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BUTLER, Judith.

Gender trouble: feminism and the subversion of identity (versã o


eletrô nica). Nova Iorque e Londres: Routledge, 2002.

PREFACE (1999) 1

PREFACE (1990) 2

1. SUBJECTS OF SEX/GENDER/DESIRE 2
I. “WOMEN” AS THE SUBJECT OF FEMINISM 2
II. THE COMPULSORY ORDER OF SEX/GENDER/DESIRE 3
III. GENDER: THE CIRCULAR RUINS OF CONTEMPORARY DEBATE 3
IV. THEORIZING THE BINARY, THE UNITARY, AND BEYOND 3
V. IDENTITY, SEX, AND THE METAPHYSICS OF SUBSTANCE 4
VI. LANGUAGE, POWER, AND THE STRATEGIES OF DISPLACEMENT 4

2. PROHIBITION, PSYCHOANALYSIS, AND THE PRODUCTION OF THE HETEROSEXUAL


MATRIX 5
I. STRUCTURALISM’S CRITICAL EXCHANGE 5
II. LACAN, RIVIERE, AND THE STRATEGIES OF MASQUERADE 6
III. FREUD AND THE MELANCHOLIA OF GENDER 8
IV. GENDER COMPLEXITY AND THE LIMITS OF IDENTIFICATION 9
V. REFORMULATING PROHIBITION AS POWER 10

Preface (1999)
O livro foi escrito no final dos anos 80 com o objetivo de contestar certas posiçõ es
feministas que cristalizavam as identidades de gênero entre masculinidade feminilidade,
criando novas hierarquias e deslegitimando algumas expressõ es de gênero como falso ou
derivadas. Isto nã o significa que toda prá tica deva ser aceita ou celebrada, mas que
devemos poder refletir antes de taxá -las. – vii/viii – É exatamente neste sentido que o texto
nã o reduz a teoria feminista à prá tica lésbica e nem reduz um suposto ser mulher ao
lesbianismo. – x – Contra o quadro heteronormativo que busca situar-nos apenas entre um
ser mulher e um ser homem reduzidos à s prá ticas heterossexuais. – xi – Um certo
policiamento de gênero, mesmo dentro dos discursos feministas, como forma de manter a
heterossexualidade. – xii – Assim, o discurso que defende a eliminaçã o do gênero
implicitamente está aceitando que apenas é possível pensar o gênero em termos de
subordinaçã o, da mesma forma que afirmava o discurso sexista. – xiii
Sobre performatividade: “performativity is not a singular act, but a repetition and a ritual,
which achieves its effects through its naturalization in the context of a body, understood, in
part, as a culturally sustained temporal duration” – xv – O gênero é produzido através da
repetiçã o de atos corporais. Aquilo que é exteriorizado e que é percebido no exterior é
internalizado como uma característica inerente do ‘eu’. – xv – Um desafio é pensar o que
acontece quando transpomos esta teoria para a raça, o que realça os pró prios limites da
categoria do gênero como chave de aná lise. – xvi
Uma questã o central do livro é como fazemos julgamentos sobre o gênero e quais as bases
teó ricas para isto. A distinçã o entre discurso descritivo e discurso normativo sobre o
gênero é insuficiente, pois toda descriçã o do que é o gênero pressupõ e uma posiçã o acerca
das suas condiçõ es de possibilidade, ou seja, uma posiçã o normativa. Para Butler, nã o é
possível uma enunciaçã o normativa acerca do gênero. Mesmo a identificaçã o de uma
prá tica como subversiva, do ponto de vista positivo, é o risco de fetichizaçã o e
comodificaçã o desta mesma prá tica. – xxi – A discussã o sobre drag no livro nã o é a
glorificaçã o de uma prá tica subversiva, mas a evidenciaçã o de como ao afirmar que “é um
homem vestido de mulher” ou “uma mulher vestida de homem” já pressupomos uma
verdade sobre o gênero. – xxii – Serve para nos despirmos da nossa distinçã o entre real e
irreal no campo do gênero e identificarmos como “naturalized knowledge of gender
operates as a preemptive and violent circumscription of reality”. – xxiii
Isto nã o quer dizer que o discurso identitá rio seja um problema e deva ser evitado. O
reconhecimento como minoria sexual é uma necessidade de sobrevivência e a mobilizaçã o
das identidades ameaças é um instrumento de contrapoder importante. – xxvi

Preface (1990)
“(...) what political possibilities are the consequence of a radical critique of the categories of
identity. What new shape of politics emerges when identity as a common ground no longer
constrains the discourse (...)” - xxix

