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Rio de Janeiro
Dezembro 2020
GABRIELA MASSOTE LIMA
Rio de Janeiro
Dezembro 2020
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, professora Drª. Cláudia de Oliveira que, com sua generosidade
intelectual, profissionalismo e disponibilidade, me acompanhou ao longo deste
trabalho, estimulando e contribuindo imensamente para a construção do mesmo.
Aos membros da banca, por gentilmente haverem aceitado o convite para participar
da defesa da minha dissertação de Mestrado, professores doutores Carlos Azambuja, Tatiana
Martins e, em especial, Tamara Quírico, pelo carinho com que me acompanha desde a
graduação. Igualmente, agradeço ao professor doutor Paulo Jordão, por ter participado de
minha banca de qualificação e muito acrescentado para o desenvolvimento posterior de minha
pesquisa.
À minha família, pelo apoio incondicional e, em especial, aos meus pais, Paulo
Roberto Siqueira Lima e Carmen Lúcia Massote Lima, que acreditaram em minha escolha,
formaram meu caráter e incentivaram, mesmo à distância, todo o processo para conclusão
desta importante etapa de minha formação.
E, por fim, aos colegas que partilharam de modo afetuoso deste processo, Fernanda
Estevam, Joana Martins, Júlia Calvet, Lucas Gibson, Nataly Costa e também ao sempre
prestativo e eficiente Renato Vieira, chefe da Secretaria do PPGAV.
5
O material desta reflexão veio a ser muito variado (um artigo de jornal,
uma fotografia de semanário, um filme, um espetáculo, uma exposição)
e o assunto muito arbitrário: tratava-se evidentemente da minha
atualidade. O ponto de partida desta reflexão era, o mais das vezes, um
sentimento de impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a
arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade que, pelo
fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso
perfeitamente histórica. (BARTHES, 2013, p.11)
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RESUMO
LIMA, Gabriela Massote. Ninguém nasce viril, torna-se viril: representações do corpo
masculino na arte contemporânea. Orientadora: Profª. Cláudia de Oliveira. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGAV-EBA, 2020. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais, na linha de Imagem e
Cultura).
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ABSTRACT
LIMA, Gabriela Massote. One is not born, but rather becomes, a man: representations of
the male body in contemporary art. Advisor: Prof. Cláudia de Oliveira. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGAV-EBA, 2020. Dissertation (Master in Visual Arts, line of Image and Culture).
Virility shapes a set of values, norms and rituals, while being a burden at the same time. Over
the decades, however, this system of representations has tended to degenerate. The
dissertation One is not born, but rather becomes, a man: representations of the male body in
contemporary art intends to deal with the representation regime built from the imagery
repertoire of male bodies, which formed a discourse about man and his virility from not only
a physical, but also social ideal. The text aims to understand which virile myths and classic
icons still survive today, however it seeks to privilege images of the male body in
contemporary times, which, precisely, deviate from the traditional codes of representation.
From the theories of gender and the notion of the body as a social construction, one of the
main points is to think, how an imaginary representation regime was built as a discourse of
power for the naturalization of the ancient domination of men over women, reinforcing
patriarchy as a mode capitalist and symbolic production.
8
LISTA DE FIGURAS:
9
Fig. 32: David, Sam Taylor-Wood 64
Fig. 33: Sleep, Andy Warhol 64
Fig. 34: Sem título, da série Sex Parts & Torsos, Andy Warhol 65
Fig. 35: Anúncios de camisa unissex American Apparel, reprodução de internet 67
Fig. 36: 8 de junio, las modelos libran, Alicia Framis 68
Fig. 37: Cássio Reis para Revista TPM #99, reprodução da internet 69
Fig. 38: Esnar Ribeiro em G Magazine #35, Bauer Studio/G Magazine 71
Fig. 39: O deputado estadual Amauri Ribeiro, reprodução de internet 73
Fig. 40: Presidentes de chapéu cowboy, reprodução de internet 74
Fig. 41: Torso/Ritmo, Anita Malfatti 76
Fig. 42: Grande Nu, Georges Braque 76
Fig. 43: O banho turco, Jean-Auguste-Dominique Ingres 79
Fig. 44: O banho turco, Sylvia Sleigh 79
Fig. 45: Object series, Alexis Hunter 80
Fig. 46: Landscape #160, Eunice Golden 81
Fig. 47: Compre maçãs, anônima séc. XIX e Compre minhas bananas, Linda Nochlin 82
Fig. 48: Pick a dick, Guerrilla Girls 83
Fig. 49: Série Still Dick, Elizabeth Ubbe 84
Fig. 50: Louise de Bourgeois, Robert Mapplethorpe 85
Fig. 51: Sem título, da série Fábrica Fallus, Márcia X 85
Fig. 52: A origem do mundo, Gustave Courbet 86
Fig. 53: A origem da guerra, Orlan 86
Fig. 54: Still do vídeo Picolés, Gloria Camiruaga 87
Fig. 55: Comece o dia com um bom café da manhã juntos, Pixy Liao 87
Fig. 56: Got a salmon on (Prawn), Sarah Lucas 88
Fig. 57: Beach Triptych #20, Alair Gomes 89
Fig. 58: Still do vídeo Ilha dos Prazeres, Anita Boa Vida 89
Fig. 59: Encounter #37, Paula Winkler 90
Fig. 60: Sem título, da série Imagens de homens, Viktoria Tremmel 92
Fig. 61: Still do vídeo Dimensões variáveis, Javier Castro Rivera 93
Fig. 62: A estátua de um sátiro, reprodução internet 95
Fig. 63: O atleta Linford Christie, reprodução de internet 95
Fig. 64: Man in Polyester Suit, Robert Mapplethorpe 97
Fig. 65: Snap Shot, Rotimi Fani-Kayode 97
10
Fig. 66: Body, John Edmonds 98
Fig. 67: Cartaz de Museu do Homem do Nordeste, Jonathas de Andrade 99
Fig. 68: Derrubador Brasileiro, Almeida Júnior 99
Fig. 69: Frame de The Mythic Being, Adrian Piper 100
Fig. 70: Self Portrait (Front, Dark, shadow), John Coplans 102
Fig. 71: Foxy Mister, Tomislav Gotovac 102
Fig. 72: Leigh Bowery, Bruce Bernard 104
Fig. 73: I Miss You, Franko B 105
Fig. 74: Ilustração de Carlos Radrígues, reprodução de internet 106
Fig. 75: David, de Miguel Ángel Rojas 107
Fig. 76: Butcher IV, Odires Mlaszho 107
Fig. 77: Rrose Selavy, Man Ray 109
Fig. 78: Diane Torr em performance, reprodução de internet 109
Fig. 79: Experiência nº 3 de Flávio de Carvalho, reprodução de internet 110
Fig. 80: Facial hair transplant, Ana Mendieta 111
Fig. 81: Bandeira BAFO 1, Tertuliana Lustosa 114
Fig. 82: Cuts: A Traditional Sculpture, Heather Cassils 115
Fig. 83: Taya Mijando, Marianne Greber 115
Fig. 84: A performance La Bête de Wagner Schwartz, reprodução de internet 118
118
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SUMÁRIO
Introdução 12
Capítulo 1: Sobrevivência dos clássicos 18
1.1 Problemas de gênero 19
1.2 Representação e alteridade 29
1.3 Identificação visual 34
1.4 A construção do mito fálico 39
1.5 Sobrevivência dos clássicos 42
1.6 De David de Michelangelo a David Beckham 56
1.7 Cultura visual da masculinidade 66
1.8 O Homem de Marlboro não morreu 70
Capítulo 2: Novas representações na arte contemporânea 75
2.1 Lugar de falo e lugar de fala 76
2.2 Dimensões e cores variáveis 93
2.3 O rei está nu 101
2.4 O corpo desobediente 109
Capítulo 3: Discutindo a relação 116
3.1 Crise de identidade 117
3.2 Virilidade e violência 122
Considerações finais 127
Referências bibliográficas 131
1
12
Introdução
Não bastaria dizer que ela (masculinidade) atua nos discursos, ou se constitui como
uma estrutura de poder, que integra a economia psíquica dos agentes, ou que é
histórica, ideológica, identitária, predispondo comportamentos ao prescrever
atitudes especiais em situações distintas, ou que recobre um sistema de valores ou
fundamenta certo tipo de estética. Dependendo da perspectiva adotada, sempre seria
insuficiente qualquer uma dessas definições. (OLIVEIRA, 2004, p. 14)
1
Citação do grupo Dzi Croquetes.
13
A representação do corpo humano – exposto em plena nudez ou escondido por
vestes, véus, folhas de parreira – expressa a mentalidade de uma época, os valores
predominantes em uma cultura. Esculpido, pintado, fotografado, o corpo é sempre
mais que um objeto de arte ou de mero consumo visual banalizado: desvela uma
concepção de homem. O que o encobre ou despe é, antes de mais nada, o valor ou o
desvalor que lhe é atribuído, sua dignidade ou sua abominação, sua fragilidade ou
sua força, sua natureza pecaminosa ou sua virtude. A representação do corpo está
sempre carregada de vetores axiológicos: é um campo de valores entrecruzados,
frequentemente em conflito. (PESSANHA, 1992, p. 43)
O estímulo maior para esta dissertação reside, justamente, na crença de que, a maneira
como lemos a história pode ser ressignificada e os ícones desconstruídos e, assim, permitir
novas perspectivas ao patriarcado e aos paradigmas acerca da família, do sexo e das relações
binárias de gênero. Um movimento reverso, como a propagação e expressão de um outro
modelo de corpo, sugeriria uma problematização nas relações sociais e nos parâmetros atuais
de cultura, assim como um ruído na naturalização histórica da dominação masculina.
A partir desse contexto, discutiremos a masculinidade enquanto construção histórica e,
para tal, tomaremos por base autores que pensam o corpo enquanto resultado da estrutura
social. Nos utilizaremos das teorias de gênero e da noção de corpo enquanto construção social
a partir de autores como Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Judith Butler, Paul Preciado,
e Pierre Bourdieu, entre outros. Para a leitura das imagens, tomamos como base teórica a
leitura de autores que refletem sobre cultura visual como Susan Bordo, Stuart Hall e John
Berger, entre outros. O título do trabalho faz diálogo direto com Simone de Beauvoir e a
máxima do volume dois de O Segundo Sexo, A Experiência Vivida (1949): “Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher”2 (BEAUVOIR, 1949, p.11). A filósofa já denunciava, há 70 anos, o
corpo submetido a tabus, valores e costumes, e afirmava que as condições femininas ou
masculinas não se originavam de uma ordem natural das coisas. Dados biológicos não
justificavam a supremacia masculina ou o mito fálico associado ao corpo do homem. A
virilidade tampouco é dada logo de início, segundo Corbin, Courtine e Vigarello, ao
afirmarem que “a virilidade não era um atributo natural do homem, mas fruto de um conjunto
de processos educativos e sociais visando perpetuar a dominação masculina.” (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 207). Portanto: Não se nasce homem, torna-se
homem.
2
Do original “On ne naît pas femme, on deviant femme”.
14
fazem um homem não ser uma mulher. Identificados definitivamente em 1956, os
cromossomos sexuais definem o sexo genético masculino e simbolizam a origem da
história do homem. Mas se XY é de fato a condição primeira do ser humano
masculino, não é suficiente para caracterizá-lo. Existem pessoas XY, fisicamente
normais, que desconhecem sua identidade masculina; outras adquirem a despeito de
anomalias genéticas. O tornar-se masculino envolve fatores psicológicos, sociais e
culturais que nada tem a ver com a genética, mas desempenham papel não menos
determinante, talvez mais, do que ela. (BADINTER, 1993, p. 3)
15
de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa
identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer
um sentido de pertencimento a um grupo social de referência. Nada há de simples ou
de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo
tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. Somos sujeitos de muitas
identidades. Essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente
atraentes e, depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e
abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as
identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter
fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais.
(LOURO, 2000, p. 12)
A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo tem como objetivo
entender teoricamente a formação histórica dos discursos de poder e dominação sobre os
corpos a partir de exemplos não só da arte, mas da cultura visual de modo geral, abrangendo
desde a mídia, cinema e publicidade. Além de apresentarmos imagens históricas da arte e
cultura visual de uma forma em geral, pensaremos a questão da alteridade a partir de Stuart
Hall relacionada à categoria do “Outro” criada por Simone de Beauvoir. Ainda discutiremos
autores como Michel Foucault, que entende o corpo como sustentáculo das relações de poder
que se articulam na história da sociedade ocidental em seus livros História da Sexualidade
(1997) e Vigiar e Punir (1975); a filósofa Judith Butler em Problemas de Gênero. Feminismo
16
e Subversão da Identidade (1990), que responde tanto a Beauvoir quanto a Foucault
defendendo a desnaturalização das perspectivas de gênero conectadas ao sexo do nascimento.
E, ainda, para pensarmos a ordem social, enquanto uma imensa máquina simbólica que tende
a naturalizar a dominação masculina sobre os corpos, sobre a divisão social do trabalho ou o
espaço doméstico, examinaremos Pierre Bourdieu em A Dominação Masculina (1998) e o
conceito de falo na psicanálise de Sigmund Freud a fim de compreender como se constrói
subjetivamente um sistema de representação.
Somos todos produtos dessa dominação. É preciso, portanto, valorizar estratégias para
sairmos desse círculo não só como produtos, mas agentes sociais. Artistas investigadores dos
estudos de gênero e do feminismo trouxeram em suas obras novas perspectivas ao patriarcado
e novos paradigmas acerca da família, do sexo e das relações sociais entre o masculino e o
feminino a partir da década de 60, quando os movimentos sociais, a luta pela quebra de tabus
relativos ao corpo, as lutas políticas pela liberdade sexual e o tema corpo ganharam releituras
em diversas esferas como na política, mídia, artes e ciência. E, com os movimentos de
liberação sexual, o modelo tradicional falocrático veio, enfim, sendo repensado à medida que
uma nova noção de corpo apareceu.
A partir dos anos 1960, com a liberação sexual propiciada pelos movimentos de
contracultura, e sobretudo nos anos 1970, quando os pressupostos da modernidade
estão sendo revistos, a cultura contemporânea propõe uma reavaliação deste modelo
tradicional falocrático. Na tentativa de repensar a diferença social é buscada um
maior visibilidade para as identidades anteriormente transparentes na cultura
ocidental hegemônica, processo dentro do qual o sistema de artes tem papel
proeminente. Neste encaminhamento são trazidos à baila novos olhares sobre o
mundo, desestruturando a virilização dos costumes que impregnava as
representações culturais do ocidente. (SANTOS, 2005, p. 31)
17
a crise da masculinidade enquanto ideal, e também, em contrapartida, o aumento da violência
física contra as mulheres. Sendo assim, o terceiro capítulo objetiva, a partir da análise da
lógica masculinista e conservadora atual, justificar a importância desta pesquisa focada no
corpo masculino enquanto ferramenta de desmistificação do patriarcado, e também discutir
sobre a importância de envolver o gênero masculino nas discussões feministas, tentando
promover um pensamento mais inclusivo.
18
CAPÍTULO 1
A virilidade é uma potência inventada. A força física ou a coragem, por exemplo, são
características construídas para o corpo masculino com base em um ideal de dominação e, no
entanto, é a tradição mais complexa das sociedades ocidentais.
O que é o homem? Alguns afirmarão sem pestanejar que homem é aquele nascido
com cromossomos XY e que, em decorrência dessa condição biológica, deverá
interessar-se por mulheres, futebol, armas e, no limite, nutrir uma aversão declarada
pela cor rosa. Outros dirão que é uma simples construção social que nada tem de
natural. Há ainda a tese de que se trata de uma autoafirmação: homem é quem se diz
homem, a despeito tanto de seu fenótipo quanto das imposições da sociedade.
Homem é, também, o principal beneficiário de uma cultura patriarcal que violenta e
mata mulheres, além de gozar de liberdades e benefícios que vão desde o direito à
cidade, ao corpo próprio, até uma diferença salarial – presente em todos os cargos,
níveis de atuação e escolaridade – que chega, no Brasil, a 53%. (AMBRA, 2019, p.
17)
19
1.1 Problemas de gênero
20
Outro conceito importante para Foucault é o corpo dócil, apresentado em sua obra
Vigiar e Punir (1975). Segundo Foucault, o corpo dócil é aquele que pode ser submetido
enquanto objeto alvo de poder, manipulável, modelável, treinável, obediente e útil às
instituições. E a produção de corpos dóceis requer, justamente, uma ininterrupta coerção
direcionada às atividades corporais, ou práticas disciplinares aplicadas aos sujeitos mais uma
vez pelas instituições de poder, arranjos sutis de aparência inocente, como formar filas, dividir
em classes escolares, controlar horários, ter boa caligrafia, controle gestual, postura, boa
relação com o objeto que manipula (desde o fuzil a uma peça na fábrica), instrumentos
coercitivos que visam a não ociosidade e ao não desperdício de tempo. Assim, vai-se
compondo um corpo mecânico, um corpo menos subjetivo, e disciplinado para os
mecanismos de poder.
Apesar de Foucault descrever as experiências de docilidade entre homens e mulheres
de formas semelhantes, sem diferenciar as distintas experiências para cada sexo na sociedade
moderna, diversas teóricas feministas como Susan Bordo, Judith Butler ou ainda Paul B.
Preciado concordam que seu paradigma do controle biopolítico das instituições de poder
sobre a população ainda é uma ferramenta analítica útil para examinar a sujeição e exploração
do corpo das mulheres, por exemplo.
Entretanto, a filósofa Judith Butler acrescenta às teorias de Foucault que os corpos e as
identidades de gênero, portanto, não podem ser apenas representados como instrumentos
passivos sem agência ou subjetividade.
Além de abordar meus relacionamentos com esses homens, também abordo meu
próprio relacionamento com a identidade colombiana e a identidade masculina latina
– o que isso significa? O que constitui ser um homem latino, especialmente na
América, hoje? Estou tentando abordar essas ideias e essa estrutura social da
masculinidade brincando com ela, porque sinto que, em parte, é uma construção
social com a qual nossa comunidade cresceu por muito tempo. E se ele está
incorporado em nossa cultura, como desconstruí-lo? (PULGARIM, 20173)
3
Disponível em: <https://www.lensculture.com/articles/antonio-pulgarin-fragments-of-the-masculine>.
23
Um outro exemplo, também, é a inscrição da cultura na linguagem corporal concreta.
O corpo, ou o que comemos, a forma como nos vestimos, os rituais diários através dos quais
cuidamos dele, é um agente da cultura (BORDO, 2000, p. 19). A ordem masculina ou
feminina é inscrita nos corpos através das rotinas de forma quase ingênua, através das normas
domésticas, desde maneiras à mesa, hábitos de higiene e prática aparentemente triviais, mas
muito eficazes simbolicamente. Às meninas, ensina-se, ainda hoje, que devem ficar com as
pernas cruzadas, que devem ter pudor, que precisam ser contidas, belas, recatadas e do lar4.
Todo trabalho de socialização tende a impor-lhes limites, todos eles referentes ao corpo, como
se expressar, como se vestir. Já o trabalho psicossomático aplicado aos meninos, ao contrário,
visa a virilizá-los e ocupar os espaços.
Fig. 2: O ex-presidente americano Barack Obama e o príncipe Harry em uma clássica cena de
menspreading em evento esportivo no Canadá, Getty Images, 2017.5
4
A expressão “bela, recatada e do lar” ficou conhecida no Brasil após matéria publicada na Revista Veja, de
abril de 2016, sobre o perfil da então primeira dama brasileira Marcela Temer e suas qualidades enquanto objeto
decorativo ainda neste século. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-
do-lar/>.
5
Disponível em: <https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2018/04/11/principe-harry-e-
meghan-markle-nao-convidam-obama-para-casamento.htm>.
24
público. Para a professora do Instituto de Psicologia/UERJ e coordenadora do DEGENERA –
Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, Amana Matos, em matéria da revista Marie
Claire6, de setembro de 2017, o homem de pernas abertas, seja de pé ou sentado, quer evocar
uma imagem de virilidade, e também seria uma forma de se colocar enquanto macho e dono
do espaço.
