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As Horas: (Beijos) Guerra, flores e tempo.

Assisti ao filme As Horas há alguns anos atrás, e não foi amor à primeira vista, apenas
gostei moderadamente, mas foi através da curiosidade que comecei a pesquisar sobre o filme
e assisti-o novamente, foi o bastante para se tornar o filme definitivo para me tornar de vez
um cinéfilo. E é incrível perceber que mesmo depois de tantos anos e depois de ter assistido As
Horas tantas vezes, o filme ainda é capaz de surpreender e de se superar diante dos meus
olhos.
O filme começa com o início de um dia comum na vida das três personagens centrais,
Virgínia Woolf (Nicole Kidman), Laura Brown (Julianne Moore) e Clarissa Vaughan (Meryl
Streep), e através da montagem magnífica de Peter Boyle seguimos os companheiros (ou
companheira, no caso de Clarissa) dessas mulheres chegando em casa e fazendo-as encarar
aqui que elas mais temem: a vida.

As Flores
Virgínia se abaixa para molhar o rosto e que m se levanta com o rosto umedecido é
Clarissa, enquanto Clarissa anda em direção ao vaso de flores, quem o pega é Dan (marido de
Laura Brown), e quem o coloca no lugar e arruma é Nelly (empregada de Virgínia Woolf),
conectando assim personagens diferentes em épocas tão distintas. Virgínia escreve a primeira
frase do que seria seu livro mais famoso, "Senhora Dalloway”, em 1941 Laura Brown lê a
primeira frase: “Senhora Dalloway disse que iria comprar as flores”, e em 2001 Clarissa avisa
que ela mesma vai comprar as flores, como podemos ver as flores, símbolo feminino universal,
está desde o roteiro até no papel de parede do quarto de Laura (excelente trabalho de direção
de arte).
Acompanhamos Clarissa na preparação da festa de Richard, Laura Brown na
preparação do bolo de aniversário do marido, e Virgínia simplesmente tentando sobreviver
mais um dia. São diferentes mulheres, com diferentes vidas e obrigações, ligadas pelo mesmo
sentimento, o de não pertencer a si mesmas. Clarissa se ocupa com afazeres altruístas para
esquecer-se do vazio próprio, assim como a personagem Clarissa Dalloway, do livro de Woolf
(que coincidentemente têm o mesmo nome), Laura na tentativa de fazer um bolo para
satisfazer o marido e Virgínia tentando sobreviver dia após dia com a doença que a devora e
com uma vida que não pode controlar.
As Horas é um filme sofisticado, feminino, humano, mas acima de tudo subjetivo, as
respostas (e talvez até as perguntas) estão em pequenos atos, como o quebrar de ovos que
demonstram um nervosismo comedido ou em um jarro de flores murchas capazes de
relembrar que a morte está por perto.
Richard Brown que vive enclausurado dentro do próprio apartamento, vítima da AIDS
e de si mesmo é capaz de exercer uma força incontrolável sobre Clarissa tornando-a
dependente dele, quando deveria ser ao contrário já que ele depende dos cuidados médicos
dela. Como ele próprio diz: “Espere eu morrer, aí você vai ter que pensar em si mesma.”.

Os Beijos
Existem três beijos femininos que são chaves para a compreensão das personagens.
O primeiro beijo é o de Laura Brown com sua amiga Kitty (Toni Collette) que é algo entre o
consolo e o carinho, demonstrando também a possível homossexualidade da personagem, já
que a atração pelo mesmo sexo é uma sombra sempre presente no filme. Virginia Woolf foi
abusada constantemente pelos seus meios-irmãos quando era jovem, e quando se casou não
mantinha relações sexuais com o marido, mas suas personagens geralmente eram liberais
sexualmente, estudos sobre a escritora mostram que Woolf era possivelmente lésbica devido
as constantes visitas que ela recebia de mulheres, mas o beijo que dá na irmã é a simbolização
da tentativa de tentar sugar a vida comum e aparentemente perfeita de Vanessa (Miranda
Richardson). O terceiro beijo é o de Clarissa com sua amante no final do filme, é um sinal de
perdão, absolvição e de rendição por parte de Clarissa perante a vida e da vida perante ela.
Durante a cena da estação, da briga entre Leonard e Virgínia, Stephen Dillane é
brilhante ao retratar Leonard como um marido preocupado, apaixonado e constantemente
ameaçado pela morte da mulher, como ele próprio afirma, mostrando que não era o opressor
e carcereiro de Woolf, como muitos estudiosos da escritora o acusam.
Quando o final do filme chega, começamos a ver os destinos trágicos de seus
personagens centrais (e até dos secundários, como o marido de Laura Brown), Virgínia Woolf
acaba se suicidando em um lago no dia 28 de março de 1941, Laura Brown depois de revelar o
motivo pelo qual abandonou sua família é fadada a uma vida de solidão e punições, por não
achar que depois disso tinha o direito de ser feliz. Richard (filho de Laura) acaba se jogando da
janela do prédio em uma de suas crises, já Clarissa de alguma forma é a única perdoada e
absolvida por Virginia, o destino a livra da dor, do peso, do medo e quando ela é finalmente
obrigada a enfrentar a vida, ela descobre que é sim, tão forte quanto parece, o que encaixa
perfeitamente o destino de Clarissa com que Woolf diz no final.
O filme acaba e com ele o dia se vai, dando-nos uma conclusão, que o que realmente
importa é sobreviver o dia. Acabamos de testemunhar vida de três mulheres em um único dia,
e a guerra das três para levar tudo com a barriga, e não é a guerra que Dan (marido de Laura)
sobreviveu, a guerra que mata tantos homens, mas a guerra interior, que é tão assustadora
quanto, uma guerra interna, violenta e diária que travamos todos os dias com nós mesmos
capaz de ferir e matar aos poucos e que assim como a guerra das personagens às vezes não
conseguimos vencer, somos derrotados pela vida de forma covarde e cruel, mas é como
Virgínia Woolf escreveu uma vez: “apesar de tudo rezamos como não fazemos como nenhuma
outra coisa, para que aja mais.”.

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