1. Subjects of Sex/Gender/Desire
i. “Women” as the Subject of Feminism
A teoria feminista tradicionalmente reivindicou a categoria “mulher” como representante
de quem é, por quem fala e de seus interesses. Uma linguagem adequada para falar da
mulher seria um passo prévio necessá rio para um discurso feminista, sobretudo em um
contexto cultural de invisibilizaçã o da vida das mulheres. Ocorre que é o pró prio discurso
de representaçã o é que produz o sujeito feminista. Nã o existe uma “mulher” prévia. – 4 –
Assim, a pró pria via de emancipaçã o, o discurso representacional, impõ e limites e força a
produçã o da identidade dentro de uma determinada estrutura de poder. – 5 – Um efeito
negativo é a tentativa de construçã o de uma base universal para o feminisimo, contra o
patriarcado universal, o que pode acabar por estabelecer um discurso colonizante em
relaçã o à s culturas nã o ocidentais ou dos chamados países periféricos. A opressã o de
gênero lida como uma sintoma da barbá rie civilizacional deste outro. – 6 – Esta pretensã o
universal permanece presa ao binarismo homem/mulher e estabelece um feminino
descontextualizado de outros eixos de relaçã o de poder, como raça, etnia e classe, que
também compõ em a identidade.
Butler defende que a pretensã o de unidade e universalidade do sujeito do feminismo é
minada pela pró pria forma de funcionamento do discurso da representaçã o. A categoria
está vel da mulher é necessariamente excludente, mesmo que construída com fins
emancipató rios. – 7 – Mesmo no uso apenas estratégico da categoria, um efeito nã o
desejado pode ser precisamente a exclusã o de quem nã o se encaixa nesta categoria. – 8 – A
base de sua crítica é a noçã o de matriz heterossexual, entendida a partir da contribuiçã o de
Wittig do “contrato heterossexual” e de Rich de “heterossexualidade compulsó ria”. Na
primeira, temos que um “contrato social heterossexual” confina as identidades de gênero
dentro da ó rbita heterossexual do desejo1. Na segunda, temos que a heterossexualidade é
uma instituiçã o política que força a mulher a se conformar à prevalência do homem, e de
seu desejo, sobre a mulher, por exemplo com a criaçã o do mito do orgasmo vaginal2,3. - 9

ii. The Compulsory Order of Sex/Gender/Desire


A unidade da mulher está fundada na cisã o entre sexo como biologia e gênero como
construçã o cultural. – 9 – O binarismo do gênero, porém, indica uma crença na relaçã o
mimética entre sexo e gênero, enquanto que se construímos o gênero como independente
sua significaçã o independerá do corpo ao qual se acopla. Nã o poderíamos fazer o mesmo
para o sexo? Entendê-lo, também, como uma construçã o cultural? – 10 – O gênero como
interpretaçã o cultural do sexo, quando o pró prio sexo já é uma categoria gendered nos
coloca o desafio de escapar desta armadilha e ver no gênero o aparato de construçã o do
sexo e da sexuaçã o. É através do gênero que a sexed nature ou natural sex é produzida e
construída como pré-cultural e politicamente neutra. – 11

iii. Gender: The Circular Ruins of Contemporary Debate


Para Beauvoir, na sua reapropriaçã o contemporâ nea, o gênero é uma construçã o, porém
em relaçã o à qual há uma compulsã o cultural. Nã o se nasce mulher, torna-se mulher, mas
nã o propriamente por livre escolha. O homem e o gênero seriam construídos como
marcadores universais, enquanto que a mulher seria o ú nico gênero marcado pela
diferença – o negativo do homem.—13 – Irigaray vai dizer que o sujeito e o Outro já sã o,
desde sempre, categorias capturadas pela masculinidade. A significaçã o e a representaçã o
sã o desde já armadilhas. – 14 – O feminino nã o seria uma falta ou uma marca, mas aquilo
que escapa à representaçã o e ao discurso, que seriam construçã o masculinas que
interditariam a possibilidade de outra construçã o. – 15

iv. Theorizing the Binary, the Unitary, and Beyond


Ambas as teorias, porém, se valem de uma categoria universal de mulher, especialmente
Irigaray, e, portanto, cai no risco de estabelecer um discurso universalizante colinizador, ao
mesmo tempo que exclui quem nã o se encaixa naquela categoria de mulher. – 19 – Isto
pode gerar uma prá tica política fundacional, na qual a articulaçã o da identidade se constró i
previamente ao estabelecimento da coalizã o, logo elimina certas identidades. Haveria uma
totalidade fechada e prévia. Em uma abordagem antifundacional, o estabelecimento da(s)
1
Vide The Straight Mind (1979).
2
Vide Compulsory Heterosexuality and Lesbian Experience (1980)
3
Sobre este ponto, ver a sexologia do final do séc. XIX e (má ) contribuiçã o de Freud.
identidade(s) é diferido, deixando o campo aberto para a construçã o, surgimento e
afirmaçã o de outras identidades. – 21/22