Algo aparentemente inofensivo e “natural”, pode ser visto hoje como uma insistência
de dominação do espaço e transporte públicos. A ocupação desproporcional do assento por
homens nos transportes públicos nos horários de pico virou, inclusive, tema de campanha de
conscientização em cidades como Paris, Madri (Figura 3) e Nova York7.
6
Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2017/07/o-que-e-o-mensprea
ding.html>.
7
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40235859>.
8
Disponível em: <https://observador.pt/2017/06/08/madrid-proibe-homens-de-pernas-abertas-nos-transportes/>.
25
Escola seriam, segundo ela, instituições masculinas pelas suas práticas estruturais aplicadas
relacionadas com a questão da sexualidade e reprodução. (CONNEL, 2005, p. 73).
À Família, coube o papel da repetição da dominação masculina, imposição da divisão
sexual do trabalho e os papéis destinados a cada sexo, começando a partir dos exemplos
domésticos. À Igreja e sua assumida moral antifeminista, coube, através dos textos sagrados e
missas, a tecedura de normas quanto aos trajes, moral feminina e dogmas sexuais.
Na igreja, eles aprenderam que Deus criou o homem para governar o mundo e tudo o
que nele há e que era o trabalho das mulheres ajudar os homens a executar essas
tarefas, obedecer e assumir sempre um papel subordinado em relação a um homem
poderoso. Eles foram ensinados que Deus era homem. (hooks, 2004, p. 18)
26
Com seus desenhos finos e minimalistas, o paulistano Francisco Hurtz apresenta
novos olhares sobre a representação do corpo masculino. Hurtz foge das características que
normalmente descrevem homens como viris e dominantes e nos passa uma ideia de
fragilidade. Em Escolha / Escola, (Figura 4), três jovens rapazes tentam se acomodar naquele
ambiente escolar e suas regras. Ao formar a tradicional fila, seus corpos parecem desajeitados,
não cabem mais nos uniformes e os sapatos estão desamarrados. Eles vestem a mesma
camiseta, assim, conseguimos perceber o desconforto causado por aquele espaço nos seus
próprios corpos e, ao mesmo tempo, uma crítica ao modelo de masculinidade imposta neste
ambiente desde a juventude a todos, como uma padronização.
A imposição se faz tão atual que a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos,
Damares Alves, afirmou em vídeo que circulou pela internet9, no discurso de sua posse, em 2
de janeiro de 2019, que o “Brasil está em uma nova era, e menino veste azul e menina veste
rosa”. A ministra ainda declarou que o governo vai priorizar políticas públicas que defendem
a vida desde a concepção, em óbvia posição contra o aborto e defesa da heterossexualidade,
da família tradicional e valores fixados para o masculino e feminino.
A família tem ocupado posição maior no que diz respeito à aprendizagem dos valores
e papéis desenvolvidos em cada sexo. Desde o berço, os pais esperam uma coisa das
meninas e outra dos meninos, o que é traduzido em condutas diferenciadas. A criança
quando aprende as primeiras lições, passa a incorporar definições pré-estabelecidas
tradicionalmente: homem não chora, menina não diz palavrão, menino não brinca
com boneca e sim de carrinho, menina não trepa em árvore como os meninos,
mulheres são frágeis e dóceis, homens são fortes e duros. Jogos e brinquedos varonis
são concebidos para exercitar a destreza, a coordenação muscular, o extravasamento
da atividade e da agressividade, o senso de domínio, enquanto os “de menina”
valorizam a ordem (como os jogos de roda) ou reproduzem o cotidiano doméstico:
bonecas, berços, fogões, panelas e máquinas de costura. Meninos são estimulados a
serem livres e independentes, a contar vantagens e alardear seus méritos,
desenvolvendo o senso de competitividade como uma das principais características
úteis à sobrevivência da vida adulta. (AMANTINO; PRIORE, 2013, p. 302)
Os pais podem alertar seus filhos homens de que a tradição machista é uma
armadilha, uma severa restrição das emoções a serviço do Exército e do Estado.
9
Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral, menino-veste-azul-e-menina-veste-rosa-diz-
damares-alves,70002665826>.
27
Porque a virilidade tradicional é uma máquina tão mutiladora quanto a atribuição da
feminilidade. Ser um homem de verdade – o que é que isso exige? Repressão das
emoções. Calar sua sensibilidade. Ter vergonha da sua delicadeza, de sua
vulnerabilidade. Abandonar a infância de modo brutal e definitivo: os homens-
crianças não possuem boa reputação. Ficar angustiado pelo tamanho do seu pinto.
Saber fazer as mulheres gozarem sem que elas mesmas saibam ou queiram lhes
indicar como. Não dar sinais de fraqueza. Amordaçar a sensualidade. Vestir-se com
cores discretas, usar sempre os mesmos sapatos grosseiros, nunca brincar com os
cabelos, não usar muitas joias, nenhuma maquiagem. Sempre dar o primeiro passo.
Não possuir nenhuma cultura sexual para melhorar o orgasmo. Não saber pedir ajuda.
Ter que ser valente, mesmo sem nenhuma vontade. Valorizar a força seja qual for seu
caráter. Mostrar agressividade. Possuir um acesso restrito à paternidade. Ter sucesso
social para poder pagar as melhores mulheres. Morrer de medo de sua
homossexualidade, porque um homem de verdade não deve nunca ser penetrado. Não
brincar de boneca quando pequeno, contentar-se com carrinhos e armas de plásticos
muito feios. Não cuidar muito do seu próprio corpo. Submeter-se à brutalidade de
outros homens sem reclamar. Saber se defender, mesmo sendo doce. Ser privado de
sua feminilidade, como as mulheres se privam da sua virilidade, não em função das
necessidades de uma situação ou de um caráter individual, mas em função daquilo
que o corpo coletivo exige de tal maneira que as mulheres ofereçam sempre seus
filhos para a guerra e que os homens aceitem se deixar matar para proteger os
interesses de três ou quatro cretinos de visão curta. (DESPENTES, 2016, p.23)
A série Macho Toy (Figura 5), de Fábio Carvalho, surgiu justamente como uma
reflexão a respeito dos elementos que constituem os estereótipos de gênero e sexualidade
como, por exemplo, os tradicionais brinquedos que são presenteados às crianças e
“permitidos” para cada sexo. Bonecas, panelas, flores de plástico, pires de porcelana e
elementos que representam o universo doméstico para as meninas; e bolas, carrinhos e
28
soldados para os meninos, que são utilizados para direcionar o papel sexual a ser
desempenhado pelos futuros adultos, teoricamente, de acordo com o órgão sexual de cada um.
Os brinquedos de Carvalho operam justamente na superposição entre os estereótipos da
masculinidade e elementos delicados atribuídos ao feminino, como louças ou flores.
Dito isso, se fez necessário, de antemão, percebermos como se dá a organização
sexual a partir da relação binária entre os sexos para começarmos a pensar mais
profundamente em imagens do nu masculino e, consequentemente, reconhecer que a nudez
tem significados diferentes de acordo com o gênero. “Se o gênero é um produto histórico,
então ele está aberto à mudança histórica.” (CONNEL, 1995, p. 189).
Esta pesquisa, todavia, não tem a pretensão de dar um passo à frente nas teorias de
gênero e não daria conta de tudo que essa discussão abrange, mas precisou deste bastidor
teórico a fim de avançar na pesquisa sobre imagens do corpo masculino e entendê-las como
uma linguagem da época em que vivemos. E aqui devemos entender linguagem enquanto um
mecanismo vivo de transmissão de ideias e manutenção do discurso de poder.
A cultura influencia nossa experiência visual de tal forma, que precisamos nos atentar
sobre como um sistema de representação é construído. E as perguntas que, taticamente,
devemos-nos fazer são: quando vemos uma imagem, qual a mensagem subjacente atrelada a
ela? Esta imagem reforça ou subverte estereótipos? Quais as formas discursivas são utilizadas
pela mídia quando representa as diferenças? Por que raça, sexualidade e gênero são
atravessados por múltiplas perspectivas de diferentes interesses? Como a representação da
diferença relaciona-se com as questões de poder e diferença sexual?
29
oprimidos(as) e com uma análise do sentido e da natureza de sua opressão: assinalava
também que esses(as) pesquisadores(as) levavam cientificamente em consideração o
fato de que as desigualdades de poder estão organizadas segundo, no mínimo, estes
três eixos. (SCOTT, 1989, p. 4)
Uma das abordagens utilizadas por Hall para lidar com as questões da alteridade é a
abordagem psicanalítica, que tem a ver com a importância do papel da diferença em nossa
vida psíquica. O “Outro” seria fundamental para a constituição do self dos sujeitos e para a
identidade sexual. De acordo com Sigmund Freud, a consolidação da nossa definição de self e
da nossa identidade sexual depende da maneira que somos construídos como sujeitos; o que
30
se daria no estágio de desenvolvimento inicial chamado por ele de Complexo de Édipo10.
Segundo Freud, o sentimento unificado de si mesmo como sujeito e sua identidade
sexual não estão fixos na criança. É a partir de certa altura que o menino desenvolve uma
atração erótica inconsciente pela mãe e encontra no pai um obstáculo à sua satisfação.
Quando a criança descobre que a mãe não possui um pênis, presume que ela foi castrada
como punição e que ela mesma, por sua vez, também pode ser punida se não reprimir seu
desejo inconsciente. Como medo, o menino transfere sua identificação para o pai, assimilando
os primórdios de uma identidade masculina. A menina se identificaria ao caminho posto, mas
como não pode ser o pai, pode apenas “vencer” ao pai, desejando, inconscientemente, ter um
filho homem (HALL, 1997, p. 158).
O psicanalista francês Jacques Lacan (1998) argumentou, pós-Freud, que a criança
não possui qualquer senso de si mesma enquanto sujeito separado de sua mãe até que se vê
em um espelho, ou como se reflete na forma como é vista pela mãe. Por identificação, a
criança deseja o objeto de desejo da mãe, centrando, desta forma, sua libido em si mesma. É o
olhar do outro que permite à criança reconhecer-se pela primeira vez como sujeito unificado.
Uma das primeiras analistas a contestar a primazia do falo foi Karen Horney, para
quem homens e mulheres teriam psicologias diferentes oriundas de influências
culturais também distintas. Josine Müller e Melanie Klein, a partir de suas
experiências clínicas, também alegaram que desde o início a vagina teria um papel
importante no desenvolvimento da sexualidade feminina, procurando dar uma
positividade à feminilidade. Nesse momento, outras analistas também tomaram a
palavra para fortalecer os postulados freudianos, especialmente Hélène Deutsch,
Jeanne Lampl de Grott e Marie Bonaparte. Seja como for, o que prevaleceu foi o
modelo masculino, em que a sexualidade feminina era compreendida a partir da falta
do pênis-falo. Assim, a mulher só pôde ser concebida como um sujeito marcado pela
inferioridade ou relegada ao lugar do enigma e da não existência. (ARÁN)11
10
A expressão Complexo de Édipo aparece pela primeira vez no texto Sobre uma degradação geral na vida
erótica de um homem (FREUD, 1910). Em Totem e Tabu (FREUD, 1912-1914), o Complexo de Édipo
aparece não apenas como núcleo das neuroses, mas no centro e na origem da cultura. O Édipo é considerado
como universal por Freud, em 1923, quando ele desenvolve a teorização da tópica do aparelho psíquico. Tem-
se a ideia de que, ao romper a fantasia de um amor com a mãe para o menino e com o pai para a menina, lhe
garante uma formação da Lei e uma identificação com seus pais. Disponível em:
<https://psicologado.com.br/abordagens/psicanalise/complexo-de-edipo-e-as-novas-configuracoes-
familiares>.
11
Psicanálise e feminismo. Revista Cult. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/psicanalise-e-fem
inismo>.
31
Esse modelo tem sido, hoje, fortemente contestado, principalmente por feministas12.
Todavia, gostaríamos de utilizar a noção de alteridade em Stuart Hall como uma das
justificativas para a dominação masculina, e relacioná-la com o conceito de Outro em Simone
de Beauvoir, também utilizado por ela em O Segundo Sexo (1949).
Não é o Outro que se definindo como Outro define o Um; ele é posto como Outro
pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é
preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na
mulher? (BEAUVOIR, 2016, p. 14)
Beauvoir e Hall concordam que a categoria do Outro é tão original quanto a própria
consciência e que a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano. E a
questão da diferença e da alteridade passou a desempenhar papel cada vez mais significativo.
uma vez que a diferença é transformada em oposição. A diferença é necessária para a
produção de significados, para a formação da língua e da cultura, para as identidades sociais e
para a percepção subjetiva de si mesmo como sujeito sexuado. E, por isso, é ao mesmo tempo
ameaçadora, local de sentimentos negativos, de hostilidade, tem caráter ambivalente e que
12
Luce Irigaray, feminista, filósofa e psicanalista belga, vai dialogar com essa teoria de forma crítica em meados
dos anos 1970. A autora empreende uma leitura atenta dos principais textos da filosofia e da psicanálise para
mostrar como, na lógica binária do Um e do Outro, descrita acima, o que fica de fora como uma exclusão
constitutiva é, justamente, o feminino. Nesse sentido, não bastaria positivar o significante feminino: é necessário
desconstruir a lógica falocêntrica para que surja outra economia subjetiva. Disponível em:
<https://revistacult.uol.com.br/ home/psicanalise-e-feminismo/>.
32
justificaria a dominação do que é diferente. No caso, negros, mulheres, homossexuais e
indivíduos transgêneros13.
Assim, o outro que não é espelho, e sim real, como radicalmente outro por estar no
lugar do objeto (objeto causa de desejo e causa de horror) reduzido a sua versão de
abjeto: alvo de abjeção, violentação e eliminação. Por quê? Porque a existência desse
outro é uma ameaça a minha existência identitária, pois esse outro está na
extremidade da polaridade de meu ser como objeto na estrutura. Pois eu não sou
apenas sujeito, sou também objeto separado de mim mesmo como sujeito que
encontro no outro, que me causa desejo ou angústia, atração ou repulsa. (QUINET,
2018, p. 26)
A enigmática imagem do artista carioca Marco Antonio Portela (Figura 6), nos ajuda a
pensar a ambiguidade de um corpo biológico sem gênero pré-determinado. A princípio, não
sabemos identificar para qual parte do corpo estamos olhando, mas a partir do título Deus é
menina e menino chegamos às pistas sobre a fluidez que um corpo pode assumir. Portela
fotografa com uma macro lente a glande do seu próprio pênis, o que não fica claro de
imediato, já que o que vemos é apenas o corte, a invaginação, uma imagem que remeteria
mais diretamente ao corpo feminino. A invaginação ampliada no representante do falo dialoga
13
O termo transgênero se refere a todas as pessoas que não vivem sob a identidade macho ou fêmea que foram
identificados pelo órgão sexual de nascimento, tendo feito ou não cirurgia de mudança de sexo. (BORDO, p. 38).
33
diretamente com o mito da castração14 em Freud. O trabalho trata, justamente, da ameaça de
perder o pênis que constrói o imaginário masculino e que, talvez, justifique a necessidade de
se estar agarrado ao falo ou a necessidade de dominação sobre as mulheres, representantes da
ameaça simbólica.
Teoricamente, a falta do pênis ilustra a diferença sexual, a castração, o desprazer. E o
inconsciente masculino tem duas vias de escape para lidar com esta ordem simbólica, com a
ansiedade diante da castração. A investigação da mulher, a “desmistificação do seu mistério”
e sua consequente desvalorização ou punição do objeto culpado. Ou, ainda, a completa
negação da castração, substituindo-a por um objeto de fetiche tranquilizador e satisfatório
(MULVEY, 1989, p. 49). E, assim, na maioria dos casos, de uma forma naturalizada, o corpo
da mulher tornou-se um objeto sexual.
“Ser um homem feminino / não fere o meu lado masculino / se Deus é menina e
menino / sou masculino e feminino”15.
14
A primeira discussão publicada de Freud sobre o complexo de castração aparece em seu estudo de caso Little
Hans (1909), cuja mãe relatou ter dito ao filho que se continuasse a tocar seu pênis, ela pediria ao médico que o
cortasse. Na psicanálise freudiana, a angústia de castração refere-se a um medo inconsciente da perda do pênis
originário durante o estado fálico do desenvolvimento psicossexual que duraria toda a vida. De acordo com
Freud, quando o menino torna-se consciente das diferenças entre os órgãos genitais masculinos e femininos, ele
assume que o pênis do sexo feminino foi removido, criando-se uma angústia de que seu pênis será cortado por
seu rival, a figura do pai, como punição por desejar a figura da mãe.
15
Masculino e Feminino, música de Pepeu Gomes.
34
eram um assunto dominado (BERGER, 1999, p. 61). O outro não era mais misterioso.
35
O heroísmo dos campos de batalha migrou para o cinema e a cama. Ali, no meio do
século XX, forjaram-se padrões de comportamento masculino em que a coragem e a
bravura eram regras. “Dar no coro” também era norma. O homem viril precisava ser
igualmente incansável. As falhas, sempre discretamente tratadas. A vida urbana –
com a velocidade, os carros, o esporte e a bebida – contribuiu para o adestramento
dos corpos. (AMANTINO; PRIORE, 2013, p. 13)
36
Fig. 7: O ator Sylvester Stallone em Rambo: Programado para matar, filme de 1992.
O cinema estadunidense impôs ao mundo seu ideal masculino com suas imagens de
hipervirilidade; do caubói de John Wayne, passando por Rambo, ao Exterminador (Figuras 7
e 8). Rambo, branco e herói de guerra, não possuía um cavalo, mulher, sequer um amigo.
Apenas um corpo malhado e um punhal que lhe servia como amuleto fálico. Já o
Exterminador, nem mais humano era. O homem-máquina em cima da sua moto Harley
Davidson deleitava os espectadores masculinos identificados com tal potência e virilidade que
não existem na vida real. Enquanto identificados como homem máquina, esses indivíduos
ficam impossibilitados de problematizar a maneira como socialmente tornaram-se homens. E,
de tanto ser promovido, esse modelo masculino acabava suscitando frustração por sua
inacessibilidade. É bastante óbvia a existência de defasagem entre as representações sociais e
37
as práticas reais. “Assim cavou-se uma lacuna traumática entre os triunfos virtuais dessa
‘virilidade fantasma´ nas telas, e os infortúnios da virilidade real nos conflitos guerreiros.
Rambo, surpreendentemente, estava ausente no ataque terrorista de 11 de setembro.”
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 576).
16
Rambo: até o fim e O Exterminador do Futuro: destino sombrio.
38
Acreditamos que sim. Se o cowboy de outrora era o selvagem Homem de Marlboro
(Figura 9) e alguns meninos ainda sonham em ser John Wayne, em O Segredo de Brokeback
Mountain (Figura 10), o ousado drama dirigido por Ang Lee, lançado em 2005, os jovens
vaqueiros representados por atores do alto escalão hollywoodiano, símbolos da masculinidade
absoluta, eram homossexuais. O roteiro se fez polêmico, pontualmente, por trazer esses dois
personagens, caracterizados pela imagem dos ícones mais representativos da virilidade na
história do cinema hollywoodiano, e desconstruí-los.
Fig. 11: Meat Loaf como o personagem desmasculinizado Bob, em O Clube da Luta, filme de 1999.
O filme O Clube da Luta do diretor David Fincher, de 1999, retrata de forma crítica a
hipermasculinidade imposta aos homens e a forma de lidar com seu fracasso. O personagem
principal tinha que lidar com os estereótipos másculos do corpo, ser bem sucedido no
trabalho, ter poder de consumo e demonstrar agressividade. Para extravasar a pressão, exercer
a agressividade e conquistar a virilidade, criou um grupo secreto, onde homens brigavam
entre si como forma de terapia. O personagem Bob (Figura 11), ex-halterofilista que criou
mamas de tanto esteroide tomado, representava o homem desmasculinizado em crise na vida
fora das telas.
