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historia- do trabalho fem inino. no
contexto do desenvoivim ento económico e sobre á historia do
feminismo em sua relação com a política democrática,.
Atualmente desenvolve .pesquisa que compara a emergência
dos movimentos feministas internacionais no final do-século
X I X cora o feminismo global do final do século X X .
As feministas francesas, e- os dineítos de homem
ivxoavHVd vavao v
JOAN WALACH SCOTT

A CIDADÁ PARADOXAL
As feministas francesas
e os direitos do homérn

2002
© 1996 by Harvard University Press

Título original
On/y Paradoxes to Offer
Publicado segundo acordo firmado com a Harvard University Press

Coordenação editorial
Zahidé Lupinacci Muzart

Tradução do inglês
Élvio Antônio Funck

Revisão técnica
Marco Antônio Toledo Neder

Apresentação
Miriam Pillar Grossi

Revisão
Luís Felipe Guimarães Soares
Rita Maria Xavier Machado
Zahidé Lupinacci Muzart

Editoração
Letras Contemporâneas

Capa
Fábio Brüggemann
Sobre gravura A Versailles, à Versailles! 5 de outubro de 1789,
Anônimo, séc. XVIII. Paris, Museu Carnavalet

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Leny Helena Brunel - CRB 10/442

S427c Scott, Joan W allach


A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do
homem / Joan W. Scott;
tradução de Élvio Antônio Funck; apresentação de Miriam Pillar Grossi;
orelhas de Simone Pereira Schmidt.
Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002.
312 p.
(Ensaios sobre o feminismo) Tradução de: Only
Paradoxes to Offer
IS B N 85-86501-23-9
l.Feminismo.2. Direitos do homem. I. Funck, Élvio
Antônio. EL Grossi, Miriam Pillar. UI. Schmidt, Simone Pereira IV. Título.

C D U 396 [2002]

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa da:


E d it o r a M ulheres
C aixa Postal, 5031
88040-970 Florianópolis, SC
T e l& fa x : (48 ) 233 2164
www.editoramulheres.com.br
e-m ail: editoram ulheres@floripa.com .br
Para Lizzie,
Tony e D on
Sumário

Apresentação: Miriam Pillar Grossi........................................................11

Prefácio............................................................................. 17

1 • Relendo a história do fem inism o...................................................... 23


2* Os usos da imaginação:
Olympe de Gouges na Revolução Francesa...............................49
3* Os deveres do cidadão:
Jeanne Deroin na Revolução de 1848......................... ............ 105
4* Os direitos do “social” :
Hubertine Auclert e a política da Terceira R epública.......... . 155
5 * 0 individualismo radical de Madeleine Pelletier... ....................... 210
6 • Cidadãs mas não indivíduos:
antes e depois do direito ao v o to ...............................................265

Bibliografia........................................................................................... 287

9
Apresentação

Miriam Pillar Grossi

oan W. Scott é urna das autoras mais citadas, no campo dos estu
J dos de género no país. E isso principalmente por três traduções em
português, os textos “Gênero, uma categoria útil de análise histórica” 1,
“Experiência” 2 e um capítulo na coletânea História das mulheres no
Ocidente.3 N o entanto, apesar da notoriedade de Joan W. Scott em
terras brasileiras, este é seu primeiro livro traduzido em português, gra­
ças à iniciativa da Editora Mulheres de Florianópolis.4
A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do ho­
mem foi publicado inicialmente em 1996, em inglês, pela Harvard
University Press, com o título On/y paradoxes to offer (Apenas parado­
xos para oferecer). Quanto ao título da edição brasileira, preferiu-se
acompanhar o da tradução francesa, datada de 1998 e editada pela
Albin Michel, na sua Bibliothèque Histoire. Os dois títulos são ilustrativos
do que este livro pode significar para o feminismo e a história das
mulheres não apenas nos Estados Unidos e na França, mas também
no Brasil. Joan W. Scott, especialista na história da França no século

1 Texto publicado em Educação e Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação/


U F R G S , v. 16, n.2: 5-22, dez. 1990 e nos Cadernos da Organização N ã o -
gouernamental S O S C orp o e Cidadania, Recife, 1992.
2 Publicado em SILVA, Alcione Leite da, L A G O , Mara Coelho de Souza e R A M O S,
Tânia Regina Oliveira Ram os (orgs.). Falas de gênero. Florianópolis: Mulheres,
1999, p. 21-55. Trad. A na Cecília Acioli Lima.
3 SCO TT, Joan W. A mulher trabalhadora. In FRAISSE, Geneviève et PERROT,
M ich elle (o r g s ).H istó ria das m ulheres n o O c id e n te . Porto; S ã o P au lo :
Afrontamento; Ebradií, 1994. V. 4 - O Século XIX, p. 443-76. V. igualmente:
G R O S SI, Miriam; H E IL B O R N , Maria Luiza; RIAL, Carmen. Entrevista com Joan
Wallach Scott, Revista Estudos Feministas, IFCS/UFRJ, v. 6, n. 1, p 114-124.
4 Entre seus trabalhos está sua tese de doutorado realizada em uma comunidade do
sul d a França, Les Verriers de Carmaux: Women, work and jamily , gender and
the politics ofHistory, Flammarion, 1982, e, em colaboração com Judith Butler,
Feminists theorise the political. N e w York: Rontledge, 1992.

11
XIX, é também uma das principais teóricas contemporâneas da histó­
ria das mulheres e do feminismo.
Escrito por uma norte-americana, o livro nos traz um olho: es­
trangeiro sobre a história do feminismo francês, ao mesmo tempo em
que dialoga com um dos principais estereótipos produzidos pelas teó­
ricas dos estudos de gênero, norte-americanas coetáneas, a saber, a
dicotomía igualdade/diferença. De forma incisiva, a autora desconstrói
neste livro a idéia de que haveria dois tipos antagônicos de feminismo,
o da igualdade e o da diferença, mostrando que ambos os conceitos,
muito mais do que posições distintas, são duas estratégias discursivas
utilizadas pelas feministas desde a Revolução Francesa, que vieram
obtendo diferentes rendimentos políticos em sucessivos momentos his­
tóricos. A o analisar os modelos pelos quais as norte-americanas per­
cebem e opõem o feminismo francês ao norte-americano, Joan W. Scott
está também nos ajudando a pensar na diversidade do feminismo con­
temporâneo em diferentes lugares do mundo.
O livro se divide em seis capítulos. N o primeiro, a autora se situa
em relação ao debate e às teorias sobre gênero e história das mulheres,
introduzindo o leitor que não conhece seus trabalhos e re-atualizando
o que os conhece nas suas principais posições. Nos quatro capítulos
seguintes, recom põe a trajetória de importantes militantes feministas
francesas — Olym pe de Gouges, Jeanne Deroin, Hubertine Auclert e
Madeleine Pelletier — , que contribuíram decisivamente para o debate
a respeito da participação política das mulheres na República France­
sa, seja pelo acesso ao voto, seja pelo direito de ser votada. Por detrás
da contradição do Estado francês, que só permitiu o voto das mulheres
em 1944, Joan W. Scott analisa essa luta complexa, que se inicia no
bojo da própria Revolução Francesa e que continua até o presente,
com o é o caso da lei da paridade só recentemente votada na França.
O capítulo 2 é dedicado a Olympe de Gouges, que ousou publi­
car em 1791, a “Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã” ,
referência fundamental para a história do feminismo e a da Revolução
Francesa. Joan W. Scott demonstra, no decorrer do capítulo, com o o
feminismo, m ovim ento que nasce na França daqueles tempos da R e­
volução, deve se defrontar com a ambigüidade que os homens, revolu­
cionários, sentem quanto à representação política e à cidadania das
mulheres. Em sua vida Olympe rompeu com uma série de papéis atri­
buídos às mulheres, iniciando pelo abandono do nome de seu pai e do
de seu marido, passando pela interessante carreira de escritora de p e­
ças abolicionistas e feministas para teatro, culminando com sua con­
denação à morte pela guilhotina em 1793. Acusada de viver de exces­

12
A C ID A D Ã iríARAuO XAL

sos nocivos da* imaginação, Olym pe foi uma pensadora, da mesma


ordem de Rousseau e Voltaire, sem, contudo, ter tido idêntico reconhe­
cimento posterior na história do pensamento filosófico.
O capítulo 3 é dedicado à Jeanne Deroin, militante socialista,
casada com um engenheiro, mãe de três filhos, que após a derrota da
Comuna de Paris, resolve se candidatar ao parlamento para desmas­
carar a própria lei que, sob o manto de “igualdade” dos cidadãos,
excluía as mulheres tanto do voto, quanto da possibilidade de se elege­
rem. N a análise ele Joan W. Scott, Jeanne Deroin é urna mulher fasci­
nante, com idéias e atitudes muito próximas — já em 1849 — de algu­
mas das que as feministas atuais assumem: recusa-se, ao casar, a usar
o sobrenome do marido, reflete profundamente sobre a maternidade e
a relação mãe/filho, propõe uma teoria sobre o indivíduo m oderno que
oscila entre dois modelos: a fusão do casal homem/mulher ou a mulher
independente do homem na procriação. Fugindo ao estereótipo da mãe
com o ideal supremo para mulher, Jeanne Deroin vê a maternidade
com o um trabalho social e não com o um destino biológico; a mãe é
para ela a idealização máxima da cidadania, uma vez que os filhos
são obra da mulher. Utópica, ela propõe que seja o Estado o responsá­
vel pela manutenção material das crianças que ficariam sob a respon­
sabilidade moral das mulheres. A luta de Jeanne Deroin, apesar de
extremamente significativa para a história do feminismo, dura pouco
em solo francês, pois ela é condenada e presa por seis meses em 1850.
A o sair da prisão, em 1851, parte para o exílio na Inglaterra, onde
permanecerá até sua morte em 1894. N o exílio, Jeanne Deroin conti­
nua militando pela causa feminista e socialista, criando uma escola,
publicando jornais, e também aderindo a novos valores de vida, tor­
nando-se vegetariana e buscando um projeto de vida espiritual, que a
aproxima de algumas correntes feministas contemporâneas conheci­
das com o feminismo new-age.
Hubertine Auclert é a personagem do capítulo 4. Autêntica mili­
tante feminista, Hubertine Auclert sai de uma cidade do interior e vai
para Paris aos 25 anos, em 1873. Graças a uma herança familiar,
funda o jornal La Citoyenne e passa a pugnar em favor da causa das
mulheres, ação que desenvolverá durante mais de 50 anos. Joan W.
Scott mostra com o ela atuou no debate político do final do século XIX,
no qual se discutia o significado da cidadania das mulheres, debate
centrado no trabalho da mulher. Num período de intensa defesa de
espaços profissionais masculinos, com o mostra o exem plo dos tipó­
grafos que temiam a inversão de gênero com a entrada das mulheres
no mundo deles, Hubertine Auclert advogava que as mulheres deviam

13
-J

lsí direito ao craoaíhü remunerado E ousou incluir neste mesmo para­


mar o ‘sagrado' trabalho doméstico, desde sempre destinado às mu­
lheres, demonstrando o seu valor econôm ico e o quanto era essencial
para toda a sociedade. Encontramos no discurso de Hubertine Auclert
algumas questões que ainda hoje são evocadas nos discursos feminis­
tas, corno a existência de um “ interesse” particular só das mulheres,
revelado quando do seu ingresso no mundo da política. Este argumen­
to está presente erme aqueles de alguns defensores da lei das cotas,
por exemplo. Para M. Auclert, interesses masculinos e femininos seri­
am opostos; os bim ens se identificariam com os valores"particulares
(egoístas, sexuais; - conseqüentemente defenderíam a guerra e a morte;
enquanto as mulheres se voltam para os valores gerais (altruístas, aman­
tes) e por conseguinte defendem a paz e a preservação da vida. Destaco
entre as questões de extrema atualidade defendidas por Hubertine Auclert
também sua reflexão sobre o significado da linguagem e da inexistência
na língua francesa de nominações no feminino de determinadas profis­
sões, o que a leva a se perguntar com o as mulheres poderíam exercê-las
se elas nem estavam previstas nos dicionários.
O capítulo 5 é dedicado à Madeleine Pelletier, editora do jornal
La Souffragiste, nascida em 1874. Personagem fascinante, que tem
sido alvo de inúmeras biografias na França, ela foi uma das primeiras
médicas-psiquiatras francesas, após conseguir derrubar, em 1902, a
lei que impedia mulheres de fazer residência em asilos psiquiátricos,
local onde paradoxalmente ela foi internada, no final de sua vida, e
morreu em 1939. Marcada pelas descobertas científicas do inconsci­
ente na virada do século XIX para o XX, ela via a identidade feminina
com o uma form a de opressão interiorizada. Para ela a diferença se­
xual era um conjunto de fenômenos psicológicos e não físicos. Fruto de
sua época, Madeleine Pelletier, incarnava o m odelo de individualismo
moderno. Radicalmente oposta às diferenciações entre masculino e
feminino, vestia-se com trajes masculinos com o form a de desconstruir
a diferença sexual e eliminando, assim, a subordinação que os trajes
femininos impunham às mulheres. Grande defensora do voto das mu­
lheres, também dedicou as últimas décadas de sua vida à luta pelo
direito das mulheres à contracepção e ao aborto, sendo uma das pre­
cursoras das principais lutas do feminismo no final do século XX. Joan
W. Scott aponta, em sua análise para o surgimento de novos valores
feministas, que se iniciam com Madeleine Pelletier e que seriam desen­
volvidos, em parte, mais tarde por Simone de Beauvoir, cuja obra é
rapidamente analisada no último capítulo do livro.

14
N o capítulo o, Joan W, Scott retorna as questões levantadas no
início do livro a respeito do feminismo contemporáneo, articulando-o
com as conquistas políticas obtidas pelas mulheres ao longo desses
três séculos. Â reflexão felfa por Joan W. Scott neste livro é de grande
importância não apenas para aquelas/es que se debruçam sobre a his­
toria do feminismo, mas também por aquelas/es que “fazem ” o fem i­
nismo hoje: militantes, teóricas e simpatizantes do movimento feminis­
ta brasileiro. O debate prom ovido por estas quatro mulheres desde a
Revolução Francesa em suas lutas pela representação política femini­
na na Assembléia Legislativa é surpreendentemente contemporâneo e
exemplar, na contraposição ou no reforço de argumentos que continu­
am sendo utilizados: contraposição para quem veta a candidatura das
mulheres, porque a veem com o “antinatural” em relação às funções
reprodutoras próprias de sua fisiología, e, ao contrário, reforço para
quem defende o ingresso das mulheres na política, porque nelas reco­
nhece uma rara “sensibilidade” social que decorre justamente da ma­
ternidade (argumento de Jeanne Deroin, já em 1848).
A o dissecar os discursos produzidos por estas quatro feministas
francesas, ao longo de três séculos, a autora acaba remetendo o/a leí-
tor/a, ao debate atual entre feministas francesas em torno das lutas
pela paridade na representação política das mulheres, debate que divi­
de inúmeras feministas entre “paritárias, igualitaristas liberais, diferen-
cialistas militantes de esquerda, universalistas, etc” .5 Além disto, o li­
vro permite desconstruir estereotipos difundidos por algumas teóricas
feministas norte-americanas sobre o feminismo da diferença, marca, para
algumas do french feminism 6 e posição teórica que também influencia o
campo dos estudos de género no Brasil. Traduções de textos fundadores
são também atos políticos, e a escolha da Editora Mulheres, de traduzir
A cidadã paradoxal, certamente permitirá novas leituras, no Brasil, não
apenas da obra de Joan W. Scott, mas também das interpretações que
têm sido feitas sobre os diferentes feminismos no mundo.6 7

6 Ver a respeito das tutas contemporáneas sobre paridade na França, outro texto de
Joan W. Scott traduzido em portugués: La querelle des Femmes no final do século
XX, na Revista Estudos Feministas. Florianópolis, UFSC, volume 9, número 2, 2001.
7 Sobre a visão equivocada das feministas norte-americanas que classificam o feminismo
francés, cujas principais teóricas são Luce Irigaray, Julia Kristeva e Héléne Cixous, como
o feminismo da diferença, ver excelente artigo de Eleni Varikas: “Féminisme, modemité,
postmodernisme: pour un dialogue des deux cotés de l’océan”, em Le futur antérieur
(París, LHarmattan,, 1993), no suplemento Feminismes au Présent, p.59-84.

15
Prefácio

s debates políticos são freqüentemente mais calorosos quando


O não se consegue fundamentar as questões em jogo na natureza
ou na verdade. E isto que a História nos tem mostrado nas discussões
sobre gênero, especialmente quando se referem aos direitos da mulher
à educação ou à cidadania. Terá sido a Biologia o fator determinante
da capacidade de raciocinar, de refletir moralmente ou de agir na po­
lítica? Seriam reprodução e inteligência conflitantes? E precisamente
porque as respostas a tais indagações sempre foram impossíveis de ser
obtidas, que invariavelmente se procurou impor soluções sob a forma
de leis ou de regulamentos. Em conseqüência, a conduta humana é
guiada com freqüência por leis, que substituem a verdade. Nunca,
porém, se admitiu tal substituição; insistia-se, ao contrário, que toda e
qualquer lei se baseia ou na natureza ou na verdade. Os que logravam
vencer suas idéias atribuíam a vitória alcançada não à ação política
que implementaram , mas à superioridade de seu conhecimento cien­
tífico ou entendimento moral. E foi assim que a influência da lei na
percepção da natureza ficou obscurecida.
Os debates ém torno de gênero procuravam explicar as diferen­
ças entre os sexos invocando a “natureza” , e sempre buscaram perpe­
tuar tais diferenças p,or meios legais. Por uma espécie de lógica circu­
lar, uma presumida essência, seja do homem, seja da mulher, acabou
por constituir-se com o justificativa para leis e atitudes políticas, quan­
do, na verdade, essa “essência” — histórica e contextualmente variá­
vel — não era senão um efeito das leis e das ações políticas.
Tal foi o caso do conceito de cidadania na França. Desde a revo­
lução de 1789 até 1944, cidadãos eram os homens. Diversos eram os
fatores para a exclusão das mulheres: a fraqueza de seu corpo e de sua
mente; a divisão física da m ão de obra, que as tornava aptas apenas
para a reprodução e os afazeres domésticos, e as susceptibilidades
emocionais, que as impeliam a excessos sexuais ou ao fanatismo reli-

17
JO Al Í SCOTT

glüSO. i ' a f a C a d ã a íT iã destaS rdZOOS, in V Q C àV â -5 0 O SUprCiTíd ailCOnda-


de da “natureza” , a qual, convenhamos, era muito difícil de contestan
N ão obstante, as feministas desafiaram a prática de excluir mu­
lheres da cidadania, argumentando que não havia ligação nem lógica
nem empírica entre o sexo do corpo e a aptidão pelo engajamento
político, e que as diferenças de sexo não sinalizavam maior ou menor
capacidade social, intelectual ou política. Seus argumentos, que eram
rigorosos e convincentes, como ficará claro ao longo deste livro, tam­
bém eram paradoxais, isto é, a fim de protestar contra as várias for­
mas de segregação que lhes eram impostas, as mulheres tinham de
agir em seu próprio nome, invocando, dessa forma, a mesma diferen­
ça que procuravam negar.
Os termos que defendiam a inclusão da mulher na política envol­
viam o esforço da busca por uma definição abalizada de gênero, o que
fez com que as feministas defrontassem um dilema sem saída. Esse
dilema chegou até nós na forma de debates sobre “ igualdade” ou “di­
ferença” : serão mulheres iguais a homens, fato do qual decorreria a
única base para se poder reivindicar direitos? ou serão seres diferentes
e, por causa ou apesar das diferenças, com direito a igual tratamento?
Qualquer das duas posições atribui identidades fixas e análogas a ho­
mens e mulheres, ambas endossam implicitamente a premissa de que
pode haver uma definição oficial e autoritária de diferença sexual. Em
conseqüência disso, é aceito com o pacífico que diferença sexual é um
fenôm eno natural — reconhecível, mas imutável — , quando na verda­
de não passa de um daqueles fenômenos indeterminados (tais como
raça e etnia), cujo significado está sempre em discussão.
A intensidade da política feminista — ou das ações feministas e
reações anti-feministas — é conseqüência da indefinição do que seja
diferença sexual; daí é que decorrem também as características para­
doxais das reivindicações feministas por direitos. Forçadas a partici­
par de discussões sobre igualdade ou diferença, que elas próprias não
iniciaram, as feministas francesas de que trata este livro tentaram anu­
lar os termos usados para discriminá-las. Entretanto, assumiram a iden­
tidade grupai que lhes atribuíam, embora recusassem a aceitar as ca­
racterísticas negativas que vinham a reboque disto, a exemplo, noutras
circunstâncias históricas, dos negros, dos judeus ou dos maometanos.
Essa afirmação de identidade por meio do grupo acentuou-lhes, so­
bremaneira, a relevância na área política, isto é, como grupo, era im­
possível declarar as propostas feministas politicamente irrelevantes.
Tais dificuldades, porém, não foram obstáculo para o feminismo;
na verdade, chego mesmo a propor que contribuíram para a sua força

18
política. A posição xemimsta era paradoxal.Segundo a revolucionária
francesa Qlympe de Gouges, eram mulheres que “só tinham parado­
xos a oferecer” : se, por um lado, pareciam aceitar definições de género
com o verdadeiras; por outro, elas as recusavam. Aceitação e recusa
simultâneas punham a nu as contradições e omissões nas definições
de gênero que eram aceitas em no me da natureza e impostas por lei.
As reivindicações feministas revelaram os limites do princípio de liber­
dade, igualdade e fraternidade e levantaram dúvidas em relação a sua
aplicabilidade universal. Criticavam não só o uso que faziam das í dá ias
de diferença sexual, mas também a forma autoritária de pretender
fundamentá-la na natureza. Eis a razão por que a história dessas rei­
vindicações tem grande relevância para nós hoje em dia, visto que os
políticos ainda procuram legislar em tom o de significados de gênero
com base na presumida imutabilidade do masculino e no feminino
supostamente ditada pela própria natureza. Se pudermos entender as
lutas das feministas francesas em termos de uma política de indecisão,
talvez possamos entender melhor e, portanto, abordar de forma mais
nítida os conflitos, os dilemas e os paradoxos de nossos tempos.

Este livro se formou em contextos nos quais as questões relativas


ao fator “ diferença” foram primeiro abordadas teoricamente e depois
debatidas e examinadas. Durante 1987 e 1988, um seminário sobre
gênero no Institute for Advanced Study levou-me a apresentar um tra­
balho sobre Olympe de Gouges como uma oportunidade de pensar a
teoria feminista em termos históricos concretos. (Tinha também em pe­
nho em demonstrar as possibilidades de uma história teoricamente
informada com o uma resposta à feroz resistência que meu interesse na
teoria pós-estruturalista encontrou entre muitos historiadores.) Já me
decidira a escrever sobre Olympe de Gouges para uma conferência
sobre o bicentenário da Revolução Francesa, portanto em 1989, orga­
nizada por Leslie Rabine e Sarah Melzer, em Irvine, na Universidade
da Califórnia. Embora o assunto devesse se restringir aos “efeitos da
Revolução sobre mulheres no século X IX” , julguei impossível abordá-
lo, antes de algumas considerações sobre a própria Revolução em si, e
Olym pe de Gouges, como uma personalidade feminista importante,
parecia-me um bom ponto de partida. Depois que apresentei meu tra­
balho, Donna Haraway e eu tivemos uma daquelas longas conversas
que acabam por se tornar especialmente instigantes. Senti-me estimu­
lada, então, a estudar mais casos dos séculos XIX e XX e a escrever um
livro sobre a história do feminismo francês, prosseguindo assim no
estudo da desconstrução da oposição “igualdade versus diferença” ,

19
Ju-iiM v\. Sl u i í ,•

que iniciara com Olympe de Goug.es. E, sob a influência do entusias­


mo que tais conversas geram amiúde, comecei a pensar nas outras
feministas que incluiría no livro.
Atendendo, em abril de 1991, a um convite da Washington
University, em Saint Louis, para proferir as conferências Tobias e
Hortence Cohén Lewin, fiz a pesquisa e os rascunhos que preliminar­
mente constituiríam os capítulos 2 a 5 deste livro. N o outono seguinte,
apresentei versões revisadas dos futuros capítulos 3 a 5 nas conferên­
cias Cari Becker, da Cornell University; e, mais tarde, ainda outras
versões dos capítulos 1, 3, 5 e 6, no Instituto de Ciências Humanas de
Viena. Essas conferências não apenas foram a oportunidade de crista­
lizar meu projeto, como ainda a ocasião de submetê-lo a urna inteli­
gente platéia de professores e alunos.
Foram de grande ajuda para a elaboração deste livro, as respos­
tas críticas das platéias, as perguntas e as sugestões de alunos, colegas
e amigos — tudo isto num contexto de trocas de idéias oriundas de
ininterruptas pesquisas de alta erudição, tanto em assuntos feministas
propriamente ditos, quanto em tópicos genéricos que, de alguma for­
ma, os tangenciam. O fato de muitas das trocas mais frutíferas terem
ocorrido em centros de feminismo — o Centro Pembroke para o Ensi­
no e a Pesquisa sobre Mulheres, em Brown, o Programa de Estudos
sobre a Mulher na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, para
mencionar apenas dois — é testemunho da importância vital que es­
sas instituições têm assumido.
Entre meus melhores críticos têm estado meus alunos, muitos dos
quais são agora pesquisadores. Suas perguntas e seus desafios diretos
têm me ajudado a tornar mais claros meus argumentos e a refinar
minhas interpretações. Eles também me reconduziram a fontes que eu
tinha desprezado ou que haviam escapado a minha observação, além
de partilhar generosamente comigo suas referências e seus insights. A
amizade e o engajamento crítico dos meus alunos fizeram com que o
ensino, além uma atividade integral, se tornasse uma parte indispensá­
vel de minha vida acadêmica.
Agradeço aos seguintes alunos, colegas e amigos por suas suges­
tões e ajuda, quer na indicação de fontes, quer em capítulos em prepa­
ração: Andrew Aisenberg, Leora Auslander, James Bono, Wendy Brown,
Joshua Cole, Marianne Constable, Drucilla Cornell, Paul Friedland,
Donna Haraway, Steven Hause, Carla Hesse, Jonathan Kahana, Lloyd
Kramer, Ruth Leys, Harold Mah, Mary Louise Roberts, Sylvia Schafer,
Charles Sowerwine, e Hayden White. Debra Keats forneceu traduções
de qualidade, auxílio em pesquisa e sugestões editoriais. Por sua leitu-

20
PR EFA C IO

ra cuidadosa e cansativa de todo o manuscrito sou grata a Iarr Burney,


Judith Butler, Christina Crosby, Laura Engelstein, Donald Scott e
Eüzabeth W eed. Denise Riley merece um agradecimento especial por
sua leitura crítica e minuciosa do manuscrito durante um período que
devería ter sido o de suas férias de verão. Dois leitores anônimos para
a Harvard University Press deram seu precioso apoio ao indicar inco­
erências de argumentação e estruturação.
Pesquisadores não podem trabalhar .sem biblioteca, e trabalhei
em várias enquanto escrevia este livro, em Paris, a Bibiiothèque
National, a Bibiiothèque Marguerite Duránd, e a Bibiiothèque Historique
de la Ville de Paris; em Princeton, a Firestone Library of Princeton
University e a Historical Studies/Social Sciences Library no Institute
for Advanced Study. Nesta, devo agradecimentos especiais a Elliott
Shore, Faridah Kassim, Marsh a Tucker e Rebecca Bushby, que me aju­
daram a localizar fontes obscuras, me ensinaram como acessar infor­
mações no computador e fizeram tudo com paciência, inteligência, e
entusiasmo.
A preparação técnica do manuscrito, com todas as suas compli­
cações, foi feita por M eg Gilbert, uma secretária que é extraordinária
tanto pela paciência com meus defeitos pessoais, quanto pela excelên­
cia ímpar de seu trabalho.
Sou de m odo especial feliz em ter uma família de colegas intelec­
tuais e bons amigos. Nela se encontram meus críticos mais severos e
os que me deram o mais irrestrito apoio. Nela encontrei ajuda para
elaborar muitas das questões aqui tratadas, às vezes de forma direta,
às vezes por m eio de idéias e livros apenas genericamente menciona­
dos e às vezes em discussões sobre assuntos completamente diferen­
tes. Sou absolutamente grata por sua constante presença em minha
vida e por tudo o que me deram. A essa minha família dedico o presen­
te livro.

21
Relendo a História do Feminismo

A q u e le s q u e n ão co n se g u e m reler
são o b rig a d o s a ler a m e sm a história e m toda parte.

(Roiand Barthes)

ste livro é uma tentativa de repensar a


! r ;“'j história do feminismo, tomando com o
... ■ . ponto de partida o exame de certas cam­
panhas pelos direitos políticos da mulher na
França de 1789 a 1944. Pela análise dos escri­
tos e das ações de militantes políticas feminis­
tas em diferentes momentos históricos, procu­
rei apresentar uma alternativa ao enfoque con­
sensual da história do feminismo, herdada das
feministas do século X IX . Elas construíram uma
história que não poderla ter se afastado das gran­
des metas de evolução do seu tempo; uma his­
tória teleológica, que progride cumulativamen­
te em direção a um objetivo ainda não atingi­
do; uma história na qual as mulheres, inevita­
velmente, encontraram dentro de si próprias os
meios para lutar contra sua exclusão das políti­
cas democráticas; uma história na qual as fe­
ministas transformaram, por força de sua ima­
ginação, as ações caóticas e disparatadas das
mulheres do passado em uma tradição organi­
zada e contínua. G erações diversas tiraram
dessa história outras lições morais, relaciona­
das com seus próprios debates teóricos. A ver­
são que temos no final do século XX é que in­
variavelmente as feministas do passado exigi­
am com insistência ou igualdade ou diferença,
e que qualquer desses enfoques seria (e ainda

23
Ju an w . bCOíT

é) urna estrategia tão bem sucedida quanto a


1 As historias do feminis­ outra.1
mo fra n c ê s in c lu em Essa versão, herdada do século XIX, nos
ABENSOUR, 1979;
impede de analisar, e mesmo de ver, o reverso
A L B IS T U R & A R M O G A -
TH E , 1977; BIDELM AN,
da experiência feminista, ou seja, as contradi­
1982; G R IN B E R G , 1926; ções não resolvidas, as repetições obsessivas que
HAUSE & KENNEY, parecem condenar uma geração a reviver o di­
1984; K LEJM AN & R O - lema da precedente, e a incapacidade de asse­
CH EFO RT, 1989; McMI-
gurar o direito de igualdade de representação
L L A N , 1981; M O S E S ,
1984; S O W E R W I N E , política, mesmo depois de o voto da mulher —
1982; SULLE RO T, 1966; uma reivindicação tantas vezes repetida — ser
THIBERT, 1926; L.TILLY uma prática irrevogável. Uma história feminis­
& C. TÍLLY, 1981.
ta que admite sem discutir a inevitabilidade do
progresso, a autonomia de agentes individuais
e a necessidade de escolha entre igualdade e
diferença reproduz sem qualquer questionamen­
to os termos do discurso ideológico sob cujos
efeitos o feminismo tem operado. N a verdade,
o que lhe tem faltado é o devido distanciamento
analítico.
Meu senso da necessidade de um enfoque
diferente para a história do feminismo foi des­
pertado por uma reportagem do New York Ti­
2N e w York Times, 31 dez. mes sobre a França.2 Insatisfeito com o diminu­
1993. (G A S P A R D et alii, to número de mulheres que exercia mandatos
1992).
na Assembléia Nacional (a proporção é menor
que em qualquer outra democracia da Europa
ocidental, de três a seis por cento, desde 1944,
quando se reconheceu o voto feminino), um gru­
po, na maioria mulheres, começou a insistir que
houvesse paridade de gêneros na Assembléia.
Em reivindicações que o próprio grupo reconhe­
ceu como “um tanto utópicas” , tentaram apro­
var uma lei que deveria garantir para as mulhe­
res a metade das cadeiras do parlamento fran­
cês. “A exclusão das mulheres tem feito parte
da filosofia política da França desde a Revolu­
ção” , disse Claude Servan-Schreiber, cujo livro,
Au Pouuoir citoyennes!,é uma espécie de mani­
festo do grupo. “As mulheres da minha geração
— tenho cinqüenta e cinco anos — não tive-

24
RELENDO A HISTÓRIA DO FEMINISMO

ram que lutar para ter direito ao voto” , acres­


centa ela, “mas nada aconteceu aqui desde a
época em que o sufrágio universal” foi aprova­
do há mais ou menos cinquenta anos. Eu acres­
centaria que o atual movimento a favor da pa­
ridade é uma tentativa, em roupagem nova, de
enfrentar um problema anterior ao sufrágio, que
Servan-Schreiber, com muita precisão, faz re­
montar à grande revolução dem ocrática de
1789.
O problema é descobrir com o as feminis­
tas poderiam dar à mulher o status de indiví­
duo autônomo, auto-representável e com ple­
nos direitos políticos numa república democrá-
3 S o b re essa questão v. tiCa . 3 O problema poderia também ser visto da
FRAISSE, 1994. seguinte forma: por que tem sido tão difícil, por
tanto tempo, estender às mulheres o que pro­
meteram a Revolução e qualquer uma das re­
públicas, depois, proclamadas, isto é, liberda­
de, igualdade universal e direitos políticos para
todos? A resposta exige algo mais do que uma
crônica da luta heróica das feministas, das trai­
ções imerecidas e dos erros estratégicos (em ­
bora nem mesmo o presente relato esteja livre
de conflitos e traições). Exige algo mais que uma
história interna do movimento feminista trata­
da c o m o secu n d á ria no c e n á rio p o lític o
“maior” , mas também algo mais do que uma
explicação que dependa de fatores — quer so­
ciais, quer econômicos — precedentes e exter­
nos à política, ou então de razões com as quais
os próprios políticos justificam suas ações. A
resposta, na verdade, exige que os conflitos re­
correntes do feminismo sejam lidos com o sin­
tomas das contradições nos discursos políticos
que produziram o feminismo, contradições para
as quais o feminismo apelava, ao mesmo tem­
po em que as desafiava. Tratava-se de discur­
sos sobre individualismo, sobre direitos e obri­
gações sociais do indivíduo, que republicanos
(e alguns socialistas) lucubravam para organi-

25
JOAN V/ 3COlí

zd.T õ. insiiiiuçao da cidadania dsmocíaiiGã dei


França.
Mesmo enquanto escreviam suas próprias
histórias de progresso, as feministas tinham
consciência do caráter repetitivo de suas ações.
Em 1913, a psiquiatra e militante socialista
Madeleine Pelletier associava em seus escritos
os movimentos feministas aos turbulentos m o­
vimentos revolucionários do século XIX. Porém,
co m o C laude Servan-Schreiber, em 1993,
Madeleine Pelletier já situava sua origem no trau­
ma da primeira Revolução. Foi então, dizia ela,
que o feminismo “ aprendeu com o enunciar to­
Citado em SOW ERW INE das as reivindicações por seus direitos” .4 A le­
& M A IG N IN , 1992, p.
gitimidade dessas reivindicações e sua satisfa­
102.
ção dependiam do reconhecimento de que a
proclamação de direitos da Revolução não se
coadunava com a recusa dos direitos de cida­
dania que a própria proclamação impunha à
mulher. Aquilo, porém, que era uma evidente
contradição para as feministas, não era tão
óbvio para os legisladores, que reiteradamente
lhes negavam o direito de voto com base em
diferenças biológicas.
E é assim que o tema da repetição na his­
tória feminista está ligado sistematicamente a
idéias de incoerência e incongruência, e a dis­
cussões em torno do que era ou não contraditó­
rio. Esse problema, porém, ultrapassava o con­
flito entre princípios universais e práticas de
exclusão (algo presumivelmente reconciliável),
atingindo outro problema bem mais difícil de
tratar, o da “diferença sexual” . Quando se legi­
timava a exclusão com base na diferença bioló­
gica entre o homem e a mulher, estabelecia-se
que a “diferença sexual” não apenas era um
fato natural, mas tam bém uma justificativa
ontológica para um tratamento diferenciado no
campo político e social. N a era das revoluções
democráticas, “mulheres” tornavam-se excluí­
das políticas por artes de um discurso baseado

26
RELENDO A HISTÓRIA D I FEMINISMO

em diferença sexual, 0 feminismo era um pro­


testo contra a exclusão política da mulher: seu
objetivo era eliminar as “diferenças sexuais” na
política, mas a reivindicação tinha de ser feita
em nome das “ mulheres” (um produto do pró­
prio discurso da “diferença sexual” ). Na medi­
da em que o feminismo defendia as “'mulheres” ,
acabava por alimentar a “diferença sexual” que
procurava eliminar. Esse paradoxo — a neces­
sidade de, a um só tempo, aceitai e cecinar a
“diferença sexual” — permeou o feminismo
como movimento político por toda a sua longa
história.
A dificuldade no trato com a idéia de pa­
radoxo foi descrita em 1788 por Oiym pe de
Gouges (que mais tarde garantirla seu lugar na
historia do feminismo como autora da Declara­
ção dos direitos da mulher e da cidadã, 1791).
Num longo tratado intencionalmente inspirado
no de Jean-Jaques Rousseau, ela estabeleceu
sua própria versão do contrato social, acrescen­
tando um conjunto de observações sobre filo­
sofia, ciência, progresso, uma lista de propos­
tas de reforma política, além de comentários
sobre a situação do teatro na época . A certa
altura de sua obra, num comentário paralelo
sobre os maus efeitos que recaem sobre a soci­
edade, quando artesãos e comerciantes (cuja
5 "Si j ’allois plus avant sur
cette matière, je pourrois
ambição os leva — com perigo para a ordem
m ’étendre trop loin, et social — a desviar de seu lugar costumeiro, ou
m ’ attirer 1’ inimitié des que lhe é próprio por vocação) se imiscuem nas
hom m es parvenus, qui, coisas pertinentes à ciência e à erudição, a au­
sans réfléchir sur m es
tora faz uma pausa em sua diatribe com a se­
bonnes vues, ni ap p ro -
fo n d ir m es b o n n e s guinte observação: “Se eu prosseguir com esse
intentions, me condam - assunto, irei longe demais e atrairei a inimizade
n e ro ie n t im p it o y a b le - dos novos ricos que, sem refletir sobre minhas
ment comme une femme
boas idéias ou apreciar minhas boas intenções,
qui n’a que des parado-
xes à offrir, et non des
vão me condenar sem piedade por ser eu uma
problémes fáciles à résou- mulher que só oferece paradoxos, e não proble­
dre". (GOUGES, 1788, p. mas fáceis de resolver” .5 Para mim, “uma mu­
23). lher que só oferece paradoxos, e não proble-

27
mas fáceis de resolver53 é um comentário que
resume a situação de Oiympe de Gouges e das
feministas de sua época e das épocas subse-
qüentes. O paradoxo consubstancia-se não so
no fato de que Oiym pe de Gouges conteste
idéias amplamente consolidadas sobre os be­
neficios da educação e do progresso científico,
mas também no fato de que a própria posição
de Oiym pe de Gouges com o mulher na França
revolucionária seja produto de paradoxos dos
quais era absolutamente consciente.
A exemplo do que acontece hoje, na ép o­
ca de Oiympe de Gouges, o vocábulo “parado­
xo” era freqüentemente usado fora do seu senti­
do técnico. Os lógicos o definem tecnicamente
com o uma proposição que não pode ser resol-
vida, que é verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
(O dicionário Robert dá com o exem plo a afir­
mação do mentiroso: “Eu estou mentindo” ). Para
a retórica e a estética, o paradoxo é um sinal de
capacidade de equilibrar pensamentos e senti­
mentos complexamente contrários uns dos ou­
tros e, por extensão, da criatividade poética. O
uso comum do termo guarda resquícios desses
significados formais e estéticos, mas com maior
freqüência emprega-se o vocábulo “paradoxo”
para significar uma opinião que desafia o que é
dominantemente ortodoxo, que é contrária à tra­
dição (literalmente: transgride a doxa). O para­
doxo marca sua posição de enfrentamento à tra­
6 P ara o significado dos dição, acentuando as diferenças entre ambos.6
v o c á b u lo s p a r a d o x o Aqueles que fazem circular um conjunto de ver­
( ‘paradoxe’) e contradi­
dades desafiadoras, sem, contudo, abalar as
ção ( coníradiction’ ) v. Le
Petit Rohert, 1986, v o l.l,
crenças ortodoxas, criam uma situação que até
p. 1353 e 380, respecti­ certo ponto se coaduna com a definição técni­
vamente. ca do paradoxo.
A historia do feminismo, porém, não é ape­
nas urna historia de mulheres diferentes emitin­
do opiniões discordantes; tampouco de “mulhe­
res que reivindicam os direitos do H om em ” , ou
seja, não se trata de uma história que constitua

28
RELENDO A HISTÓRIA DO FEMINISMO

um exemplo de oximoro, isto d, não se trata do


que retoricamente se entenda com o a reunião
de palavras cujo senso se contradiga. Os para­
doxos a que me refiro não são estratégias de
oposição, mas elementos constitutivos do pró­
prio feminismo. A história do feminismo é a his­
tória de mulheres que só tiveram a oferecer pa­
radoxos não porque — como queriam os críti­
cos m isóginos — • a capacidade racional da
mulher seja deficiente ou a essência de sua na­
tureza seja fundamentalmente diferente, nem
porque o feminismo, de algum modo, não con­
seguiu alinhar teoria com prática, mas porque
o feminismo ocidental e historicamente m oder­
no é constituído por práticas discursivas de po­
lítica democrática que igualaram individualida­
de e masculinidade.
A palavra “ indivídu o” tem significado
ambíguo em seus vários usos. Por um lado, o
indivíduo é o protótipo abstrato do ser huma­
no; por outro, é um ser único, uma pessoa dife­
rente de todas as outras de sua espécie. A pri­
meira definição foi muito usada em teoria polí­
tica com o base da reivindicação (feita na Fran­
ça pelos filósofos do Iluminismo e por políticos
revolucionários) segundo a qual havia direitos
naturais e universais (de liberdade, de proprie­
dade, de felicidade) que davam ao homem um
direito comum à cidadania política. Os filóso­
fos revolucionários fizeram com que o indivi­
dualismo abstrato se tornasse a base retórica
de sua república, muito embora, historicamen­
te, as repúblicas não se tenham baseado nes­
7Sobre a história do repu­ sas noções abrangentes.7 A segunda definição
b lic a n is m o fra n c ê s v. faz-se presente quando filósofos de idéias tão
BRUBAKER, 1992;
díspares quanto Diderot e Rousseau articula­
C A M P B E L L , 1958; N I -
CO LET, 1982; R E Y N O L ­
ram a noção de um eu único e especificaram
DS, 1986; ROSAN- essa unicidade por sua diferenciação em rela­
V A L L O N , 1990 e 1992a; ção a um “outro” . Esse “outro” estabelecia as
e T H O M P S O N , 1958. fronteiras da existência do eu, bem com o suas
qualidades e características, conforme se per-

29
cabe no verbeíe "individuo” na hncgclopéche.

P e d r o é um h om ern, Paulo é urn h o m e m .


Eles pertencem à mesma espécie, m as se distin­
g u e m m u tu a m e n te p o r n u m ero s a s diferenças.
U m é bonito, o outro é feio ; um é instruído, o
ou tro ignorante. C a d a um é e tim ológ ica m en te
um in d iv íd u o p o r q u e não p o d e ser d ivid id o e m
outro sujeito q u e possa ter existência separada
3 "Fierre est un hom m e, da dele. S ua s características são tais q u e, to m a ­
Paul est un hom m e, ils das e m conjunto, não p o d e m ser aplicadas a nin­
appartiennent à la m sm e
g u é m mais sen ã o a ele .8
espèce; mais ils différent
num ériquem ent par les
différences qui leur sont Tais diferenças não formavam categorias;
propres. LLun est b ea u , era precisamente sua interminável variedade que
l’autre laid, l’un savant,
distinguia os indivíduos uns dos outros. O que
l’autre ignorant, et un tel
sujet est un indiuidu
a espécie humana tinha em comum, conforme
s u iv a n t l’é ty m o lo g ie , essa definição, era sua individualidade, o fato
parce q u ’on ne peut plus de que cada pessoa era diferente de todas as
le diviser en n o u v ea u x outras. E exatamente por uma relação de con­
sujets q u i ay en t u n e
traste que se estabelece a individualidade. Essa
ex iste n c e ré e lle m e n t
in d é p e n d a n t e de lui. noção de indivíduos radicalmente diferentes
F a s s e m b la g e de ces entrava em choque com a idéia política do in­
pro p rié tés est tel, q u e divíduo abstrato, que procurava articular algo
prises ensemble elles ne
comum ao ser humano que fosse de ordem mais
sauraient convenir q u ’a
lu i".[E n c y c lo p é d ie , ou
essencial. N a verdade, foi a busca de uma base
Dictionnaire raisonné des comum para a comunidade política que tornou
Sciences, des arts, et des intolerável o tipo de diferença aqui articulado.
m étiers, 17 v o l. N e u - Para os teóricos políticos do tempo da R e­
fchátel, 1751-1765, vol.
volução Francesa, o indivíduo abstrato expres­
8, p. 684-5). (Citado d a­
qui po r diante, ap en as sava essa essência comum a toda espécie hu­
com o Encyclopédié) mana. Seus direitos eram considerados natu­
rais, porqu e (nas palavras do M arquês de
Condorcet) “são derivados da natureza do ho­
9 C O N D O R C E T , 1787, m em ” , sendo este definido com o “um ser sensí­
v o l.9, p. 14, citado em v e l [...] capaz de raciocínio e dotado de idéias
W E L C H , 1984, p . l l .
morais” .9 A fim de que todos os seres humanos
pudessem ser concebidos como iguais, dentro
desse ponto de vista, era necessário que os in­
10 U m exem plo de com o divídu os fossem abstraídos das categorias
esse processo de abstra­ diferenciadoras atribuídas a nascimento, famí­
ção funciona pode ser en­
lia, riquezas, ocupação, propriedade e religião,10

30
RELENDO A HISTORIA DO FE' D? H504C

rontrado no comentário o qus lambem acarretava seu trafámente corno


q u e o Corrí te de C ier-
seres incorpóreos, independentes de suas carac­
rñont-Tonnerre roo sobre
os judeus, no fim da R e­
terísticas físicas distintivas de fisionomia, cor
volução Francesa: "D eve­ da pele e sexo. Foi essa abstração que tornou
mos recusar tudo aos ju ­ possível estabelecer uma identidade humana
deus corno nação e dar- fundamental, urn conjunto de características
Ihes tudo com o individu­
universais, e, assim, foi aberto o caminho para
os [...] E na qualidade de
in d iv id u o s q u e d e v em que se pensasse na igualdade política, social e
re c e b e r a c id a d a n ia ". até econômica. Se os seres humanos eram fun­
(BR UBA K E R , 1992). damentalmente os mesmos, todos eles poderí­
11LUKES, 1973, p. 152-3.
am ser vistos com o um só indivíduo. O indiví­
V., ta m b é m , M E H T A , duo abstrato é que era esse indivíduo singular e
1990; e GAUCHET, único.11
1979. S obre o liberalis­ Mas precisamente por se referir a um tipo
mo francês v. H O LM E S ,
singular, possuidor de “um certo conjunto de
1984; W E L C H , 1984;
LOGUE, 1 9 83 ; e características e tendências psicológicas que
B O U R R IC A U D , 1991. não variavam ” ,12 o conceito abstrato do indiví­
S o b re o fem inism o e a duo podia também funcionar para excluir aque­
teoria política liberal, v.
les que se julgava não possuírem as caracterís­
FAURÉ, 1985, p.106; LE
DOEUFF, 19 90 ; e
ticas exigidas. N o final do século XVIII e no iní­
D IM O C K , 1990 e 1992. cio do século XIX, psicólogos sensualistas da­
S obre a teoria democráti­ vam ênfase à base psicológica da cognição, le­
ca e a exclusão das m u­ vantando dessa forma a questão da diferença.13
lheres, v. FRAISSE, 1989.
Quando se tomavam órgãos do corpo com o a
fonte das impressões e das experiências do in­
12 LUKES, 1973, p.146.
divíduo, então a cor da pele em alguns casos e
os órgãos de reprodução em outros se torna­
13W E L C H , 1984.
vam sinalizadores da habilidade humana. Os
psicólogos usavam essas diferenças orgânicas
para distinguir entre aqueles que eram exem ­
plos do indivíduo humano (homens brancos)
por sua razão e integridade moral e aqueles
(quaisquer outros — mulheres e, no início, tam­
bém os negros) cujas características naturais
supostamente impediam que correspondessem
à altura do indivíduo humano então exemplar.
Dessa form a, se por um lado, Pierre-Jean-
Georges Cabanis, doutor em Medicina, argu­
mentava que todos os seres humanos partilha­
vam de uma sensibilidade visceral perante o
sofrimento alheio e, portanto, da capacidade de

31
comportamento moral, por outro lado ele esta™
belecia uma diferença entre a sensibilidade pro­
funda e desejável do homem e os sentimentos
efêmeros da mulher. Tais diferenças decorriam
das diferenças de seus órgãos internos e deter­
minavam seus papéis sociais. Os homens eram
por natureza seres morais completos (e, portan­
to, melhores representantes do ser humano); as
14 C A B A N IS , 1802. A gra­ mulheres não eram bem assim.14 Aqui, então,
deço a Andrew Aisenberg aparecia uma das contradições úteis, e mesmo
por esta referência.
necessárias, ao conceito de indivíduo abstrato:
articulado com o a base fundamental de um sis­
tema de inclusão universal (contra as hierarqui­
as e privilégios de regimes monárquicos e aris­
tocráticos), tál conceito podia também ser usa­
do com o um padrão de exclusão ao definir
com o não indivíduos, ou menos do que indiví­
duos, aqueles que se diferenciavam da figura
prototípica do ser humano.
Quando o individualismo abstrato se refe­
ria a esse indivíduo prototípico, fazia uma g e­
neralização sobre todos os seres humanos e ao
mesmo tempo evocava uma noção de individu­
alidade com o sendo única. Para que se pudes­
se conceber, porém, a unicidade de um indiví­
duo, exigia-se ainda uma relação de diferença.
Afinal, o que era um indivíduo senão uma uni­
dade distinta? C om o distinguir sua natureza
unitária a não ser que se lhe imponham limites,
contrastando-a com outras? Em outras palavras,
a individualidade exigia a própria diferença que
a idéia do indivíduo humano prototípico pre­
tendia negar.
Orientado com a finalidade de eliminar
privilégios políticos, o conceito do indivíduo
abstrato ao m esm o te m p o p r o v o c o u e
desconsiderou questões sobre o processo que
esta b elecia os lim ites da in d ivid u a lid a d e.
Desconsiderá-lo, porém, não era resolvê-lo ou
eliminá-lo; o problema da diferença perm ane­
cia. O indivíduo abstrato, um tipo singular com

32
RELENDO A HISTÓRIA DO FEMINISMO

características específicas, não. permitia nem a


existência de .variedades de indivíduos, nem o
papel de um outro que garantisse a existência
de qualquer indivíduo. Todavia, a noção de in­
dividualidade carregava consigo também uma
idéia de distinção e de diferenciação.
Alguns teóricos dos.direitos da mulher,
entre eles Condorcet, refletiam que a utilidade
do individualismo abstrato para a definição da
participação política estava exatamente em sua
deliberada despreocupação com a diferença:
“Seria difícil provar que as mulheres são inca­
pazes de exercer os direitos de cidadania. For
que indivíduos sujeitos à gravidez e a outras in­
disposições passageiras seriam incapazes de
exercer direitos que ninguém sequer sonhou em
tirar de pessoas que sofrem da gota o inverno
15C O ND O R CE T , 1790a, p. inteiro ou que se resfriam facilmente?” 15 As di­
98. ferenças sociais e as relações diferenciadas exis­
tiam, é claro, mas não se pretendia levá-las em
conta para fins de determinar participação po­
lítica formal. Condorcet reconhecia que a pró­
pria igualdade política era um conceito para­
doxal, que necessariamente ignorava as dife­
renças que devia também reconhecer (a fim de
declará-las irrelevantes).
Condorcet, porém, defendia uma posição
claramente minoritária na história da política
francesa. A maneira mais típica de ver a indivi­
16 Isso não quer dizer que dualidade e a diferença na política explicava a
a individualidade do ho­ diferença com o uma função de gênero, ideali­
m em branco n ão tenha zada às vezes com o uma divisão da função
sido, igualmente, definida
reprodutiva, e às vezes com o a expressão natu­
pelo contraste de cor ou
de civilizações, mas indi­
ral, e portanto inquestionável, do desejo hete­
ca que a diferença dos rossexual.16 Nesse enfoque, a variedade infini­
sexos era importante para ta das diferenças entre o eu e o outro era redu­
conceituar a individuali­ zida a uma questão de diferença sexual: a mas­
d a d e masculina, que se
culinidade se igualava a individualidade, e a
to rn o u u m a d im e n sã o
significativa d a identida­
feminilidade com a alteridade, numa posição
de pessoal e social a par­ fixa, hierárquica e imóvel (a masculinidade não
tir do fim do século XVIII. era vista com o o outro da feminilidade). O in-

33
JCtó'lW SCOTT

dividuo político, portanto, ora eíqo corno sondo


ao mesmo tempo universal e masculino; a m u­
lher não era um indivíduo, não só por ser n ac­
ido ática ao protótipo humano, mas também
porque era o outro que confirmava a individua­
17 Os estudos do historia­ lidade do indivíduo (masculino).17
dor am erican o Michael
Uma passagem do registro oficial da C on­
W arner sobre o individu­
alism o a m e r ic a n o e a
venção Nacional de 1794 ilustra a maneira pela
id e n t id a d e in d iv id u a l qual diferença — para fins de definição da in­
cham aram m inha aten­ dividualidade que conferia cidadania política —
ção sobre as contradições era sinônimo de diferença sexual. Em 1794 os
inerentes à noção de in­
revolucionários (que procuravam derrotar os in­
divíduo. S eg u n d o o A.,
n a A m é ric a d o sécu lo gleses no Caribe) aboliram a escravatura e con­
XIX, a heterossexualida- cederam a cidadania a antigos escravos. (H o ­
de era a solução das con­ mens de cor livres já a tinham obtido em 1792.)
tra d iç õ e s . (W A R N E R ,
Quando foi proclamada a emancipação, os dois
1990; 1991; 1992,
1992a e 1992b).
representantes negros da Assembléia caminha­
ram até a tribuna, ali se abraçaram e recebe­
ram um beijo do presidente. Foi então que o
Deputado Pierre-Joseph Cambon (que também
era membro do Comitê de Segurança Pública)
tomou a palavra: “Uma cidadã de cor, que as­
siste regularmente às sessões da Convenção,
sentiu uma alegria tão grande ao ver-nos dar
liberdade a todos os seus irmãos que acaba de
desmaiar. (Aplausos) Exijo que esse fato seja
mencionado na ata e que essa cidadã seja ad­
mitida à mesa e receba pelo menos esse reco­
nhecimento por suas virtudes cívicas” . Permi­
tiu-se à mulher que se sentasse junto ao presi­
dente durante o restante da sessão: ao tomar
seu lugar, enxugando lágrimas, ela foi saudada
18 C it a d o em J A M E S , por vivas e aplausos.18 A “virtude cívica” da
1963, p. 140-141. mulher consistia em sua manifestação de grati­
dão para com os legisladores, que tinham agi­
do em seu interesse ao permitir que homens da
raça a que ela pertencia a representassem. N ão
foi por acaso que Cam bon escolheu esse m o­
mento de manifestação fraternal para fazer de
uma mulher negra a bandeira da entrada dos
negros nas fileiras da cidadania. A diferença que

34
KhLhNDO A HISTORIA DO FEMINISMO
distinguía o hom em da mulher servía para
•erradicar as diferenças de cor e raça entre os
homens; a universalidade do individuo a b s te ­
to ío l dessa m a n eira e nesse m o m en to
estabelecida com o uma masculinidade comum,
C om o veremos nos cáptelos que seguem,
atribuir gênero à cidadania foi um tema persis­
tente no discurso político francês, Rousseau,
cujas formulações foram amiúde usadas pelos
revolucionários franceses mais tarde, constitui
um exem plo importante. Era a consciência que
o hom em bnha da diferença sexual, manifesta­
da no desejo de possuir um objeto amado, que
o distinguía dos “selvagens” , segundo Rous­
seau. Esse desejo era a base não só do amor
que ligava um homem a uma mulher, mas do
ciúme e da discórdia política entre homens. Se
por um lado o homem deve perseguir seus de­
sejos, sustentava Rousseau, por outro, a mu­
lher deveria reprimir ou redirecionar os seus
para salvaguardar os Interesses da harmonia
19 R O U S S E A U , 1950. social.19 O exemplo dado por Rousseau não é
de maneira nenhuma o único. Mais de cem anos
depois, Emile Durkhelm, ao escrever contra o
egoísm o moral do indivíduo Rousseauniano,
Insistia em afirmar que os laços de amizade —
de “solidariedade” — -vieram a substituir as for­
mas mais primitivas e calculadas de trocas hu­
manas. Seu m odelo de amizade era o de uma
“sociedade conjugal” , pois se baseava na atra­
ção exercida por uma diferença fundamental
Se as relações sociais dependessem de seme­
lhança, argumentava ele, não funcionariam:

Q u a n d o a união resulta da sem elh an ça d e


duas im agens, o q u e te m o s é um a aglutinação.
A s duas representações torn am -se solidárias p or­
que, sen d o indistintas [...] c o n fu n d e m -se m utua­
m e n te e se tornam apenas uma. [. . . ] A o contrá­
rio, n o caso da divisão d o trabalho, um a é dife­
rente da outra, e sua ligação s o m e n te se dá p o r-

35
20 D U R K H E IM , 1933, p. • que são distintas. Nem os sentimentos nem as
62. Ern alguns escritos relações sociais que derivam desse sentimentos
populares julgava-se que são os mesmos nos dois casos.20
a igualdade dav a origem
não só à fusão de identi­
dades e à eliminação dos
O tipo de atração p ela diferen ça que
limites, mas tam bém ao Durkheim queria apresentar com o “solidarieda­
ódio. O socialista Jules de orgânica53tinha seu melhor exemplo, segun­
Valles, po r exem plo, te­
do ele, na heterossexualidade, na qual não p o ­
m ia que as escolas exclu­
dia haver o problema da semelhança fundamen­
sivas para mulheres oca­
s io n a r ia m "le coeur tal. E precisamente porque o hom em e a mulher
e n g a rç o n n é , et d e cet são diferentes que se procuram tão apaixona-
e n g a rç o n n e m e n t p e u t damente. Acrescente-se ainda que sua atração
n aitre je n e sais q u e l
mútua baseia-se no fato de que são precisamente
mépris de rh o m m e ". Ci­
tado por Eugénie Pierre,
suas diferenças “que exigem a presença dos dois
em resposta ao socialista para que haja fruição mútua33.21 Essa atração
Jules Valles, em La C i- apaixonada pela diferença tornou inconseqüen-
topenne. Paris,n. 26, déc.
tes (mas não comprometeu) as diferenciações
1881.
de poder sancionadas pela lei. O “ afastamento
da política33 sofrido pelas mulheres, que, para
21 D U R K H E I M , 1933, Durkheim, era uma característica da civilização,
p.56. fazia parte do novo sistema de divisão do tra­
balho. N a medida em que a cidadania era ain­
da função da individualidade, ela só podia ser
vista com o prerrogativa dos homens.
Em relação ao tema da individualidade,
não poderla ter havido um contraste mais con­
tundente do que aquele apresentado por Cesare
Lombroso, autor que era muito apreciado na
França durante a Terceira República: “Todas as
mulheres caem na mesma categoria, ao passo
em que cada homem é um indivíduo em si, ori­
ginal; a fisionomia daquelas se conforma a um
padrão generalizado; a destes é, em cada caso,
22 L O M B R O S O e FERRE- um caso único33.22
RO, 1 8 9 6 , cita d o em As variações históricas em relação a esses
G E L F A N D , 1983, p.50. temas, abordadas nos capítulos seguintes, são
de im p o rtâ n cia cru cial, p o is d e r iv a m de
epistemologías específicas e historicamente dis­
tintas que provocaram mudanças no significa­
do do termo “indivíduo” . O conceito de indiví­
duo, originariamente definido em termos de

36
RELENDO A HISTÓRIA DO FEMINISMO -

oposição aos privilégios legais e 'sociais- do feu­


dalismo, foi, em 1789, uma maneira de decla­
rar todos os homens Iguais perante a lei. Para
alguns teóricos do final do século dezenove, o
indivíduo não se definia por oposição ao ser
social ou à sociedade no seu todo, mas como
um produto da própria sociedade. Outros teóri­
cos opunham o indivíduo à multidão, que tinha
sid o criada p e la d e m ocra cia de massa. A
racionalidade, a independência e a autonomia
eram vistas pelos críticos dessa democracia de
massa com o atributos de uma inteligência e
uma educação superiores; não eram pré-requi­
sitos nem produtos da cidadania. N ão obstante,
até 1944 na França, a base comum da indivi­
dualidade e da cidadania era a masculinidade.
Surgiu então um tema persistente que se
evidenciava nas tentativas de reformular as
idéias sobre individualidade e cidadania: o in­
divíduo universal que exercia os direitos políti­
cos de “hom em ” era ao mesmo tempo abstrato
e concreto; sua diferença em relação à mulher
(em termos de desejo ou de função reprodutiva)
lhe assegurava tanto seu status genérico de ho­
mem com o os limites de sua individualidade. A
individualidade não era apenas uma prerroga­
tiva masculina; era também definida em termos
de raça. A superioridade do hom em branco oci­
dental em relação a seus homólogos “selvagens”
se fu n d a m e n ta v a num a in d iv id u a lid a d e
alcançada e expressa por m eio da divisão soci­
al e afetiva do trabalho, formalizada pela insti­
tuição do casamento monogâmico.

Quando filósofos e políticos invocaram “a


diferença sexual” com o explicação para os li­
mites que restringiam a universalidade dos di­
reitos individuais, as feministas surgiram para
apontar as incoerências. A palavra “mentira”
ressoou do início ao fim do século dezenove,
enquanto as feministas acusaram tanto a Re­

37
J O AN W. S C O T T

volução, quanto a Primeira, a Segunda e a Ter­


ceira Repúblicas, de trair os princípios univer­
sais de liberdade, igualdade e fraternidade ao
recusar o direito à cidadania para a mulher. As
feministas não apenas apontavam as incoerên­
cias; tentavam também corrigi-las, demonstran­
do que elas também eram indivíduos, de con­
formidade com os parâmetros de individualida­
de de sua época, fato reconhecido por vários
textos da própria legislação civil. N ã o podiam,
porém, evitar (ou resolver) o problema de sua
presumida diferença sexual. As feministas dis­
cutiam ao m esm o tem p o a relevâ n cia e a
irrelevância de seu sexo, a identidade de todos
os indivíduos e a diferença das mulheres. R e­
cusavam reconhecerem-se mulheres nos ter­
mos ditados pela sociedade e, ao mesmo tem­
po, elaboravam seu discurso em nom e das
23 Sobre a questão do fe­ mulheres que inegavelmente eram.23 As ambi-
m inism o c o n t e m p o r á ­ güidades da noção republicana de indivíduo
neo, v. S N IT O W , 1990.
(sua definição universal e corporificação mas­
E xem plos de tentativas
contem poráneas de su­
culina) eram assim discutidas e postas a nu nos
perar o dilema d a "igual­ debates feministas.
d a d e versus diferença" N a verdade a tarefa das feministas consis­
incluem D A U P H IN et alii,
tia em mostrar que eram mulheres que “só ti­
1986; M I N O W , 1 990;
nham paradoxos a oferecer” . A coragem e a
B O C K e JAMES, 1992; e
a edição especial de L e inventividade de algumas feministas que agiam
futur antéríeur, "Féminis- individualmente, a força subversiva e a signifi­
mes au présent", sob a cação histórica de sua voz coletiva estavam (e
direção de Michéle Riot-
ainda estão) no espetáculo perturbador apre­
Sarcey (1993). S obre o
problem a da igualdade e sentado pelo paradoxo, pois a identificação e a
da diferença na área de exposição da incoerência e da ambigüidade —
política democrática, v. ou seja, das contradições internas — dentro de
C O N N O L Y , 1991.
um ambiente de ortodoxia que com a maior for­
ça nega a existência civil dessas mulheres é sem
dúvida algo desestabilizador e às vezes mesmo
transformador. Os sistemas políticos e ideológi­
cos com o os do republicanismo francês funcio­
nam da seguinte forma: apoiam a noção de que
a coerência é indispensável para que haja or­
ganização social e se apresentam com o com-

38
petentss para por ern prática as exigencias da
coerência. A fím de atingir esses objetivos, tais
sistemas políticos negam ou reprimem a con­
tradição interna, a parcialidade ou a incoerên­
24Sobre coerência v. DER- cia.24 Dessa forma, a coação da “diferença se­
RIDA, 1978. xual” foi urna forma de conseguir a exclusão
das mulheres da categoria de indivíduos ou ci­
dadãos, exclusão essa que, não fosse pela “di­
ferença sexual” , seria incoerente. Os primeiros
revolucionários e os republicanos que vieram
depois tinham, afinal de contas, baseado seu
governo na premissa de que todos os indivídu­
os humanos (quaisquer que fossem suas dife­
renças) eram igualmente (e naturalmente) d o­
tados de direitos. As feministas aceitaram a
obstinação dos republicanos quanto à necessi­
dade de coerência, e foi exatamente por ser esse
compromisso com a coerência partilhado por
todos que elas reclamaram que o sistema não
cumpria suas próprias exigências. Desafiando
e atacando com o hipócrita e contraditório um
republicanismo que apregoava princípios uni­
versais e excluía as mulheres do pleno exercício
de seus direitos políticos. As feministas, entre­
tanto, sentiram na carne a dificuldade de resol­
ver as próprias incoerências: acabaram se dan­
do conta de falhas subjacentes ao sistema polí­
tico-ideológico que adotaram, e assim com e­
çaram a questionar-lhe a estruturação original
e admitir a necessidade de repensá-lo. Essa foi
(e é) a força e o perigo do feminismo, a razão
por que provocava não apenas m edo como tam­
25 IR IG A R A Y , 1991, p. bém desprezo.25
118-132, especialmente As estratégias feministas foram exemplo de
p. 122-125.
uma habilidade quase mágica de farejar e ex­
plorar ambigüidades nos conceitos fundamen­
tais da filosofia, da política e do senso comum.
Tal habilidade, de m odo algum mágica, é claro,
era o resultado, na verdade, de um posiciona­
mento discursivo que não só se situava dentro
de uma contradição, mas ainda era de per si

39^
JOAN W. 5COTT-

contraditório. As feministas consideravam os


conceitos básicos de suas respectivas épocas de
form a muito intranqüila, ou seja, viarn-nos não
com o certezas científicas e morais, mas com o
tentativas ambíguas e duvidosas de impor or­
dem na organização social humana. Elas esta­
beleciam um elo entre esses conceitos e sua pró­
pria busca por direitos políticos, atendo-se às
implicações duvidosas existentes no uso comum
desses conceitos e fazendo com que as diver­
gencias sobre seus significados servissem para
apoiar-lhes a causa. Por isso, recusavam-se a
aceitar a “natureza” com o um fator que expli­
casse a discriminação da mulher, pois os cien­
tistas nunca se entenderam quanto a que leitu­
ra fazer do conceito de natureza: seria seu sig­
nificado transparente ou sujeito a interpre­
tações humanas imperfeitas? E no cam po das
ciências, no qual as explicações são, na m e­
lhor das hipóteses, inconcludentes, por que
supor que o género seria a chave de todas as
diferenças físicas?
N o final do século XVIII, O lym p e de
Gouges viu na incerteza de seus contemporá­
neos sobre a faculdade humana da imaginação
uma licença para raciocinar sem as restrições
da política revolucionária, bem com o para ar­
gumentar — em m eio aos debates iluministas
acerca da relação entre razão e imaginação —
que ela possuía a capacidade (exigida dos ci­
dadãos) de se auto-representar. Em 1848,
Jeanne Deroin viu nas ambigüidades da noção
de androginia apregoada pelos románticos um
argumento a favor da complementaridade e da
au ton om ia absoluta dos sexos. H u bertine
Auclert aceitava a importância da “questão so­
cial” , conforme era definida pelos políticos da
Terceira República: lutava pelos direitos da
mulher, pugnando que “o social” fosse o agente
e não o objeto das políticas goverñam entais.
Madeleine Pelletier abraçou, na virada do sécu-

40
KELhNDO A HI51O k Iá DO hhMINISMU

lo, o individualismo radical e suas Inerentes pre­


tensões de transcender as categorias hom oge­
neizardes da representação social. Ela Incluía
gênero com o uma categoria que negava a sin­
gularidade do indivíduo e estimulava as mulhe­
res a rejeitar a representação feminina, a fim
de que a igualdade pudesse ser alcançada. N e ­
nhuma dessas estratégias teve sucesso total, não
só porque o direito ao voto não foi alcançado,
mas também porque não estavam mais uma vez
isentas das próprias incoerências internas. Em
cada um dos casos, embora de maneiras dife­
rentes, a necessidade de invocar o termo “mu­
lheres” gerava “diferença sexual” , minando a
tentativa de fazer com que tal diferença fosse
irrelevante para fins políticos.
C om o os exemplos acima indicaram (e os
capítulos seguintes irão esclarecer), as feminis­
tas formularam reivindicações por seus direitos
com base em epistemologias diferentes, e é as­
sim que devem ser lidos os seus argumentos,
não com o a prova de uma consciência trans­
cendente e contínua da Mulher, nem com o a
prova da experiência de todas as mulheres.
Embora a noção de que um padrão repetido de
p a rad oxos carregue consigo uma idéia de
intemporalidade, os conceitos que as feminis­
tas usaram tinham raízes em sua época e só
podem ser entendidos nesse contexto específi­
co. A história dá conta não só da multiplicidade
de posições que se encontram nos escritos fe­
ministas, mas também das diferentes maneiras
pelas quais a identidade social e individual da
“mulher” foi concebida. Jeanne Deroin se ba­
seava no socialismo romântico e utópico para
escrever num estilo arrebatador sobre uma mãe
espiritualmente pura e afetuosa que, à sem e­
lhança da Virgem Maria, trazia dentro de si
m esm a a red en ção d o m undo. H u bertine
Auclert, que aceitou os padrões da Terceira R e­
pública, aspirava às alturas do racionalismo se-

41
V'Ã SC O i i

cular s científico, Madeleíne Pelleíiec baseou-se


nas novas doutrinas psicológicas do início do
século XX para refutar a idéia das diferenças
sexuais naturais. Ela definia a fem inilidade
com o “sexo psicológico” e com o a causa da
subordinação das mulheres. Ela julgava que a
mulher emancipada era aquela que sabia com o
“civilizar-se” . Á diferença entre as três mulhe­
res acima citadas não está na ênfase específica
que cada uma impôs a seus argumentos, mas,
o que é muito mais profundo, na própria identi­
dade de cada uma delas com o feminista e na
identidade das mulheres cujos direitos elas de­
fenderam. O tópico central do feminismo não
foi sempre o mesmo. Os termos de sua repre­
sentação eram cambiantes, e esta é uma carac­
terística que podem os atribuir não somente à
história das mulheres, mas também às da filo­
sofia, da psicologia e da política.

A história do feminismo pode ser entendi­


da com o uma interação constante entre os pa­
drões recorrentes de exclusão e uma articula­
ção sempre variável de temáticas. Os termos
dessa exclusão apresentavam reiteradamente a
“diferença sexual” com o uma fronteira natural
e fixa entre o político e o doméstico, isto é, entre
o que representa a si mesmo e o representado;
entre o autônomo e o dependente. Tais termos
de exclusão, baseados em diferentes epistemo-
logias, eram também variáveis e contraditóri­
os, e isto produzia resultados fundamentalmen­
te diferentes quando se tratava de conceituar
“ mulheres” cujos direitos estavam sendo rei­
vindicados.
A reiterada exclusão da mulher da política
fez com que as feministas adquirissem um sen­
so de solidariedade, mesmo tendo visões diver­
gentes sobre quem eram e sobre o que as mu­
lheres deveriam ser. N a verdade, a experiência
comum de exclusão, não raramente, foi toma-

42
Rh.LJz.NDL'HIS I OhlA DO LhMlNISMO

da, puf engano, como uma xisao c empar tílha-


da por todas do significado de ser mulher. Em
conseqüência, as histórias do feminismo, se por
um lado tratavam dos desacordos marcantes
sobre questões de táticas e estratégias, por ou­
tro deixavam de abordar diferenças entre “ mu­
lher” e “feminista” , pressupondo a existência
de conceitos imutáveis e auto-evidences para
cada urn desses vocábulos.
Seguindo os passos de Denise Piloy, pre­
tendo fazer a distinção de “mulher” e de “fem i­
nista” , examinando de perto as diferentes ma­
neiras pelas quais essas denominações têm sido
26RILEY, 1988. usadas historicamente.26 Para isso, procurei pôr
em foco quatro feministas que reivindicavam
direitos políticos (específicam ente direito ao
voto) para a mulher em diferentes contextos his­
tóricos. Foi em momentos revolucionários ou de
transformações constitucionais que a questão
dos direitos políticos esteve mais aberta a dis­
cussões, e foi sob governos republicanos que a
extensão e a universalidade do sufrágio pude­
ram ser contestadas. Olympe de Gouges exi­
giu, durante a Revolução Francesa, que as mu­
lheres obtivessem os mesmos direitos à cidada­
nia que os homens; Jeanne Deroin desafiou a
constituição da Segunda República e concor­
reu para cargo legislativo no pleito de 1849, pela
céd u la d e m o crá tic o -so c ia lis ta ; H u b ertin e
Auclert foi a primeira a exigir que a Terceira
República fizesse jus a suas promessas dando
à mulher o direito de votar; e Madeleine Pelletier
fez do voto a pedra fundamental de um plano
pela emancipação republicana da mulher, que,
entre outras coisas, contem plava o aborto
com o um direito absoluto de controle sobre o
27 Sobre cidadania v. R O - próprio corpo.27
S A N V A L L O N , 1992a. V.
Nenhuma dessas mulheres tinha formação
tam bém PAT EM A N ,
1990; R IO T -S A R C E Y , filosófica; seus níveis de instrução variavam.
1994; BAR BA LE T, 1988; Todas eram militantes políticas e escritoras que
e W E N D E N , 1988. falavam uma linguagem popular e que improvi­

43
JOAN W. SCOTT

savam estratégias (ora sozinhas, ora ern asso­


ciação com outras feministas) para fazer pro­
gredir suas reivindicações por direitos. O que
nos interessa é saber com o e em nom e de quem
essas mulheres formulavam suas reivindicações,
saber as diversas maneiras pelas quais essas
reivindicações foram estruturadas com o assun­
tos feministas, e as diferenças que entre si apre­
sentavam. Interessa-nos, ainda, saber com o os
discursos universalistas, especificamente sobre
o individualismo abstrato, bem com o sobre os
deveres e os direitos sociais, habilitavam-nas
conceber-se com o agentes políticos, pois aque­
les mesmos discursos negavam à mulher o agir
p o lític o . D e gran d e interesse, a in da, é a
especificidade histórica das lutas feministas e a
incomensurabilidade das filosofias feministas,
que transparecem sob a estrutura comum do
paradoxo.
A abordagem desses tópicos exige uma lei­
tura profunda e porm enorizada concentrada
individualmente em cada uma dessas mulheres,
independentemente de suas idiossincrasias. Pela
simples razão dessas quatro mulheres não se­
rem nem representativas — algumas só ocupam
uma posição minoritária dentro do espectro p o ­
lítico do feminismo — , nem únicas — seus pon­
tos de vista muitas vezes coincidiam parcialmen­
te ou se entrecruzavam com outros de sua ép o ­
ca — parece-me que investigá-las a fundo —
suas idéias, sua retórica, seus insultos, sua iro­
nia e a ousadia de suas ações — pode dar uma
visão clara dos diferentes temas políticos e filo­
sóficos historicamente envolvidos nas reivindi­
cações feministas.
Aqueles que procuram neste livro uma
narrativa biográfica, com elos de causa e efeito
entre experiência pessoal e atividade individual,
nada acharão. As experiências de vida pessoal
dessas mulheres, seus relacionamentos com os
pais, professores, amantes ou filhos, não nos

44
RELENDO A HISTORIA DO FEMINISMO

fornecem uma explicação suficiente para a po­


lítica feminista. Às biografias tendem a restrin­
gir seu foco aos aspectos e circunstâncias indi­
viduais, o que, por um lado, reduz pensamen­
tos e ações a histórias de vida pessoal e, por
outro, negligencia as complexas determinações
da linguagem, o instrumento sociocultural por
cujo intermédio as temáticas se concretizam. O
enfoque biográfico fortalece a noção de que o
agir é uma expressão de seres individuais e au­
tônomos, quando na verdade é o efeito de um
processo historicamente definido que os con­
forma. A noção do agir com o expressão da von­
tade individual não é uma condição da nature­
za hum ana (em b ora freqüentem ente assim
apresentado), mas um conceito específico liga­
do historicamente, na verdade, a muitas das
mesmas idéias que negavam à mulher a indivi­
28Esse livro é um a tentati­
dualidade, a autonomia e os direitos políticos.
va de desenvolver a ques­
tão d a c a p a c id a d e de A o invés de pressupor que o agir se segue a um
ação (militância) que apre­ querer humano inato, quero entender o fem i­
sentei em crítica ao livro nismo em termos de processos discursivos — a
de L. G ordon, H eroes of
epistemología, as instituições e as práticas —
Their O w n Lives. V rese­
nha que fiz do livro e as
que produzem os temas políticos, que possibili­
discussões que tive com tam o agir (neste caso o agir das feministas)
L. G o rd o n em Signs 15 mesmo quando proibido ou negado.28
(verão de 1990), p. 848- N ã o vejo essas mulheres com o heroínas
60. A fo rm u lação m ais
modelares. N a verdade, vejo-as com o marcos
concisa sobre o tipo de
militância que proponho históricos ou com o lugares, marcos históricos
ainda é a de A D A M S e — melhor dizendo, arenas — onde se travam
M IN S O N , 1978. V. tam­ embates políticos e culturais cruciais, passíveis
bém F O U C A U LT : “Preci­
de serem exam inados porm enorizadam ente.
sam os, sem dúvida, ser
n o m in a lista s: o p o d e r
Imaginar uma pessoa — neste caso uma mu­
não é u m a instituição, e lher — com o um lugar ou uma arena, não sig­
nem u m a estrutura, nem nifica negar-lhe a humanidade, mas reconhe­
tam pouco um a certa for­ cer os muitos fatores que fazem dela um agente,
ça que incorporamos. O
bem com o as múltiplas e complexas maneiras
poder é o nom e que atri­
buím os a u m a situação
pelas quais ela se constrói com o ator histórico.
e s tra té g ic a c o m p le x a Dois argumentos norteiam este livro: o pri­
num a determ inada soci­ meiro, é o de que o agir feminino se expressa de
ed ad e” . (1980, p.93).
maneira paradoxal: ele é conform ado pelos dis-

45
JCcdd w” . 3CCiTT

.cursos J.g individualismo u n iv e r s a l ( c u a i s u a Le-


oria de direitos e cidadania) que evocam a “di­
ferença sexual” para justificar a exclusão da
mulher; ò segundo, é o de que a militância fem i­
nista tem toda uma história; não é nem um con­
junto fixo de comportamentos nem um atributo
essencial da mulher, mas uma conseqüência de
ambigüidades, incoerências e contradições den­
tro de epistemologías específicas. A fim de de­
monstrar meus argumentos, devo escrever a his­
tória do feminismo por intermédio da leitura dos
paradoxos historicamente específicos que a te­
mática feminista incorpora, representa e revela.