v. Identity, Sex, and the Metaphysics of Substance


“The heterosexualization of desire requires and institutes the production of discrete and
asymmetrical oppositions between ‘feminine’ and ‘masculine, where these are understood as
expressive attributes of ‘male’ and ‘female.’” – 23 – Logo, aquelas identidades de gênero que
nã o se conformam a estas normas culturais de inteligibilidade sã o vistas como deficientes e
falhas. A identidade de gênero como produto de prá ticas discursivas regulató rias – 24 –
Muitas das críticas feministas, porém, permanecem presas à metafísica da substâ ncia,
supondo um sujeito psicologicamente identificado como prévio à construçã o do gênero. –
28 – Neste sentido, as afirmativas que se “é” uma mulher ou homem sã o problemá ticas,
pois subordinam o gênero à identidade e que a pessoa “é” um gênero em virtude do seu
sexo e da sua compreensã o psíquica do eu, principalmente seu desejo sexual. – 29 – A
estabilidade do gênero homem ou mulher pressupõ e, ao mesmo tempo que produz, uma
matriz heterossexual igualmente está vel. – 30 – Homem e mulher sã o colocados em xeque
enquanto substantivos capazes de descrever, enunciar ou normativizar os seres. – 32 – “In
this sense, gender is always a doing, though not a doing by a subject who might be said to
preexiste the deed.”4 – 33

vi. Language, Power, and the Strategies of Displacement


Seguindo Foucault, podemos entender que as proibiçõ es e interdiçõ es em relaçã o ao
gênero sã o produtivas em relaçã o ao sujeito supostamente fundado e produzido por estas
proibiçõ es. A sexualidade é colocada como algo externo e inacessível a este, porém nã o é
mera có pia da matriz heterossexual inicial. Aquilo que é produzido faz-se também em
desvios que mobilizam os “sujeitos” para além dos limites culturalmente estabelecidos de
inteligibilidade. – 39 – Nã o é possível pensar uma sexualidade anterior ou além destas
redes de poder. Toda sexualidade é, desde já , situada. – 40 – Até por isto nã o se pode
reduzir o aparecimento de convençõ es aparentemente heterossexuais em contexto
homossexuais como “chimerical representations of originally heterosexual identities. And
neither can they be understood as the pernicious insistence of heterosexist constructs within
gay sexuality and identity.” Nã o há uma sexualidade verdadeira (heterossexual) que seria
copiada pelas prá ticas homossexuais. As prá ticas heterossexuais sã o, elas pró prias, có pias.
– 41 – É o discurso regulató rio quem produz ambos os lados da equaçã o. – 42 – O gênero é
um efeito. Uma construçã o, o que nã o o torna menos real. Nã o há uma verdade por trá s que
o gênero oculte. O que temos sã o configuraçõ es culturais que assumem o lugar do real do
gênero através de uma prá tica discursiva regulató ria inscrita em uma determinada
conformaçã o das relaçõ es de poder. – 43

4
Alusã o nã o explícita ao artigo de West e Zimmerman de 1977, publicado em 1987? Doing Gender. In: Gender
and Society, 1 (2): 125-151.
2. Prohibition, Psychoanalysis, and the Production of the Heterosexual
Matrix
Ao longo da histó ria do feminismo, a noçã o de patriarcado e um tempo pré-patriarcal foi
importante para desmistificar a naturalizaçã o da hegemonia masculina, porém correu-se o
risco de se criar um discurso universalizante, sob e contra o signo do patriarcado, que
apagava outras formas de opressã o, como de raça ou coloniais. O discurso da origem acaba
por ter uma perniciosa insinuaçã o de justificaçã o, “makes the constitution of the law appear
as a historical inevitability.” - 48 – O recurso à origem impossibilita a exploraçã o de outras
construçõ es culturais complexas sobre o gênero e imobiliza a disputa em torno de uma
feminilidade original e mítica. – 49 – Estas tentativas se valem de um certa leitura do
estruturalismo de Lévi-Strauss que, baseada na distinçã o natureza/cultura, colocam o sexo
(feminino) como o natural a partir do que se construiria o gênero (feminino) em
subordinaçã o ao masculino. O sexo seria matéria bruta. Entretanto, este modelo, ao
naturalizar o sexo, coloca a cultura como livre para se impor sobre a natureza, mantendo
incó lume a estrutura de significaçã o do modelo de dominaçã o. Ao mesmo tempo, a
natureza, e corpo, sã o identificados como femininos, enquanto que a cultura, e a mente,
seriam atributos do masculino. Ou seja, a prevalência da cultura seria a prevalência do
masculino. – 50 – Ao reconhecermos o sexo também como produçã o discursiva cultural,
esta narrativa natureza/cultura cai por terra. O gênero como contingência.

