregando apenas a bolsa a ser divulgada pela
marca. As modelos mulheres puderam tirar o dia de folga, exacerbando, assim, a estranheza
ou a violência de um olhar desacostumado ao vermos o corpo masculino no lugar inverso
historicamente de homem objeto, seja na moda ou publicidade.
Contudo, mesmo quando há uma tentativa editorial de colocar os homens no (pseudo)
lugar do objeto de desejo do público feminino e uma suposta inversão de valores de
objetificação do macho em ensaios fotográficos nomeadamente “sensuais”, os padrões se
repetem, como é o caso dos ensaios da revista direcionada para o consumo feminino, Trip
para Mulheres (Figura 37). Com enfoque conferido aos braços torneados, abdômen sarado,
tórax realçado, ausência de gordura, nota-se, ainda nesta década, a repetição do mesmo

69
biotipo masculino clássico. Não é necessário muito esforço para interpretar as demais
circunstâncias que se manifestam aqui. Em primeiro lugar, a existência de apenas ensaios
masculinos já é, por si só, um índice da heterossexualidade normativa feminina nesta revista.
Em segundo lugar, ensaios discretos e tímidos concentram-se nas partes superiores do corpo
ou de cueca, pois ainda é problemático mostrar o pênis enquanto objeto sexual. E, por fim,
lança sobre as mulheres um olhar fixado, como se a mulher ainda quisesse projetar nesses
corpos, o namorado ou marido e não fossem autorizadas enquanto seres sexualmente ativos a
ver/desejar/consumir o órgão sexual do sujeito.

Ela quer ver o corpo mas quer ver o corpo de uma forma mais sutil, menos explícita e
em situações que ela possa fantasiar que é o namorado, o marido dela. Se comparada
a um homem, a mulher dá mais importância a ideais românticos como companhia,
respeito, gentileza e maturidade. O texto do ensaio sensual da Tpm é geralmente
maior, uma entrevista maior que cobre principalmente relacionamentos do homem
com mulheres, família, trabalho e sexualidade. As entrevistas atreladas aos ensaios
sensuais lidas corroboram essa hipótese. Os temas mais frequentes foram o sucesso
profissional (cinema, música, teatro, literatura) e a família (nos papéis de marido e de
pai, sempre fiel e bondoso). (OGASSAWARA, 2007)34

Fig. 37: O modelo Cássio Reis posa sensual, Revista TPM, junho de 2010.

As cenas de nudez nas revistas também têm pouco a ver com a experiência da
verdade. As fotografias nunca mostram pessoas idosas ou obesas em qualquer situação
erótica. Há uma barreira entre o real e a sua representação. Elas permitem às pessoas olharem
34
Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R04511.pdf>.

70
o que for, mas sem causar desconforto no público. O que as revistas – sejam de homens nus,
mulheres nuas ou de moda – divulgam é a jovialidade que todos parecem querer. O público
acredita que está diante de um deus da beleza, enquanto este, de fato, não passa de um
resultado de efeitos visuais propiciados por um tratamento técnico de maquiagem,
iluminação, vestuário, etc. Há um apelo para que todos os corpos sejam belos, sensuais e
desejáveis. Além disso, podemos afirmar que as revistas são responsáveis pela elaboração de
um modelo de corpo e também o adestramento de um olhar marcados pelo pensamento
binário acerca das definições do masculino ou feminino (SILVA, 2015, p. 13). Fotografias do
corpo masculino nu só serão mesmo interessantes à medida que puderem reinscrever novas
fronteiras à corporalidade masculina pública. No entanto, os critérios para a escolha das fotos
das revistas ainda parecem ser impostos pelos limites do que é socialmente hegemônico ou
pelo valor visual do que é socialmente construído. Há, no mercado editorial, uma total
omissão em relação às imensas possibilidades de inclinações eróticas ou aparências físicas
tidas como inadequados (SILVA, 2015, p. 131).

Os meios de comunicação, além de informativos, são também socializadores.


Entretanto, os conteúdo são produzidos, transmitidos e absorvidos de maneira
bastante distinta. As estruturas econômicas e sociais e a cultura local influenciam
esse processo. Além disso, as informações fornecidas pelos meios são também
acrescidas pelas conversas interpessoais repletas de significados e de símbolos que,
em conjunto, contém e constroem o pensamento individual e social com as
representações sociais. (SILVA, 2015, p. 33)

1.8 O Homem de Marlboro não morreu

A imagem do corpo masculino viril como objeto de identificação e admiração serviu


de veículo estético por séculos de forma a reforçar a heteronormatividade que se manteve
como parâmetro normativo nas relações da sociedade.
O Homem de Marlboro, conforme comentado anteriormente no subcapítulo 1.3
(Figura 9), ícone da geração das décadas de 60 e 70 e modelo inquestionável do ideal de
macho, apoiado nos personagens dos filmes de western, não só rendeu bilhões para a indústria
do tabaco como marcou gerações. O modelo de homem rústico, livre, em contato com a
natureza selvagem, com instrumentos para domar ou montar cavalos, vestidos com roupas de
couro e jeans, usando chapéu de cowboy americano, sempre fumando ou acendendo um
cigarro. Geralmente, as imagens da campanha mostravam homens em exercício de força e, na
maioria das vezes, sozinhos e independentes. Os corpos são estruturados, fortes, cuja

71
virilidade é sugerida pelas posições em que são fotografados e, literalmente, com as rédeas em
suas mãos. O Homem de Marlboro e sua excessiva masculinidade garantiria ao consumidor a
certeza de sua própria heterossexualidade dominante.

Fig. 38: Esnar Ribeiro em G Magazine #35, Bauer Studio/G magazine, 2000.

O caubói encarna todos os estereótipos masculinos e o western conta sempre a mesma


história, de uma perseguição incessante dos homens, em busca da sua virilidade. O
colt, o álcool e o cavalo são acessórios obrigatórios, e as mulheres desempenham
papéis secundários. (BADINTER, 1993, p. 135)

É, todavia, esse clichê, essa construção imagética dos anos 70, que autorizou o
cowboy brasileiro Esnar Ribeiro a posar nu para a G Magazine35, já nos anos 2000, conforme
a imagem (Figura 38) acima; mas não completamente nu, era o personagem do peão macho
viril que estava lá, depilado e banhado de óleo. O nu masculino ainda estava vestido dos
ideais e álibis do domínio falocêntrico.

Na revista, os corpos aparecem depilados, configurando o que Santaella (2005)


chama de “corpo homogeneizado” como lugar de produção de signos. São os
mesmo olhares sob o mesmo tipo de maquiagem, o mesmo tamanho de sorrisos, as
mesmas poses, os mesmos pelos em lugares semelhantes. (SILVA, 2015, p. 130)

35
A G Magazine, lançada em 1997, foi considerada a maior publicação do Brasil destinada ao público gay
devido à estratégia de convidar artistas, jogadores de futebol e modelos famosos para posarem nus, com tiragens
médias de 90 mil exemplares/mês.

72
Ou seja, como falamos anteriormente, a masculinidade hegemônica é, justamente,
quando existe correspondência entre esse modelo de corpo, os ideais culturais e a dominação
masculina. Podemos afirmar que o corpo masculino representado nas revistas de nu
masculino é ainda uma construção sob a própria ótica masculina. São revistas para homens,
produzidas e consumidas na visão masculina: as poses, o enquadramento, o pênis sempre
volumoso. revelam que ainda há um padrão de nu específico para o corpo masculino, sempre
ativo e apolíneo. “As imagens mostram corpos perfeitos, masculinos, fortes, em que o pênis
em ereção relaciona-se com aquilo que Bourdieu (2003) chama de “topologia do corpo
socializado”, em que movimentos e deslocamentos são revestidos de significação social”.
(SILVA, 2015, p. 132).

As fotografias também indicam que o padrão estético dos homens tende a valorizar
muito os braços e o tórax como elementos de atratividade, por isso, a publicação
explora esse aspecto. Os braços estendidos indicam desejo sexual, valorizam
músculos e mostram axilas. O tórax salientado mostra orgulho e superioridade. Os
ombros largos em relação ao quadril relativamente estreito são características que já
estiveram presentes em figurações artísticas de heróis gregos. Apolo e Dionísio são
sempre apresentados com ombros largos... As imagens mostram corpos de aparência
perfeita. São corpos sem poros, nem excreção, sempre jovens. Por isso aparecem
depilados envolvidos em óleo que ressalta o bronzeado da pele morena. As coxas são
fortes, as nádegas parecem firmes; a barriga é plana, as costas são largas e fortes.
(SILVA, 2015, p. 127 e 130)

Se faz, portanto, extremamente relevante a percepção dos mecanismos de dominação e


também o reconhecimento da sobrevivência dos antigos ícones. Se David de Michelangelo
permaneceu após 500 anos enquanto referência máxima da beleza masculina desde os
anúncios de cueca à arte contemporânea, parece que o chapéu do nosso Homem de Marlboro
também se manteve no imaginário masculino enquanto afirmação do poder viril.

73
Fig. 39: O deputado estadual Amauri Ribeiro (PRP/GO) em sua posse, 01/02/2019.36

Segue como exemplo, na Figura 39, acima, o deputado estadual Amauri Ribeiro
(PRP/GO), que se recusou a retirar o apetrecho durante solenidade de posse (em 01/02/2019)
na Assembleia Legislativa de Goiás, quebrando o protocolo interno da casa. Ainda no melhor
estilo coronel do século XIX, manteve a jovem esposa sentada em seu colo. O site do jornal
americano The Dallas Morning News, edição de fevereiro de 2018, fez um curioso
levantamento histórico (Figura 40) de diversos presidentes americanos que se utilizaram do
chapéu de cowboy, o elemento clássico viril desde os anos 60, que ainda funciona na
sustentação (ou reconstrução) da identidade masculina e do herói branco, másculo, corajoso,
não domesticado, livre das fronteiras e das limitações do espaço urbano.
Ainda que tenham sido ressignificadas, as metáforas do mito do cowboy continuam
funcionando para responder algumas questões do presente.

O mito do cowboy faz parte de um projeto para se compreender o avanço da fronteira


e a conquista do oeste no final do século XIX, quando os Estados Unidos se firmam
como uma sociedade urbano-industrial. Mas, durante o século XX, o cowboy se
transformou de acordo com as mudanças da própria sociedade. No cinema, o cowboy
passou de um herói inquestionável, símbolo de um passado glorioso da nação, para
um herói deformado e obsoleto, racista e violento. Cada uma dessas mudanças
dialogando com as questões mais pungentes da sociedade estadunidense. Até hoje, o
mito do cowboy é evocado em disputas por projetos políticos, culturais, sociais,
econômicos e diplomáticos. (REIS, 2018, p. 127)

36
Disponível em: <www.goiás24horas.com.br>.

74
Fig. 40: John F. Kennedy, em 1960; Lyndon B. Johnson , em 1972; Jimmy Carter, em 1980; Ronald Reagan ao
lado do ex-presidente russo Mikhail Gorbachev, em 1992; George H.W. Bush, em 1988;
Bill Clinton, em 1996; George W. Bush, em 2002; Barack Obama, em 2016; Donald Trump, 2018.37

37
Disponível em: <https://www.dallasnews.com/life/texana/2017/07/18/wore-best-cowboy-hat-photo-ops-
presidential-tradition>.

75
CAPÍTULO 2
Novas representações na arte contemporânea

“Ainda mais da sua laia/ De raça tão específica/ Que acha que pode tudo na força de
Deus e glória da pica/ Já tava na cara que tava pra ser extinto/ Que não adiantava nada bancar
o machão se valendo de pinto”38.
O estudo da história da arte ajuda a compreender, justamente, a relação entre a
linguagem visual, valores estéticos e as ideologias dominantes nas diferentes épocas. Esse
estudo se faz ainda mais necessário ao considerar que muitas das convenções e tradições
representacionais do passado estabelecem, ainda, precedentes que influenciam a construção e
manipulação de imagens na contemporaneidade. Questionar as imagens do passado e entender
o contexto em que elas foram construídas contribui para a detecção de estereótipos baseados
nos preconceitos, e nos ajuda a evitar a repetição de fórmulas inadequadas.
Conforme exposto anteriormente, durante séculos, o nu masculino quando foi
propositalmente público, exposto em praças e monumentos, carregava significados políticos,
patrióticos, religiosos e morais para incentivar o espectador a identificar-se com ele. O nu
masculino sob o estigma do herói, mesmo exposto nos museus, não era visto da mesma
maneira que os nus femininos, considerados eróticos e sensuais. O nu masculino enquanto
objeto de desejo é ainda uma afirmação pouco comum na história da arte. Se as mulheres nuas
nas pinturas e fotografias foram intencionalmente representadas como objetos sexuais, a partir
da disposição dos seus corpos, gestos e olhares, o nu masculino sempre foi percebido como se
tratasse de algo universal, anatômico, um corpo não sexual. (BORDO; JAGGAR, (Org.),
1997, p. 84).
Trabalhamos, contudo, a partir da hipótese que um regime dominante de representação
construído pode, sim, ser contestado, e que certas imagens são, em si, disparadoras de novas
significações e possibilidades. Se o corpo nu masculino ainda sobrevive vestido dos ideais
falocêntricos, apresentaremos a seguir artistas que conseguiram inverter a lógica patriarcal
dominante, articularam posicionamentos contrários ao conservadorismo e propuseram novas
estéticas e estratégias subvertendo o processo de representação. Neste capítulo, analisaremos
imagens do corpo masculino que entendemos terem conseguido escapar dos tradicionais
códigos binários de representação, e pensar de que maneira a sociedade atual pode representar
este corpo longe dos ideais falocêntricos.

38
Trecho da canção Talento, de Linn da Quebrada.

76
2.1 Lugar de falo e lugar de fala39

Fig. 41: Torso/Ritmo, Anita Malfatti, 1915; e Fig. 42: Grande Nu, Georges Braque, 1907-1908.

Torso/Ritmo (Figura 41) da pintora paulistana Anita Malfatti é uma referência ao


Grande Nu de Georges Braque (Figura 42). Nessa obra de 1915, Malfatti propõe a
transformação do modelo feminino de Braque em um modelo masculino e retrata em carvão e
pastel um homem nu visto de costas, parecendo querer reforçar os movimentos do seu corpo e
ressaltar a anatomia humana, acentuando seus músculos.
A obra de Anita Malfatti, entretanto, foi considerada de uma sexualidade viril
ameaçadora para o Brasil do início do século XX. Além dos traços vigorosos e livres que
fugiam das normas acadêmicas, nessa época, uma artista mulher no Brasil não estava
autorizada a pintar o torso de um homem nu. Monteiro Lobato e os demais críticos da época
viram-se na constrangedora condição de homens olhando para outro homem sensualmente nu.
(BARROS, 2016, p. 51).

39
No Brasil, o termo “lugar de fala” foi popularizado pela filósofa Djamila Ribeiro em seu livro O que é lugar
de fala. (Belo Horizonte: Letramento, 2017). Segundo a autora, o lugar de fala permite ênfase ao lugar social
ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro das relações de poder, ou seja, às
condições sociais que autorizam ou negam o acesso de determinados grupos a lugares de cidadania ou poder.
Trata-se, portanto, do reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e constrangimentos que
atravessam os sujeitos pertencentes a determinado grupo social considerado inferior. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugar_de_fala>.

