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Albert Nobbs: A Problemática do gênero na história e a subversão da

performatividade

Kauan AMORA¹

RESUMO
Este artigo pretende fazer um breve panorama sobre o conceito de gênero desde
a Idade Média, passando pelo movimento feminista da década de 1970 até os estudos de
gênero modernos, articulando-o com o filme “Albert Nobbs” (2012, dirigido por
Rodrigo Garcia, filho de Gabriel Garcia Marquez). O trabalho terá como norte-teórico
os estudos da filósofa pós-estruturalista Judith Butler – grande nome da quer theory - e
mais especificamente seu conceito de “performatividade subversiva”.
Palavras-chave: Gênero; Performatividade Subversiva; Teoria Queer; Albert Nobbs.

ABSTRACT
This article intends to give a brief overview of the concept of gender since the
Middle Ages, through the feminist movement of the 1970s to modern gender studies,
linking it with the film "Albert Nobbs" (2012, directed by Rodrigo Garcia son of Gabriel
Garcia Marquez). Work will North theoretical studies of post-structuralist philosopher
Judith Butler - big name or theory - and more specifically his concept of "subversive
performativity."

Keywords: Gender, Performativity Subversive, Queer Theory, Albert Nobbs.

¹ Aluno do curso de Licenciatura Plena Em Teatro da UFPA, Curso Técnico de Formação em


Ator da UFPA, Pesquisador do Grupo PACA. E-mail: kauan_cinefilo@hotmail.com
A trajetória do gênero
Começo este texto com essa fatídica pergunta: Afinal, o que é gênero?
Identidade de gênero, para ser mais específico. Ao longo dos anos, através de estudos e
pesquisas esse conceito foi sendo estudado e desenvolvido, sob uma ótica
multidisciplinar, ou seja, com influência de várias áreas do conhecimento, sendo as
ciências sociais a mais frequente. O objetivo neste texto não é de definir uma resposta
rígida e imutável para esta pergunta, haja vista que isso é uma questão muito mais
contingente e complexa do que imaginado, mas de apontar uma direção para sua maior
compreensão utilizando estudos de grandes nomes da área, como os da filósofa
americana Judith Butler e da historiadora Joan Scott.
Para compreendermos a trajetória do gênero temos que voltar alguns anos atrás,
na década de 1970, para os estudos de minorias sexuais e de gêneros e o feminismo.
As mulheres lutavam pelos seus direitos no auge do movimento feminista e as
discussões gays e lésbicas aumentavam. Nos estudos feministas de primeira vaga, na
década de 1970, as representantes criaram a ideia de uma categoria rígida de Mulher ou
de mulheres, que era definida pelo corpo biológico, principalmente. Logo, o sexo
anatômico definia todo o papel social de gênero de um individuo para o resto de sua
vida desde antes do seu nascimento, quando era possível enxergar o sexo do bebê
através do ultrassom. Desde esse momento o individuo já é criado e educado para seguir
a vigente lei heterossexual. Algumas feministas contestam, incluindo Butler, esse
caráter rígido e imutável da relação sexo/gênero. As mulheres heterossexuais do
movimento feminista discriminavam as lésbicas alegando que suas relações não
passavam de meras representações de um casal heterossexual, já que entre alguns casais
lésbicos havia quem representasse o papel masculino e o papel feminino da relação,
surgindo assim o grupo composto por feministas lésbicas, “Ameaça Lavanda”.
Toda essa discussão serviu de catarse para o surgimento da Teoria Queer em
meados da década de 1980, que surgiu com o poder de transgressão, como afirma Lopes
Louro: “A diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressiva e perturbadora.” (LOURO, 2001, p. 546).
Em termos teóricos e metodológicos, os estudos queer surgiram do encontro
entre uma corrente dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo
francês (MISKOLCI, p.2), para aprofundar nos estudos gays e lésbicos e definir uma
nova concepção de gênero para a sociedade conflitante. Nos estudos queer surge a
importante filósofa americana Judith Butler que vai eclodir com a concepção de gênero
vigente até então.
Butler propõe nos seus estudos que sexo não define gênero, que este além de ser
socialmente construído, não é natural por não haver nenhuma relação natural com o
corpo. Ou seja, se de acordo com a teoria feminista o individuo deveria agir em perfeita
concordância com seu órgão genital, nos estudos queer construir um gênero que não
esteja intimamente ligado ao seu sexo é perfeitamente aceitável. Esse foi o pensamento
que colapsou todo o conhecimento sobre gênero existente até então. Miguel Vale de
Almeida, no seu artigo “Do feminismo a Judith Butler” afirma: “Os gêneros masculino
e feminino seriam inevitavelmente construídos, pela cultura, sobre corpos macho e
fêmea, tornando outra vez o destino inescapável.” (ALMEIDA, 2008, p. 2).
Para Butler:

“O gênero é o mecanismo pelos quais as noções de masculino e feminino são


produzidas e naturalizadas, mas ele poderia muito bem ser o dispositivo pelo
qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006:59).

Todos os elementos de construção de gênero que são/foram


naturalizados, devem ser colocados no âmbito sócio/cultural, revelando assim a sua
predominância ao que é dado como biológico. Não se entende nisso que a menstruação
ou gravidez são elementos construídos socialmente, mas a forma como isso ajuda a
estruturar a sociedade e como é trazido para a dimensão sociocultural influencia nos
estudos, já que esses fatores são encarados de formas diferentes, com significados
diferentes de cultura para cultura. O que toda essa problemática quer dizer, é que ao
longo da história nem todas as culturas prevalecem o sexo em relação ao gênero.
Nos tempos de hoje, a questão do sexo e gênero se tornou mais discutível e
complexa, mas não menos interessante. Há quem hoje se recuse de ser regido dentro de
um padrão anteriormente existente, como ser definido homem ou mulher, hetero ou
homossexual. Vivemos em um mundo globalizado, que já superou isso e que luta para
extinção dos “rótulos”. Vivemos na era do pós-gênero. O homem na sociedade
contemporânea é constantemente cruzado por várias informações no mesmo espaço de
tempo, devido à globalização, portanto ele é visto como homem cindido e fragmentado.
Ele nasce com um centro de poder e conforme vive, esse centro é substituído por outros.
É a ideia de que um são vários.
Hoje em dia a binariedade homem/mulher são apenas nomenclaturas que não
bastam em meio a uma sociedade que se veste, pensa e vive de formas tão variadas, é
preciso de mais. Tanto é que para alguns a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transgêneros) já se modificou para LGBTIQ – adicionada de “intersex” e “questioning”
(“em dúvida” ou “explorando possibilidades”).
Na Austrália, os passaportes além de vir com a opção “masculino” e “feminino”,
têm também a opção “genderless” (que significa “sem gênero”, em inglês). Cynara
Menezes em seu texto sobre o pós-gênero afirma:

“Nascida mulher, a filósofa espanhola Beatriz Preciado, autora do


livro Manifiesto Contrasexual, uma provocação intelectual que pretende
subverter os conceitos de gênero e sexo é, ela própria, um ser híbrido que recusa
qualquer definição. Preciado não se considera nem homem nem mulher nem
homossexual nem transexual. Perguntada pelo jornal catalão La
Vanguardiasobre seu gênero, Beatriz respondeu: ‘Esta pergunta reflete uma
ansiosa obsessão ocidental, a de querer reduzir a verdade do sexo a um binômio.
Dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do
sexo’. Segundo a filósofa, a sexualidade humana é como os idiomas: pode-se
aprender vários.” (MENEZES, 2011, sem indicação de número de páginas).

