Você está na página 1de 174

Copyright ©2021 das organizadoras.

Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências
bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.

Direitos desta edição reservados aos autores, cedidos somente para a presente edição à
Editora Mundo Acadêmico. Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610
de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora
ou do(s) autor(es), poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios
empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Projeto gráfico, diagramação e capa:


Casaletras

Figura da capa:
Pixabay.

Editor:
Marcelo França de Oliveira

Conselho Editorial

Prof. Dr. Amurabi Oliveira (UFSC)


Prof. Dr. Aristeu Lopes (UFPel)
Prof. Dr. Elio Flores (UFPB)
Prof. Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Prof. Dr. Jonas Moreira Vargas (UFPel)
Profª Drª Maria Eunice Moreira (PUCRS)
Prof. Dr. Moacyr Flores (IHGRGS)

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H62999 História, gênero e materiais didáticos / Julia Silveira Matos e Gianne Zanella
Atallah (Orgs). [ edição eletrônica ] Porto Alegre: Mundo Acadêmico, 2021.

174p.
Bibliografia
ISBN: 978-65-89475-12-5

1. História: ensino e estudo - 2. Gênero - 3. Materiais didáticos - I. Matos,


Julia Silveira - II. Atallah, Gianne Zanella - III. Título.

CDU:930.1 CDD: 907

Editora Mundo Acadêmico


um selo da Editora Casaletras
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - contato@casaletras.com
www.casaletras.com/academico
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................6

GÊNERO: UM DIÁLOGO RELEVANTE NO ENSINO DE HISTÓRIA..10


DARCYLENE PEREIRA DOMINGUES
RAFAELA LIMA DE OLIVEIRA

A RELAÇÃO ENTRE ENSINO E PESQUISA NO CONTEXTO DO


ENSINO DA HISTÓRIA DO ESTADO DE GOIÁS E DA CIDADE DE
CATALÃO....................................................................................... 25
MÁRCIA PEREIRA DOS SANTOS
JACIELY SOARES DA SILVA

ENSINAR A ENSINAR HISTÓRIA: OS MANUAIS DESTINADOS AOS


PROFESSORES E AS METODOLOGIAS DE ENSINO..........................46
OSVALDO RODRIGUES JUNIOR

O CONCEITO DE CULTURA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA


PARA O ENSINO MÉDIO–PNLD 2012: UM DIÁLOGO COM AS
TEMÁTICAS AFRICANA E AFROBRASILEIRA....................................61
RYLTON MARCUS ALVES SODRÉ
JAQUELINE AP. MARTINS ZARBATO

UM OLHAR SOBRE A ATENÇÃO DADA PELOS GÊNEROS AO LIVRO


DIDÁTICO DE HISTÓRIA NA SALA DE AULA...................................71
ANDRÉ DO NASCIMENTO VERÍSSIMO

A REPRESENTAÇÃO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ NOS LIVROS DIDÁTICOS


DE HISTÓRIA: IMAGENS E RELAÇÕES DE GÊNERO.......................89
CARLA REJANE BARZ REDMER SCHNEID
O LIVRO DIDÁTICO E SUAS POSSIBILIDADES: UMA ANÁLISE DE
COMO AS MULHERES DO SÉCULO XX SÃO APRESENTADAS NA
OBRA DE SCHIMIDT.......................................................................106
KETRE MICHELE RODRIGUES KUCHARSKI
A REPRESENTAÇÃO DO GÊNERO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA DA RSE............................................................................118
LUCIANA GERUNDO HORNES

TEATRO OPERÁRIO, LIVRO DIDÁTICO E CONSCIÊNCIA


HISTÓRICA......................................................................................129
SABRINA MEIRELLES MACEDO

A QUESTÃO DE GÊNERO NO LIVRO DIDÁTICO NO PERÍODO DA


DITADURA MILITAR........................................................................148
DINORAH AMARAL MATTE

AS QUESTÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA DIDÁTICA DA HISTÓRIA


INTEGRADA.....................................................................................155
ROGÉRIO CORRÊA TEIXEIRA
INTRODUÇÃO

Gênero é um conceito que possui múltiplos significados e


manifestações, entretanto, apesar de sua polissemia, suas representações
podem ser visualizadas e sentidas em diversos suportes em um tipo de
representação estático, imóvel, inquestionável e tradicional. Pensar
gênero nos dias atuais se faz importante não apenas por uma questão
identidade, mas principalmente pelas condições que a sociedade impõe
e perpetua em relação aos sujeitos.
Aqui destacamos esse tema, exatamente, por perceber a manutenção
de estereótipos daquilo que a sociedade entende ser o modelo de mulher,
homem e criança e portanto, através da representação dos mesmos
suportes didáticos voltados para o público infantil. A representação das
relações entre homens e mulheres na produção de materiais didáticos
muitas vezes têm demonstrado uma ênfase na coisificação dos sujeitos
em suas identidades de Gênero e até seu apagamento. Nessa direção,
Andrea Gonçalves afirma que a relação entre homens e mulheres
acaba por “revelar as diferenças sexuais e os papéis sociais a partir das
significações históricas e socialmente construídas e designadas, de
modo relacional, por mulheres e homens (...)” (GONÇALVES, 2006. p.
73). Nessa perspectiva, os papeis aparecem distintos, como se o homem
em sua condição sexual de dominante tivesse o direito de se relacionar
com a mulher como um objeto que serviria apenas para servi-lo.
Portanto, para a autora, a noção de gênero deve: “ser compreendida
como a história da construção social das categorias do masculino e
feminino, por meio de discursos e práticas” (GONÇALVES, 2006, p.
77). Se a categoria gênero é construída socialmente, podemos a partir
da análise de materiais didáticos, nos questionar, como os papéis de
gênero são apresentados e quais categorias do masculino e do feminino
são representadas?
Superar alguns modelos e padrões impostos aos gêneros há séculos
não é uma tarefa fácil quando percebemos que desde a infância nossas
crianças já são expostas a representações do dos papéis sociais dentro
de padrões idealizados. Nesse livro, não apresentamos textos que visem

6
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

discutir se determinadas representações estão corretas ou não, o eixo é


questionar, como os papéis de Gênero do século XXI podem superar
padrões que lhe são impostos diante de representações de modelos que
são apresentados desde a infância? Se desde a infância, as crianças tem
contato com representações de gênero que podem parecer “ingênuas”
e nessas encontram padrões estáticos, poderiam elas superarem esses
modelos em suas vidas adultas? Não temos respostas para essa questão,
mas poderemos a partir de uma visão da teoria de Gênero, analisarmos
essa problemática de forma a compreendermos que representações de
gênero são essas apresentadas nos materiais didáticos que chegam nas
escolas.
Nessa direção, na presente obra, apresentamos dez textos que se
propõem a analisar o tema gênero em suportes didáticos e documentos
oficiais que regram os mesmos. Primeiramente, para abrir o debate
apresentamos o capítulo organizado por Darcylene Domingues e Rafaela
Oliveira que discute como a questão de gênero está apresentada na Base
Nacional Comum Curricular e nos editais do Programa Nacional do
Livro Didático. Na sequência temos o texto de autoria de Marcia Pereira
dos Santos; Jaciely Soares da Silva, intitulado “A relação entre ensino
e pesquisa no contexto do ensino de História do estado de Goiás e da
cidade de Catalão”, que discute a dissociação entre ensino e pesquisa
sobre História do Estado de Goiás, no contexto do ensino de História.
A pesquisa foi desenvolvida na Universidade Federal de Goiás/Regional
Catalão, dentro do Programa de Bolsa Licenciatura – PROLICEN, e
objetivava compreender qual era a história e a memória do Estado
de Goiás ensinadas na cidade de Catalão – GO, no período de 2009 a
2011. Além de um diagnóstico proposto, de dissociação entre pesquisa
e ensino, percebeu-se a necessidade de propor a elaboração de materiais
didáticos que, apoiando-se em pesquisas já produzidas, bem como em
novas pesquisas, pudessem atender às demandas do ensino de história.
O terceiro capítulo de autoria de Osvaldo Rodrigues Jr. intitulado
“Ensinar a ensinar história: os manuais destinados aos professores e as
metodologias de ensino”, apresenta resultados de pesquisa bibliográfica
sobre os manuais destinados aos professores de História publicados
no Brasil. Parte do debate sobre a “circunscrição conceitual” desses
manuais didáticos, que permite diferenciá-los dos livros didáticos
destinados aos alunos. O trabalho se insere no conjunto de debates
sobre a história das disciplinas escolares, entendendo esses manuais
como “textos visíveis” do código disciplinar. Assim sendo, o problema
foi compreender as diferentes formas de ensinar a ensinar História no
Brasil. Os objetivos foram: a) definir as características e especificidades

7
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

dos manuais destinados a professores; b) apresentar um breve “estado


da arte” da questão; c) analisar os manuais como fontes para conhecer a
história do ensino de História no Brasil. O quarto capítulo de autoria de
Rylton Marcus Alves Sodré e Jaqueline Ap. Martins Zarbatto, intitulado
“O conceito de cultura nos livros didáticos de História para o ensino
médio – PNLD 2012: um diálogo com as temáticas africanas e afro-
brasileira”, apresenta a investigação sobre as rupturas e permanências
que se encontram nos livros didáticos de História selecionados para o
público do Ensino Médio, pelo PNLD 2012. O tema central da pesquisa
são os conteúdos relacionados à cultura africana e afro-brasileira
após a implementação da Lei 10.639/2003, assim como as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. A perspectiva
metodológica adotada na pesquisa foi a leitura crítica dos livros
didáticos, bem como das concepções narrativas sobre a cultura africana
e afro-brasileira em coleções didáticas. O quinto capítulo, de autoria de
André do Nascimento Veríssimo, intitulado Um olhar sobre a atenção
dada pelos gêneros ao livro didático de História na sala de aula, analisa
a prática sobre características comuns presentes no ensino fundamental
ao médio, na conduta dos Gêneros com relação ao Livro Didático de
História. Efetuando recortes, no universo do comportamento escolar
abre uma discussão sobre a relação entre “meninos” e “meninas” e o seu
livro, principalmente em sala de aula. As diferenças entre os gêneros com
relação ao ambiente da Escola, e o papel desta instituição em respeitar
essas discrepâncias naturais ao mesmo tempo em que deve ministrar
um tratamento uníssono. O “ensino” em casa e a responsabilidade na
formação ou deformação das identidades e como “desaba” em aula, no
“perguntar”, no “cuidar”, no “aproveitar” o livro. Ainda problematiza,
sobre qual a valorização que tais “responsáveis” dão ao Livro Didático
de História, visto que ele é exigido, mas fornecido sem nenhum custo.
No sexto capítulo de autoria de Carla Rejane Barz Redmer Schneid,
intitulado “A representação da imigração alemã nos livros didáticos de
história: imagens e relações de gênero”, vemos a análise da representação
da imigração alemã e pomerana no Rio Grande do Sul em dois livros
didáticos de História, utilizados na rede pública de ensino. Além
disso, foram escolhidas algumas imagens para a análise da questão de
gênero, tratados direta ou indiretamente nestes materiais didáticos,
referente também a imigração alemã. No sétimo capítulo de autoria
de Ketre Michele Rodrigues Kucharski, intitulado “O livro didático e
suas possibilidades: uma análise de como as mulheres do século XX são
apresentadas na obra de Schimidt”, analisa como as mulheres do século

8
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

XX, período de grandes transformações sociais, são apresentadas no


livro didático: Nova História Crítica (9°ano) da editora Nova Geração
do ano de 2002. Para tanto, discutiu a influência dos livros didáticos
no espaço escolar, analisando também por que a obra de Schimidt
foi excluída da lista de livros recomendados pelo MEC às escolas. No
oitavo capítulo, de autoria de Luciana Gerundo Hornes, intitulado
“A representação de gênero nos livros didáticos da Rede Salesiana de
Escolas”, buscou perceber como as mulheres são representadas nos livros
didáticos de história da SER, fazendo uma análise sobre os discursos de
gênero presentes no livro didático do 8º Ano do Ensino Fundamental. A
proposta Salesiana, baseada na razão, na religião e no amor educativo,
está presente tanto nos conteúdos, como nos métodos e meios, visando
o desenvolvimento crítico do educando, de modo a torna-lo capaz de
elaborar o seu próprio projeto de vida pessoal. No nono capítulo de
autoria de Sabrina Meirelles Macedo, intitulado “Teatro operário, livro
didático e a consciência histórica”, pretende discutir o papel de duas
ferramentas educativas, usadas em momentos e espaços distintos, mas
que tem em comum o caráter de serem produtos e também produtores
de uma cultura e, consequentemente de uma consciência históricas, a
saber: o teatro operário, nas décadas iniciais da República Velha, e mais
atualmente, o livro didático, buscando traçar as representações de gênero
apresentadas nessas ferramentas ao abordar o operariado brasileiro no
início do século XX. O décimo capítulo, de autoria de Dinorah Amaral
Matte, se propõem a analisar pelo menos três livros didáticos utilizados
no período que compreendeu a ditadura militar no Brasil, de 1964 a
1985, e como estes livros abordam a questão de gênero, ou se elas não
são identificadas em nenhum momento na sua abordagem histórica. O
último e não menos importante capítulo, de autoria de Rogério Corrêa
Teixeira, intitulado “As questões de gênero na perspectiva didática da
História Integrada”, visou analisar as possibilidades de inclusão das
questões de gênero nas narrativas dos livros didáticos de História de
ensino fundamental autorizados pelo PNLD (Programa Nacional do
Livro Didático), especificamente no âmbito da perspectiva pedagógica
conhecida como História Integrada.
Ao final, o conjunto de textos que apresentamos na presente obra
visa contribuir para a ampliação e reflexão sobre a representação do
conceito de gênero nos suportes voltados ao ensino de História. A todos
desejamos ótima leitura.

Júlia Silveira Matos e Gianne Zanella Atallah

9
GÊNERO: UM DIÁLOGO RELEVANTE NO
ENSINO DE HISTÓRIA

DARCYLENE PEREIRA DOMINGUES1


RAFAELA LIMA DE OLIVEIRA2

Resumo: Pretendemos nessa escrita debater e demonstrar como a


categoria de gênero é componente interdisciplinar relevante para o Ensino
de História, a partir da legislação vigente no Brasil e para isso utilizaremos
a Base Nacional Comum Curricular juntamente com o Programa Nacional
do Livro Didático. Assim nos questionamos: de que forma a temática
gênero vem sendo abordada nas leis orientadoras dos currículos escolares e,
portanto, do ensino de história? Buscamos refletir e analisar a problemática
deste trabalho, partindo do conceito de gênero, apontando a relevância da
discussão do mesmo, uma vez que, são situações presentes no contexto
escolar.

Palavras-chave: Ensino de História; Gênero; Currículo.

INTRODUÇÃO
Historicamente as disciplinas escolares como atualmente
concebemos, organização de um conjunto de saberes, iniciam seu
processo de idealização como nos afirma Fonseca (2006) somente
durante o período da Idade Média. Assim, os suportes que tinham o
interesse de manter o discurso do passado, além da manutenção de
uma moral e sentimento de civilidade foram largamente utilizados.
Sendo assim, segundo Jörn Rusen “a escrita da história era orientada
pela moral e pelos problemas práticos da vida, e não pelos problemas
1  Historiadora, mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande – FURG.
2  Licencianda em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG, bolsista FAPERGS.

10
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

teóricos ou empíricos da cognição metódica” (RÜSEN, 2006, p.7). A


história era tida desde Sêneca como “historia vitae magistra” e somente
no século XIX é concebida como ciência fortemente fundamentada
na sua gênese teórica e metodológica na Europa, com influências do
Historicismo alemão e dos escritos franceses de Langlois e Seignobos.
Assim, num processo paulatino de reconhecimento e solidificação
a ciência histórica se consolida ao longo dos séculos, principalmente
na Europa, entretanto, segundo Rüsen é a partir do século XIX que
“os historiadores definiram sua disciplina, eles começaram a perder
de vista um importante princípio, saber que a história é enraizada nas
necessidades sociais para orientar a vida dentro da estrutura tempo”
(RÜSEN, 2006, p. 9). Consequentemente, a História se solidifica como
uma área do conhecimento e gradativamente afasta-se da necessidade
de estar associada aos indivíduos. Dessa forma, quando o ensino de
História chega no Brasil, o seu interesse inicial não é orientar os alunos
de acordo com suas carências, ao contrário, será devido a obrigação
de uma História nacional, largamente difundida pelo espaço escolar,
visto que durante muitos séculos a educação não era considerada
uma política necessária em nosso território. Nacionalmente é
só partir dos anos de 1990 que o país irá se dedicar a debater de
maneira mais enfática diversas práticas discriminatórias presentes na
educação e consequentemente outras temáticas foram incluídas no
currículo. Nesse sentido, o próprio Ministério da Educação promove
diversos incentivos, debates e discussões com o intuito de superar os
preconceitos e as discriminações na instituição escolar em função de
diferenças que marcam os sujeitos. Devido a estas mobilizações foi
possível a elaboração de documentos oficiais que teriam a finalidade
de proporcionar uma educação mais inclusiva e igualitária, podemos
citar nesse sentido as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
e Parâmetros Curriculares Nacionais, entre outros.
No presente artigo abordarmos também uma reflexão a respeito
da problemática que inclui os conceitos de ensino de História e
gênero, para tanto inicialmente nos questionamos: por que os
debates sobre a inclusão da discussão da temática Gênero como
transdisciplinaridade nos componentes curriculares vêm despertando
discursos antagônicos, controversos, intolerantes e preconceituosos
por parte da sociedade? As discussões sobre a temática de gênero na
contemporaneidade vêm ganhando maiores adeptos e pesquisadores,
principalmente nas últimas décadas, porém ainda encontramos falas
que desqualificam as produções existentes. Além disso, gênero no
ambiente escolar brasileiro durante muitos anos apresentou-se como

11
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

um assunto irrelevante para aquele espaço e consequentemente


acabou negligenciado pelos educadores. E atualmente, o diálogo que
poderia ocorrer na escola é duramente combatido por um projeto
de lei intitulado Programa Escola sem Partido que discuti diversas
propostas, incluindo o gênero, de maneira encoberta e totalmente
despreparada. São escritos muitas vezes por pessoas públicas ou
profissionais da saúde, como por exemplos psicólogos e psicanalista,
que recortam trechos de diferentes teóricos a respeito de inúmeros
temas numa tentativa de fundamentar suas concepções, resultando
numa mescla horrível denominada “ideologia de gênero” uma falácia
encontrada facilmente em sites.
Ao longo da história as mulheres reivindicam seu espaço na
sociedade, considerada muitas vezes como sexo frágil e dependente do
sexo masculino, elas lutam para desmistificar esses termos. É a partir
do final do século XIX com o surgimento do movimento feminista,
que se têm as primeiras mobilizações exigindo os direitos políticos
sociais e econômicos das mulheres, como nos enfatiza Louro:

Desencadeava-se uma luta que, mesmo com distintas caras e expressões, poderia ser
sintetizada como a luta pelo direito de falar por si e de falar de si. Esses diferentes gru-
pos, historicamente colocados em segundo plano pelos grupos dominantes, estavam e
estão empenhados, fundamentalmente, em se auto representar. (LOURO, 2008, p. 20).

Para a autora, a figura masculina, branca e heterossexual foi e


ainda continua sendo o protagonista principal na construção da
história, assim este homem não representa as necessidades especificas
dos diversos grupos existentes. Outra autora que contribui para
a reflexão sobre a temática de gênero é a socióloga Joan Scott que
afirma “por isso reivindicar a importância das mulheres na história
significa necessariamente ir contra as definições de histórias e seus
agentes já estabelecidos como “verdadeiros” (SCOTT, 1995, p.80). O
estudo histórico de gênero não pode separar o feminino do masculino
para compreender uma sociedade, pois as relações sociais de ambos
os sexos encontrassem interligadas. Essa nova forma de observar a
sociedade e de fazer história dependeria da maneira como o gênero
seria desenvolvido como uma categoria de análise, algo que ocorreu
gradualmente. Além disso, acreditamos que a discussão de gênero no
ambiente escolar é assunto de fundamental relevância principalmente
porque segundo Pinsky: “Talvez até passem por todas as séries escolares
sem nenhum contanto com um dos conceitos mais instigantes
presentes na historiografia das últimas décadas, desde que ficou claro

12
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

que as relações de gênero são uma dimensão importantíssima das


relações sociais” (PINSKY, 2010, p. 32). Isso proporciona uma lacuna
muito grande nas aulas de História, uma vez que, essa temática poderia
instigar e enriquecer diversas questões a respeito do próprio cotidiano
dos alunos e as suas realidades particulares.
Para tanto, inicialmente buscamos analisar os editais referentes
ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que tem como
objetivo avaliar, regulamentar e posteriormente distribuir os livros
didáticos à nível nacional para todo Ensino Fundamental e Médio.
Compreendemos que os manuais didáticos, se fazem presentes nos
ambientes escolares sendo considerado muitas vezes, como o único
recurso existente para alunos e professores. Como afirma Matos:
“Os livros didáticos de História, como qualquer suporte de escrita da
História, configuram-se como leituras do passado, as quais, são sempre
dirigidas em função de problemas impostos pelo presente do autor
e de seus futuros leitores” (MATOS, 2013, p.11). Consequentemente
discussões a respeito da temática de gênero deveriam ganhar espaço
dentro dos editais do PNLD, principalmente a partir do momento que
esse assunto fosse incluído de maneira fixa no interior da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), documento aqui também discutido.
Logo, nosso interesse é responder a problemática anteriormente
apresentada: de que forma a temática gênero vem sendo abordada
nas leis orientadoras dos currículos escolares e, portanto, do ensino
de História?

PROGRAMA NACIONAL DO LIVRO DIDÁTICO E A BASE


NACIONAL COMUM CIRRICULAR
Historicamente, no Brasil, o debate mais amplo sobre políticas
educacionais surge depois de ser sancionada a lei n° 9.394 de 20 de
dezembro de 1996 que estabelecia as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Essa lei assume um caráter de obrigatoriedade pelos
mecanismos da implementação, para a elaboração dos currículos
escolares fixados pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Segundo
Saviani (1998), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
considerada como a lei maior da educação no país, denominada,
quando se quer elevar sua importância, de carta magna da educação,
porque define as linhas mestras do ordenamento geral da educação
brasileira. Umas das suas principais medidas de política educacional é,
sem dúvida, o Plano Nacional de Educação (PNE), que se tornou uma
referência para avaliar a política educacional, como ressalta o autor:

13
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Sua importância deriva de seu caráter global, abrangentes de todos os aspectos con-
cernentes à organização da educação nacional, e de seu caráter operacional, já que
implica a definição de ações, traduzidas em metas as serem atingidas em prazos de-
terminados dentro do limite global de tempo abrangido pelo Plano que a própria LDB
definiu para um período de dez anos. (SAVIANI, 1998, p. 3).

Neste sentido, após a introdução da LDB de 1996, os currículos


escolares tiveram significativas mudanças, entre as quais: a introdução
do ensino de História, cultura afro-brasileira, africana e indígena,
ensino dos direitos da criança e do adolescente, ensino da música além
de filosofia e sociologia. Com a elaboração de um Plano Nacional da
Educação, se desenvolveu o processo de elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs). Os PCNs tinham a função de destacar
a pluralidade cultural, de forma transversal do tema, porém houveram
muitas críticas a este plano de ensino devido a sua elaboração, como
salienta Zarbato “ainda que os PCNs tenham em 1998, iniciado
algumas proposições para a inserção da questão de gênero, de certa
forma, restringiu para os Temas Transversais relacionando com a
saúde e sexualidade” (ZARBATO, 2015, p.62). A autora faz uma crítica
quanto à forma que foi introduzido o tema nos currículos escolares no
contexto brasileiro.
Desta forma, nosso objetivo é verificar quais são os critérios
que os editais do Programa Nacional de Livro Didático determinam
como fundamentais para elaboração dos livros didáticos, conceitos
esses referentes à relação entre homem e mulher, ou seja, o debate
de gênero. Vale ressaltar que o PNLD foi criado em 1985 e somente
adquiriu sua atual função de distribuição dos livros de maneira
gratuita por todo o território nacional a partir do ano de 1996 e se
apresenta como principal veiculador desse material nas escolas
pelo país até então. Porém, as políticas a respeito do livro didático
e a sua implementação no ambiente escolar historicamente estão
enraizadas no período Vargas. Atualmente, o Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia federal vinculada
ao Ministério da Educação, é responsável pela execução de políticas
educacionais e juntamente com uma parceria entre Secretaria de
Educação Básica (SEB), pela Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e com a cooperação
do FNDE, é desenvolvido o edital do PNLD, conforme o edital de 2023
declara, sobre o objetivo:

14
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Este edital tem por objeto a convocação de interessados em participar do processo


de aquisição de obras didáticas, literárias e pedagógicas destinadas aos estudantes,
professores e gestores das escolas dos anos iniciais do ensino fundamental da edu-
cação básica pública, das redes federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal
e das instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e
conveniadas com o poder público, conforme condições e especificações constantes
neste edital e seus anexos.. (EDITAL PNLD, 2023, p.1).

Ou seja, o edital PNDL assume um caráter normativo, no qual


as editoras podem ou não se utilizarem para elaboração dos livros,
mas que atingirá diretamente na escolha do livro dela comissão. Nesse
prisma Segundo Vitória Rodrigues e Silva:

Os editais para a participação no PNLD são bastante técnicos e detalhados.


Uma infinidade de disposições, exigências e determinações são feitas, rela-
tivas a diversos âmbitos: administrativo, jurídico, comercial, editorial espe-
cialmente os aspectos físicos das obras e conteúdos. (SILVA, 2011, pp.03).

Conforme demonstrado acima, notamos que a execução das


normativas impostas pelo Ministério da Educação, referente à
produção dos livros didáticos, destaca o respeito as diversidades sociais
e culturais bem como o pluralismo de ideias. Ainda que sejam claras
as normativas são necessárias que nos dias atuais se multipliquem
os modos de compreender e de viver as diversidades, os gêneros e
as sexualidades, para superar os preconceitos vividos nos ambientes
escolares. Além disso, os livros não se apresentam como um simples
produto, como nos demonstra Matos (2013), uma vez que, ele
deve suprir a expectativa do público consumidor, dos professores,
as diretrizes do governo e as editoras. Assim “todas as expectativas
desses agentes são parte fundante da forma e do conteúdo dos livros
didáticos” (MATOS, 2013, p.13).
O programa desenvolvido pelo governo apresenta “numerosos
critérios de avaliação que acabam por dificultar ainda mais o processo
de inserção no PNLD, e por outro lado, acaba por facilitar as grandes
editoras a conquista de uma vaga no mercado editorial” (XAVIER,
2014, p. 10). Logo, as grandes editoras e que dispõem de melhor
material, profissionais e equipe editorial acabam preferidas a outras
menores, consequentemente, vemos uma repetição na escolha de
coleções por parte dos professores. Nesse prisma, a autora supracitada
ainda afirma que é justamente o desconhecimento dos professores
a respeito do Guia do Livro Didático, disponibilizado no site do
Ministério da Educação, que oferece resenhas a respeito das coleções

15
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

aprovadas no último edital, que faz prevalecer o fator mercadológico


dos livros, pois “com a melhor oferta dos produtos nas escolas através
de representantes das editoras, ou simplesmente a escolha do livro é
feita por aquele material que simplesmente chegue a mãos de forma
que o professor possa avaliar” (XAVIER, 2014, p. 12). Destarte, os
professores não utilizam o Guia para a escolha dos livros e muitas vezes
desconhecem a posição da coleção escolhida no ranking desenvolvido
pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
Outro ponto a se considerar é o livro didático como um produto
de mercado:

Na relação entre professores (público consumidor), edutoras (produto) e governo (fi-


nanciador), vemos que o livro se constitui muito mais enquanto uma mercadoria que
tomará as formas que o mercado precisa e espera, do que propriamente uma produção
centrada no conhecimento puro e simples. Portanto, o livro/produto se configura como
um bem simbólico que adquire valor no mercado (MATOS, 2013, p. 28)

Além da preocupação das editoras em cumprir as exigências


impostas pelos editais do PNLD, uma vez que, necessitam se enquadrar
dentro das normas ali destacadas, o livro didático também se apresenta
como um produto de mercado. Nesse sentido Bittencourt (2010)
também afirma que “em sua construção interferem vários personagens,
iniciando pela figura do editor, passando pelo autor e pelos técnicos
especializados dos processos gráficos, como programadores visuais
e ilustradores” (BITTENCOURT, 2010, p. 71). Logo, a produção de
um livro didático que esteja de acordo com as normas exigidas pelo
edital se apresenta como uma construção intelectual e comercial que
depende de diversos agentes envolvidos.
O livro didático é o produto cultural de maior divulgação
inserido na educação escolar, além de ser um veiculador de ideologias,
conhecimento histórico e suporta de ensino de aprendizagem, ou seja,
“O livro didático é um instrumento que precisa ser mais bem utilizado
pelo professor. O que estamos entendendo como melhor utilização é
a exploração mais adequada das suas potencialidades.” (OLIVEIRA,
2011, p.13). Contudo, devemos também salientar que o professor
não deve utilizar somente essa fonte para elaboração e utilização em
suas aulas, uma vez que, muitos discursos são silenciados no interior
de diversas coleções, como por exemplo, a temática de gênero aqui
analisada. Nesse sentido, a autora ainda afirma:

(...) os trabalhos sobre livro didático de história centraram-se nas denúncias


de uma “ideologia dominante” contida nestes, da ausência de determinados

16
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

temas nos mesmos, ou até de tratamentos errados de alguns temas ou fatos


pelos autores de livros didáticos. Foram importantíssimos, pois mapearam
um elemento que se tornou indispensáveis na escola. (OLIVEIRA, 2011, p. 21)

Através do que é exposto pela autora percebemos que inúmeras


pesquisas se utilizam do livro didático como fonte de pesquisa, e isso
explica-se pela diversidade de coleções encontradas além da grande
veiculação no ambiente escolar e no cotidiano de muitas famílias.
Atualmente no de 2021 o MEC lançou o último edital do PNLD para o
ano de 2023, nesse documento estão dispostas as várias etapas que as
editoras devem cumprir para concorrer a seleção e principalmente as
exigências nas coleções selecionadas. Assim, ele será a nossa principal
fonte de pesquisa para observar as obrigatoriedades em relação a
BNCC. Para tanto, já inicialmente encontramos no edital as seguintes
determinações:

2.4.3. Atender ao disposto na Base Nacional Comum Curricular — BNCC e:


2.4.3.1. Considerar e aplicar os princípios e preceitos específicos presentes na BNCC
a cada componente – Língua Portuguesa, Arte, Educação Física, Matemática, Ciências,
Geografia e História; (EDITAL DO PNLD, 2021, p. 39)

Logo, fica evidente que os critérios de avaliação dos conteúdos


dispostos nas coleções serão fundamentados a partir do que a BNCC
determinou como currículo fundamental para o ensino fundamental
e médio. Com a versão final e homologação da BNCC no ano de 2018,
várias expectativas a respeito da inclusão da temática de gênero foram
frustradas, como demonstraremos adiante no quadro explicativo e,
consequentemente também nos livros didáticos. Essas reformas no
ensino através da BNCC tem a finalidade de produzirem mudanças,
ou seja, organizar os currículos do ensino fundamental e médio e
os financiamentos públicos destinados a essa etapa da educação
básica, contudo o que se observa é uma limitação dos componentes
curriculares, como por exemplo, a exaltação das disciplinas como
Língua Portuguesa e Matemática consideradas essenciais aos estudantes
e uma desvalorização de disciplinas como História e Geografia, mas
que fazem parte dos currículos. O documento apresenta também
termos como “competências”, “habilidades” que os alunos devem
desenvolver para o futuro, porém essas conotações descaracterizam o
processo socioeducativo, trazendo para uma visão de competitividade
onde quem possui habilidades tende a conseguir as melhores
oportunidades.

17
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

O presente texto tem a intenção de demonstrar que o debate de


gênero é fundamental no ambiente escolar, uma vez que tal conceito
abarca, em si, a história de homens e mulheres uma vez que esses
constituem-se como sujeitos sexuais e que estão em processos nos
quais estão interligados socialmente. Acreditamos que “o conceito
passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos
e as representações sobre mulheres e homens são diversos” (LOURO,
2011, p. 27). Além disso, nos parece evidente que a ideia de diferença,
que transpõe a categoria gênero, diferença entre homens e mulheres,
se produz e é ao mesmo tempo produzida por uma ideia de diferença
que não é universal, mas que se constrói cultural e socialmente, o
que torna inevitável identificar uma relação entre a emergência
concreta da subjetividade nas práticas sociais com a reafirmação dos
lugares de gênero. Assim observamos que “Os historiadores fizeram a
historiografia do silêncio. A história transformou-se em um relato que
esqueceu as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade
da reprodução inenarrável” (COLLING; TEDESCHI, 2015, p.300).
Consideramos que essa temática não deva ficar restrita a um
determinado conteúdo, pelo contrário, deverá estar presente no
cotidiano do aluno para que ele exerça constantemente a equidade
necessária perante o outro. Além disso, também afirmamos a
necessidade da temática de gênero ser incluída, especificamente, no
currículo da formação dos professores. Assim sendo, cremos que o
ensino de História deva se apropriar dessas concepções e discussões
que esse conceito pode proporcionar à educação, trabalhando com
noções de diferenças, diversidades e o sentimento de empatia.
A respeito dos dados da pesquisa, ao selecionarmos os componentes
curriculares a respeito da temática de História observamos o seguinte
quadro elabora a partir dos objetivos e habilidades presentes no
documento:

Nível escolar Páginas Gênero

Fundamental - História 397 à 434 0

Médio – Área Humanas 561 à 580 0

18
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Páginas – Objetivos e
Nível escolar Gênero
Habilidades

Fundamental - História 406 à 415 0

Fundamental - História 420 à 433 0

Médio – Área Humanas 572 à 579 0

Contudo, ao analisar as páginas acima citadas, em nenhum


momento a palavra gênero é citada ou demonstrada ao longo do texto
da BNCC. Ela não está presente como disciplina, ou componente
curricular, assunto transversal ou objetivos e habilidades que os
alunos devem exercer ao longo do ano letivo. Consequentemente,
a temática não tem obrigatoriedade de estar presente nas coleções
aprovadas futuramente pelo PNLD no edital de 2021-2023. O assunto
é totalmente negligenciado na última versão da base e em decorrência
dessa situação, a discussão de gênero pode ou não estar presente
nos livros didáticos, isso se torna uma escolha do autor e da equipe
editorial. Para realizar a discussão da BNCC foi utilizado a análise
de conteúdo proposta por Roque Moraes (2007), pois acreditamos
que a partir das categorias criadas poderemos evidenciar as possíveis
formas de abordagem dos conteúdos referentes ao gênero no Ensino
de História. De acordo com Roque Moraes, “uma análise textual
envolve identificar e isolar enunciados dos materiais a ela submetidos,
categorizar esses enunciados e produzir textos, integrando nestes,
descrição e interpretação (...)” (MORAES, 2007, p.98).
Outro ponto a se considerar é que na primeira versão da BNCC
no ano de 2016 os componentes curriculares eram menores e a
temática de gênero também foi incluída no currículo de História. Na
segunda versão da base também no ano 2016 as páginas dedicadas a
História foram alargadas, porém gênero continuou não sendo citado
especificamente nessa seção. A discussão é somente demonstrada em
três momentos na página 237 na seção a respeito de dança, na página
485 quando discutido as diferentes etnias, religiosidades e gênero, e
especificamente nesse trecho:

Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, cabe a Geografia e a História, consideradas


as especificidades de cada componente, desenvolver conhecimentos que permitam
uma compreensão da temporalidade e da espacialidade, da diversidade cultural, reli-

19
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

giosa, étnica, de gênero, cor e raça, na perspectiva dos direitos humanos e da intercul-
turalidade, da valorização e acolhimento das diferenças. (BNCC, 2016, p. 296)

A segunda versão da BNCC abriu uma larga possibilidade de


discussão no espaço escolar, embora não desenvolve-se especificamente
o conceito, ele deixou margem para que o assunto fosse incluído de
forma transversal ou multidisciplinar na área de ciências humanas, uma
vez que, está presenta na abertura do tópico. No entanto, esse trecho
foi retirado da versão homologada pela base no ano de 2018 e dessa
forma não se torna mais fundamental desenvolver esse conhecimento
e principalmente acolher as diferenças de gênero existentes. Contudo,
segundo a versão final afirma que:

As questões que nos levam a pensar a História como um saber necessário para a for-
mação das crianças e jovens na escola são as originárias do tempo presente. O passa-
do que deve impulsionar a dinâmica do ensino-aprendizagem no Ensino Fundamental
é aquele que dialoga com o tempo atual. (BNCC, 2018, p. 397)

Problematizar o passado, a partir de questões contemporâneas é


fundamental para o desenvolvimento do pensamento histórico, logo
o aluno deve ser incentivado a essa prática. Porém, assunto atuais
são completamente negligenciados, como por exemplo, o conceito
de gênero aqui largamente discutido. Nessa perspectiva, acreditamos
que “o ensino de história na educação básica é fundamental para a
formação de sujeitos críticos, capazes de compreender as experiências
sociais como dinâmicas e múltiplas, sujeitas a relações de poder”
(SILVA; ROSSATO; OLIVEIRA, 2017, p. 2013). Corroborando as autoras
citadas a temática que está claramente associada a uma relação de
poder acaba silenciada no interior dos currículos escolares, outra
autora que também enaltece o assunto é Guacira ao afirmar: “portanto,
serão sempre as condições históricas específicas que nos permitirão
compreender melhor, em cada sociedade específica, as relações de
poder que estão implicadas nos processos de submetimento dos
sujeitos” (LOURO, 2011, p. 57).
Vale ressaltar que não desejamos que essa temática substituía
outros conteúdos pertinentes ao ensino e aprendizagem dos alunos
em História, porém acreditamos que seja necessário um melhor
tratamento a respeito do conceito, pois, se faz necessária “a inserção
dessas questões sociais presentes no dia-a-dia do estudo e em debate
na sociedade, sem deixar de lado outros assuntos tão importantes
quanto.” (FERREIRA; LUZ, 2009, p. 43). Vivendo em uma era
tecnológica e de rápido acesso à informação os alunos necessitam de

20
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

um acompanhamento/auxilio do professor nesse processo, uma vez


que, ele pode encontrar facilmente informações distorcidas ou falsas
a respeito do assunto.
Desde que a BNCC, foi aprovada surgiram grandes debates quanto
a sua forma de aplicação, diversas reformas na educação também
foram discutidas com intuito de melhorar a educação brasileira. Como
mencionado a Base é um documento normativo de caráter obrigatório
para as redes de ensino, ao longo do processo de construção da mesma
o diálogo entre professores e responsáveis pela educação foram dando
espaço para ideais políticos, através de movimento empresariais, como
discorre a autora Caetano:

Durante o processo de construção da base, movimentos empresariais se articularam


através do Movimento pela Base Nacional Comum (MPB), que coordenou esse pro-
cesso e se apresentou como um grupo não governamental de profissionais e pesqui-
sadores da educação que atua, desde 2013, para facilitar a construção de uma base de
qualidade. (CAETANO, 2020, p.40-41)

Nesse sentido, a autora debate sobre os interesses das grandes


empresas em financiar essa política pública e controlar o que seria
demandado aos currículos escolares, impondo é claro, a ideologia de
mercado de trabalho que essas empresas fazem desde muito tempo
no Brasil. A educação pode ser utilizada pelos governos como objeto
de controle do país e também das grandes empresas envolvidas em
reformar a educação, a finalidade é padronizar o ensino, estabelecendo
assim uma prática que esteja de acordo com seus interesses. Sendo assim,
tem-se alunos formados de forma adequada às demandas, do mercado
de trabalho, retirando assim o caráter do ensino comprometido com
práticas significativas e promotoras de aprendizagens relevantes,
que promovam a formação do ser capaz de compreender a realidade
em que vive e propor alternativas de superação diante de situações
desfavoráveis. Além disso, uma das maiores críticas a esse documento
é a falta de participação de professores no processo de elaboração da
Base, uma vez que, ela foi organizada e discutida sem acompanhamento
dos profissionais da educação que serão diretamente atingidos por
essa reforma curricular, segundo Silva:

A reforma, sem a participação dos professores, é limitada deste o seu início. O currícu-
lo deve ser pensado e proposto tomando-se sempre como referência a escola em suas
práticas reais, considerando-se os saberes produzidos pelos professores, as intenções
da formação e as condições em que ela se processa. (SILVA, 2018, p. 13)

21
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Contribuindo com a autora, o contexto da prática vai além das


fronteiras de aplicação de leis ou reformas, o ambiente escolar é um
lugar de representatividades, onde alunos, professores e a própria
sociedade que está em torno deste ambiente convivem e trocam
experiências, ou seja, a forma como a lei deve ser aplicada também
modifica esse espaço, uma vez que para diferentes pessoas haverá
inúmeras interpretações e modos de se fazer a lei.
Segundo a Base Nacional Comum Curricular sobre o ensino
de História, no ensino fundamental tem o objetivo de estimular a
autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que os
indivíduos agem de acordo com a época e o lugar que vivem de forma
a preservar ou transformar seus hábitos e conduta. A diversificação de
sujeitos e histórias estimula o pensamento crítico, a autonomia e a
formação para a cidadania.

CONCLUSÃO:
Essa pesquisa se encontra em andamento por isso ainda não
possuímos dados conclusivos a respeito da análise pretendida, dessa
forma sinalizamos que através dos estudos realizados percebemos
a relevância do debate de gênero e entendermos que a pertinência
da discussão e o aprofundamento da questão dentro dos manuais
didáticos. Assim nos levam a outras discussões e reflexões sobre
temáticas que ainda estão omitidas, mas se fazem presentes nosso
cotidiano. Uma vez, que o silenciamento, de determinados temas,
como por exemplo, a sexualidade, que permanecem nos livros
contribuem para a manutenção de uma cultura predominantemente
machista e preconceituosa. Tendo em vista, que o tema é abrangente,
no primeiro momento pretendemos analisar os editais responsáveis
pela elaboração dos manuais didáticos, relacionados à educação básica
de ensino médio. De que forma os conceitos referentes. Analisar os
conceitos a relação homem e mulher, as relações históricas dos grupos
esquecidos da nossa sociedade são abordadas nos editais e também
pretendemos analisar de que forma é abordada a temática sexualidade.

22
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

REFERÊNCIAS

FONTE:
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Edital de Convocação
04/2015 – CGPLI. Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de
obras didáticas para o programa nacional do livro didático PNLD 2018. Brasília, 2015.
Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/
consultas/editais-programas-livro/item/7932-pnld-2018 . Acesso em: 10 junho de
2019.

BRASIL, Ministério da Educação, Fundo nacional de Desenvolvimento da e Educação,


Conselho de Deliberativo. Resolução nº 15, de 26 de julho de 2018. Dispõe sobre as
normas de conduta no âmbito da execução do Programa Nacional do Livro e do Material
Didático. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/acesso-a informacao/
institucional/legislacao/item/11997-resolu%C3%A7%C3%A3o n%C2%BA15,-de-26-
de-julho-de-2018. Acesso em 10 de junho de 2019.

Edital pnld 2021 – 2023 https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-


do-livro/consultas/editais-programas-livro/item/14094-edital-pnld-2023

EDITAIS E BNCC, LDB

BIBLIOGRAFIA:
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livros didáticos entre textos e imagens. In:
______ O saber histórico na sala de aula. 11. Ed. São Paulo: Contexto, 2010.

BURKE, Peter. A escrita da história: Novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. Editora
UNESP. São Paulo, 2011

COLLING, A.M; TEDESCHI, L.A. O Ensino de História e os estudos de gênero na


historiografia brasileira. Revista História e Perspectivas, Uberlândia, p. 295-314, jan./
jun. 2015. Disponível em: < http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/
article/vie/32777 >. Acesso em: 05 de mai. 2017.

FERREIRA, B. M. M. L.; LUZ, N. S. Sexualidade e gênero na escola. In: LUZ, Nanci


Stancki de; _________; CASAGRANDE, Lindamir Salete, Org(s). Construindo a igualdade
na diversidade: gênero e sexualidade na escola. Curitiba: UTFPR, 2009. p. 33-45

FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História & Ensino de História. 2.ed., Belo Horizonte:
Autêntica, 2006

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e Sexualidades: pedagogias contemporâneas. Pró-


posições, v.19, n.2 (56)- maio/ agosto. 2008.

23
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

MATOS, Júlia Silveira. Ensino de História, Diversidade e os Livros Didáticos: história,


políticas e o mercado editorial. Rio Grande- RS. Editora da FURG, 2013.

MORAES, Roque. Mergulhos Discursivos; análise textual qualitativa entendida como


processo integrado de aprender, comunicar e interferir em discursos. 2°ed. Ijuí/RS:
Ed.Unijuí, 2007

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Livros didáticos de História: pesquisa, ensino e
novas utilizações deste objeto cultural.2011

PINSKY, Carla Bassanezi. Gênero. In: __________ (Org). Novos temas nas aulas de
História. 2ª ed. São Paulo: Editora Contexto, 2010, p.29-54

RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso


alemão. Revista Práxis Educativa. Ponta Grossa, PR. v. 1, n. 2, p. 07 – 16, jul.-dez. 2006.

SAVIANI, Dermeval. Da Nova LDB ao Novo Plano Nacional de Educação: Por outra
Política Educacional. Campinas-SP. Ed. Autores Associados, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para análise histórica. Vol.20 (2). Julho/
dezembro. Traduzido, 1995. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.
php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf . Acesso
em: 10 de junho de 2019.

SILVA, C. B.; ROSSATO, L.; OLIVEIRA, N. A. S. A formação docente em História:


Igualdade de gênero e diversidade. Revista Retratos da Escola. Brasília, v. 7, n. 13, p.
453-465, jul./dez. 2013 Disponível em: <http//www.esforce.orr.br>. Acesso em: 06 de
set. 2017

ZARBATO, Jaqueline A. Martins. As estratégias do uso do Gênero no ensino de


História: narrativa histórica e formação de professoras. Revista Trilhas da História. Três
Lagoas, v.4, nº8 jan-jun, 2015.p.49-65. Disponível: http://seer.ufms.br/index.php/
RevTH/article/view/694 . Acesso em: 10 de junho de 2019.