Interpretar paradoxos exige uma leitura di­


ferente da que os historiadores tradicionalmen­
te fazem. Costuma-se ler o choque de posições
diferentes (por exemplo, políticos liberais con­
tra feministas) mas não as tensões e as incom­
patibilidades internas (do feminismo, do indivi­
dualismo liberal, de conceitos tais com o liber­
dade ou de âmbito isolado ou individual) das
quais esses choques são ao mesmo tem po sin­
toma e causa. Ler dessa form a tecnicamente
desconstrutiva não funciona confortavelmente
quando se trata de narrativa linear ou teleologia,
pois tende a escamotear as histórias que esta­
belecem a verdade ou a inevitabilidade de cer­
tas visões do mundo, eliminando relatos de con­
29Em política, aqueles que flito e de poder que nelas ocorrem.
só oferecem p a ra d o x o s O resultado, porém, vale o esforço, pois
são freqüentem ente to ­ ignorar a intranqüilidade que o paradoxo, a con­
mados por loucos ou p or
tradição e a ambigüidade implicam é perder de
charlatães. Q u an d o as fe­
ministas se autodenom i­
vista o potencial subversivo do feminismo e do
naram párias (com o ocor­ agir feminista. E exatamente porque o feminis­
reu ao longo de todo o m o incorpora o paradoxo que ele tem sido tra­
século XIX), elas descre­ tado com o trivial ou relegado à marginalidade
viam u m a p o s iç ã o a o
pelos que procuram proteger as bases do status
mesmo tempo escolhida
e imposta. S obre feminis­ quo que representam.29 Tal protecionismo im­
tas como "párias" v. RIOT- plica a negação da contradição, quer tornan-
SARCEY, 1994a. do-a invisível, quer deslocando a origem do pro-

46
RhJJzNDO í- HISTORIA 0-0 rhMIf TISrTC'
blema para aqueles que procuram apontá-io. Os
paradoxos feministas, por isso, têm sido inter­
pretados com o produtos das próprias confusões
das feministas, tendo essa interpretação se tor­
nado a justificativa de sua contínua exclusão,
Repetidas vezes, seus apelos em favor da im­
plementação coerente do princípio de igualda­
de universal tiveram a respos O de que as fem i­
nistas eram perigosas e mm ro incoerentes (a
acusação de serem “mulheres masculinas” ou
“ homens femininos” — uma combinação im­
possível — era sempre a expressão de que esse
senso de incoerência era uma anormalidade).
Olympe de Gouges foi guilhotinada pelos Jaco­
binos sob a acusação de cometer excessos de
imaginação; Jeanne Deroin foi ridicularizada
por querer virar o mundo de cabeça para bai­
xo; Hubertine Áucleii foi comparada à Medusa
e vista com o “afligida por loucura ou histeria,
um a doença que a fazia considerar os homens
com o seus iguais” , segundo relatório da polícia
30 C itado em G O R D O N , de 1880;30 Madeleine Pelletier foi considerada
1990, p. 85. uma fonte de desorganização moral pelos gru­
pos contrários à limitação de natalidade na dé­
cada de vinte e confinada numa instituição para
doentes mentais até o fim da vida.
Os paradoxos que as feministas ofereci­
am não eram inteiramente criação sua, e pres­
taremos à história do feminismo um desserviço
se ignorarmos isso. Escrever a história do fem i­
nismo com o se fosse simplesmente uma ques­
tão de escolher a estratégia correta — igualda­
de ou diferença — implica dizer que uma ou
outra dessas opções realmente existia, e que uma
solução ou fechamento da questão era e é, em
última análise, possível. A história do feminis­
mo não é, porém, a história de opções disponí­
veis ou da escolha tranqüila de um projeto vito­
rioso; é, antes disso, a história de mulheres (e
. de alguns homens) constantemente às voltas
com a absoluta dificuldade de resolver os dile-

47
JOAN W. SCOTT

mas que enfrentaram (por malor que tenha sido


seu sucesso em conseguir reformas específicas).
Urna historia do feminismo cujo assunto
são os problemas mencionados antes, e que trata
o tema do paradoxo, considerando-lhe as ori­
gens e os efeitos, não só estabelece a relevância
histórica do feminismo, mas também contesta
as histórias da dem ocracia — na França ou
alhures — que atribuem os primeiros episódios
de exclusão da mulher a falhas temporárias de
um sistema pluralista em constante processo de
aperfeiçoamento e expansão, e que, fora de con­
textos históricos necessariamente relativizantes,
consideram a extensão do voto às mulheres
com o um convincente indicador da ausência de
desigualdade social. A história do feminismo
oferecida nos capítulos seguintes representa uma
crítica a esse enfoque histórico convencional e
à ideologia que ele apoia. N ão nego que o fem i­
nism o— pelo menos quando lutava pelos direi­
tos da mulher — foi criado pelo discurso do in­
dividualismo liberal, nem que ele dependia do
liberalismo para existir; não havia (nem há)
com o desconhecer esses fatos. O que pretendo
é enfatizar o caráter permanentemente insolú­
vel de uma relação em constante conflito, ape­
sar de submetida a sucessivas transformações.
O feminismo não é produto das operações be­
nignas e progressistas do individualismo libe­
ral, mas um sintoma de suas contradições. Re­
formas, como a do direito ao voto para as mu­
lheres, podem ter transferido para outros dom í­
nios as contradições. Estas, porém, não desapa­
receram, e é por isso que o feminismo ainda existe
O feminismo tem sido, historicamente, um
exem plo de complexidade, porque é complexa
a sua práxis crítica. Esta, na verdade, faz com
que a história do feminismo se torne até mesmo
parte integrante do próprio projeto que elabora,
isto é, a história do feminismo é, em si, uma
história feminista.

48
Os Usos da Imaginação:
Olympe de Gouges na Revolução Francesa

^% 41J esmo enquanto anunciavam os prin-


Í % / f ) cípios de sua revolução numa retum-
v Jibante Declaração dos Direitos do H o­
m em e do Cidadão, no outono de 1789, os ar­
quitetos da Revolução Francesa tinham consci­
ência do perigo que um pronunciamento tão
universal poderia acarretar: entrada em confli­
to, sem dúvida, com os pormenores práticos de
qualquer constituição que fosse elaborada.
Honoré Gabriel Mirabeau e Pierre Victor Malo-
net, ambos antigos nobres, e ambos deputados
do Terceiro Estado, fizeram exatamente esse
a lerta p e ra n te a A s s e m b lé ia N a c io n a l.
Posicionaram-se contrários a falar ao p ovo so­
bre seus direitos antes que houvesse uma deci­
são sobre quais exatamente seriam esses direi­
tos, como deveriam ser implementados e a quem
1 S Y D E N H A M , 1966, p. se refeririam.1 As preocupações dos dois depu­
63. tados, porém, foram ignoradas por maioria de
votos, pois a Assembléia sentia que uma decla­
ração de princípios ensinaria ao p o vo amar a
liberdade que lhes cabia de direito e serviría para
mobilizá-lo em apoio urgente e necessário na
substituição do Velho Regime por um governo
baseado na soberania do p o vo e na ordem na­
tural das coisas. “A D e c la r a ç ã o conseguiu
arregimentar patriotas para defender a Revolu­
ção. N o entanto, exatamente com o Mirabeau e

49
JOAN W. SCOTT

serviu para a insatisfação daqueles (entre os


quais mulheres, escravos e homens livres negros)
que foram excluídos da cidadania nos termos da
constituição promulgada dois anos mais tarde.
A consciência dos revolucionários em re­
lação aos conflitos entre princípios e prática,
entre direitos individuais abstraídos do contex­
to social e a necessidade de uma política que
levasse em conta diferenças sociais, fornece-nos
um início muito apropriado para a história do
feminismo na França. Há, porém, uma compli­
cação a mais nessa história. A Revolução rapi­
damente concedeu à mulher direitos civis, es­
pecialmente na esfera matrimonial. Em 1791, o
casamento foi definido com o um contrato soci­
al, e, em 1792, o divórcio tornou-se direito legal
de ambos os cônjuges. Os homens legisladores,
dessa forma, aprovaram leis que tinham efeitos
contraditórios sobre as mulheres, tornando-as ao
mesmo tempo pessoas com direitos civis e obje­
tos de preocupações legislativas. Essa condição
ambígua do status das mulheres, seu reconheci­
mento como agentes da sociedade civil e sua ex­
2SLEDZIEW SK I, especial­ clusão da política, geraram o feminismo.2
m en te a p a rte 2, " L a Quando a constituição estava sendo d e­
Femme, Sujet Civil et Im­
batida em 1791, Olympe de Gouges publicou
possible Sujet Civique",
1989 p .63-128. seu Declaração dos Direitos da Mulher e da Ci­
dadã, documento que insistia não somente que
3S obre a historia das m u­ as mulheres, por natureza, tinham os mesmos
lheres e d o fem inism o direitos que os homens (elas eram também in­
(duas questões diferen­ divíduos) mas ainda que suas necessidades es­
tes) na Revolução Fran­
pecíficas de mulher tornavam o exercício des­
cesa, v. A L B IS T U R e A R -
M OGATHE, 1977; ses direitos mais urgente. O docum ento de
D U H E T , 1971; A BR AY, Olym pe de Gouges não foi a primeira ou a úni­
1975; B O U V IE R , 1931; ca declaração feminista durante a Revolução,
H U F T O N , 1971, e 1983;
mas justificadamente acabou se tornando a
L Y T L E , 1955; M IC H E -
LET, 1854; RO SE, 1976;
mais representativa, tanto para feministas quan­
W ILL IA M S , 1971; L E W to para historiadores.3 E sem dúvida a reivindi­
et alii, 1979; e Y A LO M , cação mais abrangente de direitos para a mu­
1993. lher naquele período histórico: toma ao pé da

50
letra a característica universal da Revolução e,
ao chamar a atenção para as diferenças que as
mulheres incorporam, revela os limites dessa
universalidade, em face da sua tentativa para­
doxal de representar as mulheres como indivi­
duos abstratos.

O desafio de Olympe de Gouges, qual seja,


que as mulheres fossem representadas como
cidadãs, enxertou-se numa discussão perturba­
dora e profunda entre os revolucionários sobre
o significado político e filosófico da representa­
ção. Será que os representantes eleitos pelo povo
eram realmente constituintes da nação ou ape­
nas seus substitutos imperfeitos? Qua! era a re­
lação entre a vontade geral da nação e a da­
queles que supostamente a expressavam? Se a
cidadania era um atributo de indivíduos abs­
tratos, poderia também representar o povo em
sua existencia concreta? O cidadão represen­
tava, de fato, o homem, ou era a cidadania a
ele concedida que o tornava um ser político?
(Admitida esta última alternativa, a cidadania
era claramente a chave da representação para
as mulheres.) Todas essas perguntas envolviam
não somente a sabedoria e a prática de delegar
autoridade para o fim de governar, mas tam­
bém a natureza da relação entre signo e refe­
rente. Afinal de contas, a que entidades concre­
tas de fato podiam se referir noções tão clara­
mente abstratas com o “nação” ou “povo” ou
“indivíduo que tem direitos” ou “cidadão” ou
“vontade geral” ?
Os revolucionários debatiam esses proble­
mas internamente. Para alguns, a Assembléia
Nacional era a nação; para outros, apenas re­
presentava a nação. Para alguns, os represen­
tantes eleitos eram delegados do povo; para
outros, eles eram o povo soberano. Para alguns,
a lei era a vontade geral; para outros, era a ex­
pressão ou reflexo daquela vontade, e assim por

51
JOAN W. 5CU T i'

diante. Problemas epistemológicos e r a m proble­


mas políticos. O esforço para resolvê-los fracas­
sava, em última análise, na impossibilidade de
serem resolvidos. Era impossível saber, afinal,
se a representação refletia fielmente uma reali­
dade anterior ou se apenas criava a possibili­
dade de imaginar que tal realidade pudesse ser
conhecida, mas as apostas no sentido de sabê-
4 Sobre a noção de repre­ lo eram altas.4
sentar, v. PITKIN, 1972; Uma das estratégias de Olym pe de Gouges
DERRIDA, 1982; H U N T ,
— estratégia característica do feminismo — foi
1983; BAKER, 1987a; e
FR IE D LA N D , 1995. levar a ambigüidade da representação a seu li­
mite extremo, jogando com a relação entre sig­
no e referente, ou seja, usando ora o signo ora
o referente para estabelecer a realidade. Ela usou
esse recurso não apenas em seus muitos escri­
tos (além da Declaração, há um rico filão de
peças teatrais, panfletos e folhetos), mas na pró­
pria construção de seu eu individual. De fato,
seus esforços nessa área tornaram árdua a ta­
refa de um biógrafo convencional, com o se evi­
dencia na dificuldade que enfrentou um de seus
primeiros biógrafos para separar a verdade da
ficção. Léopold Lacour usou muitas páginas de
sua biografia, escrita em 1900, para estabele­
cer a verdade dos fatos da vida O lym pe de
Gouges: a data precisa de seu nascimento na
cidade de Montauban (geralmente tida com o
1748, embora ela mesma a tivesse mudado, à
m edida em que envelhecia, para parecer mais
jovem ); a origem do nome que ela assumiu (nas­
ceu Marie Gouges e mudou de nome depois que
enviuvou em 1764); foi para Paris antes ou de­
pois da morte de seu marido, Louis Aubry; a
ocupação exata de seu marido, com quem foi
brevemente casada aos dezeseis anos (Cozinhei­
ro? Fornecedor? Fornecedor de alimentos para
o intendente de Montauban?); o número de fi­
lhos (há registro de apenas um, Pierre Aubry,
mas Lacour teve informação sobre “dois perío­
dos de gravidez anteriores” , quando foi presa

52
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

em 1793, indicando que tinha outro filho vivo);


e a identidade de seu pai (o açougueiro Gouges
aparece no registro de nascimento, mas havia
boatos constantes de que ela era filha natural
de Luís XV, bem com o historias — a que ela
; ' própria parece ter dado origem — de que ela
era filha ilegítim a do M arqués le Franc de
5 L A C C O U R , 1900. Para P o m p lg n a n ).5
questões biográficas, v. As minuciosas especulações de Lacour
B L A N C , O liver, 1981; sòbre esses assuntos não chegam a prova con-
T U L L IE R 1840- ' e c’uslva> e desconsideram a importancia histo-
S C H R Ô D E R , 1989. N a dea do fato de que, agindo assim, O lym pe de
"Mémoire de M adam e de Gouges procurava controlar a representação
Valmont", de O lym pe de ¿ e s¡ própria. A o rejeitar os nomes do pai ou
Gouges, esta a ongem d a (j os |s e marM0, queria, na verdade, de-
alegaçao de que ela era
filh a ileg ítim a do clarar sua autonomía, sua recusa ao status se-
m a r q u é s .(G O U G E S , cundário que a lei patriarcal determinou para
1788b). a mulher. Nenhum outro nome, a não ser aque­
le que ela própria tinha se dado, podia desig­
nar (e definir) sua existência. Ela era única,
singular; a origem de sua pessoa era ela pró­
pria. N ã o havia um “sujeito” preexistente, ne­
nhuma matéria m aleável que pudesse receber
uma impressão; pelo contrário, por intermédio
da representação, Olym pe de Gouges produ­
ziu um indivíduo cuja representatividade não
tinha antecedente e dessa form a ela era, nos
termos de sua época, uma cidadã ativa, equi­
valente e idêntica mesmo ao “novo hom em ”
da Revolução. Além disso, independentem en­
te de sua veracidade, as origens familiares que
ela se atribuía produziram a figura qu e ela
q u e ria ser. A o su gerir q u e L e F ra n c de
Pom pignon era seu pai, ela estabeleceu uma
linhagem condizente com suas aspirações e
(visto que o Marquês tinha reputação de ho­
m em d e letras) co m suas a tiv id a d e s de
dramaturga e, a partir de 1788, de autora de
panfletos políticos. (O relatório final de seu jul­
gamento e execução em 1793 apresenta O lym ­
pe de Gouges com o “ uma mulher de letras” , o

53
5C07T

que tasiõiiiunha seu sucesso ern controlar pelo


m enos alguns dos termos de sua auíodefini-
6 "P ro c è s d ’ O iy m p e de ção.)5 A luía que Lacour travou para estabele­
Gouges..."(TUETEY, 1912, cer a verdade sobre Olym pe de Gouges põe
vol. 10, p. 156-64).
em dúvida a crença na relação transparente
entre o nom e e a pessoa, entre o signo e o seu
referente, crença que ela própria questionava
— ;e m como, também, os filósofos da época.
Se, por um lado, a natureza dessa relação im­
portunava Rousseau e os revolucionários que
influenciou, por outro, Olym pe de Gouges dis-
punha-se a aceitar e mesmo explorar a idéia
do próprio Rousseau de que todos os signos
podiam ser arbitrários, e talvez, de m odo es­
7DERRIDA, 1976, Phrte2. pecial, o signo do próprio eu.7
V. também M AN, 1979; e Olym pe de Gouges admitia que sua habi­
ZERÍLLI, 1944, cap. 2.
lidade de representar seu eu era um atributo de
sua imaginação. Foi por m eio da imaginação
que ela pôde se considerar possuidora dos di­
reitos de “homem e cidadão” e explicar suas
intervenções na política de uma época em que
os direitos políticos das mulheres eram intensa­
mente contestados. As vezes ela apelava direta­
m ente para a imaginação, com o quando ela
explicou com o um sonho sua tentativa de des­
crever as origens da sociedade humana — as­
sunto sobre o qual tantas mentes iluminadas já
tinham arriscado opinar. Para O ly m p e de
Gouges e seus contemporâneos, sonho e ima­
ginação eram freqüentemente vocábulos sinô­
nimos, ou, caso não o fossem, pelo menos, eram
intimamente ligados. “Talvez eu tenha me per­
8GOUGES, 1976, p. 1. dido em sonhos” .8 Nesse aspecto ela dizia não
diferir de Rousseau ou Voltaire, que tinham tam­
bém imaginado suas explicações e cujo gênio
não os impediu de errar, nem .de receber críti­
cas. “Eu quero, por mais ignorante que eu seja,
9GOUGES, 1789, p.4. tentar m e perder com o os outros” .9 Em outras
oportunidades, Olympe de Gouges agiu imagi­
nativamente em consonância com sua época,
assumindo o papel ao qual aspirava, recombi-

54
GO U uhS r ia r e v o l u g a . g e n a n c a g a

na ndo d e maneira improvável elementos de sen


mundo, inserindo-se em historias das quais, sem
dúvida, tena sido excluída. Era uma segunda
Cassandra, um hom em sábio, imitadora de
Rosseau e melhor do que ele, um advogado de­
fendendo o rei em seu julgamento. Ela se com ­
10G O U G E S,1790, p. 94 e, parava a Hom ero e a Joana d 5Ârc.10 Num pan­
1788, p. 124 e 126. fleto em que denunciava os crimes de Robespi-
erre, ela se assinava com o anagrama Polyme,
descrito com o “um animal anfíbio” . “Eu sou urn
animal incomum; não sou nem mulher nem
homem. Tenho toda a coragem de um e, às ve ­
11G O UG ES, p.10, 1792. zes, a fraqueza do outro” .11 Ela não era nem
homem nem mulher, mas também tanto homem
quanto mulher. “Sou mulher e tenho servido a
12"Je suis femme e tj’ai ser- meu país como um grande hom em ” .12 Segun­
vi m a patrie en gra n d do ela, era por meio de sua imaginação criati­
h o m m e ". GOUGES,
va que atingia a cidadania.
[s.d.], vol. 1, p. 10
A mulher que reivindicasse os poderes da
imaginação criativa no fim do século XVIII es­
tava apresentando algo simultaneamente plau­
sível e inconcebível nos debates da época, pois
a imaginação era um conceito cada vez mais
problemático, na medida em que os filósofos
procuravam resolver suas ambigüidades mas
não o conseguiam. De acordo com os dicioná­
rios do início do século XVIII, a Imaginação
referia-se primordialmente à facilidade da men­
te de representar coisas externas a si própria na
forma de imagens ou pensamentos; definições
secundárias diziam respeito à inventividade (ha­
bilidade da mente para criar coisas), o que era
13 "C h o m m e dont
freqüentemente tomado como uma forma de­
l’im agination est si fort
b le s s é e , q u ’ il se croit
generada da imaginação reflexiva (com o no
malade, quoi q u ’il se por­ caso do hipocondríaco, do “doente imaginário” ,
te bien". "Imagination", in “o homem cuja imaginação está tão gravemen­
RICHELET, 1740, vol. 2, te comprom etida que ele se acredita doente
p. 234. Agradeço a Paul
embora esteja bem ” ).13 Era nesse sentido que
Friedland por esta refe­
rencia e suas muitas su­ os sonhos se ligavam à imaginação: “Todos os
gestões úfteis p a ra este sonhos são claramente estratagemas da imagi­
capítulo. nação” , dizia um artigo na E ncyclopéd ie de

55
JuAN W. si^uí í

14 "Tous les ob jets des D ld e ro t14 À m edida em que o século passava,


reves sont visiblement les
a questão da fantasia e da invenção parece ter
je u x de I’im agination".
"Reves", in Encyclopédie,
adquirido enobrecimento semántico; segundo
1 7 51-1765, voi. 14, p. um dicionário, a definição “mais nobre e mais
223. precisa” da faculdade imaginativa era de que
se tratava da capacidade mental de produzir
15 F É R A U D , 1987-1988, poesia e arte, de “criar por imitação” .15
vol. 1, p. 175.
A o mesmo tempo, enquanto a inventivi­
dade e a criatividade recebiam cada vez mais
destaque, a relação dessas duas faculdades com
a razão e com a realidade começou a ser alvo
de debates. Segundo Rousseau, no E n t i l e , “o
mundo real tem seus limites, o mundo imaginá­
rio é infinito. C om o somos incapazes de aumen­
tar um deles, restringimos o outro, pois é so­
mente da diferença entre os dois que nascem
todas as dores que nos fazem verdadeiramente
16 R O U S S E A U , 1979, infelizes” .16 Rousseau poderia ter acrescentado
p.81. que a diferença entre os dois estabelecia o sig­
nificado de cada um dos vocábulos: sem algo
denominado ficção para estabelecer seus limi­
tes, as fronteiras do real nem sempre eram ime­
diatamente aparentes; sem a imaginação, com o
se poderiam distinguir as operações da razão?
A o perseguir respostas impossíveis para essa
co n s tra n g e d o ra qu estão, os filó s o fo s d o
Iluminismo fizeram distinções claras (mas ne­
cessariamente ambivalentes).
N a Encyclopédie, Voltaire tentou reconci­
liar esses aspectos da imaginação dividindo-a
em dois tipos: a passiva e a ativa. A imagina­
ção passiva era mimética, refletindo na mente
fatos que lhe eram externos. Impostas de fora,
] essas imagens possuíam o indivíduo e o inva­
diam. Era impossível exercer controle sobre elas,
exatamente com o acontecia nos sonhos. A ima­
ginação passiva tom ava conta do indivíduo,
exatamente com o a paixão; era associada ao
erro e conduzia à sujeição. Voltaire oferecia o
exemplo de pessoas sem instrução, cuja imagi­
nação passiva se tomava o instrumento pelo qual

56
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

17 "Imagination" (artigo de os outros as subjugavam.17 Seu colega Diderot


Voltaire), in E n cy cio p é-
falava da imaginação em termos de imitação e
die, 1751-1765, v o l 8, p.
equacionava tal passividade com as mulheres.
561.
“ Pen sem nas m u lh eres” , escreveu ele em
Paradoxe s u r le comédien, “ elas estão milhas a
nossa frente em sensibilidade; não há m odo de
comparar sua paixão com a nossa. Mas assim
com o estamos abaixo delas na ação, da mes­
ma forma elas estão abaixo de nós em Imita­
ção” . Tecendo comentários sobre essa passa­
gem, Phillipe Lacoue-Labarthe escreve: “ Isso
não quer dizer que as mulheres não imitem [...]
mas se elas imitam [...] isso só acontece na pai­
xão e na passividade, no estado de serem pos­
suídas ou invadidas. Conseqüentemente, ape­
18 L A C O U E -L A B A R T H E , nas quando elas são sujeito” .18 A imaginação
1989, p. 2 6 3 -4 ; e faz sua impressão na mulher, que não oferece
DIDERO T, 1957, p. 18.
resistência: não é de seu papel moldá-la; a mu­
lher é, na verdade, “a matriz ou a matéria per­
m eável sobre a qual a impressão é feita” . Quan­
19 " Q u a n d elles o n t d u
g é n ie , je le u r crois do elas têm gênio, comentava Diderot em seu
l’empreinte plus origínale ensaio Sur les femmes, “acho que a impressão
q u ’en nous". D ID ER O T , é mais original nelas do que em nós” .19 Origi­
1721, p. 440.
nalidade, aqui, significa semelhança com o ori­
20 U rn a certa n o ç ã o de ginal com o imaginado por outrem; é a impres­
imaginação passiva a p a­ são feita que exibe originalidade e não a maté­
rece n a ad vertencia de ria sobre o qual ela se imprime. Nas mulheres
Condillac sobre o perigo
está ausente a autonomia de criação, uma ca­
que a leitura de rom an­
ces represen ta p a ra as
pacidade restrita àqueles que são dotados de
moças, as quais se proje­ imaginação ativa.20
tarão na história que es­ A imaginação ativa, em contraste, supõe
tão lendo e terão dificul­ um sujeito soberano, descrito por Voltaire como
dade para voltar à reali­
a fonte de triunfos do gênio criativo na poesia,
d a d e . V. G O L D S T E I N ,
1987, p. 90- 94. na matemática, na invenção científica. A ima­
ginação ativa envolve pensam ento reflexivo,
recombinação de imagens e de idéias já exis­
21 "Car il n’est pas donné à tentes, “porque” , como apontava o filósofo, “não
l’hom m e de se faire des
é dado ao homem criar idéias; ele pode apenas
idées, il ne peut que les
modifier". "Imagination", modificá-las” .21 A modificação, porém, também
in E n c y c lo p é d le , 1751- significa melhoramento, ou seja, mercê de sua
1765, vol. 8, p. 561. arte, o homem sobreexcede o que é dado pela

57
JOaAI vv. scott

natureza. E, por m sic dessa produção que não


é mera reprodução, o hom em se torna a fonte
22LA C O U E -LA R A R T H E , de sua própria construção.22
1989, p. 255-257. Para Voltaire, a ambigüidade mais difícil
de resolver não estava no contraste ativo/passi-
vo, mas na própria imaginação ativa, que em
sua melhor expressão podia ser dirigida, para
fins úteis e iluminadores. Havia sempre, porém,
o perigo do excesso, pois, embora a imagina­
ção pudesse estar sujeita ao controle da razão,
não era intrínsecamente racional. N a verdade,
na medida em que a imaginação (de qualquer
tipo) envolve imitação ou re-presentação, o que
Lacoue-Labarthe chama de “lógica de sem e­
lhança” , ela era articulada em torno da divisão
entre aparência e realidade, presença e ausên­
cia, o mesmo e o outro, identidade e diferença
[...] E essa a divisão que fundamenta (e que
constantemente abala) a mímese. Em qualquer
nível que a tomemos [...] a regra é sempre a
mesma: quanto mais se assemelha, tanto mais
difere. O mesmo, em sua “mesmidade” , é o outro
mesmo, o qual por sua vez não pode ser cha­
m ado de “ele mesmo” , e assim por diante infi­
23 L A C O U E -L A B A R T H E , nitamente.23
1989, p. 260. Para discus­ Uma imaginação ativa se torna ativa, gra­
sões sobre imaginação v.
ças exatamente a uma forma positiva de alie­
KEARNEY, 1988; W A R -
N O C K , 1976; M U R D O - nação, por força da qual a pessoa literalmente
C H , 1986; R IC O E U R , se cria a si própria (não havendo sujeito anteri­
1986; e HUET, 1993. or sobre o qual agir). A o mesmo tempo, escon­
de-se ali a possibilidade de outro tipo de alie­
nação: o que pode ser um sucesso com o arte
também pode destrutivamente levar à loucura.
Os escritores, por exemplo, podem amalgamar­
se ou identificar-se tanto com as personagens
que criam, advertia Voltaire, que uma identifi­
cação semelhante “poderia degenerar em lou­
cura” . Esse tipo de imaginação levava o eu lite­
ralmente para além de si próprio, para um esta­
do de êxtase ou exaltação que acabava resul­
tando em erro de identidade, em confusão do

58
24 Clíãdc em L A C O U E - £U COiii O oUtí-o. H aV lcí, ales i i d O rtlcilS, d lia s
LABARTH E, 1989, p. 47.
facetas nesta confusão. O Imitador perdia o sen­
so adequado do eu e não conseguia apreciar
23 E n q u a n to qu e para as características que tornavam o outro dife­
R ousseau o "perder-se" rente de si; tanto o imitador quanto o objeto da
em sonhos era desejável, im itação eram questionados por causa da
V oltaire tratava s e m e ­
indefinição das fronteras que lhes delimitassem
lh ante “ e s ta d o ” c o m o
uma perda permanente
as diferenças. Por isso, Rousseau advertia no
do eu. Rousseau celebra­ prefácio de La n o u v e lle Héloise: “Por q u e r e r ­
va o senso de perda no mos ser o que não somos, acabamos acredi­
primeiro passseio de Les tando que somos algo que não nós próprios, e é
rêveries du p ro m en eu r
assim que ficamos loucos” .24
solitaire: "Tiré, je ne sais
comment, de Fordre des Voltaire, ao ver o perigo dos excessos im­
c h o ses, je m e suis plícito na imaginação ativa, expressou-o em ter­
precipite dans um chaos mos da perda do poder regulador da razão, que
incom prehensible oü je
é a marca identificadora do eu.25 Enquanto a
n’aperçois rien du tout, et
ficção e a poesia eram produtos aceitáveis da
plu s je p e n s e à m a
situ atio n p ré se n te et mente criadora, as imaginações “fantásticas”
moins je puis com pren- dos contos de fada iam longe demais. “Sempre
dre ou je suis". "Extraído, destituídas de ordem e bom senso, não é possí­
não sei como, da ordem
vel apreciá-los; nós os lemos por fraqueza e os
das coisas, precipito-me
num caos incompreensí­
condenam os pela razão” .26 A partir de uma
vel em que nada percebo perspectiva diferente, Condillac partilhava da
e, quanto mais penso em preocupação relativa aos perigos com que a
m inha situação, m enos
imaginação ativa ameaça o entendimento, pois
sei onde m e encontro".
ela tem o poder de recombinar as impressões
ROUSSEAU, 1 776,
v o l.l, p. 995. sensoriais de maneira “contrária à verdade” .27
A correção dos perigos potenciais da ima­
26 "Toujours dé p o u rv u es ginação ativa está nas forças reguladoras e sem­
d ’ordre et de bon sens,
pre vigilantes da razão. O limite entre ficção e
[eü es] ne peu v e n t être
estim ées; on les lit p ar realidade, erro e verdade, loucura e saúde men­
fa ib le s s e , et o n les tal, desordem e ordem necessita de um policia­
c o n d am n e p a r raison". mento constante, exercido pelos mecanismos in­
"Imagination", in Encyclo-
ternos de autogoverno. De fato, a imaginação
pédie, 1751-1765, vol. 8,
p. 561-562.
ativa é característica somente dos indivíduos
que se auto-regulam e se autogovernam, os quais
27Citado em GOLDSTEDM, com freqüência se tornam os agentes externos
1987, p. 92. reguladores daqueles que não conseguiram con­
trolar a si próprios. O verbete para “songe” (so­
nho) na Encyclopédle parece incorporar a im­
plicação dessa dupla regulagem, a interna e a

59
JOAN W, SCO TT

externa: “A imaginação em vigília é uma repú­


blica policiada, onde. a voz do magistrado res­
taura a ordem em tudo; a imaginação dos so­
28"Eimagination de la veille
nhos é a mesma república em estado de anar­
est une r é p u b liq u e
policée, o ü la v o ix du quia, onde as paixões frequentemente atacam
magistral rem et tout en a autoridade do legislador, mesmo enquanto sua
ordre; l’imagination des lei está vigorando” .28
so n g e s est la m em e
A voz da razão é a voz do magistrado (mas­
ré p u b liq u e d a n s l’état
d ’an arch ie, e n co re les
culino), a voz da lei cujas proibições regulam a
p a ssio n s so n t-e lle s de imaginação em vigília. A ordem —- tanto políti­
fréquents attentats contre ca quanto pessoal, com o sugere a metáfora — •
1*autor ité du légisiateur depende da internalização dessa lei. A anarquia
pendant le temps m eme
dos sonhos é vista com o um ataque que a pai­
o ü ses droits son t en
vigueur". "Songe", in E n - xão e o desejo prom ovem contra “a autoridade
cyclopédie, 1751-1765, do legislador” (é claro, uma figura masculina).
v. 15, p. 354. O artigo é A diferença entre dia e noite é a diferença entre
extraído de um ensaio de
ordem e caos, razão e paixão, disciplina e d e­
FORMEY, 1754. H á tam­
bém aqui u m a distinção
sejo, ativo e passivo. Os sonhos da vigília são
entre sono e estado de coerentes, sugere o autor, ao contrário dos so­
vigília, entre paixão e ra­ nhos do sono, nos quais “tudo fica descostura-
zão, entre público e pri­ do, sem ordem, sem verdade” .29N a medida em
vado. Sobre as complica­
que os sonhos subversivos estão confinados no
das fronteiras entre o p ú ­
blico e o p r iv a d o , v. sono, são apenas potencialmente perigosos. Sua
J A U M E , 19 87 ; H U N T , existência, porém, é perturbadora. A diferença
1990; e GOODMAN, para Diderot era também a diferença entre ho­
1989.
mens e mulheres. Em seu ensaio Sur les fem mes,
descreveu os fantasmas, o delírio, as “idéias ex­
29 'Tout est décousu, sans traordinárias” produzidas nas mulheres por for­
ordre, sans vérité". "Son- ça do útero, “órgão específico de seu sexo” , sus­
ge", in E n c y c lo p é d l e , cetível de “terríveis convulsões” . E, descreven­
1751-1765, v. 15, p. 356.
do casos de histeria aparentemente insanáveis,
mas curados pela intervenção de médicos ou
magistrados, Diderot continuava: “Essa imagina­
ção fogosa, esse espírito que parecia impossível
reprimir, bastava uma palavra para subjugá-lo” .30
30 "C ette im a g in a tio n “Uma palavra” , a palavra da lei, tornava inertes
fo u g u e u s e , cet esprit
essas erupções da imaginação febril.
qu’on croiraitincoercible,
um m ot suffit pour
Assim mesmo, o problema persistia para
r a b a tt r è ". D ID E R O T , Voltaire, o que é, para nós, prova da futilidade
1721, p. 429 e 431. da tentativa de fixar a lógica intrínsecamente
instável da imaginação; fonte de criatividade e

60
o u /m p e d e g o u g e s n a r e v o l u ç ã o f r a n c e s a

do eu autônomo, a imaginação sempre tendeu


para o excesso e para a alienação. Para Voltaire,
a distinção entre Homens e mulheres oferecida
pelo abade Féraud ( “uma imaginação exaltada
conduz os homens ao heroísmo e as mulheres a
31 " U n s im a g in a tio n terríveis desordens” )31 não oferecia suficiente
exaltée mène les hommes certeza. Era difícil estabelecer a linha entre so­
à l’héroisme et precipite nhos e pensamentos em vigília, escrevia ele, por­
les femmes dans d ’affreux
que idéias aparentemente coerentes podiam
égarem ents". F E R A U D ,
1987-1988, p. 175. aparecer em sonhos. Eram, porém, confiáveis?
E, continuava ele, “se é incontestável que idéias
coerentes se formam em nós, apesar de nós, du­
rante o sono, que certeza poderiamos ter de que
não sejam produzidas da mesma maneira quan­
32"Or, s’il est incontestable do estamos acordados?” 32
que des idees suivies se
O conceito de imaginação formulado por
forment en nous, malgré
n o u s, pendant notre
Rousseau acrescentava ainda outra dimensão
s o m m e il qui nous às discussões ao levantar explícitamente a ques­
assurera q u ’elles ne sont tão do desejo em termos da relação eu/outro,
pas produites de m em e masculino/feminino. Para Rousseau a imagina­
dans la veille?". "Imagina-
ção é uma faculdade a um só tempo consoladora
tion ", in E n c y c lo p é -
die, 1751-1765, vol.8, p. e perversa. Ela pode conduzir ao agradável
561. abandono dos devaneios, quando o hom em se
transporta para além de si mesmo, sem distra­
33 R A Y M O N D , 1959, p. ções ou obstáculos.33 Nesse estado o hom em se
LXXVIII. acha de certa forma mais perto da natureza, li­
vre da disciplina restritiva imposta pelos pensa­
mentos dirigidos, aberto a sensações que de
outra form a seriam desconhecidas da mente
racional. Essa concepção romântica, porém, foi
reprimida por um pressentimento de perigo. A
imaginação é uma projeção do desejo, e com o
tal, ao mesmo tem po causa e produto da civili­
zação. Enquanto o homem natural agia apenas
para satisfazer suas necessidades físicas e não
formava laços emocionais permanentes, escre­
veu Rousseau no D iscou rs sur I’origine et Ies
fondements de 1’inégalité ..., em sociedade apa­
recem as faculdades humanas da memória, da
imaginação, do egoísmo e da razão. “A imagi­
nação, que causa tamanhos estragos entre nós,

61
nunca laia ao coraçac dos selvagens, ¿A mecU-
da que os seres humanos começaram a viver
mais próximos uns dos outros, a imaginação
não só começou a expressar desejos, mas fi­
xou-os num único objeto: a[os homens] adqui­
riram imperceptivelmente idéias de beleza e m é­
rito, que logo deram origem a sentimentos de
preferência” . Daí surgiram as paixões gêmeas
do amor ( “um sentimento delicado e agradá­
vel” ) e do ciúme ( “fúria impetuosa” ). Sem ima­
ginação não havería amor, nem comércio, nem
criatividade, mas também não havería concor­
rência, nem paixões assassinas, nem guerra. A
imaginação foi ao mesmo tempo o fundamento
e a semente da destruição da organização soci­
34 R O U S S E A U , 1950, p. al e da organização política.34
247, 229, 241. N a concepção de Rousseau a imaginação
e o desejo eram uma coisa só. A imaginação,
advertia no Emile, “revela despudoradamente
para o olho não apenas o que ele vê desnudo,
mas também o que deve estar coberto. N ã o há
roupa, por mais recatada que seja, que um olhar
inflamado pela imaginação não penetre com
35 R O U S S E A U , 1979, p. seus desejos” .35 As mulheres também eram im­
134. Citado em ZERILLI, pulsionadas pelo desejo; na verdade, eram os
1944, p. 55. V. também
seus desejos que estimulavam os dos homens.
SCH W ARTZ, 1984;
W E ISS, Penny A., 1987; Segundo Rousseau, a maneira de reduzir, tal­
e MAY, 1984. vez até de eliminar, em ambos os sexos, o peri­
go dos excessos eróticos, era reprimi-los na
mulher. Dessa forma, a educação de Sofia visa
a torná-la uma criatura modesta e desapegada
de si, cuja única meta é servir o marido; tem
como tarefa reforçar a visão que Emílio constrói
de si e não procurar o próprio eu por intermédio
do dele. A chave de sua educação está no con­
trole, senão na repressão, de sua imaginação.
Ou talvez seja melhor dizer que a finalida­
de da educação de Sofia seja servir de tela so­
bre a qual Emílio possa projetar sua imagina­
ção. Nesse sentido, ela exercita apenas uma ima­
ginação passiva, nos termos do século XVIII,

62
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃOTRANCESA

isto é, uma imaginação que se alimenta de Im­


pressões alheias e não ele imagens por ela pró­
pria produzidas. Sofia não é o sujeito da sua
imaginação, é o objeto da de Emílio. N a medi­
da em que a Imaginação exprime desejo, firma
(na verdade cria) o eu pela procura de um ou­
tro; restringir a imaginação a um reflexo passi­
vo do desejo por um outro nega, então, a possi­
bilidade de se articular um sentido independen­
te do eu. O próprio Rousseau reconhecia que
sua solução era socialmente influenciada, es­
tando, portanto, aberta a críticas e revisões. Po-
der-se-ia ver a conexão entre desejo e imagina­
ção de m odo abstrato, sem fazer desta uma ati­
v id a d e ex clu siva m en te m asculina. O que
Olym pe de Gouges fez foi aproveitar-se das am-
bigüidades não apenas nas idéias de Rousseau,
mas em todas essas tentativas de abordar a
questão da imaginação.
Ver na ambigüídade da imaginação uma
desculpa para justificar comportamentos é ao
mesmo tempo tentador e arriscado. Por um lado,
Olympe de Gouges proclamava que sua imagi­
nação a colocava no nível das grandes mentes
criadoras. Sua maior identificação era, de fato,
com Rousseau, a quem se referia com o seu upai
36Citado em B LU M , 1986, espiritual” .35 Seu ponto de vista a autorizava
p. 208. (quando ignorava a insistência de Diderot no
sentido de que a imaginação das mulheres era
apenas do tipo passivo, e quando tomava ao
pé da letra o desinteresse pela questão das dife­
renças entre os gêneros nas discussões de
Voltaire) a demonstrar na prática as próprias
habilidades e a desafiar os limites impostos so­
bre as mulheres por uma sociedade cada vez
menos disposta a apreciar a diversidade de seus
talentos. Se o exercício da imaginação ativa nos
torna autônom os e autogovernados, então
Olympe de Gouges faria sua própria constru­
ção dentro dessa linha. Conquistaria o reconhe­
cimento de sua capacidade de auto-represen-

63
■JOAN W. SCOTT

37Citado em G O D IN EAU, tação (e, em conseqüência, de seu 'direito à re­


p.75. Os perigos decor­ presentação política) por força de sua imagina­
rentes de um a identifica­
ção. Por outro lado, o apelo à imaginação p o ­
ção e rrô n e a já tinham
sido assinalados, m uito dería ser visto com o transgressão ou, pior,
antes, p o r Platão, cuja insania. Diderot, afinal de contas, declarara a
República era lida cuida­ im possibilidade de a im agin ação ativa ser
dosamente, na França, no
exercida pelas mulheres, porquanto os esforços
século XVIII: “— Tu não
observaste que as imita­
que elas fizessem num tal sentido resultariam
ções, com eçadas na in­ somente em falsidade, na imitação de algo que
fância e continuadas até não lhes era próprio. Essa representação se cons­
a idade adulta, se trans­ tituía numa representação falsa, numa traição
form am em hábitos e em
tanto do signo quanto do referente, com o quan­
u m a se g u n d a natureza
no corpo, n a fa la e no do Olym pe de Gouges declarou ter se tornado
pensamento? hom em por amor à pátria.37
— Sim, de fato. O perigo desse tipo de falsa identificação
— N ã o permitiremos, po r­
é que ela tornava imprecisas as linhas de dife­
tanto, que aqu eles q ue
estão sob os nossos cui­
renciação sexual, bem com o aquelas fronteiras
dados, desem penhem o da natureza que os revolucionários considera­
papel de m ulheres que vam cada vez mais importantes para a organi­
brigam com o marido, que
zação social. Se, pelo exercício da imaginação
desafiam os deuses, que
criativa, as mulheres pudessem, de form a con­
se gloriam em alta voz de
sua felicidade, ou que, na vincente, desempenhar os papéis masculinos,
hora da desgraça, se en­ os sociais, ou ambos, como, então, se podería
treguem às queixas e às distinguir o real ou o natural de sua imitação,
lam entações - e m uito
com o justificar que a cidadania fosse restrita
menos que imitem um a
m ulher doente, a p aix o ­ aos homens? O único jeito era estabelecer al­
nada, ou em trabalho de gum tipo de autoridade investida da capacida­
parto. de de reconhecer e tornar obrigatórias as distin­
— Claro que não.
ções que supostamente constituíam as diferen­
— N em podem eles imitar
escravos, qu er hom ens
ças entre os gêneros. Contudo, com o o reinado
ou mulheres, fazendo as do Terror dos Jacobinos e o castigo infligido por
tarefas de escravos. eles a Olympe de Gouges demonstraram, se to­
— Não, nem isso das as diferenças fossem impostas e forçadas
tampouco.
da mesma maneira rígida, as diferenças entre
— N e m m esm o hom ens
maus ou covardes... Eles público e privado, virtude e traição, masculino
não devem formar o há­ e feminino, não seriam tão transparentes e aca­
bito de se assem elhar a bariam por serem desmentidas. Afinal de con­
loucos, quer em palavras
tas, o que é que havia de natural na passivida­
quer em ações; pois é pre­
ciso conhecer os homens
de da mulher, se a única maneira de impedi-la
e mulheres ruins ou lou­ de exercer a imaginação ativa era declará-la
cos, mas nunca se deve louca e fora da lei, condenando-a à morte? Fe-

64
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

Imitar o que eles fazem. mlnistas viveram e morreram pondo a n u esse


11— A mais pura verdade!".
paradoxo.
(PL A T Ã O , 395a. C, p. 43-
44).
Muito antes dos dias tumultuados da Re­
volução, Olympe de Gouges era conhecida nos
círculos literários parisienses por suas peças te­
atrais, algumas representadas pela C om edie
Française. Crítica flamejante e direta das intri­
gas do mundo do teatro, Olympe de Gouges,
atribuía, com freqüência, aos preconceitos dos
comédiens contra dramaturgas a íalta de peças
que constituíssem sucessos mais significativos.
Rejeitava (e provavelmente também ilustrava)
as objeções de Rousseau às representações te­
atrais, segundo ele, artifícios associáveis ao
comportamento das mulheres. Ela dizia insis­
tentemente que o teatro era um lugar no qual
ensinamentos morais e prazer estético podiam
38 B AR ISH , 1981, p. 256- ser combinados.38 Com isso ela continuava uma
94; e C O L E M A N , 1984. tradição de crítica ao teatro feita por mulheres
ligadas ao Le Journal des Dames e a seus
organizadores, especialmente Louis-Sébastian
Mercier (que a ajudou a publicar numerosos
39 G E L B A R T , 1 9 87 , p. panfletos e peças teatrais seus).39 Muitas de suas
212-213. peças teatrais se baseavam em temas políticos
de sua atualidade. U m a delas, Za m ore et
Mizrah, ou Lesclauage des nègres (que repre­
sentava a humanidade partilhada por negros e
brancos), foi proibida por autoridades parisi­
enses, depois de algumas apresentações em
1789, para satisfazer uma organização de se­
nhores de escravos que temiam que a peça es­
40 GR O ULT, 1986, p. 27. timulasse rebeliões nas colônias.40 Numa pro­
posta anterior à Assembléia Nacional, ela rei­
vindicava a criação de um segundo teatro, ex­
clusivo para dramaturgas. Ela garantia, para os
que duvidavam do potencial de sucesso da ini­
ciativa, que as mulheres tinham talento para pro­
duzir as inúmeras peças necessárias para que
uma freqüência regular fosse mantida. “N ã o
cabe a mim responder em nome de todas as

65
mulneres, mas se eu for tomada como o ase de
julgamento, posso muito bem submeter trinta pe­
, Ce n e ~- P °in i à moi è ças para serem analisadas” .41
rep o n d rá d e tout m o r
Em 1788, Olympe de Gouges entrou na
sexe, m ais s ’il fa u t e r
juger par m oi-m êm « política com um panfleto, L e t t r e a u p e u p le , o u
peux mettre frente pièces P r o j e c t d'une caísse patriotíque ; os estados g e­
rais (já convocados, mas ainda não reunidos)
m f pde75. GOUGES^
poderíam resolver a crise financeira do reino
por m eio de um fundo patriótico para o qual
todos os cidadãos contribuiríam voluntariamen­
te. Dizia estar escrevendo com o “membro do
zG O U G E S , 1788a, p .8. Público” 42 para este mesmo Público, isto é, aque­
le corpo de opinião esclarecida que surgiu no
século XVIII com o oposição institucional à au­
43 BAKER, 1 9 87 e 199 toridade absoluta do rei.43
OZOUF, 1987; G O l
D O N , D a n ie l 198
Nada havia de incomum em identificar-se
L A N D E S , 1988- C H A com o membro do Público. Durante o Antigo Re­
T.ER, 1991. gime, as mulheres estavam entre os que se opu­
num ero d a s d is c u ss õ nham intensamente ao absolutismo, e sua ati­
aq u i m e n c io n a d a s ci vidade assumia formas políticas mais ou m e­
H AB ER M A S, 1989
nos abertas. Os salões, administrados por mu­
lheres de elite, patrocinavam debates que con­
tribuíam para transformar o grupo numa “opi­
nião pública” crítica e contestadora. Esse pú­
blico incluía mulheres, mas somente as ricas,
44 G O O D M A N , 1 9 9 2 V instruídas e de bom nome social.44 Olympe de
também, 1 9 8 9
Gouges não era uma saloníère e não participa­
va de tais centros de sociabilidade educados e
letrados, embora se tratasse de uma arena dis­
ponível para a participação das mulheres na
vida pública. N a verdade, ela se associava a
círculos mais militantes e reformistas de homens
de imprensa, cujos jornais apelavam para uma
representação mais ampla e menos afetada.
Nina Gilbert vê esse jornalismo de oposição —
exemplificado pelo L e Journal d e s D a m e s em
seus vinte anos de história (1759-1778) — como
a fonte principal não somente da insistência
com que Olympe de Gouges estimulava a parti­
cipação das mulheres na política, mas também
de grande parte do feminismo republicano da

66
OLYMPh Oh GOUGhS NA EEVQLIG^ÂG1FRANCESA

45 G h L B A R í , especial­ Revolução.45
mente p. 29-37, 1987.
A o mesmo tempo em que exigia tornar-se
membro do Público, Olympe de Gouges estava
consciente da credibilidade limitada que as mu­
lheres tinham para falar de assuntos políticos.
A posição dessas mulheres era, nos últimos anos
do Antigo Regime e no início da Revolução, na
46 Sobre esses debates, v. m elhor das hipóteses, assunto de d ebate.46
A P P L E W H IT E e LEVY, Olympe de Gouges discutia persistentemente a
1990; B R IV E , 19 89 - favor da emancipação completa, contra os que
1991; FR ITZe M O RTON,
recusavam admiti-la e os que preferiam adtav
1976; H U F T O N , 1992;
M E L Z E R e R A B I N E , tais debates. “Este sexo, fraco demais e há mui
1992; e S P E N C E R , 1984. to oprimido, está pronto para jogar longe o jugo
de uma escravidão vergonhosa” . E ela ainda
47G O U G E S , 1788, p. 104. acrescentava: “Eu me coloquei a sua frente” .47
Ela lembrava a seus leitores que as mulheres não
eram levadas suficientemente a sério, muito em ­
bora, com o suas próprias e sábias sugestões de­
monstravam, elas pudessem ser fonte de idéias
políticas inteligentes e louváveis. Seus escritos
rebatiam de m odo direto, e com exemplos que
provavam o contrário, a idéia de que as mulhe­
res eram muito pouco práticas e demasiadamen­
te frívolas para o sério exercício da atividade
política. Era bem verdade, ela reconhecia, que
algumas mulheres se entregavam demasiada­
mente ao “luxo” , mas mesmo as mulheres boni­
tas acabariam reduzindo suas compras assim
que se abrisse esse fundo patriótico, “porque a
^ G O U G E S , 1788, p. 27. beleza não exclui a razão e o amor à pátria” .48
Suas idéias ligavam-se principalmente à facção
republicana de Girondinos e de m odo especial
a Condorcet, que escreveu que “os direitos do
homem resultam simplesmente do fato de que
ele é um ser sensível, capaz de adquirir idéias
morais e de com elas raciocinar. A mulher, que
tem essas mesmas qualidades, deve necessari­
49 C O N D O R C E T, 1790a, amente dispor dos mesmos direitos” .49 Diferen­
p. 98. ças funcionais e biológicas, segundo ele, eram
irrelevantes, pois não constituíam “uma diferen­
ça natural entre homens e mulheres que pudes-

67
JuAil Vv. SCO Ti

se legítimamente servir de base para a privação


50 C O N D O R C E T , 1790a, de um direito” .50 Para Condorcet a política -era
p. 102. uma atividade em que se engajavam pessoas
com variadas identidades. A pessoa tornava-se
política, mas a política não definia a pessoa
inteira (hom em ou mulher). A pessoa política
era, nesse sentido, um indivíduo abstrato.
O próprio argumento de Condorcet inse-
ria-se naquilo que Keith Baker denomina “dis­
curso racionalista do social” , nascido entre os
fisiócratas, “baseado em noções de direitos do
homem, de divisão de trabalho e do governo
51 BAKER, 1992, p. 202. apolítico da razão” .51 Os argumentos em favor
do indivíduo abstrato, porém, encerram um pa­
radoxo: mesmo um indivíduo completamente
auto-suficiente só o era aos olhos de um outro.
N a retórica dos revolucionários, a divisão de
trabalho em função do sexo resolvia o proble­
ma, eliminando a mulher da esfera pública e
negando-lhe a individualidade exigida dos ci­
dadãos. O gênero, naturalmente, negava a ca­
racterística de ser abstrato (e a autonomia) do
indivíduo abstrato.
Quando Olympe de Gouges argumentou
em favor da inclusão da mulher na política com
base em sua individualidade, ela enfrentou o
problema representado pelos conceitos de eu/
outro. N o discurso político de seu tempo, o indi­
víduo independente era a antítese da mulher
dependente. A noção que Condorcet tinha do
indivídu o abstrato não d a va uma resposta
52 S o b r e C o n d o r c e t, v. satisfatória a Olym pe de Gouges.52 C om o afi­
BAKER, 1992 e 1975. nal ela poderia assegurar a individualidade da
mulher? Seria possível uma simetria na oposi­
ção eu/outro, homem/mulher? Ou será que con­
siderar a mulher uma igual privaria de certa for­
ma o hom em da individualidade a ele conferida
por um outro, já que todos se tornariam iguais?
Será que “outros” poderíam simplesmente ser
“outros eus” (homem ou mulher), independen­
temente de gênero? Ou será que a ausência de

68
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

gênero confundiría as fronteiras de forma a oca­


sionar um narcisismo egocêntrico? Eram esses
os problemas lancinantes que o apelo de Con­
dorcet a uma igualdade baseada na razão hu­
mana, partilhada por todos, não abordava. Seus
escritos, porém, foram o combustível para as
argumentações de Olympe de Gouges.
Olympe de Gouges forjou sua identidade
pessoal com o membro do Público a partir de
idéias sobre a mulher então vigentes (todas elas
controvertidas) sobre a razão e sobre a opinião
pública. N a atmosfera efervescente da Revolu­
ção, onde havia muitas definições de compor­
tamento adequado sujeitas a reinterpretações,
ela se imaginava — e acabou sendo — uma
figura política de alguma visibilidade, o que con­
seguiu adaptando o agir político às mulheres, e
não reproduzindo o papel de homens politica­
mente ativos. Cada vez que ela se denomina
“homem de estado” ou cada vez que invoca seu
“gênio benevolente” , há uma referência a sua
53G O U G E S , 1789a, p.91. feminilidade.53 “E uma mulher que ousa m os­
trar-se muito forte e corajosa a favor de seu Rei
54" C ’est une fem m e qui e de seu país” .54 “ O povo, infelizes cidadãos,
ose se montrer si forte et ouçam a voz de uma mulher justa e sensível” .55
si courageuse p o u r son
Um de seus panfletos intitulava-se L e cri cTun
Roi et p o u r sa Patrie".
G O U G E S , 1788d, p. 73.
sage: Par une femme. Quando, durante o julga­
mento de Luís XVI, ao se apresentou para de­
fender o rei, sugeriu que seu sexo não devería
55G O U G E S , 1788a, p. 11-
ser tomado em consideração — “esqueçam meu
12 .
sexo” — , mas que antes não esquecessem o
“ heroísm o e a generosidade, características
(também da mulher) das quais a Revolução ofe­
56 "Laissons à part m on rece mais de um exemplo” .56N ão que ela qui­
sexe. E h éroism e et la sesse provar a semelhança entre homens e mu­
générosité sont aussi le lheres a fim de qualificar-se para a cidadania;
partage des femmes et la
queria, de fato, refutar a idéia dominante que
Révolution en offre plus
d ’un exemple". Citado em associa de m odo exclusivo masculinidade e ci­
GROULT, 1986, p. 48. dadania, tornar a diferença de sexo irrelevante
no nível político e ao mesmo tempo associar à
mulher — explicitamente com o mulher — a no-

69
ção de sujeito '‘ativo’7. Levando-se em conta,
porém, que o cidadão ativo já era definido com o
um indivíduo do sexo masculino, com o podería
ela defender a causa das mulheres?
Á a p a re n te c o n tra d iç ã o — en tre a
irrelevância e a relevância da diferença sexual,
entre a igualdade e a diferença — estava no
próprio âm ago do projeto feminista que queria
tornar a mulher um sujeito.político. A tentativa
de realizar esse projeto envolv ;o um ato de auto­
m ação no qual a mulher, definindo-se com o
tal, assumia as tarefas público-políticas execu­
tadas por homens. “Ela se fez um hom em pelo
57LAIRTULLIER, 1840, p. país77.57 isso, porém, levou Olym pe de Gouges
93. inevitavelmente à paradoxal “lógica da aparên­
cia” . N a medida em que sua imitação se saía
bem, acabava assinalando a diferença que pro­
curava superar, a qual sempre via com o uma
maravilha e uma alegria (veja a referência que
ela faz de si: aqui está uma mulher que se faz
Hom em !). Considerando-se que a diferença ine­
rente à mulher implica a distinção ativo/passi-
vo, a semelhança por ela alcançada não esta­
b e lec ia sua autonom ia, mas sua antítese.
Olym pe de Gouges representava o papel reser­
vado aos homens de forma instrumental, a fim
de tomá-lo disponível às mulheres. Essa repre­
sentação desafiava o que se entendia de m odo
consensual e inquestionável com o qualidades
masculinas e femininas, e, pior, expunha a na­
tureza contraditória e exclusiva da associação
vigente entre “H om em ” e “Cidadão” ativo. Além
disso, podería ser interpretada (e o foi em 1793)
com o falsa, porque era uma identidade simula­
da, justificando portanto a tese da exclusão.
Para Olympe de Gouges, a imaginação ati­
va conduzia à cidadania ativa. De fato, ao usar
uma para obter a outra, revelava aspectos da
conexão dessas duas noções. Em ambas, o v o ­
cábulo “ativa” tem conotação de independên­
cia e produtividade, revela o uso dos mecanis-

70
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

mos da razão no exercício da iniciativa indivi­


dual. Segundo Voltaire, os que eram dotados
de imaginação ativa se autogovem avam , tinham
capacidade de produzir idéias e imagens e, por
extensão, as instituições e as leis que ordena­
vam e 'transformavam a sociedade. Deles pro­
vinham as obras da Ciência e da Arte, com o
também a des devíamos as Leis e a Política. O
abade de Siéyes, em 1789, descreveu como “ci­
dadãos ativos” aqueles com escolaridade e
racionalidade suficientes para participar do tra­
58 A b b é Siéyes, em Préi'x- balho criativo de uma nação.58 Apenas os ho­
minaire de la Constituti- mens autônomos e capazes de prom over seu
on : R econn aissan ce et
autocrescimento tinham as qualificações, argu­
exposition raisonnée des
droits de I’ hom m e et du
mentava o abade, para representarem a si mes­
c ita r e n , cita d o em mos no momento de exercer o direito do voto.
S E W E L L , Jr., 1988, p. (Essa representação era confiável porque o sig­
110 . no e o referente eram urna coisa so.) A insisten­
cia de Olympe de Gouges de que seus pensa­
mentos e ações tinham base na imaginação des-
tinava-se a fundamentar tanto sua autonomia
e quanto sua capacidade de desenvolver um eu
autêntico (não uma cópia de um outro ), de ser
o que declarava ser, e de habilitar-se a-votar e
de ser votada.
A o tomar posição com o cidadã autêntica,
Olympe de Gouges negou o conceito revolucio­
nário de mulher — reiteradamente definida
com o cidadã passiva — , ampliando assim a
abrangência de um debate quase totalmente
centrado nos direitos dos homens, para incluir
também os das mulheres. A distinção entre ci­
dadãos ativos e passivos se baseava em teorías
antagónicas sobre direitos naturais que remon­
tavam a épocas muito anteriores a 1789. A qu e­
les que gozavam de direitos ativos eram vistos
com o indivíduos ativos, capazes de fazer esco­
lhas morais, de exercitar sua liberdade e de fa­
lar em seu próprio nome (isto é, de representar­
se). Com seu interesse comum de proprietários,
deram-se conta de que o interesse social era a

71
JOAN W. SCOTT

base sobre a qual urna fiação unificada podía


se estabelecer. Aqueles que usufruíam de direi­
tos passivos,.numa divisão funcional do traba­
lho, eram protegidos ou cuidados por outros;
com o tais, tinham “o direito de receber algo de
algum outro indivíduo, ou de receber permissão
59 TU C K , 1979, p. 5-6. V. para fazer algo” .59 (Essa definição fazia eco com
tam bém essa discussão o pensamento de Diderot que igualava mulhe­
e m S E W E L L , Jr.,1 9 8 8 ;e
res a passividade: a paixão tom ava conta delas
R O S A N V A L L O N , 1992 e
p. 41-101, 1922a.
e nelas habitava; eram moldadas por impres­
sões produzidas por outros.)
Os historiadores que estudam teorias re­
lativas a direitos naturais em geral descrevem
direitos ativos e passivos com o sistemas de lei
antagônicos, que não podem coexistir. Isso,
porém, não se coadunava com a ingenuidade
dos revolucionários franceses, que em seu pri­
meiro esforço de formar uma constituição, em
1791, conciliaram o m edo que nutriam pela d e­
mocracia e os compromissos libertários já as­
sumidos, estabelecendo duas categorias de ci­
dadãos, os ativos e os passivos. A mesma teo­
ria, da não coexistência de direitos antagôni­
cos, tampouco explica como o gênero opera den­
tro da linguagem universal da teoria política.
N os debates da Assembléia em torno da
Constituição de 1791, a posição minoritária
(apoiada por Olympe de Gouges) foi articulada
por Camille Desmoulins: “ Cidadãos ativos” , di­
zia ela aos colegas, “foram aqueles que tom a­
60Citado em S Y D E N H A M , ram a Bastilha” .60A maioria vencedora, porém,
1966, p. 67.
não apenas rejeitava a noção de que a ação
política estabelecia a cidadania; com o ainda d e­
finiram dois tipos de cidadanias. Cidadãos ati­
vos eram homens com mais de 25 anos, inde­
pendentes (não podiam exercer função de em ­
pregados domésticos) e possuidores de um grau
mensurável de riqueza, (o pré-requisito era a
propriedade, ou seja, terras, dinheiro e autono­
mia, sobre a qual pagavam um imposto direto
equivalente a três dias de trabalho). Após a que-

72
OLYMPE DE COLIGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

da da monarquía em 1792, prevaleceu urna for­


ma mais inclusiva de cidadania: todos os ho­
mens acirna de vinte e um anos que se susten­
tassem receberíam o direito de votar, ao passo
que às mulheres tal direito foi explícitamente
negado. A distinção ativo/passivo, porém, não
desapareceu de todo, mesmo que não mais a
tivessem mencionado em documentos políticos
oficiais. Defendendo que a unidade derivava da
divisão social do trabalho e do interesse social
comum, a velha distinção mantinha com o base
a teoría da representação. Esta estabelecia a di­
ferença entre aqueles que tinham o direito de
escolher representantes (literalmente, ser repre­
sentados na nação e com o nação) e aqueles a
quem se negava esse direito, isto é, os autôno­
mos, portanto os capazes de auto-representa-
ção, e os outros, os que apenas podiam ser re­
61 S obre a historia dessas presentados.61 Estes últimos, na grande m aio­
teorias d a representação, ria, eram mulheres.
consultar BAKER, 1990, A o contrário das distinções vindas da ri­
p. 2 2 4 -5 1 . V. ta m b é m
queza, as de gênero eram tidas com o enraizadas
R O S A N V A L L O N , 1992a.
na natureza, alheias, portanto, à esfera legisla­
tiva. Visto que, em geral, as constituições e os
decretos legais tratavam de regras de participa­
ção política (ativa), abandonaram-se as refe­
rências a direitos passivos. Invisibilidade, p o ­
rém, não significava ausência. Os termos cxtoyen
e cltoyenne (cidadão e cidadã) já implicavam
o contraste ativo/passivo, que, de tempos em
tempos, era renovado, com o foi o caso de Fierre
Chaumette, quando, exasperado, ao denunciar
Olympe de Gouges a um grupo de mulheres que
protestavam contra o fechamento de seus clu­
bes políticos em 1793, gritava (eu imagino):
“Mulheres impudentes, que querem tornar-se
h om en s, p o r a ca so já n ã o estã o bem
62Citado em L E V Y et alii, aquinhoadas? D o que mais precisam?” 62
1979, p. 220. Olym pe de Gouges ateve-se à definição
de cidadão ativo formulada por Desmoulins e
atirou-se à luta. Enfrentou a “opinião pública”

73
JOAN W SCO i i

na imprensa, nas ruas, na Assembléia N a c io ­


nal. Alugou alojamentos junto à Assem bléia
para facilitar seu acesso às sessões. Em encon­
tros de vários clubes, discursou em suas tribu­
nas e, pelo menos uma vez, na da própria A s­
sembléia. Suas proclamações sobre qualquer
assunto, desde a abolição da escravatura e os
direitos dos filhos ilegítimos até o veto real e as
m aternidades, freqü en tem en te cobriam os
muros da cidade de Paris. A fim de dem ons­
trar não somente a participação das mulheres
na Revolução, mas ainda a importância políti­
ca e histórica do fato, Olym pe de G ouges pla­
nejou um gigantesco cortejo fúnebre para um
herói nacional em 1792, o que ela só conse­
guiu depois de muita insistência junto às auto­
ridades. Em 1791, agindo com o uma legisla­
dora auto-proclamada, ela escreveu uma D e ­
claração dos Direitos da M u lh er e da Cidadã,
que insistia fosse adotada com o suplemento da
constituição. M esm o quando, com o ocorreu
nesse caso, seus projetos eram ignorados, com ­
portava-se com o se lhe coubesse, por vocação
estruturar o futuro da França.
Embora a eloqüência oratória de Olym pe
de Gouges fosse admirada por seus contem po­
râneos, ela mesma considerava que a mais con­
tundente forma de ação política era escrita, o
que é ainda mais surpreendente, pois, ao que
conste, escrevia com dificuldade, preferindo di­
tar seus textos a uma secretária. Julgava que
valia despender dinheiro e esforço, pois a escri­
ta, ao contrário da fala, permitia a comunica­
ção das idéias de forma perene, mantinha aquilo
que de outra forma seria uma relação transitó­
ria entre si e seus ouvintes. Se por um lado o
discurso falado exigia uma platéia concreta e
pouco numerosa, por outro lado a palavra es­
crita podia ser transmitida a um público muito
63 S LAM A, 1989, p. 291- mais amplo, cuja variedade e cujo número só
306. se limitavam pela imaginação.63

74
OLYMPh Dh GOUGES NA KJbVOLUÇÃO FRANCESA

Olympe de G oüges pôs à prova as inquie­


tações de Rousseau, que acreditava ser o dis­
curso escrito um meio de expressão menos au­
têntico do que o falado: as marcas da escrita
representam de m odo imperfeito um falante
ausente. Ela usava a escrita para estabelecer sua
identidade, exatamente como fizera Rousseau.
Ela explorava o paradoxo inerente à posição do
filósofo: a escrita pode ter sido apenas um su­
plemento da fala, mas foi o m eio que Rousseau
escolheu para apresentar regularmente suas
id éias, para m an ifesta r sua co n sc iên c ia ,
identificada pela assinatura “J. J. Rousseau55.
Uma assinatura que, embora apenas substitu­
ísse o homem propriamente dito, também esta­
belecia sua existência. Sem dúvida era essa a
explicação das reiteradas com parações que
O lym pe de Gouges fazia de si própria com
Rousseau e do m odo com o ela insistia que seu
status de escritora fosse reconhecido. Sua imi­
tação de Rousseau em ambos os aspectos dei­
xava claro que, tanto no seu caso quanto no do
filósofo, a existência do homem era antes o efeito
64Sobre essas questões, v. do que a origem de sua assinatura.64
D E R R ID A , 1976; e Para Olympe de Gouges, escrever, assinar
C U L L E R , 1982.
e publicar demonstravam para seus contem po­
râneos o que a lei escondia, isto é, o fato de que
as mulheres podiam ser, e de fato já eram, au­
toras. Sob as leis revolucionárias, as mulheres
não detinham os direitos de autores, de indiví­
duos que possuíssem propriedades intelectuais,
visto não terem os direitos dos cidadãos ativos.
Ser reconhecida com o autora significava, para
Olympe de Gouges, ser reconhecida com o in­
divíduo e cidadã. Referindo-se a suas peças te­
atrais, ela as apresentava com o provas de que
gênero não é obstáculo para talento, com o “pro­
priedade” sua, ou seja, resultado de seu traba­
65" N ’est-ce pas m on bien?
N ’est-ce pas m a proprié-
lho criativo e produtivo: “Então não são meus
té?H. G O U G E S , 1788, p. bens ativos? Então não são propriedade mi­
76. nha?” , perguntava ela retoricamente.66 Para ela,

75
JOAN W. SCOTT

. perder a possibilidade de escrever era equiva­


lente a perder a vida, como transparece no ju­
ramento que faz sobre a veracidade de suas opi­
niões na Lettre au peuple , de 1788: “O sublime
66 "Ô vérité sublime, qui
verdade, tu que sempre me guiaste, que susten­
m ’a toujours guidée, qui
soutient m es opinions,
taste minhas opiniões, tira de mim a capacida­
ó te -m o i les m oyens de de escrever se. eu algum dia trair minha cons­
d ’écrire si jam ais je peux ciência, que é iluminada por tua luz” .66 Ela se
trahir m a c o n s c ie n c e descrevia com o uma mulher irresistivelmente
éclairée par ta lumiére".
impelida a escrever, impelida por uma “coceira
G O U G E S , 1788a, p. 9.
para escrever” .67 “Eu ficava alucinada por es­
67 C it a d o em SLAM A, crever, alucinada por me ver publicada” .68 Para
1989, p. 297. ela, ver-se publicada não significava apenas ver
suas obras impressas, mas literalmente causar
68"J’ai eu la manie d’écrire;
j ’ai eu celle de me faire
uma impressão, ser fonte de sua própria repre­
im prim er". C ita d o p o r sentação, firmar-se como autora e, assim, asse­
T H O M A S , 1988, p. 309. gurar sua própria identidade.
Sobre a questão dos es­ Escrever exigia imaginação da autora, d e­
critos de mulheres na R e­
pendia disso. Por isso Olympe de Gouges atri­
volução, v. H ESSE, 1989;
v. também HESSE, 1991. buía suas habilidades, tais com o se apresenta­
S ou grata a Carla Hesse vam, à imaginação. Comparava-se aos grandes
por chamar minha aten­ pensadores da época, não por seu domínio da
ção p a ra u m a co leção
filosofia ou das teorias políticas, mas por sua
não catalogada de escri­
tos de O ly m p e de
capacidade de “sonhar” : “Mas não esperem que
G ou ges na Biblioteca P ú ­ eu vá discutir esses assuntos em discursos filo­
blica de N o v a Iorque e sóficos e políticos; foi somente em sonhos que
por deixar cópias de al­ pude persegui-los” .69 A o apelar para a imagi­
guns docum entos a mi­
nação, Olympe de Gouges evocava noções de
nha disposição.
inspiração direta e de altruísmo, que não ne­
cessitavam de nenhum fundamento acadêmico
69 "Mais en politique et en que lhe demonstrasse a eficiência. N a verdade,
p h ilo s o p h ie , vous ne a formação acadêmica podia até ser um obstá­
deviez pas vous attendre culo para a clareza da visão, garantia ela; sus­
à m e v o ir traiter u n e
tentava, por exemplo, que a versão que apre­
sem blabe matière; aussi
ce n’est q u ’en rêve que
sentava das origens sociais do homem era mais
j ’ ai pu l’ e x e rc e r". plausível do que a do próprio Rousseau. Segun­
G O U G E S , 1789b, p. 3. do ela, o filósofo era brilhante demais para con­
seguir imaginar o verdadeiro caráter do hom em
primitivo. ( “Jean Jacques Rousseau era exces­
sivamente iluminado para que seu gênio não o
levasse longe dem ais” .) E considerava ela,

76
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

Quanto a m im jqu e me ressinto dos efeitos


dessa ignorancia primordial, e estou, a um so
tem po colocada neste século iluminado e dele
deslocada, minhas opiniões podem ser consi­
70"Jean-Jacques avait trop deradas mais corretas do que as dele” 70 Sem e­
de lumiéres pour que son
lhante inocencia ou simplicidade permite que
génie ne Temportát pas
tro p lo in ;.."; "q u i m e se im agine identificável aos seres humanos
ressens de cette premiére primevos, ou, pelo menos, torna suas historias,
ig n o r a n c e , et q u i suis os frutos de sua invenção, mais plausíveis. A
p la ce e et d é p la c é e em
imaginação é um processo de pensamento que
m é m e tem p s d a n s ce
siécle é c la iré , m es
não depende de erudição e que, portanto, trans­
o p in io n s p e u v e n t étre mite imagens que se aproximam mais da natu­
p lu s ju s te s que les reza e da verdade. “Em meus escritos sou uma
s ie n n e s ". GOUGES, estudante da natureza; tanto quanto ela, eu de­
1788, p. 6.
veria ser irregular, mesmo bizarra, mas também
71"Je suis, dans mes écrits, sempre verdadeira, sempre simples” .71
l’eléve de la N ature; je Essa concepção romântica (rousseaunia-
dois étre, co m m e elle,
na) da imaginação chega muito perto da rejei­
irréguliére, bizarre méme;
mais aussi toujours vraie, ção total do papel disciplinador da razão. E des­
to u jo u rs s im p le". crita com o quase puramente reflexiva, com o a
G O U G E S , 1789a, p. 96. reprodução que a imaginação passiva faz da
própria natureza. Para Olympe de Gouges, a
natureza nada tem a ver com as hierarquias que
os homens criam; na verdade, ela se caracteri­
za por uma confusão anárquica, ainda que har­
moniosa. “Vejam, procurem, e depois, se pu­
derem, tentem distinguir os sexos na adminis­
tração da natureza. Por toda parte vocês os ve­
rão misturados, por toda parte eles cooperam
harm oniosam ente dentro dessa obra prim a
72 "Cherche, fouille et dis­ imortal” .72 Da mesma forma, na questão da cor,
tingue, si tu le peux, les Olympe de Gouges argumentava que a nature­
sexes dans l’administra- za não apresenta qualquer m odelo que justifi­
tion de la Nature. Pcirtout
que a distinção de cores que os homens inven­
tu les trouveras confon-
dus, partout ils coopérent
tavam: “A cor do homem tem nuances, com o
avec un ensemble harmo- também todos os animais que a natureza pro­
nieux à ce chef-d’oeuvre duziu, tanto quanto as plantas e os minerais.
im m o rtel". GOUGES, Por que a noite não entra em rivalidade com o
1791, p. 101.
dia, o sol com a lua e as estrelas co m o
firmamento? Tudo é variado, e é aí que reside a
beleza da natureza. Por que então destruir sua

77
73 "La couleur de fhom m e ob rar"73 Mas ao mesmo xempe em q u e procla­
est muancée, co m m e
mava que a própria natureza com provava seus
dans tous les anim aux
que la Nature a produits,
pontos de vista, ela também insistia que suas
ainsi que les plantes et les interpretações eram mais do que um simples re­
m inérau x. P o u rq u o í le flexo da natureza. Nesta, os seus projetos podi­
jour ne le dispute-t-il pas am ter raízes, mas, na verdade, eram arranjos
à la nuit, le soleil à la lune,
produtivos e aplicações destinados à socieda­
et les étoiles a u firm a-
ment? Tout est varié, et de humana do que ela tinha visto na natureza.
c’est la la beauté de la Nesse sentido sua imaginação em ativa, não
N atu re. P o u rq u o i done passiva: uma reflexão aprofundada agindo a
détruire son O uvrage?"
partir da verdade transparente.
G OUGES, 1788c.
Em matéria de im aginação O lym pe de
Gouges se recusava a aceitar os limites de gê­
nero. A semelhança de Condorcet, ela defendia
a idéia de que a razão e a capacidade de pen­
sar desconheciam limites relacionados com
sexo. Ofereceu uma prova da capacidade de se
auto-regular quando atribui um juízo errôneo
que havia feito (sobre as boas intenções do rei
para com a Assembléia Nacional) à temporária
desorientação de sua imaginação, a qual “an­
dou sem rumo” (explicou ela). Reconhecer essa
desorientação foi por si só uma correção, um
e x e m p lo ca b a l de sua c a p a c id a d e d e
™Repentir de M adam e de autocontrole.74
G o u g e s , s e te m b ro de Para Olym pe de Gouges, a imaginação
17 91 . N e s s e p a n fleto ,
oferecia uma boa maneira de escapar das fron­
Olym pe de G o u ges res­
ponde aqueles que duvi­
teiras restritivas ligadas ao gênero e de demons­
daram de seu patriotismo trar sua relevância de forma nova e contrária
p o r q u e e la criticou a aos conceitos anteriores. Em Séance r o y a lle , cujo
Constituição. Essas críti­ subtítulo era “Les songes patriotiques” , obra
cas, explica ela, vieram
d ed icad a ao D uque de O rléans em 1789,
quando "minha imagina­
ção divagava". G O U G E S , Olympe de Gouges imaginava uma entrevista
1791, p. 1. real na qual falava primeiro o Duque e depois o
Rei, ambos reafirmando a necessidade de se
manter o veto real (que a Assembléia queria
abolir). Utilizava-se de várias vozes para pro­
var seu ponto de vista: primeiro, da própria voz,
dedicando a obra ao Duque e lembrando-lhe
da necessidade de as mulheres escritoras serem
reconhecidas e da promessa que fizera de asse-

78
OLYMPE Dh GOUGES NA REX/Ol Ul'AO ãKANOESA

guiar um cargo para seu filho. Ela relacionava


suas dificuldades com as limitações imposta? a
seu sexo: “E horrível que as mulheres não te­
nham as mesmas vantagens que os homens no
sentido de educar seus filhos” . Depois, falava
na voz do Duque, que propunha seu plano- ao
Rei. “Bem, Majestade, uma mulher, um ser ig­
norante, um espírúo visionário [...] tem a cora­
gem de alertar seu Rei para o único m eio de
salvar a França” . Em seguida, assumia a voz
do Rei, quando insistia na manutenção das prer­
rogativas reais, em nome dos seus deveres pa­
ternais para com seu povo, sua Nação, Depois
novamente falava o Duque de Orléans, ao pro­
por, como artigos da Constituição, o divórcio e
o direito dos filhos ilegítimos a tratamento igual
ao de todos na sociedade, juntamente com o
75 "E h b ie n , S ire , u n e veto re a l75 (Olympe de Gouges tinha uma ha­
fem m e, um être ignore,
bilidade especial para inserir reivindicações fe­
um esprit visionnaire... a
le courage d ’avertir son
ministas em outros programas políticos. Quan­
Roi du seul m oyen qui do escreveu a Declaração dos Direitos da M u ­
peut sau ver la France". lher, dedicou-a a Maria Antonieta, com a pro­
G O U G E S , 1789b, p. 6, messa de que, dando apoio à obra, a rainha
11 e 30.
recuperaria a admiração de seus súditos.)
Uma das leituras de Les songes patriotiques
é a de uma peça teatral constituída de três lon­
gos m onólogos; é inegável que O lym pe de
Gouges usava a forma literária com a qual es­
tava mais familiarizada para pôr em evidência
suas idéias políticas. Noutra leitura, porém, a
obra é um exemplo do potencial político d o so­
nho; sonhar (que era sinônimo de imaginar)
dava uma extraordinária liberdade de expres­
são tanto para Olympe de Gouges, que assu­
mia pelo menos três identidades (duas das quais
masculinas), quanto para as personagens por
ela criadas. O Duque d’ Orléans tornava-se um
arauto fervoroso das reivindicações feministas,
ao m esmo tem po em que defendia o poder
monárquico; embora isso não passasse de um
sonho, a materialização desse sonho em texto

79
impresso poderla exercer influência no Duque em
pessoa, sugeria Olympe de Gouges timidamen­
76 "O n s’ap p ro c n era te, e assim “talvez se aproxime da realidade” .76
peut-être de la réalité". Uma vez que os sonhos questionavam e
G O U G E S , 1789b, p. 19.
m esmo reorganizavam as fronteiras entre fic­
ção e realidade, também acabavam m exendo
com os limites que estabeleciam para as dife­
renças sexuais. As descrições que Olym pe de
Gouges fazia de si mesma assumindo identida­
de de homem poderiam ser tomadas por alguns
leitores de hoje com o exem plo de sexualidade
77 V B U T L E R , 1993a, p. transgressiva.77N ão creio, porém, que fosse esse
93-120. o caso. O que ela provavelmente pretendia era
eliminar a questão da identidade sexual das dis­
cussões políticas, ao mesmo tempo em que as­
sumia a importância da atração heterossexual
nas relações sociais. Ela não defendia a tese de
que as mulheres deveríam se tornar homens fí­
sica ou psiquicamente e julgava que o desejo
pelo sexo oposto desempenhava um importan­
te papel na construção do eu. Ela queria produ­
zir uma identidade política para as mulheres,
que ao mesmo tem po se apropriasse das quali­
dades (supostamente masculinas) que serviam
para afirmar a individualidade, incorporando-
as num indivíduo que pudesse ser definido como
78 N a Encyclopédxe, v. 5,
mulher. O que estava em jo g o era um exercício
p. 601, Em ulação [ ‘Em u-
de emulação, ou seja, o impulso no sentido de
lation) é definida com o
aquela "nobre e genero­ adquirir para si mesmo ou para si mesma as
sa paixão que adm ira o qualidades morais ostentadas por uma figura
m érito, a b e le z a , e as idealizada.78 Emulação não significava aquisi­
aç õ e s d o s outros; q u e
ção das características físicas da masculinida­
tenta imitá-los e m esm o
superá-los". N ã o tem re­ de, mas o exercício contínuo daqueles proces­
lação algum a com os sen­ sos de auto-instrução naquela época reserva­
timentos baixos de ciúme dos aos homens. De onde, porém, deveria pro­
ou inveja; na verdade, era
vir a afirmação do eu? Dentro da econom ia da
vista co m o estím ulo à
atração heterossexual, ela só poderia provir do
ação corajosa, pois apre­
senta um m o d e lo , um outro da mulher: o homem.
e x e m p lo s o b r e o q u a l Olympe de Gouges parece ter aceitado a
p o d e ser co n stru íd o o heterossexualidade sem discussão ou dúvida,
próprio eu.
tanto em sua própria vida quanto na socieda-

