Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Desfazendo o gênero
Larissa Pelúcio
UNIDADE 1
Gênero ou gêneros?
Desnaturalizar é preciso
Como escreveu a historiadora feminista Joan Scott:
Neste capítulo, vamos pensar gênero nesta chave: ele é construído social
e culturalmente, tem marcas históricas e, portanto, varia. Está relacionado
com os corpos, mas nem por isso é natural, pois os corpos, para adquirirem
seu significado pleno, precisam das lentes da cultura. Ainda que existam
necessidades fisiológicas universais (excreção, fome, sede, cansaço, dor),
elas não são resolvidas da mesma forma, nem mesmo dentro de uma mes-
ma sociedade. Sendo assim, gênero, como os corpos, é plural! Quer dizer,
temos de pensar em masculinidades e feminilidades e em diversidades de
gêneros. Tirar do singular nossa percepção sobre este tema é alargar nosso
olhar sobre nossas relações cotidianas. Perceber que não existe A MULHER
e O HOMEM de forma absoluta. Pois se é mulher, mas ao mesmo tempo se
é professora, mãe, de classe média, na casa dos trinta anos, católica, mas
adepta também ao kardecismo, morena, mas entendida socialmente como
branca... ou seja, todos estes outros elementos se enfeixam de forma singu-
lar e contextual dando espessura humana e complexa a quem somos.
Desfazendo o gênero | 103
Essencialista Construcionista
- Naturaliza os gêneros vinculando-os a - Propõe que os gêneros são produto
um determinante biológico; de relações históricas e sociais;
- É, portanto, determinista e - Sendo assim, são simbolicamente
biologizante; constituídos;
- O que faz que tenha um enfoque a- - O que faz com que tenham dimensões
-histórico e transcultural. culturais.
feministas (sim, no plural, pois como todo movimento político e social este
também se dividiu em diferentes tendências). Toda esta discussão provocou
novas questões e aprofundou o debate teórico e conceitual, de maneira que
a categoria central do feminismo como movimento social, bem como campo
de estudos, “mulher”, passou a ser desafiada na sua potencialidade expli-
cativa. Em outras palavras, a questão que começou a ser colocada cada vez
mais fortemente interrogava sobre quem era esta “mulher” da qual falavam
as feministas? Era negra, branca, indígena, jovem, velha, mãe, filha, avó, hete-
rossexual, homossexual, bissexual, operária, burguesa, patroa, empregada,
desempregada, ateia, católica, protestante?
Se, como escreveu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-
-se”, como chegamos a sê-la? Seria possível pensar nessa construção do
feminino sem pensar em sua relação com o masculino? Ao responder estas
poucas, mas profundas, questões, ficava claro que ao discutirmos a relação
entre feminino e masculino teríamos de pensar em relações de poder que
hierarquizavam pessoas a partir de seu gênero, com clara predominância do
masculino sobre o feminino. Quer dizer, gênero era uma questão política,
pois implicava em acessos desiguais a bens públicos, na participação em
arenas decisórias ou em silêncio; em privilégios para os homens também no
plano doméstico como o direto quase soberano sobre os filhos e a esposa
garantido por lei (no Brasil, até a mudança do Código Civil, em 2003, não
havia igualdade garantida para homens e mulheres relativas ao casamento
e constituição de família. Por exemplo, o Código Civil Brasileiro, antes da
reforma de 2003, ainda permitia a anulação do casamento pelo fato de a
noiva não ser virgem).
Se a desigualdade entre os gêneros era flagrante, em meados dos anos
de 1980, essas diferenças já não pareciam suficientemente mobilizadoras;
afinal, estava cada vez mais claro que a experiência de ser mulher não era a
mesma para todas.
Desde o final do século XIX, com o movimento sufragista, a questão
mobilizadora central dos feminismos era a busca por diretos iguais aos dos
homens. Assim, ser mulher era mais que uma questão de gênero, e sim o
ponto de convergência de luta, pois era a marca da desigualdade. Na meta-
de do século XX, este ainda era um mote forte e mobilizador. Mas, como já
comentei, o crescimento dos movimentos e dos estudos feministas provo-
cou também uma sofisticação nas demandas e nas reflexões, o que levou a
profundas discussões em torno de outras marcas de desigualdades sociais,
Desfazendo o gênero | 107
Em outras palavras:
Por gênero entende-se a condição social por meio da qual nos identifi-
camos como masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado
para identificar as características anatômicas que diferenciam os homens
das mulheres e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado,
mas é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de pro-
cessos que vão marcando os corpos, a partir daquilo que se identifica ser
masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado, o
que implica dizer que as marcas de gênero se inscrevem nele.
