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A SEGUNDA ESCRAVIDÃO

E O IMPÉRIO DO BRASIL
EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

Mariana Muaze
Ricardo H. Salles
Organizadores

casa leiria
A escravidão brasileira do século XIX,
em sua época, foi vista como um legado colonial.
Para seus opositores, tratava-se de um entrave a
ser superado para a modernização do país; para
os que dela viviam e extraíam seus lucros, um
mal necessário que, em algum momento, viria
a ser gradativamente eliminado no futuro. Essa
visão da escravidão oitocentista como herança
colonial, em que pesem as inúmeras ressalvas e
críticas às concepções da História como um pro-
cesso evolutivo, ou talvez até por conta delas,
tornou-se um lugar comum na historiografia sub-
sequente e mesmo atual. O conjunto de ensaios
que compõem esse livro visa problematizar esse
aparente consenso.
O ponto de partida é a constatação de
que a escravidão afro-americana no Brasil, assim
como no Sul dos Estados Unidos e em Cuba, não
só se manteve, mas expandiu-se e adquiriu po-
tência e dimensão inusitadas nos séculos ante-
riores. Nas palavras de Dale Tomich, que prefa-
cia a obra, ela se constituiu em uma verdadeira
segunda escravidão que, longe de ser uma ins-
tituição do antigo regime ou do antigo sistema
colonial, pressupôs o processo de construção de
Estados nacionais e de expansão internacional
do mercado capitalista, ao mesmo tempo em
que foi uma de suas vertentes constitutivas. Do
ponto de vista econômico, esse processo levou à
maior procura por novas matérias-primas, como
o algodão, e mercadorias tropicais como o café e
o açúcar, produtos de consumo de massa incor-
porados à dieta básica dos trabalhadores e das
classes médias europeias e norte-americanas.
Do ponto de vista político, a Era da Revoluções
abriu um quadro internacional de contestações à
escravidão afro-americana, especialmente após a
Revolução Haitiana, a primeira e única a pôr fim
ao regime servil por obra dos próprios escravos.
Nessas condições, a permanência e expansão da
escravidão dependeram decisivamente da prote-
ção de Estados nacionais, integralmente escravis-
tas, como o Império do Brasil e os Estados Con-
federados da América, em sua breve e belicosa
existência, ou que defendiam parcialmente sua
manutenção, como os Estados Unidos, até 1860,
e o Império espanhol.
A Segunda Escravidão e o Império do Bra-
sil em perspectiva histórica trata a temática da se-
gunda escravidão como uma série de questões
em aberto. A primeira parte do livro traz um
debate mais abrangente sobre as articulações
entre a segunda escravidão e o capitalismo his-
tórico. A segunda discute a segunda escravidão
e a diversidade regional da economia brasileira
no século XIX. A terceira considera a pertinência
do uso do conceito para o estudo da economia
colonial tardia na América portuguesa. A última
parte aborda a questão teórica e metodológica
da relação entre a perspectiva mais geral e tota-
lizante da segunda escravidão, a agência e a mi-
cro-história. Esses temas são abordados por his-
toriadores com visões distintas sobre o conceito
de segunda escravidão, em seguida comentadas
por debatedores, alguns dos quais críticos a essa
concepção.
A SEGUNDA ESCRAVIDÃO
E O IMPÉRIO DO BRASIL
EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
Editora Casa Leiria
Rua do Parque, 470 – B. Padre Reus
93020-270 São Leopoldo/RS

CASA LEIRIA CONSELHO EDITORIAL


Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS)
Gisele Palma (IFRS)
Haide Maria Hupffer (Feevale)
Isabel Cristina Arendt (Unisinos)
Luciana Paulo Gomes (Unisinos)
Luiz Felipe Barboza Lacerda (UNICAP)
Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos)
Rosangela Fritsch (Unisinos)
Tiago Luís Gil (UnB)
Mariana Muaze
Ricardo H. Salles
Organizadores

A SEGUNDA ESCRAVIDÃO
E O IMPÉRIO DO BRASIL
EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

Casa Leiria
São Leopoldo / RS
2020
A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O IMPÉRIO DO BRASIL
EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
Mariana Muaze
Ricardo H. Salles
Organizadores

Revisão: Luiz Antonio Aguiar,


Marisa Sobral e
Gabriel Martins Gomes da Silva.
Edição: Casa Leiria.
Imagem da capa cedida pela Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Johann Jacob Steinmann (Basiléia, Suíça,1804-1844),
“Plantaçaõ de café”, 1839.
Água-tinta e aquarela sobre papel, 11,9 x 16,8 cm.
Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil.
Coleção Brasiliana/Fundação Estudar.
Os textos e imagens são de responsabilidade de seus autores.
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida,
desde que citada a fonte.

Catalogação na publicação
Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973
Para os nossos alunos e colegas professores.
Senhores, a propriedade não tem somente
direitos, tem também deveres, e o estado
da pobreza entre nós, a indiferença com
que todos olham para a condição do povo,
não faz honra à propriedade, como não faz
honra aos poderes do Estado. Eu, pois, se
for eleito, não separarei mais as duas ques-
tões – a da emancipação dos escravos e a
da democratização do solo. (Longos aplau-
sos.) Uma é o complemento da outra. Aca-
bar com a escravidão não nos basta; é pre-
ciso destruir a obra da escravidão.
(Joaquim Nabuco, discurso em um comício
popular em sua campanha política no Reci-
fe, a 5 de novembro de 1884)1.

1 Joaquim Nabuco, Campanha Abolicionista no Recife [1884]. Brasília: Edições do Senado Federal,
2005, p. 58.
SUMÁRIO

13 APRESENTAÇÃO
Dale Tomich
19 INTRODUÇÃO
Mariana Muaze
Ricardo H. Salles

PARTE I
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO
HISTÓRICO EM PERSPECTIVA ATLÂNTICA

27 A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O DEBATE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE


CAPITALISMO E ESCRAVIDÃO. ENSAIO DE HISTORIOGRAFIA
Ricardo H. Salles
53 UNIDADES DE ANÁLISE, JOGOS DE ESCALAS E A HISTORIOGRAFIA
DA ESCRAVIDÃO NO CAPITALISMO
Leonardo Marques
75 COMENTÁRIO
ESCRAVIDÃO HISTÓRICA E CAPITALISMO HISTÓRICO: NOTAS
PARA UM DEBATE
Rafael Marquese

PARTE II
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E DIVERSIDADE
ECONÔMICA E REGIONAL

93 RAÍZES ESCRAVAS DA INDÚSTRIA NO BRASIL


Luiz Fernando Saraiva
Rita Almico
121 ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO: DIMENSÕES DE UMA ECONOMIA
REGIONAL NO SÉCULO XIX
Walter Luiz C. de M. Pereira
141 COMENTÁRIO
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E RAÍZES ESCRAVAS DA MODERNIZAÇÃO
CAPITALISTA DO BRASIL
Renato Leite Marcondes
145 COMENTÁRIO
SEGUNDA ESCRAVIDÃO, ESPAÇOS ECONÔMICOS E
DIVERSIFICAÇÃO REGIONAL NO BRASIL IMPERIAL
Gabriel Aladrén

PARTE III
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E PERÍODO COLONIAL TARDIO

175 A INSERÇÃO DOS INGLESES NO IMPÉRIO PORTUGUÊS: O CASO


DA FAMÍLIA GULSTON NO RIO DE JANEIRO, c.1710-c.1720
Carlos Gabriel Guimarães
205 O ANACRONISMO DE UM ATAVISMO? A PROPÓSITO DA SEGUNDA
ESCRAVIDÃO SOB ÉGIDE MERCANTILISTA
Carlos Leonardo Kelmer Mathias
223 COMENTÁRIO
BENEFÍCIOS E LIMITES DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO COMO
MÉTODO PARA UMA RAZÃO DIALÉTICA
Rodrigo Goyena Soares

PARTE IV
SEGUNDA ESCRAVIDÃO, MICRO-HISTÓRIA E AGÊNCIA

241 SEGUNDA ESCRAVIDÃO E


MICRO-HISTÓRIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL
Mariana Muaze
261 MICROANÁLISE E SEGUNDA ESCRAVIDÃO: A NARRATIVA DOS
INDIVÍDUOS E A MODERNIDADE ESCRAVISTA NO VALE DO CAFÉ
Thiago Campos Pessoa
279 A SEGUNDA ESCRAVIDÃO: O RETORNO DE QUETZALCOATL?
Waldomiro Lourenço da Silva Júnior
287 COMENTÁRIO
PARA UMA NOVA DIMENSÃO DOS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA
DA ESCRAVIDÃO: DIÁLOGOS ENTRE A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E A
MICRO-HISTÓRIA
Mônica Ribeiro de Oliveira
295 OS AUTORES
APRESENTAÇÃO

Dale Tomich1

A segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo


de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas para a
destruição desta última no oitocentos. A ideia nasceu de minha insatis-
fação com histórias lineares da escravidão que a veem, de alguma forma,
como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de
propriedade e liberdade. Minha percepção inicial derivou da comparação
do desenvolvimento da escravidão de plantation na Martinica e em Cuba
ao longo do século XIX. As evidências não se ajustavam à visão linear
sobre o capitalismo e a escravidão. O desenvolvimento do capitalismo
industrial e do mercado mundial acentuaram rigidezes espaciais e sociais
que levaram à crise da escravidão e do sistema de plantation na Martinica.
Em Cuba, esses mesmos processos estimularam a expansão sem prece-
dentes da produção açucareira e a reconfiguração da escravidão. Uma
vez rompida essa visão linear de progresso e do tempo histórico, um
novo modo de ver a relação capitalismo-escravidão emergiu, especial-
mente nas zonas centrais produtoras de commodities em Cuba, Sul dos
Estados Unidos e Brasil (Tomich, 1994).
A visão linear é, hoje, menos predominante, mas o problema de
como interpretar a relação entre capitalismo e escravidão permanece.
Tanto a Nova História Econômica quanto a Nova História do Capitalismo
reconhecem o caráter capitalista da escravidão. A primeira assimila a es-
cravidão à moldura abstrata e universal do mercado de trocas fornecida
pela economia neoclássica onde tudo – e nada – é capitalista. A lucrati-
vidade e a produtividade são demonstradas nesse quadro, mas essa con-
cepção, sem espaço e sem tempo, é indiferente à segunda escravidão. Ela
preocupa-se apenas com o input marginal do trabalho e não distingue o
trabalho escravo de outras formas de trabalho produtoras de mercado-
rias. Senhores e escravos respondem aos estímulos do mercado através
de escolhas econômicas racionais. A relação senhor-escravo é deslocada

1 Fernand Braudel Center – Universidade de Binghampton.

13
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

para esfera política e ideológica e as causas morais e políticas da eman-


cipação são enfatizadas.
A Nova História do Capitalismo também trata a escravidão como
capitalista, mas, diferentemente da Nova História Econômica, reconhece
o seu caráter específico. Os escravos são vistos como propriedade que
era vendida e comprada. Eles não faziam escolhas racionais no mercado.
As estruturas de força e coerção que instituíam a escravidão e organiza-
vam o processo de trabalho. Contudo, essa abordagem simplesmente
junta capitalismo e escravidão como entidades separadas. Tipicamen-
te, capitalismo e escravidão são formulados como um par interligado.
A segunda escravidão é entendida, eventualmente, como escravidão do
capitalismo ou mesmo como capitalismo da escravidão. Trata-se do que
Maria Sylvia de Carvalho Franco descreveu como “uma dualidade integra-
da” e não uma “unidade contraditória” (Franco, 1976, p. 11).
Cada uma dessas abordagens, a seu modo, trata a escravidão e a
relação senhor-escravo como um conceito fechado em si e internamente
integrado que está ligado externamente a – ou é influenciado por – outras
relações autonomizadas do mesmo tipo (Sayer, 1987). Há aqui uma clara
distinção entre o que é “interno” e “externo” em um sistema escravista.
Diferentemente de tais formulações, a abordagem da segunda escravidão
trata a escravidão e a relação senhor-escravo como relações históricas
concretas e substantivas. Vistas dessa perspectiva, as relações escravistas
históricas reais são constituídas não apenas pela forma das relações se-
nhor-escravo, mas também, por um lado, por processos de produção ma-
terial específicos (açúcar, café, algodão), pela ecologia e pela geografia,
e, por outro, por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho
e no mercado mundial (que se constitui de uma configuração histórica
particular da inter-relação econômica entre produção, distribuição, tro-
cas e consumo). Consequentemente, cada formação escravista forma um
complexo histórico-geográfico específico (Godinho, 1961) no interior da
divisão mundial do trabalho que se transforma historicamente. Em cada
um desses casos a relação senhor-escravo adquire características especí-
ficas que a distingue de outras formações escravistas desse tipo. (Aqui o
foco na economia e na produção de mercadorias, apesar de importante
por si só, visa também fornecer um fio condutor para o estudo dos aspec-
tos políticos, sociais e culturais da segunda escravidão.)
Deste ponto de vista, escravidão e trabalho assalariado são partes
constitutivas de um todo econômico-mundial abrangente. Não são consi-
derados como duas entidades isoladas, mas como polos de uma mesma
relação. São inter-relacionados e mutuamente formativos; diferenciáveis,

14
Apresentação

porém inseparáveis. O capitalismo é um atributo do todo econômico-


-mundial e não de uma de suas partes tratada de modo isolado. Aqui
reside a reformulação essencial oferecida pela perspectiva da segunda
escravidão: não o capitalismo definido por uma concepção abstrata de
trabalho assalariado e capital; não a escravidão definida como não capi-
talista pela ausência de trabalho assalariado, ou capitalista por produzir
para um mercado; não a economia-mundo como um “todo” fixo que pai-
ra sobre as suas partes constitutivas. E sim o capitalismo histórico: uma
concepção de capitalismo que transcende as definições abstratas para
focar na interdependência concreta e histórica, na interação e na forma-
ção mútua das redes de relações histórico-geográficas diversas que cons-
tituem o capitalismo mundial. Vista por essa perspectiva, a escravidão é
capitalista (ou, mais precisamente, uma forma específica de capital), e o
capitalismo é um todo estruturado multiforme e diferenciado que abarca
tanto a escravidão quanto o trabalho assalariado, dentre outras formas.
Nesse quadro, a segunda escravidão aponta para as mudanças na
relação entre a escravidão e o trabalho assalariado quando este e o capi-
tal industrial se tornaram o centro organizador dos processos de acumu-
lação mundial do século XIX, gerando novos espaços produtivos e novos
ritmos temporais. Aqui, nenhuma formação escravista específica é como
qualquer outra. Semelhanças e diferenças aparecem não através de uma
comparação formal entre “casos” independentes, mas como pontos de
partida para uma investigação que busque diferenciar e especificar cada
formação e analisar sua inter-relação e interação no interior das estrutu-
ras mais abrangentes do capitalismo histórico. Tais investigações podem
examinar a relação entre a segunda escravidão e os regimes escravistas
que a precederam, com as formas de trabalho no pós-abolição ou entre
diferentes formações da própria segunda escravidão. Consequentemen-
te, o conceito de segunda escravidão não descreve as histórias nacionais
específicas de Brasil, Cuba e Estados Unidos como reações aos estímulos
externos da revolução industrial, descolonização e consolidação de um
mercado mundial no século XIX. Em vez disso, ele aponta para a criação
de novos espaços econômicos e políticos por meio da expansão e inten-
sificação do trabalho escravo como parte de uma reestruturação históri-
ca da economia-mundo oitocentista. O foco é nos processos históricos
que formam cada espaço geográfico e econômico e em como a nossa
compreensão de cada espaço contribui para o nosso entendimento das
relações específicas que formam a economia-mundo.
O conceito de segunda escravidão é construído, desse modo, a
partir de um quadro teórico distinto que abarca o capitalismo histórico e

15
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

o Atlântico no oitocentos, que depende de uma forma de análise e expli-


cação histórica metodologicamente distinta (Tomich, 2018). É desse pon-
to de vista que os capítulos de A Segunda escravidão e o Império do Brasil em
Perspectiva Histórica podem ser avaliados. Ao levantar a questão de como
entender e escrever a história de um espaço particular com a abordagem
metodológica e teórica oferecida pela segunda escravidão, eles oferecem
uma contribuição teórica e historiográfica à crescente produção acadê-
mica realizada sob essa perspectiva. Não se trata da história particular de
uma unidade nacional específica. Tampouco, se trata de simplesmente
de explicitar a estrutura do todo econômico-mundial e explicar a história
nacional por meio de sua posição nesse todo. Essas duas alternativas
são descartadas. Em vez disso, os artigos consideram o Brasil como uma
unidade de ação social constituída no interior dos processos formativos
das economias-mundo e atlânticas, ao mesmo tempo que contribui para
a formação do capitalismo mundial. Isto é, eles historicizam o Brasil, que
aparece como uma zona de convergência de múltiplos campos de força
com tamanho, duração e força variáveis, como objeto de investigação. O
objetivo é especificar os processos e relações que formam e reformam
o Brasil, estabelecendo suas interações e formação mútua na conjuntura
histórica específica da segunda escravidão. As relações, e consequente-
mente as próprias unidades de observação são, assim, modeladas e re-
modeladas continuamente pelos próprios processos sob investigação. Os
autores deixam aberta a questão em torno das fronteiras dos processos
avaliados em vez de presumir que tais limites estão dados. Eles tratam as
delimitações do Brasil como uma unidade de observação que é formada
nas relações em transformação do capitalismo histórico, do Atlântico e
do espaço nacional, em vez de uma demarcação fixa entre o que é in-
terno e o que é externo. Ao mesmo tempo, atentam para as diferenças
espaciais e temporais tanto no Brasil quanto entre o Brasil e outras zonas
da economia-mundo oitocentista. Partindo do modelo conceitual da se-
gunda escravidão eles buscam explorar novas questões que atravessam
múltiplas escalas espaço-temporais: o desenvolvimento de formações
regionais no Brasil, a escravidão em diversos setores econômico-sociais
e seu papel no desenvolvimento socioeconômico, e as condições para a
hegemonia dos grupos políticos e econômicos que unificaram o espaço
nacional. A atenção para a micro-história também nos lembra dos limites
de uma história conceitual. O foco no micro não é na pequena escala e
sim na ação individual irredutível (a “margem especulativa não suprimí-
vel”) que se encontra atrás do que Carlo Ginzburg chama de “equalização
dos indivíduos” que inevitavelmente acompanha a generalização concei-

16
Apresentação

tual (Ginzburg, 1993). O exame dessas agências individuais heterogêneas


ilumina seus contextos históricos ou revela atos que, por meio de sua re-
petição contínua, assumem características estruturais e efetividade cau-
sal. Os autores vão além do modelo conceitual oferecido pela segunda
escravidão para incorporar tais processos históricos e depois retornam
ao começo para progressivamente modificar o modelo à luz de suas pes-
quisas. Dessa forma, eles estendem e aprofundam criticamente a nossa
compreensão da segunda escravidão e do capitalismo mundial por meio
da construção de uma imagem mais complexa do capitalismo histórico
no Brasil e do Brasil no capitalismo histórico. Ao fazê-lo, oferecem no-
vas soluções para antigos problemas enquanto também formulam novas
questões. O valor do livro está tanto no que fizeram quanto em como o
fizeram.

Referências
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata.
São Paulo: Editora Ática, 1976.
GINZBURG, Carlo. Microhistory: Two or Three Things I Know about It,
Critical Inquiry 20, 1, 1993, p. 10-35.
GODINHO, Vitorino Magalhães. “Complexo Histórico-Geográfico.” In J.
Serrão (ed.), Dicionario de História de Portugal. Porto: se, 1961.
SAYER, Derek. Violent Abstractions: The Analytic Foundations of Historical
Materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.
TOMICH, Dale. Small Islands and Huge Comparisons: Caribbean Planta-
tions, Historical Unevenness, & Capitalist Modernity, Social Science
History 18, 3, 1994, p. 339-358.
TOMICH, Dale. 2018. The Second Slavery and World Capitalism: A Per-
spective for Historical Inquiry, International Review of Social History
63, 3, 2018, p. 477-501.

17
INTRODUÇÃO
Mariana Muaze
Ricardo H. Salles

Longe de ser uma instituição moribunda


durante o século XIX, a escravidão demonstrou
toda a sua adaptabilidade e vitalidade.
Dale Tomich (Pelo prisma da escravidão).

Nos últimos anos, os estudos sobre a escravidão oitocentista


têm tomado uma nova dimensão com a ideia de que essa escravidão
não seria apenas remanescente do regime colonial, mas uma escravidão
em interação com a construção de Estados nacionais e com a expansão
internacional do mercado capitalista. Portanto, uma escravidão renova-
da, uma segunda escravidão, conforme conceito cunhado pelo historiador
norte-americano Dale Tomich (1988). Essa segunda escravidão se expan-
diu exatamente no momento em que a escravidão colonial era abolida
pela Revolução Haitiana e por guerras e reformas em outras regiões
americanas. Ela alimentou e, ao mesmo tempo, derivou de um conjun-
to de tendências e acontecimentos históricos na virada do século XVIII
para o XIX, cujo epicentro foi a Revolução Industrial e a consolidação
da hegemonia britânica no plano internacional. Esses acontecimentos
e processos levaram à maior procura por novas matérias-primas, como
o algodão, e mercadorias tropicais como o café e o açúcar, que se tor-
naram produtos de consumo de massa ao serem incorporados à dieta
básica dos trabalhadores e das classes médias urbanas. Nas novas regiões
– Cuba, Sul dos Estados Unidos e Vale do Paraíba no Brasil – a escravidão
se expandiu em escala maciça, antes nunca experimentada, para atender
a uma crescente demanda mundial por estas commodities. Nessas áreas,
à margem do comércio Atlântico até fins do Setecentos, surgiram imen-
sas plantations cultivadas intensamente através da mão de obra negra
africana e viabilizadas através do tráfico Atlântico. Seu modus operandi se
diferenciava da escravidão colonial por suas conexões com os Estados,
a formação de classes senhoriais de caráter regional e mesmo nacional,
a modernidade tecnológica, principalmente com investimentos em fer-
rovias e máquinas de desenvolvimento agrícola, os bancos nacionais e
estrangeiros, e o compromisso com a alta produtividade. Assim, durante

19
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

a segunda escravidão, os centros escravistas emergentes se constituíram


como partes fundamentais do mercado industrial e de sua cadeia produ-
tiva, impulsionando a expansão e a reprodução do capitalismo no mun-
do. Desse modo, o conceito de segunda escravidão traz como princípio e
proposição fundamental assinalar e investigar as relações historicamente
intrínsecas, mesmo quando contraditórias, entre o desenvolvimento do
capitalismo e da escravidão no século XIX.
Não se trata apenas de uma questão de interpretação sobre o
passado. A reflexão sobre as relações entre capitalismo e escravidão no
Mundo Atlântico e no Brasil em particular traz consigo o problema his-
tórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século
XIX e na atualidade. Na base das grandes fortunas das elites pós-inde-
pendência estão os lucros provenientes do tráfico internacional (legal
ou ilegal) de escravos, do comércio de artigos ligados à escravidão, da
expropriação de direitos e da exploração do trabalho de inúmeros criou-
los, africanos e africanos livres por gerações. Por mais que a campanha
abolicionista e o movimento dos escravos pela emancipação tenham sido
vitoriosos no 13 de Maio, eles não foram capazes de se transformar em
lutas nacionais por direitos sociais e igualdade racial. Hoje, mais de 130
anos depois, essa pauta é cada vez mais urgente no país que mais mata
jovens negros em idade entre 15 e 29 anos, que possui a quinta maior
taxa de feminicídio do mundo, sendo a maioria das vítimas mulheres
negras, e que insiste em retirar direitos das populações mais pobres em
prol de um capitalismo de agenda neoliberal. Tais índices não são meros
acidentes de percurso. Eles têm fundamento histórico e se justificam,
dentre outras coisas, pela construção de uma nação calcada na hierarquia
e na exploração da mão de obra escrava.
A partir desse pano de fundo, um grupo crescente de pesquisa-
dores, nacionais e estrangeiros, têm se voltado para o uso do conceito
de segunda escravidão, no sentido de abrir novos problemas e roteiros
investigativos dentro do campo dos estudos da escravidão. Boa parte
desse esforço se realizou, direta ou indiretamente, através de uma rede
internacional de pesquisadores articulados em torno da Second Slavery
Research Network, que tem seu centro de animação no Fernand Braudel
Center for the Study of Economies, Historical Systems, and Civilizations, em
Binghamton, EUA. No Brasil, o debate foi fomentado, principalmente,
no âmbito do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (La-
b-Mundi/USP), que organizou, entre outros eventos, o seminário inter-
nacional e o livro homônimo Escravidão e Capitalismo histórico no século
XIX (Marquese; Salles, 2016), e do grupo interinstitucional O Império do

20
Introdução

Brasil e a Segunda Escravidão (antigo Vale do Paraíba e a segunda escravi-


dão). Este último foi formado, em 2010, por pesquisadores, professores
e alunos de graduação e pós-graduação da UNIRIO, MAST, UFF, USP,
UNIFESP, UFJF e UFSC, e promoveu, além de seminários internos, diver-
sas edições do simpósio temático O Vale do Paraíba, a Segunda Escravidão
e a Civilização Imperial nos Encontros Regionais da Associação Nacional
dos Historiadores (ANPUH), seção Rio de Janeiro, dos anos de 2012,
2014, 2016 e 2018. Como resultado, foram publicadas a coletânea O
Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão
(Muaze; Salles, 2015) e, agora, o livro que o leitor tem em mãos, que
consagra os 10 anos do grupo.
Em abril de 2016, em uma reunião do grupo O Império do Brasil
e a Segunda Escravidão, realizada em Vassouras, Rio de Janeiro, foi ava-
liada a importância de promover um evento não endógeno, almejando
o amplo debate com historiadores não inteiramente familiarizados ou
mesmo contrários ao conceito de segunda escravidão, mas que se dis-
pusessem a discuti-lo no âmbito da historiografia brasileira. O evento,
intitulado Segunda Escravidão: desafios e potencialidades, ocorreu em abril
de 2017 e contou o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, que também patrocinou a publicação
desta obra. O seminário foi organizado a partir de quatro eixos temáticos
propositalmente escolhidos por serem pontos nevrálgicos do embate de
opiniões interno e externo aos pesquisadores do grupo. Estes eixos ago-
ra nomeiam as quatro partes deste livro: segunda escravidão e capitalis-
mo histórico em perspectiva atlântica; segunda escravidão e diversidade
econômica e regional; segunda escravidão e período colonial tardio; e
segunda escravidão, Micro-História e agência.
A primeira traz o debate entre Ricardo Salles e Leonardo Mar-
ques, com comentários de Rafael Marquese, acerca das relações entre se-
gunda escravidão e capitalismo. Ricardo Salles, utilizando-se do conceito
gramsciano de bloco histórico, salienta a importância dos processos de
construção do Estado nacional e da formação de classes dominantes es-
cravistas nacionais para entendermos a segunda escravidão como um
sistema próprio, ainda que integrado ao desenvolvimento do mercado
internacional capitalista, que se tornou contraditório e antagônico ao de-
senvolvimento interno de relações sociais capitalistas. Leonardo Marques
adota uma perspectiva global, na qual a segunda escravidão constituiria
uma das múltiplas formas de trabalho que caracterizariam diferentes es-
paços de produção integrados no desenvolvimento do capitalismo global
do século XIX, que transcenderia, assim, as fronteiras políticas nacionais.