77
Após longa temporada estudando na Alemanha e Estados Unidos, a artista foi
criticada e o erotismo latente de sua pintura foi reduzido aos seus aspectos formais por se
filiar a “escolas rebeldes” da arte internacional e ir na direção contrária do compromisso com
a nacionalidade do Brasil modernista. Malfatti foi extremamente criticada, justamente por não
compreenderem como a artista podia deixar de lado a arte tradicional e construir sua própria
poética sem seguir os cânones impostos.

Aqueles desenhos nervosos eram (e são) a própria negação da ordem artística


tradicional. Ali, a verticalidade do corpo humano era contestada por diagonais
vigorosas, curvas sensuais e sombreado cheio de ímpeto. Tais instrumentos básicos
do desenho eram utilizados pela artista para exprimir uma sensação que se articulava
no próprio ato de contemplação/captação do próprio modelo vivo. Nenhuma
concessão ao gosto estabelecido; nenhum tributo pago à tradição. (CHIARELLI,
1999, p. 52)

Durante séculos, foi o olhar masculino que determinou como as mulheres eram
retratadas na arte. Talvez, a principal categoria da história da arte tenha sido, portanto, o nu
feminino. Este foi, por séculos, objeto do olhar do artista masculino e também do espectador
masculino. As mulheres nuas nas pinturas e fotografias foram intencionalmente representadas
como objetos sexuais, a partir da disposição dos seus corpos lânguidos, gestos e olhares
convidativos. As mulheres sempre ocuparam o lugar do observado, representado e desejado,
ou seja, o objeto passivo, enquanto os homens ocuparam o outro lado, o lado do sujeito ativo
(VICENTE, 2012, p. 198).

Se o nu masculino na representação artística – no David de Michelangelo ou nas


fotografias de Mapplethorpe – tem sido associado a um homoerotismo que
pressupõe o olhar de desejo masculino sobre o masculino, então será que existe
espaço para o desejo heterossexual feminino? Será que a mulher observadora pode
transformar a representação artística do masculino em objeto do seu desejo, ou este
é sempre recusado pela apropriação homossexual masculina implícita na
representação artística do homem erotizado? Será que há espaço para uma mulher
espectadora perante as representações do nu masculino, ou será que ela terá sempre
que assumir o papel de voyeur, de intrusa numa série de códigos visuais e sexuais
que não lhe são destinados? (VICENTE, 2012, p. 198)

O imaginário erótico relativo ao corpo masculino também foi todo esse tempo
construído pelo próprio homem e, assim, podemos perceber o ponto de vista do homem sobre
o seu próprio corpo e sobre o corpo da mulher. No entanto, paradigmaticamente, sabemos
menos como a mulher viu o corpo do homem. Há poucos estudos sobre mulheres que
abordaram o erotismo do corpo masculino.

78
Para elas (as feministas), os homens são o segundo sexo, e a virilidade uma questão
secundária. É, no entanto, possível fazer a história da crítica feminista da virilidade,
ainda que ela não esteja no cerne do pensamento feminista. Simone de Beauvoir não
deixa de lado esta questão, já que o seu projeto é demonstrar o caráter socialmente
construído das diferenças entre os sexos.[...] No final do século XX, uma outra
maneira de ver o gênero – que se torna o conceito central do pensamento feminista –
aparece: dissociando mais fortemente do que no passado o sexo e o gênero, assim
como o sexo e a sexualidade, um outro olhar se torna possível sobre a virilidade.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 117)

Apesar do pioneirismo de Anita Malfatti em inverter o corpo feminino nu enquanto


objeto de olhar por um sensual torso masculino em Torso/Ritmo, em 1915, nos orientaremos,
agora, a partir de obras em que a nudez masculina foi utilizada enquanto ferramenta explícita
de questionamento político, após os anos 1960-70, quando mulheres iniciaram um movimento
de conscientização feminista no campo das artes de forma institucional sobre a construção do
seu papel na história da arte, enquanto produtoras de linguagem. (BARROS, 2016, p. 45).
Segundo a pintora Eunice Golden em seu artigo The Male Nude in Women’s Art.
Dialectics of a Feminist Iconography, de 1981, “não há tradição voyeurística para mulheres”
(GOLDEN, 1981, p. 42). Será importante, portanto, nos debruçarmos sobre como a mulher,
nesse lugar inverso de observadora, transforma a representação do masculino erotizado em
objeto do seu desejo ou trabalha imageticamente com esta questão da desconstrução do falo
atrelado ao pênis.
Male gaze foi um termo cunhado pela cineasta Laura Mulvey em seu ensaio Visual
Pleasure and Narrative Cinema, da década de 1970, e se referia ao olhar masculino no
sentido que invocava a política sexual do olhar e acusava a maneira sexualizada de olhar que
capacitava os homens e objetivava as mulheres. Nesse gaze masculino, a mulher era
posicionada visualmente como objeto do desejo heterossexual. Como Mulvey escreveu, a
mulher como "espetáculo" e, o homem, "o portador do olhar".

Mais do que isso, eles, através da linguagem da arte, saturaram nossa cultura com
imagens femininas baseadas no conceito da supremacia masculina e da submissão
feminina, o poder do macho e a vulnerabilidade da fêmea – em resumo, enraizadas
nas experiências masculinas, instituições masculinas e valores masculinos.
(GOLDEN, 1981, p. 40)

Como vimos anteriormente, o nu masculino sempre foi percebido como a


representação de algo universal, apenas anatômico e não sexual. As imagens geralmente
apresentam um caráter representacional de alguma coisa e através de suas posturas e
gestualidades, classicamente transmitem potência física, sexual e, muitas vezes, evocam

79
religiosidade e política, além de se apresentarem sempre vigilantes e expressarem alguma
ação no espaço público ou papéis sociais. (BORDO; JAGGAR (Org.), 1997, p. 84).

A nudez de um homem sinaliza sua autonomia, nos diz que ele está no controle de
suas próprias ações e que ele é o mestre do seu próprio destino. A nudez de um corpo
feminino não tem nada a ver com autonomia e, pelo contrário, está associada à
passividade. O nu masculino pode ter implicações eróticas, mas que não interferem
com seu status como sujeito, o nu feminino é sobre beleza e erotismo. (LEOPOLD;
NATTER, (Org.), 2013, p. 40)

Nos anos 70, um movimento de mulheres começou a desafiar a negação do uso do


corpo masculino enquanto imagem sexualizada. Uma arte que explorava a sexualidade das
próprias mulheres a partir do uso de imagens masculinas pode ser realizada de forma mais
consciente, havendo assim uma revisão erotizada do corpo masculino. Quando as artistas
feministas olham para o corpo masculino enquanto objeto de desejo, quebram mais de um
tabu e invertem as relações de poder inerentes ao cânone tradicional das imagens. Com suas
próprias representações do corpo masculino erótico, elas questionam modelos pré-
determinados e abrem o discurso para novas opções de identidades sexuais.

Fig. 43: O banho turco, Jean-Auguste-Dominique Ingres, 1852-1859; e Fig. 44: O banho turco,
Sylvia Sleigh, 1976.

Nos anos 70, a artista inglesa Sylvia Sleigh lançava seu olhar feminino para o corpo
masculino pintando quadros nos quais ela invertia a tradicional posição da mulher enquanto
musa do pintor/espectador masculino, parodiando, por exemplo, conhecidas obras como O
banho turco, de Jean Auguste Dominique Ingres e sua fantasia de mulheres nuas em um
harém (1852-1859) (Figura 43). Em sua versão homônima da pintura (Figura 44), no lugar de

80
mulheres nuas, ela pintou seus amigos nus, ou conhecidos artistas e críticos de arte, colocando
as figuras masculinas no lugar erotizado antes reservado às mulheres. Não apenas os papéis
sexuais foram invertidos, mas sua pintura também trazia, propositalmente, certo realismo às
figuras, distantes do ideal da arte renascentista, como pelos do corpo ou detalhes da moda de
sua época, como jeans e chinelos, para identificar seus personagens.
Já a fotógrafa de origem neozelandesa Alexis Hunter passeava por NY ou Londres
fotografando homens trabalhando ou descansando nas ruas. Dessas excitantes perambulações,
surgiu o trabalho Object Series (Figura 45), em que o corpo masculino está assumidamente no
lugar de objeto sexual. Em uma das imagens dessa série, aparece o torso de um rapaz sem
camisa, em calças de couro, polegar casualmente no cinto, mão na altura do sexo, cigarro
aceso sobressaltado e fora de suas calças ainda podemos ver as antigas Torres Gêmeas do
World Trade Center destacando-se verticalmente no fundo como símbolos fálicos.

Fig. 45: Object series, Alexis Hunter, 1974-1975.

Se artistas mulheres eram historicamente invisíveis, amplamente tratadas como


incapazes, relegadas a mídias e formas menores de arte, Hunter – assumidamente uma
fotógrafa feminista a fim de pensar mudanças sociais – utilizou a fotografia para expressar
seus ideais políticos encontrando uma nova linguagem, invertendo o mecanismo e
fotografando homens, o que foi considerado transgressor para a época.
Acusada de ser sexista nos anos 70, Hunter questionou:

81
“O sexismo existe se você estiver em posição de olhar para uma pessoa e transformar
sua imagem em objeto. A história da arte fez isso com as mulheres. Como pode ser tirada uma
foto machista de um homem se são os homens que detêm o poder na sociedade?”40
Não consideraremos, portanto, este movimento como o oposto similar ao male gaze,
pois o que deveria ser chamado female gaze, não diria respeito a uma simples inversão de
papéis, e sim, sobre se ter as mesmas condições de produção e circulação em todo o sistema
de arte e em sociedade, o que em um mundo tradicionalmente masculino, não foi capaz de se
desenvolver a ponto de poder ser analisado.

Fig. 46: Landscape #160, Eunice Golden, sem data.

Eunice Golden é uma pintora feminista americana também conhecida por explorar a
sexualidade usando o nu masculino. Em seu artigo The Male Nude in Women’s Art. Dialectics
of a Feminist Iconography, de 1981, Golden se perguntava porque na época não haviam nus
masculinos na arte contemporânea (artistas feministas da época estavam mais concentradas na
autorrepresentação). Ela começou, então, a pintar a partir de modelos masculinos e criou uma
linguagem própria com suas centenas de “paisagens masculinas” (Figura 46) a fim de
questionar as instituições patriarcais. Diferente de muitas artistas feministas contemporâneas
– como Judy Chicago ou Miriam Schapiro, Golden não estava interessada em um feminismo
baseado na autorrepresentação, representando o corpo feminino.

Eu queria ir para além do autoerótico (apesar de simpatizar com aquelas mulheres


que tentavam reivindicar através de seus próprios corpos). Eu queria renegar a
maneira que os homens olharam para as mulheres. Com meu trabalho, eu queria

40
Disponível em: <https://www.nzherald.co.nz/entertainment/news/article.cfm?c_id=1501119&objectid=1043
2382>.

82
explorar minha experiência heterossexual assim como atacar o poderoso viés da arte
histórica que era contra o nu masculino como veículo para mulheres artistas. Eu usei
o tema das “paisagens masculinas” para retratar nosso bombardeio através do
imaginário fálico: desde a arquitetura e instituições autocráticas até à propaganda
masculina na mídia e publicidade. (GOLDEN, 1981, p. 41)

Fig. 47: À esquerda Compre maçãs, fotografia anônima, século XIX.


À direita, Compre minhas bananas, Linda Nochlin, 1972.

A historiadora da arte Linda Nochlin – conhecida por seu artigo Por que não houve
grandes artistas mulheres? (1971) que questionava justamente a falta de reconhecimento das
mulheres na arte, apesar da sua produção – criou uma fotografia encenada, intitulada Compre
minhas bananas (Figura 47). A imagem satirizou Compre maçãs, uma representação anônima
do século XIX de uma mulher nua segurando uma bandeja de maçãs sob os seios, que sob
uma forte tradição de ligar mulheres à comida e subserviência, convidava o espectador
masculino para o prazer das frutas e também sexual. Nochlin, a fim de inverter os papéis
sociais de gênero, criou um cenário onde substituiu a mulher por um homem nu segurando
uma bandeja de bananas abaixo de seus órgãos genitais, chamando atenção justamente para a
falta comparativa de objetificação no que se refere à sexualidade masculina.

No entanto, como todos sabemos, as coisas como estão, e como foram antes, nas
artes e em centenas de outras áreas, são estupidificantes, opressivas e
desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a boa sorte
de nascerem brancos, preferencialmente de classe média e, sobretudo, homens. A
culpa não é dos astros, dos nossos hormônios, dos nossos ciclos menstruais, dos

83
nossos espaços internos vazios, mas das instituições e da nossa educação – educação
interpretada para incluir tudo que acontece conosco desde o momento em que
entramos nesse mundo de símbolos, signos e sinais significativos. O milagre é, de
fato, que dadas as esmagadoras adversidades que as mulheres ou negros enfrentam,
que tantos deles tenham conseguido alcançar absoluta excelência em territórios de
prerrogativa masculina e branca como a ciência, a política e nas artes. (NOCHLIN,
1971, p. 19)

Fig. 48: Pick a dick, Guerrilla Girls, 2013.

O grupo de ativistas feministas Guerrilla Girls trata de forma bem humorada das
questões de gênero na arte, do privilégio masculino dentro e fora dos museus e faz
levantamentos estatísticos em museus no mundo todo sobre essa questão, denunciando
números absurdos como: menos de 5% de artistas são mulheres, mas 85% são de nu feminino
no Metropolitan Museum, em NY, por exemplo. Já o cartaz Pick a Dick (Figura 48) propõe a
avaliação de políticos do sexo masculino por categorias de misoginia, abuso sexual e
perversão de poder. O pôster está disponível on line para download gratuito41 e a intenção é
como a nossa: propagação máxima dessas imagens para desmistificação e também
banalização do corpo masculino.
Em 2018, foram levantados os seguintes dados42: menos de um terço de todas as
exposições individuais realizadas nos principais museus de arte contemporânea de Nova
York, desde 2007, são de mulheres. Apenas um quarto das exposições individuais nas galerias
de Nova York apresenta mulheres. As mulheres ficam atrás dos homens nas diretorias de
museus com orçamentos acima de US $ 15 milhões, ocupam apenas 24% das posições de
direção de museu de arte e ganham 71 centavos por cada dólar ganho por diretores do sexo
masculino. Somente 7% de toda a arte exibida no MoMA foi feita por mulheres. Se o recorde

41
Disponível em: <http://guerrillagirlsbroadband.com/projects/workplace/heads-state>.
42
Disponível em: <https://collections.tepapa.govt.nz/object/847720>.

84
de leilão de uma obra de um artista do sexo masculino como Picasso é U$ 179 milhões, o
recorde de uma artista do sexo feminino como Georgia O´Keeffe, é menos de um quarto desse
valor, U$ 44,4 milhões.

Fig. 49: Recriação de pirâmide de crânios, de Paul Cézanne (por volta de 1901),
da série Still Dick, Elizabeth Ubbe, 2018.