UNIDADE 2
Gênero na escola
único lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em
toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observa-
das cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma
se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se ‘naturalizar’” (LOURO, 2008,
p. 22). Atualmente, não por acaso, temos vivido um processo intenso e sis-
temático de acentuação das diferenças entre homens e mulheres. Nunca o
mundo de nossas meninas foi tão rosa e de nossos meninos, absolutamente
azul a tal ponto de termos situações como a citada por uma professora que
cursou uma das ofertas do GDE:
Mais uma vez: não existem fórmulas prontas para isso, pois estas ques-
tões surgem e se resolvem contextual e coletivamente. Ainda que como
professoras e professores possamos tomar iniciativas individuais, elas só se
efetivarão pedagogicamente quando incluídas em um projeto abrangente
no qual a escola, como um todo (incluindo pais, mães, funcionárias e fun-
cionários, assim como o pessoal técnico-burocrático), estiver envolvida. Isso
não implica em imobilismos, claro, mas em busca por parcerias que possam
tornar nossas intervenções mais amparadas e fundamentadas.
Uma das experiências possíveis para quem trabalha com educação in-
fantil é mudar o critério de organização das filas. A cada semana poderíamos
adotar um sistema: quem faz aniversário nos seis primeiros meses do ano fica
de um lado, e quem faz nos outros seis, de outro; quem prefere gato fica em
uma fila e os que preferem cachorro, em outra, por exemplo. Sim, corremos
o risco de ficarmos com filas desiguais, mas também criamos a possibilidade
de as crianças se socializarem mais com outras a partir de diferenças que as
singularizam, mas não as desvalorizam. Provocamos novos encontros dentro
da mesma turma, abrimos espaço para que as próprias crianças sugiram cri-
térios de organização, além de criar um espaço para se pensar na separação
entre meninos e meninas como um critério único e válido.
Como estamos ainda falando de memórias e experiências, cito o que
ocorreu com uma professora de História em uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio, pois creio que o exemplo traz estratégias interessantes para
tratarmos das questões de gênero que, como logo ficará mais evidente, não
se desvinculam facilmente das de sexualidade. Narra a professora que um
grupo que se sentava mais à frente na sala de aula começou a rir baixo e
olhar para ela. Então, essa minha aluna, professora da turma, perguntou o
que estava acontecendo. Uma aluna teve a coragem de dizer:
• Estamos rindo porque a gente estava curiosa para saber se você namora.
E aí uma pessoa aqui, que eu não vou dizer quem é, disse que você joga
em outro time.
• Bem, vocês não estão falando de esportes, né? Acho que estão interessa-
das em minha vida pessoal e em meus interesses sexuais. E o que seria in-
teressante para vocês na minha vida? Talvez vocês se sentissem desconfor-
táveis se eu quisesse saber da de vocês, não é? Mas não tenho problemas
para falar disso, aliás, a gente deveria falar sobre o que é jogar no outro
Desfazendo o gênero | 115
time, né? Mas hoje, como não havia planejado e temos um conteúdo a
cumprir, não vamos discutir isso, mas na próxima aula vamos tirar um tem-
po para essa conversa, mas com a sala inteira. Eu quero que até lá vocês
me digam o que é jogar no outro time, e por que isso pode ser engraçado.
Ela saiu de lá tremendo que nem vara verde. Foi falar com a diretora
sobre o ocorrido e disse que seria muito importante que o debate fosse feito
de forma aberta, honesta e horizontalizada, e que ela se sentia preparada
para tal. Anunciou ainda que iria mostrar o material para a direção antes de
trabalhar com ele em sala e que se sentiria melhor com a turma se levasse
essa discussão não para o lado pessoal, mas para uma reflexão sobre normas
e convenções sociais que instituem que há, por exemplo, “um time” no qual
a maioria joga, e quem está “jogando” em outro é uma pessoa “suspeita”, o
que autoriza que seja inquerida por outras.