Ao redor do mundo, sexualidade também é política. Recentemente em 2009, na


Itália, Alessandro Bernaroli, de 40 anos, se submeteu a uma operação de mudança de
sexo e se tornou Alessandra, porém era casado com sua esposa e de acordo com a
legislação vigente no país, eles foram obrigados a ser divorciar, já que a Itália não aceita
o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Não é novidade que a dicotomia sexo/gênero é alvo de árduas e conflitantes
discussões que abrangem dimensões políticas, científicas, sociológicas e principalmente
religiosas e que isso se estende através dos séculos, porém sem nunca perder sua
contemporaneidade. Já tendo feito um breve apanhado sobre a concepção e
problematização de gênero na contemporaneidade, farei uma breve explicitação dessa
problemática ao longo dos séculos e do mundo.
Desde a Antiguidade até o século XVIII, acreditava-se na existência do sexo
único, onde possivelmente todo esperma era de sexo masculino e cabia a mãe de forma
passiva, o papel de desenvolver e germinar a semente masculina para que nascesse um
bebê homem. No Século II d. C., segundo o médico grego Galeno, a definição do sexo
do bebê se dava através da quantidade de calor no corpo da grávida, se o calor fosse
menor do que o esperado, o sexo fisiológico não se externalizaria, portanto não se
desenvolveria e o resultado seria o nascimento de um bebê mulher. No entanto, se o
corpo da mãe recebesse a quantidade de calor necessária, nasceria um menino. A
mulher era conhecida como um homem organicamente imaturo (Laqueur, 2001, p. 16).
A partir desse pensamento de que a mulher é um homem não desenvolvido, foi-
se criando a ideia de que ela era um ser inferior ao homem em todos os sentidos:

Conclui assim que a mulher é um “macho falido”, um homem que não deu certo,
desta vez tendendo mais às fraquezas espirituais. Um ser “incompleto”, como a
mulher, o é em todos os sentidos: orgânicos e morais, pois, novamente
relembrando, era no corpo, em suas formas e sinais que se manifestava a alma da
pessoa (LEITE JR, 2011, p. 53).

Então, a partir disso, homens e mulheres passaram a interpretar diferentes e


hierarquizados papéis sociais de gênero ao longo de sua vida. Os homens por
supostamente serem os mais fortes tinham o papel de dominantes e as mulheres, por sua
vez, assumiam o papel de submissas a eles, já que não possuíam o “calor” necessário no
corpo. Essa definição e hierarquização dos papéis originou a luta do sujeito pelo poder e
direito a significação.
Essa busca pelo poder e de luxúria pode ser encontrada na história do Deus
Hermafrodito (filho de Hermes e Afrodite), ele teria nascido um belo e atraente garoto,
então, um dia estava nos bosques da Cária, perto de Halicarnasso (atual Bodrum, na
Turquia) e encontrou a ninfa Salmacis, que tomada pelo desejo diante a beleza angelical
do jovem, foi rejeitada, então assim que ele se despiu e entrou no lago, ela foi a sua
direção, agarrou-se a ele e pediu aos céus e aos deuses que nunca mais os separassem,
tendo seu pedido atendido, eles se tornaram um só, originando daí o conceito de
Hermafrodita. O Deus revoltado amaldiçoou o lago e a partir daquele momento em
diante aquele que tomasse banho naquele lago seria transmutado assim como ele foi. No
fim da história, a ninfa se uniu a ele adquirindo todo seu poder, força e masculinidade,
ao passo que ele “regrediu” adquirindo toda a feminilidade e delicadeza da ninfa. Eles
trocaram de poder.

É neste sentido que podem ser interpretadas muitas das proibições e escândalos
causados pelas trocas de vestuários entre homens e mulheres. As roupas sempre
foram em nossa cultura um importantíssimo signo de gênero e status, cuja
função era – e ainda o é, hoje em dia – o de regular e vigiar as fronteiras
culturalmente criadas entre os sexos/gêneros e grupos sociais (LEITE JR, 2011,
p. 54).