39
um dos modos privilegiados de visibilidade do corpo masculino no anonimato urbano
das fisionomias, a própria assinatura do hábito viril na multidão. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 559)
A discussão sobre o masculino e suas vicissitudes não nos parece algo muito
frequente, como se sobre o ser homem não pairassem dúvidas ou coubesse qualquer
indagação. Nesse raciocínio, o homem e o masculino aparecem como mitos, no
sentido barthesiano do termo: narrativas que, naturalizadas, concertem-se em
verdades últimas, materializadas a seguir em imagens marcadas pela tautologia,
como o sedutor do cinema hollywoodiano, o bom malandro ou o cowboy solitário.
Imagens que mostrariam o homem como ele é, sem contudo nunca reduzi-lo a
objeto. Imagens diante das quais, em geral, não temos muito a fazer senão aceitá-las.
(CUNHA, 2019, p. 25)
Hoje em dia o que é um mito? Essa pergunta é tratada por Roland Barthes em seu
livro Mitologias (2013) e pode ser pertinente para a desnaturalização da obrigação viril.
Segundo Barthes, todo mito é uma fala. Naturalmente, não é uma fala qualquer. O mito é um
sistema de comunicação, uma mensagem criada em certas condições especiais. Essa fala não
necessariamente precisa ser oral, pode ser escrita ou criada por representações pictóricas. O
discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a
publicidade, tudo isso pode servir de apoio à fala mítica. O mito é uma fala justificada que
acaba naturalizando certos conceitos. E, por isso, o mito é visto como uma fala inocente. Não
porque as intenções estão escondidas, mas porque soam naturais. “O mito não nega as coisas;
a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as,
fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de
constatação.” (BARTHES, 2013, p. 235).
Vivemos em uma cultura que encoraja homens a pensarem sobre si a partir dos seus
pênis e sua representação como mito fálico. Segundo os dicionários, o falo seria a forma de
representação do órgão reprodutor masculino como símbolo de fertilidade. Essa construção
simbólica de que o falo é representado pelo pênis colabora, justamente, com o discurso de
uma superioridade masculina. Não apenas sobre as mulheres, mas sobre todas as outras
espécies. “Ter um pênis não faz o homem”. (SILVA, 2005, p.39).
À mulher caberia estar a serviço do homem? Seria uma categoria humana secundária
à masculina? Ou o mito apontaria, ainda para outra inversão – esta, podemos dizer,
de cunho reparador: a de que o homem fálico e autossuficiente não se sustenta,
sendo a introdução da mulher em sua vida não a prova do poder de Deus a serviço
40
do gozo masculino, mas sim a constatação da fragilidade humana e sua dependência
de um outro para sobreviver e criar descendentes? Enfim, teria nosso mito
civilizatório comprometido gravemente a condição mesma de civilidade, ou seria
sua formulação o indicador dessa impossibilidade? (MUSZKAT, 2019, p. 22)
Os homens de certo não esperaram pela psicanálise para enaltecer o pênis e construir
imponentes obeliscos em sua glória. Contudo, Freud depois Lacan, cada qual a seu
modo, concederam uma caução teórica decisiva à superioridade e unicidade do
órgão macho, mesmo vendo-o como um símbolo. (BADINTER, 1993, p. 139)
Ou seja, o falo é uma ideia, um conceito, e não uma parte do corpo, o símbolo de
fecundidade, de poder, mas que foi, ao longo do tempo, tornando-se iconicamente
representado pelo pênis. E isto contribuiu enormemente para a construção do discurso da
dominação masculina. “Nada se parece mais ao pensamento mítico do que a ideologia
política” (LÉVI-STRAUSS, C., L’Anthropologie structurale, p. 233, apud CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 574).
Ou seja, o falo também é uma criação da cultura, não faz parte da biologia humana e
ninguém nasceu com um. Não é o falo que organiza e fundamenta essa visão de mundo e,
sim, essa visão de mundo que, organizada segundo a divisão de gêneros constituiu o falo
enquanto um símbolo masculino e tornou-o um marcador de superioridade, inscrevendo-o na
natureza biológica. Ao desconsiderar o falo como a construção imaginária do pênis, o genital
masculino perde seu papel de representação do poder, ou seja, ele retorna ao corpo tornando-
se mais um órgão que o compõe. “Existe o falo mítico, o símbolo cultural da masculinidade e
existem os pênis de carne e sangue.” (BORDO, 2000, p. 43).
41
Diante disto, é muito pertinente trazermos o pensamento de Butler, avesso ao conceito
freudiano de inveja do pênis17. Butler aponta que os homens se comparam o tempo todo com
o ideal de falo exatamente porque são dotados de um pênis, e não de um falo, estando, pois,
obrigados a demonstrar sua virilidade de maneira compulsiva; uma prova que as mulheres não
têm que passar, já que, diferentemente do homem, têm a capacidade de simbolizar outras
partes do corpo. (BUTLER, 1993, p. 57-91, apud PRECIADO, 2014, p. 77). As mulheres não
representariam mais a castração, por serem completas.
Agora as mulheres veem a sua relação com o pênis nesse mesmo contexto – no seu
caso, recusando-se de qualquer maneira a deixar o órgão limitar a sua independência
sexual e política. Com o início da década de 1960, as imagens culturais
predominantes do pênis, todas concebidas por homens, foram investigadas através
de uma nova lente, segura pelas mulheres, que as usaram para desconstruir os
excessos fálicos que mais as exploravam – estupro, pornografia, até mesmo
intercurso consensual. Visto dessa maneira, o pênis não era nem divino, nem
demoníaco, nem biológico, nem psicológico. O que os homens jocosamente
chamavam de sua “ferramenta” foi seriamente (e às vezes, sem humor) criticado
como uma ferramenta de opressão. O significado e o propósito do pênis – não
somente no quarto, mas na cultura – foram debatidos como nunca antes. A era de
Freud foi obrigada a ceder à era de Friedan18, e o então tornou-se AGORA. Se a
primeira metade do século XX viu o pênis psicanalisado, a segunda o viu politizado.
(FRIEDMAN, 2002, p. 177)
“I will be back”.19
A história da representação do nu masculino inicia-se em meados do século 5 a.C com
os conhecidos atletas da Grécia antiga, inspirados nas poses egípcias de um pé na frente do
outro, punho fechado cheio de energia, braço à frente do corpo e perfeito equilíbrio. Os
princípios matemáticos e de proporcionalidade eram essenciais para representar o belo ideal.
(LEOPOLD; NATTER, (Org.), 2013, p. 38). Desde a Grécia antiga, a nudez masculina
ocupava um lugar maior, um conjunto de ética e estética, o corpo nu ligado a uma condição
sagrada. Estátuas de deuses e heróis nus tinham o fim de atrair os fiéis. A beleza física estava
totalmente ligada à virtude divina, mas não só. As estátuas de atletas também eram uma
convenção social, e a beleza física se relacionava com as qualidades morais do homem, sua
17
Referente à publicação de Sigmund Freud em seu texto Organização genital infantil, de 1923, em que a
menina nota o pênis do irmão ou de um colega e reconhece-o imediatamente como superior ao seu órgão
correspondente e, assim, se tornam vítimas da inveja do pênis, pela esperança adquirida de que ainda terá um
pênis, tornando-se igual ao homem.
18
Betty Friedan, ativista feminista que escreveu The Feminine Mystique, em 1963.
19
“Eu estarei de volta”, famosa fala do personagem de Arnold Schwarzenegger que vem sido repetida desde o
primeiro filme O Exterminador do Futuro, em 1984.
42
educação e, o mais importante, sua virilidade. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.),
2013, p. 41).
A beleza do nu masculino grego foi retomada no Renascimento italiano. O corpo
masculino prevaleceu, então, como imagem central da arte renascentista, como objeto de
perfeição e equilíbrio das formas, encarnando os valores culturais e supremos. A exegese
teológica cristã prega que, se Adão é semelhante a Deus, ao tratar as questões estéticas, o
corpo do homem era o único verdadeiramente digno de admiração, pois refletia a beleza de
Deus. Esse privilégio exclusivo do macho se verificou na escolha de um corpo masculino, e
não feminino, para ilustrar os primeiros tratados de anatomia na época. A intenção dos artistas
era trabalhar sobre o melhor do material humano, isto é, o corpo viril masculino, derivado de
Deus, enquanto a mulher seria considerada menos perfeita. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 418). O homem foi criado à semelhança de Deus e é
responsável pelas leis e a forma que contamos nossa história. “Façamos o homem à nossa
imagem, à nossa semelhança.” (Genesis 1,26).
Fig.12: O Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci, 1492 e Fig. 13: David, Michelangelo Buonarroti, 1504.
43
O Homem Vitruviano (Figura 11) é baseado numa famosa passagem do arquiteto
romano Vitrúvio em seu tratado De Architectura20, que descrevia as proporções ideais do
corpo humano masculino. Neste ideal, o comprimento dos braços estendidos de um homem
seria igual à sua altura, entre outras equivalências corporais. Vitrúvio já havia tentado
encaixar as proporções do corpo humano dentro da figura de um quadrado e um círculo, mas
foi apenas com Leonardo da Vinci que o encaixe ficou perfeito e dentro dos padrões
matemáticos exigidos. Este desenho ilustra perfeitamente a tese filosófica própria do
Renascimento, segundo a qual, o homem seria a medida de todas as coisas.
Ainda desta época e sob esta mesma filosofia, a estátua de cinco metros de mármore,
de Michelangelo Buonarroti, do herói bíblico David (Figura 12), virou símbolo de Florença.
David também alcançou o lugar de ideal máximo de masculinidade, juventude e força heroica
neste momento histórico em que a nudez masculina era pública em conjunto com
demonstração de poder e autonomia. (LEOPOLD; NATTER, (Org.), 2013, p. 38). A imagem
do homem deveria ser realizada de modo que reunisse as perfeições dos indivíduos, e a
correspondência harmônica de tais componentes tornavam o conjunto belo. Nesse contexto, a
procura de um modelo “canônico” abriu espaço para que vários artistas se empenhassem em
estudar as medidas ideais do corpo humano. (PANOFSKY, 2011, p. 129).
Pois nela o contorno das pernas é belíssimo, enquanto os flancos esbeltos têm
inscrições divinas; nem se viu jamais pose tão suave e graciosa que se equipare,
sequer pés, mãos, cabeça ou quaisquer membros com a mesma qualidade e maestria,
nem desenho feito com tanta harmonia. E quem a vir não deve pensar em ver
nenhuma outra obra de escultura feita em nossos tempos ou em outros por qualquer
artista. (VASARI, 2011, p. 719)
20
Série de dez livros intitulados De architectura libri, por volta de 25 anos antes de nossa era.
44
A partir do século XVII, foi organizado um treinamento de alto padrão para os
artistas mais privilegiados. Na escultura e na pintura histórica, o objetivo final desse
ensino era dominar a representação do nu masculino: isso era central no processo
criativo, pois os estudos preparatórios tinham que capturar a articulação do corpo o
mais próximo possível, independentemente ou não da roupa. Na França, os alunos
estudaram na Académie Royale e depois na Académie des Beaux-Arts, trabalhando
a partir de desenhos, gravuras, esculturas e modelos vivos. Até o final do século XX,
esses modelos eram exclusivamente masculinos, por razões de moralidade social,
mas também porque o homem era considerado como tendo a forma humana
arquetípica. (Masculine / Masculine. The Nude Man in Art from 1800 to the Present
Day, catálogo da exposição)21
21
Disponível em: <https://www.musee-orsay.fr/en/events/exhibitions/archives/exhibitions-archives/page/2/
article/masculin-masculin-37292.html?cHash=04365eb801>.
45
Concluída em 1784, a pintura encomendada por Luís XVI tinha a intenção de resgatar
valores da Antiguidade Clássica, como o civismo e a supremacia do bem comum e da
razão. Para isso, as virtudes são exaltadas nas figuras masculinas, ao passo que as
mulheres ali estão apenas para ilustrar a fraqueza e a inércia que não se constatam nas
atitudes dos homens, heróis que superam os vínculos familiares para servirem à
pátria. O juramento dos Horácios celebra os ideais republicanos e,
concomitantemente, materializa os preceitos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
no atinente às funções a serem exercidas por homens e mulheres na sociedade. Assim,
trata-se de uma síntese bem-sucedida que, ao glorificar a prevalência do interesse
comum sobre o individual e ao destacar a importância dos homens para assegurar, de
todas as formas, a manutenção da República, situa as mulheres em uma posição
menos prestigiosa, tanto em comparação com os homens quanto em relação a seu
envolvimento nos assuntos de Estado. (MATSUDA, 1991, p. 6)
Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o
surgimento da “população”, como problema econômico e político. […] No cerne
deste problema econômico e político da população: o sexo; é necessário analisar a
taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a
precocidade, e a frequência das relações sexuais. (FOUCAULT, 1997, p. 28)
46
masculinas há uma proliferação de imagens de mulheres despidas imitando as poses das
Vênus renascentistas ou odaliscas deitadas. (CALLEN, 2018, p. 56).
Fig.15: Animal Locomotion: Plate 347 (Nude Men Wrestling), Eadweard Muybridge, 1887.
O estudo científico do nu masculino foi auxiliado por novas técnicas, como fotografias
tiradas em rápida sucessão, ou cronofotografia, que trouxe avanços no estudo da anatomia e
transformou o ensino de estudantes de arte. Os primeiros nus masculinos da história da
fotografia surgiram em 1872, para fins científicos, com o inglês Eadweard Muybridge e seus
estudos do movimento humano. Muybridge captava imagens separadamente em stop-motion,
tornando visíveis as fases da locomoção, utilizando como modelos animais, mulheres e
homens nus (Figura 15). Apesar da associação comum entre nudez e erotismo, as imagens de
Muybridge não tinham tom erótico e seu trabalho foi libertador em sua violação do tabu
contra a nudez masculina.
Mesmo que as imagens de Muybridge não sejam sensuais, e mesmo que tenha
desfrutado do patrocínio acadêmico da Universidade da Pensilvânia em seu trabalho,
ele ainda tinha de enfrentar as forças poderosas do puritanismo vitoriano ao fazer
fotografias de homens e mulheres nus. Apesar dos modelos masculinos serem atletas
respeitáveis e instrutores de educação física na universidade, as modelos femininas
22
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/corpo_academia.htm>.
47
eram, principalmente, modelos de artistas profissionais, consideradas, na época,
mulheres perdidas, e entre elas parecia haver algumas prostitutas.23
23
Disponível em: <https://blogdoims.com.br/eadweard-muybridge/>.
48
Fig. 16: Sandow the strong man, Herman John Schmidt, 1912; e Fig. 17: Et in Arcadia ego, Wilhen Von
Gloeden, 1890.
49
Fig. 18: Jim Johnson, Bob Mizer Foundation, Inc., 1964; e Fig. 19: Capa da revista The Young Physique, 1963.
De fato, o que permanece proibido é a nudez real. Para evitá-la e evitar o olhar
concupiscente que suscita é necessário moralizá-la, vestí-la de intenções morais e
estetizantes, sublimá-la e platonizá-la pela submissão ao Belo. (PESSANHA, 1992,
p. 43)
50
sublimá-la e platonizá-la pela submissão ao Belo.” (PESSANHA, 1992, p. 43).
Dessa forma, quando Bernarr “Body Love” Macfadden fundou em 1899 a Physical
Culture, primeira das publicações de massa dedicada ao desenvolvimento muscular
e pedra angular de um império da imprensa que iria cantar a glória do corpo
masculino na primeira metade do século XX, seus editoriais martelavam
incansavelmente: “Seja 100% homem! A fraqueza é um crime. Não seja criminoso!”
No entanto, não se pode, diante de tamanha insistência, pressentir uma surda
inquietação diante de um súbito esmorecimento do sexo forte. Esses slogans são
confissões: o desenvolvimento em massa muscular do tipo ideal masculimo nos
primeiros anos do século e a hipertrofia que se seguirá, são também uma denegação
implícita do reequilíbrio simbólico dos lugares respectivos dos homens e das
mulheres, e das mudanças de relações entre os sexos que acontece no decorrer do
século. (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 576)
A revista The Young Physique (Figura 19), nos anos 60, e seus modelos de Beefcake24,
aqui, neste caso, disfarçado de guerreiro romano mesmo mais de 200 anos após O Juramento
dos Horácios, são exemplos de que o corpo masculino camuflado de herói podia ser exibido
sem perder seu status viril e preservar os mesmos arquétipos dos cânones clássicos. Até então,
imagens de nudez masculina ainda eram bastante questionadas e o sexo entre homens era tido
como um tabu socialmente inaceitável, sendo a pederastia um dos crimes mais combatidos,
porque, evidentemente, um pederasta, para o século XIX, é a representação mesma da falta de
virilidade e poder masculino. O pretexto utilizado para mostrar homens nus em público eram
justamente as poses ligadas à saúde ou à arte erudita. (SILVA, 2015, p.82).
51
Podemos agora começar a ver a diferença entre a nudez e o nu. Em seu livro The
Nude, Kenneth Clark sustenta que a nudez é simplesmente estar sem roupa, enquanto
que o nu é uma forma de arte. Segundo ele, um nu não é o ponto de partida de uma
pintura, mas uma forma de ver, que a pintura consegue efetuar. Até certo ponto, isso é
verdade – embora a forma de ver “um nu” não se confine necessariamente à arte: há
também fotografias de nus, poses de nus, gestos de nus. O que é verdade é que o nu
sempre é convencionado – e a autoridade para as convenções do nu deriva de uma
certa tradição da arte. O que significam essas convenções? O que um nu significa?
Não é suficiente responder a essas questões meramente em termos de forma artística,
pois é bastante claro que o nu também se relaciona com a sexualidade vivida.
(BERGER, 1999, p. 55)
Stephen M. Whitehead, em seu livro Men and Masculinities (2002), sugere que, em
meados dos anos 1970, surgiu um movimento onde homens gays começaram a se
“clonar” a partir dos estereótipos do “machão” heteronormativo, para se posicionar
52
contra a ideia geral de que os homens homossexuais eram fracos, frágeis,
efeminados, que acabou por abrir caminho para o surgimento da cultura das “Muscle
Queens”, dos anos 1990 (no Brasil, as Barbies, hoje em dia também conhecidos por
“padrãozinho”, ao menos no Rio de Janeiro); os homens gays com corpos
musculosos. Sugiro como um possível exemplo desta época a música Macho Man
(1978), do grupo norte-americano Village People, com seus figurinos que
representam estereótipos (e fetiches) de virilidade – marinheiro, policial, soldado,
atleta, indígena, motociclista vestido de couro, cowboy, operário: Macho, macho
man. I’ve got to be a macho man. (CARVALHO, 2017)25
Nas décadas de 70 e 80, Tom of Finland, artista finlandês, fetichizava esses clichês
dentro do universo homoerótico colaborando nas páginas das revistas Physique Pictorial.
Finland realçava com clareza os aspectos acima comentados, e seus desenhos eram marcados,
justamente, pela representação de homens sempre musculosos, viris e robustos que, na maior
parte das imagens, aparecem semivestidos com roupas militares, de operários, cowboys ou
demais figurinos que remetiam sempre a homens másculos, bravos e heroicos (Figura 21).
Um homem gay, porém não necessariamente efeminado ou frágil. Estabelece-se, aí, um
vínculo entre a visão da masculinidade hegemônica com aquela que o homem gay acaba
identificando-se. Esse vínculo resulta na associação de elementos que historicamente
representa uma visão tradicional de masculinidade, que incluem um corpo atlético, viril, com
o pênis sempre ereto e sexualmente agressivo. A força surge como um elemento estruturante
da representação de um corpo que, por ser masculino, precisaria automaticamente se impor.
Um corpo que precisa ser rijo, definido e esculpido em academia. (SILVA, 2015, p. 202).
No extremo oposto temos os gays masculinizados que cada vez mais cultuam os
modelos masculinos típicos, representados por tipos caricaturais, tais como
cowboys, mecânicos, operários e a mais nova sensação: musculosos fisiculturistas.