Ao invés de “abafar o caso”, de silenciar os sussurros, a professora deu a
devida importância à questão, buscando respaldo da coordenação para tal
e procurando enfrentar temas fundamentais para a formação de suas alunas
e alunos, que, ao invés de ficarem com conjecturas muitas vezes atravessa-
das por estereótipos sobre gêneros e sexualidade, tiveram a oportunidade
de fazer, por meio de dinâmicas (vejam na unidade 4, no item Dinâmicas –
brincando com os gêneros, levando a sério nossas questões) uma discussão
orientada e qualificada destas questões.
Este exemplo pouco tem a ver com gênero, mas está estreitamente re-
lacionado às nossas vivências escolares e nos provoca ainda mais interroga-
ções. Sobre o que falamos e sobre o que calamos? Quando fazemos estas
perguntas, acabamos por perceber que invisibilizamos o que não nos parece
importante. Talvez, por isso, algumas experiências de nosso cotidiano es-
colar sejam silenciadas ou apenas sussurradas. Entre elas estão aquelas em
que os gêneros nos desafiam. Creio que a maioria de nós tem um exemplo
neste sentido: o aluninho que queria brincar de bonecas; a menina que não
abria mão do boné como parte de sua indumentária diária; o adolescente
que começou a mudar sua maneira de andar e se adornar, até o dia em que
apareceu na escola com unhas pintadas e sobrancelhas feitas... Em todos os
casos temos bastantes dificuldades em saber como agir, e não poderia ser
diferente, pois em nossa própria formação não tivemos discussões qualifica-
das sobre relações de gênero e sexualidade, como se esses fossem temas
menores, secundários ou pouco relacionados à vida escolar. Vamos buscan-
do nos qualificar em cursos de formação continuada, em leituras autodidatas
ou participando de oficinas e palestras que versam sobre essa temática. Foi
ao ministrar cursos assim que a psicóloga e doutora em Educação Elizabete
Cruz se deparou com eloquentes “silêncios”.
Entre 2005 e 2006, Cruz foi professora do módulo “O cotidiano da Esco-
la” em um curso de especialização em gestão educacional para diretores de
escolas da rede estadual de São Paulo, realizado pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Foi nesta função que começou a se dar conta que
uma das questões que mais desafiava suas turmas era relativa aos gêneros
não binários, quer dizer, sobre alunos e alunas que vivem nas fronteiras do
masculino e do feminino, aqueles e aquelas que por motivos diversos não
estão conformes aos rígidos padrões que ditam como deve ser e agir um
homem e como deve se comportar e ser uma mulher, a partir de modelos
que pregam que há um homem e uma mulher absolutos. De alguma forma,
pensem bem, todas nós, todos nós violamos a rigidez binária. Vou adiar um
pouco mais esta discussão para poder entrar logo na problemática que nos
apresenta Elizabete Cruz.
Em seu livro Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no co-
tidiano da escola (2011), Cruz procura discutir sua experiência
Tem um aluno, o João, que se veste como uma menina e disse que agora
é Joana. Desde então, surgiu uma questão. Qual banheiro ele deve usar?
O dos meninos ou das meninas? Deu a maior confusão! As meninas não
querem que ele use o banheiro delas, os meninos também não. Como
resolvemos? Ele usa o banheiro da diretora. Mas agora, a partir de sua
aula, estou pensando: Será que resolvemos a questão? Será que demos
o melhor encaminhamento? (CRUZ, 2011, p. 75-76, grifos do original).
muito silenciado), das crianças que nascem com genitália ambígua? (aquelas
que eram chamadas de hermafroditas, mas que hoje são nominadas de in-
tersexuadas). Como elas podem até mesmo ter uma certidão de nascimento
quando nascem com a genitália ambígua? Os médicos definem, mas nem
sempre “acertam”, o que causa muitos problemas para as famílias, pois nosso
corpo é bastante complexo e não ganha seu significado completo só por meio
dos hormônios, genes, órgãos, mas também, e sobretudo, socialmente.
transformação de nosso olhar. Uma série como “Malu Mulher”, que foi ao ar
pela Rede Globo no final dos anos 1970, foi capaz de pautar na cena pública
uma série de discussões que acreditávamos serem privadas e individuais
relativas às relações de gênero, tais como o direto das mulheres ao prazer
sexual, de terem seu trabalho doméstico reconhecido e valorizado, de po-
derem trabalhar fora sem sofrer represálias em casa, de serem reconhecidas
profissionalmente e, talvez o mais polêmico para a época, de poderem se
separar sem ter sua moral destruída socialmente.