A troca de vestimentas e, portanto a troca de papéis sociais e de poder, era visto


pelas autoridades com repugnância, esse ato era caracterizado como “abominável”. Isso
seria um completo desrespeito àqueles que nasceram para comandar (homens) e àquelas
que nasceram para obedecer (mulheres), gerando caos e desordem social e até espiritual.
Esse tipo de acontecimento só era permitido, no sentido religioso, ritual e mágico, como
mostram algumas culturas. Somente o xamã ou feiticeiro tinha permissão para tal ato.
Mais tarde isso foi terminantemente proibido pela religião judaico-cristã.
Nas festas populares, influenciadas pela Grécia antiga, a característica de troca
de vestimentas permeou por algum tempo, homens se vestirem de mulher e vice-versa,
era algo comum nessas celebrações, era o momento que causava aproximações entre
pessoas de diferentes sexos e também de diferentes classes sociais. Eram vigentes as leis
suntuárias, que determinavam o tipo de roupa para as diferentes classes sociais, era
definido que tipo de tecido e cor cada um deveria usar. Nessas festas, principalmente,
em países europeus como França e Inglaterra, essas fronteiras se quebravam nos bailes
de máscaras. Nestes bailes novos prazeres e descobertas eram experimentados, e havia
aqueles que não se travestiam apenas nos festejos, mas cotidianamente.
Até o século XVIII, o que era sociológico predominava sobre o que era
ontológico, logo as vestes e as ações sociais do individuo deveriam explicitar o seu sexo
biológico.

Possuir um pênis ou uma vagina era uma das características, mas não a mais
privilegiada, que formava um todo Homem/masculino ou Mulher/feminino, pois
mesmo essa diferenciação entre sexo e gênero ainda não fazia parte do universo
conceitual do período e tanto o sexo quanto o gênero formavam uma única
expressão do ser (LEITE JR, 2011, p. 57).

Hoje, o que acontece é sobreposição do sexo genital que diz como o sujeito deve
se vestir para o resto de sua vida.
Os estudos de Lynne Friedli nos mostram o caso de Mary Hamilton, uma inglesa
que passou a viver como homem no século XVIII, tendo adquirido todos os poderes e
privilégios concedidos, ainda casou-se como homem e mais tarde descobriu-se que se
tratava de uma mulher, ela foi presa por seis meses e açoitada em praça pública. Ainda
assim, existiu uma figura que marcou época, como o caso do Cavaleiro d’Eon de
Beaumont, um militar e diplomata francês que levantou um boato sobre si mesmo, de
que seria na verdade, uma mulher disfarçada de homem, tempos antes da Revolução
Francesa. O rei o obrigou a trajar-se e viver como uma mulher até o fim de seus dias.
Depois de sua morte, através dos exames, provou-se que se tratava de um homem de
verdade. Resultado, D’Eon conseguiu manter suas medalhas e título militar depois de
muito pedir ao Rei, este criou o título de “Cavaleira” somente para ele.
Era compreensível de alguma forma o desejo de algumas mulheres de se
tornarem e viverem como homens, haja vista o poder e alguns privilégios que estes
possuem, mas na época, era completamente inadmissível a possibilidade um homem
querer tornar-se mulher, e perder toda a sua força e seus privilégios perante a sociedade,
era um ator transgressor. Já dizia Marñon: A feminização do homem é um fenômeno
regressivo, poderíamos dizer negativo; enquanto que a virilização da mulher é um
fenômeno que, aparte seu caráter patológico, poderíamos chamar de progressivo; de
certo modo, positivo (1930: 125).
O gênero vem sendo problematizado ao longo dos séculos na história da
humanidade, sempre coberto por muito questionamento e até misticismo, e seguindo
essa trajetória ele vem sendo modificado e sistematizado para a maior compreensão
acerca de como o comportamento humano altera o curso da história. Sendo mais
específico, o conceito de gênero começou a ser estudado separadamente de sexo e
sexualidade desde o início do século XX, graças aos estudos de psiquiatras,
psicanalistas, médicos e sociólogos que de uma forma ou de outra colaboraram para
produção de conhecimento no que tange aqueles que possuem comportamentos
diferentes dos comportamentos que a sociedade hegemônica heterossexista exige.
Em 1955, o conceito de “gênero” foi usado pela primeira vez pelo psicólogo e
psiquiatra John Money, seus estudos serviram de precursores da ideia de que o gênero
não é inerente ao funcionamento biológico do ser humano, se tornando, portanto,
revolucionários, por outro lado Money procurava fixar e manter o que Butler chama de
Inteligibilidade de gênero, a ideia de que o homem deve ser masculino e manter
interesse afetivo-sexual por mulheres e vice e versa.
Em 1964, o psiquiatra e psicanalista americano Robert J. Stoller criou o conceito
de “identidade de gênero”, e contribuiu imensamente aos estudos sobre a
transexualidade:

A mescla de masculinidade e feminilidade em um individuo, significando que


tanto a masculinidade quanto a feminilidade são encontradas em todas as
pessoas, mas em formas e graus diferentes. Isso não é igual à qualidade de ser
homem ou mulher, que tem conotação com a biologia; a identidade de gênero
encerra um comportamento psicologicamente motivado. Embora a
masculinidade combine com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a
qualidade de ser mulher, sexo e gênero não estão, necessariamente, de maneira
direta relacionados. (Stoller, 1993: 28)

Desde então, muitos são os estudos de diversas áreas do conhecimento que têm
contribuído para a maior compreensão acerca do que é gênero e de como ele (re)
estrutura a sociedade, este texto se revela mais uma pesquisa na tentativa de relacionar
esses conhecimentos com a sétima arte, o cinema, já que este por diversas vezes abre
portas para esta discussão na tentativa de provocar agenciamentos sociais.

A obra “Albert Nobbs”


O personagem Albert Nobbs vivia na Irlanda do Séc. XIX, bem distante dessa
discussão de definições de gêneros, talvez ele não tivesse a mínima ideia do que isso
significasse, mas apesar da distância (tanto espacial quanto temporal), sua vida abre um
leque de discussões para temas contemporâneos. Explicarei o motivo.
O filme conta a história de uma mulher que se disfarça de homem para
sobreviver na Irlanda machista em pleno século XIX. Ela vive como Albert Nobbs,
trabalhando em um hotel, seu principal objetivo é conseguir juntar dinheiro para
comprar uma loja e ter seu próprio negócio. Pela rígida discrição e dedicação ao
trabalho, Albert Nobbs passa quase despercebido ao olhar das pessoas ao seu redor, por
isso ninguém imagina que Albert esconde um grande segredo. O pintor contratado pela
dona do hotel onde Albert Nobbs trabalha acaba descobrindo seu segredo, mas promete
não revelá-lo a ninguém. Ao longo da projeção descobrimos que esse pintor, Hubert
Page, também é uma mulher disfarçada e casada com uma costureira. A partir daí, se
inicia uma bela e delicada discussão sobre gêneros e identidades.
A obra é baseada na peça teatral “The Singular Life of Albert Nobbs”, de George
Moore, no qual a atriz Glenn Close interpretou nos palcos o personagem principal sendo
amplamente elogiada, desde lá demoraram exatos 30 anos para que ela conseguisse
financiamento para fazer uma adaptação cinematográfica, tendo também assinado o
roteiro, a produção e ter escrito a música tema do filme, tamanha a paixão da atriz pela
obra.
Glenn Close, ao longo de sua elogiada e premiada carreira sempre priorizou os
personagens complexos e sempre imprimiu toda a sua força e competência em todos
eles. Atriz de sucesso em uma Hollywood ainda machista e sexista, que prefere atrizes
jovens e belas para interpretar seus novos filmes, Close se firma, hoje, como uma
lutadora pelos direitos das mulheres em um mundo onde os homens ainda dizem muito.
Close interpretou a perversa Marquesa Merteuil em Ligações Perigosas que afirma ter
vindo ao mundo para vingar seu sexo, sempre brincando com sentimentos alheios, logo
depois interpretou a desequilibrada Alex Forrest em Atração Fatal, filme considerado
por alguns como um libelo feminista, ainda esteve conformada em Mulheres Perfeitas e
agora desfila belamente em Albert Nobbs. A preferência da atriz, por personagens
femininas que estejam a frente do seu tempo ou que problematizam a situação da
mulher ao longo da história é bastante clara.
É importante que seja apontado que o filme não se torna assunto em questão
nesse texto somente por debater a questão de gêneros, mas também porque o cinema é
(e deve sê-lo) um espaço para discussão social, cultural e política.