80
GLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

de. Via nela uma força da sociedade,- à sem e­


lhança de Rousseau em suas visões de política.
Havia, porém, uma peculiaridade em suas vi­
sões. Embora freqüentemente considerasse seus
sonhos realizáveis, por causa do dom natural
que a mulher tem de inspirar desejo no homem,
ela também explicava suas ações com o resulta­
do de seus próprios desejos. “ Unicamente o
bem-estar de meu país e o amor e o respeito
que tenho por meu Rei têm animado minha
verve” . Ela procurava provocar as mesmas ima­
gens na im aginação dos outros, “ a fim de
inflamá-los com o amor de que me sinto imbu­
79G O U G E S , 178Sa, p. 30, ída pelo país” .79 Essa declaração tem a ênfase
23. característica de Olympe de Gouges, mas é tí­
pica da militância feminina.
O lym pe de Gouges aceitava a idéia de
I' Rousseau segundo a qual a mulher era, de uma
r- forma ou de outra, responsável por provocar o
desejo no homem, mas isso era apenas parte
da história. O amor e o casamento eram base­
ados em “inclinações recíprocas” do casal. Em
Le bonheur primitif de 1’homme, ela afirma que
o adultério é a transição de uma família grande
e harmoniosa para uma sociedade mais com ­
plexa: aborrecido com a própria esposa e com
a uniformidade da vida que o cerca, um dos
filhos do pai primitivo deseja a mulher do pró­
ximo e acaba seduzindo-a. Olympe de Gouges
descrevia a mulher com o sendo “fraca e mais
culpada do que seu amante” , presumivelmente
porque ela deixou de controlar o desejo dele,
mas também o seu próprio desejo: “O mesmo
r vício, a mesma inclinação, subjugaram sua ra­
¡ 80"Le m êm e vice, le même zão e sua virtude” .80
penchant avoit subjugué Para Rousseau, o delicado sentimento do
sa raison et sa vertu".
amor também trazia uma contradição, pois o
G O U G E S , 1788, p. 18 e
25.
desejo que o homem sentia pela posse exclusi­
va do objeto amado levava à discórdia e à in­
veja presentes na sociedade e na política. Para
Olympe de Gouges, pelo contrário, o amor e o

81
/V.'SL

desejo podidi 11 5€iT¡£a± ct d é S o f d S í í i, í í W iSSG


não era inevitável. Eram as Instituições sociais
que tom avam o desejo bom ou mau; ser born
ou mau, portanto, eram questões que dependi­
am da própria sociedade. A fim de garantir uma
mudança, Olympe de Gouges fez campanhas
pelos direitos dos filhos ilegítimos e redigiu um
contrato pelo qual cada progenitor podia reco­
nhecer os filhos como legítimos, “ independen­
temente da cama onde possam ter sido gera­
81 S e g u n d o L A C C O U R dos” .81 Ela insistia, na Declaração dos Direitos
(19 0 0 , p. 8 7 -8 8 ), esta da Mulher, que o direito de livre expressão dava
p ro p o sta era um erro,
às mulheres o poder de revelar a identidade dos
pois legitimava o adulte­
rio em nom e d a moral. pais de seus filhos ( “sem ser[em] forçada[s] por
Ele atribuía a proposta às um preconceito bárbaro a esconder a verdade” ).
influencias aristocráticas Todas essas propostas implicavam a inevitabi­
sobre o pensam ento de
lidade do desejo no homem e na mulher e pro­
Olym pe de Gouges.
curavam tornar suas conseqüências sociais e
pessoais inofensivas. N a verdade, Olympe de
Gouges negava que a possessividade masculi­
na fosse um acessório inevitável do amor e su­
geria que houvesse maior flexibilidade para as
manifestações imaginativas que compunham o
sentimento amoroso. Se por um lado ela acre­
ditava que as mulheres podiam levar o homem
à ação (certa vez ela se manifestou orgulhosa­
mente, dizendo “nada pode resistir a nosso ór­
82Citado em L E V Y et alii, gã o sedutor” )82, ela não tinha as fantasias
1979, p. 170. misóginas de Rousseau, segundo quem a força
da mulher era tal que podia dominar qualquer
homem. N a verdade, o desejo sexual da mulher
era um componente igual ao desejo sexual do
hom em para a construção do casal heterosse­
xual e do eu de cada membro do casal. Era o
resultado não da objetificação da mulher pelo
homem, mas do próprio desejo que a mulher
alimentava pelo outro, a expressão do eu volitivo
da mulher.
Olympe de Gouges procurou ativamente
alternativas para a subordinação política da
mulher. A o reivindicar que os direitos do ho-

82
OLYMPE D GUÜG-S MA iAtVOLGCÃO FRANCESA

mem fossem também concedidos à mulher, ela


procurou fazer com que a individualidade da
mulher se realizasse plenamente, não atra ves de
rejeição da diferença sexual, mas através da
equiparação das atividades de ambos os sexos.
Para ela, a identificação da Mulher com o H o ­
mem, pela imaginação, não acarretava a rees­
truturação da identidade sexual propriamente
dita, mas a ampliação das possibilidades políti­
co-sociais da mulher.
A Declaração dos Direitos da M ulher e da
Cidadã fo i um passo nessa direção. N ela,
Olympe de Gouges procurou oferecer os argu­
mentos que garantiriam para a mulher os direi­
tos de cidadania ativa. Os dezessete artigos da
Declaração estabelecem um paralelo exato com
os artigos da Declaração dos Direitos do H o ­
m em ; freqüentemente ela substitui a palavra
“H om em ” pelas palavras “Mulher e H om em ” ,
83 A q u i é útil pensar em
mas dá ênfase especial a que se reconheça o
term o s da noção de direito de expressão das mulheres com o chave
J a cq u e s D e rrid a sob re para sua liberdade. A o pluralizar o que era sin­
suplemento, como tendo gular Olym pe de Gouges indica que o “ H o ­
um efeito duplo e contra­
m em ” sozinho não representa a humanidade.
ditório. E ao mesmo tem­
po um a som a e um a subs­ Se a Mulher não é mencionada explicitamente,
tituição, algo supérfluo, então é excluída. Sua inclusão, por outro lado,
mas tam bém necessário torna imperativo que, em relação ao Homem,
para a completude. Sua
se lhe reconheça a diferença, a fim de esta se tor­
presen ça é, ao m esm o
tem p o , d e m a s ia d a e
ne irrelevante do ponto de vista dos direitos políti­
in d ic a d o r a da não cos.83 Este é, sem dúvida, o significado da surpre­
completude daquilo que endente afirmação que conclui o preâmbulo da
se dizia completo e total­ Declaração dos Direitos da Mulher, “o sexo supe­
m en te p resen te.
rior tanto em beleza quanto em coragem quando
DERR IDA, 1981a, espe­
cialmente p. 43, e, 1976 dá à luz um filho reconhece e declara, na presen­
p. 141-64. Para um a ex­ ça e sob os auspícios do Supremo Ser, os seguin­
plicação concisa do con­ tes direitos da mulher e da cidadã” .
ceito de suplemento, v. a
Nos arts. X e XI, Olympe de Gouges rea­
Introdução que Barbara
Johnson escreveu para a
firma as garantias revolucionárias de liberdade
tradução d a obra Disse- de opinião e de livre expressão de idéias, mas
m in ations d e D e r r id a acrescenta razões explícitas pelas quais ela re­
(1981, p. XIII). conhece que tais direitos são também das mu-

83
lheres, “A mulher tem o direito de subir ao ca­
dafalso; ela também deveria ter o direito de su­
84 Déclaration, p. 99-112. bir à tribuna” .84 O que significava não só falar
Para um a leitura diferen­ em público, mas específicamente poder dirigir-
te deste docum ento, v.
se aos delegados da nação reunidos em assem­
G E H A R D , 1994.
bléia. Se as mulheres estavam sujeitas às forças
coercitivas da lei, argum entava O lym pe de
Gouges, então deveríam também ser participan­
tes ativos da formulação das leis
N o art XI, Olympe de Gouges considera
a liberdade de expressão com o o mais precioso
direito da mulher e diz porquê: “A livre comuni­
cação de idéias e opiniões é um dos mais preci­
osos direitos da mulher, pois garante que os pais
reconheçam seus filhos. Qualquer cidadã, por­
tanto, pode dizer livremente: eu sou a mãe de
teu filho, sem ser forçada por um preconceito
bárbaro a esconder a verdade” . Nessa formula­
ção, a liberdade de expressão conduz não só à
partilha de responsabilidades em relação aos
filhos entre pai e mãe, mas também modifica a
im agem dos homens com o puramente racio­
nais, chamando a atenção para eles com o se­
res sexuais. A liberdade de expressão dá voz aos
op rim id os, perm itindo-lhes trazer à luz as
trangressões cometidas pelos poderosos e exi­
gir que sejam postas em prática as obrigações
sobre as quais a coesão social e as liberdades
in d ivid u a is se fu n d am en ta m . O ly m p e d e
Gouges, ao contrário de Rousseau, faz com que
seu art. XI pressuponha que as mulheres dirão
a verdade, mesmo em se tratando de sua gravi­
dez — que só elas, em geral, sabem a quem atri­
buir. A gravidez, portanto, se transforma em um
tema epistemológico e não apenas natural, e fica
evidente que a maternidade é também uma fun­
ção social. O art. XI se movimenta em m eio a
registros do universal e do particular; revela o
interesse específico que as mulheres têm em
exercer sua liberdade de expressão e o interes­
se específico que os homens têm em negar-lhes

84
üLYMPh DE GOUGhS NA REVOLUÇÃO FRANCESA

esse direito. Por isso, a própria idéia de univer­


salidade torna-se viciada, por que é vista com o
manto protetor de um interesse específico (mas­
culino). Este artigo denuncia especificamente e
refuta implicitamente o m otivo pelo qual as
mulheres são excluídas das fileiras de cidadãs
ativas: seu papel de reprodutoras. N a Declara­
ção de Olympe de Gouges, tanto o homem quanto
a mulher são responsáveis pela reprodução, ten­
do ambos, portanto, direito à voz pública. Ela
negava o artifício com quais os revolucionários
tentavam justificar a restrição das mulheres ao
papel de cidadãs passivas, ou seja, as oposições
entre o público e o privado, entre o produtivo e o
reprodutivo, entre o racional e o sexual, entre o
político e o doméstico. Insistindo na possibilida­
de — ainda viva nas propostas de Condorcet e
de alguns girondinos — de o gênero não ser uma
diferença relevante em questões políticas, ela es­
crevia: “O princípio de toda a soberania reside
na Nação, que nada mais é do que a união [Ia
réunion] do H om em e da Mulher” .
Num posfácio à Declaração, Olym pe de
G ouges apresenta uma concepção nova da
união da Mulher e do H om em , uma nova for­
ma de “contrato social” . Os revolucionários ti­
nham incluído na constituição de 1791 a afir­
mação de que o matrimônio era um contrato
civil, e o fizeram principalmente para torná-lo
in d ep en d en te d o co n trole da Igreja. Essa
laicização do casamento não só abriu caminho
para as leis do divórcio de setembro de 1792
(permitindo que qualquer um dos cônjuges dis­
solvesse uma união insatisfatória ou infeliz), mas
também para propostas com o a de Olym pe de
Gouges, que visavam a redefinir os termos do
85 R O N S IN , 1 9 90 ; próprio contrato.85 Concebido com a finalidade
PH IL LIP S, 1980 e 1988; de substituir o casamento, “o túmulo do amor e
e TRAER, 1980. da confiança” , o contrato civil propugnado por
Olympe de Gouges declarava a igualdade total
entre os cônjuges. Havia, evidentemente, res-

85
salvas nessa igualdade, pois do contrário seria
ociosa a noção de união. As difere-' 'as, porém,
não se referiam a questões de hie '. nula, nem
de exclusão social e política da muiber. O casal
estava “unido, mas igual em força e em virtu­
d e” ; essa união não subordinava um ao outro
nem obliterava a visibilidade e a função da mu­
lher. Bem ao contrário, os cônjuges teriam di­
reito de transmitir suas propriedades com o bem
lhes aprouvesse; os filhos poderiam receber o
sobrenome do pai ou da mãe, e todos seriam
legítimos, frutos de quaisquer uniões. As famíli­
as se transformariam em unidades de amor e
afeição que transcenderíam os desejos ou inte­
resses específicos de cada cônjuge, segundo ela,
volúveis. Acima de tudo, o “contrato social” de
Olympe de Gouges acabaria com a subordina­
86 U m a outra maneira de ção das mulheres, porquanto retiraria dos ma­
dizer isso seria usar a no­ ridos a autoridade sobre os filhos e também pro­
ção de Carole Pateman
priedades; o poder patriarcal seria anulado com
sob re contrato sexual.
O lym pe de G o u ge s d e­
a eliminação da exclusividade de, para a famí­
nuncia e reverte os ter­ lia, o nom e do pai ser o único a ter significação
mos do contrato sexual (o perante a lei. 86
acordo entre homens so­ Olym pe de Gouges julgava que suas pro­
bre a troca de mulheres)
postas de reforma do casamento coincidiam
que subjaz ao contrato
social e, inevitavelmente, com os limites da lei universal em que se basea­
im pede que, dentro de vam as sociedades, e, segundo acreditava, ofe­
seus termos, as mulheres reciam um novo arranjo para as relações entre
alcan cem a igu ald ad e .
mulheres e homens, semelhante aos que a Re­
P AT E M A N, 1988. V. tam­
bém R U B IN , 1975.
volução criara. Se a hierarquia dos governos
podia ser modificada por uma Assembléia N a ­
cional e se a soberania podia ser atribuída ao
povo, por que, então, não acalentar planos que
pusessem fim à escravidão e alterassem os la­
87Sobre a virtude das m u­
ços legais do matrimônio? Tais planos não ape­
lheres, em geral ligada
acima de tudo à castida­ nas tornariam as leis francesas conformes com
de e à fid e lid a d e , v. os princípios da lei universal, argumentava ela,
O U T R A M , 1987, p. 120- eles, ainda, melhorariam os padrões morais e
35 e ,1989 p. 126. Sobre
tornariam as mulheres mais virtuosas.87
um conceito mais geral de
virtude, v. B LU M , 1986. Embora Gouges apelasse para a lei de uma
maneira direta, sua noção de lei era na verdade

86
OLYM Ph Dh GOUGhS MG REVOLUÇÃO FRANCESA

contraditória, Aceitava a premissa de que se tra­


tava de fator chave para a coerência na socie­
dade, entretanto sua concepção de lei universr:
incorporava uma representação simbólica (mas­
culina) que, em última análise, subvertia seus
planos de reforma. Essa concepção ficou evi­
dente na história que Olympe de Gouges con­
tava sobre a origem da sociedade. Segundo ela,
tudo começou com uma família que se reuniu
em torno da cama do pai moribundo, cujas úl­
timas palavras enunciaram a lei que guiaria os
filhos na sua ausência. Embora neles reconhe­
cesse a tendência de “desobedecer e revoltar-
se’5, neles reconhecia também o desejo de su­
bordinar-se55 a sua lei. Depois de recordar-lhes
a história de como emergira do estado selva­
gem (segundo a qual, ao observar um ninho de
pássaro, lhe adviera a Idéia de com o abrigar a
si e a sua família contra as intempéries), ele pro­
nunciou sua lei: a chave da felicidade residia
na cooperação, no cuidado da terra, na igual­
dade, e, especialmente, na regra de ouro: “ Res­
peitar de m odo absoluto os direitos dos irmãos,
dos vizinhos e dos amigos” . Os que violassem
esta regra deveríam ser expulsos da família e
88 G O U G E S , 1788, p. 12, excluídos de todos os benefícios da sociedade.88
14- Aquela lei paterna destinava-se a contro­
lar as pulsões que se opõem à igualdade e à
felicidade. E por força dessa lei que o pai cria a
família e a sociedade: ao pai não cabe o papel
biológico, mas o regulador. Além do mais, não
há primeira mãe na narrativa de Olym pe de
Gouges. C om exceção de uma referência que o
pai faz a sua “com pagne” , a mãe, que — é de
presumir — pariu todos os filhos, permanece
invisível, ausente, é personagem irrelevante nes­
sa narrativa sobre a origem da sociedade. Sim ­
bolicamente, a eliminação da mãe firma a au­
tonomia do pai (e dos filhos varões, subseqüen-
temente) em assuntos políticos e sociais. As mu­
lheres são uma das coisas sobre as quais os ho-

87
JOAN W. SCOTT

rnens ( “ irmãos, vizinhos, am igos55) exercem


seus direitos individuais. Muito em bora Olym-
pe de Gouges descreva o casamento com o uma
união de iguais baseada na inclinação mútua,
as mulheres nunca são associadas à articula­
ção da lei ou à criação da sociedade. O legis­
lador é homem. Os “irmãos, vizinhos e ami­
gos” que se sujeitam à lei fazem -no identifi­
cando-se com o pai, razão porque, por sua vez,
tornam-se eles próprios legisladores. A identi­
ficação dos “ irmãos, vizinhos e am igos” com
o pai provém da masculinidade compartilha­
da, que consiste seja no direito incontestável
do acesso sexual à mulher, seja na exclusão
da mulher do reino da política e da lei. O sim­
bolism o do legislador masculino, em outras pa­
lavras, estabelece os termos da m onogam ia he­
terossexual e restringe a cidadania ao homem.
Esse simbolismo representa a diferença sexual
com o uma relação assimétrica na qual a mu­
89 M inha leitura fica aqui lher garante a individualidade do hom em .89 Tal
influenciada pela obra de simbolismo dá origem, também, a um prop ó­
Jacques Lacan e de seus
sito, o de associar as mulheres às funções “na­
intérpretes feministas. V.
CO RNELL, 1991; turais” da gravidez e da sexualidade, e os h o­
G R O S Z , 1990; e G A L - mens à reprodução social e à racionalidade.
LOF¡ 1985. C om o tal, esse simbolismo é paradoxal em re­
lação à meta pela qual O lym pe de G ouges se
batia, ou seja, acabar com a subordinação
das mulheres na vida política. Parece que o
fato de aceitar a construção sim bólica da di­
ferença sexual em sua cultura se chocava, fun­
damentalmente, contra as sugestões práticas
que propunha para a reform a da instituição
do casamento.
Essa associação simbólica da lei com a
masculinidade levou ainda Olym pe de Gouges
'I:
A a endossar a monarquia com o a form a mais
coerente de governo. (Ela ajustava suas idéias
ao comportamento de Luís XVI durante o curso
• ¡
’ '' da Revolução, condenando-lhe a fuga e as trai­
J ;l
í .i ções de junho de 1791, mas apoiando-o após

88
OLYMPE DE GOUGES N A EEVCGUÇÃO FRANCESA

sua prisão. Quando o Terror dom inava, ela


anunciava que “tinha nascido com caráter re­
publicano e com ele morreria” , mas em suas
discussões gerais sobre governo ela parece ter
50A mistura de principios, preferido a monarquia.)90 Olympe de Gouges
com prom isso político e
freqüentemente se referia ao rei corno “o pai de
d e c a lcu lism o p e s s o a l
que motivavam Olym pe
seu povo” , mas considerava-o mais do que um
de G ou ges fica evidente simples pai e não julgava que o predom ínio do
num pequeno texto que masculino nas famílias era conseqüência da ne­
ela escreveu em setem­ cessidade que a nação tinha de ter um rei. Para
bro de 1791, Repentir de
ela, o rei era um legislador sábio, a incorpora­
M adam e de G ouges, no
qual ela rebate aqueles ção da própria lei. A semelhança do magistra­
q u e d u v id ara m de seu do que aparece no verbete “sonhos” da En-
patriotism o p o rq u e ela cyclopédie, o rei era a figura externa responsá­
criticou a Constituição.V.
vel pela ordem e pela administração racional.
também, N o ta 74.
A presença do rei garantia flexibilidade nas re­
lações pessoais dos súditos, para as quais tam­
bém ao rei cabia estabelecer os limites. A ex­
tensão desses limites, por sua vez, dependia do
magistrado, um perito encarregado de manter
os limites em nom e da razão. N o entender de
Olym pe de Gouges, os reis eram mais próprios
para a tarefa de magistrado, pois era-lhes natu­
ralmente mais desenvolvida uma benevolente e
desinteressada capacidade de liderança . Um
dos problemas de uma república era não haver
uma figura marcante que pudesse ficar acima
das disputas com o legislador: havia somente
artífices da lei, imperfeitos, pouco confiáveis e
irmãos em conflito, lutando pelo papel que o
91 O fato de que Olym pe
de G o u ges tenha acredi­ “primeiro pai” desempenhava. Outro problema
tado que os direitos da da República era que ela já se encontrava nas
mulher podiam ser recon­ mãos dos “filhos” , pouco dispostos a partilhar
ciliados com a monarquia
o poder com suas irmãs. Um rei, pensava ela,
era, para alguns historia­
do res, um fe m in ism o
não correrla o risco de estabelecer um m ono­
"aristocrático11que se har­ pólio somente para seus filhos, pois sua bene­
monizava com correntes volência faria com que ele visse os méritos de
mais novas e mais dem o­ suas filhas, com o era o caso de O lym pe de
cráticas. V. D E V A N C E ,
Gouges, que reivindicava os direitos políticos
1977, p. 352. V. também
L A C C O U R , 1900, p. 57- das mulheres.91 O apoio que deu à monarquia,
58. portanto, serviu com o crítica e com o um corre-

89
JOAN W. 5COTT

:¡vc para as práticas da republica, que excluía


as mulheres.
Segundo Olympe de Gouges, o m onopo­
lio do poder político pelo masculino não era urna
conseqüência da monarquia. Seus escritos, por­
tanto, tinhám um efeito contraditório, pois a um
só tempo reproduziam e solapavam a idéia de
que a lei é a Lei do Pai. Suas propostas de re­
forma dos estatutos do casamento eram ideali­
zadas com o um meio de desafiar a exclusão da
mulher da política, mas ela não as considerava
propriamente subversivas para a ordem da so­
ciedade de seu tempo. Outros, porém, não as
viam assim. O a p oio inicial de O lym pe de
Gouges à monarquia era visto com o um sinal
de deslealdade à Revolução, da mesma forma
era também a sua campanha para que os direi­
tos do homem fossem estendidos às mulheres.
Se ela acreditava que seu apoio à monarquia
era um apoio à lei, outros concebiam suas cam­
panhas, uma para tornar as mulheres cidadãs
ativas e outra para reformar o casamento, com o
uma ameaça de supressão das linhas da dife­
rença sexual que fundamentavam a autoridade
da lei. (Se as duas propostas foram tratadas
com o aspectos do mesmo crime, isso sugere
uma conexão entre elas, para além do que a
própria Olym pe de Gouges podia imaginar.)
Olym pe de Gouges tinha uma noção clara da
d iferen cia çã o sexual, en te n d e n d o -a co m o
exercida pela atração heterossexual mútua, mas
tal noção, em última análise, não era suficiente
para mantê-la dentro dos limites da lei vigente.

Nos primordios da Revolução não se im­


punham limites à imaginação. Os cidadãos co­
muns tinham plena liberdade de inventar esque­
mas políticos e de sonhar um novo futuro para
a França, contanto que não tivessem a força de
colocar tais sonhos e esquemas em prática.
Nesse contexto, tolerava-se a atividade de Olym-

90
pe ele 'Joages, suas propostas podiam ser des­
prezadas por serem absurdas e improváveis;
não representavam grande ameaça. A consoli­
dação da lei jacobina, a partir do final de 1792,
porém, sobre impor urn estreitamento das liga­
ções entre leí, ordem, virtude masculina e dife­
rença sexual, tentou, ainda, que o estado sub­
metesse ou pelo menos controlasse a expressão
pública da imaginação. Visto que a política
jacobina se baseava numa visão epistemológica
que atribuía significação única e transparente
aos objetos físicos, à representação visual, e,
até mesmo, à linguagem e ao pensamento, as
idéias de Olympe de Gouges começaram a se
tomar perigosas. Seus apelos à imaginação im­
plicavam uma atrevida falta de consideração
para com a realidade, para com as correspon­
dências estabelecidas entre idéias e coisas. Em
seus escritos e ações ela parecia deliberadamen­
te obscurecer questões bem claras, pela manipu­
lação de signos cujos referentes eram ambíguos.
Embora a questão dos direitos da mulher
viesse à tona muitas vezes durante a Revolu­
ção, foi abordada com inusitada freqüência em
1793. Nesse ano, durante discussões sobre uma
nova constituição (que nunca chegou a ser
implementada) o deputado de Ille-et-Vilaine,
Jean Denis Lanjuinais, comunicou à Conven­
ção que, não obstante vários pedidos contrári­
os, seu comitê seria favorável a negar o direito
de voto à mulher. Segundo argumentava, até
mesmo no futuro, “é difícil acreditar que as mu­
lheres sejam, algum dia, chamadas a exercer
direitos políticos. N ão está em mim chegar a
pensar que[...]homens e mulheres venham a ti­
rar algum proveito de uma decisão favorável ao
92Archives Parlementaires voto da mulher” .92
63 , p. 564 (1781-1799). Depois da execução de Maria Antonieta,
em 16 de outubro, os ataques contra o papel
político da mulher ficaram mais acirrados. Apro­
veitando-se de um incidente no qual se defron-

91
JOAN W. SCOTT

taram mulheres' que OAbaíhavam no mercado e


membros da Sociecia.de de Mulheres Revoluci­
onárias Republicanas, a Convenção tornou ile­
gal a existencia de clubes e sociedades popula­
res d e m ulh eres, in v o c a n d o p rin c ip io s
rousseaunianos para justificar tal medida. “Será
que as mulheres deveríam exercitar direitos p o ­
líticos e interferir nos negócios do governo?” ,
perguntava-se Ancüé Amar, representante da
Comissão de Segurança Geral. “Em geral p o ­
demos responder que não, porque:

elas se veriam obrigadas a sacrificar os afa­


z eres mais im portantes para os quais a natureza
as cham a. A s fu n ç õ e s p rivadas para as quais as
m u lh eres p o r fo rça d e sua p róp ria natureza são
destinadas têm relação c o m a o r d e m gera l da
socied ade; essa o r d e m geral resulta das diferen ­
ças q u e existem entre o h o m e m e a mulher. C a d a
s e x o é ch am ad o para o tipo d e atividade para a
qual ele está constituído; seu ca m p o d e ação está
circunscrito p o r esse círculo, d o q u a l não p o d e
sair, p o r q u e a próp ria natureza, q u e im p ô s tais
limites ao ser hum ano, ordena d e m aneira im p e ­
93Citado por L E V Y et edil, riosa e nã o aceita a im p osiçã o da lei.93
1979, p. 215.

Um desdobramento ainda mais explícito


desses assim chamados fatos naturais teve ori­
gem em R G. Chaumette. Em nome da Comuna
de Paris, ele rejeitou com indignação um pedi­
do de apoio a uma petição de mulheres que pro­
testavam contra um decreto da convenção: “Des­
de quando é permitido renunciar ao próprio
sexo? Desde quando é decente ver mulheres
abandonar as piedosas tarefas caseiras, o ber­
ço das crianças, para desfiar suas arengas em
lugares públicos, nas galerias, nos tribunais e
nas barras do Senado. Por acaso o cuidado das
tarefas domésticas foi confiado ao hom em pela
natureza? Ou então por ela fomos providos de
94 L E V Y et alii, 1979, p. seios para que amam entássem os nossos fi­
219. lhos?” .94

92
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

À semelhança de muitos dos colegas de


política, Ghaumeltte apelava para os princípios
da natureza pára justificar sua visão da organi­
zação social. Em seu m odo de entender, a na­
tureza era a fonte não só da liberdade, mas tam­
bém da diferença sexual. Natureza e corpo eram
sinônimos; é no corpo que se discerniam as ver­
dades sobre as quais deve repousar a ordem
político-social. Os jacobinos ofereciam uma vi­
são de conjunto, ao passo em que Condorceí
(juntamente com Olympe de Gouges) insistia
na separação entre biologia e identidade políti­
ca. Constantin Volney, que representava o Ter­
ceiro Estado de Anjou nas assembléias dos Es­
tados Gerais, de 1788 e 1789, argumentava em
seu catecismo de 1793 que a virtude e o vício
asão sempre, em última análise, relacionados
com a destruição ou a preservação do corpo” .
Para Volney, o que afetava a saúde afetava o
estado: “ter responsabilidades cívicas é ter um
comportamento que busque a saúde” .95 A d o ­
95 Citado por J O R D A N O - ença do indivíduo implicava deterioração soci­
V A, 1982, p. 15. al; a mãe que não amamentasse o filho com e­
terla um ato de rebeldia contra o que a nature­
za designava para o seu corpo; era, portanto,
um ato profundamente anti-social. O abuso do
corpo acarretava não apenas ônus ao indiví­
duo, mas também conseqüências sociais nega­
tivas, visto que, para Volney, o corpo político
não era uma m etáfora do corpo físico, mas
correspondia a uma descrição literal, sem qual­
quer implicação de valor conotativo.
O corpo, obviamente, não era considera­
do algo único; a diferença sexual era tida com o
um princípio básico da ordem natural, e por­
tanto da ordem política. A diferença genital é
que estabelecia a distinção político-social. Era
pela masculinidade ou pela femininidade que
se distinguía a identidade dos cidadãos, isto é,
estes ou seriam biologicamente homens ou bio­
logicamente mulheres. O Dr. Pierre Roussel já

93
JOAN W. SCOTT

havia articulado o ponto de vista aderado pelos


Jacobinos: “A essência do sexo não se limita a
um único órgão, mas se estende, graças a
nuances mais ou menos perceptíveis, a todas
96 Citado por SCHIEBIN- as partes do corpo” .96 Nesse esquema, as mu­
GER, 1986, p. 51. V. tam­ lheres ficavam mais completamente definidas
bém L A Q U E U R , 1986, p.
pelo sexo do que os homens. O anatomista Dr.
3.
Jacques-Louis Moreau endossava o comentá­
rio de Rousseau, segundo o qual a localização
dos órgãos sexuais, internamente na mulher e
externamente no homem, já determinava a ex­
tensão de sua influencia: “ a influencia interna
faz com que a mulher lembre constantemente
97Citado em KNIBIEHLER, seu sexo [...] o macho é macho apenas em cer­
1976, p. 835. A versão
tos momentos, ao passo em que a fêm ea é fê­
original pode ser encon­
trada no Emile, de Rous­ mea por toda a vida” .97
seau, e é cita d a p o r Para os jacobinos, toda a função social da
RILEY, 1988, n. 57, p. 37. mulher poderia ser literalmente lida a partir de
V. também C H AR LTO N ,
seus órgãos sexuais, e, de m odo especial, dos
1984; BORIE, 1980, p.
153-89; e LE DOEUFF, seus seios (órgãos externos!). O seio era a
1981-1982. sinédoque da mulher e aparecia com grande fre­
quência nos discursos e na iconografia Jacobina
(com o Madelyn Gutwirth tão amplamente d e­
98 G U T W IR T H , 1992. V. monstrou).98 O seio tinha muitas ressonâncias,
também K NIB IEH LE R e pois a palavra sem em francês significa peito,
FO UQ UET, 1980. Para
mama e útero, mas a fixação no aspecto físico
urna perspectiva com pa­
rativa em inglês, v. tam­ do seio parece significativa. O seio servia com o
bém FERRY, 1991. fetiche no sentido freudiano, desviando a aten­
ção daquilo que trazia muito problem a para
focá-la em algo aparentemente benigno. A pre­
ocupação obsessiva com o seio, é claro, cha­
mava a atenção para todo o corpo feminino,
mas também servia para desviá-la da função
de dar à luz. Afinal de contas, o nascimento podia
ser entendido não apenas com o um ato natural
(e, portanto, anterior à sociedade), mas tam­
bém com o um ato de criação social, com o um
ato integrante — porque indispensável — do
contrato social. Expressivamente uma carica­
tura monarquista da época apresentava um re­
volucionário dando à luz uma constituição (que

94
OUfMph Uh GOUGhS NA ríhA/OLUCAO FRANCESA

99Aqui su discordo da in­ emergia do meio de suas pernas). Era, na ver­


terpretação de Gutwirth e
dade, uma crítica da usurpação consciente que
de outros que conside­
ram as representações do
os revolucionários faziam do papel social da mu­
seio com o fálicas. lher. Tal usurpação, porém, efetivava-se não por­
que tentassem esconder o corpo da mulher,
muito pelo contrário, o corpo social da mulher
100 GUTvVíRTH, 1992, p.
era ocultado por meio da proliferação de im a­
364. Comparativamente,
é instrutivo com parar a
gens que exploravam seu corpo biológico. Quan­
festa de 1793 com a pa­ to mais as mulheres evarn excluídas da política,
ra d a o r g a n iz a d a p o r tanto mais seus corpos eram representados com
O ly m pe de G o u g e s em obcecada íreqüência, e épicamente com o mães
junho do ano anterior. N a
no ato de a n amentar." Em agosto de 1793, na
ocasião, centenas de mu­
lheres cobertas de flores festa da Unidade e Indivisibilidade organizada
puxavam um enorme cor­ por Jacques-Louis David com o fito de hom e­
tejo, em h o n ra de nagear a República, esse tipo de iconografia teve
J a c q u e s -H e n ri S im o n -
destaque. Os deputados se apresentavam para
neau, o prefeito mártir de
Etampes, dem onstrando
prestar juramento de lealdade à nação e em se­
(segundo a interpretação guida selavam seu juramento tomando o líqui­
de O lym pe de G o u ge s) do (água) que esguichava dos seios de uma
sua capacidade de reco­ grande estátua que representava uma óbvia fi­
nhecer e premiar os he­
gura materna. Subjacente à diferença entre h o­
róis d a nação. Liderados
por um a mulher que se mem e mulher, evidenciava-se o contraste entre
vestia de Liberdade, se­ oriente e ocidente: a estátua era a de uma deu­
guida por toda a G u arda sa egípcia da fertilidade.100
N a c io n a l, com seu c o ­
A mulher com o seio — nutriz, mas não cri­
m andante à testa, e, de­
pois, por mulheres vesti­
adora [creator] . O homem com o cidadão — ■
das com o a Justiça, a p a­ conquistador da natureza. As diferenças entre
rada lembraria as glórias homem e mulher eram consideradas irretocá-
das velhas repúblicas e veis e fundamentais: existiam na natureza, por­
mostraria aos inimigos da
tanto não podiam ser corrigidas pela lei. A com ­
França até que ponto as
mulheres estavam unidas plementaridade funcional entre homem e mu­
e decididas, segundo as lher era vista com o assimétrica: a associação
expectativas de O lym pe da masculinidade com virtude, razão e política
de G o u ge s. P ara ela, o
inevitavelmente só se concretizaria caso se con­
evento era um a maneira
de congraçar as mulheres
siderasse a associação da fem inilidade com
e justificar-lhes a ativa par­ desvio, sensualidade, veleidade, submissão a
ticipação política. Ain da artifícios da vaidade e da moda, enfim, com tudo
que seu simbolismo pos­ o que a limitasse a funções modestas realiza­
sa tam bém ser lido como
das no âmbito doméstico. De fato, pode-se ar­
um papel evidentemente
passivo e secundário das gumentar que um tal contraste entre homens e
m ulheres, a p a ra d a de mulheres — razão e paixão — era uma forma

95
JOAN W. SCOXT

1792, mesmo assim, con­ de -transferir os impulsos desordenados do sexo


feriu a esse ato de com ­
para as mulheres, impulsos esses que Rousseau
parecimiento um caráter
já tinha reconhecido com o algo que não pode
político, Muito diferente,
p o r é m , fo i a festa d e ser erradicado da imaginação masculina. Seus
1793, para a qual as m u­ seguidores jacobinos, porém, nada se permiti­
lheres nem sequer foram am, por ínfimo que fosse, de irônico ou de am ­
convidadas.
bíguo. Já que atribuíam toda oposição política
aos inimigos da República, da mesma forma
atribuíam às mulheres traços de caráter que con­
sideravam adversos à virtude — - essa mesma
virtude, segundo Robespierre, princípio funda­
mental do governo democrático, de cujas em a­
nações o terror, isto é, a “justiça imediata, se­
101ROBESPIERR E, 1964, vera e inflexível” ,101 hauria sua força em tem ­
p. 79-80. pos revolucionários.
O Terror era a repressão de tudo o que era
contrário à virtude; era o triunfo da virtude con­
tra o erro. O Terror era praticado por aqueles
cuja virtude os habilitava a distinguir o certo do
errado, a natureza verdadeira e suas falsas re­
presentações. A verdade era transparente para
os virtuosos; seu significado era literal e sem a
menor dubiedade. N ão havia espaço para a ima­
ginação ativa de Voltaire, aquela recombinação
ativa geradora de novas idéias, mas que podia
também confundir ficção e realidade. As idéias
é que deviam fazer a leitura direta da natureza.
Estava proscrita a imaginação, e com ela o pe­
rigo de se estabelecer a representação errônea
da verdade.
Nesse contexto, Olympe de Gouges com e­
çou a negar que suas idéias tivessem qualquer
ligação com a imaginação ativa. Já em 1791
ela atribuía às divagações temporárias de sua
imaginação um entusiasmo intempestivo pela
monarquia, fato que ela usou com o exem plo
para demonstrar sua capacidade de discrimi­
nar entre as atividades boas e más da imagina­
ção e de refrear suas tendências desordenadas.
Em 1793, ao prever um futuro sombrio para a
Revolução, Olympe de Gouges já negava total-

96
01V7VJPH DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

mente a Influencia da Imaginação, pois Insistía


que seus pensamentos tinham sida um reflexo
da realidade, da “moral depravada” dos líderes
da França, e não um produto de sua “ imagina­
102G O UGES, [s.d.J, p. 15. ção exaltada” .102 Demonstrando um sarcasmo
contundente, escreveu para Robespierre urna
carta na qual afirma que os discursos dele so­
bre a moralidade fizeram com que ela abrisse
os olhos e se desse conta da necessidade de “re­
primir nela própria aqueles m ovim entos de
exaltação em que uma alma ajuizada nunca
deve confiar e que os sediciosos sabem tão bem
103G OUGES, 1792, p. 1. explorar” .103 E prosseguia atacando a falta de
virtude que Robespierre dem onstrava, bem
com o seus interesses egoístas, e condenava os
excessos de “patriotismo mal orientado” que
ele praticava em nom e da “verdade” . A o m es­
m o tempo, Olym pe de Gouges se reconhecia
“mais hom em do que mulher” , demonstrando
sua total incapacidade de dissociar sua im a­
ginação ativa da busca de individualidade,
m esmo quando garantia ver e falar somente a
104G O U G E S , 1792, p. 15. verdade.104
De qualquer forma, seus ataques contra
Robespierre apenas confirmavam que ela esta­
va fadada a ser uma mulher cujas fantasias par­
ticulares se intrometiam de forma inaceitável na
vida pública. Em julho de 1793, O lym pe de
Gouges foi presa e, logo depois, condenada à
morte, sob a acusação de ter enchido os muros
do país com seu panfleto “Les trois umes, ou
Le salut de Ia patrie”, propaganda em defesa do
federalismo (posição associada aos girondinos
e a suas teorias sobre a representatividade polí­
105A s acusações e provas tica).105 Apelou da sentença com base em seu
e s tã o re g is tra d a s no patriotismo, argumentando que seus escritos fi­
"P ro c é s d ’O ly m p e de
losóficos tinham preparado o caminho para a
Gouges...", 1912, p. 156-
64. Revolução e, também, alegando estar, de iní­
cio, doente, e, depois, grávida. O promotor pú­
blico, Fouquier-Tinville, fez uma investigação e
em seu relatório para o Tribunal Revolucioná-

97
no aíirníon que ti íé nñu tivora oportunidade de
106 "Procès d ’ O lym pe de ficar grávida, pois que uma parteira e um médi­
Gouges..., 1912”, p. 159. co por ele chamados não conseguiram confir-
mar-lhe a gravidez. Dados esses fatos, o pro­
m otor sugeria que O lym pe de Gouges tinha
107 O U T R A M , 1989; e “apenas imaginado” um eventual contato com
FURET, 1981. um hom em e, portanto, urna subseqüente gra­
videz com a finalidade de adiar ou evitar sua
108 C it a d o em execução.106A referencia à imaginação, naquele
LAIRTULLIER, 1840, p. momento, foi uma terrível ironia da parte de
140. Observa-se a seme­
Fouquier-Tinville: era com o se a perturbação
lhança com os comentá­
rios de Chaumette, alguns mental de Olympe de Gouges tivesse ido tão
dias m ais tarde: "Lem - longe que, mesmo a própria tentativa de usar
brem -se daquela virago, com o argumento o aspecto mais fundamental
aqu ela m ulher-hom em
de sua natureza — a condição de mulher ( e de
[cette fem m e-h om m e], a
desnaturada Olym pe de
procriadora) — foi considerada com o mera
Gouges, que abandonou excrescencia de sua imaginação. O signo “mu­
todos os cuidados de seu lher” não podia ter referente naquele monstro
lar, p o r q u e q u e r ia se que era Olym pe de Gouges.
engajar na política e co­
Foi com o traidora do centralismo jacobino
meter crimes... Tal esque­
cimento das virtudes de (igualado à preservação da integridade da R e­
seu sexo a levaram ao pública) que Olympe de Gouges foi, por fim,
patíbulo", citado em LE V Y executada em novembro. Em julho, quando ela
et alii, 1979, p.2 2 0 . A
tinha sido presa, havia a ameaça de fragmen­
co nd enação que C h au -
mette fazia era a voz ra­ tação nacional, não só sob a forma de guerra
cional, se bem que vene­ civil e de invasão iminente, mas também sob o
nosa, do magistrado que aspecto de transgressão de gênero e degenera-
tinha identificado urna
ção moral do indivíduo. A resposta dos jacobi­
falaciosa e am eaçado ra
nos foi puxar as rédeas, já que controle político
falsificação e que, desta
forma, não só protegia a e controle pessoal eram uma coisa só, avalian­
feminilidade, conforme a do um nos termos do outro.107 E à luz desse pa­
fizera a natureza, m as râmetro que pode ser lido o artigo sobre a m or­
também a masculinidade.
te de Olym pe de Gouges em La Feuille du Salut
A e x e m p lo d a q u e le s
doutores e m agistrados
Public: “Olym pe de Gouges, que nasceu com
citados por Diderot, "urna uma imaginação exaltada, tomou seus delírios
palavra" de Chaum ette por inspiração da natureza. Ela queria ser um
exorcizava os sintom as
homem político. Ela assumiu projetos de pesso­
das outras mulheres que
as pérfidas que queriam dividir a França. Pare­
p o d e ria m ser afetad as
pela doen ça contagiosa ce que a lei puniu essa conspiradora por ter es­
de Olym pe de Gouges. quecido as virtudes próprias de seu sexo” .108
Foi um epitáfio particularmente apropria-

98
OLYMPE DE ;oí i ma : )LUÇAO f r a n c e s a

•do para a muíher que, denunciando com des­


prezo Robespierre, dizia-ihe ser “plus homme
que fem m e” e que procurava se justificar dizen­
do ser “un grand hom m e” , enquanto Robespi­
109GO UG ES, 1792, p. 8; e erre não passava de um vi! escravo.109 Mas esse
id., [s.d.] , p . 5. necrológio de Olympe de Gouges também se
refere a sua fuga deliberada da realidade, apar­
tando-se, por m eio da imaginação, das condi­
ções sociais e políticas da mulher de sua ép o­
ca. Em seu desejo de emulação do homem, ela
“esqueceu as virtudes de seu sexo” e acabou
por perder o rumo. Tal esquecimento nos lem­
bra a desorientação de quem sonha — tão vi­
vamente evocada por Rousseau — , que encon­
trou eco perfeito em Olympe de Gouges: “Q ue­
110 G O UG ES, 1788, p. 1. ro [...] tentar me perder com o os outros” .110 E
Agradeço a Sylvia Schafer esta perda não foi mencionada como desvio be­
por esta observação.
nigno, mas foi manipulada com o patologia. Â
perda de seu eu coerente (a “ imaginação exal­
tada” superava a regulação interna da razão:
ela tomava suas ilusões por realidade) e a ado­
ção de projetos danosos, cuja única finalidade
era dividir a França, se interligavam. De fato,
os dois vinham a ser a mesma coisa. A integri­
dade natural do eu garante a integridade natu­
ral da nação; ambos ficam comprometidos pe­
los desejos incontroláveis e pelos excessos da
imaginação. O discurso sobre o Federalismo de
Olympe de Gouges ( produzido por uma imagi­
nação que se descontrolou) foi visto com o uma
transgressão de fronteiras, tanto geográficas,
quanto de gênero. Só uma “imaginação exalta­
da” , resultante de um eu incoerente e dividido,
poderia entreter uma idéia que ameaçasse di­
vidir a federação; era um ataque frontal à na­
ção, vista insistentemente com o “República una
111 B ulletin du Tribunal e indivisível” .111 Só uma imaginação em des­
Crim ine! Réuolutionnai- vario poderia ter gerado simultaneamente uma
re, 1793, citado em L E W
ameaça de desmembramento político-social e
et aiii, 1979, p. 255.
outra de desmembramento físico — ambas ame­
aças de castração.

99
Em 1798, Olym pe de Gouges personifica­
va o próprio perigo de caos e de ilegalidade que
a “imaginação exaltada” ou “a imaginação dos
sonhos” representava para a ordem social e ra­
cional, bem com o para o senso de masculinida­
de e de feminilidade subjacentes a essa mesma
ordem. Um perigo que, para Rousseau e seus
intérpretes jacobinos, era sinônimo de mulher.
Seja nas tentativas de codificar, no século
XVI11, o vocábulo “imaginação” , seja no uso que
dele fez Olympe de Gouges, é impossível esta­
belecer, hoje em dia, distinções precisas. Essa
am bigüidade de significado, aliás, foi para
Olympe de Gouges não apenas fonte de sua afir­
mação com o cidadã ativa — muito embora as
mulheres jamais conseguissem incluir tal direi­
to na Constituição de 1791 — , mas ainda, para
os adversários, sinal de sua incapacidade de
raciocinar dentro dos limites da lei. Quanto à
noção da imaginação em si, cabia à autorida­
de legalmente constituída, que agia em nome
da razão, decidir se e quando a linha de trans­
gressão fora ultrapassada pela ré.

Alguns meses d ep ois que O ly m p e de


Gouges foi executada, seu filho pediu, e foi-lhe
concedido, que se fizesse uma correção nas atas
do Tribunal Revolucionário: que o nome de sua
m ãe fosse m odificado de “M arie-Olym pe de
Gouges, viúva d’Aubry” para “Marie Gouze, v i­
112 "Procès d ’O ly m pe de úva de Louis-Yves Aubry” .112 Pierre Aubry, des­
Gouges...", 1912, p. 163- sa forma, fez restaurar a identidade da m ãe
164.
com o filha e esposa, a fim de que ambos os
registros genealógicos — o dela, e, em conse-
qüência o dele também— fossem retificados. N a
verdade, esse foi um gesto pífio, pois a posteri­
dade a tem lembrado com o nom e que desejou
ter: Olympe de Gouges. Historicamente, uma
mulher que se tornou realidade, no melhor dos
sentidos, com o produto de sua própria imagi­
nação. Os historiadores, na verdade, são injus-

100
OLYMPE DE GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA

tos quando Ignoram a Im portância do seu


histrionismo ao construir o eu de que se reves­
tiu e com o qual se representava, insultada ou
reverenciada, sempre foi tida com o uma “mu­
lher de letras” , independente, cujas obras e
ações estabeleceram sua reputação.
A reputação de Olympe de Gouges teve
pelo menos dois aspectos, um que conflitava
com as possibilidades que Voltaire via na ima­
ginação ativa, e outro que se coadunou com a
crescente ênfase da invenção que o século se­
113 "Im a g in a t io n ", in guinte incluida na definição de imaginação.113
BO ISTE , 1823, p. 354. E. Lairtullier, que escreveu em 1840 Lesfemnnes
célèbres de 1789 à 1795, referia-se a Olympe
de Gouges com o a mulher “inflamada” , e com o
uma das “fúrias” , em seu catálogo de tipos de
mulheres revolucionárias. Além disso, ele deu
ênfase ao duplo aspecto do “brilho” de sua ima­
ginação: “Mais do que uma vez ela surpreen­
deu os mais eloqüentes homens de sua época
p e la riq u eza d e sua im a g in a ç ã o e p e la
fecundidade de suas idéias; para falar a verda­
de, esse foi o lado luminoso da celebridade que
114 "P lu s d ’u ne fois elle ela não hesitou em conquistar” .114 A imagina­
surprit les ho m m es les ção, para Lairtullier, tinha certa conotação de
p lu s é lo q u e n t s de
inventividade benigna, mas tinha também um
Tépoque par la richesse
de son imagination et la
outro lado não tão positivo, cujo exemplo era
fécondité de ses idees; et muito bem expresso pela natureza explosiva de
ce fut, à vrai dire, le cote Olympe de Gouges: a força de seus excessos
brillan t de la célébrité emocionais; a sua pouca habilidade de distin­
q u ’elle ne tarda p as à
guir opiniões bem fundamentadas de idéias em
c o n q u e r i r " .
LA IR TULLIER , 1840, p. estado bruto, e, por último, o seu estilo p rovo­
51, 68. cante. Sua brilhante im aginação, segundo
Lairtullier, parece emanar inevitavelmente de um
caráter excêntrico e perigoso.
Escritores que apareceram posteriormen­
te foram mais claros do que Lairtullier no diag­
nóstico da desordem mental de O lym pe de
Gouges. Esta, de acordo com eles, atravessou
a fronteira que separa a razão da fantasia. A o
assumir o papel de homem, ela se desorientou

101
■2 perdeu a. sanldcide mentciL Um deles, Mi che leí,
para quem quMquer intromissão feminina nas
coisas da política era perigosa ( “todas as áreas
115 Citado em DEVANCE, ficam destruídas pelas mulheres” ),115 afirma que
1977, p. 345. Olym pe de Gouges era “uma mulher infeliz,
cheia de idéias generosas” , que se tornou “o már­
tir e o joguete de sua sensibilidade instável” . Sua
verdadeira natureza feminina se revelou, diz ele,
quando, “aplacada e banhada em lágrimas, tor­
nou-se de novo mulher, fraca e trêmula, e de­
monstrou ter m edo da m orte” . Perante a reali­
dade inexorável da guilhotina, porém, encheu-
se de coragem (reassumindo a velha atitude
116 MICHELET, 1854, p. masculina):116 “Filhos da mãe pátria” , exclamou
400-401.
ela, “vós vingareis minha morte” . Os que assis­
tiam à execução responderam (aparentemente
117Citado em L E W et alii, sem ironia), “Viva a República!” 117
1979, p. 259. A caracterização de M ich elet de uma
Olym pe de Gouges instável e oscilante entre fra­
queza e força, entre masculino e fem inino é
reaproveitada pelos irmãos Goncourt, que na
sua história da Revolução, escrita em 1864, a
rotularam de “louco heróico” , usando o mas­
118Citado em DEVANCE, culino de propósito para designar seu mal.118
1977, p. 346. Esta ênfase dos irmãos Goncourt coincidia com
o crescente interesse (já antes do final do século
consideravelmente maior) dos m édicos pelos
problemas psiquiátricos, cujo foco eram as pa­
tologias individuais e coletivas. Um certo Dr.
Guillois analisou os autos do processo de
Olym pe de Gouges e seu diagnóstico foi o de
que se tratava de uma patologia mental (bem
peculiar, hoje em dia): sua sexualidade exacer­
b a d a (causada por uma m en o rra gia), seu
narcisismo (evidenciado pela predileção por
banhos diários) e sua total ausência de senso
moral (provada por sua insistente recusa a ca­
sar-se novamente) constituíam sinais inequívo­
cos de um caso de histeria revolucionária. Olym ­
pe de Gouges, além disso, era para ele exemplo
do que acontecia quando as mulheres tentavam

102
OLYMPE Dh GOUGES NA REVOLUÇÃO FRANCESA,

imitar os homens: mpelidas por desejos anor­


mais, elas se tomavam corajosas, mas também
selvagens e cruéis, mais do que qualquer ho­
119 D E V A N C E , 1977, p. m em .119 Para Guiilois e seus coetáneos, uma
347. imaginação desenfreada era apenas sintoma de
uma feminilidade falha ou exasperada. O pro­
blema não estava no mau uso da habilidade men­
tal de pensar, mas na sexualidade desviada, na
personalidade fundamentalmente anômala.
Para as feministas dos séculos XIX e XX
que escreveram contra esses freqüentes diagnós­
ticos de patologias, Olympe de Gouges era uma
figura completamente diferente, tendo realizado
o que de melhor a imaginação ativa poderla ter
120L A C C O U R viu na ima­ produzido.120 Ela foi lembrada de modo especial
gin açã o de O ly m pe de por ter articulado a reivindicação que acabou
G ou ges um aspecto p o ­
por se tomar o lema do movimento feminista do
sitivo de seu caráter e, nis­
to, ju lg o u -a sup erior à século XIX: “A mulher tem o direito de subir ao
girondina M a d a m e R o- patíbulo; deveria ter igualmente o direito de su­
land: "Acrescentem a sua bir à tribuna” . Esta frase de evidente ousadia foi
fértil e inflamada imagina­
forjada por uma mulher cuja vida e morte foram
ção e a seu coração de
apóstolo os meios de ex­
um atestado comprobatorio de autenticidade ab­
pressão que ela adquiriu soluta. Foi uma afirmação perfeitamente razoá­
pacientemente e ela supe­ vel, considerada antes um adágio político que
ra até M a d a m e R oland uma invenção fantasiosa. A experiência de Olym­
pela extensão e pela atu­
pe de Gouges, além disso, parecia prefigurar o
a lid a d e d e s u a v isão".
(p.5, 1900)
destino recorrente do feminismo: nascido da Re­
pública, essa mesma república reiteradamente o
condenou à morte. Foi nesses termos que Jeanne
Deroin (então no exílio) lembrou seus leitores do
preço que ela e outras feministas tiveram de pa­
gar por sua militância em 1848: “Muitos, seguin­
do o exemplo de Olympe de Gouges, tiveram que
pagar com a própria vida a dedicação que de­
monstraram para com a Justiça e para com a
121 "P lu sieu rs ont dü, à Verdade” .121 Olympe de Gouges foi uma mártir;
1’exem ple d ’O lym pe de as feministas acreditavam que ela morreu pela
Gouges, payer de leur vie
causa feminista e que foi vítima não de seu pró­
m êm e leur dévouem ent à
la Justice et à la Vérité".
prio comportamento desordenado ou de seus de­
D E R O IN , 1853, p. 15. litos, mas das contradições inerentes à definição
republicana de cidadania, e do m odo equivoca-

103
JOAN W. SCOTT ■

do pelo qual os. republicanos aplicavam os prin­


cipios universais de liberdade, igualdade -e fra­
ternidade.
O conceito de imaginação era a condição
para Olympe de Gouges agir, justificava-ihe a ca­
pacidade de atuar com o urna figura pública, p o ­
lítica. As gerações subseqüentes de feministas ti­
veram diferentes motivos para agir, o que , é cla­
ro, foi orientado por outros conceitos, mais es­
senciais à configuração dos discursos de seus
novos tempos. Olympe de Gouges, porém, aca­
bou incorporando o que se podería chamar de
imaginário feminista ou então a tradição femi­
nista imaginada (mas nem por isso menos real).
O contexto específico da história de Olympe de
Gouges foi esquecido para que ela transformas­
se em um ícone de mulher, modelo de ação cora­
josa. Suas palavras foram usadas para inspirar
mulheres cujas crenças e perspectivas de vida
eram muito diferentes das dela, a fim de que abra­
çassem a causa feminista. Desta forma, Olympe
de Gouges foi imitada, mas, ao mesmo tempo,
tomou-se objeto de apropriação quase do mes­
mo modo pelo qual ela se apropriou do papel de
cidadão (masculino) ativo, a fim de reivindicar
os direitos de cidadania ativa para as mulheres,
no seu tempo revolucionário. Se as relações exis­
tentes entre imaginação e razão eram um tema
específico da época, o processo de recombinação
criativa que resulta da imaginação, entretanto,
não o era. O exercício de imaginação que Olym ­
pe de Gouges praticava tinha raízes nas ambi-
güidades da própria imaginação e iluminava as
contradições que lhe eram inerentes. Esse exer­
cício criativo se caracterizava pelo paradoxo, o
que parece ser uma das marcas do feminismo e
de seu jeito de pôr à prova os limites do possível
na luta que as mulheres travam para alcançar
seus direitos políticos.

104
Os Deveres do Cidadão:
Jeanne Deroin na Revolução de 1848

¡ ( u r a n t e a Revolução de 1848, muito em-


tj ¡4 bora o contexto político-social do mo-
mento não apresentasse clima oportu­
no para lutas feministas, Jeanne Deroin assu­
miu a posição de herdeira da campanha que
Olympe de Gouges iniciara, havia mais de cin-
qüenta anos, em favor dos direitos da mulher.
Jeanne Deroin, cuja formação política sofrera
influência dos movimentos socialistas utópicos
das décadas de 1830 e 1840, diametralmente
opostos ao clima político-social que m oldou
Olym pe de Gouges, sentiu-se inspirada pela
autenticidade da militância de sua heroína, que
não hesitara em arriscar a própria vida pela
causa da emancipação das mulheres, em pre­
endimento muito mais transcendente que um
simples engajamento político.
Alguns pormenores, entretanto, foram im­
portantes para marcar a diferença entre as duas
mulheres. Jeanne Deroin surgiu, aos quarenta
e três anos, como militante política no contexto
de uma nova revolução. Se Olympe de Gouges
era o m odelo para suas ações, os sansimonia-
nos e os fourieristas eram seus mentores no
âmbito doutrinário. As estratégias de Jeanne
Deroin eram condicionados pela rapidez com
que os acontecimentos evoluíam na Revolução
de fevereiro, cujo conteúdo e cuja base filosófi­

105
JOAN w SCOTT

ca eram estratégias, por necessidade, muito di­


versas das que foram utilizadas em 1792. O di­
reito ao trabalho e o direito ao voto estavam em
1848 ínclíssoluvelmente entrelaçados, Jeanne
Deroin, em conseqüência, tratava de organizar
associações de operárias para discutir a ques-
t.Jo salarial e prom over a mobilização pelo voto
das mulheres. N a explosão de liberdade de im­
prensa que se seguiu à revolução, ela começou
a escrever artigos e panfletos que analisavam a
relação entre a reforma económico-social en­
tão proposta e os direitos das mulheres. Cola­
borava para o La Voix des Femmes, o primeiro
jornal feminista da nova república, e em segui­
da lançou seu próprio jornal, La Politique des
Femmes. Proibido o envolvimento de mulheres
em política, no verão de 1848, Jeanne Deroin
mudou o nome do jornal para LOpinion des
Femmes, mas sem qualquer intenção de aban­
donar seu engajam ento político. N ã o havia
com o negar a voz, a opinião e a ação política
das mulheres, pensava ela, tivessem ou não au­
torização do governo. Em 1849, ferindo aberta­
mente a Constituição, Deroin concorreu a uma
1Pára detalhes biográficos cadeira na Assembléia Legislativa.1
e históricos v. A B E N -
A o contrário de Olympe de Gouges, que
S O U R , 1913; A D L E R ,
1979 e 1980; A L B IS T U R
parecia estar sempre paralisada pela necessi­
e A R M O G A T H E , 1977; dade de argumentar simultaneamente a favor e
Dossier "Jeanne Deroin", contra a posição das mulheres, ao defender a
Bibliothèque Marguerite igualdade dos direitos políticos, Jeanne Deroin
Durand, Paris; RANVIER,
se pronunciava clara e firmemente em favor da
1 9 0 7 -1 9 0 8 ; R IO T -
S A R C E Y , 1985; 1987, posição especial que deveria ser reservar às mu­
1989 e 1994a; SERRIÈ- lheres para que a sociedade mantivesse íntegra
RE, 1 9 81 ; T H IB E R T , sua organização e sua espiritualidade. Trans­
1926; T H O M A S , Edith,
form ou os panegíricos românticos dirigidos à
1948; e ZERILLI, 1982.
feminilidade e ao feminino em argumentos a
favor da igualdade das mulheres e a favor do
feminismo, e empregou todos os argumentos
favoráveis à igualdade das mulheres para con­
testar a visão tacanha que seus camaradas so­
cialistas insistiam em manter sobre a reforma

106
JEANNh DEKOFN NA REVOLL^ÇÃO DE 1848

econômica, (Essas tentativas não estavam des­


providas de contradições, com o se verá nas pá­
ginas seguintes.) Normalmente apresentada pe­
los historiadores com o um exemplo da escola
feminista denominada “da diferença51, Jeanne
Deroin é na verdade uma figura muito mais com ­
plicada. Sua posição obstinada sobre a dife­
rença das mulheres deve ser interpretada com o
uma formulação feminista da crítica ao indivi­
dualismo defendida pelos socialistas utópicos.
Segundo estes o individualismo era o fundamen­
to ideológico do capitalismo — selvagem e des­
truidor — que mais desejavam destruir, substi­
tuindo-o por uma doutrina antes que tudo soli­
dária e mais humana. O feminismo de Jeanne
Deroin, oferecendo uma alternativa para o in­
dividualismo, insistia na “diferença sexual’3como
a unidade básica da humanidade. O casal, ho­
mem e mulher, escrevia ela, fazendo eco aos
sansimonianos, era o “ indivíduo social” . Jeanne
Deroin transformou a “diferença sexual” em ar­
gumento a favor da igualdade de direitos, en­
quanto que para a maioria de seus contem po­
râneo tal diferença era um argumento contrário
a essa igualdade. Foi assim que ela não somen­
te trouxe à luz as contradições inerentes à defi­
nição de cidadania apresentada pela Segunda
República, mas ainda revelou o quanto era di­
fícil defender a diferença entre os sexos com o
uma relação simétrica, e não hierárquica.

“Direito ao trabalho” foi o grito de guerra-


dos h om en s e m ulheres que, u nidos, se
entrincheiraram em barricadas para derrubar,
em fevereiro de 1848, a monarquia constitucio­
nal do rei Luís Filipe, da dinastia de Orléans.
Essa reivindicação fez muito mais do que reve­
lar a influência da economia na revolução —
embora fosse, sem dúvida, um reflexo das cri­
ses que a curto e a longo prazos as questões
dos salários e do desemprego acarretariam. Na

107
JOAN w. s e c a r

verdade, a luta pelo direito de trabalhar lançou


urn serio desafío aos planos republicanos de re­
2 Para a história d a R evo­ forma eleitoral,2 pois introduziu os problemas
lução de 1848, v. A G U - conhecidos com o “a questão social” nas dis­
L H O N , 1970, 1 970a e
cussões sobre direitos políticos. A lém disso,
1 9 73 ; A M A N N , 1 975;
BALLANO , 19 63 ;
enfatizava-se a necessidade de que as soluções
B L A N C , 18 50 ; L U N A , dos problemas da pobreza e da desigualdade
1969; G O S S E Z , 1967; jamais deveríam partir dos governos dem ocrá­
M A R X , [s. d j ; M E R R I- ticos com o uma medida filantrópica ou oportu­
M AN, 1978; M OSS,
nista, mas com o um justo atendimento a direi­
1976; P R IC E , 1972;
S E W E L L , Jr., 19 80 ; e tos naturais e inalienáveis. O direito ao traba­
TILLY e LEES, 1974. lho, segundo os socialista-democráticos (a es­
querda dessa revolução), implicava não ape­
nas o acesso ao emprego, mas, sobretudo, a ga­
rantia de um meio de vida, a possibilidade de
ganhar um salário decente. Rejeitava a visão,
característica da econom ia política, de um mer­
cado que funcionasse de acordo com as pró­
prias leis, propugnando, ao contrário, por uma
regulamentação governamental em nome dos
direitos individuais do p o vo soberano. “O di­
reito ao trabalho tem sua origem e sua legitimi­
3"Le droit au travail a son
dade nas cláusulas absolutas e fundamentais do
origin e et sa légitimité
dans les clauses fo n d a- contrato social, e sua justificativa na necessi­
mentales et implicites du dade natural de trabalho” , escreveu o jurista
pacte social et son justifi- Louis Marie de Cormerin em seus comentários
catif d a n s T o b lig a tio n
sobre a Constituição.3
naturelle de travailler".
P O N T E IL, 1966, p. 271. N o início da revolução, quando as multi­
dões se insurgiam e os políticos procuravam
contê-las, o direito ao trabalho foi reconhecido
4 "Le droit au travail est com cautela pelo governo provisório: “ O direi­
celui q u ’a tout hom m e de
to ao trabalho é o direito que cada homem tem
vivre en travaillant. L a
so c ié té d o it, p a r Ies de viver de seu trabalho. A sociedade deve, com
m o y e n s p ro d u c tifs et os meios de produção a sua disposição agora e
g é n é ra u x dont elle no futuro, proporcionar oportunidades de tra­
d is p o s e et q u i s e ro n t
balho para os homens fisicamente saudáveis
organisés ultérieurement,
fo u rn ir du travail a u x
que não conseguem encontrar emprego” .4 Mui­
hom m es valides qui ne to embora esse pronunciamento bem cedo fos­
p e u v e n t s ’en p ro c u re r se qualificado e, em seguida, desautorizado, o
autrem ent". P O N T E I L , fato de o direito ao trabalho ter sido proclama­
1966, p. 271.
do simultaneamente e, muitas vezes, na mesma

108
JEANNE DEROÍN NA REVOLUÇÃO DE 1848

fala, com o sufrágio universal acabou' por- Intro­


duzir ambigüidade nos debates sobre direitos
políticos. Essa ambigüidade ficou evidente na
Proclamação de 16 de março, por m eio da qual
o G ovem o Provisorio anunciou seus planos para
as eleições. Em primeiro lugar, o direito ao voto
foi descrito com o o “ supremo direito do h o­
m em ” , a grande força niveladora no cam po
político. “N ão haverá um só cidadão que p o d e­
rá dizer ao outro T u és mais soberano do que
eu’ ” . O significado do voto foi depois estendido
para além da escolha de representantes, ou seja,
o voto era também “um exercício de poder so­
cial” , em nome não só dos indivíduos, mas tam­
bém dos grupos sociais. A partir da declaração
segundo a qual “as eleições pertencem a todos,
sem exceção” , seguiu-se uma bizarra conclusão:
“A partir do dia da promulgação desta lei, não
5 “II n’y a pas um citoyen haverá mais proletários na França” .5
qui puisse dire à l’autre, Esse pretenso desaparecimento do prole­
‘tu es plus souverain que
tariado, por um lado, poderia significar apenas
moi!’ ‘A dater de cette loi,
il n’y a plus de proíétaires
o fim da subordinação política ou, talvez, o fim
en France’” , in “Procla- da exclusão de um determinado grupo social (de
m atio n d u G o u v e r n e - acordo com idéias republicano-liberais sobre a
ment...” , 1848. Ver tam­ igualdade formal). Por outro lado, porém, p od e­
bém P O N T E IL , ,1966, p.
ria significar o fim do próprio grupo social, sua
2 6 9 -3 5 2 ; e C o m ité
N ational du Centenaire dissolução dentro do grande projeto equalizador
de 1848, 1950. de reconciliação e justiça social. A ambigüida­
de criada quando o direito ao trabalho se vin­
culou ao direito ao voto tornou praticamente
impossível determinar qual das duas leituras era
a pretendida, e, assim, manteve o problema das
diferenças sociais no centro de qualquer discus­
são sobre direitos. Nessa confusão de limites
entre direitos formais e direitos positivos, o in­
divíduo abstrato perdeu terreno em relação ao
indivíduo socialmente diferenciado, forçosamen-
te colocado numa identidade coletiva que se
consubstanciava na época, sob rótulos varia­
dos com o “as classes trabalhadoras” , “o prole­
tariado” ou “os pobres” . Essa lista de denomi-

109
nações pSí4J íã i íSCGU a'ü&í ío. 0 logo S ílta O ab fe­
ministas também nela se inscreveram em nome
das mulheres.
O direito ao trabalho impôs considera­
ções sobre diferenças sociais e acabou por ori­
entar a política no sentido de eliminar as desi­
gualdades. O sufrágio universal (masculino) foi
nesse sentido um compromisso com a aprova­
ção e com o cumprimento dos direitos positi­
vos. Esse sufrágio, com o tal, contradizia a teo­
ria da igualdade política formal, enunciada em
termos dos direitos do indivíduo abstrato. S e ­
gundo essa teoria, as diferenças sociais eram
vistas com o irrelevantes para a determinação
da participação política, e portanto não deve-
riam ser objeto de ação ou atenção. Alexis de
Tocqueville, ao defender a idéia dos direitos
formais, disse: “A Revolução exigia que, politi­
6 C itad o em G A R N IE R , camente, não houvesse classes” .6Todos os h o­
1848, p. 111-112. mens estavam em pé de igualdade com o elei­
tores e com o sujeitos da lei; essa era a única
espécie de igualdade que um governo d em o­
7BALIB A R , 1994, c a p .2 e crático podia garantir.7
9. V. tam bém R O S A N - Se o voto — direito de todos os indivíduos
V A L L O N , 1992a, p. 280- — era o instrumento que traria a transforma­
281; e a Introdução de
ção social, seguia-se, então, que todos os que
Jacques R a n c ié re a
FRAISSE, 1992, p. 12-13. desejassem mudanças sociais deveriam ter di­
reito ao voto. Isso já bastava às mulheres para
suas reivindicações. Além disso, com o operári­
as elas se incluíam nos programas de implemen­
tação de empregos, junto aos centros de em ­
prego do governo, e, ainda, se beneficiavam das
subvenções governamentais a favor das coop e­
rativas de produtores. Havia, portanto, razões
de sobra para acreditar que também eram con­
sideradas cidadãs. Se o direito ao trabalho pro­
cedia do direito ao voto e mesmo a ele prece­
dia, e se o direito ao trabalho das mulheres já
tinha sido reconhecido pelo governo por atos
concretos, com o era possível negar-lhes o direi­
to ao voto? Essa negação não se originava de

110
JhAiNí IhUhRQIN MA Rh1/QLUÇÃO DE 1843

urna exclusão direta, pois apenas os crimino-


sos que cumpriam pena eram explícitamente
privados de seus direitos de votar pelos Decreto
de 5 de março e por outro ‘três dias depois (to­
das as exclusões anteriores, inclusive a de em ­
pregadas domésticas, tinham sido revogadas).
A exclusão veio por caminhos indiretos. O D e ­
creto de 16 de março, que exaltava as virtu­
des do sufrágio ( “ a lei eleitoral provisória re-
cém -aprovada é a que de m odo mais amplo,
entre todos os p ovos da terra, con vocou o
p o vo para exercer o supremo direito do h o ­
mem, sua própria soberania” ), definia cida­
dãos: “todos os franceses em idade viril [tout
8 "La loi électorale provi- français e n Vage uirí/]” .8
s o ire q u e n o u s a v o n s Uma delegação do recém -form ado C o ­
faite est la plus large qui,
m itê dos D ireitos da M ulher ( C o m i t é d e s
chez aucun peuple de la
terre, ait jamais convoqué D r o it s d e la F e m m e ) teve um encontro com
le peuple à V exercice du Arm and Marrast, prefeito de Paris e m em bro
suprême droit de Phom- do G overn o Provisório, no dia 22 de março,
me, sa propre souverai-
com a finalidade ostensiva de esclarecer a am-
neté", in "Proclam ation
d u G o u v e r n e m e n t ..." ,
bigü idade da frase “tout français” — t o u t ,
1848, p. 149. em bora masculino, no francês, tem uso sem
conotação de gênero — , até porque, pouco
tem po atrás, nas recentes promessas de d i­
reito ao trabalho para todos [tous], as mulhe­
res, indubitavelmente, se incluíam. Dentro do
espaço aberto em fevereiro pelos sonhos re­
volucionários de regeneração social sem li­
mites e por sua im plem entação contraditória,
o fem inism o emergiu para lutar pelos direitos
9 S o b re o fem inism o em da mulher.9
1848, v. M O S E S , 1982,
A d e leg a çã o era liderada p o r Jeanne
p. 240-67, e 1984; M O ­
S E S e R A B IN E , 1993;
Deroin, que falou em nome dos interesses das
ADLER, 1 9 79 ; representadas nos seguintes term os: “A qu i
DEVANCE, 1976; estamos para perguntar-vos se as mulheres se
THIBERT, 1925-1926; e incluem nessa ampla generalização, da mesma
T H O M A S , 1956. P a ra
forma que estão incluídas na lei que diz respei­
com parações com auto­
res in g le se s, v. to aos trabalhadores. Nossa pergunta ganha
A L E X A N D E R , 1984; e ainda maior sentido, uma vez que considera­
TA YLO R , 1983. mos que vós, claramente, não as listastes nas

111
JOAN VASCOTT

10 !'N o u s venons vous categorias a serem excluídas” .10 Jeanne Deroin


dem andar si les femmes
estava tentando forçar um reconhecimento do
sont comprises dans cette
que até então ficara apenas Implícito, mas que
gran de généraiité aussi
bien q u ’elies ie sont dans evidenciaria uma contradição no caso de se
le droit concernant les tornar explícito. Exemplo disto fora a leí do su­
travaiileurs; nous som - frágio universal. N a lista dos que foram por ela
m es d ’ au ta n t plu s
explícitamente excluídos, não se mencionaram
fondées à vous faire cette
dem ande que vous ne les as mulheres. Tal fato, entretanto, não significou,
avez pas désignées dans na prática, que tivessem sido incluidas entre os
les catégo ries d ’e x c lu ­ que tinham direito de votar.
sión". Citado em T IX E -
’ Marrast apontou para a historia. O G o ­
RANT, 1908, p. 40. Para
os decretos que enum e­
verno Provisorio, disse ele, conseguiu recuperar
ra v a m as exciusões, v. direitos perdidos (reconhecidos na última Cons­
"D éc ret d u G o u v e r n e - tituição Republicana, de 1793), mas não criar
ment Provisoire qui con­ novos direitos. A delegação do Com itê dos Di­
v o q u e les a s s e m b lé s
reitos da Mulher, portanto, deveria esperar a res­
e le c to ra le s, d e c id e le
m ode d ’élection et fixe ie posta na futura constituição, de cuja redação
nombre de députés", P a­ se encarregaria uma assembléia que em breve
ris, m arç o d e 1 8 48 , e seria eleita .11(E se constituiu, é claro, inteira­
"Instruction du G o u v er-
mente de homens). A resposta do prefeito foi,
nem ent Provisoire pour
l’exécution du Décret du
na melhor das hipóteses, uma fuga à pergunta,
5 mars 1848, reiatif aux pois, embora seja de esperar que os legislado­
élections genérales", P a­ res se deixem, às vezes, guiar por fatos prece­
ris, 8 de março de 1848, dentes, a inclusão das mulheres no rol de cida­
a m b o s em G A R N I E R ,
dãs nunca chegou a ser seriamente considera­
1848, p. 54-5, 79-81.
da. N a verdade, mostrarei que a exclusão das
11 U m certo tip o d e mulheres era indispensável para que se resol­
Legalism o caracterizava vesse a contradição entre direitos formais e di­
todas as ações do G o v er­
reitos positivos provocada pelo entusiasmo dos
no Provisorio Revolucio­
nário. V. N IC O LET , 1982; debates em torno do direito ao trabalho.12 A
F R A IS S E , 1985; e masculinidade compartilhada era a chave para
SO LT A U, 1931. se garantir o status universal de cidadãos en­
quanto indivíduos abstratos; o direito ao traba­
12DONZELOT, 1984. V. lho se traduzia em direito à propriedade e à fa­
tam b ém S E W E L L , Jr.,
mília, direitos que pertenciam inequivocamen­
1980, p. 143-144, 219-
242. te aos homens.
A questão do direito ao trabalho já era im­
portante para o G overno Provisório, mas tor-
nou-se crucial e urgente para os legisladores elei­
tos com a finalidade de redigir a constituição
da Segunda República quando a guerra civil

112
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

irrompeu -em junho. Os Dias de Junho com eça­


ram com protestos populares contra a extinção
— em nom e do “direito ao trabalho” — das O fi­
cinas Nacionais [Les Ateliers Nationaux] (cria­
das para garantir trabalho aos desempregados);
e rapidamente se transformaram em um levan­
13S obre os Dias de Junho, te social.13 Para os legisladores, cujo ânimo ten­
v. as o b ra s listadas n a dia a se tornar cada vez mais conservador, esse
N o ta 2 e, ainda, tocquevi-
levante evidenciava muito bem o que podería
lle , 1979. S o bre os
“Ateliers N a tio n a u x ” , v.
acontecer se a classe operária começasse a exi­
mcKá y , 1965. Sobre os pro­ gir seus direitos à viva força.
testos das mulheres a res­ Enquanto debatiam o “direito ao trabalho” ,
peito destas oficinas, v. os legisladores faziam considerações sobre os
scott , 1988a, p. 93-112.
limites da obrigação do governo (quanto a cer­
tos direitos dos trabalhadores) de prover os ci­
dadãos de em prego e salário suficientes para
que sustentassem a si e a suas famílias. Alguns
argumentavam que esse tipo de “comunismo”
se opunha ao conceito de sociedade livre e que
na verdade só causaria um desestimulo ao tra­
balho; outros consideravam que oferecer traba­
lho era melhor do que oferecer esmola, pois a
esmola era humilhante para os que a recebiam,
14 L E D R U -R O L L IN , s. d., enquanto o trabalho só os enobrecería.14Toda­
p. 291. V. tam bém relatos via, a idéia que predominava (e que, em última
em B A S T ID E , 1945. Pára
análise, contribuiu para a solução dos debates),
a discussão com pleta v.
G A R N IE R , 1848. foi a de que o direito ao trabalho estava intima­
mente ligado ao direito à propriedade. A o insis­
tir sobre a necessidade de reconhecimento do
direito ao trabalho, o republicano A n toin e
15 "Du point de vue de la Philippe Mathieu (conhecido por Mathieu de la
justice, le droit au travail Drôme) sustentava que, “do ponto de vista da
est paralléle au droit de
justiça, o direito ao trabalho é paralelo ao direi­
propriété. E h o m m e qui
ne p o sséd e pas est
to à propriedade. O homem que nada possui é
l’esclave de celui qui pos­ escravo dos proprietários. O direito ao traba­
séde. Le droit au travail lho é a única resposta ao comunismo, pois per­
est la seule réponse à faire mite que os homens se tornem proprietários” .15
au com m u nism e, puis-
A o rebater esta proposta e outras ainda mais
que le travail permet de
d e v e n ir p ro p r ié t a ir e ". radicais do fourierista Víctor Considérant, um
B A S T ID E , 1945, vol. 2, conservador, Gustave Beaumont, sem negar a
p.79. associação entre trabalho e propriedade, julga-

113
16O Art. 13 dizia: "A C ons­ Ca íiZeSiüC üU'3 3. c o n s titu iç ã o ’ uOVC yc.íciü flf o s
tituição garante aos cida­
meios de aquisição de propriedade” pela via
dãos o direito ao traba­
lho e à indústria. A socie­
do trabalho; defendia, porém, que esses meios
dade favorece e estimula consistiam na liberdade irrestrita de procurar e
o d e se n v o lv im e n to d o aceitar em prego [ ‘7a liberté du travail”]. (Esta
trabalho através do ensi­ foi, finalmente, a formulação que predominou
no primário gratuito, da
na constituição adotad a em n o vem b ro de
form ação profissional, da
ig u a ld a d e d e rela çõ es 1848.) 16 Cormenin resumiu a equação entre tra­
entre patrão e operário, balho e propriedade da seguinte maneira: “O
das instituições de previ­ direito ao trabalho subentende o direito à pro­
dência e de crédito, das
priedade na pessoa do trabalhador, que deseja
instituições agrícolas, das
associações de voluntári­
progredir da mesma maneira com o nós progre­
os e do estabelecimento, dimos; sem nosso trabalho ou sem o trabalho
no Estado, nos departa­ de nossos pais, com o teríamos chegado aonde
mentos, e nos municípi­ chegamos?” 17 Essa propriedade “na pessoa do
os, de trabalhos públicos
trabalhador” poderia ser uma forma de propri­
próprios para empregar a
m ão -d e-o b ra desocu pa­ edade ou os meios para adquiri-la. A ambigüi-
da; a Constituição garan­ dade da associação entre trabalho e direito a
te assistência à criança propriedade abriu espaço para que fosse con­
aban do n ada, aos enfer­
cebida a igualdade política entre os homens, o
mos e aos idosos sem re­
cursos, cujas famílias não
que Alexandre Ledru-Rollin expressou da seguin­
podem s o c o r r ê -lo s ". te maneira: “quer [um homem] trabalhe para si
BASTIDE, 1945, vol. 2, p. próprio, quer para ti, tu ainda o consideras um
326. homem com o tu [...] politicamente, reconheces
17 "Le droit au travail im­
que é um homem, igual a ti, um cidadão” .18
plique le droit de propri- A noção de trabalho como propriedade “na
été dans la personne de pessoa do trabalhador” permitiu que os legisla­
l’ouvrier, qui veut y par- dores, que estabeleceram uma base comum in­
venir com m e et par les
dependente de condição social, transformassem
m êm e s m oyens que
nous y som m es parv e- novamente a questão social numa questão de
nus; car sans notre travail representação política formal. A base comum
personnel ou sans celui por eles estabelecida era a masculinidade com ­
de nos pères comment y
partilhada, representada pela posse de proprie­
serions-nous parvenus?"
BASTIDE, 1945, vol. 2, p.
dade. Segu ndo o republicano A lphonse de
55. Lamartine, “a propriedade não é uma lei mas
um instinto, uma condição inerente à própria
natureza humana” . A propriedade era o cora­
18"Q ue [1’hom m e] travaille
pour lui-m êm e ou pour ção da vida, o elemento vital da sociedade.19 A
vous, vous sentez encore propriedade era a expressão do eu; nesse senti­
qu ’il est hom m e comme do, o trabalho era uma forma de propriedade.
vous... politiquement, y
O que os homens tinham em comum não era

114
JbAlNNE DhRõíN NA KhVOLXJCÀO DE 1848

; s c o n n £ is s s z - v o u 5 un s o m e n t e essa propriedade, mas sua concretiza­


hornms, votre egal, un
ção na família, na esposa e no filho, que leva­
cito ye n ". LE D R ÍJ-
R O L L IN , [s.d.]\ p. 291. vam o nome do marido e pai e que serviam de
Sobre o direito ao traba­ instrumento de transmissão de sua proprieda­
lh o em 1848, v. de —- o emblema tangível de sua pessoa.
B AST ID E , 1945, v o l.l,p . A família constava da Constituição da S e­
242-6, e vol.2, p. 36-58,
gunda República(Preâmbulo, Secção IV), jun­
7 9 -8 1 ; S E IG N O B O S ,
1913-1914, p. 277-279; tamente com outros valores, nos quais se apoi­
M ICHEL, 1904; G A R N I- ava o velho lema revolucionário: “ [A Repúbli­
ER, 1848, p. 148-149; ca] tem por princípios a Liberdade, a Igualda­
L E D R U -R O LLIN , [s.d.],
de, e a Fraternidade. Seus fundamentos são a
p. 287-91; e PO NTEIE,
1966, p. 271. Alguns dos
Família, o'Trabalho, a Propriedade e a Ordem
debates sobre o direito ao Pública” .20 A família, assim com o a proprieda­
trabalho remontam à D e ­ de, eram mencionadas com o “direitos sagra­
claração de Direitos da dos” , nos debates sobre ordem pública, ocorri­
Constituição, de junho de
dos em 25 de julho de 1848. Nestes, a materni­
1793, art.16: "O direito de
propriedade é aquele que dade nem mesmo era cogitada, porque se as­
pertence á todos os cida­ sumia como uma função natural, algo automá­
dãos de usufruir e de dis­ tico, evidente, recebido, uma dádiva. A paterni­
por, à vontade, de seus
dade, entretanto, era discutida com o um direi­
bens, de suas rendas, do
fruto de seu trabalho, e de
to. Era vista como uma relação política assegu­
sua inventividade". Cita­ rada por via de instituições, como o casamento
do em JAUM E, 1984, p. e o contrato social, e de práticas simbólicas,
412. com o a de dar nome aos filhos. A paternidade
era entendida com o a expressão da suprema­
19 Citado em G A R N IE R , cia do homem sobre a natureza, com o um con­
1848, p. 48-9.
ceito mais abstrato (já que, ao contrário da
20 B A S T ID E , 1945, vol. 2, maternidade, não podia ser reconhecida dire­
p. 325. tamente pelos sentidos); portanto, era vista como
uma forma mais elevada e mais importante de
relacionamento humano. A paternidade era a
forma pela qual a natureza — igualada a m a­
ternidade e sexualidade — se transformava em
organização social; nesse processo perdia-se de
vista o papel da mãe e qualquer noção de sua
21 A ín d a faltam estudos importância.21 Os direitos à família e à proprie­
sobre debates feministas dade eram literalmente os direitos do homem
relativos aos processos
sobre a mulher, e tal fato permitia que homens
de paternidade. V. a este
respeito, PIC Q , 1979.
cujas posses fossem diversas e cujas classes so­
ciais fossem diferentes se considerassem mutu­
amente como cidadãos e como iguais.