i. Structuralism’s Critical Exchange


Em As Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-Strauss afirma existir uma estrutura
universal regulando os sistemas de parentesco caracterizada pela mulher como dom,
entregue de uma linha patrilinear para outra como forma de se estabelecer uma relaçã o
entre um grupo familiar e outros. Propó sito funcional, facilitar a troca, e simbó lico,
consolidar os elos e a identidade coletiva. A mulher nã o tem identidade, mas é através dela
que a identidade circula. – 52 – Esta vinculaçã o da natureza simbó lica da troca e estrutura
universal identitá ria poderia ser contestada por uma posiçã o ou posiçõ es localizadas fora
de sua economia? Irigaray tenta um movimento neste sentido. – 53 – De forma semelhante
à Lévi-Strauss, Saussure, ainda que reconhecesse a relaçã o significante-significado como
arbitrá ria, visualizava a linguagem como um campo totalizante. Haveria uma equalizaçã o
entre os dois termos. O pó s-estruturalismo nega o binarismo e reintroduz a différance5 na
linguagem.
Voltando à Lévi-Strauss, a diferença entre as linhas patrilineares, que diferencia e une, é
estabelecida em um elo apenas entre homens. – 54 – Ambos os clã s compartilham a
identidade masculina, patriarcal e patrilinear. Sua diferença está apenas no nome. Ou seja,
o elemento implícito é um desejo homossocial entre homens que se manifesta através da
troca heterossexual e distribuiçã o da mulher. “the homoerotic unconscious of the
phallogocentric economy”. – 55 - Aqui a reduçã o da mulher à objeto de troca aparece como
condiçã o necessá ria à simbolizaçã o. Ao mesmo tempo, se esta economia simbó lica
estabelece e impõ e um domínio sexual determinado, o que acontece se localizamos um

5
A palavra nunca aponta diretamente para seu significado, mas apenas através de outras palavras. Logo, o
significado é sempre diferido. A palavra se diferencia, abre um espaço, entre ela e a outra palavra.
domínio excluído da sexualidade e o usamos como ferramenta de intervençã o na
simbolizaçã o vigente? – 56
O fundamento desta simbolizaçã o seria o tabu do incesto, que imporia a exogamia e mulher
como objeto de uma economia de troca. Lévi-Strauss indica que nã o há indícios de que o
insight de Freud corresponda a fatos histó ricos, mas sim que podemos pensar em uma
fantasia cultural universal. Porém, Lévi-Strauss parece indicar que a fantasia funciona, ou
seja, que o tabu opera na realidade. Butler, porém, destaca que talvez o pró prio desejo seja
produzido em decorrência da erotizaçã o decorrente do tabu. O desejo incestuoso como
fantasmá tico, mas nã o por isso menos concreto. – 57 – Lévi-Strauss assume como
premissas fora da discussã o “[t]he naturalization of both heterosexuality and masculine
sexual agency”.
Lacan, lendo Lévi-Strauss, vai dizer que a Lei que estabelece o tabu do incesto também será
fundadora da linguagem. A Lei se reafirma em cada indivíduo na sua individuaçã o e entrada
na cultura – no Simbó lico. A linguagem apenas é possível a partir do momento da nã o-
satisfaçã o fundamental instituído pela proibiçã o do incesto. A jouissance é perdida na
repressã o fundamental que funda o sujeito, dando origem a um sujeito barrado do acesso a
este desejo inicial. O sujeito busca, entã o, um substituto para este desejo – metonímia. Da
mesma forma, a língua também é sempre insuficiente para significar. O sujeito, a língua e o
desejo sã o sempre incompletos e insuficientes. – 59