O cinema era estudado como um produto cultural e como prática social, valioso
tanto por si mesmo como pelo que poderia nos revelar dos sistemas e processos
culturais. Ironicamente, essa inclusão do cinema na cultura – de certa forma uma
redução de sua importância como prática – resultou numa maior compreensão de
sua especificidade como meio de comunicação. (TURNER, 1997, p. 49).

O cinema muitas vezes é objeto de estudo acadêmico de várias áreas do


conhecimento, tanto da psicologia, da filosofia, quanto da sociologia, perpassando por
vários outros conhecimentos. Há quem seja contra essa espécie de estudo, defendendo
que o cinema pode perder um pouco de sua especificidade e autonomia, colocando-o em
uma posição inferior. Mas, enxergar o cinema como prática social (TURNER, 1988), só
o fortalece enquanto arte autônoma e ampla que o é, haja vista que não só é capaz de
discutir diversos assuntos em uma só obra, como é capaz de provocar agenciamento,
isto é, possibilidade de mudanças estruturais na sociedade (HIOKA, 2008, p. 3).
Albert Nobbs não foi visto por milhões de pessoas ao redor do mundo, nem
gerou uma grande quantia de bilheteria mundial, mas foi amplamente reconhecido e
elogiado pela crítica especializada americana, que culminou com três indicações ao
Oscar da Academia. Há algum tempo atrás, filmes que tinham atores travestidos e
problematizavam sexo e gênero, causavam certo desconforto entre os conservadores e
idosos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, mas
com o tempo essa discussão se tornou algo constante no cinema, ganhando a admiração
dos especialistas e do público em geral, retornando aos estúdios de Hollywood grandes
quantias em dinheiro, tendo a Academia Cinematográfica, já premiado diversos atores
que interpretaram personagens do sexo oposto, eis um dos inúmeros possíveis
agenciamentos. Não aprofundarei nessa questão, já que não é o foco do debate, mas
para nível de conhecimento que a constante discussão cinematográfica acerca desse
assunto ou de qualquer outro faz com que barreiras sejam desconstruídas e maiores
fronteiras sejam alcançadas.
O cinema foi (e é) usado diversas vezes como ferramenta e espaço de discussão
histórico-social. Ele, de acordo com Lopes, “nos convoca a vê-lo não só como uma arte
de representar, mas como um meio capaz de entreter e incomodar” (LOPES, 2009, p. 3).

O cinema não é somente um lugar aonde se vai para assistir o desenrolar de


histórias e esquecer a vida real por alguns momentos, é também o lugar onde se
tem o encontro com faces alheias, faces que muitas vezes já nos eram
conhecidas, que encontramos diariamente, mas que já não nos causavam
comoção, e estão agora espelhadas num telão a nos perturbar, nos distrair, nos
instigar ou nos causar estranhamento. (LOPES, 2009, p. 6)

Nesse caso, o cinema que ultrapassa todos os níveis do mero


entretenimento tem a capacidade de não só nos fazer ver, mas refletir e discutir, se
assustar e emocionar com a realidade impressa nas telas, que muitas vezes conhecemos,
mas ignoramos.
Para Francisca Lopes, o cinema como prática social, independentemente de suas
intenções, tem três capacidades:

De, como arte, elevar o espírito e conduzi-lo à estesia; como entretenimento,


proporcionar o riso, distrair e acalmar e como prática social fazer ver de forma
espelhada o que já não víamos, através das histórias reais ou imaginadas que nos
apresenta. (2009, p. 7)