A fotojornalista sueca Elisabeth Ubbe criou a série Still Dick a fim de denunciar a
supervalorização dos homens sobre seus próprios pênis. A série (Figura 49) consiste na
recriação de diversos cenários de natureza morta (still life) copiadas de pintores famosos
como Cézanne, Van Gogh e Monet sempre com a inserção de forma aleatória de um pênis
como mais um objeto inanimado na cena. Com a banalização que Ubbe trata o membro
masculino como uma “natureza morta”, podemos também compreendê-las como uma crítica
ao protagonismo masculino na história da arte que apagou os nomes das artistas mulheres ao
longo dos séculos.
Nesse registro de Robert Mapplethorpe, em 1982 (Figura 50), a artista francesa Louise
Bourgeois posa com uma versão de sua obra Fillette (1968) debaixo do braço. A escultura é
um pênis de látex de 23 cm de comprimento e sete polegadas de circunferência que se chama
Fillette, o que, em francês, significa "garotinha indefesa". Como ela disse, uma vez, para a

85
New York Magazine: "Não tenho nada contra o pênis. É o portador."43; em uma óbvia
referência ao falo freudiano, o qual ela parece dominar como um bichano nessa imagem. E
podemos, ainda, ir além: a peça pendurada pode ser confundida com o torso do corpo de uma
mulher e, de uma maneira muito perspicaz e ambígua, representar o mito fálico encarnado no
próprio feminino.

A escultura é amarrada pela glande no teto da galeria, e pende tal qual uma carne de
caça que se prepara ou defuma. Castrado, esfolado, pendurado, seu nome
ridicularizado, o pênis deve esse tratamento apenas ao fato de ser o órgão do falo,
como a cabeça do rei decapitado é o chefe do poder. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 512)

Fig. 50: Louise de Bourgeois, Robert Mapplethorpe, 1982; e Fig. 51: Sem título, da série Fábrica Fallus,
Márcia X, 1992-1997.

Outra artista, a brasileira Márcia X, no início dos anos 90, realizava instalações e
performances que tinham, como principal estratégia, transformar objetos pornográficos em
objetos infantis e objetos infantis em objetos pornográficos, fundindo elementos que estão
situados nas convenções sociais e códigos morais em posições antagônicas. Fabrica Fallus
(Figura 51) é o nome da série de trabalhos em que eram utilizados pênis de plástico
comprados em sex shops e acoplados a todo tipo de enfeites femininos, apetrechos infantis e
religiosos. Muitas dessas peças são dotadas de movimento e som e passível de interação com
o público, de forma pueril. Através da desconstrução desses objetos, retirando-os da sua

43
Disponível em: <http://www.artnet.com/magazineus/features/saltz/the-heroic-louise-bourgeois6-4-10.asp>.

86
condição inicial, Márcia também desconstrói conceitos impregnados, ironizando o símbolo
máximo do poder e da masculinidade, o pênis ereto. O pênis, mesmo ereto, não é o falo, mas
apenas o seu representante imaginário.

Fig. 52: A origem do mundo, Gustave Courbet, 1866; e Fig. 53: A Origem da Guerra, Orlan, 1989.

Em A origem do mundo (Figura 52), o pintor francês Gustave Courbet (1819-1877)


pintou a genitália feminina de maneira realista. A pequena tela de 46 x 55 cm em que vê-se
um torso de uma mulher não identificada, seus seios, pernas afastadas, fartos pelos pubianos e
sua vagina rosada entreaberta chocou a sociedade, na época, ao contrariar a representação
idealizada do nu feminino. A artista francesa Orlan – conhecida por seu trabalho de bodyart e
quem traz, em seus trabalhos, questionamentos incessantes sobre o status do corpo na
sociedade e as pressões sociais, políticas e religiosas que ele sofre –, partindo do quadro de
Courbet, ao invés do sexo de uma mulher representado em pintura, reconstituiu a imagem
através de uma fotografia do torso de um homem nas mesmas proporções, pernas abertas e
pênis ereto, cru como Courbet, com o sexo masculino ereto, e a nomeou, significativamente,
de A Origem da Guerra (1989) (Figura 53). Ao contrário do poder de criação, seu trabalho
delega aos homens a carga da destrutividade e da violência, tomando, assim, uma posição
política de denúncia ao patriarcado.
No vídeo Picolés44 (1982-1984), a artista chilena Gloria Camiruaga grava close ups
de um grupo de meninas lambendo picolés enquanto oram a Ave Maria (Figura 54). Todas
repetem obsessivamente suas orações e lambem até descobrirem dentro do sorvete corpos de

44
Disponível em: <https://vimeo.com/221821919>.

87
soldados de plástico. No contexto da ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile (1973-
1990), o sensual e bem-humorado vídeo se torna um comentário crítico contundente. Ao
descobrirem os bonecos com as línguas, é como se as jovens criticassem a ordem de uma
sociedade militarizada, levando o contexto político ao contexto de um jogo erotizado. O vídeo
é filmado até que os picolés se acabam desvelando totalmente o palito-soldado e as línguas
tingidas das meninas registram a marca da ação. Essa impregnação pode ser compreendida
como a contaminação inevitável do regime patriarcal militar da época e, ao mesmo tempo,
como marca de uma dessacralização quase inocente pelo ato de chupá-los.

Fig. 54: Still do vídeo Picolés, Gloria Camiruaga, 1982-84.

Fig. 55: Comece o dia com um bom café da manhã juntos, da série Relacionamentos experimentais,
Pixy Liao, 2009.

88
No tema das relações, não é demais lembrar a pureza pop e lúdica do relacionamento
da artista Pixy Liao com o seu parceiro Moro Magario, com o qual tem produzido, nos
últimos 12 anos, autorretratos colaborativos e contorcendo de forma divertida a dinâmica de
poder nas relações heterossexuais. Nascida em Xangai e atualmente radicada no Brooklyn
(NY), Pixy Liao é exemplo de uma nova geração de artistas que testa os limites do olhar
feminino/masculino e atreve-se a desafiar padrões de relacionamento. Partindo da sua relação
com o namorado mais jovem, Liao encena uma metáfora de amor e ódio entre o casal e
provoca interrogações sobre as convenções fotográficas e sociais relativas aos papéis de
gênero na China do século XXI (Figura 55). Essa encenação sutil inverte de forma inteligente
os papéis sociais hierarquizados e reinventa novos formatos de relação familiar.

Fig. 56: Got a salmon on (Prawn), Sarah Lucas, 1994.

Sarah Lucas é um artista feminista londrina, proveniente do famoso grupo Young


British Artists, que surgiu no mundo da arte britânica, na década de 1990. Eram artistas
provenientes do Goldsmith College of Art, considerado, até hoje, um dos cursos de artes mais
indisciplinados e refratários aos discursos da arte “mercadológica”. Desse mesmo grupo
fazem parte os não menos famosos artistas plásticos Damian Hisrt e Tracey Amim. Lucas é
conhecida por indagar questões sobre as identidades sexuais fixas dos gêneros, objetificação
das mulheres na arte e o já comentado male gaze. Geralmente, acusada de usar elementos

89
vulgares e de maneira debochada – linguagem comum entre os YBA – para apontar clichês
sobre o masculino, nesse trabalho Got a salmon on (Prawn) (Figura 56), Lucas retrata uma
sequência do corpo nu do seu companheiro da época com uma lata de cerveja, cobrindo o
pênis como se o substituísse e, nas últimas imagens da sequência, a lata explode
metaforizando o gozo masculino. Comida ou bebida representando ou substituindo partes
sexuais do corpo é um tema comum no trabalho de Lucas, empregado principalmente para
subverter o estereótipo degradante do corpo da mulher na arte. Esse trabalho fotográfico de
uma narrativa construída sobre comportamentos banais masculinos, seja tomar uma cerveja
ou mesmo masturbar-se, executado por uma mulher, toma outra dimensão e, obviamente,
inverte os papéis sociais da mulher e a coloca em lugar de observadora/produtora.

Fig. 57: Beach Triptych #20, Alair Gomes, 1970-1980.

Fig. 58: Still do vídeo Ilha dos Prazeres, Anita Boa Vida, 2017.

Ao contrário de Alair Gomes – em suas fotos de praia e do homoerotismo que


celebrou por anos a perfeição física propagando um tipo másculo ideal –, a artista carioca

90
Anitta Boa Vida, em seu vídeo Ilha dos Prazeres 45 (Figura 58), também exerce seu
voyeurismo na mesma praia, usando a ironia como linguagem estética. Como uma crítica à
objetivação sexual da mulher, Boa Vida filma rapazes na praia, a partir de um lugar histórico
de inversão na arte. Esses rapazes estão ali para seu deleite de observadora. É ela quem olha.
Ao contrário de Alair Gomes, em seu Beach Triptych #20 (Figura 57), ela não exalta apenas o
corpo físico, fetiche de Alair; o que Boa Vida celebra, nesse vídeo, é justamente a
possibilidade de ter a seu dispor tantos corpos diferentes, para o deleite do seu olhar feminino
ativo. Esses registros de corpos masculinos, formalmente ou fisicamente, não se diferem
necessariamente das representações homoeróticas ou cânones viris. A diferença, no entanto, é
que uma mulher, ao estar presente como sujeito artístico, permite que os modelos sejam vistos
a partir de uma certa vulnerabilidade ou até mesmo imperfeição. “O homem-objeto é ainda
viril? Privado de sua qualidade de sujeito? (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.),
2013, p. 117).

Fig. 59: Encounter #37 da série Exceptional Encounters, Paula Winkler, 2014.

45
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=Hw0ZJW7kcWE>.

91
Nas suas fotografias de nu masculino, a fotógrafa alemã Paula Winkler lida com
homens a quem aborda por meio de uma plataforma digital de sexo. Ela contacta diferentes
tipos de homens e os convence a encontrá-la em quartos de hotel e a serem modelos para o
projeto Encontros Excepcionais (Figura 59). Nesse caso, mais importante que homens serem
fotografados sob uma perspectiva feminina, o que Winkler privilegia é a beleza da
diversidade do corpo masculino em suas diversas formas, seu erotismo e, ao mesmo tempo, a
vulnerabilidade desse corpo. São personagens que se mostram exagerados, vaidosos,
inseguros ou agressivos, porém longe de quaisquer cânones de virilidade.
Simone de Beauvoir questionou o fato das mulheres serem consideradas o segundo
sexo em um mundo governado majoritariamente por homens, nos mais diversos campos, e
defendia seu lugar de sujeito autêntico, legítimo de conhecimento. Beauvoir abriu o campo de
possibilidades para que a mulher se constituísse autonomamente como indivíduo livre, ativo e
desejante, libertando-a do estado de sujeição. (JOHANSON, 2019, p.13).

Simone de Beauvoir não é hostil à virilidade. Ela se sente em pé de igualdade com


Sartre, um companheiro bastante viril. [...] Beauvoir tenta construir uma relação
igualitária. Ela fornece a imagem de uma mulher livre, autônoma, que traça a sua
própria rota sem se deixar absorver pela paixão. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 127)

Se a arte homoerótica é, de certa forma, a eternização de Narciso, para mulheres terem


controle sobre seu próprio processo de criação de imagens, elas precisam se tornar atentas à
dialética entre sua demanda erótica e poder versus o porquê dessas imagens ainda serem
consideradas tabu, especialmente as imagens com o pênis ereto ou mesmo à mostra. É
fundamentalmente importante para as mulheres exercerem sua sexualidade, livre dos
preceitos masculinos, e encontrarem seu próprio conjunto imagético, seu objeto de desejo,
estimularem uma maior consciência sexual de si mesmas e desmascararem as falácias do
poder masculino (GOLDEN, 1981, p. 42) sem que, esta arte, que exibe este corpo, seja
considerada um reforço do patriarcalismo.

92
Fig. 60: Sem título, da série Imagens de homens, Viktoria Tremmel, 2007.

Em sua série Imagens de homens, a artista austríaca Viktoria Tremmel avança nesse
sentido da discussão. Ela apresenta o corpo masculino nu em cenários domésticos sempre
utilizando alguns elementos frágeis como flores ou frutas. Ela também se coloca sempre
presente na imagem expondo a relação entre os gêneros, abrindo, assim, camadas
multidimensionais de reflexão sobre as teorias feministas do olhar e o lugar da mulher
enquanto produtora de linguagem na arte. Ambos, artista e modelo, estão olhando para a
câmera. Dessa maneira, Tremmel inclui a perspectiva do espectador, explorando o processo
de recepção como um ato que, por um lado, esteve por muito tempo culturalmente
determinado, mas que, agora, é eminentemente político e, portanto, precisa ser refletido. Não
se trata apenas da inversão de papéis sujeito x objeto, o corpo masculino no tradicional lugar
do corpo feminino, mas da complicação fundamental de representar a sexualidade. Ao se
colocar na imagem, neste caso, refletida em um espelho (Figura 60), ela cria uma relação a
três – autor, modelo e espectador – e discute junto ao público sobre como se dá a construção
das representações sociais, e nos obriga a olhar para ela, mulher, enquanto sujeito produtor de
arte.

As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e


deliciosos de refletir a figura do homem com dobro do tamanho natural. [...] Isso

93
explica, em parte, a necessidade que as mulheres representam para os homens. E
serve para explicar como eles ficam incomodados com as críticas delas; [...] Pois se
ela resolver falar a verdade, a figura no espelho encolherá. (WOOLF, 2014, p. 54)

2.2 Dimensões e cores variáveis

“São sempre os mesmos sonhos/ de quantidade e tamanho/ garotos perdem tempo


pensando/ em brinquedos e proteção/ romance de estação/ desejo sem paixão/ qualquer
truque/ contra a emoção”46.

Fig. 61: Still do vídeo Dimensões variáveis, Javier Castro Rivera, 2008.

O vídeo intitulado Dimensões variáveis47 (2008), na Figura 61, lida com humor sobre
a obsessão masculina, o tamanho do próprio pênis. O artista cubano Javier Castro Riveira faz
uma enquete com diferentes mulheres em Havana, Cuba, que demonstram com as mãos, sobre
qual seria o tamanho ideal do órgão sexual masculino para seu próprio prazer. As mulheres
sofreram enorme pressão sobre seu corpo durante anos e precisaram responder a padrões de
beleza inalcançáveis. Assim como elas, os homens, historicamente, também dependem do
tamanho do seu órgão para sentirem-se mais ou menos viris. A autoestima masculina é
afetada e o homem se sente inferiorizado por acreditar que seu pênis é pequeno. Essa
inadequação, real ou imaginária, é muito frequente.

46
Garotos, canção de Paula Toller e Leoni de 1985.
47
Disponível em: <https://vimeo.com/65977520>.

94
O pênis grande, então, pode ser tanto um símbolo de status, prova de direito ao
melhor que a natureza pode oferecer, assim como uma varinha de condão... Tamanho
importa? Absolutamente, sim. Mas o problema do tamanho é tão “mental” quanto
“material”– não apenas uma pergunta de dar nos nervos, sempre uma colaboração
com a imaginação e, assim sendo, com a cultura. (BORDO, 2000, p. 83)

A medicina, enquanto autoridade científica, também constrói as representações do


corpo viril e ajuda a reforçar os estereótipos de gênero. Foi no século XX que começou-se a
atribuir o tamanho do pênis como mais uma variante da virilidade. Esse novo imperativo viril
demanda uma diversidade de soluções médicas, tratamentos hormonais e cirúrgicos, bombas a
vácuo para o aumento progressivo do pênis. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.),
2013, p. 58).