Kleinberg nos diz que o culto à violência e à agressividade é algo crescente dentro
da comunidade gay americana. Nas salas de condicionamento, a busca do corpo
perfeito coincide com a busca de valores masculinos, e estes, em última análise,
representam a busca dos valores da sociedade straight que os tiraniza. […] O
fascínio e a sedução que a masculinidade hegemônica exerce sobre os gays pode ser
a explicação mais fácil para esta tentativa de adequação que os gays empreendem,
atualmente, em direção aos estereótipos masculinos. (OLIVEIRA, 1998, p. 18)
25
Disponível em: <https://www.fabiocarvalho.art.br/machoman-flsh.html>.
53
Fig. 21: Ilustração de Tom of Finland, anos 80; e Fig. 22: peça da série Fragmentos do Masculino,
Antonio Pulgarin, 2017.
Desde os fins da década de 1980, toda uma literatura escrita por homens aponta para
um suposto colapso da identidade masculina. O macho seria um estereótipo em
crise. Segundo Lima (1995), desde o século XIX, há um declínio progressivo dos
valores que estão associados à masculinidade. Entretanto, a linguagem visual
utilizada para retratar os corpos nas revistas repete elementos do discurso alçado
pela heterossexualidade compulsória, de um “erotismo macho”. O termo macho é
utilizado porque implica uma conformidade ao papel tradicional de gênero
masculino com significado de virilidade. As imagens voltadas para homens gays
remetem a esse homem “macho”. Ele, inclusive, pode até ser gay, no entanto, nas
fotos não deve transparecer efeminação. (SILVA, 2015, p. 201)
54
Fig. 23: Adolf Hitler com a cópia romana do Discóbolo de Míron, Library of
Congress/Corbis/VC, 1938; e Fig. 24: O Discóbolo como logotipo de academias de ginástica
atuais. Reprodução de internet.
26
Diskobólos, ou lançador de disco, é uma estátua do escultor grego Míron, que representa um atleta momentos
antes de lançar um disco, produzido em bronze, em torno de 455 a.C.
55
O projeto alemão pretendia fazer surgir uma nova virilidade, na qual à mulher cabia
apenas servir ao marido, e todas as antíteses supostas ao masculino deveriam ser excluídas.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 336). A feminilidade se encontrava,
portanto, ao lado do inimigo. Para os ideólogos nazistas, somente a raça nórdica era
completamente viril. E, assim como as mulheres, os judeus e os homossexuais
enfraqueceriam e amoleceriam o homem.
O que nos chama a atenção é que, por mais distante temporalmente que possa parecer,
a temática do ideal físico da cultura grega se estende até hoje. A influência do Discóbolo
sobre a cultura, em especial do ocidente, ainda é grande nos nossos dias. É uma das imagens
mais publicadas na literatura sobre esportes, educação física e fisiculturismo e hoje, por mais
que tenha tido sua interpretação esvaziada e não carregue mais os ideais subjetivos de
perfeição moral da época grega, ainda é, hoje, um dos mais conhecidos ícones da cultura do
corpo (Figura 24). “A beleza do atleta grego obriga e suscita a emulação do homem alemão
contemporâneo: saído da mesma raça que seu ancestral grego, ele deve encarnar, dar carne
novamente à beleza antiga, conservada para a posteridade pela obra de arte.” (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 348).
27
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0206200204.htm>.
56
Estamos lidando aqui com um ideal de corpo ou raça, visando uma melhora física e
eugênica em escala nacional ou essa criação de um corpo ideal é uma questão de
subjetividade individual, um ideal mirado em super-heróis, em uma elite social
como era nos tempos greco-romanos? Eu acredito que ambos. Esses são dois lados
independentes de uma mesma moeda. Existe uma riqueza de evidências visuais, seja
na arte, fotografia ou em representações médicas que atestam uma fascinação com o
corpo masculino nu assim como se preocupa com sua condição física e status
estético. As questões-chave para a representação do corpo masculino são virilidade,
sexualidade e identidade de gênero que são inseparáveis de raça, classe e poder.
(CALLEN, 2018, p. 20)
Contudo, não se trata de garotos quaisquer. A beleza e a graça desses moços são
especificadas. Alair não fotografa crianças nem idosos, tampouco registra imagens
de pessoas com necessidades especiais, lateralmente avantajadas, capilar ou
altimetricamente desprivilegiadas e, muito menos, figuras efeminadas. É bem
verdade que ele não registra a presença de negros com a mesma ênfase – todavia,
isso implica outra questão, fora do escopo deste ensaio. Os corpos fotografados são
invariavelmente jovens, altos, esbeltos, atléticos, cabeludos, quase olímpicos. […] O
padrão de beleza recortado nessas fotografias é tipicamente aquele valorizado e
desejado no universo homoafetivo masculino, seja na arte escultórica e pictórica
greco-romana e renascentista, seja na arte homoerótica de desenhistas
contemporâneos do porte do alemão Ralf König ou do finlandês Touko Laaksonen
(Tom da Finlândia) e, principalmente, seja nas imagens que povoam o frenético
mercado pornográfico direcionado ao público homoafetivo masculino (LIMA, 2017,
p. 133-134)
Todavia, para além do seu famoso exercício voyeur na orla carioca, é mais
interessante para este projeto pontuar sobre A New Sentimental Journey (1993) (Figura 25)
durante viagem à Europa, e seus registros inusitados e ângulos pornográficos do nosso ícone
sagrado David de Michelangelo, de quem Gomes escancarou a sexualidade da estatuária, uma
vez protegida pelo belo humanista.
57
Fig. 25: A New Sentimental Journey, Alair Gomes, 1993.
Alair Gomes se disse maravilhado com a flexibilidade e a clareza evidente com que
seu botão do amor, seu pálio tumultuoso, sublinha vigorosamente o centro de seu
corpo em pé... uma pequena volta em torno do pedestal o ajuda a ajustar a cabeça
entre os pés de Davi, para ver melhor o seu zênite – na esperança de ascender às
abençoadas visões do templo solar de Davi... Entre os cartões postais de Davi
encontrados nos quiosques de Florença, nenhum o representa sob esse ângulo, único,
além de outros fotógrafos de revistas masculinas americanas, ditas pornográficas, a
tirar fotos de contra plano entre as pernas de um belo efebo, de um belo homem...
Suas nádegas salientes, que se sobressaem ao arredondado de suas coxas vistas por
trás, são perfeitamente lunares, mesmo em seu esplendor – no cruzamento das
convergências das coxas, elas compõem a forma do templo isolado. As palle (bolas)
se tornam um coração firmemente encravado... e a ponta do seu sexo de amor se
sobressai exatamente na cúspide do coração.... o cuidado que Michelangelo não podia
dedicar à representação da ereção de Davi, transparece, porém, na amorosa atenção e
minúcia que dedicou às zonas mais sagradas da mais sagrada figura: a intumescência
das palle corresponde à possibilidade de turgidez, a ideia mesma de ereção. (GOMES,
2009, p. 45)
No caso de Mapplethorpe, é óbvio que assim seja: todo o seu trabalho é uma ode à
sexualidade vivida no masculino e à identidade do próprio artista. Mas, no caso do
nu masculino do jovem David – no original exposto na Academia de Florença, ou na
sua cópia, visível aos milhares de turistas que todos os dias passam pela Piazza da
Signoria da mesma cidade, ou na sua reprodução maciça em postais e souvenirs –,
esta apropriação enquanto símbolo da cultura “gay” não é assim tão óbvia. É mais
fácil colocar o David num cânone de escultura, grega, romana, ou renascentista,
onde o nu responde a determinadas expectativas estéticas esvaziadas de erotismo,
reconhecíveis ao olhar da maior parte do observadores e onde os representados estão
distantes no tempo, do que fazê-lo com muitos dos nus masculinos de
Mapplethorpe. (VICENTE, 2012, p. 199)
59
Fig. 27: Sem título, Hudinilson Jr., 1980/2009.
É muito impressionante notar que nos anos 2000, David de Michelangelo ainda
sobreviva como o eleito dos nossos artistas para representar o ideal de beleza masculina como
vemos nas colagens de Hudinilson Jr. (Figura 27). O artista paulistano Hudinilson Jr. também
tinha fascínio pelo corpo masculino e sua jovialidade e perfeição. Na obra de Hudinilson, a
beleza não estava no aspecto formal do trabalho, mas, sim, na nudez masculina, ou na beleza
entre dois homens fazendo sexo, frequentemente escondida pela sociedade machista,
acostumada apenas a enaltecer de todas as formas o corpo feminino, vulgarizando-o até torná-
lo mercadoria. Inspirado pelo mito de Narciso, trabalhava com uma estética considerada
marginal para o sistema de arte vigente, com seus famosos cadernos, recortes de revista e
xerox do próprio corpo. Em suas colagens, Hudinilson pregava, justamente, o resgate da
vulgaridade, dando novo sentido a essas imagens e levando-as a um público que não teria
acesso a esse material homossexual. (RESENDE, 2016, p. 123). Mas o que buscava, ainda,
era a retratação de um homem de proporções físicas perfeitas. Um adorador da imagem de si
mesmo e propagador de um ideal físico perfeito.
Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um
reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica estático
diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore
de Paros. Deitado no chão, contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de
Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que
cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio.
Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva.
(OVÍDIO, 1992, p. 59)
60
Fig. 28: Calvin Klein underwear, anúncio de 1999; e Fig. 29: O jogador inglês David Beckham em
campanha para H&M, anúncio de 2012.
61
Conforme sugere Goldenberg (2002), nessa cultura que classifica, hierarquiza e
julga a partir da boa forma física, não basta ser magra(o). É preciso construir um
corpo firme, musculoso e tônico, livre de qualquer marca de relaxamento ou moleza,
que significa falta de investimento em si. Nesse processo de responsabilização
pessoal pelo próprio corpo, ressalta Goldenberg, a mídia e a publicidade têm papel
fundamental. O corpo virou “objeto de consumo” e a publicidade, que antes só
chamava a atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje serve,
especialmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto
próprio: o consumidor, eternamente insatisfeito com a aparência. (SILVA, 2005, p.
47)
62
metrossexual.28 Este termo foi criado para definir um novo tipo de consumidor masculino:
vaidoso, morador da metrópole, com alto poder aquisitivo e hábitos de consumo que
envolvem desde gastronomia a roupas de grife e tratamentos de beleza.
Com a invenção do termo metrossexual, que os exime de qualquer conotação
homossexual, os homens sentiram-se livres para comprarem tudo o que sempre sonharam
secretamente em seus devaneios antes considerados femininos (GARCIA, 2004, p. 207).
Assim, este homem ganhou a liberdade de explorar vaidosamente seu corpo atlético e manter
sua virilidade nem um pouco abalada. A metrossexualidade apropria-se do sistema
hegemônico, aparentemente heterossexual, branco, de classe alta e mantém, mesmo através da
mercantilização do corpo masculino, o status quo de um corpo a ser desejado, um corpo ideal
a ser contemplado. O metrossexual coloca-se como objeto do próprio desejo, de forma
extremamente narcisista.
Crescer com esse tipo de representação de um ideal de corpo cria expectativas irreais
de perfeição e virilidade ainda nos dias atuais. Assim, o artista Ricardo Sfeir começou, este
ano, via rede social Instagram, uma campanha para promover a diversidade dos corpos como
resposta à propaganda das cuecas Calvin Klein (Figura 30), que permanece no imaginário
masculino.
28
O termo foi utilizado pela primeira vez pelo escritor e jornalista inglês Mark Simpson, em novembro de 1994,
no jornal inglês The Independent.
63
Fig. 30: reprodução de Instagram, @ricardosfeir, 2020.
64
Fig. 31: Vive la France, Pierre et Gilles, 2006.
Em 2004, a artista inglesa Sam Taylor-Wood, fez o filme “David”29, que mostrava 67
minutos não editados do jogador-celebridade Beckham como nunca visto antes, dormindo.
Taylor-Wood é uma artista inglesa que pretendeu, assim, mostrar o lado mais vulnerável do
novo ícone. Um raro aspeto intimista do corpo masculino deitado em contraposição às
verticais posturas heroicas clássicas, ou o belo adormecido que nos permite aludir a todo um
gênero cansado de obedecer às regras viris (Figura 32).
Fig. 32: Frame de “David”, Sam Taylor-Wood, 2004; e Fig. 33: Still de Sleep, Andy Warhol, 1963.
29
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EgplHs4WynA>.
65
Fig. 34: sem título (da série Sex Parts & Torsos), Andy Warhol, 1977.
Não podemos deixar de citar que Taylor-Wood prestou uma clara homenagem ao
filme Sleep30 (1963) (Figura 33) do artista norte-americano Andy Warhol – uma de suas
primeiras experiências de vídeo – que também consistia, simplesmente, em um plano-
sequência de John Giorno, seu amante na época, dormindo por cinco horas e vinte minutos.
Para Warhol, o nu masculino sempre foi tema principal. Com seus nus fragmentados,
cabeças, torsos ou pênis fotografados separadamente, Warhol criou uma linguagem própria.
Entre os anos 60 e 80, ao misturar referências da história da arte com publicidade, também
criou desenhos magistrais de nus masculinos, detalhes de pênis e outras partes íntimas em
várias poses, principalmente de celebridades. Warhol criou sua interpretação contemporânea,
sexualizada do corpo masculino, mas ainda referente ao nu clássico ideal: homens com
musculatura bem definidas, rijos, tórax largos, de nádegas arredondadas, que respondiam aos
interesses da arte homoerótica da época, como pode ser visto na série Torsos (Figura 34).
Os Torsos, com seus corpos bem-definidos, sem cabeças nem pernas, em descanso e
em movimento, ecoam fragmentos da antiguidade. O nome que o artista deu para
estas pinturas é significativo neste contexto, porque 'torso' é um termo da arte
histórica tradicional. Mas Warhol definiu o termo livremente, enfocando em
segmentos do corpo de tamanhos diferentes, desde os ombros até os joelhos,
ressaltando a genitália, as nádegas e o físico de suas figuras. Este enfoque dos
Torsos os relaciona com a erótica gay, cujos exemplos o artista colecionou, e aos
corpos masculinos perfeitamente esculpidos, que eram o ideal do cultivo ao corpo na
30
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KaiEM2lUoZg>.
66
década de 70. Vistos lado a lado, principalmente nos trabalhos em escala mural de
múltiplas imagens, os Torsos de Warhol parecem clones do corpo ideal (como os
corpos verdadeiros esculpidos em ginásios que acabam parecendo todos iguais)31.
W.J.T. Mitchell (2002, p. 170-171), também defende que a Cultura Visual surge
quando compreendemos que experimentamos o visual por meio da cultura, por meio
de construções simbólicas, como “um sistema de códigos que interpõem um véu
ideológico entre nós e o mundo real”. Assim, os processos que constroem as
visualidades que se manifestam como práticas da cultura visual resultam de
aprendizados durante o curso de nossa vida social. Portanto, pensar o contexto
histórico e local no qual estamos inseridos como parte de um universo cultural
torna-se indispensável para qualquer análise que almeje aprofundar-se na
compreensão de experiências visuais. (SÉRVIO, 2014, p. 199)
31
Disponível em: < http://www.23bienal.org.br/especial/pewa.htm>.
67
A mídia atua na construção do imaginário coletivo ao produzir imagens simbólicas e
intermediar a relação entre os leitores e a realidade. Nas sociedades ocidentais atuais,
os indivíduos, por meio da leitura dos textos midiáticos a que estão expostos o tempo
todo, vão tecendo os fios da construção de sua identidade, incorporando sentidos e
representações presentes no cotidiano. Tais discursos produzem efeitos de sentido
que influenciam profundamente muitos aspectos da vida diária. (GHILARDI-
LUCENA, 2012)32
As imagens abaixo (Figura 35), por exemplo, são dois anúncios publicitários da marca
americana American Apparel para o mesmo produto, uma camisa de flanela unissex. As
propagandas são uma clara ilustração das diferenças nas representações dos corpos de homens
e mulheres. O corpo feminino seminu, submisso aos olhos do espectador se contrapõe ao
corpo do homem vestido, não sexualizado, desafiando a câmera com seu olhar, projetando
uma imagem de autocontrole. Ela está para ser olhada, dominada, e ele para identificar-se
com o espectador. Ele vende a camisa que veste, ela, quase sem camisa, vende uma fantasia
onde o produto é o menos importante. Essa desumanização é percebida frequentemente nas
propagandas produzidas para o homem e que retratam o feminino enquanto objeto sexual.
Nessas propagandas, as mulheres são observadas como objeto decorativo e atrativo para o
olhar masculino, fato que não se percebe na autoimagem que o homem cria a partir da
exploração do corpo masculino para seu próprio consumo.
32
Disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/redisco/artic le/viewFile/900/819>).
33
Disponível em: <https://cmst254.wordpress.com/2015/04/08/kimberly/>.
68
Fig. 36: 8 de junio, las modelos libran, Alicia Framis, 2006.
69
biotipo masculino clássico. Não é necessário muito esforço para interpretar as demais
circunstâncias que se manifestam aqui. Em primeiro lugar, a existência de apenas ensaios
masculinos já é, por si só, um índice da heterossexualidade normativa feminina nesta revista.
Em segundo lugar, ensaios discretos e tímidos concentram-se nas partes superiores do corpo
ou de cueca, pois ainda é problemático mostrar o pênis enquanto objeto sexual. E, por fim,
lança sobre as mulheres um olhar fixado, como se a mulher ainda quisesse projetar nesses
corpos, o namorado ou marido e não fossem autorizadas enquanto seres sexualmente ativos a
ver/desejar/consumir o órgão sexual do sujeito.
Ela quer ver o corpo mas quer ver o corpo de uma forma mais sutil, menos explícita e
em situações que ela possa fantasiar que é o namorado, o marido dela. Se comparada
a um homem, a mulher dá mais importância a ideais românticos como companhia,
respeito, gentileza e maturidade. O texto do ensaio sensual da Tpm é geralmente
maior, uma entrevista maior que cobre principalmente relacionamentos do homem
com mulheres, família, trabalho e sexualidade. As entrevistas atreladas aos ensaios
sensuais lidas corroboram essa hipótese. Os temas mais frequentes foram o sucesso
profissional (cinema, música, teatro, literatura) e a família (nos papéis de marido e de
pai, sempre fiel e bondoso). (OGASSAWARA, 2007)34
Fig. 37: O modelo Cássio Reis posa sensual, Revista TPM, junho de 2010.
As cenas de nudez nas revistas também têm pouco a ver com a experiência da
verdade. As fotografias nunca mostram pessoas idosas ou obesas em qualquer situação
erótica. Há uma barreira entre o real e a sua representação. Elas permitem às pessoas olharem
34
Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R04511.pdf>.
70
o que for, mas sem causar desconforto no público. O que as revistas – sejam de homens nus,
mulheres nuas ou de moda – divulgam é a jovialidade que todos parecem querer. O público
acredita que está diante de um deus da beleza, enquanto este, de fato, não passa de um
resultado de efeitos visuais propiciados por um tratamento técnico de maquiagem,
iluminação, vestuário, etc. Há um apelo para que todos os corpos sejam belos, sensuais e
desejáveis. Além disso, podemos afirmar que as revistas são responsáveis pela elaboração de
um modelo de corpo e também o adestramento de um olhar marcados pelo pensamento
binário acerca das definições do masculino ou feminino (SILVA, 2015, p. 13). Fotografias do
corpo masculino nu só serão mesmo interessantes à medida que puderem reinscrever novas
fronteiras à corporalidade masculina pública. No entanto, os critérios para a escolha das fotos
das revistas ainda parecem ser impostos pelos limites do que é socialmente hegemônico ou
pelo valor visual do que é socialmente construído. Há, no mercado editorial, uma total
omissão em relação às imensas possibilidades de inclinações eróticas ou aparências físicas
tidas como inadequados (SILVA, 2015, p. 131).
71
virilidade é sugerida pelas posições em que são fotografados e, literalmente, com as rédeas em
suas mãos. O Homem de Marlboro e sua excessiva masculinidade garantiria ao consumidor a
certeza de sua própria heterossexualidade dominante.
Fig. 38: Esnar Ribeiro em G Magazine #35, Bauer Studio/G magazine, 2000.