21
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Em seus comentários, Rafael Marquese propõe o investimento em uma


teoria dos tempos históricos que permita aos historiadores da escravidão
transitarem pelos ritmos próprios dos processos históricos em questão e
que traga ao proscênio as relações entre teoria e historiografia.
Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, em texto conjunto, e Wal-
ter Luiz Pereira são os autores dos dois capítulos da segunda parte que
receberam comentários de Renato Marcondes e Gabriel Aladrén. Dedi-
cando-se ao tema da diversidade econômica e regional, os trabalhos cri-
ticaram a noção de arcaísmo e os limites que a mesma impõe à análise
da sociedade e da economia luso-americanas nos séculos XVIII e XIX. No
artigo Raízes escravas da indústria no Brasil, Rita Almico e Luiz Fernando
Saraiva utilizam-se do conceito de segunda escravidão para proporem
uma compreensão da economia brasileira no Oitocentos que destaque
sua complementaridade e integração com o mercado mundial pela via
da escravidão. Desta forma, além da região Centro-Sul, o Sul e o Nordes-
te do Brasil seriam economias regionais com culturas baseadas na mão
de obra escrava, com desdobramentos para a urbanização, industrializa-
ção e modernização de serviços etc. O texto de Walter Luiz Pereira traz
um estudo detalhado da região de Campos dos Goytacazes, aponta sua
grande prosperidade econômica e tecnológica na segunda metade do
século XIX e relaciona esse desenvolvimento com a segunda escravidão
e a expansão do capitalismo no mundo. Os comentários de Renato Leite
Marcondes e Gabriel Aladrén discutem a própria percepção de região dos
autores e nos levam a pensar sobre como o processo de modernização da
economia brasileira deitou raízes profundas na escravidão.
A terceira parte do livro discute a Segunda Escravidão e o período
colonial tardio. Em seu capítulo, Carlos Gabriel Guimarães busca pensar a
economia setecentista e a inserção de negociantes ingleses no Império
Colonial Português, através do caso dos negociantes ingleses Joseph e
Ralph (ou Raphael) Gulston, que atuaram na Cidade do Rio de Janeiro, no
período de 1710 a 1720, mas mantiveram uma poderosa rede mercantil
com negócios em Nova York, Lisboa, Ilha da Madeira, Costa da Mina e An-
gola. Já Carlos Leonardo Kelmer Mathias discute o conceito de segunda
escravidão e sua eficiência para analisar as relações sociais de produção
escravista à luz do sistema mercantilista. Essas colocações são comenta-
das por Rodrigo Goyena Soares, a partir de uma reapreciação do conceito
de segunda escravidão à luz da Crítica da Razão Dialética, de Sartre.
A quarta e última parte contém três artigos sobre Segunda Es-
cravidão, Micro-História e Agência que refletem, cada um a sua maneira,
acerca dos desafios e ganhos interpretativos do conceito de segunda es-

22
Introdução

cravidão para as pesquisas que enfocam, mais diretamente, as vidas dos


sujeitos históricos, sejam senhores, escravos, homens e mulheres livres
e pobres etc. Enquanto Mariana Muaze e Waldomiro Lourenço da Silva
Júnior apresentam discussões teórico-metodológicas sobre a relação en-
tre segunda escravidão e a Micro-História, e o lugar da estrutura e da
experiência na análise histórica; Thiago Campos Pessoa toma o caso dos
irmãos Breves, importantes traficantes e senhores de escravos e terras
no Vale do Paraíba Fluminense para pensar a segunda escravidão no Bra-
sil Império. O debate é pontuado por Mônica Ribeiro de Oliveira no texto
Para uma nova dimensão dos estudos sobre a história da escravidão: diálogos
entre a segunda escravidão e a Micro-História.
Certamente, o que o leitor irá encontrar a seguir não são confor-
midades e unanimidades. Pelo contrário, desde que o seminário e o livro
foram rascunhados, seus organizadores almejaram provocar o embate, a
polêmica e o dissenso em torno dos desafios e potencialidades do con-
ceito de segunda escravidão e suas relações com o capitalismo. O que se
almeja é a retomada, em novas bases, como a própria noção de segunda
escravidão indica, das discussões acaloradas que já foram de grande im-
portância para os estudos da escravidão e que, nos últimos anos, ficaram
encobertas por um certo consenso superficial sobre a importância da dis-
cussão de questões teóricas e de natureza mais ampla para a construção
do conhecimento histórico. Nesta obra, mais do que um caminho único a
ser seguido, apostamos na potência do debate historiográfico e dos dife-
rentes pontos de vista para os estudos da escravidão. Contudo, pelo me-
nos entre os autores vinculados ao grupo de estudos interinstitucional O
Império do Brasil e a Segunda Escravidão, vigora a ideia de que capitalismo
e escravidão no longo século XIX não foram, desde sempre, sistemas
incompatíveis, sendo aquele mais moderno e este mais atrasado. Ao con-
trário, as relações entre a segunda escravidão e o capitalismo integraram
uma totalidade complexa e contraditória que não pode deixar de ser
levada em consideração no entendimento das relações entre senhores,
escravos e demais grupos sociais. Apesar das divergências, e mesmo que
as metodologias de análise variem, acredita-se que escravidão não mais
pode ser vista como uma entidade abstrata, sempre igual a si mesma.
Portanto, este livro é menos uma bússola dotada de um norte
que sempre aponta caminhos certeiros e únicos para se trabalhar com os
conceitos de segunda escravidão, capitalismo e sociedades escravistas;
e mais um mapa composto de vários caminhos e trajetos passíveis de
serem percorridos, onde o leitor pode se perder e se achar, à luz de um
debate historiográfico qualificado e atualizado sobre o tema.

23
PARTE I
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO
HISTÓRICO EM PERSPECTIVA ATLÂNTICA
A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O DEBATE
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAPITALISMO E
ESCRAVIDÃO. ENSAIO DE HISTORIOGRAFIA

Ricardo H. Salles

Para discutir a questão das relações entre capitalismo e escravi-


dão no século XIX, esse ensaio vai tratar, principalmente, dos Estados
Unidos. Isto porque foi lá que o problema dessas relações se apresentou
de forma mais aguda e porque, em certa medida, é lá que essa questão,
depois de ficar adormecida por pelo menos duas décadas, volta, hoje, às
discussões historiográficas. O tema, no entanto, não é apenas de interes-
se norte-americano, mas também brasileiro, uma vez que o Brasil foi a
outra grande nação escravista do século XIX.
A escravidão no Sul dos Estados Unidos e no Brasil no século
XIX foi objeto de comparação em texto de Richard Graham, publicado
em 1990. Segundo o historiador norte-americano, o fato de que os Esta-
dos Unidos, na mesma época, também estivessem se transformando em
uma grande economia industrial levou a que a historiografia do país no
período fizesse comparações entre o Norte, onde se desenvolvia esse
capitalismo, e o Sul escravista, onde isso não ocorreu. Diversos pesqui-
sadores, principalmente Eugene Genovese e Elizabeth Fox-Genovese, tal-
vez os mais afamados historiadores da escravidão estadunidense naquele
período, argumentavam que, isoladamente, tratava-se da principal causa
dessa diferença. O fato de que o Brasil e outras regiões escravistas tam-
bém não tivessem se industrializado parecia corroborar essa avaliação.
Entretanto, apesar de concordar em linhas gerais com os Genovese, na
comparação entre o grau de desenvolvimento do Velho Sul e do Brasil,
Graham considerava que outros fatores deveriam ser levados em conta.
O Sul era bastante adiantado e, até mesmo, industrializado, se compara-
do com outras sociedades escravistas, para que a escravidão fosse consi-
derada a única linha divisória entre desenvolvimento e atraso econômi-
cos. Certamente, o Sul não era tão industrializado quanto o Norte, mas
poucas áreas do mundo, naquela época, o eram. Assim sendo, outros
fatores, de ordem cultural, poderiam melhor avaliar e descrever o dina-

27
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

mismo, ou a falta dele, das economias escravistas. Comparar o Sul com


o Brasil poderia aumentar significativamente nosso entendimento sobre
a instituição da escravidão e sua relação com o desempenho econômico
(Graham, 1990, p. 97).
Quando Graham publicou a primeira versão reduzida de seu tex-
to, em 1981, o debate sobre as relações entre escravidão e capitalismo
nos Estados Unidos, que vinha desde, pelo menos, os anos de 1960, es-
tava em seu auge.1 Eugene Genovese, para ficar no autor mais consa-
grado, em livro de 1967, assinalava o atraso econômico das economias
escravistas, se comparadas com as economias capitalistas. Esse atraso
econômico manifestava-se em termos de menor taxa de crescimento, de
diversificação de atividades, menor volume da produção, de avanço tec-
nológico e de expansão do consumo e incremento do padrão de vida.
Simplificando em muito a discussão, dois fatores distinguiriam o capi-
talismo da escravidão. Por um lado, o trabalho livre e assalariado seria
superior ao trabalho escravo em termos de produtividade. Por outro,
também a mentalidade mais racional, mercadológica,2 objetivando o lu-
cro dos empresários capitalistas, seria mais eficaz do que a mentalidade
patriarcal dos senhores de escravos, focada principalmente na busca de
status e poder. Tal mentalidade, advinda das relações sociais escravistas,
os impediria de optar racionalmente pela exploração dos trabalhadores
livres, que lhes seria, em tese, mais vantajosa (Genovese, 1976 [1967]).
Essas ideias foram atacadas por estudos cliométricos, que busca-
ram demonstrar que o trabalho escravo era tão ou mais produtivo do que
o trabalho assalariado livre da época. Portanto, a opção econômica pela
escravidão era altamente lucrativa e, assim, racional e capitalista. Nessa
interpretação, até mesmo a superioridade dos padrões de vida dos traba-
lhadores livres em relação aos escravos era colocada em questão (Fogel;
Engerman, 1995 [1974]). Outros historiadores, sem corroborar essa últi-
ma conclusão, viram os senhores sulistas como verdadeiros capitalistas,
que exploravam os trabalhadores escravos assentando essa exploração
em uma dominação racial (Oakes, 1998 [1982]). Em livro posterior, escri-
to a quatro mãos, Genovese e sua esposa, Elizabeth Fox-Genovese, reco-
nheceram que os senhores de escravos sulistas, ao lado de sua mentali-

1 Essa primeira versão apareceu na Comparative Studies in Society and History, v. 23, n. 4, p.
620-655, out. 1981. Uma versão em português, sob o título Escravidão e desenvolvimento
econômico: Brasil e Estados Unidos no século XIX, apareceu em 1983, na Estudos Econômicos,
São Paulo, v. 13, n. 1, p. 223-257.
2 Empregarei a palavra mercadológica no sentido de atividade voltada para o mercado com
fim de obtenção de lucro, sem o sentido usual relativo ao marketing, enquanto conjunto de
práticas e saberes específicos relativos ao mercado.

28
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

dade patriarcal e paternalista, tinham uma forte propensão para o lucro


e para o mercado. No entanto, mantiveram a caracterização do Sul como
uma sociedade e uma economia escravistas e pré-capitalistas, e continua-
ram a considerar as relações de trabalho e de propriedade como critérios
fundamentais para definir a natureza das sociedades. Nesse sentido, a
característica distintiva do capitalismo seria a transformação da força de
trabalho em uma mercadoria que pode ser comercializada no mercado,
o que só passou a acontecer plenamente com o advento da indústria
moderna. No Sul, ao contrário, prevaleciam as relações de trabalho e de
propriedade escravistas (Fox-Genovese; Genovese, 1983).
Graham concordava com essa definição, mas advertia que isso
não deveria se transformar em uma tautologia, que visse nas relações
de trabalho assalariadas a própria causa do surgimento do capitalismo
(Graham, 1990, p. 98). Outros fatores, de ordem cultural, teriam de ser
levados em consideração para explicar o surgimento desse sistema e
responderiam pelas distintas formas de desenvolvimento entre as so-
ciedades, inclusive entre aquelas com relações de trabalho da mesma
natureza. A comparação entre o Sul dos Estados Unidos e o Império do
Brasil, ao salientar a profunda defasagem, em termos de desenvolvimen-
to econômico, entre as duas sociedades igualmente escravistas, atestava
este fato. O exercício de comparação permitia ainda que os historiadores
pudessem “se livrar da falácia simplista de concluir que o que aconteceu
tinha que acontecer” (Graham, 1990, p. 97).

Capitalismo e escravidão no debate teórico-histórico


O perigo da tautologia apontado por Graham está sempre pre-
sente no trabalho do historiador. No caso das relações entre capitalismo
e escravidão, não apenas em relação ao primeiro termo, mas também em
relação ao segundo, ainda que, na maioria das vezes, de maneira desper-
cebida. Analisar as relações entre capitalismo e escravidão remete sem-
pre, implícita ou explicitamente, a uma discussão sobre o que venha a ser
capitalismo, mas não do que estamos falando quando utilizamos o termo
escravidão. Os sentidos dicionarizados dessas palavras deixam isso claro.
Para capitalismo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz duas acep-
ções principais. Em Economia, trata-se de “sistema econômico baseado
na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e
indústria, com o principal objetivo de obter lucro”. Em Sociologia, é um
“sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou

29
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

indivíduos que contratam mão de obra em troca de salário”.3 Ambos os


aspectos dicionarizados, o econômico e o sociológico, são conceituais.
Dizem respeito a um sistema, econômico ou social, e estão contidos e
se combinam em quase todas as definições teóricas e interpretações his-
tóricas mais aprofundadas do que foi e do que tem sido o capitalismo.
Sem aprofundar uma discussão conceitual mais elaborada, pode-se dizer
que há duas grandes tendências teórico-historiográficas a esse respeito.
Uma primeira tendência assinala, como aspecto fundamental do capita-
lismo, a propriedade privada e a produção voltada para o mercado, para
o lucro e para a acumulação pela acumulação. Ainda que na definição
dicionarizada não haja menção a qualquer forma de trabalho, no campo
teórico e historiográfico essa tendência assume que o assalariamento
seria a principal, mas não exclusiva, forma de trabalho do capitalismo,
podendo conviver em determinadas fases e situações, por exemplo, na
Época Moderna, e/ou em determinadas zonas, nas periferias, com outras
formas de trabalho, como o escravo, o servil, o forçado, o familiar.
A segunda tendência, na linha daquela esposada por Graham, se-
guindo os Genovese, e aqui defendida, vê na generalização das relações
de trabalho assalariado o aspecto central e distintivo do capitalismo.
Dessas relações, decorre um regime específico de propriedade privada
em que os trabalhadores são desprovidos de seus meios de trabalho e
subsistência, mas gozam de direitos sobre si mesmos e da propriedade
sobre sua força de trabalho, sem o que esta não poderia ser vendida e
comprada no mercado.
Esse sistema não nasceu pronto. Foi fruto de um longo processo
de transformações históricas, desencadeadas em determinadas regiões
da Europa Ocidental, a partir dos séculos XV e XVI, estendendo sua domi-
nação em escala planetária, principalmente pelo mundo atlântico. Essas
transformações envolveram, por um lado, a expropriação dos trabalha-
dores de seus meios de subsistência, isto é, dos seus meios de produção,
obrigando-os a vender sua força de trabalho no mercado. Por outro, im-
plicaram a acumulação de capital nas mãos de uma classe, a burguesia,
com disposição e meios para comprar essa força de trabalho em troca de
salários.
Mais especificamente, tudo isso se deu com a desapropriação
dos camponeses de suas terras e/ou das terras comunais; a revitalização
do comércio e das finanças; a penetração do capital na organização e, a
partir do século XVIII, principalmente, no controle da produção artesanal

3 Dicionário Houaiss da língua portuguesa online. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/


pub/apps/www/v3-3/html/index.php#3. Acesso em 25 mai. 2018.

30
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

com as manufaturas domésticas e coletivas. Em escala atlântica, envol-


vendo a América e a África, e secundariamente outras regiões do mundo,
acarretou a exploração colonial, a escravização de africanos, o trabalho
forçado de trabalhadores americanos, o extermínio de populações intei-
ras, pirataria e guerras.
A partir de fins do século XVIII, até a primeira metade do XIX,
em determinadas áreas da Europa Ocidental, notadamente na Inglaterra,
e mesmo no Norte dos Estados Unidos, o capital penetrou no interior
do próprio processo de trabalho com o advento da indústria moderna
e a subordinação completa do trabalho ao capital. Na fábrica moderna,
o trabalhador individual, já despossuído de seus meios de subsistência,
deixou de contar com sua destreza individual, tornando-se parte de um
corpo mais amplo, o trabalhador coletivo, inteiramente subsumido ao
capital-máquina. Foi nesse momento que o capital no processo produti-
vo, mas também se estendendo por todas as esferas da vida econômica,
passou a se acumular em ritmo e escala nunca antes experimentados, em
um processo de ação ampliada, de forma aparentemente espontânea,
através do livre jogo do mercado de compra e venda de mercadorias,
inclusive de força de trabalho. É possível que isso ocorra porque toda
forma econômica depende de aparatos político-jurídicos, assim como de
práticas, crenças e concepções culturais que garantam suas condições
de reprodução. O fato de que, no capitalismo, esses nexos não sejam
imediatamente percebidos não os torna menos reais, nem menos efe-
tivos.4 Somente nesse momento, em que se consolida como tendência
dominante na primeira metade do século XIX, é que se pode falar de ca-
pitalismo enquanto um sistema socioeconômico propriamente dito. Não
por acaso, foi nessa altura que o neologismo foi cunhado e passou a ser
empregado nas línguas das principais regiões em que essa nova forma de
produção se desenvolvia: inglês, francês e alemão.5
A contraposição entre essas duas tendências na discussão sobre
a natureza do capitalismo reflete e, ao mesmo tempo, implica diferentes
interpretações do processo histórico e de eventos específicos. Não se
trata de uma sequência lógica imediata, do tipo se esta concepção teórica,

4 Sobre processo histórico de formação do capitalismo e a subordinação completa do trabalho


ao capital, O Capital e os Grundrisse, assim como seus muitos comentaristas, permanecem
como primeira referência (Marx, 1971; 2011).Ver também Harvey (2013). Sobre o debate a
respeito do capitalismo, ver Hilton; Dobb; Sweezy et al. (1977), Aston; Philpin (1987) e Wood
(2017).
5 Raymond Williams rastreou também as palavras capital e capitalista na língua inglesa (Wil-
liams, 2007 [1983], p. 70-72). Fernand Braudel o fez com ênfase no francês (Braudel, 1996
[1979], p. 201-216).

31
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

logo aquela análise historiográfica, mas de uma correspondência não linear,


entre teoria e interpretação historiográfica. Entre o constante ir e vir da
teoria à historiografia, há espaço para contradições, hiatos, omissões,
correções. A correspondência entre historiografia e teoria é sempre im-
perfeita e inconclusa. Refazer e aclarar os nexos dessa correspondência
deve servir para enriquecer o conhecimento historiográfico e também o
teórico. Se levada ao extremo teórico-abstrato, a discussão torna-se fala-
ciosa, nominativa, formalista, irredutível e bizantina. Cai-se, facilmente,
na tautologia assinalada acima, que Graham apontou em suas considera-
ções. Varrer o debate para debaixo do tapete em nome da superioridade
da análise empírica e daquilo que os documentos dizem, por sua vez, não
resolve o problema. É um retorno, muitas vezes disfarçado, ou mal dis-
farçado, em técnicas e metodologias de pesquisa sofisticadas, à falácia da
História metódica, dita positivista, do século XIX. É uma forma de natura-
lizar conceitos e noções, implícitas ou ditas de passagem, que informam
e informaram a imaginação dos historiadores, dos agentes históricos e
de seus tempos.
Isso pode ser constatado quando verificamos a falta de penetra-
ção de uma discussão teórica e historiográfica na definição dicionarizada
do vocábulo escravidão. Segundo o Houaiss, escravidão é a “condição de
escravo”, sendo que escravo é “... aquele que, privado da liberdade, está
submetido à vontade absoluta de um senhor, a quem pertence como
propriedade”. O antônimo de escravidão é liberdade. Há ainda uma se-
gunda definição, segundo a qual a escravidão é um “sistema socioeco-
nômico baseado na escravização das pessoas; escravismo, escravagismo,
escravatura”.6
Liberdade, propriedade e escravidão, no entanto, nem sempre
tiveram o mesmo conteúdo no processo histórico. Deixando de lado a
Antiguidade, pode-se dizer, simplificadamente, que essa constelação se-
mântica foi uma, no período colonial, marcado pelo Antigo Regime e pela
sujeição à Metrópole; e outra, no século XIX, marcado pela ascensão dos
Estados nacionais, do liberalismo, do abolicionismo e pela inserção das
economias escravistas na economia-mundo dominantemente capitalista.
No primeiro caso, a liberdade, além de antônimo da escravidão, era tam-
bém, em larga medida e entre outras coisas, a liberdade de escravizar e
ter escravos. Não qualquer um, nem em qualquer lugar, mas africanos ne-

6 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa online, ibidem. Não deixa de ser significativo, para
os propósitos deste texto, que o neologismo escravismo não exista na língua inglesa. Signi-
ficativo também é o fato de que, ainda segundo o Houaiss, sua aparição dicionarizada em
português, de 1885, anteceda a de capitalismo, que é de 1899.

32
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

gros e seus descendentes, na África e na América. No século XIX, quando


a liberdade ganhou o sentido de antônimo da escravidão, inclusive com
sua extensão para o campo moral e político, essa constelação semântica
foi se desfazendo com a deslegitimação, primeiro, do direito de escra-
vizar, e, segundo, da própria propriedade escrava. Essas mudanças se-
mântico-conceituais não aconteceram em um vazio, mas acompanharam
transformações e incidiram sobre as economias e sociedades escravistas.
Numa primeira leitura, tais mudanças e transformações pareceram ter
um sentido linear, da escravidão ao capitalismo, e da escravidão à liber-
dade, acarretando ou acompanhando seu desaparecimento. Entretanto,
no Sul dos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba, a escravidão do século
XIX esteve longe de ser apenas uma herança evanescente do passado
colonial. Nessas regiões, conheceu um dinamismo e uma dimensão nun-
ca antes experimentada no período colonial. Mais do que isso, vemos
a escravidão como a principal base material para a construção desses
Estados nacionais liberais e do Segundo Império Espanhol.

A segunda escravidão
Percebendo essas diferenças significativas entre a escravidão
colonial e a escravidão do século XIX, principalmente no plano econô-
mico, e antevendo suas consequências mais amplas, o historiador nor-
te-americano Dale Tomich formulou, em 1988, o conceito de “segunda
escravidão”. O conceito, revisado em capítulo de livro de 2004 (Tomich,
2011 [2004]), tem ganhado crescente aceitação entre os historiadores
da escravidão afro-americana do século XIX, tanto nos Estados Unidos
quanto no Brasil. Numa leitura pontual, indica quatro especificidades his-
tórico-estruturais da escravidão afro-americana que seriam próprias do
século XIX no Sul dos Estados Unidos, no Brasil, particularmente no Vale
do Paraíba e suas zonas adjacentes, e em Cuba.
Em primeiro lugar, enquanto declinava ou entrava em processo
de abolição em outras regiões das Américas, a escravidão afro-americana
renovou-se e se expandiu, em escala inédita nessas áreas. Em segundo
lugar, isso ocorreu em íntima conexão com o desenvolvimento do capita-
lismo industrial e a consolidação da hegemonia internacional britânica,
fatores que, direta ou indiretamente, contribuíam para o declínio e a
abolição da escravidão no restante das Américas. Em terceiro lugar, a se-
gunda escravidão fez parte e nutriu-se do mesmo processo de expansão
do mercado internacional correlato ao desenvolvimento do capitalismo

33
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

industrial. Finalmente, as zonas produtivas da segunda escravidão ca-


racterizaram-se pelo emprego de modernas tecnologias, tanto no que
diz respeito ao aspecto técnico e à organização do processo de traba-
lho e produção, quanto no que concerne aos meios de transporte e aos
mecanismos de comercialização e financiamento, em escala nacional e
internacional.
Ao salientar esses elementos, Tomich explicitamente diferencia-
va sua interpretação de três concepções que, até então, haviam tratado
da escravidão moderna em suas relações com o desenvolvimento do ca-
pitalismo: a concepção da New Economic History norte-americana, exem-
plificada no livro de William Fogel e Stanley Engerman, Time on the cross
(Fogel; Engerman,1974); a marxista, personificada por Eugene Genovese,
em The political economy of slavery (Genovese, 1976 [1967]); e a do “mo-
derno sistema-mundo”, de Immanuel Wallerstein, então consubstanciada
nos três volumes de The modern world-system (Wallerstein, 2011 [1974],
2011 [1979] e 2011 [1980]).7 Segundo Tomich, a New Economic History ge-
neralizava e utilizava indiscriminadamente categorias econômicas aplicá-
veis ao capitalismo como fatores universais, mas válidos e encontráveis
também na economia escravista. Assim, deixava de lado as particularida-
des históricas das relações sociais escravistas.
Genovese, ao contrário, veria escravidão e capitalismo como sis-
temas incompatíveis, este mais moderno, fundado na generalização das
relações sociais baseadas na exploração do trabalho livre e assalariado, e
aquele como pré-capitalista e atrasado. A escravidão moderna havia sido
uma fase necessária no processo histórico de acumulação primitiva de
capitais, condição necessária para o surgimento do capitalismo, equipa-
rado à universalização das relações de trabalho assalariado como forma
de produzir mais valor. Mas, a partir de fins do século XVIII, pela natureza
mesma de suas relações de trabalho escravistas, com suas implicações
sociais, políticas e culturais, havia se tornado um obstáculo à formação
e à expansão do capitalismo, enquanto modo de produção pleno. A es-
cravidão no Sul dos Estados Unidos, desenvolvendo-se como um sistema
social e econômico integrado, com a generalização, a centralidade e a
reprodução em escala ampliada das relações de propriedade e trabalho
escravistas, havia gestado uma classe dominante peculiar, com sua pró-
pria visão de mundo, na qual o ruralismo e o patriarcalismo desempe-
nhavam papel central. Tudo isso entrava em choque com o capitalismo,
com sua busca do lucro e da acumulação pela acumulação, e seus valores

7 Um quarto volume, sobre o século XIX, principalmente em seus aspectos políticos, apareceu
em 2011 (Wallerstein, 2011).

34
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

do individualismo, do imperativo e da superioridade do trabalho livre e


assalariado.
Finalmente, Wallerstein veria o “moderno sistema-mundo” como
uma só estrutura histórica empírica internacional, capitalista, vigente
desde o século XVI. Ainda que passando por transformações internas, a
característica central dessa estrutura era sua divisão em zonas centrais,
semiperiféricas e periféricas. A cada uma dessas zonas, corresponderia
uma forma específica de trabalho: livres, no centro, formas de parceria,
na semiperiferia, e coercitivas, incluindo a escravidão, na periferia. O sis-
tema como um todo, através da integração dessas diferentes zonas e
suas formas de trabalho, estaria voltado para a produção dirigida ao mer-
cado mundial e para a realização do lucro. Classes e nações hegemônicas
seriam aquelas que dominariam os circuitos desse mercado mundial, fi-
cando, assim, com a maior parte do sobretrabalho produzido e realizado
no sistema. Nesse sentido, a escravidão não apenas seria compatível com
o capitalismo, mas estaria mesmo em sua essência enquanto um modo
de produção periférico.
Por razões que não cabe aqui analisar, o conceito de segunda
escravidão hibernou entre sua primeira formulação, de 1988, e sua cres-
cente utilização por estudiosos da escravidão afro-americana do século
XIX a partir de fins da primeira década do século XXI.8 Nos Estados Uni-
dos, Christopher Schmidt-Nowara, pioneira e isoladamente, o utilizou,
em 1999, em concomitância com a ideia de “segundo império”, para dar
conta da vitalidade e das novas condições da escravidão cubana e por-
to-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX (Schmidt-
-Nowara, 1999).
No Brasil, a penetração do conceito de segunda escravidão no
meio acadêmico experimentou um percurso algo distinto. Em 2004, Ra-
fael Marquese o empregou, em Feitores do corpo, missionários da mente,
para dar conta das especificidades da administração dos escravos no Bra-
sil, nos Estados Unidos e em Cuba no século XIX (Marquese, 2004). Em E
o Vale era o escravo, de 2008, analisei a escravidão de Vassouras e, por ex-
tensão, do Vale do Paraíba, como segunda escravidão (Salles, 2008). Me-
nos do que acentuar o papel da escravidão no desenvolvimento de uma
economia capitalista nessas regiões, até porque tal desenvolvimento não
ocorrera em Cuba e no Brasil, tratava-se de salientar o caráter moderno,
não arcaico, dessa escravidão. Em texto de cunho teórico-historiográfico
de 2013, Marquese retomou e aprofundou o tema, ainda que sem empre-

8 Para uma discussão sobre o assunto, ver Marquese; Salles (2016).

35
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

gar o conceito de segunda escravidão, e tratando da escravidão também


no século XVIII e não apenas no XIX. Considerou que o abandono do
conceito de capitalismo por correntes historiográficas predominantes na
análise da escravidão brasileira do XIX – grosso modo a historiografia do
sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na
agência escrava – conduziu a um descaso com os processos históricos
de longa duração e com os quadros globais do capitalismo histórico, nos
quais se inscreveu o sistema escravista brasileiro. Perdia-se assim a rique-
za do acúmulo intelectual produzido anteriormente, na qual a discussão
da relação entre escravidão e desenvolvimento capitalista dependente,
periférico e excludente no país representava aspecto central (Marquese,
2013a).
Três grandes vertentes interpretativas nessa tradição assinalaram
lugares distintos para a escravidão na história brasileira. A primeira a viu
como momento na formação de uma sociedade e uma economia colo-
niais, depois semicoloniais e semifeudais. A segunda analisou a escravi-
dão como um dos mecanismos de integração dependente da economia
colonial no sistema capitalista dominado pelo mercantil internacional.
Finalmente, a terceira e mais recente interpretação a considerou como
elemento definidor de um modo de produção próprio, o escravista co-
lonial. Em todos esses casos, a escravidão foi vista como um óbice ao
desenvolvimento de um capitalismo robusto e autônomo, nos moldes
do capitalismo estadunidense.9 A comparação com os Estados Unidos,
explícita ou implicitamente, fazia sentido na medida em que ambas as
sociedades tinham um passado colonial, abrangiam territórios de dimen-
sões continentais e, principalmente, traziam a marca da escravidão afro-
-americana em sua formação.
Tal debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão teve
sua contraparte norte-americana. Neste país, também, escravidão foi
considerada um obstáculo ao desenvolvimento capitalista, que teria sido
uma decorrência da economia livre e não escravista do Norte. Na visão
do historiador marxista Eugene Genovese, que teve grande influência
na historiografia brasileira e a quem retornarei adiante, a economia e
a sociedade do Velho Sul haviam constituído uma civilização em sua in-
tegralidade, pré-capitalista, paternalista e patriarcal, ancorada na escra-
vidão. Como tal, havia sido um entrave, que necessariamente teve de
ser superado para o desenvolvimento do capitalismo (Genovese, 1976
[1967]). Na década de 1970, no entanto, houve quem salientasse o ca-

9 Como representantes dessas vertentes, ver, respectivamente, Sodré (1964 [1962]), Prado Jr.
(1973 [1942]) e Gorender (1978).

36
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

ráter capitalista, quer dizer, racional, voltado para o mercado, lucrativo,


altamente rentável e tecnológico, da escravidão sulista (Fogel; Engerman,
1995 [1974]). Outros contestaram ainda que a escravidão sulista estives-
se ancorada em uma sociedade de natureza pré-capitalista, patriarcal e
paternalista, como queria Genovese (Oakes, 1998 [1982]).