A vulgarização médica não explica tudo; é preciso sublinhar aqui a multiplicação


das ocasiões de comparar a sua nudez, mais frequentes do que no século anterior: a
prática das duchas coletivas no serviço militar e principalmente nos clubes
esportivos se torna mais comum. Por outro lado, a pornografia, passando
maciçamente para o suporte da imagem, contribuiu para confundir as marcas. O
“complexo do micropênis” ou “o complexo do vestiário” é, portanto, descrito por
muitos médicos como uma novidade surgida nos anos de 1980. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 59)

Se hoje, tamanho é documento, na Grécia antiga, quando o corpo masculino foi


fetichizado em esculturas cheias de músculos de mármore, pênis grandes e eretos não eram
considerados desejáveis, nem eram um sinal de poder ou força. Segundo o historiador Paul
Chrystal 48 , em seu livro In Bed with the Ancient Greeks (2016), o pênis pequeno era
consonante com os ideais gregos da beleza masculina e até mesmo nosso David, de
Michelangelo, ainda que hoje sobreviva como ideal de beleza, tinha um tamanho de pênis
abaixo do exigido na atualidade. Naquela época, o pênis grande era considerado grosseiro ou
uma deformidade. Os sátiros (Figura 62) eram descritos com órgãos genitais grandes e eretos,
às vezes quase tão grandes como os seus torsos. E, de acordo com a mitologia, essas criaturas
eram em parte homem, em parte animal, e isso era uma depravação na sociedade grega.

48
Disponível em: <https://revistatrip.uol.com.br/trip/o-penis-na-arte-contemporanea>.

95
Fig. 62: A estátua de um sátiro, representado com um pênis ereto, Grant Mitchell/Wikimedia, sem data;
Fig. 63: O atleta Linford Christie no auge da carreira, 1993.49

Foi, inclusive, a partir da ideia da deformidade, sedimentada na imagem do corpo


negro que ratificou estereótipos racistas do período colonial, dos séculos XV ao XVI, que
permeiam a representação da sexualidade dos homens negros até hoje.

Cheiro, músculos, força, vitalidade, capacidade sexual: tudo concorre para fazer do
“outro” tanto um “objeto sexual” fantástico – que se pode utilizar à vontade –
quanto um “animal sexual”, com quem a experiência carnal seria ao mesmo tempo
“bestial”, diabólica”, “monstruosa” e, fazendo isso, necessariamente excepcional.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 457)

O atleta olímpico Linford Christie, original da Jamaica e radicado no Reino Unido


(Figura 63), venceu os 100 metros com quebra de recordes nas Olimpíadas de Barcelona, em
1992. Imediatamente depois, o único feito a ser comentado pelos tabloides ingleses sobre o
campeão era o tamanho da proeminência dentro do seu short de Lycra.50 Por conta da sua
identidade racial, mesmo vencendo e no auge da conquista, essa cobertura da mídia
comprovou como um país tradicionalmente branco lida com a alteridade e a diferença. O que
tem a sexualidade a ver com a raça? Por que homens brancos ficam obcecados com a
sexualidade dos negros? Como o racismo está embutido nesses comentários? E de que forma

49
Disponível em: <https://twitter.com/ChristieLinford/media>.
50
O termo “lancheira”, em referência a sua genitália, foi cunhado pelo The Sun nos anos 90. Disponível em:
<https://www.the-latest.com/linford-christie-loves-his-lunchbox-when-theres-money-it>.

96
os estereótipos refletem na arte?

O corpo do negro africano foi dissecado por anatomistas brancos, a sua inteligência
aferida por educadores brancos e a existência de sua alma discutida por filósofos e
teólogos brancos. Poucos desses caucasianos questionaram a sua própria
superioridade racial ou duvidaram da sua origem divina. Voltarie e Thomas
Jefferson achavam que os negros possuíam capacidade mental limitada. [...] Apesar
de pontos de partida diferentes, a maioria dos pensadores raciais baseou muitas de
suas conclusões mais importantes no mesmo critério – o pênis do africano. Ele foi
olhado, temido (e, em alguns casos desejado), pesado, [...] e praticamente em todos
os resultados, seu tamanho foi considerado prova de que o negro era mais um animal
do que um homem. O pênis foi “racializado”. (FRIEDMAN, 2002, p. 97-98)

Robert Mapplethorpe foi, sem dúvida, um dos fotógrafos mais influentes das décadas
de 1970 e 1980 e sua controversa fotografia (Figura 64) Man in a Polyester Suit (1980),
ilustra a natureza da problemática representação do corpo negro na arte. Um modelo negro
sem rosto aparente, com o zíper aberto e o pênis grande para o lado de fora reforça,
justamente, o estereótipo racista do homem negro “primitivo” e “selvagem” mais bem dotado
sexualmente em comparação aos homens brancos considerados “civilizados”, representados
no terno de poliéster. (BORDO, 2000, p. 75). Mapplethorpe, que é um homem branco, corta a
foto de modo que não aparecesse o rosto do modelo, fazendo entender que estamos olhando
para o corpo negro de uma forma generalizada. Da barriguilha aberta, vemos o pênis
semiereto de comprimento e circunferência excepcionais, sugerindo a tal sexualidade
primitiva “assustadora” que justificou 300 anos de exploração colonizadora contra os
“selvagens”. A chamada fisionomia peniana degenerada dos delinquentes.

Padres, marinheiros, biscateiros, negros e árabes das colônias, mais tarde atores
pornôs californianos com os corpos trabalhados, essas figuras sexuais da virilidade
são dotadas de órgãos arquetípicos: inchados ou eretos, em todos os casos enfáticos,
sem dúvidas, cada vez menos “pessoais” na medida em que a produção de imagens
devassas evolui do estágio de artesanal ao estágio industrial. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 504)

97
Fig. 64: Man in Polyester Suit, Robert Mapplethorpe, 1980.
Fig. 65: Snap Shot, Rotimi Fani-Kayode, 1987.

Em contrapartida, Rotimi Fani-Kayode, nascido em Lagos, Nigéria, escolheu a


fotografia como ferramenta política para responder de forma crítica sobre questões como
estereótipos de sexualidade, espiritualidade, identidade e diáspora. Fani-Kayode usa seu
próprio corpo negro e de outros homens negros e nus, transgredindo noções de raça,
masculinidade, homoerotismo e espiritualidade, construindo uma nova iconografia menos
excludente e racial. Aqui, nesta imagem (Figura 65), como autor negro e dono de sua própria
imagem, tem autoridade para cortar o rosto e deixar apenas um torso negro universalizado;
com uma câmera fotográfica no lugar do pênis e, mesmo sem mostrá-lo, se apresenta
totalmente fálico. A câmera fotográfica é seu instrumento de potência, e não seu pênis. Ao
contrário da foto de Mapplethorpe, em que o corpo é objeto à disposição do olhar de alguém,
o corpo de Fani-Kayode se mostra completamente ativo e integrado ao sistema de arte, dono
do seu poder, não mais fetichizado, objetificado, escravizado aos antigos estigmas de homem
negro colonizado. Ele é dono de sua imagem e da representação de si.

Minha segunda questão sobre a historicidade é que não podemos ignorar a maioria
da população do mundo, nem tampouco a história que tornou possível as
masculinidades hegemônicas dos poderes hegemônicos: a história do imperialismo.
Essa história inclui a conquista colonial direta, que fez das relações de raça uma
parte inevitável da dinâmica de gênero. (CONNEL, 1995, p. 192)

98
Fig. 66: Body, John Edmonds, 2013.

Os retratos de nus, do fotógrafo americano negro John Edmonds (Figura 66), quebram
as construções sociais da masculinidade, criando uma representação mais sutil da sexualidade
masculina. Suas fotos não necessariamente retratam a sexualidade masculina gay, mas criam
propositalmente, um senso de ambiguidade de gênero através de suas composições.
Fotografados quase inteiramente em interiores minimalistas, os retratados de Edmonds são
capturados com expressões afetuosas. Ao reduzir os homens e seus ambientes à sua forma
mais simples, retira os uniformes, as exigências sociais, despindo, verdadeiramente, seus
modelos. Longe do estúdio e da necessidade da perfeição clássica de Mapplethorpe, suas
imagens nos desafiam a questionar nossas percepções de beleza, força e masculinidade e
responde às ideias de representação como um corpo masculino pode ser um corpo sensível,
mas, acima de tudo, um corpo negro que desafia a história dos negros de forma menos
restrita.

99
Fig. 67: Um dos cartazes do Museu do Homem do Nordeste, Jonathas de Andrade, 2013.
Fig. 68: Derrubador Brasileiro, Almeida Júnior, 1871.

A partir de uma série de anúncios classificados em jornais locais com os dizeres


“Procuro moreno forte, trabalhador, feio ou bonito – para fotografia do cartaz do Museu do
Homem do Nordeste” (Figura 67), o artista alagoano Jonathas de Andrade aponta para o
Brasil de hoje, negro e racista, ainda marcado pelos traumas da escravidão. Andrade investiga
as relações de trabalho e questiona os clichês do corpo masculino negro erotizado. A
diversidade das imagens que ele conseguiu registrar, nas quais homens fortes, frágeis, altos,
baixos, brancos, pardos, negros, posaram em situações variadas, pôs em pauta o clichê do
trabalhador rural. Os pôsteres retratando homens em diferentes atividades diárias tentam
reavaliar as questões por trás da construção de uma identidade regional, a do nordestino. Mas
não só. Andrade também adotou uma abordagem subversiva no que diz respeito à sexualidade
desses personagens, os trabalhadores viris. Há um olhar erotizado do artista voltado para esses
corpos esculpidos pelo trabalho que sugere uma homossexualidade latente do peão
nordestino, o sujeito cabra-macho do imaginário popular.
Não podemos deixar de pensar em o Museu do Homem do Nordeste como uma
releitura do Derrubador Brasileiro (1871), de Almeida Júnior. O Derrubador
brasileiro (Figura 68) foi realizado pelo pintor brasileiro durante sua permanência em Paris
com um modelo italiano, e mostra um corpo masculino sentado em repouso, diante de uma
pedra com vista para a mata em uma pose acadêmica, porém desprovida de qualquer sinal de
heroísmo. O modelo lânguido cansado, olhos semi cerrados, lábios entreabertos com busto

100
despido, segura em sua mão uma enxada e, na outra, um cigarro queimando. Com o membro
entumecido, pele suada de mormaço, o Derrubador Brasileiro transpira erotismo e foi
considerado um escape às regras acadêmicas da narrativa heroica do século XIX.

Além disso, podemos analisar o Derrubador brasileiro dentro de uma vertente das
novas representações da masculinidade desde o século XVII. Uma transposição da
virtude de uma ação heroica-trágica em um carregamento sensual do corpo masculino
pelo não fazer. A pose passiva de repouso do derrubador encarna um erotismo lascivo
que é reforçado pela vestimenta. O corpo do homem meio vestido realça, através da
calça, novos contornos que lançam atenção a seu sexo ocultado. É por causa do
vestuário que o nu masculino ganha em experiência da carne e aparece mais vivo,
longe de uma idealização clássica. Portanto, o Derrubador brasileiro ocupa o lugar
de um corpo moderno e regional trazendo consigo narrativas do interior como exótico
e carregadas sensualmente, em contraposição à virtude tradicional heroica.
(BATISTA, 2011)51

As relações raciais se tornaram uma parte importante a ser observada dentro das
diferentes masculinidades. Qual o lugar dos homens negros em uma sociedade que ao mesmo
tempo em que exalta os homens em detrimento das mulheres, inferioriza a humanidade das
pessoas negras em geral? Em que medida os homens negros partilham dos privilégios dos
padrões hegemônicos de masculinidades?

Fig. 69: Frame de The Mythic Being, Adrian Piper, 1973-1975.

A artista estadunidense Adrian Piper já lidava com essas questões na década de 70.
Ser Mítico é uma série de performances, realizadas entre 1973 e 1975, em que Piper disfarçou
51
O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte. net/obras/corpo_
academia.htm>.

101
sua identidade, mudando sua raça, sexo e classe social para experimentar em situações
públicas as reações das pessoas. Ela pretendia investigar, justamente, como os marcadores de
identidade como a cor da pele ou gênero afetavam as percepções dos outros, demonstrando o
poder dos estereótipos. Piper saía pela ruas de Nova York vestida como seu alter ego
masculino, com uma grande peruca afro, óculos escuros e bigode, realizando comportamentos
tipicamente masculinos. Ao experienciar não só a audiência das ruas, Piper lidava com suas
próprias expectativas internas. A performance Ser Mítico (Figura 69) é descrita pela artista
como uma experiência libertadora, pois, enquanto homem, desfrutava da possibilidade de agir
de maneiras socialmente restritas a uma mulher, sobretudo negra. Ela se exibia, andava a
passos largos, levantava os ombros, cobiçava mulheres, sentava com as pernas bem abertas no
metrô para acomodar a genitália e desfrutava da liberdade de andar por ruas vazias em
horários noturnos. (GARCIA, 2018, p. 74).
Nos limites deste texto, não trataremos das questões social e racial mais
profundamente e de forma adequada, o que, certamente, exige uma outra pesquisa. Se faz
relevante, entretanto, trazermos o corpo negro enquanto exemplo de uma “nova”
representação do corpo masculino na arte, e não mais um corpo invisibilizado, visto que a
cultura ocidental foi totalmente marcada pelo colonialismo. A exaltação dos ideais europeus
promove, ainda hoje, uma intensa exclusão racial, uma vez que o corpo branco foi adotado
como o padrão contra o qual as peles e os traços étnicos dos seres humanos foram
comparados e, todos aqueles cujos corpos divergiam desse ideal foram considerados
inferiores. (JUNIOR; LOBO; BUNN, 2018, p. 2).

2.3 O rei está nu52

52
Referente ao conto A roupa nova do rei, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, de 1837, sobre um
bandido que decidiu se esconder fingindo ser alfaiate em um novo reino, chegando a se tornar o alfaiate do rei, a
quem propôs tecer uma roupa que somente os inteligentes conseguiriam ver. O rei aceita a proposta, fornecendo-
lhe baús cheios de riquezas, linha de ouro, seda e outros materiais raros. O bandido os guarda e fica em seu tear,
fingindo tecer fios invisíveis. Todos que passavam na frente da alfaiataria e assistiam a sua performance de
puxar panos que não existiam, enquanto recebia dinheiro do rei por semanas, alegavam ver o tecido, para não
parecerem estúpidas. Quando o falso tecelão mostra a mesa de trabalho vazia ao rei, este exclama: "Que lindas
vestes! Fizeste um trabalho magnífico!", embora não visse nada além de uma simples mesa, mas sem querer
admitir, na frente de seus súditos, que havia sido enganado. Todos ao redor soltaram falsos suspiros de
admiração pelo trabalho do bandido, sentindo-se obrigados a concordar. Até que, uma criança, inocente, gritou:
"O rei está nu!". A sinceridade da criança fez com que todos, finalmente, começassem a confessar que também
não enxergavam a nova roupa do rei. Este, incomodado por nem sentir o peso da roupa, se encolhe.

102
Vossa majestade, a representação fálica, o pênis viril, idealizado, grande e duro, se
orgulha de sua coragem, de sua prontidão. Já o pênis não ereto, se mostrado, sugeriria
vulnerabilidade, fragilidade, e quase doçura. Esse pênis não ereto é um “pau mole”, e ser
exposto enquanto mole é a pior coisa que pode acontecer para um homem em nossa cultura.
Além de ser muita responsabilidade para apenas um órgão, causa uma enorme lacuna entre o
ser humano/homem/indivíduo e o imagético cultural e iconográfico aplicado em cima dele e
de todos nós. “É a ereção que confere ao homem a sua dignidade, o seu caráter, é ela que
manifesta a sua importância, é ela que funda sua dominação.” (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 439). Como no conto de Andersen, os seguintes artistas
despem a roupa do rei falo. E, como em Kenneth Clark, o rei estará assim despido! O nu
masculino sai do regime de representação imagético dos cânones viris e novas formas de ver
esse corpo são acionadas. O pau se encolhe.

