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Relações de Gênero

O estudo das relações de gênero


abrange um campo de pesquisa acadê-
mica interdisciplinar que procura com-
preender as relações entre os gêneros
- masculino e feminino - na cultura e
na sociedade humanas. É uma compre-
ensão que passa pelos homens e pelas
mulheres, diferentes uns em relação
aos/às outros/as e entre si, e compre-
ensíveis em uma perspectiva relacional.
Considera-se ainda que essas relações
são construídas historicamente, marca-
das pela cultura e pelas relações de po-
der que fundamentam uma hierarquia
e uma assimetria social entre homens
e mulheres.
A introdução dos estudos de gê-
nero no Brasil encontrou campo fértil
na história das mulheres, caracterizada
como uma produção de saber interdis-
ciplinar, que ganhou consistência nos
anos 1970. As pesquisas envolveram
esforços de historiadoras, sociólogas
e antropólogas, feministas que tive-
ram coragem de dar voz às mulheres,
retirá-las do apagamento e do silêncio
da História, destacando as “vivências
comuns, os trabalhos, as lutas, as so-
brevivências e as resistências das mu-
lheres no passado” (PEDRO, 2005,
p.85). Nesse avanço das lutas sociais
e das críticas feministas, tem vazão a
controvérsia em torno da história das
mulheres, que parecia sinalizar a exaus-
tão da categoria mulher, vista, muitas

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vezes, como generalizada e universal. gênero. Esse grupo decidiu editar Ca-
Abria-se, então, o campo para os gender dernos Pagu, a exitosa revista de divul-
studies ou o estudo das relações de gê- gação das pesquisas na área de gênero
nero, que ganharam relevância nos Es- e da reflexão epistemológica feminista
tudos Unidos, no início dos anos 1990 no Brasil. A partir disso, abriu-se um
(RAGO, 1998, p.89). campo de pesquisa interdisciplinar que
No Brasil, os estudos das rela- busca compreender como se consti-
ções de gênero tiveram maior visibili- tuem o masculino e o feminino cul-
dade com a tradução e publicação do tural e historicamente, na perspectiva
texto da historiadora norte-americana das relações de gênero. A introdução
Joan Wallach Scott: Gênero: uma catego- dessa categoria iluminou a análise ao
ria útil de análise histórica, em 1990. Para incorporar à experiência a dimensão da
Scott (1995, p.86), “o gênero é um ele- sexualidade e das identidades constru-
mento constitutivo de relações sociais ídas, contrapondo-se à tendência de se
baseado nas diferenças percebidas en- pensar a identidade sexual como algo
tre os sexos; e o gênero é uma forma biologicamente dado (NICOLSON,
primeira de significar as relações de 2000, p.9).
poder”. A compreensão das relações Somam-se aos estudos de gêne-
de gênero passa, então, pela rejeição ro e dos processos de poder e domina-
do caráter fixo e permanente das opo- ção as dimensões classe, raça/etnia, de
sições binárias e pela historicização e geração e de orientação sexual, que ga-
desconstrução dos termos da diferen- nham crescente complexidade. Nesse
ça sexual” (SCOTT, 1995, p.84). sentido, como chamam atenção Rachel
Outro marco na disseminação Soihet e Suely Costa (2008, p.43) “o
da categoria analítica relações de gê- interesse despertado pelo conceito de
nero no Brasil se deve à iniciativa de gênero, nesses termos, é indicativo não
pesquisadoras radicadas na Unicamp apenas da visibilidade dada a proces-
(RAGO, 1998), nomes importantes sos obscurecidos na oposição homens
no debate epistemológico atual, como versus mulheres, mas de sua utilidade
Margareth Rago, Adriana Piscitelli, nas pautas de lutas por inclusão social
Elisabeth Lobo e Mariza Corrêa. Essas dos oprimidos, como da convicção de
mulheres formaram um grupo de es- que as desigualdades de poder se orga-
tudos sobre gênero, influenciadas pelas nizam.”
leituras dos filósofos Foucault e Der- O avanço das pesquisas tem
rida e com fortes interlocuções com permitido compreender melhor a his-
o meio acadêmico norte-americano, tória do sexo e do gênero, como o
que havia introduzido os estudos de citado trabalho do historiador da me-