O capitalismo da escravidão
O debate sobre capitalismo e escravidão atingiu seu auge exa-
tamente nos anos de 1980, ao final dos quais, lembremos, Dale Tomich
forjou a noção de segunda escravidão.10 Em seguida, a discussão hiber-
nou, sufocada por sucessivas viradas que dominaram as historiografias
norte-americana e atlântica da escravidão moderna nas últimas décadas:
virada cultural, micro-histórica, narrativa e da agência, especialmente da
agência escrava. Hoje, ao que parece, numa nova virada, a da História
Global, a questão é retomada, ainda que se querendo nova em folha.
Essa nova interpretação historiográfica é expressa no volume coletivo
organizado por Sven Beckert e Seth Rockman, intitulado Capitalismo da
escravidão, e sintetizada na introdução por eles redigida, que sumarizo e
comento a seguir (Beckert; Rockman 2016, p. 1-27).
De acordo com essa perspectiva, a economia escravista do Sul
teria desempenhado um papel crucial no deslanche do desenvolvimento
capitalista estadunidense. Reconhecer esse fato desafiaria um dos mitos
mais persistentes na história americana, que vê a escravidão como uma
instituição meramente regional, certamente indispensável para a com-
preensão do Sul, mas de importância insignificante para a nação como
um todo (Beckert; Rockman, 2016, p. 6). A plantation e a fábrica compu-
nham uma mesma e coerente economia nacional, avaliação que, segundo
esses autores, era menos controversa, há 175 anos, do que é hoje. O
capitalismo estadunidense não teria decolado superando a escravidão,
um obstáculo a seu desenvolvimento, como na versão até então predo-
minante, mas teve, na escravidão, a raiz de sua pujança.
Esta centralidade da escravidão na economia nacional pode ser
demonstrada por alguns fatos: até 1860, o algodão foi o principal produto
de exportação do país; o capital representado pelo estoque de escravos
era maior do que aquele representado por todas as ferrovias e fábricas nor-
te-americanas; capitais estrangeiros garantiam a expansão territorial das
plantations pela Luisiana e pelo Mississipi; a maior concentração de energia

10 Para um sumário do debate, ver Smith (1998).

37
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

a vapor do país encontrava-se ao longo do Rio Mississipi e não do Merri-


mack (Beckert; Rockman, 2016, p. 1-2). A massa de capitais concentrados
em mãos de plantadores sulistas era gigantesca. Eram comerciantes e ban-
queiros nortistas, em grande parte, que comercializavam e financiavam a
produção sulista, auferindo com isso grandes lucros. Na administração de
seus negócios, os plantadores escravistas visavam o lucro e a acumulação.
Sua mentalidade era similar à de seus congêneres capitalistas do Norte. As
plantations e a economia do Sul eram tecnologicamente avançadas, empre-
gando máquinas e métodos modernos de gerenciamento do trabalho e de
contabilidade. Toda a região contava com uma sofisticada infraestrutura
de transportes. Numa palavra, o Sul era tão moderno quanto o Norte. As
pretensões de patriarcalismo e paternalismo dos plantadores caminhavam
junto com as práticas de busca da maximização dos lucros e com a sacra-
mentalização da propriedade privada, “tornando cada vez mais infrutíferas
as rotulações dos senhores de escravos como pre, proto ou quasi-capitalis-
tas” (Beckert; Rockman, 2016, p. 14).
Tudo isso foi obliterado pela percepção de que a escravidão era
uma forma ineficiente de organização do trabalho e um obstáculo para
o desenvolvimento econômico. Tal percepção remontava ao século XVIII
e se tornou senso comum quando da vitória do Norte industrializado
sobre o Sul escravista, na Guerra da Secessão. Senhores de escravos
como John Calhoun declararam-se explicitamente anticapitalistas. Tudo
isso impregnou a visão dos historiadores, que excluíram o Sul da assim
chamada “transição para o capitalismo” (aspas no original). Para Beckert
e Rockman, essa visão baseou-se em uma hipótese contrafactual de que
as formas de empreendedorismo, inovação e competição no mercado,
características do desenvolvimento do Norte, poderiam ter acontecido
sem a escravidão. Entretanto, não aconteceram. Tampouco, seria válida
a argumentação de que outras sociedades capitalistas desenvolveram-se
sem a escravidão e que outras sociedades escravistas possuíam poucas
características capitalistas (2016, p. 3). Em contraposição, tópicos polí-
ticos atuais, como a questão das reparações, mesmo controversos, susci-
tam ricas investigações sobre o papel da escravidão como base material
das desigualdades econômicas norte-americanas, passadas e atuais. Mo-
vimentos sociais contemporâneos, como a luta global contra o tráfico de
seres humanos, por sua vez, demonstram que as economias capitalistas
modernas não abrigariam qualquer oposição inerente ao trabalho coerci-
tivo (Beckert; Rockman, 2016, p. 7).
Os capítulos de Slavery’s capitalism “não fornecem uma teorização
explícita da relação entre capitalismo e escravidão”, mas sim salientam

38
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

seu papel central e constitutivo em determinado momento da história do


capitalismo (Beckert; Rockman, 2016, p. 10). Uma das características do
campo de estudos do “capitalismo da escravidão” seria exatamente a de
se afastar das formulações marxistas que “separavam escravidão e capi-
talismo em modos de produção antitéticos” (p. 9). Segundo os autores,
não se trata de saber “se a escravidão em si era ou não capitalista (uma
velha questão), mas sim da impossibilidade de se entender o espetacular
padrão de desenvolvimento da nação sem situar a escravidão na primeira
linha e em seu centro” (Beckert; Rockman, 2016, p. 27).

Velhas questões são duras de matar


O antigo debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão,
com frequência, caiu em discussões estéreis e excessivamente abstratas,
nas quais, com facilidade se perdia o nexo entre a teoria e o desenrolar
do processo histórico efetivo. O novo debate, como proposto em Sla-
very’s capitalism, não contém uma gota desse proselitismo. Mas é farto
em julgamentos apressados, como o que decreta, entre parêntesis, que
saber se a escravidão era capitalista ou não é uma “velha questão”, infe-
rindo-se que, por ser velha, seja ultrapassada. E, talvez por conta disso,
deixa de lado importantes problemas de interpretação histórica. Nos li-
mites deste ensaio, ressaltarei dois pontos em que isso fica evidente. O
primeiro é a explicação sobre as razões da Guerra da Secessão e suas
consequências para a história posterior dos Estados Unidos. O segundo,
mais diretamente relacionado à história brasileira, trata da relação entre
escravidão moderna e desenvolvimento econômico capitalista.
No primeiro caso, trata-se de um evento singular – uma guerra
–, cujo desenrolar esteve sujeito a decisões, indecisões e ações de in-
divíduos, grupos e coletividades delimitados. Um evento marcado por
acasos e vicissitudes. Já no segundo, temos um processo histórico geral,
impessoal, com abrangência e desenvolvimento disseminados, em que
as ações de agentes históricos específicos não aparecem ou não ocupam
lugar central. O xis da questão é que a guerra não pode ser explicada sem
o processo e este tomou o curso que tomou, da forma que tomou, em
larga medida, por consequência da guerra. Vejamos.
A Guerra da Secessão foi um conflito de vida ou morte, uma guer-
ra total – a primeira do mundo contemporâneo em que duas sociedades
engajaram-se integralmente no conflito, que só terminou com a rendição
incondicional e a destruição de um dos contendores. Na verdade, foi

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A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

uma guerra de vida e morte para o Sul, que não apenas perdeu seu status
político anterior, no interior da nação, como também teve seu modo de
vida, se não completamente destruído, quebrado e transformado para
sempre. E quando falamos do Sul, falamos principalmente de sua classe
dominante de senhores de escravos e de seu mundo. Hoje há poucas
dúvidas que a Guerra da Secessão foi uma guerra em defesa da escravi-
dão. Como qualquer guerra, a da Secessão poderia não ter acontecido.
Nenhuma força irresistível obrigou a elite política da Carolina do Sul a
tomar a decisão de se separar da União. Tampouco obrigou os demais
estados do Sul mais profundo e, em seguida, os demais estados do Velho
Sul, a seguirem seu exemplo. O Norte, por seu lado, poderia ter aceitado
a secessão, negociado a paz numa composição com a Confederação e,
assim, até mesmo, conseguir o reestabelecimento da União em novas
bases. Nada disso aconteceu. Por quê?11
A questão se torna ainda mais relevante e paradoxal, se aceitarmos
a linha interpretativa proposta em Slavery’s capitalism e em análises simila-
res de que a escravidão desempenhou papel essencial no desenvolvimento
do capitalismo norte-americano. Se é verdade que a escravidão esteve na
ponta, ou ao menos teve uma grande relevância para o desenvolvimento
econômico norte-americano, isso não se aplica quando consideramos o
grande salto da economia, já então capitalista e em rápida transição para
o capitalismo industrial, que a região dos Grandes Lagos, no noroeste do
país, experimentou, a partir da década de 1840 (Egnal, 2009). No final da
década de 1850, aqueles que tinham suas bases políticas no Norte e, prin-
cipalmente, no noroeste capitalista, os republicanos, apostaram que o de-
senvolvimento dessa economia não só prescindia do aporte trazido pela
economia escravista do Sul, como também requeria, de imediato, seu con-
finamento no território por ela já ocupado e, a longo prazo, sua abolição
(Oakes, 2014). A história provou que estavam mais certos do que pensa-
vam. O que aconteceu, tanto em termos da guerra quanto em termos de
suas consequências, não estava nas previsões dos republicanos.

11 Sem ter espaço para desenvolver o ponto, descarto a explicação de que foi a incapacidade
das lideranças políticas, de um lado e de outro, em lidar com suas divergências de forma pa-
cífica, que teria levado ao conflito. Trata-se de uma explicação circular, que toma como causa
aquilo que tem de ser explicado: exatamente por que essas lideranças erraram tanto e levaram
seus erros às últimas consequências. Uma segunda explicação, também descartada, coloca no
centro das divergências as concepções distintas sobre o alcance e o papel do Governo Central
na federação e na vida dos estados. Resta explicar, contudo, o porquê de todos os estados
escravistas terem aderido à Confederação, e todos sem escravidão, à União. Os três estados
na divisa do Sul com o Norte, onde a escravidão era legal, mas residual, e que tinham suas
economias dependentes do Norte, sintomaticamente, aderiram à União. Sobre o assunto, ver
Ashworth (1995, 2007 e 2012) e Egnal (2009).

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A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

Até fins de 1862, a disposição inicial da ala dominante do Par-


tido, agrupada em torno do presidente Lincoln, foi de firme defesa da
União, mas com abertura para aceitar a escravidão como instituição con-
finada aos limites do Sul. Apenas no final daquele ano, as circunstâncias
da guerra levaram-nos a radicalizar e decretar a abolição em todos os
Estados Confederados, e somente em 1865, depois da vitória, a abolição
universal foi decretada. Sem que pudessem prever, essa disposição de
conduzir a guerra até suas últimas consequências e a qualquer custo,
dadas as condições demográficas, sociais e, principalmente, econômicas
do Norte, longe de levá-lo à exaustão, catapultou seu desenvolvimento
capitalista (Egnal, 2009).
Isso aconteceu porque, desde 1840, o ritmo do crescimento eco-
nômico e demográfico do eixo noroeste-norte tornou-se cada vez mais
acelerado do que o do Sul. A economia da região, a partir da década de
1850, passou a se desenvolver de modo independente da escravidão,
crescentemente, em competição por recursos nacionais e em oposição
a ela. Um claro sinal do desenvolvimento desse capitalismo é o fato de
que, em 1850, o número de trabalhadores assalariados nos Estados Uni-
dos já era maior que aquele de escravizados. Uma década mais tarde, ele
ultrapassava também o número de trabalhadores por conta própria, que,
até então, representavam a base da economia do Norte, do Noroeste e da
zona de fronteira no Oeste. Boa parte desses trabalhadores concentrava-
-se nas cidades, nas nascentes manufaturas, e na construção de canais e
ferrovias, na região (Foner, 1995, p. XV-XVI).
É verdade que a economia sulista era tecnologicamente avança-
da, lucrativa e capitalizada, mas, mesmo assim, não podia competir com
o capitalismo nascente do Norte. O capital escravista tinha peculiaridades
que o colocavam em desvantagem se comparado com o capital indus-
trial, capitalista, do Norte.12 A maior parte dos capitais sulistas estava
empatada em escravos, fato que Beckert e Rockman (2016) veem como

12 Segundo Marx, o capital preexistiu ao sistema capitalista nas formas de capital mercantil e
capital usurário. Nessa condição, apropriava-se de parte do mais valor gerado na produção, de
maneira independente das formas dessa produção (modos de produção). O capital industrial,
ainda segundo Marx, seria a única forma de capital produtivo que cria riqueza, e não apenas
se apropria dela. Sobre essa concepção e sua relação com o que denominam capital escravis-
ta-mercantil, ver Pires; Costa (2000). Esses autores corroboram a visão de Marx e cunham o
conceito de capital escravista-mercantil para dar conta das economias escravistas modernas.
Ligado ao modo de produção específico da moderna escravidão, por sua natureza, exportador
de mercadorias, e subordinado ao sistema capitalista internacional, o capital mercantil-escra-
vista seria uma terceira forma de capital não produtivo. A concepção aqui exposta é distinta.
Considero o capital-escravista – sem o complemento mercantil, visto como tautológico, uma
vez que todo capital é mercadoria – como uma segunda forma de capital produtivo, caracte-
rístico, como o capital industrial, da modernidade.

41
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

sinal de potência. Isso, entretanto, era indicativo, na verdade, de uma


debilidade, uma vez que esses capitais não tinham flexibilidade para se
deslocarem para áreas de investimento que, porventura, se mostrassem
mais lucrativas. Nesse sentido, a imensa reserva de valor representada
pelos escravos estava sempre sujeita a experimentar um processo de
desvalorização, caso novos arranjos políticos nacionais apontassem para
uma abolição gradual. Finalmente, deve-se notar que parte significativa
dos capitais que financiavam a economia sulista era proveniente de ban-
queiros e empresários do Norte que, cada vez mais, eram atraídos por
negócios mais rentáveis da economia do noroeste. Em 1860, já podiam
prescindir e prescindiram do Sul em seus investimentos. A própria guer-
ra em si, aliás, foi uma excelente oportunidade nesse sentido (Beckert;
Rockman, 2016).
Os estados escravistas da zona limítrofe com o Norte, com suas
economias mais ligadas ao Norte e onde a escravidão era secundária,
compreenderam e aceitaram essa situação. Por isso, alinharam-se com a
União. Os estados do Sul profundo, que tinham a escravidão no coração
de suas economias e seu modo de vida, responderam a essa perspecti-
va de futuro de forma diametralmente oposta. Separaram-se da União
e constituíram os Estados Confederados da América. Foram seguidos,
mesmo que relutantemente, pelos estados do Velho Sul, que alinhavam
com eles sua economia e seu modo de vida. Apostaram no King Cotton,
isto é, no fato de que seu algodão, como mercadoria fundamental para
indústria que se desenvolvia na Grã-Bretanha e mesmo no Norte dos Es-
tados Unidos, traria o apoio da primeira e forçaria o segundo a um com-
promisso. No âmbito político e ideológico, os plantadores e as elites
intelectuais sulistas sentiam-se confortáveis com o ideário do liberalismo
e com suas noções mais caras, como mercado, propriedade privada, lu-
cro, capital, indivíduo. Tais noções, basilares da modernidade europeia,
normalmente assimiladas ao desenvolvimento do capitalismo, à ascen-
são da burguesia, não podem ser separadas da experiência da escravidão
e da exploração colonial, e, no século XIX, da segunda escravidão. Essa
contemporaneidade da escravidão entre os séculos XVI e XVII e, espe-
cialmente, no século XIX, é uma das razões que torna tão difícil sepa-
rar escravidão e capitalismo na experiência moderna.13 Por tudo isso, as
elites políticas e os plantadores escravistas do Sul acreditaram na força

13 A escravidão moderna, tanto em sua faceta colonial, quanto como segunda escravidão, fugiria
assim da noção de “contemporaneidade do não contemporâneo”, apresentada por Reinhart
Koselleck em sua interpretação da modernidade, sendo, rigorosamente, tão contemporânea
quanto o capitalismo. Cf. (Koselleck, 2006).

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A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

duradoura, no dinamismo e na modernidade da escravidão. Senhores


de escravos do Sul, a escravidão e seu mundo não se encontravam em
retirada, como muitas das velhas classes agrárias europeias no mesmo
período. Pelo contrário, estavam em expansão. Mas, equivocaram-se. O
desenvolvimento demográfico e econômico do norte-noroeste demons-
trou, na prática, sua superioridade.
Uma das condições do desenvolvimento capitalista do Norte foi a
expansão da pequena propriedade, produzindo alimentos e demandando
implementos agrícolas. Outra foi a existência de uma massa de trabalha-
dores livres à procura de empregos em troca de salários. Investimentos em
infraestrutura de transportes e comercialização, assim como nas manufa-
turas e indústrias nascentes, passaram a atrair o interesse de banqueiros e
empresários capitalistas. O tecido social que se urdiu, dessa maneira, pro-
piciou e demandou a abertura de espaços para o homem comum através
de uma política de massas marcada por concessões democráticas.
Nesse ambiente, germinou a ideologia que via no indivíduo li-
vre e sua família, inclusive no homem comum, o núcleo do trabalho,
do espírito empreendedor e da vida social. Ricos senhores de escravos,
com seus ideais aristocráticos e seu poder sobre homens, coisas e sobre
a própria República, eram a antítese dessa visão, que passou a consi-
derar a escravidão como degradação. Como um fator que, justamente,
obstruía o aperfeiçoamento moral dos indivíduos, das famílias e da so-
ciedade como um todo. Seu estancamento e futura abolição passaram
a compor o horizonte de desenvolvimento da nação. Os abolicionistas,
uma minoria, que, no entanto, crescia, queriam-na já e eram, cada vez
mais, ouvidos no Norte. A implosão do segundo sistema partidário, com
o virtual desaparecimento dos whigs, o maior alinhamento dos democra-
tas com os interesses do Sul e o rápido crescimento dos republicanos
no Norte, na segunda metade dos anos 1850, atestavam o novo curso
do desenvolvimento econômico e político que se processava (Ashworth,
2012; Egnal, 2009).
A Confederação apostou também em uma pretensa destreza mi-
litar de seus generais e bravura de suas tropas, o que lhe possibilitaria
impor-se sobre o Norte nos campos de batalha. Tanto o cálculo do po-
derio econômico, quanto a avaliação militar correspondiam a tendências
da realidade e quase prevaleceram. Em 1862, a Grã-Bretanha reconheceu
o estado de beligerância e chegou perto do reconhecimento formal da
Confederação como Estado soberano. Nas eleições de 1864, por sua vez,
desgastado pela guerra contínua, Lincoln enfrentou a oposição daqueles
que queriam obter algum tipo de compromisso com os Confederados.

43
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Contudo, o desgaste do Sul com a guerra era maior, e não apenas


do ponto de vista estritamente econômico. No plano político, a exclusão
dos escravos da esfera pública não significava sua neutralização política em
sentido mais amplo. A ordem escravista, em sua dimensão privada e pública,
fundava-se no medo. Medo imposto sobre os escravos pela violência dire-
ta, ou a ameaça de seu exercício, e medo real ou potencial, provocado por
esses mesmos escravos sobre seus senhores e sobre a sociedade em geral.
Desde a Revolução Haitiana, temia-se que insurreições e revoltas
escravas pudessem se tornar revoluções. Esse era o motivo de fundo
que havia levado a maioria das lideranças sulistas, refletindo o estado de
espírito da maior parte dos senhores, a rejeitar a convivência subalterna
em uma União dominada pelo Norte e com crescente ativismo abolicio-
nista. Mais cedo ou mais tarde, anteparos como a Lei da Mordaça, que
proibia o envio de propaganda abolicionista para o Sul, se mostrariam
insuficientes. Temia-se a fusão da ação abolicionista com a agitação es-
crava (Ashworth, 2012).
Quando a União lançou mão do alistamento de negros livres do
Norte e dos escravos do Sul que fugissem para os territórios sob seu con-
trole, isso se mostrou fatal para a Confederação. O fato não só abriu todo
um novo manancial para o recrutamento, como também teve o efeito de
desorganizar a economia do Sul, que já sofria sob o bloqueio naval im-
posto pela marinha unionista. No momento em que Lincoln achou dois
generais – Ulysses Grant e William Tecumseh Sherman – que souberam
traduzir, em estratégia militar, a superioridade econômica e humana do
Norte e a debilidade que a presença de uma enorme massa de escravos na
retaguarda dos Estados Confederados representava, o efeito sobre o Sul
foi devastador e a vitória foi alcançada.
Nesse ponto, podemos voltar à questão levantada por Beckert e
Rockman de que a tese da oposição entre capitalismo e escravidão estaria
baseada numa hipótese contrafactual e não seria válida. Como espero ter
deixado claro, o desenvolvimento manufatureiro e capitalista, baseado na
expansão do trabalho livre assalariado da economia do noroeste estaduni-
dense se deu, se não de modo inteiramente independente da escravidão,
de forma autônoma. Mais ainda, esse desenvolvimento embasou a forma-
ção de um bloco de forças sociais e políticas, cada vez mais poderosas,
que se opunham à escravidão e cujo objetivo último era sua destruição,
exatamente em nome de acelerar tal desenvolvimento. Finalmente, esse
desenvolvimento não só se acelerou, mas deu um salto de qualidade com
a destruição da escravidão. Foi assim que as coisas aconteceram e essa
constatação nada tem de contrafactual.

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A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

Tudo isso mostra que a velha questão de saber “se a escravidão


em si era ou não capitalista” e a indagação do porquê de outras socieda-
des escravistas não se tornarem capitalistas não são triviais. A possível
resposta de Beckert e Rockman a este último ponto está implícita em sua
postulação de que “outras sociedades escravistas possuíam poucas ca-
racterísticas capitalistas” (Beckert; Rockman, p. 3), e é frágil. Estaríamos
diante de duas escravidões modernas; uma, a norte-americana, capitalis-
ta, e outra, do Brasil e de Cuba, com poucas características capitalistas.
Nada menos verdadeiro. Tanto no Brasil quanto em Cuba, a escravidão
guardou as mesmas características da escravidão norte-americana: pro-
dução de bens primários para o mercado externo, agricultura extensiva,
trabalho coletivo e mercantilização da força de trabalho via transforma-
ção do trabalhador em mercadoria, motivação pelo lucro, uso de tecno-
logias avançadas, na produção e nos meios de transporte e comunicação.
O fato de a escala de produção e riqueza da escravidão norte-americana
ter sido muito maior não autoriza considerá-la distinta.
A escravidão norte-americana do século XIX não foi um fenôme-
no isolado, mas integrou um quadro de expansão de produção de commo-
dities que incluiu outras áreas periféricas e semiperiféricas de um sistema
mundial capitalista.14 Nesse sentido, a segunda escravidão foi uma es-
trutura histórica específica, abrangente e transnacional, que enformou,
como fator dominante, as relações sociais no Sul dos Estados Unidos, até
1860, nos Estados Confederados da América, entre 1861 e 1865, no Im-
pério do Brasil, até 1888, e em Cuba, até 1886. Nessas áreas, a escravidão
renovada constituiu-se em estrutura de relações materiais determinante
da formação de classes dominantes regionais e nacionais, as classes se-
nhoriais escravistas, e de classes e grupos sociais dominados e subalter-
nos. Essas classes dominantes, por via de elites intelectuais e dirigentes,
estabeleceram sua hegemonia sobre um território e sobre outras classes
e grupos sociais, de forma relativamente estável e duradoura, através
de visões de mundo e instituições próprias. Formaram, assim, blocos
históricos específicos e particulares, isto é, com uma morfologia comum,

14 A qualificação do sistema mundial do século XIX como capitalista, apesar de ser formado tam-
bém a partir de outras estruturas históricas não-capitalistas, como as formações socais pré-ca-
pitalistas europeias, não-capitalistas na África, na Ásia e na América do Sul, e, notadamente, das
formações sociais da segunda escravidão, leva em conta duas considerações. Por um lado, o
capitalismo foi e é o fator decisivo no desenvolvimento desse sistema. Hipoteticamente, poderia
haver capitalismo sem segunda escravidão, mas não poderia haver segunda escravidão sem ca-
pitalismo. No mesmo sentido, todas as outras formações sociais não-capitalistas pré-existentes
foram por ele profundamente afetadas. Por outro, o capitalismo implicou em uma estrutura
específica, expansiva e dissolvente, que tendeu e tende a desagregar as formas não capitalistas
de produção, situadas na periferia e na semiperiferia, mesmo quando as modificou e recriou.

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A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

ainda que gozando, cada qual, de características únicas.15 As classes se-


nhoriais escravistas eram de base agrária, assentando-se em grandes
propriedades rurais. Partilharam e difundiram um ethos de propensão
aristocrático. Do ponto de vista político, foram adeptas e portadoras de
diferentes vertentes de um liberalismo de classe que se contrapôs, por
um lado, a uma sociedade de ordens, colonial e/ou de Antigo Regime, e,
por outro, às concepções de um liberalismo democrático. Esse liberalis-
mo de classe, por sua vez, baseou-se em uma concepção de liberdade
que tinha no individualismo proprietário sua pedra angular. No caso es-
pecífico da segunda escravidão, essa concepção teve como fundamento
a concepção do direito à propriedade de outrem e, consequentemente,
a aceitação, por razões divinas e/ou históricas, da condição escrava do
trabalhador.16 A segunda escravidão, assim como qualquer outra estrutu-
ra histórica abrangente, só existiu porque foi recíproca e historicamente
sobredeterminada por esses mesmos blocos históricos particulares.
Nos Estados Unidos, tudo isso se consolidou através de uma repú-
blica com uma estrutura de poder federativa e consorciada entre estados
escravistas e estados livres. Um pacto político estabelecido entre 1786 e
1820 fez com que, até a década de 1850, os interesses escravistas pre-
valecessem, mas não predominassem integralmente, no Governo Federal.
Esse pacto girou, tensionou-se e, eventualmente, rompeu-se em torno da
questão de quem controlaria a grande expansão territorial pelo subconti-
nente norte-americano. Já o Império do Brasil teve uma estrutura de poder
unitária, baseada na disseminação da escravidão por todo território nacio-
nal, alicerçada na hegemonia política e social da classe senhorial, especial-
mente de sua fração da Bacia do Paraíba do Sul. Em um caso e no outro,
ainda que de formas diferentes, a escravidão afro-americana constitui-se
no principal esteio de dois Estados e nações em que a escravidão predo-
minava parcial ou inteiramente em sua constituição: o norte-americano,
até sua crise do final da década de 1850, e o brasileiro, até o colapso do
regime servil e, consequentemente, do Império, na conjuntura de 1888-89.
Do ponto de vista internacional, o Império do Brasil e, princi-
palmente, os Estados Unidos, ainda que periféricos, não se submeteram

15 Sem espaço para grandes digressões, pode-se caracterizar, simplificadamente, o conceito


gramsciano de bloco histórico como a unidade particular, histórica e espacial (geográfica),
da estrutura material e social e de superestruturas político-jurídicas e ideológicas. Para uma
discussão sobre o assunto, ver Portelli (1977).
16 Para o conceito de liberalismo de classe, ver Salles (2017). Para a ideia de individualismo
proprietário, como fundamento da concepção fisiocrata da economia, embasando uma con-
cepção de propriedade do período de transição para o capitalismo, específica do regime e da
ordem escravista, ver Fox-Genovese; Eugene Genovese (1983).

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A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

passivamente à imposição de uma ordem mundial de livre comércio,


inteiramente derivada do desenvolvimento do capitalismo enquanto
sistema internacional, imposta pela potência capitalista hegemônica, a
Grã-Bretanha. É certo que essa ordem mundial de livre comércio, vigente
entre 1815 e 1870, obedeceu primordialmente a uma lógica – a pax bri-
tannica – preconizada pela Grã-Bretanha. Tal lógica, contudo, não derivou
de um consenso internacional, interestatal e social, nascido da difusão
irrestrita do capitalismo mundial. Estados e forças sociais não capitalis-
tas beneficiavam-se, através da produção de commodities, da divisão de
trabalho internacional propiciada por essa ordem mundial, e contribuí-
ram para sua construção. Essas forças sociais e Estados eram, por um
lado, as aristocracias e Estados monárquicos europeus, mais resistentes
à penetração do capitalismo em suas respectivas nações. Por outro, fo-
ram forças sociais e Estados americanos organizados em torno da se-
gunda escravidão (Lacher; Germman, 2012).17 Contudo, como vimos, as
classes senhoriais escravistas da segunda escravidão, se comparadas às
aristocracias europeias, não estavam em processo de retirada, mesmo
que organizada, diante do avanço do capitalismo, como foi o caso das
classes aristocráticas pré-capitalistas europeias e, tampouco, podem ser
subsumidas a uma lógica capitalista global.18

17 Esses autores não utilizam a categoria de segunda escravidão, mas fazem menção aos planta-
dores escravistas, ao lado das aristocracias dominantes europeias, como forças não capitalis-
tas que, juntamente com os interesses capitalistas britânicos, moldaram a ordem internacional
de livre comércio no século XIX.
18 Na mesma época em que Dale Tomich elaborava o conceito histórico de segunda escravidão,
o sociólogo Philip McMichael, considerou que o Sul não deveria ser compreendido como uma
região distinta por conta de seu sistema de trabalho, mas seu sistema de trabalho deveria
ser reconceituado “como parte componente de uma emergente força de trabalho mundial
no século XIX. Mais especificamente (...), através do mecanismo da expansão da cultura do
algodão, o trabalho escravo sulista foi integrado em uma nascente relação assalariada global.
Quer dizer, na medida em que o mercado mundial obtinha maior coerência como um sistema
unificado por relações de valor (por ex., preços mundiais, financiamento global ancorado em
Londres), ele subordinou a produção de mercadorias ao ritmo industrial competitivo do traba-
lho assalariado” (McMichael, 1991, p. 10-11). Ainda segundo McMichael, essa relação assala-
riada global se distinguiria do trabalho assalariado em si por duas razões: 1) ela não implicaria
em evolução no sentido do trabalho assalariado como um ponto de chegada da organização
do trabalho em escala mundial e; 2) o assalariamento seria apenas uma das formas fenomeno-
lógicas de trabalho, ainda que decisiva, no complexo mundial de produção de mercadoria que
emergiram no século XIX. A escravidão algodoeira teria sido um dos elementos dessa com-
binação de várias formas fenomenológicas de trabalho em uma unidade contraditória (McMi-
chael, 1991, p. 11). Se é fato que trabalho escravo da segunda escravidão e o novo trabalho
assalariado do capitalismo foram partes integrantes de um mesmo processo global, que teve
nas relações de trabalho assalariado seu elemento decisivo, isso, no entanto, não tornou essas
relações sociais de trabalho equivalentes ou intercambiáveis. A unidade das formas que com-
puseram essas relações globais foi historicamente contraditória, marcada por disputas entre
distintos e, muitas vezes, antagônicos, sujeitos históricos. No caso das formações sociais da

47
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Esse foi, resumidamente, o que considero ser o traço distinti-


vo mais importante da segunda escravidão enquanto estrutura histórica
específica: fundamentar a formação de blocos históricos singulares, es-
cravistas ou dominantemente escravistas. Esses blocos históricos inse-
riram-se e, ao mesmo tempo, estiveram inseridos, como uma de suas
vertentes formadoras, em uma ordem mundial de livre comércio domi-
nantemente capitalista, que perdurou durante os três primeiros quartos
do século XIX. A “marca” escravista dessas formações históricas se deu
de três formas derivadas de uma morfologia comum, apresentando, ao
mesmo tempo, desenvolvimentos empíricos semelhantes e distintos.
Essa marca foi nacional, integral, mas não exclusiva, como no Império
do Brasil e nos efêmeros Estados Confederados da América, entre 1861
e 1865; híbrida, como nos Estados Unidos, até 1860; e colonial, no caso
de Cuba e de seu lugar na configuração do Segundo Império Espanhol.19
Para concluir, uma última palavra sobre o que pode vir a ser um
importante campo de investigações e debates em torno do desenvolvi-
mento do conceito de segunda escravidão como uma estrutura histórica
específica. Em texto pioneiro, de 2013, Rafael Marquese identificou as
conexões mercantis e, em menor grau, financeiras entre a economia es-
cravista cafeeira do Império do Brasil e a economia escravista do Sul dos
Estados Unidos, que se constituiria “no coração da estrutura histórica da
Segunda Escravidão” (Marquese, 2013b, p. 51). Tais conexões se estende-
riam igualmente à esfera política com a defesa comum da escravidão no
plano internacional (Marquese; Parron, 2011). Segundo Marquese, apesar
de sua crítica a Wallerstein, a ideia de segunda escravidão de Dale Tomi-
ch parte do mesmo campo teórico e metodológico aberto pela perspec-
tiva do sistema-mundo. Tal entendimento do capitalismo histórico não
veria “as relações entre trabalho escravo e trabalho assalariado como
externas umas às outras, porém estrutural e dialeticamente integradas”.
Desse modo, “as forças estruturais do capitalismo global que moldaram a
escravidão negra oitocentista nas Américas” deveriam estar no primeiro
plano da análise (Marquese, 2013b, p. 52).
A perspectiva aqui defendida difere dessa concepção. Ela vê a
segunda escravidão enquanto uma estrutura histórica específica, abran-

segunda escravidão, tais sujeitos históricos cristalizaram-se em classes dominantes regionais


e nacionais, constituindo-se como forças subjacentes a Estados nacionais, como aconteceu no
Império do Brasil e dos efêmeros, mas poderosos, Estados Confederados da América.
19 Para a caracterização da república americana como uma república escravista, até 1860, ver:
Fehrenbacher (2002) e Van Cleve (2010). Para Cuba, ver Schmidt-Nowara (1999) e, para o Brasil,
Salles (2008).