É, todavia, esse clichê, essa construção imagética dos anos 70, que autorizou o
cowboy brasileiro Esnar Ribeiro a posar nu para a G Magazine35, já nos anos 2000, conforme
a imagem (Figura 38) acima; mas não completamente nu, era o personagem do peão macho
viril que estava lá, depilado e banhado de óleo. O nu masculino ainda estava vestido dos
ideais e álibis do domínio falocêntrico.
35
A G Magazine, lançada em 1997, foi considerada a maior publicação do Brasil destinada ao público gay
devido à estratégia de convidar artistas, jogadores de futebol e modelos famosos para posarem nus, com tiragens
médias de 90 mil exemplares/mês.
72
Ou seja, como falamos anteriormente, a masculinidade hegemônica é, justamente,
quando existe correspondência entre esse modelo de corpo, os ideais culturais e a dominação
masculina. Podemos afirmar que o corpo masculino representado nas revistas de nu
masculino é ainda uma construção sob a própria ótica masculina. São revistas para homens,
produzidas e consumidas na visão masculina: as poses, o enquadramento, o pênis sempre
volumoso. revelam que ainda há um padrão de nu específico para o corpo masculino, sempre
ativo e apolíneo. “As imagens mostram corpos perfeitos, masculinos, fortes, em que o pênis
em ereção relaciona-se com aquilo que Bourdieu (2003) chama de “topologia do corpo
socializado”, em que movimentos e deslocamentos são revestidos de significação social”.
(SILVA, 2015, p. 132).
As fotografias também indicam que o padrão estético dos homens tende a valorizar
muito os braços e o tórax como elementos de atratividade, por isso, a publicação
explora esse aspecto. Os braços estendidos indicam desejo sexual, valorizam
músculos e mostram axilas. O tórax salientado mostra orgulho e superioridade. Os
ombros largos em relação ao quadril relativamente estreito são características que já
estiveram presentes em figurações artísticas de heróis gregos. Apolo e Dionísio são
sempre apresentados com ombros largos... As imagens mostram corpos de aparência
perfeita. São corpos sem poros, nem excreção, sempre jovens. Por isso aparecem
depilados envolvidos em óleo que ressalta o bronzeado da pele morena. As coxas são
fortes, as nádegas parecem firmes; a barriga é plana, as costas são largas e fortes.
(SILVA, 2015, p. 127 e 130)
73
Fig. 39: O deputado estadual Amauri Ribeiro (PRP/GO) em sua posse, 01/02/2019.36
Segue como exemplo, na Figura 39, acima, o deputado estadual Amauri Ribeiro
(PRP/GO), que se recusou a retirar o apetrecho durante solenidade de posse (em 01/02/2019)
na Assembleia Legislativa de Goiás, quebrando o protocolo interno da casa. Ainda no melhor
estilo coronel do século XIX, manteve a jovem esposa sentada em seu colo. O site do jornal
americano The Dallas Morning News, edição de fevereiro de 2018, fez um curioso
levantamento histórico (Figura 40) de diversos presidentes americanos que se utilizaram do
chapéu de cowboy, o elemento clássico viril desde os anos 60, que ainda funciona na
sustentação (ou reconstrução) da identidade masculina e do herói branco, másculo, corajoso,
não domesticado, livre das fronteiras e das limitações do espaço urbano.
Ainda que tenham sido ressignificadas, as metáforas do mito do cowboy continuam
funcionando para responder algumas questões do presente.
36
Disponível em: <www.goiás24horas.com.br>.
74
Fig. 40: John F. Kennedy, em 1960; Lyndon B. Johnson , em 1972; Jimmy Carter, em 1980; Ronald Reagan ao
lado do ex-presidente russo Mikhail Gorbachev, em 1992; George H.W. Bush, em 1988;
Bill Clinton, em 1996; George W. Bush, em 2002; Barack Obama, em 2016; Donald Trump, 2018.37
37
Disponível em: <https://www.dallasnews.com/life/texana/2017/07/18/wore-best-cowboy-hat-photo-ops-
presidential-tradition>.
75
CAPÍTULO 2
Novas representações na arte contemporânea
“Ainda mais da sua laia/ De raça tão específica/ Que acha que pode tudo na força de
Deus e glória da pica/ Já tava na cara que tava pra ser extinto/ Que não adiantava nada bancar
o machão se valendo de pinto”38.
O estudo da história da arte ajuda a compreender, justamente, a relação entre a
linguagem visual, valores estéticos e as ideologias dominantes nas diferentes épocas. Esse
estudo se faz ainda mais necessário ao considerar que muitas das convenções e tradições
representacionais do passado estabelecem, ainda, precedentes que influenciam a construção e
manipulação de imagens na contemporaneidade. Questionar as imagens do passado e entender
o contexto em que elas foram construídas contribui para a detecção de estereótipos baseados
nos preconceitos, e nos ajuda a evitar a repetição de fórmulas inadequadas.
Conforme exposto anteriormente, durante séculos, o nu masculino quando foi
propositalmente público, exposto em praças e monumentos, carregava significados políticos,
patrióticos, religiosos e morais para incentivar o espectador a identificar-se com ele. O nu
masculino sob o estigma do herói, mesmo exposto nos museus, não era visto da mesma
maneira que os nus femininos, considerados eróticos e sensuais. O nu masculino enquanto
objeto de desejo é ainda uma afirmação pouco comum na história da arte. Se as mulheres nuas
nas pinturas e fotografias foram intencionalmente representadas como objetos sexuais, a partir
da disposição dos seus corpos, gestos e olhares, o nu masculino sempre foi percebido como se
tratasse de algo universal, anatômico, um corpo não sexual. (BORDO; JAGGAR, (Org.),
1997, p. 84).
Trabalhamos, contudo, a partir da hipótese que um regime dominante de representação
construído pode, sim, ser contestado, e que certas imagens são, em si, disparadoras de novas
significações e possibilidades. Se o corpo nu masculino ainda sobrevive vestido dos ideais
falocêntricos, apresentaremos a seguir artistas que conseguiram inverter a lógica patriarcal
dominante, articularam posicionamentos contrários ao conservadorismo e propuseram novas
estéticas e estratégias subvertendo o processo de representação. Neste capítulo, analisaremos
imagens do corpo masculino que entendemos terem conseguido escapar dos tradicionais
códigos binários de representação, e pensar de que maneira a sociedade atual pode representar
este corpo longe dos ideais falocêntricos.
38
Trecho da canção Talento, de Linn da Quebrada.
76
2.1 Lugar de falo e lugar de fala39
Fig. 41: Torso/Ritmo, Anita Malfatti, 1915; e Fig. 42: Grande Nu, Georges Braque, 1907-1908.
39
No Brasil, o termo “lugar de fala” foi popularizado pela filósofa Djamila Ribeiro em seu livro O que é lugar
de fala. (Belo Horizonte: Letramento, 2017). Segundo a autora, o lugar de fala permite ênfase ao lugar social
ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro das relações de poder, ou seja, às
condições sociais que autorizam ou negam o acesso de determinados grupos a lugares de cidadania ou poder.
Trata-se, portanto, do reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e constrangimentos que
atravessam os sujeitos pertencentes a determinado grupo social considerado inferior. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugar_de_fala>.
77
Após longa temporada estudando na Alemanha e Estados Unidos, a artista foi
criticada e o erotismo latente de sua pintura foi reduzido aos seus aspectos formais por se
filiar a “escolas rebeldes” da arte internacional e ir na direção contrária do compromisso com
a nacionalidade do Brasil modernista. Malfatti foi extremamente criticada, justamente por não
compreenderem como a artista podia deixar de lado a arte tradicional e construir sua própria
poética sem seguir os cânones impostos.
Durante séculos, foi o olhar masculino que determinou como as mulheres eram
retratadas na arte. Talvez, a principal categoria da história da arte tenha sido, portanto, o nu
feminino. Este foi, por séculos, objeto do olhar do artista masculino e também do espectador
masculino. As mulheres nuas nas pinturas e fotografias foram intencionalmente representadas
como objetos sexuais, a partir da disposição dos seus corpos lânguidos, gestos e olhares
convidativos. As mulheres sempre ocuparam o lugar do observado, representado e desejado,
ou seja, o objeto passivo, enquanto os homens ocuparam o outro lado, o lado do sujeito ativo
(VICENTE, 2012, p. 198).
O imaginário erótico relativo ao corpo masculino também foi todo esse tempo
construído pelo próprio homem e, assim, podemos perceber o ponto de vista do homem sobre
o seu próprio corpo e sobre o corpo da mulher. No entanto, paradigmaticamente, sabemos
menos como a mulher viu o corpo do homem. Há poucos estudos sobre mulheres que
abordaram o erotismo do corpo masculino.
78
Para elas (as feministas), os homens são o segundo sexo, e a virilidade uma questão
secundária. É, no entanto, possível fazer a história da crítica feminista da virilidade,
ainda que ela não esteja no cerne do pensamento feminista. Simone de Beauvoir não
deixa de lado esta questão, já que o seu projeto é demonstrar o caráter socialmente
construído das diferenças entre os sexos.[...] No final do século XX, uma outra
maneira de ver o gênero – que se torna o conceito central do pensamento feminista –
aparece: dissociando mais fortemente do que no passado o sexo e o gênero, assim
como o sexo e a sexualidade, um outro olhar se torna possível sobre a virilidade.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 117)
Mais do que isso, eles, através da linguagem da arte, saturaram nossa cultura com
imagens femininas baseadas no conceito da supremacia masculina e da submissão
feminina, o poder do macho e a vulnerabilidade da fêmea – em resumo, enraizadas
nas experiências masculinas, instituições masculinas e valores masculinos.
(GOLDEN, 1981, p. 40)
79
religiosidade e política, além de se apresentarem sempre vigilantes e expressarem alguma
ação no espaço público ou papéis sociais. (BORDO; JAGGAR (Org.), 1997, p. 84).
A nudez de um homem sinaliza sua autonomia, nos diz que ele está no controle de
suas próprias ações e que ele é o mestre do seu próprio destino. A nudez de um corpo
feminino não tem nada a ver com autonomia e, pelo contrário, está associada à
passividade. O nu masculino pode ter implicações eróticas, mas que não interferem
com seu status como sujeito, o nu feminino é sobre beleza e erotismo. (LEOPOLD;
NATTER, (Org.), 2013, p. 40)
Fig. 43: O banho turco, Jean-Auguste-Dominique Ingres, 1852-1859; e Fig. 44: O banho turco,
Sylvia Sleigh, 1976.
Nos anos 70, a artista inglesa Sylvia Sleigh lançava seu olhar feminino para o corpo
masculino pintando quadros nos quais ela invertia a tradicional posição da mulher enquanto
musa do pintor/espectador masculino, parodiando, por exemplo, conhecidas obras como O
banho turco, de Jean Auguste Dominique Ingres e sua fantasia de mulheres nuas em um
harém (1852-1859) (Figura 43). Em sua versão homônima da pintura (Figura 44), no lugar de
80
mulheres nuas, ela pintou seus amigos nus, ou conhecidos artistas e críticos de arte, colocando
as figuras masculinas no lugar erotizado antes reservado às mulheres. Não apenas os papéis
sexuais foram invertidos, mas sua pintura também trazia, propositalmente, certo realismo às
figuras, distantes do ideal da arte renascentista, como pelos do corpo ou detalhes da moda de
sua época, como jeans e chinelos, para identificar seus personagens.
Já a fotógrafa de origem neozelandesa Alexis Hunter passeava por NY ou Londres
fotografando homens trabalhando ou descansando nas ruas. Dessas excitantes perambulações,
surgiu o trabalho Object Series (Figura 45), em que o corpo masculino está assumidamente no
lugar de objeto sexual. Em uma das imagens dessa série, aparece o torso de um rapaz sem
camisa, em calças de couro, polegar casualmente no cinto, mão na altura do sexo, cigarro
aceso sobressaltado e fora de suas calças ainda podemos ver as antigas Torres Gêmeas do
World Trade Center destacando-se verticalmente no fundo como símbolos fálicos.
81
“O sexismo existe se você estiver em posição de olhar para uma pessoa e transformar
sua imagem em objeto. A história da arte fez isso com as mulheres. Como pode ser tirada uma
foto machista de um homem se são os homens que detêm o poder na sociedade?”40
Não consideraremos, portanto, este movimento como o oposto similar ao male gaze,
pois o que deveria ser chamado female gaze, não diria respeito a uma simples inversão de
papéis, e sim, sobre se ter as mesmas condições de produção e circulação em todo o sistema
de arte e em sociedade, o que em um mundo tradicionalmente masculino, não foi capaz de se
desenvolver a ponto de poder ser analisado.
Eunice Golden é uma pintora feminista americana também conhecida por explorar a
sexualidade usando o nu masculino. Em seu artigo The Male Nude in Women’s Art. Dialectics
of a Feminist Iconography, de 1981, Golden se perguntava porque na época não haviam nus
masculinos na arte contemporânea (artistas feministas da época estavam mais concentradas na
autorrepresentação). Ela começou, então, a pintar a partir de modelos masculinos e criou uma
linguagem própria com suas centenas de “paisagens masculinas” (Figura 46) a fim de
questionar as instituições patriarcais. Diferente de muitas artistas feministas contemporâneas
– como Judy Chicago ou Miriam Schapiro, Golden não estava interessada em um feminismo
baseado na autorrepresentação, representando o corpo feminino.
40
Disponível em: <https://www.nzherald.co.nz/entertainment/news/article.cfm?c_id=1501119&objectid=1043
2382>.
82
explorar minha experiência heterossexual assim como atacar o poderoso viés da arte
histórica que era contra o nu masculino como veículo para mulheres artistas. Eu usei
o tema das “paisagens masculinas” para retratar nosso bombardeio através do
imaginário fálico: desde a arquitetura e instituições autocráticas até à propaganda
masculina na mídia e publicidade. (GOLDEN, 1981, p. 41)
A historiadora da arte Linda Nochlin – conhecida por seu artigo Por que não houve
grandes artistas mulheres? (1971) que questionava justamente a falta de reconhecimento das
mulheres na arte, apesar da sua produção – criou uma fotografia encenada, intitulada Compre
minhas bananas (Figura 47). A imagem satirizou Compre maçãs, uma representação anônima
do século XIX de uma mulher nua segurando uma bandeja de maçãs sob os seios, que sob
uma forte tradição de ligar mulheres à comida e subserviência, convidava o espectador
masculino para o prazer das frutas e também sexual. Nochlin, a fim de inverter os papéis
sociais de gênero, criou um cenário onde substituiu a mulher por um homem nu segurando
uma bandeja de bananas abaixo de seus órgãos genitais, chamando atenção justamente para a
falta comparativa de objetificação no que se refere à sexualidade masculina.
No entanto, como todos sabemos, as coisas como estão, e como foram antes, nas
artes e em centenas de outras áreas, são estupidificantes, opressivas e
desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a boa sorte
de nascerem brancos, preferencialmente de classe média e, sobretudo, homens. A
culpa não é dos astros, dos nossos hormônios, dos nossos ciclos menstruais, dos
83
nossos espaços internos vazios, mas das instituições e da nossa educação – educação
interpretada para incluir tudo que acontece conosco desde o momento em que
entramos nesse mundo de símbolos, signos e sinais significativos. O milagre é, de
fato, que dadas as esmagadoras adversidades que as mulheres ou negros enfrentam,
que tantos deles tenham conseguido alcançar absoluta excelência em territórios de
prerrogativa masculina e branca como a ciência, a política e nas artes. (NOCHLIN,
1971, p. 19)
O grupo de ativistas feministas Guerrilla Girls trata de forma bem humorada das
questões de gênero na arte, do privilégio masculino dentro e fora dos museus e faz
levantamentos estatísticos em museus no mundo todo sobre essa questão, denunciando
números absurdos como: menos de 5% de artistas são mulheres, mas 85% são de nu feminino
no Metropolitan Museum, em NY, por exemplo. Já o cartaz Pick a Dick (Figura 48) propõe a
avaliação de políticos do sexo masculino por categorias de misoginia, abuso sexual e
perversão de poder. O pôster está disponível on line para download gratuito41 e a intenção é
como a nossa: propagação máxima dessas imagens para desmistificação e também
banalização do corpo masculino.
Em 2018, foram levantados os seguintes dados42: menos de um terço de todas as
exposições individuais realizadas nos principais museus de arte contemporânea de Nova
York, desde 2007, são de mulheres. Apenas um quarto das exposições individuais nas galerias
de Nova York apresenta mulheres. As mulheres ficam atrás dos homens nas diretorias de
museus com orçamentos acima de US $ 15 milhões, ocupam apenas 24% das posições de
direção de museu de arte e ganham 71 centavos por cada dólar ganho por diretores do sexo
masculino. Somente 7% de toda a arte exibida no MoMA foi feita por mulheres. Se o recorde
41
Disponível em: <http://guerrillagirlsbroadband.com/projects/workplace/heads-state>.
42
Disponível em: <https://collections.tepapa.govt.nz/object/847720>.
84
de leilão de uma obra de um artista do sexo masculino como Picasso é U$ 179 milhões, o
recorde de uma artista do sexo feminino como Georgia O´Keeffe, é menos de um quarto desse
valor, U$ 44,4 milhões.
Fig. 49: Recriação de pirâmide de crânios, de Paul Cézanne (por volta de 1901),
da série Still Dick, Elizabeth Ubbe, 2018.
A fotojornalista sueca Elisabeth Ubbe criou a série Still Dick a fim de denunciar a
supervalorização dos homens sobre seus próprios pênis. A série (Figura 49) consiste na
recriação de diversos cenários de natureza morta (still life) copiadas de pintores famosos
como Cézanne, Van Gogh e Monet sempre com a inserção de forma aleatória de um pênis
como mais um objeto inanimado na cena. Com a banalização que Ubbe trata o membro
masculino como uma “natureza morta”, podemos também compreendê-las como uma crítica
ao protagonismo masculino na história da arte que apagou os nomes das artistas mulheres ao
longo dos séculos.
Nesse registro de Robert Mapplethorpe, em 1982 (Figura 50), a artista francesa Louise
Bourgeois posa com uma versão de sua obra Fillette (1968) debaixo do braço. A escultura é
um pênis de látex de 23 cm de comprimento e sete polegadas de circunferência que se chama
Fillette, o que, em francês, significa "garotinha indefesa". Como ela disse, uma vez, para a
85
New York Magazine: "Não tenho nada contra o pênis. É o portador."43; em uma óbvia
referência ao falo freudiano, o qual ela parece dominar como um bichano nessa imagem. E
podemos, ainda, ir além: a peça pendurada pode ser confundida com o torso do corpo de uma
mulher e, de uma maneira muito perspicaz e ambígua, representar o mito fálico encarnado no
próprio feminino.
A escultura é amarrada pela glande no teto da galeria, e pende tal qual uma carne de
caça que se prepara ou defuma. Castrado, esfolado, pendurado, seu nome
ridicularizado, o pênis deve esse tratamento apenas ao fato de ser o órgão do falo,
como a cabeça do rei decapitado é o chefe do poder. (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 512)
Fig. 50: Louise de Bourgeois, Robert Mapplethorpe, 1982; e Fig. 51: Sem título, da série Fábrica Fallus,
Márcia X, 1992-1997.
Outra artista, a brasileira Márcia X, no início dos anos 90, realizava instalações e
performances que tinham, como principal estratégia, transformar objetos pornográficos em
objetos infantis e objetos infantis em objetos pornográficos, fundindo elementos que estão
situados nas convenções sociais e códigos morais em posições antagônicas. Fabrica Fallus
(Figura 51) é o nome da série de trabalhos em que eram utilizados pênis de plástico
comprados em sex shops e acoplados a todo tipo de enfeites femininos, apetrechos infantis e
religiosos. Muitas dessas peças são dotadas de movimento e som e passível de interação com
o público, de forma pueril. Através da desconstrução desses objetos, retirando-os da sua
43
Disponível em: <http://www.artnet.com/magazineus/features/saltz/the-heroic-louise-bourgeois6-4-10.asp>.