115
JUANW. SCO i I

O tato de a familia implicar a pos se da mu­


lher e dos filhos pelo homem se confirmou quan­
do a proteção desses direitos “sagrados” foi as­
sociada à exclusão das mulheres de toda ativi­
dade política, por ocasião de um debate na As­
sembléia, em julho. Durante os Dias de Junho,
já se começara a discutir a legalidade dos clu­
bes políticos, esses centros de debates e de
mobilização que arrastaram desde o início a
Revolução para a esquerda. Desprezando as su­
gestões de uns poucos representantes socialis­
tas, a Assembléia Constituinte chegou à deci­
são de que as mulheres deveriam ser barradas
das atividades políticas. Os relatórios parlamen­
tares sobre os clubes faziam a recom endação
de que “mulheres e menores não freqüentassem
tais clubes nem mesmo deles fossem sócios” .
Quando o deputado socialista Ferdinand Flocon
fez uma moção no sentido de que a palavra “mu­
lheres” fosse apagada da recom endação cons­
tante de tal relatório, pois, afinal de contas, elas
22 Sessão de 25 de julho
não deveriam ser confundidas com “menores” ,
de 1848, in C o m p te um dos representantes rebateu-a, sob intensas
rendu..., 1849, p. 646. risadas da Assembléia: “ elas são muito mais
aborrecidas quando tratadas com o adultas” .22
Outra rejeição bem mais contundente alegava
23"La place con venable et
que a “vida privada” era o lugar certo das mu­
legitime de la fem m e est
la vie privée et non la vie lheres e fazia uma referência à história, sem se
p u b liq u e ; elle p e rd ater a pormenores, com um exem plo que soava
toujours à quitter Tune bastante ameaçador: “Os registros históricos da
pour l’ au tre et les
presença de mulheres em assembléias dão m o­
souvenirs historiques de
la présence des fem m es
tivos suficientes para delas excluí-las” .23
dans íes a s s e m b lé e s O controle das mulheres pela simples ex­
politiques suffisent pour clusão física foi a maneira por eles encontrada
les en exclure". C o m p te de assegurar “a ordem pública” . “N a concep­
rendu..., 1849, p. 646. V.
ção do comitê” , declarava seu relator, o pastor
ta m b é m T IX E R A N T ,
1908, p. 26. protestante Athanase Coquerel, “os sagrados
direitos da família e da propriedade estão im­
plícitos na expressão ordem pública’ . N ã o se
24Com pte rendu..., 1849, pode entender a ordem pública sem a família e
p. 652.
sem a propriedade” .24 Mas, por que, então, ba-

116
JEANNh DEEOIN NA EEVüLDÇAo DE 1848

nir a mulher do domínio público, visto que, de


certo modo, ali já estavam presentes com o par­
te da família, por cuja organização elas, até
mesmo, eram as responsáveis? Essa foi a dúvi­
da lançada por Flocon, que alegava que “a pre­
sença da mulher em encontros [de dudes] [...]
é uma garantia de ordem, moderação e harmo­
25Com pte rendu..., 1849, nia” .25 As feministas s.e manifestaram de m a­
p. 646. neira mais enfática, insistindo que somente a
presença de mulheres — por definição sem in­
teresses egoístas, já que se ocupavam dos cui­
dados com a família — poderia garantir a “or­
26 Jeanne Deroin, "Lettre dem pública” almejada pelos legisladores.26
d ’u n e fe m m e à M. A maioria dos legisladores, porém, com ­
A th an ase C o q u e r e l"
partilhava a idéia de que os “sagrados direitos”
1848, cartaz (pôster), Bi-
b lio th è q u e N a t io n a le
da família e da propriedade podiam ser melhor
L B 5 4 925. defendidos pelos homens. Entendia-se que o rei­
no das mulheres era tanto a esfera física do lar
quanto as complexas tramas das relações ínti­
mas interpessoais; a doutrina da separação das
esferas de atividades de homens e mulheres, en­
tendida com o um reflexo direto da ordem b io­
lógica natural, era, em última análise, a justifi­
cativa para a exclusão das mulheres da cida­
dania. Mas fica bem claro, porém, que os argu­
mentos da Biologia também serviam para pro­
teger os “sagrados direitos” que todo pai tinha
de possuir família e propriedade, direitos que
se resumiam em ter esposa e filhos. N o regime
patriarcal, o acesso a filhos se fazia por inter­
m édio da mãe, cujos laços com a prole eram
evidentes e tangíveis. Eram o corpo e o traba­
lho da mãe que a produzia, e, portanto, ela rea­
lizava a continuidade geracional consubstanci­
ada nas famílias, protegia a propriedade e ga­
rantia a imortalidade. A o insistir que os “direi­
tos” à família e à propriedade pertenciam ao
pai, os legisladores relegavam a contribuição
materna a um imperativo biológico e a uma
obrigação social: afirmavam que as mulheres
“deviam ” filhos aos maridos e à sociedade, e

117
deviam cuiclciclvs maternos a seub ninem rirei h
esses os deveres que tinham de respeitar em tro­
ca do cuidado e da proteção que recebiam dos
maridos na condição de dependerem deles e de
a eles pertencerem.
O fato de que as mulheres também eram
trabalhadoras e reconhecidas com o tais pelos
decretos que prometiam direito ao trabalho cri­
ava um problema: se o trabalho garantia a in­
dividualidade, e se a mulher trabalhava, com o
é que a cidadania podia ser negada às mulhe­
27 "U n e a s s e m b ié e res? Enquanto a legislatura procurava deixar
legislativa en tiérem ent mais claras as idéias sobre o direito ao traba­
com posée d ’hommes est lho, na tentativa de compatibilizá-las com as
aussi incompetente pour
teorias dos direitos políticos formais e da cida­
faire des lois qui régissent
une société c o m p o sé e dania dos homens, as feministas trouxeram n o­
d ’hommes et de femmes vamente à baila a questão dos direitos sociais,
que le serait une assem­ exigindo que os interesses das mulheres tam­
biée entiérement com po­
bém fossem levados em consideração.
sée de privilégiés p o u r
discúter les intéréts des
O voto era uma forma de garantir um inte­
travaiileurs ou une as­ resse social claramente definido, para Jeanne
sem biée des capitalistes Deroin: “Uma assembléia legislativa composta
pour soutenir l’honneur
de homens é tão incompetente para fazer leis
du pays", em. V opinión
des fem m es, n.4, m aio
reguladoras de uma sociedade composta de
1849. A publicação des­ homens e de mulheres quanto seria uma assem­
te jornal foi bastante irre­ bléia composta inteiramente de privilegiados
gular. S u a primeira edi­ para defender os interesses da classe proletá­
ção, um a espécie de pré­
ria, ou uma assembléia de capitalistas para d e­
via, apareceu em 21 de
agosto de 1848, mas só fe n d e ra honra do país” .27
co m eçou m esm o a ser Para Jeanne Deroin, direitos eram instru­
publicado mais regular­ mentos destinados a representar e satisfazer in­
m en te em ja n e ir o d e
teresses; essa era a finalidade concreta que o
1849, e esta foi a edição
sufrágio universal pretendia alcançar, não uma
que recebeu o número 1.
O número 2 apareceu em formalidade vazia. O sufrágio exclusivamente
10 de março, o número masculino salvaguardava um interesse restrito
3, em 10 de abril, o nú­ em nom e da liberdade e da igualdade. Uma
mero 4, em maio. Parece
igualdade apenas formal, em outras palavras,
ter h avido um nú m ero
em junho ou julho, mas não era mais que uma máscara da desigualda­
não encontrei exemplar. de social perpetuada. Segundo Deroin, a natu­
O número 6, a última edi­ reza generizada [gertdered] do sufrágio expunha
ção, apareceu em agosto.
uma contradição (entre o direito concreto ao

118
JE AN N E DEF.OÍN Na R E V O LU Ç Ã O DE 1848

trabalho e o direito formal ao voto) para cuja


solução se apelava para a doutrina que conce­
28A primeira declaração de bia o trabalho como propriedade.28
princípios da nova Cons­ Uma crise semelhante à que os conceitos
tituição incluía: "O traba­
de imaginação provocaram no final do século
lho intelectual e corporal
é a condição fundam en­ XV1ÍI, a questão do direito ao 'trabalho também
tal d a existencia moral e provocou para as teorias republicanas da re­
física dos individuos, das presentação, em 1848. Mesta época, a dúvida
s o c ie d a d e s, d o gén ero
girava em torno da relação entre o indivíduo
humano." Esta afirmação
foi citada em. L' opinión
com o abstração política e indivíduo como ser
des fem m es. "La Consti- socialmente diferenciado: qual dos dois fazia jus
tution". Paris, 21, ago. a direitos? Â resposta à pergunta tinha profun­
1848, a fim de justificar a das implicações para as políticas governam en­
reivindicação das mulhe­
tais: a lei existia só para proteger o indivíduo no
res a favor do sufrágio.
exercício de seus direitos ou para satisfazer um
conjunto de necessidades comuns a todos (di­
reito de viver do próprio trabalho, por exemplo),
corrigindo as desigualdades decorrentes da di­
ferenciação social? A idéia de que a lei devia
proteger o direito à propriedade (mas não seu
objeto ou extensão) foi apresentada, sobretudo,
para reforçar o indivíduo abstrato com o deten­
tor de direitos.
A o mesmo, tempo, dentro da atmosfera
conservadora que se seguiu à revolta de junho,
a questão dos “deveres” do cidadão adquiriu
precedência sobre a dos seus “direitos” . A Cons­
tituição de 1848 contém, no preâmbulo, uma
declaração que não se refere aos direitos do ho­
mem e do cidadão, mas aos direitos recíprocos
29 S o b re esta questão na da República e de seus cidadãos.29 Nele não
p rim eira R e v o lu ç ão , v. existe, porém, menção a outros direitos, os quais
G AUTH IER, 1992.
foram reservados para o segundo capítulo, no
corpo daquela Constituição. N a verdade, no seu
conjunto, o preâmbulo se dedica aos deveres:

O s cidadãos d e v e m am ar a Pátria, servir a


República, d e fe n d ê -la com a própria vida e c o n ­
tribuir para as despesas do Estado d e acordo com
suas p o sses; d e v e m garantir, p e lo trabalho, sua
subsistência e, pelas econom ia s, seu s recursos

119
JOAN V'J 3 COTI

para o faturo; devem estar unidos pelo hem co­


m um , ajudar fraternalmente uns aos outros e pro­
m o v e r a o r d e m pública, o b s e rv a n d o as leis m o ­
rais e escritas q u e regulare a sociedade, a familia
30 "Les citoyens doivent e o individuo.30
aimer la Patrie, servir la
Republique, la défendre
Em retribuição, a República devia prote­
au p rix de le u r vie,
participer au x charges de ger o cidadão , a família, a religião, a proprie­
l’Etat en proportion de dade, e o trabalho, bem com o socorrer os d e­
leur fortune; ils doivent sempregados empobrecidos.
s’assurer, par le travail, des
Apesar de direitos e deveres serem consi­
m o yen s d ’existence, et
p a r la p rév o y an ce, des
derados conceitos paralelos, além de “anterio­
ressources po u r l’avenir: res e superiores às leis positivas” , eram, na ver­
ils doivent concourir au dade, conceitos antitéticos. Os deveres corres­
b ie n -é t re c o m m u n en pondiam, por definição, a uma responsabilida­
s’entraidant fraternelle-
de social: privilegiavam os interesses coletivos
ment les uns les autres, et
à l’ o rd re g e n e r a l en em detrimento dos individuais, limitavam os di­
observant les lois morales reitos do indivíduo, estabeleciam que estes seri­
et les lois écrites qu i am governados por preceitos morais concretos.
régissent la société, la
O ônus da justiça social recaía sobre o com ­
fa m iile et l ’ in d iv id u ".
Préam bule, sec. VII, em
portamento moral do indivíduo, não sobre as
BASTIDE, 1945, vol. 2, p. ações do governo. Desde que os indivíduos pos­
325. suíssem direitos, a sociedade lhes cobrava d e­
veres, os quais seriam cumpridos em contextos
específicos em relação a outros indivíduos igual­
m ente específicos. Os direitos podiam ser con­
cebidos de m odo abstrato como atributos do “in­
divíduo” , ao passo que os deveres consistiam
em obrigações concretas dos indivíduos. C om o
alerta Giovanna Procacci, resultou destes con­
ceitos que, “observado sob tão intricada trama
de deveres, o indivíduo é apenas entrevisto como
um ser fragmentado por uma série de experiên­
cias, e nunca com o um ser unificado, sujeito
31 P R O C A C C I, 1989, p. jurídico de direitos” .31
1 83. V. ta m b é m A quela mesma escritora afirma ainda que
P R O C A C C I, 1993.
a n oçã o de deveres do cidadão, cujos funda­
m entos teóricos foram muito bem definidos, na
é p o c a , p o r A u gu ste C o m te (e, d e p o is ,
reform ulados com o doutrina política na Consti­
tu ição da nova república), fazia parte de um

120
JEANNE DEEOIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

esforço para que “o social” fosse considerado


mais um objeto de estudo científico e regula­
m e n ta ç ã o g o v e rn a m e n ta l, e m en o s um
32 P R O C A C C I, 1989, p. repositório de direitos.32 Giovanna Procacci não
1 8 3. V. ta m b é m mencionou, porém, que, na época, tanto a no­
D O N Z E L O T , 1984; e ção de deveres quanto o conceito de “social”
F O U C A U L T , 19 94 , p.
estavam carregados de conotações cujo alvo
801-806.
não era senão as mulheres. Com efeito, uma
das razões da exclusão das mulheres das filei­
ras dos indivíduos e dos cidadãos tinha a ver
exatamente com sua condição de pessoas (in-
ter-dependentes) em virtude de seus deveres
para com os filhos, para com o marido e para
com a s o c ie d a d e . A lé m disso, a a ten çã o
dedicada ao social com o objeto de estudo e de
regulamentações se manifestava em termos da
necessidade de proteger a população dependen­
te. C om isto, os pobres, porque dependentes,
passaram a ser identificados (ou confundidos)
com as mulheres e as crianças. Eis porque
Auguste Com te sustentava que a idéia de g o ­
verno moral, implícita no conceito de dever, tor­
nara-se especialmente atraente para as mulhe­
res: elas necessitavam de proteção “ contra a
ação opressiva do poder temporal” e, ademais,
na prática, não tinham nenhuma influência na
política. Ele acrescenta que é apenas a partir
do ponto de vista feminino que a vida humana,
quer individual quer coletiva, pode realmente
33 Auguste Comte, A G e ­ ser compreendida no seu todo.33 Ao introduzir
neral View of Positiuism, a questão do dever social com o uma trava que
citado por RILEY, 1988,
inibe os direitos sociais e ao considerar o dever
p. 48.
com o pré-requisito da cidadania, os legislado­
res solaparam a singularidade do indivíduo abs­
trato — o hom em cuja característica de ser
dono (de si próprio) o tornava igual a todos os
homens e, portanto, cidadão — e abriram o ca­
minho para sua pluralização, e mesmo para sua
feminização.
Por conseguinte, as várias tentativas de
excluir as questões sociais do cam po da políti-

121
JLAH W, SCOTT

ca acabaram crlanda urna tensão: por um lado,


os legisladores definiam o trabalho como um
direito à propriedade, tentando manter o indi­
viduo abstrato indiferenciado, detentor apenas
de direitos formais; por outro lado, procura­
vam eliminar por completo a questão social do
dominio dos direitos, moralizando-a. Isso, p o ­
rém, dava ênfase aos deveres individuais, o que
acabava por levar a realidade da diferencia­
ção social e da interdependência de volta à
questão da cidadania. Ambas as atitudes abri­
ram o caminho para as reivindicações femi­
nistas. As mulheres não só trabalhavam, o que,
no mínimo, já as qualificaria com o donas de
si próprias, mas ainda constituíam um exem­
plo da idéia de dever moral. “A moralidade de
uma nação depende, acima de tudo, da mora­
lidade de suas mulheres [...] N ã o há dedica­
34 " L a m o ra lité d ’ u n e ção pública sem virtudes privadas, não há vir­
nation tient surtout à la tudes privadas sem o respeito à família, esse
m oralité des fem m es... templo no qual a mãe se entrega com a mais
Fas de dévouem ent p u ­
b liq u e sans vertus pri-
completa abnegação” .34
vées, pas de vertus pri­ Segundo os termos do discurso dos deve­
vé es sans respect pour la res e dos direitos, portanto, as mulheres eram
famille, ce temple oú la inegavelmente cidadãs. Essa foi a conclusão a
mére se dévoue avec une
que chegou Jeanne Deroin quando decidiu con­
si compléte abnégation",
em La Voix des Fem m es, correr a um cargo p o lític o em 1849: “A o
20, mar. 1848. candidatar-me para a Assembléia Legislativa
estou cumprindo meu dever; é em nom e da m o­
ralidade pública e em nome da justiça que exijo
35 "En posant mon. candi- que o dogm a da igualdade deixe de ser uma
d a tu re à l’A s s e m b lé e mentira” .35 Tomando ao pé da letra a definição
législative, j ’accom plis de cidadão, isto é, aquele de quem se espera o
mon devoir: c’est au nom
cumprimento de deveres em troca do reconhe­
de la m orale publique et
au nom de la justice que cimento e da proteção de seus direitos, Deroin
je dem ande que le dogm e declarou-se cidadã e procurou exercer seus di­
de Fégalité ne soit plus un reitos. Mesmo antes de ser declarada ilegal, sua
m e n so n g e ". V opinión
ação expunha as contradições inerentes às pre­
des fem m es, n. 4, maio de
1849. missas da Constituição de 1848. Ela concorreu
com o indivíduo — com o um daqueles traba-
lhadores/proprietários cuja individualidade es-

122
JEAMMElDEEOIN MA RESOLUÇÃO DE 1848

íabeiecia sua paridade com outros homens? Mas


em que termos podiam as mulheres afirmar que
eram proprietárias e indivíduos? Certarnente
não pela posse de um marido cujo sobrenome
assinava. Seria, então, pela posse de um filho?
Foi precisamente isso que, em 1834, num pan­
fleto intitulado A m u lh e r é a fam ília , a feminista
sansimoniana Egérie Causobon sugeriu: “A fruta
36 "Le fruit doit porter le deve levar o nome da árvore que a produziu,
nom de 1’ arbre qui lui não o do jardineiro que a enxertou” .36 Deroin
donna la vie, non celui du defendeu da mesma forma o reconhecimento
ja rd in ier q u ’y g reffa le
do fato de que os filhos pertenciam exclusiva­
bourgeon". C A S A U B O N ,
1 834, p .8 . V. tam b ém mente a suas mães. Esse reconhecimento po­
G R O G A N , 1992. dería muito bem estabelecer a identidade das
mulheres como indivíduos, mas a que preço para
a condição dos homens como indivíduos? Se­
gundo cálculos exatos da economia patriarcal,
o sucesso da mulher em alcançar a individuali­
dade necessariamente afetaria a individualida­
de do homem.
Quando Jeanne Deroin afirmava com in­
sistência que se candidatava para conseguir a
representatividade das mulheres, ou seja, de um
grupo social com necessidades e interesses pró­
prios, ela trouxe problemas para a questão so­
cial. Era possível imaginar que o sufrágio uni­
versal traria tamanha transformação na ordem
social que “não haveria mais proletários na Fran­
ça” . Semelhante promessa seria válida também
para mulheres? Será que a representação polí­
tica das mulheres iria acabar tanto com a opres­
são quanto com as qualidades típicas de sua
identidade? Ou seja, se se permitisse que as mu­
lheres fizessem reivindicações próprias no d o­
mínio público e no político, elas ainda seriam
mulheres? Muitos achavam que não, concordan­
do com as veementes advertências que fazia um
37 G A U T IE R , 1849. Sobre escritor no Le Peuple, um jornal publicado pelo
a questão dos direitos in­ socialista Fierre-Joseph Proudhon, segundo o
vocados pelas feministas
qual “a emancipação das mulheres só produzi­
d a ép oca, v. F R A IS S E ,
1975. rá hermafroditas”37.

123
JOAN W. SCOTT

Apesar dessa evocação do monstruoso


com o resultado específico da igualdade dos gé­
neros, a reivindicação de igualdade concreta da
mulher nada tinha de excepcional: era apenas
uma conclusão extrema da noção de direitos
políticos positivos. C om o tal, tanto quanto qual­
quer outra reivindicação de igualdade social, 1
era uma ameaça à hierarquia sobre a qual re­
pousava a ordem social, que deveria ser prote­
gida (quer no sentido de “preservada” , quer no
de “ocultada” ) pela outorga de direitos políticos
formais. Os direitos políticos formais, porém,
não podiam ser estendidos à mulher, porque a
universalidade masculina ficava assegurada
(sob a égide da propriedade e da família) pelo
direito que o homem tinha à mulher. As reivin­
dicações que as mulheres faziam por direitos,
portanto, associavam necessariamente o con­
creto ao formal, evidenciando sua relação e re­
jeitando qualquer distinção entre eles.
Quando Deroin reivindicou direitos com
base no cumprimento de deveres, ela confun­
diu ainda mais o raciocínio constitucional. Se
os direitos e os deveres realmente eram anterio­
res às leis positivas, se um era pré-requisito do
outro, então com o se poderia invocar os d eve­
res da mulher (com a família, filhos, socieda­
de), se para elas esses mesmos deveres consti­
tuíam um obstáculo ao exercício de seus direi­
tos? — a não ser que a ênfase sobre o dever
fosse apenas um pretexto para que se recusasse
aos homens seus direitos, ao mesmo tem po em
que se lhes concedia o direito ao voto. Deroin
insistia que, ao concorrer a um cargo público,
ela “cumpriu um dever, reivindicando um direi­
38L' opinión des femmes, to” .38 Quando, porém, sua ação foi considera­
n. 4, m aio de 1849. S o ­ da ilegal, ficou demonstrado que os direitos e
bre a questão dos direi­
os deveres não estavam acima da lei, mas eram
tos invocados pelas femi­
nistas da época, v.
seu produto. Muitos anos mais tarde Deroin te­
FRAISSE, 1975. ceu comentários irônicos sobre a relação entre
deveres e direitos: “Os deveres e os direitos são

124
JEAWNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

correlativos. Contudo, para exercermos nossos


direitos e cumprirmos nossos deveres, é preciso
39"Le devoir et le droit sont que detengamos poder” .39 A experiência do fe ­
corrélatifs. Mais pour exer­ minismo durante a Segunda República compro­
cer le droit et accomplir le
vou sobejamente a validade da declaração de
devoir il faut le pouvoir".
Deroin, "Les tours", um a
Deroin.
de várias cartas sobre "La
recherche de la patemité" Quando a temática dos direitos revelou-
e n v ia d a s a o jo r n a l de se envolta por uma trama de deveres, com o
L é o n Richer (D E R O IN ,
aconteceu em 1848, não foi difícil para as fe­
1883).
ministas achar um protótipo de mulher que pre­
enchesse as condições de cidadã. Basearam,
então, suas reivindicações naquele ser venera­
do nos ensinamentos da Igreja Católica e deifi­
cado nos panegíricos românticos, naquela fi­
gura modelar de dedicação e de cumprimento
do dever: a mãe. A mãe correspondia àquela
mulher que assumia deveres socialmente defi­
nidos e ao exem plo graças ao qual o próprio
significado da reciprocidade e da obrigação tor­
nava-se transparente. N a lógica da Constitui­
ção, os deveres eram correlatos aos direitos; na
das feministas, seguia-se, portanto, que era ne­
cessário conceder direitos a todos aqueles que
cumpriam seus deveres. Mais ainda, para que
suas obrigações fossem cumpridas com suces­
so, era necessário que se lhes permitisse o exer­
cício de seus direitos: É especialmente a santa
40 "Mais c’est surtout cette
função da maternidade, considerada incompa­
sainte fonction de mère,
tível com o exercício dos direitos da cidadania,
q u ’ on o p p o s e co m m e
incompatible avec 1’exer- que impõe à mulher o dever de cuidar do futuro
cice des droits de citoyen- de seus filhos e que dá à mãe o direito de inter­
ne, qui im p o s e à la vir não só em todos os atos da vida civil, mas
femme le devoir de veiller
também nos da vida política.40
sur 1’avenir de ses enfants
et lui d o n n e le dro it
A Mãe, para Jeanne Deroin, era uma figu­
d ’intervenir non seu le- ra idealizada, concebida com o um indivíduo em
ment dans tous les ac tes plena posse de si e dos filhos que gerou. Tal
de la vie civile, mais aussi
idealização não correspondería nem a experi­
dans tous les actes de la
ências de mulheres comuns transformadas em
vie politique". L ' opinion
des fe m m e s, n. 2, 10, estratégias feministas, nem a realidade vivida
m ar.1849. por essas mulheres reduzida a exem plo de ex-

125
JOAN V/„ SCOTT

pressão simbolice:; aso exigirici que es mulhe­


res fossem boas mães, nem mesmo que fossem
mães (a própria Jeanne Deroin, por exemplo,
confiou os cuidados de seus três filhos a outrem
durante as acaloradas lutas políticas de 1848-
1850). Tampouco limitaria a ação política da
mulher com os problemas da família e dos fi­
41SCOTT, 1988a. lhos. Por isso, cooperativas de produção só de
mulheres levavam em consideração as exigên­
cias dos cuidados com os filhos, ao organiza­
42Para outra interpretação rem horários e distribuírem tarefas entre seus
deste apelo à maternida­ membros.41 N a verdade, Jeanne Deroin trans­
de, v. MOSES, 1984, p.
formou a maternidade, o traço mais significati­
132-136.
vo e simbólico da mulher naquela época, numa
justificativa para direitos políticos: ela argumen­
43 DEROIN, 1853, p. 73.
tava que, em consonância com os critérios m o­
rais e políticos então predominantes, os seres
humanos que, pela maternidade, podiam ser
44Flora TRISTAN (1980, v. portadores de filhos, eram, também, portadores
2, p. 231) se expressou
de direitos.42
assim: "Os judeus estavam
mortos e d e grad a d o s e A santa função da maternidade era trazer
Jesus os le v a n to u . O crianças ao mundo, constituía, portanto, um va ­
povo cristão está morto e lioso trabalho social. “As mulheres são as mães
degradado, hoje em dia,
da humanidade” , argumentava Jeanne Deroin,
e Flora Tristan, a primeira
mulher forte, vai levantá-
“a tarefa mais importante de todas é a produ­
los. Oh! Eu sinto um mun­ ção do ser humano” .43 Além do mais, era uma
do novo dentro de mim e tarefa que se apresentava com o uma realiza­
eu d a re i este m u n d o ção exclusivamente feminina. A Virgem Maria
n o v o ao m u n d o v elh o
era a perfeita representante da produção fem i­
que está desm oronando
e morrendo". V. também nina autônoma, pois concebeu Cristo sem a
C A S A U B O N , 1834a, p. cooperação do elemento masculino; era tam­
21. Sobre a Virgem M a ­ bém a mediadora entre o reino do espírito e o
ria, v. W A R N E R , 1976.
da matéria. Seu corpo físico era o instrumento
Para um a discussão mais
gen eralizada, v. K S E L -
da regeneração moral e espiritual, o cadinho que
M A N , T h o m a s , 1983; forjaria uma nova ordem .44 Além disso, não
M IC H A U D , 1976; MAR- havia motivação egoísta na maternidade; pelo
R U S , 1977, p. 205-20; contrário, nela se encarnava a própria essência
P O P E , 1985; ZIM D A R S -
do “dever” , ou seja, uma missão de sacrifício e
S W A R T Z, 1991.
de dedicação aos outros. “Ela age porque ela
45La uoix des fem m es, 28,
mar. 1848.
ama. O amor à humanidade é o amor eterno” .45
Negar o valor social da obra reprodutiva da

126
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

mulher, afirmar que a rriança que gerou não lhe


pertence, era uma expropriação tão violenta
quanto as praticadas pelo capitalismo ou pela
escravidão. E não era menos odiosa a expropri­
ação, ainda que simbólica, que se concretizava
46D E R O IN , "Profession de
foi", p. 40. A "Profissão de
pela imposição dc nome do marido à mulher ou
fé" de Jeanne Deroin foi do pai aos filhos. Tratava-se de um ato, segundo
transcrita pelos editores Jeanne Deroin, comparável ao “ferro em brasa
de L e G lo b e para os ar­ que' Imprimia as iniciais do dono na testa do es­
q u iv o s St. S im ó n em
cravo”,46 O costume decorrente do qual a famí­
1831-1834. É um docu­
mento escrito à mão, dis­ lia passava a usar o nome do pai, insistia Jeanne
ponível na Bibliothèque Deroin, não era uma prática inocente, nem re­
de F A rs e n a l, Fonds fletia uma realidade estabelecida. Na verdade,
Enfantin, 7608, n. 39.
atribuir à família o nome do pai era um ato de
Agradeço a Claire G old-
berg Moses por ter parti­
poder disfarçado no exercício de um direito.47Seu
lhado com igo sua cópia efeito era obliterar o valor social da maternidade
deste documento. e o papel da mulher como um agente social in­
dependente. Roubavam-lhe os filhos, frutos de
seu trabalho, e, com eles, a identidade de seu
47L a Voix des Femmes, 20,
status, a propriedade de si própria.
mar. 1848. Para um a dis­
cussão teórica, v. L A C A N
Para feministas com o Jeanne Deroin (ou
(1977, p. 67): "É o nome Olympe de Gouges), o remédio era dar aos fi­
do pai que devem os re­ lhos o nome da mãe. Jeanne Deroin acreditava
conhecer com o base da na monogamia e na fidelidade nas relações he­
fu n d a ç ã o s im b ó lica , a
terossexuais, mas não na propriedade privada
q u a l, d esd e os
prim ordios d a História, assegurada pelo matrimônio e representada pelo
iden tificou su a p e s s o a sobrenome do pai ou do marido. Nos primeiros
com a figura d a lei". V. anos da década de 1830, Jeanne Deroin se jun­
também G R O SZ,1990; e
tara a um grupo de mulheres sansimonianas que
O ’B RIEN, 1981.
substituíam o nome de família por um X, quan­
do assinavam seus artigos num jornal que pu­
blicavam. Quando ela se casou com um com ­
panheiro, um engenheiro cujo nome minhas fon­
tes dão apenas com o Desroches, durante a ce­
48 S o b re a prática, entre
mulheres sansimonianas,
rimônia civil em 1832, na hora da troca de v o ­
de abandonar o sobreno­ tos, excluíram as promessas recíprocas tradici­
me, v. M O S E S, 1984, p. onais, a do esposo de proteger e a da esposa de
1 32-6; D É M A R , 1976; obedecer. Além disso, ela não assumiu o nome
ELHADAD, 1976 e
dele, continuou a usar o da família (o de seu
1977; M O O N , 1978; RA-
BINE, 1987-1988; e V O - pai), Deroin.48 A dificuldade, porém, que ela
ILQ U IN , 1978. sentia em garantir sua condição de independên-

127
JOAN W. SCOTT

da e ser chamada por um sobren-:,--: e que não


era seu, mas de seu pai, levou-a a preferir ser
chamada simplesmente de Jeanne, "'Dentre to­
dos os nomes que designam uma mulher, seja o
do pai seja o do marido, eu só gosto do nome
49 "D e tous íes noms dont de batismo, o único realmente dela” 49Quando
on m arque la fem m e soit
foi presa por subversão em 1850 (por ter ajuda­
du pére, ou du mari, je
n’aime que le petit nom
do a organizar Associação de Am . .ações, pro­
qu i lui est p r o p r e ". jetada para coordenar as tentadlas socialistas
D E R O IN , 1858, citado de estabelecer uma alternativa ao capitalismo),
em RIOT-SARCEY, 1989, os juizes lhe perguntaram por que não tinha as­
p. 3.
sumido o nome do marido, Desroches. Respon­
deu que queria isentar o marido de qualquer res­
ponsabilidade pelos delitos por ela cometidos, e,
também, “protestar contra o casamentó’ . A de­
claração que Jeanne Deroin fez de sua autono­
mia, bem como as críticas contra as instituições
da época, seguidas de tentativas de reformá-las,
acabaram constituindo, no tribunal, provas a
50 O prom otor debochou mais de sua condição de fora-da-lei.50
de muitas mulheres que
Conceituar a maternidade com o trabalho
foram presas, juntam en­
produtivo, dizia Jeanne Deroin, enfatizava-lhe
te com Jeanne Deroin,
por se recusarem a casar, o caráter independente e o aspecto social. En­
o que era co n siderado gendrar filhos, prosseguia, não era simplesmen­
um a prova a mais de cul­ te um reflexo biológico, nem um subproduto de
pa e de subversão. O pro­
um desejo instintivo de prazer sexual. A sem e­
motor descreveu sarcas­
ticamente Pauline Roland lhança de qualquer outro trabalho, a materni­
como u m a "mãe que não dade era motivada pela necessidade que a es­
é casada [...] um a inimiga pécie humana tem de multiplicar-se para sobre­
do casamento [porque o
viver ; a maternidade era um trabalho social, e
casamento] santifica a de­
sigualdade [...] N em é ne­
não natural. Era a associação que se fazia da
cessário dizer que, segun­ m aternidade ao desejo sexual que, segundo
do ela, ninguém tem di­ Jeanne Deroin, a marcava com o algo corrupto.
reito à propriedade priva­ Eva foi a primeira mãe, não a tentadora res­
da T H O M A S , 1948, p.
ponsável pela Queda. Este vilipendio de que Eva
75-77.
fora vítima era mais uma tentativa de desvalo­
rizar a maternidade, assim com o de perpetuar
o processo de exploração — sexual e social —
do trabalho feminino pelos interesses do dom í­
nio patriarcal. Sob tais condições, deduzia
Jeanne Deroin, “já que a mulher teve a digni-

128
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

dade violada, não constitui nenhuma surpresa


que procure refúgio nos sentimentos cristãos, se
dispa da natureza humana e se vista com o um
anjo, a fim de livrar-se do domínio brutal dos
51 "C o n ne peu t trouver homens e da servidão humilhante” .51
étrange que la fem m e se C om o corolário, as relações sexuais seri­
refugie dans le sentiment
am aceitáveis sempre que as mulheres fossem
chrétien et que, voyant la
dignité humaine ouíragée
tratadas com o iguais aos homens. Por outro
en elle, elle v e u iíle lado, Jeanne Deroin sugeria também que o celi­
dépouiller la nature hu­ bato poderia ser a melhor garantia de igualda­
maine et se revétir de la
de no casamento. Rejeitava categoricamente a
nature a n g é liq u e p o u r
idéia de que as mulheres poderíam conquistar
s’affranchir de la brutale
domination de l’hom m e a independência pela prática do “amor livre” ,
et d ’une humillante ser- pois fora testemunha, na década de 1830, da
vitude”. D E R O IN , 1851, promiscuidade irresponsável a que o líder dos
p. 13.
sansimonianos, Prosper Enfantin, e seus adep­
tos se entregaram, sem assumir responsabilida­
de pelos filhos dela resultantes. (Muitas mulhe­
res que participavam do movimento foram aban­
donadas para criar sozinhas seus filhos ilegíti­
52Sobre a historia das m u­ mos.)52A alternativa, tanto para o celibato quan­
lh eres d o m o v im e n to to para o amor livre, era a maternidade sem
sansimoniano, v. M O SE S, sexo. A Virgem Maria, por isso, acabou se tor­
1984, p. 41-116, e 1982.
nando o m odelo favorito, pois permitia que
Jeanne Deroin adiasse o problema das relações
sexuais e o papel do homem na geração de fi­
lhos. Para ela, o estado é que tinha a obrigação
de prover com um sustento financeiro ( “um dote
social” ) todas as mães, a fim de que ficassem
liberadas da dependência dos homens — na ver­
dade, de qualquer relacionamento com os ho­
53 DE R O IN , 1849b. mens.53 A semelhança do proletariado, cuja
emancipação ficaria assegurada pelo trabalho
não alienado, as mulheres acabariam se sentin­
do realizadas no trabalho de reprodução, uma
vez que se garantisse à maternidade a compen­
sação e o reconhecimento social que ela mere­
54D E R O IN , 1851, p. 14. cia.54 A mãe dedicada e espiritualizada devia
sua força ao corpo em atividade; ela não era o
instrumento do desejo de outrem, nem sua pro­
priedade, pois exercia completo controle sobre

129
aS cundiçoes 6 o produLO ds seu iraualiiu. riste
era um trabalho autodefinido e correspondente
a um dever social cumprido, razões sobejas que
qualificariam a mulher (com o trabalho sem e­
lhante qualificava o homem) para exercer o di­
reito ao voto.
Áo defender a idéia de que gerar filhos era
um trabalho socialmente necessário, Jeanne
Deroin recusava-se a aceitar a diferenciação se­
gundo a qual os homens eram trabalhadores
produtivos (pois transformavam matéria prima
em algo de valor) enquanto as mulheres eram
consideradas apenas uma força da natureza.
Esse nivelamento de funções foi tomado por seus
críticos com o uma negação de toda diferença
de gênero, pois revelava até que ponto a natu­
reza do trabalho associada ao gênero — e não
à própria natureza — construía as diferenças
entre homens e mulheres. O fato de Jeanne
Deroin insistir que um trabalho próprio de mu­
lheres as qualificava com o cidadãs foi, ironica­
mente, tom ado com o uma afirmativa de que
homens e mulheres eram uma coisa só. Pierre
J. Proudhon se insurgiu contra ela da seguinte
maneira: “A igualdade política dos dois sexos,
isto é, a admissão de mulheres para funções
públicas próprias de homens, é um sofisma
refutável não apenas pela lógica, mas pela cons­
ciência humana e pela natureza das coisas. O
homem, à medida que sua razão se desenvolve,
55 "Légalité politique des pode ver a mulher com o sua igual, mas nunca
deu x sexes, c’est-à-dire
a verá com o o mesmo ser que ele” 55. A falta de
1’assimilation de la femme
à l’ h o m m e dans les
lógica dessa insistência na lógica, a substitui­
fonctions politiques, est ção de argumentos sérios por uma recusa ira­
um de ces sophismes que da, demonstra a trem enda importância que
re p o u s s e n t non Proudhon dava à necessidade de manter ho­
s e u le m e n t la lo g iq u e ,
mens e mulheres separados e o papel crucial da
mais encore la conscience
humaine et la nature des idéia de esferas distintas para que tal separa­
d io s e s ”. P R O U D H O N , ção se perpetuasse.
L e Peuple, Paris, 12 abril A resposta de Jeanne Deroin revelou a na­
1849.
tureza da convicção de Proudhon em esferas

130
JEANNE D E h O IN N A RE'- -O LU Ç ÃO DE 1848

separadas e negou sua acusação; “E exatamen­


te porque a mulher está em pé de igualdade com
o homem, e não é a mesma em relação a ele,
que ela deve participar da obra de reforma so­
56 " C ’ est p arce qu e la cial” .56 Para Proudhon as “funções públicas”,
fe m m e est l’ é g a le de na verdade, garantiam as fronteiras entre os gé­
l’hom m e et q u ’elle ne lui
est pas semblable, q u ’elle
neros, pois, no final das contas, não havia ou­
d o it p ren d re p a rt à tra maneira de estabelecer diferença entre ho­
l’o e u v re de la reform e mens e m Eneres. Para Jeanne Deroin, era a
sociale". D E R O IN , 1849c. existencia dessas fronteiras que criava os “inte­
resses” claramente diferentes das mulheres e,
em consequência, a necessidade da represen­
tação política. O próprio raciocinio de Jeanne
Deroin em torno dessas questões, por outro
lado, revela a dificuldade de se articular a igual­
dade das mulheres em termos de sua diferença.
Quanto à maternidade, Jeanne Deroin apaga­
va o papel dos homens como co-responsáveis
na produção dos filhos, num esforço de realçar
a individualidade da mulher nesse processo. Em
outras áreas, porém, ela apresentava o casal he­
terossexual com o um m odelo de reflexão sobre
a igualdade político-social de seres completa­
mente diferentes.
Jeanne Deroin retom ou a form u lação
sansimoniana de igualdade, cuja essência con­
sistia na defesa da idéia de que “o casal, ho­
mem e mulher,” é que era o indivíduo social;
sem sua união “nada é completo, moral, dura­
57La uoix des fem m es, 26, douro, ou possível” .57 Oferecida com o uma crí­
mar. 1848. tica às divisões causadas pelo individualismo
egocêntrico, a idéia do indivíduo social dava
ênfase à complementaridade dos opostos, à in-
ter-relação necessária das qualidades julgadas
mutuamente contrárias e à com plexidade de
conceitos apresentados como simples. O indi­
víduo era um casal, e é por isso que o vocabu­
lário usado por Jeanne D eroin insistia na
dualidade: referia-se ao casal com o “un et une”
no singular, e “tous et toutes” no plural. A hu­
manidade era homem e mulher: em algumas de

131
J u a n w , s c O ’i i

58 “Q ue.D ieu a joint ainsi, suas a p res en ta ç õ es , a h u m a n id a d e era


qus 1’hom m e ne sépare
andrógina; em outras,', um casal unido em có­
point” ; "Les fem m es au
go u vern em en t et au
pula, amalgam ado para formar uma criança;
peuple français", abaixo- em outras, ainda, os dois aspectos de Deus. O
assinado de 16 de março casamento que regeneraria o mundo era o de
de 1848, reimpresso em dois iguais, o “que Deus uniu e nenhum homem
L' opinión des fem m es, n.
pode separar” .58 (Aqui, suas idéias seguiam o
4, maio 1849.
pensamento de Pierre Leroux, para quem Deus
“é, com efeito [...] dois princípios, mas que Ele
59LEROUX, 1845, p. 532. não é ele nem ela: é os dois unidos por um ter­
S egu n do Leroux, havia ceiro [...] o amor, que é Sua terceira face” .)59
provas bíblicas contra a Por vezes Jeanne Deroin endossava noções de
noção de que Deus criou
androginia, com o quando insistiu para que
a mulher de um a costela
de A dão, enquanto este
G eorge Sand representasse os interesses das
dormia. N a verdade, ele mulheres na legislatura de 1848, a fim de que a
citava textos rabínicos redação da constituição não ficasse inteiramen­
para enfatizar que a his­ te nas mãos de homens. (Sand recusou tal indi­
tória da costela se referia,
cação e ridicularizava acidamente quem a pro­
de fato, à separação do
andrógino em duas m e­ pusera, insistindo que, naquela oportunidade,
tades iguais. afinal, as mulheres não tinham lugar na políti­
c a .)60 D e a c o rd o co m J ea n n e D e ro in , a
^ S C H O R , 1992, p. 41-53. dualidade de Sand a tornava menos ameaça­
V. S C H O R , 1993. dora aos olhos dos legisladores: “Ela é o tipo un
et une, masculino por sua virilidade, feminino
por sua divina intuição e poesia. Ela se fez ho­
61 "C ’est le type un et une, mem por seu gênio; mas continua mulher por
être mâie par la viriíité, seu lado maternal, por sua infinita ternura” .61
fe m m e par 1’ intution As idéias de Jeanne Deroin vinham de uma
divine, la poésie. Elle s’est
rica fonte de textos românticos e socialistas-utó­
faite hom m e par l’esprit;
elle est restée femme par
picos sobre a androginia. Em algumas versões,
le cóté m a te rn e l, la o andrógino é expresso por uma busca do mas­
tendresse infinie". Citado culino integral, que se concretiza pela incorpo­
em A D L E R , 1979, p. 138. ração do feminino. (O fato de que essa pers­
pectiva envolvia não só a subordinação mas até
62Sobre o movimento san- a anulação das mulheres já ficara demonstra­
simoniano, v. C A R S U L E ,
do, em 1832, pela comunidade sansimoniana
1987; EVANS, 1951;
M O S E S , 1982; W E IL ,
de Ménilmontant, um empreendimento inteira­
1987, 1 9 87 a e 1990; mente masculino dedicado ao cultivo da dimen­
D ’A L L E M A G N E , 1930; são feminina da psique masculina.)62 Em ou-
IG G E R S , 1958; M A N U ­ trás versões, o andrógino em Jeanne Deroin se
E L e M A N U E L , 1980.
apresentava com o uma visão mais igualitária

132
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

da complementaridade entre masculino e fem i­


nino, em termos de parceria entre o homem e a
mulher. Para Pierre Leroux, que abandonou os
sansimonianos por não concordar com a práti­
ca prom íscua d o “ am or livre5" adotada por
Prosper B. Enfantin, o estado primitivo da hu­
manidade era andrógino. Com a Queda, ocor­
63 L E R O U X , 1 8 4 8 a , p. reu “la séparation des deux sexes” ,63 e então,
530-531, e 1848, p : 44, com a separação de le moi e le non-moi, a
V. t a m b é m L E B R A S -
conscretização da consciência humana do eu
C H O P A R D , 1986; B É N I-
C H O U , 19 77 ; B U S S T ,
único. A redenção não viria com a restauração
1967, p. 1-96; e W E IL , do andrógino edênico [prelapsarian], pensava
1992. R Leroux, mas com a igualdade política entre
homem e mulher, tornados marido e mulher. Sua
relação devia ser inteiramente recíproca, de
m odo que cada eu admitisse e aceitasse sua
dependência do outro. Esta era a premissa de
Jeanne Deroin em sua reivindicação por direi­
tos; homem e mulher complementavam-se mu­
tuamente; nenhum era íntegro sem o outro.
“Deus criou o ser humano a sua imagem. Criou-
o hom em e mulher; deu-lhe a vida com seu so­
pro divino e com as duas metades do mesmo
ser formou o indivíduo social — homem e mu­
lher — a fim de que um desse vida ao outro, de
64 " D ie u a créé 1’ être que um completasse o outro e de que ambos
humain à son image. II l’a caminhassem juntos para o m esmo destino.
créé mâle et femelle; il l’a Deus fundou a sociedade humana” .64
animé du soufflé divin et
A n oção que Jeanne D eroin tinha de
des d e u x m oitiés d ’un
m ê m e être il a fo rm é completude pressupunha os dois sexos de tal
1’individu social, Thomme form a interdependentes que um não poderia
et la fem m e pou r s’ani- existir sem o outro. A complementaridade era
mer, se compléter et mar-
uma relação que visava à complementação ou
cher ensem ble vers um
m êm e b u t II a fondé la
ao preenchimento, à compensação da insufici­
s o c ié té h u m a in e ". ência ou da deficiência existente qualquer das
D E R O IN , 1848, p. 2. P u ­ partes constituintes. A igualdade da relação, p o ­
blicado pela primeira vez rém, segundo a visão de Jeanne Deroin, exigia
com o um a série de arti­
uma perfeita simetria na ocupação do território
gos em La politique des
fem m e s, m ais tarde foi comum aos dois parceiros não idênticos. “N os­
pu blicado em form a de sas metas políticas são as mesmas que as dos
pequ en o livro. homens” , explicava ela na primeira edição de

133
JOAN W. SCOTT

La p o l i t i q u e d e : fernrnes, “mas nossos pontos


de vista são diferentes. Cada um de nós tem di­
reito a sua indi'/idualidade sob a bandeira do
socialismo; a política das mulheres pode cami­
nhar em pé de igualdade com a política dos ho­
65La politique des f e m - mens” .65 A fim de defender essa paridade ou
mes, n. 1 (18-24, jun. equivalencia, ciava ênfase à individualidade au­
1848).
tônom a e à encrenca irredutível das duas par­
tes (se assim não fosse, sua união resultaria na
absorção de uma parte pela outra e na conse-
qüente negação da representatividade de uma
delas). Na hipótese de cada parte ser integral
— quer na sua masculinidade, quer na sua fe­
minilidade — , as diferenças necessárias para
que cada uma delas se tornasse completa, por
acaso, d esa p a receriam ? C o m o p o d e r ia a
interdependência (ou a carência de cada par­
te) pressupor a independência (ou auto-sufici­
ência)? A dificuldade de responder essas per­
guntas está patente no choque entre as duas fi­
guras que Jeanne Deroin em pregava para ar­
gumentar a favor da igualdade. Por um lado, o
indivíduo era visto com o um casal heterossexu­
al em total harmonia; por outro, a individuali­
dade da mulher exigia a mãe autônoma, agente
único da geração de seu filho. A tentativa de
Jeanne Deroin para defender igualdade em ter­
mos de complementaridade constituía um pa­
radoxo, decorrente do seu engajamento com um
discurso político que condicionava a individu­
alidade do homem à não-individualidade da
mulher (a “alteridade” da mulher estabelecia a
individualidade do homem). Qualquer esforço
no sentido de estabelecer a individualidade da
mulher ameaçava a do homem, mas uma tinha
que ser estabelecida em função da outra. Nesse
contexto, os apelos que Jeanne Deroin fazia à
complementaridade eram insustentáveis: em vez
de complementar o homem, a mulher seria sua
substituta, ocuparia sua posição, ficaria em seu
lugar, desempenhando-lhe o papel — as linhas

134
JEANNE DEROIN NA-REVOLUÇÃO DE 1848

divisorias entre homem e mulher se tomariam


irrelevantes e na prática desapareciam. O u 3
então, nas palavras da crítica literária Barbara
Johnson, “Contanto que haja simetria, não se
está lidando com diferença, mas com versões
66 J O H N S O N , 1987, p. da diferença” .66
191. Â dificuldade em manter a complementa­
ridade ficou bem visível nos esforços de Jeanne
67 "A l’oeuvre hommes de
Deroin. invocando enfaticamente a paridade
I’avenir! R é p u b lica in s,
socialistes de toutes les entre homens e mulheres, na edição inaugural
écoles, à l’oeuvre! A ppe- de L opínion des Femmes, assim se expressa:
lez, enfin, franchement à A o trabalho, homem do futuro! Convocai aber­
v o u s , la fe m m e , cette
tamente, afinal, as mulheres, essa metade de
moitié de votre ame, de
votre coeur, de votre inte-
vossas almas, de vossos corações, de vossa in­
lligence trop longtem ps teligência há muito não reconhecida e abando­
m écon nue et délaissée; nada; trabalhai juntos para introduzir a nova
tra v a ille z e n s e m b le à era, a lei do futuro, da solidariedade, da tole­
fonder l’ére nouvelle, la
rância e do amor.67
loi de l’avenir, loi toute de
solidarité, d ’induigence et Nessa empresa conjunta, as mulheres ti­
d ’amour". J E A N N E -M A - nham seus próprios interesses em jogo, com o
RIE, 1849. Jeanne Marie mães e operárias, mas também representavam
era um dos pseudónimos
o interesse social, a saúde, a prosperidade de
d e J e a n n e D e r o in . V.
E v e ly n e SULLEROT,
todos e o bem-estar moral da França. “N ã o é
1966. apenas em nome das mulheres” que estas de­
vem progredir na esfera política, insistia Jeanne
Deroin, “ mas pelo interesse de toda a socieda­
68L ' opinión des femmes, d e” .68 Só a habilidade das mulheres poderla
n.4, m aio l8 4 9.
restituir a ordem a “ essa casa grande e mal-
administrada chamada Estado” , advertia ela,
transformando metaforicamente o domínio pú­
blico no lugar consensualmente privativo das
69 C itad o em R A N V IE R , mulheres.69 Embora ela oferecesse a influência
1907-1908, p. 334-335. das mulheres com o um corretivo'para a dos
homens, não era difícil entrever na escolha de
suas palavras um argumento em favor da substi­
tuição dos homens pelas mulheres. A mulher re­
presentava a paz, o amor e o princípio de asso­
ciação (metas almejadas pelos revolucionários),
ao passo que o homem, além de “cruel e egoís­
ta” , era propenso à mútua destruição (caracte­
rísticas que os revolucionários condenavam): Na

135
política, a opinião das mulheres, tenham elas
inclinação republicana ou aristocrática, pode ser
70 "En poiitique, 1’opinión resumida numa idéia de amor e de paz [...] To­
des femmes quelles que das são unânimes em desejar que uma política
soien t leurs ten d an ces de paz e de trabalho acabe por substituir a polí­
r é p u b lic a in e s ou
tica cruel e egoísta que incita os homens a se
a ris to c ra tiq u e s , peut
encore se résumer en une destruírem reciprocamente [...] Em todas as te­
p e n s é e d ’a m o u r et de orias [sociais], aquilo de que as mulheres m e­
paix [...] Elles s’accordent lhor entendem é do princípio da associação.70
toutes à vouloir que ía
• A fim de defender a causa da complemen­
poiitique de la paix et du
travail vienne remplacer
taridade, Jeanne Deroin foi além da simples rei­
cette poiitique égoiste et vindicação de paridade, porque teve que criar
cruelle qui excite les hom- (contra a opinião dominante) a possibilidade de
mes à s’entre-détruire [...] uma mulher independente e provida de tudo, que
Dans toutes les théories
(para ser equivalente ao homem) fosse auto-su­
so c ia le s , ce que Ies
fe m m e s ont le m ie u x ficiente. Essa mulher, então, assumiria sua posi­
compris c’est le principe ção no quadro dos interesses gerais e do bem
de Fassociation". "Q u ’est- social, deslocando o homem; este, se insistisse
ce que l ’o p in io n des
em excluí-la, demonstraria estar agindo por inte­
fe m m es? " D E R O IN ,
1848a.
resses egoístas e revelaria sua disposição de im­
por leis baseadas não na justiça, mas na arcaica
71V opinión des femmes, “lei do mais forte” .71 N a verdade, a mulher de
n. 4, m aio 1849.
Jeanne Deroin muito mais substituía o homem
do que o completava, pois, ao igualar-se a ele na
busca do bem social, simultaneamente tentava
estabelecer a própria independência. Desta for­
ma, arruinava o ideal que constituía a base da
complementaridade, ou seja, desfazia a união
interdependente do casal heterossexual.
A o considerar a política com o domínio das
mulheres, pondo em pé de igualdade o lar e o
Estado, Jeanne Deroin distinguia sua noção de
complementaridade da de muitos de seus con­
temporâneos, os quais expressavam as diferen­
ças entre os sexos em termos da localização do
hom em e da mulher “em esferas separadas” . A
justificativa oferecida para a Lei de 28 de julho
de 1848, que vedava à mulher qualquer parti­
cipação em clubes, seja com o observadora seja
com o membro, era bem clara: “Som ente a vida
privada é que serve para a mulher; ela não é

136
JEAN N E DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

72 "La vie privée convient fe íta p a ra a v id a p ú b lic a '5.72 M a is t a r d e


seule à la femme, elle ríest
Proudhon faria eco a essas idéias nas páginas
pas faite pour la vie pu­
blique". Athanase C oque-
do Le Peuple: “A mulher tem uma natureza
rel, c itad o p o r D e ro in completamente diferente da do homem. O ho­
"Lettre d ’une femm e à M. m em é aprendiz, produtor e magistrado; a mu­
Coquerel". lher é discípula, dona de casa e mãe. A mu­
lher, portanto, d eve ter condições sociais total­
73 Citado em TÍXERANT, mente diferentes” .73.
1908, p. 86. Por “ condições sociais” Proudhon enten­
dia “esferas de ação separadas” . Em dezembro
de 1848, ele desancou um “banquete fraterno”
prom ovido por mulheres socialistas para exigir
reformas e apoiar candidatos políticos. As que
prom oviam tais eventos e, pior ainda, as que
neles usavam da palavra violavam a função que
lhes foi destinada na divisão da humanidade:

O papel das mulheres não está na uida ex­


terior, ña vida ativa e na agitação, mas na vida
íntima, nos sentimentos e na tranquilidade do
lar. O socialismo não veio apenas para restaurar
o trabalho, mas também para reabilitar o lar, san­
tuário da família, símbolo da união matrimonial
[...] convidamos nossas irmãs a pensar sobre o
que dissemos e a considerar profundamente a
verdade de que apureza e a moralidade ganham
mais nas celebrações patriarcais de família do que
74L e Peuple, 27 de dezem- nas ruidosas manifestações da política™.
bro de 1848, p. 2.

O ataque de Proudhon serviu para lem ­


brar quais eram os deveres da mulher e para
enfatizar que nada tinham a ver com direitos
políticos, afirmando, de sobra, que, se já era
ultrajante sua participação em banquetes elei­
torais, sua candidatura a cargos eletivos, en­
tão, era repugnante. Assestando sua ironia
contra Jeanne Deroin, candidata em cam pa­
nha a um cargo legislativo nas eleições de abril-
maio de 1849, num artigo, dizia que uma mu­
lher no papel de legislador fazia tanto sentido
quanto um hom em no papel de ama-de-leite.
N a resposta, que Jeanne Deroin teve de man-

137
dar publicar em outro jornal, urna voz que
Proudhon não o permitiu no seu, ela não apon»
lava para o absurdo da argumentação do arti­
culista baseada na natureza, pedia apenas que
P Proudhon especificasse quais os órgãos do
corpo eram necessários para as funções de le­
gislador: “Se a natureza é tão clara a esse res­
peito com o o senhor parece crer, então eu me
75 Citado por TIXERANT, rendo a sua argumentação” .75
1908, p, 86. Essa troca de farpas entre ambos sinaliza
o impacto radical que tiveram as idéias e as ati­
tudes de Jeanne Deroin, as quais invertiam as
explicações cotidianas para as diferenças entre
os sexos, e as tornavam menos um efeito da bi­
ologia do que da organização social. Jeanne
Deroin não punha em dúvida que característi­
cas e obrigações diferentes devessem ser atri­
buídas a homens e mulheres; o que ela procu­
rava, de fato, era dar intensidade ainda maior
às diferenças, a fim de consolidar a identidade
política das mulheres e reforçar sua teoria em
favor de direitos iguais para homens e mulhe­
res. A d m itia , m esm o, serem as m ulheres,
constitutivamente, mais delicadas, mais fracas,
de natureza mais afetiva e mais inclinada à com ­
paixão do que os homens, porém tais diferen­
ças nada tinham a ver com sua capacidade de
76D E R O IN , "Profession de exercer direitos.76 Jeanne Deroin foi ainda mais
foi", p. 12.
longe: argumentando que, historicamente, o erro
das mulheres foi pretender negar a diferença;
tentaram se ver livres do jugo que as oprimia
77 D E R O IN , 1853, p. 11. “tornando-se semelhantes ao hom em.77Agindo
assim, as mulheres se tornaram meras imitações,
e versões grotescamente inferiores, pois não es­
tavam representando a si próprias de forma ati­
va. A alternativa de Jeanne Deroin foi dar ênfa­
se às diferenças, e de m odo especial à maior
delas, a responsabilidade única da maternida­
de, a fim de conquistar reconhecimento inde­
pendente e distinto.

138
JhANNh DílKOíMNA KhVGLUÇAO DE 1848

Se, porém, a diferença sexual em uma


questão de caráter e de Interesse, para Jeanne
Deroin, eia não podería ter qualquer relação
com limites espaciais ou esferas de atividade.
N a verdade, a diferença não correspondia
àquilo que homens e mulheres fizessem ou
àquilo que de cada um fosse exigido no seu dia™
a-dia. As mulheres trabalhavam; os homens
envolviam-se com funções domésticas; o dever
e a moralidade (há muito associados à mulher
e ao mundo privado) eram, agora, pré-requisi­
tos da cidadania; o Estado ao mesmo tempo
administrava o social e dele dependia para a
manutenção da ordem. Em esse o sentido da
referência de Jeanne Deroin ao Estado com o
“uma casa grande e mal administrada” ; tal sen­
tido também estava no cerne do redimensiona­
mento que ela propõe para o matrimônio. N ão
deveria ser visto com o um arranjo privado, mas
com o um instituto social “com triplo aspecto:
material, intelectual e moral, por causa do tra-
78D E R O IN , 1849. balho” .78 A vid a em si era tão com plexa e
multifacetada que não podia depender de uma
noção exclusivamente individualista dos direi­
tos: “A vida é tríplice em sua unidade: a vida
individual, a vida familiar, e a vida social for­
mam uma vida com pleta” , escreveu Jeanne
79 D E R O IN , 1849c. Deroin79. A insistência da Constituição quanto
a direitos e deveres acabou borrando os limites
entre o individual e o social, entre o político e o
familiar, entre o público e o privado, em suma.
A continuada exclusão das mulheres não fazia
sentido na recentemente proposta ordem das
coisas; Jeanne Deroin julgou seu dever apontar
o problema e corrigi-lo.
A reação agressiva a seus esforços, não
apenas da parte de Fierre J. Proudhon, mas tam­
bém da parte de políticos e caricaturistas, reve­
la até que ponto a integridade dos direitos dos
homens eram prisioneiros da negação de direi­
tos idênticos às mulheres, até que ponto os con-

139
temporáneos de Jeanne Deroin dependiam da
tese das “ esferas separadas de ação” para esta­
belecer os limites físicos entre o masculino e o
feminino. Transpor as fronteiras entre o lar e o
fórum levava ao hermafroditismo, acusavam
eles, levava à perda das características que dis­
80 GAUTIER, 1849. tinguem o hom em da mulher.80 O perigo da
androginia era a possibilidade de um corpo se­
xualmente indecifrável, portanto monstruoso.
Partilhar espaço político implicava partilhar di­
reitos políticos; a criação de uma igualdade
niveladora era pintada — e- entendida -— com o
uma aberração natural. “As mulheres não são
feitas para serem estadistas” , opinava Ernest
Legouvé, cujas conferências, em abril de 1848,
atraíam ao Collège de France grandes grupos
de entusiasmadas feministas. Embora apoiasse
o movimento por meio da educação e de mu­
danças no Código Civil, Legouvé não aprovava
que as mulheres tivessem direito ao voto, pois
tal direito transgredia os limites espaciais que
estabeleciam a diferença sexual. A emancipa­
ção da mulher podia ocorrer apenas dentro da
81 L E G O U V É , 1 8 49 . família; mulheres na política era um absurdo.81
Jeanne Deroin foi tão en­ Os críticos e os caricaturistas das campa­
tusiasmada com os ap e­
nhas feministas ilustravam com freqüência as
los de Legouvé para que
m elhorasse a co n d ição
idéias de Legouvé. Daumier e outros jogavam
das mulheres, que p ro ­ com o tema da inversão de papéis, desenhando
meteu reimprimir partes mulheres como políticas feias, de aspecto cômi­
do seu livro. V. L' opinion co, jocosamente representadas como imitadoras
des fem m es, n. 2 (10 ,
do homem; ou, então, mulheres com ares mas­
maio 1849). O comentá­
rio de Legouvé é citado culinos a rejeitar, a conselho de Mme. Deroin,
em T E R R A G E , 1910, p. sua condição materna; havia caricaturas de cri­
334. V. tam bém O FF E N , anças abandonadas nos braços de pais deses­
1986, p. 452-484.
perados, enquanto suas mães brincavam de p o ­
lítica; havia as que, de um lado, retratavam mu­
lheres com monóculos, charutos e barba, e, de
outro, homens que vestiam saia. Uma caricatu­
ra, em série, representava um homem diante da
porteira do Clube de Mulheres, suplicando-lhe
para entrar, a fim de que pudesse levar suas cal-

140
JEA N N E DEROIN NA REVO LUÇÃO D E 1848

ças à mulher, para que nelas pregasse um botão.


Outra mostrava um homem que se afastava da
porta do Clube de Mulheres, pois uma mulher a
quem cabia a segurança avançava em sua dire­
ção brandindo uma enorme tesoura, apontada
82O preâm bulo d a Consti­ ameaçadoramente para seus genitais.
tu iç ã o fo i a t r ib u íd o a A polícia de Paris se juntara à escaramu­
Jeanne D e r o in ; D0-
ça, recrutando prostitutas para uma sociedade
L L É A N S , 1948, p. 245-
6. V também T E R R A G E , feminista falsa, chamada Vésuviennes. Chegou
1910; e THIBERT, 1926, até a ser publicada uma suposta constituição
p. 320. do grupo, uma paródia tão bem feita que gera­
ções de historiadores a trataram com o um d o ­
83 "T ravailler in sen sib le - cumento feminista genuíno.82 Numa das seções,
m ent à faire effacer les essa constituição ameaçava os homens que se
différences qui existent
recusassem a fazer sua parte nas tarefas dom és­
entre le costume masculin
et le costum e fém inin; ticas a prestar serviços numa guarda cívica ex­
sans pour cela dépasser clusivamente feminina, além de descrever com o
les limites de la pudeur et travestis todos os que cruzassem o limiar dos
du ridicule, ni s’éloigner
limites de gênero. As mulheres eram convida­
des formes gracieuses et
de bo n goüt. C e sera du
das a trabalhar aos poucos, “quase impercepti-
reste, u n c h a n g e m e n t velmente, para apagar as diferenças entre rou­
dont les hommes, à voir pas masculinas e roupas femininas, sem porém
le u r ten ue d e c r o q u e - ultrapassar os limites da modéstia e do senso
mort, ri auront guère sujet
do ridículo, e sem se afastar do bom gosto e da
de se plaindre". D E R O IN ,
1848b, p. 26. graça femininos. O resultado será uma mudan­
ça da qual os homens não poderão se queixar,
dados seus trajes de agente funerário” .83 Jeanne
Deroin citava a atuação das Vésuviennes com o
84 Citado por S T A N T O N , um exemplo oficial das muitas formas de m o­
1884, p. 26. lestar as feministas: “faziam paródia de tudo o
que dizíamos e fazíamos, a fim de ridicularizar
e menosprezar nossos encontros e nossas ativi­
85 Q u a n d o um encontro
dades” .84Fazia-se, também, vista grossa aos ata­
d o C lu b e das M ulheres
foi interrompido por es­
ques violentos a encontros de feministas. Reu­
pectadores hostis, a pre­ niões do Clube das Mulheres foram repetidamen­
sidente respondeu lem ­ te interrompidas a partir de abril de 1848, suas
bran do a experiência do organizadoras eram vaiadas e perseguidas p e­
"prim eiro r e v o lu c io n á ­
las ruas; algumas, detidas e ameaçadas de es­
rio": "Ele tam bém, o Cris­
to [...] foi desprezado e pancamento. Num a dessas reuniões, o salão de
v ilip e n d ia d o n a cruz!" encontros teve que ser totalmente evacuado, ta­
B O W M A N , 1973, p. 105. manhas eram as ameaças da multidão hostil.85

141
Apelava-se para a violência, para a hosti­
lidade e para o ridículo a fim de impedir a trans­
gressão do espaço social, e, portanto, dos limi­
tes impostos pelo gênero. Essa transgressão era,
de diversas formas, representada com o uma
castração — com o uma ameaça ao sinal que
caracteriza a diferença masculina e que é o sím­
bolo de poder do homem, agora am eaçado de
86Além de caricaturas, ha­ ser nivelado à mulher em seus direitos políticos.86
via também relatos, escri­ A implicação de que a castração era conseqü-
tos hum orísticos sob re
ência da fusão das esferas de ação do hom em e
Jeanne D eroin. V., por
exem plo, U Illustration,
da mulher dá a entender que, no discurso das
21, abril 1849, p. 123- esferas separadas, a integridade de corpos se­
125. xualmente distintos não repousava na espiritu­
alidade, nem na biologia, nem em atividades
especializadas, mas nos espaços segregados
dentro dos quais tais atividades se realizavam.
N ão era a natureza, mas a organização social
que produzia a diferença sexual. Era esse o pon­
to ao mesmo tempo reconhecido e negado pe­
los que defendiam a separação das esferas de
ação; essa era a contradição que ficava revela­
da pela recusa feminista em admitir esferas se­
paradas.
Durante a Revolução de 1848, as feminis­
tas concretizaram uma convicção: entraram na
esfera pública porque estavam convictas de que
era um lugar que também lhes pertencia. Desta
forma, desafiaram diretamente a justificativa se­
gundo a qual sua exclusão se devia à biologia
ou à natureza. Seu protesto visava a expor, por
meio de ações que tornavam auto-evidente sua
capacidade com o cidadãs, a “mentira” de um
87Sobre o sufrágio univer­ regime que lhes negava o direito de voto.87 S e­
sal e os direitos individu­ melhante lei não se enraizava no terreno firme
ais, v. TIXERANT, 1908,
de uma realidade preexistente asseguravam as
p. 31-32, e 1986, p. 288-
289. feministas. N a verdade, a própria lei a consti­
tuía, isto é, engendrava aquela realidade — a
da segregação das mulheres — , a qual era de­
vida à lei que regia o assunto. Aqui as feminis­
tas viram o seguinte paradoxo: em conformida-

142
JEANNE

de com os princípios universais defendidos por


urna leí que pretendiam reformar foram consi­
deradas ilegais, ou seja, consideraram-nas fo-
ras-da-lei, em norne dos mesmos princípios uni­
versais em que se baseava a própria lei que ten­
tavam reformar.
A o infringir a lei, as feministas apelavam
para o senso do dever, o qual, diziam elas, se
fundamentava numa convicção interior que an­
tecedia qualquer lei, ou seja, na profunda con­
vicção do que era moralmente correto. “Em toda
parte as mulheres têm consciência de seus di­
reitos” , proclamava um artigo do jornal fem i­
nista fundado por Jeanne Deroin e Eugénle
88La voix des femmes, 20, Niboyet, La voix des fem m es.88 O artigo narra
mar. 1848.
o que se dera com uma das amigas de Jeanne
Deroin, Pauline Roland, que se dirigiu à prefei­
tura de Boussac, em março de 1848, a fim de
votar a favor de Fierre Leroux, candidato de-
mocrático-socialista a prefeito. Quando as au­
toridades presentes, ofendidas, recusaram-se a
lhe entregar a cédula, Pãuline exigiu que ofici­
almente a processassem. Sua atitude tinha no­
táveis elementos de paródia. Quando a polícia
chegou e a prendeu, ela se identificou com o
“Marie-Antoinette Roland” , invocando o reco­
nhecido poder e o desacreditado status da anti­
ga rainha. Pauline tinha escolhido a comuna de
Boussac, porque P Leroux era um defensor
aberto dos direitos políticos da mulher. A proi­
bição de votar no seu candidato realçou ainda
mais a idéia de contradição e injustiça que que­
ria transmitir, efeito também alcançado por sua
insistência em ser formalmente acusada de co­
meter um ato ilegal.
Jeanne Deroin levou ainda mais longe o
protesto de Pauline Roland ao candidatar-se
para uma cadeira legislativa na eleição de maio
de 1849. Visto que a Constituição (de novem ­
bro de 1848) não proibira explícitamente tal ini­
ciativa, Jeanne Deroin sentiu que era seu “de-

143
JO A N W. S C O T T

ver” pôr em execução o princípio da igualdade,


pelo qual a Revolução tinha lutado, mas até
então ninguém havia respeitado. A o invocar seu
“dever” , Jeanne Deroin procurou acalmar os te­
mores de que os direitos das mulheres levariam
ao relaxamento de suas obrigações maternais e
familiares, Bem como, evidentemente, apelou
também para a “Declaração de Direitos e D eve­
res” , que servia de preâmbulo para a Constitui­
ção da Segunda República: “Inspirada e guiada
por sentimentos de Direito e Justiça, julgamos
de nosso dever reivindicar o direito de participar
89"Inspirées et dirigées par dos trabalhos da Assembléia Legislativa” .89
le sentiment du droit et de
A descrição de Jeanne D eroin sobre a
la justice, n o u s a v o n s
campanha eleitoral que realizou com prova uma
accom pli un devoir em
ré c la m a n t le d ro it d e tentativa enérgica de garantir os próprios di­
prendre part aux travaux reitos, assim com o a cidadania negada. Sua
de FAssemblée Legislati- atitude se estribava numa convicção íntima tão
ve". U opinión des fe m -
poderosa que, por si só, era suficiente para
mes, n. 4, m aio 1849.
provar que o eu é um mais evidentes sinôni­
mos de cidadania.
A estratégia de Jeanne Deroin em campa­
nha foi obter acesso à tribuna, aquele fórum pú­
blico vedado à mulher por lei. Presente nos co­
mícios prom ovidos por socialistas-democratas,
em Paris, pedia a palavra para explicar seus ob ­
jetivos. Num deles, recebeu permissão para su­
bir à tribuna, mas com a condição de que lá só
fizesse perguntas aos delegados, e não pedisse
apoio direto à própria candidatura. Quando
subiu à tribuna, “irrompeu um violento tumulto
[...] perto da entrada da sala, o qual logo tomou
conta de toda a assembléia” . Os organizadores
solicitaram que deixasse a tribuna, a fim de que
pudesse ser restaurada a calma. Ela, porém ,
permaneceu firme : “Fortalecida pelo mais pro­
fundo sentimento de grandeza de nossa missão,
da santidade de nosso apostolado, e m ovida
pela importância e pela oportunidade de nossa
tarefa — tão eminente e tão radicalmente revo­
lucionária e social — cumprimos nosso dever,

144
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

90 "F o rtifié es par le recusando-nos a abandonar a tribuna” .90 Sen­


sentlm ent intim e de la
timento íntimo, consciencia, inspiração, conhe­
grandeur de notre missi-
on, de la sainteté de notre
cimento interior — tais foram os motivos invo­
ap o sto la t et p r o fo n d é - cados para prom over movimentos com o intui­
ment convaincues de l’im- to de fazer a lei reconhecer que, de fato, as mu­
portance et de Topportu- lheres já detinham direitos. Convicção íntima,
nité de notre oeuvre, si
certeza subjetiva, reflexo de um eu já investido
éminemment et si radiea-
lement révolutionnaire et de direitos políticos, era razão bastante para
s o c ia le , nous avons Jeanne Deroin ser levada a colocar “principios
accompli notre devoir em em prática” , a “ tomar parte ativa” nas lutas
re fu s a n t d e q uitter la pela justiça, a levantar sua “voz juntamente com
tribune1'. L ' opinión des
os defensores dos direitos do povo, os amigos
fem m es, n. 4, m aio 1849.
da humanidade” 91. Além disso, a certeza des­
ses direitos era fonte de consolo, quando algum
movimento fracassava: “Vós fechastes as estra­
91 Jeanne D e r o in ,
das do mundo para mim, vós me declarastes
"Profession de foi".
subalterna e de menor idade; há, porém, um
santuário no meu interior contra o qual fica
impotente a força de vosso braço e o despotis­
m o de vossas decisões. Ali, nenhum sinal de in­
ferioridade macula minha existência, nenhum
grilhão tolhe minha vontade e a impede de atin­
92 "V o u s m e fe rm ez les gir a sabedoria” .92
voies du m onde, vous me Naquele comício, Jeanne Deroin demons­
d é c la re z s u b a lte rn e et
trou seus princípios, não se arredando na tribu­
mineure; mais il me reste
dans m a conscience um
na. Quando a multidão finalmente se acalmou,
sanctuaire oü s’arrete la ela falou. C om o uma mãe ofendida que faz seus
fo r c e de v o tre b ra s filhos se envergonhar, ela repreendeu a multi­
com m e le despotisme de dão por suas injustas pretensões. Além disso,
votre esprit. L á nul signe
expressou seu espanto diante do comportamento
d ’infériorité ne flétrit mon
existen ce, nul asservisse- desses socialistas, “homens que se denominam
m en t n’ e n c h a in e ma homens do futuro” , que procuram abolir todos
volonté et ne l’em péche os privilégios — exceto o do hom em dominar
d e se to u rn e r v ers la
sua mulher — , homens que teimam em desco­
sagesse". Almanach des
fem m es, 1853, p.95. Este
nhecer que a desigualdade entre homens e mu­
artigo, p ro v av elm en te , lheres gera todas as demais desigualdades e cuja
não foi escrito por Jeanne felicidade somente pode ser atingida quando exer­
Deroin, em bora assinado cerem a justiça em favor de suas mães, irmãs, e
p o r "Marie". Entretanto,
esposas. Com efeito, ela acabou por lhes corrigir
expressa eloqüentem en-
te os pontos de vista que as idéias erradas de sua visão de futuro e prover
ela defendia. todos os que queriam fazer história do material

145
necessário para escreverem o texto certo.
Jeanne Deroin procurava demonstrar que
estava à altura da tarefa de falar em público e
que uma mulher, na verdade, tinha qualificações
para articular suas idéias. Quando experimenta­
va “uma forte em oção” , que temia pudesse en­
fraquecer sua retórica, ela a atribuía à importân­
cia da ocasião (foi a primeira a trazer à tona a
grande questão dos direitos civis e políticos da
mulher perante uma platéia reunida em comício
eleitoral) e a sua “inexperiência com o discurso
parlamentar” . Tal inexperiência se originava de
situações com o as que enfrentara no começo,
quando os fortes, invocando antigos privilégios,
tentavam silenciar as vozes dos fracos. Corrigida
essa injustiça, todas as pessoas poderíam dis­
cursar perante uma assembléia pública com igual
desenvoltura. N ão cabia aos homens o m ono­
pólio do desempenho dos deveres de ordem pú­
blica e do exercício dos direitos políticos.
O fato de ser mulher, de estar fora dos li­
mites impostos a ela, e de sair-se bem num fórum
político considerado impróprio para ela, tudo
isto redundava em força política para ações de
Jeanne Deroin. Superou sua “timidez natural” ,
explicava ela, porque agia em nome de uma
causa maior, porque “se dedicava” ao cumpri­
m ento de seu dever: “ Q u ando M. Eugène
93 " Q u a n d M. Eugène
Pelletan me disse, certo dia, que eu agia com o
Pelletan m e dit un jour
que j ’agissais comme si je
se estivesse dando tiros de pistola na rua para
tirais um coup de pistolet atrair a atenção, ele tinha razão; eu não queria,
dans la rue pour attirer porém, chamar a atenção para mim mesma,
1’attention, il avait raison, mas para a causa que defendia” .93 Quer para
mais ce n’était pas pour
si, quer para a causa, é inegável que as aten­
attirer 1’attention sur moi,
mais sur la cause à laque- ções se voltaram para uma mulher num espaço
lle je me dévouais". Tre­ público. O simples fato de pedir a palavra num
cho da carta de Jeanne com ício eleitoral de socialistas-dem ocratas
Deroin a Léon Richer ci­
atraía a atenção sobre ela, com o se “tivesse
tado por s e r r iè r e (1981, p.
26). (Fonds Bouglé, Bibii-
dado tiros na rua” , isto é, com o se, ao agir com o
othèque Historique de la hom em — apropriando-se de um falo — , per­
Ville de Paris.) turbasse a ordem pública e infringisse a lei.