48
A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia

gente e transnacional, referente a uma mesma morfologia nas relações


de produção comum aos distintos blocos históricos escravistas no século
XIX. Apesar de reconhecer a importância das conexões econômicas e
políticas empíricas entre esses blocos, não as considera essenciais na
definição dessa estrutura histórica. Desse modo, ao lado das eventuais
aproximações entre as diversas regiões escravistas das Américas, permite
considerar, igualmente, os conflitos de interesse que, real ou potencial-
mente, opuseram essas áreas escravistas no cenário inter-regional. Como
foi, por exemplo, o caso do interesse norte-americano em abrir a Amazô-
nia brasileira à exploração econômica e, eventualmente, à própria expan-
são da escravidão sulista. Ela também enfatiza a dimensão estrutural das
contradições entre a segunda escravidão e o capitalismo, a despeito das
complementaridades que esses dois sistemas socioeconômicos apresen-
taram. Foram essas contradições que, de diferentes maneiras, lastrearam
alguns conflitos nacionais e internacionais que marcaram a história da
segunda escravidão, como foi o caso das disputas entre Grã-Bretanha
e o Império em torno do tráfico internacional de escravos e da própria
escravidão, que se estenderam até 1865. Ou ainda das disputas entre os
estados do Sul e do Norte dos Estados Unidos, que resultaram na eclosão
da Guerra da Secessão, evento que abriu o período de crise da segunda
escravidão.

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52
UNIDADES DE ANÁLISE, JOGOS DE ESCALAS E A
HISTORIOGRAFIA DA ESCRAVIDÃO NO CAPITALISMO

Leonardo Marques

It is not analytically most useful to define either


‘proletarian’ or ‘slave’ in isolation, since these
two vast categories of toiler were actually linked
intimately by the world economy that had, as it were,
given birth to them both, in their modern form.
Sidney Mintz (1977, p. 97)

Em fins da década de 1990, Joel Mokyr expressava uma certe-


za amplamente compartilhada por muitos historiadores quando argu-
mentou que, “na ausência da escravidão nas Índias Ocidentais, a Grã-
-Bretanha teria que beber chá amargo, mas teria tido uma Revolução
Industrial, ainda que, talvez, em um ritmo marginalmente mais lento”
(Mokyr, 1999, p. 75). Após décadas de debates historiográficos em tor-
no das relações entre o desenvolvimento do capitalismo na Europa e a
escravidão nas Américas, um certo consenso parecia ter sido alcançado.
Em termos puramente econômicos, os lucros do tráfico de escravos e
das colônias escravistas nas Américas haviam sido proporcionalmente
muito baixos para ter qualquer peso explicativo para o desenvolvimen-
to da Europa. Nas palavras de um famoso e influente artigo de Patrick
O’Brien, que analisava as relações coloniais da Europa como um todo,
“para o crescimento do centro, a contribuição da periferia foi periféri-
ca” (O’Brien, 1982, p. 18).
O alvo principal de O’Brien era Immanuel Wallerstein, cuja obra
recuperava e ampliava, sobre novas bases, a agenda de pesquisa inaugu-
rada por Eric Williams, em 1944, com a publicação de Capitalismo e escra-
vidão. Em seu famoso argumento, Williams defendeu que a escravidão
inicialmente gerou os lucros necessários à industrialização da Grã-Bre-
tanha. Com o desenvolvimento do capitalismo industrial, no entanto, a
escravidão nas colônias britânicas se tornou economicamente irrelevante
para a metrópole, preparando o caminho para a sua extinção (Wallers-
tein, 1974; Williams, 2012).

53
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Se os elos entre as colônias e o desenvolvimento do capitalismo


eram tênues, como afirmava boa parte do campo, os historiadores po-
diam, então, se dedicar a explorar as dinâmicas internas de economias
americanas ou europeias. Esse olhar para dentro era complementado por
desenvolvimentos importantes nas próprias práticas historiográficas. Em
resposta aos desafios da chamada guinada linguística da década de 1960,
muitos historiadores responderam com uma redução da escala de análise
e um mergulho ainda mais intenso nos arquivos. Para Giovanni Levi, por
exemplo, a redução da escala de observação operada por micro-historia-
dores italianos, que se afastaram dos sistemas de explicação funcionalis-
tas e marxistas, permitia uma descrição mais realista do comportamento
humano (Levi, 1992). O problema era (e continua sendo) como realizar
essa redução da escala sem perder de vista os grandes processos. De
acordo com Levi, o particular deveria servir como ponto de partida para
a construção de contextos, que não estariam mais dados de antemão.
Nesse sentido, a microanálise oferecia não apenas um modo privilegiado
de se observar processos mais amplos, mas a própria base a partir da
qual esses se constituem (Levi, 1999).
A movimentação entre essas diferentes escalas, no entanto, re-
velou-se na prática muito mais complicada. Como argumenta William
Sewell Jr., falta às gerações mais recentes da Escola dos Annales, forte-
mente influenciadas pela Micro-História italiana, “uma forma de captu-
rar a dialética contínua entre processos de pequena e grande escala. O
pensamento atual dos Annales aparentemente elaborou apenas uma das
metades dessa dialética necessária” (Sewell Jr., 2005, p. 76). Para Sewell,
a despeito das tentativas de abordagem de níveis macro a partir de uma
escala reduzida de análise, ainda não está claro como esta pode efetiva-
mente tratar de processos como a expansão do capitalismo.
Além disso, a transformação do trabalho de arquivo em fim úl-
timo da prática historiográfica trouxe importantes consequências para
a disciplina, como nota Gary Wilder. O historiador foi se tornando um
especialista em arquivos, o que levou ao desenvolvimento de uma série
de conclusões – demonstráveis principalmente pelo recurso às fontes
primárias – que foram (e têm sido) repetidas à exaustão na historiografia:

fenômenos históricos são mais complexos do que o


representado por abstrações teóricas; eventos con-
tingentes tem um papel importante em processos
históricos; mudanças históricas são resultado de
muitos determinantes e não de uma única causa; a
ideologia nunca é totalmente convincente para to-

54
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

dos; o poder estatal não é absoluto; planos nunca


são totalmente implementados; discursos e práticas
nem sempre estão alinhados; ações com frequência
têm consequências imprevistas; atores nem sempre
sabem o que estão fazendo; fenômenos e processos
históricos são frequentemente contraditórios (Wil-
der, 2012, p. 730).

Se estendermos essa análise para os estudos sobre escravidão,


poderíamos incluir as inúmeras conclusões em torno do uso do siste-
ma judiciário por escravos para avançar seus interesses ou da ausência
de uma mentalidade capitalista entre senhores de escravos. Os avanços
produzidos pela pesquisa exaustiva em arquivos espalhados pelo mundo
são inegáveis, com a História Social da Escravidão produzindo inúmeras
obras clássicas sobre o tema. Ainda assim, a discussão acima aponta para
alguns dos limites de abordagens excessivamente calcadas no trabalho
com fontes primárias. “O empiricismo descritivo”, argumenta Wilder, “é
mascarado como insight teórico” (2012, p. 730). Uma das principais con-
sequências desse processo foi que temas que não podiam ser facilmente
abordados a partir do trabalho de arquivo, como o capitalismo mundial,
foram sendo escanteados. Quando muito, recebiam um aceno em pará-
grafos introdutórios ou eram mobilizados para demonstrar sua inexis-
tência na escala local (Marquese, 2013).
Os debates gerados pela expansão da Global History e a New His-
tory of Capitalism na academia anglo-americana têm apresentado o efeito
salutar de reabrir os debates sobre capitalismo e escravidão, anterior-
mente dados como superados. “Conforme o capitalismo se expandiu do
mercado mundial que criou”, Seth Rockman e Sven Beckert argumentam
na introdução, claramente inspirada em Williams, de Slavery’s Capitalism,
“a escravidão veio a ter um papel central, até mesmo decisivo – primeiro
no Caribe e na América Latina, depois na América do Norte –, fortemente
ligado à Revolução Industrial, que transformou o mundo, e à chamada
Grande Divergência” (Beckert; Rockman, 2016, p. 3). Um número signi-
ficativo de trabalhos explorando essas conexões foi publicado na últi-
ma década (para uma síntese dessa bibliografia, ver Clegg, 2015). Ainda
assim, parte das contribuições da New History of Capitalism permanece
excessivamente centrada na trajetória anglo-americana (Marques, 2017).
As discussões relacionadas ao conceito de segunda escravidão têm co-
laborado não apenas para recolocar o debate sobre as relações entre
capitalismo e escravidão na ordem do dia, mas, também, para questionar
o nacionalismo metodológico que ainda informa uma parcela importante

55
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

da produção historiográfica mundial, incluindo muitas dessas contribui-


ções mais recentes. Um aprofundamento nos debates sobre a segunda
escravidão fornece pistas de caminhos possíveis para várias das questões
anteriormente levantadas: a conceitualização do capitalismo enquanto
sistema histórico, as relações entre a escravidão e o desenvolvimento
do Ocidente, e a dialética entre as múltiplas escalas da análise histórica.
Este capítulo explora tais questões, com apontamentos em torno
de como o debate sobre capitalismo e escravidão tem sido tratado por
algumas das principais tradições historiográficas que se dedicaram ao
tema, buscando apontar as potencialidades e limites de cada uma delas.

Nova História Econômica

As características que definem o conceito de capitalismo estão


longe de ser ponto pacífico entre pesquisadores. Grosso modo, no caso
da Nova História Econômica, quando não se pressupõe uma disposição
humana para a barganha e a troca (localizando capitalismo na Antiguida-
de, ou simplesmente descartando o conceito), caracteriza-se o capitalis-
mo como uma forma específica de economia de mercado, marcada pela
livre competição, direitos de propriedade bem definidos e a alocação de
bens e serviços por meio de mercados, definição que também informa
abordagens neoinstitucionalistas (Williamson; Neal, 2014). Poucos têm a
ilusão de que esse modelo possa ser encontrado funcionando com per-
feição na prática, mas o Ocidente moderno seria o espaço que mais se
aproximou desse ideal (sem esquecer que, dentro desse mesmo Ociden-
te, novas distinções são com frequência estabelecidas entre as nações
mais e as menos capitalistas) (North; Thomas, 1973). Nos estudos sobre
a escravidão, a bibliografia recorrendo ao modelo é enorme, o “elefante
no meio da sala”, como diz Dale Tomich (2016, p. 57).
O conceito privilegiado em grande parte dos estudos de História
Econômica, no entanto, é o de crescimento econômico, com análises
das condições que podem estimular ou obstruir o desenvolvimento de
determinados espaços. A unidade de análise pode variar de regiões a
continentes, mas recorrentemente se restringe aos espaços regionais e
nacionais específicos, até mesmo pela natureza das fontes passíveis de
quantificação. Mesmo em análises de longa duração – como as ofereci-
das pelos influentes artigos de Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff,
sobre a importância dos factor endowments para as diferentes trajetórias
econômicas dos Estados Unidos e da América Latina – , as unidades de

56
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

análise podem ter escala continental norte da América do Norte em con-


traposição à América Latina e o Caribe), mas são, ainda assim, tratadas
como externas umas às outras (Engerman; Sokoloff, 2002). Críticos de
Engerman e Sokoloff, como John Coatsworth, ampliam a unidade de
análise, de modo a enfatizar heranças imperiais do Velho Mundo como
fatores importantes para as diferentes trajetórias de desenvolvimento
(como, por exemplo, as formas jurídicas da posse da terra predominan-
tes na Península Ibérica). No entanto, continuam a ignorar a importância
das articulações entre esses diferentes espaços como parte constitutiva
dessa história (Coatsworth, 2005). Que essas diferentes partes possam
estar articuladas em um todo integrado – e que isso possa ter papel fun-
damental nas diferenças que são o ponto de partida dessas análises – é
uma possibilidade que passa ao largo desses debates.
Essa dificuldade se reflete na forma como a discussão sobre ca-
pitalismo e escravidão foi abordada em boa parte dos escritos nessa tra-
dição historiográfica. Como vimos, um certo consenso historiográfico
emergiu a partir de avaliações da importância dos lucros do tráfico de
escravos e da escravidão para as economias europeias. O procedimento
recorrentemente empregado por críticos de Williams tem sido dividir
as estimativas desses lucros, bem como de atividades correlatas, pelo
produto interno bruto da Grã-Bretanha ou de outras nações europeias,
consequentemente reduzindo a contribuição da escravidão à insignifi-
cância. Ou assim tentando. Como mais de um observador notou, não
raro os números se mostraram mais altos do que qualquer entusiasta de
Eric Williams poderia esperar (Findlay; O’Rourke, 2009, p. 335-336).
Há, no entanto, um problema de fundo nessa polêmica, que diz
respeito aos dados utilizados para rebater a argumentação de que as
periferias escravistas tiveram importância para o desenvolvimento dos
centros, como Wallerstein apontou em sua réplica ao artigo de Patrick
O’Brien sobre a contribuição “periférica da periferia” (Wallerstein, 1983,
p. 580-581). Dados produzidos por Estados-Nação são utilizados para
avaliar processos econômicos que transcendem os espaços nacionais.
O’Brien eventualmente voltaria a esse problema e reconsideraria sua
própria posição original, reconhecendo ter engrenado em uma curva de
aprendizagem nos anos após a publicação do artigo de 1982 (O’Brien,
2010). De acordo com o historiador, a História Econômica da Europa, ba-
seada nas pesquisas em arquivos nacionais e locais, continua a ter como
pressuposto a ideia de que generalizações a respeito da importância do
comércio e da colonização europeias podem ser formuladas a partir de
microestudos de caso, centrados em cidades costeiras específicas, ou de

57
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

setores industriais e agrícolas locais, nas diferentes partes da Europa que


estavam conectadas ao comércio atlântico (como ele mesmo fizera em
1982). De acordo com O’Brien, “não houve qualquer progressão evidente
da construção de tijolos para a formulação de uma arquitetura” (O’Brien,
2005, p. 9-10).
Um desafio adicional ao paradigma tradicional da Nova História
Econômica veio com os trabalhos de um conjunto de especialistas em
Ásia, que reorientaram o debate e derrubaram imagens arraigadas de uma
suposta estagnação asiática ao longo dos tempos. O argumento tradicio-
nal de que a periferia tivera pouco peso no desenvolvimento da Europa
sempre foi complementado por explicações endógenas, as quais enfati-
zavam as peculiaridades europeias que levaram à expansão do continen-
te (ou de partes dele). Entretanto, Kenneth Pomeranz, acompanhado de
outros sinólogos, demonstra que a maioria dessas supostas peculiarida-
des europeias também podia ser encontrada em partes da Ásia, como no
delta do Yangtze, na China, formando o que descreve como um mundo
de “semelhanças surpreendentes” (Pomeranz, 1999, p. 29-107). A Ásia se
revelava muito mais dinâmica do que foi outrora representada.
Vários outros estudos colaboraram para a revisão, demonstran-
do, por exemplo, que a China e a Índia drenaram parte significativa dos
metais preciosos extraídos das Américas (Flynn; Giraldez, 2002; Parthasa-
rathi, 2011). A partir dessa reconsideração do dinamismo asiático, Pome-
ranz explora o que levou a Inglaterra a seguir uma trajetória distinta da
China, elencando a descoberta de grandes reservas de carvão mineral na
própria Grã-Bretanha e a existência de colônias nas Américas, descritas
por ele como “periferias de um novo tipo”, como os fatores decisivos
para a “Grande Divergência” (Pomeranz, 1999, p. 209-297). Com esse
argumento, Pomeranz contribuiu para uma reconsideração da agenda
original proposta por Eric Williams. O papel da escravidão nas Américas
para o desenvolvimento da Europa voltou a ser objeto de debate.
Todas essas contribuições, combinadas com outras, discutidas
mais adiante, colocaram por terra leituras que explicam o desenvolvi-
mento europeu com base em características exclusivamente internas.
Como reconhece O’Brien,
a teoria de sistemas-mundo, junto com a reemer-
gência da história econômica global, tem aumen-
tado a percepção das ramificações da expansão
ultramarina da Europa e ajudado historiadores do
continente a escapar e modificar metanarrativas eu-
rocêntricas tradicionais sobre os fundamentos e ori-
gens da transição para economias industrializadas.

58
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

O weberianismo vulgar não pode mais ser mantido.


A violência e o poder foram trazidos de volta para
degradar um discurso liberal anacronicamente pre-
maturo sobre as vantagens comparativas da Europa.
Ainda assim, o debate sobre o significado de forças
endógenas comparadas às exógenas para a transi-
ção precoce da Europa não pode chegar a uma con-
clusão. (O’Brien, 2005, p. 40-41)

Em suma, O’Brien aponta para os limites de algumas abordagens


tradicionais da História Econômica e para o fim do consenso historiográ-
fico em torno das contribuições das Américas, África e Ásia para o desen-
volvimento da Europa. Como combinar processos externos e internos
permanece em aberto para O’Brien e outros pesquisadores da História
Econômica (em grande medida como consequência da forma como cons-
troem e enquadram o problema). Os trabalhos anteriormente mencio-
nados, no entanto, conseguiram reabrir a discussão sobre capitalismo e
escravidão, utilizando os instrumentos da própria História Econômica.
Incrivelmente, todo esse debate parece passar batido na histo-
riografia brasileira, consequência, acredito, da conclusão fortemente
arraigada por aqui de que esse tema não nos interessa diretamente (ex-
ceto para comparações em torno daquilo que nós não somos). Importa
particularmente, para nós, o fato de que a reorientação dos debates pe-
los especialistas em Ásia, recolocando a história dos metais preciosos
no centro da discussão, abre caminhos importantes para compreender a
História das Américas Ibéricas de uma perspectiva global (Tutino, 2016;
Marques, 2017).

Marxismos
Uma longa e rica tradição de estudos marxistas sobre a escravidão,
que vão dos tradicionais trabalhos de Manuel Moreno Fraginals (1964) às
recentes contribuições de Ricardo Salles (2008), continua a animar e ins-
pirar inúmeros debates sobre as relações entre capitalismo e escravidão.
A forma como o debate é tratado varia, evidentemente, de acordo com as
definições e enquadramentos do capitalismo enquanto processo históri-
co. Uma das definições mais fundamentais, amplamente compartilhada,
foca na relação entre capital e trabalho assalariado, que se reflete em aná-
lises da história do capitalismo que localizam o sistema em sociedades
nas quais tais relações se generalizaram e passaram, consequentemente,
a operar de acordo com novos imperativos econômicos. Não raro, essa

59
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

abordagem toma fronteiras nacionais ou proto-nacionais como unidade


de análise e coloca a História da Inglaterra (ou, em algumas variações, da
Holanda) no centro. Os trabalhos de Robert Brenner e Ellen Wood (As-
ton; Philpin, 1985; Wood, 2001) são possivelmente os mais conhecidos do
público brasileiro por essa abordagem, frequentemente mobilizados por
historiadores para afirmar a natureza não capitalista da América Portugue-
sa ou do Brasil Imperial, em combinação com conclusões tradicionais da
História Econômica, como a de O’Brien de 1982 (Fragoso, 2014, p. 16-18).
Dentre os que buscam uma conexão entre capitalismo e colonialismo, o
recurso à ideia de capitalismo comercial é uma das principais estratégias
de análise (Novais, 1979). O próprio Marx, em sua famosa seção sobre a
“assim chamada acumulação primitiva”, dava espaço para as duas interpre-
tações, descrevendo tanto o processo de transformação do campo inglês
quanto a exploração de indígenas nas minas do Novo Mundo, o comércio
de africanos escravizados e as ações nas Índias Orientais como partes cons-
titutivas de um mesmo processo histórico. “Os diferentes momentos da
acumulação primitiva”, argumentava, “repartem-se, agora, numa sequên-
cia mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal,
Holanda, França e Inglaterra” (Marx, 2013, p. 821).
Perry Anderson foi preciso em seu diagnóstico dos problemas
que permeiam histórias excessivamente centradas no surgimento do
capitalismo agrário na Inglaterra: “A ideia de capitalismo num só país,
tomada literalmente, não é mais plausível que seu equivalente socialis-
ta”. Anderson faz referência às passagens do O Capital de Marx em que
o autor aponta para uma trajetória cumulativa do capital, que envolve
cidades italianas, Flandres, Países Baixos, impérios ibéricos, portos fran-
ceses, culminando com uma combinação sistêmica na Inglaterra de fins
do século XVII. “Historicamente”, conclui Anderson, “faz mais sentido
enxergar a ascensão do capitalismo assim: como um processo de agrega-
ção de valor que ganhou complexidade à medida que se deslocava por
uma cadeia de lugares relacionados entre si” (Anderson, 2012, p. 287).
Além disso, o foco excessivo nos desenvolvimentos internos da
Inglaterra abre pouco espaço para se compreender o lugar da escravidão,
ou mesmo do colonialismo, nessa história. Geralmente, em análises do
chamado marxismo político, a escravidão aparece como parte de compara-
ções entre sistemas de trabalho, arrolada com outras formas de extração
classificadas como pré-capitalistas. Estudos nessa tradição que se aventu-
ram em sociedades escravistas, como os Estados Unidos, exploram mais
os contrastes entre capitalismo e escravidão – tratados como unidades
isoladas uma da outra – do que suas possíveis conexões (Post, 2011).

60
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

Em parte inspirado por Brenner, Robin Blackburn avança na dis-


cussão ao observar como as transformações no campo inglês tiveram
implicações do outro lado do Atlântico. A escravidão do Novo Mundo,
especialmente com a construção dos sistemas coloniais do noroeste eu-
ropeu, a partir de meados do século XVII, aparece como uma consequên-
cia nefasta da expansão do capitalismo na Europa. O autor se distancia
do modelo de Brenner ao recuperar a primeira parte do argumento de
Williams, oferecendo uma análise de como a escravidão no Novo Mundo
contribuiu para o desenvolvimento europeu (Blackburn, 2003, p. 619-
706). A escravidão, ainda assim, é concebida como um elemento externo
ao capitalismo. “As plantations escravistas”, argumenta Blackburn, “eram
mais a consequência do que a causa do capitalismo” (Blackburn, 2016, p.
40). Em outros momentos, o autor fala de um “capitalismo escravista”,
conceito usado para descrever o comportamento empresarial de senho-
res de escravos na segunda escravidão. Para usar os termos de Tomich
(inspirado por Maria Sylvia de Carvalho Franco), capitalismo e escravidão
parecem estar mais próximos de uma “dualidade integrada”, na narrativa
de Blackburn, do que de uma “unidade contraditória”.
O problema da unidade de análise volta à tona: espaços nacionais
são concebidos como capitalistas ou não com base nas relações sociais
de produção. Senhores de escravos, portanto, poderiam ter mentalidade
moderna ou arcaica, mas, nos dois casos, o contexto no qual estavam
inseridos era não capitalista. Uma incorporação do conceito de segunda
escravidão nesses termos acaba por excluir o que considero um de seus
elementos mais importantes, evidentemente herdado da abordagem de
sistemas-mundo, qual seja: a compreensão do capitalismo como um sis-
tema que transcende (mas não prescinde de) fronteiras políticas em sua
combinação de múltiplas formas de trabalho.

Sistemas-mundo
Um dos fundamentos básicos da abordagem de sistemas-mun-
do consiste no questionamento do Estado-Nação enquanto unidade de
análise, além de outras heranças do século XIX nas Ciências Sociais, in-
cluindo as definições clássicas de capitalismo que o associam ao livre
mercado. A caracterização geral de Wallerstein do capitalismo, como um
sistema histórico no qual o capital “passou a ser usado (investido) de ma-
neira especial, tendo como objetivo, ou intenção primordial, a auto-ex-
pansão (sic)”, é acompanhada de uma discussão, esta sim mais polêmica,

61
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

dos mecanismos fundamentais de acumulação do sistema (Wallerstein,


2001, p. 13). Wallerstein se distancia de outras formulações na medida
em que não elege a relação entre capital e trabalho assalariado como mo-
tor único de tal processo. Em sua interpretação, o capitalismo, enquanto
sistema histórico (e um ponto-chave da abordagem é a utilização do con-
ceito de sistema histórico no lugar de sociedade), é formado pela interde-
pendência de uma economia-mundo – que, constituída por uma divisão
internacional do trabalho, transcende espaços nacionais – e um sistema
interestatal que garante a existência dessa economia-mundo e dela de-
pende para existir (Wallerstein, 2006). A economia capitalista mundial
passou, nas palavras de Giovanni Arrighi, “de um sistema em que as re-
des de acumulação estavam inteiramente inseridas nas redes de poder
e subordinadas a elas para um sistema em que as redes de poder estão
inteiramente inseridas nas redes de acumulação e subordinadas a estas”
(Arrighi, 2006, p. 88). As redes de acumulação, que tornaram possível a
auto expansão do capital, foram não apenas indiferentes às formas de
trabalho que dominaram, mas exploraram combinações dessas múltiplas
formas em diferentes escalas e de modo cambiante ao longo do tempo.

Sistemas-mundo e a segunda escravidão


Historiadores, sociólogos e antropólogos dialogaram criticamen-
te com a obra de Immanuel Wallerstein ao longo dos anos 1970 e 80,
levantando pontos muito próximos dos que embalaram alguns ramos da
historiografia no mesmo período, como a Micro-História. Em seus diver-
sos estudos sobre campesinatos caribenhos, Sidney Mintz e Michel-Rol-
ph Trouillot, por exemplo, propuseram questões importantes sobre as
dinâmicas das periferias no sistema mundial. Em comentários inspirados
pela obra de Wallerstein, Mintz frisava a importância dos laços entre o
consumo europeu de mercadorias tropicais produzidas por escravos afri-
canos do outro lado do Atlântico, bem como, inversamente, dos fluxos
de manufaturados europeus para as plantations caribenhas, antecipando
temas que exploraria a fundo posteriormente (Mintz, 1977, p. 264; Mintz,
1985). Trouillot, por sua vez, em um artigo clássico de 1982, dedicado
à rápida expansão da produção de café pelo setor de negros livres de
Saint Domingue e suas implicações para a Revolução Haitiana, defendeu
ser necessário ir além não apenas de abordagens sistêmicas, que faziam
tímidos acenos às iniciativas e reações locais, mas, também, de estudos
microssociológicos que omitiam “aquele que talvez fosse o evento mais

62
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

importante da história recente, o encolhimento do globo durante a ex-


pansão do capitalismo”. Referências rápidas aos “fatores internos”, por
um lado, ou ao “mundo moderno” e à “sociedade mais ampla”, por ou-
tro, eram insuficientes. Era necessária uma “metodologia para o estudo
de particularidades como fontes de mudanças por si mesmas, constan-
temente reagindo, mas também afetando, com frequência de maneiras
inesperadas, pressões e impulsos externos”. Em vez de rejeitar a ideia de
um sistema mundial, o objetivo de Trouillot era aperfeiçoar o modelo,
de modo a incluir esse movimento dialético entre os diferentes níveis
do sistema. Como o autor evidencia, não faz sentido estabelecer uma
dicotomia entre situações “internas” e “externas”, conforme procedeu
parte significativa das Ciências Sociais até os dias atuais. Sua conclusão
foi certeira:
um olhar para as particularidades do ponto de vis-
ta do sistema-mundo leva a uma progressão – um
“efeito de zoom”, poderíamos dizer – que oferece
perspectiva à imagem final ao incluir iniciativas lo-
cais e respostas locais, e o contra-efeito dessas par-
ticularidades no sistema como um todo. Tal procedi-
mento parece evitar o mecanismo homogeneizador,
com frequência implícito nos estudos de dependên-
cia, assim como a impermanência e miopia do rumo
empiricista (Trouillot, 1982, p. 382-383).