86
condição inicial, Márcia também desconstrói conceitos impregnados, ironizando o símbolo
máximo do poder e da masculinidade, o pênis ereto. O pênis, mesmo ereto, não é o falo, mas
apenas o seu representante imaginário.
Fig. 52: A origem do mundo, Gustave Courbet, 1866; e Fig. 53: A Origem da Guerra, Orlan, 1989.
44
Disponível em: <https://vimeo.com/221821919>.
87
soldados de plástico. No contexto da ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile (1973-
1990), o sensual e bem-humorado vídeo se torna um comentário crítico contundente. Ao
descobrirem os bonecos com as línguas, é como se as jovens criticassem a ordem de uma
sociedade militarizada, levando o contexto político ao contexto de um jogo erotizado. O vídeo
é filmado até que os picolés se acabam desvelando totalmente o palito-soldado e as línguas
tingidas das meninas registram a marca da ação. Essa impregnação pode ser compreendida
como a contaminação inevitável do regime patriarcal militar da época e, ao mesmo tempo,
como marca de uma dessacralização quase inocente pelo ato de chupá-los.
Fig. 55: Comece o dia com um bom café da manhã juntos, da série Relacionamentos experimentais,
Pixy Liao, 2009.
88
No tema das relações, não é demais lembrar a pureza pop e lúdica do relacionamento
da artista Pixy Liao com o seu parceiro Moro Magario, com o qual tem produzido, nos
últimos 12 anos, autorretratos colaborativos e contorcendo de forma divertida a dinâmica de
poder nas relações heterossexuais. Nascida em Xangai e atualmente radicada no Brooklyn
(NY), Pixy Liao é exemplo de uma nova geração de artistas que testa os limites do olhar
feminino/masculino e atreve-se a desafiar padrões de relacionamento. Partindo da sua relação
com o namorado mais jovem, Liao encena uma metáfora de amor e ódio entre o casal e
provoca interrogações sobre as convenções fotográficas e sociais relativas aos papéis de
gênero na China do século XXI (Figura 55). Essa encenação sutil inverte de forma inteligente
os papéis sociais hierarquizados e reinventa novos formatos de relação familiar.
89
vulgares e de maneira debochada – linguagem comum entre os YBA – para apontar clichês
sobre o masculino, nesse trabalho Got a salmon on (Prawn) (Figura 56), Lucas retrata uma
sequência do corpo nu do seu companheiro da época com uma lata de cerveja, cobrindo o
pênis como se o substituísse e, nas últimas imagens da sequência, a lata explode
metaforizando o gozo masculino. Comida ou bebida representando ou substituindo partes
sexuais do corpo é um tema comum no trabalho de Lucas, empregado principalmente para
subverter o estereótipo degradante do corpo da mulher na arte. Esse trabalho fotográfico de
uma narrativa construída sobre comportamentos banais masculinos, seja tomar uma cerveja
ou mesmo masturbar-se, executado por uma mulher, toma outra dimensão e, obviamente,
inverte os papéis sociais da mulher e a coloca em lugar de observadora/produtora.
Fig. 58: Still do vídeo Ilha dos Prazeres, Anita Boa Vida, 2017.
90
Anitta Boa Vida, em seu vídeo Ilha dos Prazeres 45 (Figura 58), também exerce seu
voyeurismo na mesma praia, usando a ironia como linguagem estética. Como uma crítica à
objetivação sexual da mulher, Boa Vida filma rapazes na praia, a partir de um lugar histórico
de inversão na arte. Esses rapazes estão ali para seu deleite de observadora. É ela quem olha.
Ao contrário de Alair Gomes, em seu Beach Triptych #20 (Figura 57), ela não exalta apenas o
corpo físico, fetiche de Alair; o que Boa Vida celebra, nesse vídeo, é justamente a
possibilidade de ter a seu dispor tantos corpos diferentes, para o deleite do seu olhar feminino
ativo. Esses registros de corpos masculinos, formalmente ou fisicamente, não se diferem
necessariamente das representações homoeróticas ou cânones viris. A diferença, no entanto, é
que uma mulher, ao estar presente como sujeito artístico, permite que os modelos sejam vistos
a partir de uma certa vulnerabilidade ou até mesmo imperfeição. “O homem-objeto é ainda
viril? Privado de sua qualidade de sujeito? (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.),
2013, p. 117).
Fig. 59: Encounter #37 da série Exceptional Encounters, Paula Winkler, 2014.
45
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=Hw0ZJW7kcWE>.
91
Nas suas fotografias de nu masculino, a fotógrafa alemã Paula Winkler lida com
homens a quem aborda por meio de uma plataforma digital de sexo. Ela contacta diferentes
tipos de homens e os convence a encontrá-la em quartos de hotel e a serem modelos para o
projeto Encontros Excepcionais (Figura 59). Nesse caso, mais importante que homens serem
fotografados sob uma perspectiva feminina, o que Winkler privilegia é a beleza da
diversidade do corpo masculino em suas diversas formas, seu erotismo e, ao mesmo tempo, a
vulnerabilidade desse corpo. São personagens que se mostram exagerados, vaidosos,
inseguros ou agressivos, porém longe de quaisquer cânones de virilidade.
Simone de Beauvoir questionou o fato das mulheres serem consideradas o segundo
sexo em um mundo governado majoritariamente por homens, nos mais diversos campos, e
defendia seu lugar de sujeito autêntico, legítimo de conhecimento. Beauvoir abriu o campo de
possibilidades para que a mulher se constituísse autonomamente como indivíduo livre, ativo e
desejante, libertando-a do estado de sujeição. (JOHANSON, 2019, p.13).
92
Fig. 60: Sem título, da série Imagens de homens, Viktoria Tremmel, 2007.
Em sua série Imagens de homens, a artista austríaca Viktoria Tremmel avança nesse
sentido da discussão. Ela apresenta o corpo masculino nu em cenários domésticos sempre
utilizando alguns elementos frágeis como flores ou frutas. Ela também se coloca sempre
presente na imagem expondo a relação entre os gêneros, abrindo, assim, camadas
multidimensionais de reflexão sobre as teorias feministas do olhar e o lugar da mulher
enquanto produtora de linguagem na arte. Ambos, artista e modelo, estão olhando para a
câmera. Dessa maneira, Tremmel inclui a perspectiva do espectador, explorando o processo
de recepção como um ato que, por um lado, esteve por muito tempo culturalmente
determinado, mas que, agora, é eminentemente político e, portanto, precisa ser refletido. Não
se trata apenas da inversão de papéis sujeito x objeto, o corpo masculino no tradicional lugar
do corpo feminino, mas da complicação fundamental de representar a sexualidade. Ao se
colocar na imagem, neste caso, refletida em um espelho (Figura 60), ela cria uma relação a
três – autor, modelo e espectador – e discute junto ao público sobre como se dá a construção
das representações sociais, e nos obriga a olhar para ela, mulher, enquanto sujeito produtor de
arte.
93
explica, em parte, a necessidade que as mulheres representam para os homens. E
serve para explicar como eles ficam incomodados com as críticas delas; [...] Pois se
ela resolver falar a verdade, a figura no espelho encolherá. (WOOLF, 2014, p. 54)
Fig. 61: Still do vídeo Dimensões variáveis, Javier Castro Rivera, 2008.
O vídeo intitulado Dimensões variáveis47 (2008), na Figura 61, lida com humor sobre
a obsessão masculina, o tamanho do próprio pênis. O artista cubano Javier Castro Riveira faz
uma enquete com diferentes mulheres em Havana, Cuba, que demonstram com as mãos, sobre
qual seria o tamanho ideal do órgão sexual masculino para seu próprio prazer. As mulheres
sofreram enorme pressão sobre seu corpo durante anos e precisaram responder a padrões de
beleza inalcançáveis. Assim como elas, os homens, historicamente, também dependem do
tamanho do seu órgão para sentirem-se mais ou menos viris. A autoestima masculina é
afetada e o homem se sente inferiorizado por acreditar que seu pênis é pequeno. Essa
inadequação, real ou imaginária, é muito frequente.
46
Garotos, canção de Paula Toller e Leoni de 1985.
47
Disponível em: <https://vimeo.com/65977520>.
94
O pênis grande, então, pode ser tanto um símbolo de status, prova de direito ao
melhor que a natureza pode oferecer, assim como uma varinha de condão... Tamanho
importa? Absolutamente, sim. Mas o problema do tamanho é tão “mental” quanto
“material”– não apenas uma pergunta de dar nos nervos, sempre uma colaboração
com a imaginação e, assim sendo, com a cultura. (BORDO, 2000, p. 83)
48
Disponível em: <https://revistatrip.uol.com.br/trip/o-penis-na-arte-contemporanea>.
95
Fig. 62: A estátua de um sátiro, representado com um pênis ereto, Grant Mitchell/Wikimedia, sem data;
Fig. 63: O atleta Linford Christie no auge da carreira, 1993.49
Cheiro, músculos, força, vitalidade, capacidade sexual: tudo concorre para fazer do
“outro” tanto um “objeto sexual” fantástico – que se pode utilizar à vontade –
quanto um “animal sexual”, com quem a experiência carnal seria ao mesmo tempo
“bestial”, diabólica”, “monstruosa” e, fazendo isso, necessariamente excepcional.
(CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 457)
49
Disponível em: <https://twitter.com/ChristieLinford/media>.
50
O termo “lancheira”, em referência a sua genitália, foi cunhado pelo The Sun nos anos 90. Disponível em:
<https://www.the-latest.com/linford-christie-loves-his-lunchbox-when-theres-money-it>.
96
os estereótipos refletem na arte?
O corpo do negro africano foi dissecado por anatomistas brancos, a sua inteligência
aferida por educadores brancos e a existência de sua alma discutida por filósofos e
teólogos brancos. Poucos desses caucasianos questionaram a sua própria
superioridade racial ou duvidaram da sua origem divina. Voltarie e Thomas
Jefferson achavam que os negros possuíam capacidade mental limitada. [...] Apesar
de pontos de partida diferentes, a maioria dos pensadores raciais baseou muitas de
suas conclusões mais importantes no mesmo critério – o pênis do africano. Ele foi
olhado, temido (e, em alguns casos desejado), pesado, [...] e praticamente em todos
os resultados, seu tamanho foi considerado prova de que o negro era mais um animal
do que um homem. O pênis foi “racializado”. (FRIEDMAN, 2002, p. 97-98)
Robert Mapplethorpe foi, sem dúvida, um dos fotógrafos mais influentes das décadas
de 1970 e 1980 e sua controversa fotografia (Figura 64) Man in a Polyester Suit (1980),
ilustra a natureza da problemática representação do corpo negro na arte. Um modelo negro
sem rosto aparente, com o zíper aberto e o pênis grande para o lado de fora reforça,
justamente, o estereótipo racista do homem negro “primitivo” e “selvagem” mais bem dotado
sexualmente em comparação aos homens brancos considerados “civilizados”, representados
no terno de poliéster. (BORDO, 2000, p. 75). Mapplethorpe, que é um homem branco, corta a
foto de modo que não aparecesse o rosto do modelo, fazendo entender que estamos olhando
para o corpo negro de uma forma generalizada. Da barriguilha aberta, vemos o pênis
semiereto de comprimento e circunferência excepcionais, sugerindo a tal sexualidade
primitiva “assustadora” que justificou 300 anos de exploração colonizadora contra os
“selvagens”. A chamada fisionomia peniana degenerada dos delinquentes.
Padres, marinheiros, biscateiros, negros e árabes das colônias, mais tarde atores
pornôs californianos com os corpos trabalhados, essas figuras sexuais da virilidade
são dotadas de órgãos arquetípicos: inchados ou eretos, em todos os casos enfáticos,
sem dúvidas, cada vez menos “pessoais” na medida em que a produção de imagens
devassas evolui do estágio de artesanal ao estágio industrial. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 504)
97
Fig. 64: Man in Polyester Suit, Robert Mapplethorpe, 1980.
Fig. 65: Snap Shot, Rotimi Fani-Kayode, 1987.
Minha segunda questão sobre a historicidade é que não podemos ignorar a maioria
da população do mundo, nem tampouco a história que tornou possível as
masculinidades hegemônicas dos poderes hegemônicos: a história do imperialismo.
Essa história inclui a conquista colonial direta, que fez das relações de raça uma
parte inevitável da dinâmica de gênero. (CONNEL, 1995, p. 192)
98
Fig. 66: Body, John Edmonds, 2013.
Os retratos de nus, do fotógrafo americano negro John Edmonds (Figura 66), quebram
as construções sociais da masculinidade, criando uma representação mais sutil da sexualidade
masculina. Suas fotos não necessariamente retratam a sexualidade masculina gay, mas criam
propositalmente, um senso de ambiguidade de gênero através de suas composições.
Fotografados quase inteiramente em interiores minimalistas, os retratados de Edmonds são
capturados com expressões afetuosas. Ao reduzir os homens e seus ambientes à sua forma
mais simples, retira os uniformes, as exigências sociais, despindo, verdadeiramente, seus
modelos. Longe do estúdio e da necessidade da perfeição clássica de Mapplethorpe, suas
imagens nos desafiam a questionar nossas percepções de beleza, força e masculinidade e
responde às ideias de representação como um corpo masculino pode ser um corpo sensível,
mas, acima de tudo, um corpo negro que desafia a história dos negros de forma menos
restrita.
99
Fig. 67: Um dos cartazes do Museu do Homem do Nordeste, Jonathas de Andrade, 2013.
Fig. 68: Derrubador Brasileiro, Almeida Júnior, 1871.
100
despido, segura em sua mão uma enxada e, na outra, um cigarro queimando. Com o membro
entumecido, pele suada de mormaço, o Derrubador Brasileiro transpira erotismo e foi
considerado um escape às regras acadêmicas da narrativa heroica do século XIX.
Além disso, podemos analisar o Derrubador brasileiro dentro de uma vertente das
novas representações da masculinidade desde o século XVII. Uma transposição da
virtude de uma ação heroica-trágica em um carregamento sensual do corpo masculino
pelo não fazer. A pose passiva de repouso do derrubador encarna um erotismo lascivo
que é reforçado pela vestimenta. O corpo do homem meio vestido realça, através da
calça, novos contornos que lançam atenção a seu sexo ocultado. É por causa do
vestuário que o nu masculino ganha em experiência da carne e aparece mais vivo,
longe de uma idealização clássica. Portanto, o Derrubador brasileiro ocupa o lugar
de um corpo moderno e regional trazendo consigo narrativas do interior como exótico
e carregadas sensualmente, em contraposição à virtude tradicional heroica.
(BATISTA, 2011)51
As relações raciais se tornaram uma parte importante a ser observada dentro das
diferentes masculinidades. Qual o lugar dos homens negros em uma sociedade que ao mesmo
tempo em que exalta os homens em detrimento das mulheres, inferioriza a humanidade das
pessoas negras em geral? Em que medida os homens negros partilham dos privilégios dos
padrões hegemônicos de masculinidades?
A artista estadunidense Adrian Piper já lidava com essas questões na década de 70.
Ser Mítico é uma série de performances, realizadas entre 1973 e 1975, em que Piper disfarçou
51
O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte. net/obras/corpo_
academia.htm>.
101
sua identidade, mudando sua raça, sexo e classe social para experimentar em situações
públicas as reações das pessoas. Ela pretendia investigar, justamente, como os marcadores de
identidade como a cor da pele ou gênero afetavam as percepções dos outros, demonstrando o
poder dos estereótipos. Piper saía pela ruas de Nova York vestida como seu alter ego
masculino, com uma grande peruca afro, óculos escuros e bigode, realizando comportamentos
tipicamente masculinos. Ao experienciar não só a audiência das ruas, Piper lidava com suas
próprias expectativas internas. A performance Ser Mítico (Figura 69) é descrita pela artista
como uma experiência libertadora, pois, enquanto homem, desfrutava da possibilidade de agir
de maneiras socialmente restritas a uma mulher, sobretudo negra. Ela se exibia, andava a
passos largos, levantava os ombros, cobiçava mulheres, sentava com as pernas bem abertas no
metrô para acomodar a genitália e desfrutava da liberdade de andar por ruas vazias em
horários noturnos. (GARCIA, 2018, p. 74).
Nos limites deste texto, não trataremos das questões social e racial mais
profundamente e de forma adequada, o que, certamente, exige uma outra pesquisa. Se faz
relevante, entretanto, trazermos o corpo negro enquanto exemplo de uma “nova”
representação do corpo masculino na arte, e não mais um corpo invisibilizado, visto que a
cultura ocidental foi totalmente marcada pelo colonialismo. A exaltação dos ideais europeus
promove, ainda hoje, uma intensa exclusão racial, uma vez que o corpo branco foi adotado
como o padrão contra o qual as peles e os traços étnicos dos seres humanos foram
comparados e, todos aqueles cujos corpos divergiam desse ideal foram considerados
inferiores. (JUNIOR; LOBO; BUNN, 2018, p. 2).
52
Referente ao conto A roupa nova do rei, do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, de 1837, sobre um
bandido que decidiu se esconder fingindo ser alfaiate em um novo reino, chegando a se tornar o alfaiate do rei, a
quem propôs tecer uma roupa que somente os inteligentes conseguiriam ver. O rei aceita a proposta, fornecendo-
lhe baús cheios de riquezas, linha de ouro, seda e outros materiais raros. O bandido os guarda e fica em seu tear,
fingindo tecer fios invisíveis. Todos que passavam na frente da alfaiataria e assistiam a sua performance de
puxar panos que não existiam, enquanto recebia dinheiro do rei por semanas, alegavam ver o tecido, para não
parecerem estúpidas. Quando o falso tecelão mostra a mesa de trabalho vazia ao rei, este exclama: "Que lindas
vestes! Fizeste um trabalho magnífico!", embora não visse nada além de uma simples mesa, mas sem querer
admitir, na frente de seus súditos, que havia sido enganado. Todos ao redor soltaram falsos suspiros de
admiração pelo trabalho do bandido, sentindo-se obrigados a concordar. Até que, uma criança, inocente, gritou:
"O rei está nu!". A sinceridade da criança fez com que todos, finalmente, começassem a confessar que também
não enxergavam a nova roupa do rei. Este, incomodado por nem sentir o peso da roupa, se encolhe.
102
Vossa majestade, a representação fálica, o pênis viril, idealizado, grande e duro, se
orgulha de sua coragem, de sua prontidão. Já o pênis não ereto, se mostrado, sugeriria
vulnerabilidade, fragilidade, e quase doçura. Esse pênis não ereto é um “pau mole”, e ser
exposto enquanto mole é a pior coisa que pode acontecer para um homem em nossa cultura.
Além de ser muita responsabilidade para apenas um órgão, causa uma enorme lacuna entre o
ser humano/homem/indivíduo e o imagético cultural e iconográfico aplicado em cima dele e
de todos nós. “É a ereção que confere ao homem a sua dignidade, o seu caráter, é ela que
manifesta a sua importância, é ela que funda sua dominação.” (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO (Org.), 2013, p. 439). Como no conto de Andersen, os seguintes artistas
despem a roupa do rei falo. E, como em Kenneth Clark, o rei estará assim despido! O nu
masculino sai do regime de representação imagético dos cânones viris e novas formas de ver
esse corpo são acionadas. O pau se encolhe.
Fig. 70: Self Portrait (Front, Dark, shadow), John Coplans, 1985; e Fig. 71: Foxy Mister, Tomislav
Gotovac, 2002.
103
Em resposta à imagem do corpo estilizado que originou-se na Grécia, o artista
britânico John Coplans fotografa, recorrentemente, fragmentos do seu corpo nu – pés, mãos,
joelhos, tronco, pênis, nádegas – usando como estratégia a inversão de estereótipos. No seu
autorretrato Front, Dark, shadow (1985), focando tórax e o fim das coxas, o artista
sexagenário faz uma nova referência ao nosso escultural David (Figura 70). Coplans expõe
seu corpo nu, repleto de pelos, barrigudo, amassado, fragmentado, tomado pela idade, a fim
de nos apresentar uma nova possibilidade de beleza masculina que não está preocupada com o
visual de uma musculatura de prancha de anatomia. Coplans começou a fotografar seu corpo
nu quando tinha sessenta anos de idade, desafiando as convenções do ideal do David jovem e
musculoso; embora nos seus autorretratos Coplans não inclua seu rosto nas imagens,
representando, assim, um corpo masculino universal, não erotizado e naturalmente brocha,
enquanto as questões de envelhecimento e deterioração são assuntos geralmente ignorados e
temidos na sociedade contemporânea. “O sexo de Coplans já pertence à natureza
desconcertante que o trabalha, mas é o sexo de um homem envelhecendo, e também do
próprio artista.” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 508).
