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Desfazendo o gênero
Larissa Pelúcio

Gênero é um conceito que permeia e organiza a vida de todo mundo;


é tão presente que já naturalizamos seus efeitos. Nosso esforço, neste ca-
pítulo, é justamente o de desnaturalizar nosso olhar e problematizar estas
relações. Para isso, organizamos este capítulo em quatro unidades:
1. Iniciaremos com discussões conceituais sobre o conceito de gênero,
situando o debate que nasceu em estreito diálogo com os estudos femi-
nistas, isto é, com as primeiras sistematizações teóricas e políticas que
questionavam a opressão feminina como sendo algo natural, quer dizer,
instituído por supostos determinantes biológicos;
2. Vamos trazer esta discussão para dentro da escola. Sabemos que o que
acontece na escola reflete o que se passa em muitas outras esferas da
sociedade; então, quando falamos de sala de aula, do pátio do recreio,
dos banheiros, também estamos falando de pedagogias de gênero que
circulam informando nosso olhar, moldam nosso comportamento, edu-
cam nossos corpos.
3. Momento de aprofundar nossas reflexões sobre gênero na arena pú-
blica. Talvez uma das formas mais eficientes e sedutoras de transmitir
mensagens e pedagogizar nossos sentidos sejam as mídias, que não só
reproduzem convenções e normas sociais sobre masculino, feminino,
classe, raça, orientação sexual, geração, mas também criam “verdades”
sobre esses temas.
4. Finalmente, apresentaremos um conjunto de proposta de atividades
diversas para serem trabalhadas em sala de aula ou em momentos de
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formação continuada. São dicas de filmes e documentários; propostas


de trabalho com imagens; dinâmicas para a sensibilização e problemati-
zação dos temas tratados aqui, além de um box com questões pontuais
que podem ajudá-l@s a sistematizar ideias e estimular debates.
Boa leitura e boas ideias a todas e todos!

UNIDADE 1
Gênero ou gêneros?

Desnaturalizar é preciso
Como escreveu a historiadora feminista Joan Scott:

Gênero é um saber que estabelece significados para as diferenças cor-


porais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os órgãos repro-
dutivos femininos, determina univocamente como a divisão social será
definida (SCOTT, 2009, p. 12-13).

Neste capítulo, vamos pensar gênero nesta chave: ele é construído social
e culturalmente, tem marcas históricas e, portanto, varia. Está relacionado
com os corpos, mas nem por isso é natural, pois os corpos, para adquirirem
seu significado pleno, precisam das lentes da cultura. Ainda que existam
necessidades fisiológicas universais (excreção, fome, sede, cansaço, dor),
elas não são resolvidas da mesma forma, nem mesmo dentro de uma mes-
ma sociedade. Sendo assim, gênero, como os corpos, é plural! Quer dizer,
temos de pensar em masculinidades e feminilidades e em diversidades de
gêneros. Tirar do singular nossa percepção sobre este tema é alargar nosso
olhar sobre nossas relações cotidianas. Perceber que não existe A MULHER
e O HOMEM de forma absoluta. Pois se é mulher, mas ao mesmo tempo se
é professora, mãe, de classe média, na casa dos trinta anos, católica, mas
adepta também ao kardecismo, morena, mas entendida socialmente como
branca... ou seja, todos estes outros elementos se enfeixam de forma singu-
lar e contextual dando espessura humana e complexa a quem somos.
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Ser uma mulher com as características descritas acima é muito distinto


de ser uma mulher indígena, que vive no Mato Grosso do Sul, professora em
uma escola indígena, na faixa dos 20 e tantos anos, bilíngue, evangelizada.
Em alguns contextos, para esta professora o mais importante seja reafirmar
e dar relevo à sua etnia. Assim como para a professora do exemplo anterior,
em alguns momentos será mais relevante sublinhar justamente sua marca
profissional.
Ambas só são fruto de um determinado momento histórico, pois até me-
ados do século XX seria pouco provável que ambas tivessem uma profissão
em comum, aliás, que tivessem uma profissão! Esta perspectiva histórica é
fundamental para trabalharmos no sentido de desnaturalizar conceitos e ideias.
Esta perspectiva ficou conhecida dentro do campo dos estudos de gênero
como Construcionismo, opondo-se ao que foi denominado Essencialismo.
Um quadro sintético nos ajuda a aclarar a forma como cada uma destas
vertentes enfoca as relações de gênero, e, assim, fica mais evidente quais
são suas diferenças:

Quadro 1 Matrizes teóricas dos estudos de gênero.

Essencialista Construcionista
- Naturaliza os gêneros vinculando-os a - Propõe que os gêneros são produto
um determinante biológico; de relações históricas e sociais;
- É, portanto, determinista e - Sendo assim, são simbolicamente
biologizante; constituídos;
- O que faz que tenha um enfoque a- - O que faz com que tenham dimensões
-histórico e transcultural. culturais.

A vertente essencialista é aquela com a qual estamos mais


acostumados(as) a lidar porque somos ensinados desde pequeninos que
temos uma essência imutável; repetimos ditos como “pau que nasce torto
não tem jeito, morre torto”, ou seja, essa suposta essência que já vem pronta
não sofreria influências do meio no qual cada pessoa vive, nem seria marca-
da pelo momento histórico no qual desenvolve suas experiências. Quando
falamos de gênero, pela matriz essencialista, o associamos diretamente ao
sexo genital, e o tomamos também como um definidor absoluto da nossa
forma de viver, perceber, sentir, desejar. Acabamos por desconsiderar que
há uma boa dose de aprendizado nisso tudo, que ser homem ou mulher é
algo que varia de sociedade para sociedade, e, mesmo em uma dada socie-
dade, temos variações.
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A segunda matriz é a construtivista, que vai ficar mais clara a partir de


exemplos. Então vamos a eles.
Vamos dar uma olhada na bela pintura que retrata o filósofo iluminista
Voltaire.

Figura 1 Retrato do filósofo François-Marie Arouet de Voltaire.

Vamos em frente, partindo daí, da figura do filósofo iluminista, a qual,


para nós, não parece lá muito masculina. Julgamos isso pelo corpo, pelo
gestual e fazemos isso sempre, porque nosso corpo é simbólico, é todo ins-
crito culturalmente e aprendemos a ler estes signos.
Para ler os signos, temos de nos valer das referências de nossa cultura,
de nosso tempo. Quando agimos assim, estamos desnaturalizando, deses-
sencializando, pois estamos inserindo o debate no campo móvel e dinâmico
das relações sociais.
Desnaturalizar é pensar que gênero, esta marca fundamental da nossa
existência, não é um dado biológico e pronto, mas varia de sociedade, ao
longo da história, e só pode ser entendido na sua dimensão política, sim,
política, porque tem a ver com relações de poder: quem manda, quem obe-
dece, o que é verdade, o que não é. Enfim, para a gente poder entender
o gênero em toda a sua dimensão social, é preciso relacionar gênero com
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raça/etnia, classe social, pertencimento de geração, entre outras marcas de


diferenciação social.
Buscar os referentes históricos dessas formações discursivas nos ajuda a
entender como chegamos a estabelecer certas definições sobre determina-
dos temas, no caso sobre as marcas de diferença entre feminino e masculino,
assim como instiga nossa imaginação e provoca perguntas novas: Quais sa-
beres contribuem para instituir verdades sobre diversos assuntos? Em que
contexto nasceram certas ideias? Por que algumas destas se estabeleceram
como referentes seguros e outras sequer foram consideradas? Procurando
responder questões como estas foi que, nos anos 1960, os movimentos fe-
ministas e os estudos acadêmicos sobre mulheres criaram um sujeito políti-
co e coletivo, sintetizado na categoria “mulher”. Esta não tardou a mostrar
seus limites, como vim discutindo até aqui. Porém, o debate não minguou;
ao contrário, se tornou mais denso teoricamente, alimentado sempre pela
realidade vibrante das ruas. Neste cenário de reivindicação por direitos iden-
titários, civis, culturais e de estimulantes debates teóricos nasce o conceito
de gênero.

Gênero tem história


Até a década de 1980, o conceito de gênero não era muito usado, mes-
mo dentro do campo dos estudos feministas. Trabalhava-se muito mais com
a categoria “mulher”. Isto porque as feministas, desde Simone de Beauvoir,
perceberam que havia um grande silêncio político, social e científico em tor-
no dos temas e questões que envolviam as experiências das mulheres. Era
preciso, então, falar sobre mulheres, sobre sua participação na história, na
literatura, na filosofia e nas ciências em geral. Mais do que isso, era preciso
dar voz às mulheres para que elas falassem de si e por si.
Podemos dizer que desde 1949, quando foram publicados na França os
dois volumes de O segundo sexo, de Beauvoir, as discussões políticas e te-
óricas em torno da opressão feminina e da exclusão das mulheres da cena
pública se avolumaram e mexeram profundamente com as dinâmicas das
relações sociais, sobretudo nas sociedades ocidentais e naquelas influencia-
das por este modelo.
Todo este debate em torno do tema “mulher” acabou, algumas dé-
cadas mais tarde, criando um extenso cabedal teórico, gerando inúmeras
pesquisas, muitas delas inspiradas nas demandas políticas dos movimentos
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feministas (sim, no plural, pois como todo movimento político e social este
também se dividiu em diferentes tendências). Toda esta discussão provocou
novas questões e aprofundou o debate teórico e conceitual, de maneira que
a categoria central do feminismo como movimento social, bem como campo
de estudos, “mulher”, passou a ser desafiada na sua potencialidade expli-
cativa. Em outras palavras, a questão que começou a ser colocada cada vez
mais fortemente interrogava sobre quem era esta “mulher” da qual falavam
as feministas? Era negra, branca, indígena, jovem, velha, mãe, filha, avó, hete-
rossexual, homossexual, bissexual, operária, burguesa, patroa, empregada,
desempregada, ateia, católica, protestante?
Se, como escreveu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-
-se”, como chegamos a sê-la? Seria possível pensar nessa construção do
feminino sem pensar em sua relação com o masculino? Ao responder estas
poucas, mas profundas, questões, ficava claro que ao discutirmos a relação
entre feminino e masculino teríamos de pensar em relações de poder que
hierarquizavam pessoas a partir de seu gênero, com clara predominância do
masculino sobre o feminino. Quer dizer, gênero era uma questão política,
pois implicava em acessos desiguais a bens públicos, na participação em
arenas decisórias ou em silêncio; em privilégios para os homens também no
plano doméstico como o direto quase soberano sobre os filhos e a esposa
garantido por lei (no Brasil, até a mudança do Código Civil, em 2003, não
havia igualdade garantida para homens e mulheres relativas ao casamento
e constituição de família. Por exemplo, o Código Civil Brasileiro, antes da
reforma de 2003, ainda permitia a anulação do casamento pelo fato de a
noiva não ser virgem).
Se a desigualdade entre os gêneros era flagrante, em meados dos anos
de 1980, essas diferenças já não pareciam suficientemente mobilizadoras;
afinal, estava cada vez mais claro que a experiência de ser mulher não era a
mesma para todas.
Desde o final do século XIX, com o movimento sufragista, a questão
mobilizadora central dos feminismos era a busca por diretos iguais aos dos
homens. Assim, ser mulher era mais que uma questão de gênero, e sim o
ponto de convergência de luta, pois era a marca da desigualdade. Na meta-
de do século XX, este ainda era um mote forte e mobilizador. Mas, como já
comentei, o crescimento dos movimentos e dos estudos feministas provo-
cou também uma sofisticação nas demandas e nas reflexões, o que levou a
profundas discussões em torno de outras marcas de desigualdades sociais,
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pois era evidente que as opressões atravessam também as relações entre as


mulheres.
Ficava patente, no aguçamento das lutas sociais e das demandas políti-
cas das mulheres, que ser mulher não se resumia a ter um corpo com útero e
ovários, que o biológico não era assim tão determinante dessa experiência.
Havia muito mais a ser considerado nesse campo de disputas e de recons-
trução de modelos sociais que a categoria “mulher” parecia não dar conta.
É assim que o conceito de “gênero” vai se firmando como um instrumento
importante de reflexão e luta, não sem provocar reações de alguns setores
do feminismo que seguiram apostando no termo “mulher” como termo polí-
tico. Aqui, trabalharemos com o conceito de gênero dada a sua abrangência
e contribuições para as discussões sobre diretos, igualdade e desigualdade,
entre outras.
Como escreve a antropóloga Adriana Piscitelli, “é importante perceber
que o conceito de gênero, desenvolvido no seio do pensamento feminista,
foi inovador em diversos sentidos. Perceber o alcance dessa inovação exige
prestar atenção às formulações desse pensamento” (2002, p. 2). Entre estas
formulações e inovações pontuo as que se seguem:
• Ir além da categoria “mulher” é considerar que homens, tanto quanto
mulheres, têm gênero, que não nascem prontos;
• Pensar em gênero como elemento organizador das relações sociais, ao
invés de operar com os termos “homem” e “mulher”, é ampliar para
além do corpo, da anatomia e do biológico, as experiências femininas e
masculinas;
• Construímos nosso gênero e o fazemos de forma relacional, ou seja, nas
relações sociais, o que implica em fazê-lo em relação aos homens, às ins-
tituições pedagogizantes (família, escola, igrejas), enfim, orientados(as)
pelos valores hegemônicos de cada tempo e lugar, seja para reiterar
estes valores ou para enfrentá-los;
• Em outras palavras, gênero tem pouco a ver com natureza, sendo sim
um conceito atravessado por ideias políticas (pois envolvem relações de
poder), sociais (pois são determinadas nas relações entre os indivíduos
vivendo em sociedade), culturais (estão marcadas por valores, moralida-
des e crenças relativas a um conjunto amplo de significações);
• Este conceito de gênero significa que aquilo que acontece em nossas
vidas privadas, nas nossas casas, no interior de nossos quartos, está
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superinformado e moldado por essas formas públicas de se entender


o que é próprio do feminino e do masculino, da mulher e do homem,
adequado para meninas ou para meninos;
• Dentro dessa concepção fica evidente que “o pessoal é político”. Esta
curta frase se tornou mais que um slogan do feminismo no final da déca-
da de 1960, provocando também uma profunda mudança na forma de se
fazer ciência e de se construir conhecimentos;
• A ideia de que "o pessoal é político" conferiu dimensão política à
constituição das nossas subjetividades, mostrando que o aprendizado
de gênero passa por uma série persistente de normatizações que são
constantemente reiteradas no sentido de adequar nosso corpo às ex-
pectativas sociais sobre como devemos usá-lo, adorná-lo, apresentá-lo,
enfim, o corpo como aquilo que nos é mais próprio e particular também
se mostra um território de inscrições simbólicas em disputa;
• Os corpos voltam a ter centralidade, mas não apenas como corpos re-
produtores, mas corpos desejantes. Assim como há muitas formas de
ser mulher ou homem, há muitas formas de se viver as feminilidades e
masculinidades;
• Estas formas não estão aprisionadas em corpos marcados por genitálias
(vagina/pênis). Considera-se que corpos nascidos com vagina podem bus-
car/desejar viver experiências relativas às masculinidades e vice-versa;
• Tal conceito de gênero nos aproxima das discussões sobre sexualidade,
pois a experiência de ultrapassar os limites sociais binários do masculino
e feminino pode estar relacionada com o desejo de amar, sentir e se
expressar fora das normas impostas pela heterossexualidade;
• Gênero não é igual a orientação sexual, mas são termos relacionados, o
que leva muitas pessoas a associarem, com frequência, comportamentos
de gênero (um menino mais delicado, uma menina que gosta de futebol,
por exemplo) com homossexualidade.