Um corpo comum quando nu é um corpo devassado. Ele se mostra em sua face


privada, mas não pode mostrar tudo. Há reentrâncias e depressões. Há abismos e
sombras. Como no corpo esculpido, a história de toda humanidade pode ser lida em
cada poro, em cada pelo que permaneceu ou foi arrancado, no resultado de milênios
de condicionamento fisicocultural. Mas só o corpo comum conta de forma muito
viva uma história particular, fala dos anos e dos atos, dos sofrimentos e alegrias que
vincam, enrugam, embranquecem, escurecem, ressecam, engrossam. Um corpo
qualquer, quando nu, é o único que pode ser obsceno. (COSTA DA SILVA, 2003, p.
129 apud SILVA, 2015, p. 198)

Fig. 70: Self Portrait (Front, Dark, shadow), John Coplans, 1985; e Fig. 71: Foxy Mister, Tomislav
Gotovac, 2002.

103
Em resposta à imagem do corpo estilizado que originou-se na Grécia, o artista
britânico John Coplans fotografa, recorrentemente, fragmentos do seu corpo nu – pés, mãos,
joelhos, tronco, pênis, nádegas – usando como estratégia a inversão de estereótipos. No seu
autorretrato Front, Dark, shadow (1985), focando tórax e o fim das coxas, o artista
sexagenário faz uma nova referência ao nosso escultural David (Figura 70). Coplans expõe
seu corpo nu, repleto de pelos, barrigudo, amassado, fragmentado, tomado pela idade, a fim
de nos apresentar uma nova possibilidade de beleza masculina que não está preocupada com o
visual de uma musculatura de prancha de anatomia. Coplans começou a fotografar seu corpo
nu quando tinha sessenta anos de idade, desafiando as convenções do ideal do David jovem e
musculoso; embora nos seus autorretratos Coplans não inclua seu rosto nas imagens,
representando, assim, um corpo masculino universal, não erotizado e naturalmente brocha,
enquanto as questões de envelhecimento e deterioração são assuntos geralmente ignorados e
temidos na sociedade contemporânea. “O sexo de Coplans já pertence à natureza
desconcertante que o trabalha, mas é o sexo de um homem envelhecendo, e também do
próprio artista.” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 508).
Assim como Coplans, o artista croata Tomislav Gotovac usa, constantemente, seu
próprio corpo como um meio direto de expressão. Em seu ensaio Foxy Mister (Figura 71),
Gotovac posa seu corpo despido imitando os tradicionais ensaios sensuais de jovens modelos
femininos, ação que, deliberadamente, envolve diversas provocações. O corpo de um homem
de 65 anos, cabelos grisalhos e barrigudo, ao posar escrachado, explicita uma sequência de
tabus, não só do homem nu em si, mas além da inicial estranheza de vermos o corpo
masculino em poses que não lhe são habituais; é um homem nu de idade, idade em que seu
corpo deveria permanecer oculto, recolhido e não sexualizado, segundo as regras da
contemporaneidade. “Envelhecer é uma patologia: o combate contra os anos, a impotência e
a morte tornam-se uma obsessão viril.” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013,
p. 566).

Em plena vigência do “culto ao corpo” e da “sociedade do espetáculo”, as rugas


tornaram-se marcas de fraqueza. Constituem sinais de uma derrota e, por isso, são
moralmente condenáveis. Ter a coragem de ostentá-las despudoradamente equivale a
praticar uma nova forma de obscenidade. Assim como acontece com todas as outras
“imperfeições” e “impurezas” que o envelhecimento costuma cinzelar nos corpos
humanos, as rugas constituem uma afronta à tirania da pele lisa sob a qual vivemos.
Por tal motivo, os cenários privilegiados dos meios de comunicação audiovisual se
recusam a mostrar corpos velhos. Nas raras exceções em que isso acontece, as
imagens dos corpos idosos costumam ser retocadas com técnicas depuradoras e
alisadoras. Paradoxalmente, meio século após os movimentos de liberação sexual e
em plena reivindicação da subjetividade encarnada, novos tabus e pudores

104
converteram a velhice num estado corporal vergonhoso”. (SIBILIA, 2012, p. 1)

Lucian Freud, o pintor alemão radicado na Inglaterra, ficou conhecido pelos seus nus
masculinos realistas, vistos de ângulos fora do comum, sem respeitar quaisquer estereótipos
de masculinidade e, pelo contrário, apresentando-os totalmente vulneráveis. São corpos
distorcidos, sofridos, vivos e desgastados pelo tempo, cuja pele e a carne são extremamente
expostas a partir da escolha de suas tintas e forma de suas pinceladas. Barrigas flácidas,
marcas de expressão, bolsa embaixo do olhos, rugas e qualquer outra imperfeição de seus
modelos não passam desapercebidas. Ao retratar personagens gordos, feios e velhos, também
lidava com a inexorabilidade do envelhecimento, do peso do tempo sobre o corpo, das
cicatrizes.
Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994) (Figura 72).
Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático britânico, é
retratado nu através de um ângulo baixo e não convencional. Frequentemente adormecidos e
vistos de ângulos expostos fora do comum, os nus masculinos de Freud querem projetar
vulnerabilidade e, ao expor esse homem corpulento com as partes íntimas tão nitidamente
expostas em escala exagerada, Freud faz questão de retratar o nu de forma grosseira,
desajeitada, pretendendo, justamente, desnudar o homem da sua armadura social, libertando-
se dos cânones de beleza viril.

Fig. 72: Leigh Bowery posando ao lado de 'Leigh Under the Skylight', de Lucian Freud, Bruce
Bernard, 1994.

105
Em Freud, podemos observar com mais frequência retratos de mulheres nuas do que
de homens nus, por variadíssimas razões. Mas as imagens masculinas são, ao seu
modo, excepcionais. O grau de honestidade que Freud lhes imprime – a falta de
exagero estereotipado, quer dirigido à heroica masculinidade quer à compaixão – é
extremamente raro na história da arte. (SMEE, 2010, p. 89)

Fig. 73: I Miss You, Franko B, 2003.

I Miss You53 é uma performance do artista italiano Franko B, em que ele caminha
sobre uma passarela montada por tecido branco, iluminado por luzes que o contornam. A
plateia assiste a performance de ambos os lados da passarela e, como em um desfile típico, os
fotógrafos ficam no final para fotografar o artista que caminha de um extremo ao outro da
passarela (Figura 73). O corpo em exibição, no entanto, não é o corpo esbelto de um
supermodelo, mas o corpo completamente nu, careca, fora da forma padrão, coberto da
cabeça aos pés com uma tinta branca. À medida que a performance progride, sangue escorre
do corpo do artista, a partir de um pequeno tubo inserido na dobra do cotovelo de cada braço,
e vai se acumulando na passarela. Ao assumir a semelhança de um desfile estéril e altamente
controlado, Franco B proporciona um confronto do público com o corpo humano sofrendo

53
Disponível em: <https://vimeo.com/126830380>.

106
dores e, sangrando, questiona os códigos representacionais do homem branco, aqui se
desconstruindo na frente da plateia.
Apesar da preponderante imagem estetizada do masculino dentro da perspectiva
clássica, dos corpos belos, sem pelos, esculpidos em academia, é importante citar que, no
final dos anos 90, começou a ganhar espaço no mundo, a estética “bear”. Corpos que exibem
códigos específicos como massa corporal avantajada e incidência de pelos no corpo. Um
corpo fora do estilo musculoso depilado com predileção por apresentar outro padrão de beleza
e a possibilidade de novas subjetivações. Os ursos, como são chamados no Brasil,
representam sim uma transgressão, especialmente se comparados ao universo ditado pela
mídia ou pela própria arte homoerótica. (SILVA, 2015, p. 171). Além da despreocupação em
relação às regras estéticas e valores de consumo midiáticos, os ursos exploram sexualmente
seus corpos “imperfeitos”. Gordura, queixo com papadas, branco, marrom, preto, ruivo, rude,
extravagante ou afeminado, com um nariz grande, pelos no tórax. Essas são as diversas
características dos tipos de homens que o artista mexicano Carlos Radríguez trabalha para o
empoderamento dos corpos masculinos, visando refletir a diversidade masculina. Suas
ilustrações livres dos discursos de beleza tradicionais dos músculos definidos e diferentes tons
de pele, colocam sob os holofotes e erotizam tipos antes marginalizados (Figura 74).

Fig. 74: Ilustração de Carlos Radríguez, 2017.54

54
Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2017/11/23/ilustrador-mexicano-retrata-a-masculinidade-
com-olhar-divertido-e-debochado>.

107
Fig.75: David, Miguel Ángel Rojas, 2005; e Fig. 76: Butcher IV, da série Mestres
Açougueiros e seus Aprendizes, Odires Mlaszho, 2007.

David, de Miguel Ángel Rojas (Figura 75), é uma instalação de 12 fotografias


análogas de dois metros de comprimento por um de largura, cada. A fotografia em preto e
branco, em grande escala, é uma alusão óbvia, mais uma vez, ao nosso David, de
Michelangelo, mas com uma particularidade que lhe confere um poder devastador: este David
não responde às exigências da perfeição da Grécia antiga. Este David que posa não tem parte
da perna esquerda. É um jovem mutilado por uma ação militar sofrida na Colômbia. Essa
ausência da perna traz uma sensação de um iminente desequilíbrio de cima daquele pedestal.
Como se o autor quisesse, propositalmente, nos alertar para a fragilidade das construções
históricas.

Desde o início, a pose do homem, a perfeição de seu corpo e o manejo da luz aludem
a uma das figuras paradigmáticas da velha concepção de beleza: o David de
Michelangelo. Mas com este David, Rojas traz um sinal de ruína em sua beleza,
contando uma história de deterioração: em uma de suas pernas está faltando um pé do
tornozelo para baixo. Uma primeira leitura refere-se a tantas belas figuras nuas
mutiladas pela ação do tempo, a Vênus sem braços, o Lançador de Disco ou Afrodite
sem cabeça e sem braços, figuras da arte grega que exibem sua beleza incompleta nos
maiores museus do mundo. Mas este David de Miguel Ángel Rojas não é uma
escultura, é a fotografia de um homem de verdade posando assim: de pé, em cima de
um pedestal, uma figura que, à primeira vista, aparece graças a uma manipulação
cuidadosa da luz, como uma escultura corpo. Esta fotografia retrata o corpo nu de um

108
soldado jovem e bonito, mutilado por uma daquelas infames minas que esmagaram os
corpos de crianças, homens e mulheres em países onde as tragédias da guerra fazem
parte da vida cotidiana. Neste David contemporâneo, o paradigma da beleza clássica
está se movendo enormemente. Esta imagem é carregada com muitas conotações
contraditórias: beleza e guerra, criação e destruição, vida e morte. Uma imagem
percorrida por tantas outras imagens tiradas da história da arte, de seu paradigma de
beleza e máxima espiritualidade (lembre-se que, para Buonarotti, a beleza tem
aspirações morais; seu ideal de beleza está ligado a um ato de consciência que aspira
ao Bem e para a Verdade.) Por outro lado, também é atravessada por imagens de
jornais e noticiários que transmitem os “desastres da guerra”. É atravessada por
crônicas de jornais, por narrativas colhidas na mídia e nas ruas. Essa imagem da arte
contemporânea, que remete à beleza dos tempos passados, está sinalizando para o
mundo que a torna possível, um mundo em crise, onde o corpo humano se degrada e
viola diariamente. (RODRÍGUEZ, 2005)55

Uma imagem grotesca ameaça qualquer representação ou qualquer comportamento


excessivamente marcado pela idealização. Na série Mestres Açougueiros e seus Aprendizes
(2007) (Figura 76), o paranaense Odires Mlászho constrói seus corpos desconstruídos – a
princípio masculinos - com camadas de músculos feitos a partir de composições de recortes,
inclusive de partes nuas de corpos femininos. Suas peles são retiradas de modelos de revistas
pornográficas e livros de história da arte e, como em uma cirurgia, formam novos seres.
Mlászho discute, pontualmente, sobre o processo de construção de identidades nas sociedades
contemporâneas e a indústria da estética. Seu trabalho põe em questão a construção da
imagem baseada em padrões de beleza, poder, masculinidade, feminilidade, pretendendo,
assim, desconstruir os ícones da tradição cisgênero56. O corpo fragmentado é uma afronta à
tirania do corpo apolíneo de outrora.

Isso quer dizer que a concepção de corpo na cultura ocidental está intimamente ligada
à questão da imagem e da representação. Se no início do século XX a arte moderna
subverte a tradição do nu, através da fragmentação e da deformação do corpo, na
segunda metade do século essa crise da outrora equilibrada visão antropocêntrica é
ainda mais acentuada uma vez que a matéria, a animalidade e a crueza passam a ser
exploradas. Dessa maneira, a arte contemporânea profana a antiga imagem de um
corpo idealizado por intermédio do reconhecimento da corporalidade humana, seja
através de uma ação ou pela ênfase da sexualidade, a utilização de fluidos e de
odores. (MATESCO, 2009, p. 28)

55
Disponível em: <https://www.artnexus.com/ Notice_View.aspx?DocumentID=15044>.
56
Termo usado para identificar sujeitos cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no
nascimento.

109
2.4 O corpo desobediente

“– Você prefere ser chamado de ‘o’ ou ‘a’? / – Tanto faz”.57


De acordo com a lógica binária, o fato de uma pessoa ser do sexo masculino ou do
sexo feminino não significa apenas que possui tal conformação anatômica e fisiológica.
Significa, também, que possui certo status social que lhe impõe limites, direitos, obrigações
que estão convencionadas em relação à sociedade (SILVA, 2005, p. 52). A liberação da
categoria masculino ou feminino traz novas condições de agir e pensar em sociedade. Ou seja,
o discurso hegemônico heteronormativo masculino impõe condutas, comportamentos e
subjetividades a fim de enquadrar os indivíduos às normas preestabelecidas. Entretanto, essa
matriz heterossexual ao mesmo tempo que delimita padrões, fornece pautas para transgressões
e estudos queer.

Fig. 77: Rrose Selavy, Man Ray, 1920; e Fig. 78: Danny King em performance, Diane Torr, 2010.

Em 1920, o artista francês Marcel Duchamp assumiu a identidade de seu alter ego
feminino Rrose Selavy e foi fotografado (ou seria fotografada?) inúmeras vezes, enquanto
mulher, por seu amigo, o fotógrafo Man Ray (Figura 77). Em francês, o nome Rrose Selavy é
um trocadilho que podia ser interpretado como “Eros, c’est la vie” (“Eros, é a vida”),

57
Laerte, no programa de TV Roda-Viva, 2012.

110
justamente uma brincadeira com a ideia de que o sexo atravessa a existência humana e não
pode se prender ao sexo biológico.

Fig. 79: Flávio de Carvalho em Experiência nº 3, Wikimedia Commons, 1956.

Em 1956, o artista brasileiro Flávio de Carvalho, hoje conhecido como o percursor do


happening no Brasil58, desfilou pelas ruas de São Paulo (Figura 79), em uma performance
considerada visionária para seu tempo, conhecida como Experiência nº 3, vestindo um traje
que ele mesmo concebeu, pensando no que chamou de “o homem dos trópicos”. Numa época
em que os homens vestiam, pelas regras heteronormativas, obrigatoriamente, calças
compridas, camisa e terno (até mesmo os meninos), o que mais chamava a atenção na sua
indumentária era a incorporação do guarda-roupa tipicamente feminino: saia curta59, meia
arrastão, sandália, blusa de mangas franzidas; e criticava o modo de vestir masculino
incompatível com o clima tropical brasileiro.