24
A RELAÇÃO ENTRE ENSINO E PESQUISA
NO CONTEXTO DO ENSINO DA HISTÓRIA
DO ESTADO DE GOIÁS E DA CIDADE DE
CATALÃO

MÁRCIA PEREIRA DOS SANTOS1


JACIELY SOARES DA SILVA2

Resumo: Este artigo discutirá a dissociação entre ensino e pesquisa sobre


História do Estado de Goiás, no contexto do ensino de História. A pesquisa
foi desenvolvida na Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão,
dentro do Programa de Bolsa Licenciatura – PROLICEN, e objetivava
compreender qual era a história e a memória do Estado de Goiás ensinadas
na cidade de Catalão – GO, no período de 2009 a 2011. No decorrer da
pesquisa, descobriu-se que na cidade locus do trabalho havia praticamente
uma ausência do ensino de História de Goiás, bem como uma escassez
de materiais didáticos referentes ao tema, na grande maioria das escolas
campo. A pesquisa percebeu, também, que os professores alcançados,
formados em História, realizaram, durante os seus anos de graduação,
pesquisas sobre a história de Goiás e ou sobre a História de Catalão. Não

1 A Professora Márcia Pereira dos Santos é Doutora em História pela Universidade Estadual
Paulista – UNESP/Franca (2007) e é docente da Universidade Federal de Goiás desde 1998. É,
atualmente, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado Profissional
da UFG/Regional Catalão, cuja área de concentração é “História, Cultura e Formação de
Professores”. É, também, Coordenadora de área de História do PIBID (Programa de Bolsa de
Iniciação a Docência) da mesma universidade. Pesquisadora de História Cultural, desenvolveu
trabalhos tematizando a cultura popular, o mundo rural, as festas rurais e, atualmente, se ocupa
da relação entre ensino de história e cultura. A Professora é pesquisadora do grupo de pesquisa
NIESC e, ainda, membro da Società Internazionale di Studi Francescani – Assisi – Itália, por sua
pesquisa sobre o culto popular a Santo Antônio no Brasil. E-mail: marcia_santos@ufcat.edu.br
2 A pesquisadora Jaciely Soares da Silva é formada em História pela Universidade Federal de
Goiás – UFG/CAC (2012), mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia (2014),
atualmente é doutoranda pela mesma universidade e pesquisa a história de Catalão através do
culto ao Santo Antero. Desenvolveu projetos sobre Ensino de História durante os anos de 2009 e
2011, sendo bolsista pelo Programa de Bolsa e Licenciatura – PROLICEN durante os respectivos
anos. E-mail: jacielysoares@gmail.com

25
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

obstante isso, não se valiam de seus trabalhos nas salas de aula em que
atuavam, ainda que o tema ‘Estado’ e ‘Cidade’ constasse do currículo
mínimo. Com isso, a pesquisa, ao fazer tal diagnóstico, de dissociação entre
pesquisa e ensino, tomou outro direcionamento, pautando-se, agora, pela
necessidade de propor a elaboração de materiais didáticos que, apoiando-
se em pesquisas já produzidas, bem como em novas pesquisas, pudessem
atender às demandas do ensino de história. Dessa forma, apresentamos
aqui as conclusões a que chegamos.

Palavras-chaves: História, Memória, Ensino de História, Goiás.

O presente artigo é fruto do trabalho com a pesquisa histórica


e com o ensino de história na UFG/Regional Catalão e a reflexão
sobre algumas demandas que o ensino de história na cidade de
Catalão apresenta. Acreditando que um dos papéis da Universidade
é, indubitavelmente, contribuir tanto na produção do conhecimento,
como na viabilização do seu uso efetivo no ensino de base, ou seja,
ensino fundamental e médio, a pesquisa se deu com a perspectiva de
ampliar as possibilidades de atuação do pesquisador e professor de
história da Universidade, em relação a seus pares do ensino básico.
Com isso, notamos a necessidade de propor alternativas didáticas que
pudessem ser utilizadas no ensino de história, cujas temáticas fossem
a história de Goiás e Catalão. Uma escolha que se justifica porque
temos consciência da riqueza e extensão da produção dessa história
em âmbito acadêmico, sem, no entanto, ser usada no ensino de base.

O CONTEXTO DE PESQUISA
O trabalho com os Estágios Supervisionados em História,
no Município de Catalão, realizados no período de 2007 a 2008,
apresentou-nos a demanda escolar pela presença de conhecimentos
históricos sobre o estado de Goiás e a cidade Catalão. Essa demanda
nos levou a formular as indagações: Quais as principais representações
de história e de memória do Estado de Goiás e da cidade de Catalão
têm sido produzidas por historiadores? Que história e que memória
têm sido ensinada? Será que ensino e pesquisa estão associados no
cotidiano das salas de aula da disciplina história? A partir dessas
perguntas elaboramos o projeto de pesquisa: “As representações de
memória e de história de Goiás no ensino de história em Catalão” e
partir deste se desenvolveu, em 2009, um plano de trabalho de mesmo
título. Em 2011 foi desenvolvido um outro plano de trabalho: “Visões
do Lugar: representação de memória e de história de Catalão em
pesquisas históricas do curso de história do CAC – UFG, no período de

26
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

1995 a 2001”. Trabalho este que foi financiado em sua totalidade pelo
Programa de Bolsa de Licenciatura – PROLICEN – UFG, que custeou
uma bolsa de estudos para a aluna envolvida no projeto.
Em busca de respostas às perguntas que tínhamos fomos,
então, problematizar o estado da reflexão historiográfica em Goiás
e percebemos que as pesquisas regionais e/ou locais têm reescrito
a história de Goiás e Catalão. Com diferentes abordagens, como
veremos adiante, notamos que uma multiplicidade de temas, objetos,
documentos e perspectivas teóricas, tem alicerçado uma verdadeira
metamorfose sobre o que se sabe sobre o passado vivido em Goiás - e
isso também porque pesquisamos a história de Goiás.
Ou seja, nossa preocupação com os estudos sobre Goiás e Catalão
também nasceram da experiência de pesquisa, vez que, a professora-
orientadora, ainda no Mestrado, problematizou a história de Catalão,
(SANTOS, 2001) e no Doutorado a de Goiás, (SANTOS, 2007). Esses
estudos nos conduziram a uma autorreflexão de que, embora tenhamos
produzido história de Goiás e Catalão, também incorremos na mesma
atitude de produzi-las sem intentar que alcançassem a sala de aula
do ensino fundamental e médio, o que, bem sabemos, é comum
na cultura de pesquisa histórica em nosso país. Nesse caso, mesmo
trazendo para o debate as representações de memória e de história
de Goiás e Catalão na historiografia, percebemos que o que também
precisava ser debatido era o papel do professor pesquisador, haja vista
um círculo vicioso de dissociação entre o que se pesquisa e o que se
ensina. Havia pois, e usamos para análise nosso próprio exemplo, uma
distância grande entre o saber acadêmico e o saber escolar, este último
ainda necessitando ser explorado.
Assim, naquele momento, assumimos o desafio de enfrentar o
debate sobre a relação ensino e pesquisa, no intuito de propor reflexões
sobre a produção do conhecimento histórico que tem por objeto Goiás
e Catalão e o seu possível uso no ensino básico. Nesse contexto, em
que a educação em geral, e o ensino de história em particular, vivem
uma situação de dramático descaso, se considerarmos a popularização
midiática de avaliações ruins da educação brasileira em todos os
níveis, repensar conceitos de história e memória e buscar alternativas
para o ensino aprendizagem da história de Goiás e Catalão se tornam
o sentido do trabalho do profissional de história, atuante nessa região,
que não há de separar sua prática de pesquisa do seu exercício docente.
Se acreditarmos que há premência em reavaliar os sentidos do
passado, até então elaborados como explicação histórica da história
de Goiás e Catalão, é preciso que isso seja enfrentado com o objetivo

27
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

de melhorar o ensino de história. É na sala de aula do ensino


fundamental e médio que os conceitos norteadores dos estudos da
história precisam ser problematizados e relacionados à prática da
cidadania e da ética, porque nos colocamos no processo educativo
como aqueles que buscam que seus alunos se percebam sujeitos da
história e da aprendizagem e que construam suas vidas educativas
como protagonistas transformadores de suas realidades.
Alcançar essa perspectiva de história e ensino de história tem
sido um longo processo e podemos dizer que é a partir do ano de
1980, com o processo da redemocratização brasileira, que a educação
começou a ser repensada e que novos modelos para se ensinar foram
criados. As novas diretrizes curriculares foram propostas e esse
processo culminou, como já é consenso dizer, com a aprovação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais – os PCNs, cujos objetivos eram
essencialmente remodelar os currículos escolares, visando à melhoria
e ampliação da qualidade do ensino no Brasil. No caso do ensino de
história, os parâmetros propunham novas perspectivas para o mesmo,
tendo como premissa que:

[...] reafirmar sua importância no currículo não se prende somente a uma preocupação
com a identidade nacional, mas, sobretudo no que a disciplina pode dar como contri-
buição específica no desenvolvimento dos alunos como sujeitos conscientes, capazes
de entender a história como conhecimento, como experiência e prática de cidadania.
(PCNs – História, 2001, p.30).

A proposta nascia como uma ação do Governo, via Ministério


da Educação, mas repercutia também os novos questionamentos
advindos da sociedade como um todo, e de professores de história e
historiadores em particular. O gradativo aumento do acesso à escola
pela população, bem como o crescimento do número de cursos de
história, tanto de graduação quanto de pós-graduação, e o consequente
aumento de pesquisas provocaram uma nova configuração na
historiografia brasileira.
Se o conhecimento histórico brasileiro, a partir dos anos pós-
ditadura militar, sentia sobre si as demandas da conjuntura de
restabelecimento efetivo da democracia no Brasil, sentia, por outro
lado, a influência da conjuntura mundial, especialmente interferindo
em muitas interpretações teóricas da história (CRUZ, 2001). Trata-se
de um contexto mundial que interferiu no conhecimento histórico
produzido no mundo todo e foi nas salas de aula do ensino básico que
tais questões apresentaram problemas recorrentes no que concerne a
ensinar e a aprender história.

28
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

É perceptível que o século XX foi marcado por novas dimensões


da teoria da história. A ruptura com modelos totalizantes de história,
marcada pelas chamadas “teorias de explicação global”, incide sobre
o ensino de história justamente com uma crescente insatisfação com
a chamada história tradicional, até então, no Brasil, tida como a
diretiva do ensino de história em todas as fases da educação escolar.
Nesse momento, a busca por romper com essa história tradicional,
fortemente identificada com as anteriores diretrizes educacionais do
regime militar brasileiro (1964 – 1985), marcou a chamada renovação
do ensino de história (FONSECA, 1993) – muitas vezes expressa nos
tais PCNs, mas expressa, ainda, em pesquisas e preocupações de
historiadores e professores com o ensino de história.
O momento em debate criou para o campo da história o desafio
de pensar a si mesma em sua remodelação historiográfica, mas
também, pensar como essa nova historiografia poderia alcançar o
ensino de história na escola. Havia, assim, um desafio de orientação
epistemológica que se desdobrava em uma série de demandas práticas
que, na maioria das vezes, não eram possíveis de serem atendidas de
imediato, diante de muitos fatores, mas em especial diante da precária
situação da educação no Brasil, caracterizada por péssimas condições
que iam desde a má formação de professores, baixa remuneração,
infraestrutura inexistente ou claudicante das escolas, entre outras. O
maior agravante, a nosso ver, era, e talvez o seja até hoje, os limites do
conhecimento histórico produzido no país. Conhecimento este que
alcançou, sem dúvida, um grande desenvolvimento, mas que padecia
/ padece de discrepâncias de publicação e acesso limitado, por um
lado, e por outro da própria dificuldade em tornar tais pesquisas aptas
a estarem nas salas de aulas do ensino fundamental e médio.
Especialmente no que se refere aos “conhecimentos locais e/
ou regionais” – demanda dos PCNs e de novas teorias de história –
viu-se uma dificuldade em promover um ensino / aprendizagem que
permitisse aos alunos questionar a história que aprendiam em relação
à história que viviam e experimentavam no dia a dia. Ou seja, fazia-se
presente uma dificuldade em permitir ao aluno sentir-se, perceber-se
sujeito da história, pois não havia, nesse sentido, propostas efetivas e
gerais para a educação que dessem ao ensino de história possibilidade
do aluno fazer o trânsito entre o conhecimento local e o geral, ou
mesmo, entre a sua história individual e a história da sociedade na
qual se insere como sujeito. Logo, o que se via naquele contexto, e
talvez ainda hoje, era a dificuldade em se ensinar a história do lugar

29
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

no qual esses alunos estão, relacionando-a à história maior de seu país,


e, por conseguinte, do mundo (BITTENCOURT. 2009).
Com isso, notamos a necessidade de criar formas de enfrentamento
a esta situação e, partindo do questionamento de como têm sido
tecidas as representações de memória e da história de Goiás e Catalão
no âmbito de uma historiografia goiana, propusemo-nos a refletir
como tais noções estavam sendo – ou não – usadas em sala de aula do
ensino fundamental e médio, especialmente no Município de Catalão,
local onde se desenvolveu a pesquisa de campo da discussão.

A PROBLEMÁTICA TEÓRICA
A questão teórica orientadora da presente discussão partiu,
portanto, da necessária distinção entre História e Memória (LE GOFF,
2003). Isso porque entendemos que tais formas de interpelação
do passado vêm sendo propostas na historiografia em geral como
“idênticas” (SEIXAS, 2001a), o que, defendemos, se se mantém, impede
que as imagens do passado, ora como memória, ora como história,
sejam questionadas e problematizadas na pesquisa e no ensino. Dessa
maneira, é preciso questionar como tais noções têm chegado à sala de
aula e, mesmo, como são apropriadas por professores e alunos.
Muitas vezes sedimentados em visões tradicionais do passado
como pronto e acabado, os conceitos de história e de memória têm
servido a perspectivas de celebração – comemoração do passado,
reforçando uma noção de história feita por grandes homens e fatos
e, mesmo, cristalizando uma memória em monumentos e “lugares de
memória” (NORA, 1993) que dificultam a compreensão do passado,
seja ele como história ou como memória, na sua dinamicidade.
Assim, nota-se, no âmbito das demandas atuais do estudo
do passado (SEIXAS, 2001) uma premente necessidade de se
problematizar essa abordagem e repensar os sentidos de passado que
têm sido compostos e ‘repassados’ em sala de aula. E, no caso de nossa
discussão, que memória e que história de Goiás têm sido ensinada em
nossas escolas.
Vimos que no contexto da historiografia goiana, especialmente
a mais recente, há um esforço em discutir as noções de passado e
questionar as imagens que tais noções tecem/constroem de Goiás.
Alguns estudos, como de Itami Campos (2003), Nasr F. Chaul (1997),
Barsanulfo Gomides Borges (2000), entre outros, têm sido saudados
como esforços de uma (re) interpretação da história goiana que rompe
com as tradicionais visões de uma história evolutiva que identificava

30
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

um ‘atraso’ de Goiás em relação ao restante do país, até início do século


XX, seguido a partir de então de um ‘progresso’ vislumbrado, também,
como sentido da história do Brasil. E, no que concerne à cidade de
Catalão, a enormidade de monografias de conclusão de curso de
Graduação (FREITAS, 2002) e, mesmo, de monografias de conclusão
de curso de especialização em história, realizadas na UFG/Regional
Catalão, sinalizam novas formas de interpretar o passado da cidade
e suas cercanias, rompendo com a imagem de cidade violenta3, tão
propagada na memória e no imaginário local, e investindo em temas
e fontes que recontavam sua história partindo de outros enfoques que
não a violência referenciada como característica do lugar.
Assim, considerando as pesquisas realizadas por esses autores e,
mesmo, por outros não citados aqui, a questão suscitada por suas obras
era: será que tais autores têm sido trabalhados em sala de aula do ensino
fundamental e médio? Será que suas novas visões da história goiana
têm tido ressonância na prática docente nas escolas? Se a resposta
a essas questões for afirmativa, como são utilizados esses autores e
suas propostas de história? Houve preocupação em transformar suas
perspectivas historiográficas em material didático compatível como o
ensino fundamental e médio?
Com o desenvolvimento da pesquisa de campo, realizada por
amostragem em escolas da cidade4, constatou-se que o uso é restrito,
senão nulo, desses autores e de suas produções e de tantas outras
pesquisas inéditas. Isso porque durante a experiência de pesquisa,
notamos que apesar da presença de temas da história de Goiás na grande
maioria dos currículos de história, fomos recebidos por professores de
história e gestores sequiosos em obter material de ensino da história
de Goiás, pois seriam, mais cedo ou mais tarde, ‘obrigados’ a discutir
tal história sem, no entanto, terem referências para isso.
Bem sabemos, partindo de nossa experiência dentro da
universidade, como já dito, que há sim uma grande produção
acadêmica sobre história de Goiás e Catalão no âmbito das pesquisas
realizadas por historiadores, goianos ou não, em diversas partes do
país. Especialmente a UFG, e no nosso caso a UFG/Regional Catalão,

3  Essa imagem da cidade é construída a partir da memória de crimes bárbaros que abalaram a
cidade, como o crime do Antero, farmacêutico local torturado e morto por jagunços pelas ruas
da cidade nos anos 1930, que se tornou uma marco na história do lugar. CF GOMES, Luis P.,
CHAUL, Nars F., BARBOSA, Juarez Costa. História Política de Catalão. Goiânia: Editora UFG, 1994.
4 Ao todo foram selecionadas 10 escolas estaduais com ensino fundamental e médio para
levantamento de dados, cujos nomes foram preservados a pedido das instituições. E, em cada
escola, selecionamos 2 professores ou professoras de história para coleta de dados, cujos nomes
também foram preservados, a pedido dos mesmos.

31
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

tem produzido um contínuo de discussões sobre a história de Goiás e


de Catalão, construídas com fontes históricas diversas: fontes oficiais,
literatura, fontes orais, iconografia, entre outras, apontando para a
dinamicidade da produção do conhecimento histórico.
A contradição que notamos é que o trabalho em uma perspectiva
dinâmica do conhecimento se limita à universidade, não fazendo o
devido retorno à sociedade através da escola. A partir dessa percepção
é que fizemos um mapeamento tanto das obras historiográficas
consideradas referências de releituras sobre Goiás e Catalão, quanto
do alcance das mesmas no ensino de história nas escolas que tomamos
como campo de pesquisa e isso nos valendo dos autores e obras mais
lembrados pelos professores de história que atuam na região em
estudo.

A HISTÓRIA DE GOIÁS
Os autores e obras selecionadas foram: Luis Palacín e Maria Augusta
de Sant’ Anna Moraes, “História de Goiás” publicada em 2001; Nasr
Fayad Chaul “Coronelismo em Goiás: estudo de casos e famílias”,
publicado em 1998, Paulo Rodrigues Ribeiro “Sombras no silêncio da
noite: imagens da mulher goiana no século XIX”, publicado em 2001;
Barsanufo Gomides Borges “Goiás nos quadros da economia nacional:
1930-1960” publicado em 2000; e, por fim, o estudo A construção de
Goiânia e a transferência da Capital de Nasr Fayad Chaul, publicado
em 1999.
As conclusões a que chegamos nos permitem evidenciar as
perspectivas históricas que esses autores assumem para elaborar a
história de Goiás. Nosso objetivo maior com as leituras foi sintetizar as
discussões e problematizá-las como propostas teórico-metodológicas
que pudessem subsidiar novos materiais didáticos para o ensino básico
que pretende discutir a história de Goiás
É interessante considerar que a história de Goiás oferece
ao historiador várias possibilidades de caminhar pelo território.
Barsanufo Gomides Borges (2000) propõe estudos que têm como
ponto de partida análises das questões econômicas do Brasil e Goiás.
O autor estabelece um paralelo entre o desenvolvimento interiorano,
levando em consideração as conjunturas sociais a partir do progresso
ocorrido mediante a economia e o desenvolvimento do litoral,
expressando uma preocupação, em contar a história de Goiás pelo
prisma econômico. Isso, quando levada em consideração a tendência
com que o capitalismo foi se articulando ao longo dos anos, não se

32
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

detendo em apenas a uma localidade e logo contagiando metrópole


e campo. Dessa forma, quando analisamos o progresso econômico de
Goiás, notamos que este esteve articulado a uma economia nacional,
na qual o interior era visto como suporte para sanar as necessidades da
metrópole, tendo sempre como representantes grupos hegemônicos.
Quando a história de Goiás é contada a partir de uma perspectiva
econômica, ela é pautada nas transformações que essa mesma
economia trouxe à região, transformações essas que não se limitaram
ao setor econômico, mas que se estenderam à sociedade e cultura.
Com isso, cabe dizer que o estudo econômico revela a discrepância
existente entre as regiões comparadas e permite pensar o significado
do discurso do progresso que se evidencia, especialmente, nas
perspectivas de grandes proprietários de terra, pois são estes os
detentores de uma força política ligada à economia agrária, os mesmos
que relacionam desenvolvimento econômico a progresso, deixando à
mostra os resíduos do passado de economia essencialmente rural, mas
já entremeada por novas demandas da sociedade.
Se, por um lado, o progresso era visto como primordial para
inserir Goiás em uma economia nacional, utilizando mudanças como
o avanço nos meios de transporte e comunicação, a expansão da
fronteira agrícola, entre outros, por outro lado, revelou a defasagem
econômica no Estado, pois esta se desenvolveu lenta e desigual para
uma economia moderna. Ou seja, a explicação econômica nos ajuda,
também, a entender o hoje em relação ao passado e colocar Goiás
nos quadros do próprio capitalismo, tal como o mesmo se apresenta
historicamente.
Outro aspecto revelador de como é pensada a história de Goiás
é a construção de sua possível origem, pensada a partir da figura do
bandeirante e que o considera como marco para que a região tomasse
“vida”. Luiz Palacín e Maria Augusta Sant’Anna (2001) não fogem
a esse padrão. Isso pode, muitas vezes levar a uma idealização do
bandeirante como “herói desbravador”, sem considerar as implicações
que a sua chegada trouxe ao território goiano.
Não podemos negar o fato que a história do Brasil, de um modo
geral, é herdeira de uma visão heroicizada e idealizada do Ocidente,
na qual a história é pensada a partir de pessoas que de alguma forma
se destacaram e que ganharam representações que reiteravam tal
ideia na memória coletiva. Não é difícil encontrar fragmentos dessas
representações espalhadas pelo território goiano: monumentos,
praças, ruas e tantos outros logradouros que carregam o nome do
bandeirante Anhanguera.

33
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Os ‘heróis históricos’ tornam-se, pois, personagens que


permanecem na história e na memória coletiva, que ganham força
e destaque também nos pincéis de historiadores, como o caso dos
coronéis. Tomamos, nesse caso, as discussões do Livro “Coronelismo
em Goiás: estudos de casos de família” (1998) organizado por Nasr
F. Chaul, mas composto por três pesquisas diferentes que traçam
um perfil das famílias goianas, a partir do qual é possível traçar um
perfil econômico, social e político interiorano, em um período que se
inicia no final do século XIX e se estende até meados de século XX.
Ademais, são estudos que, ainda que de maneira subentendida, dão
a conhecer sobre coronéis e debatem a própria noção do que seria
o coronelismo, peças fundamentais de certo imaginário goiano do
poder, perpetuado na memória social pela figura do coronel como o
grande sujeito histórico do lugar.
Ora, tais estudos desnudam essa memória, ao apresentar uma
história desmistificadora e podem ser fundamentais para se pensar o
passado em suas permanências e rupturas, que colocam a necessidade
de recontar essa história e, a partir disso, expor como novas leituras
permitem novas interpretações.
Acreditamos que não podemos esquecer a importância desses
e de outros personagens na história de Goiás. Porém, justamente
para não cairmos na visão do herói histórico, é preciso pensar que a
formação do Estado de Goiás se deu também, obviamente, pela figura
de gente simples, as ditas comuns, que não se destacaram por meio
da política ou economia, pelos menos no discurso oficial, mas que em
seu anonimato foram importantes para a história, tal como percebido
no texto de Paulo Rodrigues Ribeiro “Sombras no silêncio da noite:
imagens da mulher goiana no século XIX”, (2001), no qual o autor
retoma a discussão sobre uma história das mulheres goianas e como
as mesmas, ainda que silenciadas, fizeram parte das experiências que
merecem memória e, portanto, merecem figurar como sujeitos da
história do lugar. Esse estudo inspira novas interpretações, ao colocar
em cena, não os sujeitos de uma memória cristalizada, mas aqueles e
aquelas que, buscados pelo processo investigativo, são protagonistas
de uma luta contra o esquecimento por apagamento de rastros, como
denunciado por Paul Ricoeur (2007), quando este nos fala que esse
é um tipo de esquecimento que pode ser revertido pela pesquisa
histórica.
A historiografia em Goiás, pelo menos a mais conhecida, até agora,
se dedicou pouco aos sujeitos históricos anteriormente mencionados,
permanecendo os mesmos ainda marginais na compreensão do

34
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

passado tecida pelos estudos aqui considerados. Dessa forma, quando


nos ocupamos dessas discussões, temos claro que nenhum evento
ou mesmo personagem se constituiu na história, isoladamente.
O passado, como é contado, vai considerando a importância e a
significação histórica de tudo que é tomado como objeto de pesquisa
dos historiadores, muitas vezes tendo o papel de desvelar o que está
oculto.
Foi notável perceber, durante a análise dos estudos escolhidos,
que boa parte da produção historiográfica aqui elencada, mesmo as
mais recentes, a que mais chega a um público maior é aquela que
tem se preocupado em descrever a história de Goiás por meio de
uma linearidade dos acontecimentos, que vão desde um ambiente
despovoado, passando pelas peripécias de uma possível crise do ouro
e culminando com o sonho idealizador de modernizar a região – a
construção de Goiânia. As pesquisas que fogem a esse padrão ainda
estão sofrendo de um silenciamento da academia, ou seja, o encontro
das mesmas deixa a nu a urgência em se publicar mais estudos que
interpretem o passado goiano não nos moldes da linearidade, mas
sim da descontinuidade, da pluralidade de sujeitos, de fontes e
interpretações.
Por um longo tempo tínhamos apenas a presença de leituras com
fulcro em datas e acontecimentos, que tinham como alvo personagens
históricos, e uma história linearizada; hoje, temos a nosso dispor
outras leituras e (re) leituras da história, nas quais novos caminhos
são trilhados. Historiadores buscam inovar tanto suas fontes, quanto
assuntos que abordarão, ora para que o texto ganhe mais precisão,
ora para que novos olhares e apontamentos ganhem espaço na
historiografia mais recente. No entanto, essa produção ainda não
está suficientemente à disposição de um público maior, compondo
um acervo de dissertações e teses cujo acesso é difícil para quem está
buscando ampliar as visões sobre a história de Goiás, mas se encontra
fora da academia. Podemos ver tal questão já na própria dificuldade
em relacionar estudos publicados, como era a intenção do projeto,
acima referenciado, sobre Goiás.
Outra conclusão possível é que Goiânia entra em cena na construção
da história de Goiás como sendo um divisor de águas entre o atraso
e o moderno. A mudança da capital é tomada como a materialização
do momento em que Goiás está deixando para trás o atraso, rumo
a um desenvolvimento econômico e social (CHAUL,1999). Diante
disso, os historiadores deixam evidente que havia todo um pano de
fundo, intimamente ligado às articulações políticas e econômicas,

35
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

que não implicam somente na dicotomia atraso / progresso, mas que


sinalizam como o poder goiano considerou a criação de uma nova
capital, dando-lhe uma feição de modernidade que encobria, de certa
forma, o que estava ao seu redor.
A historiografia de Goiás considera, pois, a construção de Goiânia
em torno de peripécias políticas e suas conjunturas, repleta de fatos
e acontecimentos que evidenciam parte de como foram forjadas
diretrizes político-econômicas a partir dos ideais nacionalistas do
período; permanecem, no entanto, esquecidas ou ocultadas, outras
histórias de gente que também construiu Goiânia, mas que não foram
ainda consideradas como sujeitos históricos.
Como mencionado antes, não tivemos a intenção de analisar
apenas uma concepção teórica da história de Goiás. Então, foi-nos
possível caminhar por várias vertentes e abordagens historiográficas.
Encontramos na historiografia mais recente tanto aqueles desenvolvem
uma escrita numa órbita mais global, quanto aquela direcionada a uma
localidade. Em outros casos, nos deparamos com uma historiografia
que se preocupa com minúcias, novos olhares e, sujeitos, ampliando
o rol de temas que ganham espaço e valor nas pesquisas.
Encontramos autores que desenvolveram suas pesquisas tendo
como foco uma história marxista; outros que propõem uma história
pautada em recortes – história política, econômica ou social – e ainda,
aqueles que se valiam de estudos de caso, com uma perspectiva de
micro-história. Encontramos, ainda, estudos sobre mulheres e gênero,
o que implica em novas tentativas de compreender como o povo
viveu e vive em Goiás.
Há de se admitir que essas perspectivas passam pelo prisma de uma
história que não se configurou independentemente, mas constituiu um
todo para que a história de Goiás fosse construída, e que há uma nítida
tendência desses historiadores em apontarem novas preocupações no
que concerne ao processo histórico. Dessa forma, a conclusão possível
é que é preciso que esse manancial de pesquisas seja tomado como
pontos de partida para se ensinar história de Goiás, seja se tornando
referências bibliográfica para os professores, seja inspirando materiais
didáticos para os estudantes.

A HISTÓRIA DE CATALÃO:
No caso da história de Catalão, é preciso levar em conta a pouca
produção publicada sobre o lugar. Não considerando aqui, pois não
era nosso objeto de estudo, as obras dos memorialistas locais, o estudo

36
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

mais conhecido, publicado em 1994, é o livro “História Política de


Catalão”, de Luis Palacin Gomez, Nasr Fayad Chaul e Juarez Barbosa.
Pouco conhecido de professores e estudantes, esse estudo é um
importante passo na perspectiva de se propor estudos sobre a história
de Catalão. Assumindo a política como seu eixo de discussão, suas 3
partes, cada uma responsabilidade de um dos autores, ainda deixam
evidente a forma de lidar com a história de Catalão a partir de uma
memória da violência e da fama de violenta que a cidade possui.
Apesar da importância desse estudo, o mesmo não foi lembrado por
nenhum dos professores interpelados pela pesquisa, ou seja, também
sobre o mesmo produziu-se um processo de não uso, o que fez com
que os professores pesquisados ainda cobrem por uma história da
cidade sistematizada que possa ser ensinada nas escolas.
O que é mais interessante de se considerar é que muitos
dos professores abordados esperam da universidade a solução
do problema, pois estão cônscios de que “lá” se produz história
de Catalão. Percebemos que ao longo da existência do curso de
História da UFG – o curso foi criado em 1991, tendo sua primeira
defesa de monografia em 1995 – há uma enormidade de estudos que
tematizaram a história local. Essas pesquisas se ocuparam das mais
diferentes temáticas, metodologias e objetos de estudo. Do material
selecionado e lido, podemos dizer que as novas pesquisas e produções
feitas pelos graduandos em História da UFG – Regional Catalão, no
período em destaque, caminharam por várias direções, expondo novos
olhares e computando inúmeras possibilidades de fontes históricas, as
quais possuem respaldo acadêmico para tratar e repensar a história
e a memória de Catalão. Muitas dessas produções, de alguma forma,
foram inspiradas no cotidiano e na vivência dos graduandos, os quais
fazem uso de sua história particular para tratar a história de Catalão.
Partimos, inicialmente, da pesquisa da Profa. Dra Eliane M de
Freitas, que culminou com livro “Produzindo História, pensando o
local: a produção monográfica dos alunos do Curso de História CAC/
UFG (1995-2001), uma pesquisa temática quantitativa das monografias
que tinham Catalão com o tema. Os pesquisadores chegaram aos
seguintes resultados:

37
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Historiografia sobre
Ano Demais assuntos Total de defesas
Catalão

1995 02 04 06

1996 14 04 18

1997 04 11 15

1998 01 03 04

1999 12 26 38

2000 07 07 14

2001 08 10 18

N. Total 48 65 113

Fonte: FREITAS, Eliane M. (org.) Produzindo História, pensando o local: a produção monográfica dos
alunos do Curso de História CAC/UFG ( 1995-2001). Uberlândia: Aspectus, 2002.

Ainda que não abranja o recorte temporal da discussão, essas


pesquisas nos parecem importantes, pois sinalizam que já se vem
produzindo novas histórias de Catalão há bastante tempo. No entanto,
permanece a falta de material didático para ensinar essa história.
A pergunta que perseguimos é o porquê dessa situação? Em nossas
escolas campo de pesquisa, muitos dos professores de história são
os mesmos pesquisadores que produziram pesquisas de que falamos
e, mesmo assim, elas parecem não lhes ser fonte para o ensino da
história de Catalão, ainda que tematizem, como mostrado, amplos
aspectos da história local.
Para debater o tema e a disparidade entre pesquisa e ensino, e não
fugindo a nosso referencial que pensa história e memória, mostraremos
alguns títulos de monografias que tratam de temas importantes no
âmbito de uma memória e de uma história de Catalão, para evidenciar
o que se tem pesquisado sobre Catalão. As monografias aqui elencadas
foram levantadas em dois momentos: primeiro, pela pesquisa que
resultou no já citado livro “Produzindo História, pensando o local:
a produção monográfica dos alunos do Curso de História CAC/UFG
(1995-2001)”, organizado pela Professora Dra. Eliane Martins de Freitas
(2002); e o segundo momento foi a continuidade da pesquisa, ainda

38
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

inédita, realizada pela mesma pesquisadora em 2010 e um bolsista,


com dados dos anos de 2002 a 2009, conforme relatório de pesquisa
apresentado à UFG/Regional. São essas, como consta em Freitas (2002,
s/d):

“Catalão, sua identidade pensada através do imaginário social” de Fátima do Rosário


N. Mendes de 1995; “Rezar, divertir e comprar: a Festa do Rosário em Catalão, de Val-
deci de Freitas L. Ferreira de 1996; “O Morro de São João e sua Igreja: a representação
e a construção do Imaginário Catalano” de Ana Inácia Neto de Assunção de 1997; “A
outra História, memória e experiência de ferrovias e moradores s/ a ferrovia e cidade
Catalão”,de Aparecida Maria de Oliveira (1999); “A Morte no Imaginário Catalano, epi-
táfios, escritas lapidais no Cemitério Municipal de Catalão”, de Tânia Maria de Araújo
(2000); “Goiás Começa Aqui: a produção dos historiadores amadores sobre a história
de Catalão”, de Luciane Aparecida Silvério Calaça, de 2001.

E, na segunda parte da pesquisa, como consta no relatório final,


(BARRETO, FREITAS, 2011, s/d):

“Santa Casa de Misericórdia de Catalão: políticas de saúde e práticas de assistência”,


de Divina Lourdes de Matos de 2002; “A Cidade, a Sociedade e os Conflitos: Catalão
no Século XIX”, de Sidnei Rosa Borges de 2003; “Reflexos da disciplina militar na
percepção dos bombeiros de Catalão”, de Marcelo Mesquita Goulart de 2004; “Folia
de Reis: cultura e fé em Catalão”, de Edna Marçal Rosa de 2005; “Rituais de caça na
região de Catalão (1969-1990)” de Márcio Nunes Moreira de 2006; “A representação
iconográfica cristã nas pinturas dos artistas Catalanos (1980-2000)”, de Solene Batista
Roldão de 2007; “Os tocadores de viola caipira na região de Catalão”, de Claudinei
Antônio de Rezende de 2008; “Memória História de Goiás: Uma discussão acerca do
seu lugar no ensino de história em Catalão”, de Daiane Tomé Dias, de 2009.

Sem aprofundarmos em cada uma das pesquisas aqui


exemplificadas – o que foi feito ao longo da pesquisa por nós
desenvolvida – podemos ver, por suas preocupações centrais – os
títulos o apontam – que a história de Catalão é tema de pesquisas
variadas que tematizam o passado a partir de abordagens diversas, seja
a cultura, a política, a sociedade, os festejos, as crenças e rituais e,
ainda a partir de sujeitos diversos, trabalhadores, mulheres, militares,
violeiros e outros. Assim, quando acompanhamos essas pesquisas,
vemos a história de Goiás e de Catalão como tema das investigações
históricas desenvolvidas no CAC/UFG que estão propondo novas
leituras do passado, mediadas por pesquisas acadêmicas e não mais
apenas por contadores de histórias do lugar ou pesquisadores, que
podemos dizer amadores, cujas preocupações são muito mais de
memória que de história, sabendo, claro, que isso não desqualifica
o seu trabalho, mas também não o habilita como conhecimento

39
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

histórico sistematizado que pode e deve ser usado no ensino


de história. Importante observar que desses levantamentos nos
debruçamos sobre os trabalhos selecionados e pudemos concluir que
muitas representações, muitas memórias, muitas histórias da cidade
foram problematizadas e discutidas, colocando, assim, em aberto um
rol de conhecimentos que nos dão oportunidade de repensar o que se
sabe e o que se propaga sobre a história da cidade.
Mas apesar do volume de pesquisas que encontramos sobre
Catalão, ressaltamos que em nossa pesquisa de campo nenhum dos
professores de história alcançados utilizavam-se desses trabalhos em
suas aulas. A partir dessa informação, cabe questionar por que, aliado
a essas pesquisas, não se produziu material didático correspondente
que permitisse seu uso em sala de aula? Nossa conclusão é que além
dos desafios de falta de financiamento para tais pesquisas, falta de
estrutura de pesquisa no lugar, falta de publicação das mesmas, há,
ainda, por parte de muitos pesquisadores, uma visão que distancia
produção do conhecimento e docência. Essa visão dificulta um
trabalho que leve tais pesquisas para a sala de aula, dentro daquilo
que é solicitado como história de Goiás e de Catalão nos currículos
escolares.
O fato estudado também reforça nossa tese de que esses mesmos
pesquisadores / professores dissociam a pesquisa e o ensino na sua
atuação docente. Nesse caso, impõe-se a necessidade de travar debates
com esses sujeitos que coloquem em questão essa dissociação entre
ensino e pesquisa, como um problema que pode ser superado.
Ora, como Selva G. Fonseca (2003), acreditamos que é na ligação
fundamental entre a pesquisa e o ensino que podemos redimensionar
o ensino de história, dando ao mesmo um caráter dinâmico e inovador
que rompa com práticas tradicionais de ensino que usurpam de
professores e alunos a condição de sujeitos do conhecimento.
Fonseca (2003. p. 119) acredita que a partir disso a própria sala de
aula se tornaria espaço de pesquisa:

[..] a lógica fundante da produção do saber histórico em sala de aula é a explicitação


do real. Ora, se o objetivo da disciplina é formar, educar, explicando, reconstituindo
e buscando compreender o real, podemos afirmar que a lógica da prática docente é,
fundamentalmente, construtiva. Isso implica uma busca permanente de superação do
mero reprodutivismo livresco que ainda predomina nas aulas de história.

Ou seja, é urgente criar condições, métodos e análises que


permitam a aproximação entre a produção e o ensino do conhecimento
histórico; que valorizem a atuação de alunos e professores dentro da

40
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

sala de aula e não apenas em momentos outros de pesquisa. Claro que


aqui não se trata de dizer que a sala de aula venha formar “pequenos
historiadores”, mas sim, que esse ensino mediado pela ligação
fundamental entre ensino e pesquisa poderia propor uma ruptura
com essa prática de ensino de história que não leva em conta o que se
produz no lugar e o seu possível uso efetivo na sala de aula. Nesse caso,
a conclusão maior da pesquisa é que não falta conhecimento histórico
produzido sobre Catalão, faltam, sim, formas de inserção destes nas
salas de aulas. O enfrentamento desse problema é crucial para que se
possa ensinar mais e melhor a história do lugar, não saturando a sala
de aula com milhares de informações, mas permitindo que os sujeitos
envolvidos no processo educativo possam se dar conta da pluralidade
de histórias possíveis a partir da multiplicidade de memórias que
foram gestadas nessa cidade pelos processos históricos por ela vividos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O passado, condição de identidade de indivíduos e sociedades,
não pode, na atualidade, ser tomado como algo fixo e acabado, como
uma verdade única que independe da ação dos sujeitos históricos.
Esse passado é construído e tecido a partir das demandas do tempo
presente (BLOCH, 2001), e nas respostas que os pesquisadores vão
encontrando para tais demandas. Na linha discutida por Marc Bloch
é preciso propor-se à pesquisa histórica em busca dos homens que
fazem a história. Significa encontrar os vestígios, as marcas desses
homens, não como provas de sua existência, mas como o rastro de
suas experiências que nos chamam a atenção e que nos filiam à prática
daqueles que têm na defesa do homem o sentido de seus trabalhos.
A paixão pelo passado, razão pela qual nos dedicamos à história,
não pode, no entanto, abster-se de um olhar crítico e problematizador
que desconstrua ídolos e verdades e que coloque em cena a grande
dinâmica da história como transformação, como o queria o fundador
dos Annales.
Nesse mesmo impulso, não podemos nos satisfazer com
memórias cristalizadas, catalisadoras de um passado único e
total, porque a dinâmica da memória impõe questionar tempo,
sujeitos, práticas de memória e de esquecimento que suscitam
questões múltiplas para o pesquisador preocupado com os
sentidos do passado e sua importância no presente, pois

41
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, particularmente a


estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de
não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao
passado não sendo um fim em si mesmo, visa à transformação do presente. (GAGNE-
BIN, 2001, p. 91)

É necessário em busca das múltiplas e plurais memórias


(HALBWACHS, 2006) e para tanto, é necessário questionar de quem
são, onde estão, como são acessadas. É preciso ir ao encalço de uma
gestão das memórias para descobrir a quem têm servido e com quais
propósitos. Muitas vezes é preciso lembrar de que socialmente muito
se tem esquecido e que esse par, memória– esquecimento (RICOEUR,
2007) é, em verdade, meandros de poder que precisam ser desvendados
para que o passado não seja usado como meio de dominação e
exploração do homem pelo homem e isso, a nosso ver, é o papel do
ensino de história.
Daí a pertinência de se problematizar como o ensino de História
em Catalão tem sido pouco afetado pelas novas pesquisas, que colocam
em xeque velhas representações do passado local, entendendo que
as representações se situam, também, em um espaço de lutas, como
propõe Chartier (1988, p. 17)), que dão aos homens sentidos para suas
ações e práticas. Sobre isso o autor nos diz que:

As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universali-


dade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses
de grupos que as forjam [...]. As percepções do social não dão de forma alguma dis-
cursos neutros: produzindo estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros por ela menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou justificar para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. Por isso uma investigação sobre as representações supõe-nas como es-
tando sempre colocadas num campo de concorrências e competições cujos desafios
se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta
importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais
um grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são
os seus, e o seu domínio.

Assim, ao colocarmos a memória e a história de Goiás, ou sobre


Goiás e Catalão, como problema dos sentidos e representações do
passado até então construídos, defendemos que é necessário fazer com
que essas pesquisas cheguem ao ensino básico, pois também a história
poderá contribuir na formação de sujeitos históricos plenamente
conscientes de si mesmos e do mundo no qual se encontram e que,
em seus processos educativos, não se contentaram com o dado, mas

42
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

acreditaram que a pesquisa é uma das melhores formas de se aprender


e ensinar.
A partir dessas conclusões, produzimos, na efetivação prática
do projeto de pesquisa que originou essa discussão, um conjunto
de “Oficinas de Ensino de História”, com temas inspirados nos
autores debatidos durante a pesquisa, abordando diversos aspectos e
temáticas da história de Catalão e Goiás, e, tendo as pesquisas aqui
levantadas como seus referenciais teórico-metodológicos e, ainda,
valendo-se de propostas didáticas que se apoiavam de documentos
históricos diversos – música, literatura, jornais, poesias, fotografias
e outros – pudessem ser usados como materiais didáticos tanto no
ensino fundamental quando no ensino médio. A Oficina de Ensino
mostra-se uma metodologia que gera resultados positivos em salas
de aula do ensino fundamental e médio, pois faz da aula de história
um momento de considerar, também, não apenas explicações do
professor, mas um momento de, o próprio aluno, tomar contato com
documentos históricos diversos, dando ao mesmo oportunidade de,
também, produzir conhecimento histórico, a partir de como visualiza
o passado através dos documentos com os quais toma contato. A
publicação das oficinas será o resultado final sobre a discussão, porque
assim cumprirá nossa intenção primeva: permitir que o conhecimento
histórico produzido pelos pesquisadores alcancem as salas de aula não
apenas de Catalão, mas também de Goiás.
Embora o que produzimos no projeto ainda não tenha sido
publicado, as oficinas foram ministradas em atividades práticas
do próprio projeto PROLICEN, bem como em atividades do Grupo
PIBID-História5, no período de 2011 e 2013. Essas experiências nos
mostraram a pertinência da proposta, haja vista a repercussão positiva
que tais oficinas tiveram entre professores e estudantes da educação
básica.
Esperamos em breve publicar os trabalhos efetivados em forma
de um “Caderno de Oficinas sobre História de Goiás e Catalão”,
cumprindo a função de quem pesquisa, ensina e forma novos
professores – pesquisadores, ou seja, de quem tematiza a história,
também, a partir de como a mesma tem sido produzida e ensinada no
lugar onde estamos.

5 Programa de Bolsa de Iniciação a Docência – Área de História – UFG/Regional Catalão,


coordenado pela Profa. Dra. Márcia Pereira dos Santos, no período de 2011-2013. Ao longo desse
período foram ministradas na escola parceira do programa mais de 20 Oficinas de Ensino que
tematizaram a história de Goiás e a História de Catalão, dando ênfase às demandas apresentadas
pela escola, mas referendando o conhecimento que já se tem produzido sobre tais assuntos.

43
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

REFERÊNCIAS:
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. –
3. ed. – São Paulo: Cortez, 2009.

BARRETO, Paulo Duarte. FREITAS, Eliane Martins de. Relatório Final - 2010/2011 -
PROLICEN. Ensino de História e Relações de Gênero: as relações de gênero nos livros
didáticos de história e nas análises monográficas produzidas pelos alunos da CAC/
UFG. Digi.19 fls. Catalão: UFG/CAC, 2011.

BLOCH, Marc. Apologia da História: ou ofício de historiador. Trad. André Teles. Rio de
Janeiro: Jorge Zarah Ed. 2001.

BORGES, Barsanufo Gomides. Goiás nos quadros da economia nacional: 1930-1960.


Goiânia: Ed. da UFG, 2000.

CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goiás. 2. Ed. Goiânia: Editora Vieira, 2003.

CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de


Janeiro: Difel/ Bertrand do Brasil, 1988.

CHAUL, Nasr F. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da


modernidade. Goiânia: CEGRAF/UFG, 2002.

_______. A construção de Goiânia e a transferência da capital. Goiânia: Cegraf/UFG, 1999.

_______. (org.) Coronelismo em Goiás: estudos de casos de família. Goiânia: Mestrado


em História/UFG. 1998.

CRUZ, M. B.A. O ensino de história no contexto das transições de paradigmas da


história e da educação. In: Nikiteuk, S. M. (org.) Repensando o ensino de história. São
Paulo: editora Cortez, 2001.

FONSECA, Selva, G. Didática e prática do ensino de História: experiências, reflexões e


aprendizado. Campinas/São Paulo: Editora Papirus, 2003.

FREITAS, Eliane M. (org.) Produzindo História, pensando o local: a produção monográfica


dos alunos do Curso de História CAC/UFG (1995-2001). Uberlândia: Aspectus, 2002.

GAGNEBIN, Jeanne Marie.Memória, História, Testemunho. In: BRESCINI, Stella.


NAXARA, Márcia. Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas-SP: Ed. da Unicamp, 2001.

GOMES, Luis P., CHAUL, Nars F., BERBOSA, Juarez Costa. História Política de Catalão.
Goiânia: Editora UFG, 1994.

_______. MORAES, Maria Augusta Sant’Anna. História de Goiás. 6º ed. Goiânia: Ed. Da
UCG, 2001.

44
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro, 2006. 222 p.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. 5ª ed. Campinas-


SP: Editora da UNICAMP, 2003.

NORA, Pierre. “Entre história e memória; a problemática dos lugares”. Tradução de


Yara Aun Khury. Projeto História. São Paulo, n°10,p.7 – 29, dez. 1993.

Parâmetros Curriculares Nacionais: história e geografia/ Ministério da Educação.


Secretaria de Educação Fundamental. – 3ed. – Brasília: A Secretaria, 2001.

PEREIRA, Eliane M. C. Goiânia, Filha mais moça e bonita do Brasil. In. RODRIGUES,
Tarcisio, et al. Goiânia: cidade pensada. Goiânia: Ed. da UFG, 2002. pp. 13-69.