Afinal, o que é gênero?


Já vimos que gênero não é sexo; não é dado pela natureza; não é imu-
tável, mas precisamos defini-lo pelo que é. A educadora e pesquisadora
Guacira Lopes Louro nos oferece uma excelente síntese do conceito a partir
do diálogo com diferentes autoras e autores. Vamos a esta definição que,
mesmo sendo longa, vale ser reproduzida pela sua densidade:
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[...] o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino, obri-


ga aquelas(es) que o empregam a levar em consideração as distintas
sociedades e os distintos momentos históricos de que estão tratando.
Afasta-se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas
sobre os gêneros; a ótica está dirigida para um processo, para uma
construção, e não para algo que exista a priori. O conceito passa a
exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as
representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que
as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou
os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se
considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que
a constituem (LOURO, 1997, p. 23).

Sendo assim, gênero deve ser entendido fundamentalmente como uma


construção social, daí seu caráter histórico e plural.

A ideia de pluralidade implicaria admitir não apenas que sociedades


diferentes teriam diferentes concepções de homem e de mulher, como
também que no interior de uma sociedade tais concepções seriam
diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade etc.; além
disso, implicaria admitir que os conceitos de masculino e feminino se
transformam ao longo do tempo (LOURO, 1996, p. 10).

Em outras palavras:

Por gênero entende-se a condição social por meio da qual nos identifi-
camos como masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado
para identificar as características anatômicas que diferenciam os homens
das mulheres e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado,
mas é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de pro-
cessos que vão marcando os corpos, a partir daquilo que se identifica ser
masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado, o
que implica dizer que as marcas de gênero se inscrevem nele.

Se estamos cientes de que o gênero é a construção social do sexo,


precisamos considerar que aquilo que no corpo indica ser masculino
ou feminino não existe naturalmente. Foi construído assim e por esse
motivo não é, desde sempre, a mesma coisa (GOELLNER, 2010, p. 75).

A escola tem tido um importante lugar nessa construção dos gêne-


ros. Ainda que não percebamos, aqueles são espaços profundamente
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generificados e orientados por uma silenciosa, mas persistente pedagogia


de gênero. É sobre esta questão que versa a próxima unidade.

UNIDADE 2
Gênero na escola

Lembranças de um aprendizado tenaz

Ainda recordo como, ao acordar, colocava meu uniforme e seguia para


a escola. Era o final da década de 1970, e vivíamos sob a presidência
do general Figueiredo, a última do regime militar. No pátio, tínhamos
que formar filas: duas para cada sala de aula, uma de meninos e outra
de meninas. Começavam aí as “brincadeiras”, nas quais os meninos
mais robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina, espaço
desqualificado em si mesmo (MISKOLCI, 2012, p. 9).

As memórias escolares acima são do sociólogo Richard Miskolci, relata-


das nas primeiras páginas de seu livro Teoria Queer: um aprendizado pela
Diferença, no qual ele discute, entre outras temas, como temos reproduzido
de forma naturalizada as relações de gênero pautadas pelo reforço das de-
sigualdades entre meninos e meninas no espaço escolar. Miskolci relembra
seu receio em relação à forma como meninos de sua sala eram estimulados
a serem violentos, exercendo a força sobre outros, humilhando os considera-
dos mais fracos, ao mesmo tempo em que desqualificavam as meninas, pois
aqueles que não se ajustavam ao modelo hegemônico de masculinidade,
isto é, viris, agressivos e competitivos, eram logo alocados no lugar “des-
prestigiado” do feminino. “Mulherzinha”, “florzinha”, entre outros adjetivos,
eram de fato xingamentos que pretendiam, ainda que sem a intenção clara
dos ofensores, dizer aos ofendidos que deveriam reproduzir um único estilo
de masculinidade, posto que ser mulher ou agir como uma não era algo
bom. O mundo feminino era (e é) assim constituído como avesso ao dos
homens, além de inferior.
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Lembro-me de uma piadinha muito comum entre professores de cur-


sinho. Sempre que havia um conjunto de meninos conversando e “zoando
a aula no fundão”, vinha a intervenção jocosa: “O que as mocinhas estão
fofocando aí? É hora do tricô, é?”. Sempre funcionava e provocava risos
debochados da sala toda. Por quê? Porque desde pequeninos aqueles me-
ninos aprenderam que não é bom ser comparado com mulheres, com moci-
nhas. E por quê? Porque elas fofocam, são, portanto, levianas, fúteis, não se
preocupam com assuntos grandiosos e se ocupam de atividades manuais e
mecânicas, como o tricô. Não aprenderam a valorizar o feminino como uma
condição comparável à do masculino, como forças complementares, e não
hierárquicas. Foram reprimidos, quando não ridicularizados, todas as vezes
que fizeram coisas associadas socialmente às mulheres, ao feminino.
Não raro, segue narrando Miskolci, reavivando suas lembranças, esses
comportamentos eram aceitos e até mesmo estimulados por professores(as)
e funcionários(as) da escola, por acharem “natural” que as crianças agissem
daquela forma. Da mesma maneira que, hoje em dia, achamos natural, leia-
-se “correto”, que meninas sejam menos ágeis nos esportes, assim como
em raciocínio matemático. Ainda fazemos filhas exclusivas para meninos,
separados das filas das meninas. Reproduzimos este procedimento, muitas
vezes sem grande crítica, exatamente porque os naturalizamos, não vemos
problemas nele. E haverá problemas nessa divisão?
A pergunta é simples, mas sua reposta não, pois nos obriga a imergir em
um rol de outros questionamentos sobre nossas práticas diárias, seja na sala
de aula, no pátio do recreio, na sala de professores ou durante reuniões com
pais. Convido vocês a enfrentar estes questionamentos, pois, como escreve
Guacira Lopes Louro e, creio, vocês têm percebido,

[a]s possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se.


As certezas acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também de-
sestabilizador. Mas não há como escapar a esse desafio. O único modo
de lidar com a contemporaneidade é, precisamente, não se recusar a
vivê-la (LOURO, 2008, p. 23).

Então, vamos viver nossos desafios. Comecemos pelas filas, assumindo


que elas expressam, na verdade, uma separação profunda e durável pela
qual aprendemos que meninos e meninas, homens e mulheres são absoluta-
mente diferentes. Mencionei que responder àquela pergunta lá de cima nos
levaria a uma série de outras interrogações; então, pergunto, reproduzindo
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a interrogação de uma importante pensadora: o que pode ser mais parecido


com uma mulher do que um homem? Como trabalhamos a fim de acentuar
ou de atenuar essas diferenças? A anatomia é destino? A biologia explica
essas diferenças? Explica também as semelhanças? Estas são perguntas
provocativas. Mais do que respostas, gostaria que parássemos um pouco
para pensar em nossas próprias atitudes no espaço escolar. O desafio vai
se tornando mais profundo, pois isso nos obriga a rever valores que nos
alicerçam e orientam, mexe com nossas convicções e adentra o terreno das
moralidades e dos segredos, mas educar é também estar abertos(as) para
esses constantes processos de aprendizado.
Sem pretensão de dar respostas conclusivas ou oferecer receitas, ensaio
a seguir algumas respostas às questões que lancei há pouco, e trago novas
interrogações, a maior parte delas suscitadas em discussões ocorridas nos
fóruns de debates do Módulo Gênero do curso de formação continuada
para professores(as) do Ensino Básico, o GDE – Gênero e Diversidade na
Escola.38
• Homens e mulheres são absolutamente diferentes?

A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúme-


ras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto ines-
gotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil,
sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas
mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo
constitutivo (LOURO, 2008, p. 8).

Assim, não há sociedade que deixe de considerar as singularidades


corporais dos corpos femininos e masculinos, constituindo a partir destas
percepções diferenças, sem que isso implique necessariamente em desi-
gualdades ou em incomensurabilidade entre os gêneros. As diferenças são
construídas como tal, assim como as semelhanças. Acentuamos aquilo que
parece fazer sentido para ordenamento dos lugares sociais, dos valores mo-
rais vigentes, segundo normas estabelecidas. “A norma não emana de um

38 O GDE compõe um conjunto extenso de programas coordenados pelo Ministério da


Educação e Cultura (MEC), a partir de diversas secretarias especiais incumbidas de im-
plementar políticas públicas voltadas para a diversidade cultural e sexual. Integro, até o
momento desta escrita, o quadro de coordenadoras(es) de módulos do GDE ofertado
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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único lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em
toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observa-
das cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma
se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se ‘naturalizar’” (LOURO, 2008,
p. 22). Atualmente, não por acaso, temos vivido um processo intenso e sis-
temático de acentuação das diferenças entre homens e mulheres. Nunca o
mundo de nossas meninas foi tão rosa e de nossos meninos, absolutamente
azul a tal ponto de termos situações como a citada por uma professora que
cursou uma das ofertas do GDE:

“As próprias crianças estão tão obcecadas por determinados estereó-


tipos (ano passado, tomada pela raiva, cheguei a retirar as canetinhas
cor-de-rosa da caixa, só pra ver a reação das meninas, elas usaram as
outras cores, mas desenharam bem menos, duas delas, ao perceber,
escolheram fazer outra atividade).”

Quer dizer, ao mesmo tempo em que participamos de mudanças cul-


turais significativas nas quais as convenções e normas de gênero binárias e
hierárquicas vêm sendo questionadas e desafiadas, temos, em contraparti-
da, discursos sutis mas muito eficientes que reforçam a diferença como inco-
mensurabilidade, como quase impossibilidade de se viver juntos, um gênero
“poluindo” o outro. Trago mais um depoimento gerado no mesmo contexto
de discussão, para em seguida partir para outras questões:

“Nas minhas turmas sempre surgem conversas, onde as crianças in-


terrogam, isso é de menino? Ou, isso é de menina? Essa semana, uma
menina, mostrando um lápis de time, me perguntou: Pro [professora],
é de menino? Enquanto algumas crianças riam, e então eu respondi
com perguntas, ou seja, problematizando: O que vocês acham? Só os
meninos podem ser torcedores de time? As meninas não podem ser
torcedoras, por quê?”

O reforço dessas divisões polares (meninas de um lado, meninos de


outro) é uma maneira sutil, mas eficiente, de enfrentar as transformações
sociais e culturais pelas quais nossa sociedade está passando, uma forma de
“naturalizar” esses lugares, reiterando incessantemente o binarismo quase
de forma inconciliável, do tipo “mulheres são de Vênus e homens são de
Marte”. O que ganhamos com isso em termos concretos para a qualidade
das relações sociais? Creio que nada!
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• Como podemos enfrentar essas reiterações excludentes dos lugares


de gênero?

Mais uma vez: não existem fórmulas prontas para isso, pois estas ques-
tões surgem e se resolvem contextual e coletivamente. Ainda que como
professoras e professores possamos tomar iniciativas individuais, elas só se
efetivarão pedagogicamente quando incluídas em um projeto abrangente
no qual a escola, como um todo (incluindo pais, mães, funcionárias e fun-
cionários, assim como o pessoal técnico-burocrático), estiver envolvida. Isso
não implica em imobilismos, claro, mas em busca por parcerias que possam
tornar nossas intervenções mais amparadas e fundamentadas.
Uma das experiências possíveis para quem trabalha com educação in-
fantil é mudar o critério de organização das filas. A cada semana poderíamos
adotar um sistema: quem faz aniversário nos seis primeiros meses do ano fica
de um lado, e quem faz nos outros seis, de outro; quem prefere gato fica em
uma fila e os que preferem cachorro, em outra, por exemplo. Sim, corremos
o risco de ficarmos com filas desiguais, mas também criamos a possibilidade
de as crianças se socializarem mais com outras a partir de diferenças que as
singularizam, mas não as desvalorizam. Provocamos novos encontros dentro
da mesma turma, abrimos espaço para que as próprias crianças sugiram cri-
térios de organização, além de criar um espaço para se pensar na separação
entre meninos e meninas como um critério único e válido.
Como estamos ainda falando de memórias e experiências, cito o que
ocorreu com uma professora de História em uma turma de primeiro ano do
Ensino Médio, pois creio que o exemplo traz estratégias interessantes para
tratarmos das questões de gênero que, como logo ficará mais evidente, não
se desvinculam facilmente das de sexualidade. Narra a professora que um
grupo que se sentava mais à frente na sala de aula começou a rir baixo e
olhar para ela. Então, essa minha aluna, professora da turma, perguntou o
que estava acontecendo. Uma aluna teve a coragem de dizer:
• Estamos rindo porque a gente estava curiosa para saber se você namora.
E aí uma pessoa aqui, que eu não vou dizer quem é, disse que você joga
em outro time.
• Bem, vocês não estão falando de esportes, né? Acho que estão interessa-
das em minha vida pessoal e em meus interesses sexuais. E o que seria in-
teressante para vocês na minha vida? Talvez vocês se sentissem desconfor-
táveis se eu quisesse saber da de vocês, não é? Mas não tenho problemas
para falar disso, aliás, a gente deveria falar sobre o que é jogar no outro
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time, né? Mas hoje, como não havia planejado e temos um conteúdo a
cumprir, não vamos discutir isso, mas na próxima aula vamos tirar um tem-
po para essa conversa, mas com a sala inteira. Eu quero que até lá vocês
me digam o que é jogar no outro time, e por que isso pode ser engraçado.
Ela saiu de lá tremendo que nem vara verde. Foi falar com a diretora
sobre o ocorrido e disse que seria muito importante que o debate fosse feito
de forma aberta, honesta e horizontalizada, e que ela se sentia preparada
para tal. Anunciou ainda que iria mostrar o material para a direção antes de
trabalhar com ele em sala e que se sentiria melhor com a turma se levasse
essa discussão não para o lado pessoal, mas para uma reflexão sobre normas
e convenções sociais que instituem que há, por exemplo, “um time” no qual
a maioria joga, e quem está “jogando” em outro é uma pessoa “suspeita”, o
que autoriza que seja inquerida por outras.
Ao invés de “abafar o caso”, de silenciar os sussurros, a professora deu a
devida importância à questão, buscando respaldo da coordenação para tal
e procurando enfrentar temas fundamentais para a formação de suas alunas
e alunos, que, ao invés de ficarem com conjecturas muitas vezes atravessa-
das por estereótipos sobre gêneros e sexualidade, tiveram a oportunidade
de fazer, por meio de dinâmicas (vejam na unidade 4, no item Dinâmicas –
brincando com os gêneros, levando a sério nossas questões) uma discussão
orientada e qualificada destas questões.