146
JEANME DEROIN NA PEVCODÇÃQ DE 1848

hmbora a desordem tivesse, na verdade,


sido criada pelos que manifestaram reação con­
tra suas opiniões, Jeanne Deroin, ao íim e ao
cabo, agia mesmo com o infratora com a finali­
dade de pôr a nu as contradições da leí e, em
última análise, de mudá-la. Jndependentemen-
ie do fato de Jeanne Deroin julgar a lei injusta,
e, portanto, violável, os socialistas-demócratas
— inclusive os que se haviam mostrado simpá­
ticos a sua causa, uns quinze delegados que v o ­
taram a favor da inclusão do seu nome na lista
de candidatos — , no fím das contas, acabaram
p o r c o n c o rd a r que sua ca n d id a tu ra era
inconstitucional A essa altura, as feministas, em
geral, e Jeanne Deroin em particular, chegaram
ao limite de suas improvisações, ao limite de
sua capacidade de descrever e interpretar os
conceitos (a mulher, o feminino, o individuo, os
direitos e os deveres) que faziam com que a di­
ferença fosse incompatível com a igualdade.
Sem reconhecimento legal, não havia como uma
mulher ser qualificada como cidadão, não ha­
via com o atingir o status de indivíduo. N o con­
texto político estabelecido pela Constituição, o
indivíduo abstrato se incorporava no homem, e
somente aqueles que se identificavam com esse
paradigma podiam votar ou servir com o repre­
sentantes eleitos do povo.
Mesmo quando Jeanne Deroin assumia
responsabilidade pelas próprias ações, os dita­
mes da lei, dentro do contexto político de seu
tempo, tornavam insustentável sua posição po­
lítica. Ela tinha sido, com o vimos antes, uma
das fundadoras, no verão de 1849, da Associa­
ção das Associações, o grupo que coordenava
diversas tentativas por parte de trabalhadores
socialistas de atingirem a autonomia de produ­
ção e consumo. Segundo seus planos, o dinhei­
ro seria substituído por sistemas de crédito, os
trabalhadores teriam a posse dos meios de pro­
dução, e a eles, homens e mulheres, seriam ga-

147
JoÁN Vv. 3CU i i

ranlidos “o direito e os meios para que eles, bem


com o suas famílias e filhos, vivessem do produ­
94 C itado p o r R A N V IE R , to de seu trabalho” .94 Era maio de 1850, a A s­
1907-1908, p. 341-343. sociação das Associações já tinha atraído m em ­
V. t a m b é m D E R O I N ,
bros de aproximadamente quatrocentos outros
1849a e 1851a; e D E S ­
R O C H E S , 1981, p. 59-
grupos. Foi, então, que seus líderes foram pre­
73. sos na casa de Jeanne Deroin, por ocasião de
um encontro que as autoridaders julgaram in­
fringir algumas regras vigentes. (Nessa época,
limites rigorosos eram impostos a encontros
políticos e ao número de pessoas que podiam
erigir sociedades para qualquer fim) Embora um
certo grau de paridade entre os gêneros parece
ter sido praticado na Associação, antes das pri­
sões, e embora se aceitasse o fato de que o tra­
balho assalariado afetava ambos os sexos, du­
rante a preparação para seu julgamento Deroin
foi persuadida a negar que tivesse exercido fun­
ção de liderança na Associação.

Solicitaram-me insistentemente, em nome


da Associação, que eu não admitisse ter sido a
autora do projeto [...] O preconceito que ainda
predominava nas associações ficou exacerbado
pelo papel de destaque que uma mulher dedicada
à causa dos direitos da mulher prestou nesse tra­
balho. Não querendo, na presença de nossos ad­
versários, iniciar um debate entre socialistas [...]
contentei-me em responder a uma pergunta que
mefoi dirigida: “Não, eu nada tinha a dizer em
95 C it a d o p o r M O S E S , relação a associações. ”95
1984, p. 148.

A disposição tática que Jeanne Deroin d e­


monstrou ao aceitar uma posição subordinada
não impediu que fosse condenada a seis meses
de prisão, por causa do papel de anfitriã do en­
contro ilegal. A sem elhança de O lym pe de
Gouges, Jeanne Deroin era sujeita a leis que
lhe negavam o direito de cidadania. A o contestá-
las, apelou para uma verdade superior: “D evo
protestar contra a lei pela qual sou julgada. E
uma lei feita por homens; eu não a reconhe-

148
JEANNE DEROIN NA REVOLUÇÃO DE 1848

96MOSES, 1984. çd\96A iei feíta por homens, ao mesmo tempo


■ era que lhe dava oportunidade de protestar, im-
punha-lhe limites, constituindo, neste sentido,- o
. cerne da subversão do feminismo de Jeanne
Deroin e .garantindo a esse feminismo seu lugar
na historia.

Até mesmo da prisão Jeanne Deroin pro-


, curou defender os direitos da mulher. Quando
um deputado fez considerações sobre os limites
impostos ao direito de recurso e propôs à as­
sembléia que ele fosse negado às mulheres,
Jeanne Deroin fez uma petição no sentido de
que fosse protegido tal direito em favor dos ex­
cluídos da representação direta. (H avia, na
Constituição de 1791, um precedente que sal­
vaguardava o direito a recurso dos que não ti­
nham representação política, e dentre estes, é
óbvio, as mulheres. Por causa disto, o direito
em questão acabou sendo preservado.) Jeanne
Deroin apoiou os inúteis esforços envidados por
Pierre Leroux no sentido de que o direito ao
voto fosse paulatinamente estendido à mulher,
com eçando pelas eleições municipais, e conti­
nuou escrevendo sobre a necessidade da inclu­
são das mulheres na política. Ficou, porém, bem
claro, especialmente após o golpe de estado de
N apoleão III, em dezem bro de 1851, que as
mulheres perderam o acesso a qualquer fórum
político que pudessem ter tido. C om seu jornal
empastelado e muitos dos seus correligionári­
os já no exílio, Jeanne Deroin partiu para a
Inglaterra.
Ela continuou, porém, a trabalhar pela cau­
sa feminista, publicando um jornal bilingüe, o
Almanach des femmes, de 1851 a 1853. Além
disso, d irig ia um a es c o la para filh o s de
expatriados, praticava o vegetarianismo e, ao
longo dos anos, apegou-se mais e mais ao Es­
piritismo. Jamais abandonou sua afiliação ao
Socialismo; era ativista do grupo de William

149
id O fiib , j_1S p f O í S f Í L l d n id OíaCa>_ tunsu/c H a s
97 O texto do discurso de exéquias de Jeanne Deroin , em 1894.97
Morris não foi localizado . Embora tivesse permanecido urna convic­
por nenhum pesquisa­ ta feminista até o fim da vida, Jeanne Deroin
dor.
acabou acreditando que o m om ento para seu
tipo de clividade já tinha passado. Já em 1849
eí? m inscrevia na história do feminismo que
c c n -.t h com O iym pe de G ouges. Em seu
“C '' os 4s 1' emancipation de la fem m e” , dizia
aos leitores que Oiym pe de Gouges, “com o to ­
d o : as criadores de uma nova idéia [...] abrira
a erada sem chegar ao destino” e, ainda, que
a revolução de fevereiro permitira que todas
98 "C o m m e tous Ies aquelas mulheres, com o sua estimada amiga
initiateurs d ’u n e id ée
Pauline Roland, denunciassem o sufrágio uni­
nouvelle[...] [elle] a frayé
la route sans atteindre le versal com o uma mentira que excluía a metade
but: elle est m on tee à da humanidade. Acrescentava, depois, que “em
l’échafaud sans obten ir le 1849, uma mulher mais uma vez recorreu às
dro it d e m o n te r à la
autoridades constituídas para reivindicar para
tribune [....] En 1849, une
fe m m e vien t e n c o re
as mulheres o direito de participar dos traba­
frapper à la porte de la lhos da Assembléia Legislativa. N ã o foi ao v e ­
cité, réclam er p o u r les lho mundo que ela se dirigiu [...] E chegado o
fe m m e s le d ro it d e m om ento de a mulher participar do movimento
participer aux travaux de
social, do trabalho de regeneração que está co­
l’A ssem blée Législative.
C e n’est p as a u v ie u x meçando a tomar form a” .98Jeanne Deroin con­
m onde q u ’elle s’addresse seguiu tomar de assalto a tribuna — e escapar
[...] Le moment est venu com vida — , fato que não equivaleu, no entan­
pour la femme de prendre
to, à conquista, para as mulheres, do direito de
part au m ouvem ent soci­
al, à l’oeuvre de régéné-
acesso ao fórum público. C om o ela própria
ration qui se prep are". mencionou, foi a primeira mulher a tentar con­
C it a d o p o r Z É V A È S , quistar cargos públicos. Em seu jornal, muitas
1948, p. 129. colunas foram dedicadas à crônica da longa luta
das mulheres pela emancipação política, a con­
quistar. M esm o assim ela fe z história. N a
verdade,ela acabou se inscrevendo num proces­
so que evidenciaria a capacidade da mulher de
99 S o b re a historia deste fazer história — capacidade negada por mui­
período, v. ORR, 1976 e tos historiadores (homens) de sua época, que
1990; B A N N , 1984;
viam o papel da mulher com o atem poral e
BARTHES, 1970, p. 145-
55; C R O S B Y , 1991; e transcendente, e que só consideravam os ho­
MOREAU, 1982. mens capazes de provocar transformações.99

150
JEANNE DEROIN NÂ-_EEV03JJÇÃ:Q d e igdg

- 0 mom ento revolucionário acabou pas­


sando sem atingir seus objetivos, o que, no en­
tanto, não diminuiu a fé de Jeanne Deroin na
democracia, nem seu compromisso com a cau­
sa feminista. Em 1886, oito anos antes de sua
morte, Jeanne Deroin recebeu em Londres uma
carta de Hubertine Âuclert, que fazia campa­
nha pelo voto feminino e que se propunha a
documentar a tradição histórica feminista de
sua época. Â o responder à carta, agradeceu os
votos de longa vida expressos por H. Auclert:
“E isso que eu também desejo e espero conse­
gui-lo, não porque eu esteja ansiosa por ver o
completo triunfo de nossa causa durante minha
vida, mas porque quero trabalhar um pouco
mais nesse sentido antes de passar para a ou­
100U m a cópia datilografa­ tra vida” .100Declinou, porém, o pedido de aju­
d a desta carta está no
da de Auclert, alegando que seu enfoque não
dossier "Jeanne Deroin",
na Bibliothèque M argue-
era mais apropriado para a época. Com o fe­
rite Durand, Paris. minismo e a República mais institucionalizados
do que em sua época, Jeanne Deroin achava
que era preciso algo mais: “Agora não há mais
necessidade de pioneiros impulsivos e temerá­
rios; agora é necessário, em seu lugar, que se
agregue o talento à dedicação e que se adorne
a verdade com a beleza do estilo. E por isso
que eu não posso oferecer-te minha inútil co­
101 "Maintenant il ne faut laboração” .101
plus de pionniers impul- Essa séria e modesta resposta foi ao mes­
sifs et téméraires, il faut mo tempo um pedido de reconhecimento para
jo in d r e le talen t au
seu lugar pioneiro na história do feminismo fran­
d é v o u e m e n t , o rn e r la
vérité par la beauté du cês, e o encerramento de um capítulo dessa his­
style, c’est pourquoi je ne tória. A convicção íntima que lhe sustentara a
p u is v o u s o ffrir m on fé diante dos obstáculos, que consolara e moti­
inutile concours". Citado
vara a geração de Jeanne Deroin, não era mais
p o r A D L E R , 1 9 79 , p.
211. suficiente; agora se exigia dedicação e devota­
mente a longo prazo. (N o contexto do comentá­
rio de Jeanne Deroin, devotamente conotava
compromisso a longo prazo, em contraste com
o comportamento arriscado e impulsivo dos que
intencionam resultados imediatos. E claro que

151
JCAN w, SCOTT

inexoravelm ente determinada pela natureza.


Ademais, conforme a crença geral era ainda im­
permeável à ação da história, esta, portanto, não
a podia afetar. Para Jeanne Deroin, entrar na
política era entrar na história. Contudo, ainda
que ela não o reconhecesse, entrar na política
era também expor a mulher — concebida em
termos absolutos com o m ãe am orosa — às
mesmas influências transformadoras do tempo
que afetavam os homens. Ern 1848, no desen­
rolar do processo de reivindicação dos direitos
da mulher em si, com o pessoa, a mulher com o
categoria acabou sendo redefinida. Paradoxal
e inevitavelmente, as reivindicações de Jeanne
Deroin acabaram por minar as próprias mulhe­
res em nom e das quais, com tanta paixão, sem­
pre se manifestara.

154
Os Direitos do “Social”; Hubertine Auclert
e a Política da Terceira República

s cartas que Hubertine Auclert e Jeanne


Deroin trocaram em 1886 foram uma
A tentativa de estabelecer uma ponte não
so geográfica mas também temporal. Elas ilus­
tram concretamente a maneira pela qual se for­
jaram os elos da grande corrente feminista e se
constituíram também numa fonte de inspiração
para os leitores do jornal sufragista de Huberti­
ne Auclert, La Citoyenne. Embora a linguagem
romântica e espiritualizada de Jeanne Deroin
deva ter parecido estranha aos leitores, mais
acostumados ao estilo mais direto e racional de
Hubertine Auclert, ficava bem claro que as duas
mulheres compartilhavam uma missão: denun­
ciar a “ m en tira ” (nas palavras d e Jeanne
Deroin) de uma república que se recusava a con­
ceder direitos políticos às mulheres. Mas, ape­
sar do compromisso com os ideais emancipa-
cionistas, profundamente compartilhado, havia
tam bém entre as duas mulheres importantes
diferenças, as quais, com o Jeanne Deroin deli­
cadamente indicou, ligavam-se intimamente à
História. Hubertine Auclert entrou na política
com o advento da Terceira República; em 1873,
com 25 anos, deixou o departamento de Allier
e migrou para Paris, a fim de participar do cres­
cente m ovim ento feminista — então já legaliza­
do. A política na Terceira República era radi-

155
JOAN W. SCO'TT

cálmente diferente da de 1848. Ern consequên­


cia, as estratégias assim com o a própria essên­
cia d o fem inism o praticado por H ubertine
Auclert diferiam em multo do feminismo do tem­
po de Jeanne Deroin.
A militância feminista de Hubertine Auclert
se estendeu por mais de quatro décadas da Ter­
ceira República: de 1870 até sua morte, em
1914. Mesmo quando outras feministas insisti­
am numa militância mais moderada, ela per­
sistia em lutar pelos direitos das mulheres ao
voto, tanto em discursos quanto em artigos de
jornais, utilizando recursos jurídicos, fazendo
campanhas eleitorais. Seus argumentos consti­
tuem um registro progressivo das mudanças
políticas e das teorias que as defenderam. A l­
guns dos discursos de Hubertine Auclert são
fascinantes pela mescla de reivindicações que
se caracterizam por sua incongruência e por sua
h eterogeneidade; bastava-lhe descobrir uma
brecha num a argu m entação para interpor
imediatamente um apelo em favor do direito das
mulheres ao voto. Sua vida nos permite retraçar
as evoluções e as ambigüidades das correntes
políticas da Terceira República, bem com o algu­
mas de suas contradições e de seus interesses.

Se o conflito entre direitos políticos formais


e direitos sociais concretos era um dilema para
a Segunda República, a Terceira viu-se às vo l­
tas com a “questão social” em novos termos:
qual deveria ser o papel do estado na resolução
de problemas ligados à pobreza e à desigualda­
de econômica? C om o poderia esse papel ser le­
gitimado? Em relação à primeira pergunta, hou­
ve mais concordância entre republicanos e so­
cialistas do que de início se esperava. Para os
socialistas, “uma república social” — um esta­
do engajado, cujos esforços se concentrassem
na concretização da igualdade social e econô­
mica — representava o obejetivo primordial, e

156
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA-REPÚBLICA

nele não deixavam de incluir suas preocupa­


ções com familia, ou seja, almejavam uma re­
pública em que houvesse maior cuidado para
com as mulheres e os filhos dos trabalhadores,
bem com o para com os doentes e os desempre­
1S obre a retórica socialis­ gados.1 Os republicanos, de certo m odo para
ta relativa à fam ilia, v. responder aos socialistas, cuja presença era
SCOTT, 1988, p. 230-
mais e mais expressiva nas eleições, nos sindi­
245.
catos e nas greves, sustentavam a idéia de que
o Estado deveria assumir a “questão social” ,
responsabilizando-se pelas vítimas do Capita­
lismo que, por acidentes, fraqueza, ou vulnera­
bilidade, não conseguissem cuidar de si mes­
mos. Embora constituísse um ponto de vista
cujo paternalismo franco divergisse muito da
visão igualitária dos socialistas, era inegável que
também concebida em termos de proteção à
fam lia. De fato, as duas posições tinham em
comum a hipótese de que o Estado deveria cui­
dar de seus membros e, a exemplo do que faz a
fam lia: abrigaria, por dever ou por afeição, os
que não tinham para quem mais apelar.
Quanto à segunda pergunta havia muito
mais discordância. Os socialistas ainda usavam
a retórica da soberania ao tentar representar os
interesses das classes trabalhadoras em todos
os níveis do governo. Para muitos, era ainda re­
volu cionário o apelo que o socialista Jules
Guesde fazia às urnas, e não às armas; a con­
quista de prefeituras e de cadeiras no Parlamento
pelos socialistas na década de 1890 foi vista
com o um alerta não só no sentido de que o go­
verno ficasse mais sensível às questões sociais,
mas também no sentido de que “o social” de­
vesse ter influência direta nas decisões do go­
2Sobre a historia do soci­ verno.2Os republicanos eram mais ambivalentes
a lism o , v. W I L L A R D , e divididos quando se tratava da questão da
1965. soberania popular. Muitos dos arquitetos da
nova república (entre eles grande número de m o­
narquistas e de conservadores) eram de opinião
que se evitassem a qualquer custo apelos à so-

157
■JuAl 1Vv. SCO iT

berania popular, visto que a . experiencia da


. Comuna de Paris (uma rebelião contra a lide­
rança conservadora da nova república em 1870-
1871) tinha deixado bem evidentes seus peri­
3 "A república foi fundada gos.3 Se a república representava o p ovo e este
por um a assembléia m o­ julgasse que as ações do Estado não estivessem
narquista com um presi­
correspondendo devidamente a seus desejos e
dente e um governo de
direita no poder, após a
necessidades, o p o vo teria o direito de dissolver
m oção de um advogado o governo; na lógica, de fato, o governo já teria
católico que afirmou não dissolvido a si próprio por ter fracassado em sua
estar pedindo um a repú­ missão de representar o povo. A fim de evitar
blica - e foi aprovada por
esse raciocínio, bem com o a anarquia e o esta­
m a io r ia de um v o to ".
T H O M P S O N , 1958, p. do de beligerância que dele decorreríam, os p o ­
90/ líticos julgaram de bom alvedrio não só abste-
rem-se de discutir a questão dos direitos na le­
gislação que fundou a Terceira República, mas
também limitarem o voto àqueles que, por dete­
rem propriedades, tinham verdadeiro interesse
no futuro da nação. Outros republicanos mais
radicais ou mais liberais, julgaram impossível
uma república sem sufrágio (masculino) univer­
sal, dado o precedente estabelecido em 1848, e
4 R O S A N V A L L O N , 1992 seu ponto de vista acabou por prevalecer.4
a, p. 307-338. V. também
A existência do sufrágio universal, porém,
RIVERO, 1991, p. 128.
não era uma concessão à idéia de um governo
que presumidamente refletisse ou incorporasse
a vontade do povo. A o invés de restringir o su­
frágio, os legisladores e as lideranças conforma-
doras da opinião pública procuraram solapar a
doutrina da soberania popular, alegando que o
Estado não representava o povo, e que, portan­
to, sua legitimidade não se baseava na vontade
popular; na verdade, prosseguiam, o Estado ti­
nha a função gerencial de arbitrar e equilibrar
interesses diferentes e conflitantes. A o mesmo
tempo, os legisladores se empenhavam para es­
tabelecer o consenso necessário à estabilidade
política incentivando que os cidadãos se auto-
representassem com o republicanos e que não
poderíam pensar em destruir uma forma de g o ­
verno que havia estabelecido sua identidade. De

158
HUBER1INh AUCLhRT t A FUL! i ICA DA i ERCEIRA REPÚBLICA

acordo com leis aprovadas- em 1881 , 1882 e


1886 e que levaram o nome do Ministro da Edu­
cação, Jules Ferry, a educação era gratuita, obri­
gatória e laica. As escolas deveríam inculcar
“ aquela religião da Pátria [...] aquele culto e
aquele amor a o mesmo tempo ardente e racio­
nal que queremos que penetre no coração e na
5 Citado por BRUB AK E R , mente das crianças” .5 Estas deveriam se tornar
1992, p. 107. V também não apenas patriotas, mas pensadoras racio­
W E B E R , 1976; e PROST,
nais, científicas, lógicas — sujeitos republica­
1968.
nos, exemplos do ideal republicano.6
Visto que as relações entre o estado e o
6 Este tipo de educação é
um e x e m p lo do que p o vo foram reconsideradas, a questão social fi­
Althusser ch am a de " a cou separada dos direitos políticos. O dicioná­
interpelação" do sujeito. rio de Emile Littré (1877) oferecia com o cate­
A LT H U SS E R , 1974.
górica uma definição do “social” que freqüen-
temente seria alvo de contestação nas décadas
seguintes: “O SOCIAL. Diz-se, em oposição a
político, das condições que, excluindo formas
de governo, se relacionam com o desenvolvi­
mento intelectual, moral, e material das massas
7"II se dit, par opposition à populares. A questão social” .7 Essa definição
la politique, des conditi- excluía formas de governo dentre as condições
ons q u i, la issan t em de progresso das classes populares e a política
dehors la forme des gou-
com o forma de atingir esse progresso. O exercí­
vernements se rapportent
au développem ent intel- cio do voto, em outras palavras, não era consi­
lectuel, moral et matériei derado com o um meio de reforma social, nem
des m asses populaires. com o a expressão da soberania popular, mas
La q u e stio n s o c ia le ".
com o um processo de consulta, um gesto a fa­
LIT T R É , 1877, p. 1957.
vor das noções democráticas de direitos. Nessa
concepção, “o social” é um objeto de atenção
da parte do Estado, o qual, em nome da ordem,
do progresso, dos interesses particulares e do
bem-estar geral, podería até levar em conside­
ração “o desenvolvimento intelectual, moral e
8 P ara u m a discussão do material” das massas populares.8
"social", v. RILEY, 1988, O social não tinha representação política
p. 44-6. Sobre o social na
direta, nem autonomia. O Estado, porém, p o ­
F ra n ça v. D O N Z E L O T ,
1984. dería dele se ocupar, com o foi freqüentemente
o caso, na Terceira República: regulamentou-se
a profissão das amas de leite, a fim de diminuir

159
JOAN W. SCOTT

a incidência da mortalidade infantil, em 1874,


providenciou-se tutela para crianças “ m oral­
mente abandonadas” , em 1889;_ e promulga­
ram-se leis que protegiam as mulheres traba­
lhadoras, em 1892. O Estado também supervi­
sionou as condições de higiene das casas de
famílias pobres, para impedir que doenças con­
9 SUSSM AN, 1982; tagiosas se alastrassem.9 A partir do final dos
SCH AFER , 1992; A ISE N - anos 1890, promulgaram-se leis que exigiam dos
B E R G , 1993; STEW ART, empregadores indenização às vítimas de aciden­
1989; e K ANIPE, 1976.
tes de trabalho, o que acabou sendo o primeiro
passo para a criação da instituição da previ­
10E W A L D , 1986; e D O N - dência social.10
ZELOT,1984. Para alguns A noção do social, embora associada com
dos textos que explicam
mais freqüência à idéia das “classes populares” ,
o s o lid a ris m o , v.
D ’EICH T A L, 1903. Para
trazia embutida a reconsideração mais ampla
um a interpretação con­ do significado de indivíduo. O que tornava a
vincente do surgimento intervenção do Estado plausível era o fato de
d a Previdência Social na que tinha em vista regulamentar as ações inde­
França, v. EW ALD , 1986a.
pendentes dos indivíduos, definidos com o m em ­
bros de grupos. Se por um lado a privacidade e
a singularidade do indivíduo se tornavam uma
preocupação cada vez mais evidente (na popu­
laridade dos retratos fotográficos, na paradoxal
atenção pública às intimidades da vida privada
e na bizarra fascinação por uma nova ciência,
n C O R B IN , 1990; v. espe­ a da grafologia — análise das características
cialmente "The Secret of do indivíduo pela caligrafia),11 por outro lado,
the Individual", p. 457- no discurso político, o indivíduo passava a ser
548. V. tam b é m P A N -
definido não mais em oposição ao social, mas
C H ASI, 1995.
com o um ser integrado num conjunto de ou ­
12 B R U N O T , 1903, p. 25- tros seres, inserido numa sociedade.12
84, especialmente p. 58- O sociólogo Emile Durkheim, no final do
9. V. ta m b é m ew ald , século, representava uma linha de pensamento
1986a; schafer, 1992; ai-
que rejeitava o “egoísmo moral” do indivíduo
senberg , 1 993; e co l e ,
1991. rousseauniano (com seus atores autônomos e
voluntários, que eram a antítese da sociedade)
e punha em seu lugar um indivíduo social por
definição, visto que os laços que o prendiam
aos demais eram anteriores a seu nascimento e
não podiam ser cortados. De acordo com essa

160
HUBEETINE AÜCLEET E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

linha d e pensamento, não havia contrato (nun­


ca houve) feito por um indivíduo que não pu­
desse ser rompido. Â sociedade era na verd-- uie
a condição humana. “ O eu individual [le ¡ : oi]
é de fato um nós [un nous]; isso permite que
entendamos por que o nós social [le nouz sod-
13D U R K H E IM , 1973, p. al] pode ser considerado um eu [un rr-v]” .13
13. Segundo Emile Durkheim, o eu não é ur enti­
dade, mas uma percepção, um “am álgam a” de
impressões díspares que se integram nurn todo
“mais ou menos definido” . Qualquer senso de
totalidade — seja de uma sociedade, seja de
um eu — é uma realização (instável) construída
sobre as correlações funcionais de partes
díspares. (Na sociedade, a divisão social do tra­
balho -— uma formulação que Durkheim ofere­
cia para substituir a luta de classes dos socialis­
tas — consistia nesta mesma inter-relação com ­
plementar de partes díspares.) A fim de que um
eu seja garantido, um outro era indispensável e
continuamente internalizado: “a imagem daquele
" que nos completa se torna inseparável da nossa
[...] e se torna parte tão integrada e permanente
de nossa consciência que dela não mais nos p o ­
demos separar” , a não ser na presença do ob-
14DURKHEIM, 1964, p. jeto que a imagem representa.14 A idéia era re-
62. conhecer a relação com um outro como parte
constitutiva do eu: o todo — individual ou soci­
al — consistia de partes diferenciadas.
O teórico do Direito León Duguit, que já
sugerira não fosse a propriedade considerada
com o um direito individual, dava ênfase ao as­
pecto grupai da identidade do indivíduo:

O hom em é um a n im a l s o c ia l, como há
muito se disse; o in d i v íd u o , então, é muito mais
homem por ser socializado, isto é, por fazer par­
te de um grupo social. Sou tentado a dizer que
somente então ele é um super-homem. O super­
homem não é, de modo a lg u m , como Nietzsche
o concebeu, aquele que consegue impor sua oni-

161
•/'Oa N W. ¿C U i i

potência individual; mas, antes, é agüele que está


fortemenie ligado agrupos sociais, pois é quan­
do sua vida como um homem social se torna
15 C it a d o p o r E W A L D , mais intensa.15
1985, p. 52.
Outro teórico do Direito, Rene Worms, es­
creveu: “A sociedade não é composta direta-
mente de individuos, mas de grupos dos quais
16 C it a d o p o r E W A L D , os indivíduos são membros ” . 16
1985, p. 53.
Toda essa teorização sobre o novo tipo de
indivíduo, em bora lucubrada por pensadores
políticos inimigos dos teóricos socialistas, am ­
bos os lados compartilhavam a ênfase quanto
à importancia das identidades coletivas e sobre
a natureza relacionai dessas identidades. Os so­
cialistas, cada vez mais visíveis e bem organi­
zados ñas décadas de 1880 e 1890, entendiam
essas identidades coletivas com o classes em
luta: os que produziam tinham de trabalhar ar­
duamente e enfrentar seus exploradores, os ca­
17PERROT, 1974, p. 607- pitalistas que lhes sugavam o sangue . 17 Os re­
644. publicanos, ao invés disso, apresentavam a idéia
de divisões sociais de trabalho funcionais, hie­
rarquias de diferenças complementares, que
Durkheim denominava “solidariedade orgâni­
ca” ; a luta foi substituída pela atração mútua
numa analogia entre grupos sociais e indivídu­
os que se deve ao sociólogo: “Se uma entre duas
pessoas tem o que a outra não tem mas deseja,
aí está o ponto de partida de uma atração posi­
18D U R K H E IM (1933) cita tiva ” . 18 Da mesma forma, diferenças ocupacio-
o p sicólogo inglés A le - nais eram a base para as relações sociais.
xander B a in , The
Os socialistas imaginavam um mundo em
Emot ions and the Will,
1859, p. 55.
que as diferenças de classes com o divisoras da
sociedade acabariam, caso triunfasse a vonta­
de soberana do povo, enquanto os republica­
nos tendiam a ver um mundo em que essas
mesmas diferenças consistiriam num aspecto
permanente da organização da sociedade. In-
dependentemente do valor que atribuíssem às
diferenças, porém, eram um fator que os dis-

162
HUBERTINh AUCLbRT h A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

cursos políticos da época ..deviam, necessaria­


mente levar em conta. O reconhecimento da
primazia das diferenças sociais fundamentava
a cidadania sobre novas bases; o indivíduo abs­
trato — autônomo, independente, portador de
direitos — não era mais protótipo do homem,
do cidadão, pois fora substituído por membros
integrantes desse ou daquele grupo, cujas dife­
renças faziam com que se interessassem pela
participação política. O direito à participação
era dado pelo voto, que implicava igualdade
formal entre diferentes interesses. Dessa forma,
os socialistas procuravam provar que era do
interesse dos trabalhadores usar o voto com o
uma arma nas lutas de classes, a fim de conse­
guir a igualdade almejada, ao passo em que os
republicanos viam no voto um sinal da igualda­
de humana que precede diferenças de funções
e de poderes na divisão social do trabalho. N es­
sa perspectiva, Léon Bourgeois descrevia o so-
lidarismo com o um sistema de “ interdependên­
cia livre e racional, baseado no respeito igual
pelos direitos de todos” . Charles Brunot, por sua
vez, argumentava que não eram os indivíduos,
mas os direitos é que eram unidades iguais e
19 L é o n B o u r g e o is , L a intercambiáveis . 19
solidarité, 1895, citado Uma vez que a diferença e a identidade
por LUKES, 1972, p. 352.
sociais passaram a ser tidas com o característi­
B R U N O T , 1903, p. 70: "O
direito individual de cada
cas definidoras dos indivíduos, e que o voto era
um é igual ao direito in­ então considerado com o a expressão dos dife­
d ividual dos outros; na rentes interesses que as diferenças sociais pro­
verdade, todos estes di­ duziam, a conseqüência que parecería eviden­
reitos s ã o u n id a d es d a
te era a de que as mulheres também teriam per­
m esm a espécie, com pa­
ráveis entre si, intercam- m issão d e votar. U sando a lin gu agem da
biáveis, e iguais entre si". interdependência e da diversidade funcionais,
V. tam bém Z E L D IN , Hubertine Auclert chegou à seguinte conclusão
1973, p. 640-82; e HAY-
em 1881: “N ão é possível que todas as pessoas
W A R D , 1961.
desempenhem o mesmo papel; ao contrário, a
diversidade é indispensável para que a socie­
dade funcione harmoniosamente [...] O dever
imposto a todos é diferente para cada um. Os

163
JOAN W. SCOTT

:J-:£Ítcs inerentes ao Indivíduo são iguais para


20 "Tout le m onde ne peut codos” .20 Sua reivindicação a favor do sufrágio
pas remplir le mêm e rôle: feminino, porém, foi sistematicamente negada.
la d iv ersité est au
Os termos dessa persistente negativa, quer
contraire indispensable à
la bonne harmonie de la
provenientes de socialistas, quer de republica­
société [,..] L e d e v o ir nos, costumeiramente invocavam o velho argu­
imposé à tous est différent mento de divisão funcional de trabalho que in­
p o u r ch acun . L e droit sistia na política, no espaço público para os
inhérent à 1’individu est
homens e na lida doméstica, na vida privada
égal pour tou s".
AUCLERT, 1881. para as mulheres. Ainda que a “questão da
mulher” fosse fonte de muitos debates e dispu­
tas entre os socialistas, embora alguns grupos
dentro do movimento dos trabalhadores endos­
sassem reivindicações a favor do mesmo paga­
mento para o mesmo trabalho e a favor do voto
da mulher, havia muita relutância (e às vezes
aberta hostilidade) diante da discussão dos di­
reitos da mulher. N a melhor das hipóteses, em
seus encontros, os trabalhadores socialistas v o ­
tavam a favor do voto feminino, mas em segui­
da deixavam a questão esquecida. A justificati­
va, quando dada, era, às vezes, teórica: a eman­
cipação das mulheres deve esperar a revolução;
outras vezes, prática: já que as mulheres não
tinham direito ao voto, e já que os socialistas
queriam conquistar força política, seria uma per­
da de tem po preocupar-se em defender os inte­
resses das mulheres. H ouve ocasiões em que
os socialistas sustentavam claramente que o
único lugar das mulheres era o lar: “ a mulher
no lar [lafemme au foyer]” era o slogan de uma
parcela significativa do movimento das classes
21PERROT, 1977, p. 105- trabalhadoras . 21
121, e 1984. V. tam bém A divisão funcional do trabalho era tam­
SOWERWINE, 1978.
bém a justificativa republicana para negar à mu­
lher o direito ao voto. Tal negativa era uma com ­
provada exceção (segundo Hubertine Auclert,
uma contradição) à promessa de que as divi­
sões sociais do trabalho não afetariam a parti­
cipação política. A divisão de trabalho entre
marido e mulher, ao contrário da divisão de tra-

164
HUBERTiNE AU L vRI e a po lítica da. t er c e ir a repú blica

baiho entre homens, ere vista, rnais urna vez,


com o uma divisão entre o público e o privado,
entre o intelectual e o afetivo, entre o político e
o social. Tais diferenças. na verdade, resulta -
vam, segundo a concepção cientiíicista da ép o­
ca, da evolução, eram, portanto, vistas com o
marcas irreversíveis da civilização.
Emile Durkheim nos legou um curioso e
amplamente aprovado exemplo típico dessa p o ­
sição. N o passado remoto, observava ele, as di­
ferenças entre homem e mulher mal apareciam.
Os indivíduos de ambos os sexos tinham pone
físico semelhante e levavam o mesmo tipo de
existencia. As mulheres ainda não tinham ad­
quirido suas características atuais de fraqueza
e feminilidade; à semelhança de certas fêmeas
do reino animal, as mulheres se orgulhavam de
sua agressividade guerreira. As relações sexu­
ais eram casuais ( “mecânicas” ); não havia algo
com o fidelidade conjugal. Quando ocorreu a
divisão do trabalho, tudo isto mudou. As mu­
lheres “se retiraram das guerras e dos negócios
públicos e consagraram sua vida inteira à fam í­
lia” . Em conseqüência, as duas grandes funções
da vida psíquica [...] [foram] dissociadas” , ou
seja, as mulheres se especializaram nas “fun­
ções afetivas” , e os homens se especializaram
22 D U R K H E IM , 1933, p . nas “funções intelectuais” .22 Seguiram-se daí
60. mudanças “morfológicas” , não apenas em al­
tura e peso, mas especialmente no tamanho do
cérebro. Escorado em estudos do médico e so­
ciólogo Gustave Le Bon, Durkheim alega que,

C o m o p r o g r e s s o da c iv iliz a ç ã o , o c é r e b r o
d o s d o is s e x o s fic a ca d a v ez m a is d ife re n c ia d o .
C o n f o r m e [ L e B o n ], essa ta b e la p r o g r e s s iv a é
d e v id a a o c o n s id e rá v e l d e s e n v o lv im e n to d o c râ ­
n io m a s c u lin o e a o e sta d o e s ta cio n á rio , e m e s m o
re g re s s iv o , d o c r â n io fe m in in o . “D e s s a f o r m a ”,
d iz e le , “ e m b o r a a m é d ia d o c r â n io d o h o m e m
p a ris ie n s e seja e q u iv a le n te à d o s m a io re s c râ n io s

165
SCOTT

conhecidos, a média do crânio'das parisienses


fleo entre a dos menores crânio observados,
mesmo abaixo do crânio dos chineses, e mal e
m a l acima do crânio das mulheres da N o v a
23 D U R K H E IM , 1933, p. C a le d ó n ia E2
3
60. S o b r e L e B on , v.
BARROW S, 1981;
Essa prova de origem m orfológica teve o
HARRIS, 1989; e N YE,
1975. poderoso efeito de dar foros de natureza a todo
o debate. Estabelecia-se, doravante, uma base,
de Historia Natural para o processo da divisão
do trabalho e urna base de Historia da socieda­
de humana para a evolução da diferença se­
xual. Ambas eram vistas com o sinais de pro­
gresso civilizatório; no mundo europeu contem­
porâneo, eram características que distinguiam
a civilização da barbárie, e adverte : “H á mes­
mo hoje em dia um número bem grande de p o ­
vos selvagens entre os quais a mulher se imis­
24 D U R K H E IM , 1933, p. cui na vida política ” . 24
58. O relato evolucionário procurava não ape­
nas achar uma solução para a divisão social do
trabalho, com a exclusão das mulheres da polí­
tica, mas também proteger a masculinidade dos
cidadãos, já que a soberania do povo ficou aba­
lada com o base de legitimidade da República.
N a verdade, a história da exclusão política das
mulheres pode ser interpretada, grosso modo,
com o uma parábola sobre a história da sobera­
nia popular. Nessa nova perspectiva, a emer­
gência do social, principal objeto de preocupa­
ção do Estado, reduziu a importância do indiví­
duo com o base da legitimidade da República.
Em conseqüência, o voto passou então a ser
um instrumento rudimentar que exprimia a for­
ça pública dos homens (maridos e pais) com a
fin a lid a d e de c o rro b o ra r a a u to rid a d e
paternalista do Estado. Por uma estranha inver­
são (dada a recusa histórica da individualida­
de das mulheres), a diminuição da importância
do indivíduo com o agente público implicou a
circunscrição mais acentuada da mulher den-

166
HUBbRTÍNE AUCLhRT E A P O L ÍT IC A DA I ERChIRA R E P Ú B LIC A

tro da esfera privada, a da intimidade e dos sen­


timentos. Restava ao Indivíduo (masculino),
naquela altura cada vez mais diluído no social
(assim com o à mulher aferrada em definitivo à
família), abandonar-se aos cuidados do Estado.
Nesse cenário, o Estado fundamentava sua
legitimidade não só nos votos dos cidadãos, mas
também numa analogia com o- pai de família.
Motivado por sua benevolente preocupação com
o bem-estar físico e moral de seus entes queri­
dos, o bom e burguês pai sempre age em favor
de sua família. Assim sendo, a analogia torna­
va as intervenções do Estado mais sutis e m e­
nos contundentes; no mínimo, reduzia a possi­
bilidade de interpretarem suas ações disciplina-
doras com o violações à intimidade ou à integri­
dade da família. A identificação do Estado com
o pai e a restrição à cidadania dos homens ser­
viram também para reforçar, sob um novo ân­
gulo, a aliança da masculinidade com a políti­
ca. A o abandonarem a idéia do contrato social
original e a dos indivíduos soberanos e autôno­
mos estruturadores do Estado, os teóricos se
afastaram da noção de que a masculinidade d o s x
cidadãos era a base comum e excludente para
legitimar esse mesmo Estado. Se a masculini­
dade foi, em 1789, na prática, o laço principal
entre os que falavam em nome da nação, e tam­
bém o foi, em 1848, entre os que viam no tra­
balho o direito à propriedade, o que ocorreu, em
1880 e nos anos seguintes, foi bastante diverso:
o Estado é que passa a conferir a cidadania àque­
les que o constituem. Se, por um lado, esse con­
ceito garantia a lealdade dos cidadãos da Repú­
blica, por outro, inadvertidamente, permitia que
as linhas de diferenciação sexual se tornassem
menos nítidas, e, portanto, menos seguras do que
muitos imaginavam.
A evolução ensinava que a diferença se­
xual tinha sua base na natureza, o que consti­
tuía uma tentativa de estabelecer a masculini-

167
d a ib lom e um zato independente de ação do
Estado, 2 anterior a eJa. A e vola c a r, o overo, não
servia para elucidar as contradições be uma te­
oria democrática criada por urna república cuja
legitimidade não mais se apoiava na soberania
d o povo. E aqui que entra o feminismo, denun­
c ia n d o e in c o rp o ra n d o tais con tra d ições.
Hubertine Auclert é um exem plo característico.
Hubertine Auclert se recusava a aceitar
que a teoría da evolução íosse justificativa para
a exclusão política das mulheres, pois isso con­
trariava as prorne: .as republicanas de igualda­
de para todos, independentemente de diferen­
ças sociais e funcionais. Excluídas as mulhe­
res, ficaria provado que a desigualdade política
era um efeito da divisão social do trabalho, o
que iria acarretar profundas implicações para
a questão dos direitos, em geral, e não só para
os direitos das mulheres: “Antes de ser invocada
pelos adversários do voto das mulheres, a idéia
de subordinar o exercício de um direito a um
papel social já tinha sido usada com o objeção
25 "liidée de subordonner ao sufrágio universal entre os homens ” .25
l’exercice du droit à une Em 1879, Hubertine Auclert chamou a
question de role, avant
atenção dos participantes do Congresso N acio­
d ’étre in voqu ée par les
adversaires du vote des nal de Trabalhadores em Marselha para o fato
fe m m e s , a servi de que os homens que toleravam a exclusão da
d ’objection au suffrage mulher estavam sempre sujeitos a perder seus
universel pour les hom -
direitos e, conseqüentemente, a sofrer eles pró­
mes". A U C LE R T , 1881.
prios o peso da exclusão: “ Uma república que
relega as mulheres a uma posição inferior não
tem moral para reconhecer a igualdade entre
26 "U n e R e p u b liq u e qui os homens” .26
maintiendra les fem mes Hubertine Auclert procurou estabelecer
dans une co n d itio n
uma aliança com os socialistas que apoiavam
d ’infériorité, ne po u rra
p a s fa ire les h o m m e s
a doutrina da soberania popular, segundo a qual
é g a u x ". AUCLERT, a única form a de governo realmente represen­
1879a. tativa era a “república social” . Ela tentou pro­
var que a negação do direito de voto às mulhe­
res estava ligada à negação do caráter político
da questão social, argumentando que, visto as

168
HUBERTINE AUCLhK í h A POLÍ í ICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

if iU Í i i S i S S S’9 í0ITi ÍCleenf iTÍCciclaS s i m b ó l i c a m e n t e


com o social (porque -'Uneráveis, dependentes,
_carentes de proteção), seus direitos, em última
análise, decorreríam da soberania popular —-
do direito do social de se auto-representar.

Se as mulheres (e, portanto, o social) fos­


sem chamadas a se auto-representar, deveriam
satisfazer os padrões de comportamento e cren­
ças que os republicanos esperavam de seus ci­
dadãos. Por Isso, a cidadã feminista de
Hubertine Auclert era uma cidadã republicana,
uma cidadã (potencial) a um só tempo “leal e
27A U C LE R T , 1883. lógica” .27 Formar tal cidadã e simultaneamente
manter sua credibilidade Implicava enfrentar um
bom número de obstáculos.
Por meio de suas ações, Hubertine Auclert
procurava demonstrar sua capacidade (e, por
extensão, a de todas as mulheres) de responder
ao apelo da República, de aceitar as condições
impostas a uma adesão completa. Ela com e­
çou sua campanha a favor do sufrágio femini­
no, já em 1876, três anos após sua chegada a
Paris, cidade para a qual se dirigira, sustentan­
do-se com o que lhe coubera de uma pequena
28 O grupo de Richer foi
herança paterna, a fim de se juntar às mulheres
m ais tard e c h a m a d o que lutavam por seus direitos. (Segundo ela,
A s s o c ia t io n pour L inspirava-se nas ações de alguns militantes da
Avenir des Femmes; de­ Comuna de Paris, de Louise Michel e André Léo,
pois, Société pour l’A m é-
bem como de Maria Desraimes e Léon Richer,
lioration du Sort de la
Fem m es e, finalm ente, que fundaram a Associação pelos Direitos da
Société pour l’Am éliora- Mulher, em 1870.)28 As batalhas de Hubertine
tion du Sort de la Femme eram travadas nas páginas de seu jornal, La
et la Revendication de ses
Citoyenne, e nas centenas de abaixo-assinados
Droits. V. H A U S E , 1987,
p. 31.
que ela fazia circular e mandava para os depu­
tados. Defendia suas idéias também em algu­
mas ações diretas, que ela assumia sozinha, ou
29Para particularidades bi­
sob auspícios de organizações feministas.29 Ela
o g r á fic a s , v. H A U S E , tentou organizar uma revolta de mulheres con­
1987; TAI'EB, 1982, p. 7- tra os impostos e um boicote ao recenseamen-
53. to. N a primavera de 1880, aparecia com regu-

169
JOAN W. SCOTT

landade nas prefeituras e nos vários arrabaldes


de Paris, tentando convencer as mulheres a não
fazer o “voto de obediencia” , ao se casarem com
seus homens. “Não, Senhora!” , gritou ela para
uma noiva, que provavelmente ficou estupefa­
ta, “Tu não deves obediência e submissão a teu
marido [...] Tu és igual a ele em tudo [...] Procu­
ra viver a seu lado, e não a sua sombra [...]
Levanta a cabeça [...] Procura ser sua amiga,
sua companheira, e não sua escrava ou sua em ­
30H A U S E , 1987, p. 78. pregada ” . 30 Mesmo depois de ser descrita com o
histérica, ser comparada aos padres que, qu e­
rendo injetar religião nos casamentos civis, per­
turbavam as cerimônias, ser rejeitada por ou­
tras feministas e pela sociedade de livres-pen-
sadores cujo nome ela invocava para justificar
suas atitudes, além de ser ameaçada de prisão
pela polícia, Hubertine Auclert continuou a es­
crever seus artigos, dentre os quais apelava às
mulheres para que, ao se casarem, não assu­
missem os nomes dos maridos e insistissem no
regime de separação de bens em seus contratos
matrimoniais: “Para uma mulher, o fundamen­
to da liberdade no casamento está na manuten­
ção de seu próprio nom e e na posse de um sa­
31 "P o u r la fe m m e , la lário ou de uma renda ” . 31 Custou-lhe superar a
possession de son nom
própria relutância em se casar com o amante,
et la possession de son
Antonin Levrier, quando este ficou gravemente
revenu ou de son salaire:
voilá le fondem ent de la doente, na iminência de morrer. De 1888 até
liberté dans le mariage". 1892 ela viveu como sua mulher, na Argélia, onde
AUCLERT, 1 8 8 9 a , p. Antonin Levrier exercia a magistratura, voltan­
123.
do a Paris e ao feminismo depois que ele mor­
reu. Em 1904, Hubertine reuniu-se a um grupo
de feministas, por ocasião do centenário da pro­
mulgação do Código Civil, a fim de queimar em
público uma cópia desse documento, que “ es­
cravizava” as mulheres da França. Em 1908 ela
derrubou uma urna eleitoral no Quarto Distrito.
Levada ao Tribunal, defendeu-se dizendo que
não tinha cometido um crime algum contra a
República, mas exercido seus direitos políticos

170
HUBERTINE AUCLERT E APOLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

32,'Aiors, désespérée ds ne em nome da liberdade republicana. Declarou'


p on t v o ir ab ou tir mes
aos juízes que se baseara em precedentes his­
efforts légaux, j ’ai songé
que les hom m es avaient
tóricos de revoluções anteriores, quando “os ho­
fait des barricades pour mens levantaram barricadas para preservar seu
p o u v o ir vo te r1'. Citado direito ao voto” 32 ■
por TAJEE, 1982, p. 43. A militância de Hubertine Auclert abarca­
( N ã o p e rs u a d id o s por
va um variado leque de atividades, a maioria
su a defesa, os juízes a
m ultaram e ordenaram
das quais de acordo com os padrões republica­
que, na dependencia de nos de cidadania; assim ela procurava provar
cinco anos de b oa con­ que as mulheres também podiam ser cidadãs. O
duta, sua sentença de pri­
cabeçalho das primeiras edições de L a C itoyen-
são fosse suspensa.)
ne apresentava graficamente uma ilustração de
suas intenções. Centrado, abaixo do título do jor­
nal, em letras pouca coisa menores, estampava
seu nome, com a intenção de autoproclamar-se
uma cidadã exemplar. Essa representação esta­
va de acordo com sua convicção de que era ne­
cessária a ação direta para que os efeitos reque­
ridos fossem alcançados. “E preciso agir” , es­
33 C it a d o p o r H A U S E , creve ela, como se pudéssemos tudo .33
1987, p. 79.
Hubertine Auclert apresentava suas ações
com o provas de que o gênero nada tinha a ver
34"Jamais on n’a essayé de com o exercício dos direitos. Observava que “to­
p ren d re un n o m bre dos os tipos de experiências científicas são fei­
déterminé d ’enfants des
tas, nunca [...] [se tentara], porém, isolar um
deux se x e s, de les
s o u m ettre à la m ê m e
grupo de crianças de ambos os sexos e submetê-
m é th o d e d ’é d u c a tio n , lo ao mesmo tipo de educação e às mesmas
a u x m êm es conditions condições de existência” .34 A todas as análises
d ’existence”. A U C L E R T ,
sobre o assunto, portanto, faltavam conteúdo,
1889a, p. 124. O texto foi
pois não tinham fundamentação científica. “A
tam bém publicado sepa­
radamente, na form a de objeção segundo a qual as mulheres nada sa­
p a n fle t o : AUCLERT, bem sobre a vida pública não é válida, porque
1879. só por m eio da prática é que alguém pode se
iniciar na vida pública ” .35
35 "Cobjection q u ’on fait Basear a cidadania em práticas políticas
aux fe m m e s de leur padronizadas acarretava riscos para as mulhe­
ignorance de la vie publi­ res nos tempos da Terceira República. Podiam
q u e est n u lle p u is q u e
provar serem iguais aos homens pela com pe­
c’est seulement par la pra­
tique q u ’on peut s’initier
tência com o jornalistas e oradoras, pelas rei­
à la vie publique". A U ­ vindicações corajosas, pela demonstração de
CLERT, 1881b, p. 112. capacidade com o pensadoras e estrategistas e

171
pela habilidad* de alcançar o meio-termo equi­
librado entre o s argumentos persuasivos e os co­
ercitivos, de elaborar raciocinios lógicos e de
prom over ações diretas. Entretanto, necessita­
vam provar, também, que nada tinham a ver
com algumas mulheres cujas ações acabaram
por simbolizar tudo aquilo que era politicamen­
te ameaçador para a República e cuja figura —
profundamente enraizada no imaginário políti­
co republicano — era, na época, perigosamen-
te identificada com o conceito de “mulher” , de
tal maneira que até mesmo o simples exercício
de algumas atividades consideradas apenas
aceitáveis para homens (mesmo assim com res­
trições) poderíam fazer com que a lembrança
delas ressurgisse.
Havia dois clichês que tomavam a mulher
inimiga da República. O primeiro dizia respeito
à figura (já algo desgastada, porque remontava
à R e vo lu çã o do século X V III) da m ulher
indisciplinada, sexualmente agressiva e irracio­
nalmente desordeira, que a iconografia popular,
representando a Comuna de Páris, freqüentemen-
te usava. Pára a Terceira República as pétroleu-
ses, essas fúrias que empunhavam tochas e ame­
açavam incendiar Páris durante os últimos dias
do levante contra o novo governo, identificavam
36 H ERTZ, 1983, p. 27-54; os excessos da Revolução com os excessos das
G U L L IC K S O N , 1 9 91 ; mulheres.36 Estas realmente lutaram por seus di-
T H O M A S , 1963. reitos e representaram um papel muito impor­
tante na mobilização política, durante os dias da
Comuna. Depois, tais atividades se tornaram re­
presentativas do caráter subversivo do movimen­
to. Com efeito, o emblema da própria Comuna
era uma mulher, uma incendiária, cuja fúria de­
senfreada ameaçava reduzir a cinzas os sistemas
de propriedade e de governo que eram a base da
ordem social. E de um observador o seguinte
comentário: “As mulheres se comportavam como
feras, jogando petróleo por toda a parte e se dis­
tinguindo pela fúria com que lutavam; uma mul­

172
HUBEKTlNE ÂÜCLbRi £ A POLÍilCA DA 'i hEGEIRA EEPÚBAICA

tidão de perto de quatro mil delas Invadiu os


bouleuards esta tarde, figuras nunca vistas an­
tes, enegrecidas pelo pó, todas imundas e esfar­
rapadas, algumas com o peito nu para mostrar
seu sexo, com os cabelos desgrenhados e uma
37 hdwin Chiid, citado em aparência das mais ferozes”37.
G U LU C K S O N , 1991, p. Tomada ao pé da letra, essa ic o n o g r a fia
250.
da Comuna acabou se tornando uma prova Ja
“real natureza” das mulheres. Até feministas
com partiam esse mesmo discurso. Quando
Maria Desraimes pediu a comutação da pena
de morte de algumas mulheres acusadas de pro­
moverem incêndios criminosos, argumentou no
sentido de que as desculpassem por serem mu­
lheres “cujas paixões eram exacerbadas e que,
por isso, se entregaram a um estado de frenesi
histérico, somando a mais profunda ignorância
38Citado por DUFRANC A- à corrupção por elas vivida desde o berço” .38
TEL, 1976, p. 134. Para Maria Desraimes (e mesmo para muitos
dos que se opunham às reformas destinadas a
modificar o status legal das mulheres), apenas
a ignorância e a corrupção não consistiam as
causas únicas das ações crim in osas das
pétroleuses. N a verdade, a ação dessas mulhe­
res evidenciava um elemento constitutivo da
essência da mulher, ou seja, a tendência à exci­
tação exacerbada e ao comportamento histéri­
co que a natureza lhes reservara.
O segundo clichê que transformava a mu­
lher numa ameaça à República caracterizava-
a com o serva pia e supersticiosa do padroado.
A resistência ao voto feminino se fundamenta­
va, em grande parte, na crença de que as mu­
lheres eram exageradamente sensíveis à influ­
ência dos padres, podendo reforçar com seus
39 MICHELET, 1845. Esta
obra teve inúmeras edi­ votos o poder da direita clerical e anti-republi-
ções depois de sua pri­ cana. Esse ponto de vista foi apresentado pela
meira publicação. A edi­ primeira vez em 1845 por Jules Michelet e, em
ção de 1900 fo i
seguida, tornou-se muito popular e m esmo
publicada com comentá­
rios do filósofo solidarista axiom ático durante a Terceira R epú blica .39
Alfred Fouillée. Muitos republicanos ferrenhos, que apoiaram as

173
JOAl i77v SC07T

reformas edt w venáis e iegaís a favor da mu­


lher, tornara m-se inflexíveis quando se tratava
do voto feminino. Entre eles encontrava- se León
Richer, líder da Associação pelos Direitos da
Mulher e editor do jornal por ela editado, 11Avenir
des Femmes. Segundo ele, as mulheres precisa­
vam se submeter a intensa atividade educacio­
nal para ficarem livres do “perigo ñegi o” do cle­
ro. “Entre nove milhões de mulheres que atingi­
ram a maturidade, somente uma pequena par­
cela votaria livremente; o resto cumpriría as or­
40 C it a d o p o r H A U S E , dens vindas do confessionário” . 40 Um outro re­
1987, p. 41. publicano, o filósofo solidarista Alfred Fouillée,
reiterou tais temores na virada do século: “Já
41 "II y a d e ja tant existem tantas pessoas desqualificadas na polí­
d ’ in c o m p é te n c e s qu i tica que vejo com ansiedade as mulheres se jo ­
s’occupent de politique,
gando nas refregas dos partidos políticos. Nos
que je ne verrais pas sans
inquietude les femmes se
países católicos, a maioria das mulheres vota­
jeter dans la m élée des ria em consonância com seus confessores, que
partis. D a n s les p a y s por sua vez receberíam ordens de Roma. Em
catholiques, le vote de la vez de contribuir para o progresso, creio que o
plupart des femmes serait
voto feminino traria o retrocesso. Esperemos. A
celui de leurs confesseurs,
qui re c e v r a ie n t eux- questão me parece prematura ” .41 Em 1907, o
memes le mot d ’ordre de líder do partido radical, Georges Clemenceau
R om e. Au lieu de reiterou essa opinião de form a mais incisiva:
contribuer au progrés, il
“ O número dos que escapam ao domínio do
am énerait, je crois, um
recuí. A tt e n d o n s ; la
clero é ridiculamente baixo” , advertia ele. E
q u e stio n me s e m b le acrescenta que, caso “amanhã fosse dado às
prématurée". Citado por mulheres o direito do voto, a França, repentina­
R O S A N V A L L O N , 1992a, mente, retrocedería para a Idade M édia ” . 42
p. 394.
A crença de que a mulher era excessiva­
mente propensa à religiosidade reacendia v e ­
42 Citado p o r H A U S E &
KENNEY, 1984, p. 16. lhas idéias sobre a superstição, a irracionalidade
e o fanatismo das mulheres, a fim de que elas
fossem mais convenientem ente identificadas
com a facção clerical e anti-republicana. C om o
sua presença era uma ameaça constante à con­
tinuidade da comunidade política, sua exclusão
era justificada. Tais argumentos, porém, consis­
tiam numa faca de dois gumes. Por um lado,
atribuía-se o comportamento feminino à falta

174
H ü B E R T IN E - L C L E E 7 E A P O L ÍT I C A D A TERCEIRA R E P Ú B U C A

de instrução, e assim as mudanças-ficariam


garantidas se houvesse um incremento da edu­
cação secular das mulheres; por outro, explica­
va-se que a inclinação à religiosidade das mu­
lheres tinha raízes não só em aspectos instituci­
o n a l mas em características psicológicas, de
m odo especial a sua natureza submissa. Essa
explicação eliminava a possibilidade de que um
incremento de atividades educativas viesse a ter
qualquer efeito; conseqüentemente, dar à mu­
43 As grandes histórias de lher o direito ao voto estava definitivamente fora
cunho socialista da R evo­ de cogitação . 43 Embora a objeção de A. Fouillée
lução Francesa perpetu­ tenha sido feita depois de décadas de educa­
am a idéia d a fidelidade
ção para mulheres francesas, numa época em
das mulheres a sua reli­
gião, graças às referências que inúmeras mulheres educavam com êxito as
a o p a p el q u e estas d e ­ crianças sobre os valores seculares da Repúbli­
sem penharam na contra- ca, a figura da mulher piedosa agrilhoada a seu
revolução. V M ICH ELET,
confessor continuava a servir de ampla justifi­
1854; A U L A R D , 1892 e
1898-1902; e J A U R È S ,
cativa para que se negasse a ela o direito ao
1922-1924. voto. Essa concepção de mulher também servia
para id e n tific a r a m a s cu lin id a d e co m o
secularismo, com o pensamento científico e com
a reflexão independente, três condições indis­
pensáveis para a concretização da cidadania
no seio da República.
Apesar de suas diferenças aparentes, am­
bos os chavões — o da fanática obediente e
pia e o da revolucionária de sexualidade desen­
freada — eram na verdade dois lados da mes­
ma moeda, pois concebiam as mulheres sub­
metidas a influências situadas além dos limites
do controle racional, virtude da qual elas,
comprovadamente, eram carentes. A sensibili­
dade excessiva e a falta de disciplina conjura-
vam para fazer das mulheres uma ameaça à
República. Até mesmo dentro do lar a mulher
poderia se tornar um agente da subversão cleri­
cal, mas a ameaça que ela representava no do­
mínio político era muito maior.
Hubertine Auclert procurou apresentar al­
ternativas que apagassem essas imagens. A o

175
aceitar a reverenciei da ierceirn Pepuolieci so
Positivismo, ao secuiarismo e à ciência, ela se
revelava com o uma pessoa eminentemente ra­
cional e disciplinada por força da lógica, uma
palavra, aliás, recorrente em seus escritos. Ten­
tava convencer as mulheres a demonstrar mais
capacidade lógica do que aqueles que as opri­
miam e, freqüentemente, denunciava a desigual-
44AUCLERT, 1889a, 5 7 2 dade com o “injusta e ilógica” ,44 Ela submetia
76. os argumentos contrários aos direitos da mu­
lher à prova da lógica: alguém seria capaz de
dizer que as funções específicas do padeiro o
impediam de votar? Pois fazê-lo “seria tão lógi­
co” quanto privar a mulher de seus direitos,
porque elas fazem suas tarefas domésticas e
45AUCLERT, 1881, p . 92. cuidam dos filhos .45
Para Hubertine, as mulheres mereciam
direitos porque são seres lógicos e não as fa ­
náticas indisciplinadas que as fantasias repu­
blicanas produziram; e, neste sentido, não ex­
cluía nem m esm o os indivíduos construídos
pela im aginação de Olym pe de G ouges ou as
mães carinhosas de Jeanne Deroin. Feminis­
tas que eram, por força de suas campanhas a
favor do vo to e de sua identificação com uma
tradição construída ou “ inventada” , Olympe
d e G o u g e s , J ea n n e D ero in , e H u b ertin e
Auclert ficavam , porém , separadas pelas di­
ferenças inerentes aos contextos de suas é p o ­
cas — diferenças originárias não só de acon­
tecim entos históricos, de ênfases ou de por­
menores, mas de arenas discursivas onde se
construíam os próprios conceitos de “ mulher”
e se definiam seus direitos.
O m étodo de Hubertine Auclert era cientí­
fico, dentro dos padrões da época; a verdade
para ela era uma questão de fatos, os quais se­
riam eloqüentes por si sós. Embora acreditasse
que o enquadramento de um fato num raciocí­
nio lógico eliminava a contradição, seus própri­
os argumentos — com o os de Gouges e os de

176
HUBhETINh AUCLhK í h A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

Deroin — nao eram desprovidos de paradoxos.


Freqüentemenie ela concluía veementes
denúncias dos efeitos danosos da exclusão da
m ulher da cid a d a n ia , o fe r e c e n d o provas
empíricas: “ Podem os provar nossas alegações
46 L a C i t o y e n n e , 13, com fatos” .46 Os números eram, para ela, ain­
fev.1881. da mais convincentes e sempre os trazia con­
sigo para dar força a seus argumentos. Se al­
guém duvidasse, por exemplo, de que o imposto
pago pelas mulheres era apropriado pelos ho­
mens, bastava consultar os orçamentos do Es­
tado e comparar as alocações destinadas aos
homens com as destinadas às mulheres. “ Os
números são multo eloqüentes; eles provam,
melhor do que palavras, como temos razão para
47 "L e s ch iffres son t desconfiança” .47 Enquanto pesquisadores so­
éloquents, ils prouveront ciais com provavam suas teses ou regulamen­
mieux que des mots que
tações com dados colhidos em pesquisas es­
n o u s a v o n s raiso n de
nous méfier". AUCLERT, tatísticas, Hubertine baseava suas reivindica­
1887, p. 104. ções reformistas em fatos .48 Quanto às mulhe­
res, por que não lhes pagar por seu trabalho
48 S obre as pesquisas de
doméstico só? perguntou certa vez. Quando a
opinião, v. A ISE N B E R G , mulher morria, o marido se obrigava a contra­
1993, cap. 5. tar uma enfermeira para os filhos. N ão seria
esta uma prova cabal do valor monetário do
trabalho doméstico? Para aqueles que susten­
tavam que tal pagam ento prejudicaria o bem-
estar físico e moral da mulher, ela respondia
com argumentos sobre o aviltante salário pago
às trabalhadoras. “N ã o é o trabalho, mas a
49AUCLERT, 1879, p. 128. pobreza, que mata as mulheres. ” 49
A o líder d o sindicato dos tipógrafos,
Jacques Alary, que, em 1883, alegava que ad­
mitir mulheres para a função de tipógrafas des­
truiría não só as mulheres mas a própria civili­
zação francesa Hubertine Auclert respondia que
a tipografia era na realidade uma profissão que
lhe convinha perfeitamente. Em um panfleto in­
cendiário, ele profetizou que as mulheres que
assumissem os trabalhos de uma tipografia “fi­
cariam deformadas, pois assumiriam o olhar, a

177
voz e as maneiras grosseiras dos homens que
ali trabalham; finalmente, elas recairiam num
estado puramente natural e se tornariam sim­
ples rro ote fêm eas". Tornar-se, “simplesmente
fêmea"' significava, é claro, voltar à animalidade,
estado •ainda pior do que a escravidão ou a
barbárie: “ Onde está a negra de Havana ou a
mulher de um harém turco que concordaria em
trocar a h a c ie n d a espanhola ou a residência tur­
ca por um emprego numa tipografia?" Para ele,
portanto, a feminilidade era a pedra de toque
do progresso da civilização, e somente o confi­
namiento doméstico era capaz de manter as mu­
lheres “delicadas” e “elegantes” , a civilização
50ALARY, 1883, p. 15,18: francesa dependia da “ mulher no lar” .50 Em sua
"elle se deforme, prend le resposta a Jacques Alary, Hubertine afirmou que
regard, la voix, et Tallure
a função de tipógrafa era, com o muitas outras,
gro ssière des h o m m es
q u ’elle frequ en te dan s
apropriada para as mulheres e apontou com fir­
l’atelier; elle r e to m b e meza para a realidade dura de fatos relativos
enfin à Tétat de nature ou aos trabalhos, por tradição, executados pelas
de sim ple fem elle [....] mulheres. Será que o trabalho de uma tipógrafa
Quelle est la négresse de
seria menos m onótono do que o de uma balco­
la H avane ou la
circassienne de Constan- nista, de quem se exigia que ficasse de pé o dia
tinople qui consentirait à inteiro; ou mais perigoso do que o de funcioná­
échanger La m a is o n rias de lavanderia, obrigadas a mergulhar as
tu rq u e ou 1’hacienda
mãos em água escaldante e a manipular pesa­
e s p a g n o le contre u n e
place dans Timprimerie?"
dos ferros de passar cheios de brasas? Será que
o alto salário de um funcionário de tipografia
induziría mais à corrupção do que o incrivel­
mente baixo salário que uma operária recebia
por sapato costurado, a qual, por pura compen­
sação, era obrigada a prostituir-se? Os fatos da
vida da mulher trabalhadora contradiziam cla­
ramente as afirmativas de Jacques Alary , sus­
tentava Hubertine Auclert, e os que se recusa­
vam a admitir esses fatos agiam ou por interes­
51A U C LE R T , 1883/1884, se próprio ou por má-fé .51
p. 80-84. Um desses motivos eram os argumentos
com que abertamente justificavam a exclusão
da mulher da política. Quando usavam o pre­
texto de proteger a República de seus inimigos

178
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

religiosos, lidavam corrí uma dupla contradição


tão flagrante que sua tolerância só podia ser
ex p lica d a p ela hipocrisia, dizia H u bertine
Auclert. A primeira delas era o fato inconteste
de que mulheres, sem dúvida, não eram menos
comprometidas com a causa da Igreja do que
os próprios padres, entretanto, mesmo assim,
eles eram cono -miados a votar. Se o m edo da
influência religic..: era o foco do problema, por
que então deixar aqueles religiosos por profis­
são votar? Havia, “é lógico” , apenas uma res­
posta: “O senhor vigário é hom em ” . Além dis­
so, a segunda justificativa republicana para ex­
cluir as mulheres se baseava, em última análi­
se, nos ensinamentos bíblicos sobre o pecado e
o castigo de Eva. Hubertine alertava que havia
sido o homem que engendrara tais leis, e, mes­
m o então, naquela época de ateísmo, e naquela
época em que só se admitia com o verdadeiro o
que fosse filtrado pela razão e pela experiência,.
ele lançava mão de argumentos religiosos para
52 A U C L E R T , 1881a: "L preservá-las .52
hom m e a fait ces lois et Após estabelecer que essas contradições
m êm e à notre é p o q u e
triunfavam porque perpetuavam o poder dos
d ’ath éism e et de libre
exam en, il les conserve homens, Hubertine Auclert procurou desmenti-
religieusement". las por meio de provas científicas. Apelou às
mulheres que tivessem convicções seculares que
as demonstrassem por ações, pois só assim lo­
grariam elucidar que crença religiosa não era
uma questão de identidade sexual, mas de
afiliação política. Para compensar esse e outros
preconceitos que a sociedade abrigava, as mu­
lheres deviam dar provas de sua oposição à Igre­
ja. “A fim de contrabalançar a influência nefas­
ta das mulheres reacionárias, é necessária a
53 "P o u r c o n tre b a la n c e r
influência benéfica das mulheres republica­
1’influence fâcheuse des nas” .53 Já em 1877. Hubertine Auclert exorta­
femmes réactionnaires, il va as mulheres a apoiar sua reivindicação a
faudrait Tinfluence bien- favor da expulsão dos jesuítas. Permanecendo
faisante des femmes répu-
indiferentes ou mudas, seriam acusadas de co­
b lic a in e s ". A U C L E R T ,
1878, p. 10. nivência com o clero em sua obra obscurantis-

179
ía, a, assim reforçariam a opiaiao predoi ninan-
te sobre el as: “Vamos demonstrar que não
estamos do lado deles. Vamos nos levantar e
fazer com que nossos gritos de protesto sejam
ouvidos de uma extremidade à outra da Fran­
ça. Vamos declarar em alta voz para o mundo
54 "Montrons que nous ne que nós queremos a luz, a liberdade ” .54
som m es pas avee eux. N ã o obstante todos esses fatos e dem ons­
L e v o n s -n o u s , et q u e , trações, a tentativa de Hubertine Auclert apre­
d ’un bout à l’autre de la
sentar provas contra a hipocrisia preponderan­
F ra n ce , n otre cri de
protestation soit entendu. te era paradoxal, visto que, por definição, hipo­
D is o n s b ie n hau t au crisia consiste em negar interesseiramente o que
m onde que nous se sabe ser a verdade. De certa forma, porém, a
v o u lo n s la lu m iére, la
estratégia funcionou favoravelm ente, pois dei­
liberté". A UCLERT, 1877,
p. 10.
xou bem claras a sua sinceridade e a ausência
de interesse pessoal nos atos que praticava. A o
mesmo tempo, Hubertine reconheceu a dificul­
dade que havia em construir algo em política
com auxílio de raciocínios lógicos. Se os obstá­
culos eram criados por interesses particulares
ou de grupos, então não haveria raciocínios,
por numerosos e irrefragáveis que fossem, que
tivessem força persuasiva. N o fim das contas, o
necessário era combinar a força e a razão. Quan­
do Hubertine Auclert anunciou a form ação de
sua Sociedade Nacional pelo Voto Feminino, em
1883, ela declarou seu compromisso de traba­
lhar não com a força mas com a “persuasão” ,
55AUCLERT, 1883, p. 132. isto é, com a força do raciocínio lógico .55 N o
mesmo artigo, exortava as mulheres a criar uma
força que contrabalançasse a dos homens: “não
se pode exigir da natureza humana mais perfei­
ção do que ela tem; enquanto os homens, sozi­
nhos, fizerem as leis, eles as farão para si pró­
56"On ne peut exiger de la prios e contra nós ” .56
nature humaine plus de -A História demonstra com que intensida­
perfection q u ’elle n’en
de os homens sempre quiseram preservar seu
comporte. Pendant que
les hommes feront seul les poder, dizia ela. O apoio que as mulheres da­
lois, ils les feront pour eux vam às revoluções passadas nunca foi garantia
contre nous". A UCLE R T , de que os homens, uma vez vitoriosos, haveri-
1883, p. 133.
am de com elas partilhar o poder. Descartando

180
LIBERTELE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

as _,.om s 5 sas de alguns "supostos'' socialistas


do que as mulheres receberíam poderes em urna
futura nova sociedade, Hubertine denunciou
esse velho subterfúgio dos revolucionários, ar­
gumentando não terem eles a menor intenção
de cumprir suas “sagradas promessas” . Basta­
va a lembrança das experiências de Olympe de
Gouges: na época da grande Revolução, as
mulheres trabalharam ingenuamente a favor de
mudanças políticas, apenas para serem, logo em
seguida, ridicularizadas e castigadas pelos pró­
prios homens a quem ajudaram a triunfar Em
1848, repetiu-se a experiência: ao proclamarem
os direitos de tous les français e, ao mesmo tem­
po, restringirem-nos “ à metade da nação” , os
homens deram prova de seu verdadeiro “egoís­
mo” . Nada era diferente em seu tempo, susten­
tava Hubertine Auclert. Por que razão uma C â­
mara de Deputados, constituída somente de ho­
mens, mantida à custa de impostos sobre os
salários das mulheres, abdicaria do direito de
serem juizes e mestres exclusivos dessas mes­
mas mulheres? Simples argumentos nunca lo­
grariam êxito contra semelhante mal. O único
corretivo seria a mobilização; elas tinham de
organizar uma força de oposição para conse­
guirem emancipar-se.
N as a rticu la çõ es org a n iza d a s por
Hubertine Auclert para atingir suas metas polí­
ticas feministas, porém, nunca ficavam bem cla­
ros os limites entre força e persuasão. Esse dile­
ma não foi exclusivamente seu, pois também se
evidenciava na tensão entre liberais, conserva­
dores, radicais, e socialistas sobre até que pon­
to os conflitos políticos poderíam ser permiti­
dos para que a integridade da República não
ficasse ameaçada. Em que ponto as mobiliza­
ções em prol de um interesse específico ou em
oposição a uma política adotada pelo governo
ultrapassam a linha divisória entre força e per­
suasão? A questão dos sindicatos servia de

181
JOAN W, 5COTT

exemplo: sua legalização, em 1884, foi o reco­


nhecimento de que a pressão econôm ica podia
ser uma maneira aceitável de “persuadir” os
empregadores. Todavia, a disposição do gover­
no em intervir contra os grevistas (nos confron­
tos sangrentos que ocorreram nas décadas de
1890 e de 1900) eram prova clara da confusão
dos limites entre meios legítimos de persuasão
57 v. P E R R O !, 1974a; e e uso inaceitável da força.57
G O L D B E R G , 1963. A tensão entre persuasão e força ficou ain­
da mais exacerbada para Hubertine Auclert pelo
fato de querer criar um status político feminino.
Qualquer alusão à força poderia conjurar as odi­
adas megeras da Comuna; por isso, sempre se
referia à “persuasão” , evitando a palavra “for­
ça” , mesmo quando esta traduzisse melhor o
que tinha em mente. Persuasão, porém, tam­
bém tinha seus limites. A fim de persuadir, as
mulheres tinham que ser vistas com o membros
participantes de uma discussão política e se ex­
pressar por m eio da terminologia apropriada
58Sobre os limites de per­ para debates .58 Mas, visto que elas não podiam
suasão, v. R O O N E Y , votar, eram desqualificadas para participarem
1989. de quaisquer discussões, e, portanto, impedidas
de utilizarem o recurso da persuasão. E o que
era ainda pior: ficavam excluídas dos próprios
assuntos em debate. Conseqüentemente, era
uma dupla exclusão: não podiam entrar na p o ­
lítica para representar seus interesses e seus in­
teresses não faziam parte dos debates políticos
por falta de quem as representasse.
Foi assim que até mesmo a linguagem aca­
bou por marcar a inferioridade das mulheres ou
por torná-las invisíveis. Para certas ocupações
e funções exercidas pelos homens, nem mesmo
existia a palavra correspondente para o gênero
feminino. Com o é que o feminismo poderia exi­
gir que as mulheres se ocupassem das ativida­
des dos advogados ou se tornassem testemu­
nhas, eleitores, perguntava Hubertine Auclert,
se essas palavras só existiam no masculino? N ão

182
HUBERTINE AUCL ERT h A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA •

bastava afirmar que o gênero- nesses casos, era


■neutro e que as mulheres poderíam ser incluí-
. das sob a terminología já aplicada ao género
masculino. Se isto fosse aceito, não havería tima
forma de representá-las — nem mesmo podi­
am ser incluídas nas estatísticas (principal ins­
trumento de garantia da representação objeti­
va). “N ão é pela força de repetirmos certas pa­
lavras que acabamos por aceitar o significado
que literalmente denotam?” Hubertine Auclert
começou a exigir a “feminização das palavras” ,
ou seja, a introdução de palavras específica­
mente no feminino correspondentes às que até
então só existiam no masculino. “A primeira
feminização é a da língua, porque se o femini­
no não for claramente estabelecido, será sem­
59 " N ’est-ce pas à force de pre submetido ao masculino” .59 Insistia no po­
prononcer certains mots, der inerente à língua de mudar a realidade m a­
qu’on finit par en accepter
terial — nesse caso a divisão sexual do traba­
le sens qui tout d ’abord
lho — ao invés de apenas descrevê-la. Todos
heurtait?" "La féminisation
initiale est celle d e la aqueles que, num debate, apresentavam a dife­
langue, car le féminin non rença sexual com o um pressuposto natural, ja­
distinctement établi sera mais se deixariam convencer pelas propostas
toujous a b s o rb e p a r le
de Hubertine Auclert.
m a sc u lin ". A U C L E R T ,
1898, p. 15-17. V tam­
Mais problem ático do que associar as
bém P O O V E Y , 1993. mulheres à persuasão era estabelecer sua ca­
p a c id a d e de r a c io c ín io ló g ic o . Q u a n d o
Hubertine Auclert usava o vocábulo “persua­
são” , ela queria dizer esforço de repressão sis­
temática a uma proposta contrária. Persuasão,
porém, tinha outras conotações que contradizi­
am a idéia de um processo no qual a verdade
prevalecia sobre o erro: denotava eloqüência;
correspondia a um apelo não à mente mas à
alma; inspirava convicções oriundas da “bele­
za” de suas formulações. A religião podia ser
tão persuasiva quanto a ciência, bem com o as
lágrimas de uma mulher poderíam persuadir um
hom em a agir, tanto quanto as idéias de um
erudito. A persuasão podia apoiar-se quer no
erro, quer na verdade; nada havia de evidente-

183
O IT

me ate bom ou miau nas crenças que alguém era


60LITTRÉ, 1877, p. 1078. persuadido a aceitar.60 Além do mais, à sem e­
lh a n ça das n o ç õ es de im a g in a çã o ou de
androginia em épocas anteriores, a persuasão
estava marcada pelo gênero. O uso da beleza,
da eloqüência e das em oções a fim de persua­
dir era freqüentemente descrito com o um estra­
tagem a feminino. N a verdade, a Retórica era
considerada com o o contraponto feminino da
Filosofia, que era masculina. A mulher que ti­
nha o dom da persuasão era vista mais propri­
amente com o uma ameaça ao raciocínio lógi­
co, do que com o sua encarnação.
Portanto, sempre que uma mulher alegava
estar lucubrando algum raciocínio lógico com
a finalidade de persuadir, com o era o caso de
Hubertine Auclert, ela atraía uma reação com ­
plexa. Por um lado, dada à possibilidade de a
mulher estar fazendo uso de seu poder de per­
suasão por meios e para fins em geral conside­
rados fora de expectativa para os padrões fem i­
ninos, estaria demonstrando, em tal caso, uma
capacidade de raciocínio argumentativo, o que,
efetivamente, desafiaria qualquer dos estereó­
tipos de mulher então dominantes. Por outro
lado, o fato de uma “ mulher lógica” ser uma
com binação ilógica, seu poder de persuasão
só poderia ser atribuído a outros fatores. N es­
sa linha, os comentaristas não podiam deixar
de notar que, por força de uma ambigüidade
qualquer, Hubertine Auclert era eloqüente e
possuía inegável habilidade de “provocar em o­
61L e Temps, 17 mai 1880; ções” na platéia. 61
Gil Blas, 12 mar. 1880. Para a mulher que se envolvia em política,
portanto, a persuasão era, na melhor das hipó­
teses, ambígua. Sua habilidade de raciocínio ló­
gico poderia ser mais propriamente endereça­
da àqueles que partilhavam de seus interesses,
do que àqueles cujos interesses invariavelmen­
te se opunham aos dela. A o serem excluídas
tanto da arena política quanto da linguagem

184
HUBERTINE AUCLERT h A PuLÍTíCA DA l ERChlKA REPÚBLICA

política, as mulheres perderán! o acesso aos


meios e aos termos de persuasão, e, dessa for­
ma, seu único recurso seria abraqm a idéia da
força. Foi assim que as moções c r Hubertine
Auclert passaram a fazer as mulheres duvidar
e, em seguida, desafiar os que estavam no po­
der, negando-lhes o direito de falarem pela so­
ciedade com o um todo, pois, segundo seu raci­
ocínio, os Interesses das mulheres só podiam
ser conhecidos e, portanto, representados por
elas próprias.
 tentativa empreenthda por Hubertine
Auclert de fazer da m ulh er. .olítica um republi­
cano exemplar expôs os linuies do projeto vota­
do à criação das próprias forças políticas repu­
blicanas. A meta do consenso e da hom ogenei­
dade, abraçada com mais entusiasmo princi­
palmente nos currículos escolares, condenava
qualquer contestação considerada fundamen­
tal. Eis a razão porque os políticos legitimavam
o governo dos poderosos e só abriam espaço
para aqueles que aceitavam jogar de acordo
com as regras. As mulheres estavam marcadas
com o sinal indiscutível da diferença nesse sis­
tema político. (Elas entretanto, não eram as úni­
cas. For sua própria condição, os operários tam­
bém encarnavam e representavam uma dissi­
dência que não podia ser aceita.) Caso a R e vo ­
lução fosse vista com o algo sério, e o sistema
aceitasse as reivindicações de participação p o­
lítica da mulher, das duas, uma: ou não a verí­
am com o fundamentalmente diferente, ou, en­
tão, a reconheceriam com o diferente, mas a
aceitariam sem lhe impor condições. Esta últi­
ma alternativa, porém, não seria menos revolu­
cionária, uma vez que poria em dúvida a lei —
a Constituição — , que igualava cidadania a
masculinidade. De uma forma ou de outra, por­
tanto, dentro da estrutura simbólica da política,
ao sujeito político feminino só cabia o papel de
sujeito revolucionário — por mais legais que

185
JOAN W. SCOTT

fossem suas ações e por mais racionais que fos­


sem suas palavras.