O filme apesar de não se propor abertamente a discutir tais temas como


travestismo ou papel social de gênero, também não nos deixa alternativas quando
saímos da sala de cinema, a não ser repensar tudo o que fazemos e principalmente, o
que somos. Refletir sobre o filme é colocar em xeque as noções de sujeito, é
problematizar as nomenclaturas que nos definem, até que ponto elas estão certas ou
erradas e como elas mudam através dos séculos.
Na verdade, Albert Nobbs é um conto de fadas às avessas, uma fábula infantil
para adultos, tendo como figura principal um anjo marginalizado. Talvez a intenção de
Rodrigo Garcia não seja levantar bandeiras ou defender causas sociais, mas
simplesmente de discursar sobre a pureza e boa vontade humana, características tão
raras nos dias de hoje, e o fato de se utilizar de um personagem “abjeto” para a
sociedade hegemônica o torna ainda mais irônico e verdadeiro. Parece que o filme tenta
de todas as maneiras se esquivar de todas as nomenclaturas criadas pela sociedade para
nos definirmos (e nos reduzirmos). Ao acabar a projeção a sensação é de que não
conseguimos nomear o que de fato Albert Nobbs era, o que só reforça a natureza etérea
do personagem.

A articulação dos estudos queer com o filme


Para Luciana Hioka, em seu artigo “A subversão da heteronormatividade no
filme O Segredo de Brokeback Mountain”, ela discute o fato de o filme de Ang Lee ter
desconstruído a tríade sexo/ gênero/ desejo sexual:

“Em Brokeback Mountain, há a infração de um sistema sexo / gênero /


sexualidade (ou, como Butler escreve, “desejo sexual”), e não somente entre
sexo e gênero. Isso porque o filme traz protagonistas de sexo masculino (com
genitália masculina) e de gênero masculino, mas gays. É a partir daí que se dá a
performatividade subversiva, com essa quebra da heteronormatividade”.
(HIOKA, 2008, p. 8).

O personagem-título do filme “Albert Nobbs” não vai tão longe quanto os


personagens de O Segredo de Brokeback Mountain, já que este se propõe apenas em
romper com a dualidade sexo/ gênero, a mulher que se veste e vive como homem. O
teor sexual da obra de Rodrigo Garcia é quase imperceptível. O filme não foca sua
atenção na opinião de Albert sobre ele mesmo ou sobre sua sexualidade, em nenhum
momento percebemos que Albert se sente alheio a sua própria realidade ou inferior em
relação a sua questão. Na verdade, é como se Albert não tivesse crescido, e fosse
incapaz de se dar conta de sua realidade como humano.
De fato, Albert Nobbs subverte a performatividade do gênero quando ele
consegue viver disfarçado durante anos, levando assim todos que convivem com ele a
acreditarem na sua masculinidade. Mas, o que é ser homem?
É a partir do século XIX, que as características que delimitam o universo
feminino do universo masculino vão ser criadas, através da necessidade de uma
sociedade que já problematizava isso desde a Idade Média. Essas delimitações sofreram
diversas mudanças de lá para cá, o que defendemos tão categoricamente como
pertencente ao universo masculino ou feminino, há séculos atrás era bastante diferente:

O lugar comum da psicologia contemporânea – de que o homem deseja o sexo e


a mulher deseja relacionamentos – é a exata inversão das noções do pré-
Iluminismo que, desde a Antiguidade, ligava a amizade aos homens e a
sensualidade às mulheres. (Laqueur, 2001: 15).

Sobre essas definições, Jorge Leite Júnior cita a opinião de Marañon:

Muito justamente se diz ao garoto, desde seus primeiros anos, que ‘homens não
choram’ (...) O choro tem um inegável acento feminino. Quase todas as
mulheres choram com uma facilidade inacessível aos homens. Até as piores
atrizes estão bem nas cenas em que têm que chorar (1930: 171)