Hoje em dia esta influência se intensificou graças ao aumento de acesso
e à proliferação de canais midiáticos, de maneira que não podemos des-
considerar esse influente campo de pedagogização de gênero e a maneira
como ele entra nas nossas salas de aula. Podemos tê-los como aliados, ao
invés de apenas demonizá-los, acionando a já gasta frase que prega ser
“tudo culpa da mídia”, como se esta não fosse produto de nossas próprias
relações. É sobre essa maquinaria sedutora e sua relação com nosso tema
neste capítulo que versa a próxima unidade.
UNIDADE 3
Gênero na mídia – e a escola com isso?
O que eu leio nesta imagem, que deve ter recebido umas 100 curtidas
no Facebook, é que o homem fala; o homem é ativo; homem que é homem
é dono de si e de uma mulher e usa violência legitimamente se for preciso
para garantir estas posses.
Mas, vejam, não é qualquer projeto de masculinidade que vemos aí (por
isso eu dizia mais acima que aqueles filmes não falam só de regimes políticos
ou de pertencimento racial, mas também de projetos de gênero). Trata-se
de uma masculinidade branca, burguesa, classe média, engravatada, com
poder de consumo... Uma masculinidade que está acostumada a oprimir
outras masculinidades e muitas feminilidades. Gênero, sexualidade, classe
e raça são marcadores sociais que estão sempre relacionados, ainda que
muitas vezes não os percebamos assim.
Essa imagem nos ajuda a entender que gênero é algo que se aprende a
partir de pedagogias domésticas, escolares e midiáticas. Vocês sabem que
aprendemos a sonhar, a desejar, a recusar, vendo filmes, novelas, propagan-
das. Claro que nossas alunas e nossos alunos também agem desta forma.
Aprendem, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul de menino vendo
as persistentes propagandas de brinquedos. Sonham em serem mais bem
126 | Diferenças na Educação: outros aprendizados
Como Chimamanda Adichie, não creio que ler livros estrangeiros ou ver
novelas das oito ou ler estórias de princesas loiras seja um problema por si.
Como ela, penso que o problema se dá justamente quando ficamos limita-
das e limitados a um único tipo de mensagem, não importa o meio pelo qual
esta seja veiculada.
Mariana Barros, psicóloga e antropóloga, inicia sua tese de doutorado
contando sobre seu trabalho em uma Escola Municipal infantil em um bair-
ro da periferia da cidade de Ribeirão Preto (SP). Como estagiária cabia-lhe,
entre outras atribuições, reunir-se com a criançada no pátio para contar estó-
rias. Mariana ficava um tanto frustrada por não conseguir toda a atenção das
crianças, mas se sentia acolhida por elas, que logo começaram chamá-la de
“tia sereia”. Ela ficou intrigada com o apelido e argumentou, certa feita, que
não tinha cabelos ruivos como os de Ariel, a pequena sereia dos filmes de
Disney; além disso, ela tem pernas. Intrigada com o novo apelido, resolveu
perguntar ao seu supervisor de estágio o que aquilo poderia significar. “Ma-
riana, esta sereia está mais para Iemanjá do que para outra coisa” (BARROS,
2010, p. 22).
A curiosidade de Barros só aumentou. Foi então que ela procurou saber
mais do universo mitológico das religiões de matriz africana. Percebeu logo
que não havia livros infantis que contassem estes contos. Teve que usar a
imaginação, pois percebeu que ali havia todo um mundo rico e imaginativo
que parecia falar mais de perto às crianças do que suas estorinhas, que não
prendiam muito a atenção. Fez fantoches representando as figuras dos ori-
xás e passou a contar seus mitos.
[...]
Talvez, aquela tenha sido a primeira vez que o aluno de Mariana Barros
pode se orgulhar de ser negro e de ter referências positivas relacionadas à
negritude. A psicóloga não pretendia converter-se nem converter ninguém
com suas estórias de orixás, mas ampliar a imaginação da garotada. Não
foi propriamente fácil fazer isso, pois logo deparou-se com a escassez de
material didático e, por sorte, não se deparou com resistências religiosas
dentro da escola ou vinda dos pais. Mas se tivesse se deparado, como ela
poderia proceder?