Silêncios e sussurros: arquitetando os gêneros


Michel Foucault, filósofo francês com uma vasta obra sobre construção de
conhecimento, sexualidade, formas de se educar corpos e subjetividade, es-
creve que os silêncios são discursos poderosos. Sobre o que calamos? O que
não é digno de se estudar? Por que não discutimos, por exemplo, a Guerra
do Chaco, que se estendeu entre os anos de 1932 a 1935, aqui na América do
Sul, envolvendo Paraguai e Bolívia e grandes trustes de petróleo? Este conflito
deixou quase 1 milhão de mortos! Passou-se em países fronteiriços e, ainda
assim, nada consta em nosso material didático sobre o tema. Por quê? Quem
eram aqueles mortos? Corpos que “não importavam”, de indígenas, de pes-
soas simples, aquelas que não têm o privilégio de escreverem suas próprias
histórias. Daí o silêncio. Este artifício do “calar sobre algo” nos ensina sobre
poder, política, prestígio pela invisibilização de determinadas versões dos fa-
tos e, mais grave, de determinados grupos sociais, criando um círculo vicioso:
quanto menos sabemos sobre eles, mas o desprezamos.
116 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Este exemplo pouco tem a ver com gênero, mas está estreitamente re-
lacionado às nossas vivências escolares e nos provoca ainda mais interroga-
ções. Sobre o que falamos e sobre o que calamos? Quando fazemos estas
perguntas, acabamos por perceber que invisibilizamos o que não nos parece
importante. Talvez, por isso, algumas experiências de nosso cotidiano es-
colar sejam silenciadas ou apenas sussurradas. Entre elas estão aquelas em
que os gêneros nos desafiam. Creio que a maioria de nós tem um exemplo
neste sentido: o aluninho que queria brincar de bonecas; a menina que não
abria mão do boné como parte de sua indumentária diária; o adolescente
que começou a mudar sua maneira de andar e se adornar, até o dia em que
apareceu na escola com unhas pintadas e sobrancelhas feitas... Em todos os
casos temos bastantes dificuldades em saber como agir, e não poderia ser
diferente, pois em nossa própria formação não tivemos discussões qualifica-
das sobre relações de gênero e sexualidade, como se esses fossem temas
menores, secundários ou pouco relacionados à vida escolar. Vamos buscan-
do nos qualificar em cursos de formação continuada, em leituras autodidatas
ou participando de oficinas e palestras que versam sobre essa temática. Foi
ao ministrar cursos assim que a psicóloga e doutora em Educação Elizabete
Cruz se deparou com eloquentes “silêncios”.
Entre 2005 e 2006, Cruz foi professora do módulo “O cotidiano da Esco-
la” em um curso de especialização em gestão educacional para diretores de
escolas da rede estadual de São Paulo, realizado pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Foi nesta função que começou a se dar conta que
uma das questões que mais desafiava suas turmas era relativa aos gêneros
não binários, quer dizer, sobre alunos e alunas que vivem nas fronteiras do
masculino e do feminino, aqueles e aquelas que por motivos diversos não
estão conformes aos rígidos padrões que ditam como deve ser e agir um
homem e como deve se comportar e ser uma mulher, a partir de modelos
que pregam que há um homem e uma mulher absolutos. De alguma forma,
pensem bem, todas nós, todos nós violamos a rigidez binária. Vou adiar um
pouco mais esta discussão para poder entrar logo na problemática que nos
apresenta Elizabete Cruz.
Em seu livro Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no co-
tidiano da escola (2011), Cruz procura discutir sua experiência

[a] partir de situações concretas e cotidianas para criar problematizações


sobre a construção de identidades de gênero e suas possíveis implica-
ções para a educação. O que interessa aqui, portanto, é pensar, refletir
Desfazendo o gênero | 117

que nestas experiências identitárias há algo em comum: o rompimento


de uma visão binária dos gêneros estabelecida a partir do biológico e a
reinvenção das possibilidades masculino-feminino [...]. Nesta experiên-
cia docente observei que a presença de travestis na escola provoca uma
grande inquietação. Em uma das primeiras turmas, uma aluna/diretora
trouxe uma questão:

Tem um aluno, o João, que se veste como uma menina e disse que agora
é Joana. Desde então, surgiu uma questão. Qual banheiro ele deve usar?
O dos meninos ou das meninas? Deu a maior confusão! As meninas não
querem que ele use o banheiro delas, os meninos também não. Como
resolvemos? Ele usa o banheiro da diretora. Mas agora, a partir de sua
aula, estou pensando: Será que resolvemos a questão? Será que demos
o melhor encaminhamento? (CRUZ, 2011, p. 75-76, grifos do original).

Eu mesma adotei este texto em um curso de formação continuada a


distância, o GDE, por duas ofertas consecutivas. Em ambas, a leitura fazia
parte de uma atividade on-line chamada “Fórum de debates”, na qual seria
necessário, ainda, assistir ao vídeo Encontrando Bianca,39 que compunha
o chamado Kit anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação e
Cultura, mas que foi vetado pela Presidência da República e, portanto, não
distribuído (ver box de dicas de material audiovisual ao final deste capítu-
lo). O enunciado do Fórum orientava a atividade que tinha como objetivo
“promover interação e troca de ideias” entre a turma, além de “estimular
o debate articulado e refletido” acerca de dois materiais que deveriam ser
colocados em diálogo.
O tom geral do debate, em todas as salas virtuais, era de empatia em re-
lação a Bianca, a jovem travesti que protagoniza o vídeo. Muitos comentários
traduziam a admiração pela persistência suave daquela aluna fictícia, mas
possível, em ser aceita no ambiente escolar. Havia muitas Biancas, reconhe-
ciam as(os) cursistas, como também identificavam no cotidiano exigente de
suas escolas dificuldades para lidar com temas como aquele. Afinal, discutir
relações de gênero, sexualidade e convívio com as diferenças é entrar no

39 Encontrando Bianca é o terceiro vídeo do conjunto de produções audiovisuais que es-


tava sendo formulado pelo MEC como material para subsidiar o combate à homofobia
nas escolas. Em maio de 2011, o chamado “Kit anti-homofobia”, que ainda estava em
elaboração pelo MEC, teve sua elaboração e distribuição suspensas por veto da presi-
denta Dilma Rousseff.
118 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

delicado terreno das intimidades, é mexer com moralidades, desestabilizar


certezas, provocar incômodos que podem gerar insatisfação por parte de
pais e dos próprios pares, ao mesmo tempo que demandavam da tutoria do
curso, bem como da coordenação, respostas mais efetivas que pudessem
ser aplicadas na prática docente. Mostravam-se, por vezes, incomodadas
e incomodados por não saberem como deveriam nomear estas outras ex-
pressões de gênero e de sexualidade fora da heteronormatividade, pois não
haviam sido formad@s para tal.

[E]sse “incômodo” com as ferramentas educacionais incapazes de fazer


frente à realidade de pessoas fora da norma, essa vontade de acolhê-las
ao invés de julgá-las, frequentemente se expressa em questões como:
Como chamo tal pessoa? O que é tal aluno? Ele é travesti? Ele é transe-
xual? E foi um desafio lidar com estas questões, foi muito difícil explicar
que era justamente isso que a gente não queria, não queríamos embar-
car no processo de criar um escaninho das espécies sexuais alocando
cada uma em uma caixa ou identidade. Evitar esse tipo de abordagem
classificatória é uma forma de realmente transformar a experiência edu-
cacional (MISKOLCI, 2012, p. 17-18).

O desafio de se trabalhar fora dos marcos identitários e das referências


binárias relativas aos gêneros e à orientação sexual é exigente, pois demanda
torções na nossa forma de perceber as dinâmicas sociais que oferecem esses
termos classificatórios capazes de definir e fixar identidade, de maneira que
a pergunta crucial deixa de ser “o que é Bianca?” e se desdobra em muitas
outras questões importantes: “Por que não sabemos dizer quem ela é, sem
acionar termos desprestigiosos ou patologizadores?”; “Como esses termos
foram entrando em nosso vocabulário?”; “Quem tem autoridade para dizer
quem ela é, e por que conferimos a determinados saberes esses poderes?”.
Quando deslocamos nosso olhar do indivíduo para as normas e convenções
sociais que o conformam, criamos um campo complexo de tensões, eviden-
ciando que sexo e gênero são, antes, questões de Estado, e, portanto, públi-
cas, não de foro privado. São antes políticas do que biológicas.
Então, vou mais uma vez lançar algumas perguntas, que são de fato pro-
vocações, quer dizer, convites para pensarmos sobre estes desafios. Começo
pela tensão entre privado e público (mais um dos binarismos que nos [des]
orientam, posto que estes limites são muitos mais borrados do que querem
nos fazer acreditar).
Desfazendo o gênero | 119

• O uso dos banheiros é um problema de foro íntimo ou um problema


político?

Muitas vezes, em nosso dia a dia, ouvimos expressões do tipo “cada


cabeça uma sentença”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”,
“gosto não se discute”, sugerindo que se trata de assuntos pessoais, indivi-
duais e que, portanto, não devem ser discutidos, tampouco sofrer interfe-
rências externas. Bem, muitas questões tidas pelo senso comum como de
foro íntimo e privado são na verdade públicas, por isso, políticas (a origem
da palavra política, não custa lembrar, é polis = cidade-estado).
Vou me demorar pensando nos ditados citados acima. Não tenho dúvidas
que somos seres autônomos, e somos capazes de formular nossas opiniões
de maneira resoluta. Mas “cada cabeça uma sentença” não considera que
não “fazemos nossa cabeça” sozinhos, sem influências de inúmeras ideias e
valores que são coletivos, que trazem marcas de classe, religiosas geracio-
nais. Assim, ocorre também com o gosto. Claro que se discute, caso contrá-
rio nem teríamos necessidade de um ditado que afirma o contrário. Gosto
tem a ver com o momento histórico (basta olharmos nossas fotos antigas
para rirmos de nossos penteados de anos atrás), com pertencimento de clas-
se (daí expressões como “brega”), com valores culturais (não aprendemos a
achar pessoas negras bonitas); relaciona-se ainda com as mídias capazes de
estabelecer padrões rígidos de beleza moldando corpos e subjetividades.
Aliás, o corpo, este espaço que percebemos como exclusivamente indi-
vidual, é também um espaço político. Vejam que hoje temos leis que coíbem
e punem ações “privadas” sobre os corpos de mulheres e crianças, procu-
rando protegê-las da agressão doméstica (quer dizer, daquele que ocorre
no âmbito privado). Temos na Constituição brasileira leis que procuram pro-
teger pessoas a partir das suas marcas corporais, sejam étnicas, raciais ou
por alguma deficiência física.

Essa maneira de olhar para o corpo implica entendê-lo não apenas


como um dado natural e biológico, mas, sobretudo, como produto de
um intrínseco inter-relacionamento entre natureza e cultura. Em outras
palavras: o corpo não é algo que está dado a priori. Ele resulta de uma
construção cultural sobre a qual são conferidas diferentes marcas em
diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais,
étnicos etc. (GOELLNER, 2010, p. 72).
120 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Estas marcas, ainda que naturais, só ganham significado pela linguagem.


A forma como adjetivamos, ironizamos, respeitamos, nomeamos esses sinais
diacríticos que os corpos trazem carregam as marcas da cultura, do social e,
assim, do político.
• Gênero é político?

Os diferentes movimentos feministas provaram que sim. Ao lutarem por


direitos iguais aos dos homens, muitas mulheres mostraram que as diferen-
ças naturais não justificavam as opressões sociais. Questionaram também
determinados campos de saber, como a psiquiatria, a medicina social, que,
entre outras ciências, asseveravam que as mulheres eram emocional e fisi-
camente mais fracas do que os homens. Bem, podemos nos perguntar: que
mulher? Será que uma mulher negra, escrava, um dia foi vista por aqueles
mesmos cientistas como pertencendo ao “sexo frágil”?
A terrível prática dos estupros de guerra prova de maneira cruel o quan-
to o gênero pode se transformar em uma arma. Não é o fato de terem pênis,
e mulheres, vaginas, que se justifica essa violência, mas a forma como de-
terminados homens entendem sua relação com o seu próprio corpo e como
são ensinados a perceberem as mulheres.
Nosso próprio vocabulário de palavrões evidencia como aprendemos a
entender a genitália masculina como legitimamente opressora e violadora.
Basta fazermos uma lista de apelidos populares dados ao pênis para que o
desnaturalizemos como mero órgão reprodutor para dar a ele o seu sentido
cultural e social nas relações de gênero. Muitos destes termos estão associa-
dos a armas, a instrumentos de combate.
Enfim, a maneira como devemos performar o gênero que nos foi atribu-
ído não é uma questão pessoal; basta observarmos nossas reações diante
de alunos e alunas que parecem não atender às expectativas relativas ao
seu gênero. Não é raro ouvirmos que aquel@ jovem ou criança é “estranha”,
“esquisita”, “suspeita”. Esta última atribuição normalmente está relacionada
à sexualidade. Quando ouvimos (ou pensamos) que fulaninho ou fulaninha
são suspeitos, do que exatamente estamos duvidando? Suspeitar é, neste
contexto, desconfiar de uma possível falha. Qual seria ela? Arrisco dizer que
duvidamos da heterossexualidade daquelas pessoas. Essa suspeita, não raro,
desencadeia uma série de processos de exclusão social bastantes sensíveis
dentro da escola. Em alguns casos, a violência simbólica deriva em violência
física, o que, no limite, pode levar à “evasão involuntária”. Este é um conceito
Desfazendo o gênero | 121

cunhado por Luma Andrade, doutora em Educação e a primeira travesti bra-


sileira a ingressar como docente em uma Universidade Federal (Universida-
de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB).
Ou seja, não atender às expectativas de gênero pode derivar em uma
série de exclusões sociais que são em si políticas, pois estamos no campo
das relações de poder, considerando quem “pode” ser incluído na nossa
sala de aula, quem não merece estar ali. Quem “pode” ser respeitad@ e
quem não terá este direito.
Onde devemos defecar ou urinar, com quem podemos nos casar, qual
nome estamos autorizados a usar, quem pode ter quantos filhos desejar e
quem não pode? (caso da classe média, julgando o número de filhos que as
classes populares têm). Ao respondermos estas perguntas, nos damos conta
que todos esses temas relativos à sexualidade e ao gênero são antes ques-
tões de Estado que questões da biologia ou da conta de cada um, ou seja,
o que ocorre no espaço privado e individualizado por excelência, o nosso
próprio corpo, não escapa às normas coletivas e aos enunciados de poder.
Sendo assim, a discussão sobre o uso dos banheiros na escola não se
trata de atender a “caprichos” de algumas pessoas, mas de um profundo de-
bate pedagógico suficientemente complexo para exigir que, antes de tomar
posições taxativas ou propor receitas, precisamos refinar conceitualmente
nossas percepções sobre gênero e sexualidade.