É bastante clara a posição que a mulher vem ocupando na sociedade ao longo


dos séculos, do ser materno, frágil, que busca o relacionamento, ser delicado e que está
sempre em lugar de submissão e inferioridade em relação ao homem em sua existência
sem privilégios. Não é de se estranhar que ao longo das épocas algumas mulheres
tiveram a coragem de se vestir e viver como homens em busca de alguma sorte e bem
estar na vida. Contudo, essa imagem vem sendo quebrada com o tempo e as mulheres
conseguem mais espaços e conquistas na sociedade, e se travestir dessa forma já não se
torna mais necessário.
O filme de Rodrigo Garcia expõe essa realidade da mulher na história de forma
muito verdadeira. Suas personagens estão sempre fazendo serviços domésticos, ao qual
foram educadas desde pequenas para exercer para o resto da vida, apenas Nobbs e Page
inverteram os papéis sociais, já que inverteram suas vestimentas e comportamentos.
Em seu livro Nossos corpos também mudam: A invenção das categorias
“travesti” e “transexual” no discurso científico, Jorge Leite Jr. lança uma importante
questão: Quem – ou o quê – são e qual o lugar na nova ordem social das mulheres que
se vestem de homens e vice-versa?
Levando em conta que o conceito de “travesti” é relativamente jovem, já que foi
originado em 1910 na obra que estudava sexualidade e vestimentas: Die Transvestiten,
traduzida para o inglês como Transvetites – the erotic drive to cross-dress, do psicólogo
alemão considerado pai da “sexologia”, Magnus Hirschfeld, é nele que as maiores
descrições acerca de Albert Nobbs se firmam, mas se pararmos para pensar o que essa
palavra realmente significa talvez não seja a denominação correta para o personagem.
Segundo Hirschfeld, a palavra vem do latim transvestitus, trans que significa
através, e vestitus que significa estar vestido. Ainda não é fato confirmado de quando a
palavra foi usada pela primeira vez, alguns afirmam que ela apareceu em 1543,
significando disfarçado, ao passo que Lynne Friedli, afirma que o termo foi usado em
1652 na Inglaterra, Terry Caslte ainda diz que o termo é bastante usado para se referir
aos dançantes dos bailes de máscaras que se vestiam do sexo oposto e até mesmo com
roupas de diferentes classes sociais, apenas para diversão. Só é em 1831 que se têm
notícias de que a palavra é usada para se referir àquelas mulheres que se vestem de
homens e vive e versa.
O conceito de “travesti” para Hirschfeld é uma categoria clínica nova e discute
as pessoas que se travestem com roupas pertencentes ao sexo oposto por objetivos
eróticos, ou seja, o travesti é aquele individuo que deseja viver usando o vestuário do
sexo oposto, assim como ser reconhecido como um ser do sexo oposto, para realizar
seus desejos pessoais e sexuais.
Ora, há a diferença entre “travestis” e “eonistas”, nome dado em homenagem ao
Cavaleiro d’Eon citado no início do texto, que são aqueles indivíduos que para alcançar
um nível maior de prazer sexual gostam de vestir roupas do sexo oposto, no ato sexual.
Responder a pergunta feita acima não é nada fácil, categorizar, legitimar e
definir lugar histórico-social de pessoas que vivem ou viveram como Albert Nobbs é, no
mínimo, difícil, haja vista que as categorizações se diferem de estudioso para estudioso
e conforme a área de conhecimento. Como podemos ver:

Em Krafft-Ebing, a questão da vestimenta não era um fato importante em si a


ponto de ganhar uma autonomia analítica, pois os casos analisados em que
ocorre a “troca de roupas”, com finalidade erótica ou não, estão classificados
como fetichismo ou antipatia sexual. A partir desta nova distinção conceitual, os
termos “travestismo” de Hirschfeld e “eonismo” de Ellis servem bem para
ilustrar o quanto estas categorias ainda estavam em formação, incentivando
disputas e debates pelo predomínio de determinadas interpretações e suas
consequentes nomeações (LEITE JR., 2011, p. 108).

A pesquisa ajuda a ter a conscientização de que isso é um fato verdadeiro ao


longo da história, mulheres foram obrigadas a ser “travestir” de homem e viver como tal
para conseguir ganhar algum privilégio e viver uma vida decente. Assim, aos poucos vai
se desfazendo da cabeça da sociedade a ideia de um “verdadeiro sexo”, somos todos
cópias de algo que achamos que conhecemos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arán, Márcia e Júnior, Carlos Augusto Peixoto; Subversões do desejo: sobre gênero e
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