Assim como Coplans, o artista croata Tomislav Gotovac usa, constantemente, seu
próprio corpo como um meio direto de expressão. Em seu ensaio Foxy Mister (Figura 71),
Gotovac posa seu corpo despido imitando os tradicionais ensaios sensuais de jovens modelos
femininos, ação que, deliberadamente, envolve diversas provocações. O corpo de um homem
de 65 anos, cabelos grisalhos e barrigudo, ao posar escrachado, explicita uma sequência de
tabus, não só do homem nu em si, mas além da inicial estranheza de vermos o corpo
masculino em poses que não lhe são habituais; é um homem nu de idade, idade em que seu
corpo deveria permanecer oculto, recolhido e não sexualizado, segundo as regras da
contemporaneidade. “Envelhecer é uma patologia: o combate contra os anos, a impotência e
a morte tornam-se uma obsessão viril.” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013,
p. 566).
104
converteram a velhice num estado corporal vergonhoso”. (SIBILIA, 2012, p. 1)
Lucian Freud, o pintor alemão radicado na Inglaterra, ficou conhecido pelos seus nus
masculinos realistas, vistos de ângulos fora do comum, sem respeitar quaisquer estereótipos
de masculinidade e, pelo contrário, apresentando-os totalmente vulneráveis. São corpos
distorcidos, sofridos, vivos e desgastados pelo tempo, cuja pele e a carne são extremamente
expostas a partir da escolha de suas tintas e forma de suas pinceladas. Barrigas flácidas,
marcas de expressão, bolsa embaixo do olhos, rugas e qualquer outra imperfeição de seus
modelos não passam desapercebidas. Ao retratar personagens gordos, feios e velhos, também
lidava com a inexorabilidade do envelhecimento, do peso do tempo sobre o corpo, das
cicatrizes.
Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994) (Figura 72).
Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático britânico, é
retratado nu através de um ângulo baixo e não convencional. Frequentemente adormecidos e
vistos de ângulos expostos fora do comum, os nus masculinos de Freud querem projetar
vulnerabilidade e, ao expor esse homem corpulento com as partes íntimas tão nitidamente
expostas em escala exagerada, Freud faz questão de retratar o nu de forma grosseira,
desajeitada, pretendendo, justamente, desnudar o homem da sua armadura social, libertando-
se dos cânones de beleza viril.
Fig. 72: Leigh Bowery posando ao lado de 'Leigh Under the Skylight', de Lucian Freud, Bruce
Bernard, 1994.
105
Em Freud, podemos observar com mais frequência retratos de mulheres nuas do que
de homens nus, por variadíssimas razões. Mas as imagens masculinas são, ao seu
modo, excepcionais. O grau de honestidade que Freud lhes imprime – a falta de
exagero estereotipado, quer dirigido à heroica masculinidade quer à compaixão – é
extremamente raro na história da arte. (SMEE, 2010, p. 89)
I Miss You53 é uma performance do artista italiano Franko B, em que ele caminha
sobre uma passarela montada por tecido branco, iluminado por luzes que o contornam. A
plateia assiste a performance de ambos os lados da passarela e, como em um desfile típico, os
fotógrafos ficam no final para fotografar o artista que caminha de um extremo ao outro da
passarela (Figura 73). O corpo em exibição, no entanto, não é o corpo esbelto de um
supermodelo, mas o corpo completamente nu, careca, fora da forma padrão, coberto da
cabeça aos pés com uma tinta branca. À medida que a performance progride, sangue escorre
do corpo do artista, a partir de um pequeno tubo inserido na dobra do cotovelo de cada braço,
e vai se acumulando na passarela. Ao assumir a semelhança de um desfile estéril e altamente
controlado, Franco B proporciona um confronto do público com o corpo humano sofrendo
53
Disponível em: <https://vimeo.com/126830380>.
106
dores e, sangrando, questiona os códigos representacionais do homem branco, aqui se
desconstruindo na frente da plateia.
Apesar da preponderante imagem estetizada do masculino dentro da perspectiva
clássica, dos corpos belos, sem pelos, esculpidos em academia, é importante citar que, no
final dos anos 90, começou a ganhar espaço no mundo, a estética “bear”. Corpos que exibem
códigos específicos como massa corporal avantajada e incidência de pelos no corpo. Um
corpo fora do estilo musculoso depilado com predileção por apresentar outro padrão de beleza
e a possibilidade de novas subjetivações. Os ursos, como são chamados no Brasil,
representam sim uma transgressão, especialmente se comparados ao universo ditado pela
mídia ou pela própria arte homoerótica. (SILVA, 2015, p. 171). Além da despreocupação em
relação às regras estéticas e valores de consumo midiáticos, os ursos exploram sexualmente
seus corpos “imperfeitos”. Gordura, queixo com papadas, branco, marrom, preto, ruivo, rude,
extravagante ou afeminado, com um nariz grande, pelos no tórax. Essas são as diversas
características dos tipos de homens que o artista mexicano Carlos Radríguez trabalha para o
empoderamento dos corpos masculinos, visando refletir a diversidade masculina. Suas
ilustrações livres dos discursos de beleza tradicionais dos músculos definidos e diferentes tons
de pele, colocam sob os holofotes e erotizam tipos antes marginalizados (Figura 74).
54
Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2017/11/23/ilustrador-mexicano-retrata-a-masculinidade-
com-olhar-divertido-e-debochado>.
107
Fig.75: David, Miguel Ángel Rojas, 2005; e Fig. 76: Butcher IV, da série Mestres
Açougueiros e seus Aprendizes, Odires Mlaszho, 2007.
Desde o início, a pose do homem, a perfeição de seu corpo e o manejo da luz aludem
a uma das figuras paradigmáticas da velha concepção de beleza: o David de
Michelangelo. Mas com este David, Rojas traz um sinal de ruína em sua beleza,
contando uma história de deterioração: em uma de suas pernas está faltando um pé do
tornozelo para baixo. Uma primeira leitura refere-se a tantas belas figuras nuas
mutiladas pela ação do tempo, a Vênus sem braços, o Lançador de Disco ou Afrodite
sem cabeça e sem braços, figuras da arte grega que exibem sua beleza incompleta nos
maiores museus do mundo. Mas este David de Miguel Ángel Rojas não é uma
escultura, é a fotografia de um homem de verdade posando assim: de pé, em cima de
um pedestal, uma figura que, à primeira vista, aparece graças a uma manipulação
cuidadosa da luz, como uma escultura corpo. Esta fotografia retrata o corpo nu de um
108
soldado jovem e bonito, mutilado por uma daquelas infames minas que esmagaram os
corpos de crianças, homens e mulheres em países onde as tragédias da guerra fazem
parte da vida cotidiana. Neste David contemporâneo, o paradigma da beleza clássica
está se movendo enormemente. Esta imagem é carregada com muitas conotações
contraditórias: beleza e guerra, criação e destruição, vida e morte. Uma imagem
percorrida por tantas outras imagens tiradas da história da arte, de seu paradigma de
beleza e máxima espiritualidade (lembre-se que, para Buonarotti, a beleza tem
aspirações morais; seu ideal de beleza está ligado a um ato de consciência que aspira
ao Bem e para a Verdade.) Por outro lado, também é atravessada por imagens de
jornais e noticiários que transmitem os “desastres da guerra”. É atravessada por
crônicas de jornais, por narrativas colhidas na mídia e nas ruas. Essa imagem da arte
contemporânea, que remete à beleza dos tempos passados, está sinalizando para o
mundo que a torna possível, um mundo em crise, onde o corpo humano se degrada e
viola diariamente. (RODRÍGUEZ, 2005)55
Isso quer dizer que a concepção de corpo na cultura ocidental está intimamente ligada
à questão da imagem e da representação. Se no início do século XX a arte moderna
subverte a tradição do nu, através da fragmentação e da deformação do corpo, na
segunda metade do século essa crise da outrora equilibrada visão antropocêntrica é
ainda mais acentuada uma vez que a matéria, a animalidade e a crueza passam a ser
exploradas. Dessa maneira, a arte contemporânea profana a antiga imagem de um
corpo idealizado por intermédio do reconhecimento da corporalidade humana, seja
através de uma ação ou pela ênfase da sexualidade, a utilização de fluidos e de
odores. (MATESCO, 2009, p. 28)
55
Disponível em: <https://www.artnexus.com/ Notice_View.aspx?DocumentID=15044>.
56
Termo usado para identificar sujeitos cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no
nascimento.
109
2.4 O corpo desobediente
Fig. 77: Rrose Selavy, Man Ray, 1920; e Fig. 78: Danny King em performance, Diane Torr, 2010.
Em 1920, o artista francês Marcel Duchamp assumiu a identidade de seu alter ego
feminino Rrose Selavy e foi fotografado (ou seria fotografada?) inúmeras vezes, enquanto
mulher, por seu amigo, o fotógrafo Man Ray (Figura 77). Em francês, o nome Rrose Selavy é
um trocadilho que podia ser interpretado como “Eros, c’est la vie” (“Eros, é a vida”),
57
Laerte, no programa de TV Roda-Viva, 2012.
110
justamente uma brincadeira com a ideia de que o sexo atravessa a existência humana e não
pode se prender ao sexo biológico.
58
STIGGER, V. Flávio de Carvalho: Arqueologia e Contemporaneidade. In: Celeuma n. 4, 2014.
59
Um década antes de Mary Quant tornar a mini saia popular.
111
alegre enfiado numa roupa cinza, marrom ou azul marinho”. (STIGGER, 2014, p.
47)
Na década de 70, Ana Mendieta, artista cubana radicada nos Estados Unidos, usava o
corpo para questionar a binaridade masculino e feminino. Na obra Facial hair transplant
(1972), ela transferiu a barba cortada do seu amigo Morty Sklar para o seu próprio rosto. Ao
grudar a barba em seu rosto, Mendieta criou uma identidade ambígua, desconstruindo as
ideias patriarcais de atributos fixos destinados ao sexo masculino ou feminino, questionando
as construções sociais impostas a uma fisionomia presa à biologia, ao se enquadrar em ambos
sexos ao mesmo tempo, acenando também para o conceito de identidade de gênero como
performatividade (Figura 80).
Em 1980, apareceu no feminismo americano a cena do drag king, que trata da
masculinidade enquanto performance. Diane Torr (Figura 78, acima à direita) era uma artista
educadora que, na época, dava oficinas para mulheres de como se vestir, alterar os passos e
ser homem por um dia. Colar bigodes e gozar com o sentimento exaltante de poder escolher a
sua identidade, de poder jogar com muitas identidades. Finalmente, podia-se ser um homem
sem pênis e perceber o gênero fora da polaridade binária. O ato de vestir-se é uma
transformação temporária para lidar com a questão masculina em forma de paródia. Mas não
112
só. A masculinidade fora do corpo do homem teve um poder subversivo por desordenar o
sistema binário.
O princípio de masculinidade baseia-se na repressão necessária dos aspectos
femininos – do potencial bissexual do sujeito – e introduz o conflito na oposição
entre o masculino e o feminino. (...) Ademais, as ideias conscientes do masculino e do
feminino não são fixas, já que elas variam segundo os usos do contexto. Portanto,
existe sempre um conflito entre a necessidade que o sujeito tem de uma aparência de
totalidade e a imprecisão da terminologia, a relatividade do seu significado e sua
dependência em relação à repressão. Esse tipo de interpretação torna problemáticas as
categorias “homem” e “mulher”, sugerindo que o masculino e o feminino não são
características inerentes e sim construções subjetivas (ou fictícias). Essa interpretação
implica também que o sujeito se encontra num processo constante de construção e
oferece um meio sistemático de interpretar o desejo consciente e inconsciente,
referindo à linguagem como um lugar adequado para a análise. (SCOTT, 1989, p.16)
A partir dos anos 80, os estudos queer – novo campo epistemológico voltado para a
crítica e desconstrução dos mecanismos discursivos indentitários e binários, propagados por
dispositivos cisheteronormativos – começaram a se expandir. Esse novo campo estético
reuniu corpos historicamente desclassificados e engendrou estratégias de conduta frente ao
antigo heterocapitalista, binário e socialmente desigual sistema de representação.
(ALTMAYER, 2018, p. 38).
Apesar da heteronormatividade buscar enquadrar sexo, gênero e desejo dentro de uma
regra, o corpo queer denuncia que essa norma é criada por interesses de controle e poder
alheios às múltiplas formas de expressar desejo, sexualidade e gênero. Assim, como vimos
anteriormente, o sexo é, desde o início, normativo. Faz parte das práticas regulatórias das
instituições de poder descritas por Michel Foucault anteriormente no Capítulo 1. Esses
mecanismos desestabilizariam o pressuposto de identidade individual e fixariam a norma.
Entretanto, segundo Judith Butler, a lei e a norma são pilares incontornáveis de qualquer
processo de construção de identidade; mas dá um passo além quando afirma que, se toda
norma depende de sua repetição, então a possibilidade de subversão já está inscrita na própria
norma.60
60
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/opinion/1510088225_560754.html>.
113
processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar
contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força
hegemônica daquela mesma lei regulatória. (BUTLER, 1993, p. 1)
A noção de sexo como dado social e não biológico é extremamente importante para a
compreensão dos corpos transgêneros. As normas vagina/mulher/feminilidade ou
homem/pênis/masculinidade se desestabilizam e a existência dos corpos trans nos reafirma
que simplesmente não há universalidade na relação genital e gênero; noção que por tanto
tempo organizou o pensamento binário e a ideia de que existem apenas “dois sexos”
(HOLLANDA, 2018, p. 357). Se em Simone de Beauvoir as opções sexuais que os sujeitos
estavam limitados eram apenas duas, homem ou mulher, a partir dos anos 90, em Problemas
de gênero (1990) Judith Butler ampliou o discurso sobre o restrito binarismo dos corpos ou ao
imperativo heterossexual de antes. A partir de O segundo sexo (1949), Beauvoir abriu o
campo de debate sobre como a diferença sexual funcionava dentro da estrutura hierárquica
das relações sociais e instituições. Já a partir da leitura de Butler, a heteronormatividade
entrou no debate e o sexo biológico não estaria mais vinculado às questões de gênero e
submetidos às regras sociais determinantes ao masculino ou feminino. Sem dúvidas, cada uma
a seu tempo, renovou as perspectivas teóricas do feminismo. Se Beauvoir inaugurou a crítica
sobre a universalidade do masculino que excluía o feminino da possibilidade de tonar-se
sujeito (“não se nasce mulher, torna-se”), Butler amplia o sujeito da proposição “tornar-se”
(RODRIGUES, 2019, p. 41). “Não há nada em sua explicação que garanta que o “ser que se
torna mulher seja necessariamente fêmea.” (BUTLER, 1990, p. 29).
114
o queer desfaz gênero na teoria, a travesti desfaz gênero na prática.” (LUSTOSA, 2016, p.
395).
Valendo-se da lógica de muitas das brasileiras que têm filhos trans, para minha mãe
não foi fácil engolir a experiência de gênero, que carrega, em si, a anormalidade de
uma vida aniquilável e fora da utopia do corpo – não reconhecida sequer como vida,
mas como criminalidade, deficiência e perigo. E sei que até para as mães menos
intransigentes, a transgeneridade no Brasil ainda é uma guerrilha difícil, calejada de
feridas diárias e violências silenciosas como as que sofremos pelo colonialismo que,
a custo do capitalismo e do espetáculo, invade as nossas privacidades tão dilaceradas
e, muitas vezes, inegociáveis. Este manifesto surge como uma arma da
clandestinidade intelectual. (LUSTOSA, 2016, p. 386)
115
Fig. 82: Cuts: A Traditional Sculpture, Heather Cassils, 2011; e Fig. 83: Taya Mijando, Marianne Greber, 2005.
Heather Cassils é uma artista performática e bodybuilder canadense. Seu trabalho usa
o corpo de forma escultural, integrando feminismo, arte corporal e estética masculina. Cassils
usou um domínio de fisiculturismo e nutrição para passar da identidade feminina a um corpo
masculino, com tratamento hormonal para ganhar 23 quilos de músculo ao longo de 23
semanas, em uma transformação muscular tradicionalmente de homens. Acima, na Figura 82,
Cassils já com seu corpo feminino transformado na performance Uma escultura tradicional,
de 2011, atualiza, mais uma vez, as proporções perfeitas do nosso ícone David e desconstrói a
lógica binária. “Há legitimidade nos corpos trans, no homem com vagina, na mulher com
pênis61.”.
Cada vez mais, percebemos indivíduos transgêneros que não sentem a necessidade de
alterar seu sexo biológico a fim de conciliar identidade e órgão sexual. As pessoas trans
devem ser chamadas de ele, ela ou como lhe for mais conveniente, com a mesma
autenticidade que alguém cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi
atribuído no nascimento. Assim como a performance de Cassils, a imagem da artista austríaca
Marianne Greber (Figura 83), do corpo de Taya, um corpo biologicamente masculino, na foto
com o pênis aparente, porém com seios, cabelos longos, vestido floral, sentada, como se
estivesse urinando como uma mulher, por exemplo, é a maior demonstração da apenas
aparentemente intransponível contradição entre biologia e gênero. Esse tipo de movimento
61
Amara Moira, escritora transexual e ativista.
116
artístico que valoriza o corpo transexual contribui, e muito, para dar visibilidade social aos
grupos sexuais que vivem as censuras político-culturais atuais ou que estão em ascendência,
saindo da clandestinidade.
Mais uma vez, reiteramos a nossa hipótese da importância da divulgação de imagens
como suporte ativista dos corpos transgêneros, considerados, até então, desobedientes ou
desviantes, pois são fundamentais por serem capazes de desestabilizar o discurso naturalizante
do sexo justamente em seu aspecto biológico. “A realidade não depende apenas das leis da
física ou estruturas de DNA, mas também de imagens culturais e ideologia.” (BORDO, 2000,
p. 40). As imagens podem ajudar na compreensão do gênero enquanto dado social e não
biológico, o que é extremamente importante para a sociedade brasileira, por exemplo, visto
que o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo62.
“Não somos mulheres, nem somos homens, nós somos gente”63.
Capítulo 3
Discutindo a relação
117
teóricas e correr o risco de reforçarmos o binarismo, tão criticado atualmente. Todavia, se as
teorias de gênero avançam e os artistas promovem gatilhos para questionar a
heteronormatividade, o corpo masculino e seu cânone viril continuam resistindo a fim de
manter o status quo dominante, e padrões de hegemonia da masculinidade continuam sendo
repetidos em ambientes sociais específicos, como o doméstico. Nesse sentido, investigar sobre
masculinidades não significa apenas analisar o corpo masculino, mas discutir estereótipos
seculares e colaborar com a construção de outras versões de práticas discursivas, não
hegemônicas, que tenderam a transformar alteridade em desigualdade e hierarquia. Por certo,
ao longo da história, mulheres e trans têm sido alvo de injustiças sociais de ordens variadas e,
por mais conquistas que tenham alcançado, ainda estamos distantes de falar sobre uma efetiva
igualdade de gênero. E, por outro lado, muitos homens ainda enfrentam, cotidianamente, a
obrigação de responder ao modelo hegemônico de masculinidade. (MEDRADO & LYRA,
2008, p. 825).
Analisando as razões pelas quais o patriarcado manteve seu poder sobre os homens e
suas vidas, peço-nos que reivindiquem o feminismo para os homens, mostrando
porque o pensamento e a prática feministas são a única maneira de enfrentar
verdadeiramente a crise da masculinidade hoje. (hooks, 2004, p. 28)
118
Fig. 84: A performance La Bête, Wagner Schwartz, 2017, MAM SP.