“O uso de uma grande variedade de cores”, explicou Flávio de Carvalho, “tornar[á]


os homens menos irascíveis e menos obtusos, mais plásticos e mais capazes de
evoluir com maior velocidade”. Ao promover “maior alegria pelas cores e pelos
movimentos livres”, o novo traje acaba “afetando a psique do homem e
possivelmente afetaria também o fluxo das guerras”. Afinal, “ninguém pode ser

58
STIGGER, V. Flávio de Carvalho: Arqueologia e Contemporaneidade. In: Celeuma n. 4, 2014.
59
Um década antes de Mary Quant tornar a mini saia popular.

111
alegre enfiado numa roupa cinza, marrom ou azul marinho”. (STIGGER, 2014, p.
47)

Fig. 80: Facial hair transplant, Ana Mendieta, 1972.

Na década de 70, Ana Mendieta, artista cubana radicada nos Estados Unidos, usava o
corpo para questionar a binaridade masculino e feminino. Na obra Facial hair transplant
(1972), ela transferiu a barba cortada do seu amigo Morty Sklar para o seu próprio rosto. Ao
grudar a barba em seu rosto, Mendieta criou uma identidade ambígua, desconstruindo as
ideias patriarcais de atributos fixos destinados ao sexo masculino ou feminino, questionando
as construções sociais impostas a uma fisionomia presa à biologia, ao se enquadrar em ambos
sexos ao mesmo tempo, acenando também para o conceito de identidade de gênero como
performatividade (Figura 80).
Em 1980, apareceu no feminismo americano a cena do drag king, que trata da
masculinidade enquanto performance. Diane Torr (Figura 78, acima à direita) era uma artista
educadora que, na época, dava oficinas para mulheres de como se vestir, alterar os passos e
ser homem por um dia. Colar bigodes e gozar com o sentimento exaltante de poder escolher a
sua identidade, de poder jogar com muitas identidades. Finalmente, podia-se ser um homem
sem pênis e perceber o gênero fora da polaridade binária. O ato de vestir-se é uma
transformação temporária para lidar com a questão masculina em forma de paródia. Mas não

112
só. A masculinidade fora do corpo do homem teve um poder subversivo por desordenar o
sistema binário.
O princípio de masculinidade baseia-se na repressão necessária dos aspectos
femininos – do potencial bissexual do sujeito – e introduz o conflito na oposição
entre o masculino e o feminino. (...) Ademais, as ideias conscientes do masculino e do
feminino não são fixas, já que elas variam segundo os usos do contexto. Portanto,
existe sempre um conflito entre a necessidade que o sujeito tem de uma aparência de
totalidade e a imprecisão da terminologia, a relatividade do seu significado e sua
dependência em relação à repressão. Esse tipo de interpretação torna problemáticas as
categorias “homem” e “mulher”, sugerindo que o masculino e o feminino não são
características inerentes e sim construções subjetivas (ou fictícias). Essa interpretação
implica também que o sujeito se encontra num processo constante de construção e
oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente,
referindo à linguagem como um lugar adequado para a análise. (SCOTT, 1989, p.16)

A partir dos anos 80, os estudos queer – novo campo epistemológico voltado para a
crítica e desconstrução dos mecanismos discursivos indentitários e binários, propagados por
dispositivos cisheteronormativos – começaram a se expandir. Esse novo campo estético
reuniu corpos historicamente desclassificados e engendrou estratégias de conduta frente ao
antigo heterocapitalista, binário e socialmente desigual sistema de representação.
(ALTMAYER, 2018, p. 38).
Apesar da heteronormatividade buscar enquadrar sexo, gênero e desejo dentro de uma
regra, o corpo queer denuncia que essa norma é criada por interesses de controle e poder
alheios às múltiplas formas de expressar desejo, sexualidade e gênero. Assim, como vimos
anteriormente, o sexo é, desde o início, normativo. Faz parte das práticas regulatórias das
instituições de poder descritas por Michel Foucault anteriormente no Capítulo 1. Esses
mecanismos desestabilizariam o pressuposto de identidade individual e fixariam a norma.
Entretanto, segundo Judith Butler, a lei e a norma são pilares incontornáveis de qualquer
processo de construção de identidade; mas dá um passo além quando afirma que, se toda
norma depende de sua repetição, então a possibilidade de subversão já está inscrita na própria
norma.60

Em outras palavras, o “sexo” é um constructo ideal que é forçosamente


materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de
um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo”
e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O
fato que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é
nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade,
são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse

60
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/opinion/1510088225_560754.html>.

113
processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar
contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força
hegemônica daquela mesma lei regulatória. (BUTLER, 1993, p. 1)

A noção de sexo como dado social e não biológico é extremamente importante para a
compreensão dos corpos transgêneros. As normas vagina/mulher/feminilidade ou
homem/pênis/masculinidade se desestabilizam e a existência dos corpos trans nos reafirma
que simplesmente não há universalidade na relação genital e gênero; noção que por tanto
tempo organizou o pensamento binário e a ideia de que existem apenas “dois sexos”
(HOLLANDA, 2018, p. 357). Se em Simone de Beauvoir as opções sexuais que os sujeitos
estavam limitados eram apenas duas, homem ou mulher, a partir dos anos 90, em Problemas
de gênero (1990) Judith Butler ampliou o discurso sobre o restrito binarismo dos corpos ou ao
imperativo heterossexual de antes. A partir de O segundo sexo (1949), Beauvoir abriu o
campo de debate sobre como a diferença sexual funcionava dentro da estrutura hierárquica
das relações sociais e instituições. Já a partir da leitura de Butler, a heteronormatividade
entrou no debate e o sexo biológico não estaria mais vinculado às questões de gênero e
submetidos às regras sociais determinantes ao masculino ou feminino. Sem dúvidas, cada uma
a seu tempo, renovou as perspectivas teóricas do feminismo. Se Beauvoir inaugurou a crítica
sobre a universalidade do masculino que excluía o feminino da possibilidade de tonar-se
sujeito (“não se nasce mulher, torna-se”), Butler amplia o sujeito da proposição “tornar-se”
(RODRIGUES, 2019, p. 41). “Não há nada em sua explicação que garanta que o “ser que se
torna mulher seja necessariamente fêmea.” (BUTLER, 1990, p. 29).

Conforme observa Butler, se o gênero compreende os significados culturais


assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que decorra de um sexo desta ou
daquela maneira. Mesmo que os sexos pareçam binários em sua morfologia e
constituição, não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em
numero de dois. (SILVA, 2015, p. 26)

A bandeira BAFO 1 de Tertuliana Lustosa (Figura 81) avança nessa questão-título da


dissertação. “Não se nasce mulher, torna-se traveca” é um manifesto que dá um passo à frente
na questão beauvoriana da construção social dos corpos. Assim como em Simone de
Beauvoir, conforme vimos no Capítulo 1, a mulher era o Outro, e o sexo masculino era
tomado como o representativo da humanidade; para Lustosa, os corpos que se identificam
com o gênero designado socialmente, ainda se afirmam enquanto normalidade, deslegitimam
a existência dos corpos fora do binarismo homem-mulher, como defende Butler. “Enquanto

114
o queer desfaz gênero na teoria, a travesti desfaz gênero na prática.” (LUSTOSA, 2016, p.
395).

Fig. 81: Bandeira BAFO 1, Tertuliana Lustosa, 2015.

Valendo-se da lógica de muitas das brasileiras que têm filhos trans, para minha mãe
não foi fácil engolir a experiência de gênero, que carrega, em si, a anormalidade de
uma vida aniquilável e fora da utopia do corpo – não reconhecida sequer como vida,
mas como criminalidade, deficiência e perigo. E sei que até para as mães menos
intransigentes, a transgeneridade no Brasil ainda é uma guerrilha difícil, calejada de
feridas diárias e violências silenciosas como as que sofremos pelo colonialismo que,
a custo do capitalismo e do espetáculo, invade as nossas privacidades tão dilaceradas
e, muitas vezes, inegociáveis. Este manifesto surge como uma arma da
clandestinidade intelectual. (LUSTOSA, 2016, p. 386)

115
Fig. 82: Cuts: A Traditional Sculpture, Heather Cassils, 2011; e Fig. 83: Taya Mijando, Marianne Greber, 2005.

Heather Cassils é uma artista performática e bodybuilder canadense. Seu trabalho usa
o corpo de forma escultural, integrando feminismo, arte corporal e estética masculina. Cassils
usou um domínio de fisiculturismo e nutrição para passar da identidade feminina a um corpo
masculino, com tratamento hormonal para ganhar 23 quilos de músculo ao longo de 23
semanas, em uma transformação muscular tradicionalmente de homens. Acima, na Figura 82,
Cassils já com seu corpo feminino transformado na performance Uma escultura tradicional,
de 2011, atualiza, mais uma vez, as proporções perfeitas do nosso ícone David e desconstrói a
lógica binária. “Há legitimidade nos corpos trans, no homem com vagina, na mulher com
pênis61.”.
Cada vez mais, percebemos indivíduos transgêneros que não sentem a necessidade de
alterar seu sexo biológico a fim de conciliar identidade e órgão sexual. As pessoas trans
devem ser chamadas de ele, ela ou como lhe for mais conveniente, com a mesma
autenticidade que alguém cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi
atribuído no nascimento. Assim como a performance de Cassils, a imagem da artista austríaca
Marianne Greber (Figura 83), do corpo de Taya, um corpo biologicamente masculino, na foto
com o pênis aparente, porém com seios, cabelos longos, vestido floral, sentada, como se
estivesse urinando como uma mulher, por exemplo, é a maior demonstração da apenas
aparentemente intransponível contradição entre biologia e gênero. Esse tipo de movimento

61
Amara Moira, escritora transexual e ativista.

116
artístico que valoriza o corpo transexual contribui, e muito, para dar visibilidade social aos
grupos sexuais que vivem as censuras político-culturais atuais ou que estão em ascendência,
saindo da clandestinidade.
Mais uma vez, reiteramos a nossa hipótese da importância da divulgação de imagens
como suporte ativista dos corpos transgêneros, considerados, até então, desobedientes ou
desviantes, pois são fundamentais por serem capazes de desestabilizar o discurso naturalizante
do sexo justamente em seu aspecto biológico. “A realidade não depende apenas das leis da
física ou estruturas de DNA, mas também de imagens culturais e ideologia.” (BORDO, 2000,
p. 40). As imagens podem ajudar na compreensão do gênero enquanto dado social e não
biológico, o que é extremamente importante para a sociedade brasileira, por exemplo, visto
que o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo62.
“Não somos mulheres, nem somos homens, nós somos gente”63.

Capítulo 3

Discutindo a relação

A partir da percepção da lógica machista e conservadora atual, este capítulo pretende


justificar a importância de uma pesquisa não focada no corpo feminino e, sim, no corpo
masculino enquanto ferramenta de desmistificação do patriarcado e a importância de envolver
o gênero masculino nas discussões feministas.

Precisamos rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária, precisamos de


uma historicização e de uma desconstrução autêntica dos termos da diferença sexual.
Temos que ficar mais atentas às distinções entre nosso vocabulário de análise e o
material que queremos analisar. Temos que encontramos meios (mesmo imperfeitos)
de submeter, sem parar, as nossas características à critica, nossas análises à
autocrítica. (SCOTT, 1989, p. 18)

A essa altura, nos perguntamos se o campo de estudos sobre masculinidades poderia


ser considerado fora de hora ou até mesmo atrasado quando comparados às teorias queer,
principalmente em função da definição do seu objeto de estudo. Considerar a masculinidade
ou homens como objeto – seja de estudo, ou de desejo – poderia acarretar consequências
62
Segundo dados da ONG Transgender Europe, em novembro de 2018. Disponível em: <https://transrespect.org/
en/map/trans-murder-monitoring/>.
63
Frase do grupo Dzi Croquetes.

117
teóricas e correr o risco de reforçarmos o binarismo, tão criticado atualmente. Todavia, se as
teorias de gênero avançam e os artistas promovem gatilhos para questionar a
heteronormatividade, o corpo masculino e seu cânone viril continuam resistindo a fim de
manter o status quo dominante, e padrões de hegemonia da masculinidade continuam sendo
repetidos em ambientes sociais específicos, como o doméstico. Nesse sentido, investigar sobre
masculinidades não significa apenas analisar o corpo masculino, mas discutir estereótipos
seculares e colaborar com a construção de outras versões de práticas discursivas, não
hegemônicas, que tenderam a transformar alteridade em desigualdade e hierarquia. Por certo,
ao longo da história, mulheres e trans têm sido alvo de injustiças sociais de ordens variadas e,
por mais conquistas que tenham alcançado, ainda estamos distantes de falar sobre uma efetiva
igualdade de gênero. E, por outro lado, muitos homens ainda enfrentam, cotidianamente, a
obrigação de responder ao modelo hegemônico de masculinidade. (MEDRADO & LYRA,
2008, p. 825).

Analisando as razões pelas quais o patriarcado manteve seu poder sobre os homens e
suas vidas, peço-nos que reivindiquem o feminismo para os homens, mostrando
porque o pensamento e a prática feministas são a única maneira de enfrentar
verdadeiramente a crise da masculinidade hoje. (hooks, 2004, p. 28)

3.1 Crise de identidade

Assistimos, no Brasil, no ano de 2017, uma onda conservadora; desde a censura da


exposição Queermuseu, Cartografia da Diferença, em Porto Alegre, em setembro desse ano,
à agressão à filósofa Judith Butler no aeroporto de Congonhas, em novembro, e a acusação de
pedofilia ao MAM-SP, após a performance La Bête, do artista carioca Wagner Schwartz
(Figura 84), também acusado, mesmo depois da instituição garantir que não havia conteúdo
erótico no trabalho. Na obra em questão, o artista nu, deitado na sala do museu, inspirado na
obra Bichos (1965) da artista brasileira Lygia Clark, se disponibilizava para manifestação do
público, que podia tocá-lo, modificar sua posição, atuar sobre ele como se fosse um
brinquedo. Uma criança, de cerca de quatro anos, acompanhada pela mãe, aproximou-se do
artista e seguiu a proposição de tocá-lo, em seus pés e canela, ato que foi considerado
pedofilia ou difamador dos bons costumes.

118
Fig. 84: A performance La Bête, Wagner Schwartz, 2017, MAM SP.

Seria interessante pensarmos se ali, ao contrário, estivesse um corpo feminino,


acostumado com a nudez exposta em museus, se toda celeuma seria criada. Toda a censura
aconteceu, justamente, pois o corpo nu masculino, ao contrário do corpo feminino, nunca
pôde ser vulgarizado, falado, aproximado, tocado. Assim como o conceito de masculinidade,
se transformou em uma espécie de tabu, congelado no tempo, passando ao largo das teorias
feministas, já que estas estão muito preocupadas com as imagens do corpo feminino, em sua
maioria. Precisamente por isto, esta pesquisa vai na contramão desses estudos, uma vez que
nosso levantamento histórico parte de imagens e representações do corpo masculino, sempre
intocado e protegido à margem das discussões de gênero – e aqui acreditamos que não
podemos ser indiferente a ele.