RIBEIRO, Paulo Rodrigues. Sombras no silêncio da noite: imagens da mulher goiana


do século XIX. In. CHAUL, Nasr Fayad, RODRIGUES, Paulo. (Org.). Goiás: identidade,
paisagem e tradição. Goiânia: Ed. da UCG, 2001.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et.


al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

SANTOS, Márcia P. Relembranças em Minguante: interpretação biográfica da obra de


Carmo Bernardes. 173 f. Franca: UNESP, 2007. Tese de doutorado.

_______. O campo (re) inventado: transformações da cultura popular rural no sudeste


goiano (1950 -1990). 195 f. Uberlândia, UFU, 2001. Dissertação de Mestrado.

SEIXAS, Jacy A. Percursos da memória em terras de história: problemas atuais. In:


BRESCIANI, Maria Stella, NAXARA, Márcia Regina (Org.) Memória e (re) sentimentos:
indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. UNICAMP, 2001.

SILVA, Jaciely Soares da. SANTOS, Márcia Pereira dos. Relatório Final PROLICEN - UFG
2009-2010: A representação de memória e de história de Goiás no ensino de história
em Catalão. Digi. 29 fls. Catalão: UFG/CAC, 2010.

_______. Relatório Final PROLICEN - UFG 2010-2011: Visões do Lugar: representação


de memória e de história de Catalão em pesquisas históricas do curso de história do
CAC – UFG, no período de 1995 a 2001.Digi. 18 fls. Catalão: UFG/CAC, 2011.

Fonte de financiamento: PROLICEN/UFG

45
ENSINAR A ENSINAR HISTÓRIA: OS MANUAIS
DESTINADOS AOS PROFESSORES E AS
METODOLOGIAS DE ENSINO

OSVALDO RODRIGUES JUNIOR1

RESUMO: Apresenta resultados de pesquisa bibliográfica sobre os manuais


destinados aos professores de História publicados no Brasil. Parte do debate
sobre a “circunscrição conceitual” desses manuais didáticos, que permite
diferenciá-los dos livros didáticos destinados aos alunos. O trabalho se
insere no conjunto de debates sobre a história das disciplinas escolares,
entendendo esses manuais como “textos visíveis” do código disciplinar.
Assim sendo, o problema foi compreender as diferentes formas de ensinar
a ensinar História no Brasil. Os objetivos foram: a) definir as características
e especificidades dos manuais destinados a professores; b) apresentar um
breve “estado da arte” da questão; c) analisar os manuais como fontes para
conhecer a história do ensino de História no Brasil. O referencial teórico
assumido para a análise dos trabalhos foi o da história dos livros e da leitura,
fundamentalmente a partir de Chartier (1998). Os resultados permitem
identificar diferentes formas de ensinar a ensinar História presentes nos
manuais destinados aos professores, relacionadas as diferentes “ordens”
pretendidas por esses impressos.

PALAVRAS-CHAVE: Manuais didáticos; ensino de História; metodologias


de ensino; código disciplinar; história do ensino de História.

1  Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Departamento


de História na Universidade Federal de Mato Grosso. Professor do Programa de Pós-Graduação
em História e do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFMT. Email: osvaldo.rjunior@
gmail.com

46
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

INTRODUÇÃO: CIRCUNSCREVENDO CONCEITUALMENTE O


OBJETO
Choppin (2009) afirma que por muito tempo os livros e edições
escolares foram negligenciados da pesquisa histórica por seu caráter
cotidiano, “nada raro, exótico” e atemporal. Além disso, por se
tratarem de mercadorias perecíveis, que não tem valor de mercado,
artigo de consumo pedagógico, vítimas do seu sucesso.
Esse,

[...] pouco interesse demonstrado, até estes últimos vinte anos, pelos manuais antigos
e pela sua história decorre não somente das dificuldades de acesso às coleções, mas
também de sua incompletude e sua dispersão. Ou talvez, ao contrário, devido à grande
quantidade de sua produção, a conservação dos manuais não foi corretamente assegu-
rada (CHOPPIN, 2002, p. 8).

Tal negligencia ainda se deve as formas de olhar e entender os


livros e edições didáticas. Por muito tempo, essas obras foram vistas
como “espelhos da sociedade” ou mesmo como “vetores ideológicos
e culturais”. Nesse contexto, a pesquisa basicamente se concentrou
na análise de conteúdos e imagens presentes nos livros e edições
didáticas.
O desenvolvimento desse campo de pesquisa decorre
fundamentalmente da “criação de publicações periódicas específicas
como as associações nacionais e internacionais” (CHOPPIN, 2009, p.
12). Também do desenvolvimento da história do livro desde 1980, que
promove uma ampliação das abordagens. Dessa forma, os manuais
se constituem enquanto “objeto complexo dotado de múltiplas
funções, a maioria, aliás, totalmente desapercebidas aos olhos dos
contemporâneos” (CHOPPIN, 2009, p. 13).
No entanto, ao realizar um inventário das pesquisas envolvendo
livros escolares, Choppin (2004) identificou um problema léxico de
não definição dos tipos de textos escolares. Isso porque, a maioria
dos investigadores utiliza o conceito de “livros didáticos” sem refletir
sobre as diferentes tipologias de textos ou edições escolares.
Partindo desse pressuposto, Choppin (2009) questiona “o que
é um manual escolar?” (CHOPPIN, 2009, p. 12). Buscando respostas
para a indagação, destaca que “é preciso sublinhar de imediato que
o conceito de livro escolar é historicamente recente” (CHOPPIN,
2009, p. 15). No caso da língua francesa, esse conceito não é
conhecido antes da Revolução Francesa. Comparando a outros países

47
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

ocidentais, compreende-se que esse tipo de publicação permite uma


“multiplicidade de denominações” (CHOPPIN, 2009, p. 15).
Termos como cartilha, entendida como “pequenos livretos
que apresentam as letras do alfabeto e os primeiros rudimentos da
aprendizagem da leitura” (CHOPPIN, 2009, p. 18) ou horn-book,
tavola ou tableta, que apareceu na Europa durante a Idade Média para
designar “uma simples folha de papel sobre a qual são reproduzidos
o alfabeto, a oração do Pai Nosso, ou ainda os números de 1 à 10”
(CHOPPIN, 2009, p. 18), são alguns dos utilizados com sentido de
manual.
Percorrendo a vasta bibliografia, ainda encontramos os termos
franceses manuels scolaires, livres scolaires ou livres de classe; os
italianos libri scolastici, libri per la scuola ou libri di texto; os espanhóis
libros escolares, libros de texto ou textos escolares; os lusófonos
livros didáticos, manuais escolares ou textos didáticos; além daqueles
relacionados as línguas germânicas.
De acordo com Choppin (2009),

essas oscilações terminológicas podem explicar as motivações retóricas, especialmen-


te nas línguas romanas, que repugnam geralmente repetir os mesmos termos. Mas se
examinarmos mais de perto, constatamos que essa profusão léxica reflete a complexi-
dade do estatuto do livro escolar na sociedade (CHOPPIN, 2009, p. 20).

Essa terminologia também está relacionada aos conteúdos de


ensino. Assim é possível dividir a literatura escolar em dois grandes
conjuntos: 1) os livros que apresentam os conhecimentos; 2) os livros
que visam a aquisição de mecanismos. De acordo com Stray (1993
apud CHOPPIN 2009, p. 24) “a diferença fundamental entre a palavra
‘manual’ (textbook) e sua predecessora, o ‘livro de texto’ (text book),
reside no fato que a primeira é ao mesmo tempo o texto e o ensino”.
Diante dessa diversidade terminológica “tomar o manual escolar como
objeto de estudo supõe igualmente que façamos um trabalho prévio
de circunscrição conceitual relativamente a outros tipos de produção
literária” (CHOPPIN, 2009, p. 27).
No Brasil, um conjunto de autores preocupados com essa questão
nos ajuda a pensar a “circunscrição conceitual” proposta por Choppin
(2009).
De acordo com Nagle (2009), a literatura educacional é um
importante documento para a compreensão das discussões do
pensamento educacional nos diferentes contextos históricos.
Analisando a literatura educacional durante a Primeira República,

48
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

esse autor observa um conjunto de livros de “caráter essencialmente


didático, para não dizer exclusivamente metodológico” (NAGLE,
2009, p. 292).
Batista (2000) observa que a categoria manuais didáticos agrega
um conjunto bastante heterogêneo de textos escolares. Dentre eles,
o autor destaca os manuais de “didática especial (que propunham
métodos e atividades de ensino em alguma disciplina)” (BATISTA,
2000, p. 551).
Schmidt, Garcia e Bufrem (2006) lançam uma pergunta semelhante
a feita por Choppin (2009), “como podem ser caracterizados os manuais
destinados ao público docente?”. (SCHMIDT; GARCIA; BUFREM,
2006, p. 122). Na opinião das autoras, esses manuais destinados aos
professores “[...] apresentam a proposta de, a um só tempo introduzir
um tema e sumariá-lo” (SCHMIDT; GARCIA; BUFREM, 2006, p. 123).
Dessa forma,

[...] propõem métodos e atividades de ensino de determinadas disciplinas indica, tam-


bém, a necessidade de explicitação do que se entende pelo conjunto de conhecimentos
veiculados por estes manuais, ou seja, que tipo de saberes são constitutivos destas
publicações destinadas aos professores (SCHMIDT; GARCIA; BUFREM, 2006, p. 123).

Vivian Batista da Silva (2003; 2006) define o manual pedagógico


como destinado ao “ensino de disciplinas profissionalizantes dos
currículos de instituições de formação docente, no caso, aquelas
diretamente relacionadas com questões educacionais, a saber, a
pedagogia, a didática, a metodologia e a prática de ensino” (SILVA,
2003, p. 30).
Esses manuais apresentam “prescrições minuciosas sobre como
agir em sala de aula” (SILVA, 2006, s/p). Os manuais publicados
em meados do século XX apresentam uma perspectiva do “saber
fazer” a “uma dimensão técnica do ofício docente”, dessa forma “na
maior parte das vezes restringiram o seu conteúdo a uma espécie de
receituário de como exercer o magistério” (SILVA, 2006, s/p).
Partindo desse conjunto de autores, na tese de doutorado
(RODRIGUES JUNIOR, 2015) e em artigo publicado (GARCIA;
RODRIGUES JUNIOR, 2016) temos defendido o conceito de manual
de Didática da História, enquanto livros que possuem uma estrutura
didática que dialoga diretamente com os docentes. Dessa forma,
entendemos a especificidade dos manuais destinados a professores
enquanto um tipo específico de texto escolar que tem como objetivo

49
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

propor diferentes metodologias de ensino de uma disciplina, ou


manuais que se propõe a ensinar a ensinar História.

UM BREVE “ESTADO DA ARTE”: AS PESQUISAS COM


MANUAIS DESTINADOS AOS PROFESSORES DE HISTÓRIA NO
BRASIL
Guereña e Ossenbach (2005) identificam uma hegemonia das
pesquisas com livros didáticos destinados aos alunos nos países ibero-
americanos, destacando o caráter incipiente das investigações que
tomam os manuais destinados a professores como objeto. No entanto,
destacamos a existência de um conjunto de trabalhos que tratam
dessas edições didáticas no Brasil.
Os primeiros manuais destinados aos professores no Brasil, foram
publicados ainda no contexto da Primeira República. O precursor,
Methodologia da História na aula primária (1917) foi escrito por Jonathas
Serrano, que também publicou Como se ensina a História (1935). As
duas obras são objeto dos trabalhos de Schmidt (2004; 2005; 2008) e
Freitas (2006).
Schmidt (2004) observa que o regulamento de 1837 do Colégio
Pedro II, pode ser considerado o marco inicial da História como
disciplina escolar no Brasil. No entanto é após a Proclamação da
República em 1889, no contexto de construção do Estado Nacional,
que surge uma literatura didática especifica. Dentre esta literatura, se
destaca a obra de Jonathas Serrano que parte fundamentalmente da
perspectiva metodológica de Dewey, e também dos debates da Escola
Nova, entendendo que se deve partir da experiência da criança e
combater o ensino tradicional que primava pela memorização.
Com isso, percebe-se a tentativa de inserção de uma nova forma
de ensinar História, ou seja, uma perspectiva renovada, conforme
Schmidt (2004; 2005; 2008). Ainda sob o ponto de vista desta autora
(2004), para Serrano “a História como uma ciência tem como objeto
o estudo da origem e do desenvolvimento das sociedades humanas,
a partir dos seus fatos mais importantes, que devem ser explicados de
forma encadeada, em suas causas e consequências” (SCHMIDT, 2004,
p. 198).
Ainda, conforme Schmdit (2004), na obra Methodologia da História
na aula primária, Serrano propõe sete (7) métodos para o ensino da
História: etnográfico; sincrônico; cronológico; regressivo; anedótico
ou biográfico; continuado; e concêntrico. Além dos métodos, Serrano
discute neste manual os recursos técnicos possíveis para o ensino

50
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

da História: processos visuais, questionários metódicos, preleções,


leituras comentadas, saber contar, datas importantes, e exercícios
escritos e orais. Em 1935, Serrano publicou Como se ensina História,
uma crítica a Reforma Francisco Campos de 1931. Schmidt (2004)
conclui que Jonathas Serrano é um homem de seu tempo, responsável
pela “pedagogização do saber histórico” (SCHMIDT, 2004, p. 208).
Freitas (2006), em sua tese A pedagogia da história de Jonathas
Serrano para o ensino secundário brasileiro (1913/1945), além da análise
de conteúdo dos manuais de Serrano, trabalha também a biografia e a
trajetória profissional deste intelectual. Assim, aponta que a pedagogia
da história de Serrano foi configurada na prática, enquanto professor,
no catolicismo e nas assessorias à implantação de políticas públicas.
Essa pedagogia tem vários aspectos destacados por Freitas (2006):
1) influência da psicologia do interesse de Claparède; 2) Importância
da memorização e raciocínio; 3) Concepção de ensino enquanto
transferência; 4) História enquanto “ciências das causas”; 5) Crítica
imparcial e objetiva (FREITAS, 2006, p. 262). Em relação ao método de
ensino, destaca-se o anedótico-biográfico e o concêntrico. Assim, pode-
se concluir que a pedagogia da história de Serrano era escolanovista e
católica, segundo Freitas (2006, p. 263).
O manual de Murilo Mendes, A História no curso secundário,
é objeto dos trabalhos de Schmidt (2008), Freitas (2004) e Urban
(2009). Freitas (2004) investiga a pedagogia da História de Murilo
Mendes apresentando a importância do pensamento de Dewey
em sua composição. Mendes critica o método mnemônico, ou de
memorização no ensino de História, apresentando-o como responsável
pela insatisfação dos alunos para com a disciplina.
Contra essa perspectiva tradicional de ensino de História, Mendes
propõe uma “nova pedagogia” centrada no educando. Para isso,
estabelece a Pedagogia como ciência orientadora do processo. Sobre
isso,

fazer entrar a pedagogia implicava transferir o poder de elaboração dos programas para
os pedagogos ou, em instância futura, substituir a geração de professores autodidatas
pela geração de formados nas faculdades de filosofia - instruídos em ciência da história
e em ciência(s) da educação (FREITAS, 2004. p. 173).

Schmidt (2008) aponta que Murilo Mendes defende “a necessidade


da aprendizagem a partir do presente” (SCHMIDT, 2008, p. 10),
decorrente da influência da psicologia da educação na concepção de
aprendizagem deste intelectual. Urban (2009, p. 35) complementa a

51
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

análise pontuando a preocupação com a renovação metodológica na


obra de Mendes.
O manual de Amélia Americano Franco Domingues de Castro
intitulado Princípios do método no ensino de História (1952) é objeto
das investigações de Schmidt (2008) e Urban (2009). Schmidt (2008)
aponta que Castro, assim como Serrano e Mendes, parte das ideias
propostas por Dewey e pontua a importância do aluno enquanto
centro do processo de ensino e aprendizagem. Em relação à concepção
de aprendizagem, Schmidt (2008) afirma que “a psicologia do
desenvolvimento fundamenta a concepção de aprendizagem dessa
autora” (SCHMIDT, 2008, p. 11).
Em relação ao método de ensino, Urban (2009) mostra a
importância da Pedagogia na obra de Castro. A autora entende
o método pedagógico, enquanto o estudo de diferentes técnicas
didáticas específicas, que podem ser aplicadas em diferentes situações
de ensino.
Devemos notar que desde meados da década de 1940 o Ministério
da Educação e Cultura, demonstrando interesse e preocupação com
a formação dos professores, criou dois órgãos responsáveis por
pensar essa formação. Em 1944 criou o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos - INEP e em 1953 a Campanha de Aperfeiçoamento e
Difusão do Ensino Secundário - CADES. Sobre a CADES, “entre as ações
principais desses órgãos estava a publicação de periódicos e manuais
destinados à formação complementar dos professores brasileiros”
(SCHMIDT, 2006, p. 717). Das obras publicadas pela CADES destaca-
se o manual Apostila de Didática Especial de História de 1959.
Tal apostila é objeto das investigações tanto de Schmidt (2006,
2008), quanto de Urban (2009). Segundo Urban (2009), as apostilas
demonstram a preocupação com o ensinar e aprender História
“referenciadas em estratégias decorrentes, tanto da Psicologia como
da Didática Geral” (URBAN, 2009. p. 36).
Schmidt (2008) afirma ainda que “a visão predominante do grupo
da CADES era a de que aprender História seria estudar o passado de
maneira mais científica possível, e não buscar uma fonte de moral ou
exemplos e fatos dignificantes para servir ao presente” (p. 12).
O manual Curso de Didática de História, de João Alfredo Libaneo
Guedes, foi analisado por Schmidt (2008) e Urban (2009). Esta obra,
“entre outros aspectos, apontou para uma preocupação com uma
teoria geral de Didática de História, os alvos do ensino, os fundamentos
psicológicos do ensino de História, o plano de aula, as técnicas de
ensino e a verificação da aprendizagem de História” (URBAN 2009.

52
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

p.37). Dessa forma, Guedes toma a psicologia como ponto de referência


para a aprendizagem.
Também produzido na década de 1960, o manual O ensino de
História no Primário e no Ginásio (1969), de Miriam Moreira Leite é
objeto das investigações de Schmidt (2008) e Urban (2009). Leite
propõe a aprendizagem a partir de conceitos e da relação com o tempo,
influenciada pela psicologia cognitiva, conforme Schmidt (2008) e
Urban (2009)
Na década de 1970, decorrente das propostas da Lei 5692/71, a
História perdeu seu espaço de disciplina escolar para os Estudos Sociais
como atividades ou área de estudo. A formação de professores também
foi afetada pelas novas definições legais, registrando-se a existência de
licenciaturas para formar professores de Estudos Sociais.
No contexto de redemocratização do Brasil após a Ditadura
Militar (1964-1984), as lutas pelo retorno da História enquanto
disciplina específica levaram ao momento de tentativa de renovação
do ensino de História no Brasil. Sobre esse período, Schmidt (2008)
afirma que “a década de 1990 terminou com a proposição dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, referência para trabalhos e
publicações posteriores na área de Didática da História” (SCHMIDT,
2008, p. 18). Dentre estas publicações sobressaem no início dos anos
2000 os manuais: Didática e Prática de Ensino de História (2003) de
Selva Guimarães Fonseca; Ensinar História (2004) de Maria Auxiliadora
Schmidt e Marlene Cainelli; e Ensino de História: fundamentos e métodos
(2004) de Circe Bittencourt.
Analisados por Schmidt (2008) e Rodrigues Junior (2010) estes
manuais podem ser entendidos como “contemporâneos”, tanto pela
proximidade temporal, quanto pela renovação no ensino de História
promovida por eles. Conforme Schmidt (2008a), os manuais citados
propõem,

o aprender História como condição de formação para a cidadania concreta e não abs-
trata, aprender a partir de temas e problemas que incorporem elementos da realidade
social de alunos e professores; a aprendizagem que contribua para que o aluno se
identifique como sujeito da história e da produção do conhecimento histórico; apren-
der desenvolvendo a compreensão histórica da realidade social, tendo como base os
procedimentos históricos, incorporando temas da história local e levando-se em conta
as relações entre a micro e a macro história (SCHMIDT, 2008, p. 18).

Na dissertação de mestrado (RODRIGUES JUNIOR, 2010),


observamos que os manuais analisados demonstram a “pedagogização
do conhecimento histórico”, conforme Schmidt (2004). Isso se deve

53
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

à forte influência dos saberes pedagógicos, ou seja, da Pedagogia e


da Psicologia e ao conceito de transposição didática de Chevallard
(2005). Por outro lado, apontou-se a existência de um diálogo original
entre a Teoria da História e o método de ensino nos três manuais
analisados, constituindo-se, desta forma, uma Didática Específica,
a Didática da História. Isso se deve ao fato de que nesses manuais
analisados, a metodologia de ensino tem como referência o próprio
método histórico, ou seja, as autoras relacionam a Teoria da História
e os saberes pedagógicos na proposição de métodos de ensino da
História.
Schmidt (2012), a partir da análise dos manuais de Didática
da História, construiu uma proposta de periodização do código
disciplinar da História no Brasil, ou seja, da constituição histórica
da disciplina de História no Brasil. Desta forma, a autora destaca a
construção do código disciplinar da História no Brasil (1838-1931),
a consolidação do código disciplinar da História (1931-1971), a crise
do código disciplinar da História (1971-1984) e a reconstrução do
código disciplinar da História (1984-dias atuais). Urban (2009), por
sua vez, destaca o fato de que a existência destes manuais configura a
composição do código disciplinar da Didática da História, enquanto
disciplina responsável pelo ensino da História.
Compartilhando dos conceitos de código disciplinar da História
(SCHMIDT, 2012) e de Didática da História (URBAN, 2009) no Brasil,
na tese de doutorado (RODRIGUES JUNIOR, 2015) foram analisados os
manuais de Didática da História destinados aos professores publicados
no contexto de reconstrução do código disciplinar da História (1984-
dias atuais), mais especificamente a partir de 1997, com a publicação
dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, que configura o
contexto de renovação do ensino de História (AVELAR, 2011).
Encontramos 20 (vinte) obras destinadas aos professores
publicadas entre 1997 e 2013. Como resultado inicial,

observou-se um crescimento acentuado de obras a partir de 2009, com reedição de


obras anteriores ao período, além da diversidade de editoras que publicaram as obras.
Uma explicação possível para essa expansão pode ser encontrada nos programas de
biblioteca para o professor, que estimularam as editoras a produzir materiais para ava-
liação dentro desse programa. Dos títulos inventariados, oito (8) manuais fazem parte
do Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE (RODRIGUES JUNIOR, 2015, p.
64).

54
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Dessa forma, verificamos que o Programa Nacional Biblioteca da


Escola – PNBE representou um elemento de fomento a esse tipo de
produção didática no Brasil.
Analisando o conteúdo e forma desses manuais destinados aos
professores, chegamos a um tipo específico de manual de Didática
da História caracterizado por uma estrutura didática composta por
elementos constituidores da Didática da História: história do ensino
de História, currículo de História, ensino e aprendizagem de História,
avaliação em História e propostas ou sugestões de atividades.
Constatamos ainda na análise das referências e dos elementos de
diálogo com os professores de História, a predominância da psicologia
e das teorias pedagógicas do “aprender a aprender” (DUARTE, 2010)
na direção do “saber-fazer” presentes nas legislações para a formação
de professores do período (CAIMI, 2006; FONSECA; COUTO, 2008).

OS MANUAIS DESTINADOS AOS PROFESSORES: FONTES PARA


A HISTÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA
Tomando o conceito de código disciplinar da História
(FERNÁNDEZ, 1997) entendido como um conjunto de discursos que
constituem as disciplinas escolares verificável por meio dos textos
visíveis (legislações, livros escolares, leis, regulamentos) e dos textos
invisíveis (práticas) e a periodização proposta por Schmidt (2012) para
o código disciplinar da História no Brasil podemos inferir a importância
dos manuais destinados aos professores enquanto fontes para a História
do ensino de História, que permitem acessar as diferentes formas de
ensinar a ensinar nos diferentes contextos históricos.
Chartier (1998), ao analisar a presença do livro e da leitura na
sociedade francesa do Antigo Regime, na perspectiva da História
Cultural, observa que todos os livros instauram ordens – ou pretendem
instaurá-las: “a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual
ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade
que o encomendou ou permitiu a sua publicação” (CHARTIER, 1998,
p. 8). Dessa forma, este autor contribui para orientar dimensões
de análise dos manuais destinados aos professores, visto que, na
perspectiva de Chartier (1998), não se exclui o fato de que entre a
ordem desejada e os resultados da leitura se coloca a presença do leitor
e de sua liberdade, que a “ordem” não consegue anular. Dessa forma,
é possível olhar para os manuais de Didática da História na relação
com as condições de sua produção, mas também na relação com as
finalidades e objetivos que seus autores e editores estabeleceram, sem

55
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

absolutizar o produto das relações entre intencionalidades e processos


de apropriação pelos sujeitos, mas reconhecendo os elementos de
materialidade dos textos (CHARTIER, 2004).
Desta forma, tomando o breve “estado da arte” da questão e
as pesquisas de mestrado (RODRIGUES JUNIOR, 2010) e doutorado
(RODRIGUES JUNIOR, 2015; GARCIA; RODRIGUES JUNIOR, 2016)
podemos inferir que os manuais destinados aos professores permitem
observar diferentes formas de ensinar a ensinar História no Brasil.
No período definido por Schmidt (2012) como de construção do
código disciplinar da História (1838-1931) temos o início da produção
desses manuais (SERRANO, 1917), que demonstra a presença do
pensamento de John Dewey, e dos debates da Escola Nova, no ensino
de História. Nessa direção Serrano propunha que os professores de
História deveriam partir da experiência da criança para romper com o
“ensino tradicional”. Os métodos didáticos e os recursos técnicos são
referenciados pelo autor como elementos dessa renovação.
No contexto de consolidação do código disciplinar (1931-1971)
observamos um aumento considerável na produção desses manuais e
a consolidação do ensinar a ensinar em uma perspectiva “renovada”
pautada nas psicologias da aprendizagem. Diante disso, os métodos de
ensino ganham centralidade e representam “a maravilha da escola e a
delícia do professor” (SCHMIDT, 2005).
A partir de diferentes perspectivas os manuais destinados aos
professores de História produzidos nesse período consolidam a
hegemonia das teorias psicológicas da aprendizagem e a importância
dos métodos de ensino advindos da pedagogia.
Durante o contexto de reconstrução do código disciplinar da
História (1984-dias atuais), observa-se um aprofundamento dessa
hegemonia, porém com certa concentração nas teorias cognitivas de
Piaget e Vygotsky. Ainda é possível notar uma mudança importante
com a introdução do método da História nos debates das metodologias
de ensino. No entanto, o “ensinar a ensinar” é caracterizado pelo
“ensinar a fazer”, na direção da instrumentalização docente.
Em síntese é possível observar, sem absolutizar o seu conteúdo,
que esses manuais destinados aos professores de História pretendem
instaurar ordens (CHARTIER, 1998), que estão relacionadas aos
contextos de produção, e que possibilitam compreendermos as
diferentes formas de ensinar a ensinar História no Brasil. Assim, os
manuais se constituem em fontes importantes para a história do
ensino de História no Brasil, que merecem maior atenção por parte
dos pesquisadores das edições e textos escolares.

56
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se inscreve no campo da história das disciplinas
escolares, entendendo que “a história dos conteúdos é evidentemente
seu componente central” (CHERVEL, 1990, p. 185). Dessa forma,
procuramos identificar o conteúdo da Didática da História presente
nos manuais destinados a professores de História, aqui definidos como
manuais dedicados a “ensinar a ensinar” História.
A compreensão de existência da disciplina de Didática da
História no Brasil é inferida dos trabalhos desenvolvidos por Schmidt
(2008; 2012) e Urban (2009), que explicitam a existência de um código
disciplinar da Didática da História no Brasil. Tal código está relacionado
a existência dos manuais destinados a professores enquanto “textos
visíveis”.
Foi possível observar a existência de um conjunto de estudos
que se dedicam a pensar a história do ensino de História a partir dos
manuais destinados a professores enquanto fontes privilegiadas. Estes
estudos permitem reafirmar a importância dos manuais enquanto
objetos que permitem desvelar formas de ensinar e aprender História
em diferentes contextos.
Nas pesquisas realizadas (RODRIGUES JUNIOR. 2015;
RODRIGUES JUNIOR; GARCIA, 2016) foi possível identificar os
manuais de Didática da História enquanto um tipo específico de
literatura didática dedicada a “ensinar a ensinar” História. Essa
literatura se propôs a instaurar “ordens”, entendidas neste estudo
como diferentes formas de propor o ensino da disciplina de História.
Dessa forma, os manuais se configuram enquanto fonte privilegiada
para compreender os processos de “ensinar a ensinar” História no
Brasil.

REFERÊNCIAS

AVELAR, Alexandre de Sá. Os desafios do ensino de História: problemas, teorias e


métodos. Curitiba: IBPEX, 2011.

BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Um objeto variável e instável: textos, impressos


e livros didáticos. In: M. Abreu (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas:
Mercado de Letras, 2000. p. 529-575.

57
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandez. Ensinar História: fundamentos e métodos. São


Paulo: Cortez, 2004.

BUFREM, Leilah Santiago; GARCIA, Tânia Maria Braga; SCHMIDT, Maria Auxiliadora.
Os manuais destinados a professores como fontes para a História das formas de
ensinar. Revista HISTEDBR, Campinas, n. 22, p. 120 –130, jun. 2006.

CAIMI, Flávia Eloisa. A aprendizagem profissional do professor de História: desafios da


formação inicial. In: Fronteiras, Dourados, MS, v.11, n. 20, p. 27-42, jul./dez.2009.

_______. Contextos discursivos sobre formação de professores e ensino de História. In:


Processos de conceituação da ação docente em contextos de sentido a partir da Licenciatura
em História. Porto Alegre, 2006. 273f. (Tese de Doutorado). Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, p. 76-101.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UNB, 1998.

CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica: del saber sábio al saber enseñado. Buenos
Aires: Aique, 2005.

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de


pesquisa. Teoria e educação, nº 2, 1990, p. 177- 229.

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e Pesquisa, 2004, vol.30, n. 3.

________. O historiador e o livro escolar. In: História da Educação, ASPHE/FAE/UFPEL,


Pelotas (11): 5-24, Abr 2002.

________. O manual escolar: uma falsa evidência histórica. In: História da Educação,
ASPHE/FAE/UFPEL, Pelotas, v. 3, n. 27 p. 9-75, Jan/Abr 2009.

DUARTE, Newton. O debate contemporâneo das teorias pedagógicas. In: DUARTE,


Newton; MARTINS, Lígia Maria (orgs.). Formação de professores: limites contemporâneos
e alternativas necessárias. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, p. 34-50.

FERNÁNDEZ, Raimundo Cuesta. La sociogenesis de uma disciplina escolar: La Historia.


Barcelona: Pomares-corredor, 1997.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de Ensino de História. 4ª edição.


Campinas: Papirus, 2005.

FONSECA, Selva Guimarães; COUTO, Regina Célia do. A formação de professores de


História no Brasil: perspectivas desafiadoras do nosso tempo. In: ZAMBONI, Ernesta;
FONSECA, Selva Guimarães (orgs.). Espaços de formação do professor de História.
Campinas: Papirus, 2008, p. 101-130.

58
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

FREITAS, Itamar. A pedagogia da história de Jonathas Serrano


para o ensino secundário brasileiro (1913/1945). Tese (Doutorado
em História da Educação) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Política,
Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.

_________. A pedagogia da história de Murilo Mendes (São Paulo, 1935). In: Saeculum -
Revista de História [11]; João Pessoa, ago/dez 2004.

_________. História do Brasil para crianças: o livro escolar nos primeiros anos da
República e a iniciativa de Joaquim Maria de Lacerda. In: Cadernos de História da
Educação – n. 6 – jan./dez. 2007. p. 121-132.

GARCIA, Tânia Maria Braga; RODRIGUES JUNIOR, Osvaldo. Manuais de didática da


história: contribuições para entender as suas especificidades. Antíteses, Londrina, v. 9,
p. 275-297, 2016.

GUEREÑA, Jean-Louis; OSSENBACH, Gabriela; POZO, María Del Mar Del. Manuales
escolares em España, Portugal y América Latina (Siglos XIX Y XX). Madrid: Universidad
Nacional de Educación a Distancia, 2005.

MUNAKATA, Kazumi. Livro didático: alguns temas de pesquisa. In: Revista Brasileira de
História da Educação, Campinas-SP, v. 12, n. 3 (30), p. 179-197, set./dez. 2012.

NAGLE, Jorge. A literatura educacional. In: Educação e Sociedade na Primeira República.


São Paulo: Edusp, 2009, p. 285-

RODRIGUES JUNIOR, Osvaldo. Os manuais de Didática da História e a constituição de


uma epistemologia da Didática da História. Curitiba, 2010. 154 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná.

___________________. Os manuais de Didática da História no Brasil (1997-2013): entre


tensões e intenções. Curitiba, 2015. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de
Educação, Universidade Federal do Paraná.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo:


Scipione, 2009.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. História com pedagogia: a contribuição da obra de


Jonathas Serrano na construção do código disciplinar da História no Brasil. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 48, p. 189-219, 2004.

_________. “O método é a maravilha da escola e a delícia do professor”. Os manuais


didáticos e a construção da prática de ensino de História. In: GUEREÑA, Jean-Louis;
OSSENBACH, Gabriela; POZO, María del Mar del. Manuales escolares en España,
Portugal y América Latina (siglos XIX y XX). Madrid: 2005. Universidad Nacional de
Educación a Distancia.

_________. O aprender da História no Brasil: trajetórias e perspectivas. In: OLIVEIRA,


Margarida Maria Dias de; CAINELLI, Marlene Rosa; OLIVEIRA, Almir Félix Batista de.

59
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Ensino de História: múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal: EDFURN, 2008. p.


10-19.

_________. História do ensino de História no Brasil: uma proposta de periodização. In:


Revista História da Educação – RHE, Porto Alegre, v. 16, nº 37, mai/ago. 2012 p. 73-91.

SILVA, Vivian Batista da. Uma história das leituras para professores: análise da produção
e circulação de saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971). Revista
Brasileira de História da Educação, Maringá, n. 6, p. 29-57, 2003.

SILVA, Vivian Batista da. Saberes em viagem nos manuais pedagógicos: construções da
escola em Portugal e no Brasil (1870-1970). Tese (Doutorado em Educação) - Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, 2006.

URBAN, Ana Claudia. Didática da História: percursos de um código disciplinar no Brasil e


na Espanha. Curitiba, 2009. 246 fl. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação,
Universidade Federal do Paraná.

URBAN, Ana Cláudia. Didática da História: percursos de um Código Disciplinar no


Brasil e na Espanha. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Paraná, 2009.

60
O CONCEITO DE CULTURA NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA PARA O ENSINO
MÉDIO–PNLD 2012: UM DIÁLOGO COM AS
TEMÁTICAS AFRICANA E AFROBRASILEIRA

RYLTON MARCUS ALVES SODRÉ1


JAQUELINE AP. MARTINS ZARBATO2

Resumo: Este artigo pretende apresentar a investigação realizada para a


dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Mato Grosso, que tem como objetivo identificar
as rupturas e permanências que se encontram nos livros didáticos de
História selecionados para o público do Ensino Médio, pelo PNLD 2012. O
tema central da pesquisa são os conteúdos relacionados à cultura africana
e afrobrasileira após a implementação da Lei 10.639/2003, assim como
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura africana e Afro-Brasileira.
A perspectiva metodológica adotada na pesquisa será a leitura crítica dos
livros didáticos, bem como das concepções narrativas sobre a cultura
africana e afro-brasileira nas coleções......(cite as coleções). Nesta análise dos
livros didáticos compreende-se o mesmo como um produto pedagógico,
que tem diferentes interpretações, como: mercadoria, objeto do mundo
da edição, distribuição e consumo. as influências de incertezas sociais,
econômicas, políticas e culturais. Assim, para substanciar a pesquisa,
utilizamos os referenciais teóricos acerca da Cultura; da fundamentação
sobre livro didático no Brasil; da história e cultura africana e afro-brasileira.

Palavras-Chave: Livro didático, Africanos, Afro-descendentes.

1  Instituição: SEDUC/MT; PPGHIS/UFMT - e-mail: ryltonsodre@bol.com.br


2  Instituição: UFMT/UFMS - e-mail: jaqueline.zarbato@gmail.com

61
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

1. INTRODUÇÃO
O texto apresentado no Guia de Livros Didáticos, no Programa
Nacional do Livro didático, em 2012, aponta:

abordagens pejorativas, visões preconceituosas e tratamentos estereotipados dos po-


vos afrodescendentes e indígenas já não estão presentes (grifo nosso) também na pro-
dução didática. Na mesma medida, vêm sendo superadas perspectivas simplificadoras,
que apresentam esses grupos sociais na condição de vítimas da história dos brancos
ou, ainda, como entidades genéricas, cujas particularidades de origem, de língua, de
religiosidade, dentre outras, não são reconhecidas (PNLD, 2012, p.21).

É com base nessa observação que nosso estudo se insere, tendo


como preocupação a questão dos povos afrodescendentes. Desta
forma, visamos identificar as mudanças e permanências acerca dos
discursos da cultura africana e afrobrasileira nas páginas dos livros
didáticos de História selecionados para o público do Ensino Médio
pelo PNLD 2012, para o triênio 2012, 2013 e 2014.
No processo de seleção dos livros didáticos, buscamos eleger
duas coleções que foram mais distribuídas e uma coleção que não
teve considerável distribuição na Rede Estadual de Ensino do Estado
de Mato Grosso, conforme registra o SIMAD – Sistema do Material
Didático, cujo acesso se dá pelo Portal do FNDE – Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. Assim, selecionamos a coleção História
Global: Brasil e Geral, do autor Gilberto Cotrim, Editora Saraiva, 2010 e
a coleção História: das cavernas ao terceiro milênio, das autoras Patrícia
Ramos Braick e Myriam Becho Mota, Editora Moderna, 2010 e História:
Geral e Brasil, do autor José Geraldo Vinci de Moraes, Editora Saraiva,
2010.
Após a seleção, levantamos algumas questões sobre as
problemáticas e em seguida realizamos as análies historiográficas,
utilizando a fundamentação teórica de autores como: Anderson
Ribeiro Oliva (2009), Joseph Ki-Zerbo (2010), Mônica Lima (2004),
Nilma Lino Gomes (2011) e outros que contribuem na fundamentação
da pesquisa. Aqui é importante que traga o que cada autor contribui
com a análise do livro didático, que perspectiva eles apresentam, pode
ser um parágrafo para cada autor listado.
Lembramos que pela importância atribuída e o caráter de
“verdade” que é conferido ao livro didático, ferramenta pedagógica
mais utilizada pelos professores, se constituindo muitas vezes
enquanto uma única fonte de leitura aos alunos nos espaços escolares,
Kabenguele Munanga (2005, p. 23) frisa que “pode ser um veículo

62
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

de expansão de estereótipos não percebidos pelo professor”, servindo


ainda para transmitir uma ideologia, princípios, valores, que remete ao
grupo social de que origina-se, participando assim de maneira direta
no processo de culturalização, ou seja, tornando mais profundo uma
determinada cultura através dos meios de ensino e de informação que
são próprios a ela.

1.1. A CULTURA AFRICANA E AFROBRASILEIRA NOS LIVROS


DIDÁTICOS - PNLD 2012
Analisando a coleção História Global: Brasil e Geral, do autor
Gilberto Cotrim3, Editora Saraiva, 2010, aprovada pelo PNLD 2012 ao
público do Ensino Médio4.
No Capítulo 3 - Economia colonial: o açúcar,nas páginas 31 a 38
do Volume 2, o autor dedicou o espaço para trabalhar o Cotidiano
dos escravos nos engenhos, (p. 37), buscando trechos do livro Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, do historiador Stuart
Schwartz, concluindo a discussão com questões que permite as
interpretações dos alunos.
Entretanto, percebemos nessa parte do livro, a aproximação do
texto apresentado com a perspectiva da historiografia tradicional,
isso porque ao se referir aos castigos, ao vestuário e à alimentação dos
escravos, destaca que:

os escravos brasileiros eram mal-alimentados, mal-abrigados e malvestidos. [...] A


vestimenta fornecida aos cativos era exígua. [...] Em geral dava-se aos escravos o
“pano da terra”, um tecido grosseiro de fio cru. [...] Os escravos comiam tudo o que
lhes caísse nas mãos. Além da sua cota de comida, os escravos adulavam, mendiga-
vam e roubavam por mais alimento (SCHWARTZ. In: COTRIM, 2010, p.37).

Com base no trecho acima, consideramos, nas passagens em que


são atribuídos aos escravos termos como “aduladores”, “mendigos”
e “ladrões”, a necessidade de desnaturalizar tal cultura histórica
com viés tradicional. A manutenção desse discurso, “de referências
pejorativas, constrangedoras, de representação cultural, reforça o que
a versão oficial tanto pregava; ou seja, a descrição que faz dos negros

3  Licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Educação, Arte e
História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Professor de História na rede particular de
ensino. Advogado.
4  Conforme registra o SIMAD – Sistema do Material Didático, cujo acesso se dá pelo Portal do
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, foi acoleção com maior distribuição
na Rede Estadual de Ensino do Estado de Mato Grosso.

63
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

é a pior possível, quase sempre desqualificadora (SEYFERTH, 1989,


págs.13-14).
Ainda no Livro de Gilberto Cotrin, tem-se no Capítulo 4 -
Escravidão e resistência, impresso nas páginas 39 a 51, o autor foca suas
discussões no tráfico negreiro e na resistência à escravidão, trazendo a
contribuição do historiador africano Joseph Ki-Zerbo (2006, p.24-25),
o qual trata do impacto do tráfico negreiro na África.
Esse trecho do livro, corrobora com as postulações de Anderson
Ribeiro Oliva, que sugere a participação dos especialistas africanos,
como “Joseph Ki-Zerbo, Cheik Anta Diop, Elikia M’Bokolo, Théophile
Obenga, entre outros” (OLIVA, 2009, p. 165) acerca da abordagem
da História da África nos livros didáticos. Essa parceria é inevitável e
obrigatoriamente necessária, tendo em vista que práticas isoladas na
abordagem dos temas em questão foram e vem sendo realizadas, de
forma fragilizada, há alguns anos5. Tal feito não apresenta colaboração
no processo de amenizar a discriminação racial; as representações
didáticas, ao contrário, estabilizam as produções “estereotipadas” dos
autores de décadas anteriores.
No Volume 3, dirigimos a observação ao texto Revolta da
Chibata (1910), e constatamos que a coleção deu certa atenção ao
acontecimento, conforme as duas páginas dedicadas. À discussão
foi acrescentado o texto Reivindicações dos marinheiros, em que
traz as observações, na perspectivade Edmar Morel (1979), sobre o
documento com mensagem dos marinheiros rebelados ao presidente
da República, com teor de enfrentamento, de resistência e exigência,
conforme trecho do documento: “Tendo V. Excia. o prazo de 12 horas
para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria
aniquilada” (MOREL, 1979. p.84-85. In: COTRIM, 2010, p.101).
O registro de formas de resistência utilizadas pelos africanos
escravizados vem ao encontro às considerações de Nilma Lino
Gomes (2011, p. 139-140), que destaca a necessidade de apresentá-
los enquanto protagonistas nos livros didáticos, desnaturalizando a
versão oficial, que quase sempre os retrata como sujeitos passivos,
dóceis, imobilizados. Reforçamos que “colocar os africanos e seus
descendentes sem reação à escravidão e ainda, negar sua capacidade
intelectual em criar estratégias de sobreviver a escravidão” (SANTOS,
5  Anderson Oliva afirma que até meados dos anos 1990, a História da África nos currículos e nos
livros escolares brasileiros, era considerada insignificante, pois tal presença carregava análises
secundárias, de pouco valor (OLIVA, 2009, p. 144). Enfoca ainda que a partir de 1996, esse
quadro transformou-se, devida à Lei de Diretrizes e Bases – LDB n. 9.394/96 e pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN. Presenciava-se, a partir de 1999, pelo menos 1 capítulo sobre a
história africana nos livros didáticos para as turmas de “5ª e 8ª série do Ensino Fundamental”.

64
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

2009. In: VIEIRA, 2009, p.10), é reafirmar a crença na “superioridade


branca”, defendida pelas doutrinas raciais6 do século XIX.
Outra coleção que analisamos, aprovada pelo PNLD 2012
ao público do Ensino Médio, é a História: das cavernas ao terceiro
milênio, das autoras Patrícia Ramos Braick7 e Myriam Becho Mota8,
divulgada pela Editora Moderna, 2010. Segundo o SIMAD – Sistema do
Material Didático, disponível no Portal do FNDE – Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação , é a segunda coleção mais distribuída
na Rede Estadual de Ensino do Estado de Mato Grosso.
Encontramos, no Capítulo 4 – Mesopotâmia, Egito e o Reino de
Cuxe, dentro do Volume 1, um texto complementar sobre A história
da África e sua importância para o Brasil, destacando que “sendo
antiga e ampla a bibliografia histórica sobre a África, a história da
África é, contudo, uma disciplina nova [...] porque só há algumas
décadas se incorporou ao currículo das universidades” (SILVA, 2003,
p. 229-240. In: BRAICK e MOTA, 2010, p.74). Acresceu-se ao texto
em questão, atividades com teor de atiçar reflexão e atitude crítica
aos alunos, buscando pensar como se caracterizou e/ou caracteriza
as relações entre o Brasil e a África e as influências dosafricanos na
cultura brasileira.
Sobre a História da África, M. Amadou Mahtar M’Bow aponta que

durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do mundo


a real história da África. As sociedades africanas passavam por sociedades que não
podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados desde as primeiras dé-
cadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius, Maurice Delafosse e Arturo La-
briola, um grande número de especialistas não africanos, ligados a certos postulados,
sustentavam que essas sociedades não podiam ser objeto de um estudo científico, no-
tadamente por falta de fontes e documentos escritos. [...] havia uma recusa a considerar
o povo africano como o criador de culturas originais que floresceram e se perpetuaram,
através dos séculos, por vias que lhes são próprias (In: Joseph Ki-Zerbo, 2010, p. 21).

Consideramos, com base na proposta analisada, ser indício de


ruptura com as práticas da historiografia tradicional; ou seja, a inserção

6 Para melhor compreensão sobre as doutrinas raciais, recomendamos a leitura do texto As


Ciências Sociais no Brasil e a Questão Racial, de Giralda Seyferth (In: Cativeiro e Liberdade. Rio de
Janeiro, IFCH/UERJ, 1989).
7  Mestre em História (área de concentração: História das Sociedades Ibéricas e Americanas) pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Ensino Médio em Belo
Horizonte, MG.
8 Licenciada em História pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira, MG. Mestre em
Relações Internacionais pela The Ohio University, EUA. Professora do Ensino Médio e Superior
em Itabira, MG.