Não há uma única resposta para esta pergunta, mas existem condutas
para as quais devemos estar atentas e atentos. Uma delas é levar nossos
projetos ao conhecimento da coordenação/direção, defendê-los e pedir
respaldo e apoio. Convidar pais e mães para vir eles mesmos, ler as estórias
ou ouvi-las. Mesmo que não venham, serão comunicados do que estamos
fazendo e do por que o fazemos, além de se sentirem mais integrados. Não
estou afirmando que isso resolve o problema, apenas sugerindo que são
passos que podem evitar desentendimentos.
A análise que nos oferece Iara Beleli, a partir de uma peça publicitária,
nos ajuda a perceber como, mesmo sem sermos consumidor@s das merca-
dorias postas à venda pelos anúncios, somos consumidores de suas mensa-
gens e nos orientamos, em maior ou menor grau, por elas.
Judith Butler, autora citada por Beleli, afirma que o gênero é discursivo,
quer dizer, vai sendo construído por distintas linguagens que, mais do que
descrevê-los, formam o que ele é. Vejamos. Quando o médico diz “é uma
menina”, mais do que descrever o que viu no ultrassom, ele está oferecendo
132 | Diferenças na Educação: outros aprendizados
UNIDADE 4
Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões
• Qual escola sonhamos? Qual a escola queremos para noss@s filh@s? Responder
a estas perguntas exige que façamos um exercício fantástico, que é o de se co-
locar no lugar do outro. Este movimento não é fácil, mas nos ajuda a conferir ao
outro sua dimensão humana. A escola que queremos está em construção, e por
vezes nos sentimos impotentes. Escola tem que repensar práticas – o que fazer?
Essa é uma pergunta que nos angustia quando imergimos nestas reflexões. Bem,
já estamos fazendo quando estamos aqui, lendo, nos qualificando, debatendo
e nos deixando provocar. Creio que uma leitura provocativa, uma formação es-
timulante faz de cada um(a) de nós “multiplicador@s”, pois nosso olhar muda
mesmo. Senti isso intensamente em minha experiência como professora do En-
sino Fundamental e Médio, como professora universitária, mas também como
mãe, amiga, esposa... Esse processo, mesmo lento, pode ser significativamente
transformador da nossa atuação nas diferentes esferas sociais. Sugiro a leitura
de um texto delicioso de Silvana Goellner, que vocês encontram nas referências.
• Como trabalhar estes temas em escolas que estão situadas em áreas onde os
problemas sociais são tão profundos que parece não haver espaço para essas
reflexões? Este é um desafio mesmo! Sempre trabalhei com a classe média e
entendo que, de certa forma, isso foi um privilégio, pois lidei com pessoas que
tinham muitas coisas materiais e emocionais resolvidas. Um caminho que tem
dado certo em comunidades onde há muita violência tem sido buscar parcerias,
seja com outras escolas, com o Estado ou com o chamado Terceiro Setor. Há, por
exemplo, fundações e ONGs que trabalham com arte, teatro, dança, capoeira e
música junto a populações imersas em conflitos múltiplos e carências variadas.
Desfazendo o gênero | 141
O importante é que o projeto não seja um movimento de cima para baixo, quer
dizer, que não considere as particularidades de cada localidade, que seja alheio
às questões locais mais prementes. Projetos são mais eficientes quando conse-
guimos partir de algo que seja de interesse da galera, da comunidade, intervindo
também no entorno da escola. Se ficamos só do muro para dentro, a possibilida-
de de o projeto se consolidar e gerar transformações diminui significativamente.