ii. Lacan, Riviere, and the Strategies of Masquerade


Lacan nã o está preocupado com o que é o ser, mas em como este ser é instituído através de
prá ticas significantes. Neste sentido, é central a posiçã o do phallus. Ser o phallus e ter o
phallus sã o posiçõ es divergentes e impossíveis. A mulher “é” o phallus, ou seja, é o
significante do desejo do Outro. O objeto, o Outro de um desejo masculino heterossexual, ao
mesmo tempo que representa este desejo. “the site of a masculine self-elaboration”. A
mulher significa o phallus através da sua ausência. – 59 – Ao fazer esta afirmativa, Lacan
está dizendo que a mulher ocupa uma posiçã o de poder por nã o-ter, pois o homem, que
“tem” o phallus, necessita deste outro para sua confirmaçã o e “ser” o phallus de forma
estendida. Seja ser ou ter o phallus, estaremos sempre diante de uma construçã o
fantasmá tica marcada pela falta e pela impossibilidade da simbolizaçã o. – 60
O masculino se funda, sua autonomia, na repressã o primordial do desejo incestuoso. Sua
completude depende da mulher como reflexo do poder masculino e garantia do mesmo.
Logo, funda, ao mesmo tempo, uma dependência radical em relaçã o à mulher. Dependência
também buscada, na medida em que a mulher serviria como promessa de recuperaçã o da
jouissance perdida. A afirmaçã o da autonomia fundada em um volta ao prazer pleno
anterior à repressã o e individuaçã o. A mulher seria aquilo que o homem nã o tem e como
forma de garantir que ele seja o que é ou acredita ser. – 61
“Ser” o phallus é ser significado(a) pela lei paterna como seu objeto e instrumento, logo
algumas feministas argumentam que isto seria impor à mulher a negaçã o do seu desejo,
limitando-se a ser apenas o reflexo e a garantia. Entretanto o “ter” o phallus do homem é
também um reconhecimento de que o homem nunca “é” o phallus e, em ú ltima instâ ncia,
ninguém “é” ou “têm” o phallus. – 62 – Por isso Lacan fala em uma comédia da
heterossexualidade. Ele fala que a mulher “aparece como sendo” o phallus, logo nã o o é,
mas sim que o que está em jogo aqui é um mascaramento, o que nos dá duas possibilidades
de leitura: toda ontologia de gênero é uma jogo de aparências; ou existe um ser e desejo
femininos anteriores ao mascaramento que poderia ser desvelado. – 63 – A literatura
feminista sobre o que seria este mascaramento é vasta. – 64 – (...)
A má scara seria uma forma de apropriaçã o dos atributos do objeto/Outro que foi perdido,
sendo a perda a consequência da recusa do amor. A má scara domina e resolve a recusa na
medida em que a mulher se apropria daquilo que teria sido perdido. – 65 – Lacan parece
indicar que, no caso do desejo lésbico, teríamos uma heterossexualidade desapontada, que
nã o deu certo. Uma recusa do desejo. Porém, nã o poderíamos dizer o mesmo do desejo
heterossexual? Como sendo uma desapontamento com o desejo homossexual? Lacan nã o
deixa claro quem está recusando quem. A má scara teria a funçã o de esconder esta
recusa/desapontamento, ao mesmo tempo que a mantém viva ao escondê-la. – 67
Joan Riviere propõ e uma outra leitura da má scara em seu artigo de 1929 estudando o que