• Genitália define o gênero?

Bem, aprendemos que sim, que se alguém tem vagina é menina/mulher e


se tem pênis é menino/homem. Simples, como algumas/alguns de vocês co-
mentaram, só que não. O sexo genital não define gênero, até porque gênero
é um construto social, ou não? Se muda de sociedade para sociedade, se se
transforma ao longo da história, se tem conotações distintas dependendo
da cultura, me parece, sim, que se trata de um construto. Será que somos
sempre 100% mulheres ou 100% homens? Em alguns momentos, temos que
agir a partir de referentes que são socialmente vistos como masculinos, por
exemplo, sendo fortes e até violentas. O mesmo se passa com os homens.
Bem, se gênero fosse uma derivação absolutamente natural da genitália,
não precisaríamos reiterar constantemente os ensinamentos de gênero:
“menino não chora”; “se senta como uma menina”; “menino não brinca de
casinha”; “menina não faz estas coisas”... E como fica o caso, nada raro (mas
122 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

muito silenciado), das crianças que nascem com genitália ambígua? (aquelas
que eram chamadas de hermafroditas, mas que hoje são nominadas de in-
tersexuadas). Como elas podem até mesmo ter uma certidão de nascimento
quando nascem com a genitália ambígua? Os médicos definem, mas nem
sempre “acertam”, o que causa muitos problemas para as famílias, pois nosso
corpo é bastante complexo e não ganha seu significado completo só por meio
dos hormônios, genes, órgãos, mas também, e sobretudo, socialmente.

• Arquitetura tem gênero?

Nossa arquitetura, por si só, é generificada e marcada por relações de


poder. Assim, a instituição escolar não seria diferente. As salas de aula gri-
tam autoridade (basta ver como estão organizadas); anfiteatros explicitam
a quem pertence a fala e quem deve apenas escutar; a ausência de rampas
nas ruas dizem em silêncio a quem o espaço público deve pertencer. Os
banheiros expressam materialmente nossa visão de gênero.
Nossa pedagogia de gênero insiste que banheiros precisam ser sepa-
rados porque ensinamos às meninas que meninos são perigosos e elas são
presas fáceis; e ensinamos aos meninos que eles devem ser perigosos e
ousados sexualmente. Portanto, a discussão sobre banheiros não é sobre
banheiros para homo e heterossexuais, mas sobre como ocupamos os espa-
ços públicos a partir de um lugar de gênero.
Por exemplo, uma mulher que decide à noite sentar-se à mesa de um
bar para beber sozinha uma cerveja será vista como “disponível”, em busca
de uma aventura, e pode ser, assim, assediada, ter seu espaço invadido por
homens que supõem que é isso que ela quer e busca. O mesmo pode se
passar com uma mulher que deseja sentar-se sozinha em um banco de praça
em plena tarde de domingo para desfrutar do prazer de estar ao sol, lendo
uma revista ou um livro. Ou seja, o espaço público não pode ser usufruído
da mesma forma por homens e mulheres. Sabemos que se por um acaso
alguma dessas mulheres dos exemplos que usei forem agredidas não será
difícil que elas sejam vistas como culpadas pela violência sofrida e não como
vítimas de um regime machista que restringe o uso do espaço público às
mulheres. E pior, o faz em completo silêncio. Não há leis que proíbam mu-
lheres de se ir a bares ou bancos de praça sozinhas.
Os meios de comunicação de massa têm sido canais potentes de
reafirmação de lugares de gênero essencializados, como também de
Desfazendo o gênero | 123

transformação de nosso olhar. Uma série como “Malu Mulher”, que foi ao ar
pela Rede Globo no final dos anos 1970, foi capaz de pautar na cena pública
uma série de discussões que acreditávamos serem privadas e individuais
relativas às relações de gênero, tais como o direto das mulheres ao prazer
sexual, de terem seu trabalho doméstico reconhecido e valorizado, de po-
derem trabalhar fora sem sofrer represálias em casa, de serem reconhecidas
profissionalmente e, talvez o mais polêmico para a época, de poderem se
separar sem ter sua moral destruída socialmente.
Hoje em dia esta influência se intensificou graças ao aumento de acesso
e à proliferação de canais midiáticos, de maneira que não podemos des-
considerar esse influente campo de pedagogização de gênero e a maneira
como ele entra nas nossas salas de aula. Podemos tê-los como aliados, ao
invés de apenas demonizá-los, acionando a já gasta frase que prega ser
“tudo culpa da mídia”, como se esta não fosse produto de nossas próprias
relações. É sobre essa maquinaria sedutora e sua relação com nosso tema
neste capítulo que versa a próxima unidade.

UNIDADE 3
Gênero na mídia – e a escola com isso?

Mocinhas e heróis: a vida em preto e branco


No documentário intitulado Filmes ruins, árabes malvados: como
Hollywood vilificou um povo (ver referência no box de dicas de material au-
diovisual), o diretor Sut Jhally40 mostra como o cinema norte-americano foi
capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário ocidental
uma visão estereotipada dos povos árabes como sendo, sobretudo, com-
posto de homens barbudos, um tanto sujos, malvados, ardilosos e violentos,
inclusive com suas próprias mulheres, que são tratadas de forma submissa
e aviltante.

40 O documentário é baseado em livro homônimo escrito por Jack Shaheen, professor da


Universidade de Ilinois e estudioso do assunto.
124 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Os estereótipos são descritores potentes, mas perigosamente simplifi-


cadores, que acabam por fomentar visões preconceituosas sobre aquele de
quem se fala. Nas palavras de Janaína Damasceno,

produzir estereótipos serve para a manutenção tanto da ordem social


quanto da ordem simbólica de nossa sociedade. As dificuldades im-
postas pelo seu uso se referem ao seu caráter de reduzir, essencializar,
naturalizar e fixar a diferença do Outro. Para tanto, o estereótipo usa a
“cisão” como estratégia. Ele divide o normal e o aceitável do anormal
e do inaceitável. Então exclui ou expele tudo aquilo que não se adapta,
que é diferente (HALL apud DAMASCENO, 2008, p. 3).

Logo nos primeiros momentos do documentário de Jhally vemos as ce-


nas de um dos clássicos da Disney, Aladim (1992). O desenho começa com
uma canção que diz: “Venho de um país, de uma terra longínqua, onde va-
gam as caravanas de camelos, de onde cortam sua orelha, se não gostam
de sua cara. É bárbaro, eu sei, mas, hey, esse é meu lar”. O apresentador do
documentário, o professor Jack Shaheen, então nos interroga: “como um
produtor com o mínimo de inteligência, com uma sensibilidade mínima, per-
mite que uma canção assim inicie um filme?”.
Esses exemplos iniciais, aparentemente descolados da questão de gê-
nero, nos ajudam a dar uma dimensão crítica e abrangente aos produtos cul-
tuais, sejam desenhos animados, contos de fadas, filmes diversos, romances,
novelas, e até propagandas de TV. Trouxe-os a fim de propor que agucemos
nosso olhar, que aprendamos a ler as várias camadas de significados que
compõem e conferem sentido a essas produções. Assim, podemos pensá-
-las não apenas como nocivas, mas nos aproveitarmos delas para fazer pen-
sar. Afinal, atualmente não temos como

esquecer [...] a sedução e o impacto da mídia, das novelas e da publi-


cidade, das revistas e da internet, dos sites de relacionamento e dos
blogs? Como esquecer o cinema e a televisão, os shopping centers
ou a música popular? Como esquecer as pesquisas de opinião e as de
consumo? E, ainda, como escapar das câmeras e monitores de vídeo e
das inúmeras máquinas que nos vigiam e nos “atendem” nos bancos,
nos supermercados e nos postos de gasolina? Vivemos mergulhados
em seus conselhos e ordens, somos controlados por seus mecanismos,
sofremos suas censuras. As proposições e os contornos delineados por
essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes ou igualmente
Desfazendo o gênero | 125

autorizados, mas estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte e


acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais (LOURO,
2008, p. 19).

Quero que vocês se concentrem bastante na ilustração que escolhi para


pensarmos sobre essas formas quase “inocentes” de pedagogizar os gêne-
ros. As imagens também são textos e precisamos treinar esta leitura, assim
como ensinar essas leituras para nossas alunas e nossos alunos.

Figura 2 Montagem de Bruno Braga.

O que eu leio nesta imagem, que deve ter recebido umas 100 curtidas
no Facebook, é que o homem fala; o homem é ativo; homem que é homem
é dono de si e de uma mulher e usa violência legitimamente se for preciso
para garantir estas posses.
Mas, vejam, não é qualquer projeto de masculinidade que vemos aí (por
isso eu dizia mais acima que aqueles filmes não falam só de regimes políticos
ou de pertencimento racial, mas também de projetos de gênero). Trata-se
de uma masculinidade branca, burguesa, classe média, engravatada, com
poder de consumo... Uma masculinidade que está acostumada a oprimir
outras masculinidades e muitas feminilidades. Gênero, sexualidade, classe
e raça são marcadores sociais que estão sempre relacionados, ainda que
muitas vezes não os percebamos assim.
Essa imagem nos ajuda a entender que gênero é algo que se aprende a
partir de pedagogias domésticas, escolares e midiáticas. Vocês sabem que
aprendemos a sonhar, a desejar, a recusar, vendo filmes, novelas, propagan-
das. Claro que nossas alunas e nossos alunos também agem desta forma.
Aprendem, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul de menino vendo
as persistentes propagandas de brinquedos. Sonham em serem mais bem
126 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

aceitas ou aceitos se conseguirem se parecer com ídolos da música pop, as-


sim como aprendem que ser igual ao “gay da novela” ou à “piriguete” é algo
ruim. Quase sempre, personagens assim funcionam a partir de estereótipos,
são tipos e não seres humanos complexos, como, aliás, somos tod@s nós.
Os materiais didáticos são também importantes fontes de referências.
Orientam nosso olhar e moldam nossos valores a partir de mensagens apa-
rentemente simples e inocentes. Quando, por exemplo, trabalhamos com
uma cartilha na qual a família é toda branca, mora em uma casa de alvenaria,
é formada por pai, mãe e por um casal de filhos e a lição se chama “A família
feliz”, @s alun@s vão aprendendo que esse é o modelo desejável, e que nem
sempre ele se parece com a sua própria família. Ao desconsiderarmos outros
arranjos domésticos, os desprestigiamos também, vamos construindo silen-
ciosamente fronteiras entre o norma = desejável e o anormal = desprezível.
Uma das professoras que participou do curso de formação continuada
GDE, ofertado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), trouxe um
exemplo que nos ajuda a seguir com essa reflexão. Escreveu ela em um dos
fóruns de debates:

[...] Hoje, durante uma capacitação de determinado sistema de ensino


(que o município em que atuo como profª e coordenadora vai adotar),
estive diante de uma situação de claro equívoco. Numa apostila (para
crianças de Pré II – 5 anos) havia a imagem de um quarto, com cama, ta-
pete, abajur, boneca, ursinho etc. No rodapé havia uma pergunta: “Este
quarto é de menina ou menino?”.