A preocupação com escalas e as dinâmicas entre as partes e o


todo ocupava, portanto, posição central nas interrogações desses pes-
quisadores, não raro envolvendo um diálogo crítico também com alguns
dos trabalhos que inspiraram vertentes da Micro-História, como os de
Fredrik Barth (Trouillot, 1984, p. 53). Em princípios dos anos 1990, Phi-
lip McMichael sistematizou essas preocupações e ofereceu um modelo,
que denominou de “comparação integrada” (incorporated comparison). A
diversidade de casos locais, no modelo de Wallerstein, de acordo com
McMichael, seria exemplo de dinâmicas sistêmicas e, dessa forma, o todo
estaria dado de antemão. Em vez disso, a análise deveria evitar a reifi-
cação das “partes” ou do “todo”. As diferentes instâncias não seriam in-
dependentes entre si, tampouco a expressão de um todo pré-concebido:
“elas expressam, constituem e modificam o todo que emergiu com e por
meio das partes, sem privilegiar qualquer um dos dois níveis. Nessa ope-
ração, a totalidade é um procedimento conceitual, e não uma premissa,
precisamente porque a conceitualização das instâncias ou unidades com-
paradas é relacional” (McMichael, 1990, p. 359). Um dos exemplos de

63
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

“comparação integrada” fornecidos por McMichael é o trabalho de Dale


Tomich, no qual demonstra que a escravidão na Martinica esteve conec-
tada de forma dinâmica a uma economia mundial (que tinha o trabalho
assalariado metropolitano em seu centro) e às rivalidades imperiais en-
volvendo França e Inglaterra (Tomich, 1990).
A partir de preocupações teórico-metodológicas semelhantes, e
com um profundo conhecimento de tradições historiográficas latino-a-
mericanas e caribenhas, Dale Tomich desenvolveu o conceito de segunda
escravidão. Por meio desse conceito, o historiador buscava apreender
tanto as novas características da escravidão oitocentista – que articulava
o Império do Brasil, a colônia espanhola de Cuba e os Estados Unidos –,
quanto seu enquadramento na economia mundial capitalista. Enquan-
to o escravismo colonial do século XVIII, particularmente produtivo nas
possessões britânicas e francesas do Caribe, foi caracterizado por polí-
ticas mercantilistas que monopolizavam as exportações das colônias e
isolavam os produtores coloniais da competição direta de seus rivais, na
virada do século, de acordo com Tomich, tal estrutura foi completamente
reconfigurada, com uma transformação profunda do mercado mundial,
sob a égide do Império Britânico. As fontes de poder não estavam mais
exclusivamente no domínio político das colônias, e sim no controle eco-
nômico sobre os fluxos de mercadorias. Uma nova divisão internacional
do trabalho estimulou a expansão das fronteiras escravistas no Brasil,
em Cuba e nos Estados Unidos, reflexo direto do crescimento acentuado
da demanda por café, açúcar e algodão nos novos centros industriais do
Ocidente. Ao mesmo tempo, a expansão dessas fronteiras escravistas se
aproveitava dos diversos avanços tecnológicos trazidos pela Revolução
Industrial (Tomich, 1990).
Parte da força do conceito de segunda escravidão reside, justa-
mente, em seu esforço de tratar o capitalismo como um sistema socioeco-
nômico constituído historicamente, em que “a produção e a troca podem
ser entendidas antes como relações que pressupõem, condicionam e são
formadoras uma da outra como partes distintas de um todo. Se conce-
bermos a economia social dessa maneira, a unidade de análise relevante
se define pela extensão dos processos inter-relacionados de produção,
distribuição, troca e consumo” (Tomich, 2011, p. 70). Essa abordagem
não apenas nos permite transcender discussões bizantinas em torno da
primazia da produção ou desses seres míticos que atendem pelo nome
de circulacionistas, mas também nos fornece um bom caminho para explo-
rar como o capitalismo combinou múltiplas formas de trabalho em sua
trajetória histórica, dentre as quais esteve a segunda escravidão.

64
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

Essa concepção fica evidente em sua discussão sobre os Estados


Unidos:
da perspectiva da economia-mundo, o Sul algodoei-
ro dos Estados Unidos e a Grã-Bretanha industrial
não formam “economias” escravistas e capitalistas
separadas, mas, em vez disso, são vistos como dois
pólos da divisão de trabalho econômica e geográfica
mundial. Eles são interdependentes e mutuamente
formativos um do outro através da forma de merca-
doria (Tomich, 2016, p. 85).

Os trabalhos recentes de Rafael Marquese evidenciam que essa


perspectiva pode ser empregada de modo frutífero em outros espaços.
Em seus estudos sobre o Vale do Paraíba, o historiador tem demonstrado
que a produção escravista de café na região se desenvolveu em compe-
tição com outras zonas cafeeiras do mundo, como Java, onde o Estado
holandês recriou formas pregressas de trabalho compulsório para poder
disputar com o produto brasileiro no mercado mundial. Conectados pela
economia mundial capitalista, os dois espaços se condicionaram mutua-
mente (Marquese, 2015). Um número crescente de trabalhos, inspirados
pelo conceito de segunda escravidão, também tem explorado os con-
dicionamentos mútuos entre diferentes partes do sistema mundial no
longo século XIX (Berbel; Marquese; Parron, 2010; Parron, 2015; Silva
Júnior, 2015; Marques, 2016; Tomich, 2016; Rood, 2017; Youssef, 2017).
Considerando os debates da segunda escravidão, notamos, con-
tudo, que a questão sobre o lugar do abolicionismo em sua formação e
eventual destruição permanece mal resolvida. A importância do abolicio-
nismo na transição da primeira para a segunda escravidão é problemática
em alguns dos relatos mais sintéticos do tema. Em sua crítica da Nova His-
tória Econômica, por exemplo, Tomich observa que historiadores como
Seymour Drescher e David Eltis isolam as esferas econômica, política e
cultural para defender a abolição como um processo político-cultural, o
que fazem de fato. Entretanto, em sua resposta, Tomich reproduz o iso-
lamento inverso ao reafirmar uma explicação excessivamente econômica
dessa transição. Em vez de integrar as três esferas (política, econômica e
sociocultural), ele rebate as críticas a Williams com uma reafirmação do
caráter econômico da transição.
Tal estratégia fica evidente se observarmos a Figura 1 de seu
texto, em que os desempenhos econômicos da Jamaica, Guiana e Cuba
começam a ser analisados a partir de 1807, precisamente o ano em que
o Parlamento Britânico formalizou a abolição do tráfico transatlântico de

65
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

escravos (Tomich, 2016, p. 79). Diante dessa constatação, cabe questio-


nar: seria possível compreender a ascensão de Cuba e a incapacidade da
Guiana e Jamaica de acompanhá-la sem referência ao fato de que o fluxo
de africanos escravizados para estes dois espaços fora cortado?
Blackburn, por outro lado, parece incorporar algumas conclusões
da Nova História Econômica ao colocar o movimento abolicionista no
centro da história que conta em American Crucible e rejeitar, de modo ex-
plícito, a segunda parte do argumento clássico de Williams, que conside-
ra o desenvolvimento do capitalismo como o principal responsável pela
eventual destruição da escravidão no Novo Mundo (Blackburn, 2016).
O grande desafio está em como integrar as esferas econômica,
política e sociocultural nas narrativas que construímos do processo de
emergência e destruição da segunda escravidão. Nesse sentido, Tho-
mas Holt oferece um dos caminhos mais interessantes para se explorar
a questão. Em uma resenha de um livro de Seymour Drescher, de fins
dos anos 1980, Holt notava que a obra ajudava a compreender que a
sociedade civil se mobilizou em apoio ao movimento abolicionista (em
Capitalism and Antislavery, Drescher demonstrava que um conjunto espe-
cífico de trabalhadores britânicos, mais especificamente artesãos inde-
pendentes de grandes centros industriais como Manchester, teve papel
central na transformação do abolicionismo em um movimento de massa),
mas que, para compreendermos a abolição da escravidão, outros níveis
de análise seriam necessários. O primeiro deles é a transformação mais
geral nas sensibilidades, que fez com que, de uma instituição amplamen-
te aceita em todo o mundo, a escravidão passasse a ser vista como uma
das formas mais degradantes e negativas de organização do trabalho. O
segundo nível de análise é o que explora como essa mudança de percep-
ção em relação à escravidão se converteu em um movimento de massas,
que é o que Drescher, dentre outros, ajuda a compreender com sua obra.
Finalmente, um terceiro nível é o que permite entender como as deman-
das desse movimento de massas puderam se transformar em políticas
governamentais e imperiais. A transição de um ao outro não é automáti-
ca. No entanto, tem sido esse o procedimento recorrente em boa parte
dos estudos sobre a abolição da escravidão (Holt, 1990).
Todos os níveis de análise descritos anteriormente devem entrar
nas narrativas em torno da ascensão e queda da segunda escravidão. Ao
fazê-lo, podemos explorar a fundo a vasta bibliografia que tratou de cada
um desses níveis. Trabalhos como o de David Brion Davis e David Eltis
nos ajudam a compreender a significativa mudança cultural em relação
à escravidão, que marcou o século XVIII na Grã-Bretanha (Davis, 2001;

66
Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo

Eltis, 2009). Outros trabalhos, como o já citado de Drescher, ou o clássico


de David Brion Davis, de 1975, The Problem of Slavery in the Age of Revo-
lution, nos ajudam a entender como essa mudança se traduziu em movi-
mentos sociais (Drescher, 1987; Davis, 1975). Finalmente, compreender
como a expansão desse abolicionismo levou a políticas governamentais
e imperiais, como bem aponta Holt, demanda questões e abordagens dis-
tintas. Os dois níveis anteriores contribuem para o desenvolvimento do
terceiro, mas a passagem entre eles não se dá de modo automático e sem
mediações. Portanto, avaliar as dimensões globais do Império Britânico
no longo século XIX é parte fundamental dessa discussão.
A expansão da hegemonia britânica, com Londres emergindo
como centro financeiro do mundo e um impulso para o livre comércio,
dependeu dos enormes recursos oriundos do subcontinente indiano. Em
outras palavras, a criação de uma zona de dominação informal do Impé-
rio Britânico no Ocidente, como bem observa Giovanni Arrighi, dentre
outros autores, dependeu de imperialismo formal no Oriente (Arrighi,
2006, p. 169-170; Findlay; O’Rourke, 2009, p. 406). O mundo de livre
comércio e trabalho delineado pelos economistas políticos foi politica-
mente instaurado em função de transformações em escala global. Mais
do que observar a lucratividade de plantations escravistas ou o número de
petições abolicionistas enviadas ao Parlamento Britânico de modo isola-
do, é necessário compreender o contexto mais amplo, que moldava e era
moldado pelas decisões políticas do Império (Parron, 2018). Se praticada
sem preconceitos, a leitura de Capitalismo e escravidão pode nos oferecer
elementos importantes para essa discussão (Williams, 2012).

Considerações finais
A agenda de pesquisa colocada originalmente por Eric Williams
voltou a pautar debates historiográficos contemporâneos sobre a escra-
vidão nas Américas. Nesse contexto, as discussões geradas pelo concei-
to de segunda escravidão têm colaborado para manter o debate vivo e
quebrar as amarras de um nacionalismo metodológico que continua a
permear boa parte das contribuições historiográficas sobre o tema. Não
apenas estamos conhecendo mais a fundo os mútuos condicionamentos
entre as três principais sociedades escravistas do Oitocentos – Brasil,
Cuba e Estados Unidos –, mas, também, avançamos na compreensão do
lugar dessas sociedades escravistas no capitalismo global do século XIX.

67
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

A contribuição mais importante do conceito está em seu enqua-


dramento teórico. Ao evitar a reificação das diferentes partes que forma-
ram o capitalismo enquanto um sistema histórico, a abordagem, como
vimos, abre inúmeros caminhos possíveis de pesquisa, inserindo a his-
tória da escravidão oitocentista no contexto mais amplo que a formou,
e foi por ela formado. Assim, o procedimento sugerido por Tomich é
mais importante do que o próprio conceito de segunda escravidão, pois
aponta para formas alternativas de se pensar, também, outros períodos e
espaços da história da escravidão nas Américas.
Um enquadramento que não transforme um traço específico
da realidade social em motor absoluto da História, seja ele a mentali-
dade supostamente arcaica de senhores de escravos no Brasil nem as
relações de produção específicas de um determinado espaço, permite
um rico diálogo com todo o conhecimento acumulado por décadas de
produção historiográfica. Ao evitarmos a enrijecida dicotomia entre
processos internos e externos, tal como sugeria Trouillot, podemos
começar a explorar a fundo, por exemplo, como os mecanismos de
endividamento, que estruturaram e combinaram diferentes formas de
produção na América Portuguesa, tiveram importância para a trajetória
histórica do capitalismo mundial. Definir o capitalismo ou sua ausência
a partir das relações de produção ou reprodução (reciprocidade, redis-
tribuição ou toma-lá-dá-cá impessoal) de uma sociedade, geralmente
concebida como uma unidade isolada e fechada em si mesma, é contar
apenas parte da história.

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73
COMENTÁRIO
ESCRAVIDÃO HISTÓRICA E CAPITALISMO
HISTÓRICO: NOTAS PARA UM DEBATE

Rafael Marquese

Os três autores engajados no debate desta sessão do livro, mui-


tos dos que contribuem para este volume e outros que não estão direta-
mente envolvidos na atual empreitada, mas que aqui se fazem presentes
por meio de referências bibliográficas e de um passado de discussão con-
junta, partilham dois dos pressupostos que informaram a proposição do
conceito da segunda escravidão: por um lado, a adoção de uma perspec-
tiva teórica fundada em um historicismo realista e materialista (Morera,
1990); por outro, a atenção constante aos riscos da compartimentação
dos estudos históricos (Sewell Jr., 2005). Como bem ressalta Leonardo
Marques, a preocupação de todos nós recai sobre os “grandes processos”,
ainda que alguns procurem acessá-los por meio de recortes microanalí-
ticos. Dentro desse campo comum, contudo, há divergências, e são elas
que nos motivam a seguir adiante.
A principal discordância entre os dois ensaios que comento está
na questão da unidade de análise. Ricardo Salles propõe um recorte ex-
plicitamente nacional ao apresentar uma defesa vigorosa – por meio do
conceito gramsciano de bloco histórico – da importância de se tomar o
Estado nacional (ou melhor, as relações sociais de produção que se arti-
culam em espaços políticos historicamente determinados) como tal uni-
dade. Enquanto Salles afirma a primazia analítica dos “blocos históricos
específicos e particulares” conceituados a partir de suas especificidades
nacionais, Marques ressalta que “uma incorporação do conceito de se-
gunda escravidão nesses termos acaba por excluir o que considero um
de seus elementos mais importantes, evidentemente herdado da aborda-
gem de sistemas-mundo, qual seja: a compreensão do capitalismo como
um sistema que transcende (mas não prescinde de) fronteiras políticas
em sua combinação de múltiplas formas de trabalho”.
É daqui que parto. Vou usar as considerações historiográficas de
Leonardo Marques para comentar criticamente o ensaio de Ricardo Salles.

75
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

O primeiro fornece uma boa descrição da gênese do conceito e das pers-


pectivas teóricas e metodológicas que embasaram Dale Tomich quando
de sua formulação original, enquanto o segundo nos adverte com acui-
dade que, para compreender as trajetórias históricas particulares dos es-
paços da segunda escravidão, devemos necessariamente atentar para as
conformações sociais e políticas específicas dos Estados nacionais que os
constituíram. Não resta dúvidas de que a história, tal como a vivemos, se
dá dentro dos marcos nacionais. A situação trágica – escorregando aqui
e ali para a tragicomédia – que vivo agora, em fevereiro de 2019, deve-se
ao que se passa em meu Estado nacional. Mas, como também resta claro
nos dias que correm, as forças e os processos que a condicionam não são
somente nacionais. Seria assim no século XIX?
Há ainda outro plano de debate que os dois textos suscitam. Mar-
ques faz um ótimo diagnóstico dos hiatos contidos na proposta pioneira,
elencando o que ainda há por fazer. A perspectiva, nos diz ele, requer um
entendimento mais preciso do tempo que antecedeu a segunda escravidão
(1), bem como das forças que a aboliram (2), com explicações que sejam
capazes de articular as esferas econômicas, políticas e socioculturais (3).
Ricardo Salles responde em parte às demandas 2 e 3, ao tomar por cerne
de seu ensaio o exame dos Estados Unidos e sua brutal Guerra Civil. No
entanto, para enfrentá-las a contento, eis meu comentário, temos que nos
munir de uma teoria dos tempos históricos (na acepção que Reihart Kosel-
leck [2014, p. 277-293] lhe dá), e levar às últimas consequências a concei-
tuação da escravidão como uma instituição histórica, do capitalismo como
uma estrutura histórica, e das relações entre ambos como relações históricas
que se desenrolaram em ritmos espaço-temporais descontínuos. Como ar-
gumentei em outro lugar com outro colega que nos acompanha neste livro
(Marquese & Silva Jr., 2018), esta talvez seja a grande contribuição que nos
trouxe o trabalho fundacional de Dale Tomich.

***
Na demanda pela conceituação do que foi a primeira escravidão,
coloca-se a necessidade de uma mirada de longa duração. Surge aqui o
primeiro ponto de divergência com Ricardo Salles. Ele escora explicita-
mente sua apreensão do capitalismo na tradição teórica e historiográfica
a que pertencem Maurice Dobb, Robert Brenner, Robin Blackburn e mui-
tos outros, tradição esta que “vê na generalização das relações de tra-
balho assalariado o aspecto central e distintivo do capitalismo. (...) Esse

76
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

sistema não nasceu pronto. Foi fruto de um longo processo de transfor-


mações históricas, desencadeadas em determinadas regiões da Europa
Ocidental, a partir dos séculos XV e XVI, estendendo sua dominação em
escala planetária, principalmente pelo mundo atlântico”. O pressuposto
de que o capitalismo nasceu na Europa e depois se difundiu pelo globo é
explicitado na nota 14. Salles desconsidera, por conseguinte, o argumen-
to espacial contido na perspectiva do sistema-mundo, qual seja, o de que
o capitalismo não se formou primeiro na Europa e depois se expandiu
pelo mundo, mas de que ele teria se formado em seu próprio processo
de expansão espacial, isto é, na constituição de uma economia-mundo
(Wallerstein, 1974). Um exemplo simples: as transformações agrárias que
se verificaram na Inglaterra no “longo século XVI” (1450-1650) e que são
conceituadas pela tradição mencionada como resultantes exclusivas de
processos locais, isto é, da dinâmica das transformações econômicas, so-
ciais e políticas ocorridas dentro dos marcos territoriais ingleses, em rea-
lidade só podem ser entendidas em sua completude caso verifiquemos
as articulações mais amplas do campo inglês com os circuitos mercantis
da economia europeia (do Báltico ao Mediterrâneo), eles próprios em
processo de rápida reconfiguração resultante dos desdobramentos da
expansão ultramarina ibérica (Miskimin, 1984, p. 271-273).
O mais relevante neste ponto, contudo, não está nisso. Quando
propôs o conceito da segunda escravidão em 1988, Dale Tomich estava
promovendo um engajamento crítico com a própria teorização do sis-
tema-mundo avançada por Immanuel Wallerstein. Como esse eminente
sociólogo foi o maior e mais famoso divulgador da perspectiva do sistema-
-mundo, porém não seu praticante exclusivo, tornou-se moeda corrente
na literatura sociológica e historiográfica a confusão entre uma coisa e
outra. A crítica de Tomich à teorização de Wallerstein dá o sentido de
um notável ensaio de 1997, no qual efetua uma avaliação precisa das
“abstrações violentas” – a expressão é de Derek Sayer (1987) – do debate
Brenner x Wallerstein, posteriormente replicado no debate de menor vol-
tagem Stern x Wallerstein (Brenner, 1977; Wallerstein, 1980; Stern, 1988;
Wallerstein, 1988). Essas discussões giraram em torno de oposições es-
tanques e binárias (produção x mercado, capitalista x pré-capitalista, tra-
balho assalariado x trabalho não-assalariado, estrutura x agência), “como
se cada um desses termos representasse uma realidade fechada, distinta
e permanentemente integrada”. Assim,
as interpretações do capitalismo oscilaram entre traba-
lho assalariado e mercado mundial como seu polo orga-
nizador. Os que identificavam o capitalismo com o tra-

77
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

balho assalariado viam a escravidão como uma relação


pré-capitalista ou não-capitalista; os que enfatizavam a
produção para o mercado mundial como o fundamento
comum do capital tratavam a escravidão como capitalis-
ta, mas eram incapazes de explicar a especificidade das
relações de produção escravistas (Tomich, 2011, p. 54).

A saída oferecida por Tomich, muito próxima à letra de Philip


McMichael (1991) criticada por Salles na nota 18 de seu ensaio, propõe a
elaboração teórica da produção como uma relação histórica substantiva,
que necessariamente pressupõe e inclui em sua conceituação a distri-
buição, a circulação e o consumo. Mercado mundial e divisão interna-
cional do trabalho deixam dessa forma de ser tratados como entidades
estanques e autônomas, sendo vistos antes como totalidades abertas em
relação de interdependência mútua permanente, “como momentos de
um processo contínuo de produção e reprodução social em escala mun-
dial”. Essa acepção permite evitar a rigidez e o esquematismo contidos
na teorização do sistema-mundo de Wallerstein, ao mesmo tempo em que
explora toda a potencialidade heurística da perspectiva do sistema-mun-
do. O desenho da economia-mundo que daí emerge não a entende como
a simples soma de suas partes ou como uma abstração que paira acima
delas e as sobredetermina,
mas como relações distintas entre formas sociais
particulares e processos de produção materiais,
integrados uns aos outros mediante modos defini-
tivos de troca e poder político – como uma totali-
dade estruturada e diferenciada que muda ao longo
do tempo. Inversamente, a totalidade das relações
como um todo define o trabalho. Formas específicas
de produção de mercadorias presumem relações de
troca e são constituídas através delas numa divisão
de trabalho distinta. Cada uma dessas formas de
trabalho está sujeita a determinações e mediações
múltiplas, complexas. (Tomich, 2011, p. 72-73)

A proposta permite dar conta da própria historicidade do traba-


lho assalariado. Em determinado momento, como o do longo século XIX,
ele foi de fato determinante na configuração da “totalidade estruturada”
da economia-mundo capitalista, no que McMichael (1991) chama de “re-
lação assalariada global”. Contudo, em momentos precedentes da dinâ-
mica da economia-mundo capitalista, não. Nessa leitura da perspectiva
do sistema-mundo, estamos longe da teorização mecânica – e anistórica,

78
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

pode-se dizer – que Immanuel Wallerstein dá para a divisão internacional


do trabalho no arco de tempo do século XVI ao século XX.
Procede, portanto, a assertiva de Leonardo Marques de que a
perspectiva que embasou a proposta original da segunda escravidão
guarda mais relevância do que a marcação espaço-temporal imediata do
conceito em si (a escravidão do século XIX no Brasil, em Cuba e nos Esta-
dos Unidos), na medida em que ela – a perspectiva – nos dá ferramentas
para se reexaminar outros períodos e regiões da escravidão do Novo
Mundo. O próprio pressuposto de que a escravidão que antecedeu o
século XIX teria sido marcada por uma tessitura temporal única, o tempo
da primeira escravidão, pode ser questionado com base no quadro ana-
lítico que Tomich propõe. Foi o que fiz em um trabalho que desenvolvi
em parceria com Tâmis Parron e Márcia Berbel, no qual equacionamos
as assimetrias da escravidão colonial (portuguesa, espanhola, holandesa,
inglesa e francesa) a partir da chave de uma teoria dos tempos históri-
cos plurais, próxima à que informou Tomich na elaboração do conceito
da segunda escravidão. O tempo da primeira escravidão teria sido em
realidade cortado por duas estruturas temporais de longa duração, a do
sistema atlântico ibérico e a do sistema atlântico do noroeste europeu,
cada qual formada como parte dos momentos particulares da economia-
-mundo capitalista europeia (os dois primeiros ciclos sistêmicos de acu-
mulação identificados e analisados por Giovanni Arrighi [1996]). Essas es-
truturas temporais coexistiram no longo século XVIII como dois tempos
distintos, porém unificados e mutuamente formativos – no que Koselleck
(2006) descreve como a “contemporaneidade do não-contemporâneo”
(Marquese; Parron; Berbel, 2016). Como bem lembra Leonardo Marques,
até agora foi nula a contribuição da historiografia sobre a escravidão bra-
sileira para o debate corrente sobre a “Grande Divergência”. Tal enqua-
dramento sobre os múltiplos estratos de tempo do colonialismo europeu
nas Américas, caso ele consiga reabrir sob novas lentes a discussão sobre
as relações entre a economia do ouro da América portuguesa e as trans-
formações da economia-mundo capitalista no longo XVIII, poderá vir a
nos ajudar nessa empreitada.

***
Em seu ensaio de 1988, um dos alvos de Tomich foi o de explicitar
os limites das narrativas que tomaram o período de 1787 a 1888 como
o “século da emancipação”. Sob o manto de uma aparente continuidade

79
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

(espaços escravistas coloniais e nacionais caindo um a um, tal como em


um efeito dominó gerado a partir das ações pioneiras do abolicionismo
anglo-saxão), o que se deu na verdade foi uma profunda descontinuida-
de, com a cisão das trajetórias dos espaços escravistas antigos e novos
ocorrida a partir da reconfiguração das relações de cada qual com a eco-
nomia-mundo capitalista (Tomich, 2011, p. 81-97). Foi esse argumento
simples, porém poderoso, elegante e convincente que nos trouxe até
aqui. No entanto, permanece o fato básico de que, se adotarmos uma mi-
rada de longuíssima duração a respeito da milenar instituição escravista,
o século XIX acabou sendo, ao fim e ao cabo, o século da emancipação.
O abolicionismo pode se constituir como um ponto cego na perspectiva
da segunda escravidão. Não é sem razão que Leonardo Marques salienta
as dificuldades que Tomich demonstra, em um capítulo publicado em vo-
lume editado por mim e por Ricardo Salles, para aquilatar “a importância
do abolicionismo na transição da primeira para a segunda escravidão (...).
O grande desafio está em como integrar as esferas econômica, política
e sociocultural nas narrativas que construímos do processo de emergên-
cia e destruição da segunda escravidão”. É justamente esta questão que
Ricardo Salles procura enfrentar ao escolher como eixo de seu ensaio o
problema da Guerra Civil norte-americana, isto é, a abolição no Estado
nacional mais poderoso da segunda escravidão.
Antes de avançar nessa discussão, ressalto brevemente outra con-
cordância com Leonardo Marques e que incide diretamente sobre o as-
sunto agora em tela: a possibilidade de incorporar o argumento de David
Brion Davis (1975) sobre o caráter instituinte da ideologia do abolicionis-
mo britânico à análise da segunda escravidão. Em um resumo do que es-
creve Davis, a ideologia antiescravista, parte de uma ideologia humanitá-
ria mais ampla, teria sido uma força decisiva na construção da hegemonia
social e política das middle classes britânicas na passagem do século XVIII
para o XIX. A ideologia antiescravista, ao diferenciar as várias formas de
miséria humana e definir a escravidão como uma aberração moral única,
dando assim uma resposta altamente seletiva às formas de exploração
humana, tendeu a sancionar a ordem capitalista industrial emergente por
meio de um redimensionamento das atitudes perante o trabalho, a dis-
ciplina e a liberdade. O combate à escravidão colonial e a imposição da
ordem social e política em um mundo metropolitano virado de cabeça
para baixo pela “Dupla Revolução” (a Industrial e a Francesa) constituí-
ram, portanto, duas faces da mesma moeda. Ainda que lide com o perío-
do anterior a 1787, a interpretação de Christopher Leslie Brown (2005)
sobre as origens do movimento abolicionista britânico é compatível com

80
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

o modelo de Brion Davis. O mesmo vale para o argumento de Howard


Temperley (1980) sobre o antiescravismo oitocentista britânico como um
“imperialismo cultural”. Ao examinar as ideias sobre a administração do
trabalho escravo nas Américas, suas continuidades e rupturas na passa-
gem da primeira para a segunda escravidão, indiquei como a teoria sobre
a gestão escravista elaborada no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos a
partir de 1830 respondeu diretamente aos fundamentos ideológicos do
abolicionismo, que buscavam legitimar a ordem do trabalho assalariado
industrial por meio de seu contraste com a ordem do trabalho escravo
(Marquese, 2004). O abolicionismo britânico foi uma força constitutiva
essencial da montagem e da reprodução da segunda escravidão, de seu
tempo histórico: ao desnaturalizar a instituição e inscrevê-la na história,
convertendo-a em um obstáculo ao progresso humano, o discurso e a
política abolicionistas forçaram o campo escravista a atuar politicamente
a cada passo para defendê-la de forma orgânica e, dessa forma, garantir a
continuidade da exploração de seus escravos (Parron, 2015, p. 201-209).
Ricardo Salles nos mostra como tudo isso esteve em jogo na
Guerra Civil. Como indicativo da necessidade de se revisitar o evento
à luz da retomada historiográfica norte-americana recente do binômio
capitalismo & escravidão, ele efetua uma resenha excelente de um livro
editado, em 2016, por Sven Beckert e Seth Rockman. Com efeito, a de-
liberada recusa de seus colaboradores em enfrentar questões teóricas
de fundo é um claro índice de como a redução da segunda escravidão a
uma mera delimitação espaço-temporal (segunda escravidão = século
XIX), que reitera o enunciado de que ela foi moderna e economicamente
racional (escravidão = capitalismo), não nos levará muito longe. Subs-
crevo todas as críticas de Salles a esse livro, com exceção da seguinte
passagem: “A maior parte dos capitais sulistas estava empatada em es-
cravos, fato que Beckert e Rockman veem como sinal de potência. Isso,
entretanto, era indicativo, na verdade, de uma debilidade, uma vez que
esses capitais não tinham flexibilidade para se deslocarem para áreas
de investimento que, porventura, se mostrassem mais lucrativas”. Minha
discordância nesse passo pode eventualmente reforçar o argumento de
Salles. Gavin Wright (1978; 2006) mostrou que grande parte da atrativi-
dade dos investimentos em escravos na economia norte-americana do
século XIX residia justamente em sua flexibilidade espacial, vale dizer, no
que os direitos de propriedade em seres humanos permitiam em termos
de deslocamento compulsório de trabalhadores para regiões agrícolas de
fronteira, mais produtivas, porém distantes dos demais núcleos popula-
cionais. O problema residia em outra esfera, na disjunção entre micro e

81
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

macroeconomia da escravidão. No plano microeconômico, a escravidão


era eficiente. No plano macroeconômico, comparando-se Norte livre ver-
sus Sul escravo, não era, o que certamente nos ajuda a entender melhor,
e nos termos de Salles, o resultado de 1865.
Malgrado os esforços de alguns dos colaboradores de Slavery’s
Capitalism em argumentar em contrário, Norte e Sul representavam, de
fato, dois mundos profundamente distintos e antagônicos na década de
1850. Isto, contudo, nem sempre foi assim. A pequena propriedade que
Ricardo Salles toma como “uma das condições do desenvolvimento capi-
talista do Norte” teve, ela própria, uma história. A pequena propriedade
da Nova Inglaterra e das chamadas “Colônias do Meio” no século XVIII
não era a mesma que a do Meio-Oeste em 1850. A ideologia do solo livre
que impulsionou o Partido Republicano naqueles anos que antecederam
a Guerra Civil se escorava em uma leitura que glorificava o mundo da
pequena propriedade colonial e das décadas iniciais da República dos
Estados Unidos da América, cada vez mais distante das realidades da
expansão do trabalho assalariado no Norte. A ideologia do trabalho livre
não era a do trabalho assalariado, dentre outras razões pela concepção
de que um trabalhador assalariado, enquanto dependesse de outrem
(seu patrão), jamais seria inteiramente livre (Foner, 1970). O que Quentin
Skinner (1999) denominou como a “teoria neo-romana de liberdade”,
ainda que continuasse a ser empregada em meados do século XIX, estava
prestes a desaparecer com os resultados da Guerra Civil e, sobretudo,
com a mutação de fundo na própria reconceituação da natureza do tra-
balho assalariado. Não tenho como lidar com toda complexidade dessa
transformação neste comentário, cabendo-me tão somente sugerir que
a cristalização do trabalho assalariado como trabalho livre – e não mais
como trabalho dependente – representou o ponto de chegada, a vitória fi-
nal do projeto hegemônico do abolicionismo surgido no momento do ar-
ranque da Revolução Industrial. É assim que leio o livro de Robert Stein-
feld (2001): o fato de ter sido a resistência dos trabalhadores ao longo
do século XIX que levou ao desaparecimento da coerção extraeconômica
legal nas relações entre patrões/assalariados acabou por reforçar o poder
ideológico do antiescravismo e, portanto, seu papel instituinte na natu-
ralização e universalização do trabalho assalariado como trabalho livre.
E, no plano material, esses dois processos de naturalizar e universalizar
uma dada ideologia estiveram diretamente ligados a um outro arranque
da economia-mundo capitalista: o da “Era do Capital” e da Segunda Re-
volução Industrial (Hobsbawm, 2000; Hobsbawm, 1988).