A lese fundamental de Hubertine Auclert


era a de que havia uma conexão entre os inte­
resses da mulher e os interesses do social. Du­
rante a Terceira República, o pensamento fun-
cionalista já priorizava a idéia de que a mulher
tinha interesses específicos, não só entre mu­
lheres (a cada dia mais numerosas) que se or­
ganizavam em sociedades sufragistas, mas tam­
bém entre os legisladores dispostos a aprovar
projetos de lei favoráveis à aprovação do voto
feminino. (A partir de 1906, o apoio a esses pro­
jetos de lei incrementou-se na Câmara dos D e­
putados, embora depois de 1919 até 1944, o
Senado, sempre distante e muito mais conser­
62A respeito desta história,
vador, sistematicamente não os aprovasse . ) 62
v. H A U S E & K E N N E Y ,
1984, p. 212-47; KLEJ-
Aqueles que apoiavam o sufrágio feminino ar­
M A N e ROGHEFORT, gumentavam que as mulheres alimentavam “ in­
1 9 89 ; e B ID E L M A N , teresses” a serem considerados e, também, de­
1982. S obre as conces­ tinham um conhecimento especializado impres­
sões feitas aos interesses
cindível para que a nação fosse bem adminis­
das mulheres no código
de Direito Civil (inclusive trada. (Os assuntos relativos à previdência so­
o direito ao divórcio, con­ cial e às mulheres eram freqüentemente trata­
cedido em 1884) e sobre dos com ênfase semelhante, com o se fossem a
a legislação referente à
mesma coisa.) Aqueles mencionados interesses
família d a Terceira Repú­
blica, de m odo mais ge­
da mulher, portanto, tinham de ser representa­
ral, v. S C H A F E R , 1992; dos pelo voto da mulher. Ferdinand Buisson,
K A N I P E ,1 9 7 6 ; KSEL- deputado da região do Sena que presidia, em
M A N , 1980. 1911, na Câmara o comitê para as questões do
sufrágio universal, tomou a tribuna para con­
63"On s’est aperçu q u ’il est vocar as mulheres para que prestassem sua “co­
dans la vie publique, um
laboração social” pelo voto: “Tem sido obser­
grand nom bre d ’intérets
que la fem m e est aussi
vado na vida pública que a mulher é tão ou mais
apte, plus apte que l’hom- qualificada do que o homem para cuidar de um
me à surveiller et à ser­ bom número de interesses e a eles servir” . 63 Es­
vir". B U IS S O N , 1911, p. ses interesses se relacionavam com assuntos de
2.
“família, assistência pública, higiene, proteção
de meninas e crianças” — em resumo, com a
64B U IS S O N , 1911, p. 208. questão social.64

186
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

Hubertine Auclert apelava para esses “ in­


teresses” femininos, sempre que articulava seus
planos a favor do reconhecimento da identida­
de política da mulher. As ambigüidades do ter-
mo, porém, eram um grande desafio para ela,
pois a palavra “interesse” 'tinha a conotação de
m o tiv a ç ã o egoísta e lucro, bem co m o de
empatia, preocupação, curiosidade, e mesmo
atração pelos outros. Indivíduos e grupos eram
jogados uns contra os outros, quando os Inte­
resses eram conflitantes; mas também estimu-
lava a solidariedade, quando os Interesses eram
comuns ou quando havia uma identidade com ­
partilhada. Era uma palavra que ao mesmo tem­
65 ‘In té rê t’ , in L IT T R É , po unia e dividia .65 Além disso, a noção de in­
1877, p. 131-2. S obre a teresse implicava a existência prévia de pessoa
análise d a noção de "in­
cuja vontade estava em jogo. O sintagma “ inte­
teresse", v. J O N E S , 1983,
resses da mulher” evocava um ser dotado de um
p. XX: "N ão podem os [...]
decodificar a linguagem conjunto constante de necessidades e caracte­
política para chegar à ex­ rísticas — o que hoje denominaríamos de con­
pressão última e material cepção essencialista da mulher — , mas também
de interesse, pois é a pró­
corria o risco de particularizá-la de tal forma, que
pria estrutura discursiva
d a linguagem política que
acabaria por confirmar os velhos argumentos
concebe e define o inte­ para a exclusão da mulher do campo político.
resse. O que, portanto, Hubertine Auclert, mesmo quando apela­
temos que fazer é estudar va em favor dos “ interesses das mulheres” , ten­
a produção do interesse,
tava evitar a essencialização e a particulariza-
d a identificação, dos con­
flitos e d a a m b iç ão no ção delas. Sempre lograva êxito, porém, quan­
seio das próprias lingua­ do explicava que a particularidade das mulhe­
gens políticas." res não era senão o efeito histórico de leis cons­
titucionais (a com eçar pela Constituição de
1791), que destituíram todas elas dos direitos
políticos que algumas (por nascimento ou por
casamento) tinham usufruído no passado. A
exclusão legal das mulheres com o um grupo,
argumentava, encorajou-as a militar a favor da
restauração da justiça perdida.
A o mesmo tem po em que insistia sobre as
origens históricas dos interesses das mulheres,
Hubertine Auclert sustentava que eles estavam
em consonância com os interesses sociais em

187
.gemí. Ela tentava, entretanto, não comunal: mn
com ouiro, a íim de que não se perdesse a p :-s-
sibilidade de apelar para a identidade pcdttca
de cada mulher separadamente. Aqui, mais urna
vez, surgia o paradoxo da “diferença sexual” :
não havia com o defender os interesses específi­
cos da mulher, quando a luta pela igualdade de
todos (isto é, igualdade com os homens) era a
meta final.
Em 1881, Hubertine Auclert expôs suas
idéias sobre a necessidade de um jornal e de
uma organização devotados ao interesse das
mulheres: Para aqueles que nos acusam de ser­
mos exclusivistas, de tornarmos a questão das
mulheres uma questão à parte, nós responde­
mos que seremos obrigadas a pôr em evidência
o problema da mulher enquanto a mulher for
tratada de maneira diferente. Enquanto a mu­
lher não tiver o poder de intervir, a fim de defen­
der seus interesses, onde quer que estejam em
jogo, nenhuma alteração das condições políti­
66 "A ceux qui nous co-econôm icas vai trazer melhorias para sua
accuseront d ’ étre exclu- condição .66
sifs, de faire de la question N ã o fica bem claro nessa afirmação se os
des femmes une question
interesses das mulheres resultam da discrimina­
particuliére, nous répon-
d o n s q u e n o u s seron s ção de que são vítimas ou se a discriminação é
o b lig é s d e fa ire u n e que as impede de defender os interesses já exis­
q u e stio n d e s fe m m e s tentes. Essa imprecisão, na verdade, fundamen­
aussi longtem ps q u ’il y
ta a identidade coletiva das mulheres, fazendo
a u ra une situ atio n
particuliére faite aux fem­
dela a causa e o produto de uma mobilização
mes, et q u ’avant que cette conjunta.
situ atio n ait cessé Quais eram os “ interesses das mulheres” ?
d ’exister, av an t q u e la Hubertine Auclert raramente dava maiores ex­
fe m m e ait le p o u v o ir
plicações sobre eles, a não ser quando se tra­
d ’intervenir partout oü
ses intéréts sont en jeu tasse de fazer do direito ao voto, ao mesmo tem ­
p o u r les d é fen d re, um po, um interesse e um meio de defender outros
c h a n g e m e n t d a n s la interesses. Costumeiramente, por outro lado,
condition é c o n o m iq u e
opunha esses “outros interesses” com o que cha­
ou politique de la société
ne remédierait pas au sort
m ava “o interesse do sexo [intérêt du sexe]” da
de la femme". La Citoyen­ parte dos homens. Esse desejo egoísta de dom i­
ríe, 13 fév. 1881. nar social e sexualmente era a raiz de toda a

188
HUBERTÍNE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA PJEPÚBLICA

monopolização do poder masculino no comér-


cio e na política, além de ser a causa da defesa
corporativa de investimentos particulares essen-
cialmente contrários ao bem comum. Hubertine
normalmente contrapunha um tipo de interesse
(particular, egoísta, sexual, masculino) a outro
(comum a todos, abnegado, amoroso, femini­
no); identificava o homem corn a guerra e a
morte, as mulheres com a paz e a preservação
da vida; o homem com o desperdício e a insta­
bilidade, as mulheres com a economia e a har­
monia social Podía-se contar com as mulheres
para representar a nação a qualquer momento:
“a dona de casa que representar a nação vai
colocar mais humanidade do que amor à gloria
67 "L a fem m e m én agére em sua função’3.67 Segundo esse ponto de vista,
n a tio n a le m ettra b ien
as mulheres eram o social e sua representante;
plus d ’humanité que de
gloire dans sa fonction".
o apelo para que lhes fosse dado o direito de
A U C LE R T , 1887, p. 111, votar era um repúdio ao paternalismo do Esta­
e A U C L E R T , 1881c, p. do republicano.
106. A identificação da mulher com o social não
era, por definição, exclusivista; na verdade,
Hubertine Auclert não via diferença entre os vá­
rios grupos de adultos que pugnavam junto do
Estado por justiça e bem-estar. Alegava que, es­
trutural e socialmente, as mulheres eram com o
os operários, e os operários, como as mulheres.
Resultaria deste fato, então, que se tornava ne­
cessária uma aliança entre a classe trabalha­
dora e as feministas, visto que os dois grupos
tinham os mesmos interesses em jogo. Hubertine
Auclert propôs essa idéia pela primeira vez num
discurso que fez em Marselha, em 1879, no
Congresso Nacional de Trabalhadores, uma das
primeiras tentativas de organizar um partido de
68 A U C L E R T , 1879a, p. trabalhadores socialistas na França.68 Ela foi ao
123. congresso como delegada de duas organizações:
Les Travailleuses de Belleville, uma cooperati­
va de operárias, e Le Droit des Femmes, sua
própria associação feminista. Da tribuna, ela
argumentava que se era verdadeiro, com o os

189
JuAT-i Vv’. SCOTT

teóricos liberais sugerían i; que a divisão sexual


do trabalho era um pam jígm a para a divisão
social do trabalho, então as mulheres' e os tra­
balhadores tinham que abracar urna causa co­
mum. Mas, acrescentava ela, os liberais esta­
vam enganados quanto às conseqüências de
uma diferenciação social complexa, ao passo
que, quanto a isto, os socialistas estavam cer­
tos: a crescente divisão social do trabalho não
trouxe consigo a harmonia fraternal, mas a luta
de interesses conflitantes — oprim ido contra
opressor; explorado contra explorador — , da
mesma forma que a crescente divisão sexual do
trabalho nada mais trouxe co n sigo que a
proletarização das mulheres. Estou aqui, cheia
de estima por esta grande assembléia, o primei­
ro grupo de delegados-trabalhadores livremen­
te eleitos na França desde séculos, que permitiu
que uma mulher, não por ser operária, mas por
ser mulher — ou seja, uma explorada — , dele-
gada-escrava de nove milhões de escravas, apre­
sentasse as reivindicações da metade deserdada
69"Je viens, toute pénétrée da espécie humana .69
d ’estime pour cette gran­ “Mulher — ou seja, uma explorada” : esse
de assemblée, le premier recurso retórico apagou a distinção entre mu­
des corps libres éius em
lher e operário, pois na linguagem do m ovim en­
F ra n ce d e p u is tant de
siècles, qui perm ette à to nascente os operários eram, por definição,
une fem m e, non parce criaturas exploradas. Hubertine Auclert se refe­
q u ’eile est ouvrière, mais ria às dificuldades experimentadas pelas mulhe­
parce q u ’elle est femme
res nos mesmos termos utilizados pelos operá­
— c’est-á-dire exploitée
— , esclave déléguée de
rios: os dois grupos precisavam de emprego, mei­
neuf millions d ’esclaves, os de subsistência e salário, a fim de sustentar a
d e fa ire e n te n d re les si e aos seus; ambos careciam de acesso à lei e
réclamations de la moitié aos direitos políticos para avançar e para d e­
d é s h e rité e du g e n re
fender seus interesses. A o mesmo tempo, H u­
h u m a in ". AUCLERT,
1879a, p. 123. bertine Auclert descrevia a situação das mulhe­
res com o ainda pior que a dos operários, por­
que as mulheres eram “escravas” : não tinham
direito ao voto Eram problemas que os operá­
rios, oprimidos e maltratados por seus patrões,
deveríam entender muito bem. Para eles, não

190
MUBEE7INE -üCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

haveria verdadeira.liberdade, nem fraternidade


enquanto as mulheres não conseguissem sua
emancipação social, econômica, e, sobretudo,
política. Em última análise, era ilógico e imoral
que os trabalhadores assumissem também o
papel de opressores, igualando-se a seus inimi­
gos burgueses, para, juntos, dom inarem as
mulheres. Am bos os grupos, mulheres e traba­
lhadores, eram equivalentes, portanto, e, até
mesmo iguais, de certa forma: “Nós nos dirigi­
mos a vós, proletários, nossos irmãos na des­
graça, para que nos apoieis no direito à eman­
cipação. Vós sois votantes, vós tendes a força
dos números, vós todos sois mulheres, nos vos­
sos corações [tous vous êtes femmes par le
coeur], vós sois nossos irmãos. Ajudai-nos a nos
70 "N ou s nous adressons libertar” . 70
à vous, p ro lé ta ire s ,
N ão havia diferença, no fundo do cora­
com m e à nos co m p a g-
nons d ’ infortune, p o u r ção, entre mulheres e trabalhadores. A fim de
appuyer notre droit à sor­ fazer com que os “proletários” se alinhassem às
tir de la servitude. Vous mulheres, Hubertine Auclert identificou os va ­
êtes électeurs, vous avez
lores e os sentimentos (desejo de reformas, feli­
la puissance du nombre,
tous vo u s êtes fem m es
cidade, paz, aconchego e amor) comuns a am ­
p a r le coeur, vous êtes bos, op on do-os aos dos homens burgueses
nos frères. Aidez-nous à (agressivos, competitivos e belicosos), “nossos
nous a ffra n c h ir". opressores comuns” . Apagou uma vez mais a
A U C LE R T , 1879a, p. 129
linha divisória da diferença sexual entre o ho­
mem trabalhador e a mulher, para, em seguida,
reconstruí-la, a fim de distinguir os não eman­
cipados de seus exploradores burgueses. Seu dis­
curso era calcado na retórica e no estilo dos
que costumavam falar aos operários com o pro­
pósito de forjar-lhes a identidade de membros
de uma classe. A medida que passava “da p o ­
lêmica ao apelo, do lirismo à ironia cáustica,
da acusação reiterada à retórica exaltada,” ela
71S L A M A , 1976, p. 137. acabava por moldar essa identidade de classe, 71
despojando-a, porém, de um caráter marcada­
mente masculino, não só pelo conteúdo do dis­
curso, mas também pelo fato de ser uma mu­
lher quem discursava.

191
O espírito de camaradagem para o quai
apelava, e que praticava, tinha raízes na sem e­
lhança e não na diferença, no reconhecimento
de que os dois grupos eram desprovidos de p o ­
der. Os interesses dos trabalhadores e das mu­
lheres eram interesses de explorados, isto é,
de m em bros do corpo social que o Estado ti­
nha a obrigação de defender e proteger. A não
ser que os explorados xjudessem representar­
se no poder. O Estado, contudo, nunca iria
cumprir suas obrigações, pois não era uma
instituição que se pautasse pela neutralida­
de, longe disso, porém — ■com o acontecia na
fam ília burguesa patriarcal — , caracterizava-
se por ser uma form a de poder baseada no
g ênero e na classe.
Para Hubertine Auclert, a alternativa con­
sistia em não abandonar a idéia de uma rela­
ção entre o Estado e o social, mas em reformulá-
la, e com ela o m odelo familiar que lhe servia de
base. A analogia entre Estado e família preser­
vava um espaço para uma identidade distintiva
da mulher, a qual Hubertine julgava obrigatório
manter se não quisesse ver os interesses da
mulher serem absorvidos pelos dos trabalhado­
res, segundo a lógica de suas próprias reivindi­
cações. N a nova família, em lugar do domínio
paterno, ela oferecia cooperação entre pai e mãe:
ambos representavam e governavam as neces­
sidades sociais de seus membros. “N ã o é pos­
sível ser pai e mãe ao mesmo tempo” , escreveu
ela num panfleto de 1908. “Seria considerado
72 "II ríest pas possible, en
estranho que o hom em exerça os papéis de pai
effet, d ’étre à la fois hom -
me et fe m m e , on e de mãe na família, mas, de acordo com a le­
trouverait étrange q u ’un gislação, permite-se que os homens desempe­
hom m e cumulát dans la nhem esse duplo papel . ” 72 N a verdade, a repre­
famille le rôle de pére et
sentação das mulheres era o único m eio de ga­
de mére et Ton admet que
les h o m m e s cu m u len t
rantir integridade e “virilidade” para a Repúbli­
dans la c o m m u n e ce ca, não apenas porque as “ habilidades dom és­
double rôle". AUCLE RT, ticas” próprias da mulher eram necessárias à
1908a, p. 13. adm inistração da “ casa m aior” , “Ia cuisine

192
HüBüR i íNh ALA

adrninisiraiwe , cit£ 8niso reaiizada cié m odo


bastante precário pelos homens, mas, sobretu­
do, porque era uma questão muito mais séria
73 A U C L E R T , 1908a, p. do que a simples divisão de trabalhos sociais.73
106, 20. Uma república que negasse às mulheres o di­
reito ao voto era essencialmente “mutilada” , tão
“impotente” quanto uma pessoa que tivesse o
braço ou a perna amputados. Seu passo seria
trôpego, sua visão caolha e distorcida. Estaria
destituída da força geradora que somente pode
provir da união do homem com a mulher na
74AUCLERT, 1908a, p. 23, esfera política.74 N ão era só o bem-estar geral
57, 217. que ficava comprometido com a exclusão das
mulheres, mas a saúde do homem, sua mascu­
75 A U C L E R T, 1908a, p. linidade, sua própria vida.75 Hubertine com pa­
215. rava o alijamento das mulheres do corpo social
com as mutilações corporais a que se submete­
ram São Jerónimo e São Cipriano. C om o eles,
e pelas mesmas razões irracionais, “os legisla­
dores, que são livre-pensadores, mutilam o cor­
po social, amputando metade de seus membros,
76 "Les législateurs libres- a fim de evitar o contato feminino impuro ” .76
penseurs mutilent le corps Tais ações eram anormais e autodestrutivas, pois
social, ren tranchant la
sem a parceria heterossexual explícita das mu­
moitié de ses membres,
lheres, os homens não poderíam cumprir seu
pou r s’épargner Fimpur
co n tact fé m in in ". destino, nem o da sociedade. N a verdade, sem
A UCLE R T, 1908a, p. 57. a presença das mulheres, os homens ficavam
destituídos do falo que garantia sua masculini­
dade. As mulheres, portanto, eram o falo — a
fonte do poder dos homens.
Foi assim que Hubertine Auclert acabou
afirmando que negar às mulheres o direito ao
voto punha em dúvida a capacidade que o Es­
tado tinha de assegurar a masculinidade de seus
cidadãos. Dar somente aos homens o direito
ao voto, advertia ela, era um estratagema que
criava a ilusão da soberania, quando, na ver­
dade, redundava numa abdicação de poder. A
subordinação das mulheres representava, de
forma simbólica e efetiva, a subordinação do
social (neste se incluíam os operários) ao políti-

193
co e ao Estado. Enquanto o social permaneces­
se com o objeto de legislação e não pudesse fa­
lar em seu próprio nome, negava-se aos homens
(em especial à classe operária) e às mulheres o
direito fundam ental da ■auto-representação
(m esm o que o h om em pudesse v o ta r). Â
dissociação do social e do político — mães e
pais, homens e mulheres —- foi conseqüência
■da privação do direito de cidadania às mulhe­
res. A o se negar ao social um papel político ati­
vo para lutar em favor dos próprios interesses,
os direitos concretos e a justiça social torna­
ram-se reféns de regulamentações administra­
tivas e não de ações políticas. Quando isso acon­
teceu os cidadãos, os homens, acabaram fican­
do impotentes para representar, eles próprios,
seus interesses sociais (e econômicos).
O interesse do social, portanto, era um in­
teresse de mulheres, não porque elas realmente
tivessem maiores preocupações com a saúde, o
bem-estar e a justiça, mas porque essas áreas
eram consideradas alheias à esfera política, e ,
por isso, analogamente atinentes às mulheres:
“As mulheres francesas têm um senso de dem o­
cracia utilitária. Q u ando fo re m eleitoras e
candidatas, irão exigir ã form ação de assem­
bléias administrativas e legislativas para melhor
entender as necessidades da natureza humana
77 "Les Françaises ont le e satisfazê-las . ” 77 Para Hubertine Auclert, a
sens de l’utilitarism e emancipação da mulher resultaria na emanci­
d é m o c ra tiq u e . Q u a n d
pação do social e na restauração da potência
el les seront électeurs et
éligibies, elles forceront da cidadania, uma potência que se concretiza­
les assembiées adminis- ria somente quando as carências (sexuais, so­
tratives et législatives à se ciais, simbólicas) dos homens em relação às
p é n é tre r d es b e s o in s
mulheres se consubstanciassem na extensão dos
humains et à les satisfai-
re". A U C LE R T , 1908a, p.
direitos políticos a todas elas.
20 . A noção de um estado menos paternalista
e mais paterno-maternal também alimentava as
reflexões de Hubertine Auclert sobre a política
francesa na Argélia, onde m orou por quatro
anos com o mulher de Antonin Levrier. Em arti-

194
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

gos enviados aos jornais de Paris de 1883 a. 1892


(e que em 1900 foram reunidos em livro) / ela
associava a condição das “mulheres árabes na
Argélia” a suas campanhas pelo voto feminino.
Estava absolutamente convicta de que, se as
mulheres francesas tivessem voz ativa nas deci­
sões sobre as c o l ô n i a s francesas, suas irmãs
argelinas (a analogia mais precisa seria “filhas” )
nunca seriam tão exploradas e degradadas
com o eram. Os interesses das francesas, nesse
caso, não se referiam apenas aos problemas das
argelinas propriamente ditas, mas tam bém à
melhoria geral das condições humanas nas co­
lônias francesas. Hubertine aceitava a tese se­
gundo a qual era missão da França “civilizar”
os nativos mais primitivos, iluminando-os com
o secularismo republicano e com as ciências
modernas. Ficou perplexa, portanto, com o fato
de os franceses tolerarem as leis do Corão, que
ora se limitavam a reger no âmbito religioso,
ora detinham a função de arbitrar sobre as ações
cotidianas dos fiéis, mas ficou sobrem odo per­
turbada com as práticas, a seu ver, licenciosas
e degradantes para a mulher maometana que
essas leis encorajavam. Em seu livro sobre a
Argélia, Hubertine Auclert identificava o precon­
ceito contra as mulheres com o preconceito ra­
cial; em ambos os casos, o descaso pela capa­
cidade inata dos excluídos — mulheres e nati­
vos — retardou o avanço da^ “ civilização” . A
ausência de mulheres brancas nos conselhos
administrativos franceses impediu a elevação
ou o enobrecim ento de uma “raça dotada e
78A U C LE R T , 1900, p. 63. bela” por natureza . 78 O desprezo com que o
francês, colonizador, considerava o árabe em
geral redundaria na perenização, e não no de­
saparecimento, da ignorância e da superstição.
A missão francesa, dessa forma, solapava seus
próprios objetivos:

195
79 " C 'e s í en v o y a n t le E observação do quanto o p r e c o n c e i -
p e ía
préjugé de race dominer ' t o r a c ia ldomina tudo n a A r g é l i a q u e c h e g a m o s a
tout en Algérie, que Ton e n t e n d e r o a b s u r d o do p r e c o n c e i t o s e x u a l. E a s ­
comprend bien Tabsurdi-
s im q u e a ra ça á ra b e, tã o b e la e tã o b e m d ota d a ,
té d u préjugé de sexe.
é to ta lm e n te desp reza d a p e lo s e u ro p e u s , os q u a is ,
A insi la race a r a b e , si
n o e n ta n to , r a r a m e n te s ã o t ã o s im p á tic o s e t ê m
belle et si bien douée, est
absolument méprisée par tantas h a b ilid a des n a tu ra is q u a n t o os árabes. A q u i

les européens qui, rare- está a c o n tr a d iç ã o . O c o n q u is ta d o r f r a n c é s d iz


m en t c e p e n d a n t son t ao m u ç u lm a n o : “D e s p r e z o tu a ra ça , m as
aussi beau x et possédent s o t o p o n h o a m i n h a le i à tua ¡ei. D o u a o C o r ã o
autant d ’aptitudes nature- p r e c e d ê n c ia s o b r e o C ód ig o 1
'.79
iles q u e les ara b es. Et
voyez cette contradiction.
Le Français vainqueur dit Em seu enfoque classicarnente “orientalis­
au m u su lm á n : "Je ta” , por assim dizer, Hubertine Auclert via a
m ép rise ta race, m ais Argélia e suas mulheres com o exóticas, sensu­
j’abaisse ma loi devant la
ais, e cheias de vida . 80 As imagens que ela apre­
tienne; je donne au Koran
le pas sur le Code". A U -
sentava eram físicas e eróticas: ela descrevia os
CLERT, 1900, p. 63. corpos explorados e exaustos, homens e mu­
lheres copulando nas ruas, meninas forçadas
80 SAID, 1979.
ao sexo, mulheres agonizando por força de dar
à luz muitos filhos, mães com peitos deform a­
dos e vazios alimentando seus filhos com seu
sangue. (A exploração das mulheres francesas,
diferentemente, era discutida de forma abstra­
ta, em termos de instituições, de recursos soci­
ais, de códigos legais e de poder político.) O
perigo da situação, com o Hubertine Auclert o
via, não era o simples fato de que a condição
das mulheres argelinas minasse o progresso da
“civilização” , mas ainda o fato de que os admi­
nistradores coloniais se deixavam contaminar
pela corrupção, corrompendo por extensão os
altos padrões da França civilizada. Se os h o­
mens franceses colaboravam , ainda que por
omissão, para degradar, o que os impediría de
tratar as mulheres da França da mesma forma?
Só a força moralizadora da mulher francesa
poderia remediar essa situação. Se as france­
sas votassem e participassem da política das
colônias, as mulheres das colônias acabariam
por receber a mesma educação que os homens.

196
As argelinas, então, poderíam desenvolver as vir­
tudes do republicanismo secular pelo exercício
do voto, e a “missão civilizadora55 estarla no
caminho certo. N a época, escreveu anos mals
tarde, “mulheres brancas educadas55 não p o ­
diam votar, ao passo que “negras selvagens”
podiam. Embora Hubertine apoiasse o direito
que tinham as “nativas 55 de votar numa repú­
blica, considerava esse tratamento preferenci­
al em relação à mulher branca “um insulto con­
81 A U C L E R T , 1 9 08a, p. tra a raça branca 55. 81 N a verdade, o precon­
196-197. ceito racial era o fulcro desse argumento. As
mulheres francesas “civilizadas55, que já haviam
triunfado sobre os instintos e paixões do cor­
po, eram, afinal, agentes mais confiáveis das
políticas coloniais francesas. A semelhança das
mães numa família, seriam a fonte da discipli­
na e da moralidade para toda a nação e seus
membros. E, também, à semelhança das mães,
iriam educar seus filhos para que se tornas­
sem cidadãos leais à República. (Quando, p o ­
rém, se tratava dos outros filhos — os “nati­
vo s” — , a analogia da família, antes redefinida
para que os papéis do pai e da mãe fossem
igualados, mantinha, então, todas as conota­
ções de hierarquia e dependência.)
Em suas considerações sobre a mulher ar­
gelina, Hubertine Auclert transformou o interes­
se das mulheres em sinônimo perfeito de inte­
resse nacional. Seus argumentos, entretanto,
não eram totalmente originais. Seu objetivo era
utilizar o conhecimento que as mulheres tinham
do social para a formulação da política, era
transformar a mulher numa parceira que usu­
fruísse das mesmas vantagens e de todos os di­
reitos atribuídos ao homem na administração
da nação. Enfim, seu desejo era acabar com a
separação entre o político e o social, sem apa­
gar, por completo, no entanto, as diferenças en­
tre homem e mulher. A identidade da mulher
com o eleitorado político particular seria con-

197
JUAN -A'. SCO Ti

quistada pela oposição crítica à política exis­


tente, e sería entendida com o resultado desta
mesma política. A o mesmo tempo, tornar uos
interesses da mulher” sinônimos do interesse
social e, também, dos objetivos da própria R e­
pública negava o caráter particular dessa iden­
tidade. “Quando a mulher, cujos interesses no
Estado são os mesmos que os do homem, esti­
ver, corno ele, armada dos necessários direitos
para se proteger, para se defender, para m elho­
rar sua condição, então a França, de posse da
soma total de suas forças mentais, ocupará seu
82 "Q uand les femmes qui lugar de liderança no mundo . ” 82
ont dans i’Etat les mémes !
intérets que les hommes,
seront com m e ceux-ci,
À semelhança dos socialistas, cujo apoio
armées des droits néces- ela buscava, Hubertine Auclert se recusava a
saires po u r se proteger, abandonar a idéia da soberania do povo. Para
pour se défendre, po u r que uma autêntica igualdade se concretizasse,
a s c e n s io n n e r [s ic ]; la
sustentava ela, seria necessário que o Estado
France, en possession de
i’intégralité de sa force não mais fosse considerado com o um pai (por
cérébrale, prendra dans le mais generoso e solícito que fosse), e a cidada­
m onde um role prépon- nia não mais poderia ser um domínio exclusi­
d e ra n t". AUCLERT,
vamente masculino.
1908a, p. 217.
Já havia m uito tem p o que H u bertine
Auclert denunciava a identificação da política
com a masculinidade com o algo egoísta e anti­
social. Qualificava a ficção evolucionista que
excluía as mulheres da esfera política com o uma
fábula que mascarava uma expulsão injusta,
83 A U C L E R T , 1908a, p. conseguida por meios legais .83 Considerava o
15-17, 23, 71-195. em prego da força estatal para proteger a dom i­
nação masculina com o uma usurpação calcu­
lada, que contrariava a finalidade expressa da
República. Por isso ela rotulava com o absurdo
84ALARY, 1883, p. 57. o pedido de Jacques Alary, líder do sindicado
j
dos tipógrafos, no sentido de que a legislação
“criasse obstáculos intransponíveis” no cami­
nho das mulheres que buscassem em prego nas
tipografias .84 Segundo Jacques Alary , caso se
admitissem as mulheres com o tipógrafas elas se
tornariam homens, e, então, inevitavelmente, os

198
HUBERTINE A U C L E R T E A P O L ÍT IC A D A TE R C E IR A REPÚBLICA

homens se tomariam mulheres: “ É- inaceitável


que os homens tenham que viver com o zangaos
e ficar em casa para cuidar dos afazeres d o­
85 ALARY, 1883, p. 9: i l mésticos” .85 Viver com o um zangão era ser va ­
est in a d m issib le q u e lorizado apenas com o um reservatório de es­
1’ hom m e puissê vivre à
perma para a rainha, apenas com o um agente
l’état de frelon et res ter à
la maíson pour soigner \e de reprodução. Viver com o um zangão era ficar
ménage". reduzido à categoria de fêm ea humana, e, por­
tanto, degradar-se com o homem. Nenhum g o ­
verno republicano autêntico permitiria tal de­
gradação, dizia o tipógrafo, que sustentava ain­
da estar na lei a única possibilidade de garan­
tia contra tal degradação. Para Hubertine, esse
uso do poder do Estado era um abuso em favor
dos interesses egoístas dos homens.
Hubertine Auclert atacou publicamente a
associação entre o Estado e a masculinidade
dos cidadãos, mas a solidez dessa associação
ficou bem evidente na reação provocada con­
tra um de seus protestos, em 1908. Acom pa­
nhada pelas feministas Caroline Kauffmann e
M adeleine Pelletier, Hubertine Auclert entrou
num local de eleição, o 4.° Distrito Eleitoral, e
despejou no chão as cédulas de uma das ur­
nas, ao mesmo tem po em que denunciava a
“mentira” do “sufrágio unissexual” . Prestando
testemunho mais tarde, um dos agentes eleito­
rais relatou que, ao presenciar a cena, foi to­
86 "Les femmes à 1’assaut m ado por uma terrível sensação de imobilida­
des urnes", llEclair, 4 mai
de, ficando como que petrificado pela visão da
1908, citado por H A U S E ,
1987, p. XVII. (Agradeço Medusa .86

a Steven H au se por esta E impossível, depois de Freud, ler esse tes­


informação e por ter-me temunho sem pensar em castração. Se consi­
emprestado um exemplar
derarmos Freud o intérprete de uma certa lógi­
do diário de Auclert.)
ca cultural, sua análise pode iluminar o que
neste caso parece uma resposta exagerada (e
irracional) do agente eleitoral. Para Freud, a
87FR EU D , 1955. Referên­
cabeça decapitada da Medusa, esse símbolo
cias à castração: vol. 19,
p. 144, n. 3; vol. 22, p. monstruoso que se refletia no escudo de Atena,
24; "M edusa’s Head", vol. significava a castração .87
18, p. 273-274.

199
"OIT

D e c a p ita r —castrar. O t e r r o r cía M e d u s a é,


de c a s t r a ç ã o •, l i g a d o a o j a t o
p o rta n to , u m te r r o r
de ver alguma coisa. Numerosas a n á lis e s f i z e r a m
com que c o n h e c é s s e m o s a ocasião em que isso
pode acontecer: ocorre q u a n d o u m menino, que
a t é e n t ã o n ã o queria a c r e d it a r n a a m e a ç a d a c a s ­
t r a ç ã o , vê os genitais f e m i n i n o s , provavelmente
de um a m u lh e r a d u lta , e n v o l t o em p ê lo s
58 F R E U D ,1955, pubianos, na verdade os de sua m ã e .88
''M ed u s a ’ s H e ad ", vol.
18, p. 273.
Por extensão, Atena, que carrega a horrí­
vel cabeça em seu escudo, torna-se “uma mu­
lher inabordável, que repele qualquer desejo
sexual — pois ela oferece o horripilante órgão
sexual da m ãe” . Ela é “uma representação da
mulher com o um ser que assusta e repele por
89 FREUD, 1955, estar castrada ” .89 O reconhecimento do horror
"M e d u s a ’s H e a d ", vol.
da castração, todavia, é acompanhado de al­
18, p. 274.
gum conforto para o menino, que é a base de
sua conscientização da diferença sexual. Assim
escreve Freud:

A visão da cabeça da Medusa deixa o es­


pectador duro de terror, transforma-o em pe­
dra. Observem que temos aqui mais uma vez a
m e s m a origem do c o m p l e x o de castração e a
m e s m a transformação de afeto, pois tornar-se
r í g i d o significa ter uma ereção. Portanto, na ori­
g e m , ela reconforta o espectador: ele ainda está

)0 F R E U D , 19 55 ,
de posse de seu pênis, o que fica assegurado por
"M e d u s a ’s H e a d ", vol. s e u e n r ije c im e n t o .90
18, p. 273.
A Medusa, portanto, tem um efeito duplo:
é ao mesmo tempo uma ameaça para a força
sexual do homem e sua confirmação; ao incor­
91D evo muito à análise fei­ porar o horror daquilo que poderia ser, a ima­
ta por Neil Hertz (HERTZ, gem intensifica o desejo, a fim de preservar o
1 9 8 3 ). V. ta m b é m que é. 91
CROSBY, 1991, p. 41; e
N a versão do agente eleitoral, a violenta
FREUD, 1955,
"Fetishism", vol. 21, p. interrupção do exercício do direito ao voto (Hu-
152-157. bertine Auclert pisoteou as cédulas espalhadas

200
HUBERTHME AUCLERT E A POLÍT ACEIRA R E PU B LIC A

no chão) foi sentida como uma ameaça de cas­


tração. À,o pôr em duvidei a legitimidade de uma
das linhas divisórias que separavam os sexos,
considerou-se que Hubertine punha em dúvida
a própria diferença sexual. A o mesmo tempo,
porém, a ilegalidade de sua ação (ela foi presa
e multada por um juiz) tornava inócuo seu ques­
tionamento, reconfortando o agente eleitoral
com a idéia de que o voto (como o falo que o
voto encarnava) era um atributo somente dos
homens. Foi exatamente essa associação entre
o falo e o voto que levou um jornalista irado a
recusar a reivindicação que Hubertine Auclert
fazia pelo voto das mulheres nos seguintes ter­
mos: “Dame Hubertine está pedindo que nos
demitamos de nossa função de homens? Que
92 "Est-ce notre démission ela o diga claramente” .92
d ’hom m es q ue dam e Hubertine Auclert não aceitava que a as­
Hubertine nous dem an ­ sociação entre a masculinidade e o direito ao
de? Q u ’elle le dise fran-
voto tivesse base na divisão social do trabalho.
chement". Emile Villemot,
L e Gaulois, 1 juin 1877. Ela apontava para o fato de que nem todas as
divisões sociais seguiam as linhas do gênero:
“ser homem ou mulher é tão importante na dis­
93 "Etre homme ou femme tribuição das funções sociais quanto ser alto ou
n importe pas plus dans
baixo, de cabelos castanhos ou loiros, gordo ou
la d istrib u tio n d es
fonctions sociales, q u ’etre
m a g ro ” . 93 A d iv is ã o por sexo no ca m p o
grand ou petit, brun ou sociopolítico era uma im posição arbitrária,
blond, gras ou maigre". acrescentava ela, arquitetada para proteger o
"La sphère des femmes", m onopólio masculino sobre certos empregos e
La C itoyen ne, 19
sobre o p o d e r p o lítico, en fim , o qu e ele
fév.1882.
convencionou alvitrar “coisa de hom em ” . Para
Hubertine Auclert, tão logo as mulheres tives­
94"En devenant citoyenne, sem acesso à lei, iriam representar muito mais e
la F ra n ç a is e rem p lira melhor os interesses sociais do que os seus . Na
encore m ieux le devoir, verdade, só então é que o social atingirla a im­
puisque son rôle d ’édu-
portância que os políticos e os sociólogos a ele
catrice s’étendra de 1’unité
à la collectivité humaine
atribuíam. “A o tornar-se uma cidadã, a mulher
et q u e sa s o llic itu d e francesa preencherá suas funções com muito
maternelle embrassera la mais eficiência, pois seu papel de educadora se
n a tio n en tiè re".
estenderá a toda a comunidade humana, e sua
A U C LE R T , 1908a, p. 10.
solicitude maternal abraçará toda a nação” 94.

201
JOAN W. SCOTT'

A visão de •Hubertine Auclert suplantava


em termos de ação democrática os teóricos e
políticos cujo discurso invocava. Em sua ver­
são de política republicana, as mulheres (isto é,
o social) não eram as receptoras passivas da
assistência do Estado, mas agentes ativos, cuja
dinâmica estava simbolizada no voto. Mesmo
que os dois sexos tivessem naturezas fundamen­
95 N a q u ela época, os ter­ talmente diferentes (a “natureza rude do homem”
mos dos debates sobre o e o “ caráter suave da mulher” ), mesmo que se
sufrágio feminino podem ,
considere só as mulheres poderem gerar filhos,
também, ter sido influen­
ciados pelos debates acer­
o valor social das contribuições dos homens e
ca da cidadania dos imi­ das mulheres para a nação era equivalente, e
grantes, que começaram com o tal deveria ser reconhecido . 95 As mulhe­
em 1882 e se prolonga­ res garantiam a reprodução da população na
ram até 1889, q u a n d o
nação, ao passo em que os homens a defendi­
u m a lei foi fin alm ente
a p ro v a d a . A U C L E R T , am. N a verdade, se apenas fosse levado em
1908a, p. 60. V. B R U - conta o tempo despendido — algumas sema­
BAKER,1992. nas de treinamento militar contra nove meses
de gestação — “seria infinitamente mais difícil
para os homens serem mães do que para as
96 "11 serait in fin im en t mulheres serem soldados . ” 96 Hubertine Auclert
moins facile aux hommes
endossara proposta de uma lista de mulheres
d ’étre mères qu ’aux fem-
mes d ’étre soldats". A U ­
candidatas a cargos políticos, em 1885, segun­
C LE R T , 1908a, p .4 6 e do a qual deveria haver serviço militar obriga­
p.49. tório para os homens e serviço humanitário obri­
gatório para as mulheres: “Defesa do território
para os homens — cuidado de crianças, de ido­
97A UCLE R T, 1885, p. 42- sos e de doentes para as mulheres” .97 Tarefas
43. diferentes, mas funções igualmente vitais, ga­
rantiríam a igualdade política.
Só a igualdade política, afirmava Huberti­
ne Auclert, cumpriria a meta de justiça com que
a República tinha se comprometido. Depois que
essa meta fosse alcançada, a participação das
mulheres com o votantes e com o representantes
eleita s h a v e ria de transform ar o “ esta d o
minotauro” em um “estado maternal” , escreveu
98A U C LE R T , 1885, p. 41. ela em 1885.98 Nessa metáfora, o monstro pre­
dador semi-humano que exige tributos em ouro
e em sangue seria substituído por uma figura

202
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBLICA

humana inteira, interessada no- bem-estar de


todos: fortes e fracos; ricos e pobres; jovens e
velhos; doentes e sãos. Á humanização do Es­
tado correspondería a sua feminização também,
levaria à substituição do pai pela mãe. N a re­
presentação de Hubertine, o reprimido ressur­
ge: aquele que, no Estado, encarna o paciente
(isto é, o social), torna-se o agente e, deste modo,
fica perfeitamente restaurada a soberania po­
pular que o Estado paternalista republicano ten-
tava reprimir.
Foi, na verdade, a mobilização popular do
social que Hubertine Auclert usou para definir
sua campanha a favor do voto feminino. Em­
bora aconselhasse a tática feminista da persu­
asão, concluiu que não bastavam argumentos
racionais para derrotar o velho bordão mascu­
99AUCLERT, 1883, p. 132. lino: “Isto é coisa de hom em ” . 99 N a verdade,
era necessária uma força de oposição que con­
seguisse pressionar a opinião pública e colocá-
la a favor das mulheres: “Se os homens são for­
tes é porque se unem e se reúnem. Façamos
com o os hom ens [Faisons córrame les hom-
100 A U C L E R T , 1 889, p. mes]\” 100
126. “Faisons comme Ies hommes” foi um grito
de ação política, uma urgente convocação para
que as mulheres seguissem o exem plo dos soci­
alistas, cujas reivindicações pela representação
das classes operárias tinha, desde o final dos
anos 1880, aumentado o número das cadeiras
por eles assumidas na Câmara dos Deputados
e nos conselhos municipais por todo o país.
“Faisons comme les hommes” era o lema de
apoio à idéia de que os interesses coletivos (e
não a vontade individual) eram o motor da par­
ticipação política; era também o lema que in­
corporava o repúdio à sempre dominante divi­
são sexual e social do trabalho e ao papel do
Estado de perpetuá-la. A lei não era vista como
m eio de regulamentação dos fenômenos natu­
rais, mas co m o um instrumento do p o d er

203
masculino. O grito da guerra de.-Haber ilne
Auciert ora anunciava a intenção de comparti­
lhar, ora de conquistar esse poder exclusivo. Em
qualquer dos casos, o resultado seria o mesmo:
despojar a cidadania de sua capacidade de
conferir ou de confirmar a masculinidade, pri­
vando, assim, o Estado do papel de represen­
tante do p a l
Se as mulheres, de fato, podiam, na políti­
ca, fazer co m o os hom ens, de que form a
discernir, então, as diferenças entre os sexos?
C om o tornar aceitável o papel do Estado? A o
forçar seus contemporâneos a confrontar essas
perguntas, Hubertine revelava a relação sutil
entre diferença sexual e a política, o que aca­
bou por ser não só a origem da hostilidade que
sofria e mas ainda a fonte da força crítica de
seu feminismo.

Nos anais do feminismo francés, Hubertine


Auciert tem sido lembrada menos com o figura
pioneira do que com o militante sincera, que por
vezes causava situações constrangedoras. Sua
insistência na ação direta, que lhe valeu o ape­
lido de “a sufragista francesa” , não atraiu um
grande número de seguidores nem lhe conquis­
tou o renome de uma Olympe de Gouges ou de
m ilitantes d o n ív el de uma E m m elin e G.
Pankhurst, na Inglaterra, ou de uma Susan B.
Anthony, nos Estados Unidos da América. A
medida que o movimento a favor do voto fem i­
nino ganhava seguidores em massa, os esfor­
ços de Hubertine Auciert ficaram mais eclipsa­
dos do que glorificados. Sua reivindicação de
primeira hora pelo direito de voto foi conside­
rada prematura, e não de vanguarda, pelas fe­
ministas que abraçaram a causa na virada do
século. Elas enfatizavam a respeitabilidade com o
bandeira de luta, condenando explícitamente
Hubertine por seu “particularismo”— pura iro­
nia, pois ela sempre rejeitara semelhante atitu-

204
de. Amargamente, Hubertine ah amava essas
neófitas de oportunistas que, sempre “fingindo
ter inventado o movimento” , só endossavam a
luta pelo direito ao voto “depois de estudar,
101 C ita d o p o r H A U S E , demoradamente, a direção do vento ” . 101 Des­
1987, p. 206. p re za v a -lh e s a tim id ez e ressen tia-se da
usurpação do que ela considerava seu lugar de
direito na História.
De certa forma ela tinha razão. O funeral
de Hubertine Auciert, em 1914, atraiu grande
número de feministas, que ouviram fervorosa­
mente mais do que uma dúzia de orações fúne­
bres. Sua morte foi manchete de primeira pági­
na nos jornais da época; as reportagens elogia­
vam-lhe o “ardor” e a “perseverança” , extraor­
102HAUSE, 1987, p. 216- din ários . 102 Um obituário no La fem m e de
218. demain assegurava que Hubertine Auciert tinha
feito jus ao título de “mãe do voto das mulhe­
res, no dia em que este se tornar realidade em
103 "Nécrologie, Mme. H u ­ nosso país ” . 103 Mas, depois de conquistado o
be rtin e A u c iert". La direito ao voto, Hubertine raramente recebeu
Fem m e de Demain, mai
de suas sucessoras esse tipo de crédito, e, ain­
1914, artigo encontrado
nos Fonds Auciert, Bibli-
da que tivesse mais uma vez atraído atenção
othéque Marguerite D u - sobre si e sua luta, na década de 1970, quando
rand. as feministas começaram a compilar histórias
do movimento, sua primeira biografia só foi es­
crita, em 1987, por um homem, um historiador
americano, cujo relato faz justiça ao desejo de
Hubertine Auciert de ser lembrada por sua ex­
clusividade nas lutas feministas da época em
que viveu e por ter sido erroneamente interpre­
tada pelo pensamento retrógrado das correntes
moderadas e legalistas do movimento sufragista
francês que veio logo depois do seu. “Na socie­
dade Suffrage des Femmes, tentamos forçar o
desenvolvimento de idéias feministas com o jar­
din eiros que tentam inutilm ente fo rçar o
florescimento das plantas” , escreveu ela nas
notas pessoais que legou à posteridade, “ mas
[...] forçar não produz novas convicções. Ai, leva
tempo para que as flores desabrochem, assim

205
JOAN W. SCOTT

com o leva tempo mudar --^.nialités. Mas o tem­


po é longo, e a vida é brevM ’ 104
104H A U S E , 1987, p. 218.
Hubertine Auclert não alcançou, nem du­
rante sua vida nem depois, o tipo de reconheci­
mento histórico que procurava, o que não é um
fato de todo surpreendem' Por um lado, a am ­
plitude do movimento e ^ üversidade de posi­
ções estratégicas que surmmm de 1870 a 1914
davam oportunidade para que as manifestações
de militância feminista aparecessem em maior
número do que em épocas anteriores. Por outro
lado, as divisões do movimento e a incapacida­
de de qualquer das diversas facções de conse­
guir o direito ao voto não se coadunavam com
os princípios de uma historia teleológica. Todas
as facções podiam concordar que Olym pe de
Gouges, condenada à morte pelas convicções
que não podia expressar no fórum público, in­
corporava o destino irônico do feminismo; di­
vergiam, porém, sobre muitas outras coisas, in­
clusive sobre Jeanne Deroin ter concorrido ile­
galmente para um cargo público: até que ponto
se deve considerar tal fato um apropriado prece­
dente para as mulheres da Terceira República?
Hubertine Auclert freqüentemente corrigia
os relatos históricos sobre seu próprio papel,
bem com o o de outras feministas, escritos pela
jornalista Jane Misme (editora do La Française,
adepta tardia ao movimento pelo voto feminino
e fundadora, em 1909, da União Francesa pelo
Voto das Mulheres). Contudo, apesar de sua re­
ferência à lenta germinação de novas idéias, ela
não logrou produzir uma história linear e
evolutiva das lutas que as mulheres travaram
em defesa de seus direitos políticos. A o contrá­
rio, as lutas das mulheres no passado — desde
Joana de Navarra e Joana d’Arc — , ao demons­
trarem uma constante capacidade da mulher
para o engajamento político, revelaram também
que a Constituição da primeira Revolução, quan­
do igualou cidadania a masculinidade, acabou

206
HUBERTINE AUCLERT EA POLÍTICA DA TERCEIRA REPÚBUCA

por introduzir distorções numa organização-so­


cial anteriormente mais equânime. As descri­
ções do presente eram uma defesa de suas an­
tigas ações combativas, vistas não com o resul­
tado de uma evolução histórica inevitável e cu­
mulativa, mas como resultado da lógica e dos
propósitos morais de suas próprias opiniões.
Sob essa ótica, o feminismo implicava a identi­
ficação e a eliminação de quaisquer contradi­
ções da teoria e da prática do republicanismo
que acarretassem a injusta (e injustificável) su­
bordinação das mulheres. Sua história não evo­
cava senão os repetidos esforços para resolver
uma persistente contradição, e não o progresso
da causa feminista baseado em sabedoria acu­
mulada e em estratégias cada vez mais eficazes.
O desejo que Hubertine Auclert acalenta­
va de ser identificada com o a mulher que abriu
um novo capítulo na história da evolução do
feminismo entrava em choque com a habilida­
de que demonstrava ao escrever essa mesma
história. Segundo ela, o voto seria um instru­
mento de progresso social, se aplicado de for­
ma universal: O voto é uma máquina de pro­
gresso [...] A semelhança de muitas outras in­
venções modernas, que só se tornaram úteis
com o auxílio de certas articulações, o sufrágio
necessita de todas as energias masculinas e fe­
mininas de uma nação para tornar-se um ins­
trumento de evolução capaz de transformar a
105 "L e su ffrag e est une
machine à progrès [...] D e ordem social.105
m êm e que beaucoup Todavia, Hubertine Auclert não concebia
d ’inventions m odernes, o feminismo em termos de evolução, mas com o
qui ne deviennent utilisa-
uma intervenção estratégica motivada por um
bies q u ’á l’aide de certai-
nes c o m b in a is o n s , le
fim moral; seus seguidores eram mais ou m e­
suffrage a besoin de toutes nos capazes de descobrir contradições, numa
les énergies féminines et determinada época, sob qualquer forma que se
masculines de la nation
apresentassem.
pour devenir l’instrument
O desejo de Hubertine Auclert quanto à
d ’évolution ca p ab le de
transformer l’état social". definição do seu papel na história do feminis­
A U C LE R T , 1908a, p. 5. mo não era senão uma defesa contra a visão

207
t") A.r\¡ V/ .qrOTT'

nisionograiicá de su3. epocci, que se o c u ^.a ^ a


de relatos vários e monumentais, sob as mais
diferentes perspectivas políticas, mas poucos
dentre eles davam qualquer crédito positivo às
mulheres. N a verdade, no mais das vezes situa­
vam as mulheres inteiramente fora da História,
relegando-as aos domínios do intemporal, do
natural, do transcendental A o reivindicar a par­
ticipação política das mulheres, Hubertine tam­
bém defendia s e u papel na História. Seguia-se,
portanto, que o valor, se não o sucesso, de suas
ações seria medido pelo lugar específico, distin­
to e único que por certo alcançaria nas páginas
da História.
Alcançar tal lugar de distinção na Histó­
ria, porém, só é necessário se a própria militân­
cia for concebida de maneira a-histórica, ou
seja, com o um atributo da vontade individual e
não com o efeito de uma atribuição discursiva,
isto é, da designação de características especí­
ficas ligadas a funções ou papéis sociais espe­
ciais (tais com o “mulher” , “m ãe” , “feminista” ,
“pai” , “trabalhador” , “cidadão” ). O relato his­
tórico de Hubertine Auclert sobre as origens do
feminismo aborda exatamente essas atribuições
discursivas (se bem que em termos diferentes).
Antes de 1791, afirmava ela, homens e mulhe­
res não se diferençavam tanto com o membros
da sociedade. Foi o tratamento injusto dado às
mulheres (a exclusão da vida política) que re­
sultou na sua identidade coletiva diferenciada.
As feministas, portanto, entraram na História
106 A U C LE R T , 1908a, es­ com o pessoas excluídas da política . 106 Sua mi­
pecialmente p. 15-19,50- litância era uma contradição dentro do discur­
52, e 65-195.
so dos direitos universais do homem.
A consciência pessoal de Hubertine Auclert
quanto a essa contradição e a sua dificuldade
em conceber o feminismo teleologicamente fa­
zem dela o sujeito ideal para o estudo da histó­
ria do feminismo em seus diferentes contextos
discursivos. E isto que dá especificam ente a

208
HUBERTINE AUCLERT E A POLÍTICA DA TEFL

Hubertine sua posição os destaque na Histó­


ria i ela nao pode ser visxa como um perfeito
exemplo de realizações ou de frustrações de
um a feminista, mas como um paradigm a do
dilema persistente do feminismo e das contra­
dições típicas que esse movimento vivia na Ter­
ceira República, Ler Hubertine sob esse ângulo
em nada lhe tira a seriedade ou a relevância,
mas tampouco lhe confere o status de feminista
excepcional a que ela aspirava. Ma verdade, essa
leitura permite (e isso pode ser bem mais impor­
tante) que recoloquemos Hubertine Auclert, em
particular, e o feminismo, ,-:m geral, nítida e inte­
gralmente, no âmago das grandes histórias polí­
ticas, as quais os têm habitualmente excluído.
O Individualismo Radical
de Madeleine Pelletier

adeleine Pelletier costumava a apresen-


A tar-se a si própria como urna individu­
alista em meio às companheiras mili­
tantes do feminismo das primeiras décadas do
século XX. Ela, que nascera em 1874 e só viria
a morrer as vésperas da 2a Guerra Mundial, em
1939, pertencia, portanto, a uma geração mais
nova do que a de Hubertine Auclert. Este fato,
porém, não a impediu de integrar com Huberti­
ne Auclert as fileiras das que, de diversas m a­
neiras, lutavam pelo direito de votar: escreven­
do artigos feministas e panfletos; publicando um
jornal, desde 1907 (intermitentemente, até 1914,
retomando-o, por pouco tempo mais, em 1919);
invadindo locais de votação em 1908; concor­
rendo a cargo político pelo Partido Socialista
em 1910; prom ovendo agitações em favor da
igualdade das mulheres junto aos maçons, aos
socialistas, aos monarquistas e, de 1920 a 1925,
aos comunistas. Dedicou seus últimos anos de
vida à produção literária — peças teatrais e ro­
mances.
Curiosamente, ao contrário das outras fe­
ministas, Madeleine Pelletier não pugnava p e­
los direitos políticos das mulheres como m eio
de assegurar-lhes algum presumível interesse na
esfera pública, nem como um m odo de obte­
rem respeito social, ou o reconhecimento de suas

210
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE IÍADELEINE PELLETIER

diferenças. Para ela, o objetivo associado à


questão da identidade da mulher era completa^
mente negativo. Ela buscava o- direito de “não
1“N ’etre fem m e comme la
société suppose"; Docto-
ser mulher do jeito que a sociedade espera A 1A
resse Madeleine Pelletier, partir dessa perspectiva, os direitos formais im­
"M ém o ires d ’une fém i- plicavam acesso à liberdade e ao poder, ambos
niste" (inéditas), dossier pré-requ isitos p s ic o ló g ic o s para qu alqu er
" M a d e le in e P elletier",
enunciação de individualidade. “Dê a uma mu­
Fonds Marie-Louise B ou-
glé, Bibiiotéque Histori- lher, mesmo a de condição inferior o direito ao
que de la Viile de Paris, p. voto, e ela vai deixar de pensar em si mesma
1 . exclusivamente como uma fêmea e passará a
2PELLETIER, 1908, p. 48. se sentir com o um indivíduo . ” 2 Direitos, na opi­
nião de Madeleine Pelletier, não significavam o
reconhecimento de um sujeito pré-existente; di­
reitos eram o m eio pelo qual um sujeito autô­
nom o se podia constituir.
Embora Madeleine Pelletier invocasse a lin­
guagem da igualdade, desprezava a uniformi­
dade niveladora que isso poderia implicar. Em
sua opinião, o socialismo estava relacionado a
tratamento justo, não a nivelamento. Acredita­
va no governo que tivesse base na classe inte­
lectual e na superioridade da inteligência sobre
a massa, por definição, moldável. O fato de a
inteligência não conhecer limites de classe ou
de gênero justificaria, a seu ver, que toda pes­
soa inteligente pudesse ter acesso a posições de
influência e liderança. Tal acesso, porém , só
poderia ser garantido se os direitos políticos
fossem genuinam ente universais. A reivindi­
cação de direitos políticos universais não im­
plicaria cidadania hom ogênea. N a verdade,
essa universalidade oferecería a cada pessoa
a possibilidade de se ver com o um indivíduo
independente e auto-realizável, inteiramente
auto-suficiente, d e sob riga d o de quaisquer
com prom issos.
O feminismo de Madeleine Pelletier não
pode ser lido, com o poderia o de Hubertine
Auclert, dentro do discurso do “social” , que tor­
nava as mulheres, ao mesmo tempo, agentes e

211
3 Rara esta formulação, objetos, da reforma;'5 na verdade, seu feminis­
RILE'/, 1988, p. 51. m o hauria forças das críticas (de direita oti de
esquerda) do racionalismo, da democracia de
massas, do reformismo parlamentarista. Era um
feminismo radicalmente individualista. A meta
de Madeleine Pelletier era resguardar não so os
direitos individuais de qualquer subordinação
a sexo, mas ainda os próprios indivíduos de
vmculação com categorías de identidade social
que coibissem sua aptidão para criar, deixan-
do-os, desta forma, livres para moldar o pró­
prio destino. “O único dever da sociedade é não
interferir na atividade de ninguém; que cada
pessoa se oriente na vida a seu bel-prazer, com
4 "L e seul d e v o ir de la todos os riscos e perigos . ” 4
société est de n’entraver O feminismo de Madeleine Pelletier con­
personne dans l’exercice
funde os argumentos daqueles que pretendem
d e son activité, q u e
chacun s’oriente dans la
que um preexistente e manifesto interesse grupai
vie comme il lui plaít et à sustenta as reivindicações das mulheres por di­
ses risques et périls". P E ­ reitos políticos e que a política das mulheres não
LLETIER, 1908, p. 41. é mais que um reflexo de sua experiencia cole­
tiva. Para Madeleine Pelletier era exatamente o
contrário: o feminismo não era um m eio de
melhorar o status social da mulher, mas um meio
de dissolver completamente a categoria. Seu
exem plo endossa a tese de que tem havido his­
5A fra se é de T a n ia toricamente feminismos “sem mulheres” .5 Para
Modleski, que não chega ela, o feminismo oferecia não apenas uma saí­
a entender as várias ten­
da para a passividade humilhante da vida da
tativas dos que ela critica
maioria das mulheres, mas também uma alter­
por historicizar a catego­
ria das "mulheres", visto nativa para a afirmação da sua identidade de
que, na verdade, histori- “mulher” . Somente de posse dos seus direitos
cizaram "gén ero", num políticos, a identidade da mulher podería se
esforço de retirar d a dife­
transformar: “Ela será um individuo antes de
rença sexual seu caráter
essencial excessivo. V. ser um sexo . ” 6
M O D LESK I, 1991.
Madeleine Pelletier foi muito cedo e duran­
6 "Elle sera um individu te a maior parte de sua vida adulta afiliada ao
avant d ’étre um sexe". PE- socialismo. Aderiu à então recentemente funda­
LLETIER, 1906, p. 44. da Seção Francesa da Internacional Operária
(SFIO: Section Française de Y Internationale

212
O INDIVIDUALISMO -RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

Duvrière, a fusão de vários partido:, socialistas


e federações autônomas), em 1905; juntou-se
aos Comunistas, em 1920, quando o partido
socialista se dividiu; e filiou-se ao Partido da
Unidade Proletária, em 1925, quando abando­
nou o Partido Comunista Francês. Nunca foi,
porém, grande entusiasta das teorias políticas e
econômicas de Marx (mesmo depois de ter sido
levada a ler O capital por seu professor, o antro­
pólogo Charles Letoumeau), e embora fosse sim­
pática às idéias do planejamento econôm ico
centralizado e da educação provida pelo Esta­
do (incluindo a pré-escola), desconfiava de tudo
que subordinasse o indivíduo à regulamentação
social. Deixou claro que só na doutrina de Ro-
bespierre encontrava a melhor expressão de
seus interesses em termos de justiça social. Das
suas. metas constavam “supressão da herança;
instrução gratuita em todos os níveis; assistên­
cia generosa a crianças, idosos e enfermos;
extinção das diferenças de classe; eliminação
do culto ao dinheiro. Inteligência e trabalho
7 " S u p p r e s s io n d e com o meios exclusivos de sucesso. ” 7
l’h é rita g e , instruction Filosoficamente, Madeleine Pelletier pode
gratuite à tous les degrés,
ser melhor descrita como uma liberal. Era leito­
la rg e assista n c e a u x
ra entusiasta de John Stuart Mili e seguia os
en fa n ts, v ie illa rd s et
malades, plus de distinc- ensinamentos de Henri Bergson com interesse.
tion s d e classe, plu s Politicamente, atraía-a o anarquismo, não pelo
d ’adoration de l’argent. compromisso de destruir o Estado, mas pelo en­
llintelligence et le travail,
dosso ao individualismo. O estilo agressivamente
seuls m oyens de parve-
nir". P E L L E TIE R , "M é- masculinista dos anarquistas, porém, levou-a a
moires...", p. 30. abandoná-los. De maneira mais geral, o femi­
nismo de Pelletier se articulava dentro do dis­
8 Piara porm enores de sua
curso do individualismo, cujas características
biografia, v. G O R D O N , sofreram importantes mudanças desde as suas
1990; S O W E R W IN E e primeiras formulações iluministas. 8 '
M A IG N IN , 1992; S O ­ N o início do século XX, o individualismo
W ERW INE, 1980, 1987,
1988; e BARD, 1992. V.,
não era mais tão explícitamente democrático
também, BOXER, 1981; com o no fim do século XVIII. Sempre definido
B O X E R e Q U A TA E R T, dentro de uma relação política de contestação,
1978. o “ indivíduo” no século XVIII tinha com o ini-

213
J O A Í i 7-T'7 S C O T T '

migo a identidade social íeudalista, cujo cará­


ter rígido e cujos privilégios legais ja vinham
desde muito sendo mantidos. O individuo se
opunha à multidão, produto da dem ocracia
igualitária das massas, no final do século XIX.
Contudo, entre a noção de indivíduo do século
X V III e a d o sécu lo X X , m a n tiv e ra m -s e
inalterados alguns traços comuns: o supremo
inimigo do indivíduo era o Estado; a liberdade
do indivíduo, em bora legalm ente protegida,
era, na prática, exercida sem sujeição à lei; e,
por fim, a figura do indivíduo era exclusiva e
9 Sobre o individualismo, inquestionavelmente masculina.9
m as sem seus c o m p o ­ O indivíduo do início do século X X se dis­
n e n tes de g é n e ro , v.
tinguía da multidão comum pela superioridade
L U K E S , 1973. V., tam ­
bém , KATEB, 1992.
de seu intelecto. N ão era um conformista, mas
um espírito criativo, cuja mente controlava o
corpo, e, portanto, as ações. Essa distinção
mente e corpo não se traduzia necessariamente
na oposição racional versus inconsciente. Em­
bora o individualismo no período tenha sido sem
dúvida uma faceta da “descoberta” do incons­
ciente pelos psicólogos, ele não constituía uma
simples defesa do sujeito racional. N a verdade,
enquanto alguns teóricos do individualism o
exaltavam o inconsciente com o uma “força v i­
tal” , outros o vilipendiavam, considerando-o um
fator patológico e, até mesmo, tem endo suas
manifestações políticas, citando com o exemplos
perigosos o Caso Boulanger, de 1886, o Caso
Dreyfus, de 1894 a 1906, e o crescente apelo
10Sobre estas questões, v. do nacionalismo de esquerda . 10
G R O G IN , 1 9 88 ; O individualismo do início do século X X
STERNHELL, 1983; e
congregava seus apóstolos em qualquer linha
W E B E R , 1962.
política. Desde sindicalistas revolucionários,
conservadores, com o o m édico e so ciólogo
Gustave Le Bon (que popularizou sua Psicolo­
gia das massas, em 1895), até republicanos de
nome, com o o filósofo Henri Bergson, ambos,
personalidades que ilustram muito bem a com ­
plexidade e as contradições do discurso do in-

214
O INDIVIDUALISMO RADICAL D E MADELEÍNE PELLETIER

di vid ualismo. Apesar da diversidade de seus


programas, os proponentes do individualismo
buscavam um a'alternativa para o que lhes pa­
recia uma opressiva hom ogeneidade social ali­
mentada pelas instituições políticas e pela for­
11 A "descoberta" d o in­
mação cultural burguesas. Eles rejeitavam a in­
consciente na França é
sistência dos solidaristas quanto a divisões
anterior à trad u ção de
Freud (que ocorreu em interdependentes de trabalho, às quais contra­
1922) e diferia notavel­ punham a absoluta autonomia das pessoas o
mente daquilo que hoje que, segundo eles, implicava, ao mesmo tem­
se considera, retrospecti­
po, um eu disciplinado pela razão e um eu au­
vamente, com o sendo a
corrente dominante nos têntico que existia antes de ter significado. O
p r im o r d io s d o p e n s a ­ papel da linguagem era crucial para estes teóri­
mento psicanalítico. O s cos do individualismo, que atacavam tudo o
psicólogos franceses dos
que, partindo de fora do eu, impusesse signifi­
anos 1880 e 1890 não
cado ao eu. H. Bergson, por exemplo, ensinava
consideravam que o sexo
ou a sexualidade fossem que nenhuma figura simbólica podería adequa­
fatores p rep on d eran tes damente significar a realidade da vida e se opu­
na estrutura d a vida psí­ nha ao uso de categorias que reduzissem indi­
quica e nem tam pouco
víduos a grupos. Para os sindicalistas revoluci­
faziam do inconsciente o
ponto de partida para a
on á rios radicais e para os co n serva d ores
análise d a subjetividade. irredutíveis, com o L e Bon, “ cidadão” não pas­
Pelo contrário, na m aio­ sava de uma categoria. Um cidadão era uma
ria das vezes tom avam o
peça de reposição da democracia de massas,
inconsciente com o sendo
essa máquina m ovida pela paixão. Sua antíte­
um dos ingredientes d a
psique: a causa dos com ­ se era o indivíduo, por expressar a própria sin­
portamentos patológicos, gularidade mental e/ou espiritual. Mas em que
ou o "impulso vital" intui­ consistia tal expressão? Será que a linguagem
tivo proposto po r Henri
de um indivíduo era uma emanação direta de
Bergson, ou a "causa in­
visível" ou a "força laten­
seu ser? A razão controlava essa expressão? E
te" com que Gustave Le o que dizer do fato de que a linguagem era ne­
B on julgava poder expli­ cessariamente partilhada, de origem não inter­
car os fenôm enos coleti­
na, mas social?
vos, tais com o o com por­
A questão do inconsciente — tão premen­
tam ento das m assas, a
“alm a d a n ação ” , ou o te para psicólogos profissionais e para o públi­
“g ê n io da raça” . V. co geral na virada do século — complicava qual­
R O U D IN E S C O , 1986; quer resposta . 11 A semelhança do que, no sécu­
B R A ID O T T I, 1991; e
lo XVIII, ocorreu com o conceito de imagina­
E L L E N B E R G E R , 1970.
V., t a m b é m , GOLDS- ção, no início do século XX, o inconsciente era
TEIN, 1987. uma força que definia a razão (porque era sua
antítese), mas, ao m esmo tempo, am eaçava

215
comprometer-lhe o funcionamento. O inconsci­
ente aparecia na linguagem ou como linguagem,
diminuindo a possibilidade de uma expressão
pura e racional pelo individuo. Indofendente­
m ente de com o os psicólogos e filósofos o avali­
avam — quer como uma influência nociva a
controlar, não importando o custo, quer com o
um a força positiva para liberar o individuo — ,
todos concordavam que o inconsciente era um
fenóm eno de difícil apreensão.
N a opinião de Le Bon, o inconsciente era
perigoso. Para ele, “os fenôm enos sociais visí­
veis parecem resultar de uma operação imen­
sa e inconsciente, que de m odo geral ultrapas­
sa o alcance de nossa análise [...] O papel que
o inconsciente desempenha em todos os nos­
sos atos é imenso, e o da razão muito pequ e­
no. O inconsciente atua com o uma força ain­
12LE B O N , 1960, p. 6-7. d a d e s c o n h e c id a ” . 12 E, ainda, o im p a cto
destrutivo do inconsciente é com parável a “m i­
cróbios que aceleram a decom posição de cor­
13A analogia do microbio pos mortos ou enfraquecidos.” 13 O filósofo bel­
é freqüentemente usada ga G eo rg es Dwelshauvers, discípulo de H.
por L e Bon. V. L E B O N ,
Bergson, não sentia tanta ansiedade em rela­
1960, p. 18, 28, 126.
ção ao inconsciente, mas revelava a mesma
convicção expressa por Le Bon quanto à difi­
culdade em apreendê-lo. G. Dwelshauvers des­
crevia “ certos conjuntos de condições que d e­
terminam atos conscientes sem serem neces­
14 "Certains ensembles de sariamente conhecidos pela consciência . ” 14 O
conditions déterm inant próprio H. Bergson era arrebatado pelas notá­
les acts de la conscience
veis possibilidades que o inconsciente apresen­
sans étre nécéssairement
connus de c e lle -c i". tava para a reflexão sobre o funcionamento da
BERGSON, 1909, p. mente. Ele descrevia o inconsciente com o “tudo
807. S o b re B ergson v. aquilo que pode aparecer em estado conscien­
D E LE U ZE , 1991, e JAY,
te depois que aquela lente de aumento [uma
1993.
analogia com o m icroscópio] chamada aten­
ção intervém, contanto que o significado da
palavra atenção seja ampliado e passemos a
entendê-la com o uma atenção de tal form a
alargada e intensificada que ninguém a possui

216
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE-M ADELEIN E PELLETíER

15 "Tout ce qui p eu t Integralmente ” 15 Para esse? teóricos, o incons­


apparaítre claras un état
ciente com eçava em algum ponto ou anterior
conscienl, quand intervi-
ent cet instrument grossis- à cognição ou onde ela falhava; era o invisí­
santqu’ on appelle l’atten- vel, aquilo que escapa à análise, aquilo para o
tio n , p o u rv u q u ’on qual não existe nom e adequado.
étende beaucoup le sens Para Le Bon, esse era o ponto no qual a
de ce dernier m ot et q u ’il
multidão sobrepujava o indivíduo. “A partir do
s’ agisse d ’une attention
élargie, intensifiée, q u ’au- m omento em que integram uma multidão, o ho­
cun de nous ne posséde mem instruído e o ignorante são igualmente in­
ja m a is tou t en tié re". capazes de observação.” 16 A multidão era “es­
BERGSON, 1909, p. 809.
crava dos impulsos que recebia” . N a multidão,
os indivíduos eram movidos por palavras que
evocavam imagens “ muito independentes de
16LE BO N, 1960, p. 42. seus verdadeiros significados” , e estes eram,
além do mais, vagos, instáveis e transitórios. Seu
efeito era de teor alucinatório, influente: “Sinte­
tizavam não só as mais diversas aspirações in­
conscientes , mas também a esperança de que
17LE BON, 1960, p. 102- viessem a se transformar em realidade” .17
103. Os historiadores têm comentado as carac­
terísticas que Le Bon atribuía à multidão, des­
18 V , por exem plo, N Y E ,
1975; e BA R R O W S , crevendo-a com o “histérica” , “impulsiva” , “ cré­
1 9 81 . V., ta m b é m , dula” , “sugestionável” , mas nunca as relacio­
H ARRIS, 1989, e N YE , naram com a atenção que o sociólogo dispen­
1984.
sava à linguagem . 18 Entretanto, era exatamente
19 Para Le Bon, a lingua­ o problema do significado que estava no âma­
gem era um fen óm en o
go da preocupação de Le Bon. Segundo ele, a
tão sutil e volátil que "a
tradução absoluta de urna linguagem era o resultado do gênio inconscien­
língua, especialmente de te das multidões, “e, portanto, não havia com o
uma língua morta, é im­ estabilizá-la ou recuperá-la de um m odo autên­
possível [....] N ó s apenas
tico e fixo . ” 19 N a verdade, o indivíduo que se
substituímos as imagens
e idéias, co lo cadas em
dissociasse da multidão, que escapasse de seu
nossa inteligência pela poder, era quem conhecia a diferença entre pa­
vida moderna, por noções lavras e coisas e, por conseguinte, lograva ma­
e imagens totalmente di­ nipular os significados em proveito próprio:
ferentes, produzidas na
“A arte dos que governam [...] consiste acima
mente das raças pela vida
antiga, a qual era subm e­ de tudo na ciência de saber usar palavras” [....]
tida a condições de exis­ “Uma das funções mais importantes do esta­
tência sem a m enor ana­ dista é [...] batizar com nomes mais ao gosto
logia com as nossas", le
popular ou, pelo menos, inócuos as coisas que
bon , 1960, p.6 e p. 104.
a multidão não consegue suportar com seus no-

217
, ■JOAN W. 3COTT

•mes antigos” , Desta maneira, apontava Le bon,


o Consulado e o Império trouxeram de volta ins­
tituições do passado com diferentes vestimentas,
criando algo que parecia novo, que exibia uma
aparência de transformação, “sem, obviam en-
20LE BON, 1960, p. 106- te, interferir nas coisas em si. ” 20 Fazia parte de
107. sua habilidade intelectual resistir ao poder ilu­
sório das p a lav ra s e às e m o ç õ e s p o r elas
evocadas, posicionar-se fora da linguagem, que
separava os indivíduos das multidões: “o indi­
víduo isolado tem a capacidade de dominar suas
ações reflexas, enquanto a multidão é privada
21LE BO N, 1960, p. 36- de tal capacidade”21.
37. Essa aptidão separava não só os indivídu­
os das multidões, mas também os homens das
mulheres. “A simplicidade e o exagero dos sen­
timentos das multidões resultam no fato de que
estas não conhecem nem a dúvida, nem a in­
certeza. A semelhança das mulheres, a multi­
dão vai, num só momento, de um extremo a
22LE BON, 1960, p. 50. outro.”22
A o referir-se a um gênero literal e enraiza­
do na natureza, Le Bon em suas observações
sobre a multidão escolheu palavras cujo senti­
do, para ele, não dava margem a dúvidas. Des­
ta form a evitou o que se poderia chamar de
contradição implícita de seu raciocínio: se a lin­
guagem podia exprimir o inconsciente (nacio­
nal ou racial), de que modo, então, poderia um
indivíduo que se posicionasse fora da lingua­
gem, que refletisse sobre ela e resistisse contra a
sua força, obter controle total de seu discurso?
Le Bon adotou uma posição que lhe não era
própria (era uma das que compunham o dis­
curso da época sobre linguagem e inconscien­
te), consoante a qual havia uma distinção entre
diferentes tipos de palavras, entre representa­
ção e realidade, vistas, no caso, com o antitéticas.
A o contrário das palavras hipnóticas proferidas
por N apoleão ou pelo general Boulanger, “mas­
culino” e “feminino” , “hom em ” e “mulher” tra­

218
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

duziam fatos tío físico e do caráter de cada com ­


ponente dessas dicotomías. Le Bon, ao fazer a
invocação clara ao genero, assegurava a vali­
dade (o status transparente, e, portanto, pré-
lingüístico) do vocabulário de sua “ ciencia da
psicologia das multidões” . “As multidões em toda
parte se determinam por suas características
femininas, mas as multidões latinas são as mais
femininas de todas” não foi uma assertiva m e­
diada pela linguagem, mas a confirmação de
um fato científico que o diferençava — a ele,
Le Bon, um intelecto consciente e instruido—
23 L E B O N , 1960, p. 39. da multidão.23
S obre a misoginia da vi­
N os escritos de Le Bon, “mulheres” era
rad a do sécu lo , v.
urna m eton im ia de m ultidão. A “n o to ria ”
M A U G U E , 1987.
irracionalidade, a “conhecida” susceptibilida­
de a desordens afetivas das mulheres (note-se a
propensão para a histeria que lhes era própria
e a facilidade com que eram hipnotizadas) não
o levaram apenas a justificar a exclusão das
mulheres de todo júri, usando o fato de as mu­
lheres não votarem, tentava, ainda, reforçar a
tese de que o sufrágio universal não tinha qual­
quer valor. Achava que a cidadania tinha se
tornado um fenôm eno de massa em conseqü-
¿ncia da universalidade do voto masculino, que
deu força numérica a “elementos inferiores” e
24L E B O N , 1960, p. 185. voz a “necessidades inconscientes da raça ” . 24
Le Bon, por motivos práticos, não defendia a
abolição, nem mesmo a restrição do direito de
voto, visto que isso não alteraria a natureza ine­
rentemente coletiva dos governos e dos proces­
sos eleitorais. De qualquer forma, julgava que o
“dogm a” do sufrágio universal era tão forte que
só o tem po poderia destruí-lo: não tinha fé na
cidadania. C om efeito, “as massas eleitorais”
eram com o mulheres, não possuíam individua­
lidade nem independência, e, ademais, eram
impotentes para articular e pôr em prática um
objetivo racional. A representação democráti­
ca, portanto, era politicam ente equivocada:

219
JO.ATI W. 3COTT

minava o podar individual, para cuja proteção


-' ’ os tempos pretéritos engendraram a própria ci­
dadania. Em meio à massa efervescente, ho­
m ogênea e “feminina” , o hom em perdia não
apenas a capacidade de raciocinar mas até o
próprio eu, o que equivalia à perda de sua mas­
culinidade.
A referência literal a gênero, com o se pôde
ver, serviu para caracterizar a argumentação de
Le Bon com o ciência, e na época a ciência ser­
via para invocar urna “realidade” externa à lin­
guagem. Esse fundamento científico que ele atri­
buía a gênero chocava-se, entretanto, com o
evidente uso figurado, metafórico, que fazia des­
ta expressão. A multidão era feminina, com o
também o eram a linguagem e o inconsciente.
Masculino era o indivíduo, a “realidade” cons­
ciente. Para Le Bon, o poder de manipular as
palavras e não ser manipulado por elas — manter
a própria individualidade, ser dono do próprio
eu — era uma conquista de inteligências supe­
riores. A inteligência representava o triunfo so­
bre o poder enganador das palavras, figurativa­
mente considerado feminino. Era precisamen­
te, porém, essa referência metafórica e não lite­
ral que abria a possibilidade para as mulheres
se colocarem na posição masculina e se torna­
rem indivíduos.
Embora abordasse o mesmo tema por uma
perspectiva diferente, Henri Bergson se insere
dentro do mesmo campo discursivo de Le Bon.
H. Bergson estava entre os mais populares filó­
sofos de sua época, graças a isto, as conferên­
cias que proferiu no Collège de France, de 1903
a 1097, atraíam grande número de “ estudan­
tes, clérigos, intelectuais e damas da socieda-
25G R O G IN , 1 9 8 8 ,p. 175- d e ” .25 Posteriormente, seus livros foram vendi-
176- dos em quantidade e lhe deram reputação in­
ternacional. A semelhança de Le Bon, Bergson
era um apóstolo do individualismo, ao contrá­
rio dele, contudo, via nos processos inconscien-

220
O INDI vIDÜALlSMO RADICAL DE MAD e LEINE PuLLETlER

tes e intuitivos a chave da individualidade. Tais


processos ou sentimentos perdiam sua caracte­
rística inconfu ndível quando recebiam um
nome, pois as palavras só conseguiam dar uma
interpretação imprecisa e, às vezes, errônea — •
pela generalização — do que era a autêntica
intimidade do ser. C om o Le Bon, Bergson pro­
punha uma “crítica da significação5’ por inter­
m édio da qual enfatizava os efeitos controver­
sos e até desvirtuadores das categorias simbóli­
cas. A o contrário de Le Bon, porém, Bergson
considerava a língua com o produto da razão,
instrumento de análise cognitiva. A língua era
uma tentativa racional de nomear impulsos em o­
cionais cuja existência temporal e evolutiva con­
finava-se num espaço fixo e categorial, que obs­
curecía a referência sensível única de todo e
q u a lq u er in d iv íd u o ■— a re a lid a d e . A
reflexividade — para Le Bon , a capacidade
a u to d e fin id o ra do in d ivíd u o — era, para
Bergson, um exercício (coletivo) destrutivo que
substituía a “coisa real” por representações não
26 S o b re este assunto, v. m ais qu e aproxim adas. Essa “ coisa re a l”
G R O G IN , 1988, p.30. H á correspondia a um processo em contínuo m o­
um aspecto nietzscheano vimento, pré-consciente, pré-lingüístico, em cuja
em tu d o isto: “M in h a
em oção residia a sua força ativa (analogia com
idéia é, como vocês veem,
q u e a consciencia n ão a música, que, sem palavras, expressa e des­
pertence realm en te ao perta profundos sentimentos). O indivíduo ver­
hom em como individuo, dadeiramente livre estava em constante estado
mas, na v erd a d e a sua
de “devir” (vir a ser); a reflexividade, bem como
natureza social e gregária
[...] Fundamentalmente,
a aceitação mecânica de “idéias prontas” e de
todas as nossas ações são “hábitos adquiridos” (impostos Pela sociedade
incomparavelmente pes­ a pretexto da ordem), limitavam a liberdade to­
soais, únicas, e infinita­ tal e impediam a manifestação plena do eu .26
mente individuais; não há
Categorias e hábitos eram transmitidos pela lín­
d ú v id a q u a n to a isso.
Logo, porém, que as tra­ gua, um intento coletivo para subjugar a indivi­
duzimos para a consciên­ dualidade. As categorias e os hábitos, porém,
cia, elas não p a r e c e m nada faziam senão sufocar o impulso criativo,
mais s ê - l o " . F ried ric h
o “é/an vital” que era a expressão da essência
NIE T ZS C H E , A gaia ciên­
cia, citad o in K A T E B ,
do ser humano. O indivíduo só se realizava ple­
1992, p.235. namente quando transcendia a língua e simples-

221
JUAN rj- : .• -

m ente existia. D epreen dia-se de toda essa


iucubração filosófica que nenhum símbolo, nenhu­
ma categoria lograva captar adequadamente a
realidade em constante evolução do indivíduo:
- ■ . ' Veremos que as contradições inerentes aos pro­
blemas de causalidade, da liberdade, e, numa
palavra, da personalidade não têm outra origem;
para resolvê-las basta substituir as representações
27B E R G S O N , 1888, p. 92. simbólicas do eu pelo eu real, pelo eu concreto 27
Logicamente, o gênero pode ser conside­
rado com o uma dessas representações simbóli­
cas, com o “hábito adquirido” , que obscurecem
a percepção do “eu real” de qualquer indiví­
duo. Henri Bergson, porém, não estendia sua
crítica à questão do gênero. Isto se tornou bem
explícito, quando se defendeu dos ataques viru­
lentos — de um lado, do racionalista Julián
Benda e, de outro, do líder da Actíon Française,
Charles Maurras— contra o que classificaram
de “feminino” no seu estilo e no conteúdo de
seu pensamento filosófico. Em resposta, não
apenas com o uma defesa tática contra seus crí­
ticos, Bergson invocou as distinções categóri­
cas entre os sexos claramente implícitas em sua
filosofia. Admitia, até, que uma “psicologia que
põe tamanha ênfase na sensibilidade” podería
ser descartada com desprezo por ser “femini-
28 B E R G S O N , 1932, p. na” ; mas esta seria uma atitude equivocada .28
10 12 . Segundo ele, as em oções dinâmicas e criativas
que descrevia, aquelas que “vivificavam , ou
melhor, revitalizavam os elementos intelectuais
com os quais se combinavam ” , eram diferentes
dos sentimentos mais superficiais experimenta­
dos por mulheres. “Sem querer empreender um
estudo comparativo dos dois sexos” , Bergson
tocava uma variação sobre um tema consagra­
do. Reconhecia (contra a opinião prevalente)
que homens e mulheres eram igualmente inteli­
gentes. Elas, todavia, eram “ menos capazes de
em oção” . Tal comparação procurava contrapor,
na verdade, a “profunda sensibilidade” do ho­

222
OÍNDÍ,,:- ja l : S M U R A D I C A L D E MADhLhíNE PELLETIER

mem e as “superficiais inquietações” da mu­


29 BERGSON, 1932, p. lher.29 Desde então, o sentimento tornou-se a
1012. O s ataques prove­ força (masculina) por trás da criatividade em
n ien tes de C h a rle s
sua forma exclusiva e individual; a razão torna­
M a u r r a s e d e Ju lien
B en d a estão citados em
va-se não somente um atributo menor e comum
R. C. G R O G ÍM , 1988, p. ao ser humano, mas até mesmo um empecilho
181, 18 7. Segundo para a total expressão (e sensação) do eu. Na
Benda, Bergson não era defesa da sua filosofia, a diferença sexual apa­
filósofo, mas um literato.
recia para Bergson com o uma diferença natu­
S eu estilo era feminino,
porqu e ele glorificava a ral, que preexistia à própria significação — exa­
vida e colocava os senti­ tamente onde Le Bon a concebera. Porém, ela
mentos acima das idéias, também funcionava com o uma daquelas cate­
o feminino acima do viril,
gorias que representavam os indivíduos reduzi­
o musical acima do plás­
dos à condição de membros de um grupo. Se­
tico. Maurras associava a
feminilidade de Bergson gundo Bergson, a marca da individualidade era
a sua origem judaica, a sua resistência espiritual a essa representação
seu romantismo, e a sua coletiva, ou, então, era uma forma de transcen-
"metafísica do instinto".
dê-la. A definição de homens e mulheres em
termos do sexo de seus corpos, porém, operava
exatamente com o essa representação.
Quer definida em oposição ao inconsci­
ente (com o em Le Bon), quer com o a realiza­
ção do próprio inconsciente (como em Bergson),
a noção de indivíduo se baseava numa recusa
das formas convencionais de representação
coletiva. Indivíduos eram os que tinham capa­
cidad e de proteger-se — por força da superiori­
dade ou de sua inteligência, ou de sua sensibi­
lidade — da massificação opressora criada por
essas designações coletivas. De acordo com
Bergson, o “pensamento [de qualquer indivíduo]
30 B E R G S O N , 18 88 , p. é incomensurável para a língua” ,30 o qual, por
109. conseqüência, coloca em dúvida todas as for­
mas de representação, relativizando os seus sig­
nificados. ( Igualmente, para Le Bon : “As pala­
vras [...] só têm significados dinâmicos e tran­
sitórios: eles mudam de época em época e de
31 L E B O N , 1960, p. 106. pessoa para pessoa” .) 31 A o mesmo tempo, a
individualidade ficava estabelecida por m eio de
um conjunto de oposições que se fundamenta­
vam na suposta origem natural do gênero, de for-

223
iTici que u própriu siatus de u^nero como repre­
sentação lingüística nunca foi posto em dúvida..
Ou, pelo menos, nunca foi posto em dúvi­
da por aqueles que não eram afetados pela
equação estabelecida entre sexualidade fisioló­
gica masculina, masculinidade e individualida­
de. As mulheres, porém, a quem essa equação
afetava, percebiam que esse raciocínio exclusi­
v o da construção da individualidade era uma
contradição e usayam a crítica individualista à
língua para fundamentar sua alegação. O fem i­
nismo de Madeleine Pellelier pode ser entendi­
do exatamente dessa forma: é uma tentativa de
tornar os preceitos do individualismo do início
do século XX coerentes com a própria filosofia
que a eles subjaz. Madeleine se referia à dife­
rença sexual como um “sexo psicológico” , um
conjunto imaginado e socialmente imposto de
hábitos adquiridos que nada tinham a ver com
32PELLETIER, 1914, p.ll. a fisiología.32 Argumentava que a equação com
que seus contemporâneos identificavam a mu­
lher pelo corpo, distinguindo-a pelo sexo fisioló­
gico, contradizia a própria noção de individua­
lidade com o transcendência de identificação
coletiva. Conclamava, por isto, as mulheres a
se tornarem indivíduos, rejeitando qualquer
identificação com o feminino. A medida, porém,
que procurava demonstrar a irrelevância do
corpo sexuado para definir o conceito de indi­
víduo, Madeleine Pelletier se dava conta de que
não podia dispensar totalmente a significação
disponível na língua, ou seja, tratando-se de di­
ferença sexual não havia linguagem neutra. Por
isso, a fim de dissociar-se do feminino, endos­
sou o masculino, e continuou a orientar suas
atividades de acordo com os parâmetros signi­
ficativos da “diferença sexual” fundada na na­
tureza. Sua adesão ao individualismo radical,
assim, incorporou e revelou o m odo pelo qual o
conceito de indivíduo se apoiava na repressão
(mas não na resolução) da contradição nele re-

224
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

celada pela diferença, sexual, A tentativa de


Madeleine Pelletier de colocar o individualismo
33Sobre o problem a da di­
a serviço do feminismo tornou explicita essa
ferença sexual para a d e­
m ocracia, v. “Droits de repressão e acabou por constituir um bom
1’H o m m e ” e “Droits du exemplo de crítica à própria filosofia em ela que
C it o y e n ” , B A L IB A R , se baseava.33
1994, p. 55.