A cursista e professora, autora da postagem acima, levou em frente essa


discussão com as(os) colegas, que não sabiam exatamente como conduzir a
turma para a resolução “correta” do exercício.
Bem, a primeira questão que aparentemente está posta nesse treina-
mento é a de educar para exercer “corretamente” os lugares de gênero:
coisas de menino X coisas de menina; comportamento de menino X com-
portamento de menina; do que gostam (ou devem gostar) meninos X os
gostos de meninas.
Mas se mudarmos nosso olhar, mudamos também a pergunta, ou melhor,
vamos elencar uma série de outras perguntas que estão silenciadas pelo
enunciado desse exercício proposto no curso de “capacitação” (permitam-
-me colocar entre aspas, pois tenho dúvidas sinceras sobre para o que e
como se está capacitando com este tipo de dinâmica).
Desfazendo o gênero | 127

Creio que a primeira pergunta sobre a ilustração do quarto pouco tem


a ver com gênero, mas com outro importante marcador das diferenças so-
cialmente impostas: a diferença de classe social. Creio que a pergunta que
mais faria sentido para nossas alunas e nossos alunos seria se aquele quarto
é de “rico” ou de “pobre”, para usarmos a linguagem do senso comum.
Quantas crianças que estão hoje nas escolas públicas têm um quarto indi-
vidual e inteiramente decorado? Quantas dormem em uma cama sozinhas,
sem ter de dividi-la com a mãe, a tia, algum dos irmãos? Podemos continuar
perguntando, mas não quero ser exaustiva. Voltemos ao ponto de torção
que considero importante.
Em um exercício como o proposto àquelas professoras e aqui narrado
pela cursista, estamos aprendendo a ver, a ler imagens, mas também esta-
mos aprendendo (e posteriormente ensinando) sobre silêncios. Silenciamos
sobre as diferenças de classe em uma atividade como esta, mas também
silenciamos sobre as inúmeras possibilidades de se viver em família, de se
experienciar o gênero e mesmo a raça e a etnia. Ensinamos que existe um
modelo “certo” de se viver, morar, dormir, organizar a vida doméstica e de
enfeitar o ambiente. Quer dizer, quem não consegue enxergar ali um quarto
de menina, errou, pois aquele quarto tem muitas outras informações. NÃO
é um quarto de uma criança das classes populares, NÃO é um quarto de
uma criança indígena, NÃO é um quarto onde dormem meninos e meninas,
NÃO é um quarto de uma criança católica... e por aí vai. De quem será então
este quarto? De uma hipotética menina perfeitamente ajustada ao modelo
hegemônico de gênero, classe e raça, como costumam ser as princesas dos
desenhos da Disney.
Quando oferecemos às nossas crianças e adolescentes uma pluralidade
de estórias, estamos também ofertando um mundo mais diverso de possibi-
lidades de verem o mundo e de se verem nele. Vejam, a única princesa negra
da Disney nem sequer era uma princesa, mas uma jovem empreendedora
que sofreu um encanto e se transformou em sapa, voltando à forma huma-
na com a ajuda de encantamentos e, claro, de um sapo/príncipe fanfarão e
meio falido, proveniente de uma país “exótico”. Nada de príncipes europeus
e heroicos para a humilde e batalhadora Tiana de A Princesa e o Sapo (2009).
Sim, pela primeira vez meninas negras puderam se ver como heroínas
de contos de fada – não podemos desprezar este fato –, mas quando essa
possibilidade apareceu, lá estavam elas como mulheres submetidas ao tra-
balho árduo e à condescendência dos brancos. Pelo menos saímos do clichê
128 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

mocinha cordata e meiga, à la Cinderela, e mocinhos galantes e valentes, do


tipo que monta cavalos brancos e parece não ter uma mácula, nem em suas
roupas, nem em sua vida, para uma trama mais nuançada.
Em um vídeo imperdível gravado a partir de uma palestra que realizou,
a escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos alerta para os perigos das
estórias/histórias únicas (ver a referência nas dicas de materiais audiovisuais
no final deste capítulo). Ela conta que foi uma leitora e uma escritora preco-
ce. Filha de profissionais liberais, lia avidamente livros ingleses, herança dos
anos de colonização britânica em seu país, a Nigéria, leituras que impregna-
vam sua imaginação infantil e a estimulavam a contar, ela também, estórias.
Mas como só lia livros que falavam da realidade britânica, suas narrativas
ficcionais falavam de neve, frutas europeias e de pessoas que nada tinham
que ver com a realidade dela; porém, era bom poder viajar por meio dos
livros. “Eu escrevia exatamente sobre o que lia”, revela a escritora. Essa ex-
periência foi tão significativa que, para ela, livros eram sempre estrangeiros.
Por isso ficou gratamente surpresa quando descobriu diferentes escritoras e
escritores african@s e assim encontrou a si mesma nas páginas que antes só
tinham pessoas de olhos azuis e peles brancas. Isso mudou sua mentalidade,
pois aqueles livros a salvaram “de uma história única”, de ser invisível para a
literatura, de não poder ler ou escrever sobre pessoas e coisas nas quais se
reconhecia.
Adichie conta, ainda, que aos 19 anos foi estudar em uma universidade
norte-americana e que lá sua colega de quarto logo a olhou com imensa
compaixão, pois imaginou a fome que Chimamanda Adichie havia passado,
de como deveria ter tido uma vida precária longe da “civilização” (que pelo
menos desde as Grandes Navegações está associada à branquitude). Quis
saber onde sua colega africana havia aprendido a falar tão bem inglês, como
tinha conseguido estudar e se preocupou se ela saberia usar um fogão.
Interessante é que não aprendemos a ver a moça norte-americana como
ignorante (no sentido lato de ignorar fatos), pois ela nem sequer sabia que a
Nigéria havia sido colônia britânica, daí o inglês de Adichie, ou que se trata
de um país que tem hoje uma das economias que mais cresce no mundo,
que é o mais populoso da África, onde é uma potência regional. Mais fácil
para nós seria reproduzir a “arrogância bem intencionada” (palavras de Adi-
chie) da estudante branca, pois, como ela, nós também só tivemos acesso à
história única, aquela que trabalha com os estereótipos, que é unidimensio-
nal, maniqueísta, aquela que deixa a vida monocromática.
Desfazendo o gênero | 129

Como Chimamanda Adichie, não creio que ler livros estrangeiros ou ver
novelas das oito ou ler estórias de princesas loiras seja um problema por si.
Como ela, penso que o problema se dá justamente quando ficamos limita-
das e limitados a um único tipo de mensagem, não importa o meio pelo qual
esta seja veiculada.
Mariana Barros, psicóloga e antropóloga, inicia sua tese de doutorado
contando sobre seu trabalho em uma Escola Municipal infantil em um bair-
ro da periferia da cidade de Ribeirão Preto (SP). Como estagiária cabia-lhe,
entre outras atribuições, reunir-se com a criançada no pátio para contar estó-
rias. Mariana ficava um tanto frustrada por não conseguir toda a atenção das
crianças, mas se sentia acolhida por elas, que logo começaram chamá-la de
“tia sereia”. Ela ficou intrigada com o apelido e argumentou, certa feita, que
não tinha cabelos ruivos como os de Ariel, a pequena sereia dos filmes de
Disney; além disso, ela tem pernas. Intrigada com o novo apelido, resolveu
perguntar ao seu supervisor de estágio o que aquilo poderia significar. “Ma-
riana, esta sereia está mais para Iemanjá do que para outra coisa” (BARROS,
2010, p. 22).
A curiosidade de Barros só aumentou. Foi então que ela procurou saber
mais do universo mitológico das religiões de matriz africana. Percebeu logo
que não havia livros infantis que contassem estes contos. Teve que usar a
imaginação, pois percebeu que ali havia todo um mundo rico e imaginativo
que parecia falar mais de perto às crianças do que suas estorinhas, que não
prendiam muito a atenção. Fez fantoches representando as figuras dos ori-
xás e passou a contar seus mitos.

Na primeira apresentação, estava rodeada de nada mais, nada menos,


do que quarenta crianças. Para chamar-lhes a escuta em minha direção,
iniciei com um sonoro “Cabrum!”, e mais outro e mais outro, simulando
o barulho do trovão evocado por Xangô. Todos silenciaram e abriu-se
espaço para a primeira história: “Xangô, o rei trovão”.

[...]

Mal comecei a história, um dos meninos perguntou: “Tia, Xangô era


preto?”. Quando afirmei que sim, ele repetiu: “Preto assim, tia? Preto
que nem eu?”, apontando para sua pele. Reafirmei. O menino levantou
apressado, saiu correndo com os braços para o alto e o sorriso nos lá-
bios, encarnando legitimamente um rei-herói: “Eu sou rei! Eu sou o rei
do trovão!” (BARROS, 2010, p. 23).
130 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Talvez, aquela tenha sido a primeira vez que o aluno de Mariana Barros
pode se orgulhar de ser negro e de ter referências positivas relacionadas à
negritude. A psicóloga não pretendia converter-se nem converter ninguém
com suas estórias de orixás, mas ampliar a imaginação da garotada. Não
foi propriamente fácil fazer isso, pois logo deparou-se com a escassez de
material didático e, por sorte, não se deparou com resistências religiosas
dentro da escola ou vinda dos pais. Mas se tivesse se deparado, como ela
poderia proceder?
Não há uma única resposta para esta pergunta, mas existem condutas
para as quais devemos estar atentas e atentos. Uma delas é levar nossos
projetos ao conhecimento da coordenação/direção, defendê-los e pedir
respaldo e apoio. Convidar pais e mães para vir eles mesmos, ler as estórias
ou ouvi-las. Mesmo que não venham, serão comunicados do que estamos
fazendo e do por que o fazemos, além de se sentirem mais integrados. Não
estou afirmando que isso resolve o problema, apenas sugerindo que são
passos que podem evitar desentendimentos.

Gênero na mídia, diálogos possíveis e tensões necessárias


As estórias infantis alimentam nossa imaginação tanto quanto nos forne-
cem modelos morais, éticos e identitários, não só de gênero, mas também
relativo a outros lugares sociais: como ser uma boa criança; o que é uma boa
mãe ou um bom pai; como devemos nos comportar como alunos(as), a ser
mulher e a ser homem.

Vamos aprendendo a ser sujeitos generificados desde o momento em


que nascemos, e essa aprendizagem ocorre não somente nas institui-
ções sociais formais como a família e a escola. Ela acontece também
através da mídia, dos brinquedos, das músicas e dos desenhos anima-
dos que integram este universo infantil (RAEL apud BELELI, 2010, p. 65).

Contemporaneamente, talvez as mensagens que mais eficazmente atu-


am como referentes morais, valorativos e identitários venham do campo da
publicidade. A linguagem conotativa e apelativa da propaganda é, além de
sedutora, ligeira, rápida, mas impregnada de significados, cheia de signos
que nos permitem, como educador@s, explorá-la grandemente. Afinal,
como afirma Ruth Sabat,

[a] publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto


Desfazendo o gênero | 131

de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de re-


presentação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de
identidades culturais. Muito mais do que seduzir o(a) consumidor(a), ou
induzi-lo(a) a consumir determinado produto, tais pedagogias e currícu-
los culturais, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam
condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações;
constituem certas relações de poder (SABAT, 2001, p. 10).

A análise que nos oferece Iara Beleli, a partir de uma peça publicitária,
nos ajuda a perceber como, mesmo sem sermos consumidor@s das merca-
dorias postas à venda pelos anúncios, somos consumidores de suas mensa-
gens e nos orientamos, em maior ou menor grau, por elas.

Figura 3 “Um sujeito careca e desdentado me convenceu a fazer um


seguro”.

As fotografias apontam para diferentes enquadramentos – a primeira


centrada na bunda, a segunda na face. Se ambas as imagens mostram
bebês desnudos, a nudez quando vinculada à “mulher” transforma a
ausência de vestimenta (uma primeira definição do substantivo nudez)
em adjetivo. Na segunda imagem, essa mesma nudez não é mencio-
nada, em seu lugar aparece o “sujeito” que faz a ação. As imagens,
sozinhas, não permitem afirmar o sexo dos bebês, a diferença sexual
é explicitada quando articulada ao texto, ecoando as afirmações de
Judith Butler (2002), que o sexo adquire sua materialidade através de
um discurso engendrado [de gênero] (BELELI, 2010, p. 66).

Judith Butler, autora citada por Beleli, afirma que o gênero é discursivo,
quer dizer, vai sendo construído por distintas linguagens que, mais do que
descrevê-los, formam o que ele é. Vejamos. Quando o médico diz “é uma
menina”, mais do que descrever o que viu no ultrassom, ele está oferecendo
132 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

todo um roteiro cultural aos pais daquela criança. Provavelmente, saíram do


consultório em busca de ornamentos rosados para o quarto do bebê, ima-
ginaram um futuro no quais profissões tidas como femininas serão elenca-
das, imagina-se um rapaz em seu futuro amoroso..., de forma que o gênero
da criança já aparece estreitamente vinculado à sua genitália, como se ele,
o gênero, derivasse da vagina ou do pênis e não destes tantos discursos
normativos que nos ensinam persistentemente o que é ser uma “mulher de
verdade” ou um “homem de verdade” (BUTLER, 2003).
A publicidade, mais do que nos manipular como se fosse uma força ma-
ligna e externa à sociedade, dialoga com as percepções coletivas, por isso
seduz, pois não questiona ou entra em conflito, ao contrário, via de regra,
reitera o senso comum, tratando as posições dominantes como se elas fos-
sem as únicas, as normais, as desejáveis. Isto se dá não só no campo das
relações de gênero, mas são estas que nos ocupam neste capítulo, por isso
nos concentraremos nelas.
O cinema também é um canal potente e sedutor nesse sentido. Lembrei-
-me de uma comédia de grande sucesso do cinema brasileiro contemporâ-
neo, Se eu fosse você (2006), na qual os protagonistas (atores globais) trocam
de corpo, revivendo uma clássica fórmula do cinema americano, na qual um
ardente desejo conjugado com algum fenômeno meteorológico ou sobre-
natural faz com que as personagens passem a habitar uma o corpo da outra.
Assim, Cláudio (Tony Ramos) passa a ter o corpo de Helena (Glória Pi-
res) e vice-versa. A partir daí, uma série de situações confrontam os dois
com os “papéis de gênero” (ver no box Questões persistentes um pouco
mais a fundo este conceito) estabelecidos socialmente, criando situações
embaraçosas e cômicas. O filme é divertido, mas absolutamente reiterador
e naturalizador das relações sociais e de gênero. O fato de ser leve e cômico
ajuda imensamente essa naturalização conservadora.
Em uma das cenas finais, Helena e Cláudio, ainda com as almas trocadas
(ou seriam os corpos?) conversam após a apresentação bem-sucedida do
coral infantil regido por Helena, quer dizer, naquele momento foi ensaiado e
regido por Cláudio. O sucesso da apresentação do coral se deveu pela ino-
vação e criatividade que Cláudio-Helena levou para o grupo. Helena-Cláu-
dio reconhece que o marido foi criativo. Tony Ramos, encarnando Helena,
argumenta que mulheres são mais sensíveis e que isso ajuda na criatividade.
Glória Pires, no papel de marido, fala da força dos homens.
Desfazendo o gênero | 133