82
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

A explicação que Ricardo Salles adota em seu ensaio para enten-


der as múltiplas contradições econômicas, sociais e políticas entre Sul e
Norte é coerente e convincente, mas ela deixa de lado o problema das
origens globais da Guerra Civil norte-americana, bem como as relações
de seus resultados com as origens da crise da escravidão no Brasil.1 Atual-
mente, como sequência de uma tese de doutorado sobre a política inter-
nacional da segunda escravidão, mas cuja análise se encerrou em 1846
(Parron, 2015), Tâmis Parron tem investigado como as transformações na
economia-mundo e no sistema interestatal das décadas de 1840 e 1850
são decisivas para compreender a eclosão do conflito militar norte-ame-
ricano em 1861. Esse trabalho foi antecipado por um ensaio que escrevi
com ele, alguns anos atrás, no qual lançamos um sistema de hipóteses
que poderá – ou não – vir a ser confirmado pela pesquisa em desenvol-
vimento. Uma de nossas conclusões provisórias foi a de que o imperia-
lismo sulista na década de 1850, uma das forças decisivas que levaram
à Guerra Civil, teria sido uma resposta direta à natureza crescentemente
subordinada do Sul algodoeiro dentro da divisão internacional do traba-
lho da economia-mundo capitalista industrial (Marquese & Parron, 2011).
A nota 18 do capítulo de Salles explicita a divergência teórica e
de interpretação. O silêncio de Salles sobre a diferenciação entre unidade
de análise e unidade de observação, que Philip McMichael (1991) toma
como seu ponto de partida metodológico, indica uma clara rejeição do
que constitui o cerne da perspectiva do sistema-mundo. Nesse artigo que
recebeu a ressalva de Salles, McMichael traz uma explicação para a gêne-
se da Guerra Civil dentro do escopo teórico e metodológico empregado
por Tomich quando da elaboração do conceito da segunda escravidão.
Daí meu desacordo com a assertiva de que “as classes senhoriais escra-
vistas da segunda escravidão (...) não (...) podem ser subsumidas a uma
lógica capitalista global”. Os senhores de escravos algodoeiros do Sul
dos Estados Unidos o foram na sua gênese e no seu ocaso. A demanda
algodoeira que propiciou a notável expansão da escravidão sulista – e,
portanto, a construção da classe senhorial sulista do século XIX – foi uma
decorrência direta do empuxo criado pela primeira Revolução Industrial;
foi a subsunção dessa classe à lógica capitalista global que gerou, em
meados do século XIX, as contradições que a levaram ao rompimento
com os Estados Unidos da América, à fundação de um novo Estado escra-

1 Esse segundo tema, a bem da verdade, foi abordado em trabalhos anteriores do autor (Salles,
1996, p. 158-167; Salles, 2008, p. 79-110), que muito me inspiraram em outro artigo (Marque-
se, 2015).

83
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

vista (os Estados Confederados da América), à Guerra Civil e à sua própria


destruição como classe.

***
Seja como for, concordo que a Guerra Civil representou um pon-
to de inflexão nas relações entre capitalismo e escravidão. Minhas ob-
servações finais talvez possam nos ajudar a dar um passo adiante na
compreensão das naturezas distintas das crises da primeira e da segunda
escravidão, incorporando assim a dimensão do abolicionismo que nos
cobram Leonardo Marques e Ricardo Salles, porém nos termos da leitura
que Tomich e McMichael fazem da perspectiva do sistema-mundo.
Eis um desenho muito sumário e simplificado dessa formulação al-
ternativa, diretamente inspirada pela recente tese de doutorado de Alain
El Youssef (2018). A primeira era da abolição foi marcada pelos seguintes
eventos: emancipação gradual, via interrupção do tráfico transatlântico e
leis de ventre livre, nas unidades federativas do norte dos Estados Unidos
(1787-c.1830); abolição francesa, em 1794, em resposta à Revolução de
Saint-Domingue (1791); independência do Haiti, em 1804, em resposta à
reinstituição da escravidão no Império francês (1802); abolição britânica
do tráfico transatlântico (1807) e da escravidão (1833-38); abolições nas
novas repúblicas da antiga América espanhola (1810-c.1830), com a repli-
cação das medidas tomadas, antes, no norte dos Estados Unidos. A nova
abolição francesa, em 1848, e a holandesa, em 1862, atingiu sistemas
escravistas residuais que pertenciam ao tempo histórico do longo século
XVIII. A cadeia de eventos desse primeiro ciclo de abolições fez parte da
crise geral do sistema atlântico do noroeste europeu, que se abriu com
os resultados da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Ora, para muitos
historiadores a vitória esmagadora da Grã-Bretanha nesse conflito global
marcou o início do longo século XIX britânico, que traria a imposição em
escala global de seu poder econômico e militar, com o início da virada
imperial para o Oceano Índico, em meio ao processo de profunda trans-
formação de seu tecido econômico e social decorrente da primeira Re-
volução Industrial. O que estou sugerindo, em resumo, é que a primeira
era da abolição foi travejada por uma crise particular nas relações entre
capitalismo histórico – que passava por mutações de fundo, geradas pelo
arranque do ciclo britânico de acumulação (Arrighi, 1996) – e escravidão
histórica – a do sistema atlântico do noroeste europeu. O que emergiu
dessa crise foi a estrutura histórica da segunda escravidão, que teve por

84
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

pressuposto a existência de uma economia-mundo industrial, a que foi


criada pela primeira Revolução Industrial, articulada em torno de uma
nova relação assalariada global.
A Guerra Civil norte-americana representou o ponto de inflexão
na história da segunda escravidão, ao acabar com o mais poderoso sis-
tema escravista do hemisfério e criar as condições para que se iniciasse
a cadeia de eventos: crise da escravidão em Cuba e no Brasil (leis de
ventre livre em 1870 e 1871; abolição em Porto Rico, em 1873; patronato
em Cuba, em 1880; abolição em Cuba, em 1886; abolição no Brasil, em
1888). Modificações de fundo estavam ocorrendo novamente no capita-
lismo histórico, com a abertura de um notável ciclo de expansão mate-
rial a partir de meados do século XIX: a integração global de commodi-
ties promovida pelo livre-cambismo britânico; a incorporação definitiva,
como espaço periférico, do subcontinente indiano à economia-mundo
capitalista; a igual periferização da África; a abertura, pela força do ópio
e das canhoneiras, do imenso mercado chinês; a anulação do espaço pelo
tempo com a construção de vastas redes ferroviárias e telegráficas, e o
domínio dos navios a vapor sobre os mares; as modificações na base
industrial dos países centrais com as conquistas científicas e tecnológi-
cas da segunda Revolução Industrial; o deslanche das grandes migrações
globais, da Europa para as neo-Europas (Canadá, Estados Unidos, Argen-
tina, Austrália), da Ásia para a África e as Américas; o surgimento de uma
nova forma de poder estatal, o chamado “Leviatã 2.0”; e a consolidação
ideológica e normativa do trabalho assalariado como trabalho livre. Se
a Guerra Civil de 1861-1865 foi gestada dentro do tempo específico da
política norte-americana, ela não tem como ser dissociada, em suas cau-
sas e em seus efeitos, desse conjunto de transformações ocorridas no
tempo da economia-mundo capitalista. Não por acaso, Giovanni Arrighi
considera que o resultado da Guerra Civil inaugurou o ciclo norte-ame-
ricano de acumulação. Em resumo, outra vez: a segunda era da abolição
foi travejada por uma nova crise nas relações entre capitalismo histórico
(arranque da segunda Revolução Industrial, globalização da segunda me-
tade do século XIX, início do longo século XX) e escravidão histórica (a
segunda escravidão).
O primeiro abolicionismo – que se voltou contra a escravidão co-
lonial no Caribe, prosseguiu no combate sem quartel ao tráfico negreiro
transatlântico de Portugal/Brasil e Espanha/Cuba, e tomou a África como
campo de prova para a superioridade do trabalho livre e como zona
de ação imperial – foi distinto do segundo abolicionismo, que operou
dentro dos espaços políticos dos Estados nacionais nascidos na Era das

85
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Revoluções. Esses dois abolicionismos, cujas maiores expressões foram


respectivamente dadas pela experiência inglesa e pela experiência norte-
-americana, além de distintos na estratégia e na composição de sua mili-
tância, não surgiram ao mesmo tempo, mas passaram a coexistir a partir
da década de 1840. O outro movimento de massas do mundo atlântico
pertencente ao segundo abolicionismo, o brasileiro, que finalmente deu
as caras no final da década de 1870, incorporou as experiências prévias
dos abolicionismos inglês e norte-americano. O que tudo isso nos revela
sobre a segunda escravidão? Nessa sobreposição de diferentes tempos
em um mesmo tempo que se condensa, temos um bom exemplo do que
Reinhart Koselleck (2014, p. 307) argumenta a respeito da aceleração do
tempo histórico da modernidade, isto é, o fato de as estruturas históri-
cas serem de duração cada vez mais curta. A instituição escravista, ao
contrário do que dá a entender a nota 13 do ensaio de Ricardo Salles, é
uma expressão cristalina da “contemporaneidade do não-contemporâ-
neo”: a escravidão do século XIX conteve, no seu próprio tempo, vários
tempos assimétricos, o que fez a escravidão nos Estados Unidos ser, si-
multaneamente, parte do que foi a escravidão no Brasil (a segunda escra-
vidão) e profundamente distinta dela (por pertencerem, ambas, a “blocos
históricos específicos e particulares”).
A leitura de Ricardo Salles chama uma atenção, mais do que ne-
cessária, para as especificidades das formações históricas nacionais. Ela
reconhece que escravidão e capitalismo foram fenômenos transnacio-
nais, afirmando que a unificação daquelas formações em uma estrutura
histórica específica (a da segunda escravidão) se deveu “a uma mesma
morfologia nas relações de produção comum aos distintos blocos histó-
ricos escravistas no século XIX. Apesar de reconhecer a importância das
conexões econômicas e políticas empíricas entre esses blocos, (a pers-
pectiva aqui defendida) não as considera essenciais na definição dessa
estrutura histórica”. A passagem, que encerra o ensaio de Salles, põe a
nu seu método formal de comparação: é em razão de sua forma comum
– e não de suas conexões – que Brasil e Estados Unidos são compreendi-
dos como partes de uma mesma estrutura histórica. A proposta original
da segunda escravidão, no entanto, fundou-se em uma rejeição explícita
de tal método. São as relações substantivas que Brasil e Estados Unidos
mantiveram entre si por meio da economia-mundo capitalista que per-
mitem a conceituação de cada qual como partes de uma mesma estru-
tura histórica. Relações substantivas somente são cognoscíveis por meio
de comparações substantivas. Conferir primazia analítica ao conceito de
bloco histórico pode nos trazer de volta às dualidades integradas e, por

86
Escravidão histórica e capitalismo histórico: notas para um debate

conseguinte, ao abandono da distinção decisiva entre unidade de análise


e unidade de observação, a mesma que permitiu tal inovação no método
comparativo. A seguir este caminho, há o perigo real de nos restar ape-
nas um conceito-muleta para escrevermos a história da escravidão no
Brasil e nos Estados Unidos em bases estritamente nacionais, sem obser-
var como essas trajetórias particulares se condicionaram em um jogo de
determinações recíprocas.
Termino como Leonardo Marques terminou: debates como este
podem sempre descambar para não-debates. A saída que vejo está em
investirmos coletivamente em uma teoria dos tempos históricos para
a escravidão moderna. O “tempo do mundo”, na expressão de Braudel
(1996, v.3), conteve em si o tempo de blocos históricos específicos e
particulares. Esses tempos se formaram mutuamente, mas em ritmos
próprios, articulados porém descontínuos. O capitalismo foi histórico, a
escravidão foi histórica, as relações entre capitalismo e escravidão foram
históricas. Se ainda há muito o que fazer em torno dessa agenda, recor-
rer a diferentes miradas só nos ajudará na tarefa que nos cabe. É por isso
que, enfim, subscrevo integralmente as considerações de Ricardo Salles
sobre as relações entre teoria e historiografia.

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89
PARTE II
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E DIVERSIDADE
ECONÔMICA E REGIONAL
RAÍZES ESCRAVAS DA INDÚSTRIA NO BRASIL

Luiz Fernando Saraiva


Rita Almico

Passagens de uma economia colonial para economias


mercantis escravistas regionais
A economia brasileira passou por grande crescimento e diver-
sificação ao longo do século XIX. Fruto das mudanças da economia co-
lonial ao final do século XVIII, cujo modelo de funcionamento irá até as
primeiras décadas do século XX, essa diversificação, assistida em várias
regiões, ocorreu em locais onde existiam complexos agroexportadores
predominantemente escravistas de produtos variados. Isso envolvia todos
os elos da economia agroexportadora regional (produção, comércio, fi-
nanciamento, urbanização e desdobramentos). Tais transformações es-
tão diretamente ligadas ao conjunto de mudanças que a economia mun-
dial atravessou neste período – notadamente a expansão de um mercado
mundial de contornos cada vez mais capitalistas. Internamente, nossa
economia se defrontou com um contexto muito próprio e peculiar, com
encaminhamentos que possuíam grandes significados para os períodos
subsequentes.
De maneira ainda não completamente consensual entre os his-
toriadores econômicos, tais mudanças irão, contraditoriamente, reforçar
as opções escravistas e mercantis dos grupos que irão liderar, do ponto
de vista econômico e político, o processo de Independência e a constru-
ção do Estado brasileiro (Mattos, 1994; Costa, 1996; Da Costa, 1998). O
regime escravista irá assistir a um incremento significativo no volume de
importação de escravos e, não obstante a contraditória política inglesa
de combate ao tráfico, o resultado será o aumento dramático na entrada
de cativos, o que ensejou que, recentemente, alguns historiadores enxer-
gassem esse período como uma segunda escravidão (Muaze; Salles, 2015).
Entendemos que o conceito de segunda escravidão visa superar, do
ponto de vista teórico e metodológico, um amplo debate que opõe algu-

93
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

mas ideias centrais da nossa historiografia. Em primeiro lugar, a dicotomia


entre um sistema colonial – marcado por uma exploração mercantil sis-
temática dos recursos locais – e uma negação da natureza predatória da
política mercantil lusitana que, justamente, ao se apoiar no caráter agrá-
rio-mercantil de um império pluricontinental, ensejou grande crescimento
das áreas adjacentes (ou periféricas) desse mesmo império. Essa primeira
visão (a do sistema colonial) tem ainda amplo consenso dentro das Ciên-
cias Sociais, assumindo o papel de principal vertente explicativa de nosso
atraso estrutural. Seus autores de maior projeção, como já é sobejamente
conhecido, foram Caio Prado Júnior e Celso Furtado, que, nas décadas de
1940 e 1950, escreveram grandes ensaios interpretativos que serviram de
base teórica para as formulações industrializantes e nacionalistas exaradas
dos estudos cepalinos (Prado Júnior, 1948; Furtado, 1963).1
Uma segunda visão foi sintetizada nas últimas duas décadas a
partir dos estudos de João Luís Ribeiro Fragoso e Manolo Florentino.
Apesar da originalidade da pesquisa empírica, esses estudos operaram a
partir de dados e pesquisas anteriores, que já apontavam rachaduras no
modelo explicativo proposto.2 Embora articulassem uma interpretação
global, esta ainda é marcada pelo signo do atraso ou do arcaísmo acerca
dos limites da sociedade e da economia luso-americanas, a partir do sé-
culo XVIII, e as consequências para o nosso desenvolvimento subsequen-
te (Fragoso; Florentino, 1996; Fragoso, 2002).
Outra controvérsia em relação à inserção do Brasil nos quadros
gerais de uma economia-mundo coloca a natureza da dinâmica econômi-
ca, para o crítico, num período que vai, pelo menos, de 1780 até 1808.
Nesse sentido, temos no mínimo três visões. A que podemos considerar
novamente clássica, a partir da obra de Celso Furtado, que entende esse
período como caracterizado por uma grave crise econômica, dada pela
concorrência crescente do açúcar antilhano, somada à decadente extra-
ção aurífera e à ausência de um produto forte, como será o café ao longo
do século XIX. Se, do ponto de vista empírico, a concepção de crise do
sistema colonial, como proposta por Furtado, já foi diversas vezes posta
em xeque, a importância do livro Brasil e Portugal na crise do antigo sistema
colonial, de 1978, de Fernando Novais, foi relativizar o conceito de crise,
relacionando-o ao processo de independência política do país Novais,
1983).

1 Sobre o alcance dessas ideias na definição dos modelos explicativos brasileiros, cf. Bielscho-
wky (1995).
2 Notadamente aquelas feitas pelos autores que propuseram o modo de produção escravista
colonial.

94
Raízes escravas da indústria no Brasil

Dentro desse viés, uma segunda visão entende como destaques


desse período o crescimento e a expansão das atividades. Tem suas ori-
gens em um clássico mais antigo ainda: a obra História Econômica do Brasil,
de Roberto Simonsen, de 1937. Esse entendimento também pode ser
encontrado no conceito de renascimento agrícola, de Caio Prado Júnior,
publicado em seu Formação econômica do Brasil contemporâneo, além dos
estudos feitos, a partir de 1972, de Jobson Arruda – todos apoiados em
dados empíricos que demonstram o espetacular crescimento e diversi-
ficação das exportações coloniais em consonância com o aumento da
importação de escravos.
Tal crescimento econômico estaria ligado predominantemente
às atividades de um mercado externo que, inclusive, se articulava auto-
nomamente com o continente africano na aquisição da mão de obra es-
crava. Embora esses estudos exerçam grande ressonância nas pesquisas
contemporâneas sobre o tema, certa indefinição conceitual dificulta uma
formulação clara, permitindo diversas interpretações, como o capitalis-
mo comercial e, ainda, a ideia de antigo e novo sistema colonial (Prado
Júnior, 1948; Lapa, 1973, 1982; Arruda, 1980, 2008; Simonsen, 1937).
A esses estudos, que mostram uma conjuntura de crescimento
da economia do Brasil nesse período, agregam-se outros que ressalta-
ram a importância de uma maior autonomia do mercado interno frente
às demandas externas. Dentre esses, está o artigo de Amílcar Martins
Filho e Roberto Borges Martins, publicado em 1983, sobre o título de
Slavery in a non-export economy: nineteenth-century Minas Gerais revisited
(Martins Filho; Martins, 1983, p. 537-590; Martins, 2002). A ideia cen-
tral dos autores questionava a suposta decadência de Minas Gerais a
partir da crise e declínio da mineração aurífera. Embora outros estudos
sobre as dinâmicas internas já existissem há tempos (como os de José
Amaral Lapa), a questão central proposta pelos irmãos Martins, e que
será ampliada pelos autores do arcaísmo como projeto e parte signifi-
cativa da historiografia mineira, será a ideia do predomínio de ativida-
des de subsistência e abastecimento sobre os mercados externos como
importante vetor explicativo do crescimento da economia nacional ao
longo do XIX.
Por último, uma terceira visão começa a ser construída, derivada
dos diversos estudos de que a segunda escravidão tem se utilizado. Parte
da compreensão da economia brasileira ao longo do século XIX, marcada
por uma maior complementaridade e integração ao mercado mundial via
escravidão. Essa discussão nos interessa mais amiúde como objetivo do
presente texto, e passamos a detalhá-la um pouco mais.

95
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Se o conceito de segunda escravidão pretende lançar bases para


superar esses vários modelos interpretativos, convém historicizar, ao me-
nos sumariamente, o seu surgimento, sua rápida expansão pelos meios
acadêmicos nacionais e internacionais, e tentar esboçar alguns dos limi-
tes que oferece à compreensão da diversidade econômica e social do país
ao longo do XIX. Publicado inicialmente em um artigo de Dale Tomich
em 1988, a ideia central de que a escravidão na América (e não somente
no Brasil) tinha estreita relação com a expansão da economia capitalista
via Revolução Industrial e generalização do consumo de produtos tropi-
cais pelos europeus ganhou espaço entre os estudiosos da área (Tomich,
1988, p. 103-117).
De certa forma, essa leitura atualizava o clássico trabalho de Eric
Williams, Escravidão e capitalismo, de 1944, ao relacionar a expansão do
capitalismo aos sistemas escravistas da América, não só na acumulação
primitiva de capital, mas, também e principalmente, ao aumentar drasti-
camente a oferta de produtos de consumo de massa, notadamente o al-
godão, no Sul dos Estados Unidos, o açúcar, em Cuba, e o café, no Brasil.
Outra questão levantada pelo estudo de Dale Tomich foi encontrar uma
explicação mais coerente para o aumento no tráfico de escravos verificado
no final do século XVIII e primeira metade do XIX, em pleno processo
de formação dos Estados nacionais, primeiro nos EUA, posteriormente
na América Latina, e ainda a manutenção de Cuba no universo colonial
espanhol.
Tal conceito ganhou numerosos adeptos em várias partes da
América e, entre os autores mais importantes no país, podemos citar o
estudo de Rafael Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente, que
demonstra as mudanças nos discursos que pretendiam regular as rela-
ções entre senhores e escravos na América, passando de discursos de
forte caráter moralizador e religiosos até meados do século XVIII para
discursos mais pragmáticos e racionais no início do período da segunda
escravidão.
Outro estudo é o de Ricardo Salles, E o vale era o escravo - Vassou-
ras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império, que, ao analisar o
funcionamento das principais fazendas de café de um dos maiores muni-
cípios escravistas do país, conseguiu demonstrar a lógica na utilização do
trabalho escravo e os limites impostos pela pressão antitráfico, depois
pelo abolicionismo e, ainda, pela agência escrava, ou seja, o compor-
tamento da escravaria e o impacto na produção de café do Vale do Rio
Paraíba do Sul. Outros estudos tentaram abordar os movimentos abo-
licionistas internacionais, as suas relações com a realidade brasileira e

96
Raízes escravas da indústria no Brasil

mesmo os seus desdobramentos políticos (Marquese, 2004; Salles, 2008;


Parron, 2011).
O fato é que a renovação historiográfica provocada a partir do
conceito de segunda escravidão teve sua origem em diversos estudos
de historiadores brasileiros, norte-americanos e antilhanos das décadas
anteriores, que problematizaram questões incorporadas aos estudos de
Dale Tomich e os demais. Pretendemos demonstrar até que ponto a his-
toriografia brasileira contribuiu com suas análises e dados para algumas
das principais teses defendidas pela segunda escravidão, e de que forma
estas discussões podem permitir o avanço nos estudos sobre a economia
brasileira ao longo do século XIX.

As economias mercantis escravistas regionais e a segunda


escravidão
Desde o início do século XIX, juntamente com o processo de
Independência e a construção do Estado brasileiro, começaram as discus-
sões sobre a escravidão, o fim do tráfico e a necessidade de modificar a
matriz da mão de obra no país. Se, de um lado, a manutenção do trabalho
cativo era uma das poucas moedas coloniais, na feliz expressão de Ilmar
Mattos, capaz de unir os diversos setores dominantes das fragmentadas
colônias portuguesas na América, por outro, a crescente pressão inglesa,
em conjunto com os ideais iluministas, como os de nação e povo, questio-
navam a perenidade do sistema escravista (Mattos, 1994).
Exemplar, nesse sentido, foi a postura de diversos personagens
da nossa Independência, que, em tese, eram favoráveis ao fim do tráfico
de escravos e ao encaminhamento da Questão Servil. Porém, na práti-
ca, renunciaram a essas intenções na medida em que a manutenção da
escravidão se colocou como uma das principais exigências dos setores
dominantes das diversas capitanias, depois províncias. Tal foi a posição
de José Bonifácio de Andrada, ou ainda do político e nobre mineiro João
Severiano Maciel da Costa (Visconde com Grandeza e Marquês de Que-
luz), somente para ficarmos com dois personagens mais conhecidos e já
trabalhados por diversos autores, entre eles Emília Viotti (1998), Paula
Beiguelman (1967) e Alfredo Bosi (1992), que reforçam a ideia de um pac-
to pela escravidão, e toda a articulação política daí resultante.3

3 Sobre João Severiano Maciel da Costa, ver a sua própria publicação, em Portugal, em 1821:
Memórias sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, sobre o modo e
as condições com que esta abolição se deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela

97
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Paralela a essas questões, a expansão de diversas atividades eco-


nômicas em fins do século XVIII e início do XIX provocou grande recru-
descimento no tráfico de escravos, já notada por diversos autores. Na
tabela 1, podemos perceber que, desde a década de 1780 até 1850, com
a proibição definitiva do tráfico, cerca de 2 milhões de escravos foram
introduzidos no Brasil, ou cerca de 50% do total dos 4 milhões transpor-
tados para cá desde 1550. Isso significa que, durante os 300 anos em que
perdurou o nefando comércio, metade dos cativos veio para o Brasil nos
últimos 70 anos da escravidão.
Tabela 1: Distribuição da importação dos escravos
para a América (1781–1855) aos milhares

Caribe América
América
Anos Brasil do Norte
Espanhola
Britânico Francês Holandês Dinamarquês (EUA)
1781-1790 42,2 181,2 100,2 357,8 12,3 4,6 55,8
1791-1800 77,4 233,6 194,3 82,6 5,3 14,5 79
1801-1810 85,7 241,3 105,4 17 0 3,3 156,3
1811-1820 177,8 327,7 0 18,8 0 0 10
1821-1830 103,5 431,4 0,4 57,9 0,1 0 2
1831-1840 207 334,3 10,2 0,6 0 0 0
1841-1850 54,6 378,4 0 0 0 0 0
1851-1860 122 6,4 0 12,5 0 0 0,3
1861-1870 31,6 0 0 5,9 0 0 0
Totais 901,8 2.134,30 410,5 553,1 17,7 22,4 303,4

Fonte: KLEIN, Herbert S. O tráfico de escravos no Atlântico. Tradução e Revisão:


Francisco A. Moura Duarte et al. Ribeirão Preto, SP: Funpec, 2004. p. 210-211.