65
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

de textos e atividades que buscam o reconhecimento das sociedades


africanas possibilita estudar a história dessas com o mesmo tipo de
abordagem que se aplica à história europeia ou brasileira.
Há ainda, a coleção História: Geral e Brasil, do autor José Geraldo
Vinci de Moraes9, Editora Saraiva, 2010, aprovada pelo PNLD 2012 ao
público do Ensino Médio10. Constatamos que no Volume 1, Capítulo
5, o autor propicia estudos sobre As Primeiras Sociedades Africanas,
focando a diversidade cultural do continente africano, como a
vegetação e hidrografia e famílias lingüísticas da África, através do uso
de Mapas (p. 53).
Há na seção Para Refletir, no trecho de texto do autor Alberto
da Costa e Silva (1996, p.314), um pequeno estudo que envolve as
características culturais do reino de Mali, momento em que os autores
incitam aos educandos a necessidade da pesquisa, o que possibilita
quebrar a noção de unidade africana, conforme a questão sugerida:
“1. Para compreender de maneira adequada o texto, faça uma
pesquisa sobre os ritos animistas e os griots. Anote no caderno o que
você descobriu” (In: MORAES, 2010, p. 63).
Essas atividades continuam, por meio de questões propostas, na
seção Revisão e Aprofundamento:

Algumas sociedades africanas formaram grandes reinos [...]. Outras eram agrupamen-
tos muito pequenos de pessoas que caçavam e coletavam o que a natureza oferecia
ou plantavam o suficiente para o sustento da família e do grupo. Mas todas, das mais
simples às mais complexas, se organizavam a partir da fidelidade ao chefe e das re-
lações de parentesco. (Marina de Mello e Souza. África e Brasil africano. São Paulo:
Ática, 2006, p. 31).
• Compare as diferentes formas de organização política das sociedades africanas.
• Explique a semelhança nas formas de organização política das sociedades, apon-
tada pela autora do texto, comentando o papel do mansa, no Mali, do obá, em Ifé,
e do manicongo, no Congo. (MORAES, 2010, p. 67).

É preciso destacar que a África e os conteúdos trabalhados nas aulas


de história, em escolas brasileiras e portuguesas, “ainda permanece
marcada por tensões inquietantes, prolongados silêncios e um descaso
que, apenas aos poucos, está sendo superado” (OLIVA, in: PANTOJA,
2006, p. 139). O autor indica com tal observação que se deve tomar

9 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor de Metodologia da


História na Universidade de São Paulo..
10  Conforme registra o SIMAD – Sistema do Material Didático, cujo acesso se dá pelo Portal do
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, a coleção teve pouca distribuição na
Rede Estadual de Ensino do Estado de Mato Grosso.

66
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

cuidado aos equívocos da abordagem do tráfico e da escravidão, além


das imprecisões e incorreções aí localizadas.
O estudo das sociedades africanas ainda é relatado como espaço
marcado pelos estereótipos e vitimizações, embora se postule valorizar
a África como um universo histórico-cultural diverso e complexo
(LIMA, 2004, p. 85). Afim de alcançar esse objetivo, ou seja,

combater uma tradição multissecular de leituras preconceituosas (...) marcadamente


eurocêntricas, seria preciso destacar determinados aspectos da trajetória histórica afri-
cana, com ênfase em alguns pontos fundamentais, como: o estudo das singularidades
do continente (...) e de seus vários recortes histórico-temático-temporais (WEDDER-
BURN, in: SECAD/MEC, 2005, p. 134-142).

De acordo com Anderson Ribeiro Oliva, percebe-se ainda que


persistem muitos espaços a serem preenchidos acerca dos temas
africanos nas salas de aula, e que tais propostas acerca das abordagens
sobre os temas em questão, apesar de abundantes, devem ser analisados
e entendidos com base na opinião de alguns de nossos africanistas
sobre o ensino da história africana. Propõe assim, que os autores dos
livros didáticos precisam buscar auxílio na representação e abordagem
dos temas africanos junto aos especialistas da história africana (OLIVA,
2009, p. 143). Tendo em vista que práticas isoladas na abordagem dos
temas em questão foram e vem sendo realizadas, de forma fragilizada,
há alguns anos. Tal feito não apresenta a colaboração no processo
de amenizar a discriminação racial; as representações didáticas, ao
contrário, estabilizam as produções “estereotipadas” dos autores de
décadas anteriores.
Analisando ainda a coleção, no Capítulo 15 - A Expansão Marítima
Europeia, identificamos a reprodução da historiografia tradicional,
principalmente no texto que trata do comércio de escravos e no
mapa que traça as rotas e centros escravistas dos séculos XV e XVI
(p. 177), momento em que o autor reforça, com a insistência de
termos repetitivos, as (re)produções já construídas acerca da temática
escravidão:
[
A escravidão (grifo nosso) não era um tipo de relação social desconhecida na África.
[...] os escravos (grifo nosso) faziam todo tipo de trabalho [...]. Havia ainda o uso
sexual das mulheres escravas (grifo nosso). [...]. A escravidão (grifo nosso) era mais
comum nos centros urbanos [...]. Havia o comércio de escravos (grifo nosso) entre os
reinos do Sudão e os povos comerciantes [...]. Alguns escravos(grifo nosso) chegaram
ao Extremo Oriente. [...] quando os europeus alcançaram a costa atlântica africana, já
havia na região um ativo comércio de escravos (grifo nosso), que passou a interessar
aos comerciantes portugueses. No início do século XVI, o comércio do ouro africano já

67
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

era rarefeito, e o escravo (grifo nosso) tornou-se a mercadoria mais valiosa e lucrativa.
[...]. Até o século XVIII, as regiões do golfo de Benin (ou a costa da Mina) e de Angola
(que ficou conhecida como costa dos Escravos (grifo nosso)) foram as que mais for-
neceram escravos (grifo nosso) para o continente americano, aquecendo o comércio
atlântico. No século XIX, a costa oriental tornou-se a maior exportadora de escravos
(grifo nosso). [...] Esse comércio significava acúmulo de poder e luxo para os reinos
africanos, que tratavam de conquistar mais escravos (grifo nosso) por meio de guerras
[...]. No século XVII, foram organizadas, no interior do continente, feiras nas quais os
comerciantes [...] negociavam escravos (grifo nosso). Mas era na nas cidades da costa
que ocorria o comércio ativo, e onde os escravos (grifo nosso) eram embarcados prin-
cipalmente para a América. A intensa atividade comercial e os altos lucros fizeram da
escravidão (grifo nosso) e do tráfico dos escravos (grifo nosso) uma lucrativa atividade
econômica até o século XIX. [...] Em diversos locais, houve resistência à escravidão
(grifo nosso), gerando movimentos e conflitos, o que não evitou a escravização (grifo
nosso) e a exportação de cerca de 10 milhões de africanos (MORAES, 2010, p.177-
178).

É possível identificar no texto acima que os povos africanos


ainda são representados como vitimizados, mercadorias, coisas.
Significa que a representatividade do povo afrodescendentes atrela-se
a ‘escravidão’. Os elementos da narrativa exposta no livro perpetua as
concepções em torno de um imaginário que fundamenta a vinda de
grupos africanos, numa relação mercadológica, num acordo comercial
e econômico. Assim, pensamos que a narrativa de um livro publicado
em...(data) deveria focalizar pela positividade em torno dos sujeitos
afros e suas contribuições culturais, ou como destaca Oliveira:

seria importante que as narrativas presentes nos livros didáticos lidassem não apenas
com o negro escravo, o negro que vive em condições precárias de sobrevivência, mas
também a riqueza e problemas apresentados por sua cultura, por sua atuação social,
ou seja, com a multiplicidade de posições que ocupa ao longo da história (OLIVEIRA,
M. A. de, 2000, p. 170. In: JESUS, Nauk Maria de, 2007, pgs. 46-47).

Isso vem ao encontro às observações de Renilson Rosa Ribeiro


que, a respeito da presença negra nos livros didáticos de história, à
guisa de ilustração, declara que “em uma pesquisa realizada no ano
de 2000, com uma amostragem de livros didáticos de História do
Brasil, produzidos nos anos 80 e 90, identificamos que os negros
continuavam a aparecer sem nenhum tipo de autonomia” (RIBEIRO,
in: JESUS, 2007, p.47), e que

embora a figura de Zumbi tenha ganhado destaque nas discussões (...) as imagens ca-
nonizadas da Princesa Isabel e Joaquim Nabuco continuam a ocupar especial destaque
nos livros didáticos. A história dos quilombos no Brasil permanece numa página ainda

68
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

a ser escrita nos livros didáticos. Mesmo a história do quilombo de Palmares carece de
maiores informações e explicações.

Nesse sentido, vale considerar a observação de Christian Laville,


ao postular que a universidade também deixe de ignorar o tema, caso
contrário, “essa crença de que através do ensino de História seria possível
regular consciências e comportamentos, aglutinar descontentamentos
e decepções, catalisar movimentos de transformação (...) é tão somente
uma vã ilusão” (LAVILLE, 1999, p. 127).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi exposto, na coleção História Global: Brasil e
Geral, do autor Gilberto Cotrim, percebemos que há momentos em
que orienta os alunos a pensar historicamente, a reconhecerem as
diferentes experiências históricas das sociedades e, com base nesse
entendimento, a compreenderem as situações reais da cultura africana
e afrobrasileira. Por outro lado, constatamos também a manutenção
da historiografia tradicional, através de termos preconceituosos.
Na coleção História: das cavernas ao terceiro milênio, das autoras
Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota, a História e Cultura da
África e dos afrodescendentes são apresentadas através de atividades
com teor de atiçar reflexão e atitude crítica aos alunos, buscando
pensar como se caracterizou e/ou caracteriza as relações entre o Brasil
e a África e as influências dos africanos na cultura brasileira.
Por fim, constatamos na coleção História: Geral e Brasil, do autor
José Geraldo Vinci de Moraes que a História e a cultura da África,
bem como dos afrodescendentes, são direcionadas a apresentar a
diversidade cultural e as formas de resistência; Entretanto, algumas
passagens ainda retratam os povos africanos como vitimizados,
mercadorias, coisas.

REFERÊNCIAS
BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao terceiro milênio. Patrícia Ramos
Braick, Myriam Becho Mota. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2010 – MP.

COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral: volume 2 - 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2010 (MP).

69
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro no Brasil: ausências, emergências e a


produção dos saberes. Política & Sociedade. Volume 10 – nº 18 – abril de 2011.

GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2012: História: - Brasília: Ministério da Educação,


Secretaria de Educação Básica, 2011.

JESUS, N. M. de; CEREZER, O. M.; RIBEIRO, R. R. (orgs.). Ensino de História: trajetórias


em movimento. Cáceres: Ed. UNEMAT, 2007.

KI-ZERBO, Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África /


editado por Joseph KiZerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010.

LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de


História. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 19, n. 38, p. 125-138, 1999.

LIMA, Mônica. A África na Sala de Aula. Nossa História. Rio de Janeiro, ano 1, n° 4,
fevereiro de 2004.

MORAES, Geraldo Vinci de. História: Brasil e Geral: ensino médio. Volume 1 - 1. ed.
São Paulo: Saraiva, 2010.

MÜLLER, Tânia Mara Pedroso. Cadernos Penesb: discussões sobre o negro na


contemporaneidade e suas demandas. In: Cadernos Penesb, 2008/2010, p.22.

MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada.


Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.

OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas brasileiras. Entre o prescrito e
o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História.
São Paulo, vol. 28, n. 2, p. 143-172, 2009.

PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José (orgs.). Rompendo Silêncios: História da África
nos currículos da educação básica. Brasília: DP Comunicações, 2004.

Portal do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

SECAD/MEC (Brasil). Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal


10.639/0. Brasília: MEC-SECAD, 2005.

SEYFERTH, Giralda. As Ciências Sociais no Brasil e a Questão Racial. In: Cativeiro e


Liberdade. Rio de Janeiro, IFCH/UERJ, 1989.

VIEIRA, Paulo Alberto dos Santos. Africanidades e Educação em Mato Grosso. /Paulo
Alberto dos Santos Vieira; Ângela Maria dos Santos; Maristela Abadia Guimarães;
Jacqueline da Silva Costa (orgs.). Cuiabá: KCM Editora, 2009.

70
UM OLHAR SOBRE A ATENÇÃO DADA PELOS
GÊNEROS AO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA
NA SALA DE AULA

ANDRÉ DO NASCIMENTO VERÍSSIMO1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo uma análise prática, um


reportar de características comuns, presentes no ensino fundamental ao
médio, na conduta dos Gêneros com relação ao Livro Didático de História.
Efetuando recortes, no universo do comportamento escolar, será aberta
uma discussão sobre a relação entre ‘meninos’ e ‘meninas’ e o seu livro,
principalmente em sala de aula. As diferenças entre os gêneros com
relação ao ambiente da Escola, e o papel desta instituição em respeitar
essas discrepâncias naturais ao mesmo tempo em que deve ministrar um
tratamento uníssono. O ‘ensino’ em casa e a responsabilidade na formação
ou deformação das identidades e como ‘desaba’ em aula, no ‘perguntar’, no
‘cuidar’, no ‘aproveitar’ o livro. E qual a valorização que tais ‘responsáveis’
dão ao Livro Didático de História, visto que ele é exigido, mas fornecido
sem nenhum custo.

Palavras-Chave: gênero, identidade, livro didático, sala de aula.

INTRODUÇÃO
Tomando por base o trabalho em sala de aula, durante duas décadas,
é notória a diferença perpetrada pelos aprendentes com relação ao seu
material escolar dentro da sala de aula. Principalmente com relação

1  Possui graduação em História, Licenciatura Plena, pela Universidade Federal do Rio Grande
(1991). Especialista em Ciências Sociais na Educação, pela Universidade da Região da Campanha
– URCAMP (2003). Mestrado Profissional em História, pela Universidade Federal do Rio Grande
– FURG. Professor de História, atuando na rede pública do Estado do Rio Grande do Sul, na
Escola Estadual de Ensino Médio Marechal Mascarenhas de Moraes, em Rio Grande (durante um
tempo que o tempo deixa de ser contado); historiaverissimo@yahoo.com.br.

71
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

ao Livro Didático de História (LDH2). Sendo que ‘as meninas’, em sua


grande maioria, apresentam um cuidado diferenciado para com seus
livros. Estão apenas mantendo o papel estabelecido por uma sociedade
machista, ao zelar pelos seus pertences e, futuramente, pelo patrimônio
de um núcleo familiar que deverá formar? Uma característica própria
do gênero, de sua natureza observadora? É a essência feminina, sua
expressiva capacidade para o estudo, e consequentemente um maior
envolvimento com o ‘arcabouço escolar móvel’, seu livro (não o
celular).
Livros encapados, antes de qualquer lembrança para fazê-lo,
questionamentos sobre quando trazer o livro e desejo por usar o livro.
São práticas presentes na mentalidade feminina em sala de aula. É
inegável o amadurecimento mais acelerado das meninas frente aos
meninos. Um fator determinante para sua postura com o material
didático.
Livros rasgados e riscados, por mais que seja exigido para não
fazê-lo, ‘esquecimento’ dos ‘ditos’ e a falta de vontade em usar o
recurso. É o comum no juízo masculino. A infantilidade perene é o
elemento causador? Um desleixo natural do homem frente aquilo
que não lhe custou nenhum esforço para tê-lo? Deve ficar claro que
estamos ‘determinando’ características diferenciadas, aos gêneros,
pelo empirismo, através de um tempo relativamente longo de sala de
aula.
A vida social de grupos humanos (fazendo, ou não, uso de algum
livro, didático, ou não) é o mundo das Ciências Sociais. O objeto de
estudo aqui, “Gênero versus Livro Didático de História”, será analisado
em uma aglomeração humana especificamente chamada ‘turma’,
vivendo, em determinado período de tempo, em um ambiente
conhecido como ‘sala de aula’. É uma “História Nova”, uma História
que permite outros olhares sobre o ‘homem’ e suas ações em todos
os tipos de sociedades. Júlia Silveira Matos diz: “(...) consideramos a
“Nova História”, enquanto corrente teórica, diretamente ligada ao
movimento dos Annales surgido em 1929, que, ao colocar o homem
como centro das análises históricas, deu à História um caráter
extremamente sociológico. Dessa forma, podemos afirmar que a
“Nova História” é a História sob a influência substancial das ciências
sociais (…)” (MATOS, 2010, p. 117).
Relatar a observação de vinte anos, cercado pelas paredes de
uma classe, e a conduta discente sobre o livro durante ‘os despejar
2  Em alguns momentos, para evitar a eventual repetição no uso da expressão ‘Livro Didático de
História’ ou ‘Livros Didáticos de História’ será utilizada a sigla ‘LDH’.

72
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

de conteúdos’, surge da necessidade de ir além, de colocar para fora


um conhecimento produzido pela experiência. Abraçamos a crítica de
Pedro Demo em Pesquisa participante: saber pensar e intervir junto:

A atração da pesquisa empírica está principalmente na característica de permitir com


facilidade o tratamento da realidade, ainda que em doses pequenas e por vezes força-
das. Para quem vive na sala de aula, perdido em extrema indigestão teórica, cercado
por intermináveis questiúnculas metodológicas, especulando sem parar, a empiria
significa oportunidade para testar até que ponto o que se pensa bate com a realidade,
embora não seja o caso supor caminho direto. Certamente, no contato com a realidade
reconstruída descobrem-se coisas que a teoria sequer havia suspeitado. (...) O contato
com a realidade concreta facilmente cura o vedetismo teórico, a crítica desenfreada, a
exasperação ideológica. (...) Em termos de planejamento, uma coisa é imaginar o dese-
jável, outra é propor o viável. Quando se mexe com a realidade concreta, cai a máscara
da empáfia teórica. Por vezes, uma simples pessoa do povo opera melhor soluções
viáveis, do que incríveis teóricos (DEMO, 2008, p.39-40).

Trabalhos anteriores abordando gênero expõem o que está


nos livros. De que forma os Gêneros são mostradas dentro dos
escritos escolares recebidos prontos: “A Imagem da Mulher nos
Livros Didáticos”; “A Representação da Mulher nos Livros Didáticos
de História”; “Questões de Gênero nos Livros Didáticos”; “O Gênero
no Livro Didático de História”; “Presença e Ausência dos Jovens nos
Livros Didáticos”; “Mulheres Negras nos Livros Didáticos”. Mas e ‘fora
do Livro’, ‘estudando o Livro’, ‘manuseando o Livro’? Como afirma
Antonia Terra de Calazans Fernandes no artigo Livros didáticos em
dimensões materiais e simbólicas:

Entre as produções existentes, a maioria tem como base a análise do próprio livro e
de seus conteúdos. Os estudos analisam, fundamentalmente, seus discursos textuais
e iconográficos, e de que forma difundem conhecimentos científicos atualizados ou
ultrapassados (FERNANDES, 2004, p. 533).

É claro que as posturas não são iguais entre o ensino fundamental


e o médio. O dito amadurecimento, ou acúmulo de experiências,
infelizmente, não fornece apenas consequências positivas. Aquilo
que passa a ser ofertado pelo mundo exterior, e apreendido pelos
diferentes gêneros, não passa muitas vezes por um processo de seleção
ou a seleção não permite uma evolução na mentalidade (não raro
quando ocorre uma involução) e a afirmação da identidade.

73
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

De acordo com Paolo Cugini3 no artigo Identidade, Afetividade e


as Mudanças Relacionais na Modernidade Liquida na Teoria de Zygmunt
Bauman:

Se o problema, neste mundo fluido das rápidas mudanças, é sobreviver, então nin-
guém pode se permitir o luxo de ficar fixo a vida toda no mesmo esquema de valores.
Manter-se fiéis à lógica da continuidade, apegar-se às regras como método para formar
uma identidade forte, não é mais aconselhável para ninguém, pelo menos neste mundo
líquido. Aquilo que está acontecendo em nível social é uma mudança tão abrangente
e tão radical que envolve os dados básicos que nortearam a sociedade por muitos
séculos. São as estruturas “sólidas” que estão se derretendo, aquelas estruturas que,
por muito tempo, forneceram o pano de fundo cultural, institucional e até psicológico
para a formação da identidade pessoal. (CUGINI, 2008, p. 168).

A sociedade, para sobreviver, cria regras, determina. Mas estabelece,


cada vez maiores e mais rápidas, mudanças que, ao mesmo tempo,
‘permitem uma liberdade sem foco’, tornam o indivíduo perdido, sem
um rumo, sem saber para onde ir, por que ir e até onde pode ir. A Escola,
enquanto instituição norteadora, deve acompanhar tais alterações e
fazer com que o aprendente saiba selecionar aquilo que é fundamental
para a sua evolução na essência. O reflexo da falta de normas que não
ficam mais claras no núcleo familiar das crianças, sendo abarcado ‘a
posteriori’ pelas escolas cria um conflito em suas mentes refletido nas
suas intensões, no que manuseia e como manuseia. Determinando
para as suas ‘ferramentas’, do dia a dia, níveis de utilidade e inutilidade
em total contradição com a função básica desses instrumentos: nesse
mundo ‘líquido’ torna-se natural um questionamento, por parte dos
Gêneros, sobre a ‘solidez’, a utilidade do Livro Didático de História.

1. DA ‘CASA’ PARA A ESCOLA


Seria ‘normal’ começar tradicionalmente exclamando o quanto
é impressionante o péssimo comportamento de uma maioria de
alunos. Uma maioria assustadoramente cada vez mais comum de
elementos sendo deformados em seu caráter; distorcidos pela falta de
comprometimento de quem os pariu, ou foi determinado como seu
responsável. Mas não queremos enxergar que ainda existe muito mais
para impressionar.
Infelizmente, a cada ano, situações das mais inusitadas acontecem;
quando, então, convocamos os ‘tutores’ para uma conversa, um relato

3  Doutor em Filosofia (Bologna – Itália), pároco de Tapiramutá - BA e professor de Filosofia da


Religião na FAFS (Faculdade Arquidiocesana de Feira Santana – BA); pacugini@yahoo.com.br

74
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

sobre algum comportamento completamente inadequado por parte de


algum ‘tutelado’. Não raros os casos em que a constância do inusitado
é tão grande que, para não atrapalhar o bom andamento da aula, são
elaborados e confeccionados bilhetes para agilizar o entendimento do
responsável, do quão grave é a questão que necessita, com a máxima
urgência, a sua prestimosa presença na instituição de ensino. Entre
vários modelos (elaborados pelos professores da turma em questão,
junto com o corpo diretivo, supervisão e orientação escolar), foram
selecionados alguns itens que mais preocupam: ‘apresentar total falta
de respeito com o professor, com gestos ou palavras; apresentar total
falta de respeito com os colegas de escola, com gestos ou palavras;
arremessar qualquer objeto que possa pôr em risco a integridade física
de qualquer pessoa presente no ambiente escolar; apresentar atitude
agressiva e/ou agredindo de fato outro colega’.
Construímos a ilusão da possibilidade de uma mudança. Não
vai haver. Não, enquanto não surgir uma cobrança significativa por
parte ‘dos governos’ para com os ‘ditos responsáveis’. Não basta uma
criança estar em aula, mas saber ‘como deve estar em aula’.
Devemos nos adaptar para uma situação cada vez mais
desconfortante na sala de aula e contar com a sorte. Sorte de ser
agraciado por uma soma aleatória de coincidências que nos presenteie
com indivíduos que consigam ter o mínimo de convívio, respeito e
interesse. Em primeiro lugar para consigo mesmo, pois a imagem que
montam, seja para uma autodefesa ou autoestima é de uma moral
própria, não adaptada à proposta de uma Instituição de Ensino.
Se pararmos para observar uma sala de aula, a normalidade
apresentada é um modo de ser de uma realidade alternativa.
Quando colocamos na balança o que é o correto, os limites
estabelecidos que determinem o respeito para com o próximo, sem que
haja as distorções familiares que aniquilam todo e qualquer conceito
do que possa ser o certo, estamos falando, sim, de uma realidade que
está na fase terminal.
O interessante é que o professor tem a certeza que está contribuindo
na formação de um indivíduo com a consciência do que é correto. Sim
ele sabe. Ele foi acostumado, distorcido, levado a agir de uma forma
ruim, mas a cobrança, que ainda insiste, mostra como ele deveria agir;
porém, tornou-se completamente descartável e irremediavelmente
desconfortante em sua realidade, que passa a ser refletida, ou cuspida,
na sala de aula.
A maioria dos que se apresentam como ‘responsáveis’ pelos
nossos aprendentes desejam apenas uma única coisa: a aprovação do

75
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

‘seu filho (a)’. Está correto. Todos nós desejamos. Contudo, para essa
mesma maioria, não importa como os seus estão aprendendo ou se
estão realmente aprendendo, Mais uma parcela do pensamento de
‘Gabriel Pensador’, ajudando na devida ilustração do contexto:

Manhê! Tirei um dez na prova


Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova
Decorei toda lição
Não errei nenhuma questão
Não aprendi nada de bom
Mas tirei dez (boa filhão!)
Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci
Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi
(CONTINO, ‘Estudo Errado’, 1994)

Parando para observar, lentamente, com todo o cuidado,


constatamos situações lamentáveis. Certos ‘seres humanos’ que
acasalaram, efetuaram uma constante ‘troca de fluidos’ resultando,
então, em ‘filhotes’ (não raro quando a prole é ampla) tratam esta
mesma descendência realmente como ‘bichinhos de estimação’.
Enquanto pequenos, presos em um berço, tudo é lindo e maravilhoso.
Mas quando crescem, externam vontades, e os caminhos devem ser
apresentados, lições precisam ser impostas, e palavras como ‘não’
necessitam ser ditas: a magia da maternidade / paternidade, o conto
de fadas, vira uma história de horror. É uma história que deixa de
ser particular e passa a integrar, com todas as suas personagens, ‘a
casa de espetáculos que conhecemos como escola (no caso, pública)’. E os
profissionais desta casa, no momento que tomam conhecimento de
todas as histórias, são tomados por uma empatia constrangedora: não
são os responsáveis pela vida daquele componente escolar primal,
fundamental, básico, o motivo da ‘casa de espetáculos’ existir, mas um
sentimento de impotência toma conta quando são problemas que não
conseguirão resolver ou mesmo amenizar. Não são poucas as vezes
que constatamos, miseravelmente, e de forma débil, a escola tornar-se
um depósito do pior que a humanidade pode produzir a si mesmo.

2. NA ESCOLA
O ambiente escolar é uma aventura, uma descoberta constante.
Observando meninos e meninas, moços e moças, homens e mulheres,
na maioria das vezes cometemos o erro de tratá-los como seres ‘sem

76
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

gênero’. Descartando a igualdade cidadã não são iguais (não somos


iguais), são de micros universos completamente divergentes.
Raramente paramos para observar a diferença de comportamento
dos gêneros. Rotulamos (todos). É um único pacote trabalhado, aberto
e fechado sempre da mesma forma: ‘o aluno’, termo usado muito mais
vezes que ‘a aluna’, já uniformiza o ele e o ela como sendo um mesmo
indivíduo.
Esse meio é um paradoxo total. Profissionais que entram em
contradição entre o discurso e prática, responsáveis irresponsáveis
(pelos educandos) exigindo atitudes que nunca praticaram ou vão
praticar nessa ou ‘em uma próxima existência’, determinações inúteis
visando praticidade e melhorias, etc.
Devemos evitar um tratamento diferenciado para o nosso público-
alvo mas, ao mesmo tempo, respeitar suas diferenças (gênero, idade
e desejo) onde (escola) o sistema estabelece regras que suprimem as
vontades individuais (comportamentos exacerbados que impedem o
bom andamento das atividades ‘propostas’) e permite em um lugar
específico (sala de aula) e horário determinado (durante quatro horas,
no mínimo) o direito de opinar.
Não é atoa que muitos (e são muitos mesmo) comparam a
escola como um ‘hospício’, uma ‘reserva’ para comportamentos e
mentalidades que não se enquadram no que a maioria determina
como correto. Porém, a escola deve estabelecer o que é o ‘correto’ para
que esses ‘membros da reserva’ possam ser anuídos na normalidade
da sociedade. É uma instituição criada para alocação do indivíduo,
para a sua aceitação, mas parece deslocá-lo. Retira a criança de um
universo que até então era o que ela tinha como certo, estabelecendo
outras perspectivas que vão se chocar com as diretrizes que ela vinha
recebendo como verdadeiramente únicas até aquele instante, até o
ingresso naquele novo e estranho ambiente que vai marcá-la para
sempre. Esse deslocar, a ação em si, foi maravilhosamente bem descrita
por Zygmunt Bauman, embora para um contexto diferente:

Em todo e qualquer lugar eu estava – algumas vezes ligeiramente, outras ostensiva-


mente – deslocado. (...) Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda a parte, não
estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns
aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode
ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora (BAUMAN, 2005, p. 18-
19).

Vivemos em um mundo que constrói discrepâncias e as eterniza.


Um mundo (ou parte dele) que prega a igualdade, mas funciona com

77
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

alguns poucos possuindo bem mais que a maioria. Como terminar,


dentro de uma instituição educacional, com toda e qualquer forma
de segregação, eliminar as disparidades construídas e legitimadas, mas
manter o respeito pelas diferenças? O ‘diferente é igual’. Somos todos
iguais, todavia diferentes (é claro que estamos sendo óbvios).
E para os ‘seres sem luz’, como bem lembrou uma professora?
Penso que a escola não consegue mais ofertar a luz ou, no mínimo,
uma boa ‘iluminação’. O que a escola deve, e fundamentalmente
necessita ensinar, cada vez mais entra em conflito com a bagagem
vinda de casa e ampliada, sem nenhuma orientação, fora de casa.
Fora do ambiente da escola tudo se tornou extremamente rápido,
superficial e ‘complexo’. Nossa sociedade consumista foi transformada
em uma enorme fábrica. Os conhecimentos exigidos são ínfimos,
básicos para funções mínimas; onde o portador de tal instrução é
apenas uma peça. E, olhando para o passado, observando como o
processo ‘pode’ ser repedido, a peça terá sempre a mesma função. A
peça ‘deve melhorar’, será oportunizado um aperfeiçoamento, mas ela
continuará a mesma. E o que faz uma peça? Repete, obedece, apenas
obedece. Gabriel Contino, ou Gabriel Pensador, em sua letra ‘Estudo
Errado’, para o álbum ‘Ainda é só o começo’:

Eu tô aqui Pra quê?


Será que é pra aprender?
Ou será que é pra sentar, me acomodar e obedecer?
Tô tentando passar de ano pro meu pai não me bater
Sem recreio de saco cheio porque eu não fiz o dever
(CONTINO, ‘Estudo Errado’, 1994)

‘Novas fórmulas’ educacionais são apresentadas por governos após


governos (ou uma reciclagem tão bem-feita que o arcaico parecesse
algo realmente novo e revolucionário?). O ‘túnel’, a ‘esperança’, só
aumenta. “O sistema bota um monte de abobrinha no programa, Mas pra
aprender a ser um ignorante (...)” (CONTINO, ‘Estudo Errado’, 1994).
Os ‘programas’, os pacotes prontos tentam mostrar uma mensagem
de confiança, audácia, crédito, fé, possibilidades, perspectivas, novos
horizontes. Nunca a tenacidade de uma única e definitiva forma de
questionamento (raramente o sistema permite um ‘tiro no próprio
pé’) contra toda e qualquer forma de ignorância (no sentido, é claro,
de ‘não saber’): o afinco uso do ‘por que (?)’.

Mas os velhos me disseram que o “porque” é o segredo


Então quando eu num entendo nada, eu levanto o dedo

78
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente


Eu sei que ainda num sou gente grande, mas eu já sou gente
E sei que o estudo é uma coisa boa
O problema é que sem motivação a gente enjoa
(CONTINO, ‘Estudo Errado’, 1994)

Ignorância que existe entre os próprios profissionais da ‘sapiência


escolar’. O rapper, compositor, escritor, e empresário brasileiro, ‘Gabriel
Pensador’, em seu segundo álbum ‘Ainda É só o Começo’, lançado em
1994, ao criticar a forma de aprendizagem, com a música “Estudo Errado”,
estimulou certa divergência na área educacional, o que provocou o
brado de professores e ‘teóricos’. Esse é o problema quando colocam o
‘dedo na ferida’: dói.
Em uma dessas vivências recentes, uma colega interveio numa
reunião que marcava o início do letivo. Lembrou, com muita
probidade, o momento em que o professor coloca, para fora de sua
aula, um aluno. Nesse momento, ele necessitaria de ‘um terceiro’
nessa relação pessoal entre ‘aprendente e educador’; dependendo do
contexto, como o fato procede, o professor corre o risco de perder,
para sempre, o respeito daquele individuo e, mesmo que ele não
venha a ‘provocar mais problemas’, o medo que pode advir não é
elemento para existir na sala de aula. Houve certa indignação nos
olhares. Quantas vezes é mais fácil estabelecer conceitos imutáveis
que justificam, que acomodam toda uma repetição de ações que não
mudam absolutamente nada? Uma das formas que ‘Pensador’, na sua
música, colocou o dedo na ferida:

Eu gosto dos professores e eu preciso de um mestre


Mas eu prefiro que eles me ensinem alguma coisa que preste
- O que é corrupção? Pra que serve um deputado?
Não me diga que o Brasil foi descoberto por acaso!
Ou que a minhoca é hermafrodita
Ou sobre a tênia solitária.
Não me faça decorar as capitanias hereditárias!! (...)
Vamos fugir dessa jaula!
(...)
Mas o ideal é que a escola me prepare pra vida
Discutindo e ensinando os problemas atuais
E não me dando as mesmas aulas que eles deram pros meus pais
Com matérias das quais eles não lembram mais nada
E quando eu tiro dez é sempre a mesma palhaçada
(CONTINO, ‘Estudo Errado’, 1994)

79
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Não podemos esquecer que a estrutura social dissonante, através


dos governos, é mantida para os governos: existe sempre uma ilusão
de oportunidades reais, de melhoras constantes. Pequenos avanços
ocorrem dando para a massa a ilusão de uma ‘luz’ no fim do túnel.
Nunca foi e nunca será estabelecido o tamanho do túnel. Até
quando ou quanto deve ser a esperança? E as escolas transformaram-
se nos instrumento perfeitos para a construção de uma esperança
interminável. A esperança, sentimento perene de um futuro promissor,
deve sempre existir: está na mídia nas suas infinitas formas.
A ‘melhor idade’ que, em nossa existência, parece distante,
indubitavelmente chega para ‘quase’ todos, e quando se instala avança
em considerável e progressivo acréscimo (aquele tempo em que o
Tempo consome toda vida sem que haja decurso para mais nada, sem
permitir uma expectativa de quando nossa existência cessará) é um
exemplo de uma esperança explorada de forma recorrente. O salário-
mínimo não permite o ínfimo de dignidade para um único indivíduo
e, quando chega o momento de descanso, após uma vida de trabalho,
coincidindo com a ‘melhor idade’, de que forma ele terá uma ‘melhor
idade’ sem os recursos necessários para saúde (que consome grande
parte destes mesmos recursos), alimentação (diferenciada pelas
necessidades exclusivas da idade dita melhor) e lazer (sem a saúde e a
alimentação correta?).
A propaganda pode iludir, enganar, distorcer e mentir. Ou
pior: distorcer a verdade, apresentando uma real impressão sobre
a verdade. A escola é o ponto focal para trabalhar a esperança de
uma forma limpa, sem enfeites, sem mitos, verdadeira e crítica. “A
esperança, sentimento perene de um futuro promissor deve sempre existir”:
firmemente apresentada pelas escolas, como algo palpável e possível
através de um exame minucioso da realidade que cerca o discente.
Combatendo o sensacionalismo e a modelação da realidade, pelas
mídias que exploram o excesso visando o ganho financeiro e não o
conhecimento inteligível.

3. A IMAGEM DO LIVRO DIDÁTICO PARA OS GÊNEROS


OU A UTILIDADE / INUTILIDADE DO LIVRO DIDÁTICO DE
HISTÓRIA NA VIDA DOS GÊNEROS
A convivência com o incrível, com o inacreditável é uma constância
na vida de qualquer docente que atue na sala de aula. As palavras
que são ouvidas, as ações vistas ou ditas que foram praticadas e como
foram praticadas: entre discentes, entre discentes e docentes, entre

80
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

docentes e docentes (é um enfoque que pode ser bem explorado pela


sociologia, filosofia e, principalmente, pela psicologia e psiquiatria)
e, finalmente, entre Livro Didático de História com seus provisórios
donos e seus Gêneros.
Dito isto, abordaremos alguns problemas enfrentados pelo
professor diante da ‘deferência’ apresentada pelos seus alunos,
em sala da aula, com o maravilhoso instrumento, para o bom
encaminhamento de uma compreensão crítica dos conteúdos que
devem ser desenvolvidos, conhecido como alfarrábio, calhamaço,
cartapácio, manuscrito, compêndio escolar ou, como trivialmente é
conhecido: ‘Livro Didático de História’.
Todos os ‘sinônimos’ empregados não foram usados de forma a
menosprezar o ‘livro de sala de aula’. Serve apenas para mostrar um dos
primeiros problemas enfrentados pelos professores: a denominação
do LDH por uma grande maioria. ‘Bagulho’, externando a nítida
comparação com as drogas, popularmente nomeadas assim. E não
existe nenhuma relação com ‘algum lado positivo’ (sendo categórico
e inequívoco: não existe lado positivo para as drogas – trata-se apenas
de ‘liberdade poética’), como o buscar constantemente (o que para as
drogas denominamos vício).
A conexão é com algo ‘mixo’, chato, que incomoda, atrapalha
quando carregado para a escola (muitos profissionais não exigem
o livro em todas as suas aulas), quando é preciso abri-lo (alguns
‘indivíduos sem luz’, os alunos, conseguem a fantástica façanha de
nunca abrir pelo menos um livro, durante todo o ano letivo), quando
é preciso consultá-lo, quando é preciso lê-lo.
Os livros não são ‘valorizados’ pela maioria, incluindo a totalidade
dos responsáveis que não terão um gasto considerável com esse setor
do material de seus tutelados. Ao final do período de validade dos
Livros Didáticos, e, no caso específico os LDH, após a chegada de uma
nova leva de compêndios, eles ficam a disposição de outras escolas e
da comunidade: dos velhos e cansados ‘LDH’, que esperam, de forma
recompensadora, um definitivo lar, 0,01% ‘são adotados’.
Existe um desprestígio para aquilo que se consegue sem esforço?
Ou porque ‘- Os livros não são meus, são do governo!’, como tão
enfaticamente é dito e ouvido?
É um pouco de tudo. Quando os livros, nas escolas públicas,
deviam ser comprados, havia, por parte dos pais e responsáveis, uma
real educação para a sua preservação: poderiam ser aproveitados pelos
irmãos (ãs) mais novos (as); vendidos e o ganho utilizado para a compra
de novos livros; e, devido ao custo com o Livro, este passava a ter um

81
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

‘valor de aprendizado’ tão grande quanto o econômico (senão maior).


Antonia Terra de Calazans Fernandes, no artigo ‘Livros didáticos em
dimensões materiais e simbólicas’:

O que se constata é que socialmente, do ponto de vista do usuário (alunos e professo-


res), depois que deixa de ser utilizado como material na sala de aula, o livro didático,
só em casos específicos, foi guardado, revisitado ou reencontrado com o passar do
tempo. E, nessas situações, também cabe questionar sua mudança de valor com o
tempo (FERNANDES, 2004, p. 533).

O trabalho de Calazans Fernandes é baseado na análise de


entrevistas com alunos e professores, sobre seus livros didáticos,
‘no espaço escolar, entre os anos de 1940 e 1970’. Lembramos, por
experiência própria, sobre a década de 1970, a expectativa que existia
para os novos livros. Abri-los, no início do ano letivo, era tão prazeroso
quanto receber gratuitamente as figurinhas que eram distribuídas
nas escolas para promover as constantes coleções de seus álbuns,
uma ‘onda nostálgica’ da época. As novas figuras dos novos livros,
principalmente dos novos Livros Didáticos de História, era tudo que
tínhamos naquele instante para ‘enxergar’ aquele momento; mesmo
que se limitasse apenas aos rostos das personagens colocadas em
destaque.
Havia um valor moral nas imagens, na maioria das vezes muito
mal representadas e uniformizadas em um mesmo estilo artístico; onde
os Gêneros possuíam sempre o mesmo desenho: mudavam roupas e
penteados, mas era sempre o mesmo ‘traço’ para o gênero masculino e
o mesmo ‘traço’ para o gênero feminino, em todo o livro. Mesmo que
o fato histórico, descrito no ‘LDH’, não fosse abordado de uma forma
extremamente crítica (ou absolutamente sem nenhuma crítica), havia
um significado palpável. Aquela figura colocada em destaque, como
sendo a única responsável pelo fato, isolando da História todos de sua
época, isolando da História o indivíduo que lia sobre aquela época,
tornava-se um exemplo, um modelo de comportamento que, embora
limitado, e direcionado de acordo com os interesses de quem havia
produzido aquele LDH, oferecia um parâmetro. Um comportamento
‘correto’ que deveria ser seguido. Servia como embasamento para que
os responsáveis legais, pelos alunos daquele instante, formulassem
um tipo de educação que transmitiria valores positivos (se eram, por
princípio, informações distorcidas, em mensagens que pregavam a
ordem e obediência ao sistema, é outra história que aqui não será
dissertada). Outro tempo, outros valores; o que para Fernandes seria:

82
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Valores e experiências comuns a grupos e sociedade estão presentes, por exemplo,


nos significados atribuídos aos indivíduos, aos acontecimentos e aos objetos que
emergem nas memórias ou que são preservados como suportes de lembranças. As-
sim, cabe perguntar: por que alunos e professores preservam seus livros didáticos? Há
valores sociais costurando suas memórias e orientando suas atitudes? (FERNANDES,
2004, p. 535).

Famílias estruturadas, por uma educação passada de geração para


geração quase intocável. Todavia, nos últimos trinta anos, houve uma
aceleração na ruptura dessa estrutura. Mudanças cada vez mais rápidas
deram uma falsa impressão que tudo seria possível sem a necessidade
dos limites. Não estamos falando de falta de liberdade ou defendendo
um regime de exceção, um autoritarismo. Todo e qualquer grupo
social necessitou de leis, normas, limites impostos, ou aclamados, para
garantir direitos e deveres àqueles que compõem o grupo. As famílias,
como ‘células’ desse ‘corpo’ maior, para não ‘adoecerem’ necessitam
de uma composição legislativa proporcional.
Hoje, na sala, o trabalho com o ‘LDH’, na maior parte do tempo,
para que ocorra de forma efetiva, necessita de regras específicas
que quase ‘margeiam uma ditadura’. Falando exclusivamente como
professor de História de sala de aula, exijo o livro quando preciso do
livro, dispensando sua presença em tempo integral. Mesmo assim, os
motivos são diversos para que ambos os gêneros, em um expressivo
número, não carreguem o ‘LDH’ quando solicitado, ou melhor,
quando amplamente e previamente lembrado que dele necessitamos
para uma próxima atividade.
É claro que existem variações de comportamento. Talvez,
no futuro, não existam as ditas variações e, irreversivelmente, o
comportamento reinante chegue ao fundo do poço, ou não. Sejamos
positivos, ou quase (a realidade ‘palpável’ é gritante, provoca calafrios
tamanhos que muitas vezes nos acomodamos em pensamentos que
nos afundam em atitudes de autopiedade e um pedido de socorro
terminantemente dolorido). O que fazer quando, após o devido
planejamento para o desenvolvimento de uma ação avaliatória, ‘aquele
número expressivo’ não apresenta o Livro Didático de História? Ele
poderá pegar emprestado em outra turma, na biblioteca, ou realizar o
trabalho em dupla ou em grupo. Mas são medidas paliativas que trarão
como consequência a continuidade da irresponsabilidade. Esquecer é
normal, porém o ‘esquecer’ foi esquecido, sendo recorrente a vontade
proposital de não levar o livro para a sala de aula.
Cabe lembrar a cultura que abarca ‘a importância dada’, pelos
pais e responsáveis, para as disciplinas de Matemática e Português

83
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

em detrimento à História: com toda certeza reflete na postura com


relação ao ‘LDH’. Comparando os ‘meneios’ dos Gêneros, o feminino
mostra uma maior ‘preocupação’, uma responsabilidade mais latente.
A falta de consideração com o próprio material escolar, sendo o livro
didático ‘sentido’ como um fardo, um peso inútil, está presente, de
forma categórica, entre o Gênero Masculino.
Para que o Livro Didático de História seja valorizado na sala de
aula, entre os Gêneros, é obrigatória a valorização da História como
ciência. Como um setor do conhecimento humano que não faz parte
da vida: ‘é a própria vida’. A História não deve ser tratada como um
‘um elemento do cotidiano’, parecendo comum e repetitiva, ou possuir
aquela imagem de ‘difícil’ como são rotuladas outras áreas da erudição
escolar. Os alunos (e vai no ‘pacote’ a ‘família’), independentemente
do Gênero e de suas atitudes que o caracterizam, necessitam
compreender o ‘porque’ de conhecer a História, como ela funciona.
Outras ‘matérias’, que não repetiremos as suas denominações,
parecem possuir uma necessidade existencial que justificam a ‘sua
importância’, o ‘estar acima’ das demais áreas do saber humano. Antes
de tudo, ao saber qualquer ‘coisa’, é essencial que as crianças, quando
entrarem no ambiente escolar, consigam entender porque ‘é decisivo
saber’: puro e simples.

4. O CADERNO DE RECEITAS E O LIVRO DIDÁTICO: UMA


CORRELAÇÃO PROVOCATIVA
Lembro-me da minha bisavó com um caderno de receitas (não
importa qual, só conheci uma – e o foco não é esse). Lembro-me da
minha avó com um caderno de receitas. Minha mãe, antes de aprender
a lidar com um computador tinha um caderno de receitas (e ainda o
possui). Na primeira metade do Século XX, os cadernos de receitas,
ou álbuns de economia doméstica, normatizavam o comportamento,
‘facilitavam’ a administração pela parte que cabia a ‘rainha’ do lar. Bem
estudado, bem organizado seria um excelente instrumento didático
para ser aprovada pelo ‘dono da casa’. O blog blogueirasfeministas.com
comentou através do post ‘Caderninho da vó’:

Dentro de um armário de cozinha na casa de minha avó, que esvaziávamos para colocar
à venda, encontrei um caderninho cheio de recortes e anotações à mão, encapado com
uma figura recortada de revista. Imaginei que fosse mais um caderno de receitas. As
páginas bastante amareladas e já quebradiças, a letra que eu já conhecia como sendo
da vó (Deh Capella, 2011).

84
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Nenhuma delas nunca trabalhou fora de casa (‘apenas’ trabalharam


a vida toda mais do que qualquer um pode sonhar ou imaginar; não
custa lembrar: um verdadeiro hotel cinco estrelas ambulante, com
direito a café da manhã, almoço e sobremesa, café da tarde, janta e
sobremesa, casa limpa, roupa lavada, filhos medicados em casa ou
levados ao médico, filhos de banho tomado, filhos na escola, lições
cobradas e ensinadas; além do serviço de ‘massagens’), mas o ‘maridão’
será sempre lembrado como ‘o provedor’, ‘o chefe’. E o caderno de
receitas, passado de geração para geração?
Antes de promover uma farta alimentação, para o futuro ‘maridão’
e para a futura prole, era uma lembrança palpável, uma lição palpável
que não poderia ser esquecida. Para tanto era anotada em um caderno
fartamente enfeitado. Os desenhos e figuras coloridas, ou em preto e
branco, recortadas ou feitas à mão iludiam com uma imagem de um
mundo perfeito que esperava ansioso por elas. Deh Capella:

A primeira página traz floreios coloridos e uma figurinha colada, logo acima do texto:
‘Que edificante modelo o da Sagrada Família. S. José, chefe, labuta com santo interesse
para o sustento dos entes que Deus lhe confiou. Nossa Senhora cuida com diligência
de seu querido lar e afazeres domésticos. O Menino Jesus obedece e trabalha com
simplicidade e amor’. Este modelo de Família deveria ser imitado por todos os cristãos,
só assim reinaria paz, amor e felicidade nos lares (Deh Capella, 2011).