significa dizer que alguém apresenta características do outro sexo, o que seria identificado
com a postulaçã o de uma unidade entre atributos de gênero e orientaçã o naturalizada, de
forma aná logo à formaçã o imaginá ria de Wittig. – 68 – Riviere localiza a aquisiçã o destes
atributos como a forma de resoluçã o de uma ansiedade que nã o está ligada a tendências
naturais. Nã o há uma homologia entre heterossexualidade/homossexualidade e atributos
externalizados. Por exemplo, a apresentaçã o de traços entendidos como masculinos pela
mulher poderia ser uma forma de retribuiçã o contra aqueles que produziram a castraçã o. –
69 – As má scaras assumidas pela mulher (feminilidade) ou pelo homem homossexual
(masculinidade) seriam formas de esconder, nestes casos, respectivamente, seu medo de
adotar o lugar de sujeito do discurso pú blico (traço do masculino) e sua feminilidade. – 70 –
(...) – Apesar destas narrativas, Riviere nã o fala de uma feminilidade primordial que seria
mascará vel ou mascarada. A má scara e o que escondem sã o a mesma coisa. – 72
A pró pria noçã o de masculinidade/feminilidade, porém, sã o um problema. Supõ e uma
primazia natural da bissexualidade ou da libido como característica primá ria do homem.
Parte da escrita psicanalítica opta pela primeira opçã o – 73 -, postulando a cultura como
aquilo que corta esta unidade psíquica primordial bissexual. Entretanto, a postulaçã o da
bissexualidade como fundamento psíquico de toda sexualidade já é uma produçã o
discursiva que este discurso coloca como anterior ao discurso. Para Lacan, nã o há ser
sexuado antes do discurso. A sexuaçã o é produto da inserçã o do ser no mundo simbó lico.
Rose vai dizer que nã o existe feminino fora da linguagem. – 74 – É a lei que institui esta
duplicidade. “To consider this psychic doubleness as the effect of the Law is Lacan’s stated
purpose, but the point of resistance within his theory as well.”
Rose está correta quando assinala que nã o há identificaçã o completa com a fantasia.
Simbó lico e Real nunca coincidem. Nunca se “é” ou se “tem” o phallus. Porém, o Simbó lico
como “invariably phantasmatic” pode significar o Simbó lico como inevitavelmente gerando
a sexualidade como espelho da cultura. O pré-discursivo como impossível abre espaço para
vermos a Lei como proibiçã o e produçã o/geraçã o. – 75 – Este passado pré-discursivo é
inacessível e nã o pode ser conhecido, ainda assim emerge no discurso do sujeito como
fêlure. O passado da jouissance que nã o pode ser conhecido, mas, ainda assim, possui
realidade.
A sexuaçã o pela via da entrada no Simbó lico é sempre uma falha que leva “to the exposure
of the phantasmatic nature of sexual identity itself.” O risco é cair na ideia de que a
identificaçã o seria possível, por um lado, e, por outro lado, tornar esta cisã o a fonte de uma
tortura expiató ria à la Velho Testamento. – 76 – Obediência cega ao Simbó lico.
Aprisionamento do sujeito perante a lei do Simbó lico. É possível, entretanto, uma leitura de
Lacan a partir da crítica teoló gica de Nietzsche em Genealogia da Moral – 77