Hoje em dia me surpreendo que as mulheres que defendem a política feminista


tenham tão pouco a dizer sobre homens e masculinidade. (...) Enquanto algumas
mulheres ativas no movimento feminista se sentiam angustiadas com a nossa
incapacidade coletiva de converter massas de homens ao pensamento feminista,
muitas mulheres simplesmente sentiam que o feminismo lhes dava permissão para ser
indiferentes aos homens, para se afastar das necessidades masculinas. (hooks, 2004,
p. 26)

Não falar sobre o nu masculino pode ser mais uma armadilha do patriarcalismo, e
desmistificá-lo pode ser importante ferramenta de liberdade, tanto para as mulheres quanto
para os próprios homens. Se, durante muito tempo, o macho parecia absolutamente confiante
na sua virilidade, seguro do seu papel de homem na sociedade, confortável e seguro de si na

119
percepção da sua identidade visual, hoje em dia, os homens estão cada vez mais conscientes
da virilidade não como um fato dado, mas como um problema a ser negociado. “Se a
masculinidade se ensina e se constrói, não há duvida de que ela pode mudar.” (BADINTER,
1993, p. 29).

Segundo esta opinião, as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos


e nenhuma compreensão de qualquer um poderia existir através de estudo
inteiramente separado. Assim, Nathalie Davis dizia em 1975: “eu acho que
deveríamos nos interessar pela história tanto dos homens quanto das mulheres, e que
não deveríamos trabalhar unicamente sobre o sexo oprimido, do mesmo jeito que um
historiador das classes não pode fixar seu olhar unicamente sobre os camponeses.
Nosso objetivo é entender a importância dos sexos dos grupos de gênero no passado
histórico. Nosso objetivo é descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo
sexual nas várias sociedades e época, achar qual o seu sentido e como funcionavam
para manter a ordem social e para mudá-la. (SCOTT, 1989, p.3)

A identidade masculina padrão exige um processo de atenção constante, uma eterna


vigilância das emoções e do corpo. A vigília masculina a seu próprio respeito ainda é presa ao
modelo “tradicional” de masculinidade, como vimos anteriormente, fundamentado nas ideias
de força, virilidade, liderança e no interdito “homem não chora”. O privilégio masculino
resulta em uma armadilha no sentido que impõe à maioria dos homens a afirmação de
virilidade o tempo todo. Se, então, o patriarcado manteve seu poder sobre os homens e suas
vidas, é importante incluí-los nas discussões de gênero, mostrando por que o pensamento e a
prática feministas são a única maneira de enfrentar, verdadeiramente, a crise da masculinidade
hoje e não uma postura contra eles. Durante quanto tempo mais eles segurarão essa carga
milenar com medo de renunciar às suas vantagens? Pode o homem escapar da ordem do falo?

O patriarcado é, em seu conjunto, um sistema de dominação. Mas difere de outros


sistemas de dominação, como o racismo, a estrutura de classes ou o colonialismo,
porque vai direto na jugular das relações sociais e da integração psicológica – o
desejo. O patriarcado ataca o desejo, o anseio inconsciente que anima toda ação
humana, reduzindo-o ao sexo e depois definindo sexo nos termos politizados de
gênero. No patriarcado, o gênero denota uma estrutura de poder político, disfarçada
em sistema de diferença natural. (BORDO; JAGGAR (Org.), 1997, p. 46)

Não é possível fazermos um debate amplo sem pensarmos como as identidades são
criadas dentro da lógica patriarcal e ser o lado do debate que domina o pensamento. Segundo
a filósofa brasileira Djamila Ribeiro em seu O que é lugar de fala? (2017), quem possuiu o
privilégio social possui o privilégio epistêmico e, dessa maneira, o modelo valorizado de
ciência e pensamento é a partir do homem cisheteronormativo branco. Para ela, também é

120
fundamental que os indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado consigam enxergar
as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na
constituição dos lugares de grupos subalternizados. (RIBEIRO, 2017, p. 137). É preciso,
portanto, trazer os homens para a conversa e discutirmos nossa relação.

Quase todos os homens que tive nos últimos muitos anos eram, de um modo ou de
outro, broxas. A broxice é lato sensu. Queria dizer uma coisa para vocês: não liguem.
O patriarcado está em crise. A relação de um homem com a dureza do seu próprio pau
é de uma fragilidade tremenda, quase comovente. Arriscaria dizer que o patriarcado
foi inventado para mascarar essa fragilidade. Então, a coisa mais normal do mundo é
que, com o patriarcado em crise, a primeira coisa a cair seja o pau. Não liguem! Para
nós, mulheres, a esta altura da crise do sexo hétero, não faz tanta diferença. Mandem
ver nas chupadas, nas lambidas, nos dedos. Aprendam a chupar bem uma buceta.
Deixem entrar o dildo, os vibradores tudo – não como um concorrente, mas como
um aliado. (Quem sabe isso não ajuda até pra outras coisas da vida, não é
mesmo?). Podem ter certeza: pra gente, uma trepada assim pode ser muito melhor do
que um pau meia-bomba, uma foda de coelho ou um exibicionismo qualquer.
Aproveitem que ele já tá mole mesmo e esqueçam dele. Esquecer o próprio pau. Taí
um exercício que vale a pena. Pensar no pau mole, no que causou o pau mole, no que
os outros vão pensar do seu pau mole é ainda tentar salvar o patriarcado. Vamos
deixar ele morrer. Se o pau ficar mole no processo, que fique. Faz parte. Esquecer do
piru vai fazer o mundo ficar melhor.64

É cada vez mais evidente que o sexismo não mudará, a menos que os homens também
estejam profundamente engajados e parem de agir como se o patriarcado fosse um termo
inventado pelas mulheres contra os homens e não um sistema que os forma subjetivamente.
Apesar de ser um sistema social que assola o corpo e o espírito masculinos, a maioria dos
homens não usa a palavra “patriarcado” na vida cotidiana e não pensa em seu significado.
Quando escutam essa palavra, geralmente associam isso à liberação das mulheres, ao
feminismo, e descartam isso como se fosse irrelevante para suas próprias vidas. (hooks, 2004,
p. 17).

Deixe-me dar outra definição: “feminismo é o movimento que visa acabar com o
sexismo, com a exploração sexista e a opressão”. Adoro essa definição da bell hooks.
O feminismo também é benéfico para os homens. O feminismo é benéfico para as
pessoas trans. O feminismo é benéfico. Deixe-me explicar: se para ser homem de
verdade você não puder chorar, passar pelo luto ou amar, quem perde é você. O
feminismo serve para ajudá-lo a encontrar a paz com esses sentimentos. Não há nada
demais em ter sentimentos. Isso se chama vida. (TOLOKONNIKOVA, 2019, p. 247)

Se falamos, hoje, em crise da masculinidade, é importante ressaltar que lidamos com o


conceito de crise da masculinidade hegemônica, imponentemente viril, sem considerar as

64
Disponível em: <http://revistadr.com.br/posts/carta-aos-broxas/>.

121
diferenças e contradições de cada homem singular. A crise dessa masculinidade seria uma
teoria segundo a qual, graças ao avanços obtidos a partir das lutas feministas, os homens em
geral não saberiam mais como ser homem, já que o modus operandi de macheza foi proibido
pelo politicamente correto. Essa lógica, entretanto, parte de um pressuposto que existiu ou
existe em algum lugar inalcançável um modelo de virilidade verdadeira, não castrada.
Todavia, esse lugar mítico se encontra cada vez mais rarefeito. O passado viril, mesmo não
tendo existido de fato, produziu subjetividades a fim de sustentar um ideal. (AMBRA, 2019,
p. 18).

Os homens devem ser fortes, mais ainda, devem se mostrar fortes. Porém
considerados, ou se considerando como “naturalmente” viris, os homens temem
acima de tudo serem descobertos na sua vulnerabilidade, serem reconhecidos na sua
impotência. De maneira que a dominação masculina poderia também ser explicada
como uma tentativa de dominação da impotência masculina. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 160)

Se a virilidade é uma afirmação de potência, a impotência é a assombração primordial,


que ronda todas as práticas e afirmações viris. Esse fantasma da derrota, seja esportiva, sexual
ou moral, é revertida, portanto, na obsessão da dominação. No fundamento da dominação
viril, o temor da impotência move a psique masculina interminavelmente atrás de uma
onipotência supostamente perdida, seja muscular, sexual ou outros valores machos.

O objeto do mito, continua Lévi-Strauss65, é de fornecer um modelo lógico a fim de


resolver uma contradição. Poder-se-ia acrescentar imediatamente: o mito viril se
aplica a resolver a insolúvel contradição entre os desejos de onipotência e as
realidades da impotência masculinas. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO
(Org.), 2013, p. 160)

A dificuldade de falarmos em crise de masculinidade vem do fato que a identidade


masculina sempre nos pareceu muito sólida, naturalizada como verdade permanente. É
também importante ressaltarmos que, hoje, o que talvez estejamos acompanhando, não seja
uma crise exclusiva da masculinidade e a decadência do homem, mas, de certa forma, o
colapso das identidades como um todo. A suposta crise da identidade masculina pode estar
referida a uma crise da própria lógica identitária, já que as fronteiras consideradas nítidas das
identidades se tornaram instáveis e incapazes de oferecer a segurança ontológica de outrora.
(CUNHA, 2019, p. 26).
65
LÉVI-STRAUSS, C. L’Anthropologie structural. T.I. op. cit., p. 254.

122
Está em jogo, antes de mais nada, uma narrativa idealizada sobre si, fundada na
impossibilidade de aceitar o fato de que o mito é, e sempre foi, uma farsa. A
chamada masculinidade frágil ou tóxica é, portanto, aquela que não suporta se olhar
no espelho e ver-se diferentes dos seus ideais. E, para combatê-la, é preciso não
apenas denunciá-la do ponto de vista das suas consequências, mas, igualmente,
compreender como homens representam-se a si mesmos, quais fantasmas permeiam
seus atos e, principalmente, quais contradições e alternativas podem florescer de
uma análise detida sobre a masculinidade. (AMBRA, 2019, p. 16)

3.2 Virilidade e violência

“Boys don’t cry”. (The Cure)66.


A masculinidade, enquanto um bloco homogêneo, serve para reiterar a noção de
patriarcado. E, dentro dessa noção, na sociedade capitalista, o poder masculino é,
tradicionalmente, visto como sinônimo da capacidade dos homens de prover financeiramente.
No entanto, à medida que mais e mais mulheres têm acesso à esfera do trabalho e podem
prover a família, esse atributo centralmente definidor da masculinidade patriarcal perdeu
significância. Além disso, à medida que o movimento feminista e a chamada revolução sexual
mudaram a noção de que a ação da iniciação sexual era, exclusivamente, de propriedade dos
machos, outro significante da masculinidade patriarcal também perdeu significado.
Entretanto, se mudanças na força de trabalho baseadas em gênero e na política sexual
fizeram com que os papéis sexuais fossem modificados, mesmo assim, muitas noções
patriarcais ideológicas de masculinidade permaneceram intactas, mesmo quando essas noções
não têm mais base real. Cada vez mais a virilidade se vê confrontada, com a contestação dos
seus mais antigos privilégios, atiçando enormemente as angústias masculinas. Os principais
meios de comunicação, em particular os filmes e a televisão, refletem as atuais condições dos
gêneros, mas, ao mesmo tempo, continuam a reforçar o pensamento e ação patriarcais de
forma contraditória. A maioria dos homens escolheu não mudar, e a mídia de massa
conservadora apoia a permanência deles no lugar, mantendo os estereótipos dominantes. O
sistema de representação falocrata das imagens ao qual pretendemos furar, continua insistindo
em reproduzir os antigos padrões, e a mídia de massa, apesar de focar, hoje, na violência

66
Música escrita por Robert Smith, da banda inglesa The Cure, em 1979, que declarou, recentemente, em
entrevista à revista Rolling Stone EUA, sobre a inspiração para a música: "Quando eu era criança, havia uma
pressão dos colegas para que você se adaptasse de uma certa maneira. E, como um garoto inglês na época, você
é incentivado a não demonstrar sua emoção em nenhum grau. Eu não pude deixar de mostrar minhas emoções
quando era mais jovem. Eu nunca achei estranho mostrar minhas emoções. Eu realmente não poderia continuar
sem mostrar minhas emoções”. Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/historia-por-tras-de-
boys-dont-cry-do-cure/>.

123
masculina e no aumento das estatísticas de feminicídio, ainda se recusa a vincular esse foco
ao patriarcado diretamente, por exemplo. Tentaremos, então, a partir de jornais e revistais
atuais, reconhecermos as mensagens subliminares nas imagens como perpetuação do antigo
status quo e resistência masculina para manutenção de antigos privilégios.

O material desta reflexão veio a ser muito variado (um artigo de jornal, uma
fotografia de semanário, um filme, um espetáculo, uma exposição) e o assunto muito
arbitrário: tratava-se, evidentemente, da minha atualidade. O ponto de partida desta
reflexão era, o mais das vezes, um sentimento de impaciência frente ao “natural” com
que a imprensa, a arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade que,
pelo fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser, por isso, perfeitamente
histórica. (BARTHES, 2013, p. 11)

A contínua obediência dos homens a uma noção de masculinidade que não pode mais
ser plenamente realizada nos termos antigos, levou-os a colocar maior ênfase em sua
capacidade de dominar e controlar por força física e terrorismo psicológico abusivo. Se na
arena pública os homens não podem mais reivindicar o controle patriarcal ou suas chefes
passaram a ser mulheres, esses homens se sentiram incentivados a realizar os rituais de
dominação patriarcal na esfera privada, por exemplo. (hooks, 2004, p. 127). E, como
consequência, a incidência de violência masculina contra mulheres aumentou67.
A violência não só aumentou como também foi justificada pelo ex-ministro da Justiça
Sérgio Moro, que assim publicou em sua conta no Twitter, em agosto de 2019: “Talvez nós,
homens, nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade. Por
conta disso, parte de nós recorre, infelizmente, à violência física ou moral para afirmar uma
pretensa superioridade que não mais existe”68.

Respostas violentas de homens em relação às suas companheiras, assim como gays,


trans e todas as identidades não heteronormativas, apontam para valores vigentes em
nossa cultura, em que o sentimento de humilhação, para muitos, não pode ser
admitido como algo do universo masculino. A resposta violenta visa o resgate
imaginado da autoestima por meio de uma demonstração de poder sobre a mulher,
condição entendida como essencial e natural para a manutenção da virilidade dentro
do sistema de valores predominante em nossa cultura. Venho afirmando há alguns
anos que, inversamente do que possa parecer, a necessidade de manutenção de
denominação e de poderes fixos constituídos não representa uma condição de poder;
pelo contrário, revela a falta do mesmo. (MUSZKAT, 2019, p. 23)

67
No Brasil, foram 1.047 casos de feminicídio em 2017 e 1.173 casos no ano passado. A cada duas horas, uma mulher
morre assassinada vítima de crime de ódio, segundo o site G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-
violencia/noticia/2019/03/08/cai-o-no-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-mas-registros-de-feminicidio-crescem-no-
brasil.ghtml>.
68
Disponível em: <https://twitter.com/sf_moro/status/1159166897243545600>.