Uma professora de Brasília, que atua em uma das áreas mais violentas da cidade
(uma cidade-satélite), tem um projeto muito bacana de pintura de muros e revi-
talização de espaços ao redor da escola, e o faz com intensa participação de um
grupo de alunas e alunos. A atividade envolve mais do que arte, grafites e ur-
banismos (o que por si só já seria muita coisa), fala também de ética, de relação
com o espaço público, obriga a pensar sobre direitos, entre outras provocações
transformadoras. Tem dado certo. Provavelmente não foi fácil e nem deve ser
algo sem desafios de toda ordem, inclusive em termos burocráticos, logísticos e
financeiros. Mas eu aposto muito nesse caminho de sensibilização, de interven-
ção que cria laços de confiança entre nós e a comunidade que atendemos. Com
meninas que se prostituem já vi trabalhos lindos com recuperação de bonecas
para doá-las a creches e orfanatos. É incrível como as meninas, cuidando de
recuperar bonecas, pensam em si mesmas, refletem sobre seus corpos, suas
vidas, suas famílias. Recuperar a boneca acaba funcionando muitas vezes em um
processo de reencontro com suas próprias belezas, com seu valor como mulher,
como pessoa, como artesã. Claro que estas oficinas têm metodologias, têm es-
tratégias de ação. Estou apenas mencionando algumas experiências que vi dar
certo. Deixo aqui uma dica de livro que pode ser estimulante: Gangues, gênero
e juventudes: donas de rocha e sujeitos cabulosos. Disponível em: <http://portal.
mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_gangues_sem_a_marca.pdf>.
que nos domina) a culpa pelos males, como o preconceito, nos sentindo assim
impotentes. Pelo que experenciei nos cursos de formação continuada, não vi
letargia, ao contrário, vi pessoas pensando, se desafiando, confrontando suas
verdades, procurando caminhos para a transformação. A questão é que estes
caminhos não são fáceis, pois as resistências estão aí aparecendo em diferentes
discursos. Muitos deles têm a ver com a completa ignorância, no sentido de
ignorar, de não ter conhecimento relativo a questões de gênero e sexualidade.
No primeiro caso, naturalizamos tanto o gênero que já o vemos como algo que
vem pronto, é imutável e determinante até mesmo da nossa capacidade de sen-
tir (homens não choram) ou de aprender (mulheres não têm raciocínio lógico).
Aprendemos também que gênero determina sexualidade e que esta, quando
não corresponde ao modelo heterossexual, é perigosa. Tratamos sexualidade
sempre no marco do risco (cuidado com a aids! Cuidado para não engravidar!)
ou do perigo (você vai ficar falada! Você vai acabar pegando uma doença!). Não
falamos de prazer, de escolhas, não ensinamos noss@s filh@s ou alun@s a pensa-
rem sobre sexo para poderem fazer escolhas conscientes, por exemplo, na hora
da primeira transa.
Etapas:
1. A dinâmica deve ser antecedida de um debate breve, suscitado por al-
gum episódio envolvendo a turma na qual surjam questões de gênero
e sexualidade. A partir dele, podemos lançar algumas perguntas, por
exemplo, a divisão na hora do recreio, de se formar grupos de traba-
lho ou ainda na aula de Educação Física, e lançar uma questão do tipo:
Por que algumas atividades têm de ser feitas separadamente? Será que
sempre foi assim? Será que é assim entre outras populações, em outras
culturas? Meninos e meninas são totalmente diferentes ou meninas e
meninos são muito parecidos? Como aprendemos a ser meninos e me-
ninas? Esta deve ser a última questão, para suscitar a discussão sobre os
brinquedos e as brincadeiras.
Neste momento, é importante deixar a turma se expressar, e anotar
na lousa algumas palavras-chave para incrementar a discussão. É preciso
146 | Diferenças na Educação: outros aprendizados
pactuar com a turma que não pode haver ofensas, palavras de baixo calão,
piadas preconceituosas nem comentários desrespeitosos durante toda a
roda de conversa e ao longo da dinâmica.
2. Peça para que, na próxima aula, levem os brinquedos que marcaram sua
vida.
3. Peça para que os(as) alunos(as) formem um círculo no chão. Para quebrar
o gelo, a dinâmica pode ser iniciada pelo(a) professor(a) que a estiver con-
duzindo. Ele(a), por exemplo, gira uma garrafa no centro do círculo, e a
dinâmica se iniciará pela pessoa para a qual o gargalo da garrafa apontar.
4. É importante anotar o que cada alun@ elencou como sendo significativo
no brinquedo que levou para a sala, pois é a partir dessas expressões
que iremos aprofundar as relações de gênero e os brinquedos.
5. Peça que meninos troquem seus brinquedos com meninas e vice e versa.
6. Observe como essas trocas ocorrem e como cada um brinca ou não
com o brinquedo recebido (de 2 a 3 minutos de brincadeira a sós com o
brinquedo).