• Depende o que você chama de força – retruca a esposa, ainda no corpo


masculino.
• Estou falando de músculos! – enfatiza o marido de forma taxativa; vira-se
e começa a subir as escadas da bela casa do casal.
• Só que você se esqueceu que agora os seus músculos agora estão co-
migo! – retruca Tony Ramos-Helena, subindo as escadas e entrando na
suíte matrimonial.
• Na verdade, só músculos não quer dizer nada. O importante é saber
usá-los – ensina com autoridade Glória Pires-Cláudio.
Aí, faz uso de seus músculos: derruba a esposa na cama, gira sobre o seu
próprio corpo quase que como um ninja e prende Tony Ramos-Helena entre
suas pernas. Começa, então, a passar o cabelo de forma sensual, mas domi-
nadora sobre o rosto da esposa entregue. Terminam a “guerra dos sexos”
fazendo sexo.
Claro que ao final, após muitas trapalhadas, o casal consegue desfazer
a troca. O filme termina com tudo em seu “devido lugar”: ele dirigindo seu
carro potente, utilitário e moderno; ela no banco de carona, concordando
com as coisas que ele diz, como quem não quer assentir completamente.
A voz em off é de Glória Pires e conclui o seguinte: “Mulher e homem são
dois bichos estranhos”. Corta. Agora vemos o interior do carro, Cláudio, ao
volante, completa: “Vênus e Marte, dois planetas diferentes”. E ela:
• É! – concorda, dando de ombros como quem constata uma verdade
definitiva.
• Este é um problema que nunca vai se resolver – completa ele, divertido.
• É, concorda ela novamente, emendando: não é um problema que tenha
solução.
• Porque, na verdade, não é nem mesmo um problema!
• É!! – concordam em uníssono.
• É a vida! – falam outra vez, juntos.
Ou seja, o mundo das relações de gênero é assim, não muda! Não há
o que fazer, aliás, para mudá-lo, pois “é a vida”! Uma vida na qual homens
e mulheres são criados para se perceberem como absolutamente distintos
e não parceiros. São até mesmo de planetas diferentes. O homem, sempre
superior e mais centrado do que a mulher, veio do planeta Marte, deus mito-
lógico da guerra. A mulher, de Vênus, deusa do amor, seria aquela mais frágil
134 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

emocionalmente, por isso mesmo preocupada com questões menores e um


tanto egoístas. Quer dizer, a falta de compreensão entre homens e mulheres
pouco tem a ver com a forma como somos educadas e educados, mas pelo
fato de virmos de mundos diferentes e hierarquizados. Custo a entender
como isso pode contribuir para que tenhamos casais heterossexuais mais
felizes, famílias com menos violência doméstica, homens mais solidários e
mulheres mais maduras. Ou não é isso que queremos?
O irônico é que ao biologizar e naturalizar o que é social e político,
como o gênero, a direção do filme (Daniel Filho) mostra também o quanto o
gênero é performativo: quer dizer, um aprendizado constante que faz com
que incorporemos, literalmente, discursos, normas e convenções sobre os
gêneros. Isso fica claro na forma como ambos os atores (sem querer tirar-
-lhes o mérito profissional) são capazes de incorporar outro gênero, mesmo
mantendo-se com os seus próprios corpos.
O interessante é que quando, em uma das ofertas do curso de forma-
ção continuada GDE, pedi uma resenha d@s cursistas a partir do filme em
questão, o que se passou, apesar das muitas leituras e discussões já feitas,
foi uma comemoração à produção global. As pessoas acharam o filme di-
vertidíssimo, riram o riso conservador, sem nenhum momento rir do esforço
que se fez o filme inteiro para provar que homens são de Marte e mulheres
de Vênus.
Menciono esse fato porque acho que nos ajuda a pensar como estamos
lidando com estes produtos culturais. Como estamos contribuindo (ou não)
para que nossas alunas e nossos alunos sejam capazes de duvidar do riso
conservador. O quanto acabamos sendo cúmplices de processos pedago-
gizadores que fomentam violências simbólicas enquanto fingem só querer
nos divertir.
Ninguém, naquele grupo, atentou para o fato de que o filme não fala-
va só de gênero, mas também de classe social. As mulheres e os homens
ali eram todos brancos, com filhos e filhas estudando em escolas privadas,
residindo em casas com piscina, dirigindo carros caros e vivendo em uma
grande cidade. Mas isto também não foi observado: o fato de que mulhe-
res das áreas rurais talvez tenham os mesmos “músculos” que Cláudio, pois
precisam deles desde muito novas, não parece ser relevante. Mais fácil é
pensarmos como presas, todas, a uma anatomia que traça destinos iguais,
tampouco se observou que homens pobres e não brancos são muitas ve-
zes feminilizados por serem vistos como inferiores e menos racionais. Ou
Desfazendo o gênero | 135

seja, o filme deu visibilidade apenas a um segmento pequeno da sociedade


brasileira, mas não o tratou como minoria, ao contrário, o apresentou como
sendo a norma.
Vocês podem achar que estou forçando a barra, mas quero convencê-
-l@s de que não. O humor, elemento central do filme descrito, é um potente
elemento de reiteração da ordem. Pode também funcionar como transgres-
sor, mas, no nosso cotidiano, o temos acionado muito mais com o primeiro
propósito. Basta que prestemos atenção em nossas piadas. Quais são os
temas mais recorrentes? Pensaram? Há um vasto arsenal de chistes sobre
negros, pobres, mulheres, gays. “Coincidentemente”, grupos sociais que
foram historicamente subalternizados pelos saberes dominantes.
O riso funciona, no filme em questão, como uma espécie de distencio-
nador dos conflitos entre mulheres e homens, mas também como um rei-
terador desses lugares apresentados como antagônicos e cristalizados no
tempo. Mas nós, educadoras e educadores, precisamos, sim, levar o humor
muito a sério. Por exemplo, como lidar com as piadinhas desqualificadoras
em sala de aula? Sabemos que reprimi-las, fazer “sermões”, tendem apenas
a reforçá-las. Talvez um bom caminho seja usar a própria mídia para descons-
truir algumas posições naturalizadas, transgredir o riso conservador.

Beijo de novela, do que temos medo quando a sexualidade entra em sala?


Uma professora, cursista do GDE, conta que, juntamente com um colega
de trabalho, resolveu aproveitar o furor estabelecido em sala com o último
capítulo da novela Amor à vida (Rede Globo, 2013) e fazer uma discussão so-
bre a cena motivadora daquela falação toda. Tratava-se do badalado “beijo
gay”. Na cena, um casal de rapazes, que está vivendo maritalmente já há al-
gum tempo, se beija na boca (de boca fechada, nada de beijo de língua). No
momento do beijo, os relógios, acertados pela hora de Brasília, marcavam
mais de 22 horas. Acho importante registrar esse dado, pois sabemos das
restrições jurídicas para a transmissão de determinados programas e cenas
por meio televisivo. Assim, se as crianças viram não foi porque passou em
horário de programação livre, mas porque suas famílias permitiram.
A turma em questão era composta de meninos e meninas na faixa dos
9 anos de idade, mas com claras posições relativas à cena do beijo. A crian-
çada se mostrava avessa àquela manifestação de afeto entre dois homens.
Tanto meninas quanto meninos usaram adjetivos desqualificadores para se
referirem aos personagens gays e mostraram asco pelo beijo. A professora
136 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

e o colega que a acompanhava naquele dia perguntaram por que aquele


beijo, que era uma demonstração de amor, parecia nojento e o beijo dado
pela atriz Bárbara Paz em um rapaz, que encarnava um personagem de ín-
dole duvidosa, não o era? Ela e ele queriam apenas prosseguir a discussão,
interrogando a turma, tão afoita diante do desfecho da trama, sobre o por-
quê de um ato de carinho ser recusado e o outro ser recebido com quase
indiferença.
A professora remontou a cena em que cada beijo foi dado. Na primeira,
os rapazes se olham com ternura, trocam palavras doces e desejam um ao
outro um dia feliz. Então, se beijam (de boca fechada) e se separam para que
cada um assumisse seus afazeres. Um deles cuidava de um restaurante de sua
propriedade, e o outro cuidava da sua própria pousada e do pai inválido. Um
pai que o recusou a vida toda, justamente por conta da sexualidade do filho.
O beijo “hétero” se deu quando a protagonista da cena abandona o
noivo no altar, pois iria se casar com ele por interesse financeiro. Foge do
cartório levando pela mão o rapaz que diz amar. Na cena seguinte, o ca-
sal aparece em um espaço público da cidade de São Paulo, beijando-se,
abraçando-se com furor sexual. Ela tem a maquiagem borrada e o vestido
de noiva rasgado, ele está sem camisa. Ambos correm, param, se beijam
novamente, de modo voraz. Parecem alterados. Mas talvez seja o amor, não?
Ao descrever as cenas com palavras que deslocavam valorativamente
cada uma das manifestações de afeto, a professora também as ressignificou,
o que fez com que a turma tivesse a oportunidade de “ver” a mesma cena
de novo, mas por outro prisma. Não interessava àquela professora promover
o beijo gay ou o hétero, mas sim promover uma outra reflexão para as formas
como nos relacionamos, como vemos a diferença e a tratamos. Por que a
diferença se tornará, no burburinho da sala, um defeito? Ela deu a eles a
oportunidade de não ficarem com a “estória única”.
Porém, há ainda uma pergunta que não quer calar: por que foi o beijo
entre rapazes aquele que causou nojo e críticas severas das crianças? A per-
gunta é retórica, pois sabemos a resposta. Ela tem a ver com gênero, mas
também com sexualidade.
Ainda que a sexualidade seja tema para o próximo capítulo, creio que
vale a pena antecipar algumas discussões aqui, mesmo porque gênero e se-
xualidade, já disse diversas vezes aqui, ainda que não sejam a mesma coisa,
são temas extremamente relacionados.
Desfazendo o gênero | 137

Vamos começar pela cena do beijo do casal heterossexual. Creio que a


(não) reação das crianças diante da cena relaciona-se com a visibilidade le-
gítima e prestigiosa pela qual aprendemos a respeitar a heterossexualidade.
Os produtos culturais (filmes, romances, novelas, propagandas), as
reuniões familiares, os espaços de lazer, promovem e cultuam as parcerias
heterossexuais e os corpos bem-conformados aos padrões binários, raciais
e estéticos, de maneira que naturalizamos esses privilégios entendendo-os
como normais e naturais, e não como construções políticas que relegam às
margens aqueles e aquelas que não se adéquam, não se conformam, não
conseguem ou mesmo recusam esses limites. Assim, os transformamos em
“MINORIAS”, quer dizer, minoramos suas reivindicações, seus problemas,
suas angústias (lembram-se que Helena e Cláudio, mesmo fazendo parte de
uma minoria social, foram tratados como maioria cultural?).
Assim, fomos aprendendo a ver homossexualidade como anormal. A
primeira pergunta talvez seja: Como chegamos a considerar alguma coisa
normal? Por que certos comportamentos são entendidos e classificados
como anormais? Por meio de quais saberes, de quais discursos, formamos
esses conceitos? Como crianças de 9 anos de idade aprenderam que um
beijo entre dois homens que se amam é asqueroso e um entre uma mulher e
um homem é bom, permitido e, até, bonito?
No caso dos comportamentos sexuais, pelo menos desde o século XIX,
as sociedades ocidentais, ou as que seguem seu modelo, alocaram a sexua-
lidade no terreno da psicologia e da medicina, deslocando-a do campo mo-
ral da religião. Se neste último campo as práticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo podiam implicar em pecado, no campo científico elas se trans-
formaram em anormalidade, em patologia, podendo, assim, ser curadas. O
campo jurídico também deu sua contribuição no sentido de penalizar as se-
xualidades dissidentes da norma burguesa, leia-se: heterossexual, monogâ-
mica (pelo menos em tese), procriativa e monitorada por saberes médicos.
Assim, não só homossexuais corriam risco de serem processados, presos
e submetidos a intervenções cirúrgicas como a lobotomia, mas prostitutas,
crianças “masturbadoras” e pessoas da classe operária (considerada promís-
cua pela burguesia) podiam ser igualmente punidas, vigiadas, esterilizadas.
Desse modo, a sexualidade passou a constituir-se cada vez mais a pró-
pria verdade do sujeito. Ele (sujeito) era o que ela (sexualidade) o transfor-
mara. Desde então, heterossexualidade e normalidade estão profundamen-
te associadas, de maneira que tendemos a não saber como lidar com os
138 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

gêneros que escapam ao binário e/ou com as sexualidades dissidentes da


norma heterossexual. A tendência é recusarmos em nós e/ou nos outros es-
ses “desvios”, percebendo-os como anomalias, erros, falhas que só podem
acarretar em infelicidade. E acabam acarretando mesmo, como uma profecia
autorrealizada, uma vez que passamos a tratar essas questões como proble-
ma, e não como uma possibilidade outra de vida, de amar, de se relacionar.
Não sabemos sonhar, idealizar, educar fora desse registro heterossexualida-
de, a qual, por sua vez, associamos a uma perfeita conformidade entre sexo
genital, gênero social e desejo sexual.
Há, assim, um grande mito de que pessoas homossexuais são vorazes
sexualmente (mesmo quando ainda são crianças). Há também a crença
difundida de que estas pessoas não são normais ou sanas, que são con-
traventoras. Assim, muit@s de noss@s alun@s não querem se associar a
ninguém que tenham estas marcas com receio de serem confundidos como
sendo também homossexuais. Cabe a nós ressaltar o que noss@s alun@s
que escapam à norma heterossexual têm de positivo, valorizar o que fazem
bem, incluí-l@s em atividades prestigiosas, mas sem vitimizar estas pessoas.
Tratar os diferentes como iguais pode ser injusto (por exemplo, querer que
um aluno com paralisia infantil jogue futebol com os demais), mas tratar a
diferença como parte da realidade da escola e da vida, mostrando que há
espaço para ela (por exemplo, o aluno com paralisia pode não ter o mesmo
desempenho que os outros na hora do drible, mas pode ser um ótimo go-
leiro, para tanto é preciso que a chance seja dada, ou pode se destacar em
outras modalidades).
Trabalhar com produtos midiáticos pode nos dar uma excelente oportu-
nidade para adentrar nestes temas, o que não diminui o desafio, mas, cer-
tamente, aumenta o prazer e o interesse de quem ensina e aprende. Pode
nos ajudar, inclusive, a tirar a sexualidade do marco do perigo, da doença
e do risco, porque é quase sempre assim que ela entra na escola, seja para
falar de aids e doenças sexualmente transmissíveis, seja para falar dos peri-
gos da gravidez na adolescência. Quase nunca falamos de sexo como fonte
de prazer e de estabelecimentos de vínculos. Perdemos a oportunidade de
falar com nossas alunas e alunos sobre algo que acontece todos os dias sob
nossos narizes: os encontros, os beijos, o desejo, os namoros. Abordando-os
como questões sérias, porque delicadas, pois envolvem sentimentos e afe-
tos, mas também aprendizados, dos quais, por despreparo ou moralismos,
deixamos de participar.
Desfazendo o gênero | 139