Não falar sobre o nu masculino pode ser mais uma armadilha do patriarcalismo, e
desmistificá-lo pode ser importante ferramenta de liberdade, tanto para as mulheres quanto
para os próprios homens. Se, durante muito tempo, o macho parecia absolutamente confiante
na sua virilidade, seguro do seu papel de homem na sociedade, confortável e seguro de si na
119
percepção da sua identidade visual, hoje em dia, os homens estão cada vez mais conscientes
da virilidade não como um fato dado, mas como um problema a ser negociado. “Se a
masculinidade se ensina e se constrói, não há duvida de que ela pode mudar.” (BADINTER,
1993, p. 29).
Não é possível fazermos um debate amplo sem pensarmos como as identidades são
criadas dentro da lógica patriarcal e ser o lado do debate que domina o pensamento. Segundo
a filósofa brasileira Djamila Ribeiro em seu O que é lugar de fala? (2017), quem possuiu o
privilégio social possui o privilégio epistêmico e, dessa maneira, o modelo valorizado de
ciência e pensamento é a partir do homem cisheteronormativo branco. Para ela, também é
120
fundamental que os indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado consigam enxergar
as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na
constituição dos lugares de grupos subalternizados. (RIBEIRO, 2017, p. 137). É preciso,
portanto, trazer os homens para a conversa e discutirmos nossa relação.
Quase todos os homens que tive nos últimos muitos anos eram, de um modo ou de
outro, broxas. A broxice é lato sensu. Queria dizer uma coisa para vocês: não liguem.
O patriarcado está em crise. A relação de um homem com a dureza do seu próprio pau
é de uma fragilidade tremenda, quase comovente. Arriscaria dizer que o patriarcado
foi inventado para mascarar essa fragilidade. Então, a coisa mais normal do mundo é
que, com o patriarcado em crise, a primeira coisa a cair seja o pau. Não liguem! Para
nós, mulheres, a esta altura da crise do sexo hétero, não faz tanta diferença. Mandem
ver nas chupadas, nas lambidas, nos dedos. Aprendam a chupar bem uma buceta.
Deixem entrar o dildo, os vibradores tudo – não como um concorrente, mas como
um aliado. (Quem sabe isso não ajuda até pra outras coisas da vida, não é
mesmo?). Podem ter certeza: pra gente, uma trepada assim pode ser muito melhor do
que um pau meia-bomba, uma foda de coelho ou um exibicionismo qualquer.
Aproveitem que ele já tá mole mesmo e esqueçam dele. Esquecer o próprio pau. Taí
um exercício que vale a pena. Pensar no pau mole, no que causou o pau mole, no que
os outros vão pensar do seu pau mole é ainda tentar salvar o patriarcado. Vamos
deixar ele morrer. Se o pau ficar mole no processo, que fique. Faz parte. Esquecer do
piru vai fazer o mundo ficar melhor.64
É cada vez mais evidente que o sexismo não mudará, a menos que os homens também
estejam profundamente engajados e parem de agir como se o patriarcado fosse um termo
inventado pelas mulheres contra os homens e não um sistema que os forma subjetivamente.
Apesar de ser um sistema social que assola o corpo e o espírito masculinos, a maioria dos
homens não usa a palavra “patriarcado” na vida cotidiana e não pensa em seu significado.
Quando escutam essa palavra, geralmente associam isso à liberação das mulheres, ao
feminismo, e descartam isso como se fosse irrelevante para suas próprias vidas. (hooks, 2004,
p. 17).
Deixe-me dar outra definição: “feminismo é o movimento que visa acabar com o
sexismo, com a exploração sexista e a opressão”. Adoro essa definição da bell hooks.
O feminismo também é benéfico para os homens. O feminismo é benéfico para as
pessoas trans. O feminismo é benéfico. Deixe-me explicar: se para ser homem de
verdade você não puder chorar, passar pelo luto ou amar, quem perde é você. O
feminismo serve para ajudá-lo a encontrar a paz com esses sentimentos. Não há nada
demais em ter sentimentos. Isso se chama vida. (TOLOKONNIKOVA, 2019, p. 247)
64
Disponível em: <http://revistadr.com.br/posts/carta-aos-broxas/>.
121
diferenças e contradições de cada homem singular. A crise dessa masculinidade seria uma
teoria segundo a qual, graças ao avanços obtidos a partir das lutas feministas, os homens em
geral não saberiam mais como ser homem, já que o modus operandi de macheza foi proibido
pelo politicamente correto. Essa lógica, entretanto, parte de um pressuposto que existiu ou
existe em algum lugar inalcançável um modelo de virilidade verdadeira, não castrada.
Todavia, esse lugar mítico se encontra cada vez mais rarefeito. O passado viril, mesmo não
tendo existido de fato, produziu subjetividades a fim de sustentar um ideal. (AMBRA, 2019,
p. 18).
Os homens devem ser fortes, mais ainda, devem se mostrar fortes. Porém
considerados, ou se considerando como “naturalmente” viris, os homens temem
acima de tudo serem descobertos na sua vulnerabilidade, serem reconhecidos na sua
impotência. De maneira que a dominação masculina poderia também ser explicada
como uma tentativa de dominação da impotência masculina. (CORBIN;
COURTINE; VIGARELLO (Org.), 2013, p. 160)
122
Está em jogo, antes de mais nada, uma narrativa idealizada sobre si, fundada na
impossibilidade de aceitar o fato de que o mito é, e sempre foi, uma farsa. A
chamada masculinidade frágil ou tóxica é, portanto, aquela que não suporta se olhar
no espelho e ver-se diferentes dos seus ideais. E, para combatê-la, é preciso não
apenas denunciá-la do ponto de vista das suas consequências, mas, igualmente,
compreender como homens representam-se a si mesmos, quais fantasmas permeiam
seus atos e, principalmente, quais contradições e alternativas podem florescer de
uma análise detida sobre a masculinidade. (AMBRA, 2019, p. 16)
66
Música escrita por Robert Smith, da banda inglesa The Cure, em 1979, que declarou, recentemente, em
entrevista à revista Rolling Stone EUA, sobre a inspiração para a música: "Quando eu era criança, havia uma
pressão dos colegas para que você se adaptasse de uma certa maneira. E, como um garoto inglês na época, você
é incentivado a não demonstrar sua emoção em nenhum grau. Eu não pude deixar de mostrar minhas emoções
quando era mais jovem. Eu nunca achei estranho mostrar minhas emoções. Eu realmente não poderia continuar
sem mostrar minhas emoções”. Disponível em: <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/historia-por-tras-de-
boys-dont-cry-do-cure/>.
123
masculina e no aumento das estatísticas de feminicídio, ainda se recusa a vincular esse foco
ao patriarcado diretamente, por exemplo. Tentaremos, então, a partir de jornais e revistais
atuais, reconhecermos as mensagens subliminares nas imagens como perpetuação do antigo
status quo e resistência masculina para manutenção de antigos privilégios.
O material desta reflexão veio a ser muito variado (um artigo de jornal, uma
fotografia de semanário, um filme, um espetáculo, uma exposição) e o assunto muito
arbitrário: tratava-se, evidentemente, da minha atualidade. O ponto de partida desta
reflexão era, o mais das vezes, um sentimento de impaciência frente ao “natural” com
que a imprensa, a arte, o senso comum mascaram continuamente uma realidade que,
pelo fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser, por isso, perfeitamente
histórica. (BARTHES, 2013, p. 11)
A contínua obediência dos homens a uma noção de masculinidade que não pode mais
ser plenamente realizada nos termos antigos, levou-os a colocar maior ênfase em sua
capacidade de dominar e controlar por força física e terrorismo psicológico abusivo. Se na
arena pública os homens não podem mais reivindicar o controle patriarcal ou suas chefes
passaram a ser mulheres, esses homens se sentiram incentivados a realizar os rituais de
dominação patriarcal na esfera privada, por exemplo. (hooks, 2004, p. 127). E, como
consequência, a incidência de violência masculina contra mulheres aumentou67.
A violência não só aumentou como também foi justificada pelo ex-ministro da Justiça
Sérgio Moro, que assim publicou em sua conta no Twitter, em agosto de 2019: “Talvez nós,
homens, nos sintamos intimidados pelo crescente papel da mulher em nossa sociedade. Por
conta disso, parte de nós recorre, infelizmente, à violência física ou moral para afirmar uma
pretensa superioridade que não mais existe”68.
67
No Brasil, foram 1.047 casos de feminicídio em 2017 e 1.173 casos no ano passado. A cada duas horas, uma mulher
morre assassinada vítima de crime de ódio, segundo o site G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-
violencia/noticia/2019/03/08/cai-o-no-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-mas-registros-de-feminicidio-crescem-no-
brasil.ghtml>.
68
Disponível em: <https://twitter.com/sf_moro/status/1159166897243545600>.
124
A psicanalista paulistana Susana Muszkat cunhou o termo “desamparo identitário”
justamente para definir o tipo de violência praticada em função de um sentimento
desnorteador de precariedade pessoal e fracasso. O ato violento, segundo ela, visaria
recuperar o sentimento de virilidade, definido como força, poder e superioridade. Sua fonte de
autoestima se garantiria a partir de uma posição de superioridade em relação ao outro, que
acredita-se ter menor valor (MUSZKAT, 2019, p. 23). Para o jornalista norte-americano Will
Carless – especializado em cobertura de crimes de ódio e extremismo nos E.U.A. do Reveal,
The Center for Investigative Reporting, em entrevista para a Revista Vice (novembro, 2018) –
em todos os países, seja na Europa, nos Estados Unidos, ou no Brasil, a extrema direita
racista, autoritária, ou fascista, é predominantemente masculina. Carless, que hoje vive no Rio
de Janeiro, ainda completa que complexos estudos que investigam o movimento neonazista
identificam um problema grave entre este e a figura da mulher (CARLESS, 2018). É a
frustração masculina que decide os rumos políticos do Brasil hoje.69 Para nós, é crucial
percebermos como a misoginia é sintomática neste momento. A heterossexualidade normativa
ainda é a ideologia em vigência no Brasil. A heterossexualidade deixa de ser pensada como
prática sexual e se transforma em regime político. (PRECIADO, 2018, p. 78).
Apesar do avanço dos estudos de gênero, o brasileiro machista não se sente
confortável em um mundo heterogêneo e diversificado. Ele ainda considera que a família
nuclear e heterossexual é a única possível e que esse formato patriarcal estava perdendo
espaço para formatos mais fluidos. E, assim, valores pregados pela extrema direita, da
tradição, família, propriedade e Deus acima de todos, passou a ser uma esperança de
manutenção do status quo. Houve um homem negro ocupando a presidência norte-americana,
uma mulher ocupando a cadeira presidencial no Brasil, movimentos feministas esfuziantes, a
reivindicação de salários igualitários, campanhas contra assédio, população de imigrantes
aumentando e políticas públicas a favor de grupos minoritários representavam um pacote
bombástico e ameaçador ao seu lugar de privilégio.
O sociólogo Michael Kimmel é um estudioso da masculinidade e do surgimento do
que ele considera o homem branco raivoso, inclusive título de seu livro mais
conhecido, Angry White Men, lançado em 2013 e reeditado em 2016, após a eleição de
Donald Trump, já que, segundo ele, esses homens irritados estavam à espera de um líder que
finalmente incorporasse seus sentimentos. Segundo Kimmel:
69
Revista Vice. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br>.
125
Eles estão zangados com os imigrantes, que, eles acreditam, estão deslocando-os na
força de trabalho. Eles estão zangados com os capitalistas, que, na visão deles,
reduzem o tamanho do salário e os terceirizam para fora de seus empregos, demolem
as comunidades e, em seguida, voam em seus aviões particulares, e saltam em
paraquedas dourados em alguma ilha de paraíso fiscal. Eles estão com raiva de
burocratas irresponsáveis, que são surdos aos seus gritos de socorro e só para si
mesmos. Eles estão zangados com as mulheres, que, argumentam, são bonitas,
sensuais e sexualmente disponíveis – mas os recusam com desprezo desdenhoso.
Dizem que estão zangados com as esposas (o que é diferente de ficarem zangados
com as mulheres), que mantêm os homens no controle como responsáveis e
provedores, trabalhando em empregos que odeiam para chefes que são idiotas
caprichosos, apenas para pagar-lhes faxineiras, o divórcio, arrebatando as crianças e
deixando-os sem dinheiro e sem filhos. E, finalmente, eles dizem que estão com raiva
de um governo que, na melhor das hipóteses, não ajuda em nada e, na pior das
hipóteses, agrava o problema por meio de suas políticas. (KIMMEL, 2017, p. 17)
70
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html>.
71
LGBTQI+ é a sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros, Queer,
Interssexo e quaisquer pessoas que não se sintam representadas por nenhuma das outras letras.
126
prazer à mulher, com o advento do “vibrador” e a crescente discussão acerca da
masturbação feminina. (OGASSAWARA, 2007)72
Uma nova política do gênero para os homens significa novos estilos de pensamento,
incluindo uma disposição a não ter certezas e uma abertura para novas experiências
e novas formas de efetivá-la. No dia em que fotografias com homens carregando
armas se tornarem raras e fotografias com homens empurrando carrinhos de bebê se
tornarem comuns, aí saberemos que estamos realmente chegando a algum lugar.
(CONNEL, 1995, p. 205)
A propagação das novas imagens na nudez masculina são recursos poéticos com
potencialidades para desconfigurar padrões, formar um novo regime de identidade e avançar
nas discussões referentes à sexualidade e suas manifestações da maneira mais plural possível.
A sua difusão do nu masculino e naturalidade na sua apresentação colaborariam para a
dissociação do mito fálico agregado a esse corpo.
72
Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0451-1.pdf>.
127
4
Considerações finais
Dado que o patriarcado é uma estrutura histórica, não uma dicotomia intemporal de
homens dominando as mulheres, ele será extinto por um processo histórico. O
problema estratégico consiste em gerar pressões que culminarão numa
transformação da estrutura; e vale a pena tomar qualquer iniciativa que coloque
pressão nessa direção. […] A maior parte desse trabalho é, sobretudo, educacional.
Ele envolve tentar reformular o conhecimento, expandir a compreensão e criar
novas capacidades para a prática. Penso que podemos valorizar esse fato e construir
em cima disso. (CONNEL, 1995, p. 204)
128
biologicamente incorporada ao corpo masculino em seu nascimento. A virilidade faz parte de
um conjunto de processos educativos e sociais que visa a dominação masculina, ideologia
vigente dentro do nosso sistema político patriarcal.
Todavia, discutimos a construção histórica de práticas que perpetuou a dominação dos
homens sobre as mulheres enquanto definição de masculinidade hegemônica, rechaçamos os
ditames da biologia sobre a determinação de sexo, tomando por base autores que pensam o
corpo enquanto resultado da estrutura social e também as teorias de gênero e estudos queer.
A fim de compreendermos como se sustentou subjetivamente um sistema de
representação, em nosso corpo teórico relacionamos desde a noção de “Outro” de Simone de
Beauvoir com a questão de alteridade a partir de Stuart Hall; pensamos a ordem social
enquanto imensa máquina simbólica que naturalizou a dominação masculina sobre os corpos,
seja nas instituições ou no espaço doméstico, em Pierre Bourdieu; discutimos o conceito de
falo na psicanálise de Sigmund Freud como uma criação da cultura organizada segundo a
divisão hierárquica de gêneros; também tomamos por base o conceito de biopolítica de
Michel Foulcault apresentado por ele em 1988, mas atualizado por pensadoras/res feministas
contemporâneas/os como Paul Preciado, Susan Bordo e Judith Butler, que respondeu tanto a
Beauvoir quanto a Foucault defendendo a desnaturalização das perspectivas de gênero
conectadas ao sexo do nascimento e da heterossexualidade compulsória.
Durante séculos, o nu masculino carregou significados políticos, patrióticos, religiosos
e morais para incentivar a identificação do espectador. O corpo masculino ainda sobrevive
vestido desses ideais falocêntricos e a herança greco-romana do ideal clássico permaneceu
como o ideal de perfeição física até hoje, por exemplo. Foi, portanto, realizado um
levantamento histórico de imagens da História da Arte e cultura visual de massa desde David
de Michelangelo, cânone máximo do ideal masculino, desde 1500, ao jogador metrossexual
David Beckham, passando pelo Homem de Marlboro, cinema hollywoodiano, revistas de
fisiculturismo, publicidade e revistas de moda, além da fotografia homoerótica e esportes, a
fim de percebermos a eficácia desse sistema de representação imagético construído sobre o
corpo masculino promovendo a virilidade enquanto força dominante e tentativa de
naturalização do sexo e gênero.
Contudo, é também justamente através das imagens que podemos denunciar a
repetição dos símbolos e a persistência de certos ícones que sobrevivem até hoje reforçando
os antigos papéis sociais. O estudo iconográfico nos ajuda a compreender, justamente, a
relação entre a linguagem visual, valores estéticos e as ideologias dominantes nas diferentes
épocas. Este estudo se faz ainda mais necessário ao considerar que muitas das convenções e
129
tradições representacionais do passado estabelecem, ainda, precedentes que influenciam a
construção e manipulação de imagens na contemporaneidade. A escolha do grupo de imagens
nesta pesquisa não se deu para ilustrar a construção estética do corpo físico masculino, mas
para fornecer subsídios para percebermos não só a sobrevivência de signos conservadores
ainda nos dias atuais, mas, também, afirmar a possibilidade de novas leituras, evitando a
repetição de fórmulas inadequadas no futuro.
Consideramos que não falar sobre o nu masculino e mantê-lo enquanto tabu é mais
uma armadilha do patriarcalismo. Esta pesquisa teve, portanto, como objetivo principal,
rastrear imagens do corpo masculino na contemporaneidade, entretanto, privilegiando artistas
e autores que desviaram-se dos códigos tradicionais da representação da masculinidade viril.
Defendemos, ainda, como hipótese, a disseminação da diversidade de imagens desse corpo
como estratégia para sua desmistificação. A divulgação de novas imagens da nudez
masculina, vistas agora de uma forma plural, funcionará como estímulo para reconfigurar
padrões, propor um novo regime de identidade e ferramenta para avançar nas discussões
referentes à sexualidade e suas manifestações de maneira mais plural possível, desassociadas
do antigo modo patriarcal de produção de significados.
Somos, sem dúvida, produtos dessa dominação histórica e crescemos sob o ideal
patriarcal; entretanto, a partir da análise de imagens, podemos perceber as diversas estratégias
de cada artista não apenas enquanto produtos do seu meio, mas agentes sociais investigadores
e provocativos capazes de trazer em suas obras novos paradigmas acerca da família, do sexo e
das relações sociais entre o masculino e o feminino.
Foram analisados os trabalhos de artistas, a partir da década de 60, na contramão do
cânone viril, desde a objetificação do macho a partir do desejo feminino em contrapartida à
representação narcísica da arte homoerótica; o corpo negro protagonista da representação de
si e não mais estereotipado enquanto objeto das lentes e olhares brancos; o corpo velho e
gordo antes proibitivos na publicidade e na cultura de massa em geral e o corpo
biologicamente desobediente, o corpo trans. Através de depoimento dos/das artistas ou do
contexto na qual estão inseridas ou inseridos e do bastidor teórico, conseguimos perceber
quais estratégias foram utilizadas para subverter os estereótipos e problematizar as questões
de gênero.
Nesta pesquisa, também nos chamou a atenção a quantidade atual de matérias de
jornais e revistas sobre a crise da masculinidade enquanto modelo ideal e o consequente
aumento da violência física contra as mulheres e transexuais em contrapartida ao avanço das
conquistas femininas e dos direitos LGBTQI+. Discutimos, portanto, a falência identitária e o
130
fracasso dos homens ao tentarem corresponder ao ideal viril e tentamos, mais uma vez
justificar a importância desta pesquisa focada no corpo masculino enquanto forma de
envolver o gênero masculino nas discussões feministas, tentando promover uma discussão
mais inclusiva.
131
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