124
A psicanalista paulistana Susana Muszkat cunhou o termo “desamparo identitário”
justamente para definir o tipo de violência praticada em função de um sentimento
desnorteador de precariedade pessoal e fracasso. O ato violento, segundo ela, visaria
recuperar o sentimento de virilidade, definido como força, poder e superioridade. Sua fonte de
autoestima se garantiria a partir de uma posição de superioridade em relação ao outro, que
acredita-se ter menor valor (MUSZKAT, 2019, p. 23). Para o jornalista norte-americano Will
Carless – especializado em cobertura de crimes de ódio e extremismo nos E.U.A. do Reveal,
The Center for Investigative Reporting, em entrevista para a Revista Vice (novembro, 2018) –
em todos os países, seja na Europa, nos Estados Unidos, ou no Brasil, a extrema direita
racista, autoritária, ou fascista, é predominantemente masculina. Carless, que hoje vive no Rio
de Janeiro, ainda completa que complexos estudos que investigam o movimento neonazista
identificam um problema grave entre este e a figura da mulher (CARLESS, 2018). É a
frustração masculina que decide os rumos políticos do Brasil hoje.69 Para nós, é crucial
percebermos como a misoginia é sintomática neste momento. A heterossexualidade normativa
ainda é a ideologia em vigência no Brasil. A heterossexualidade deixa de ser pensada como
prática sexual e se transforma em regime político. (PRECIADO, 2018, p. 78).
Apesar do avanço dos estudos de gênero, o brasileiro machista não se sente
confortável em um mundo heterogêneo e diversificado. Ele ainda considera que a família
nuclear e heterossexual é a única possível e que esse formato patriarcal estava perdendo
espaço para formatos mais fluidos. E, assim, valores pregados pela extrema direita, da
tradição, família, propriedade e Deus acima de todos, passou a ser uma esperança de
manutenção do status quo. Houve um homem negro ocupando a presidência norte-americana,
uma mulher ocupando a cadeira presidencial no Brasil, movimentos feministas esfuziantes, a
reivindicação de salários igualitários, campanhas contra assédio, população de imigrantes
aumentando e políticas públicas a favor de grupos minoritários representavam um pacote
bombástico e ameaçador ao seu lugar de privilégio.
O sociólogo Michael Kimmel é um estudioso da masculinidade e do surgimento do
que ele considera o homem branco raivoso, inclusive título de seu livro mais
conhecido, Angry White Men, lançado em 2013 e reeditado em 2016, após a eleição de
Donald Trump, já que, segundo ele, esses homens irritados estavam à espera de um líder que
finalmente incorporasse seus sentimentos. Segundo Kimmel:

69
Revista Vice. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br>.

125
Eles estão zangados com os imigrantes, que, eles acreditam, estão deslocando-os na
força de trabalho. Eles estão zangados com os capitalistas, que, na visão deles,
reduzem o tamanho do salário e os terceirizam para fora de seus empregos, demolem
as comunidades e, em seguida, voam em seus aviões particulares, e saltam em
paraquedas dourados em alguma ilha de paraíso fiscal. Eles estão com raiva de
burocratas irresponsáveis, que são surdos aos seus gritos de socorro e só para si
mesmos. Eles estão zangados com as mulheres, que, argumentam, são bonitas,
sensuais e sexualmente disponíveis – mas os recusam com desprezo desdenhoso.
Dizem que estão zangados com as esposas (o que é diferente de ficarem zangados
com as mulheres), que mantêm os homens no controle como responsáveis e
provedores, trabalhando em empregos que odeiam para chefes que são idiotas
caprichosos, apenas para pagar-lhes faxineiras, o divórcio, arrebatando as crianças e
deixando-os sem dinheiro e sem filhos. E, finalmente, eles dizem que estão com raiva
de um governo que, na melhor das hipóteses, não ajuda em nada e, na pior das
hipóteses, agrava o problema por meio de suas políticas. (KIMMEL, 2017, p. 17)

A jornalista Eliane Brum, em artigo de janeiro de 201970 (BRUM, 2019), discorre


sobre o que a maioria dos homens, em especial o homem branco e heterossexual, entendia
como direito. Falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher, por exemplo, já
não é mais possível. As mulheres disseram a eles com uma ênfase inédita que não seria mais
possível fazer gracinhas nas ruas, nem assediá-las no trabalho ou em qualquer lugar. Na
mesma direção, os LGBTQI+71 se fizeram mais visíveis na exigência dos seus direitos, entre
eles o de existir, e passaram a denunciar a homofobia e a transfobia. Figuras públicas
como Laerte Coutinho anunciaram-se como mulher sem fazer cirurgia para tirar o pênis. O
que há entre as pernas já não define ninguém, as tradicionais piadas de “viado” tornaram-se
inaceitáveis. E a posição de homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão
questionada como nos últimos anos. A suspensão desses considerados “privilégios”, acirrada
pelo desamparo de uma crise econômica e a ameaça de desemprego, e assombrados por
mulheres até mesmo dentro de casa, os fazem reagir. Como se sentem fracos, reagem com
força desproporcional.

Se ser sexualmente ativo e sustentar financeiramente a família, ser um líder,


assumindo a autoridade na casa e no trabalho eram requisitos primordiais para ser
considerado um homem, questiona-se os modelos de “ser homem” no presente. Mas
Anthony Giddens repreende: “O falo é apenas o pênis: Que descoberta estarrecedora
e desconcertante para ambos os sexos! As reivindicações de poder da masculinidade
dependem de um pedaço de carne pendente”. Com a emancipação sexual, o pênis não
mais cumpre com a finalidade particular de reproduzir sexualmente, passando por
uma metafórica “castração”. Além disso, ele não é mais o único presumível a dar

70
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html>.
71
LGBTQI+ é a sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros, Queer,
Interssexo e quaisquer pessoas que não se sintam representadas por nenhuma das outras letras.

126
prazer à mulher, com o advento do “vibrador” e a crescente discussão acerca da
masturbação feminina. (OGASSAWARA, 2007)72

Se faz pertinente, neste momento, estarmos em alerta sobre a insistência da repetição


de imagens remanescentes do antigo mito masculino. Acreditamos, portanto, que a pesquisa e
disseminação das imagens do corpo masculino, em suas mais diferentes formas, poderão
funcionar como uma nova narrativa documental para esses corpos e quebra de tabus, trazendo
os homens para o centro da conversa. Partimos da hipótese de que é fundamental que
indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado consigam enxergar as hierarquias
produzidas a partir do seu lugar. Falar sobre o nu masculino e desvendá-lo são importantes
ferramentas de liberdade, inclusive para os próprios homens.

Uma nova política do gênero para os homens significa novos estilos de pensamento,
incluindo uma disposição a não ter certezas e uma abertura para novas experiências
e novas formas de efetivá-la. No dia em que fotografias com homens carregando
armas se tornarem raras e fotografias com homens empurrando carrinhos de bebê se
tornarem comuns, aí saberemos que estamos realmente chegando a algum lugar.
(CONNEL, 1995, p. 205)

A propagação das novas imagens na nudez masculina são recursos poéticos com
potencialidades para desconfigurar padrões, formar um novo regime de identidade e avançar
nas discussões referentes à sexualidade e suas manifestações da maneira mais plural possível.
A sua difusão do nu masculino e naturalidade na sua apresentação colaborariam para a
dissociação do mito fálico agregado a esse corpo.

As fotografias são interessantes na medida em que podem reinscrever novas


fronteiras de uma corporalidade pública masculina. No entanto, os critérios para a
escolha dos modelos e das fotos ainda parecem ser impostos pelos limites do
socialmente hegemônico, pelo valor do visual que é socialmente construído. Dessa
maneira, quando o assunto é nudez masculina, há um universo de ausências nas
fotografias. Há uma omissão em relação às imensas possibilidades de inclinações
eróticas e a aparência física tida como inadequada aos padrões estéticos
considerados ótimos. (SILVA, 2015, p. 132)

72
Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0451-1.pdf>.

127
4
Considerações finais

Dado que o patriarcado é uma estrutura histórica, não uma dicotomia intemporal de
homens dominando as mulheres, ele será extinto por um processo histórico. O
problema estratégico consiste em gerar pressões que culminarão numa
transformação da estrutura; e vale a pena tomar qualquer iniciativa que coloque
pressão nessa direção. […] A maior parte desse trabalho é, sobretudo, educacional.
Ele envolve tentar reformular o conhecimento, expandir a compreensão e criar
novas capacidades para a prática. Penso que podemos valorizar esse fato e construir
em cima disso. (CONNEL, 1995, p. 204)

O sistema iconográfico de dominação masculina construído ao longo dos séculos


começou a ruir e, no final do século XX, a virilidade dissociou-se do corpo masculino
atlético, heroico e musculoso, de quem foi, durante tanto tempo, emblema. Como
compreender que esta representação baseada na força, na autoridade e no domínio tenha
acabado por parecer agora instável e contestada? (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO
(Org.), 2013, p. 11). Hoje, a narrativa da dominação masculina não se impõe mais como algo
indiscutível. Isso, em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista
que conseguiu romper o círculo do reforço generalizado e da repetição de estereótipos nas
mais diversas áreas.

Cabe perguntar se a discussão que orbita ao redor dessa representação hegemônica


de masculinidade, no singular, pode abarcar e libertar as mais distintas experiências
de homens de diferentes vivências eróticas, corporais, de classe e raça. Afinal, como
desconstruir uma masculinidade aprisionada entre o mito e o fracasso, sem tornar a
desconstrução um novo ideal inalcançável? (AMBRA, 2019, p.19)

Na presente dissertação Ninguém nasce viril, torna-se viril: representações do corpo


masculino na arte contemporânea, nos deparamos com as questões de que não só a categoria
“mulher” era atravessada por marcadores sociais diversos, mas também a categoria “homem”
é profundamente instável e repleta de especificidades (HOLLANDA, 2018, p. 356). Se as
mulheres são submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las, os homens
também são prisioneiros da representação vigente, exigindo-lhe provas de bravura, distinção
pública, participação em jogos de violência e outros signos de virilidade. “Não se nasce
homem, torna-se homem, portanto”, é a essência do nosso tema, em diálogo com Simone de
Beauvoir e a sua obra O Segundo Sexo, A Experiência Vivida: “Ninguém nasce mulher: torna-
se mulher” (BEAUVOIR, 1949, p. 11). A virilidade tampouco é dada logo de início,

128
biologicamente incorporada ao corpo masculino em seu nascimento. A virilidade faz parte de
um conjunto de processos educativos e sociais que visa a dominação masculina, ideologia
vigente dentro do nosso sistema político patriarcal.
Todavia, discutimos a construção histórica de práticas que perpetuou a dominação dos
homens sobre as mulheres enquanto definição de masculinidade hegemônica, rechaçamos os
ditames da biologia sobre a determinação de sexo, tomando por base autores que pensam o
corpo enquanto resultado da estrutura social e também as teorias de gênero e estudos queer.
A fim de compreendermos como se sustentou subjetivamente um sistema de
representação, em nosso corpo teórico relacionamos desde a noção de “Outro” de Simone de
Beauvoir com a questão de alteridade a partir de Stuart Hall; pensamos a ordem social
enquanto imensa máquina simbólica que naturalizou a dominação masculina sobre os corpos,
seja nas instituições ou no espaço doméstico, em Pierre Bourdieu; discutimos o conceito de
falo na psicanálise de Sigmund Freud como uma criação da cultura organizada segundo a
divisão hierárquica de gêneros; também tomamos por base o conceito de biopolítica de
Michel Foulcault apresentado por ele em 1988, mas atualizado por pensadoras/res feministas
contemporâneas/os como Paul Preciado, Susan Bordo e Judith Butler, que respondeu tanto a
Beauvoir quanto a Foucault defendendo a desnaturalização das perspectivas de gênero
conectadas ao sexo do nascimento e da heterossexualidade compulsória.
Durante séculos, o nu masculino carregou significados políticos, patrióticos, religiosos
e morais para incentivar a identificação do espectador. O corpo masculino ainda sobrevive
vestido desses ideais falocêntricos e a herança greco-romana do ideal clássico permaneceu
como o ideal de perfeição física até hoje, por exemplo. Foi, portanto, realizado um
levantamento histórico de imagens da História da Arte e cultura visual de massa desde David
de Michelangelo, cânone máximo do ideal masculino, desde 1500, ao jogador metrossexual
David Beckham, passando pelo Homem de Marlboro, cinema hollywoodiano, revistas de
fisiculturismo, publicidade e revistas de moda, além da fotografia homoerótica e esportes, a
fim de percebermos a eficácia desse sistema de representação imagético construído sobre o
corpo masculino promovendo a virilidade enquanto força dominante e tentativa de
naturalização do sexo e gênero.
Contudo, é também justamente através das imagens que podemos denunciar a
repetição dos símbolos e a persistência de certos ícones que sobrevivem até hoje reforçando
os antigos papéis sociais. O estudo iconográfico nos ajuda a compreender, justamente, a
relação entre a linguagem visual, valores estéticos e as ideologias dominantes nas diferentes
épocas. Este estudo se faz ainda mais necessário ao considerar que muitas das convenções e

129
tradições representacionais do passado estabelecem, ainda, precedentes que influenciam a
construção e manipulação de imagens na contemporaneidade. A escolha do grupo de imagens
nesta pesquisa não se deu para ilustrar a construção estética do corpo físico masculino, mas
para fornecer subsídios para percebermos não só a sobrevivência de signos conservadores
ainda nos dias atuais, mas, também, afirmar a possibilidade de novas leituras, evitando a
repetição de fórmulas inadequadas no futuro.
Consideramos que não falar sobre o nu masculino e mantê-lo enquanto tabu é mais
uma armadilha do patriarcalismo. Esta pesquisa teve, portanto, como objetivo principal,
rastrear imagens do corpo masculino na contemporaneidade, entretanto, privilegiando artistas
e autores que desviaram-se dos códigos tradicionais da representação da masculinidade viril.
Defendemos, ainda, como hipótese, a disseminação da diversidade de imagens desse corpo
como estratégia para sua desmistificação. A divulgação de novas imagens da nudez
masculina, vistas agora de uma forma plural, funcionará como estímulo para reconfigurar
padrões, propor um novo regime de identidade e ferramenta para avançar nas discussões
referentes à sexualidade e suas manifestações de maneira mais plural possível, desassociadas
do antigo modo patriarcal de produção de significados.
Somos, sem dúvida, produtos dessa dominação histórica e crescemos sob o ideal
patriarcal; entretanto, a partir da análise de imagens, podemos perceber as diversas estratégias
de cada artista não apenas enquanto produtos do seu meio, mas agentes sociais investigadores
e provocativos capazes de trazer em suas obras novos paradigmas acerca da família, do sexo e
das relações sociais entre o masculino e o feminino.
Foram analisados os trabalhos de artistas, a partir da década de 60, na contramão do
cânone viril, desde a objetificação do macho a partir do desejo feminino em contrapartida à
representação narcísica da arte homoerótica; o corpo negro protagonista da representação de
si e não mais estereotipado enquanto objeto das lentes e olhares brancos; o corpo velho e
gordo antes proibitivos na publicidade e na cultura de massa em geral e o corpo
biologicamente desobediente, o corpo trans. Através de depoimento dos/das artistas ou do
contexto na qual estão inseridas ou inseridos e do bastidor teórico, conseguimos perceber
quais estratégias foram utilizadas para subverter os estereótipos e problematizar as questões
de gênero.
Nesta pesquisa, também nos chamou a atenção a quantidade atual de matérias de
jornais e revistas sobre a crise da masculinidade enquanto modelo ideal e o consequente
aumento da violência física contra as mulheres e transexuais em contrapartida ao avanço das
conquistas femininas e dos direitos LGBTQI+. Discutimos, portanto, a falência identitária e o

130
fracasso dos homens ao tentarem corresponder ao ideal viril e tentamos, mais uma vez
justificar a importância desta pesquisa focada no corpo masculino enquanto forma de
envolver o gênero masculino nas discussões feministas, tentando promover uma discussão
mais inclusiva.

131
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