Madeleine Pelletier teve formação psiqui­


átrica. De 1901 a 1903, empreendeu uma cam­
panha bem sucedida (e com boa divulgação) a
fim de obter autorização para se submeter a
exames de residência psiquiátrica numa insti­
tuição para doentes mentais. (As regras até en­
tão eram claras: estipulavam que os candida­
tos à função “deviam gozar de todos os direitos
civis e políticos” , o que, de pronto, impossibili­
tava as mulheres.) Ela, portanto, não apenas pro­
curava acesso a uma profissão que anteriormen­
te sempre excluira mulheres, mas também dei­
xou claro que se dedicara a pesquisas sobre a
natureza contingente e mutável das idéias, in­
34PELLETIER, 1912, p. 1- clusive das relativas ao eu.34
3. Madeleine Pelletier achava que a identida­
de feminina aceita pela maioria das mulheres
era um fenôm eno psicológico, não físico. Era
uma forma de opressão internalizada, causa e
efeito de sua subordinação. “A mentalidade de
escravos me revolta” , escreveu ela, fazendo eco
a Nietzsche; “não gosto das mulheres do jeito
35 P E L L E T IE R , "M ém o l- que elas são” .35 O grande objetivo de sua vida
res", p. 46. foi modificar esta visão psicológica e re-apre-
sentar a mulher com o um ser livre dos sinais
humilhantes de sua diferença em relação ao
homem. A meta era possibilitar a individuali­
dade; como, porém, a individualidade era vista
com o masculina, e com o a masculinidade era
na prática o auge do universalismo, a recusa à
diferença feminina acabava por ser sendo si­
nônimo de reconhecimento do masculino. A so­
lução encontrada por Madeleine Pelletier foi a
de abstrair a feminilidade e a masculinidade dos

225
corpos físicos do homem e da mulher, tornando
a masculinidade possível para ambos os sexos.
Insistia para que as feministas se “virilizassem” ,
e vestissem suas filhas “en garçon” (com rou­
pas de menino), “É necessário que elas sejam
36"II faut être des hommes homens socialmente7', escreveu ela .36 E claro que
s o c i a l e m e n t " . o fato de as mulheres se tornarem “ homens so­
PELLETIER, "Mémoires",
cialmente” não resolveu todos os problemas le­
p. 18.
vantados por suas diferenças.
Esse projeto de re-apresentar as mulheres
foi o foco do trabalho de Madeleine Pelletier já
rio inicio de sua vida estudantil. C om o jovem
estudante de Medicina, sob a tutela dos antro­
pólogos-anatomistas Letournou e Léonce Man-
ouvrier, demonstrou que as tentativas de usar
sexo ou raça para explicar diferenças de tama­
nho do cérebro, ou as tentativas de usar tama­
nho do cérebro para medir diferenças raciais e
sexuais na inteligência eram basicamente en­
ganadoras. Num estudo feito em esqueletos de
homens e mulheres japonesas publicado em
1900, Madeleine Pelletier fez medidas do tama­
nho do crânio em relação à massa óssea, de
m odo especial à massa do fêmur. Ela descobriu
37"Une íoi mystérieuse; un que os esqueletos de mulheres tendiam a ter
arrangem ent particulier
capacidade craniana maior proporcionalmen­
du tissu osseux qui aurait
avec le sexe des rapports
te a sua altura e peso, mas nem por isso dedu­
aussi étranges q u ’incon- ziu que a mulher tinha inteligência superior. N a
nus [....] Si la femme a um verdade ela desprezava a idéia de “uma lei mis­
cráne plus lourd que son teriosa, um arranjo especial de tecido ósseo re­
fémur ce ríest pas en tant
lacionado a sexo, pois a idéia lhe parecia tão
que femme; mais en tant
q u ’étre plus gréle et dont estranha quanto desconhecida” ; seu argumen­
le tissu m u sc u la ire et to, na verdade, era que estavam sendo exami­
o sseu x est m o in s nadas diferenças de estatura física, não de sexo.
développé que celui de
“Se o crânio da mulher é mais pesado do que
l’h o m m e". V. “R e ch er­
ches su r les in d ic es
seu fêmur, não é porque ela seja mulher, mas
p o n d é rau x du cráne et porque ela é um ser de menor envergadura,
des principaux os longs cujos ossos e tecidos musculares são menos
d ’une série de squelettes desenvolvidos do que os do hom em ” .37 N a ver­
ja p o n ais” , P E L L E T IE R ,
dade, continuava ela, as diferenças entre esque­
1900, p. 519.
letos pequenos e grandes eram mais significati-
O IN D E d L U A L E ECO RAL'Iüi-iu LE O Í A D E L E IN E PELLETIER •

vas do que as diferenças entre esqueletos de


• homens e de mulheres ou entre esqueletos de
38 P E L L E T IE R , 1900, p. diferentes raças.38 Por fim, ela questionava a
523. noção de que o tamanho do cerebro tivesse algo
a ver com a inteligencia; como poderia um con­
junto de sensações conscientes e inconscientes,
incluindo temperamento, energia, velocidade ou
lentidão de percepção — “esse tipo de química
mental cujas reações são até agora desconhe­
cidas” — ser reduzido a algo tão material com o
39 "Cette sorte de chimie a massa orgânica do cérebro?39
mentaie dont les réacti- O argumento crucial — de sexo e raça
ons sont encore inconnu-
serem classificações antropológicas que erra­
es”. P E L L E T IE R , 1900,
p.524.
damente interpretavam certas diferenças físi­
cas aparentes com o explicações generalizadas
de caráter e comportamento — reaparecia por
toda sua obra, muito depois que ela e outros
dentistas abandonaram a craniometria. Ela
atacava qualquer política social — quer tra­
tasse das diferenças relativas às oportunida­
des ocupacionais e educacionais para mulhe­
res, quer da proibição do serviço militar para
mulheres, quer das restrições ao aborto e a
contraceptivos — que reforçasse a impressão
de que as mulheres podiam ser classificadas
segundo seu sexo físico. Dado que a lei era o
locus privilegiado do poder, M adeleine Pelleti-
er achava, então, que seu primeiro ataque d e­
veria ser à exclusão do direito ao voto, porque
confinava as mulheres a uma identidade cole­
tiva ao lhes negar a possibilidade de reconhe­
cimento com o indivíduos. O voto, pensava ela,
teria um efeito “virilizador” sobre as mulheres,
pois eliminaria um dos mais poderosos supor­
tes estruturais da diferença entre ser fêm ea e
ser feminina.
Embora o voto fosse um objetivo impor­
tante de sua estratégia feminista (especialmen­
te no período anterior à Primeira Guerra Mun­
dial), e, embora às vezes admitisse que mudan­
ças estruturais eram prioritárias, Madeleine Pe-

227
40 PELLETIER, 1914, p. iletler dava ênfase à importando da psicologia.40
64, s 1908, p. 41. “A brecha profunda que separa psi eclógicamen­
te os sexos é acima de tudo ■-ara da socieda­
41 "Le fossé p ro fo n d qui d e . ” 41 E procurou eliminar es: a distorção, apa­
se p a re p s y c h o lo g iq u e - gando a diferença feminina no comportamento
ment les sexes est avant e na subjetividade das mulheres. Já que a fem i­
tout 1’ o e u v r e de la
nilidade consistia apenas em sua representação,
so c ié té". P E L L E T I E R ,
1923, p. 9.
e já que as mulheres perpetuavam sua subser­
viência quando aceitavam normas reguladoras
e explorava: -; em proveito próprio sua diferen­
ça feminina, r meta das feministas deveria ser
evitar qualquer comportamento tipicamente fe­
minino. “A observação de criancinhas brincan­
do mostra que nos primeiros anos de vida os
dois sexos têm a mesma mentalidade; é a mãe
que começa a criar o sexo psicológico, e o sexo
42 "Lobservation des petits psicológico feminino é inferior. ” 42 Usar vestidos
enfants dans leurs jeux, longos e chapéus adornados com flores e pas­
montre q u ’au début de la
sarinhos, adotar um m odo de caminhar reque­
vie, la m entalité est la
mêm e dans 1’un et 1’autre brado, comportar-se de m odo insinuante ou
sexe; c ’est la m ère qui exageradamente m o d e s t o , mostrar uma exces­
commence à creer le sexe siva delicadeza na linguagem ou nos sentimen­
psychoiogique et le sexe
tos, recusar-se a sair à noite por “não ser apro­
p s y c h o lo g iq u e fém inin
est in fé rie u r".
priado” , agüentar a sede para não entrar num
PELLETIER, 1914, p . l l . ambiente inadequado — “todos esses com por­
tam entos aparentem ente inócuos ( ‘tous ces
m e n u s usages’) formam, no seu conjunto, as
^P E LLE T IE R , 1906, p.44, diferenças psicológicas dos sexos . ” 43
e 1908, p. 32. Para um a A principal tarefa do feminismo, segundo
discussão recente sobre
Madeleine Pelletier, era analisar esse com porta­
estas questões, v. também
B U T LE R , 1993, p. 1-2. mento e providenciar uma alternativa para ele.
A semelhança do psicanalista, a feminista deve
analisar racionalmente os atos inconscientes
(atos tão rotineiros que escapam da esfera da
reflexão consciente) e forjar uma nova subjeti­
vidade para as mulheres, livre da marca da fe ­
minilidade. Aqui Pelletier tomou uma posição
firmemente racional. C om o em qualquer tipo de
movimento, pensava ela, as pessoas instruídas
(as que escaparam das categorias de identida­
de na qual nasceram) devem liderar as massas.

228
O INDMDÜALL MC' r a d i c a r s e i a l d e l e i n e -p e l l e t i e r

{Ar\ longo prazo,, e :A'.o o influencia de individu­


44 “A la lo n g u e et sou s os da elite, a evolução social se realizará ” ,) 44
l’influence des individu­ As mães feministas devem inculcar uma psico­
antes cT élite des évoluti- logia diferente em suas filhas, escreveu ela num
ons sociales s ’ effectu-
manual de conselhos, L 'Education féministe des
ent” . PELLETIER, L édu-
cation féminine, p. 64. filies, em 1914. O cultivo de uma nova psicolo­
gia seria alcançado se as meninas recebessem
nomes que pudessem ser partilhados com os
meninos (Paulo/Paula, André/Andréa ou Rena-
to/Renata, por exemplo), se elas não recebes­
sem carinho exagerado, se não comessem tan­
to açúcar, se aprendessem a tolerar a dor que
lhes fosse infligida. A lém disso, M adeleine
Pelletier recomendava que as meninas tivessem
homens com o professores pois eles, apesar da
misoginia, eram mais exigentes do que as mu­
lheres. As meninas também deveriam receber
educação física rigorosa, que incluísse o uso de
revólver. A arma não só permitirla que saíssem
sozinhas à noite com maior segurança, mas tam­
bém lhes daria mais coragem e autoconfiança:
“Além dos usos que tem em casos de perigo, o
revólver tem uma força psicodinâmica; só o fato
de senti-lo junto ao corpo já nos torna mais
45 "Outre Ies Services q u ’il ousadas”45. Um revólver na mão de uma meni­
peu t ren dre en cas de na (ou de uma mulher) seria prova tangível de
danger, le révolver a um
sua força, uma prótese fálica que faria com que
pouvoir psychodynam o-
géne, ce fait seul de le se sentisse à altura dos homens. Confiança ínti­
sentir sur soi rend plus ma e força física eram apenas uma parte do
h a rd i". P E L L E T IE R , programa de Madeleine Pelletier. A re-apresen-
1926, p.9.
tação da mulher também incluía, talvez acima
de tudo, a troca das roupas da escravidão pelas
roupas da liberdade. Madeleine ampliou os ar­
gumentos da Liga da Emancipação das Mulhe­
res e de algumas feministas que, já em 1896,
providenciaram um abaixo-assinado para que
fosse abolida uma lei datada de quase cem anos
antes, 1800, que proibia as mulheres de se ves­
46 B E N S T O C K , 1986, tirem como homens .46 Sua justificativa era que
p.48. o uso de calças compridas dava às mulheres
maior liberdade para praticarem esportes e ou-

229
JUAN SUOTT

tras atividades saudáveis, pois proporcionava


maior liberdade de movimentos. /Além disso,
Madeleine Pelletier enfatizava os efeitos psico­
lógicos: o uso de roupas masculinas deixava cla­
ro que a mulher não era mais, antes que tudo,
objeto dos desejos masculinos, mas seres hu­
manos cujo valor reside em si próprios.
Madeleine Pelletier deixava claro seu des­
prezo pelas feministas que sustentavam que se
deveria “permanecer mulher” , a fim de conquis­
tar uma base mais ampla para sua emancipa­
ção política. Criticava ironicamente suas estra­
tégias femininas, e, enfurecidamente, suas sai­
as intencionalmente curtas para atrair homens.
Exasperou-se quando foi sugerido que se fizes­
se um desfile a favor do voto feminino no qual
mulheres belamente vestidas e em carros alegó­
ricos jogariam flores para as multidões. Ridicu­
larizou uma feminista que se preparava para
uma manifestação no parlamento bordando um
chapéu que atrairia a atenção (e presumivel­
mente o apoio) de um jovem e simpático depu­
tado: “Se todas as feministas adotarem essa li­
nha, aqueles que querem manter as prerrogati­
vas masculinas poderão dormir calmamente por
47 P E L L E T IE R , 1908, p. muito tem po .” 47 Certa vez Madeleine Pelletier se
38. recusou a praticar um aborto numa mulher dos
serviços postais que tinha sido estuprada por
um colega de trabalho enquanto ambos partici­
pavam de uma greve. Duvidando da sincerida­
de das declarações feministas da mulher, pri­
meiro porque ela frisava o cabelo, usava cha­
péus com penas e pintava a boca com batom;
48 Carta de Madeleine Pei-
depois, porque teria dito que “as mulheres d e­
letier a Arria datada de
2 de novem bro de 1911,
vem permanecer mulheres e não tentar tornar-
c ita d a p o r G O R D O N , se homens” , afirmou: “Eu acho que ela recebeu
1990, p. 173. Madeleine o que merecia. Que todas as feministas apenas
Pelletier assinou sua car­ meio-feministas sejam tratadas da mesma for­
ta: “S au d a çõ es feminis­
m a .” 48 A profunda hostilidade perante qualquer
tas, Dr. M a d e le in e
Pelletier, v irg e m demonstração de feminilidade da parte de fe­
incorruptível.” ministas professas fica evidente na descrição

230
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

debochada que Madeleine Pelletier faz de algu-'


mas das mais eminentes socialistas-feministas-da
época presentes num congresso Internacional: -

N a tu r a lm e n te as m u lh e r e s s o cia lista s tiv e ­


ra m m u ito c u id a d o e m n ã o p a r e c e r s e x u a lm e n te
lib e ra d a s . R o s a d e L u x e m b u r g o usa va saia lo n ­
ga, c a b e lo s c o m p r id o s , u m p e q u e n o v éu e flo r e s
n o c h a p é u . C la ra Z e tk in , a m e s m a coisa. N a q u e ­
la é p o c a , o s c h a p é u s e ra m p r e s o s p o r lo n g o s al­
fin e te s , e, q u a n d o C la ra Z e tk in f a lo u d o p ó d iu m ,
s e u s a m p lo s g e s to s fa z ia m o c h a p é u d a n ç a r da
d ire ita p a r a a e s q u e rd a e o e fe ito e ra c ô m ic o
L a u r a L a fo r g u e , filh a d e K a r l M a rx , f o i n o m e a d a
v ic e -p r e s id e n te d o co n g re s s o . E la a p a re c e u c o m
o r o s to e n v o lt o n u m g ro s s o v é u ; d e lo n g e ela
49 P E L L E T IE R , "M ém o i- p a r e c ia u m r o lo d e p a n o .4
9
res", p. 35.

D o seu ponto de vista, véus, saias, chapé­


us e flores tornavam a sexualidade feminina um
espetáculo; eram a humilhante marca da dife­
rença que dava origem à subordinação: cobri­
am os corpos e obstruíam a visão. Véus eram
tão humilhantes quanto os vestidos decotados(
Madeleine Pelletier os detestava, talvez porque
o corpo da mulher, sempre que coberto por rou­
pas ex c lu s iv a m e n te fem in in a s, já era
objectificado). “N ão entendo” , queixava-se ela
a sua amiga Arria Ly, referindo-se à m oda do
decote, “porque essas senhoras não enxergam
a vil escravidão manifesta na exposição dos
50Carta de Madeleine Pel­ seios. Vou expor os meus quando os homens
letier a Arria Ly, datada de começarem a usar um tipo especial de calças
2 de novem bro de 1911, que permita ver seu . . . ” 50
c ita d a p o r G O R D O N ,
Essa comparação era reveladora, porque
1990, p. 18. Em seu ro­
ia ao âmago da relação entre roupas e diferen­
mance, L a fe m m e vierge,
M adeleine Pelletier tam ­ ça sexual. Nas mulheres, a diferença estava na
bém condenava os véus exposição de partes do corpo e no costume,
com o sendo símbolos d a então em moda, de cobrir o rosto com um véu
subserviência d a mulher
insinuante, tudo isso dando a entender dispo­
ao hom em . S ob re véus
na historia d a França, v. nibilidade sexual. Tal m odo de trajar tornava-
KESSLER. as objetos do desejo sexual masculino e revela-

231
Va O pO ü2:' ajaS líiBS iâlLSVã. ic B ç ¿3 ITiSSiiiCS ÍTS-
j es quando usados pelas mulhe *bs socialistas so­
lapavam seu discurso público no que respeitava
àquele poder que seus argumentos procuravam
reivindicar. O poder do homem, em contraste,
vinha do fato de manterem coberta a única par­
te de seu corpo que importava — o pênis.
As roupas masculinas tornavam os h o­
mens desejáveis. Era somente por meio da su­
gestão que podia ser mantida a identificação
fantasiosa entre a masculinidade (o pênis) e o
poder fálico. “O falo” , escreveu Jacques Lacan,
“só pode desempenhar seu papel se estiver v e ­
51 L A C A N , 1982, p. 82. lado ” .51 E sugere, ainda, que o privilégio mas­
culino se baseia na fantasia (uma noção errô­
nea, portanto) de que o pênis anatômico é o
falo simbólico e que os homens, conseqüente-
mente, são indivíduos poderosos e autônomos.
N a verdade, continua J. Lacan, os homens ab­
dicaram da autonomia ao subordinar-se à lei
(a Lei do Pai, imposta pela ameaça da castra­
ção). Estão ligados, com o irmãos, pela aceita­
ção da lei, com cujo poder, imaginariamente,
se julgam identificados. A identidade masculi­
na é alcançada positivamente pela cidadania
masculina (participar politicamente era confir­
mar a posse de um falo) e negativamente pela
exclusão das mulheres, definidas com o o Ou­
tro, porque, nelas, a ausência do pênis é equi­
vocadamente entendida com o ausência do falo.
A identidade masculina, porém, é sempre ins­
tável, pois deve manter a ilusão de que os ho­
mens têm o falo (o poder simbólico que a sim­
52 L A C A N , 1982, p.84. V. ples posse do pênis não pode assegurar), ao
ta m b é m CORNELL, mesmo tempo em que tentam encobrir sua au­
1 9 91 , e s p e c ia lm e n te
sência. “ Parecer” , segundo Lacan, “acaba subs­
p.53; Elizabeth G R O S Z ,
1 9 90 ; "R e a d in d the
tituindo o der’ , a fim de proteger o falo, por um
Phailus", GALLO P, 1985, lado, e mascarar sua ausência, por outro” .52
p. 133-156; e a Introdu­ Dentro dessa ambigüidade que envolve
ção a MITCHEIJL e ROSE, “parecer” e “ter” , Madeleine Pelletier localizou
1982.
não somente a fonte do poder masculino, mas

232
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

53 ^ E L L E D E R 1914 ~
também a oportu nidade^.?. que as mulheres
10; 1908, p. 31; e "M é-
o reivindicassem para si. h, o;rnbolicameníe, po­
moires", p. 9, 35, 38. V.,
tam b é m , B E N S T O C K , deríam fazê-lo quando vestissem roupas mas­
1986, p. 48; e R O BERTS, culinas. Re-vestir deste m odo o corpo feminino
1993, p. 657-84. significava marcar sua autonomia e sua i n d i v i ­
dualidade (não havia estilo neutro, destituído
54"Ce sont les porteurs de
de gênero). O processo deveria começar o rne is
cheveux courts e de faux cedo possível. As meninas, conforme MadekL c
cois qui ont toutes les Pelletier insistia ju n to às mães, deveríam mor
lib ertes, tou s les cabelo curto e roupas de meninos. As íerninis-
pouvoirs, eh bien! Je por­
tas, por sua vez, deveríam abandonar, ,n o seu
te m o i au ssi c h e v e u x
courts et faux cois à la face m odo de vestir, tudo o que significasse feminili­
des sots el d e s méchants, dade. A própria Madeleine usava cabelo à es­
bravant les injustices du covinha, colarinho engomado, gravata e casa­
voyou de la rué, et de la
co masculinos muito tempo antes do final da
femme esclave en tablier
Primeira Grande Guerra, quando esse m odo de
de cuisine". PELLETIER,
1912a, citado por B A R D vestir virou moda. 53 (Também usava calças em
em "L a virilisation des certas ocasiões, embora fosse um traje proibi­
fem m es et l’égalité des do para mulheres, no início do século XX, em
sexes", 1992, p. 92. A
Paris.) Travestir-se significava para ela uma
equação entre a igualda­
de e os trajes masculinos transgressão das normas dominantes na épo­
já tinha sido o bservada ca, uma forma de afirmar sua individualidade
por L a u r e -P a u l FLO- perante a multidão que a desaprovava às cla­
BERT, 1911, p. 3: As cal­
ras: “Aqueles que usam colarinhos postiços e
ças "representavam a au ­
cabelo curto gozam de toda a liberdade, de todo
toridade; eram o privile­
gio dos homens, isto é, o poder. Pois bem! Eu também uso cabelos cur­
do mestre". A questão das tos e colarinhos postiços perante os tolos e os
rou pas p re o c u p a v a s o ­ m iseráveis, en fren ta n d o os insultos dos
b re m a n e ira M a d e le in e
desordeiros nas ruas e os da mulher-escrava que
Pelletier. Q u an d o ela se
referia à pressão imposta
usa avental” .54 Usar roupas masculinas era um
pela sociedade às pesso­ aspecto fundamental de sua política feminista.
as a fim de que se confor­ “Gosto de exteriorizar minhas idéias, de carregá-
m assem com os m odos las sobre mim com o a freira seu crucifixo, ou
de trajar, citava um exem­
como a revolucionária sua rosa vermelha. Uso
plo: "A menor originalida­
de de cor e de formas em esses sinais exteriores de liberdade, a fim de que
nossas roupas, a m o d a digam e proclamem que desejo a liberdade” .55
d e n o s so s p e n t e a d o s , Em 1919, escreveu: “Minhas roupas proclamam
n o s so s gesto s, n o s so s
aos homens que sou igual a eles” .56
m odos de ser em geral,
tudo faz com que a socie­
Madeleine Pelletier se deliciava quando
dade se ponha em guar­ conseguia “passar” por homem, embora isto,
da. O que é o mês de pri- eventualmente, a pusesse em perigo. Num en-

233
JOAN W. SCOTT-

são imposto a o la d r ã o e m '•■contro do comitê-executivo-da SFIO — entre


comparação com as injú­
cujos membros foi a única mulher, de 1909 a
rias s os sarcasmos que
deveria agüentar o h o ­
1911. “realizou um sonho” quando compare­
mem que, por. exemplo, ceu vestida com roupas de homem; foi, porém,
tivesse a fantasia de se tom ada por espião da polícia e escapou por
vestir com u m a saia de pouco de levar uma surra. (Nestas ocasiões, não
seda amarela e de passe­
procurava se esquivar, mas respondia de forma
ar nestes trajes pelas ave­
nidas de París? S arcas­ agressiva — com o um h o m e m — , atirando in­
mos? N ão, minto! H a v e ­ sultos em gíria e trocando socos com quem a
ría intervenção das forças atacava .) 57 Em 1914, quando trabalhava para
armadas e o coitado fica­
a Cruz Vermelha, em Nancy, foi tomada por um
ria p re s o p o r te m p o
indeterminado num asi­
agente inimigo: “Minha aparência masculina
lo de lu n á tic o s ". bastou para reunir uma multidão de umas duas
PELLETIER, 1919, p.82. mil pessoas uivando ao meu redor; uma senho­
ra de idade me agarrou violentamente pelo pa­
55 "Les demi-émancipées",
letó; fui salva porque subi no carro de um ofici­
citad o p o r G O R D O N ,
1990, p. 142. al” .58 Tais experiências lhe ensinaram a ter cer­
ta cautela. Em 1921, quando esperava atraves­
56PELLETIER, 1919a. sar a Europa sem ser notada, pois viajava para
a União Soviética sem passaporte, ela transi­
57 V. BARD, "L a
virilisation...", 1992, p.
giu, relaxando sua atitude, por norma, inflexí­
9 6 -7 . V. ta m b é m S O - vel, ao passar por “uma mulher com o qualquer
W E R W IN E & M A IG N IN , outra” : usava peruca, meias compridas e saia
1992, p. 122. com o parte de seu disfarce.59 (Essa apresenta­
ção feminina não lhe era mais confortável, tal­
^P E L LE T IE R , "Journal de
guerre", citado por G O R ­ vez até bem menos, pois traía o senso que tinha
D O N , 1990, p. 142. da própria identificação.)
A experiência de “passar-se” (por homem
59 G O R D O N , 1 9 90 , p.
ou por mulher) foi uma característica perma­
154-5; M A IG N IN , 1992,
p. 160; e S O W E R W IN E &
nente das situações vividas por M a delein e
M A IG N IN , 1992, p. 156- Pelletier: passando-se por um, ou por outra,
7. desprezava as convenções e escondia a discre­
pância entre a identidade que lhe era social­
60Sobre a "ultrapassagem
mente atribuída e a que efetivamente deseja­
d a fronteira sexual", v.
B U T LE R , 1993, p. 167- v a .60 Esse travestismo, porém, nem sempre era
86 . uma empresa bem sucedida. “A o representar a
personagem que a gente quer que apareça” , ob­
61 " A fo rce d e jo u e r le
servava Madeleine Pelletier, “ a gente, na reali­
personnage que l o n veut
paraítre, on finit par 1’être
dade, acaba se transform an do um p o u c o
un p e u en réa lité ". nela . ” 61 O fato de dizer “um pouco” exprime a
PELLETIER, 1912, p. 112. a m b ig ü id a d e de sua cru zada, q u e p a ra

234
O IN D IV ID U A LIS M O R A D IC A L DE M AD E LE IN E PE LLE TIE R

Madeleine era uma fonte de desejos e de pra­


zer. Vestindo roupas masculinas e caminhando
pelas .-.onas de prostituição à noite, divertia-se
quando as prostitutas a tomavam por homens
“Elas me chamam mon gros [meu g ord o]” , re­
latava ela a sua amiga Arria Ly, “Eu preferiría
62Carta de Madeleine Pel­ [...] 'magro7, mas a gente é com o é . ” 62 Nesse
letier a Arria Ly, datada de caso, seu desempenho reproduzia os termos da
2 de novem bro de 1911, identidade masculina com o diferença sexual
citada por S O W E R W IN E ,
(m esm o que ela negasse intransigentemente
1987, p. 25.
qualquer intenção “libidinosa” ): o desejo que
uma mulher expressava por ela funcionava
com o uma confirmação de que ela possuía o
falo que parecia ter. Assim, sua re-apresenta-
ção uen homme” paradoxalmente dependia do
gênero oposto que ela procurava eliminar. Suas
pantomimas expressavam seu desejo de ser
homem. ( “Oh, por que não sou um homem?
Meu sexo é a maior desgraça da minha vida” ,
63 Citado por G O R D O N , escreveu numa carta para Ly . ) 63 A o mesmo tem­
1990, p. 122. po, porém, ficava exposta a fragilidade de qual­
quer aparência fálica. N o caso de Madeleine,
ela e s ta va b e m c o n sc ien te de ser uma
dissonância: as roupas masculinas cobriam um
corpo visivelmente feminino: “Sou baixa e gor­
da; tenho que disfarçar a voz e andar ligeiro pelas
64 P E L L E T IE R , "M ém o i- ruas para não ser descoberta .” 64 A figura da
res", p. 38. “femme en homme” , ao revelar e ao mesmo tem­
po disfarçar a ausência do falo, ao jogar com a
ambigüidade do falo necessariamente velado
pelas roupas masculinas, repudiava a associa­
ção entre o corpo físico e o poder simbólico (o
65 G A LLO P, 1982, p. 120. pênis e o falo ) . 65
C o n fo rm e suas próprias palavras, ao
travestir-se, Madeleine Pelletier proclam ava a
irrelevância social e política de seu corpo físico,
mas levantava inevitavelmente a questão de suas
66 P E L L E T IE R , "M ém o i- inclinações eróticas . 66 Quando m andou para
res”, p. 38. Arria Ly um retrato em que aparecia com o ho­
mem, advertiu provocadoramente a amiga que
não se apaixonasse. “A viagem para Lesbos não

235
:T;£ tenta, da mesma forma que nác me tenta a
67 Carta ds M adeleine Pel­ viagem para Cítara.” 67 Embora os relatórios
letier a Arria Ly, datada de policiais se referissem a Madeleine Pelletier como
2 de novem bro de 1911,
lésbica, ela não freqüentava os círculos que tor­
citada por S O W E R W IN E ,
1987, p. 25.
naram Paris “a capital de Lesbos” no inicio do
século X X .68 Por outro lado, ela insistía que era
68 Os relatórios d a polícia celibatária. Embora ela às vezes defendesse a
de 1916 estão citados por
idéia de que celibato não era sinônimo de cas­
G O R D O N , 1990, p. 122.
Sobre Paris com o sendo tidade, em seu próprio caso ela era bem clara:
"a capital de Lesbos", v. “Eu não quis educar meu senso genital” , escre­
B E N S T O C K , 1986. veu ela a Ly, em 1908, “minha escolha é conse­
quência da situação injusta das mulheres.” 69
69 "Je ríai pas voulu taire Vinte e cinco anos mais tarde, quando passou
l’éducation de m on sens a existir maior liberdade para a expressão se­
genital; un tel choix n’est
xual das mulheres, Madeleine Pelletier ficou ainda
que la conséquence de la
situation injuste faite à la
mais veemente: “Certamente considero que uma
fe m m e ". C it a d o por mulher é livre em seu corpo, mas essas ativida­
LOUIS, 1992, p. 117. des do baixo-ventre me causam profunda re­
pugnância” .70 Se ela tivesse encontrado algo
70"Certes, je considére que com o a chocante declaração de M onique Wittig
la femme est libre de son
de que as lésbicas não são mulheres, talvez as­
corps, mais ces affaires de
bas ventre me dégoutent
sumisse uma posição diferente em relação à
p r o fo n d é m e n t: m oi, questão da identidade das lésbicas.71 Nas cir­
aussi, je suis vierge". Ci­ cunstâncias da época, início do século XX, de-
tado por LO UIS, 1992, p. clarar-se lésbica significava, para M adeleine
113.
Pelletier, ou um exagero da própria feminilida­
de (no estilo classe-alta de Natalie Barney e de
Sidonie G. Colette) ou uma ênfase à própria
71W IT T IG , 1981, p. 53.
sexualidade, se bem que de forma “ invertida”
(com o Radclyffe Hall, Romaine Brooks e a Mar­
quesa de B ebbey ) . 72 Contudo, para Madeleine
72V. B E N S T O C K , 1986. Pelletier, exatamente o que aviltava a feminili­
dade era laborar para que as mulheres se tor­
nassem reles objetos de desejo sexual, nenhu­
ma dessas opções era, portanto, aceitável.
Além disso, ela parecia partilhar do ponto
de vista predominante em seu tempo, segundo
o qual a homossexualidade era uma anomalia
(que, no entanto, deveria ser tolerada); a cura,
julgava ela, dependia de uma sociedade mais
justa. As lésbicas, escreveu ela num romance

236
utópico, U n e vía n o u v e íle (j ?32), eram normal­
mente mulheres solteiras que não conseguiam
achar um companheiro certo ou mulheres ca­
sadas tão oprimidas por seus maridos, ; por
carência, procuravam carinho ern outras mu­
lheres. Assim que as mulheres obtivessem “1a
liberté sexuelle” — isto é, igualdade total com
os homens ~—, o fenômeno do “saíismrE desa­
73 PE LLE TIE R , 1932, p. parecería gradualmente.73 Por outro ladee -aso
206. Para seas pontos de os homens e as mulheres chegassem a se iden­
vista sobre a hom ossexu­
alidade, v. O C T O N , 1934.
tificar muito próximamente nas roupas, no modo
Para a historia das atitu­ de agir e na subjetividade podería ocorrer o
des da sciedade em rela­ desaparecimento da distinção entre heterosse-
ção ao homossexualismo xualidade e homossexualidade. Se o indivíduo
nesta época, v. CO PLE Y,
deixasse de ver a família como “célula social”,74
1989.
se as pessoas não se diferençassem mais pelo
“sexo psicológico55, se as mulheres se tornassem
74 PELLETIER, 1926, p. “virilizadas55, os homens mais viris, não acaba­
20- 22 .
riam, então, todas as relações sexuais por ser
de fato relações homossexuais? E provável que
Madeleine Pelletier tivesse em mente uma no­
ção mais complexa de desejo sexual, e que con­
siderasse a diferença dos sexos necessária, mas
de uma maneira mais flexível do que as permi­
tidas pelas rígidas categorias de diferenciação
sexual da época. Mesmo assim, ao associar a
realização da igualdade político-social à elimi­
nação de toda diferenciação sexual, Madeleine
Pelletier revelava a ligação entre heterossexuali-
dade e desigualdade dentro dos termos d o indi­
vidualismo que ela reivindicava.
Madeleine Pelletier, porém, não projetava
por um futuro homossexual utópico, nem opta­
va por algo semelhante, embora em seu roman­
ce Une ule nouuelle imaginasse um tempo em
que os homossexuais “teriam os direitos da ci­
dadania” . Os líderes do futuro, segundo o ro­
mance, entendiam que a homossexualidade não
era “normal” mas “ consideravam arbitrário e
arcaico submeter carícias a regulamentações,
designar o que era permitido e o que era proibi-
JOAN W SCU Í í

75 P E L LE T IE R , 1932, p. do ” . 75 Apesar desse gesto de tolerância, a ho­


60. mossexualidade era assunto secundário para
76 " L a fe m m e d é sire; ela. A verdadeira questão era saber se as rela­
T in s tin c t se x u e l p a rle ções heterossexuais podiam ser reformadas.
au ssi en elle". Em princípio, Madeleine Pelletier achava a
, PELLETIER, 1926, p. 39.
Em L a m o u r - . e t ia
heterossexualidade podia ser reformulada. As
m a tern ité, p. 11, mulheres, afinal, eram seres sexuados, e, por mais
Madeleine Pelletier escre­ escandalosa que a idéia pudesse parecer a seus
veu o seguinte: "tm um contemporâneos, ela insistia que a mulher tinha
ro m a n c e recente, L a
desejos. “O instinto sexual também exerce nela
garç on ne , Víctor M argue-
ritte apresenta urna m u­ seus apelos ” .76 O sexo, escreveu ela em 1931, “é
lher que faz o que faz um muito forte; Freud mostrou que ele é muito mais
rapaz e que pretende ser, forte do que até então se acreditava” .77 Sendo
assim mesmo, honesta; o
seres sexuados, as mulheres tinham “direito ao
livro, em bora tímido, fez
escândalo. O público, que
amor” . O exercício desse direito não deve ne­
aceita a prostituição, não cessariamente rebaixá-la. “A mulher liberada não
admite que uma mulher se sente diminuída por uma iniciação sexual que
se conduza como se con­ ela deseja [...] O ato sexual não é a entrega da
duzem os homens". S o ­
própria pessoa. E o encontro temporário de dois
b re L a g a r ç o n n e , v.
R O B E R T S, 1994, p. 46- seres de sexos diferentes; sua finalidade é o pra­
62. V. tam bém S O H N , zer ” .78 Sem o casamento, sem a co-habitação
1972. doméstica para restringi-la e com total auto-sufi­
77 PE L LE T ÍE R , 1931, p. ciência financeira, uma mulher podería entregar-
161. se ao prazer em igualdade de condições com o
homem. “Se não houvesse mais co-habitação,
78 "La femme affranchie ne
todos os ódios de família tão bem descritos por
se sent pas diminuée par
une initiation sexuelle Freud desapareceríam.” 79
qu ’elle a voulue [...] Lacte Apesar de seu desejo de mascarar a ques­
sexuel n’est pas le don de tão do corpo fem inino sexuado, M adeleine
la p e rs o n n e . C ’est Ia
Pelletier teve de confrontá-la repetidamente. Se
r é u n io n ép h ém ère de
d e u x êtres de sex e
a individualidade devia ser alcançada, e se a
différent; son but est le individualidade implicava autonomia total, en­
p la isir". P E L L E T ÍE R , tão não havia com o fugir da relação entre o eu
1923, p. 11. V. também e a expressão fenomenológica do seu corpo. A
PELLETÍER, [c. 1908], p.
garantia da integridade da mulher no ato se­
6.
xual ( “o ato sexual não é a entrega da própria
79 "Plus de cohabitation et pessoa” ) e em todas as suas relações repousa
s’en sera fini des haines sobre sua capacidade de dispor livremente de
familiales si bien décrites. seu corpo. O direito absoluto sobre seu corpo
par Freud". PELLETÍER,
era a expressão física da individualidade da
[c. 1908], p. 6.
mulher, o que não podería ser assumido sem

238
I: IDMDUALISMO r a d ic a l d e m a d e l e in e p e l l e t ie r

uma perda do eu: “O individualismo ensinou


queseada pessoa pertence somente á si mesma
80 "Lindividualism e au ra e não pode eníregar-se a ninguém.”80 Madeleine
fait co m p ren d re que Pelletier, portanto, advertia que a reprodução
chacun, n’étant q u ’á lui,
tinha que ser tratada como urna das funções,
ne se donne à personne".
PELLETIER , 1919, p. 74. não com o o significado essencial do corpo fe-
minino. Ela condenava, porque as considerava
desorientadas, a tentativa das feministas que
procuravam elevar o status da mulher apelan­
do para a celebração da maternidade. Essa es­
trategia acabava simplesmente por confirmar a
inferioridade da mulher, pois centrava todo seu
valor numa função fisiológica que com prom e­
tia a coerência e a autonomia do corpo: A m a­
ternidade nunca dará às mulheres um título de
importância social. As sociedades futuras p o­
dem construir templos em honra da maternida­
de, mas o farão apenas para manter as mulhe­
81 P E L L E T IE R , 1908, p. res trancadas dentro deles .81
37. Se as mulheres têm de ter filhos (o que é
necessário para a conservação da espécie, ou,
às vezes, mero efeito colateral, indesejado, de
ligações prazerosas), a maternidade deve ser
uma escolha, não uma obrigação. N ã o podería
haver interferência da parte do Estado e nem
lei que inibisse a liberdade de escolha das mu­
lheres. C om esse objetivo Madeleine Pelletier era
membro ativo da organização neomaltusiana
liderada por Raul Robín e por Nelly Roussel, e
se engajava em campanhas pela legalização do
aborto durante os três primeiros meses de gra­
videz. Sustentava que nem mesmo o interesse
82 "A v a n t tout, c ’ est
do Estado pelo crescimento populacional p o ­
l’individu qui estsacre [...]
il a le droit absolu de vivre
dería, em última análise, interferir no direito da
à sa guise, de procréer ou mulher de controlar suas funções corporais:
de ne pas procréer. En Acim a de tudo, o indivíduo é sagrado [...] ele
voulant, dans um intéret tem o mais absoluto direito de viver com o bem
national, mettre um frein
entende, de procriar ou não procriar. Quando,
aux libertes individuelles,
on fait toujours plus de por interesses de estado, põe-se um freio que
mal que de bien". P E L L E ­ inibe as liberdades individuais, causa-se mais
TIER, 1926, p. 59. dano do que benefício .82

23 9
"L-smánt qui est né asi Quanto ao feto, a idéia de que ele tinha
u n individu, mais le íostus
direitos era absurda, pois, por ser parte do cor­
au sein de l’utérus ríen est
pas un; ii fait partie du
po da mãe, não tem existência autônoma: A
corps de la mère". P E L ­ criança, depois de nascer, é um indivíduo, mas
LETIER, 1978, p. 137. o feto no útero não é; é parte do corpo da mu-
lher [ . . . . ] 53 A mulher grávida não são duas pes­
soas, mas uma, e ela tem o direito de cortar o
cabelo e as unhas, de emagrecer ou engordar.
O direito que temos sobre nossos corpos é ab­
84 P E L L E T IE R , 1926, p. soluto .84
57. Entretanto, se o direito absoluto sobre seu
corpo era uma garantia da individualidade da
mulher, era também um obstáculo para que ela
fosse inteiramente aceita nas fileiras (masculi­
nas) do indivíduo abstrato, já que o corpo em
questão tinha que ser visto e protegido com
toda sua diferença feminina. A fim de evitar
esta contradição, Madeleine Pelletier procurou
uma form a de superar completamente o sexo.
Embora ela se referisse aos impulsos sexuais
com tolerância e imaginasse uma época em
que o prazer viria a ser a única m otivação de
parceiros compatíveis, ela também esperava o
dia em que a evolução humana progredisse de
tal form a que fosse superada sua herança ani­
mal. A função sexual “é uma função fisiológi­
ca, com o a alimentação ou a circulação” , e
deveria ocupar a mesma posição na escala de
valores humanos — necessária, mas não da
mais alta ordem. “A sexualidade é uma função
85 "L a sexualité est une natural, mas não é uma função nobre ” . 85 S e­
fonction naturelle, mais ce gundo ela, Freud dava ênfase exagerada ao
n’est p as u n e fonction
poder exercido pelos impulsos sexuais na d e­
n o b le ". P E L L E T IE R ,
1923, p. 13. V sua con­
terminação do comportamento (com o a m aio­
tribuição p a ra O C T O N , ria dos psiquiatras franceses, ela fazia forte
1934, p. 70: o sexo "é a objeção às teorias de Freud sobre a sexualida­
expressão de um a neces­ de infantil). De muito maior importância era a
sidade [...] com o a neces­
capacidade intelectual humana, que , uma vez
sidade de comer e de res­
pirar". devidam ente desenvolvida e usada, vinha a ser
a verdadeira fonte da felicidade: “A gam a de
prazeres animais ultrapassa-se rapidam ente
O'INDMúUAOSMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

86 "L a 'cqm m s cíes joles [ E j Mas a vida da mente e Infinitar, xcvp mais
animales es-t vite parcou-
variada.” 86 Quando Madeleine Peí i .[lee suge­
rue [...] M ais la vie de
Fintellectuel est infiniment
riu que a “familia cerebral” deveM substituir
plus variée". PELLETIER, a “familia sexual” , apelou parí a segui ere ilus­
1919, p. 104. tração para exemplificar seu impacto s<Mee as
m u lh eres: “A o in vés de ser ■ m a ¡ornea
em poleirada sobre sua ninhada " o urna ga-
linha-choca, a mulher será um pensante,
artífice independente de sua pace a íeiíada-
87"Au lieu d ’étre la femeile de.” 87 O contraste fica entre o annoal e o hu­
penchée sur sa couvée, mano, entre o sexual e o cerebral, entre a rnãe
com m e une mére poule,
e a artífice, entre um ser a serviço de sea ■ o
la fem m e sera un etre
pensant, artisan indépen- po e um ser cuja mente molda seu destino.
dan t de son bo n h eu r". Esta ojeriza pela materialidade, pelo cor­
PELLETIER, 1935, p. 72. po, levou Madeleine Pelletier a sugerir a possi­
bilidade de eliminar completamente o sexo, ofe­
recendo com freqüencia o celibato com o al­
ternativa, garantindo às mães feministas que
se tratava de uma escolha perfeitamente apro­
priada para suas filhas. “ Os médicos que es­
creveram sobre os perigos da castidade têm
concentrado sua atenção apenas nos homens;
as mulheres não têm os impulsos sexuais tão
imperiosos quanto os homens” . O único obs­
táculo a urna vida casta era a solidão, mas isso
poderia ser evitado, se as jovens convivessem
88 P E L L E T IE R , 1914, p. com várias outras.88 N o romance autobiográ­
114. V. ta m b é m fico de M adeleine Pelletier, Lafem m e uierge, a
PELLETIER, 1923, p. 10.
heroína foge dos envolvimentos sexuais e vive,
por isso, uma vida verdadeiramente indepen­
dente. Quando observa que certos romances
nela provocam sensações libidinosas, pára de
lê-los. De tempos em tempos, tem “um sonho
89 P E L L E T IE R , 1933, p. erótico” .89 Sua saúde, entretanto, nunca se
16.
abala por isto.

S e m dúvida [M a r ie ] não era um a m ulh er


assexuada; sentia desejos, m as os reprim ia para
ser livre e não se arrependia [. ..] substituira o
a m o r p ela vida da m en te; q u ã o p o u c o s, p o ré m ,
o co n seg u em . N o futuro, a m ulher será capaz de

241
liberar-se sem renunciar ao amor, que não mais
será algo baixo A mulher vai viver sua vida
90 "C e rte s , elle r íé t a it pas
sexual sem se sentir aviltada,90
sans sexe; .elle au ssi
é p r o u v a it d es désirs, m a is A inteligência superior de Marie vai per­
e lle a v a it d ú les r e fo u le r
mitir que eia sublime seus Impulsos sexuais sem
p o u r ê tre lib re, e lle n e le
r e g r e t t a it p a s [ . . . ] E lle ,
ressentimentos. À repressão estabelece sua su­
M a r ie , a v a it r e m p la c é perioridade em relação aos outros ( “quão pou­
1’ a m o u r par la v iecos, porém, o conseguem ” )- “N o futuro,” as
c é ré b ra le , m a is c o m b ie n coisas podem ser diferentes, mas ele parece ser
p e u s o n t c a p a b le s d e le
adiado indefinidamente. O cam inho para o
faire. P lu s ta rd la fe m m e
p o u r r a s ’ a ffr a n c h ir san s
admirável mundo novo passa pela afirmação
re n o n c e r à l’ a m ou r. II ne da individualidade, pelo triunfo da mente sobre
s e r a p lu s p o u r e lle u n e o corpo, da razão sobre o desejo, do masculino
c h o s e v ile [...] L a fe m m e
sobre o feminino. É um caminho que se abre
p ou rra , sans ê tre
para as mulheres de inteligência superior que
d im in u é e , v i v r e s a v i e
s e x u e lie " . P E L L E T Í E R , escolhem percorrê-lo e cuja escolha dá início a
1 9 3 3 , p. 2 4 1 . um lento, mas inevitável processo de mudança.
Em Une vie nouvelle, uma tentativa de fic­
ção utópica, M adeleine Pelletier levou suas
idéias sobre o tema aos limites da lógica. O
herói, Charles Ratier, que no início do romance
é um jovem sensual, com muitas amantes, al­
cança o ponto culminante de sua carreira ao
abandonar o sexo para se dedicar ao estudo da
ciência. Aprende, então, a regenerar órgãos
humanos e, assim, a vencer a morte. O resulta­
do de suas descobertas, ao mesmo tempo, re­
duz ainda mais a necessidade da reprodução.
O progresso da ciência, aliado a uma tendên­
cia geral de queda no crescimento da popula­
ção, promete um futuro no qual o individualis­
m o se torna uma possibilidade cada vez mais
real. “O declínio populacional” , Madeleine Pel­
91 " L a d é p o p u la t io n , lo in
letier escrevera anteriormente, “longe de ser um
d ’ é t r e u m m a l, e s t u m mal, é um bem essencial, pois é o corolário da
b ie n e ss e n tie l, c o r o lla ir e evolução geral dos seres; é a expressão da vitó­
d e 1’ é v o lu t io n g é n é r a le
ria do indivíduo sobre a espécie . ” 91 Contudo,
des ê tre s , elle est
uma vitória ainda maior é vaticinada, quando
l’ e x p re s s io n d e la v ic to ire
d e l’ in d iv id u sur T e s p è c e". astronautas descobrem na lua um tipo de co­
P E L L E T ÍE R , 1 9 2 6 , p . 6 0. lonização — presumivelmente, uma amostra

242
u INDIVIDUALISM; RADICAL DE MADELEINE PELLETÍER '

daquilo que o futuro reserva para os terráqueos


— que tem características admiráveis; “Todos
os indivíduos eram iguais, e não havia sexo. A
reprodução ocorria a partir de ovos que os in­
teressados podiam obter em um estabelecimen­
to especial, onde eram mantidos sob calor mo-
92 " T o u s ie s in d iv id u s derado,” 92
é ta ie n t s e m b la b le s e t i! n’ y “Todos os indivíduos eram iguais, e não
a v a it p a s de sexe. La ^avia sexo” . Lá, Onde não há sexos diferentes
d e s o e u fs q u e les in d iv i- nem conjunção carnal, existem individuos; logo,
d u s a lla ie n t p r e n d r e d a n s onde há sexo, não há indivíduos, e estes só po-
u m é ta b lis s e m e n t s p é c ia l dem se representar com o tal, caso estejam li-
m a in te n u à une te m p e r a - bertos do sexo. N a Lua, a contradição gerada
19 3 2 igg pela ne cessaria dualidade que a diferença se­
xual acarreta pode ser resolvida; na Terra, pode
apenas ser reprimida. Em sua frustrante busca
pela individualidade, Madeleine Pelletier fazia
da repressão à diferença sexual uma estratégia,
e, deste modo, tornava visível o papel, até então
oculto, que tal repressão exercia na representa­
ção do indivíduo com o ser humano transcen­
dental. A necessidade de aceitar o masculino
com o o indivíduo universal, de um lado, e a in­
sistência em afirm ar que a individualidade
transcende o sexo, de outro, constituíam um
paradoxo absolutamente insolúvel para ela.

Quando Madeleine Pelletier escreveu so­


bre a igualdade dos indivíduos, referiu-se espe­
cificamente ao fato de que não eram diferenci­
ados pelo sexo. Sua noção de individualidade,
porém, não abandonou a idéia da hierarquia
natural: em bora os corpos sexuados fossem
irrelevantes, as mentes eram cruciais para dife­
renciar as pessoas. A inteligência, entendida
com o poder de controle racional, tornava os in­
divíduos perceptíveis na multidão. N ã o era, pois,
um atributo de todo ser humano, mas um privi­
légio de poucos. Madeleine Pelletier acreditava
que não se poderia negar, exclusivamente com
base no sexo, a quem quer que fosse dar provas

243
JOAN W. SCOTT

de sua Inteligência. Afinal, a mente extrapolava


o âmbito do corpo, mesmo que a inteligencia
fosse considerada inata. Havia uma “desigual­
93 P E L LE T IE R , 1923, p. dade intelectual original” ,93 que se poderla supe­
21 . rar apenas pela educação. E este era o único fun­
damento aceitável para diferenças sociais. Ao
contrário da aristocracia, que tem base na fortu­
na, no nascimento ou no gene ro, “a aristocracia
da razão” era natural, inevitável e salutar.
A marca de uma inteligência superior era
a individualidade e se manifestava na originali­
dade, na recusa em conformar-se com modos
de agir e comportamentos convencionais, na
habilidade de transcender “os grilhões imaginá­
rios” da sociedade, afirmando, em seu lugar, a
realidade exclusiva do eu. “Eu existo, e eu exis­
to sozinha” , escreveu ela, fazendo uma delibe­
rada referência a Descartes. “Antes de refletir
94 "Je suis e t je suis seu l [...] sobre isso, acreditava estar amarrada aos ho­
Avant la r e fle x ió n , je m e mens e às coisas por todos os tipos de laços [...]
c r o y a is ra tta c h é e aux
A o refletir, entendí que [...] [isso é] uma ilusão,
h om m es et au x choses
p a r tou tes sortes d e fils [...] que, na verdade, estou sozinha e essa é a única
A la re fle x ió n , j ’ ai c o m p ris realidade.” 94
q u e to u s c e s lie n s s o n t “Estou sozinha, e tudo me é exterior” 95. O
illu s o ir e s e t q u e j e suis
eu era propriedade privada, fora do controle e
seul, la s eu le réa lité". P E ­
L L E T IE R , 1 9 1 9 , p. 9 4 -9 5 .
da influência dos outros, mas sua percepção d e­
pendia da existência dos outros. M adeleine
Pelletier operava dentro dos termos de um dis­
curso no qual a individualidade se fundamen­
95" J e suis seu l e t tou t m ’est tava na presença maciça de seu oposto — a
e x t é r ie u r ". P E L L E T I E R , multidão, a comunidade, o corpo social, a na­
1 9 1 9 , p . 9 5.
ção — e no caráter hierárquico do relaciona­
mento entre o eu e a sociedade. O indivíduo
não era somente aquele que se apresentava em
oposição à massa, os pressupostos de sua exis­
tência punham em questão certos preceitos re­
publicanos dominantes: os reais benefícios do
sistema eleitoral de maioria e os da legislação
imposta em nome (ou pelo bem ) dessa m aio­
ria, leis cujos efeitos eram a antítese da indivi­
dualidade. “O individualismo está em contra-

244
O IN DM DÜALISM O RAD ICAL D E M A LELEILIE P E L LE T IE R

dição com a democracia d a I o n na oca ig esia 2


96 "L in d iv ld u a lis m e est en entendida pelas pessoas comuns5’. 56
con tradicLion a v e c la Madeleine Pelletier tentou articular sua te­
d é m o c r a t ie t e lle q u e le
oria sobre o individualismo em 1919, num m o­
v u lg a ir e la c o m p r e n d " .
P E L L E T IE R , 1919, p. mento em que, profúndameme decepcionada
116 . com a força que as nações tinham de m obili­
zar as massas para guerras fúteis e devastado­
ras, perdera todas as suas Ilusões. “ Dever, de­
dicação, sacrifício, não os conheço; vocês são
palavras, e eu sei que com tais palavras só
97 " D e v o ir , d é v o u e m e n t , querem me enganar.” 97 Seu argumento, po­
sac rific e , je n e vou s rém, ia muito além de um ataque ao patriotis­
c o n n a is pas, v o u s etes des
mo, pois invocava o discurso do individualis­
m o ts e t je sais q u ’ a v e c ces
m o ts o n n e v e u t q u e m e
mo. O elitismo presente na obra que Madeleine
tro m p e r". P E L L E T IE R , Pelletier escreveu em 1919 já se evidenciava
1919, p. 94. em toda sua longa carreira — em 1906, na
sua descrição do feminismo com o conquista
de uma pequena elite; na discussão de 1912,
sobre o progresso social com o “o triunfo dos
m elhores” ; no seu comentário de 1914 sobre
as mudanças sociais com o um processo influ­
enciado por “ indivíduos da elite” . O mesmo
elitismo foi expresso, também, nas contunden­
tes e devastadoras descrições da persistência
da brutalidade na natureza dos hom ens da
classe trabalhadora; da subserviência das mu­
lheres; da inveja, do m edo e do ódio que as
massas tinham das “ inteligências superiores” ,
e, em 1922, na caracterização das multidões
com o “massa amorfa que só serve para ser
amalgamada por um reduzido grupo de pes­
soas inteligentes e ousadas, assumindo, então,
a forma que lhe quiserem dar” (quando rela­
98 PE LLE TIE R , 1906, p. tou a sua viagem à União Soviética ) . 98
41; 1912, p . 1 4 3 e Em Une vie nouvelle , Madeleine Pelletier,
146; 1914, p. 6 4 ; e Mon
referindo-se aos primeiros dias de sua imagi­
uoyage a ven tu reu x en
R u ssie communiste nada revolução, descrevia o caos resultante da
(1 9 2 2 ), c ita d o por liberação desenfreada da sexualidade masculi­
G O R D O N , 1990, p. 163. na. Ninguém estava seguro, especialmente as
mulheres: “A noite, bandos de embriagados
perambulava pelas ruas, exibindo seus órgãos

245
99 "La nuit les. oandes e gritando propostas obscenas/5 ^ (Aqui a ex­
■d’hornryies ivres parcou-
posição do órgão masculino significava a. au­
ra ie n i íes rúes em
sência tío falo — uma ocorrência sociopolítica
exhibant leurs organes et
en h arlant des p ro p o s — e, c o n s e q u e n t e m e n t e , a-falencia da posse do
obscènes". PE L LE T IE R , poder a ele vinculado.) Até. que um ditador b e­
1932, p. 37. nevolente restaurasse a ordem e impusesse a lei,
a defesa das mulheres, acrescenta Madeleine
Pelletier, foi vestir roupas masculinas, eclipsar
sua identidade sexual, a fim de que não aca­
bassem presas de estupradores. A nova moda,
que pegou, permitiu que elas, à semelhança dos
homens, se identificassem por m eio do falo, en­
quanto um Pai não surgisse para declarar sua
Lei. Quando, porém, um ditador assumiu e or­
ganizou a reconstrução da sociedade, tca políti­
ca no sentido estrito da palavra” desapareceu.
(E o sexo voltou para a esfera própria. A
animalidade e as outras funções corporais eram
mais apropriadas no âmbito privado, julgava
100 P ELLE T IER , 1932, p. Madeleine Pelletier. ) 100 As pessoas, felizes de tal
201 . m odo com a vida, aceitavam sem questionar
ser governadas por uma minoria; não tinham
desejo algum de entrar em competição com o
Pai: “As massas se desinteressam pelos negóci­
101 "La masse se désinte- os públicos . ” 101 Só a elite votava, e seu poder
ressait des affaires publi­ era legitimado pela inteligência. O falo estava,
ques". PELLETIER, 1932,
então, na posse de poucos, de ambos os sexos.
p. 178.
Virilidade equivalia a qualidades elevadas da
mente, não a posse de um pênis.
Cética em relação à democracia das mas­
sas, Madeleine Pelletier, no entanto, fazia cam­
panhas para que as mulheres conseguissem o
status de cidadãs. Tinha plena consciência dos
limites de sua posição: a mulher, a fim de con­
quistar a condição de indivíduo — a “única re­
alidade” respeitada — , tinha de ser reconheci­
da politicamente com o mulher. Historicamen­
te, a cidadania era vista com o o reconhecimen­
to dos direitos de indivíduos pré-existentes.
Madeleine Pelletier revertia essa relação de cau­
salidade, revelando a maneira pela qual a cida-

246
D INDMDUAUSMO RADICAL Dh MADELhINE PELLETIER

danla criava, a; um só tempo, os indivíduos e


seus direitos. N o apelo qüe fazia em favor do
voto da mulher, ainda que Madeleine Pelletier
admitisse a instabilidade e a vulnerabilidade da
representação, ela reconhecia sua força defini­
dora e implacável (é da significação das pala­
vras que depende a existência das coisas. Por­
tanto, as mulheres só se tornariam cidadãs quan­
do a lei assim as designasse).
O assunto, porém, não estava encerrado.
Em épocas anteriores, a cidadania era vista
com o um sinal inequívoco da individualidade.
N o início do séculoXX, porém, essa correspon­
dência não era mais considerada. Por muitos,
a cidadania passara, então, a ser vista com o
um fator de redução do indivíduo à categoria
de membro indistinto da massa, da multidão, e
isto não significava a afirmação da individuali­
dade, mas sim a sua perda. Madeleine Pelletier
reivindicava exatamente o que distinguia os in­
divíduos, a fim de eventualmente libertar parte
deles. Tentava explicar a seus amigos anarquis­
tas que “o direito ao voto, mesmo que fosse tal­
vez uma meta ilusória, era um estágio pelo qual
as mulheres deveriam passar para que obtives­
102 P E L LE T IE R , "M ém oi- sem sua liberdade . ” 102 O problema era ao mes­
res", p. 6. Piara um estudo m o tem po prático e simbólico: as mulheres,
sobre suas ligações com
com o grupo, tinham que integrar, legítima e le­
anarquistas, v. G O R D O N ,
galmente, a massa (de eleitores?), em condição
1990, p. 21.
de igualdade absoluta com todos os membros
já atuantes (os do sexo masculino), a fim de que
algumas delas pudessem se distinguir e se colo­
car acima dessa massa, uma realização só pos­
sível para quem desde sempre fruísse os benefí­
cios da representação que pretendesse transcen­
der. O direito de voto, como fator de evolução,
era um “estágio” obrigatório e intransponível
para as mulheres, e, por conseguinte, não cons­
tituía mera referência ocasional de Madeleine
Pelletier. Ela vivia, portanto, uma tensão, prove­
niente da tentativa de conciliar dois significa-

247
aos historicamente distintos (e incoerentes) de
indivíduo, num mesmo momento histórico. Essa
tensão era às vezes aliviada e às vezes intensifi­
cada pelo fato de que, tanto o cidadão univer­
sal do século XVIII, quanto o intelectual, do sé-
■.Vo XX, na sua condição de indivíduos, eram
. imbolicamente identificados masculinos.
Foi talvez essa tensão que fez com que
Madeleine Pelletier acabasse exagerando em .sua
auto-representação masculina, pois ela queria
afirmar tanto seu direito à cidadania, quanto sua
superioridade intelectual em relação à multidão
ou a qualquer grupo (quer de mulheres, de femi­
nistas, de socialistas, de operários, quer de mili­
tantes de partidos políticos) — um esforço para­
doxal e duplamente masculino! Sua aparência e
seu comportamento faziam com que ela desto­
asse em qualquer organização de que fizesse
parte. Os anarquistas e os socialistas, tentando
fazê-la ver que seu corpo era o fundamento
ontológico de sua identidade, insistiam em que
ela deixasse crescer o cabelo e passasse a usar
saia. Um de seus mentores socialistas, Gustave
H ervé, apresentava-lhe Louise Michel com o
modelo, alegando que esta havia chegado à lide­
rança do partido sem desistir de sua feminilida­
de. Por que razão não podia ela fazer o mes-
103 P E LLE T IER , "M ém oi- m o ? 103 Madeleine Pelletier, embora se referisse
res"’ P- 4 3 - ao assunto com desdém, não deixava de se
comprazer com a impressão de singularidade que
criava. N ão parecia mulher, nem homem; não
era feminina bastante como as colegas feminis­
tas, não era máscula por completo com o seus
camaradas socialistas: era uma anomalia. Era
singular, mesmo entre os de vanguarda, e essa
singularidade equivalia a um sentimento de su­
perioridade, pois é fácil perceber as repetidas ten­
tativas de impor sua individualidade ao longo de
todo o itinerário político que percorreu.
Madeleine Pelletier foi mais ativa politica­
mente nos anos que antecederam a Primeira

248
O ÍNDMDUALISM0 RAD ICAL D E M A D F T FTNF PELLET7EP

Guerra mundial. hm 1904, íoi inicia.da numa


“obediencia” rnaçônica destinada a ambos os
sexos (as lojas regulares excluíam as mulheres).
Atraíram-na o clima intelectual, a troca de idéias
entre republicanos e socialistas e a possiA Oda-
de de ampliar o movimento maçõnico até a to­
tal aceitação de mulheres. Numa ativiclaM Fre­
nética, fazia conferências e escrevia artio-
bre assuntos variados, sobretudo o s que sem­
pre mantinham acesa sua luta, com o o dir rito
das mulheres ao aborto e ao voto feminino. Seu
sucesso em introdur i Louise Micheí em sua loja
rnaçônica foi um golpe de mestre, que lhe 'trou­
xe atenção e elogios. A meta que Madeleine
Pelletier claramente pretendia era que a mulher
alcançasse a cidadania total — a mesma que o
século XVIII preconizara. Queria preservar, ao
mesmo tempo, a atmosfera elevada da maço-
naria, com sua hierarquia e seus rituais. “Não
há por que esconder o fato de que nossa civili­
zação” , afirmava numa conferência em 1904,
“ [...] é realização de uma elite restrita” . As mas­
sas eram incapazes de engendrar o pensamen­
to “profundo” típico dos maçons, na medida em
que chegaram até a empreender a reforma da
sociedade. N ão havia, portanto, por que trazê-
las ao movimento. “Meu conceito dos maçons é
o de uma oligarquia iluminada, suficientemen­
104 "M a conception de la
m açonnerie serait ainsi
te forte [...] [para que o governo tenha consci­
celle d ’u n e o lig a rc h ie ência de que ela existe], e sem os defeitos das
éclairée assez forte pour outras oligarquias, já que suas fileiras se abri­
obliger le gouvernem ent am para todas as pessoas inteligentes. ” 104 A in­
à compter avec elle, et qui
teligência era uma garantia, segundo Madeleine
n’aurait pas les défauts
d es au tres o lig a rc h ie s Pelletier, não apenas de decência, mas também
puisque ses rangs seraient de justiça e benevolência.
o u v e rts à tou tes les A inteligência de Madeleine Pelletier e sua
i n t e l l i g e n c e s " .
extraordinária energia lhe conquistaram admi­
PELLETIER, "L idéal m a-
ço nn ique",1904, citado
radores e inimigos entre os maçons, muitos dos
por S O W E R W IN E e quais temiam que sua campanha para trazer
M A IG N IN , 1992, p. 56- mulheres para dentro das lojas, sempre de fre-
57. qüência exclusivamente masculina, acabasse

249
JOAN W. 5COTT

tende* âxiio. Chegou ao extremo de ser discipli­


nada, mais de uma vez, por excessos — chegou
a ameaçar alguém com um revólver— , e até'de
ser punida com suspensão pela loja a que per­
tencia. Embora tenha permanecido fiel à ma-
çonaria a vida inteira, observa-se que transfere
energh e atenção para organizações feministas
e souCuias, já antes de 1906.
Madeleine Pelletier concordou em substi­
tuir Caroline Kauffmann na liderança de urna
pequena organização feminista, La Solidarité
des Fernmes, naquele ano, o mesmo em que se
filiou à 5FIO. Nessas organizações, assim com o
na maçonaria, ficou evidente a tensão entre seu
apelo universal pelos direitos da mulher e seu
elitismo. N a verdade, ainda que alguns histori­
adores tenham considerado esse período da vida
de Madeleine Pelletier com o um exem plo típico
de “casamento infeliz” entre feminismo e socia­
lismo, essa observação não procede. Foi a ten­
são en tre o e n g a ja m e n to num a p o lític a
em ancipadora (em nom e de mulheres, cida­
dãos, operários), por um lado, e a busca da in­
dividualidade, por outro. Em resumo, foi a ten­
são entre universalismo e elitismo que acabou
p rob lem atizan do a experiên cia p olítica de
Madeleine Pelletier nesse período. C om o se p o ­
derla concretizar o individualismo d o sujeito
feminista numa época de política de massas?
Porém, o engajamento simultâneo no socialis­
mo e no feminismo permitiam que ela se distan­
ciasse das reivindicações m onopolizantes de
ambas as ideologias.
Entre as feministas, Madeleine Pelletier fir­
mava posição contra a feminilidade; entre os
socialistas, ela denunciava a misoginia. Criti­
cava as “ idéias absurdas” propaladas sob a
bandeira do feminismo, mas, para as mulheres
que se filiavam a partidos políticos, salientava
a importância das organizações feministas. Es­
tas, consoante o que escreveu num panfleto

250
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

muito inteligente, “La Femme en lutte pour-ses


droits” , em 1908, propiciavam às mulheres a
oportunidade de “saber com o se afirmar” . As
mulheres deveriam se engajar em partidos polí­
ticos tanto para provar sua capacidade quanto
para demonstrar a influência do feminismo.
(Não deveriam, porém, fazer apenas campanhas
favoráveis a projetos feministas, pois isso com ­
prometia o programa de seus partidos; na ver­
dade, a m ulher d e v ia agir co m o “ un bon
militant” . E claro que, ao surgirem questões re­
lacionadas a mulheres, elas sempre deveriam
interferir.) Os grupos feministas ensinavam as
mulheres a falar, o que era umã habilidade es­
sencial, visto que “num grupo político, quem
105 "Dans un groupem ent não fala não tem existência ” . 105 Esta, porém,
p o litiq u e q u i ne p a rle embora necessária, era efêmera: “N ã o se ilu­
n existe pas". PELLETIER,
dam. Se um partido as ergue [a uma posição
1908, p. 65-66.
de proeminência] é porque tem interesse em
fazê-lo. Independentemente do apelo sexual, as
mulheres sentem carinho pelos homens, mas os
homens em geral nada mais sentem além de in­
106 P E L LE T IE R , 1908, p. diferença e ódio pelas mulheres. ” 106 Medeleine
72. Pelletier aconselhava as mulheres a nunca dar
a um partido político “o coração, porque o co­
ração é nosso; ele pertence a nossas organiza­
ções feministas, as únicas que trabalham em
favor de nossa emancipação” . Referia-se, en­
tão, às organizações feministas com o o verda­
deiro “lar” das mulheres, usando a palavra in­
glesa “ hom e” (casa, lar) para destacar a ques­
107 P E L LE T IE R , 1908, p. tão . 107 E tentador ver aqui um trocadilho com a
156. palavra francesa “ hom m e” (hom em ) e sugerir
que Madeleine Pelletier tinha a intenção de di­
zer que as organizações feministas permitiam
que as mulheres se sentissem “en hom é\ ou
seja, em casa, à vontade; ou “en hom m e” , isto
é, com o homens. As mulheres se reconheceri-
am, portanto, humanas, livres dos aviltantes atri­
butos femininos, livres da necessidade de defi­
nir a existência de acordo com os desejos dos

251
JOAN W. SCOTT

nomens. Para, Madeleine Pelletier as orga niza-


ções feministas funcionavam menos para soli­
dificar uma identidade feminina comum, do que
para dar força às mulheres engajadas em ativi­
dades políticas para resistirem às pressões que
as reduziríam a seu sexo.
N o Solidarité des Femmes, Pellefier com ­
batia aqueles que viam o feminismo com o a ex­
pressão política da identidade das mulheres. N a
SFIO, apresentava-se como “ un bon militanfh
E foi com o tal que ela acabou sendo a úrm c
mulher a ser eleita para o conselho executivo
com o representante (1909 — 1911) da facção
re v o lu c io n á r ia de e s q u erd a lid e ra d a p o r
Gustave Hervé. Mesmo tendo sido “um bom mi­
litante” , porém, seu sexo e seu feminismo a dis-
108 PELLETIER, 1908, p. tinguiam dos outros líderes partidários . 108 Em
152. "Je suis taillée pour 1906, ela fizera a defesa do vo to feminino no
la lutte politique", escre­
congresso do partido em Limoges e negocian­
ve ela a Arria Ly, era 1913,
"on me refuse parce que do, depois, com Jules Guesde, Jean Jaurès e
femme". Citado por S O - outros líderes, que fosse implementada a reso­
W E R W IN E & M AIG NIN, lução aprovada pelo partido em favor do voto
1992, p. 91.
feminino. Embora, com o membro do conselho
executivo, cuidadosamente evitasse defender a
causa feminista, continuava escrevendo a fa­
vor do feminismo, chegando a certa altura a
enfurecer Hervé com um artigo que escreveu
no jornal dele, “La guerre sociale” , em defesa
do serviço militar para as mulheres. (Hervé, afir­
mando que a proposta era contra a natureza,
respondeu-lhe: “se as mulheres vã o para os
quartéis, os homens terão que fazer sopa e b e­
109 PELLETIER, "M ém oi- bês ” . ) 109 Se o ativismo socialista a levou para
res", p. 43. além das fronteiras do feminismo, este movimen­
to, por sua vez, lhe rendeu uma posição de des­
taque entre os socialistas. A o concorrer a um
cargo na legislatura de 1910, pela cédula socia­
lista, Madeleine Pelletier deu ênfase, em sua cam­
panha, à singularidade de sua situação. Quan­
do uma multidão de empregadas domésticas se
reuniu para ouvir seu discurso, ela lhes contou