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dicina Thomas Laqueur, que publicou, é o sexo: “teria o sexo uma história? [...]
em 1992, um livro chamado Making Se o caráter imutável do sexo é con-
sex – body and gender from the greeks to testável, talvez o próprio constructo
Freud, traduzido e lançado no Brasil chamado “sexo” seja tão culturalmente
em 2001, com o título Inventando o sexo: construído quanto o gênero; a rigor,
corpo e gênero dos gregos a Freud. Um das talvez o sexo sempre tenha sido gêne-
novidades de Laqueur foi demonstrar ro, de tal forma que a distinção entre
que, até meados do século XVIII, só sexo e gênero revela-se absolutamente
existia um sexo, o masculino, sendo a nenhuma.” (BUTLER, 2007, p.25).
mulher considerada um macho incom- Nesse sentido, a condição de ser
pleto. Para o autor foram as relações homem e mulher não se restringe ao
de gênero que ressignificaram o sexo e sexo nem ao gênero, ultrapassam esses
constituíram dois corpos e dois sexos, limiares. Assim, o gênero poderia ser
o feminino e o masculino. Mas, como considerado um ato intencional e, ao
entender essa nova configuração? Em mesmo tempo, performático, no sen-
suas palavras “contexto para a articula- tido de construção dramática e con-
ção de dois sexos incomensuráveis não tingente de significado (PISCITELLI,
era nem uma teoria de conhecimento 2004, p.55). “A noção de gênero, por-
nem avanços no conhecimento cientí- tanto, inscreve-se nos debates que as-
fico. O contexto era político. Havia in- sinalam a emergência do pós-moder-
termináveis lutas pelo poder e posição nismo. Desse modo, a ênfase dada por
na esfera pública, altamente ampliada Scott à questão da diferença foi consi-
no século XVIII, e em especial no sé- derada uma ameaça ao feminismo por
culo XIX, pós-revolucionário: entre pesquisadoras/es que permaneceram
homens e mulheres, entre feministas e no campo da modernidade, alegando
antifeministas. [...]. Qualquer que fosse que essa posição precipitaria a frag-
o assunto, o corpo tornou-se o ponto mentação de sua unidade.” (SOHIET
decisivo.” (LAQUEUR, 2001, p.192). e COSTA, 2008, p.44) Por outro lado, a
Mais recentemente, o debate in- performatividade do gênero de Butler,
corporou novas perspectivas, advindas no sentido da fabricação do masculino e
das proposições teóricas da filósofa do feminino, implode a noção de iden-
americana Judith Butler, que proble- tidade vinculada ao sexo.
matizou a categoria de gênero, ao con- Como pontua Joana Pedro, “a
siderar que esta se apoiava na noção categoria de análise “gênero” passa,
de uma ordem biológica binária. Para portanto, por intenso bombardeio, e
Butler, o gênero não é a interpretação não só por ser acusada de ser útil à do-
cultural do sexo, então, interroga o que minação. É também considerada des-

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mobilizante para o feminismo. O que sem dúvida, no mais importante avan-
se reivindica é a retomada da catego- ço isolado da e na teoria feminista no
ria “mulher”, não mais na perspectiva final do século XX, como assinala Jane
anterior, universal e determinada pela Flax (1991, p.226). Definitivamente,
biologia” (2011, p.275). inaugura-se um novo paradigma para
Outras estudiosas veem com compreensão da História.
otimismo a inclusão do gênero no
campo dos estudos feministas. Afinal, Alcileide Cabral de Nascimento
“a superação da lógica binária con-
tida na proposta da análise relacional Referências
do gênero é fundamental para que se BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e
construa um novo olhar aberto às dife- subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2008.
renças”, como declara Margareth Rago
(1998, p.98). A categoria de gênero FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teo-
ria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa
ilumina diferentes perspectivas sobre (Org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Roc-
nós mesmas/os, e é, também, um ca- co, 1991. p.217-250.

minho para desconstruir subjetivida- LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gêne-
des normativas encarceradas na bipo- ro dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
laridade do masculino e do feminino.
NICOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos
“Em síntese, dentre as contribuições Feministas, Florianópolis, v.8, n.2, p.9-41, 2000.
do conceito de gênero, destacam-se:
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da ca-
a rejeição ao determinismo biológico tegoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo,
implícito no uso de termos como sexo v.24, n.1, p.77-98, 2005.

ou diferença sexual; a dimensão rela- ______. Relações de gênero como categoria transversal
cional entre as mulheres e os homens, na historiografia contemporânea. Topoi, Rio de Janeiro,
v.12, n.22, p.270-283, jan.-jun. 2011.
indicando que nenhuma compreensão
de qualquer um dos dois sexos poderia PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno de gênero e
do feminismo. In: COSTA, Claudia de Lima e SCHMI-
existir sem um estudo que os tomasse DT, Simone Pereira. Poéticas e políticas feministas. Flo-
rianópolis: Mulheres, 2004. p.43-66.
em separado; a ênfase no caráter so-
cial e cultural das distinções baseadas RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o Gêne-
ro. Cadernos Pagu, Campinas/SP, n.11, p.89-98, 1998.
no sexo, que contribui para desnatura-
lizar o discurso biológico; a dimensão SOIHET, Rachel e COSTA, Suely Gomes. Interdisci-
plinaridade: história das mulheres e estudos de gênero.
das relações de poder que perpassa as Gragoatá, Niterói, n.25, p.29-49, 2008.
assimetrias e hierarquias nas relações
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histó-
entre homens e mulheres” (SOHIET rica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p.
e COSTA, 2008, p.43). A problemati- 71-99,jul./dez. 1995.

zação das relações de gênero consiste,


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