Também deixamos de problematizar, como assunto digno de figurar no


currículo, as chacotas que minoram marcas de classe, raça e gênero ou as
violências ocorridas nos portões da escola, nos banheiros e pátios. Natu-
ralizar ou assumir uma postura de pretensa neutralidade não faz com que
os problemas desapareçam ou diminuam, mas podem nos fazer cúmplices
involuntári@s de violências que podem terminar em evasão escolar.
Por fim, aposto grandemente no trabalho com mídias diversas em sala de
aula, pois nos valendo dos diversos produtos culturais temos mais chances
de provocar as turmas a também contarem suas histórias com protagonismo
e criatividade. Podemos, assim, lidar com linguagens distintas e estimulan-
tes e nos surpreender positivamente com os produtos que noss@s alun@s
podem elaborar.
Trazer o cotidiano vibrante e colorido da publicidade para dentro da sala
de aula pode ser um excelente mote para pensarmos criticamente sobre po-
breza e riqueza, e assim sobre desigualdades sociais e direitos civis, além de
oferecer material estimulante para pensarmos questões de gênero, raciais,
geracionais, religiosas. A música também pode ser um eficaz disparador de
discussões. Pensei no clássico Paula e Bebeto, de Milton Nascimento (dá
para acessar a letra por: <http://www.vagalume.com.br/milton-nascimento/
paula-e-bebeto.html>), como trilha para as cenas dos beijos narradas acima.
Podemos pedir que a própria turma traga suas músicas preferidas para que,
assim, comecemos um diálogo mais horizontal, no qual também aprende-
mos com nossas alunas e alunos.
Tod@s nós, que já nos deixamos, algum dia, impactar por um filme, sabe-
mos que a magia do cinema pode ser suficientemente sensibilizadora para
motivar projetos coletivos dentro da escola, nos levando a oferecer uma edu-
cação na qual a práxis seja o motor das ações. Práxis diz respeito à atividade
livre, universal, criativa e autocriativa, pela qual o ser humano cria (faz, produz)
e transforma (conforma) seu mundo e a si mesmo (BOTTOMORE, 1997).
Com o intuito de proporcionar algumas ideias mais e deixar dicas para o
trabalho de vocês, apresento a seguir quadros com sugestões de materiais
audiovisuais, além de um quadro com questões persistentes, quer dizer,
aquelas que apareceram sempre no meu trabalho com a temática de gêne-
ro. Sugiro, ainda, dinâmicas em grupo que podem ser excelentes ferramen-
tas de trabalho.
140 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

UNIDADE 4
Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões

Nas diversas ocasiões em que trabalhei com professoras e professores


sobre a temática de gênero, algumas questões se fizeram sempre presen-
tes. Acredito que esta persistência se deva ao fato de elas sintetizarem per-
cepções bastante arraigadas sobre o tema, mas também mostram o quão
desafiante tem sido trabalhar com e no ensino básico neste País. Acredito
que muitas daquelas questões sejam também questões de vocês, por isso
as pontuo a seguir:

• Qual escola sonhamos? Qual a escola queremos para noss@s filh@s? Responder
a estas perguntas exige que façamos um exercício fantástico, que é o de se co-
locar no lugar do outro. Este movimento não é fácil, mas nos ajuda a conferir ao
outro sua dimensão humana. A escola que queremos está em construção, e por
vezes nos sentimos impotentes. Escola tem que repensar práticas – o que fazer?
Essa é uma pergunta que nos angustia quando imergimos nestas reflexões. Bem,
já estamos fazendo quando estamos aqui, lendo, nos qualificando, debatendo
e nos deixando provocar. Creio que uma leitura provocativa, uma formação es-
timulante faz de cada um(a) de nós “multiplicador@s”, pois nosso olhar muda
mesmo. Senti isso intensamente em minha experiência como professora do En-
sino Fundamental e Médio, como professora universitária, mas também como
mãe, amiga, esposa... Esse processo, mesmo lento, pode ser significativamente
transformador da nossa atuação nas diferentes esferas sociais. Sugiro a leitura
de um texto delicioso de Silvana Goellner, que vocês encontram nas referências.

• Como trabalhar estes temas em escolas que estão situadas em áreas onde os
problemas sociais são tão profundos que parece não haver espaço para essas
reflexões? Este é um desafio mesmo! Sempre trabalhei com a classe média e
entendo que, de certa forma, isso foi um privilégio, pois lidei com pessoas que
tinham muitas coisas materiais e emocionais resolvidas. Um caminho que tem
dado certo em comunidades onde há muita violência tem sido buscar parcerias,
seja com outras escolas, com o Estado ou com o chamado Terceiro Setor. Há, por
exemplo, fundações e ONGs que trabalham com arte, teatro, dança, capoeira e
música junto a populações imersas em conflitos múltiplos e carências variadas.
Desfazendo o gênero | 141

O importante é que o projeto não seja um movimento de cima para baixo, quer
dizer, que não considere as particularidades de cada localidade, que seja alheio
às questões locais mais prementes. Projetos são mais eficientes quando conse-
guimos partir de algo que seja de interesse da galera, da comunidade, intervindo
também no entorno da escola. Se ficamos só do muro para dentro, a possibilida-
de de o projeto se consolidar e gerar transformações diminui significativamente.
Uma professora de Brasília, que atua em uma das áreas mais violentas da cidade
(uma cidade-satélite), tem um projeto muito bacana de pintura de muros e revi-
talização de espaços ao redor da escola, e o faz com intensa participação de um
grupo de alunas e alunos. A atividade envolve mais do que arte, grafites e ur-
banismos (o que por si só já seria muita coisa), fala também de ética, de relação
com o espaço público, obriga a pensar sobre direitos, entre outras provocações
transformadoras. Tem dado certo. Provavelmente não foi fácil e nem deve ser
algo sem desafios de toda ordem, inclusive em termos burocráticos, logísticos e
financeiros. Mas eu aposto muito nesse caminho de sensibilização, de interven-
ção que cria laços de confiança entre nós e a comunidade que atendemos. Com
meninas que se prostituem já vi trabalhos lindos com recuperação de bonecas
para doá-las a creches e orfanatos. É incrível como as meninas, cuidando de
recuperar bonecas, pensam em si mesmas, refletem sobre seus corpos, suas
vidas, suas famílias. Recuperar a boneca acaba funcionando muitas vezes em um
processo de reencontro com suas próprias belezas, com seu valor como mulher,
como pessoa, como artesã. Claro que estas oficinas têm metodologias, têm es-
tratégias de ação. Estou apenas mencionando algumas experiências que vi dar
certo. Deixo aqui uma dica de livro que pode ser estimulante: Gangues, gênero
e juventudes: donas de rocha e sujeitos cabulosos. Disponível em: <http://portal.
mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_gangues_sem_a_marca.pdf>.

• Se a sociedade é a grande vilã, o que nós, como indivíduos, podemos fazer?


Bem, a gente está atribuindo à ‘sociedade’ todas as culpas. Mas o que é a
sociedade se não um produto das relações sociais estabelecidas entre nós? A
sociedade é resultado das relações sociais, das instituições que criamos, das
normas e convenções que estabelecemos. Claro, nascemos e ela está aí, mas
somos nós também que damos continuidade a ela, questionamos, desafiamos
“verdades”, lutamos por outros modos de classificar e significar a vida. São pro-
jetos coletivos que transformam, mas são angústias sentidas individualmente
que nos motivam muitas vezes. Digo tudo isso para que saiamos desse lugar
paralisante, que é o de atribuir à sociedade (como uma entidade poderosa e
142 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

que nos domina) a culpa pelos males, como o preconceito, nos sentindo assim
impotentes. Pelo que experenciei nos cursos de formação continuada, não vi
letargia, ao contrário, vi pessoas pensando, se desafiando, confrontando suas
verdades, procurando caminhos para a transformação. A questão é que estes
caminhos não são fáceis, pois as resistências estão aí aparecendo em diferentes
discursos. Muitos deles têm a ver com a completa ignorância, no sentido de
ignorar, de não ter conhecimento relativo a questões de gênero e sexualidade.
No primeiro caso, naturalizamos tanto o gênero que já o vemos como algo que
vem pronto, é imutável e determinante até mesmo da nossa capacidade de sen-
tir (homens não choram) ou de aprender (mulheres não têm raciocínio lógico).
Aprendemos também que gênero determina sexualidade e que esta, quando
não corresponde ao modelo heterossexual, é perigosa. Tratamos sexualidade
sempre no marco do risco (cuidado com a aids! Cuidado para não engravidar!)
ou do perigo (você vai ficar falada! Você vai acabar pegando uma doença!). Não
falamos de prazer, de escolhas, não ensinamos noss@s filh@s ou alun@s a pensa-
rem sobre sexo para poderem fazer escolhas conscientes, por exemplo, na hora
da primeira transa.

• Podemos falar em papéis sociais de gênero? Podemos, mas eu tenho cá minhas


críticas ao conceito, justamente por sua tendência a se cristalizar e se transfor-
mar em estereótipo. Temos posições de gênero para as quais somos convoca-
das e convocados. Performamos, à medida que colocamos em atos, normas,
convenções, padrões estéticos de gênero que são largamente aceitos como
sendo femininos ou masculinos. Mas temos desafiado constantemente as ideias
de papéis, pois a vida não é roteirizada como uma peça de teatro, e estas analo-
gias com palco, teatro, papéis e máscaras, apesar de sedutoras, são insuficientes
para levarmos a fundo as discussões nesse campo, que está atravessado por
relações de poder que a analogia teatral não revela.
▫ O comentado acima se relaciona com outra questão: a identidade é algo
dado? Como se relaciona com gênero? A recorrência da ideia de “identida-
de” como algo que o sujeito traz consigo, um tanto pronta, está presente
em muitos momentos de nossas conversas. É importante a gente perceber
que se gênero é tão central para a formação de nossa identidade (e acho
que ninguém tem dúvidas disso) e que se gênero é construção social, por
que identidade seria algo que vem pronto com o sujeito? É legal mostrar
que vamos nos constituindo com nossas experiências, que têm tudo a ver
como o momento histórico no qual estamos inserid@s, com a sociedade
Desfazendo o gênero | 143

onde vivemos, com os ambientes de convívio cotidiano. Pensar a identidade


fora dos marcos essencialistas é difícil; dissemos, muitas vezes, que somos
assim e não vamos mudar, que pau que nasce torto não tem jeito, morre tor-
to... Quando a questão toca na orientação sexual, nas questões de gênero, a
perspectiva essencialista se acentua. A pessoa, no fundo, sempre foi assim,
reprime, esconde aquela verdade dos demais, até que um dia não suporta
mais e revela sua “verdadeira identidade” que estava ali, no âmago do seu
ser, prontinha. Por isso, mulheres, que vieram de Vênus, nunca serão iguais
em direitos a homens, porque Marte é um planeta que gera guerreiros (iro-
nias, claro).
▫ Quais as implicações de pensarmos que identidade não se muda, e muito
menos quando estamos falando de gênero e sexualidade? Primeiro, a ideia
de que esta verdade é unicamente do indivíduo, e não parte de uma cons-
trução coletiva que oferece a cada um de nós os termos para pensarmos as
nossas experiências, inclusive as sexuais. Segundo, isso confere uma respon-
sabilidade extra a cada um frente a suas “escolhas”, entre assumir ou não,
quando esta “escolha” pode significar perdas profundas, dramas pesados
para serem encarados por pessoas ainda tão jovens.
▫ Por que tantas arrobas ou tantas barras (a/o, as/os), tanto esforço para se
escrever sobre gênero? É interessante perceber que nosso vocabulário de
gênero é restrito e, para piorar, se confunde com o das sexualidades, igual-
mente escasso. Por isso, ficamos tão confus@s quando temos de lidar com
gêneros fronteiriços porque estamos presos em um binarismo que pode ser
bem confortável para muitos, mas é também aprisionador, limitador para
outros tantos. Então, como uma travesti arruma termos para se autodefinir?
Como nós fazemos isso? Pensar fora desses limites do pensável nos atordoa,
nos incomoda e nos desafia, porém estamos neste movimento, por isso as
palavras importam sim! Não se trata de “politicamente correto”, ou se trata
exatamente disso, de entrar na disputa linguística por termos capazes de
contemplar um número maior de experiências, de vidas, e que possam fazê-
-lo de forma positivada.

Há mais uma infinidade de questões, certamente, mas nos limites que


temos aqui, reuni apenas as mais recorrentes. Passo, então, às sugestões de
dinâmicas de grupos que podem ser válidas e importantes nos trabalhos
com gênero e sexualidade.
144 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

Dinâmicas – brincando com os gêneros, levando a sério nossas


questões
As dinâmicas são formas muito eficientes de se promover discussões,
mas sobretudo de nos sensibilizarmos para o debate, muitas vezes de ma-
neira mais eficiente, justamente por promover o aprendizado de um jeito
lúdico, porém sério e comprometido.
A seguir encontram-se algumas sugestões para se tratar em espaços
escolares a temática das relações de gênero. Mas, antes de prosseguir, re-
produzo algumas orientações presentes do livro Gênero fora da caixa, um
projeto do Instituto Sou da Paz, publicado em 2011, acessível neste link:
<http://www.soudapaz.org/upload/pdf/genero_fora_da_caixa_web.pdf>.
As atividades sugeridas podem ser realizadas por qualquer educador(a),
seja em escola e projetos sociais, seja em organizações não governamentais.
Como a questão de gênero é complexa e exige certa reflexão e sensibilida-
de por parte dos educadores, é preciso que o(a) educador(a) tenha alguma
afinidade pelo tema e experiência de trabalho com jovens.
Além de se sentir confortável com o conteúdo abordado nas oficinas, o(a)
educador(a) deve se preocupar com sua postura em sala de aula, pois isso
também contribui para um ambiente mais participativo e de respeito entre
as pessoas. É importante o(a) profissional estar atento para garantir espaço
para que as jovens mulheres tenham voz, para estimular a diversidade, não
tolerar falas preconceituosas e machistas, estabelecer regras de convivência
e não reforçar estereótipos de gênero. O importante é manter uma postura
condizente com os conteúdos que estão sendo trabalhados. Não adianta,
por exemplo, o(a) educador(a) debater com os(as) alunos(as) sobre respeito à
diversidade e fazer brincadeiras ou colocações preconceituosas.
Recomendamos que as atividades sejam realizadas em grupos mistos
(homens e mulheres), com a participação de 10 a 20 jovens. O facilitador
pode ser homem ou mulher, o que conta é a afinidade com o tema e o
comprometimento.
Para receber os(as) alunos(as), reserve um espaço agradável para deixá-
-los(as) confortáveis. Caso o grupo ainda não se conheça, comece os primei-
ros encontros realizando algumas dinâmicas de apresentação e integração.
Desfazendo o gênero | 145

Reserve tempo para uma pausa nas atividades, estabelecendo um momen-


to de descontração. Nesse caso, se possível, ofereça um lanche para os(as)
jovens.
Finalmente, é importante preparar as oficinas com antecedência, sepa-
rando os materiais necessários e lendo os textos de apoio. Se possível, vale
a pena registrar os encontros, pontuando as discussões que foram proveito-
sas, os temas mais candentes para o grupo, os pontos de vista dos(as) jovens
e as atividades nas quais o grupo se envolveu mais. Isso ajuda a planejar as
próximas atividades e a ter um registro de todo o processo educativo (Gê-
nero fora da caixa, Elaboração do Manual: Gabriel Di Pierro e Marília Ortiz,
2011, p. 24)

Dinâmica “Brincadeiras de gênero”

Público sugerido: Crianças e adolescentes

Objetivos: A ideia é mostrar como os brinquedos têm funcionado


como “próteses de gênero”, ou seja, moldando de forma às vezes violenta
os aprendizados que se valem da ludicidade, uma vez que brinquedos e
brincadeiras, que deveriam ser antes de tudo elementos lúdicos, criativos,
prazerosos, são usados (mesmo inconscientemente) como modeladores de
gênero. Quer dizer, como vamos aprendendo a excluir, classificar, julgar, a
partir do brinquedo.