252
O H 4 D M D U A L IS M O RADICAL DE M AD E LE IN E PE:__ - ' :T;

110PE LLE TTBR; nM a candi­ tudo sobre o evolução dos muihereo i>:urno à
da ture à la députation",
independência [...] [e se apresentou] corn j urn
1910, citad o por
C O R D O N , 1990, p. 126.
exemplo dessa evolução ” . 110 Em 1922, na qua­
lidade de membro do Partido Comunista, en­
quanto reconhecia a necessidade de uma or­
111 M A IG N ÍN , 1992, p.
ganização para as operárias e outra para a;
164 .
cam ponesas dentro d o partido, ao mesniu
tem po (agora, na qualidade de feminista), in­
112Sobre a historia do ne-
sistia que intelectuais evoluídas, com o era u
omaitusianismo na Fran­ seu caso, não deveriam ser distinguidas dos
ça, v. R O N S IN , 1980; hom ens.111
M cLAREN, 1978, p. 461- embora Madeleine Pelletier tivesse perma­
85. S obre o movimento
necido na SFIO até 1920, quando a organiza­
pró-natalidade d o inicio
do sé c u lo XX, v. ção se dividiu, ela trabalhou intensamente tam­
ROBERTS, 1994, p. 93- bém para que o movimento neomaltusiano pro­
147; e COLE, 1996. gredisse. Ela escreveu Uémancipation sexuelle
desfemmes, em 1911, republicou, em forma de
panfleto, o capítulo sobre o direito ao aborto,
113 M cL a r e n , 1976, p .
4 7 5 -4 9 2 ; ARMEN-
em 1913 e incluiu o mesmo capítulo em La
G A U D , 1966; G A Ñ I, rationalisation sexuelle, publicado em 1935.
1979, p. 1023-43-, SAU- Além disso, ela dava palestras regulares sobre a
VY, 1966. A este respeito, questão do controle da natalidade, debatendo
Madeleine Pelletier fez o
seu mérito em fóruns públicos, em especial nos
s e g u in te c o m e n tá rio :
"S e m p re m e pergu ntei do Club du Faubourg nos anos trinta. E possível
por que o P S U [Partí S o- que tenha praticado abortos, pois tinha forma­
cialiste Unifié] se mostrou ção m édica . 112
hostil à p ro p agan d a
Sua defesa do controle populacional pelo
n e o m a ltu sia n ista . [...]
Paul Robin, na verdade,
aborto e pelos contraceptivos se baseava na con­
transformou o neomaltu- vicção de que o indivíduo era responsável por
sianismo num verdadei­ sua condição econômica e social, uma convic­
ro sistema social [...] D e ção que se opunha à maioria das análises soci­
certo m odo, ele foi um
alistas da estrutura do capitalismo. 113 (Se H ervé
reform ador que queria ,
em primeiro lugar, melho­ era uma exceção, graças ao seu a p o io ao
rar a situação do operari­ neomaltusianismo, essa parece ter sido uma das
a d o p e la lim itação d a razões para Madeleine Pelletier aderir à facção
p ro cu ra do trabalho, o
do socialismo que ele liderava.) Essa causa pre­
que ocorrería se houves­
se um a sábia limitação da
enchia, ao mesmo tempo, as concepções do in­
fertilidade do operariado dividualismo dos sécs. XVIII e XIX, pois fazia
[...] assim entendido, o do controle sobre o corpo a expressão literal (e
neomaltusianismo foi, de a precondição) da posse irrestrita do eu. Foi uma
certo m odo, um partido
causa que também mudou a ênfase do indivi-

253
5-'2parado do socia i V •no dualismo, pois tornou o Estado e suas leis, e não
O controle da natali­
a massa ou as convenções sociais, o alvo da
dade voluntário, porém,
oposição necessária para a existência do indi­
não é necessariamente li­
gado à teoria social. De víduo.
qualquer forma que v e ­ Essa concepção de M adeleine Pelletier
jamos o futuro da socie­ chamou a atenção também para o corpo da mu­
dade, não resta a menor
lher em relação à conturbada busca por uma
dúvida de que, no pre­
sente, é mais fácil para identidade independente de sexo que qualquer
uma família de operários mulher quisesse empreendeu H avia um para­
alimentar dois filhos do doxo nesse compromisso político — tão concre­
que alimentar seis". Cita­
tamente centrado no corpo feminino— assumi­
do por C O RD O N , 1990,
p. 137.
do por Madeleine Pelletier: insistir que a mente,
e não o corpo, era a chave da individualidade;
que a diferença sexual era uma questão de há­
bitos psicológicos adquiridos; que as atividades
do “baixo-ventre” eram dipensáveis, porque
decididamente inferiores às elevadas atividades
da mente, mas, ao mesmo tempo, envolver-se
em campanhas que chamavam a atenção para
os corpos das mulheres (uma referência física
in d iscu tivelm e n te m arcad a p e lo s e x o ),
teorizando sobre a autonomia que elas deveri-
am ter quanto a usarem-nos com o bem enten­
dessem. O trabalho de Madeleine Pelletier em
fa v o r d o d ire ito a o a b o rto r e v e la v a m a
interdependência da oposição mente/corpo que
ela tão tenazmente sustentava: o eu autônomo
não era apenas uma conquista cognitiva, mas
114 C O R N E L L , 1991, p. uma entidade material, um corpo integral. 114
9,13. A questão da diferença sexual, no que
respeitava ao corpo da mulher, se revelava
crucial: o aborto transcendia os limites da
maternidade impostos à mulher, ao mesmo tem­
po em que chamava atenção para o seu cor­
po, cuja influência era para ser negada. As leis
que proibiam o aborto estavam nos livros des­
de 1810. O Art. 317, do C ódigo Penal punia
tanto quem fazia o aborto quanto quem assu­
mia o procedimento. Em julho de 1920, após a
d e va sta çã o causada pela P rim eira G u erra
Mundial, acompanhando a onda de agitação

254
O INDIVIDUALISMO RADICAL L-E LMDl LEINE PELLETIER

pró-natalidade que ■condicionava a recupera­


ção da França a um aumento intensivo da p o ­
pulação, os legisladores tornaram as penalida­
des nessa área mais severas e proibiram até a
publicação de informações sobre contracepti­
vos. Madeleine Pelletier não se intimidou nem
an tes n em d e p o is das leis. P a ra ela , a
criminalização do aborto era uma negação da
individualidade da mulher, o que vinha a ser
outro aspecto da negação da cidadania. Com
essas leis o Estado não só reduzia as mulheres
a seus úteros, mas também violava sua inte­
gridade corporal. O Estado se apropriava das
funções reprodutivas da mulher por interesse
próprio, da mesma forma com o os homens usa­
vam o corpo da mulher com o um “ instrumen­
to” de satisfação sexual e, por via dos arranjos
de família e de propriedade, mantinham o p o ­
115PELLETIER, 1923, p. 6. der patriarcal. 115 A o privar a mulher de um bem
inalienável, ou seja, o controle de seu corpo e
de seu eu, o Estado infringia um compromisso
a si próprio inerente: proteger a liberdade de
povo.
O remédio, segundo Madeleine Pelletier, era
não só insistir para que as mulheres tivessem
direito ao voto, mas também questionar a lega­
lidade da lei, o que ela começou a fazer em seus
discursos e escritos depois de 1920. Um de seus
panfletos, “ Llamour et la maternité” , foi publi­
cado em 1923 pelo grupo de Propagandas
Panfletárias. Mas ela parece também ter feito
propaganda pela prática de suas ações, bem à
moda dos anarquistas, usando seus conhecimen­
116 G O R D O N (1990, n.8,
tos de medicina e sua condição de médica (a
p. 261) traz pro vas con­ partir de 1906, exerceu a profissão, contratada
vincentes a este respeito. pelos serviços postais, atendendo uma peque­
V er ta m b é m Leonor na clientela em seu consultório), a fim de prati­
Penalva, "Madeleine Pel­
car abortos clandestinos, muito em bora nunca
letier: Une a p p ro c h e
psychanalitique", citado tivesse reconhecido que o fizera . 116 Foi por in­
por B A R D , 1992, p. 141- termédio dessa atividade que demonstrou sua
144. dedicação com o indivíduo, colocando seu co-

255
nhecimenio científlcc' (ahcurnacaC- médica 3 3
prática) a serviço daqueCs que não podiam se
ajudar (Incapazes até de controlar seus corpos).
Num a peça teatral, “In anima vili, ou un crime
scientifique” (1920), Madeleine Pelletier põe na
boca de uma de suas personagens, um cientis­
ta, as seguintes palavras: “A lei, a moral são para
hom ens e circunstâncias ordinárias [...] nós
somos homens extraordinários [...] coloquem o-
117Citado por G O R D O N , nos à altura em que nòs devem os situar. ” 117
1990, p. 48. Corno médica, ao libertar os corpos das mulhe­
res do aspecto mais opressivo da lei, Madeleine
Pelletier transcendia a própria lei; e, deste fato,
na verdade, resultou nada menos que a repre­
sentação literária de sua própria individualida­
de. Por um paradoxo, entretanto, ela se fez re­
presentar por um indivíduo eminentemente mas­
culino, ou seja, o médico-cientista-intelectual,
por ela definido com o hierarquicamente opos­
to não apenas ao seu objeto de trabalho, o cor­
po reprodutor da mulher, mas também à auto­
ridade externa e ilegítima do Estado. A o mes­
mo tempo, ao devolver a integridade física ao
eu da mulher, que de outra forma a teria perdi­
do, a própria Madeleine Pelletier ficou no lugar
da lei, o que teve várias implicações. Ela reco­
nhecia a força da lei para criar indivíduos (ou
se negar a fazê-lo), mas ao mesmo tem po argu­
mentava que a liberdade absoluta dos indivídu­
os — cidadãos ou não— existia independente­
mente de regulamentações estatais.
O fim da vida de Madeleine Pelletier ilus­
tra de forma contundente o poder definidor da
lei e os limites que esta impõe para impedir que
o indivíduo controle sua auto-representação. Em
1933, ela fo i perm an en tem en te v ig ia d a e
investigada pela posição profissional que ado­
tava em favor do aborto. Suas palavras e ações
a tornaram uma adversária poderosa aos olhos
dos que se opunham àquela prática, e, freqüen-
temente denunciada, tornou-se um exem plo da

256
arneaÇci i a mi ñisca para o futuro da civilização
francesa. Em 1935, o Club du Faubourg foi pro­
cessado por p rom over pornografia, porque
Madeleine Pelletier fez ali palestras sobre vários
tópicos constantes de seu livro La rationalísation
sexuelle, uma das quais sobre “E a noite de
núpcias estupro legal?” e uma outra sobre “A
118 G O R D O N , 19 90 , p. redução populacional e a civilização” . 118 Mo
219. último ano de vida foi presa e condenada por
supervisionar abortos. (E que não podia ela pró­
pria fazer as cirurgias, porque, dois anos antes,
um derrame a deixara hemiplégica.) Seu esta­
do de saúde levou, então, o juiz a determinar
que cumprisse pena num hospital, em vez de
numa prisão. Em conseqüência, embora gozas­
se de perfeita saúde mental, passou o resto do
ano num manicômio judicial: morreu em de­
zembro de 1939.
Historiadores perceberam a ironia da si­
tuação: a primeira mulher a lidar com psiquia­
tria foi, em seus últimos dias, encarcerada num
asilo para doentes mentais. Para M adeleine
Pelletier, porém, a contradição mais terrível es­
tava na percepção legal e pessoal de sua situa­
ção. O depoim ento de sanidade mental que
prestou não teve qualquer efeito sobre sua con­
dição legal. “Vocês não conseguem imaginar
com o é terrível estar num asilo para doentes
mentais quando se tem consciência da própria
sanidade mental [...] Minha mente está mais
vigorosa do que nunca. E por isso que sofro tan-
119 G O R D O N , 1990, p. to” , 119 escreveu ela a Hélène Brion. Em outra
228. carta, contou à amiga que alguém lera para ela
uma notícia de que, na Suíça, havia planos de
mobilização de mulheres para o exército, e co­
mentou que ela própria concebera essa mesma
idéia muitos anos antes e que, na época,
Gustave Hervé e todos os que leram seu artigo
sobre o assunto só a ridicularizaram: “E assim,
na França, que mulheres que se notabilizam por
seus pontos de vista intelectuais são tratadas.

257
- JOAN 77 5COTT - '

[Arría Ly] se suicidou, e eu eAcu num hospí­


120 G G R D O N , 1990, p. cio.” 120 O poder dos outros — consubstanciado
230. na lei e nos seus agentes — , seja para confir­
mar, seja para negar a existência do indivíduo,
era esmagador. O projeto de autocriação de um
indivíduo, por mais privilegiada que fosse sua
inteligência, não se poderia realizar sem que
esses “outros” o sancionassem.
A situação de Madeleine Peiletier, em 1939,
era a antítese da cena que ela tão orgulhosa­
mente protagonizou no tribunal de 1908, quan­
do foi acusada de jogar pedras: em urnas eleito­
rais. Seu julgamento fora presenciado por um
bom número de feministas, que viram naquele
acontecimento uma vitória. “Todo o grupo es­
tava lá [...] m esm o alguns dos grupos de
121 "Tout le groupe est là
Hubertine Auclert e de Madame Oddo. Foi a
[...] et m êm e une partie
des groupes de H. Auclert primeira vez que o feminismo aparecia num tri­
et de Mm e. O ddo. O n me bunal de justiça. Todas me encorajavam.” 12 1 A
felicite. C ’est la première ocasião era para cumprimentos, pois o fem i­
fois q u e le fé m in ism e
nismo tinha ganho o dia perante um tribunal. A
c o m p a ra it d e v a n t les
trib u n a u x . On me
multa de dezesseis francos que M a d elein e
souhaite b o n courage". Peiletier teve que pagar foi um castigo, mas tam­
PELLETIER, "Mémoires", bém um indício de vitória legal, e de nascimen­
p. 25-26. to de uma entidade feminista.
A integridade do eu, bem com o a do cor­
po (corporificação do eu) dependia da investi­
122Madeleine Peiletier fala dura em poderes “externos” , e, por isso, o direi­
sobre a im portância d o to ao voto era a chave da realização da indivi­
voto nas páginas finais de
dualidade da mulher. N o fim da vida, Madeleine
suas memórias, escritas à
m ão num volum e enca­ Peiletier, a despeito de desconfiar das multidões,
dernado a couro verm e­ da democracia das massas e do reducionismo
lho; a prim eira p á g in a decorrente das categorias de identificação so­
ostenta u m a fo tog rafia
cial, ainda considerava a cidadania, isto é, o
sua e o título "D outora
Peiletier: m em ó rias de
direito ao voto, com o o mais importante objeti­
um a feminista". N e gan d o v o das feministas. 122 Visto que buscasse a indi­
a c u sa ç õ e s d e q u e e ra vidualidade das mulheres, expunha, às claras,
um a "patriota", p o rq u e o paradoxo, sempre reprimido, da teoria que
sugeria que, q u a n d o os
esposara: não havia autonomia absoluta do eu
homens fossem mobiliza­
dos para a guerra, as mu­ fora da linguagem, isto é, sem verbalização, nem
lheres deveríam ter per- individualidade que não se represente com o tal.

258
O INDMDUALI5MO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

missão de assumir o em ­ Representação pela iei e perante a.iei era, si­


p re g o dele's (c o m o em
multaneamente, a antítese do individuo e a psó-
1914), ela observa: "Sen­
d o m ulher, n ã o p o s s o
pria origem de sua existencia. .
am ar a pátria que me en­
trava e que me constran­ O interesse de Madeleine Peiletier pela re­
ge a viver um a vida p o u ­ presentação da mulher era abrangente, pois in­
co interessante e ain da
luía a Historia, o uso de figuras do passado
p o r cim a p re c á ria ". A
França era hipócrita em com o modelos de inspiração para as feminis-
com paração com outros L -3 e os escritos da historia do feminismo com o
países: "Agora as mulhe­ fontes para o esclarecimento do sentido da luta
res votam praticam ente
contemporánea.
ern toda a parte; é som en­
te a França que, apesar de
N a a u to b io g r a fia fic c io n a liz a d a de
su as pretensões, aparece, Madeleine Peiletier, La fem m e vierge, a prota­
n a v e rd a d e , c o m o um gonista, Marie, hesita em assumir a liderança
país extremamente con­ da organ ização fem inista La S olid an te des
servador", p . 4 7 .
Femmes, em 1906, porque teme perder sua p o­
sição de professora se assumir uma função de
muito impacto público, conforme explica à se­
cretária do grupo, Caroline Kauffmann. Esta re­
solve o problema, sugerindo que Marie use um
pseudónimo. Madeleine Peiletier narra o m o­
mento com o se fosse um batismo: Marie se tor­
na “Jeanne Deroin, em honra da famosa fem i­
nista de 1848” . “Esforça-te para te tornares dig­
na de tão grande patrona” , diz C. Kauffmann à
jovem Marie, usando a palavra patronne com
todas as suas ressonâncias significativas de pa­
123 P E L L E T I E R , 1 9 3 3 , p . trocinadora, protetora e m odelo , 123
95. A referencia de Madeleine Peiletier a ba­
tismo evoca a tomada de nomes de santos e
sugere esse status sagrado para as precursoras
do feminismo. Revela também a importância
que ela atribuía ao fato de localizar-se dentro
de uma tradição histórica feita de heroínas mi­
litantes. De um ponto de vista, o nom e que es­
colhera era perfeito para urna feminista do ini­
cio d o sécu lo XX, pois Jeanne D eroin se
engajara em lutas que ainda estavam sendo tra­
vadas, tais com o o direito ao voto, o socialis­
mo, a autonomia sexual e o direito das mulhe­
res a se candidatar em eleições nacionais; mas,

259
:>t t

de outro,-a escolha era surpreendente, pois as


idéias básicas de Jeanne Deroin, especialmen­
te sua aceitação da diferença absoluta da mu­
lher, sua ênfase sobre a importancia simbólica
da maternidade e sua tentativa de elevar o fe­
minismo a um patamar de equivalencia com o
masculino, diferiam em muito das idéias da pró­
pria Madeleine Pelletier. Evidentemente, não foi
por ter endossado as idéias específicas de sua
antecessora que Madeleine Pelletier se colocou
na mesma tradição histórica. N a verdade, por
ter identificado na feminista do século XIX a
quintessência do feminismo foi que ela se ins­
pirou para “batizar” a versão ficcionalizada de
seu próprio eu.
O q u e s ig n ific a v a “ fe m in is ta ” para
Madeleine Pelletier? Ela não tinha a menor dú­
vida de definir-se com o feminista: “Posso dizer
que sempre fui feminista pelo menos desde que
124 "Je puis dire que j ’ai tive idade para compreender. ” 124 Assim que co­
toujours été féministe, du
meça suas mémoires, ao longo das quais ex­
moins depuis que j’ai eu
l’age de co m pren dre".
pressa seu desprezo pelas “mulheres do jeito que
PELLETIER, "Mémoires", são” , decepção pelo limitado alcance das ativi­
p. 1. dades e organizações feministas, aversão por
feministas que abraçam a feminilidade sem o
menor espírito crítico e pessimismo em relação
ao futuro; nunca, porém, abjura o feminismo:
“O principal é que eu sou feminista e assim se­
125"D ’ailleurs je reste fémi­ rei até morrer . ” 125 Feminismo não significava
niste. Je le resteraijusqu’á apenas a defesa dos direitos da mulher; era,
m a mort". P E LLE T IE R ,
"Mémoires", p. 16.
acima de tudo, uma posição de desafio, a habi­
lidade de transcender as normas convencionais.
A questão era infringir a lei, a fim de, parado­
xalmente, conquistar o reconhecimento legal.
Em termos de desafio à lei em nom e dos
direitos da mulher Deroin fora, sem dúvida, uma
boa precursora, pois já se encontrava num tem­
po remoto o suficiente para servir de m odelo
abstrato, e os detalhes específicos de sua mili­
tância (suas idéias básicas) não eram mais tão
correntes a ponto de confundir a imaginação.

260
O ÍN DM D UALISM C EAD í C L E DE M AD ELEILÍE P E LLE T IE R

BastdVci saber que el a tinha concorrido a cargo


público apesar da proibição constitucional, nurn
processo em que ela pôs às claras a hipocrisia
da República e representou as mulheres corno
cidadãs. Á o assumir o norne de Jeanne Deroin,
a jovern Marie não somente se re-apreseniava
com o feminista, mas também se comprometia
a apoiar a causa da representação política das
mulheres.
O direito ao voto era o ponto de partida
da representação da mulher: lutar por esse di­
reito garantia unidade no presente e continui­
dade do passado, o que do contrário seria uma
ilusão. Madeleine Pelletier apresentou o direito
ao voto como um foco de unidade das mulhe­
res já em seu primeiro discurso no La Solidarité
des Femmes. Atacou as idéias vagas que o gru­
126"La valeur sociale de la po tinha sobre “o valor social da mãe e da dona
mére et de la menagére, de casa, as virtudes femininas e os vícios mas­
vertus féminines et vices
culinos.” 126 Em seu lugar, ofereceu um objetivo
masculins". PELLETIER,
comum: “ Queremos igualdade, só isso — o di­
"Mémoires", p. 16.
reito ao voto.” 127 A reação da platéia e sua pró­
pria excitação diante de todo aquele entusias­
127 "N ou s v o u lo n s mo a levaram, por certo tempo, a subestimar a
d ’égalité, voila tout — le dificuldade da tarefa: “Uma jovem advogada
d ro it de v o te ".
disse £Conduza-nos à vitória.’ Meu coração ba­
PELLETIER, "Mémoires",
p. 16. teu forte. Por um minuto, palavra de honra, achei
que a vitória tinha chegado! Isso, porém, não
128"Une jeune avócate me vai acontecer tão cedo.” 128
dit “conduisez-nous à la
Madeleine Pelletier aprendeu rápido que
victo ire!“ Je sens m on
co eu r qui bat trés fort.
sua palavra não era suficiente, que as palavras
Pendant une minute, ma ditas por uma mulher não garantiam sua indi­
parole, j ’ai cru que c’était vidualidade. A questão de quem controlava a
arrivé! Mais cela n’arrivera linguagem da representação não ficava resolvi­
pas si tót". PELLETIER ,
da pelo fato de a mulher se apropriar dessa lin­
"Mémoires", p. 16.
guagem; exigia-se mais do que palavras para
que alguém se tomasse “um sujeito falante” .
Mesmo dentro do próprio grupo de Madeleine
Pelletier as mulheres não entendiam a relação
entre o direito ao voto e a representação da
mulher. A personagem Marie mostrava-se um

261
J l v M W. 5C u 11

pouco decepcionada com Madeleine Pelmuer.


D e p o is de seu p rim eiro e n c o n tro corrí a
Solidante, escreveu esta, os sentimentos de
Marie eram confusos: “De fato a presidente es­
teve ótima, mas o feminismo, na cabeça confu­
sa da velha militante, parecia-lhe algo fraco, e
129 "E v id e m m e n t, la tanto o queria forte!” 129 Para Marie (entenda-se
préside rt¡:eéíait sympathi- para Madeleine Pelletier) era tão importante re­
que, nicds le féminisme, presentar o feminismo quanto representar as mu­
au travers de l’ espril un
lheres, a fim de que fosse formada uma entida­
peu confus de la vieille
militante, lui apparaissait
de feminista poderosa que desafiasse as expec­
comme quelque chose de tativas sociais sobre a mulher. Para estimular
trés faible, et elle l’aurait esse projeto havia figuras históricas exem pla­
vou íu si fo rt!" res. Madeleine Pelletier falava sempre sobre a
PELLETIER, 1933, p. 99.
importância do que se pode chamar “exemplos
de vida” , isto é, modelos de atuação. Insistia
para que as mães feministas dessem a suas fi­
lhas literatura que tratasse de homens e mulhe­
res ineomuns e corajosos ( citava John Stuart
Mili, Joan a d ’A rc e a m atem ática S o p h ie
G erm a in ); para as fem inistas, era Jeanne
130Madeleine Pelletier fre­ Deroin que oferecia o exem plo de coragem . 130
quentemente se com pa­ Para Marie, assumir o nome de Jeanne Deroin,
rava a Joana d ’Arc — a
além de incutir-lhe coragem, dava legitimidade
m ulher cuja virgindade
permitiu q u e ela trans­
histórica à luta d o fem in ism o na qu al se
cendesse seu sexo. Em engajava e, retrospectivamente, emprestava-lhe
1911, ela assinou u m a a imagem de batalhadora incansável do direito
carta escrita a Arria Ly da
ao voto da velha feminista.
seguinte forma: "Doutora
A Marie da obra de ficção expressava não
Pelletier, capaz de libertar
Orléans", e esta não foi a só a frustração de M adeleine Pelletier em rela­
única vez que assim se ção às outras feministas, o seu senso de isola­
designou. L O U IS , 1992, mento e singularidade ( “poderiam os procurar
p. 118.
por toda a Paris e não achar outra M arie ” ) , 131
com o também permitia que Madeleine Pelleti­
131 PELLE TIER , 1933, p. er expressasse seu desejo de controlar o signi­
110 . ficado do feminismo. A certa altura do rom an­
ce, Marie decide escrever uma tese de douto­
rado sobre a história do feminismo. (Visto que
não tem bacharelado, Marie se matricula na
132 PELLE TIER , 1933, p. Ecole Pratique des Hautes Etudes, “onde não
126, 151.
há necessidade de diplom as” .) 132 A autora

262
O INDIVIDUALISMO R A D IC A L DE M AD E LE IN E PELLETIER

• m enciona esse porm enor académ ico apenas


de passagem e não aborda as razões por que
sua personagem quer ser historiadora. Parece
plausível, porém, especular-se que o doutora­
do de Marie seria o equivalente (na área polí-
- tica), ao título em Medicina de Madeleine Pel­
letier (na área das ciencias). Tal iniciativa a
credenciaria com o ativista e erudita do m ovi­
mento (na verdade a própria erudição já seria
uma forma de militância), perrm.rindo-lhe trans­
mitir sua herança e sua inspiração a gerações
futuras e dando-lhe liberdade de reescrever a
historia d o fem inism o nos term os que lhe
aprouvessem. N a m edida em que as ciências
eram, para Madeleine Pelletier, a chave da so­
ciedade do futuro, a Historia era para Marie
urna forma de moldar os termos do feminismo
no presente e no futuro.
N o romance de M adeleine Pelletier, Marie
segue uma ilustre carreira de política socialis­
ta na Alemanha, onde as mulheres têm direito
ao voto e usam esse direito para melhorar suas
vidas. Morre tragicamente, no auge da carrei­
ra, atingida por balas num fo go cruzado, o con­
fronto entre revolucionários e soldados do g o ­
verno, em Berlim. Seu velho amigo, Charles
Saladier, militante socialista que a acom panha­
ra à Alem anha e ali se tornara seu secretário,
retorna a Paris, onde procura consolo entre
seus antigos associados. Caroline Kauffmann,
então uma m édium espírita, consegue uma
mensagem de Marie. A o ouvir a vo z da defun­
ta, C. Saladier, assustado, foge. A cena, com o
M adeleine Pelletier a apresenta, é cômica. To­
davia, a mensagem, (mal) representada por
Caroline, na voz autêntica da falecida heroí­
na, parece ter uma função mais séria no ro­
mance: “E Marie. N ã o estou morta. Ninguém
morre. Vejo que está próxim o o n ovo mundo.
133 P ELLE T IER , 1 9 3 3 , p. Lute, lute, trabalhe pela luz que está acima dos
253. túmulos; o novo mundo está chegando.” 133

263
JCoCN'W. S C O T T

H 70z da Historia, expressa no pros o ni o e


usada para seus propósitos, aponta para o fu­
turo. C om o M adeleire Pellelier a entendeu, a
historia do feminismo era exatamente assim:
uma linhagem imaginária de mulheres desafia­
doras, recursos modelares para aquelas mulhe­
res que desejam enfrentar tudo o que as subme­
te, permitindo-lhes que se transformem e n r o ­
dadas feministas. Ver a história do feminismo
de outra forma seria, a seus olhos, negar sua
vitalidade e sua permanente finalidade.

264
O INDIVIDUALISMO RADICAL DE MADELEINE PELLETIER

Cidadãs, mas não individuos:


antes e depois do direito ao voto

! oncedeu-se às francesas o direito ao


d voto ern 21 de abril de 1944. O Comité
de Libertação Nacional — C FLN, li­
derado pelo general Charles de Gaulle e locali­
zado na Argelia, anunciou sem alarde a libe­
ração do voto feminino com o parte de um de­
creto que estabelecia os termos pelos quais o
governo republicano seria restaurado. A reso­
lução não foi recebida nem com entusiasmo
1 D U V E R G E R , 1948, p. nem com rejeição, segundo fonte consultada . 1
304. N a França pós-Vichy, silenciaram-se as vozes
dos senadores que, desde 1919, pelo menos,
2 HAUSE & KENNEY, resistiam contra os projetos de lei em prol do
1984; R O S A N V A L L O N , voto fem inino . 2 O direito recém-conquistado
1 9 9 2 a , p. 3 9 3 -4 1 2 ; e pelas mulheres fora, enfim, introduzido form al­
KLEJM AN & R O C H E -
mente na Constituição da Quarta República
FORT, 1989.
(adotada em 1946). Seu preâmbulo ratificava
a Declaração dos Direitos de 1789 e acrescen­
3 Constituição de 27 de tava uma frase que teria sido especialmente
o utu bro de 1946, in gratificante para Olympe de Gouges: “A lei ga­
M a u r ic e D U V E R G E R ,
rante às mulheres direitos iguais aos dos ho­
Constitu tion s et d o c u -
ments politiques. Paris:
mens em todas as esferas” . A secção sobre a
P U F 1968, p. 138-139. Soberania cuidava dos pormenores: o Art. 4o
V. também Peter C am p­ declarava “ eleitores [...] todos os cidadãos
b e ll, F ren ch E le c to ra l franceses e de nacionalidade francesa de am­
S ystem s and E lection s
bos os sexos, no gozo de seus direitos civis e
sin c e 1 7 8 9 . L o n d r e s :
Faber and Faber, 1958, p. políticos” e, ainda, que [...] podem votar sob
102-113. condições determinadas por lei” .3 De Gaulle

265
observou em suas memorias que “esse tremen­
d o ''esforço [...] pôs fim a controversias que
4 C itad o p or H A U S E & duraram cinqüenta anos . ” 4 Louise Weiss, fe ­
KENNEY, 1984, p. 251. minista que, nos anos 30, antes do inicio da
Sobre o papel de Charles
Segunda Guerra Mundial, em preendeu a últi­
de Gaullé e sobre as deli­
berações que se seguiram
ma campanha em favor do direito fem inino ao
ao voto feminino, v. R O Y voto, com partilhava a impressão do genera!
& ROY, 1994. quanto à importância da decisão: “ O acesso
universal da mulher a um estado civil idêntico
ao do hom em é sem dúvida o fenôm eno coleti­
vo mais importante da primeira metade deste
século. Ainda não conhecemos todas as suas
conseqüências, mas fico feliz de ter tom ado par­
5 "E a cce ssio n m o n d iale te neste processo . ” 5 Exatam ente co m o em
des fem m es à un statut 1848, um G overno Provisório, na tentativa de
civil identique à celui des
im por a ordem republicana a uma situação de
hommes est sans doute le
plus grand p h én o m én e
caos político, concedeu o sufrágio universal a
collectif de la prem iére fim de legitimar sua posição com o represen­
moitié de ce siecle. N o u s tante do p o vo soberano. David Thom son, his­
n’ en c o n n a is s o n s p a s toriador político francês, caracteriza o m om en­
encore toutes les consé-
to da seguinte forma: “ Os esforços para esta­
quences, mais il me piaít
d ’y avo ir eu m a parí". belecer laços bastante tênues e fictícios de con­
W E ISS, 1980, p. 268. tinuidade jurídica deram lugar a uma teoria d e­
claradamente jacobina, ou seja, deveriam ser
realizadas imediatamente eleições gerais para
que fosse expressa a vontade geral’ do p o vo
soberano. Renascera mais uma vez a tradição
revolucionária. A Quarta República, ao invés
de surgir, formalmente, com o uma continua­
ção da Terceira, emergiu de um imenso esfor­
ço criativo da vontade nacional, exercido por
6Thomson, Dem ocracy in intermédio do sufrágio universal e livre . ” 6 D i­
France, p. 232. ferentemente de 1848, porém, o sufrágio uni­
versal incluía desta vez os direitos de cidada­
nia das mulheres.
A inclusão das mulheres tem sido explicada
com o uma tentativa calculada de De Gaulle e
de seus correligionários de afastar uma temível
vitória comunista no novo governo. Das mulhe­
res, presumidas com o mais conservadoras que
os homens, esperava-se que contrabalançassem

266
CIDADAS MAS NAO INDIVÍDUOS

com seu voto a--influência-que as'esquerdas ti­


7 D U R V E R G E K , 1948, p. nham conquistado no tem po da resistência.7
304. N a verdade, parece Esse tipo de cálculo, porém, caso tenha sido real,
não ter havido um a "la­
parece corresponder a apenas um aspecto da
cuna de gêneros" na elei­
explicação.
ção depois de 1944; de
qualquer forma, não ha­ Outro aspecto, por certo mais importante,
via com o medi-la. A su­ é que, em 1944, a definição de democracia já
g e stã o do s o c ió lo g o se tornara mais abrangente e passara a incluir
Durverger de que as cé­
o que se poderia chamar de democracia sexual
dulas fossem recolhidas
em urnas s e p a ra d a s - (na forma de direito ao voto para as mulheres).
um a para homens, outra Dar à mulher direito ao voto permitia que o novo
para mulheres - nunca foi governo se diferençasse quer da Terceira Repú­
seguida. Se tivesse sido,
blica, quer do Governo de Vichy. (As fraquezas
teria sido irônico, visto
da Terceira República foram, na opinião de
que urnas separadas fo ­
ram colocadas junto a lu­ muitos — entre os quais De G aullé— , a causa
gares de v o ta ç ã o em de sua ruína e as razões que a fizeram capitular
1930, a fim de coletar os em favor do marechal Philippe Pétain.) C once­
votos ilegais das m ulhe­
der a cidadania às mulheres era, por conseguin­
res, num a form a de pro­
testo contra a exclusão
te, uma das maneiras de marcar o fim de uma
das mulheres. V. com o as república obsoleta e o advento de uma nova.
m u lh e res v o ta ra m , n a (Acabou acontecendo que, substancialmente,
o casião, em D U R V E R ­ quase não houve diferença entre as duas repú­
G ER, 1955; e M O S S U Z -
blicas, assim, o voto feminino veio constituir um
L A V A N , 1993, p. 673-89.
dos poucos contrastes de fato marcantes.) O
voto das mulheres também alinhou a França
(cujas credenciais democráticas ficaram com ­
prometidas durante o Governo de Vichy) com
os demais países do Ocidente, a maioria dos
quais havia já muito antes reconhecido os di­
reitos políticos da mulher. A o descrever os co­
mitês de mulheres organizados pelo movimento
da França Livre, em Londres, em 1942, que se
propunham a preparar legislação que garantis­
se melhores condições para “família, mulheres
e crianças” , um simpatizante salientava a im­
portância do contexto internacional: “Esses co­
mitês mantinham contato com organizações
congêneres estrangeiras ou internacionais, a fim
de que a França, a d otan d o as m udanças
sugeridas, pudesse, com o tempo, achar de novo
o lugar que lhe era próprio no plano internacio-

267
JOat LVJ s c o t t

8 rélhi d 2 6 R A N D ’C O M ­ pai. 558 O voto feminino, em 1944, ¿pulparon a


BE, 1943,.p/83.
França às outras democracias ocidentais.
Além disso, dar direito de voto à mulher
era uma maneira prática e simbólica de resol­
ver diferenças políticas nacionais. N a prática,
deu-se à mulher o direito ao voto com o forma
de eliminar um dos conflitos sempre realimen­
tado por uma república que estava sendo subs­
tituída. Durante os anos que se seguiram à Pri­
meira Guerra Mundial, cie m odo sistemático, a
Câmara dos Deputados mandava com regulari­
dade ao Senado um projeto de lei favorável ao
sufrágio da mulher, que era sempre derrotado.
A o dar às mulheres o direito ao voto, o Governo
Provisório acabou com um dos conflitos que di­
vidia as duas casas legislativas, forçando, neste
âmbito, o estabelecimento da unidade nacional.
Simbolicamente, o voto feminino signifi­
cava a dissolução de todas as diferenças. A in­
clusão das mulheres nas fileiras da cidadania,
sua incorporação na estrutura política, foi um
gesto de reconciliação nacional que acabou
com as divisões entre radicais, socialistas, co­
munistas e católicos, entre combatentes da re­
sistência, entre membros dos conselhos do m o­
vimento pela França Livre, entre, até mesmo,
colonizados e colonizadores e, sobretudo, entre
mulheres e homens. Todos foram declarados
iguais, e sua igualdade consistia em serem to­
dos membros da mesma nação. Especialmente
durante a vigência do Governo Provisório, an­
tes da decisão de criar a nova república (no ple­
biscito de abril de 1945), o povo deveria forjar
9 "L e s F ra n ça is rfo n t uma nação unificada, indivisível, com um g o ­
qu ’une seule patrie [...] La verno que lhe desse voz e o representasse de
France est et restera une acordo com sua vontade. A voz de De G aullé
et indivisible". G A U L L E ,
freqüentemente entoava essa mensagem, pri­
1942, vol. 2, p. 83. S o ­
bre a história do G o ver­
meiro de Londres, depois da Argélia: “ Os fran­
no Provisório, v. WRIGHT, ceses têm uma só pátria [...] A França é e per­
1970; e G R A N D ’C O M - manecerá una e indivisível. ” 9 Em 1848 a uni­
BE, 1943.
dade tinha sido alcançada com a declaração

268
CIDADÃS IvL-CD^-O IIIDPÃDUOS

K o tv a A.rnbém’ tentati­ de que as diferenças de classe eram irrelevantes


vas de estender a retórica
para o exercício dos direitos políticos (com o
■ • unidade à população
c s co lô n ias. E m seus
direito universal ao voto masculino, alegava-se
discursos, D e Gaulie faz “não há mais proletários na França’3); em 1944,
questão de incluí-la na a diferença entre os sexos torna-se irrelevante
nação (v. D is c o u r s et para a cidadania única, concretizava-se pelo
m essages, p a s s im ). A
menos um dos esforços retóricos pela unifica­
Constituição de 1946 afir­
m a que "a França forma,
ção política nacional. 10
com os p ovos dos territó­
rios ultram arinos, u m a Fazendo um retrospecto das circunstânci­
União b aseada na igual­
as que levaram os líderes do governo a consi­
dade de direitos e deve­
res sem distinção de ra­
derarem de interesse público que mulheres ti­
ças ou de religiões". D. vessem direito ao voto, Louise Weiss fez uma
Thomson, Democracy in pergunta sobre a militância feminista, com aque­
France, p. 275. Este as­ le seu jeito de quem se julga importante: “Será
p e cto d a ten tativa de
que as mulheres francesas teriam obtido seus
universalismo da Quarta
República merece um es­ direitos políticos, neste momento, se eu não ti­
tu d o sep a ra d o , b em vesse lutado intensamente por eles?” 11 Sua res­
com o a relação entre o posta foi um simples “Sim [...] graças às con­
voto dos habitantes da
junturas internacionais.” 12 Entre outros argu­
colônias e o das m ulhe­
mentos, incluía o de que não era mais sustentá­
res. Sobre a questão da
cidadania para os habi­ vel que a França, que se queria um país dem o­
tantes d as colôn ias, v. crático, não permitisse a suas mulheres o voto,
B R U B A K E R , 1 9 92 ; e num mundo em que todas as outras democra­
B ALIB A R , 1988.
cias, muito antes, já haviam concedido cida­
11 P a r a a b io g r a fia de dania às mulheres. Além disso, insistia também
Louise Weiss, v. todos os na importância das lutas feministas, a fim que
seis volum es de suas M é - não se caracterizasse a decisão de De Gaulie
moires d ’une européene.
com o uma graça concedida por um príncipe be­
V. também B ESS, 1993;
e Z A N D , 1983, p. 1 e 9.
nevolente (ou até mesmo interesseiro), mas sim
com o uma resposta a uma “ aspiração” . E fez
um a a n a lo g ia com os d e se m b a rq u e s na
12"Sans le dur combat que
Norm andia das tropas inglesas e americanas.
j ’a v a is m ené, les
Françaises auraient-elles,
A França, por certo, teria sido libertada sem a
à ce moment-là, obtenu participação dos combatentes da resistência —
leurs droits politiques? tudo não passaria , então, de vitória de estraté­
Oui, incontestabíement, gia imposta de fora para dentro. Com a partici­
grâce à la conjoncture
pação dos maquis, entretanto, o desembarque,
internationale". W E IS S ,
1980, p. 268. para Louise Weiss, tornou-se de certa maneira
exemplar (a idéia não é expressa muito clara­
mente) da sua concepção de com o a História

269
JOAN A' SCOXT

13 "S a n s ce c o m b a t, ia deveria fuñe; ~nar, da sua convicção -sobre a


decisión du G en eral de
necessidad e v varal de ação por parte dos oprimi­
Gaullé eüt été le fait du
prince au lieu de repon­
dos, da sua mela do processo da política dem o­
dré à une aspiration. Une crática. 13 Segando Louise Weiss, sem as lutas fe­
co m p a ra iso n s’im pose. ministas, a m ulher não seria sen ã o uma
Imaginons le débarqu e- beneficiária passiva de seus direitos, com toda
m ent des A n glo-A m éri-
justiça, porém , ela podia se gloriar, por ter
cains em Norm andie sans
m a q u is a rd s p o u r se combativamente conquistado sua emancipação.14
porter à leur rencontre. La Louise Weiss entendeu seu papel e, de
F ran ce eüt été lib éré e maneira mais ampla, a questão da militância
q u a n d m em e, toutefois
feminista dentro do discurso do individualismo
l’événem ent au lieu de
d e m e u re r u ne victo iré
característico de Madeleine Pelletier. Embora
stratégique, prit immédi- politicamente Madeleine Pelletier fosse socialis­
atement figure exemplai- ta e Louise Weiss, do Partido Radical (tendên­
re". W EISS, 1980, p. 268. cias discordantes desde 1905, época da cria­
ção da SFIO), as duas mulheres acreditavam
14 A n o ç ã o de co m b ate
que “os indivíduos da elite” podiam realizar
para conquistar ou defen­
der a república remonta mudanças, e era esse o sentido que definia suas
à p rim e ira R e v o lu ç ã o ações . 15 O título de suas memórias, Combáis
Francesa e continua como pour les femmes (Combates pelas mulheres,
tema central nos discur­
deixa entrever algo do senso de superioridade
sos das repúblicas subse-
qüentes. E esta associação de Louise Weiss, o mesmo ocorreu quando do
d o co m bate a o triunfo seu comentário (em face do qual muitas de suas
para alcançar um a causa antigas colaboradoras ficaram “estupefatas” )
virtuosa aqui evocada por
sobre a decisão de prom over movimentos em
Louise Weiss.
favor do voto feminino: “O fato de ter deixado
a influente [revista] Europe Nouvelle, a fim de
15 O s c a m in h o s de me dedicar às infelizes mulheres privadas de
M adeleine Pelletier e de
todos os seus direitos, e, portanto, de sua im­
Louise Weiss se cruzaram
mais de um a vez: am bas
portância, pareceu [...] [a todos] uma estranha
estiveram na Rússia em loucura . ” 16 Naquela altura, L.Weiss entendia que
1921; em junho de 1936, sua adesão ao feminismo, bem com o as ativi­
am bas aparecem no mes­
dades que assumia em nom e do movimento,
m o program a no C lub du
envolviam um conjunto de estratégias decidi­
Faubourg, a fim de discu­
tir as implicações para o das na esfera pessoal. Para ela, a força motriz
voto feminino decorren­ por trás de toda a história era sua vontade indi­
tes d o fato de q u e três vidual. Um a história diferente de Louise Weiss,
m u lh e re s tin h am sid o
porém, poderá servir de resumo e de conclusão
nom eadas para o gabine­
te d a Frente Popular de para este livro. Trata-se de uma história em que
Léon Blum com o subse­ o feminismo representa a exclusão política das
cretárias d a educação, da mulheres e a repressão da diferença sexual

270
CIDADÃS MAS NÃO INDIVÍDUOS

saúde, e da pesquisa ci­ com o questão política relevante, uma-história


entífica. S O W E R W I N E & em que a militância feminista “emperra a má­
íMA IG N IN ,
1992, p. 201.
quina teórica” do discurso político republica­
Sobre as subsecretarías, v.
J A C K S O N , 1988, p. 151. no, expondo-lhe os limites e perturbando-lhe o
Louise W eiss disse que bom funcionamento17.
recusou um a das subse­ Louise Weiss jamais participara de círcu­
cretarías porque pensava
los feministas militantes, até 1934. Integrara, na
que fosse um a tentativa
de com prar as feministas verdade, depois da Primeira Guerra Mundial,
e assim, interromper suas movimentos pacifistas, com o redatora da revis­
exigências; além disso, fi­ ta Europe Nouvelle, propugnando pela m edia­
cou d e c e p c io n a d a p e la ção da diplomacia internacional com o um su­
timidez dem onstrada p e ­
cedâneo dos conflitos entre nações. Explicou sua
las três mulheres que as­
sumiram os cargos (espe­ adesão ao feminismo com o uma estratégia po­
cialmente a ex-feminista lítica: se o voto da mulher se tornasse “objeto de
Cécile Brunschw eig). Ela desejo” dos políticos, então os homens seriam
intitulou a parte de suas
mais facilmente influenciados no sentido de evi­
m emórias em que narra
este episódio "Três an d o ­
tar a guerra, por acreditarem que as mulheres
rinhas não fazem um v e­ preferiam a paz. (A própria Louise Weiss, po­
rão ". W E ÍS S , 1980, p. rém, desprezava essa equação simplista “ mu­
123-126. lher = paz” , mas estava disposta a aceitá-la
com o “hipótese” plausível, a fim de conquistar
16 A voir quitté 1’influente
apoio ao seu “ apostolado em prol da paz ” . ) 18
E u r o p e N o u u e lle p o u r
me co n sacrer à des Louise Weiss assumia sua posição de mulher
malheureuses privées de deliberada e subversivamente, isto é, apresen­
tous droits et d o n e de tava-se com o porta-voz de um grupo com o qual
toute im p o rtan ce, leur
nunca antes se havia identificado . 19 Uma vez
s e m b la it u n e étran ge
folie". W E IS S, 1980, p.26. assumida sua nova identidade política, porém,
ela aventou o próprio exemplo para apontar as
limitações de uma república que se proclamava
17A expressão é de Luce universalista. Através da lente do feminismo, a
Irigaray; v. W H IT F O R D ,
incongruência de sua situação se mostrou per­
1991, p. 126.
turbadora: ali estava uma jornalista proeminen­
18W E IS S, 1980, p. 18. te que usufruía de indiscutível influência política
mas que não gozava de direitos políticos formais.
19Sobre a questão de as­ A campanha de Louise Weiss fazia resso­
sumir "o papel feminino ar um tema feminista familiar, pois investia con­
deliberadam ente" e sub­
tra incoerências da ideologia republicana e de­
v e r s iv a m e n t e , v.
IR IG A R A Y 1991, p. 124.
mandava que fossem corrigidas. N a década de
30, a República se encontrava sob o ataque da
direita e da esquerda e, a pretexto de defendê-
la, Weiss exigia que fosse reconhecido o direito

271
SCOTT

das mulheres de vate. A cada crise ccrmdmcio-


nal, uma disputa sobre os poderes do presiden­
te, sobre as ações deste ou daquele gabinete,
sobre o futuro das formas republicanas do g o ­
verno, Louise Weiss fazia pressão para que fos­
se aprovado o voto feminino. (Seu livro está or­
ganizado exatamente assim: relatos das crises
registradas no regime se alternam com episodi­
os das suas intervenções feministas.) la para as
rúas junto com outros grupos políticos na ép o­
ca da Frente Popular; organizava demonstrações
e marchas. (Certa vez, imitando as sufragistas
inglesas, ela e um grupo numeroso de mulheres
se acorrentaram à estátua da Praça da Bastilha;
de outra feita, espalhou urnas — de caixas para
chapéus— , com a finalidade de coletar “votos”
para candidatas autonomeadas, fora das seções
oficiais de votação.) “Exigir nossos direitos numa
época tão conturbada parecia inoportuno, in­
solente e perigoso para profissionais que tinham
20"Revendiquer nos droits com eçado a temer pelo próprio futuro” 20, admi­
en une p é r io d e si tia ela. N a verdade, sua campanha poderia até
d ram a tiq u e sem b lerait
mesmo contribuir para derrubar o único regime
in o p p o rtu n , in solen t,
que tinha alguma possibilidade de fazer avan­
dangereux à des gens de
métier qui commençaient çar a causa feminista. Apesar disto, reconhecia
à tre m b le r p o u r leur também que a época não deixava de ser propí­
avenir". W E ISS, 1980, p. cia, pois a “ incompetência do governo” e “ a
90.
petrificação” das instituições republicanas ti­
nham de ser expostas e exploradas, e a manei­
ra de fazê-lo era concentrar-se no uso e no abu­
21W E ISS, 1980, p. 114. so do voto, insistindo no sufrágio fem inino .21
Louise Weiss se orgulhava particularmente
do impacto causado por sua campanha no Con­
selho de Estado, o tribunal administrativo mais
alto do país. Sentia ter conquistado reconheci­
mento oficial da justiça para a legitimidade da
causa que abraçara, sensibilizando justamente
aqueles cuja função era conciliar os princípios
da lei com a sua prática. Em maio de 1935 (en­
quanto Pierre Lavai, aliado dos fascistas italia­
nos, negociava um acordo com Stalin que colo-

272
GIBADAS NIAS NAO INLT7IDÜOS

cou em polvorosa os radicais, os socialistas e os


comunistas franceses), L.oulse Weiss facía urna
campanha nas imediações da décima oitava zona
eleitoral para pleitear uma cadeira na Cámara
de Vereadores de Paris. Reunira membros de sua
organização, La Femme Nouvelle, para, como
de hábito, se sentarem do lado de fora dos locáis
de votação e distribuírem cédulas não oficiais, a
serem depositadas nas urnas Improvisadas (as
caixas de chapéus). (Os resultados da “apura­
ção” , logo em seguida, anunciados à imprensa
— Louise Weiss tinha um agudo senso da ne­
cessidade de divulgação — deram vitória às
candidatas e, ainda, continham mensagens com
expressões de apoio aos direitos da mulher.) Al­
guns homens, por simpatia, engano ou Ironia,
colocaram nas umas oficiais cédulas feministas,
as quais, naturalmente, foram anuladas durante
o escrutínio. Louise Weiss passou , então, a sus­
tentar que a eleição devia ser Invalidada, porque
não foram contadas todas as cédulas lançadas
na urna. Levou o caso primeiro à prefeitura do
22 S o b re o C o n selh o de Sena e depois ao Conselho de Estado.22
Estado, v. T H O M P S O N ,
O Conselho de Estado indeferiu a apela­
1958, p. 59-60.
ção, mas, simultaneamente, admitiu o mérito
do caso e reconheceu a “contradição formal”
nela apontada: os membros do Conselho con­
cordavam que a lei francesa era escrita, não era
consuetudinária, e que nela não havia onde se
pudesse ler uma palavra que proibisse as mu­
lheres de votar, “Muito pelo contrário, seria ne­
cessário que o Parlamento aprovasse uma lei
que expressamente impedisse às mulheres o
exercício desse direito” . Semelhante lei, porém,
nunca fora aprovada,nem mesmo seriamente
proposta. Portanto, admitia o Conselho, “segun­
do a lógica [...] as mulheres têm o direito de
votar em todas as eleições” , contudo interpre­
tou que a — implicitamente ilógica — exclusão
das mulheres era intencional da parte dos legis­
ladores. O Conselho, então, achou por bem não

273
JOAN W. 500TT

• ' ' conceder o direito de voto da apelação, mas re-


.conheceu, ao mesmo tempo,, que era inadequa­
do o indeferimento que acabava de alvitrar, su­
gerindo, à guisa de justificativa, encontrarme
maniatado “pela situação em que se encontra
a legislação” ( V e ta i a c tu e l de la l é g id a t ío n ) . O
relator anotou explícitamente que a inserção
desta frase era um apelo para que se rnodificas-
23Citado po ■rVVEISS, 1980, se a legislação em vigor.23 Em vez de “engavetar”
p. 92. o caso de Louise Weiss com o tolice, o Conselho
admitira seus méritos. Ela anunciou que seu
sucesso constituira um importante fator legal e
conceituai para a consolidação da vitória do
direito ao voto feminino.
Pode-se discutir se a decisão do Conseil
d’Etat foi sinal de abertura de alguns republica­
nos para a “democracia sexual” , ou, então, foi
resultado de um brilhante arrazoado de Louise
Weiss. Para o que aqui se propõe, todavia, essa
causalidade não importa. O interessante é dei­
xar claro que a obstinação de Louise Weiss,
depois de empunhar a bandeira feminista, para
que fossem expostas e corrigidas as inconsis­
tências do discurso político republicano, não
começou com ela; sempre foi a marca registra­
da do feminismo.
E da mesma forma interessante atentar para
a dificuldade de Louise Weiss em se declarar “mu­
lher” , e se identificar com aquelas por cuja eman­
cipação lutava. Para ela, a categoria “mulher”
tinha a ver com exclusão política, não com sexo.
Em suas memórias oscila entre a descrição de si
própria como uma mulher — um ente vivo sem
direitos — , e um ser — não uma mulher — supe­
rior, intelectual e socialmente, às pobres infelizes
cuja causa abraçara. Mesmo quando falava como
mulher, por mais qualificada que fosse, necessa­
riamente evocava sua diferença em relação aos
homens com quem se equiparava social e inte­
lectualmente nos altos círculos diplomáticos den­
tro dos quais ela se movimentava.

274
CiDADÃSNIAS NÃO INDIVÍDUOS

 reação que Maro: Rucart , urn dos -cole­


gas de Louise Weiss, promoveu contra suas cam­
panha é um born exem plo da dificuldade- que
as 'feministas enfrentavam, não so para apre­
sentar suas idéias, mas também para modificar
o curso da História. Aqueles que viveram os
turbulentos conflitos de rua da década de 30
insistiam intensamente na antiga prevalência
republicana da cédula sobre a bala, por isso a
militância das feministas irritava Marc Rucart.
Este, membro do Ministério de Léon Blum e,
mais tarde, do. Comitê Nacional de Liberação
de De Gaulle, revelando a Louise Weiss, anos
mais tarde, o quanto as manifestações feminis­
tas de rua por ela lideradas o deixavam furioso,
argumentou: “O direito ao voto elimina o direi­
to à insurreição, Madame [...] A senhora não
leu V ictor H u g o ? ” L ou ise su rpreen deu o
interlocutor com a seguinte resposta: “Li, meu
caro ministro. Mas diga-me, acaso [nós, mulhe­
res] usufruíamos, naquela época, desse direito
ao voto que acaba de mencionar?” , e observou
que “Marc ficou atônito. Politicamente, só con­
24 "L e d ro it de v o te seguia pensar com o hom em . ” 24
s u p p rim e le dro it de LouiseWeiss atribuía o lapso de memória
l’insurrection, M adam e...
de Marc Rucart à convicção de que para ele a
Vous riaviez done pas lu
mulher não fazia parte da esfera política, mas é
Victor H ugo?" "Si, m on
cher Ministre. Mais, dites- igualmente provável (já que era membro do go ­
moi, jouissons nous de ce verno que afinal facultara o voto às mulheres)
droit de vote?" Citado por que lhe parecesse, depois de implantado o su­
W E IS S, 1980, p. 32.
frágio indubitavelmente universal, que as mu­
lheres desde sempre tivessem votado. Resolvi­
da uma das incoerências da República, era pre­
ciso apagar o fato de que ela um dia houvesse
existido, ou seja, toldar por inteiro na memória
a sua existência. Além disso, na mente de Marc
Rucart, a m ilitância feminista ainda estava
maculada pela irracionalidade, o argumento
constantemente usado por seus adversários
para desacreditá-la (o qu e justificaria sua
irritação, quando falou com Louise Weiss, tan-

275
JOAN W :OTT

tos ancs mais tarda); o iapub11cam sm o, am


contras: - „ estava intacto, um cisterna tão co e­
rente no s assado, quanto ihe convinha que es­
tivesse no presente.
Em face dessas interpretações oficiais, os
historiadores' se sentiriam tentados a corrigir
seus registros, tratando o feminismo com o urna
forma de resistencia heroica contra a injustiça
e localizando essa resistência na vontade indi­
vidual de algumas mulheres. A questão é muito
mais complicada do que isso, como venho ten­
tando mostrar desde o início deste livro. O fe­
minismo não é uma reação ao republicanismo,
mas um dos efeitos que dele decorrem. E, urna
conseqüência, um produto, seja das declarações
contraditórias sobre os direitos humanos uni­
versais do indivíduo, seja das perversas exclu-
sões atribuídas à “diferença sexual” . O fem i­
nismo é a expressão paradoxal dessa contradi­
ção, nos seus esforços para tornar reconhecida
a “diferença sexual” e, concomitantemente, para
denunciá-la com o irrelevante. C om o se vê, tra­
ta-se de um paradoxo que vem constituindo a
própria ação feminista. Considerando-se que,
com o correr do tempo, têm sido registradas
mudanças nos vocábulos usados para definir o
republicanismo, o mesmo aconteceu com o fe­
minismo e a ação das feministas. Embora to­
das fossem mulheres que só tinham “parado­
xos a oferecer” , cada feminista, como se pôde
ver, procurou lidar com seus paradoxos de m odo
fundamentalmente dessemelhante.
A importância histórica do feminismo e a
legitimidade da ação feminista, portanto, não
se baseiam no fato de concluir se foram ou não
as feministas que finalmente conquistaram para
a mulher o direito ao voto (embora se admita
que tenham contribuído para isso). N a verda­
de, foi no cerne dos discursos do individualis­
mo (de matizes cambiantes e variados), que as
feministas, denunciando sem tréguas a precari-

276
ClDADAS lAAc? l A u iHJj í í í j LJOS

edade do universalismo republicano, executa­


ram seu trabalho crítico, e é lá que o feminismo
deve encontrar sua historia.

Para as feministas, a extensão do direito


ao voto às mulheres foí motivo de celebração,
mas não pôs um fim ao status que sempre as
caracterizaram e que teria motivado Simone de
Beauvoir um pouco mais tarde a engendrar a
qualificação de “segundo sexo” . Aqui mais urna
vez, será útil considerar a experiencia de Louise
Weiss. O direito de voto não foi de grande utili­
dade para a realização de suas aspirações na
vida pública (mesmo que, grosso modo, sua
carreira política tenha sido a de uma mulher li­
berada) . Filiando-se ao Partido Radical, logo
depois de anunciado o direito ao voto femini­
no, cedo se frustrou na expectativa de assumir
uma posição no recente governo de Georges
Bidault. Este a consultara, em nom e de De
Gaulle, a respeito de nomes de mulheres que
poderiam ser convocadas, quando a Assembléia
Constituinte (que redigiria a nova constituição)
fosse organizada. Louise Weiss incluiu seu pró­
prio nome, G. Bidault explicou que ela não era
o tipo que eles tinham em mente. “Você! [...]
■ , Ah, não! De jeito nenhum. N ão queremos ficar
constrangidos com mulheres de valor!” Louise
Weiss riu com amargura e, segundo se lembra,
passou a recomendar uma porção de viúvas
cujos “falecidos maridos lhes tinham deixado
25W E ISS, 1980, p. 268. nomes fam osos . ” 25
Conforme sugere essa escolha das viúvas
p o r o c a s iã o das p rim eira s e le iç õ e s , os
formuladores do decreto que dava a cidadania
às mulheres, na verdade, tinham a intenção de
continuar a considerá-las i com o membros de
famílias ou de coletividades com interesses par­
ticulares a defender, e, também, procuravam
minimizar a importância desse novo direito con­
cedido, pois, afinal de contas, o voto não pas-

277
- JOAN W. SCÜi ,

sava de um exercício periódico que nao d eve­


ria contagiar outras áreas da vida cotidiana.
Assim mesmo, a cidadania implicava a promes­
sa, e não a realização imediata, da individuali­
dade, abrindo caminho para uma participação
política maior da mulher. Fossem quais fossem
as intenções dos legisladores, o voto fez com que
as mulheres se tornassem indivíduos políticos.
Ironicamente, porém, o direito ao vo to acabou
enfatizando ainda mais agudamente a contí­
26 Pierre Rosanvallon foi nua dependência sóciopsicológica da mulher .26
precipitado e otimista de­
A o invés de eliminar o problema da diferença
mais em associar o voto
das mulheres à conquis­
sexual, acabou por avultá-lo a proporções ain­
ta de sua individualidade da maiores.
autônoma. Nesta, como Essa é a relevância da obra de Sim one de
em todas as partes do seu
Beauvoir, O segundo sexo. Escrevendo em 1949,
livro, ele deixa de tratar as
referia-se aos direitos políticos buscados pelas
contradições que existem
dentro do próprio concei­ feministas por mais de 150 anos com o “abstra­
to de indivíduo, preferin­ tos” e “teóricos” (há um “meramente” suben­
do opor a realidade soci­ tendido no m odo com o ela se exprime). A cida­
al ao direito legal e igno­
dania consistira um êxito no sentido de tornar
rar as m udanças históri­
cas do conceito de indiví­ as mulheres iguais aos homens perante a lei num
duo. V E a v è n e m e n t de la sentido formal, técnico, mas um fracasso quan­
femme-individu", em L e to a conquistar-lhes a autonomia, social, eco­
sacre du citoyen, p. 393-
nômica ou subjetiva. N ão se tratava de uma
412.
igu aldade substancial (em b ora S im o n e de
Beauvoir também lhe atribuísse grande impor­
tância). Simplesmente não havia uma passa­
gem ou transposição do status da mulher com o
indivíduo abstrato para o status de “pessoa so­
berana” , de um ser autônomo, de posse de si
mesmo. Nesse sentido, o direito ao voto foi uma
vitória apenas parcial:

O período em que uivemos é um período


de transição; este mundo, que sempre pertenceu
aos homens, continua nas mãos deíes; as insti­
tuições e os valores da civilização patriarcal ain­
da sobrevivem em grande parte. Direitos abstra­
tos estão bem longe de ser completamente con­
cedidos em toda parte para as mulheresf...] E os

278
CIDADÃS MAS NÃO INDIVÍDUOS

d i r e it o s a b s tr a to s , . a c a b a m o s d e d i z e - lo , 'n u n c a
f o r a m s u f ic ie n t e s p a r a a s s e g u r a r p a r a as m ulhe-
r e s u m a p o s i ç ã o d e f in it i v a n o m u n d o ; e n t r e o s
d o is s e x o s n ã o e x i s t e ig u a ld a d e v e r d a d e ir a n e m

27 B E A U V O IR , 1974, p. mesmo hoje em dia.27


150. ’
Segundo Simone de Beauvoir, as mulhe­
res nunca atingirão o status de indivíduos total­
mente autônomos, enquanto continuarem a ser­
vir de “outras” para os homens. As mulheres
eram a projeção mítica das esperanças e dos
temores dos homens, a confirmação de sua vi­
rilidade e de sua soberania. Embora a liberda­
de econômica fosse um ingrediente crucial para
a emancipação da mulher (a dimensão concre­
ta que deve acompanhar os direitos teóricos), o
problem a era, em última análise, existencial:
somente o homem podia alcançar o auto-cres-
cimento por via da transcendência de suas con­
dições existenciais. A mulher estava fadada a
uma vida de imanência, confinada a uma in­
terminável repetição das funções femininas; era-
lhe negada a liberdade de viver (individual e
28 BEAUVOIR, 1974, p. especificamente) conforme sua escolha . 28
XXXIII e 486.
O privilégio do homem [...] é que sua voca­
ção como ser humano nunca está em conflito com
seu destino de macho da espécie. Mediante a assi­
milação do falo e da transcendência, seu sucesso
social e espiritual acaba por lhe conferir um pres­
tígio viril. Ele não é um ser dividido, ao passo em
que se exige da mulher que, para concretizar sua
feminilidade, seja objeto e presa, isto é, renuncie
29 BEAUVOIR 1974 p ° suos P rerroQQtivas de pessoa soberana. 29
758,
Conforme Simone de Beauvoir, a marca
do ser humano é sua capacidade de agir com o
indivíduo soberano e de escolher a direção de
sua vida; as mulheres eram, portanto, seres to­
lhidos na expressão de sua humanidade essen­
cial. Para Simone de Beauvoir, a diferença se­
xual era um fenôm eno secundário, cultural, não

279
JQ/-J i 7/ oCOTT

LiüIoglCC, QLlS 110. 0 negava O CciTcílST UíllverSal


(a Igualdade) da humanidade, e nao desapare­
cería quando essa igualdade viesse- a ser reco­
nhecida ou, como ela dizia, “restaurada” . N o
final de O s e g u n d o s e x o , ela advoga que

Aqueles q u e falam tanto de ‘igualdade n a


d i f e r e n ç a 7 não
podem de bom g r a d o se recu­
sar a admitir a possibilidade de diferenças na
igualdade [...] Se a sociedade restituir à mu­
lher sua individualidade soberana, não destrui­
rá, por isso, o gosto enternecedor de um abra­
30 B E A U V O IR , 1974, p. ço amoroso.30
813.

Se esses pensamentos marcam Simone de


Beauvoir como filósofa existencialista e a colo­
cam partidária da “igualdade” do debate “igual­
dade versus diferença” travado pelas feminis­
tas contemporâneas, eles também nos dizem
algo sobre os efeitos que o direito ao voto exer­
31 S o b r e S im o n e de ceu sobre feminismo. 3 1 A semelhança de todas
Beauvoir e seu lugar no as feministas, Simone de Beauvoir deve ser lida
feminismo contem porá­
em termos dos discursos políticos e filosóficos
neo, v. BAIR, 1990; B U -
T L E R , 1987; S C H O R ,
de seu tempo. Em seu caso, o existencialismo e
Naom i, 1989, p. 38-56; o voto, bem como a idéia de que a soberania
W H IT FO R D , 1991, p. 23- do indivíduo devería ser dada às mulheres por
25; e D U C H E N , 1986. força de lei, são os contextos discursivos
cruciais. Em relação ao voto, em vez de resolver
a tensão entre o indivíduo indiferenciado abs­
trato e o indivíduo que se define pela diferença,
ela acentuou o conflito entre os dois. N o passa­
do, essa tensão foi aparentemente resolvida, ao
se considerar masculinos os dois indivíduos, so­
lução que não funcionou quando as mulheres,
pelo voto, foram admitidas nas fileiras dos indi­
víduos abstratos. A velha reivindicação das
mulheres, serem tratadas como indivíduos so­
beranos, acabara de ser reforçada pela nova
condição legal de cidadãs. A referência que Si­
mone de Beauvoir faz a “renunciar” a essa rei­
vindicação tem a ver não só com violação da

280
leí, m as'lambem com uma transgressão de sua
humanidade inerente,
Mas palavras de Simone de Beauvoir, o
direito ao voto não resolveu o problema da sin
. bordinação das mulheres, mas deslocou o e v o
da contradição. N ão se discutia mais se a mu­
lher tinha direitos ou não: assim que ela se tor­
nara um indivíduo legal, os princípios univer­
sais do republicanismo liberal puderam ser con­
siderados verdadeiramente universais. Perma­
necia, é claro, o problema dos direitos concre­
tos, como já havia acontecido quando os ho­
mens adquiriram direito universal ao voto, os
limites dos direitos formais relativos à correção
das desigualdades de poder econôm ico e social
ficaram mais evidentes. Com seus direitos polí­
ticos assegurados, as mulheres puderam levar
(e de fato levaram) suas demandas para a are­
na legislativa, apontando a contradição entre a
promessa de igualdade e sua realização. A ver­
dadeira tensão, porém, pensava S. de Beauvoir,
estava alhures: a mulher “se estabelece perante
o homem não como um sujeito, mas com o um
objeto paradoxalmente investido de subjetivi­
dade; ela se tornou simultaneamente o £eu’ e o
outro’ , uma contradição que acarreta conseqü-
32 B E A U V O IR , 1974, p. ências desconcertantes” .32 Enquanto pondera-
799. va sobre seu dilema, perguntava-se o que seria
preciso para alcançar aquela “ metamorfose in­
terior” necessária para que as mulheres pudes­
sem ser representadas com o indivíduos total­
mente autônomos: “Será suficiente mudar leis,
instituições, costumes, opinião pública e todo o
contexto social para que homens e mulheres se
tornem verdadeiramente iguais?” Sim one de
Beauvoir evitou uma resposta direta. Pensava,
por um lado, que essas mudanças eram uma
precondição para a verdadeira igualdade, que
viria aos poucos; por outro lado, contudo, que
essa conquista exigiu da mulher um tipo de
transcendência que sua condição de objeto lhe

281
JO A N W. SCOTT ■.

negava:?A questão não é eliminar na mulher as


contingencias e as misérias da condição huma­
na, mas dar-lhe meios para que possa trans-
33BEAUVOIR, 1974, p. cende-las.” 33
806, 809-810. Essa contradição implícita na análise de
Simone de Beauvoir repete algumas outras so­
bre causalidade e materialismo, inerentes ao
■ choque entre existencialismo e marxismo. Mar-
0 - ca, também, novo contexto, o q u e se form ou
com o conseqüênda direta do sufrágio femini­
no, um foco a mais para as críticas feministas.
Quando as mulheres se tornaram cidadãs, a im­
pressão geral era a de que o indivíduo abstrato
se pluralizara; na verdade ele ficou, na melhor
das hipóteses, neutralizado, e é provável que seja
mais correto dizer que ele permaneceu mascu­
lino. As mulheres foram absorvidas pela cate­
goria “masculino” e declaradas uma versão do
homem, para que pudessem exercer o direito
de votar. Daí resultou a negação temporária, a
esquiva, do desafio que a diferença sexual há
muito propusera para a definição de individuo
abstrato. Nos termos de Simone de Beauvoir,
porém, a solução era apenas “teórica” , não era
prática, nem real, porque não tinha efeito no
processo “eu/outro” , graças ao qual os indiví­
duos se construíam, um processo que instituía
a diferença sexual não com o pluralismo (visto
que o indivíduo era sempre considerado sin­
gular), mas com o hierarquia. Quando as m u­
lheres se tornaram cidadãs, elas puderam ser
representadas com o indivíduos (abstratos),
mas de que m odo poderiam ser representadas
com o mulheres?
O feminismo pós-sufrágio foi construído
dentro de um paradoxo: a declarada igualdade
entre homens e mulheres sob o signo da cida­
dania (ou do indivíduo abstrato), em contraste
com a excludente masculinidade do sujeito in­
dividual. Considerando essa incoerência entre
o sentido político e o psicológico de “indivíduo”

282
O D A : ' A o ¿VÍAS N A U I N D I V I D U O S

. ' e que se pode entender não apenas-os conítrtos


que têm caracterizado a história' mais recente
do feminismo, com o também a dificuldade corrí
que Simone de Beauvoir se defrontou para su­
gerir um programa definitivo para a conquista
da igualdade aqui referida.
Enfoques feministas antagônicos têm de­
fendido as duas tendências opostas quanto à
conceituação de indivíduo. Umas têm pugnado
pela corrente que considera as mulheres iguais
aos homens (indivíduo abstrato) e outras pela
corrente -que insiste na diferença radical entre
homens e mulheres (indivíduo por diferença se­
xual) . As feministas que argumentam a favor' da
igualdade entre homens e mulheres seguem Si­
m on e de B ea u vo ir (dentre elas, Elisabeth
^BADINTER, 1986,1908 Badinter, uma das figuras mais recentes).34 Es-
e 1992. tas tomam, por conseguinte, partido do indiví­
duo abstrato e ignoram a diferença sexual, por
considerá-la irrelevante no contexto dos direi­
tos humanos que os princípios universais da lei
dem ocrática liberal reconhecem . Outras têm
defendido a diferença entre homens e mulhe­
res, sustentando que a diferença sexual é um
produto inevitável da individuação e que o in­
dividualismo abstrato não apenas reprime a di­
ferença sexual — um fator implacável — , mas
também perpetua a opressão da mulher, pois
transforma a masculinidade em norma. ( “Igual
a quem?” , pergunta Luce Irigaray, ao insurgir-
se contra as feministas que aspiram à identifi­
cação com o “masculino genérico” . “ Isso se me
afigura com o um erro muito ingênuo, já que [as
mulheres] ainda prescindem daquilo que é ne­
cessário para a definição de sua própria identi-
35IRIGARAY, 1989, p. 70. dade sociocultural.”35 As mulheres, em outras
palavras, continuam não podendo se represen­
tar em seus próprios termos.) A meta das cha­
madas feministas da diferença é, estabelecendo
a diferença com o base para a representação de
uma subjetividade feminina autônoma, romper

283
jO'Aí'MH 5CQ7T

com o processo que objenrica as mulheres


36Sobre estas questões, v. torna sujeitos individuais masculinos.36
S C H O R , 1939; D U ­ Meu objetivo não foi tomar posição n ra­
CHEN, 1986; BRAIDOT-
sas disputas, mas deixar claro que, por mais
TI, 1991. Especialmente
G A R C ÍA , [s.d.], cujo tra­ intensamente que qualquer um dos dois parti­
balho, ap resen tad o em dos defenda seu ponto de vista, nenhum deles
um seminário organizado sin aliza um d e fe ito no fem in ism o, a qu e
por Luc Boltanski, é so­
Theodore Zeldin, citando as memórias de Louise
brem odo especial e inte­
re ssa n te p o r in c lu ir a
Weiss, se referia com o “o ranço dos m ovim en­
transcrição de um notável tos feministas” .37 A o contrário, a aparente ne­
debate entre E. Badinter cessidade de escolher entre a igualdade ou a
e L, Ligar ay — num pro­ diferença (nunca plenamente suprida por qual­
grama radiofônico, France
quer das alternativas) é apenas um sintoma da
Culture (1990?)— , m ode­
rado pelo filósofo políti­ dificuldade que a diferença sexual representa
co A ia in F in kielk rau t. para se chegar a um concepção de singularida­
A gradeço a Luc Boltanski de do indivíduo. E, o feminismo, na medida em
por ter feito chegar às mi­
que se constrói numa relação paradoxal com
nhas m ãos o trabalho re­
ferido.
esse conceito de indivíduo singular, reproduz ine­
vitavelmente os termos contraditórios da sua
própria construção.
37ZELDIN, 1973, p. 350.
E próprio da natureza do paradoxo ser in­
solúvel. Eis a razão porque uma releitura da his­
tória do feminismo não pode resolver seus pa­
radoxos. Estes, por outro lado, acabam por in­
troduzir uma inevitável complexidade no relato
histórico. Abordei a história do feminismo, mas
a utilidade dessa abordagem vai além do fem i­
nismo e alcança o estudo mais geral da Histó­
ria. Alerta, na verdade, para a especificidade
histórica dos paradoxos e das contradições que
produzem suas próprias negações, e, portanto,
para a historicidade de certos fatos que pare­
cem ser expressões políticas e culturais, se não
contínuas, pelo menos recorrentes. Portanto, a
existência do feminismo (ou a do sindicalismo,
do socialismo ou dos movimentos anti-racistas,
para dar apenas alguns exemplos) não se expli­
ca com o um movimento de resistência a um p e­
rene “masculinismo” (ou ao capitalismo, ou ao
racismo), ou aos limites rígidos das teorias po-
lítico-liberais. N a verdade, são processos (com o

284
CIDADÃS RAS NÃOóNüDvDüOS

o feminismo ou quaisquer utros movimentos


políticos de resistência e reivindicação) que se
vêm construindo de maneira distinta, em épo­
cas diferentes, em locais onde ocorrem histori­
camente contradições discursivas específicas,
difíceis de resolver, às vezes insolúveis. O papel
dos estudos históricos é o de iluminar a especi­
ficidade de tais processos.
A história do feminismo tem sido um ins­
trumento importante e complexo, usado de ma­
neira consciente para as finalidades da política
feminista. Meu objetivo não foi outro senão o
de engajar-me nessa história, a fim de tentar
responder um conjunto de perguntas difíceis
oriundas dos múltiplos, e por vezes acalorados,
debates sobre igualdade e diferença que as fe­
ministas contemporâneas têm empreendido. A
semelhança das feministas do passado, meu
pensamento se estruturou dentro do contexto de
um discurso histórico sobre o qual não tenho
controle absoluto (o que a outros cabe anali­
sar), mas, mesmo assim, foi com total consci­
ência que me debrucei sobre as fontes teóricas
que tratam da diferença, do paradoxo e da for­
38 U m a lista curta inclui mação discursiva de sujeitos.38
F O U C AU LT , 1976,1980; Essas teorias me fizeram entender de ma­
a e d iç ã o e s p e c ia l d e
neira diferente as razões da persistência dos di­
C a h iers C on fro n ta tio n
20, inverno 1989, "Après lemas com que as feministas se defrontaram e
le sujet, q u i vient?"; as respostas fatalmente paradoxais que vêm
A L T H U S S E R , 1974; e dando a eles. As feministas, entretanto, não só
IRIG AR AX 1974 e 1975.
jamais os resolveram, como também não po­
dem resolvê-los, nem, ao menos, tomá-los mais
fáceis de resolver. N a verdade, no caso do femi­
nismo, o problema que sempre se considerou
tão categórico e crucial e que ainda perdura
(igualdade versus diferença) não pode ser re­
solvido da maneira como tem sido apresenta­
do. Poderia ele, porém, ser apresentado de ou­
tra forma? Haveria feminismo sem o discurso
dos direitos individuais que reprimem a diferen­
ça sexual? Creio que não. Pode haver política

285
JOAN JO SCOTT

feminista ,que .explore essa mnsáo sem esperar


resolvê-la? Creio que sim. INa realidade, este li­
vro tentei demonstrar que é exatamente isso que
as feministas vêm fazendo há pelo menos dois
séculos.
Se minhas respostas a estas últimas per­
guntas têm sido apenas provisórias ( “Creio que
não” , “Creio que sim” ) é porque tenho a inten­
ção explícita de provocar o debate, e não de
encerrá-lo. O debate nvo só é necessário para
sustentar um movimento vigoroso (tanto na área
política, quanto na acadêmica), mas também é
inevitável. Historicamente as feministas têm tido
que enfrentar problemas que são viscerais den­
tro da organização ideológica de suas socieda­
des e que, portanto, não são propostos, nem vis­
tos, nem tampouco considerados com o proble­
mas. Nenhuma solução segura ou simples tem
sido (ou é) possível perante esse tipo de desa­
fio; daí, pois, a inevitabilidade do debate.
Submeter nossos paradoxos ao julgamen­
to da crítica é uma forma de apreciar a enormi­
dade dos problemas que as feministas têm en­
frentado e a criatividade com que elas os abor­
dam. Além disto, uma forma de observar, com
admiração, que a necessidade freqüentemente
as leva a engendrar maneiras de pensar que não
insistam na busca de solução para idéias que
se opõem . Afinal de contas, foi justamente pelo
contrário que a “diferença sexual” se transfor­
mou num problema insolúvel para as teorias da
representação política. E, para criticar essas te­
orias, que tentavam se livrar do problema da
diferença sexual, im pondo que se excluíssem as
mulheres da cena política, foi que o feminismo
encontrou sua instável raison d ’étre.

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ZIMDARS-SWARTZ, Sandra. E n c o u n t e r in g M a r y f r o m L a S a le tte to Medjugorje.
Princeton: Princeton University Press, 1991.

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O U TRO S TITU LO S DA EDITORA M ULHERES

SÉRIE ENSAIOS .

ínês Sebino
Mulheres ilustres do Brasil

Nísia Floresta
Cintilações de uma alma bmbislra

Valéria Andrade Souto-Maior


índice de dramaturgas brasileiras do século X IX

Mônica R. Schpun
Gênero sem fronteiras

Peggy Sharpe
Entre resistir e identificar-se

Joana Ffedro e Miriam Grossi


Masculino feminino plural

Alcione L. Silva, Mara Lago e Tânia Ramos


Falas de gênero

Zahidé L. Muzart (org.)


Escritoras brasileiras do século XIX

M. T. Cunha, M. H. Bastos e Ana C. Mignot


Refúgios do eu

Vera Queiroz
Hilda Hilst: três leituras

Valéria Andrade Souto-Maior


O florete e a máscara

SÉRIE VIAGENS

Nísia Floresta
Itinerário de uma viagem à Alemanha

Baronesa de Langsdorff
Diário de sua viagem ao Brasil

Flora Tristan
Peregrinações de uma pária

Mme. Van Langendonck


Uma colônia no Brasil

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