iii. Freud and the Melancholia of Gender


Freud insere o luto e melancolia como parte do processo de estruturaçã o do Eu. A perda da
pessoa amada leva à incorporaçã o, na estrutura do Eu, de atributos deste outro, como
forma de sustentá -lo através de atos de imitaçã o. A perda é superada através da
identificaçã o com o outro. A identificaçã o momentâ nea se torna estruturante da nova
identidade e parte permanente do Eu, que internaliza certas características deste outro. –
78 – A estratégia de internalizaçã o da melancolia poderia ser compatibilizada com o
trabalho do luto. Enquanto que Freud pode parecer preocupado apenas com a formaçã o do
Eu, aqui também temos a formaçã o do gênero. “This process of internalizing lost loves
becomes pertinent to gender formation when we realize that the incest taboo, among other
functions, initiates a loss of a love-object for the ego and that this ego recuperates from this
loss through the internalization of the tabooed object of desire.” – 79
Ao falar da formaçã o do Eu, Freud identifica o complexo de É dipo como superaçã o do
desejo pela mã e, mas indica a existência de um desejo ambivalente direcionando também
ao pai. Ou seja, nã o se trata apenas da escolha de objeto, mas também de escolha de
(dis)posiçã o sexual. Assim Butler, transforma o medo de castraçã o em um medo de
feminizaçã o, justificando a opçã o pela posiçã o heterossexual. – 80 – Tendo como ponto de
partida o primado da bissexualidade ao invés do drama do É dipo, a primariedade da
escolha da mã e como objeto do interesse e investimento do menino se torna problemá tica.
A saída do É dipo, em Freud, se dá para identificaçã o com a mã e, como forma de internalizar
a perda, ou com o deslocamento do interesse e identificaçã o com o pai. Para a menina, a
perda do pai também pode levar à identificaçã o com este (consolidaçã o da masculinidade)
ou deflexã o do objeto (heterosexualidade). Freud chega a mencionar uma disposiçã o
masculina ou feminina, que atuaria na escolha da identificaçã o, mas nã o desenvolve o que
seria. – 81 – Butler assinala que ler o desejo pelo pai como uma evidência de feminilidade,
apesar da postulaçã o do primado da bissexualidade, seria aceitar a matriz heterossexual do
desejo. No modelo freudiano clá ssico, a homossexualidade parece sempre o resultado de
uma escolha deficiente de objeto, pois o “correto” seria repudiar da disposiçã o oposta ao
“natural do corpo”. Freud nã o nos mostra de onde viriam tais disposiçõ es – 82 -, logo nada
impede que deduzamos que a internalizaçã o e a disposiçã o sã o fenô menos iguais. Ou seja, a
disposiçã o é, ela pró pria, já uma internalizaçã o. – 83
Enquanto que em Luto e Melancolia, Freud fazia uma distinçã o entre ambos os fenô menos
como aparentemente excludentes. Luto como superaçã o saudá vel da perda e melancolia
como internalizaçã o patoló gica do objeto perdido. Em O Eu e o Id, Freud coloca a
melancolia, como internalizaçã o do objeto perdido, como condiçã o de formaçã o do Supereu
e do ideal-do-eu. Apenas apó s esta formaçã o é possível ao sujeito renunciar aos objetos, ou
seja, fazer o trabalho de luto. Com isto, o Eu cria uma instâ ncia interna capaz de se voltar
contra si pró prio, o Supereu ou ideal-do-eu (Butler utiliza os termos como sinô nimos). A
raiva direcionada ao objeto perdido é transferida para o Supereu que passa a direcionar
esta ao Eu, como agência moral. – 84 – Este ideal-do-eu é essencial na passagem do É dipo e,
portanto, na formaçã o da identidade de gênero. O Supereu significa a internalizaçã o da
proibiçã o do amor materno/paterno, reprimindo a expressã o do desejo por esta figura, ao
mesmo tempo é uma preservaçã o deste desejo.
No campo do gênero, isto significa que a identificaçã o de gênero é uma forma de
melancolia. A internalizaçã o do sexo do objeto proibido como proibiçã o – 85 -,
engendrando a lei do desejo heterossexual. Antes do tabu do incesto, o tabu da
homossexualidade. A identificaçã o com o mesmo sexo é um resultado do trabalho da
melancolia contra o desejo em relaçã o ao mesmo sexo. O resultado é a tal disposiçã o
masculina ou feminina de que trata Freud, que, diferente do que fazia parecer Freud, sã o
produçõ es da lei imposta pela cultura e nã o fatos sexuais primá rios. – 86 – (...) – 87
Foucault vai dizer que é a pró pria lei que inventa o conceito de desejo reprimido como
forma de racionalizar a si pró pria. Assim, a lei nã o é propriamente repressã o, mas
produçã o, através da sua prá tica discursiva, da ficçã o linguística que sustenta este quadro.
– 88
“Thus, the repressive law effectively produces heterosexuality, and acts not merely as a
negative or exclusionary code, but as a sanction and, most pertinently, as a law of discourse,
distinguishing the speakable from the unspeakable (delimiting and constructing the domain
of the unspeakable), the legitimate from the illegitimate.” - 89