Etapas:
1. A dinâmica deve ser antecedida de um debate breve, suscitado por al-
gum episódio envolvendo a turma na qual surjam questões de gênero
e sexualidade. A partir dele, podemos lançar algumas perguntas, por
exemplo, a divisão na hora do recreio, de se formar grupos de traba-
lho ou ainda na aula de Educação Física, e lançar uma questão do tipo:
Por que algumas atividades têm de ser feitas separadamente? Será que
sempre foi assim? Será que é assim entre outras populações, em outras
culturas? Meninos e meninas são totalmente diferentes ou meninas e
meninos são muito parecidos? Como aprendemos a ser meninos e me-
ninas? Esta deve ser a última questão, para suscitar a discussão sobre os
brinquedos e as brincadeiras.
Neste momento, é importante deixar a turma se expressar, e anotar
na lousa algumas palavras-chave para incrementar a discussão. É preciso
146 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

pactuar com a turma que não pode haver ofensas, palavras de baixo calão,
piadas preconceituosas nem comentários desrespeitosos durante toda a
roda de conversa e ao longo da dinâmica.
2. Peça para que, na próxima aula, levem os brinquedos que marcaram sua
vida.
3. Peça para que os(as) alunos(as) formem um círculo no chão. Para quebrar
o gelo, a dinâmica pode ser iniciada pelo(a) professor(a) que a estiver con-
duzindo. Ele(a), por exemplo, gira uma garrafa no centro do círculo, e a
dinâmica se iniciará pela pessoa para a qual o gargalo da garrafa apontar.
4. É importante anotar o que cada alun@ elencou como sendo significativo
no brinquedo que levou para a sala, pois é a partir dessas expressões
que iremos aprofundar as relações de gênero e os brinquedos.
5. Peça que meninos troquem seus brinquedos com meninas e vice e versa.
6. Observe como essas trocas ocorrem e como cada um brinca ou não
com o brinquedo recebido (de 2 a 3 minutos de brincadeira a sós com o
brinquedo).
7. Em seguida, peça para que formem duplas ou trios mistos para que
brinquem junt@s com os brinquedos que receberam durante a troca (5
minutos para brincar).
8. Observe e anote as reações da brincadeira a sós e em grupo, para depois
problematizá-los na roda de discussão que deve ser formada em seguida.
9. Formada a roda, lance novamente as perguntas sobre o significado dos
brinquedos para si e como eles foram vistos pelo(a) colega de outro gê-
nero. Como cada um se sentiu brincando a sós com o brinquedo trocado.
Como foi brincar em grupo? Questione a pedagogia de gênero, mostre
como esses aprendizados são culturais, históricos, e não essências de-
finitivas. Mostre a importância de aprender com o outro, de fruir prazer
com a brincadeira e de como os brinquedos nos ensinam muitas coisas;
sendo assim, é importante brincar com diferentes jogos e brinquedos
para aprender a ser plural.
Dica de leitura: <http://www.faeb.com.br/livro/Comunicacoes/brinca-
deiras%20genero%20e%20sexualidade.pdf>.

Dinâmica “Tudo tá relacionado”

Criação: Prof. Dr. Felipe Bruno Martins Fernandes (PPGICH/NIGS/UFSC);


Profa. Dra. Miriam Pillar Grossi (NIGS/UFSC)
Desfazendo o gênero | 147

Público sugerido: Crianças e adolescentes

Orientações: Esta oficina visa problematizar as inter-relações entre gê-


nero, raça e sexualidade mostrando como a transversalidade entre estes
marcadores sociais pode ser produtiva no combate às violências e discrimi-
nações nas instituições educacionais. Ao iniciar os trabalhos com os temas
divididos por “eixo de opressão” e fechá-los com uma discussão coletiva, a
oficina busca ser um espaço de reflexão em que @s participantes possam se
posicionar, explicitar suas questões e discutir coletivamente seus conceitos e
pré-conceitos. O diálogo e a desconstrução devem ser o princípio norteador
da oficina, em que as diferentes posições não devem ser carregadas dos
juízos de valor do mediador, mas, sim, problematizadas por este. Problema-
tizar, categoria presente no pensamento de Michel Foucault, é uma forma de
reflexão que busca colocar determinados discursos no centro do pensamen-
to. Não é, pois, uma forma de disseminação de enunciados “politicamente
corretos”, mas, conforme sugerimos, é uma forma de refletir sobre o enun-
ciado e suas condições de possibilidade. Para isso, é necessário exercitar a
escuta, intervir e mediar o debate que surge d@s participantes.

Objetivo: refletir sobre a importância em se discutir gênero, raça e sexu-


alidade na Educação Infantil.

Material necessário: livros infantis que abordem as temáticas de gênero,


raça e sexualidade; cartolina e canetão.

Etapas:
1. Pequena apresentação teórica do papel em se discutir gênero, raça e
sexualidade na Educação Infantil.
2. Pequena apresentação de cada livro infantil a ser apresentado. Os li-
vros devem ser mostrados e as ilustrações (perspectiva imagética) de
cada um, discutidas. Mostre o quanto a literatura infantil contemporânea
pode contribuir na discussão dos temas nas instituições escolares.
3. Desenvolvimento: A turma deve ser dividida, por sorteio, em nove grupos.
O grupo deve eleger um@ “contador@ da história”. @ contador@ deve
fazer uma leitura em voz alta do livro e @s outr@s integrantes devem tomar
notas e levantar questões sobre o enredo.
4. Cada um desses grupos deve produzir um “cartaz” com as principais
ideias e questões sobre o livro.
148 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

5. Em equipe, cada grupo deve apresentar o cartaz com um quadro sinóti-


co (que possa dar uma visão do todo) ao grande grupo.
6. Em círculo, o grande grupo deve discutir os cartazes dos colegas, cabendo
“ao mediador” estabelecer links que possibilitem @s participantes trans-
versalizarem as temáticas como tendo ocorrência ordinária na dinâmica
escolar.
7. Tod@s @s participantes da oficina devem avaliar a atividade.
8. Tempo de duração: 240 minutos, divididos em: apresentação da atividade;
apresentação dos livros infantis; reunião em pequenos grupos para leitura
coletiva; construção de cartaz com quadro sinótico do enredo; e apresenta-
ção dos quadros sinóticos para o grande grupo (8 min para cada).
9. Discussão e avaliação.

Dinâmica “Etiquete-me”

Público sugerido: crianças com mais de 10 anos e adolescentes.

Material: fita-crepe e pedaços pequenos de papéis ou post-it; caneta


pilot ou canetinhas esferográficas.

Objetivos: perceber como lidamos, no dia a dia, com uma série de pres-
crições de gênero que vão sendo literalmente “incorporadas”, de maneira
que, muito mais do que fruto da biologia ou meras expressões da natureza,
os gêneros são inscrições culturais que “colam” em nossos corpos.

Tempo de duração: de 60 a 90 minutos.

Recomendações: se houver muitas pessoas, forme grupos pequenos


com cerca de 5 pessoas; em cada grupo, peça que um menino e uma menina
se voluntariem. Peça respeito, consideração pelo corpo do(a) colega e que
não sejam usados termos ofensivos como palavrões.

Etapas:
1. Divididos os grupos, peça que @s alun@s escrevam frases que expres-
sem recomendações, normas, orientações e/ou imposições sobre como
meninas devem usar cada parte do corpo. O mesmo deve ser feito para
Desfazendo o gênero | 149

o corpo do menino voluntário. Escreva no papel ou post-it para colar


a frase na parte do corpo sobre a qual a sentença se refere. Exemplo:
cabelos (para meninas): use sempre longos e bem penteados; (para
meninos): nada de ser cabeludo!; ou orelha: (para meninas) use brincos;
(para meninos): um alargador fica da hora. Voluntári@s devem também
participar desta etapa. SOLICITE A ESCOLHA DE VOLUNTÁRIOS SÓ
DEPOIS DESTE MOMENTO.
2. Voluntári@s de todos os grupos (um casal por grupo) devem se posicio-
nar mais ao centro da sala. O casal do grupo 1 irá para o grupo 2, o do 2
para o grupo 3, assim sucessivamente.
3. Posicionados nos grupos novos, o casal voluntário será etiquetado.
Sugere-se que se inicie da cabeça para os pés.
4. Depois de cada grupo ter feito sua “etiquetação”, peça aos casais que
se posicionem novamente ao centro. Os grupos devem passar pelos de-
mais casais para ver o que há escrito nas outras etiquetas, que não as do
seu próprio grupo.
5. Todas as pessoas, com exceção dos casais, devem se sentar em círculo
em volta d@s voluntárias, os quais serão as primeiras pessoas a falar. O(a)
professor(a) mediador(a) deve solicitar que cada casal fale brevemente
sobre a sensação de serem etiquetados.
6. Em seguida, o(a) professor(a) deve solicitar que as demais pessoas comen-
tem sobre as frases-recomendações escritas, avaliando como chegaram
a elas; o que pensam sobre estas recomendações; se as seguem e como
estas prescrições incidem em suas vidas. É preciso assegurar a fala de
todos(as) e, ao final, fazer uma avaliação sobre estes aprendizados e como
eles nos marcam, também avaliando como estes usos corporais recomen-
dados podem criar hierarquias e desigualdades de gêneros.
150 | Diferenças na Educação: outros aprendizados

BOX 1

Dicas de material audiovisual


• Documentário Encontrando Bianca (disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=4Eb9UCT1138>): trata-se do terceiro vídeo do
conjunto de produções audiovisuais que estava sendo formulado pelo
MEC como material para subsidiar o combate à homofobia nas escolas.
Sua elaboração e distribuição foi suspensa por veto da presidenta Dilma
Rousseff em maio de 2011.
• Os perigos de uma história única: vídeo gravado a partir de uma palestra
realizada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>).
• Documentário Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou
um povo (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Im5qQ9s-
-ohA>): produzido por Sut Jhally, mostra como o cinema norte-americano
foi capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário
ocidental uma visão estereotipada dos povos árabes.
• Videoaula Corpo, gênero e sexualidade (disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=bI-Qr5leFPk>): apresentada pela educadora e
doutora em Educação Silvana Goellner (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul).
• Documentário Re-ensinando gênero e sexualidade (Reteaching
gender and sexuality, disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=r3QstJDidjQ>): produzido em 2008 por um grupo de jovens
do subúrbio de Seattle. Em 2010, criaram um programa de formação
para profissionais da área de saúde, educação e direitos humanos e lan-
çaram o documentário.
• Documentário Não gosto de meninos (disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=ij9baks8i64>): um projeto que reuniu 40 pessoas
com histórias de vida diferentes, com o objetivo de mostrar a realidade
da homossexualidade.
• Minha vida em cor de rosa (disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=CnOAQDrlmxs>): é um filme de ficção europeu (produção
cooperativa entre a Bélgica, França e o Reino Unido) delicioso, dirigido
pelo belga Alain Berliner e lançado em 1997. Trata da história de um
menino, chamado Ludovic, que imagina que deveria ter nascido meni-
na. O filme mostra os preconceitos que a personagem principal e seus
familiares enfrentam em relação a sua “identidade de gênero”.
Desfazendo o gênero | 151

REFERÊNCIAS
BARROS, M. L. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pom-
bagiras. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010.
BELELI, I. Gênero. In: MISKOLCI, R. (Org.). Marcas da diferença no ensino escolar. São Carlos:
EdUFSCar, 2010. p. 45-73.
BOTTOMORE, T. Práxis. In: ______. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1997.
BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CRUZ, E. F. Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola. Psi-
cologia Política, 11(21), p. 73-90, 2011. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/rpp/seer/ojs/
viewarticle.php?id=137>.
DAMACENO, J. O corpo do outro: construções raciais e imagens de controle do corpo feminino
negro: o caso de Vênus Hotentote. In: Fazendo gênero: corpo, violência e poder, 2008. Disponí-
vel em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Janaina_Damasceno_69.pdf>.
GOELLNER, S. A educação dos corpos, dos gêneros e das sexualidades e o reconhecimento
da diversidade. Cadernos de Formação RBCE, p. 71-83, mar. 2010. Disponível em: <http://www.
rbceonline.org.br/revista/index.php/cadernos/article/view/984/556>.
LOURO, G. L. Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M. (Org.). Gênero e saúde. Porto
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______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes,
1997. Disponível em: <http://educacaosemhomofobia.files.wordpress.com/2009/03/nuh-educa-
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______. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, n. 2,
ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf>.
MISKOLCI, R. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica; UFPO, 2012.
PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. (Org.). A prática feminista e
o conceito de gênero. Campinas: IFCH-Unicamp, 2002. Disponível em: <http://www.pagu.uni-
camp.br/sites/www.ifch.unicamp.br.pagu/files/Adriana01.pdf>.
SABAT, R. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista Estudos Feministas, 9(1), p. 4-21,
2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n1/8601.pdf>.

FIGURAS

Figura 1 Retrato do filósofo François-Marie Arouet de Voltaire. Fonte: <http://2.bp.blogspot.


com/-u6RF4xL5SjI/TlYS_CF24nI/AAAAAAAAAu8/4OaZslALs8Q/s1600/VOLTAIRE_
Fran%25C3%25A7ois-Marie-Arouet_Mr-de_1735.JPG>. Acesso em: 26 jul. 2014.
Figura 2 Montagem de Bruno Braga. Fonte: <http://opreh.com.br/tira-o-olho-da-minha-mina-
-rapaz/>. Acesso em: 26 jul. 2014.
Figura 3 “Um sujeito careca e desdentado me convenceu a fazer um seguro”. Fonte: Miskolci
(2010).

QUADRO

Quadro 1 Matrizes teóricas dos estudos de gênero. Fonte: autoria própria.

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