Um mundo de servidão prontamente aceito, uma herança


formatada por comportamentos e pensamentos que seriam os
mesmos sempre. Fórmulas prontas para serem repetidas e repetidas,
sem a necessidade de pensar, de questionar. Decorar e virar a página.
Se esquecer, tudo bem: lê novamente até que a memória aceite como
um ‘novo’ neurônio. Só não pode perder o caderno, o álbum, e suas
determinações, suas decisões, deliberações, disposições, assentamentos,
firmações, resoluções, solidezes, e exatidões indefectíveis, indubitáveis,
infalíveis e iniludíveis:

Viramos a página, cujo verso está lotado de pequenos recortes de receitas. A página
seguinte traz a definição de Economia seguida da explicação do que é Economia Do-
méstica, que é a seguinte: ‘É tudo o que se refere ao lar, dentro ou ao redor da casa;
desde os cuidados que devem ser dispensados aos animais domésticos que habitam
em o nosso quintal até os arranjos da habitação. O principal fim da Economia Domés-
tica é atrair a mulher para o lar, sua principal função social’. (...) O caderninho explica
exatamente o que a mulher tem a ver com isso: ‘Por excelente que seja a educação
científica, literária e artística de uma jovem, ou a sua profissão, ofício ou negócio, não
servirá ela para mulher casada (dona de casa) se não tiver os indispensáveis no ma-
trimônio para governo de casa do que tudo quanto lhe possam ensinar nas escolas. O
valor do dinheiro e a sua aplicação; o valor nutritivo dos alimentos, e a melhor maneira

85
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

de os preparar sem desperdício ou prejuízos; o arranjo e a limpeza dos aposentos, o


cuidado com os enfermos, a manufatura de bordados e peças do vestuário, a judiciosa
distribuição do tempo, do lugar, do trabalho e do dinheiro são outros tantos temas
capitais dos estudos e da aprendizagem para as aspirantes ao matrimônio ou a boa
dona de casa’ (Deh Capella, 2011).

Praticamente um Livro Didático. Na verdade, o Livro Didático.


Cuja disciplina ‘Lar’ era a única que a mulher deveria cursar, morando,
é claro, na própria escola, como completa Deh Capella ‘O grosso da
educação da mulher para a função de boa esposa, boa mãe e boa dona
de casa é dado em casa, pela mãe, pela avó ou por tias, irmãs mais
velhas’.
As ‘gurias’ possuem uma vantagem ‘quase genética’ em relação aos
‘guris’, quando passam a utilizar o Livro Didático. É uma continuidade,
uma herança ancestral, primal. Um conjunto de normas prontas e,
sendo de História, cronologicamente ordenado: outra vantagem para
o gênero feminino que, ao longo de gerações foi responsável por
fazer um lar funcionar diariamente (horários para acordar, alimentar,
brincar, banhar, estudar), mensalmente e anualmente (com as datas
dos aniversários e festas).
Hoje, todos juntos, ‘meninos e meninas’, recebem de presente
todos os anos, o seu bom ‘amigo’ ‘Álbum de Estudos Escolares’. Os
autores, ao apresentarem suas obras, armam um discurso que lembra
o ‘prefácio’ dos velhos cadernos de receitas:

As atividades são variadas, abordam os temas do capítulo e situações da realidade


em que você vive. Elas contribuem para aprimorar habilidades como interpretar tex-
tos e imagens, explicar conceitos estudados, comparar e relacionar características de
diferentes sociedades, discutir ideias e pontos de vista. (...) Esperamos que este livro
ganhe vida e forma nas discussões entre você, seus colegas e seu professor; tornan-
do-se um valioso instrumento para sua formação como cidadão capaz de transformar a
realidade (PANAZZO, VAZ, 2006, p. 3).
E falam, basicamente, a mesma coisa (e na mesma página?):

Procuramos tratar os temas de forma objetiva, criando oportunidades para que você
possa sempre relacionar o passado com o presente e debater os assuntos. Acredita-
mos que o estudo de História feito dessa forma nos ajuda a compreender cada vez
mais o nosso mundo, o mundo em que vivemos. (…) Sua atenção e emprenho em
cada uma das seções que compõem os vários capítulos desta obra poderão potencia-
lizar um maior conhecimento do passado, do presente, dos seres humanos e de nós
mesmos. Com esta coleção, estamos oferecendo a você os fundamentos da disciplina
de História, a base que você precisa para desenvolver seus estudos e sua cidadania
(VICENTINO, 2010, p. 3).

86
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

A mesma coisa, do fundamental ao médio (e, realmente, na


mesma página):

Esperamos transmitir-lhe um referencial teórico que o estimule a refletir sobre o fazer


histórico e dele participar ativamente. Um de nossos principais objetivos foi levá-lo a
estabelecer, principalmente por meio das atividades propostas, a relação entre o pas-
sado e presente, entre a história que você analisa e a que vive, tornando significativo
seu aprendizado. No percurso que traçamos par você nesta obra há uma seleção de
temas e interpretações do processo histórico. (…) Esperamos que você, por meio da
reflexão histórica sobre outras sociedades e culturas, possa ampliar a consciência do
que fomos para transformar o que somos (COTRIM, 2009, p. 3).

Os Livros Didáticos parecem ser remédios (‘vide bula’) distribuídos


pelo governo. Mas quem está doente, dentro da Educação? São os
métodos? Os mestres? O relacionamento familiar? A desvalorização
do professor, antes de qualquer um, pelos próprios profissionais? ‘É
tudo ao mesmo tempo agora’. Refletindo diretamente no público-
alvo, na base, no princípio que determina a razão de ser do exercício
do Magistério: o aluno (sem luz ou sem a devida ‘iluminação’?), o
aprendente, o discente, ‘nossas crianças’ (expressão fartamente usada
com ironia e descaso) ou qualquer termo que queiram utilizar dentro
da sala de aula. Com certeza o LDH não é uma panaceia, álbum de
figurinha ou caderno de receita com um prontuário de comportamento.

CONCLUSÃO
É inegável a validade do Livro Didático. Mesmo quando usado
como ‘receita pronta’, distribuído nas escolas públicas por um sistema
consumista e, consequentemente, tornando-o quase sem valor para
os educandos e seus responsáveis. Mesmo quando não oferece nada
além daquilo que o sistema exige que deva ser oferecido. Mesmo como
ferramenta inútil, por ficar em uma mochila ou jogado em algum
canto de alguma peça, e dali retirado para ser posto fora (e não será no
lixo reciclado).
São igualmente inegáveis as percepções diferenciadas pelos
Gêneros com ralação aos seus livros. Por experiência, na reclusão de
uma mesmice perpetrada, podemos classificar a atenção e o cuidado
constituídos pelo Gênero Feminino e pelo Gênero Masculino. Mas
o aproveitamento deve ocorrer uniforme. Sendo necessário cortar o
assistencialismo didático: garantindo a dignidade do poder de compra.
Que venham livros que o professor deseje usar. Porém, nenhum
profissional de sala de aula pode mencionar uma única vez que não

87
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

consegue trabalhar sem o Livro Didático. É válido o seu uso, não é


fundamental a sua presença. O verdadeiro professor de sala da aula
nunca foi ‘sustentado’ pelo Livro Didático e nunca será por qualquer
mídia que surja como mágica (ou tentando fazer mágica). É a forma
como suas ideias e palavras chegam aos Gêneros aprendentes é que
vai fazer a diferença. Diferença, também, no querer e no saber usar o
Livro.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.

CAPELLA, Deh. O caderninho da vó, fev. 2011. Disponível em: <


http://blogueirasfeministas.com/2011/02/o-caderninho-da-vo/>. Acesso em 22 fev.
2013.

COTRIM, Gilberto, História Global: Brasil e Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
Volume Único.

CUGINI, Paolo. Identidade, Afetividade e a Mudanças Relacionais na: Modernidade


Liquida na Teoria de Zygmunt Bauman, Recife, jan. / jun. 2008, FSBA. Disponível em:
< http://www.faculdadesocial.edu.br/dialogospossiveis/artigos/12/artigo_10.pdf >.
Acesso em 21 fev. 2013.

DEMO, Pedro. Pesquisa Participante: saber pensar e intervir juntos. Brasília: Liber Livro
Editora, 2ª edição 2008.

FERNANDES, Antonia Terra de Calazans. Livros didáticos em dimensões materiais e


simbólicas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004.

GABRIEL PENSADOR. Estudo Errado. In: Ainda É só o Começo. Sony Music, 1994.
1CD. (ca. 59:08 min.). Faixa 6 (5 min. 13 s) <http://pt.wikipedia.
org/wiki/Gabriel_o_Pensador > Acesso em: 24.02.2013.

MATOS, Júlia Silveira. Tendência e Debates: Da Escola dos Annales à História Nova.
Historiae, Rio Grande, 1 (1): p. 113-130, 2010.

PANAZZO, Silvia; VAZ, Maria Luísa. Navegando pela História. São Paulo: Quinteto
Editorial, 2006. 5ª série (6°ano).

VICENTINO, Cláudio. História. São Paulo: Editora Scipione, 2010. 9° ano.

88
A REPRESENTAÇÃO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ
NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA:
IMAGENS E RELAÇÕES DE GÊNERO

CARLA REJANE BARZ REDMER SCHNEID1

Resumo: O presente trabalho tem como proposta analisar a representação


da imigração alemã e pomerana no Rio Grande do Sul em dois livros
didáticos de História, utilizados na rede pública de ensino. Além disso,
foram escolhidas algumas imagens para a análise da questão de gênero,
tratados direta ou indiretamente nestes materiais didáticos, referente
também a imigração alemã.

Palavras-chave: Livro didático – História – colonização – gênero.

INTRODUÇÃO:
A disciplina de História já percorreu vários caminhos, com
diversas concepções e tendências. Após a redemocratização do Brasil,
a partir da segunda metade da década de 80, começa a se ter uma
maior preocupação em reconhecer professores e alunos como sujeitos
da História e da produção do conhecimento histórico.
Diante disso, o livro didático se tornou hoje uma ferramenta
pedagógica de amparo para os professores, mas passível de
questionamentos quanto aos seus conteúdos. Por seu papel e função
como parte da história do cidadão brasileiro por várias décadas, ele
abre um amplo campo de possibilidades de estudo.
Neste trabalho, pretende-se abordar aspectos relativos aos livros
didáticos utilizados nas redes de ensino, focando a análise na relação

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História – História, pesquisa e vivências de


ensino-aprendizagem da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

89
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

dos temas apresentados no material analisado que perpassam pela


representação da imigração alemã e pomerana no Rio Grande do Sul.
Para isso partiu-se do princípio da pesquisa da cultura local como
estratégia metodológica de ensino, relacionada neste caso com o tema
da imigração pomerana na região sul do Rio Grande do Sul. Como
a imigração pomerana não é citada diretamente nos livros didáticos
analisados, optou-se por relacionar o conteúdo desenvolvido a respeito
da imigração alemã, contemporânea da colonização pomerana e
muitas vezes tratadas como culturalmente semelhantes.
Para esta análise, foram selecionados dois livros de História para
o 5º ano do ensino fundamental, pois é nestas turmas em que se trata
da questão da chegada dos imigrantes ao país como mão de obra
substituta da escravidão. Trata-se do livro “História – Projeto Buriti”
da editora Moderna, cujos autores são todos formados em História,
sendo responsável a historiadora Rosane Cristina Thahira. O outro
livro escolhido é “História do Rio Grande do Sul” da editora Ática,
cujo autor é o historiador Felipe Piletti.
Num primeiro momento serão abordados aspectos relativos ao
modo pelos quais o tema imigração alemã é desenvolvido nos livros
didáticos analisados, percebendo-se o conteúdo, o modo pelo qual é
apresentado e as sugestões do autor para os professores desenvolverem
o conteúdo descrito no manual do professor.
Na segunda parte, são selecionadas duas imagens presentes no livro
História do Rio Grande do Sul para tratar de aspectos relacionados ao
gênero. Dessa forma, se fará uma análise do modo pelo qual os autores
tratam as questões de gênero, nos livros didáticos citados. É necessário
perceber o conteúdo das imagens como partes do texto, sugerindo a
problematização e a compreensão dos conteúdos históricos.
De acordo com a nova abordagem sobre o ensino de História,
baseada no conceito de cultura histórica elaborada por Jörn Rüsen
que diz que “cultura histórica não é mais do que consciência histórica
no nexo prático da vida. Com este termo, condicionalidades, funções
objetivas e, com elas, práticas da vida social são adicionadas aos
elementos subjetivos da consciência no campo da visão da didática
da história” (RÜSSEN, 2012) Desse modo, o ensino de História deve
estar voltado para uma abordagem sociocultural que identifique
as subjetividades das relações humanas, restringindo-se a uma
efetiva narração e apresentação da verdade absoluta construída
historicamente.
Segundo STAMATTO (2009), as últimas coleções de livros didáticos
de História buscam uma renovação intensa, buscando acompanhar as

90
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

discussões e investigações, as experiências e propostas para o ensino de


História. Estão sendo introduzidos novos conteúdos como os estudos
da África e afrodescendentes, da história das mulheres, da criança, da
inclusão e contra a discriminação; pelo estudo da iconografia e pela
discussão de diferentes abordagens sobre o currículo (o manifesto e o
oculto).
Mesmo com esta renovação para a produção de livros didáticos de
história, deve-se levar em conta que:

Contrariamente à apreensão do senso comum, o livro didático é um produto cultural


dotado de alto grau de complexidade e que não deve ser tomado unicamente em função
do que contém sob o ponto de vista normativo, uma vez que não só a produção vincu-
la-se a múltiplas possibilidades de didatização do saber histórico, como também sua
utilização pode ensejar práticas de leitura muito diversas.
O estado tem um papel regulador e/ou intervencionista no mercado do livro didático e
nas circunstâncias políticas resultantes da prática avaliativa. (MIRANDA E LUCA: 2004)

Reforçando estas afirmações, podemos perceber que o livro pode


e deve relacionar as experiências cotidianas e demonstrar exemplos
que correlacionem o passado e o presente, sem, no entanto, cometer
anacronismos. É importante que o(s) autor(es) perceba(m) que os
alunos não são desprovidos de raciocínio e que podem identificar
os conteúdos de acordo com o que já fora apresentado como
conhecimento de vida e o professor, como já foi dito, desempenha
papel fundamental nesta relação entre o diálogo aluno-livro.
Desse modo, as experiências dos alunos devem ser levadas em
conta na relação ensino-aprendizagem para que a partir disso ele
possa adquirir novos conhecimentos. Não se pode “jogar” o conteúdo
previsto no livro didático sem uma prévia concepção do que o aluno
já tem de conhecimento sobre determinado tema.
Para analisar o tema da imigração alemã/pomerana no livro
didático, como já foi dito, foram selecionados dois livros para o 5º
ano do ensino fundamental que abordam a questão: História do Rio
Grande do Sul do historiador Felipe Piletti, publicado pela editora
Ática, e Projeto Buriti – História, sendo responsável a historiadora
Rosane Cristina Thahira, publicado pela editora Moderna.
A escolha destas duas obras deve-se principalmente ao fato de
terem sido os mais pedidos pelas escolas do país no Plano Nacional do
Livro Didático (PNLD) de 2010, de acordo com as informações do site
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Isso
remete ao fato de ter sido utilizado pela maioria dos alunos brasileiros,
inclusive no Rio Grande do Sul. Estas coleções ainda foram utilizadas

91
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

durante o ano de 2012, considerando que o tempo de utilização de


cada coleção é de três anos.
Como podemos observar pelos títulos, os livros se diferenciam
primeiramente pelo fato de um ter uma abrangência de conteúdos
maior do que o outro, ou seja, o livro do Projeto Buriti trata da
História do Brasil e o outro foca somente na História do Rio Grande
do Sul. Esta escolha foi intencional para fazer também uma análise da
importância dada ao tema imigração nas duas obras.
As imagens e os recursos visuais, em ambos, nas partes analisadas,
têm como objetivos serem não apenas ilustrações dos textos, mas sim
recursos intrínsecos à problematização e à compreensão dos conteúdos
históricos. Além disso, as obras possuem uma boa formatação o que
proporciona boa legibilidade ao texto, estando adequado à escolaridade
a que se destina o livro.
Antes da análise dos textos dos livros didáticos citados, é
importante destacar uma passagem escrita pelo autor Felipe Piletti
no livro História do Rio Grande do Sul sobre a construção de livros
didáticos:

Torna-se factível compreender que o saber expresso no livro didático não deve ser
considerado nem universal, nem a palavra definitiva, mas resultado de saberes histó-
ricos negociados entre vários agentes, visando atender interesses também diversos.
A editora, a empresa publicadora, é a figura jurídica titular dos direitos autorais. É ela
que possui o contrato do autor para negociar a obra, quer com o governo, quer com o
mercado de livrarias e outras instituições. (PILETTI: 2011, pg.2 - Manual do professor).

Esta afirmação do autor de um dos livros reafirma o que já havia


sido dito a respeito de que vários agentes, principalmente o Estado,
tem papel regulador na avaliação e distribuição do material didático,
dependendo ou não dos interesses políticos vigentes no contexto.
Nota-se que as duas obras didáticas tratam a questão da vinda
dos imigrantes para o Brasil no final do período imperial para servir
de mão de obra substituindo a escravidão. Além disso, salientam os
motivos da sua vinda, destacando a situação de miséria em seus países
de origem e a busca de melhores condições de vida no Brasil.
Ao observar os detalhes de cada um dos materiais, percebemos
que o tema da imigração ou a chegada dos imigrantes ao Brasil tem
uma abordagem muito breve no livro do Projeto Buriti, tendo somente
o relato de que:

92
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Vieram imigrantes para o Brasil desde o século XIX até meados do século XX, princi-
palmente italianos, portugueses, espanhóis, alemães, poloneses, libaneses, japoneses
entre outros. Os imigrantes eram atraídos pela oferta de terras no Brasil e pela oportu-
nidade de melhorar de vida. Eles deixaram seus países para escapar da miséria e, em
alguns casos, para fugir de guerras. (THAHIRA: 2011).

A partir desta afirmação, o aluno poderia entender que os


imigrantes, ao chegarem aqui, tiveram todos os seus problemas
resolvidos e todas as dificuldades superadas, o que não aconteceu na
realidade.
No subtítulo “os imigrantes no sul do país” tem-se a escrita de
apenas um pequeno parágrafo que relata o seguinte: “na segunda
metade do século XIX, o governo brasileiro incentivou a vinda de
imigrantes para o sul do Brasil, principalmente alemães e italianos.
Eles estabeleceram pequenas propriedades e formaram colônias”.
(THAHIRA:2011)
Dessa forma, a imigração no sul também é apresentada de forma
superficial, generalizando todos os processos migratórios e suas
particularidades nas diferentes regiões do sul do país.
Além deste, ainda apresentam mais dois subtítulos sobre o tema:
os imigrantes nas fazendas de café (referindo-se ao estado de São Paulo)
e os imigrantes nas cidades, destacando a importância da mão de obra
para o crescimento urbano e desenvolvimento da industrialização,
ambos relatados em um ou dois parágrafos, sem muitos detalhes.
Já no livro História do Rio Grande do Sul encontra-se três capítulos
que abordam a questão da imigração no estado, sendo respectivamente
sobre a imigração alemã, a imigração italiana e outros imigrantes
citando africanos, portugueses, espanhóis, poloneses, judeus, sírios e
libaneses.
Além dos princípios utilizados para justificar a imigração já citados,
o autor afirma inicialmente também que “a presença de imigrantes foi
fundamental na formação do nosso estado” (PILETTI, 2011).
Antes de relatar historicamente o processo de colonização, o autor
sugere iniciar o assunto com os alunos discutindo conceitos sobre
diferenças, ou seja, faz questionamentos que abordem os significados
das palavras preconceito, estrangeiro, estranho e diferente. O objetivo
disso, segundo PILETTI (2011), é a formação integral do aluno,
“ensinando-lhe valores fundamentais que o ajudarão a exercer
plenamente sua cidadania”. O autor afirma ainda que “o objetivo é
que as crianças se abram para as diversas etnias, línguas, religiões e
costumes das pessoas com quem convivem”.

93
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Nestas passagens citadas pelo autor no manual do professor pode-


se identificar a preocupação com a transversalidade de temas, neste
caso, a Pluralidade Cultural.
Pode-se dizer também que, no capítulo referente à imigração alemã,
nos subtítulos “Por que os imigrantes alemães vieram ao Brasil?”, “Os
imigrantes alemães no Rio Grande do Sul” e “A cultura dos imigrantes
alemães” de um modo geral, fazem uma abordagem relevante quanto
aos aspectos relacionados ao contexto e levando-se em conta a idade
dos alunos aos quais o material didático está indicado.
Apesar disso, o texto remete a uma falsa idéia de que a imigração
resultou numa satisfação imediata de todas as expectativas dos
imigrantes recém chegados e que fugiam das adversidades da Europa
naquele momento. Um exemplo disso é quando o autor diz que
“como incentivo, o governo forneceria aos imigrantes um lote de
terra, ferramentas, gado, e os liberaria de pagar impostos por um bom
tempo”. Sabe-se que não foi tão fácil assim. As promessas feitas não
foram cumpridas no seu todo e muitos imigrantes tiveram grandes
dificuldades na chegada ao novo país, tendo que pagar pela terra e
pelas ferramentas de trabalho a juros altos.
Ao se referir às intenções do governo para a vinda dos alemães ao
Brasil, o autor enumera quatro motivos: colonização e povoamento
de áreas ainda não ocupadas, obter soldados para as lutas no Prata,
estimular a produção de alimentos mais diversificados para abastecer
as províncias e o centro e o desejo de que os imigrantes pudessem
se contrapor politicamente aos grandes proprietários da região da
campanha. Apenas os aspectos referentes à colonização e à trajetória
para a produção de excedentes agrícolas para o comércio será
desenvolvido no decorrer do capítulo. Os demais pontos citados não
terão maiores explicações no texto.
São discutidas no texto as dificuldades enfrentadas pelos
imigrantes para o cultivo de produtos para a subsistência, mas não
são relatados os motivos dessa dificuldade. Além disso, é destaca a
solidariedade entre as famílias imigrantes como aspecto essencial para
a sobrevivência, mas não dá indícios de que modo essa solidariedade
se dava entre os colonos.
Na visão de PILETTI (2011), ao superarem as primeiras
dificuldades, os colonos começam a comercializar seus excedentes, o
que não melhorou suas condições financeiras, pois começam a ser
explorados pelos comerciantes alemães que pagavam um preço muito
baixo pelos produtos e vendiam a preços altos nos grandes centros
do país, enriquecendo assim os comerciantes. Esse enriquecimento

94
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

fez com que o dinheiro acumulado fosse investido na produção de


diversos artigos, proporcionando o surgimento e o desenvolvimento
de grandes indústrias.
À primeira vista o texto sugeria um contexto bastante favorável
à chegada e à situação dos imigrantes no Brasil, mas ao longo da
abordagem, o autor sutilmente relata situações econômicas impostas
aos colonos que explicitam as dificuldades enfrentadas na sua chegada.
No título referente à cultura alemã, são relatados diversos costumes
que, segundo o autor, “deram uma grande contribuição para a cultura
do Rio Grande do Sul e ainda hoje permanecem vivos, principalmente
nas pequenas propriedades rurais do interior da região de colonização
alemã”.
Ao final do capítulo, são colocadas atividades para os alunos,
sendo que dois questionamentos se referem diretamente ao que foi
discutido no texto, com respostas retiradas do texto e outro exercício
sugere que a partir das contribuições culturais relatadas no texto, os
alunos pesquisem mais sobre a cultura dos imigrantes alemães.
A abordagem do conteúdo sobre os processos migratórios durante
o século XIX em ambos os livros didáticos não se referem em nenhum
momento a um grupo bastante numeroso de imigrantes europeus
vindos da Pomerânia para o sul do Rio Grande do Sul e para outros
estados do país. Isto talvez se deva ao fato de que os pomeranos não
foram tema de muitas abordagens nas discussões historiográficas
sobre imigração e, somente nas últimas décadas, alguns historiadores
e pesquisadores começaram a fazer uma diferenciação entre a história
e a cultura dos pomeranos e dos alemães, apesar de terem chegado ao
país na mesma época.
No Rio Grande do Sul, a maior parte dos pomeranos está
instalada na região da Serra dos Tapes, abrangendo os municípios de
São Lourenço do Sul, Canguçu, Arroio do Padre e parte de Pelotas.
Essa região também não está destacada no mapa da imigração alemã
contida no livro História do Rio Grande do Sul de PILETTI (2011,
pg.93), onde está representada apenas a região central do estado como
receptora de imigrantes europeus.

Em relação aos pomeranos, no processo de conflito entre os grupos, a classificação


de procedência já os colocava em grau de exclusão, pois os grupos hegemônicos os
consideravam de cultura menos desenvolvidas. Essa perspectiva é perceptível em toda
a literatura, descrita com muita sutileza. Trata-se da história contadapelos grupos he-
gemônicos alemães do eixo São Leopoldo – Porto Alegre – Santa Cruz. (THUM:2009,
p. 141)

95
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Certamente não existe um livro didático de História ou de


qualquer outra área que consiga abordar todos os temas, envolvendo
todas as culturas existentes de maneira com que todos saibam da sua
existência e do seu modo de vida. Neste momento, o papel do educador
é essencial, de modo que deve levar em conta sempre o contexto e a
realidade do ambiente em que está desenvolvendo a sua profissão.
Em sua ação docente, o professor deve visar uma aprendizagem
significativa, partindo da experiência prévia do aluno, trabalhar com
conceitos, constituir o fato histórico, introduzir a noção de tempo e
espaço, com vistas a
desenvolver o pensamento histórico, objeto de ensino da História.
É preciso também que peça aos alunos para levantar hipóteses sobre
os conteúdos e elaborarem narrativas sobre as hipóteses.
Conforme SOUZA (2012), o professor caminha em busca de
objetivos do ensino: tornar a criança capaz de desenvolver raciocínios
mais elaborados; contribuir para a formação de cidadania; contribuir
para formação intelectual, política e humanística; formar uma
consciência histórica, baseada nos princípios de liberdade, democracia
e direitos humanos.
Ao pensar em uma aula de História utilizando os livros didáticos
analisados, principalmente o que trata especificamente da história
regional, num local onde existiu a imigração destes grupos citados e
que os alunos descendem desta realidade, é necessário que o professor
utilize os conhecimentos dos próprios alunos e seus familiares para
a construção do seu saber histórico, dentro de um contexto maior,
ou seja, a história local inserida no contexto da história nacional e
mundial. Assim, os sujeitos estarão construindo a sua própria história
e isto certamente fará maior sentido para eles, pois se sentirão agentes,
indivíduos da própria História, dando o sentido primordial do ensino
de História.
Se não existe a menção a algum grupo que também faz parte da
história da imigração, como é o caso, por exemplo, dos pomeranos
neste livro, ao desenvolver o trabalho numa comunidade composta
essencialmente por pessoas desta origem, cabe ao educador e à escola
promover um ensino que aborde aspectos desta cultura e da sua história
dentro de um contexto de História Geral para que estes indivíduos se
percebam como agentes inseridos igualmente na História. O professor
de História, ao partir do conteúdo da história local perceberá o interesse
dos alunos de valorizarem o que lhes pertence e que até então era
desconsiderado.

96
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Ao acrescentar isto na sua prática cotidiana, o professor-historiador


estará produzindo a cultura histórica sugerida por Rüsen, referindo-se
ás práticas culturais onde os conhecimentos históricos são aplicados
a serviço da vida:

Tratar-se-ia então de diferenciar teoricamente o mundo da vida, identificar o sujeito do


saber histórico como um acontecimento comunicativo, percebê-lo e situá-lo na ‘vida’,
como se diz de maneira bonita. (RÜSSEN, 2012, pg.138)

De um modo geral, este seria um exemplo concreto de produção


da consciência histórica, defendida por Rüssen, onde no processo de
formação e reconhecimento da identidade histórica, o aluno poderá
formular interpretações sobre si e sobre sua sociedade no tempo,
evidenciando seus costumes, saberes, crenças e práticas culturais.
Do mesmo modo, SCHMIDT (2009) defende a idéia de que:

Diferentemente dos historiadores, os alunos nas escolas não buscam gerar o ‘novo’
conhecimento por meio de evidências e narrativas históricas, mas geram novas com-
preensões históricas pessoais. Assim, uma das formas como os alunos e professores
confere significado ao passado é pensar acerca da construção de narrativas ou versões
deste passado. (SCHMIDT, 2009, p.45)

O que se faz entender através destas teorias é o fato de que tanto


os livros didáticos analisados que por uma série de fatores possuem
falhas, mas ao mesmo tempo eles possuem uma qualidade que precisa
ser levada em conta: o livro é uma ferramenta de apoio pedagógico e
de conhecimento, fornecendo informações essenciais para a relação
ensino-aprendizagem. Em contrapartida, cabe ao professor ter a
consciência do que é significativo para o seu aluno em determinado
contexto. O educador tem que ter a sensibilidade de perceber o seu
aluno e o seu entorno, adequando o conteúdo histórico para que
privilegie a sua clientela. Se o livro cita os alemães, por exemplo, como
principais imigrantes germânicos e não menciona outros grupos que
também fazem parte desta História, cabe ao educador perceber esta
falha e trabalhar os fatos históricos a partir das vivências de seus
próprios alunos, o que tornará riquíssimo o seu aprendizado histórico,
associando-o a um contexto regional ou mundial.

97
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

AS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS IMAGENS DOS LIVROS


DIDÁTICOS:
Antes de partir para a discussão da relação de gênero dentro do
conteúdo analisado nos livros didáticos, torna-se essencial discutir
algumas concepções de gênero vigentes para se compreender as formas
com que estas relações são abordadas ou não, nas fontes utilizadas
neste estudo. Além disso, é necessário também definir a importância
das imagens, utilizados no material didático, já que estas muitas vezes
estão diretamente relacionadas com as questões de gênero.
Nesse sentido, o verbal e o visual contribuem para o processo
de ensino aprendizagem da História, mas também informam valores,
crenças, ideologias que interferem na forma como os alunos passam a
se perceber e representar os indivíduos ou grupos sociais em uma dada
sociedade, inclusive na qual estão inseridos.
De acordo com SCOTT (1990), gênero se tornou uma categoria
útil à história e não apenas à história das mulheres. Ele pode lançar
luz sobre a história das mulheres, mas também a dos homens, das
relações entre homens
e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre
si, além de propiciar um campo fértil de análise das desigualdades e
das hierarquias sociais.
Partindo deste conceito de gênero, serão analisados alguns
aspectos identificados nos livros didáticos utilizados como fontes
neste trabalho. Serão utilizadas duas imagens do livro História do Rio
Grande do Sul da Editora Moderna que retratam o tema da imigração,
relacionadas com as suas respectivas legendas e as “instruções” para
o modo a serem abordados pelos professores, relatados no manual
do professor. Não serão analisadas imagens que remetam às questões
de gênero no livro do Projeto Buriti justamente pelo fato de ter
uma discussão muito breve sobre o tema e principalmente por não
apresentar nenhuma imagem que se relacione especificamente à
imigração alemã, objetivo deste trabalho.
A primeira imagem é justamente a abertura do capítulo 10, p.89.
Trata-se de uma tela de Ernst Zeuner (1895-1967) retratando a chegada
dos primeiros imigrantes alemães a São Leopoldo.

98
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Nesta imagem percebe-se a figura do gaúcho montado em seu


cavalo e embarcações lotadas de imigrantes chegando à cidade. As
mulheres e algumas crianças aparecem representadas em segundo
plano na pintura, sem participação nas discussões entre os homens.
O que mais chama a atenção no que diz respeito às questões
de gênero nesta situação não é somente o que está representado na
tela, mas o que está sendo sugerido para a abordagem da imagem
no manual do professor: “Observe com os alunos o quadro de Ernst
Zeuner(1895-1967), fazendo-lhes perguntas como: ‘O que a imagem
está mostrando?’, ‘Quem são essas pessoas?’, ‘A área mostrada é rural
ou urbana?’, ‘Como está vestido o homem à cavalo?’, ‘E o homem de
chapéu que está no barco, segurando um remo, o que está fazendo?’.
A partir dos questionamentos sugeridos ao professor para fazer
aos seus alunos, principalmente os dois últimos, se referem apenas
ao gênero masculino através da expressão “o homem”, ignorando-se
nestes questionamentos o papel feminino ou a sua situação naquele
momento. Simplesmente as mulheres e crianças imigrantes além de

99
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

serem representadas na imagem apenas em segundo plano, não se


faz nenhuma referência a sua presença no texto didático e nem nos
questionamentos sugeridos pelo autor.
Segundo FERRAZ (2013), a mulher imigrante sulina, devido às
necessidades, auxiliava no sustento da família. Auxiliava na derrubada
das matas, criava e cultivava a terra concomitantemente à tarefa de mãe
e esposa. Cumpria seu “papel de mulher” mas, de maneira subjetiva,
seu verdadeiro objetivo era ser a dona da casa e não somente dona de
casa.
Desse modo, fica evidente que este importante papel feminino tem
uma invisibilidade pois ficou restrito ao papel do homem imigrante.

A manutenção dos hábitos e dos costumes alemães dependia das mulheres, as quais,
através da “prendas domésticas” ofereciam um conforto difícil de ser mantido sem a
figura feminina. Apesar disso, o que se observa é que somente os homens são respon-
sáveis pelo desenvolvimento da região. A própria representação da imagem das mulhe-
res de origem alemã como “trabalhadeira”, diferentemente “trabalhadores”, contribui
para a invisibilidade da contribuição feminina (DEL PRIORE, 2004, p.289)

Certamente essa invisibilidade da mulher imigrante está


reproduzida também nesta abordagem do livro didático citado.
A segunda imagem analisada está no mesmo capítulo 10, p. 95.
Trata-se de uma foto onde aparecem mulheres trabalhando na linha
de produção de uma fábrica de chocolates e doces em Porto Alegre, no
início do século XX.

100
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

A primeira vista, ao analisar somente a foto, esta chama a atenção


por representar somente mulheres e mais, na condição de trabalhadoras
de fábricas, o que não era tão comum na época. Geralmente a
representação de mulheres imigrantes está associada ao trabalho
do campo e ao lar, sendo muito mais comum fotos representativas
da imigração, retratando a família do modo tradicional, ou seja,
constituída de pai, mãe e filhos, onde as mulheres são representadas
como mantenedoras dessa estrutura e da base familiar. Esta categoria
de imagem não aparece nesta seção do livro didático.
A foto das mulheres na fábrica aparece ao lado do texto que trata
da formação das indústrias na capital. Não há nenhuma referência à
imagem. Não existem referências argumentativas do motivo da foto
naquele contexto, não conseguimos identificar se as mulheres da foto
são imigrantes, se era comum as mulheres trabalharem nas fábricas

101
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

naquela época, etc. Além disso, no manual do professor também não


é feita nenhuma menção à foto.
Ao fazer isso, referindo-se à imagem analisada, o autor não cumpre
o que ele mesmo afirma sobre a utilização de imagens como subsídios
para lidar com mais consciência com as inúmeras informações visuais
a que está exposto diariamente:

Sempre que possível, ressaltamos o caráter subjetivo das imagens, chamando a aten-
ção dos alunos para o fato de que elas sempre expressam um ponto de vista, e que
este é necessariamente histórico, isto é, relativo ao seu tempo e ao seu lugar. (PILETTI,
Manual do professor, p. 7)

Infelizmente, no caso da imagem, o professor não possui os


subsídios necessários para discutí-la com seus alunos já que não possui
um referencial histórico para ela. Além disso, deve-se levar em conta
que geralmente professores que trabalham com o 5º ano do ensino
fundamental, ao qual o livro é destinado, não são historiadores, mas
sim pedagogos, não tendo consigo o olhar histórico aprofundado para
interpretar a imagem com maior autonomia.
Retomando o conceito de gênero criado por SCOTT (1990), citado
anteriormente, de que gênero se refere a todos os tipos de relações
entre homens e mulheres abrindo também possibilidades para discutir
as desigualdades sociais e as hierarquias, é interessante observar uma
parte do texto didático de PILETI (2011), já citada anteriormente, mas
que cabe aqui, justamente na análise das questões de gênero, com
suas diversas possibilidades, retomar para destacar a sua importância
dentro do contexto pedagógico.
Ao abrir o capítulo discutido neste trabalho, PILETI (2011)
convida os alunos e professores a fazer uma reflexão sobre o que é ser
estrangeiro, e a partir disso, elabora uma série de questionamentos
que faz o aluno pensar sobre o diferente, o que não é padrão instituído
pela sociedade. O autor utiliza uma passagem do texto “Convivendo
com as diferenças” de Laura Jaffé e Laure Saint-Marc:
“Quando encontramos alguém com a aparência e os costumes
diferentes dos nossos, muitas vezes ficamos incomodados ou com
medo. Algumas vezes a outra pessoa sente a mesma coisa. É como se
estivéssemos no escuro, sem saber para onde estamos indo. Temos
medo porque não conhecemos todas as coisas”.
Mesmo não fazendo referências diretas às questões de gênero,
o autor possibilita esta discussão na medida em que fornece meios
para abordagem do que é o diferente e o que essa diferença quando

102
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

não aceita pela sociedade como normal pode possibilitar, ou seja, o


preconceito.
Desse modo, o fazer pedagógico está interligado com questões
que podem construir a consciência e o posicionamento crítico das
crianças, o que pode ser relacionado também com os preconceitos que
ainda existem entre as relações de gênero na sociedade. Novamente
cabe ao professor ter a sensibilidade de identificar esta oportunidade
de discussão dos vários modos de preconceito a que as pessoas estão
sujeitas, inclusive nas relações que “quebram” alguns tabus criados
pela sociedade, principalmente nas relações de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Vive-se hoje em uma época de globalização, tanto da economia
quanto das tecnologias e informações que vêm sendo modificadas
constantemente e refletem diretamente na cultura da sociedade.
A educação deve progredir no mesmo ritmo, acompanhando os
progressos e trabalhando para diminuir as desigualdades.
Para isso, é necessária uma educação para a diversidade, voltada
para a pluralidade cultural, percebendo o outro como legítimo outro,
o qual possui uma história, uma cultura, uma etnia. Desse modo, em
qualquer lugar onde estivermos, existirão pessoas ou grupos de pessoas
que possuem uma história, uma cultura, uma etnia, sendo nosso
papel de educadores direcionar a educação no sentido do caminho
da diversidade, engajando as pessoas no mundo das diferenças,
preparando-as para serem cidadãos legítimos.
Para FREIRE (1978), não basta ao homem reconhecer-se enquanto
indivíduo pertencente a um determinado grupo social e, assim, ser
um mero “herdeiro” das condições em que se encontra no mundo,
sejam elas boas ou ruins. Para ele, o fundamental é que esse indivíduo
se reconheça e se constitua como sujeito no mundo, corresponsável,
portanto, pela construção das condições do mundo em que vive, e
não um objeto, à mercê de situações que, sendo dadas ou herdadas,
não podem ser modificadas.
É justamente esta diversidade que se forma em nosso país que
entrelaça as diferentes culturas através da educação. A educação, por
sua vez, permite justamente o reconhecimento e a valorização destes
indivíduos da diversidade para que sejam cidadãos participativos
e atuantes na formação justa e democrática do nosso país. Através
da educação, os sujeitos diversos formam a sua identidade e são

103
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

reconhecidos como grupo com os mesmos direitos e deveres dos


demais cidadãos.
Levando em conta tudo o que foi dito, percebe-se que o educador
necessita cada vez mais de incentivos e capacitação para exercer a sua
profissão com qualidade.. Por se tratar de um instrumento pedagógico
utilizado por milhares de jovens em todo o país, formando o seu
conhecimento e consequentemente a sua consciência para diversos
assuntos, o professor deve estar preparado para perceber toda esta
situação que está por trás de um discurso e ter a sensibilidade de
buscar orientação para superar estas dificuldades, mesmo que existam
mecanismos políticos, econômicos e sociais que podem controlar
todos os setores, inclusive a educação.
O professor e toda equipe educacional deve estar preparada para
fazer uma análise crítica de todo o material que é utilizado em sala de
aula e, se necessário, se utilizar das falhas para ensinar o modo correto,
oportunizando o aprendizado para seus educandos.

FONTES:
PILETTI, Felipe. História do Rio Grande do Sul: 4º ou 5º ano. São Paulo: Editora Ática,
2011.

THAHIRA, Rosane Cristina (org.). História: 5º ano. São Paulo: Editora Moderna, 2011.

Site do programa do livro didático (FNLD) : www. fnde. gov.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil, 7 ed.São Paulo: Contexto, 2004,
p.289.

FERNANDES, Antonia Terra de Calazans. Livros didáticos em dimensões materiais e


simbólicas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, p.531-545, set/dez. 2004.

FERRAZ, Ana Paula Moutinho. Vozes e silêncios: memória, identidade, religiosidade e


representação da mulher “colona” na comunidade do Rio da Ilha. Artigo apresentado no
XI Seminário de Estudos Históricos, 2013.

FILHO, Amílcar Torrão. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam.
Cadernos Pagu(24). Janeiro –junho de 2005, pp.127-152.

104
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

LUCA, Tânia Regina de & MIRANDA, Sônia Regina. O livro didático de história hoje:
um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 48,
p.123-144 – 2004.

RÜSSEN, Jörn. No caminho para uma pragmática da cultura histórica. IN: Aprendizagem
histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A. Editores, 2012, pp. 129-140.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem é esta?


Aprender história: perspectivas da educação histórica. Org. Maria Auxiliadora Schmidt,
Isabel Barca. Coleção cultura, escola e ensino. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,
vol. 16, nº 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990, p.5.

SILVA, Edlene Oliveira. Relações entre imagens e textos no ensino de História. Saeculum
Revista de História (22). João Pessoa, jan/jun. 2010, pp.173- 188.

SOUZA, Lilian Aparecida. Uma abordagem sobre a ação docente e a utilização de fontes
históricas nas séries iniciais. Londrina: Universidade Federal do Paraná: 2012.

STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Livros didáticos de História: o passado sempre presente,
2009. História e Ensino: Londrina, 2009.

THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra


dos Tapes. 2009. Tese de Doutorado, UNISINOS, São Leopoldo, 2009.

SEMPRE PRESENTE. História & Ensino. Londrina, Vol. 15, pp. 131-158, ago.2009.

105
O LIVRO DIDÁTICO E SUAS POSSIBILIDADES:
UMA ANÁLISE DE COMO AS MULHERES DO
SÉCULO XX SÃO APRESENTADAS NA OBRA
DE SCHIMIDT

KETRE MICHELE RODRIGUES KUCHARSKI1

Resumo: Por muito tempo as mulheres foram tituladas como as “rainhas


do lar”, e no lar deveriam permanecer. As mulheres, então, deveriam ser
controladas e se possível, impedidas pelos maridos de trabalharem fora do
lar, evitando assim a desagregação da família. Percebe-se assim que várias
foram as barreiras enfrentadas pelas mulheres ao longo da História da
humanidade para conquistar o seu espaço na atual sociedade. A presente
pesquisa foi desenvolvida no curso de Mestrado Profissional em História
- FURG e tem como proposta refletir como podemos articular a questão
do gênero dentro do conteúdo de História através dos livros didáticos.
Nesse sentido, será analisado como as mulheres do século XX, período de
grandes transformações sociais, são apresentadas no livro didático: Nova
História Crítica (9°ano) da editora Nova Geração do ano de 2002.2 Para
tanto, discutiremos a influência dos livros didáticos no espaço escolar,
analisando também por que a obra de Schimidt foi excluída da lista de
livros recomendados pelo MEC às escolas.

Palavras-chave: Livro-didático; Ensino de História; Gênero

O LIVRO DIDÁTICO NO CONTEXTO ESCOLAR


No meio acadêmico, diversas pesquisas estão sendo realizadas
sobre o livro didático, que ao longo do tempo tornou-se um recurso

1  Mestra em História - FURG, professora da Rede Municipal de Ensino de Três de Maio. E-mail:
kmkucharski@hotmail.com.
2  Schmidt, Mario Furley.Nova História Crítica- 8ª série. 2. ed. rev.São Paulo: Nova Geração, 2002

106
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

muito utilizado pelos educadores e educandos no contexto escolar.


Podemos salientar que em várias instituições de ensino no Brasil,
devido principalmente a falta de recursos econômicos de algumas
escolas, o livro didático acaba sendo a única ferramenta utilizada
pelos professores.
Todavia, é preciso destacar que a longa e exaustiva jornada de
trabalho de diversos professores muitas vezes dificulta ou impossibilita
o planejamento de aulas mais diversificadas em recursos. Sendo que,
nessas situações, o livro didático também se torna o material mais
viável.
Para os professores de História a situação não é diferente, porém
um pouco mais complicada, pois esta disciplina possui um número
de aulas reduzidas na semana, fato que condiciona os professores a
possuírem uma grande quantidade de turmas para completar a sua
carga horária. Sendo necessário muitas vezes a trabalharem em três ou
quatro escolas diferentes e em bairros ou cidades distintas.
Entretanto, devemos salientar que alguns professores,
independente da carga horária ou o número de escolas em que
trabalham também utilizam o livro didático devido ao comodismo
que este recurso pode proporcionar através de um conteúdo muitas
vezes pronto e acabado.
Nesse sentido, nós educadores necessitamos repensar nossas
práticas educativas, pois nossos alunos não podem ser depósitos
de conteúdos. Por isso, os conceitos estruturantes da pedagogia
emancipatória de Paulo Freire são fundamentais para evitarmos a
reprodução de uma educação alienante e conservadora. “Impedidos
de atuar, de refletir, os homens encontram-se profundamente feridos
em si mesmo, como seres de compromisso” (FREIRE,1979, p.35).
Destaca-se que tanto os educandos quanto os educadores possuem
uma bagagem de vivências e valores que devem ser considerados e
compartilhados a fim de que o grupo possa acrescentar e enriquecer
por meio de trocas de experiências. “Portanto, para cada uma das
situações seguem algumas questões que provocam ‘a nossa forma
de pensar’ no sentido de busca de novas práticas que tragam novas
reflexões,...” (VIEGAS, 2005, p.80).
A partir das aprendizagens construídas ao longo de nossas
experiências, devemos buscar novas práticas as quais, tragam novas
reflexões sobre a compreensão do mundo. Segundo as pesquisas de
Schimidt (2009):

107
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Constituir essas novas interpretações equivale a um trabalho de construção de expe-


riências e pesquisa, que poderão colaborar para a consolidação do uso de imagens,
como fotografias e filmes, em sala de aula (Schimitd, 2009, p.135).

No entanto também precisamos ter em mente, que recursos


didáticos como os filmes, músicas e internet acabam sendo descartados
por educadores desmotivados pela situação de sucateamento em que
se encontram diversas escolas públicas do país.
Dessa forma, percebemos que por vários motivos, o livro didático
acaba sendo um dos instrumentos de trabalho mais utilizado em sala
de aula. Segundo a análise de Stamatto (2009), o livro didático:

Exprime a relação entre aspectos da ciência de referência e de concepções pedagógi-


cas vigentes em uma determinada época, permitindo-se demonstrar períodos de mo-
dificações e permanências da aprendizagem dos conteúdos disciplinares (STAMATTO,
2009, p.131).

