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Sexo é natural; gênero é cultural?

Um diálogo entre Joan Scott e Judith


Butler

É fato que estamos, os autores deste blog, beirando ao pedantismo, de tanto


que criticamos a distinção sexo/gênero. Mas será que essa crítica obtém algum
resultado? Sendo uma distinção conceitual tão presente, não só no senso
comum, como também nos estudos de gênero, é válido refletirmos sobre as
dificuldades em sua compreensão.

Uma historiadora por quem guardo imensa admiração, Joan Scott, tentou


desconstruir essa dicotomia entre um sexo para a natureza e um gênero para a
cultura em seu clássico artigo Gênero: uma categoria útil de análise
histórica (1995), publicado originalmente em 1986. Pouco depois, em
1990, Judith Butler opera de forma similar em Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade (2010).

A historiadora Joan Scott (1941-) relevou os mecanismos de poder associado


ao conceito de gênero, apresentando-o como um saber constituído
conjuntamente à noção de sexo.

Mais de duas décadas depois, Scott (2010) faz um balanço e nos mostra que
está longe de ser consensual o entendimento sobre sexo e gênero. Os usos
sempre variaram: há aqueles que tomam os dois conceitos como radicalmente
distintos, há outros que tomam o gênero como uma forma mais acadêmica de
se referir a “sexo” ou “mulheres”, mas uma coisa permanece: a noção de que
o gênero é uma assimilação de significados sobre diferenças sexuais
biologicamente dadas continua intacta. E foi justamente isso que elas tanto
criticaram!
Ao conceituar gênero, tanto Joan Scott quanto sua colegaJudith Butler –
falando a partir de uma perspectiva construcionista social, altamente
influenciada por Foucault – destacam que tanto sexo quanto gênero são, em
primeiro lugar, formas de saber, isto é, conhecimentos a respeito dos corpos,
das diferenças sexuais, dos indivíduos sexuados.
Porém, se associamos o primeiro à natureza, e o segundo à
cultura, perpetuamos a ideia de que existe uma “natureza” que possa ser
apreendida à parte de um conhecimento que produzimos sobre
ela (SCOTT, 1999). Ambos são conceitos históricos (no sentido de possuírem
uma história, serem passíveis de uma genealogia) e, desta forma, cambiáveis
no tempo e no espaço.

A filósofa Judith Butler (1956-) nos mostra o quanto a ideia de um sexo natural
é produto de relações de gênero que visam a naturalização do sexo em um
ambiente pré-cultural e ahistórico.

O exercício, portanto, de naturalização do sexo é uma maneira de assegurá-lo


em um status pré-cultural, pré-discursivo e, consequentemente, ahistórico
(BUTLER, 2010). Neste sentido, Scott (1999) vai afirmar que, sendo saberes, a
distinção entre os dois é complexa, de tal forma que não podemos dizer que o
gênero é um reflexo do sexo ou que seja imposto sobre este. Pelo contrário,  o
sexo se torna um efeito do gênero.
O que não significa que o pênis ou a vagina, por exemplo, passem a existir
porque foram “inventados” no âmbito da cultura e da linguagem. Não, eles
estão lá! Mas sua existência na sociedade só tem sentido, só é passível de ser
compreendida, a partir de um olhar que é cultural, a partir de um discurso que é
construído. Assim sendo, concepções políticas sobre masculino e feminino
marcam e orientam a constituição desses saberes. É por isso que gênero é,
desde sua origem, um conceito político que diz respeito às relações de poder,
como já dizia Scott (1995) em décadas anteriores.

“O sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-


discursiva”, escreve Butler (2010, p. 27), “sem dúvida, será sempre
apresentado, por definição, como tendo sido gênero desde o começo”. Isso é
exatamente a ideia de Linda Nicholson (2000), a qual partilha dessa mesma
perspectiva, de que sexo e gênero são um mesmo conceito, pois o primeiro
está subsumido no segundo e só pode ser entendido a partir deste.

O masculino e o feminino: como entendê-los em termos de sexo e de gênero é


sempre um desafio.

Mas, na prática, o que fazer com essas ideias de Scott, Butler e


Nicholson? Poderíamos pensar: se ainda utilizam a dicotomia sexo/gênero,
então a contribuições delas foi irrelevante? Incorreto. Mesmo as feministas que
pensam de forma idêntica a essas autoras utilizam o conceito de sexo e de
gênero, a depender do seu contexto, e nem por isso tratam o sexo de forma
pré-discursiva e ahistórica. O mais importante é entender o sentido dessa
construção social, para além de qual termo se utiliza (SCOTT, 2010).
Na prática política, na pesquisa e no senso comum, sexo e gênero tem
informado aspectos diferentes. Para falar de estatísticas em larga escala,
utiliza-se a ideia de “sexo”, porque as construções sociais não estão no foco e,
querendo ou não, estamos diante de um mundo generificado no qual a
polarização de sexos ainda faz algum sentido. Para falar de significados e
identidades, preferencialmente utiliza-se “gênero”, porque as construções
desse feminino e masculino estão em pauta. As situações variam – a utilidade
de cada conceito também.
Em seguida, indico a leitura de algumas postagens antigas desse blog que
trabalham com sexo/gênero: clique aqui para ler um texto sobre o desempenho
escolar de meninos e meninas, clique aqui para verificar um texto sobre a
feminização do magistério, e aqui para abrir um recente texto sobre a
representação de animais nos desenhos animados. São três exemplos de que
é possível operar com os dois conceitos sem, no entanto, cair em uma
polarização radical entre os dois.

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