iv. Gender Complexity and the Limits of Identification


Na matiz lacaniana, a identificaçã o está presa à dicotomia “ser” e “ter” o phallus – 89 -, na
qual o termo excluído sempre retorna para contestar as bases de completude do sujeito. As
teó ricas feministas buscaram construir uma referencial de identificaçã o a partir da mã e
que acaba por reforçar a matriz heterossexual e o binarismo homem/mulher. A suposta
subversã o do inconsciente apenas faz sentido se entendemos a lei paternal como
universalmente determinista na construçã o de uma identidade fixa assombrada pelo
fantasmá tico. – 90 – Pensando uma histó ria de identificaçõ es constitutivas, poderíamos
pensar uma miríade de identificaçõ es conformadas, ou nã o, ao padrõ es culturais de
integridade de gênero. Estranhamente, Lacan afirma que nunca é possível narrar a origem
do sujeito, por ser este barrado, entretanto, existe um momento fundacional da lei paternal
que funciona como narrativa metahistó rica.
A alternativa psicanalítica é reconhecer a multiplicidade e coexistência de identificaçõ es em
conflitos e convergências disputando a fixaçã o das localizaçõ es feminina e masculina em
relaçã o à lei paternal. A lei paternal, assim, nã o é determinística e nem mesmo singular, a
lei.
Para Abraham e Took, a incorporaçã o é uma fantasia na qual o objeto tomado é imaginado
em um espaço interior – 91 – dentro de uma linguagem capaz de reificá -lo. As
identificaçõ es sustentadas pela melancolia seriam formas de incorporaçã o e o lugar da
incorporaçã o seria o corpo, no corpo, como superfície de significaçã o entendida como
espaço incorporado. No luto, em oposiçã o, teríamos a introjeçã o da perda como
estabelecimento de um espaço vazio e permite o trabalho metafó rico de substituiçã o de um
objeto pelo outro. – 92
Pensando o gênero desta forma, a identidade de gênero seria formada através da recusa da
perda que, através da melancolia, se inscreve no corpo, escrevendo o corpo morto no corpo
vivo e literelizando a perda no corpo. Assim, o incorporado, o perdido, aparece como a
facticidade do corpo, “the means by which the body comes to bear ‘sex’ as its literal truth.” A
perda do prazer é resolvida pela incorporaçã o deste mesmo prazer obrigató rio e proibido
“through the compulsory effects of the gender-differentiating body.”
Em Freud, a perda do objeto heterossexual implica apenas a perda do objeto, mas nã o da
sua direçã o, enquanto que a perda do objeto homossexual, implica a perda de ambos e a
negaçã o completa do desejo – 93 -, sublimado pelo trabalho da melancolia.
Assim, Irigaray lê Freud no sentido de que toda posiçã o heterossexual sustenta
melancolicamente um desejo homossexual, proporcionalmente. – 94 – O inverso também é
verdade, porém apenas a negaçã o da ligaçã o homossexual primá ria é culturalmente
imposta por uma proibiçã o geral, a proibiçã o da homossexualidade.
Voltando ao gênero, a literalizaçã o no corpo da incorporaçã o significa a naturalizaçã o do
seu resultado, escondendo sua genealogia. – 95 – O desejo, portanto, será sempre um
componente imaginá rio e imaginado, assim como o pró prio corpo nã o será a causa do
desejo, mas seu objeto. O corpo será erotizado e transfigurado conforme as demandas do
desejo. O corpo pode colocar limites aos significados imaginá rios dos signos culturais, mas
nunca se desprende por completo da construçã o imaginá ria. O corpo fantasiado nã o está
em relaçã o ao corpo real, mas a um corpo fantasiado culturalmente que se coloca como
literal ou real. – 96 – Da mesma forma que o desejo heterossexual se apresenta como ú nica
verdade sobre o sujeito, ocultando o desejo homossexual que fez parte de sua histó ria
psíquica. – 97

v. Reformulating Prohibition as Power


Em Foucault, o tabu do incesto nã o seria a repressã o de uma disposiçã o primá ria, mas a
criaçã o da distinçã o entre disposiçõ es primá rias e secundá rias para a reproduçã o da
distinçã o entre heterossexualidade como normal e homossexualidade como ilegítima.
Neste marco, a proibiçã o que funda o sujeito e que sobrevive como a lei dos seus desejos
seria a forma de constituiçã o do gênero. – 99 – A lei de proibiçã o do incesto – que proíbe o
acesso a algumas pessoas do sexo oposto e a todas as do mesmo sexo – nã o operaria sobre
possibilidade sexuais anteriores, mas produz a heterossexualidade e homossexualidade,
desde já como norma e como transgressã o, respectivamente. – 100
Rubin argumenta que o gênero acabaria a partir do momento em que a criança nã o fosse
mais criada fora de um marco de heterossexualidade compulsó ria, mas de bissexualidade,
homossexualidade e heterossexualidade como possibilidades de comportamento e
identidade para a criança, pois o gênero seria uma “the cultural transformation of a
biological polysexuality into a culturally mandated heterosexuality”. – 101- Entretanto, seu
argumento supõ e um “antes da lei”. Uma sexualidade infantil idílica a qual poderíamos
voltar ou se manter nela. Mas e se negamos a existência de uma sexualidade ideal anterior
ao tabu do incesto? – 102 – Iríamos com Foucault e a identificaçã o do desejo e da repressã o
como efeitos da operaçã o da lei. O tabu do incesto seria a forma de produçã o do desejo
incestuoso e da construçã o de certas subjetividades de gênero. – 103
Isto significa que para o desejo heterossexual se estabelecer como norma cultural, é
necessá rio que o desejo homossexual seja criado para ser reprimido, proibido e
sancionado. – 104 – A bissexualidade “original” é uma construçã o cultural, construída para
ser proibida como impossível e inadequada. Nã o é anterior à cultura ou à lei, mas parte
delas. Heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade estã o todos dentro da
cultura, mas apenas o primeiro é componente da cultura dominante. Os dois ú ltimos como
anteriores à cultura é a forma de garantir o primado da matriz heterossexual, como ú nica
posiçã o realmente culturalmente produzida. - 105
“Mobilizing the distinction between what is ‘before’ and what is ‘during’ culture is one way to
foreclose cultural possibilities from the start. (...) this narrative strategy, revolving upon the
distinction between an irrecoverable origin and a perpetually displaced present, makes all
effort at recovering that origin in the name of subversion inevitably belated.” - 106

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