Todavia, precisamos ter em mente que ocorreram diversas reformas


educacionais para que o livro didático fosse implantado na educação
brasileira até chegar à forma como ele é selecionado e utilizado nas
atuais instituições de ensino. Diante disso, para entendermos melhor
como e quando esses manuais começaram a ser utilizados nas aulas de
História precisamos realizar uma breve análise dessa trajetória.
Por volta de 1838, por influência da coroa portuguesa no Brasil,
a História é instituída como disciplina escolar, sendo também
incluída no currículo escolar do Colégio Pedro II. Nesse momento, de
forma gradual, começa a ser percebido que os manuais são recursos
indispensáveis nas aulas de História.
Entretanto, é preciso destacar que somente depois de quase
cem anos, em 1931, as reformas educacionais apontaram mudanças
significativas no ensino de História. Conforme também destaca
Stamatto (2009):

Para a escola primária, introduziam-se muitos elementos da Escola Nova, como o pla-
nejamento por unidades temáticas o que trouxe modificações na publicação dos ma-
nuais escolares já que a divisão dos capítulos deveria acompanhar os temas propostos
na grade curricular. (Idem, p.137).

Todavia, também foi na década de 1930, que a educação tinha


como função afirmar um Estado autoritário. Assim, “foi em meio às
discussões educacionais com o estabelecimento do Estado Novo que
se criou o primeiro processo centralizado de avaliação dos manuais
escolares” (FILGUEIRAS, 2008, p.1).

108
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

No final dessa mesma década, a partir do decreto-lei nº 1.006/38,


foi criada a CNLD (Comissão Nacional do Livro Didático) que nesse
momento, estava ligada a educação e a saúde e tinha como função
avaliar os livros didáticos das escolas públicas e privadas do país.
Diante dessas mudanças, também chama a atenção que membros das
forças Armadas faziam parte da comissão avaliadora desses manuais.
Segundo as análises de Filgueiras (2008):

Com o pronunciamento, o Ministério enfatizava a liberdade de produção dos


manuais escolares pelas empresas privadas, mas reforçava os dois principais
objetivos da avaliação dos livros didáticos: o controle político/ideológico e
técnico/científico. (Idem, p.4).

Em 1945, no fim do Estado Novo, surge um novo decreto-lei que
apresentava poucas modificações referente aos critérios de avaliação
dos livros didáticos. Destaca-se que esse fato permanece e pode ser
percebido ainda hoje na forma como os livros são selecionados e
distribuídos nas escolas.

REFLEXÕES SOBRE GÊNERO ATRAVÉS DA OBRA DE


SCHIMIDT
Diante dessa questão, escolhi o livro didático: Nova História
Critica de Schimidt, o qual foi excluído da lista de livros recomendados
às escolas, como um estudo de caso. Analisando principalmente como
o autor relaciona a questão de gênero com o conteúdo de História em
seu livro do 9º ano da editora Nova Geração (2002).
Segundo o MEC, as escolas adquiriram 975.270 exemplares desse
livro, o qual foi excluído da lista de livros recomendados entre 2005
e 2007 por apresentar problemas conceituais e não por questões
ideológicas do autor.
Entretanto, também chama a atenção à postura crítica do jornalista
Ali Kamel, diretor executivo da Central Globo de Jornalismo, sobre
o conteúdo e a utilização dessa obra nas escolas mesmo depois de
ser proibido pelo MEC. Mas por que um funcionário da rede Globo
demonstra tanto preocupação sobre esse assunto?
Diante disso, também devemos ter em mente que o livro didático
serve como instrumento de disciplinarização e num mundo capitalista
em que vivemos nem todas as visões políticas são bem aceitas.
Em resposta às acusações Schimitd se defendeu escrevendo na
revista eletrônica História em perspectiva o artigo intitulado: A Rede

109
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Globo quis proibir a veiculação do livro “Nova História Crítica” nas


escolas. Por quê? Segundo as reflexões de Schimitd (2011):

Não publicamos livros para fazer crer nisso ou naquilo, mas para despertar nos estu-
dantes a capacidade crítica de ver além das aparências e de levar em conta múltiplos
aspectos da realidade. Nosso grande ideal não é o de Stálin ou de Mao-Tsé Tung. Mas
o de Kant: que os indivíduos possam pensar por conta própria, sem serem guiados por
outros. (disponível em; www.historiaemperspectiva.com/2011/08/rede-globo-quis-
-proibir-veiculacao-do.html. Acesso em: 16/02/2013 -14h.)

Como podemos observar a obra de Schimidt, foi escolhida por


muitos professores nos anos anteriores a avaliação do PNLD em 2007.
Mas devido a problemas conceituais a obra foi abolida da lista de livros
didáticos aprovados, recebendo também severas críticas de algumas
pessoas da sociedade.
No entanto, cabe aqui analisarmos: Como o autor articula a
questão do gênero feminino com o conteúdo de História em sua
obra? Como as mulheres do século XX são apresentadas no seu livro
didático: Nova História Crítica do 9º ano.
Essas são questões necessárias de serem problematizadas com os
estudantes, afinal, dizem muito da forma como vivemos e das relações
que estabelecemos na atualidade. E quando pensamos o processo de
ensino/aprendizagem, o uso de recursos didáticos, como o livro, é
fundamental, posto que qualifica as ações desenvolvidas e permite
um maior envolvimento de todos com as temáticas.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais as temáticas
de gênero e sexualidade são previstas como temas transversais e
devem ser trabalhados em sala de aula. Diante disso, primeiramente,
precisamos conhecer o conceito de Gênero: “Ele foi criado para
distinguir a dimensão biológica de dimensão social. Assim, gênero
significa que homens e mulheres são produtos da realidade social e
não decorrência da anatomia de seus corpos”. (Gênero E Diversidade
Na Escola: Formação De Professoras/es Em Gênero, Orientação Sexual
e Relações Étnico-Raciais,2009 p.43).
Dessa forma a realização desse trabalho de pesquisa se justifica
á medida que propõe a produção de um conhecimento acadêmico
específico sobre os estudos de gênero. Para tanto, será analisado como
as mulheres são apresentadas no livro didático de Schimidt. Segundo
as pesquisas de Pinsky (2009):

O importante é fornecer aos estudantes elementos para um “olhar de gênero”, ou seja,


fazer com que eles percebam como o masculino e o feminino têm sido e ainda são

110
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

representados e a partir disso, como as sociedades se organizam com base nessas


representações. (PINSKY, 2009, p. 29)

Esse é um tema relevante e que precisa ser abordado com os


estudantes para que compreendam sua história e a configuração atual
de sua forma de vida de maneira crítica e participativa. O ensino de
história precisa contribuir para alargar as leituras de mundo feitas
pelos estudantes, sendo também fundamental que o professor planeje
suas aulas de tal forma a garantir isso.
Nesse sentido o livro didático pode ser utilizado como fonte de
consulta que produz saberes, orienta e vai ao encontro de determinados
objetivos pedagógicos. Sendo ele um recurso que proporciona espaços
de reflexão, onde o professor deve estimular o desenvolvimento de
uma leitura crítica sobre a obra.
Nessa perspectiva, ao iniciarmos uma análise do livro didático:
Nova História Crítica do 9° ano é possível perceber que, desde o início
da sua obra, na parte onde destaca o modo de usar o livro, Schimidt
auxilia os alunos a não decorarem datas ou nomes de reis e generais.
Rejeitando assim, a visão positivista que destaca somente os homens
ilustres na História. Segundo o autor, o fundamental é saber raciocinar
historicamente, relacionar os acontecimentos apresentados no livro
com o contexto atual em que vivemos.
Nesse sentido, o autor analisa como os acontecimentos históricos
do passado influenciam a maneira de viver das mulheres e homens
na atual sociedade. Apresentando assim, através da influência da
Nova História, a qual, inseri os excluídos na História, a participação
dos gêneros no desenvolvimento da História.
Ele também destaca que não existe uma verdade absoluta na
História, existindo muitas vezes divergências entre os próprios
historiadores. Nesse sentido, o autor orienta aos alunos a também
pesquisarem outras fontes, motivando-os na construção de seus
conhecimentos.
Todavia, em relação à questão de gênero, conforme pontuamos,
logo no início de sua obra Schimitd inclui a participação da mulher na
sociedade. Destaca-se que também é possível perceber essa participação
do gênero feminino através de imagens e textos em vários momentos
do livro. Nesse sentido, foram selecionas apenas uma imagem e um
texto para serem analisados de forma mais significativa.
Assim, ao analisarmos o primeiro capítulo: A Primeira Guerra
Mundial, o autor apresenta na página 32 a imagem de um cartaz
inglês em preto e branco que destaca a presença de uma mulher com

111
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

um vestido e arrumando um chapéu na sua cabeça. Essa gravura tem


no fundo da imagem um cenário de guerra que apresenta um tanque
militar, balas de canhão e um soldado. Em seguida Schimitd explica
a participação feminina na fabricação de armas e traduz a frase do
cartaz, que em português significa: “A vida deles depende dela”. Por
fim, o autor completa argumentando que o trabalho fora de casa foi
fundamental para a emancipação da mulher.
Percebe-se que o autor selecionou para compor a sua obra a imagem
de um cartaz que demonstra a feminilidade e vaidade de uma mulher
arrumando o seu cabelo no chapéu mesmo em meio a um cenário
de guerra. Mas ao observarmos nessa imagem a frase “A vida deles
depende dela” podemos analisar melhor a participação significativa
da mulher na guerra. Nesse sentido, destaca-se que muitos os homens
estavam participando da guerra e faltava mão de obra no mercado.
Assim, surgiu a necessidade da inclusão do trabalho feminino,
inclusive na fabricação de munição para as armas dos homens que
lutavam na Primeira Guerra Mundial.
Naquele momento, embora os soldados tivessem um forte motivo
para permanecerem vivos e voltarem para os seus lares junto de sua
família, muitos acabavam mortos em combates. Assim, podemos
perceber que a vida dos filhos desses homens também dependia
das esposas operárias que acabaram assumindo o papel de chefes de
família.
Conforme destacou schimidt foi principalmente através do
trabalho fora do lar que a mulher conquistou sua emancipação. Para
completar essa análise é necessário salientar que na mesma página o
autor também apresenta no texto: O Novo Século, as mudanças do
papel da mulher. Segundo Schimidt (2002):

Não foram apenas as saias que subiram e os cabelos que encurtaram. Com tantos
homens engajados nos campos de batalha, milhões de mulheres arrumaram empregos
nas fábricas, nas lojas, nos escritórios. Estavam ficando mais conscientes de seus
direitos, mais livres. (SCHIMIDT, 2002, p.32)

Todavia, o autor não destaca em sua obra nesse momento a


questão do preconceito sofrido pela mulher. Dessa forma, salienta-se
que a mulher casada era uma mão- de- obra de reserva, empregada
somente quando sua contribuição econômica era indispensável para a
família. Elas recebiam baixos salários e enfrentavam muito preconceito
na sociedade em que viviam. Em vários países a mulher enfrentou a

112
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

discriminação por lutar pelos seus direitos. Segundo as pesquisas de


Fonseca (1997):

No imaginário das elites, o trabalho braçal, antes realizado em sua maior parte pelos
escravos, era associado à incapacidade pessoal para desenvolver qualquer habilidade
intelectual ou artística e à degeneração moral. [...] a operária, a lavadeira, a doceira,
a empregada doméstica [...] as várias profissões femininas eram estigmatizadas e as-
sociadas a imagens de perdição moral, de degradação e de prostituição. ( FONSECA,
1997, p.518)

Assim, o trabalho feminino fora do espaço doméstico representava


um risco para a sociedade. Acreditava-se que o trabalho poderia afastar
a mulher dos deveres domésticos e da vida familiar. O cuidado dos
filhos continuava a ser a função principal da mãe de família. A mulher
era titulada a rainha do lar e no lar deveria permanecer.
Porém, o autor apresenta maiores detalhes sobre as mudanças
sociais e a emancipação das mulheres no século XX através do texto:
A Nova Mulher. Nesse texto, o autor destaca principalmente o gênero
feminino nos anos de 1920. Ao argumentar sobre a mulher ocidental,
universitária da classe média e alta, Schimidt (2002) explica que:

Usavam cabelos curtos, fumavam, namoravam, iam a bares sozinhas ou com


as amigas, tornavam-se pintoras e cientistas, falavam sobre a emancipação
feminina. Algumas eram até intelectuais socialistas. (SCHIMIDT, 2002, p.116).

Nesse momento, podemos perceber que o autor destaca


principalmente a moda daquela época através dos cabelos curtos e
o habito de fumar, o modo como às mulheres se comportavam em
público ao frequentarem os bares das cidades e algumas profissões
que começaram a surgir, por exemplo, mulheres que se tornaram
cientistas. Ele ainda explica que na luta pela emancipação feminina,
algumas viraram intelectuais socialistas.
Porém, nesse texto, autor não apresenta nenhuma informação
sobre como viviam as mulheres pobres daquela época. Teriam elas
o direito de estudar e as mesmas oportunidades de escolhas que as
mulheres de classe média e rica? E como vivem as mulheres pobres
de hoje? Assim, percebo que caberia nesse momento do livro a
intervenção do professor na busca de uma reflexão maior por parte
dos alunos sobre essas mulheres não mencionadas no texto.
Continuando a análise, em outro trecho do texto, o autor explica
que “as feministas enfrentavam até a polícia pelo direito de voto.
Finalmente, a partir dos anos 20, os EUA e alguns países da Europa

113
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Ocidental começaram a adotar o voto feminino”. (SCHIMIDT, 2002,


p.116).
Embora de forma breve, Schimidt aborda nesse trecho a luta das
mulheres pela conquista de exercer os seus direitos como cidadãs,
através do voto feminino. Assim, percebo que para trazer maiores
esclarecimentos e buscando aprofundar o debate com os educandos
haveria, naquele momento em que o livro ainda era utilizado em sala
de aula, a necessidade dos professores buscarem outros recursos, como
por exemplo, jornais da época para completar o conteúdo do texto
apresentado sobre o voto feminino.
Finalizando o texto, o autor procura explicar as dificuldades
femininas enfrentadas na busca da sua independência e na garantia
do acesso aos outros espaços públicos numa sociedade extremamente
machista. Conforme conclui Schimidt (2002):

Mas, infelizmente, apesar de tudo isso a sociedade continuava machista. A maioria dos
homens não aceitava a independência feminina. Queriam esposas submissas. Escra-
vizadas mentalmente, temendo a liberdade, muitas mulheres ainda aceitavam velhos
papéis. (SCHIMIDT, 2002, p. 116).

Ao analisarmos este trecho percebe-se que o autor destaca as


várias barreiras enfrentadas pelas mulheres que, muitas vezes por
medo, continuavam aceitando a submissão ao marido e a total
responsabilidade com o trabalho doméstico e com a criação dos
filhos. Assim, tanto em casa como no trabalho, as mulheres foram
desvalorizadas e sufocadas por uma sociedade machista e conservadora.
Porém o autor, nesse momento, também não relaciona as
dificuldades enfrentadas pela mulher século XX com a mulher atual.
Assim, ele só aponta algumas questões referentes ao gênero feminino
sem associar estas questões com a sociedade de hoje.
Destaca-se ainda que ao lado do mesmo texto, Schimidt
apresenta uma gravura das mulheres da alta sociedade, onde aborda
principalmente a moda feminina da década de 1920 que começou a
ser imitada pela classe média. Cabe salientar que em outros conteúdos
do livro o autor também discute a moda feminina da época.
Todavia, é necessário salientar que através de uma pré-seleção
das páginas que seriam analisadas foi possível perceber no livro
didático de Schimidt a presença de várias imagens femininas. Sendo
que em alguns conteúdos era destacada principalmente a figura da
mulher militante, guerrilheira e partidária que em certos momentos
era representada por uma mulher armada. Também referente a esse

114
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

modelo de mulher apresentado, o autor reserva quase uma página


inteira de seu livro para narrar à história de vida da revolucionária
Olga Benário.
A investigação também demonstrou que, no conteúdo sobre a
História do Brasil da obra de Schimidt, poucas gravuras de mulheres
foram encontradas. Percebe-se assim uma ausência da mulher brasileira
e por consequência uma valorização da mulher estrangeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após uma analise sobre o livro didático Nova História Crítica do
9º ano, pode-se constatar que o autor destaca, em vários momentos de
sua obra, a temática sobre o gênero feminino. Nesse sentido, ele aborda
a participação da mulher enquanto sujeito histórico principalmente
através de imagens. Sendo que, nos textos em que a mulher é
mencionada, o autor também denuncia a opressão masculina sobre
as mesmas.
Entretanto, o estudo demonstra que algumas imagens de mulheres
servem muitas vezes apenas como ilustração no livro. Dessa forma,
entende-se que essas imagens não se relacionam de forma significativa
com os textos e muito menos com os exercícios apresentados nesse
livro didático.
Assim, percebo que em muitos momentos, caberia ao professor
aprofundar melhor a questão de gênero apresentadas nesse livro
didático em suas aulas de História. Sendo também fundamental para
uma melhor compreensão dos alunos, relacionarmos o modo de vida
das mulheres do passado com o modo de vida das mulheres do presente.
Mostrando assim, a longa trajetória das mulheres para conquistarem o
seu espaço na história da sociedade. Dialogando principalmente com
os alunos que essa luta continua até os dias atuais.
Por fim, podemos considerar que o professor deve utilizar o livro
didático de História com um recurso que também possibilita uma
reflexão sobre a questão do gênero em sala de aula. Cabe ao educador
estimular o senso crítico dos seus educandos sobre a obra, assim como,
relacionar a condição feminina do passado com as problemáticas
contemporâneas enfrentadas pela mulher.

115
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Os usos didáticos de documentos. In: Ensino
de História: fundamentos e métodos. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2011.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


história/Secretaria de Educação Fundamental. –Brasília: MEC/SEF, 1998.

FILGUEIRAS. Juliana. Os Processos De Avaliação De Livros Didáticos Na Comissão


Nacional Do Livro Didático. In: XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e
Exclusão. ANPUH/SP-USP. 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom

FONSECA, Claudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del. (org.). História
das mulheres no Brasil. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 1997.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Gênero E Diversidade Na Escola: Formação De Professoras/es Em Gênero, Orientação


Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro De Conteúdo. - Rio De Janeiro: CEPESC;
Brasília: SPM, 2009.

Livro didático reprovado pelo MEC continua sendo usado em salas de aula do Brasil-http://
oglobo.globo.com/educacao/livro-didatico-reprovado-pelo-mec-continua-sendo-
usado-em-salas-de-aula-do-brasil-4153370. Acesso em 18 Fev. 2013- 19h.

LOURO Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. 8. ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro:
MAUAD X, 2007.

O livro didático que a Globo quer proibir-http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_


noticia=23791&id_secao=10. Acesso em 18 Fev. 2013- 18h.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. Paz e


Terra, 1988.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro:
MAUAD X, 2007.

PINSKY, Carla Bassanezi (org). Novos temas nas aulas de história. São Paulo: Contexto,
2009.

SCHIMIDT, Maria Auxiliadora & CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2 ed. São Paulo:
Scipione, 2009.

116
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

SCHIMIDT, Mario Furley. Nova história crítica/ Mario Furley Schmidt.- -2.ed ver. E
atual. - -São Paulo: Nova Geração, 2002.

______. A Rede Globo quis proibir a veiculação do livro “Nova História crítica” nas
escolas. Por que? in: História em Perspectiva. 4 Ago.2011. <WWW.historiaemperpectiva.
com/2011/08/rede-globo-quis-proibir-veiculacao-do.html>. Acesso em 16 Fev. 2013-
14h.

STAMATTO, Maria Inês. Livros Didáticos de História: o passado sempre presente. In:
História & Ensino, Londrina, V.15, p.131-158 ago.2009.

VIÉGAS, Aline. Complexidade: uma palavra com muitos sentidos. In: FERRARO JR.,
Luis Antônio. (Org.). Encontros e caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e
coletivos educadores. Brasília: MMA, Diretoria de Educação Ambiental, 2005.

117
A REPRESENTAÇÃO DO GÊNERO NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA DA RSE

LUCIANA GERUNDO HORNES1

Resumo:O objetivo deste trabalho é perceber como as mulheres são


representadas nos livros didáticos de história da RSE. Esse artigo se propõe
a fazer uma análise sobre os discursos de gênero presentes no livro didático
do 8º Ano do Ensino Fundamental. A proposta Salesiana, baseada na razão,
na religião e no amor educativo, está presente tanto nos conteúdos, como
nos métodos e meios, visando o desenvolvimento crítico do educando, de
modo a torná-lo capaz de elaborar o seu próprio projeto de vida pessoal.

Palavras chaves: livro didático, gênero, mulheres.

GÊNERO: UM NOVO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO


HISTORIOGRÁFICA
A categoria gênero tem história recente na historiografia
contemporânea. A análise histórica sobre esse tema passou pela
história das mulheres e pela história social.
Desde o século XIX, quando a história passa a ser vista como uma
disciplina científica, o papel das mulheres sempre foi visto subordinado
à presença e a representação dos homens. Cabe salientar que por muito
tempo, os homens foram os únicos historiadores dando ênfase aos
assuntos políticos enfatizando a figura dos militares, dos imperadores,
reis presentes e atuantes numa história pública e nacional.

1  Doutoranda do Programa de Pós-graduação de História da Faculdade de Letras da Universidade


do Porto – FLUP (Portugal)

118
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Este estudo busca fazer uma análise de como o gênero está presente
nas relações humanas e consequentemente acaba gerando um sentido
a organização e à percepção do conhecimento histórico.
Ao direcionar os estudos à questão de gênero observamos que
esta temática faz parte de uma “construção social”, portanto faz-se
necessário pensar que a organização social de gênero é muito instável
e por consequência depende das variadas determinações e relações
de poder. Perceber essas relações e suas respectivas construções de
gêneros, pode nos apontar a várias possibilidades de mudanças de
paradigmas já devidamente estabelecidos e legitimados.
Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias, em Teoria e métodos dos
estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano,
aponta que os primórdios dessa temática foram colocados através da
Escola dos Annales.
Com a preocupação de resgatar a imagem das mulheres como
sujeitos históricos válidos Lucien Febvre e Marc Bloch, ampliaram
as possibilidades para a história das mulheres, proporcionando “o
desenvolvimento de conceitos capazes de relacionar o cotidiano dos
seres individuais e concretos aos sistemas abstratos e aos processos
históricos em que estavam inseridos”.2
Esse novo olhar proporcionou um campo fértil para o estudo da
história das mulheres.
A história das mulheres nasceu junto com o movimento
feminista, de acordo com Michelle Perrot, “o desenvolvimento de uma
antropologia histórica onde o estudo da família e os papéis sexuais
estavam em primeiro plano”.
Quando os historiadores sociais passam a observar novos objetos
de estudo, o gênero acabou revelando novas temáticas para serem
abordadas como: o estudo das mulheres, das crianças, as famílias e as
ideologias presentes nos gêneros.
As primeiras manifestações feministas estão cercadas no
movimento voltado para estender o direito de voto às mulheres. No
entanto, inicia-se na década de 1960, preocupações em teorizar esse
tema, surgindo estudiosas e militantes que buscavam problematizar
o conceito de gênero. Militantes feministas que estavam inseridas
no mundo acadêmico, vão trazer para o interior das universidades e
escolas, as temáticas que agora se tornavam cada vez mais questões a

2  DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e métodos dos estudos feministas: perspectiva
histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina
(org.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos
Chagas, 1992, p. 47.

119
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

serem discutidas e consequentemente debatidas no âmbito acadêmico.


Surge, portanto, os estudos da mulher.
A partir dos anos 80, os estudos feministas passam a ter um caráter
legítimo e institucional. Portanto, o mundo das mulheres passa a
fazer parte do mundo dos homens. Nesse contexto, a segregação
social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas
ocasionando a sua ampla invisibilidade como sujeito, a mulher
que antes pertencia apenas no mundo privado, gradativamente vai
ocupando o mundo público.
Vale ressaltar que os estudos feministas mostraram que quando as
mulheres exerciam atividades fora do lar, essa atividade era geralmente
representada como um trabalho secundário, “de apoio”, muitas vezes
ligados à assistência, ao cuidado ou à educação. Esses mesmos estudos
também iriam denunciar a ausência feminina nas ciências, nas letras,
assim como nas artes.
Através dos estudos das áreas de Antropologia, Sociologia,
Educação, Literatura, etc., são apontadas as desigualdades sociais,
políticas, econômicas, jurídicas, denunciando a opressão e
submetimento feminino.
Aos poucos o estudo sobre assuntos ligados ao feminismo, vai se
tornando fonte de debates e discussões sobre diversas temáticas. Nesse
momento, o termo gênero começa a ser discutido e trabalhado, é o
que salienta Joan Scott:

[...] a categoria Gênero, se proponha, para a análise histórica pretende compreender e


explicar significativamente o caráter relacional, transversal e variável dessa categoria
analítica. Gênero é uma categoria de análise histórica, cultural e política, e expressa re-
lações de poder, o que possibilita utilizá-la em termos de diferentes sistemas de gênero
e na relação desses com outras categorias, como raça, classe ou etnia, e, também, levar
em conta a possibilidade da mudança. (SCOTT, 1992).

Enquanto nos Estados Unidos, Joan Scott trabalha com a união


entre o feminismo e a história das mulheres, na França, Michelle
Perrot questiona o lugar da história das mulheres dentro da disciplina
de história. A autora mostra através dos seus trabalhos, os diferentes
caminhos percorridos pela história das mulheres.
No início eram apenas preocupações de âmbito de dominação e
opressão, passando para uma preocupação maior em dar visibilidade
a mulheres guerreiras, ativas, com isso tentando criar uma cultura
feminina.
No entanto, a busca das historiadoras, tanto as francesas, como
as norte- americanas, de primeiramente encontrar um espaço para

120
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

as mulheres na história e por último transformá-las em categorias


separadas dos homens, está entrelaçada com o pensamento do
movimento feminista.
As historiadoras feministas, segundo Júlia Kristeva, em Tempo
das Mulheres, aponta que a primeira geração de feministas procurou
ganhar um lugar no tempo linear. Essa geração negava todas as
características femininas ou maternais. No entanto, não conseguiu
ultrapassar a capacidade da cultura hegemônica.
A segunda geração buscou uma reafirmação da psicologia
feminina e toda a sua simbologia. Essa geração rejeitou o tempo linear
em favor de uma temporalidade monumental e cíclica. Essa geração
era totalmente separatista. No dizer de Joan Scott e Michelle Perrot,
construíram um “gueto” na academia.
Já a terceira geração busca aliar o ingresso na história e a afirmação
das diferenças, exigindo, portanto, os seus direitos.
No Brasil, foi já no final dos anos 80 que as discussões sobre essa
temática se tornam mais ampla. As feministas começam a trabalhar
com as questões de gênero. A questão agora é buscar entender como o
gênero constrói uma identidade.

GÊNERO E LIVRO DIDÁTICO


Em tempos de mudança na educação escolar, a Rede Salesiana
de Escola (RSE), a partir do ano de 2002, adota uma nova proposta
de ensino e aprendizagem, dividindo as regiões do Brasil por polos e
integrando todas as escolas salesianas à Rede com o intuito de unir as
escolas a fim de estabelecer a mesma proposta educativa baseada nos
princípios de Dom Bosco. Dessa forma, foi estabelecido como princípio
norteador, para garantir a unidade e os interesses pedagógicos e
religiosos da Congregação, o Marco Referencial do Projeto Pedagógico
da RSE, finalizando e implantado no Brasil em 2005. De acordo com o
projeto, os livros didáticos são considerados importante componente
para a efetivação da Proposta Pedagógica no Brasil. Ou seja, a RSE
passou a produzir e comercializar seu próprio material didático em
todas as escolas salesianas do Brasil.
O material didático de história caracteriza-se por explicitar uma
proposta inovadora no ensino de história.
No que concerne à análise da concepção historiográfica que
direciona o conteúdo de história, percebe-se uma intencionalidade

121
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

dos autores em aproximar os conteúdos abordados no livro didático


com a historiografia pautada na Nova História3.
No discurso dos autores ao selecionar os temas da coleção,
procurou-se:

[...] dar visibilidade e voz aos grupos sociais no interior das sociedades ou a povos
com cultura diferente da ocidental: povos muitas vezes silenciados e excluídos da me-
mória histórica. (Rota Machado, 2009, p. 39).

Os autores ainda completam dizendo que entendem a história


como uma prática social em que o diálogo entre o passado e o presente
permite “recuperar” ações e representações da ação dos diversos sujeitos
que participam ou participaram da história. Procuram entender os
desafios e conflitos em cada tempo e lugar de modo a perceber como
os sujeitos enfrentaram os desafios e conflitos.
Nessa perspectiva, esse artigo tem por finalidade investigar como
as mulheres são representadas nos livros didáticos da RSE.
Como assinalam Duby e Perrot (1993, p. 8), da Antiguidade aos
dias atuais, a escassez de narrativas nas quais as mulheres apareçam
como protagonista contrasta nitidamente com a profusão de imagens
que temos sobre elas. Por esse motivo, se os historiadores durante
tanto tempo se negaram a conferir uma importância singular às
mulheres nas narrativas que elaboravam sobre o passado, isso se devia
mais a um apego excessivo à cartilha positivista, que conferia ao
documento escrito a primazia na produção do relato historiográfico,
do que propriamente à ausência de fontes que pudessem nos revelar
nuances de particularidades da condição feminina e da contribuição
das mulheres para a dinâmica da história.
Por esse motivo é necessário que a escola reflita sobre a sua função
como instituição da sociedade, para que seu projeto pedagógico possa
tornar-se real.

3  A Nova História é uma corrente historiográfica que, de acordo com Burke (1992), conquistou
espaço na historiografia com os escritos de Le Goff da década de 1970 e 1980, principalmente
os três volumes “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”. Aos poucos,
também conquista espaço entre os historiadores e consequentemente influencia na maneira de
pensar e elaborar o conhecimento histórico a ser ensinado em sala de aula. Assim, a partir das
décadas de 70 e 80, novos olhares foram direcionados para a escrita da História, buscando um
direcionamento para as análises culturais dos acontecimentos históricos, assim como a utilização
de novas fontes e outras vozes antes não ouvidas. Ou seja, na Nova História, o historiador faz
parte do movimento da História trazendo uma multiplicidade de enfoques. É uma história
problema que pretende uma nova maneira de pensar, sentir e fazer História, estendendo-se
da produção acadêmica para o contexto escolar, principalmente nas discussões sobre os novos
direcionamentos na elaboração do currículo escolar.

122
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

A escola, portanto, não pode estar voltada exclusivamente


para a informação. Não é essa a sua função. Sua função é a formação
das novas gerações para o mundo do conhecimento. Por isso, a
informação só terá importância na escola se for usada para alcançar o
conhecimento.
Olhando dessa maneira, nessa nova perspectiva, é necessário dar
voz aos esquecidos, aos silenciados que durante muito tempo estavam
inseridos numa narrativa androcêntrica. Nessa nova construção do
saber, através dos livros didáticos produzidos pela RSE, a questão
de gênero e sua relação com a construção sócio-histórica, a mulher
passa a ser vista como um sujeito histórico, dotado de consciência
e de capacidade de intervenção na realidade, possibilitando a sua
visibilidade social. Essa abertura e principalmente essa ruptura com
a historiografia tradicional, ocasionou a escolha pela História Nova
Cultural, possibilitando uma maior abrangência de conteúdos e
atividades que estejam relacionadas ao universo de conhecimentos,
experiências e vivências do aluno. Nesse sentido, devemos reavaliar
e acrescentar novos temas e novas questões a serem trabalhadas
no contexto da sala de aula. A inclusão da mulher como objeto de
conhecimento e como sujeito ativo do processo histórico, se tornou
de suma importância no contexto do processo ensino-aprendizagem.
Portanto, visando essa nova perspectiva, acreditamos que
a função da escola está diretamente ligada a ensinar a conhecer, a
formar para compreender, a desenvolver o pensar para que crianças
e adolescentes saibam lidar com as informações e estabelecer relações
entre elas, sejam elas quais forem, mas, mais que isso, que saibam
escolher, decidir, projetar, agir e criar, porque conhecem uma nova
realidade de vida.
Quando falamos em uma nova proposta educativa nos
referimos ao Projeto Pedagógico da RSE, onde encontramos dentro da
proposta salesiana a sua base norteadora que inclui a razão, a religião e
o amor educativo, aspectos que estão inter-relacionados tanto nos fins
e conteúdos como nos métodos e meios, visando ao desenvolvimento
integral da criança e jovem. Apresenta um currículo, levando em conta
a cultura herdada da humanidade e das questões contemporâneas dos
homens e mulheres inseridos na sociedade.
Dentro dessa nova perspectiva baseada no desenvolvimento do
sentido crítico do aluno, foi necessário buscar uma nova organização
e planejamento da escola e do ensino.

123
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NOS LIVROS DIDÁTICOS


DA RSE
Na seleção do livro didático de história da RSE, foi analisado o
livro do 8º ano do Ensino Fundamental, buscando observar a narrativa
nele contida, a inserção da história das mulheres e sua respectiva
participação nos processos históricos.
Ao analisarmos o livro didático selecionado da Coleção do Ensino
Fundamental, percebemos uma preocupação constante em valorizar a
participação das mulheres nas questões históricas.
O livro didático do 8º ano, tem como preocupação e eixo norteador,
trabalhar com os assuntos relacionados aos Movimentos Sociais e suas
respectivas lutas da população por justiça e direitos, observando com
isso, toda a forma de organização da sociedade ou o exercício de poder
exercido em diversos momentos da história.
O livro é composto por três unidades. A primeira, visa mostrar
a interação entre os diversos grupos sociais ao longo da história,
atribuindo a cada uma dessas formas, uma dinâmica própria que as
identifica e ao mesmo tempo, diferencia.
Ao olharmos os movimentos sociais, percebemos as diferentes
formas de luta e resistência, dando oportunidade aos educandos de
analisar as permanências que continuam ocorrendo em nossos dias.
Na unidade 02, o livro didático, busca recuperar o processo de
construção de Estados independentes, estabelecendo novas relações
políticas, econômicas e culturais, nos moldes da Revolução Inglesa e
Americana.
E por último, na unidade 03, os assuntos abordados estão
inseridos no projeto de uma sociedade como a socialista. Se ela indica
possibilidades históricas no contexto atual e também é colocado em
questão o papel da democracia, onde a mesma acaba justificando as
guerras e os massacres cometidos em seu nome.
Para a abordagem a respeito da mulher e sua respectiva participação
nos processos históricos ficam assim representadas:
- Cap. 01: um pouco da história do Japão, o livro faz menção ao
papel importante na literatura japonesa, resgatando a autora do séc.
XI. Murasaki Shikibu, que escreveu com 630 mil palavras a história de
Genji, considerado o primeiro romance escrito em qualquer língua do
mundo e um clássico da literatura japonesa. p. 33
- Cap 02: escravidão hoje, em todos os lugares. O livro aborda o
tráfico de seres humanos, levantando a problemática da exploração
sexual sofrida pelas mulheres. p. 71

124
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

- Cap. 03: escravos e escravismos mostra um documento que


faz parte de um processo que apurava o caso de tráfico negreiro
ilegal, flagrado graças ao encalhe, em 29 de outubro de 1851, do
navio “Relâmpago”, procedente de Lagos, na Nigéria. Onde faz uma
descrição de uma escrava de 16 anos. P.87
- Tereza, líder do Quilombo Queriterê, localizado próximo ao rio
Piolho, no final do século XVIII. p. 95
- Imagens de Clementina de Jesus (cantora) e de Carolina Maria
de Jesus (escritora), texto a luta dos dias atuais.
- Cap. 04: Dorotéia Joaquina de Seixas – a Marília, Barbara
Heliodora e Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, as mulheres da
Inconfidência Mineira. Hipólita foi quem denunciou Joaquim Silvério
dos Reis e avisou o restante do grupo sobre a prisão de Tiradentes. p.
134
- Cap. 05: a participação da princesa Leopoldina no período que
antecede a Independência do Brasil. p. 150
- Leitura da obra Sessão do Conselho de Estado, pintada em 1922,
onde a Imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro, preside a sessão do
Conselho de Estado às vésperas da Declaração de Independência do
Brasil. p. 154
- Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a primeira mulher a fazer
parte de uma unidade militar no Brasil ( Guerra da Independência da
Bahia). p. 161
- Cap. 07: representação das mulheres na Revolução Industrial.
p. 233
- Imagem da mulher no período da industrialização do Brasil. p.
240
Partindo-se da breve análise sobre a presença do gênero feminino
no conteúdo dos livros didáticos de história, do ensino fundamental
da RSE, confirma-se a inclusão da mulher dentro da história. A
quantidade de documentos e imagens, reforça a participação feminina
na história.

CONCLUSÃO
Dos sete capítulos que se constrói o livro didático, seis fazem
referência a mulher, como sujeito ativo do processo histórico.
Os registros dessas ações são sempre vestígios tênues do que foram,
de fato, esses momentos, sendo possível resgatar essas memórias,
passamos a analisar e refletir sobre elas, à luz das novas descobertas e
ressignificar o passado histórico.

125
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Podemos perceber a presença de uma discussão real sobre a


questão de gênero no livro didático de história da RSE, onde o
mesmo conseguiu abarcar as práticas historiográficas onde a mulher
é parte real da formação histórica, cuja visibilidade permite a sua
construção sócio histórica e sua respectiva relação com a totalidade
social, produzindo condições reais da existência de indivíduos antes
totalmente esquecidos.

FONTES
ZENUN, Katsue Hamada e. História: ensino fundamental, 8º ano. / Katsue Hamada e
Zenun e Mônica Markunas. 2ª edição. Brasília: Cisbrasil – CIB, 2011.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. - 4. ed. São
Paulo: Cortez, 2011.

____________________ (org.). O saber histórico na sala de aula. 11. ed., 4ª reimpressão –


São Paulo: Contexto, 2010.

____________________. Livros didáticos entre textos e imagens. O saber histórico na


sala de aula. São Paulo, Contexto, 2009.

CHARTIER, Roger. A história entre narrativa e conhecimento. In: À beira da falésia: a


história entre certezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed.
Universidade / UFRGS, 2002.

_______. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990

_______. O mundo como representação. In Revista Annales ( NOV- DEZ). 1989, N° 6.


Tradução In: Estudos Avançados, 1991.

_______. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos
XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priore. Brasília: EdUnb, 1999.

_______. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun/


Roger Chartier; tradução Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes- {São Paulo}: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP,1998

_______. Cultura escrita, literatura e história. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre:
ARTMED Editora, 2001.

126
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e métodos dos estudos feministas: perspectiva
histórica e hermenêutica do cotidiano. In: COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI,
Cristina (org.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo:
Fundação Carlos Chagas, 1992.

DUBY, G. & PERROT, M. História das mulheres: a Antiguidade. Porto: Afrontamento,


1993.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. Campinas, SP:


Papirus, 2003.

_______________. Caminhos da história ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993.

KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. – 5.


ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2009.

LE GOFF, Jacques. A História Nova. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. 4 ed. São
Paulo. Martins Fontes, 1998.

________________. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, Jacques.


História: novos objetos. Rio de Janeiro. Francisco Alves, 1976.

LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpo, gênero
e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Editora Vozes: Petrópolis/RJ,
2008.

___________________. “Gênero, História e Educação: construção e desconstrução.”


Educação & Realidade, v. 20, n. 2, 1995.

___________________. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

LUCA, Tânia Regina de. Livro didático e Estado: explorando possibilidades


interpretativas. In: ROCHA, Helenice Aparecida; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo
de Souza. A História na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2009.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no ensino


de História. In: ROCHA, Helenice Aparecida; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de
Souza. A História na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

MONTELLATO, Andrea; CABRINI, Conceição; JÚNIOR, Roberto Catelli. História


Temática: o mundo dos cidadãos. São Paulo: Scipione, 2001.

MUNAKATA, Kazumi. O livro didático e o professor: entre a ortodoxia e a apropriação.


In: MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlete Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de
Souza. Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2007.

127
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Parâmetros Curriculares Nacionais de História. Secretaria da Educação. MEC. Brasília.


1998.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 185.

PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Novos temas nas aulas de História. São Paulo: Contexto,
2009.

________________ (org). Fontes históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.

PINSKY, Jaime. O ensino de História e a criação do fato. ver. e atual. – São Paulo:
Contexto, 2009.

RSE - PROJETO PEDAGÓGICO - Marco Referencial. São Paulo: Salesiana, 2005.

SCOTT, Joan W. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade,
Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.

THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1998.

WOODWARD, k. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:


SILVA, T. D. (org.); HALL, S.; WOODWARD, k. Identidade e Diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

128
TEATRO OPERÁRIO, LIVRO DIDÁTICO E
CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

SABRINA MEIRELLES MACEDO1

Resumo: O presente artigo objetivou discutir o papel de duas ferramentas


educativas usadas em momentos e espaços distintos, mas que tem em
comum o caráter de serem produtos e também produtores de uma cultura
e, consequentemente de uma consciência históricas, a saber: o teatro
operário, nas décadas iniciais da República Velha, e mais atualmente, o
livro didático. Foi feita uma breve análise em um livro didático de História
a fim de levantar se e de que forma a temática do teatro operário figura
na narrativa desta obra, apontando para a invisibilidade desta atividade
cultural e educativa na narrativa apresentada.

Palavras-chaves: Consciência Histórica. Gênero. Educação. Livro


didático.

Ao se pensar educação logo vem à mente da maioria das pessoasas


instituições formais de ensino, os espaços destinados ao aprendizado
de conteúdos específicos e habilidades necessárias a vida em sociedade,
e em geral ao mundo do trabalho, a escola. Mas esse é apenas mais um
espaço onde o processo educativo se efetiva, pois sob uma ótica mais
ampla a educação se dá em uma centena de outros lugares – espaços
informais -sem a institucionalização que sacraliza a escola, a academia.
A educação vista de uma forma mais ampla, que ocorre onde houver
diálogo, trocas de experiências, vivências, ocorre em outros espaços
sociais, como nas igrejas, nos sindicatos, no cotidiano familiar, nos
espaços públicos, como o cinema, o teatro, na praça pública.
1  Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em História
da Universidade Federal do Rio Grande – PPGH-FURG. .Doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande – PPGEA-FURG.
Bolsista Capes. E-mail: sabrinameirelles@hotmail.com

129
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Como aponta o historiador alemão Rüsen (2010, p.24) antes de


alguns saberes humanos adquirirem o status de ciência no século
XIX, “o ensino e a aprendizagem, processo fundamental na cultura
humana, não era restrito simplesmente à escola”. Sendo assim o ser
humano ingressa no processo educativo a partir do primeiro contato
com o mundo externo, logo após seu nascimento, e nele permanece
até sua morte, tendo consciência disto ou não.
Ao abordar o conhecimento histórico Rüsen argumenta que as
raízes do saber histórico sejam as necessidades sociais, o cotidiano
dos sujeitos, e que este deve orientar para a vida dentro da “estrutura
tempo.”. Sob essa perspectiva o papel da disciplina História deve ser
o de contribuir para a formação de uma consciência história, que
segundo o autor

é uma categoria geral que não apenas tem relação com o aprendizado e o ensino de
história, mas cobre todas as formas de pensamento histórico; através dela se experien-
cia o passado e se o interpreta como história. (...) É uma combinação complexa que
contém a apreensão do passado regulada pela necessidade de entender o presente e de
presumir o futuro. (RÜSEN, 2010, p.36).

A consciência histórica é resultante de processos mentais que


ocorrem a partir da tomada de informações, saberes, que aos poucos
vão internalizando-se, tornando-se conhecimento, passando a ser
utilizado pelos sujeitos como orientação no seu dia-a-dia. Rüsen
defende que o papel da história seja o de orientar, dar as condições
para que os sujeitos se compreendam enquanto partícipes da História e
possam assim orientar-se no tempo. Corroborando com tal perspectiva
Cerri (2011, p.61) entende consciência histórica como, “estrutura
inerente ao pensamento e a ação humanas”, variando de acordo com
os sujeitos e seu contexto, pois de forma geral todos os indivíduos
se relacionam com o tempo, dando sentido aos acontecimentos e
significando-os para orientar suas escolhas. A consciência histórica
é construída a partir das experiências, das vivências e aprendizados
dos sujeitos, sejam estes produzidos no espaço formal ou informal de
educação.
A orientação temporal é para Rüsen a necessidade comum a todos
os humanos que vivem em sociedade, visto que todos os sujeitos estão
inseridos no tempo, e como aponta Cerri (2011,p.60), “o tempo nos
define, nos limita e nos constrange: estamos condenados a ele, sem
opção de não estar nele.” Já que não pode se optar,é necessário saber
se orientar nesta estrutura. A noção do tempo, objeto essencial da
História, não se apreende e se compreende apenas na escola. O tempo

130
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

perpassa pelos sujeitos em suas múltiplas vivências, e a noção que


dele resulta pode ser decorrente de experiência própria ou até mesmo
herdada, conforme aponta Cerri (2011, p.60).

O passado é tanto aquele que experimentamos direta e pessoalmente, como testemu-


nhas ou como protagonistas diretos, quanto o passado que conhecemos porque nos
contaram, mostraram ou ensinaram. As demandas que temos para o futuro constituem
nossas intenções, já que toda ação corresponde – mesmo que em parte – a um desejo
de ir além do ponto em que estamos, no sentido dos nossos objetivos. Por fim, a
equação se completa com uma compreensão geral do que é o tempo, de onde vem,para
onde vai e como define o sujeito e o seu grupo.

As noções de tempo e de passado estão além da educação escolar,


mas resultam também de um aprendizado informal, de uma educação
que se dá até mesmo antes do processo escolar, e que servirá como
base para os sujeitos orientarem-se e traçaram projetos para sua vida
futura, inclusive, intervindo conscientemente na sociedade na qual
estão inseridos. As noções de tempo, consequentemente de passado e
futuro, podem ser apreendidas por experiência própria ou ensinadas,
através do cotidiano, da cultura dos antepassados, da cidade,do grupo
ao qual pertencem os sujeitos.
Assim como os espaços educativos são muitos, além das instituições
oficiais de ensino, também as ferramentas pelas quais se processa o
aprendizado são várias, e são elas produtos e também produtores de
cultura, já que são resultado da ação humana e expressão de suas visões
de mundo, e que por sua vez expressam uma consciência histórica,
pois “a narrativa é uma de suas faces”. (BARCA; GARCIA; SCHMIDT,
2010, p.12). Visto a consciência histórica e o aprendizado, sejam eles
desenvolvidos na escola ou fora dela, mas enfim em todos os espaços
sociais transitados pelos sujeitos, corporificarem-se em escolhas e
posturas, norteando assim as relações sociais, pode-se afirmar que as
formas como as sociedades se organizam em relação ao papel social
dos sujeitos também é fruto desse processo.
Tratando-se especificamente das relações de gênero, dos papéis
e espaços socialmente pré-estabelecidos para as mulheres e homens,
os quais orientam as posturas dos indivíduos, agindo sobre suas
identidades, cabe a análise destas narrativas, aqui representadas por
duas ferramentas educativas: o teatro operário nos primórdios da
República Velha na cidade de Rio Grande, enquanto uma ferramenta
informal de educação, e o livro didático, pensado e produzido para os
espaços formais de educação, como as escolas, mas que acabam por
extrapolar os limites escolares.