7. Em seguida, peça para que formem duplas ou trios mistos para que
brinquem junt@s com os brinquedos que receberam durante a troca (5
minutos para brincar).
8. Observe e anote as reações da brincadeira a sós e em grupo, para depois
problematizá-los na roda de discussão que deve ser formada em seguida.
9. Formada a roda, lance novamente as perguntas sobre o significado dos
brinquedos para si e como eles foram vistos pelo(a) colega de outro gê-
nero. Como cada um se sentiu brincando a sós com o brinquedo trocado.
Como foi brincar em grupo? Questione a pedagogia de gênero, mostre
como esses aprendizados são culturais, históricos, e não essências de-
finitivas. Mostre a importância de aprender com o outro, de fruir prazer
com a brincadeira e de como os brinquedos nos ensinam muitas coisas;
sendo assim, é importante brincar com diferentes jogos e brinquedos
para aprender a ser plural.
Dica de leitura: <http://www.faeb.com.br/livro/Comunicacoes/brinca-
deiras%20genero%20e%20sexualidade.pdf>.
Etapas:
1. Pequena apresentação teórica do papel em se discutir gênero, raça e
sexualidade na Educação Infantil.
2. Pequena apresentação de cada livro infantil a ser apresentado. Os li-
vros devem ser mostrados e as ilustrações (perspectiva imagética) de
cada um, discutidas. Mostre o quanto a literatura infantil contemporânea
pode contribuir na discussão dos temas nas instituições escolares.
3. Desenvolvimento: A turma deve ser dividida, por sorteio, em nove grupos.
O grupo deve eleger um@ “contador@ da história”. @ contador@ deve
fazer uma leitura em voz alta do livro e @s outr@s integrantes devem tomar
notas e levantar questões sobre o enredo.
4. Cada um desses grupos deve produzir um “cartaz” com as principais
ideias e questões sobre o livro.
148 | Diferenças na Educação: outros aprendizados
Dinâmica “Etiquete-me”
Objetivos: perceber como lidamos, no dia a dia, com uma série de pres-
crições de gênero que vão sendo literalmente “incorporadas”, de maneira
que, muito mais do que fruto da biologia ou meras expressões da natureza,
os gêneros são inscrições culturais que “colam” em nossos corpos.
Etapas:
1. Divididos os grupos, peça que @s alun@s escrevam frases que expres-
sem recomendações, normas, orientações e/ou imposições sobre como
meninas devem usar cada parte do corpo. O mesmo deve ser feito para
Desfazendo o gênero | 149
BOX 1
REFERÊNCIAS
BARROS, M. L. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pom-
bagiras. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010.
BELELI, I. Gênero. In: MISKOLCI, R. (Org.). Marcas da diferença no ensino escolar. São Carlos:
EdUFSCar, 2010. p. 45-73.
BOTTOMORE, T. Práxis. In: ______. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1997.
BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CRUZ, E. F. Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola. Psi-
cologia Política, 11(21), p. 73-90, 2011. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/rpp/seer/ojs/
viewarticle.php?id=137>.
DAMACENO, J. O corpo do outro: construções raciais e imagens de controle do corpo feminino
negro: o caso de Vênus Hotentote. In: Fazendo gênero: corpo, violência e poder, 2008. Disponí-
vel em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Janaina_Damasceno_69.pdf>.
GOELLNER, S. A educação dos corpos, dos gêneros e das sexualidades e o reconhecimento
da diversidade. Cadernos de Formação RBCE, p. 71-83, mar. 2010. Disponível em: <http://www.
rbceonline.org.br/revista/index.php/cadernos/article/view/984/556>.
LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. (Org.). Gênero e saúde. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 7-18.
______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes,
1997. Disponível em: <http://educacaosemhomofobia.files.wordpress.com/2009/03/nuh-educa-
cao-genero-sexualidade-e-educacao-guacira-lopes-louro.pdf>.
______. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, n. 2,
ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf>.
MISKOLCI, R. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica; UFPO, 2012.
PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. (Org.). A prática feminista e
o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. Disponível em: <http://www.pagu.uni-
camp.br/sites/www.ifch.unicamp.br.pagu/files/Adriana01.pdf>.
SABAT, R. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista Estudos Feministas, 9(1), p. 4-21,
2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n1/8601.pdf>.
FIGURAS
QUADRO