A maior parte desses escravos foi trazida para a Região Centro-


-Sul, particularmente para o Porto do Rio de Janeiro, e foi empregada, em
sua maioria, na cafeicultura, que rapidamente se alastrava pelo Vale do
Paraíba como a principal atividade econômica do novo país. Isto fez com
que a Região Centro-Sul concentrasse mais de 50% do total de cativos im-
portados da África para o período, como fica claro nos dados da Tabela 2.

pode ocasionar. Apesar de a obra defender claramente o fim do tráfico de escravos, seu autor
reconhecia que a medida não deveria ser tomada de imediato. A atuação política de João Se-
veriano – foi Deputado na Assembleia Nacional Constituinte em 1823, Ministro do Império e
um dos 10 conselheiros nomeados por D. Pedro I para redigir a Constituição de 1824, membro
ainda do Conselho de Estado, Ministro da Fazenda, Presidente da Província da Bahia e Senador
de 1826 até 1833 – não foi marcada pelo combate ao tráfico de escravos, nem mesmo pela
defesa de sua extinção, ficando sua posição muito mais no campo das ideias.

98
Raízes escravas da indústria no Brasil

Tabela 2: Distribuição da importação dos escravos por regiões no Brasil (1781 – 1855)
Norte da
Quinquênios Centro-Sul Bahia Totais % Centro-Sul
Bahia
1781-85 34.800 - 28.300 63.100 55,15
1786-90 44.800 20.300 32.700 97.800 45,8
1791-95 47.600 34.300 43.100 125.000 38,08
1796-00 45.100 36.200 27.400 108.700 41,49
1801-05 50.100 36.300 31.500 117.900 42,49
1806-10 58.300 39.100 26.100 123.500 47,2
1811-15 78.700 36.400 24.300 139.400 56,45
1816-20 95.700 34.300 58.300 188.300 50,82
1821-25 120.100 23.700 37.400 181.200 66,28
1826-30 176.100 47.900 26.200 250.200 70,38
1831-35 57.800 16.700 19.200 93.700 61,68
1836-40 202.800 15.800 22.000 240.600 84,28
1841-45 90.800 21.100 9.000 120.900 75,1
1846-50 208.900 45.000 3.600 257.500 81,12
1851-55 3.300 1.900 900 6.100 54,09
(média geral)
Totais 1.314.900 409.000 390.000 2.113.900
58,02

Fonte: IBGE, 500 anos de povoamento. Disponível em: <http: www.ibge.gov.br>.

A expansão da cafeicultura pelo Vale do Rio Paraíba do Sul e a sua


relação com a escravidão já foi alvo de dezenas de estudos, desde a obra
monumental de Alfred de Taunay, de 1939, em 15 volumes. Diversos outros
autores contribuíram destacando aspectos fundamentais dessa nova civili-
zação surgida na esteira da nossa Independência e da nova classe senhorial
conformada.4 Esta importância econômica, política e social única, que o Vale
teve para a nossa sociedade, como não poderia deixar de ser, é revisitada e
ampliada pelos autores que aderiram ao conceito de segunda escravidão.
O que queremos chamar atenção aqui como uma possível agenda de
pesquisa é que o desenvolvimento que podemos detectar no Centro-Sul, no
entanto, não foi exclusividade dessa região. Em vários outros espaços brasi-
leiros, ao longo do século XIX, assistimos a uma rápida expansão de ativida-
des primárias exportadoras, além de seus desdobramentos em um processo
de urbanização visível pelo conjunto de serviços oferecidos. Outra parte

4 Stein, (1961), Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba, com referência especial ao
município de Vassouras. Sobre a ideia de civilização e classe senhorial, entre outros estudos,
destaca-se a obra de Holanda, (2008) e o trabalho de Mattos, (1994).

99
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

considerável dessa modernização se deu com o início de um processo de


industrialização, marcado por uma série de condições adversas e, contra-
ditoriamente, complementares. O pano de fundo de todas essas transfor-
mações é, sem dúvida, a expansão da economia capitalista, que ocorreu
mundialmente no século XIX, transformando de forma arrebatadora a eco-
nomia-mundo. A economia brasileira, periférica em relação às fontes de
financiamento, investimento e produção, passou a receber demandas por
produtos específicos e ressignificados, gerando um fluxo de recursos que
alterou o perfil das economias agroexportadoras, estimulando o desen-
volvimento de setores até então pouco ou nada desenvolvidos. A partir
da Revolução Industrial, os padrões de consumo e o comportamento dos
mercados consumidores europeus, primeiramente, e dos EUA, posterior-
mente, seriam modificados e passariam a exigir um volume de mercadorias
cada vez maior por parte das regiões produtoras, como nos estudos que
abordam as commodity chains (Joseph; Rosemberg, 2006).
Os produtos primários, básicos em uma economia colonial, con-
siderados até então como especiarias de alto valor e consumo restrito aos
grupos privilegiados, adquiriram status de matérias-primas fundamentais
para uma economia-mundo que se industrializava e que necessitava de
quantidade cada vez maior de insumos – incluindo alimentos necessários
para um proletariado crescente e famélico. Tais casos são notáveis com
os produtos tradicionais da antiga economia colonial como o açúcar, o
tabaco e o algodão. No entanto, mais significativo ainda foi o café, que se
tornou – via oferta brasileira – um dos alimentos com grande potencial
energético preferencial para parcelas crescentes das sociedades indus-
triais, conforme já anotado por João Manoel Cardoso de Mello, em seu
livro O capitalismo tardio (Mello,1982).
Acompanhando a tabela a seguir, vemos que o aumento das ex-
portações desses produtos ocorreu, principalmente, a partir de meados
do século XIX.

100
Tabela 3: Pauta das exportações brasileiras (milhões de libras)
Couros,
Anos Café % Açúcar % Algodão % Borracha % % Fumo % Cacau % Outros* % Total
Peles

1821-30 7,4 19,2 10,7 27,8 8,1 21 0 0 5,3 13,8 1 2,6 0,2 0,5 5,8 15,1 38,5

1831-40 23,9 43,8 13,3 24,4 5,8 10,6 0,2 0,4 4,3 7,9 1 1,8 0,3 0,5 5,8 10,6 54,6

1841-50 24,3 42,6 15 26,3 4,2 7,4 0,3 0,5 4,9 8,6 1,1 1,9 0,5 0,9 6,7 11,8 57

1851-60 55,4 51,7 20,9 19,5 6,2 5,8 2,5 2,3 7,7 7,2 2,8 2,6 1,1 1 10,5 9,8 107,1

1861-70 67,1 44,2 19,3 12,7 28,9 19,1 5,4 3,6 9 5,9 4,6 3 1,4 0,9 16 10,5 151,7

1871-80 117 56,8 24,3 11,8 17,3 8,4 11,3 5,5 10,8 5,3 7 3,4 2,7 1,3 15,4 7,5 205,4

1881-90 124 62,2 19,5 9,8 8,8 4,4 15,6 7,8 6,4 3,2 5,4 2,7 3,3 1,7 16,5 8,3 199,5

Fonte: IBGE. Anuário Estatístico 1939/1940. In: NOGUEIRA, Dênio. Raízes de uma nação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 342,
apud GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, economia e poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, Macgregor & Companhia
(1854-1866). Tese (Doutorado em História Econômica), apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1997.
* O item “Outros” consistia em produtos como erva-mate, diamante, ouro, castanha-do-pará, madeiras, farinha de mandioca, aguardente e
outros produtos, sobre os quais não se dispõe de informações estatísticas confiáveis.
Raízes escravas da indústria no Brasil

101
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Como podemos perceber nos dados da tabela, o volume de ex-


portações de praticamente todos os produtos (medidos em libras ester-
linas) cresceu de maneira significativa ao longo do período imperial. E
isso, sem levarmos em conta a perda dos valores nominais das commodi-
ties exportadas, dado tanto pela concorrência externa, como pela dete-
rioração dos meios de trocas com as nações industriais. O crescimento
espetacular do café não oblitera que todos os demais produtos também
tenham tido comportamento ascendente.5 O caso do algodão nos parece
peculiar, por ser um produto voltado para o mercado internacional e, ao
mesmo tempo, atender à demanda do mercado interno que cresce e se
diversifica cada vez mais, materializada, de um lado, pela protoindústria
conforme estudo pioneiro de Douglas Cole Libby (Libby, 1996), e, de ou-
tro, pelo crescimento do número de fábricas têxteis no Brasil, ainda na
primeira metade do século XIX, como estudado por Geraldo Beauclair de
Oliveira, mostrando-se ainda mais intenso na segunda metade do Oito-
centos, como tratado por diversos autores.
O tabaco teve comportamento semelhante, tendo sua produ-
ção voltada para as exportações, mas, também, para o mercado interno,
como matéria-prima para a produção de charutos e cigarrilhas, inicial-
mente de forma artesanal e, posteriormente, em várias fábricas de charu-
tos fundadas no Recôncavo da Bahia e em outras províncias (Silva, 2015).
Essas interpretações das mudanças estruturais da economia bra-
sileira já haviam sido apontadas por diversos estudos de historiadores e
economistas desde pelo menos a década de 1960, como viemos tentan-
do demonstrar. O fato é que os cativos introduzidos na primeira metade
do século XIX se concentraram em algumas regiões de maior dinâmica
agroexportadora.
Na imagem abaixo, podemos perceber dois pontos principais: a
disseminação da posse dos cativos como traço característico de nossa
nacionalidade, dado pela dispersão da propriedade escrava em todas as
regiões do país, e a grande concentração escrava em algumas regiões,
diretamente relacionada às atividades agroexportadoras. Além da gran-
de concentração de escravos nas áreas cafeeiras do Centro-Sul (Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo), a presença escrava
também se fazia sentir em proporções significativas (pelo menos mais de

5 O algodão brasileiro terá um comportamento atípico, dado pela alta durante a Guerra da
Secessão nos EUA (década de 1860). Já o açúcar e o fumo enfrentarão conjunturas de crise
ao final da década de 1880, porém, irão aumentar de importância nas décadas seguintes do
regime republicano. Particularmente, o comportamento do cacau e da borracha durante o final
do século XIX e início do XX reforçam essa tendência de crescimento.

102
Raízes escravas da indústria no Brasil

15% do conjunto da população) em regiões onde a produção de café era


menor ou inexistente. Regiões como a campanha gaúcha, dominada pe-
las charqueadas; o norte e o sul de Minas Gerais, ligados, principalmente,
à extração de diamantes (norte) e produção de fumo e algodão, casados
com o café (sul); o sul da Bahia, com a produção cacaueira e de outros
gêneros; o Recôncavo Baiano e sua produção combinada de açúcar, fumo
e mandioca; a produção açucareira, em Campos dos Goytacazes (Rio de
Janeiro), Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, além da produção de
algodão em regiões do Maranhão.
Imagem 1: Concentração escrava segundo os dados do
Recenseamento Geral do Império Brasileiro, 1872

Fonte: PUNTONI, Pedro. Os recenseamentos gerais do Brasil no


século XIX: 1872 e 1890. São Paulo: Cebrap, 2004. CD-ROM.

Em 1882, tivemos um levantamento censitário, a pedido do Mi-


nistério do Interior, para fins da lei eleitoral de 1881. Apesar das falhas
do estudo – que copiam para várias freguesias do Império o mesmo nú-

103
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

mero de habitantes do censo de 1872 –, particularmente nas províncias


cafeeiras, os dados permitem perceber a persistência de número signifi-
cativo de escravos, conforme pode ser visto na Imagem 2.
Imagem 2: Concentração escrava segundo os dados do censo da população livre,
escrava e dos eleitores das diferentes paróquias das províncias do Império, 1882

Fonte: adaptado de PUNTONI, op. cit. e dados da Biblioteca Nacional: Censo


da população livre, escrava e dos eleitores das diferentes paróquias das províncias
do Império. Data: 27 abr. 1882. Referência 04,03,033 – Seção Manuscritos.

Entendemos que tais imagens, mais do que ilustrarem a força e a


persistência da escravidão para a nossa sociedade, impõem um conjunto
de reflexões para a diversidade regional do país, ou seja, a necessidade
de se estudar outros complexos agroexportadores que tiveram significa-
tivo desenvolvimento ao longo do XIX. Como frisado, os estudos sobre a
segunda escravidão no Brasil se concentram na região cafeeira, pela sua
óbvia importância para nossa economia (62% das exportações brasileiras
na década de 1880 conforme os dados da tabela 3). Porém, abordar as

104
Raízes escravas da indústria no Brasil

demais regiões em perspectiva comparativa, adotando as temáticas da


segunda escravidão, pode nos auxiliar a perceber a diversidade e os en-
caminhamentos possíveis para a escravidão e a sua crise.6
Esses outros complexos e mesmo as regiões cafeeiras também
podem e devem ser estudados a partir dos desdobramentos que a en-
trada maciça de escravos e a sua presença provocaram em termos de
desenvolvimento econômico. Para além do binômio “o café é o negro”,
como salientado por Robert Conrad (1978) –, poderíamos acrescentar
o açúcar, o algodão, o fumo e outros são o negro. Devemos entender que a
escravidão no século XIX se relaciona diretamente à modernização capita-
lista em curso a nível mundial. Aqui, não se trata apenas de relacionar o
desenvolvimento de máquinas, técnicas agrícolas e aperfeiçoamento dos
sistemas de transportes como formas de um melhor aproveitamento da
mão de obra cativa, como visto em diversos autores (de Emília Viotti a
Ricardo Salles), mas de entender que a escravidão no século XIX se deu
nos quadros de um crescimento capitalista industrial e que, portanto,
no desenvolvimento de regiões escravistas, irá ocorrer, necessariamente,
um processo de modernização capitalista, nos moldes que Wilson Cano
denominou de “complexo agroexportador” (Cano, 1998).
Mais do que simplesmente superar a dicotomia campo x cidade
ou lavoura x indústria, que durante algum tempo dominou parte da his-
toriografia brasileira, é preciso entender a relação entre o crescimento
do campo (via mão de obra escrava) e o impacto que isso trará para as
cidades (também habitadas por um significativo número de cativos). Em
outros termos, trata-se de entender as raízes escravas da industrialização
no país.
A despeito de o incremento da economia agroexportadora, com
a chegada da Corte, ter se constituído no principal pilar da nossa eco-
nomia, diversos historiadores já mencionaram que o Período Joanino foi
pródigo em apoiar atividades manufatureiras e industriais, até mesmo
para adequar a antiga colônia às necessidades de uma corte tropical. Em
1960, a publicação da obra A luta pela industrialização do Brasil, de Nícia
Vilela Luz, destacou as primeiras iniciativas industriais surgidas pela mão
de D. João VI, em seus diversos alvarás e Cartas Régias, concedendo isen-
ções ficais, privilégios e até mesmo concessões de loterias para estimular
esses empreendimentos. Se a obra não avança muito no estudo do perío-

6 Em relação ao aumento dos discursos e do crescimento do abolicionismo no Parlamento Bra-


sileiro, Robert Conrad já havia sugerido, por exemplo, que a diminuição da presença escrava
em regiões como o Nordeste açucareiro fez com que importantes bancadas abandonassem a
defesa da escravidão em momentos cruciais da campanha abolicionista, cf. Conrad (1978).

105
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

do, a análise da professora Alice Piffer Canabrava, também em texto da


década de 1960, detalhou um pouco mais a relação contraditória entre
as medidas liberalizantes ou livre-cambistas (como a tarifa Alves Branco)
e a modernização que, segundo análise até hoje corrente, teria sido obs-
taculizada pela concorrência dos produtos e capitais ingleses. Canabrava
ressalta que as diversas tarifas alfandegárias instituídas a partir de 1844
e, ainda, as constantes desvalorizações cambiais impostas aos mil-réis
acabaram por garantir algum grau de proteção aos nascentes empreen-
dimentos nacionais.7
Trazendo outras perspectivas teóricas, Geraldo Beauclair de Oli-
veira estudou o Período Joanino até meados do século XIX, segundo a
lógica da pré-indústria. Nessa análise, mostrou que uma série de medidas
tomada pela Coroa, transplantada para a América, transformou o espaço
colonial, particularmente o Rio de Janeiro. Diferenciando a protoindús-
tria, que marcaria as modernas economias europeias antes da Revolução
Industrial, da pré-indústria, que teria surgido a partir de 1808, no Brasil,
o autor chama atenção para como a diversificação da economia no Rio
de Janeiro provocou significativo desenvolvimento industrial relacionado
aos interesses do Estado (fábrica de pólvora, ferro e construção naval,
navegação etc.), modernização da lavoura (jardins botânicos, engenhos
a vapor etc.) e melhor aproveitamento dos recursos dos produtos da terra
(madeiras, fabricação de papel, extração de raízes – como a Ipecacuanha
ou Poaia etc.) (Oliveira, 1992, 2001).
Outro ponto importante no estudo de Beauclair é a articulação
desse crescimento como complementar e relacionado à escravidão e ao
trabalho escravo. Através de diversos exemplos, o autor demonstrou que
importantes oficiais, artífices e operários de vários empreendimentos
eram escravos, particularmente nos casos da pesca da baleia, na fabri-
cação de ferro e, ainda, na construção naval. Nesse mesmo sentido, o
estudo de Douglas Cole Libby recua a indústria do ferro e também a têxtil
no Brasil ainda para o período final do declínio da mineração aurífera no
século XVIII, sob o conceito da protoindústria (Libby, 1989, p. 149-160).8
O estudo de Beauclair sugere ainda que, até meados do século
XIX, a indústria brasileira passou por modernização e desenvolvimento

7 Canabrava (2005), História Econômica: estudos e pesquisas, particularmente o capítulo Manu-


faturas e indústrias no período de D. João VI no Brasil. Sobre as diversas tarifas alfandegárias
após 1844, temos 1857 – tarifa Souza Franco, 1860 – tarifa Silva Ferraz, 1869 – tarifa Itaboraí,
1870/71, 74 – tarifa Alves Branco, 1878, 1879, 1880 – tarifa Assis Figueiredo, 1881 – tarifa Sa-
raiva, 1887 – tarifa Belisário Souza e 1888 – tarifa João Alfredo. Para mais detalhes, cf. Sampaio
(1975, p. 23-27).
8 Sobre a pesca da baleia, existe ainda o importante e pioneiro estudo de Ellis (1969).

106
Raízes escravas da indústria no Brasil

similares ao que ocorria nos demais países europeus, ou seja, sem gran-
des defasagens tecnológicas, como se deu na 2ª metade do mesmo sé-
culo. A associação entre a modernização de nossa economia, ligada à
grande abundância de produtos tropicais, ou a uma vocação natural do
país, aparentemente, se tornou uma máxima em nosso desenvolvimento.
Trabalhos de Teresa Cribelli, por exemplo, demonstram que a participa-
ção nacional nas feiras e exposições internacionais, particularmente a da
Filadélfia em 1876, foi marcada pela valorização dos produtos naturais
– como madeira, peles, frutos e raízes, e pelo processamento (melhora-
mento) dos mesmos. É significativo observarmos ainda que, no censo
industrial de 1920, o Ministério da Agricultura anotava como “Cultura
de Plantas Industriais e outras espécies arbustivas e arborescentes (...)” a
produção de cana de açúcar, fumo, algodão, mamona, café, cacau, coco,
maniçoba, dentre outras.9
Sintomático é o Mappa economico do Brazil, elaborado em 1911
pelo Engenheiro Civil Álvaro José Rodrigues, solicitado pelo Ministro da
Agricultura, Indústria e Comércio – Pedro de Toledo -, que relaciona as
riquezas nacionais a três categorias específicas: 1) a produção agrícola/
pastoril, destinada à exportação; 2) os produtos da terra (extrativismo e
mineração), e 3) as indústrias manufatureiras. Tais dados se relacionam
ainda aos do comércio internacional e aos das suas principais rotas, con-
forme pode ser visto na imagem a seguir:

9 Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Resumo de várias estatísticas econômico finan-


ceiras. Rio de Janeiro: Typographia da Estatística, 1924. Cf. ainda Cribelli, (2013, p. 545-579).

107
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Imagem 3: Mappa Economico do Brazil (1911)

Outros autores já haviam abordado a modernização da economia


brasileira, particularmente a fluminense, provocada ou induzida pela es-
cravidão, como Almir El-Kareh, em sua obra Filha branca de mãe preta: a
Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II, e também Luiz Carlos Soares,
no artigo A escravidão industrial no Rio de Janeiro do século XIX (El-Kareh,
1982; Soares, 2003).
Ainda em termos metodológicos, dois trabalhos possuem gran-
de importância nos estudos que abordaram a industrialização brasileira
a partir do século XIX, e podem ser incorporados em novas pesquisas
sobre a relação entre escravidão e a indústria. O primeiro é o livro de
Wilson Suzigan, talvez o melhor trabalho sobre as origens da indústria
brasileira no século XIX e início do XX. Na obra, o autor relaciona as vá-
rias teorias que explicam as origens das indústrias e o seu crescimento

108
Raízes escravas da indústria no Brasil

no Brasil. Ao adotar os conceitos de “ produto básico” e “efeitos de enca-


deamento”, de Whatkins e Alfred O. Hirschmann, afirma que: “A hipótese
de trabalho deste estudo é a de que o desenvolvimento industrial no
Brasil no século XIX pode ser explicado como um resultado do cresci-
mento da produção industrial induzido pela expansão do setor expor-
tador” (Suzigan, p. 75). Aqui, quase automaticamente se colocam as se-
guintes perguntas: de qual(is) setor(es) exportador(es) estamos falando?
E, mais importante ainda, qual era a principal forma de trabalho deste(s)
setor(es) e a influência que essa mão de obra terá no desenvolvimento
dessa indústria? A resposta pode ser que a diversidade regional e o tra-
balho escravo generalizado pelo país no período praticamente impõem a
agenda de pesquisas que estamos propondo.
Outro estudo que adquire bastante relevância para esta agenda
e que inspirou parte deste capítulo é o já citado Raízes da concentração
industrial em São Paulo, do professor Wilson Cano. A obra, como o pró-
prio título sugere, busca entender as razões da superioridade paulista no
processo de industrialização do país no século XX, a partir da análise
de como o complexo agroexportador das novas regiões cafeeiras paulistas
– notadamente o novo oeste paulista – promoveram este arranque. Para-
doxalmente, no entanto, é a generalização da ideia do complexo agroe-
xportador para as outras regiões do país, sem o signo da falta ou incom-
pletude, visto pelo autor, que podem nos ajudar a estudar a diversidade
regional do Brasil no século XIX.
Segundo Wilson Cano, todo o complexo agroexportador promove
uma série de encadeamentos (ou steps) a partir do produto principal (café,
algodão, cacau, fumo, borracha etc.), que podemos definir com certa liber-
dade em relação ao esquema proposto pelo autor, como: 1) produção de
alimentos para abastecer os envolvidos na atividade principal; 2) moderni-
zação dos sistemas de beneficiamento, produção e acondicionamento do
produto principal, como a fabricação de máquinas e outros artigos; 3) mo-
dernização dos sistemas de transportes e armazenamento para reduzir os
custos; 4) desenvolvimento comercial e financeiro para montar, expandir e
abastecer as unidades produtoras; 5) crescimento do(s) núcleo(s) urbano(s)
que centraliza(m) atividades ligadas ao produto principal, e 6) políticas pú-
blicas locais, provinciais/estaduais e imperial/federal de estímulo à produ-
ção. Além disso, o autor chama atenção para o fato de que especificidades
locais podem incentivar ou obstaculizar o desenvolvimento dos comple-
xos, impondo pesquisas com olhares mais particulares e verticais.
Tais estudos invadem o campo da teoria e, de certa maneira, obri-
gam a algumas revisões sobre a economia brasileira do período. Talvez,

109
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

o ponto mais importante que o conceito de segunda escravidão trouxe


para a História Econômica tenha sido demonstrar um dinamismo muito
maior, em nossa economia, do que o enxergado pelas visões estereoti-
padas que apontavam um atraso estrutural provocado pela escravidão e
grande dependência em relação ao mercado internacional. É necessário,
porém, avançar para além de estudos que analisam o complexo cafeeiro
da Região Centro-Sul, das modernizações por ele geradas e dos embates
e debates políticos e discursivos do período, e avançar para a compreen-
são mais refinada de que o país era “diverso” e “desigual”.10
Nesse ponto, os estudos sobre a segunda escravidão, ao ofere-
cerem comparações com processos que ocorriam em outras partes das
Américas, nos dão importantes indicativos de dinâmicas semelhantes,
que associam a aparente contradição entre modernização econômica e o
reforço da escravidão. Tal relação aparece diretamente em textos como o
de Dale Tomich e Rafael Marquese, O Vale do Paraíba escravista e a formação
do mercado mundial do café no século XIX, que aborda a expansão da cafei-
cultura no país, mais especificamente no Vale do Paraíba, em perspectiva
com a produção declinante da Antilhas e particularmente de Cuba (Mar-
quese; Tomich, 2009, p. 339-383). Em outro texto de Rafael Monzote e
Dale Tomich, Fronteira açucareira e revolução industrial em Cuba, 1815-1870,
os autores demonstram que a modernização da produção açucareira em
Cuba se deu nos quadros de uma renovação do sistema colonial hispâni-
co, e sugerem fortemente a relação entre escravidão e modernização no
final do século XVIII e primeira metade do século XIX. A instalação dos
primeiros engenhos a vapor na ilha, ainda no século XVIII, foi implemen-
tada em conjunto com a modernização e expansão da produção açuca-
reira e o incremento da presença escrava africana via tráfico. A relação
com os processos de expansão e diversificação das economias regionais
brasileiras parece inevitável: aqui, como em outras partes das Américas,
o crescimento da produção se fazia incorporando aos quadros da moeda
colonial (a saber, terras, escravos e monopólios) as inovações tecnológicas
originárias da própria Revolução Industrial (Tomich; Monzote, 2010, p.
65-117).
No Brasil, tanto no Sul, como no Nordeste, levando em consi-
deração suas dimensões continentais, várias culturas utilizaram mão de

10 Tiramos a ideia de “diverso” e “desigual” da obra de Marcondes, (2009). Nesta pesquisa, o


autor demonstra a posse escrava e as diversas atividades econômicas a partir de amplo levan-
tamento de fontes regionais cotejadas pelos dados do censo de 1872. A conclusão do autor da
centralidade da economia cafeeira do Centro-Sul não retira, entretanto, as especificidades dos
complexos econômicos de outras regiões do país.

110
Raízes escravas da indústria no Brasil

obra escrava e promoveram desdobramentos para urbanização, indus-


trialização e modernização de serviços, além de aparelhamento financei-
ro através de redes pessoais e fundação de bancos regionais e agências
de bancos da Corte. Interessa entender como se comportaram tais com-
plexos agroexportadores, em sua estrutura e funcionamento, a partir do
final do XVIII até o início do século XX, no que já foi chamado de o longo
século XIX. Trata-se de um aspecto que diz respeito às transformações
trazidas pela implantação do modo de produção capitalista, às relações
entres as regiões produtoras de matérias-primas e alimentos e o merca-
do internacional sob essa nova égide.
A seguir, uma série de imagens com dados de indústrias têxteis,
concessões de patentes e sistema financeiro no Brasil ao longo do século
XIX e início do XX, que podem nos ajudar a, novamente, ilustrar o que
apresentamos até aqui e servir de ponto de partida para um debate em
torno desta proposta de pesquisa.

111
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Imagem 4: Indústrias têxteis existentes no Brasil entre 1834 até 1904

Imagem 5: Indústrias Têxteis existentes no Brasil entre 1905 e 1920

Imagem 6: Indústrias existentes no Brasil em 1920

112
Raízes escravas da indústria no Brasil

Imagem 7: Patentes concedidas no Brasil -1882/1910

Imagens 8 e 9: Bancos criados no Brasil – 1808/1880

113
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

114
Raízes escravas da indústria no Brasil

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A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

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119
ESCRAVIDÃO E CAPITALISMO: DIMENSÕES DE
UMA ECONOMIA REGIONAL NO SÉCULO XIX

Walter Luiz C. de M. Pereira

O capítulo investe no dinamismo econômico em Campos dos


Goytacazes, na segunda metade do século XIX, marcado por uma cen-
tralidade regional que transpõe as margens do Rio Paraíba do Sul. É pre-
ciso ampliar tais fronteiras para comportar as dimensões de um circuito
integrado que se projete na ideia de uma Bacia do Paraíba, utilizando a
expressão cunhada a partir dos encontros do grupo de pesquisa O Vale do
Paraíba e a Segunda Escravidão.
Vilma Paraíso Almada (1984), ao tratar aspectos conjunturais do
sul do Espírito Santo, para o mesmo período, tomava a região da provín-
cia capixaba como uma periferia do Vale do Paraíba. Paulo Mercadante
(1978), ao mapear os Sertões do Leste, em Minas Gerais, e seus víncu-
los com a ampla bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, riscada por
afluentes e subafluentes, foi instado a também ampliar suas margens.
Portanto, tratamos aqui de um recorte regional que cobre contornos já
explorados por uma historiografia clássica, ao delinear uma cartografia
que incorpora a seus propósitos o norte da Província do Rio de Janeiro,
mais precisamente Campos dos Goytacazes e suas freguesias, além de
outros municípios da região, entre os quais Cantagalo, São Fidelis, São
João da Barra e Macaé, território que superava a terça parte da província
fluminense. Logo, o alcance desse amplo arco circunscrito ao Vale cobria
a Província de Minas Gerais e sua Zona da Mata, ou os Sertões do Leste,
e adentrava, em outra frente, os limites ao sul da Província do Espírito
Santo, mais precisamente o extenso Município de Itapemirim, recortado
por uma longa faixa litorânea e por um altiplano onde o café prosperou
rapidamente a partir de meados do século XIX. A cartografia do Vale es-
tende-se pela paisagem plural e diversa.
Nesse aspecto, operamos uma região que foge aos limites de-
marcados pelos atlas da Geografia Política, ao entrelaçar interesses mer-
cantis desde o século XVIII, seja com a criação de gado e o cultivo do
açúcar, seja, posteriormente, no século XIX, pela manutenção da produ-
ção açucareira, pela extensão dos cafezais e pelos mais diversos produ-

121
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

tos. O aumento progressivo do cultivo do café na tríplice fronteira entre


as três províncias implicou a manutenção de uma numerosa população
escrava, mesmo depois do fim do tráfico, notadamente em Campos dos
Goytacazes (1850), com 37.747 escravos; Zona da Mata mineira (Ubá, Rio
Pomba e Mar de Espanha – 1854), com 23.397 escravos; e Espírito Santo
(1856), com 12.269 escravos.1A simbiose entre açúcar e café, condicio-
nados ao trabalho escravo, produziu um cenário de transformações em
Campos dos Goytacazes, durante a segunda metade do século XIX, com a
instalação de ferrovias, indústrias, bancos, canais, engenhos a vapor, ins-
talações portuárias, companhias seguradoras, empresas de navegação,
infraestrutura urbana, serviços públicos, dentre outras.
Portanto, a imbricação entre escravidão e capitalismo em esca-
la local expressa um microcosmo do significado de segunda escravidão,
pelo concerto entre a produção escravista, que mantém na região certa
estabilidade no curso da segunda metade do século XIX, e variáveis do
desenvolvimento capitalista, como a incorporação de inovações eviden-
tes em áreas centrais do capitalismo internacional, como máquinas e em-
barcações a vapor, equipamentos e material rodante para a montagem
de ferrovias, além da renovação de insumos industriais, urbanos e rurais,
ainda que esses mecanismos mais sofisticados fossem produzidos em
países de industrialização avançada. Entretanto, pode-se constatar a pro-
dução de alguns bens manufaturados em escala local e regional.
Mesmo que o conceito de segunda escravidão se associe à pro-
dução de uma commodity específica, em uma determinada sociedade
escravista, não se deve desprezar uma escala produtiva múltipla, como
no caso aqui evidenciado, e sua inserção dentro do conjunto global do
mercado capitalista, nos quadros da Revolução Industrial, da hegemonia
britânica e da reprodução do próprio capitalismo (Muaze; Salles, 2014,
p. 11-18). Em que pese o café se tornasse o produto de maior impacto
no cenário regional, a importância das demais atividades produtivas não
deve ser diminuída, especialmente a do açúcar e demais produtos.
Há evidências de que, desde sua ocupação no século XVIII, Cam-
pos dos Goytacazes possuía uma dimensão regional que ultrapassava os
limites da Capitania de São Tomé ou mesmo da Capitania da Paraíba do
Sul. Marcio Soares (2016), ao analisar a sua ocupação e a disputa por suas
terras, fronteira aberta para as atividades agrárias e missionárias, indica
que a vastidão dos campos já atraía gente do Espírito Santo e de outras

1 Para Campos dos Goytacazes, ver quadro 1; para a área delimitada como Zona da Mata de
Minas Gerais, ver Carrara, (1993, capítulo II, quadro 7); para a Província do Espírito Santo, ver
Almada, (1984, p. 68-69).