131
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

A fim de nortear a análise fazem-se necessários alguns


questionamentos: Quais as representações de gênero apresentadas
por essas ferramentas educativas, levando-se em conta as diferenças
temporais entre elas? De que forma o teatro operário retratava as
relações de gênero, moldando as relações entre o feminino e masculino?
E mais atualmente, se e de que forma o livro didático aborda a questão
de gênero ao tratar o movimento operário na República Velha? A fim
de compreender tais questões se faz necessário uma breve abordagem
sobre a trajetória da constituição do conceito de gênero e sua inserção
na historiografia.

GÊNERO NA NARRATIVA HISTÓRICA


De acordo com Perrot (1988,p.185) por um longo tempo a
História se configurou enquanto um “(...) oficio de homens que
escrevem no masculino. Os campos que abordam são os da ação e
do poder masculinos, mesmo quando anexam novos territórios”.
A narrativa histórica ocupava-se de espaços e episódios onde a
presença das mulheres era pouca ou nulamente sentida, além de
abordar espaços ditos como masculinos onde não se admitiam ou
se ocultavam a presença das mulheres. No entanto, nas últimas
décadas do século XX “o universo dos historiadores se expandiu a
uma velocidade vertiginosa.” (BURKE, 2011, p.7), e a historiografia
tem experimentado desde então um processo de alargamento de
horizontes, abarcando novos temas e personagens. O contato maior
com outras áreas das ciências permitiu a incorporação de conceitos,
enriquecendo a análise histórica. O gênero faz parte desta inovação,
e segundo Filho (2005, p.129) o conceito de “gênero enquanto uma
categoria útil de análise para a História” possibilita uma análise mais
ampla das relações desenvolvidas entre homens e mulheres, bem
como das desigualdades sociais e hierárquicas dentro de um mesmo
gênero – diferentes mulheres e diferentes homens. Sob tal perspectiva
tomaram corpo novos temas e indivíduos sociais, antes excluídos do
discurso historiográfico.
A questão da inserção do gênero enquanto categoria analítica na
historiografia esteve ligada inicialmente aos movimentos feministas,
que se apresentaram com maior ímpeto em meados do século XX,
principalmente a partir dos anos de 1960 nos Estados Unidos. Tais
movimentos que reivindicaram maiores direitos políticos e espaços
sociais às mulheres acabaram por impor a necessidade de restabelecer
a tais sujeitos seu papel social, seu lugar na história, emergindo daí a

132
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

chamada “história das mulheres”, passando-se então a dar espaço na


narrativa histórica as mulheres, não apenas como coadjuvantes, mas
como sujeitos históricos há muito tempo esquecidos e silenciados. As
mudanças na academia quanto ao surgimento de novas abordagens
sociológicas e historiográficas acompanharam tais transformações
sociais que passaram a demandar informações dos (as) acadêmicos (as)
sobre as questões que estavam sendo discutidas.
A partir dos anos de 1970 as universidades francesas criaram
cursos, colóquios e grupos de reflexão sobre a temática feminina.
Multiplicaram-se pesquisas e a história das mulheres tornou-se
um campo relativamente reconhecido em nível institucional, e
tais estudos se propagaram a outras partes da Europa e do mundo,
inclusive chegando ao Brasil, acompanhados também dos movimentos
feministas, na chamada segunda onda. Esses movimentos iniciaram
assim profundas mudanças nas relações de gênero, pois passaram a
questionar os papéis estabelecidos pela sociedade quanto àquilo que
era próprio para mulheres e homens.
Esta apropriação da história das mulheres pela academia vai
aos poucos rompendo com o campo político, seu campo originário,
possibilitando o surgimento de uma categoria de análise, o gênero,
“(...) aparentemente neutro, desprovido de um propósito ideológico
imediato”, e que segundo Scott (2011, p.67) envolveu uma “evolução
do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política
para a história especializada e daí a análise.” O termo é inicialmente
utilizado para enfatizar que as diferenças baseadas nos sexos biológicos
são socialmente construídas, indicando uma rejeição do determinismo
biológico implícito nos termos como “sexo” e “diferença sexual”. No
entanto, por muitas vezes gênero tem sido utilizado como sinônimo
de mulheres, e como aponta Scott (1995, p.75)

Nessa utilização, o termo “gênero” não implica necessariamente uma tomada de posi-
ção sobre a desigualdade ou o poder, nem tampouco designa a parte lesada (e até hoje
invisível). Enquanto o termo “história das mulheres” proclama sua posição política ao
afirmar (contrariamente às práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos
válidos, o termo “gênero” inclui as mulheres sem lhes nomear, e parece assim, não
constituir uma forte ameaça.

Dessa forma muitos estudos chegaram a substituir “mulheres”


por “gênero”, em uma tentativa de neutralizar a narrativa, despolitizá-
la, desvinculando-se assim dos movimentos feministas, mas
buscando legitimidade perante uma nova abordagem sociológica e
historiográfica,decorrentes das novas demandas sociais. Porém, ainda

133
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

segundo Scott o termo “gênero” tem sido utilizado também para


sublinhar uma relação condicional entre homens e mulheres, onde
nenhum dos dois pode ser compreendido se analisados em separado,
designando assim as relações sociais entre os sexos. Sendo assim “(...) o
termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais”
– a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos
homens e as mulheres”. (SCOTT, 1995, p.75), ou seja, refere-se aos
modelos de feminino e masculino pré-estabelecidos socialmente, que
diferem com o tempo e as sociedades humanas.
Sendo assim, gênero é aqui empregado enquanto uma
categoria de análise, que busca discutir os modelos de feminilidade
e masculinidade difundidos por meios educativos, como o teatro
operário no século XX e, atualmente o livro didático, ambos produtos
e produtores de consciência histórica. A funcionalidade da utilização
do gênero enquanto uma categoria de análise está além, na proposta
do presente artigo, de fazer uma história das mulheres, mas sim em
trabalhar as relações entre homens e mulheres, tomando emprestadas
as reflexões propostas por Scott (1995, p.74):“Como o gênero funciona
nas relações sociais? Como o gênero dá sentido à organização e à
percepção do conhecimento histórico? As respostas dependem do
gênero como categoria de análise”.Sendo assim, ao analisar o teatro
operário na cidade de Rio Grande nos anos iniciais da República Velha
buscou-se compreender de que forma se desenrolavam as relações
sociais entre homens e mulheres que pertenciam a tal grupo, de que
forma os modelos de feminino e masculino apresentados por tal
atividade educativa e cultural contribuíam para a construção de uma
determinada consciência histórica, era reflexo de uma, e organizava a
classe trabalhadora.

O TEATRO OPERÁRIO ENQUANTO ESPAÇO EDUCATIVO E


FORMATIVO DE UMA CONSCIÊNCIA
O teatro operário foi amplamente difundido entre as associações
de socorro mútuo e organizações da classe operária durante as
primeiras décadas da República Velha principalmente, pois além de
apresentar-se como um espaço de lazer e encontro, desempenhava
também um papel fundamental na educação do operariado, uma
classe social onde o analfabetismo era um problema comum. Segundo
Del Roio (1986 apud COLLAÇO, 2008) o teatro foi largamente usado
como instrumento de educação política pelos operários, pois “(...) a
maior parte dos trabalhadores é analfabeta e, mesmo quando sabe

134
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

ler, são oriundos de povos de longa tradição apenas oral, tanto os


brasileiros como os italianos e ibéricos.” Corroborando com esta
questão Bittencourt (2011) aponta que a educação no Brasil neste
período se caracterizava pela ineficiência do sistema, sendo expressivo
o número de analfabetos(as).
Ao tratar especificamente da cidade de Rio Grande Bittencourt
(2007) aponta que questões, como a precariedade da infraestrutura, a
falta de professores, as verbas e os materiais, constituíam-se em barreiras
para o desenvolvimento satisfatório de um sistema de educação pública
na cidade. No município, a instrução primária se iniciou em 1770,
por iniciativa do professor Manoel Simões Xavier, que ensinava a ler,
escrever e contar. Além da escrita e das quatro operações matemáticas,
a educação ainda consistia no ensino de caráter religioso, e as aulas
eram restritas aos homens. No Rio Grande do Sul as primeiras escolas
destinadas ao público feminino foram criadas alguns anos mais tarde
por meio da Resolução de 25 de outubro de 1831, e, em 1846, o estado
contava com 51 escolas de instrução primária, sendo que destas apenas
15 eram destinadas às meninas. (BITTENCOURT, 2007).
Além do analfabetismo que impossibilitava a leitura de panfletos,
livros e jornais que visassem a formação de uma consciência operária,
outra questão relevante ao uso do teatro como espaço de formação
de classe e de uma consciência foi a presença de trabalhadores (as)
estrangeiros(as) que compunha o operariado brasileiro, em especial o
operariado riograndino. Estes grupos eram em sua maioria originários
de uma tradição oral, onde a cultura era transmitida de geração para
geração através da oralidade, da fala, do discurso. Dessa forma, o teatro
era a maneira mais eficiente e prática para conscientizar e educar os(as)
trabalhadores(as) e suas famílias.
Durante os primeiros anos da República Velha o cenário intelectual
e de lideranças do movimento operário foi disputado fortemente
por duas principais correntes ideológicas: a socialista e a anarquista.
O uso didático do teatro, enquanto elemento conscientizador de
transformação social era defendido principalmente pela corrente
anarquista, que buscava despertar a consciência de classe e educá-la
para as reivindicações e lutas. Na cidade de Rio Grande, que já nos anos
finais do século XIX vem passando por significativas transformações
sociais e econômicas, como o surgimento das indústrias e a formação
de um expressivo operariado, também a vida cultural ganhava novos
contornos. Enquanto a burguesia criava seus próprios lugares de lazer
e cultura, como cafés, cabarés, casas de leitura, teatros, a classe operária
também construía seus espaços de sociabilidade, produzindo bens

135
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

culturais, e dessa forma as associações de socorro mútuo, primeiras


formas de organização operária, passaram a oferecer a seus associados
várias atividades culturais, como bailes, bibliotecas, e grupos teatrais.
Ao abordar o papel do teatro operário em Rio Grande nesse
período Silveira (2001, p.58) descreve sua capacidade de trazer a tona
o cotidiano das sociedades, visto que o teatro dialoga com “o real e a
partir daí refunda esta realidade de acordo com determinados valores
e interesses.”. O fazer teatral representava o cotidiano dos sujeitos,
colocando em “movimento diferentes ordens de representação no meio
operário local”, funcionando assim como uma descrição do cotidiano
deste, atribuindo papéis, transmitindo normas comportamentais, e,
além disso, projetava um futuro proposto à classe operária.
Segundo Silveira (2001, p.58) o teatro é “locus por excelência
da representação”, representação entendida aqui como classificações
que organizam a compreensão do mundo social como categorias
de percepção do real, variando de acordo com as classes sociais,
determinadas pelos grupos que as constroem. Por isso mesmo
não são neutras, mas sim produzem estratégias e práticas com a
intencionalidade de impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo
a legitimar escolhas. (CHARTIER, 1990). O teatro operário, desta
forma, visava a construção de uma visão de mundo, construindo uma
consciência histórica, ao mesmo tempo em que refletia aspectos das
relações sociais dos sujeitos envolvidos, reproduzindo-as ou propondo
novos comportamentos.
A dimensão educativa da atividade teatral já era explorada no
mundo Antigo, no Egito e a Grécia, e também foi amplamente utilizada
na catequização e dominação dos povos indígenas nas Américas
pelos religiosos colonizadores. Segundo Bittencourt (2007) foi com
os gregos que o teatro se constituiu como uma expressão artística
e educativa, dando espaço para o texto. De acordo com o referido
autor a encenação dramática mais antiga registrada no Brasil data de
1575, com a encenação de O rico avarento e Lázaro pobre, na região
atual do estado de Pernambuco. O primeiro brasileiro a escrever uma
peça teatral foi Manuel Botelho de Oliveira, considerado o primeiro
teatrólogo nacional. Ciente do potencial educativo oferecido por esta
atividade cultural, já em 1771 o rei português D. José I assinou um
alvará no qual determinava a criação de teatros públicos no Brasil,
justificando tal medida por estes “[...] serem a escola por onde os povos
aprendem as máximas sãs da política, da moral, do amor, do zelo e da
fidelidade, com que devem servir aos soberanos, e por isso não são só
permitidos como necessários” (BITTENCOURT, 2007, p.151).

136
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Os teatros (enquanto espaços físicos destinados a encenação) eram


entendidos como símbolos de progresso e cultura, sendo oportunidades
de difusão de lazer e instrução, espaços de sociabilidades e civilidade,
essencial à burguesia brasileira nascente. De acordo com Bittencourt
(2007) em Rio Grande, as atividades teatrais ganharam impulso com
a construção, em 1832, do Teatro Sete de Setembro, com capacidade
para 1.200 pessoas, e, em 1876, com a conclusão da obra do prédio
do Teatro Politheama, o qual tinha capacidade para 1.600 pessoas.
Durante o século XIX, foram fundadas em torno de 32 sociedades
e grêmios dramáticos. Nas primeiras décadas do século XX surgiram
mais 20 grêmios e até os anos de 1930, mais 17 novas sociedades
haviam sido fundadas, números expressivos que indicam a relevância
cultural que o teatro representava na cidade do Rio Grande, sendo
apreciado por todos os grupos sociais.
A Sociedade União Operária foi uma das entidades de classe que
se destacou na organização e constituição do operariado riograndino.
Fundada em 1893 exerceu até a década de 1960 um importante papel
na organização, mobilização e educação dos(as) trabalhadores(as).
Além de organizar o operariado local a entidade buscava a formação
cultural de seus associados, mantendo jornais, bibliotecas, por algum
tempo escolas para os filhos(as) dos(as) trabalhadores(as), bem como
um grupo teatral. Fundado em 1902 o Grêmio Lyrico Dramático estreou
no mês de abril do mesmo no Teatro Sete de Setembro e estendeu suas
atividades até 1950 (SILVEIRA, 2001). O teatro operário realizado nesse
espaço permite vislumbrar as relações de gênero estabelecidas neste
grupo social desde a composição de seu corpo cênico, que era formado
apenas por homens, sendo as mulheres vedadas de nele participar.
Quando as peças exigiam papéis femininos, estes eram executados
por atrizes convidadas junto aos grupos amadores não operários da
cidade de Rio Grande. Dessa forma o lugar reservado ás mulheres
no teatro operário da União Operária era o de espectadoras, e então
restava a elas “assistirem aos espetáculos sob a “proteção” dos
militantes, que formavam uma “comissão de ordem e respeito”, uma
espécie de regimento que regrava a conduta exigida no salão teatral
(SILVEIRA, 2001, p. 68).Outros aspectos reveladores das relações de
gênero eram o papel secundário relegado aos personagens femininos
bem como seu número reduzido quando comparados ás personagens
masculinos. Em geral as personagens femininas se limitavam a apenas
uma dentro de um universo masculino maior.
Entre as muitas peças teatrais que compunham o acervo da União
Operária as de autoria masculina são a maioria. No entanto, destaca-

137
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

se a atuação da militante libertária Agostina Guizzardi, uma italiana


que participou ativamente do movimento operário riograndino nos
primórdios dos anos 1900, e deixou entre escritos e discursos duas
peças teatrais, Honra Proletária (1905) e Amor e Ouro (1906). O drama
social Amor e Ouro retrata um casamento arranjado por interesse
entre uma moça rica e um industrial, com a interferência direta de
um padre. No entanto, a moça apaixonada por outro rapaz prefere o
suicídio à desobedecer os mandos do pai. A obra faz um deslocamento
do mundo do trabalho para a vida familiar, o que segundo Silveira
(2001, p.73) se fazia necessário para que Guizzardi pudesse “explorar a
dominação de gênero em seu ponto nevrálgico, a família patriarcal.”.
A obra faz uma severa crítica ao capitalismo, a sociedade
burguesa, e principalmente ao clero. A representação feminina, que
se limita a uma única personagem, está atrelada ao imaginário social,
de fragilidade e obediência. Não podendo cumprir com a ordem do
pai, mas sem forças para romper tal relação de poder, a moça tira a
própria vida, contrariamente a figura do irmão, um dos representantes
masculinos, que desde o início da narrativa, desafia o pai e rompe
com sua autoridade. Assim, as relações e os papéis entre os gêneros
mais uma vez são reproduzidos: enquanto a mulher chora e sofre seu
destino, agindo com o coração, o homem enfrenta e desafia, agindo
contra os desmandos do pai.
Ao mesmo tempo em que Guizzardi denunciava a condição
de submissão das mulheres nas relações familiares e sociais como
um todo, não conseguiu romper com os modelos de feminino e
masculino que circulavam pela sociedade. Talvez o fizesse, mantendo
os personagens com valores e comportamentos tradicionais, a fim de
garantir a aceitação do público, evitando chocar as pessoas com uma
abordagem mais ousada para a época. Sua atuação em outras ocasiões,
como uma comemoração realizada na entidade revelam uma mulher
crítica e ciente da necessidade de se discutir entre o operariado as
desigualdades presentes.
No entanto, esta breve abordagem permitiu perceber que na
maioria das vezes, embora o objetivo fosse o de contestar a sociedade
capitalista e burguesa vigente, conscientizando e educando o
operariado para a luta, “o fazer teatral estava mais direcionado para
uma pedagogia que preservava os valores, a moral e os costumes da
ordem dominante no país.” (COLLAÇO, 2008,p. 3). De acordo com
Silveira (2001) tal “silêncio da voz feminina” na União Operária
indicava a existência de valores e práticas tradicionais no cotidiano
desta associação, condizente com o conservadorismo do operariado

138
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

nacional. Tais situações refletiam o contexto social vigente, de uma


mentalidade conservadora, onde o espaço reservado às mulheres era
o privado, e as atitudes pré-estabelecidas e esperadas para seu gênero
incluíam a passividade, o silêncio, a resignação. Sendo assim, os(as)
operários(as) e suas lideranças reproduziam em muitos aspectos o
sistema social o qual denunciavam.
O teatro operário foi uma ferramenta educativa bastante presente
na vida do operariado, largamente empregada por suas lideranças.
A seguir, será abordada outra ferramenta amplamente utilizada no
processo educativo nos séculos XX e XXI voltada para a educação
formal de crianças e jovens, o livro didático. Assim como o texto e
o fazer teatral eram produtos e produtores da mentalidade e cultura
de uma sociedade, nos permitindo desvelar algumas das concepções
vigentes e os conflitos entre os grupos que a constituíam o livro
didático também possibilita compreendermos a sociedade e os sujeitos
entre os quais circula.

O GÊNERO NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA


A escola não apenas reproduz, mas também produz modelos
comportamentais, preconceitos, desigualdades e posições de
hierarquia, a partir da forma como se organiza e dos meios de que
usa para realizar o processo de educação (SILVA, 2007,p. 231). O livro
didático, uma das principais ferramentas no processo de ensino escolar
é sem dúvida um componente essencial. Como produto e produtor de
cultura e de uma consciência histórica não é neutro, mas carregado
de intencionalidade. Analisar de que forma as questões de gênero
apresentam-se no livro didático pode ser bastante revelador das relações
sociais entre os sujeitos, e como aponta Silva (2007, p.244) “constitui-
se numa maneira de perceber o lugar das práticas educativas na
construção, hierarquização e reposicionamento de papéis tradicionais
de gênero no processo de escolarização dos indivíduos.”.
O estabelecimento de uma política pública para o livro didático
no Brasil se dá no Estado Novo, com a criação do Ministério da
Educação e Saúde Pública, e em 1938 a criação da Comissão Nacional
de Livros Didáticos, a qual tinha a função de normatizar a produção,
a compra e a utilização do material, momento também marcado
pela expansão do mercado editorial nacional. Em 1985 foi criado o
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – que desde então tem
sido responsável, juntamente ao Ministério da Educação (MEC) e a
Fundação Nacional de Educação pela escolha, a partir de um edital, da

139
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

compra e da distribuição dos livros didáticos para as escolas públicas


do país. E este processo envolve uma gama diversificada de sujeitos e
interesses, e vem sendo aprimorado desde então, acompanhando o
contexto político e social e as demandas da educação.
O livro didático de História utilizado para a presente análise é
intitulado História: das cavernas ao terceiro milênio, de 2006, da
editora Moderna, e se destina ao 9º ano do Ensino Fundamental,
atendendo o PNLD de 2011. É o 4º volume da coleção, com 312
páginas, estruturado em 15 capítulos que são distribuídos em 4
unidades, que traz além de textos expositivos, imagens, boxes com
textos complementares, mapas, fragmentos documentais, sugestões
de livros e filmes referentes aos conteúdos, e atividades e exercícios
relacionando passado e presente.
Segundo o Guia de Livros Didáticos PNLD 20112 a coleção adota
a História Integrada, buscando abordar os diferentes grupos humanos
e suas culturas. As autoras Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota
são professoras do Ensino Médio no estado de Minas Gerais. Patrícia
Braick é Mestre em História, especialista em História das Sociedades
Ibéricas e Americanas, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS), e Myriam Mota é licenciada em História
pela Faculdade de Ciências Humanas em Itabira (MG), e Mestre em
Relações Sociais pela The Ohio Unversity nos Estados Unidos. Atua
também no Ensino Superior na Faculdade de Itabira.
A editora Moderna tem uma das editoras mais requisitadas pelo
governo federal para atender as escolas públicas desde o PNLD de
2006, mantendo-se em 1º lugar por dois anos seguidos (2007-2009).3
A editora paulista funciona desde 1968 e hoje é uma das líderes do
mercado editorial brasileiro. Cabe então perguntar: Qual a discussão
que os livros didáticos de História da editora Moderna tem propiciado
aos estudantes no tocante a temática do movimento operário brasileiro,
e em especial, as questões de gênero vivenciadas e representadas neste
grupo social? Embora seja aqui apresentado a análise de um único
exemplar, já pode nos permitir um pequeno vislumbre da abordagem
dada a esta temática.
O conteúdo referente ao movimento operário brasileiro é
apresentado no primeiro capítulo, intitulado “Brasil: a República
das Oligarquias”, sob o subtítulo de “A organização do movimento
operário”, o qual ocupam apenas 3 páginas. Nessas poucas páginas

2  Material obtido no site www.fnde.gov.br


3  Dados estatísticos consultados no site www.fnde.gov.br, acessado em 12/02/2013.

140
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

se aborda de forma superficial o tema, sem explorar, por exemplo,


a origem do operariado brasileiro, as questões cotidianos da classe,
como moradia, lazer, as diferenças entre este grupo, que é apresentado
de forma homogênea e sem peculiaridades. O operariado brasileiro
apresentado no livro refere-se ao operariado do centro do país, eixo
Rio- São Paulo, onde se centra a abordagem do livro. O texto não faz
referência em nenhum momento ao operariado de outras regiões do
Brasil, como por exemplo, no Rio Grande do Sul, onde a indústria
desenvolveu-se fortemente nos anos iniciais da República Velha, com
destaque no cenário nacional, e consequentemente, o movimento
operário foi bastante significativo. Quanto à questão específica da
análise, o gênero inexiste na abordagem. O operariado é apresentado
sem gênero, nem mesmo quando se coloca a questão da greve de
1917, em São Paulo, iniciada no setor têxtil, um dos setores de maior
presença feminina.
As autoras não aproveitam o ensejo para abordar a questão do
trabalho feminino, do papel socialmente estabelecido para as mulheres
da sociedade de então, os conflitos vividos dentro da sociedade e
entre os trabalhadores pela inserção das mulheres nos espaços ditos
masculinos, as fábricas e as organizações operárias. O operariado é
retratado como um bloco único, impessoal, sem conflitos entre
si de qualquer espécie, sejam eles advindos de diferenças étnicas,
ideológicas, e menos ainda de gênero. O texto se centra mais na questão
das greves, utilizando apenas três imagens, uma delas de crianças em
uma fábrica no Rio de Janeiro, sem contudo, problematizar a fundo a
questão. As duas imagens seguintes, uma de um jornal anarquista, e
outra referente ao enterro de um operário, morto em confronto com as
forças policiais na referida greve, o único rosto e nome do operariado
no texto apresentado, na figura, de praxe, masculina.
A seção Leitura Complementar traz um texto da Revista de
Antropologia, de São Paulo, intitulado “A História da Companhia
Negra de Revistas (1926-1927)”, no qual aborda a primeira companhia
negra de teatro brasileiro. No entanto, as questões ao final do texto se
limitam a interpretá-lo, sem fazer ligação com a realidade social do(a)
educando(a) ou questionar a questão do negro no contexto estudado,
ou ainda, as questões de gênero vividas no espaço abordado. As
atividades propostas ao final do capítulo pontuam questões políticas
e econômicas abordadas no decorrer do texto, propondo ainda a
análise de duas imagens, entre elas a tela Operários, de Tarsila do
Amaral, sem explorá-la mais, como por exemplo, poderia fazer sobre
a questão de gênero apresentada na composição do operariado, que

141
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

além das diferenças étnicas, retrata homens e mulheres. De acordo


com Rüsen (2010, p.120), a utilização de imagens nos livros didáticos
deve “estimular interpretações, (...) apresentar o desafio de uma
compreensão interpretativa.”. No caso analisado, tanto o recorte
da revista como o uso da obra de arte se destinam a ilustrar, sem
problematizar ou provocar discussões.
Este breve olhar permite perceber que a discussão sobre gênero
ainda não se faz presente nesta obra, que perde com isso muito de
seu potencial de problematizar as questões sociais e as relações entre
os sujeitos, nos mais variados espaços de convívio social, e nas mais
diversas práticas cotidianas. Conforme Silveira e Proto (2012) as
questões de gênero continuam a ser ignoradas nesse material didático,
onde a narrativa aponta o homem como o único agente da História,
o que:

(...) naturaliza os gêneros e os locais que cada um ocupa em uma sociedade.que esse
material se abstém de análises mais complexas capazes de revelar a textura das rela-
ções de poder e seu papel na construção daquilo que normalmente é entendido como
masculino e feminino(p.103).

O movimento operário, por congregar uma ampla gama de


sujeitos, ideias, representações e contextos, é um rico palco para se
discutir questões relevantes para a formação de uma consciência
histórica, possibilitando aos educandos(as) uma oportunidade de
pensar e repensar modelos de feminino e masculino ainda hoje vigentes
em nossa sociedade, bem como de refletir sobre a heterogeneidade
nas relações sociais em seus muitos espaços e tempos. Quanto a
questão da narrativa histórica da obra ter como referência o centro
do Brasil é possível de se compreender a partir do espaço em que se
fala, onde estão as pessoas que falam e para quem a fala é dirigida. O
livro analisado é uma produção de professoras que atuam no centro
do país, e produzem para uma editora também do centro. Mesmo
que a produção seja voltada para a formação de educandos(as) em
âmbito nacional ela acaba por ser influenciada pelo lugar de atuação
e constituição de sua produção, o que pode explicar a centralidade da
narrativa histórica ser o centro do país. Sendo assim uma abordagem
que contemple regiões culturalmente e politicamente periféricas do
país geralmente ficam relegadas a um segundo plano, quando não
suprimidas.
Ao silenciar sobre as questões de gênero a obra falha em despertar
nos estudantes questionamentos a cerca das relações sociais, dos

142
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

papéis determinados e das atitudes esperadas pelos sujeitos em sua


sociedade, impossibilitando a reflexão de que muitas das formas
de se estar na sociedade atualmente remontam ao passado, valores
e visões de mundo que julgam há muito superadas ainda vigoram
Contribui assim para uma postura acrítica, sem reflexão, e educa
um olhar superficial e passivo, que não busca as conexões,os elos,
as permanências e as mudanças entre as sociedades e as culturas no
decorrer do tempo. Permite também uma naturalização das relações
sociais, pois desconsidera a dinâmica dos processos, as mudanças e
permanências do devir histórico, comprometendo assim a percepção
de que é possível transformar a sociedade e constituir outras formas
de ser e estar no mundo.

CONCLUSÃO
Após essa breve discussão sobre duas ferramentas educativas,
elementos do processo de construção de um aprendizado histórico, e
da formação de uma consciência histórica em diferentes momentos e
espaços sociais, é possível perceber que a produção do conhecimento
humano não é passiva, e nem mesmo desprovida de intenções.
Afinal, a educação é ideológica, pois carregada de sentidos e visões de
mundo (GADOTTI, 1989, p.15), e é, portanto,um espaço de poder, e
como tal reflete modos de ser e estar de determinados grupos sociais.
Bem como as ferramentas utilizadas para o processo educativo são
produtos e também produtores de uma cultura, possibilitando aos
sujeitos instrumentos capazes de orientar suas escolhas, justificar
suas posturas e atuar conscientemente na sociedade. As questões de
gênero também estão presentes no processo educativo, e a forma
como são apresentadas e representadas por tais ferramentas, moldam
os comportamentos, estabelecendo normas, reproduzindo modelos
de feminino e masculino, tanto em sua narrativa quanto em suas
práticas. Além de também refletirem as sociedades da qual são
produtos, expressando a consciência histórica de quem as produziu.
O teatro operário, a partir da sua organização e execução – do texto
ao corpo cênico, temas, personagens, cenários - não apenas refletia
as relações entre homens e mulheres de seu meio, como também
visava ditar as posturas condizentes com sua classe. O silenciamento
das mulheres e a predominância dos homens nos espaços de lazer
e educação, como o teatro, revelam as tensões existente na vida do
operariado riograndino, os embates diários travados por aqueles(as) que
não aceitavam passivamente os papeis pré-estabelecidos. Muitas vezes

143
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

embora criticassem a sociedade burguesia e a exploração capitalista,


em suas práticas diárias as lideranças operárias reproduziam em
muitos aspectos as relações de poder vigentes na classe burguesa em
seu meio. O teatro foi assim uma ferramenta educativa que moldou as
relações de gênero dentro desta classe, construindo de maneira eficaz
a consciência histórica dos sujeitos, ao mesmo tempo em que a revela.
O livro didático, ferramenta essencial da educação formal na
atualidade,é um grande difusor de conhecimento histórico, em
muitas realidades a única fonte de aprendizado histórico de alguns
sujeitos, pois o livro não permanece na sala de aula, ele encontra-
se nos lares, nos sebos, nas bibliotecas públicas e particulares. Atinge
sujeitos variados, em espaços os mais diversos possíveis. Carrega
consigo fragmentos de visões de mundo, ideias, culturas, consciências
históricas. E como produto de cultura é também produtor, age na
formação da consciência histórica e de posturas daqueles que por
ele são alcançados. Quando silencia sobre o gênero, o livro didático
impossibilita uma reflexão mais completa a respeito dos papeis sociais,
das construções de identidade, das relações entre os sujeitos, ou ainda
reproduz uma história inerte, sem contestações, e portanto, sem
condições de transformação social, dando a ideia de que as relações
sociais são naturais, dessa forma não são passíveis de dúvidas, por que
estáticas e prontas (PROTO; SILVEIRA, J., 2012).
Visto que o processo educativo se faz presente em todas as
relações humanas, por todos os meios decorrentes da ação humana, é
necessário lançar para as ferramentas educativas um olhar mais atento,
mais cuidadoso, desde o convívio familiar, primeiro espaço onde o
ser humano recebe a educação, aos lugares de lazer, de congregação
de grupos com interesses em comum, até o espaço escolar, onde a
educação se formaliza e é regrada por métodos, que visa atender
inúmeros sujeitos e interesses. De acordo com Rüsen(2010, p.110)
é necessário que os resultados das pesquisas históricas cheguem aos
livros didáticos, acompanhando a dinâmica da História, visto que “o
saber histórico tem a função de orientação cultural” na vida social
na qual o(a) historiador(a) faz parte. Os novos temas abordados pela
História Cultural, como gênero, precisam se fazer presentes nos livros
didáticos.
A educação, em seus vários espaços, e o saber histórico, e sua
narrativa, a História, precisam assim ser constantemente repensadas,
questionadas, a fim de que exerçam na vida dos sujeitos seu papel
de conscientizadores, formadores de agentes históricos, partícipes
do processo social, cientes de sua ação e contribuição na construção

144
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

de uma sociedade onde as diferenças de gênero, étnicas, religiosas


e ideológicas sejam valorizadas e respeitadas. Onde as posturas e os
modelos sociais sejam questionados, contestados, e não tenham que
servir de regra para todos os indivíduos, onde muitos daqueles/as
que não se adaptem a elas sejam vítimas de violência, desrespeito.
Que os diferentes pontos de vistas contribuam para o debate, para
o desenvolvimento social, e não para a acomodação e a alienação
daqueles(as) que não se conformam aos padrões sociais pré-
determinados.
Apesar da relevância que o teatro operário na República Velha
assumiu para as lideranças e os sujeitos envolvidos na formação e
educação deste grupo social, percebe-se a invisibilidade desta nos
livros didáticos. As questões não se encerram por aqui, mas almeja-
se que tal discussão aqui apresentada contribua para mais reflexões,
e que estas resultem em atitudes, afinal de contas, o conhecimento
histórico não deve apenas embelezar discursos e escritas, mas formar
consciência histórica que sirva de orientação para a vida em sociedade.
Por se tratar apenas de um breve olhar sobre uma única obra fica o
convite e a demanda de que mais pesquisas e discussões sejam feitas
a fim de se compreender mais profundamente o papel dos livros
didáticos na constituição da consciência histórica dos(as) estudantes,
bem como se possa a partir de um olhar mais abrangente,cobrar e
efetuar mudanças na produção das narrativas deste produto cultural.
Mudanças que contemplem as diversidades regionais, étnicas, culturais
e de gênero, respeitando e abarcando a diversidade de nossa História
e de seus muitos sujeitos, homens e mulheres trabalhadores(as) que
contribuíram para a constituição da sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS:
BARCA, Isabel; GARCIA, Tânia B.; SCHMIDT, Maria A. Significados do pensamento
JörnRüsen para investigações na área da educação histórica. In: BARCA, Isabel
MARTINS, Estevão de R.; SCHMIDT, Maria A; (Orgs). . JörnRüsen e o ensino de História.
Curitiba: Editora UFPR, 2010.

BITTENCOURT, Ezio da Rocha. Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade: sociabilidades


e cultura no Brasil Meridional – Panorama da História de Rio Grande. Rio Grande: FURG,
2007.

145
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

BURKE, Peter. (Org.) A escrita da História: novas perspectivas. Trad. De Magda Lopes.São
Paulo: Editora Unesp,2011.

CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A História
Cultural: Entre práticas e representações. Trad. Maria Manoela Galhardo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28. Ebook acessado em www.4shared.com, em 14/11/2012.

CERRI, Luis Fernando. Cartografias temporais: metodologias de pesquisa da


consciência histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 59-81, jan./abr.,
2011. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidadeAcessado em 07/02/2013, ás
16h.

COLLAÇO, Vera Regina M. As Intencionalidades didáticas do teatro para o trabalhador


.In: XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP –
USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. Anais. Disponível em: www.
anpuhsp.org.br/sp/downloads Acessado em: 12/11/12 ás 20h.

FILHO, Amílcar Torrão. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se


cruzam. Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.127-152. Cd-Rom.

GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução á pedagogia do conflito. 9 ed.- São


Paulo: Cortez:Autores Associados, 1989.

Guia de Livros Didáticos: PNLD 2011: História. – Brasília: Ministério da Educação,


Secretária da Educação Básica, 2010, 120 p.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Trad.


Denise Bottmann. – Rio de Janeiro: Paz e Terra,1988.

PROTO, Leonardo Venicius P.; SILVEIRA, João Paulo de P. O Gênero no livro didático
de História: Arranjos de poder e consciência histórica. Revista Sapiência: sociedades,
saberes e práticas educacionais. . UEG/UnU Iporá, v. 1, n. 1, p. 102-112 – jan/jun 2012.

RÜSEN, Jörn. Didática da História: Passado, Presente e Perspectivas a partir do caso


alemão. In: BARCA, Isabel MARTINS, Estevão de R.; SCHMIDT, Maria A; (Orgs). .
JörnRüsen e o ensino de História. pp. 23-40. Curitiba: Editora UFPR, 2010.

____________. O livro didático ideal. In: BARCA, Isabel MARTINS, Estevão de R.;
SCHMIDT, Maria A; (Orgs). . JörnRüsen e o ensino de História. pp. 109-128. Curitiba:
Editora UFPR, 2010.

SCOTT, Joan. . Gênero: uma categoria útil da análise histórica. Educação& Realidade,
Vol.20, N.2, Porto Alegre, jul/dez. 1995.Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_
realidadeAcessado em 10/10/12 ás 16h.

_____________. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (Org.) A escrita da História:
novas perspectivas. Trad. De Magda Lopes. pp.65-98. São Paulo: Editora Unesp,2011.

146
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

SILVEIRA, Marcos César Borges. O teatro operário em Rio Grande na época das
primeiras chaminés (1900-1920). In: ALVES, Francisco das Neves (org.) O mundo do
trabalho na cidade de Rio Grande. pp.57-84. Rio Grande: FURG, 2001.

SILVA, CristianiBeretada. Livros didáticos de História e a produção de subjetividades


de Gênero. In: SILVA, Cristiani; ASSIS, Glaúcia de; KAMITA, Rosana C.(Orgs.). Gênero
em Movimento: novos olhares, muitos lugares. pp. 229-245. Santa Catarina: Editora
Mulheres, 2007.

FONTE PRIMÁRIA:
BRAICK,Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro
milênio.pp. 41-472ª edição. São Paulo: Moderna, 2006.

147
A QUESTÃO DE GÊNERO NO LIVRO
DIDÁTICO NO PERÍODO DA DITADURA
MILITAR

DINORAH AMARAL MATTE1

Resumo: O presente artigo se propõe a analisar pelo menos três livros


didáticos utilizados no período que compreendeu a ditadura militar no
Brasil, de 1964 a 1985, e como estes livros abordam a questão de gênero,
ou se elas não são identificadas em nenhum momento na suas abordagem
histórica.

Palavras-chave: Ensino de História, Gênero, Ditadura Civil-militar

O livro didático além de material de apoio ao professor em sala de


aula, apresenta-se como um meio, e muitas vezes o único, de acesso
à formação e a informação, por esse motivo analisar as diferentes
abordagens assumidas por ele na questão de gênero ajudam a entender
a formação da consciência coletiva de uma comunidade ou nação,
visto a abrangência nacional do mesmo.
Os referidos livros foram escolhidos pelo critério de estarem
enquadrados como de ampla utilização no período pesquisado, nas
salas de aula de Santa Vitória do Palmar.

OBJETIVO
O objetivo é buscar através da análise dos referidos livros
didáticos como foi construída a consciência social em relação à
questão de gênero nesse período, principalmente do gênero feminino,
1Mestre em História, pelo Programa de Pós-graduação em História da FURG; Professora e
Supervisora Escolar na Rede Estadual de Ensino do RS. e-mail:dinorahmatte@yahoo.com.br.

148
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

levando em conta que mesmo nos livros atuais a abordagem do tema


é escassa. Por esse motivo buscamos observar como ao decorrer do
tempo e especialmente no período da ditadura militar a abordagem
explicita ou implícita nos livros didáticos contribuiu para enraizar na
construção da sociedade uma mentalidade do que é feminino e do que
é o masculino e os espaços que cada um deve ocupar na construção da
sociedade, simplificando as relações humanas apenas na questão do
sexo ser masculino ou feminino.

REFERENCIAL TEÓRICO
A análise dos conteúdos dos livros de História “Compendio de
História do Brasil de Borges Hermida, 1968”; “História Geral de Osvaldo
Rodrigues de Souza, 1978”; “História econômica e administrativa d
Brasil de R. Haddock Lobo, 1969” são uma amostra de como a questão
de gênero era abordada ou não em livros de História do Brasil e
História Geral nos livros didáticos utilizados no período da ditadura
militar. Os referidos livros faziam parte do Ensino Fundamental,
Ensino Médio Cientifico e Ensino Médio Técnico.
Segundo Fonseca por didatização entendemos a simplificação
que o conhecimento acadêmico passa até se tornar palatável
para os alunos da educação básica (FONSECA, 2010, p.53). Assim
sendo muitas coisas ficam omitidas dessa historização simplificada
normalmente por interesses que caracterizam uma época.
Para Proto e Silveira (p.104)
“didatizar significa também silenciar acerca de determinados temas. O silêncio, um
dispositivo de poder, cria, reforça e reproduz estereótipos. Aceitando que o livro de
história é um artefato discursivo capaz de (re) produzir saberes que orientam os su-
jeitos sobre o passado, entendemos que o comum silêncio desse material em relação
às questões dos gêneros omite a historicidade das relações de poder e dos arranjos
sociais responsáveis por “engendrar” os sujeitos.”

No livro História econômica e administrativa do Brasil de Haddok


Lobo pode-se verificar em toda sua leitura que não há referência a figura
feminina em nenhum momento. É um livro voltado para a formação
da economia nacional, desde as condições econômicas que levaram a
Europa as grandes navegações até a implantação da indústria no Brasil
no governo do Presidente Arthur da Costa e Silva, os destaques são
a todos os vultos masculinos que construíram a economia brasileira
destacando-se os homens que ocupavam altos cargos no comando

149
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

assim como toda sua generosidade, inteligência e magnitude pessoal


tomando decisões acertadas para o desenvolvimento do país.
Podemos perceber esse enaltecimento dos vultos masculinos
no item que fala sobre a economia no início da era Republicana no
livro de R.Haddock Lobo (p.142):
“Não foram muito tranqüilos os primeiros anos da República. Logo de início surgiram
sérias desinteligências entre os elementos militares e civis colocados à testa do go-
verno. As lutas delas decorrentes só cessaram em 1894, graças à energia do Marechal
Floriano Peixoto, que assumira a chefia da nação após a renúncia do primeiro presi-
dente, Marechal Deodoro da Fonseca.”

No livro de Osvaldo Rodrigues de Souza sobre História Geral


(p.230) temos citações referentes à figura feminina que fizeram parte
do Absolutismo Inglês, mais especificamente “Os Tudors”, mas como
característica de todo o livro, os relatos são breves e por estas terem
chegado ao poder por fazer parte da nobreza:

Maria, a Sanguinária, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, restaurou o catoli-


cismo. Casou-se com Filipe II, rei da Espanha, temido e odiado pelos ingleses. Morreu
desprezada pelo marido e pelo povo.

Num outro item na mesma p.230 ao referir-se a Isabel o autor diz:

Isabel, filha de Henrique VII e Ana Bolena, implantou definitivamente o protestantismo


na Inglaterra. Combateu Felipe II da Espanha. Mandou executar Maria Stuart, sua prima
rainha católica da Escócia.

Na p.231 há breve relato da personalidade das duas: Isabel e Maria


Stuart. Sobre Isabel diz: “enérgica, autoritária, instruída protegeu as letras,
as artes e o comércio”.
A respeito de Maria Stuart o autor diz que:

“ela teve a infelicidade de se refugiar na Inglaterra junto a sua prima Isabel que, depois
de mantê-la presa durante 19 anos, executou-a. Isabel temia que os católicos fossem
substituí-la por Maria Stuart”.

As apresentações das mulheres nesse livro são meramente


representativas do poder, onde tudo é possível e passível de ser aceito
para que a permanência no poder seja mantida, alinhando-se com a
intenção de moldar os cidadãos com os padrões vigentes de autoridade
e poder, enaltecendo os personagens que faziam parte do comando do
país em referência.

150
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Segundo Roger Chartier as representações sociais são leituras


de mundo de que o indivíduo constrói a partir das suas vivências,
sendo assim as manifestações representadas nos livros didáticos no
período da ditadura militar no Brasil serviram para que a sociedade
se apropriasse das intenções instituídas pelo governo, através dos
conteúdos presentes nos livros de História do período. Para Chartier
(1986)

[...] como esquemas ou conteúdos de pensamentos que, embora enunciados de modo


individual, são de fato condicionamentos não conscientes e interiorizados que fazem
com que um grupo ou uma sociedade partilhe, sem que seja necessário explicitá-los
um sistema de representações e um sistema de valores (CHARTIER, 1986.p37)

No livro de Antonio José Borges Hermida, Compendio de História


do Brasil de 1968, depois de uma análise textual nada foi encontrado
em relação à participação da mulher na formação do povo brasileiro
seja no âmbito cultural, político, econômico e social.
Algumas imagens que retratam a figura feminina são: a
representação da mulher indígena da tribo dos Coroados, desenho
de Rugendas (p.68), na (p.88) tem um desenho de Debret que retrata
escravas vendendo angu. Na (p.162) mostra uma figura onde mulheres
brancas passeiam de num tipo de carruagem nos arredores do Rio de
Janeiro conduzidas por um escravo; na (p.167) num outro desenho
de Rugendas aparece mulheres e homens escravos no preparo da
mandioca. O casamento de D. Pedro I com D. Amélia é representado
na (p.178) num quadro de Debret; na (p.238) o quadro de Rugendas
retrata negros escravos carregadores de água, inclusive as mulheres
negras. No quadro de Francisco Moreaux na (p.242) representa D.
Pedro II em visita a um hospital, pode-se observar no quadro a figura
feminina, de mulheres brancas como religiosas que ali trabalhavam.
Já na (p.271) há uma aquarela de Rugendas representando as Negras
do Rio de Janeiro, a gravura ilustra o texto sobre “A campanha
abolicionista e seu triunfo”.
Com essas observações de imagens foi possível detectar a
construção da imagem feminina seja como trabalhadora ou pela
questão étnica empregada de forma velada nas representações e

151
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

porque não dizer a sua invisibilidade perante os fatos retratados. A


mulher branca e da elite aparece em passeio, casando e numa profissão
que elas como religiosas poderiam exercer que é a de enfermeira. Já
as mulheres negras aparecem em atividades mais rústicas, pesadas e
sempre inferiorizadas. Mas em nenhuma das representações citadas,
seja das mulheres brancas ou negras, a participação delas nos livros do
período da ditadura é significante, mas define socialmente o que era
reservado a cada uma delas.
A superficialidade com que os assuntos de formação da sociedade
brasileira, sua política e economia eram apresentados nos livros
didáticos de História do período não é por acaso, conforme LIMA E
FONSECA, 2007:

“O programa curricular imposto durante o Regime Militar, com a Reforma do ensino


de 1971, impunha um ensino diretivo, acrítico, no qual a História aparecia como uma
sucessão linear de fatos considerados significativos, predominantemente políticos e
militares, com destaque para os grandes nomes”, os espíritos positivos que conduzem
a História”. (p.55)

DESENVOLVIMENTO
Para a produção do referido artigo foi feito previamente a leitura
de três livros didáticos utilizados em sala de aula na cidade de Santa
Vitória do Palmar. Dois dos referidos livros foram de uso escolar da
autora: No ensino de 1º grau o livro de História do Brasil de Borges
Hermida, no curso Técnico de Contabilidade em nível de 2º grau o
livro História econômica e Administrativa do Brasil. O Livro História
Geral–da pré-história aos últimos fatos de nossos dias era utilizado nos
cursos de 2º grau denominados Científico.
Após essa leitura, e a análise de diversos artigos que contextualizam
a ditadura militar e a abordagem da mesma nos livros didáticos, assim
como a participação da mulher e a sua apresentação nesse período
nos livros utilizados nas escolas, serviu para a observação da sua
invisibilidade nos livros didáticos e a construção de uma consciência
étnica do papel que as mulheres brancas e as negras ocupavam na
sociedade e também a utilização da história tradicional para a
abordagem da valorização dos vultos históricos e principalmente
militares na formação do Brasil.

152
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Ainda nesse sentido, podemos destacar que se tratando de livros


nacionalmente distribuídos nos educandários, foi fomentado mesmo
que de forma velada os papéis que homens e mulheres ocupavam na
história, seja ela do Brasil ou do Mundo.
Aos homens brancos destinavam-se as melhores condições sociais,
cargos públicos, poder e dinheiro.
As mulheres por sua condição feminina restavam-lhe a
invisibilidade e a submissão, com pouco espaço reservado na vida em
sociedade além daquele de esposa e do lar. Para a mulher negra por
sua condição étnica a sobrecarga social era ainda maior. Para ela, além
das condições de submissão dentro da sua família, quando podiam
tê-la, havia perante a sociedade trabalhos que eram reconhecidos e
aceitos por homens e mulheres brancas como sendo destinados para
as mulheres negras exercerem. Essa condição da mulher negra ficou
muito claro através das gravuras dos livros pesquisados. Podemos ver
que uma consciência nacional foi construída priorizando a questão
de poder do gênero masculino em relação ao feminino e a questão de
inferiorizarão étnica para as mulheres negras.

CONCLUSÃO
É possível perceber através das leituras a significância dos livros
didáticos na (re) construção de uma cultura.
Devido a sua abrangência e os diversos caminhos de influência
que passam na construção desse material de uso nacional, sejam
elas dos interesses políticos, econômicos, nacionais e internacionais,
tendência histórica do autor, da editora e dos próprios professores
ao adotarem determinado livro em detrimento de outros, estão
construindo ou reconstruindo a história de uma sociedade.
Através dele as diversidades culturais, a construção de uma
identidade, os saberes históricos e toda a gama de informação que
constituem a formação cultural de um povo podem ser valorizadas ou
não e mesmo serem omitidas.
Sendo assim o livro didático é algo comprometido com a ideologia
dominante e através dele os valores de uma época são perpetuados de
forma explicita ou implícita na educação.
Concluímos que a questão de gênero presente nos livros estudados
enaltece a figura masculina como detentora dos predicados necessários
para o engrandecimento da nação, dotado de valores que não são
condizentes com o gênero feminino, ainda mais se ele é atravessado
pela negritude.

153
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

REFERÊNCIAS:
CHARTIER, R. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa:DIFEL.1986.

FONSECA, S.G. Didática e prática de ensino de história. São Paulo: Papirus, 2003.

HERMIDA, Antonio José Borges. Compendio de História do Brasil. 53ªed. São Paulo.
Companhia Editora Nacional.1968, p.340.

LIMA E FONSECA, Thais Níves de. O Ensino de História do Brasil: concepções e


apropriações do conhecimento histórico (1971-1980). In: CERRI, Luiz Fernando
(org.). O Ensino de História e a Ditadura Militar. 2ªed. Aos Quatro ventos, 2007. In:
PLAZZA, Rosimary . PRIORI, Angelo. O Ensino de História durante a Ditadura Militar

LOBO. R. Haddock. História Econômica e administrativa do Brasil. 16ª ed. rev. e


atualizada. São Paulo: Atlas S/A, 1969, p.196.

PROTO. Leonardo Venicius Parreira. SILVEIRA. João Paulo de Paula. O gênero no livro
didático de História: Arranjos de Poder e Consciência Histórica. Revista Sapiência:
sociedade, saberes e práticas educacionais-UEG/UnU Iporã v.1, n. 1, p.102-112 – jan/
jun 2012 ISSN: 2238-3565

SOUZA. Osvaldo Rodrigues de. História Geral da Pré-História aos últimos fatos de nossos
dias. 17ªed.rev. e atualizada. São Paulo: Ática, 1978, p.369.

154
AS QUESTÕES DE GÊNERO NA PERSPECTIVA
DIDÁTICA DA HISTÓRIA INTEGRADA

ROGÉRIO CORRÊA TEIXEIRA1

Resumo: Este artigo pretende investigar as possibilidades de incorporação


das questões de gênero nas narrativas dos livros didáticos de História de
ensino fundamental autorizados pelo PNLD (Programa Nacional do Livro
Didático),especificamente no âmbito da perspectiva pedagógica conhecida
como História Integrada. Procura-se, tomando como exemplo a análise de
uma coleção didática específica que orienta-se pela História Integrada e está
incluída no PNLD 2011-2012-2013, uma compreensão das possibilidades
de articulação das questões de gênero com as demais esferas da vida
social( políticas, econômicas, culturais), na tentativa de construção de um
conhecimento histórico global e integrado. Trata-se de perceber como as
questões de gênero, e em que condições, estão permeando estas esferas,
conectando-se à estes campos históricos e também aos novos campos,
desencadeados pela História Social e Cultural, ligados ao cotidiano, no
intento de implantar-se uma História Integrada.E, finalmente, analisar-
se seus reflexos na produção dos livros didáticos que caminham nesta
perspectiva e suas contribuições para a vida prática e a transformação
social.

Palavras-Chave: Questões de gênero. História integrada. Livros didáticos


de história.

INTRODUÇÃO
Se a incorporação dos assuntos ligados às questões de gênero
ainda são um desafio nas produções acadêmicas das Ciências
1 Graduado em História/Bacharelado-ICHI pela Universidade Federal do Rio Grande (1995);
Graduado em História/Licenciatura Plena - ICHI pela Universidade Federal do Rio Grande
(1997); Especialista em Educação Brasileira (1999); Mestre em História/ PPGH-ICHI pela
Universidade Federal do Rio Grande (2015). Docente pela Rede Estadual do Governo do Estado
do Rio Grande do Sul e Docente pela Rede Pública da Prefeitura Municipal de Rio Grande.
E-mail: teixeirarogerio@ymail.com.

155
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Humanas, como por exemplo na História e Historiografia, seu


deslocamento pedagógico para as escolas de ensino fundamental é
praticamente uma tarefa homérica. Entendendo aqui como gênero
o conjunto de subjetividades e construções sociais que envolvem
as concepções de homem, mulher, jovem e homossexualidade, é
necessária a continuidade de investigações sobre a implantação
deste tema nos atuais livros didáticos de História. Acompanhando as
demandas teóricas e sociais que exigem a absorção de novos assuntos
nos conteúdos desta disciplina como cultura africana e indígena,
educação ambiental e cidadania, o gênero também surge como um
tema a ser problematizado.
Neste artigo, será analisada especificamente a incursão deste
tema nos livros didáticos que adotam a tendência historiográfico-
pedagógica conhecida como História Integrada, uma tentativa
renovada que procura ressignificar o conhecimento histórico,
rompendo com a fragmentação epistemológica, e principalmente
conectá-lo com problemas oriundos do cotidiano e a atualidade.
Como é impossível uma abordagem ampla e completa de todos os
livros didáticos autorizados pelo PNLD(Programa Nacional do Livro
Didático), do Ministério da Educação do Governo Brasileiro, que
seguem esta tendência historiográfico-pedagógica, será utilizado
como exemplo de análise um livro didático específico, distribuído e
usado por escolas públicas da cidade de Rio Grande(RS), no ensino
fundamental, procurando contribuir-se para a compreensão de suas
repercussões nesta realidade local.

QUESTÕES DE GÊNERO E HISTÓRIA INTEGRADA


Poucas disciplinas permearam com tanta ênfase as mais variadas
esferas do mundo social, passando pela análise de suas amplas e
complexas estruturas econômicas e políticas, até penetrarem nos mais
profundos e microscópicos espaços do cotidiano como a vida cultural,
as mentalidades e as representações simbólicas, como a História e a
Historiografia atuais. É neste espectro ilimitado e multipotencial de
possibilidades epistemológicas, que a análise histórica não cessa de
procurar novos objetos e problemas de investigação na análise das
sociedades, lançando os desafios da História Social e Cultural. Para
Carla Bassanezi Pinsky( 2010),

A velha História de fatos e nomes já foi substituída pela História Social e Cultural; os
estudos das mentalidades e representações estão sendo incorporados; pessoas co-

156
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

muns já são reconhecidas como sujeitos históricos; o cotidiano está presente nas aulas
e o etnocentrismo vem sendo abandonado em favor de uma visão mais pluralista(p.07).

Na evolução da análise histórica, rompeu-se gradativamente


com a sequência linear dos acontecimentos (a chamada História
linear), pois a Historiografia percebeu que as temporalidades nas
sociedades não podem ser padronizadas, sendo estruturações culturais
que moldam-se conforme variações econômicas e tecnológicas
de cada uma delas, e consequentemente, produzindo também
representações específicas de mundo, influenciadas principalmente
por suas concepções religiosas. O processo histórico, portanto, deve
ser analisado de forma global, em que as Histórias de cada sociedade
seguem caminhos distintos, mas também cruzam-se, influenciando-se
e modificando-se reciprocamente, de maneira dinâmica e ilimitada,
dando origem à HISTÓRIA INTEGRADA, que consiste em, para Marcos
Vinícius de Morais(2010)

Um deles é mostrar que os acontecimentos históricos estão o tempo todo interligados


e que a interconectividade precisa e deve ser valorizada na explicação do professor.
Um assunto não pode ser explicado sem o outro, e o outro não tem sentido sem a
explicação do anterior. Não se trata do velho esquema de “causas e consequências”,
nem mesmo de precisar de um item para que o outro possa ser cronologicamente
apresentado (PINSKY:2009).

Portanto, nesta perspectiva, rompe-se com a História


eurocêntrica, e abrem-se, pedago-gicamente, possibilidades de várias
incursões epistemológicas, ângulos e começos na aborda-gem de um
determinado assunto ou problematização históricos. Reforçando o
que disse o autor, “Na História (verdadeiramente) Integrada, a coisa
é bem diferente.Os conteúdos de História do Brasil, História Geral
e, ainda, História da América devem apresentar interdependência a
ponto de quase não ser possível “separar” o que acontece no Brasil do
que acontece na Europa”(PINSKY:209).
E neste momento, surge o grande desafio epistemológico e
pedagógico: como trabalhar questões de gênero na concepção da
História Integrada? No rastro desta empreitada, um problema deve
ser contornado. Se a História Integrada realiza uma abordagem global
e ampla das transformações sociais, como ela conseguirá alcançar
especificamente as questões de gênero, promover a transposição por
diversas esferas de análise( político, econômico, cultural, etc), até
chegar à esta problematização?

157
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Ironicamente, para a História Integrada, isto é a solução ao invés


do problema. Ao contrário da História linear e fragmentada, onde os
assuntos são expostos sequencial e isoladamente, dificultando ao
máximo a comunicação entre estes e obstruindo o deslocamento
e mudanças cognitivas, a História Integrada propõe-se a fazer o
contrário, pois “Na História Integrada, a história das mentalidades se
mescla com a história econômica, a política com social, nacional com a
internacional”(PINSKY:210). Para a História Integrada, não deve haver
distância entre o “macro” e o “micro”, entre os fatores estruturais e
o cotidiano, exatamente porque eles interpenetram-se e comunicam-
se, procurando a visão global de determinado fator histórico, onde os
assuntos completam-se.
Por exemplo, as transformações sociais e culturais no mundo
ocidental contemporâneo são indispensáveis para a compreensão das
questões de gênero, sua identificação concreta na esteira dos problemas
atuais das sociedades, no delineamento de suas significações,
representações e propostas. Inversamente, esta identificação e sua auto-
organização em grupos e movimentos sociais, interagindo e chocando-
se com outros grupos socioculturais, modifica a configuração destas
sociedades e interfere também na configuração dos Estados e partidos
políticos, na medida em que aqueles são obrigados a incorporarem
novos direitos e conquistas legais às minorias de gênero, e estes
precisam aumentar sua representatividade e sustentação políticas,
assimilando estes novos grupos.
As questões de gênero,então, tornam-se, não apenas opções, mas
um tema indispensável na perspectiva da História Integrada, pois
ajudam a compreender a profundidade das transformações sociais e
históricas, uma vez que, para Carla Bassanezi Pinsky( 2010)

As concepções de gênero tanto são produto das relações sociais quanto produzem e
atuam na construção destas relações, determinando experiências, influindo nas con-
dutas e práticas e estruturando expectativas. Um “olhar de gênero” não só procura
o que há de cultural nas percepções das diferenças sexuais como também a
influência das idéias criadas a partir destas percepções na constituição das relações
sociais (grifo da autora) em geral(p.34).

As questões de gênero estão implícitas nas relações e conflitos


sociais,e ajudam a moldar suas transformações, ainda que
invisivelmente, atravessando subliminarmente as esferas econômicas,
políticas, jurídicas, militares, religiosas e culturais em geral. Portanto,
para a Historiografia, tornou-se tema indispensável, pois

158
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Os pesquisadores podem reconhecer as marcas das referências feitas à diferença


sexual na leitura de diversos fenômenos sociais, não só que dizem respeito à famí-
lia, ao doméstico ou à vida privada, mas também aos relativos ao desenvolvimento
urbano e tecnológico,ao comércio e às trocas, às religiões, às migrações, à situação
de minorias étnicas, à distribuição de riqueza e poder, às relações de trabalho e aos
movimentos históricos(como colonização, revoluções e revoltas sociais etc.), (p.37).

No entanto, discutir e implementar questões de gênero na


Historiografia e nos livros didáticos, ainda mais na perspectiva da
História Integrada, não significa somente a abertura de um novo ítem
em seus capítulos e o estabelecimento das diferenças e conflitos entre
homens e mulheres em suas trajetórias históricas, mas retomando
o que disse a autora na citação acima, desperta para a possibilidade
de leitura e percepção destas questões no bojo de todo o processo
histórico, suas influências e transformações recíprocas com as outras
esferas da vida social, em reconfigurações históricas constantes:

Parece estar bem claro, mas não custa enfatizar: na perspectiva de gênero, o
objetivo da investigação não precisa ser necessariamente a categoria empírica
“mulher”(“ou homem”). Na constituição das relações e significados de gênero, vários
elementos estão envolvidos: os símbolos, as normas sociais,a organização política,
econômica e social e a subjetividade (p.40).

Portanto, as questões de gênero atravessam todo o processo


histórico, agindo diretamente ou não, de maneira mais ou menos
ostensiva, em que os atores( e atrizes, é claro!) históricos envolvidos
agem conforme suas demandas de maneira lúcida ou inconsciente.
Não se trata, então, em uma produção acadêmica ou didática, de
acrescentar-se o assunto ao texto-base, mas de colocá-lo NO texto-
base.

APRENDIZAGEM HISTÓRICA E VIDA PRÁTICA


Não resta dúvidas quanto à urgência da inclusão das questões
de gênero na discussão teórica para o alargamento e aprofundamento
da compreensão histórica acerca da estruturação das sociedades
contemporâneas e, consequentemente, para o desencadeamento
de ações que confrontem radicalmente a heteronormatividade
dominante, criando novos mecanismos de organização e interação
entre homens e mulheres de todas as orientações sexuais,
desnaturalizando valores sexistas hegemônicos, comprovando-se que
a transformação das relações de gênero é condição indispensável para
toda a transformação social. A incorporação das questões de gênero na

159
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

produção acadêmica e, em última etapa, seu deslocamento pedagógico


para as escolas de ensino fundamental e seus livros didáticos, deve
suscitar práticas concretas que enfrentem as formas discriminatórias
sexistas e promovam justiça social. Para Jörn Rüsen( 2011), a História
jamais pode estar desvinculada da ação, pois

Somente quando a história deixar de ser aprendida como a mera absorção de um


bloco de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração de respostas
a perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela
ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação
cultural da vida prática humana (BARCA; MARTINS;SCHIMIDT:44).

Diante da urgência histórica sobre as questões de gênero, e


da potencialidade epistemológica que o tema adquire dentro de
uma proposta globalizante da História Integrada, neste momento é
necessário discutir-se as possibilidades e limitações desta empreitada na
dimensão da aprendizagem histórica e sua transposição didática para
os livros escolares de ensino fundamental, recorrendo-se finalmente a
um caso específico.
Nenhum historiador-professor tem dúvidas quanto a enorme
dificuldade em transformar-se conhecimento histórico acadêmico em
aprendizagem histórica, e na realidade específica da educação pública
escolar, realizar sua transposição didática, entendida como “aquele
que remete à passagem do saber acadêmico ao saber ensinando
e, portanto, à distância eventual, obrigatória que os separa, que dá
testemunho deste questionamento necessário, ao mesmo tempo que
se converte em sua primeira ferramenta”(CHEVALLARD,1991,apud
MONTEIRO, 2010, p.84). Didatizar o conhecimento histórico, e
mais ainda, promover sua subjetivação nos aprendizes para que
transformem-se em ferramentas práticas de mudanças concretas
em seu cotidiano é um processo extremamente complexo, difícil e
ilimitado. Para compreender-se melhor esta problemática, os conceitos
desenvolvidos por Jörn Rüsen(2011) são básicos para este objetivo. A
começar-se por aprendizagem histórica “ É a consciência humana
relativa ao tempo, experimentando o tempo para ser significativa,
adquirindo e desenvolvendo a competência para atribuir significado
ao tempo”(BARCA; MARTINS;SCHIMIDT: 79).
Em um processo de subjetivação, a consciência humana
autovalora-se através da significação conferida ao tempo, tornando-o
significativo e inteligível, e daí em diante, alimentada pelas relações
sociais que também historicizam o tempo, permite nascer a verdade
enquanto âmbito do conhecimento histórico.

160
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Esta verdade transcende o autointeresse em fazer exigências e impor a própria


vontade: a verdade faz o interesse relevante se tornar comunicável em relação a
outros interesses; a verdade força os interesses relevantes a provarem a si mes-
mos,orientando-os, assim, a dar significado ao passado, o qual, é de consenso geral,
compeende as relações presentes e toma decisões ou, pelo menos, sugestões para
as decisões baseadas em perspectivas futuras(BARCA; MARTINS; SCHIMIDT:80).

Portanto, a aprendizagem histórica deve promover a transição


entre o conhecimento histórico e a construção subjetiva e social de
orientações voltadas para a vida prática. Torna-se mecanismo basilar
para a transformação social, qualificando as intervenções dos agentes
históricos. A aprendizagem histórica, então, torna-se condição para
autonomia.
Tratando-se das questões de gênero, pensar-se uma aprendizagem
histórica que promova a ação e a a orientação subjetiva e social voltadas
para o cotidiano, revitaliza a discussão histórica e permite que ela
consiga abraçar, com força e transparência, este tema extremamente
atual e polêmico, que deixa marcas diárias, e dolorosas, na vida social
das minorias sexuais, assumindo uma posição política e ética. E
levar esta problemática para a sala de aula deve ser o desafio final de
historiadores e educadores.
Neste embate, a História tem a potencialidade de ultrapassar
fronteiras epistemológicas, ideológicas e políticas, ao romper com a
“naturalização” da heteronormatividade e a consequente visão de que
a homossexualidade seria uma distorção ou uma doença da ordem
sexualmente estabelecida, pois ao analisar-se as diversas temporalidades
que atravessaram as sociedades e as diferenças normativas existentes
na estruturação de seus valores sexuais, desenvolve-se a clara
compreensão de que estes não passam de construções socioculturais.
Inspirado em Michel Foucalt, Nilson Fernandes Dinis( 2008), afirma

Assim, entendemos sexualidade no sentido analisado por Foucault(1988), ou seja,


como um dis-positivo da modernidade construído por práticas discursivas e não-
-discursivas que produzem uma concepção do indivíduo enquanto sujeito de uma
sexualidade,ou seja,saberes e poderes que buscam normalizar, controlar e estabelecer
“verdades” acerca do sujeito na relação com seu corpo e seus prazeres (p.482).

A análise histórica contribui de maneira inestimável nesta


discussão ao comprovar, através do exame das diversas temporalidades
sociais, a impermanência, impossibilidade e fragilidade desta
“naturalização”, que pode ser facilmente derrubada pela transformação
prática e concreta propiciada pela constante releitura e reinterpretação

161
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

da experiência cotidiana. Este é o poder da consciência histórica, que


para Jörn Rüsen( 2011),

Em resumo, a consciência histórica pode ser descrita como a atividade mental da


memória histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência
do passado encaminhada de maneira a compeender as atuais condições de vida e
a desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência( BARCA;
MARTINS; SCHIMIDT: 112).

A consciência histórica não só tem a capacidade de fazer


desmoronar um modelo sociocultural hegemônico, como instigar uma
nova orientação prática que proponha uma transformação social.É o
que Jörn Rüsen( 2011) chama de orientação temporal:

A orientação temporal da vida tem dois aspectos, um interno e outro externo. O as-
pecto externo da orientação por via da história revela a dimensão temporal da vida
prática (grifo do autor), descobrindo a temporalidade das circunstâncias incluídas na
atividade humana. O aspecto interno da orientação por via da história revela a dimen-
são temporal da subjetividade humana (grifo do autor), outorgando autocompreensão
e conhecimento das características temporais dentro das quais aqueles tomam a
forma de identidade histórica, ou seja, uma consistência construtiva das dimensões
temporais da personalidade humana (BARCA; MARTINS; SCHIMIDT: 58).

Dos confrontos oriundos das circunstâncias e experiências


cotidianas, afirma-se uma autocompreensão de mundo, geradora
de novas identidades históricas, que historicizam também novas
subjetividades nos limites de suas temporalidades. A orientação
temporal que move a vida prática e promove uma nova identidade
histórica é, ao mesmo tempo, uma reconfiguração social e subjetiva,
dinâmica e ilimitada. Portanto, concepções socioculturais jamais serão
deterministas e imóveis.
Na visão dinâmica e complexa de Jörn Rüsen (2011), a articulação
entre consciência histórica, aprendizagem histórica e orientação
temporal devem transformar a História em instrumento prático de
intervenção e modificação do mundo cotidiano, numa reciprocidade
intensa e viva entre passado, presente e futuro, permitindo uma
habilidade para “reduzir as diferenças de tempo entre o passado, o
presente e o futuro através de uma concepção de um todo temporal
significativo que abarca todas as dimensões de tempo”( BARCA;
MARTINS; SCHIMIDT: 60).
Nas questões de gênero, trata-se de uma tentativa de historicização
de suas implicações, desdobramentos e influências no mundo social
para uma compreensão clara e lúcida de sua urgência contemporânea,

162
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

sua atualidade implacável no cotidiano e íntima ligação com outros


problemas presentes como preconceito, discriminação, violência,
direitos humanos e intolerância política( diretamente, as agressões
físicas de juventudes neonazistas) e religiosa( indiretamente, a
perseguição ideológica de várias igrejas cristãs). Demonstrar ao
mundo, através da análise histórica, a dimensão sociocultural da
heteronormatividade, significa arrancar os alicerces de seu dogmatismo
, alargando-se os horizontes da consciência histórica, para finalmente-
se romper-se com a visão limitada, simplista e maniqueísta que impera
nas estruturações socioculturais, conforme o diagnóstico apresentado
por Nilson Fernandes Dinis (2008):

É assim que uma série de binarismos como homem-mulher, adulto-criança,


heterossexual-homossexual é correntemente escrita mesmo nos textos científicos,
produzindo uma lógica de dualidades que tem seu fundamento em pares opostos de
identidade, nos quais um dos termos, quase sempre o primeiro, tem primazia sobre o
outro, sendo uma referência, o padrão; o outro é a margem, o derivado (p.487).

A História, através de seus pesquisadores e educadores, não pode


fugir da tarefa, aliada à outros campos do conhecimento(principalmente
as ciências humanas), de desconstrução destes modelos
heteronormativos, servis aos projetos mais abrangentes de dominação
política e econômica que também naturalizam a desigualdade
social no mundo. Em sala de aula, o professor de História não pode
ter vergonha de abordar esta problemática, desafiando padrões
hegemônicos de comportamento dos próprios alunos, convidando-os
a reverem suas próprias posturas e os significados destas no contexto
sociocultural em que estão inseridos. Reafirmando seu papel político
e ético, a História pode dar suas contribuições em curto e longo prazo.
Em curto prazo, defrontando-se com as práticas discriminatórias e
violentas contra as formas de orientação sexual, que manifestam-
se diariamente. Em longo prazo, discutindo e desconstruindo,
principalmente no diálogo com os alunos, as noções estabelecidas
e hegemônicas de heteronormatividade na sociedade, buscando-se,
sobretudo mudanças de mentalidades que possam reestruturar novas
concepções socioculturais.

O CONTEXTO DOS LIVROS DIDÁTICOS


Para tanto,chega-se ao ponto central deste trabalho: analisar e
promover as possibilidades de aprendizagem histórica sobre as questões

163
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

de gênero na perspectiva da História Integrada, que manifesta-se como


uma tendência historiográfico-pedagógica em livros didáticos.
Antes disso, é necessária uma análise do panorama atual sobre
os livros didáticos no Brasil, como vem ocorrendo a conexão entre
a linguagem historiográfica destas obras e as questões de gênero,
enfatizando principalmente o papel da tendência da História Integrada
neste contexto.
As autoras Sonia Regina Miranda e Tania Regina de Luca (2004)
realizaram uma exaustiva análise sobre as características dos livros
didáticos de História no Brasil, consultando as obras listadas e
autorizadas pelo PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), do
Governo Federal, subdividindo-os conforme quatro temáticas centrais:
a perspectiva quanto à visão de História(1), a relação com o processo de
construção de conhecimento pelo aluno(2), a orientação curricular(3)
e a relação genérica com o desenvolvimento da Historiografia(4). A
numeração foi colocada neste artigo para facilitar a exposição abaixo,
seguindo-se a classificação original(p.134).
Na temática 1, predominou a narrativa acontecimental (69%),
em detrimento da visão global (24%) e visão procedimental (7%).
Vigorou, neste grupo temático, a abordagem informativa do
conhecimento histórico, privilegiando mais a memorização dos
conteúdos do que as habilidades cognitivas dos alunos em poderem
interagir com estes , impedindo suas possibilidades de reconstrução
deste saber histórico( p.136). Na temática 2, novamente predominou
com folgada diferença a visão informativa da História, colocando em
plano inferior as possibilidades dos alunos em atividades de diálogo e
problematizações com o conhecimento histórico, na tentativa de sua
ressignificação ( paradigma informativo: 68%; paradigma cognitivista:
32%), conforme os dados apresentados (p.138).
Surpreendemente, contrariando em um primeiro momento, a
tendência tradicional de ensino de História predominante nos ítens
acima, destaca-se com larga vantagem na temática 3 a opção pela
História Integrada (76%), sobre a História Temática (17%) e a História
Nacional (7%), conforme os dados apresentados (p. 139). A concepção
dominante tem como características gerais

Em certa medida essa tradição encontra-se presente nas obras que fazem uma
opção pela abordagem da chamada História integrada, isto é, pelo tratamento da
História da civilização ocidental de modo articulado com os conteúdos de História
do Brasil e História da América.

164
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Prioriza-se, desse modo, a compreensão do processo histórico global, tendo por eixo
condutor uma perspectiva de tempo cronológica e sucessiva, definida a partir da
evolução européia.
Integram-se, a apartir desse epicentro, as demais culturas não européias pelo viés
cronológico.
Esse é o grupo hegemônico, dentro do qual insere-se a maior parte das coleções(p.139).

Todavia, na temática 4, referente às possibilidades de atualização


dos avanços historiográficos e a incorporação destes nas possibilidades
de revisão e construção permanente do conhecimento histórico
(p.141), mais uma vez manifesta-se a tendência historiográfico-
pedagógica tradicional, com 54%, contra as chamadas tendência
eclética( 25%) e tendência renovada( 21%), onde

aborda a História em sua dimensão meramente informativa e não valoriza o co-


nhecimento histórico em seu aspecto construtivo. As narrativas são organizadas a
partir de recortes já consagrados, as fontes históricas ganham caráter mais ilustrativo
e não são exploradas numa dimensão que aproxime o aluno daquilo que preside
o procedimento histórico; nesse sentido, uma concepção de verdade pronta e irre-
futável preside a obra. Em geral, as coleções que integram esse conjunto mantêm
coerência com a visão processual e evolutiva do tempo e das sociedades e não
rompe com a quadripartição clássica de base eurocêntrica (p.140).

Não há dúvidas de que os livros didáticos de História que orientam-


se por uma concepção conservadora, privilegiando a memorização dos
conteúdos e impedindo a interação cognitiva dos alunos com estes
e a consequente reconstrução e ressignificação do saber histórico,
raramente estarão abertos para novas dimensões sociais e campos
epistemológicos da Historiografia como as questões de gênero, pois
ainda guiam-se pelas meganarrativas e a abordagem dos macrofatores
do processo histórico, como as estruturas políticas e econômicas. A
pesquisa acima, então, nos apresenta um quadro desolador no que
tange à problemática de gênero, e o desafio volta a saber-se qual está
sendo a contribuição da História Integrada nesta questão.
Um conflito chama a atenção se os dados das quatro
temáticas forem cruzados de maneira geral. Se a História Integrada
representa a maioria esmagadora na tendência dos livros didáticos(
76%), considerada uma proposta renovadora da aprendizagem e
conhecimento históricos, como predomina ao mesmo tempo, e
também amplamente, a tendência tradicional, tanto historiográfica
quanto pedagógica, nas demais temáticas com os mesmos livros?
Esta contradição mostra que muitos livros didáticos de História
Integrada ainda mantém concepções tradicionais em seus textos, ou

165
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

nem são verdadeiramente ligados à esta tendência. Como as autoras


perceberam em sua análise, nesta abordagem, mesmo majoritária,
ainda persistem aspectos conservadores como a linearidade temporal
e a perspectiva eurocêntrica, onde as demais sociedades podem
aparecer, mas assumem uma localização periférica( p.139).
O autor Marcos Vinícius de Morais (2010) assume uma
constatação decisiva quando detecta as dificuldades historiográficas e
epistemológicas desta concepção, pois

Se analisarmos os livros didáticos disponíveis, concluímos que o termo “História


Integrada” nem mesmo deveria ser aplicado. O melhor seria chamar os modelos
adotados de “História Intercalada”, pois o que se tem é uma mera disposição cro-
nológica de conteúdos e fatos que se articulam com os anteriores apenas porque
ocorreram num tempo próximo. Assim, os temas não se integram nem interagem, mas
apenas se intercalam(p.207).

Depois desta constatação, ao invés de falar-se em História


Integrada como um projeto sólido e definido, é melhor considerá-
la como uma tentativa historiográfico-pedagógica ainda em
construção, com limitações epistemológicas a serem superadas,
carente de conceitos historiográficos claros e basilares, necessitando
principalmente de uma concepção teórico-histórica que envolva a
visão global de Humanidade a que se propõe. Deve tornar-se uma
tendência pedagógica não voltada somente para atender as demandas
educacionais dos livros didáticos na área, mas alicerçada na própria
Historiografia e Teoria da História.
Nesta nova parte do trabalho, será realizada uma análise sobre
as implicações diretas entre as questões de gênero e os livros didáticos,
utilizando-se em seguida um exemplo específico de uma obra em
História Integrada.
Depois de uma breve avaliação sobre as características gerais
existentes nos livros didáticos de História autorizados pelo PNLD do
Governo Federal, percebeu-se a predominância de uma tendência que
ainda aborda uma visão de ensino tradicional de História, tanto na
afirmação de dogmatismos nos conteúdos historiográficos como na
ênfase à memorização destes conteúdos no que tange à dimensão
cognitiva dos educandos, dificultando a reconstrução e renovação da
aprendizagem histórica. Neste contexto, a inclusão de assuntos novos
e atuais como as questões de gênero fica praticamente excluída. Para
os autores Leonardo Venicius Parreira Proto e João Paulo de Paula
Silveira (2012)

166
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

Não obstante, essas reflexões ainda passam longe do saber histórico apresentadas
pelos livros didáticos trabalhados nas escolas brasileiras. Muito embora o material
didático de história dos nossos dias apresente melhoras significativas se comparado
àqueles de viés economicista e ou meramente factualista de outrora, as identidades
de gênero seguem quase ignoradas. Aliás, seguem dentro da trivialidade homens
e mulheres (p.103).

Para os autores, os livros didáticos algumas vezes apresentam


as relações de conflito entre homens e mulheres, destacando a luta
destas contra a opressão masculina, mas uma análise das questões de
gênero vai muito além disto, pois permanecem ausentes os jovens e
as outras formas de sexualidade. Uma leitura das questões de gênero
não limita-se somente às interações e conflitos entre pessoas físicas
de sexos e sexualidades diferentes, mas às inúmeras e complexas
formas de representações de gênero na vida social e todos os tipos
de estruturações socioculturais organizadas e construídas sobre estas
representações, principalmente no âmbito da heteronormatividade.

Contudo, conceitualmente falando, esse tipo de narrativa não diz respeito aos
gêneros; não se trata simplesmente de apresentar a oposição, submissão e resistência,
mas de problematizar e decodificar as formas do(s) masculino(s) e feminino(s) ao
longo da história enquanto quadros classificatórios construídos a partir de arranjos
de poder e que não são dadas a priori( p.104).

UM EXEMPLO ESPECÍFICO DE HISTÓRIA INTEGRADA


Será feita, neste momento, uma breve análise sobre um
exemplo concreto de livro didático que orienta-se pela História
Integrada, avaliando-se principalmente como as questões de gênero
são abordadas nesta obra. Trata-se da coleção “ Novo História –
Conceitos e Procedimentos”, de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo(
Atual Editora), dividido em quatro volumes( 6º, 7º, 8º e 9º anos do
ensino fundamental), pertencente ao PNLD 2011-2012-2013. Este
livro está sendo utilizado atualmente por várias escolas das redes
públicas( municipal e estadual) da cidade de Rio Grande, no Rio
Grande do Sul, ou seja, concretamente imerso na realidade local em
que este artigo está sendo produzido. Portanto, escolheu-se analisar
esta coleção por estar sendo realmente utilizada por vários professores
de História e alunos de nossa comunidade local, e consequentemente,
influenciando de diversas maneiras o cotidiano escolar e cultural
desta comunidade. Outro fator que pesou na escolha foi a indicação
do PNLD, em que

167
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Essa coleção apresenta proposta de organização do saber escolar a partir do olhar


sobre o cotidiano de pessoas comuns,embora tal orientação apareça , com clareza,
mais nas atividades e textos complementares do que no texto-base. Organizada em
torno de um programa de História Integrada, privilegia a construção de conteúdos
conceituais sobre a experiência do vivido (p.69).

Na visão geral disposta para cada livro didático de História


listado no PNLD, chamou a atenção a informação em que esta
coleção tem como uma de suas características a inclusão de temas
ligados ao cotidiano. Em poucos livros didáticos, este elemento
aparece claramente, sendo portanto de grande interesse observar-se
nesta obra as possibilidades de um tateamento maior das questões
de gênero, que são melhor permeadas com temas centrais como as
dimensões políticas, econômicas e culturais, exatamente quando
partem da História do Cotidiano, lembrando-se porém que elas não
pertencem somente a este campo teórico e nem devem ser tratadas
separadamente das outras dimensões citadas. Conforme a visão geral
do PNLD, o texto desta coleção está estruturado e

Acompanha, assim, as renovações historiográficas realizadas ao longo do século


XX. Busca valorizar o trabalho com o estudo das mudanças e permanências
das sociedades e com as diferentes temporalidades existentes num mesmo tempo e
espaço. Adota a cronologia ocidental como fio condutor para a conexão dos conteúdos
de História Geral e do Brasil e toma cuidados para não conferir ao processo histórico
o sentido de evolução (p.69).

Verifica-se, nesta coleção, em diversas e variadas situações, a


dificuldade em realizar-se uma integração completa e equilibrada
das dimensões política, econômica, social, religiosa e cultural em
geral. Exemplos: no capítulo sobre o Egito antigo( 6º ano, p.56 à 71),
estas dimensões aparecem claramente divididas; no capítulo sobre
feudalismo( 7º ano, p.63 à 74), desenvolve-se uma visão integrada em
torno dos aspectos político, econômico e social na formação deste
sistema, mas a influência cultural do Cristianismo foi colocada em um
tópico distinto; no capítulo sobre Revolução Francesa( 8º ano, p.37
à 50), mostra-se a reciprocidade entre os fatores econômico, social e
político no desencadeamento do movimento, dando-se porém mais
ênfase ao último fator.
Não pretende-se aqui uma avaliação minunciosa sobre esta
obra para concluir-se de forma definitiva se ela alcançou seus objetivos
pedagógicos, pois existe o claro entendimento sobre a enorme
dificuldade em construir-se uma História global, que contemple as
diversas esferas da vida social da Humanidade, de todos os povos,

168
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

regiões e culturas até hoje registradas, sem cair-se no trágico risco


das explicações superficiais e mecânicas ou das meganarrativas. As
considerações de Marcos Vinícius de Morais( 2010) sobre os percalços
na configuração de uma História Integrada não deixam dúvidas sobre
isto. O que pretende-se aqui, na problemática das questões de gênero,
é avaliar-se mais a tentativa do que o resultado na empreitada desta
coleção didática.
Através do levantamento e análise de exemplos, pode-se perceber
a tentativa, ou não, deste livro em incorporar as questões de gênero em
seu texto-base, como este tema articulou-se com as demais abordagens
de sua narrativa didática, em que possibilidades de integração e que
obstáculos encontrou.
Exemplo 1: no capítulo sobre feudalismo( 7º ano, p.63 à 74),
é relatada a situação das mulheres neste sistema, com diversos
pormenores sobre sua vida social e econômica( p.70), ocupando-se
quase toda a página. No entanto, estes acontecimentos não constam
no texto-base, sendo anexados em um tópico isolado denominado “
Vida Cotidiana”. A dificuldade de integração do tema ao corpo geral
do livro fica evidente.
Exemplo 2: no capítulo sobre Revolução Francesa( 8º ano, p.37
à 50), é descrita a participação das mulheres no movimento, como
pode-se ver a seguir:

Foi a participação das mulheres nas discussões políticas. Na fase inicial, muitas
mulheres participaram ativamente da revolução. Em pé de igualdade com os homens,
estavam presentes nas jornadas militares, manifestações, debates políticos e festas,
especialmente no período de maior radicalização da revolução (p.46).

Em que setor do livro encontram-se estas informações? Novamente


no tópico “ Vida Cotidiana”. No texto-base, onde são arrolados os
acontecimentos revolucionários, a participação das mulheres poderia
ter sido incorporada no bojo da conjuntura histórica em questão.
Exemplo 3: no capítulo sobre Era Vargas, História do Brasil,
onde costuma ser comum nos livros didáticos uma rápida lembrança
sobre a conquista ao direito ao voto para as mulheres, verificou-se a
possibilidade de algo mais. E havia: um recorte sobre a situação destas
no período estudado( 9º ano, p. 108), mas novamente no tópico já
mencionado.
Exemplo 4: foi percebido um fato que raramente ocorre nos
livros didáticos(e até mesmo nos livros acadêmicos): a participação dos
homossexuais em um acontecimento histórico. Trata-se do capítulo “

169
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

Movimentos de contestação nas décadas de 1960 e 1970” (9ºano, p.


173 à 180), em que

Nesse mesmo ano foram criados diversos comitês em defesa dos direitos dos
homossexuais. Entre eles destacaram-se os comitês de estudantes homossexuais
estabelecidos durante o mês de maio de 1968 na França e o Gay Liberation Front, nos
Estados Unidos.Nas décadas seguintes, os homossexuais também conquistam a
aprovação de leis como a criminalização da homofobia (perseguição aos homosse-
xuais) e o direito à legalização das uniões homossexuais (p.175).

Exemplo 5: aqui trata-se de uma ausência. No Brasil, durante


o governo do presidente Collor de Mello( 1990-1992), tornou-se
marcante a participação dos jovens e estudantes nas passeatas pelo
país inteiro, que protestaram pela saída do mandatário por denúncias
de corrupção, ficando conhecidos como “ cara-pintadas”. No ítem
sobre este acontecimento histórico( 9º ano, p.215), estas mobilizações
foram vagamente citadas, com a genérica presença de “ diversos grupos
políticos”, ficando a grande interferência sociopolítica dos jovens e
estudantes simplesmente esquecida.
Exemplo 6: e, finalmente para confirmar a clara linguagem
historiográfico-pedagógica que o livro consegue seguir, também na
Grécia Clássica, referente à sua vida cultural, as mulheres aparecem
novamente separadas no tópico “ Vida Cotidiana” ( 6º ano, p.138).
Percebe-se, no levantamento de exemplos desta coleção didática,
a enorme dificuldade dos autores em integrarem as questões de gênero
ao restante de sua narrativa, colocando-as, na maioria das vezes, em
textos complementares, e quando estão presentes ao corpo geral do
livro, aparecem superficialmente. Além disso, estão praticamente
reduzidas à situação das mulheres, sendo poucas vezes lembrados os
jovens e outras formas de sexualidade. Não houve uma incorporação
completa das questões de gênero com as demais esferas do processo
histórico.
No entanto, o objetivo desta análise está mais em verificar-
se a tentativa do que o resultado na incorporação das questões de
gênero ao texto-base. Os autores não esqueceram a importância desta
problemática em seu discurso historiográfico-pedagógico, procurando
abrir janelas sobre o tema, colocando as mulheres, embora com
grandes dificuldades, como partícipes das transformações históricas,
atrizes invisíveis que, aos poucos vão sendo descobertas nas páginas
do livro didático.
Os riscos em cair-se em explicações superficiais quando abre-
se cada vez mais novas ramificações no discurso historiográfico( e,

170
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

neste caso, didático), são inevitáveis. Isto não acontece somente


com as questões de gênero, mas também com as questões étnicas,
como as culturas africana e indígena, ainda narradas limitadas e
superficialmente nos livros didáticos de História. Quando fala-se em
questões de gênero, a discussão ainda está muito reduzida à presença
e opressão das mulheres na História. Mas todas estas dificuldades
não são características exclusivas da coleção analisada, mas dos livros
didáticos de História em geral. Mais ainda, retomando Marcos Vinícius
de Morais( 2010), as dificuldades historiográficas, epistemológicas
e didáticas multiplicam-se quando tenta-se construir uma História
Integrada.
Na coleção analisada, mostra-se claramente uma característica
didática,comum à maioria dos livros didáticos atuais. A abordagem
de novos campos históricos como mentalidades, gênero, alimentação,
meio ambiente, entre outros, é feita através da inclusão destes temas
em textos complementares ou tópicos, genericamente ligados ao
cotidiano, ao invés de estarem incorporados ao texto-base em
integração com a narrativa global. Este fato demonstra, de maneira
inegável, o abismo existente na articulação necessária entre os
fatores estruturais e o cotidiano, limitando bastante uma abordagem
integrada. O destaque que a obra estudada confere ao cotidiano
manifesta-se como um tópico específico, mas não em uma perspectiva
globalizante.
Os homossexuais são lembrados (p.175) como protagonistas das
mudanças culturais ocorridas nos anos 60 e 70, representando um
avanço significativo, no propósito de lembrar-se o cotidiano como
espaço histórico. Aliás, é também um passo inovador nesta coleção
a implantação de um capítulo específico sobre as transformações
culturais nestas décadas, optando-se por uma leitura mais ampla deste
assunto.
No livro didático analisado, predomina uma narrativa geral que
enfatiza as estruturas políticas, econômicas e sociais( a leitura justaposta
das classes que compõem a sociedade), havendo pouca influência
das representações e arquétipos( e aí entrariam as representações
do masculino/feminino e os valores da heteronormatividade) que,
subliminarmente ajudam a moldar as estruturações socioculturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não resta dúvidas de que a incorporação das questões de gênero
com as demais esferas da vida social para uma compreensão global e

171
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

ampla no conhecimento histórico, objetivo da perspectiva da História


Integrada, ainda é um caminho que apenas começou, em sintonia,
inclusive, com os problemas gerais de toda esta perspectiva, pois
Marcos Vinícius de Morais( 2010) lembra
De fato, a História Integrada exige maior domínio dos conteúdos e um preparo
específico. Entretanto, são poucos os cursos oferecidos aos professores para que
compreendam melhor a proposta. Não é da noite para o dia que se aprende a
trabalhar com uma nova abordagem; é preciso haver um investimento maior em um
tempo mais longo, pois a idéia é bastante válida (PINSKY:209).

O desafio está na construção de uma narrativa histórica


em que todas as esferas da vida social estejam tão interligadas e
integradas, que possam seguir em um fluxo contínuo e circular de
acontecimentos dinâmicos e ilimitados, sem a necessidade didática
de subdivisões e classificações fragmentárias, em que o texto-base e
os textos complementares tornem-se um único texto. Trata-se de uma
tarefa dificílima, quase utópica, que a própria produção acadêmica
tem dificuldade em executar até hoje. Por isto, qualquer tentativa
pedagógica que aproximar-se desta proposta será uma vitória.
Nesta perspectiva narrativa, desaparecem as diferenças étnicas
e sexuais, permanecendo os elementos da diversidade cultural. Nas
questões de gênero, desaparecem também os homens, mulheres,
homossexuais e jovens como conceitos socionormativos segregadores.
Nilson Fernandes Dinis( 2008) afirma

Dessa forma, um novo exercício pedagógico é um convite a reinventarmos nossas


relações com os outros e com nós mesmos, nos desprendemos de nós mesmos,li-
berar a vida aí onde ela está aprisionada,devir-outro,tornarmos outra coisa.A produção
permanente de formas subjetivas que desconstruam as estruturas binárias e exclu-
dentes do tipo adulto-criança, homem-mulher, heterossexual-homossexual, outro-eu
mesmo. Uma resistência à tentativa de capturar as diferenças como signo de uma
identidade, já que a essência da alteridade é justamente tornar-se (p.489).

Na ótica de uma História Integrada, famosos e populares,


proprietários e trabalhadores, brancos, negros, indígenas, jovens,
homens e mulheres de todas as orientações sexuais( entre tantos
outros) tornam-se agentes históricos socialmente equânimes em suas
múltiplas subjetividades, despidas em suas dimensões identitárias de
qualquer função segregadora, mas ao contrário, vistas como potências
igualmente recíprocas no desenvolvimento histórico. Uma visão
histórica que não privilegie nenhum fator de análise sobre outro,
e que contemple a participação de todas as subjetividades em seus

172
H IST ÓR IA , GÊ N E R O E MAT E R IAI S D I D Á T I C O S

desdobramentos, estará contribuindo para a construção de sociedades


verdadeiramente democráticas, em que todos tenham efetivamente
espaço político.
Transpor pedagogicamente estas concepções para os livros
didáticos de História é o desafio final, reconhecendo as diversas
subjetividades ali implícitas em uma mesma narrativa integrada e
global, e reconhecendo-se a si mesmo neste processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARCA, Isabel, MARTINS, Estevão Rezende, SCHIMIDT, Maria Auxiliadora (orgs.).
Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

BRASIL.Programa nacional do livro didático 2011 - anos finais do ensino fundamental.


Disponível em:http:// www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/guia-do-livro.
Acesso em: 20 de fev.2013.

DINIS, Nilson Fernandes. Educação, relações de gênero e diversidade sexual. Educ. Soc.
Campinas, v. 19, n. 103, pp. 477-492, mai/ago. 2008.

DREGUER, Ricardo & Toledo, Eliete. Novo história-conceitos e procedimentos (6º,7º,8º e


9º anos). 2 ed. São Paulo: Atual, 2009.

MIRANDA, Sonia Regina & LUCA, Tania Regina de. O livro didático de história hoje:
um panorama a partir do PNLD. Revista brasileira de história. São Paulo, v.24, n. 48,
pp. 123-144, 2004.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de história: entre saberes e práticas. 2. ed. Rio de
Janeiro: MAUAD X, 2010.

PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Novos temas nas aulas de história. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2010.

PROTO, Leonardo Venicius Parreira & SILVEIRA, João Paulo de Paula. O gênero no
livro didático de história: arranjos de poder e consciência histórica. Revista sapiência:
sociedade, saberes e práticas educacionais. Iporá, v.1, n.1, pp. 102-112, jan/jun. 2012.

173
J Ú L IA SILV E IR A MAT OS & GIA N N E Z A N E L L A ATA L L A H ( O R G S . )

174

Você também pode gostar