122
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

capitanias, especialmente posseiros, entregues ao desenvolvimento de


plantações, pastagens e currais. A questão central na análise de Soares
parte do princípio de que há uma diversidade da economia local, apesar
da ressonância historiográfica sobre um determinado produto mais ex-
pressivo, o açúcar. Sua análise sobre as principais fortunas em Campos
dos Goytacazes nos primeiros anos do século XVIII mostra que cabeças
de gado bovino e cavalar despontam como o item principal dos inven-
tários, consagrando 53% do monte mor das oito principais fortunas da
Capitania da Paraíba do Sul.
Logo depois, a cana-de-açúcar e os engenhos passariam a ter
maior relevância econômica, aplacada a instabilidade política em Cam-
pos dos Goytacazes, prolongada pelas lutas entre donatários e elites lo-
cais. Tal fato modificou a paisagem agrária no final do século XVIII, em
face de uma conjuntura econômica favorável, dada pela expansão dos
engenhos de açúcar, a oferta elástica de africanos e a disponibilidade
de crédito na praça mercantil do Rio de Janeiro. Tudo isso, associado ao
declínio da produção açucareira no recôncavo da Guanabara, segundo
Soares, possibilitou a expansão demográfica e da produção açucareira,
mas sem o caráter monocultor.
Trata-se de uma análise que destaca a dimensão econômica re-
gional de Campos dos Goytacazes, pelo menos até a constituição da
Província do Rio de Janeiro, em 1835. O Visconde de Araruama, José
Carneiro da Silva (2010, p. 7; p. 60), mostrara em sua obra, cuja primeira
edição saiu em 1819, que o comércio regular com Minas Gerais havia ga-
nhado maior relevância desde o início do século, por injunção da Coroa
Portuguesa, com a abertura, em 1801, do primeiro caminho construído
por 80 homens, com largura de 40 palmos e extensão de 32 léguas, en-
tre Rio Pomba e Campos dos Goytacazes. Para o Visconde, o comércio
com Minas Gerais “traria muito mais comodidade”, do que se fazia até
então, pelo Rio de Janeiro. De Minas Gerais, vinham gado bovino e muar,
queijos, toucinho, carne de porco. Do Espírito Santo, panos de algodão
e farinha de mandioca.

Fronteiras conectadas
Paulo Mercadante (1978) assinalara a clara conexão regional,
especialmente, pelo aproveitamento da rede fluvial que adentrava os
três núcleos distintos. O Rio Paraíba do Sul, quando não por ele mesmo,
atingia por seus afluentes e subafluentes (Muriaé, Carangola e Pomba)

123
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

os Sertões do Leste de Minas Gerais. Essa rede fluvial, segundo o autor,


não isolava as águas do Rio Itabapoana, demarcando os limites entre o
Rio de Janeiro e o Espírito Santo. Tais vias de comunicação permitiam
a integração de diversas localidades, ribeirinhas ou não, favorecendo o
escoamento da produção regional. Nesse aspecto, o Porto de São João
da Barra viabilizara a conexão pelo Rio Paraíba do Sul até a Cidade de
São Fidelis, da mesma forma que embarcações alcançaram Cachoeiras do
Muriaé (atual Cardoso Moreira), através do Rio Muriaé, afluente do Rio
Paraíba do Sul, permitindo o escoamento de produtos do extremo norte
fluminense e da Zona da Mata mineira, em duas vertentes: por Cantagalo
e pelos sertões do Muriaé, respectivamente. Mercadante percebeu muito
bem a unidade regional complexada região da Zona da Mata mineira, ao
estender suas conexões com o norte do Rio de Janeiro e o sul do Espírito
Santo, desde a sua ocupação. Em lombo de mulas e embarcações fluviais,
circulava na região uma variada produção composta por algodão, sal,
açúcar, fumo, toucinho, milho, munições, ferramentas, algodão, tecidos,
bugigangas e mercadorias diversas entre o Rio, Campos, a Zona da Mata
de Minas Gerais e o sul capixaba. Todo esse circuito, segundo Merca-
dante, garantia o desenvolvimento demográfico e urbano dos Sertões do
Leste, acentuado mais ainda pela expansão cafeeira no século XIX. Cam-
pos dos Goytacazes, com expressiva população escrava, capitalizava, há
muito, a montagem desse mosaico regional.
Não por outros motivos, em 1850, a Câmara Municipal de Cam-
pos dos Goytacazes encaminhara ao legislativo do Império um projeto de
criação da Província de Campos dos Goytacazes, a partir do desmembra-
mento das comarcas de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro; de
Rio Pomba, em Minas Gerais; e de Itapemirim, no Espírito Santo. Da par-
te de Minas Gerais, não temos informações como tal projeto foi recebido
pelas lideranças da região, mas, no caso do Espírito Santo, a proposta foi
aprovada e endossada pelos negociantes e fazendeiros locais. Segundo
Rogério Faleiros (2010), a relação dos interesses comerciais e mercantis
entre as duas regiões limítrofes era tão próxima, que, no final do século
XIX, a Província do Espírito Santo tinha preocupações, conforme expres-
sa o autor, em reterritorializar o sul capixaba, ou seja, trazê-lo à centrali-
dade do governo provincial, com o intuito de reverter o fluxo econômico
que seguia pelos caminhos da baixada campista.
A densidade populacional em Campos dos Goytacazes sobres-
saía. Os números colocavam a cidade entre as cinco mais populosas do
Império. O Almanak de Campos para 1885 apresentou um contingente
populacional estimado em 99.905 habitantes, distribuídos entre 61.924

124
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

livres, 9.758 ingênuos e 28.913 escravos, para o ano de 1881 (Alvarenga,


1884). O quadro 1 mostra que a concentração de população escrava era
maior nas mais antigas e principais freguesias instituídas: São Salvador,
São Sebastião, São Gonçalo e Santo Antônio de Guarulhos. Na década
de 1860, as freguesias de São Fidelis do Sigmaringa, São José da Leo-
nissa (atual Itaocara) e Santo Antônio de Pádua são desmembradas pela
criação de novos municípios ou por mudança de jurisdição. A partir da
mesma década, novas freguesias são criadas, especialmente na região
cafeeira, como Nossa Senhora de Natividade do Carangola (na fronteira
com Minas Gerais e Espírito Santo), Senhor Bom Jesus (na fronteira com
o Espírito Santo) e Nossa Senhora da Piedade de Laje do Muriaé (na fron-
teira com Minas Gerais), esta última na década de 1880, motivo pelo qual
a freguesia não aparece nas estatísticas que se seguem. As variações da
população escrava entre 1850 (fim do tráfico) e 1881, ainda que se mos-
trem negativas, denotam a redução lenta e gradual da escravidão nessas
três décadas (ver quadro 2): 3,45% (1850/1863); 10,57% (1863/1872); e
11,30% (1872/1881). No cômputo geral, a população cativa em Campos
dos Goytacazes decai 23,41% entre 1850 e 1881. Esses dados talvez ex-
pliquem por que o movimento abolicionista teve uma repercussão inten-
sa na cidade. A dimensão que a população alcança em 1850, de 37.747
escravos, pode ser relacionada ao expressivo deslocamento de africanos
para Campos dos Goytacazes pela via do tráfico ilegal, conforme indica o
quadro 3. Os desembarques ocorridos no litoral contínuo entre as duas
províncias, mesmo depois da lei do fim do tráfico, evidenciam interesses
conjuntos entre agentes locais, ligados ao comércio ilícito de africanos,
seja na sua organização, seja para escapar da repressão. Por exemplo, os
mais notórios agentes do tráfico de africanos que atuavam ali possuíam
fazendas em praias capixabas e fluminenses, e negócios em Itapemirim,
Campos e São João da Barra, como André Gonçalves da Graça e Joaquim
Thomaz de Faria, articulados com um dos maiores traficantes com base
no Rio de Janeiro, José Bernardino de Sá (Pereira, 2018).
As quatro freguesias mais populosas, mencionadas anteriormen-
te, formavam o núcleo central da economia campista. As três primeiras,
situadas à margem sul do Rio Paraíba, eram o locus privilegiado do cultivo
da cana-de-açúcar, do redesenho de engenhos e da ligação com o Porto
de Imbetiba, pela utilização do canal Campos – Macaé. A quarta fregue-
sia, situada à margem norte do mesmo rio, foi o terreno próspero para a
expansão do café, detonadora da construção de um complexo ferroviário
que unia o extremo norte da província ao Porto de Imbetiba, em Macaé.
Tratava-se de um corredor de trilhos composto pela Estrada de Ferro

125
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Campos – São Sebastião, doravante EFCS; pela Estrada de Ferro Campos


– Carangola, daqui por diante, EFCC; e pela Estrada de Ferro Campos –
Macaé, designada por EFCM, esta última, margeando o leito do canal
Campos – Macaé. Nesse eixo, concentrava-se a maior parcela da popula-
ção escrava, alcançando 82% do plantel local, entre 1872 e 1881, incluída
a população das freguesias ao extremo norte da província, desmembra-
das da Freguesia de Santo Antônio de Guarulhos, ou seja, Nossa Senhora
de Natividade do Carangola e Senhor Bom Jesus. Esse percentual traduz
a rápida expansão e ocupação do noroeste fluminense pela significativa
expansão do café nas freguesias criadas depois de 1850, em áreas de
confluência com a Zona da Mata mineira e as terras altas capixabas.
Ao contrário de freguesias, onde a redução da população escrava
era contínua, na Freguesia de Santo Antônio de Guarulhos, entre 1850 e
1863, a população escrava cresceu 47,49%. Sem dúvida, esse boom ocor-
reu em razão da expansão do café nas duas novas freguesias beneficiadas
pelo tráfico interprovincial de escravos depois de 1850. Tempos depois,
entre 1863 e 1872, a população escrava dessas mesmas freguesias, so-
mada à população cativa da freguesia de Santo Antônio de Guarulhos
vão ajustar-se aos níveis de redução da população escrava das principais
freguesias açucareiras, com índices em torno de 17%. A exceção fica por
conta da freguesia central de São Salvador, cuja redução do contingente
escravo chegou ao menor índice entre as freguesias campistas, no perío-
do de 1863 a 1872, ou seja, 7,84%. Talvez esse indicador representasse a
concentração de mão de obra em atividades urbanas, em decorrência do
processo de urbanização e da expansão mercantil provocada na região a
partir da década de 1860.

126
QUADRO 1
POPULAÇÃO ESCRAVA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES
18502 18633 18724 18815
Freguesias
Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total
São Salvador 6.036 4.447 10.483 4.897 3.700 8.597 4.332 3.677 8.009 3.553 3.396 6.949
São Sebastião 1.681 1.647 3.328 2.071 1.882 3.953 1.796 1.486 3.282 1.562 1.284 2.846
São Gonçalo 2.533 2.043 4.576 2.502 2.118 4.620 2.335 1.915 4.230 2.054 1.634 3.688
Sto. Ant. Guarulhos 5.621 3.315 8.936 7.859 5.770 13.629 4.564 3.766 8.330 3.097 3.320 7.227
São Fidelis 2.395 1.476 3.871
São José Leonissa 730 399 1.129
Lagoa de Cima 2.556 2.087 4.463 3.130 2.516 5.646 674 569 1.243 577 502 1.079
Santo Ant. de Pádua 503 278 781
São Benedito 418 231 649 362 206 568
Senhor Bom Jesus 644 495 1.139 624 365 989
Natividade Carangola 963 869 1.832 829 762 1.591
Dores de Macabu 1.012 1.015 2.027 885 875 1.760

Morro do Coco 951 908 1.859 888 728 1.616

Totais 22.055 15.692 37.747 20.459 15.986 36.445 17.662 14.931 32.593 15.241 13.072 28.913

2 Relatório de Presidente de Província do Rio de Janeiro de 1851 – Mapas A e B. APERJ.


3 Almanak Laemmert, 1863, p. 270. Disponível em: www.objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/almanak/al1863. Acesso em: 28 mar. 2018.
4 Recenseamento do Brazil de 1872. Disponível em: www.biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v10_rj. Acesso em: 16 abr. 2018.
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

5 Almanak Mercantil, Industrial, Administrativo e Agrícola da Cidade e Município de Campos para 1881.

127
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

QUADRO 2
VARIAÇÃO DA POPULAÇÃO ESCRAVA NAS PRINCIPAIS
FREGUESIAS EM CAMPOS DOS GOYTACAZES
1850 – 1863 – 1872 – 1881

FREGUESIAS 1850/1863 1863/1872 1872/1881


SÃO SALVADOR (A) - 18,00% - 7,84% - 13,24%
SÃO SEBASTIÃO (B) +18,78% - 17,98% - 13,29%
SÃO GONÇALO (C) +0,96% - 18,45% - 13,82%
SANTO ANTÔNIO DE GUARULHOS (D) +47,49% -38,89% - 13,25%
(D) + NATIVIDADE DO CARANGOLA
+47,49% - 17,09% -13,23%
+SENHOR BOM JESUS = (E)
TOTAL (A+B+C+D) +25,43% -22,55% -13,17%
TOTAL (A+B+C+E) +25,43% -12,92% -13,17%
POPULAÇÃO ESCRAVA TOTAL
-3,45% -10,57% -11,30%
INCLUINDO TODAS AS FREGUESIAS (F)

QUADRO 3
AFRICANOS COM DESTINO A CAMPOS DOS GOYTACAZES

Ano Embarcados Desembarcados


1836 1.297 1.176
1837 9.043 8.110
1838 5.275 4.758
1839 8.011 7.192
1840 5.744 5.171
1841 4.443 3.910
1842 2.704 2.345
1843 6.517 5.922
1844 2.525 2.236
1845 4.117 3.734
1849 972 800
1850 2.913 2.639
Total 53.561 47.993
Fonte: www.slavevoyages.org
Brazil – Southeast Brazil – Campos

128
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

O café era também o símbolo da expansão capixaba. Para Vilma


Almada (1984), a ocupação do Espírito Santo, na segunda metade do
século XIX, foi beneficiada pela grande disponibilidade de matas virgens
e terras devolutas. Dessa forma, a expansão econômica da província in-
corporava a resistência ao fim do tráfico ilegal de africanos, entre1850 e
1860, dado o impulso da cultura cafeeira nos altos capixabas, notadamen-
te na região de Itapemirim, ao sul da província, na interseção entre os
vales dos rios Itabapoana e Itapemirim, onde cerca de 80% da população
cativa era formada por escravos jovens trabalhando em terras recente-
mente ocupadas por fazendeiros que migravam do Rio de Janeiro e de
Minas Gerais. A reação ao fim do tráfico na região implicava forte cone-
xão com essas áreas limítrofes (Pereira, 2018).
Das 40 mil arrobas de café colhidas em 1850, o Espírito Santo
passou a produzir quase 200 mil arrobas do produto, em 1856, um salto
de 400% na produção local. Desse mesmo ano até 1872, a população
total da província duplicou. A fração da população escrava, no mesmo
período, passou de 12.269 para 22.552, ou seja, um acréscimo de 83%.
Itapemirim, principal polo cafeeiro da província, teve um aumento total
da população da ordem de 128%. A expansão dos cafezais por matas vir-
gens exigia fazendas com maior plantel escravista. Portanto, o sul do Es-
pírito Santo, de um território quase inabitado, transformou-se na região
cafeeira mais importante da província. Almada relata que, entre 1850
e 1886, 100% das propriedades localizadas no município de Itapemirim
produziam café. Devido à ausência e à deficiência de estradas capazes de
escoar a produção, fazendeiros da região utilizavam o Porto de Limeira,
no Rio de Janeiro, futura estação terminal de um ramal da EFCC, por
onde se escoava o café do extremo sul capixaba até Campos, e daí, até o
Porto de Imbetiba, em Macaé, pelos trilhos da EFCM.
Campos dos Goytacazes, na segunda metade do século XIX, des-
tacara-se como uma praça mercantil importante, com múltiplos capitais
investidos na produção de açúcar, café, indústria, ferrovias e serviços.
Sem dúvida, a diversidade de investimentos, em uma conjuntura próxi-
ma da superação da produção escravista, fora estimulada pela produção
cafeeira. Havia ali indicadores de certa pujança econômica que impul-
sionava a cidade rumo à modernização. O espaço urbano incorporava
inovações em serviços e alguns melhoramentos, renovando o cenário
da antiga vila colonial. Tratava-se de um núcleo urbano tomado por va-
gas da modernidade como ferrovias, eletricidade, bonde, telefone, gás,
serviço de água e esgoto etc. Diga-se modernidade em espaço robusto do
cativeiro.

129
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

O cenário mercantil em Campos dos Goytacazes, nas últimas dé-


cadas do Império, era formado por 502 casas comerciais, 377 fábricas de
açúcar e aguardente (252 eram movidas a vapor), 583 fazendas ligadas à
produção de café e cereais; 55 vinculadas à criação de gado. No decênio
compreendido entre 1872 e 1881, a média anual das exportações para o
Rio de Janeiro foi de 16.756 toneladas de açúcar, 7.966 pipas de aguar-
dente e 1.801 toneladas de café, cujas receitas chegam a 3.071 contos,
651 contos e 807 contos, respectivamente (Alvarenga, 1886). O aumento
da produção local fez subir também a arrecadação de tributos munici-
pais cobrados pela Câmara de Campos dos Goytacazes. A receita total
de 20 contos de réis, apresentada no demonstrativo do governo local
de 1848/1849, saltou para 124 contos de réis em 1884, um acréscimo de
500% em valores nominais. Os principais itens tributados eram líquidos
espirituosos, alimentos, açúcar e talho.
Artur Rocha (2011), ao analisar a base tributária da cidade de
Recife, nas décadas de 1860 e 1870, ressalta que recaía sobre as câmaras
municipais e as províncias a tributação sobre menores valores agregados,
uma vez que a principal fonte de arrecadação tributária do Império eram
as exportações, mantidas sob monopólio fiscal do Governo Central. Ou
seja, ao município cabia tributar, para sua sobrevivência financeira, itens
aos quais a província e o Império não impunham suas alíquotas ou valo-
res, como os produtos destinados ao consumo local, incluídos os gêne-
ros de primeira necessidade.
Por outro lado, cabe aqui ressaltar, também, as receitas da pro-
víncia fluminense, arrecadadas pelas coletorias provinciais na década de
1840. Segundo o quadro montado por Valter Luiz de Macedo (2008, p.
189), a Coletoria de Campos dos Goytacazes, no período entre 1843/1844,
já liderava a arrecadação entre as demais coletorias fluminenses, inclu-
sive a de Niterói, capital da província, levando aos cofres provinciais
35:863$200 réis em receitas, quatro vezes mais o que contribuía Vassou-
ras, cujo montante arrecadado chegara a 8:426$060 réis. Somados os
valores arrecadados pelas demais coletorias da fração sul do Vale do Pa-
raíba (Vassouras. Paraíba do Sul, Valença, Rezende, São João do Príncipe,
Barra Mansa e Piraí), o total de receitas produzidas naquela parte do Vale
perfaz 37:193$620 réis. Logo, as rendas provinciais produzidas pela Co-
letoria de Campos dos Goytacazes quase se equiparavam à arrecadação
provincial produzida pelos sete municípios da parte meridional do Vale.
Na mesma conjuntura, a Cidade de Campos dos Goytacazes con-
tou com a atuação de duas instituições bancárias: o Banco de Campos,
fundado em 1863,e o Banco Comercial e Hipotecário de Campos, aberto

130
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

em 1871. Ambas possuíam ativos relevantes, pelo menos até a Abolição


da Escravatura, com uma carteira de crédito expressa, notadamente, por
desconto de letras, com recursos integralmente direcionados às opera-
ções de curto prazo. Nesse período, foi notório o aumento do crédito
disponibilizado pelos dois bancos campistas. Assim, julgamos haver um
confortável estoque de crédito nas instituições financeiras locais. Tanto
no Banco de Campos, quanto no Banco Comercial e Hipotecário de Cam-
pos, o maior segmento da carteira de crédito estava no desconto de le-
tras, seguido dos empréstimos em conta corrente e cartas de crédito, e,
por último, embora muito pouco representativas, as hipotecas. As letras
descontadas representavam quase 90% do volume de crédito alocado.
Dois anos antes da Abolição da Escravidão, mesmo com uma pequena
variação positiva no percentual de operações inadimplidas, os emprés-
timos mantinham valores significativos nos ativos financeiros das duas
instituições (Pereira, 2018). O montante apurado nos empréstimos reali-
zados pelos dois bancos, exclusivamente no segmento de letras descon-
tadas, ficou em torno de 25% a 30% do volume emprestado pelos bancos
que operavam da Província de São Paulo, na década de 1880 (Marcondes;
Hanley, 2010; Pereira, 2018).
Os caminhos de ferro expandiram-se rapidamente. A EFCC teve
suas obras iniciadas em 1875. Seus trilhos uniam Campos dos Goytaca-
zes às fronteiras com as províncias de Minas Gerais e do Espírito Santo,
consagrando um amplo circuito mercantil regional. As boas expectativas
em torno da ferrovia de 188 km, uma das mais extensas da província
fluminense, giravam em torno da circulação de múltiplas mercadorias
que não estavam restritas apenas ao açúcar, cuja produção mantinha-se
acentuada em Campos, mas, lideradas pelo café produzido em áreas de
ocupação mais recentes, espaços de interseção entre as três províncias.
A Cidade de Campos dos Goytacazes transformou-se em um cen-
tro de conexão ferroviária. Em seu perímetro urbano, concentravam-se
três terminais distintos: o da EFCC, na margem esquerda do Rio Paraíba
do Sul, em frente à cidade, na Freguesia de Santo Antônio de Guaru-
lhos; um segundo terminal, servindo a EFCM, cuja extensão era de 104
km até Macaé, prolongada por um ramal até o Porto de Imbetiba, além
de integrar outro ramal que, partindo de Campos, chegava a Miracema,
passando por São Fidelis e Santo Antônio de Pádua, no extremo norte
fluminense, cujo terminal estava localizado na margem direita do mesmo
rio; e de um terceiro terminal, da EFCS, com 35 km. de percurso, linha
férrea que cobria boa parte da baixada canavieira, cuja estação estava
localizada nas proximidades do centro da cidade. Essa malha ferroviária,

131
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

ativada a partir da década de 1870, montada inicialmente com capitais


locais, alcançou na década posterior, aproximadamente, 400 km em tri-
lhos, chegando ou partindo de Campos. Os caminhos de ferro faziam da
cidade uma expressiva praça mercantil. Ao ligarem as duas margens do
Rio Paraíba do Sul, cumpriam um papel decisivo para produzir mudanças
em uma escala potencial da economia do Império do Brasil.
Campanhas publicitárias nos jornais locais tentavam seduzir in-
vestidores para aportar seus capitais em ações da EFCC, pois se tratava
de “investimento tão seguro e até mais vantajoso do que os papéis do
governo”, os títulos da dívida pública. Estes papéis eram preferenciais
em praças com instituições financeiras ativas ou, como no caso de Cam-
pos dos Goytacazes, onde havia, desde 1835, uma Caixa Econômica, em
razão da “abundância de capitais”, decorrente da “prosperidade do co-
mércio”. Portanto, esse acúmulo de capitais em papéis do Governo pode-
ria ser direcionado aos investimentos em obras de infraestrutura, como
ferrovias, para “cobrir os férteis vales do Paraíba e seus afluentes, até a
contígua província de Minas Gerais”.6 Por que, então, aplicar em apóli-
ces da dívida pública, com ganhos de 6% a.a., se as ações da estrada de
ferro tinham por compromisso render 7% ao ano? Não seria mais rentável
investir em ações da companhia do que colocar capitais a prazo fixo nos
bancos locais, a juros idênticos aos que remuneravam os títulos do Go-
verno? A garantia de juros prestada pelo Governo Provincial assegurava
o investimento, dando certa tranquilidade aos investidores interessados,
pois, da mesma forma que o Governo Central garantia os títulos da dí-
vida pública, a província afiançava as ações lançadas pelas companhias
ferroviárias. Se os juros das apólices da dívida pública eram pagos com
carência semestral, a EFCC ofereceria a mesma regra para animar seus
futuros acionistas. Ao operar com tal garantia, seus sócios fundadores e
majoritários percorriam freguesias e fazendas alcançáveis pela ferrovia,
no afã de constituir o capital necessário à sua instalação. Chegavam, in-
clusive, às províncias vizinhas (Pereira, 2014).
A diversidade da produção local talvez pudesse ser expressa, em
parte, pelos diversos gêneros expostos no Paço Municipal, durante a rea-
lização da I Exposição Municipal de Campos dos Goytacazes, entre os
dias 07 e 17 de setembro de 1871. A exposição tentava acompanhar, em
escala local, a realização de similares nacionais e internacionais, tidos
como “vitrines do progresso e da civilização” no século XIX. O evento
foi organizado pela Sociedade União Artística Beneficente de Campos e

6 Monitor Campista, 17 jan. de 1865, p. 2 e.3. Acervo Arquivo Público Municipal de Campos dos
Goytacazes, doravante APMCG.

132
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

inaugurada por Francisco Portella. Os produtos expostos, de fabricação


local, estavam organizados em seções distintas, a saber: “Indústria Agrí-
cola e Produtos Naturais”, “Indústria Fabril e Manual”, “Artes Mecânicas,
Liberais e Belas Artes” e “Zoologia, Mineralogia e Horticultura”. Exposi-
tores foram agraciados com medalhas de ouro (6); prata (29) e menção
honrosa (54). Dentre os produtos que receberam premiação, podemos
citar: açúcar, café, chá, álcool, sabão, couros, arados, algodão, cravo da
Índia, goiabada, fármacos, tijolos, manilhas, tintas, tornos, prensas, funi-
larias, cal, artefatos de zinco, facões e navalhas, sapatos, colchões, freios
de ferro, tornos, tipógrafos, projetos para máquinas destinadas a enge-
nhos, trabalhos fotográficos, quadros a óleo, aquarelas, colchas e toa-
lhas.7 Nesse aspecto, a exposição evidenciava a diversidade de produtos
cultivados e manufaturados naquela praça.

Limites transpostos
A integração entre espaços regionais encontrou eco nas provín-
cias vizinhas. Marcelo Godoy e Lidiane Barbosa (2008, p. 159-186), ao
analisarem a modernização dos transportes em Minas Gerais, no último
quartel do século XIX, perceberam a importância das obras de infraestru-
tura no processo de formação do mercado interno capitalista, no Brasil.
Segundo os autores, as articulações entre mercados, principalmente, no
Sudeste, serviram para quebrar o isolamento geográfico dos mercados
regionais, reduzir custos de transportes e comunicações, dinamizar a
circulação de pessoas e mercadorias, e universalizar a circulação de in-
formações. Dessa forma, as redes de transportes levavam a economia de
um padrão tradicional para um sistema integrado. Godoy e Barbosa per-
ceberam as demandas por obras públicas na Província de Minas Gerais,
ao identificarem as principais obras de conexão regional, inter-regional e
interprovincial, com centralidade na Zona da Mata mineira.
No caso de Minas Gerais, o objetivo central, além de integrar-se,
era chegar ao mar, o que coincidia com o interesse reverso da Província
do Rio de Janeiro, em adentrar terras alterosas em busca de mercadorias.
A retomada dos planos de obras públicas, apresentada pela província me-
diterrânea, em 1864, consagrava a integração entre mercados regionais a
partir de eixos Mar de Espanha – Leopoldina – Ouro Preto; e Porto Novo
do Cunha – Barbacena – Rio das Velhas, em conexão não apenas com o
Rio de Janeiro, mas com Campos dos Goytacazes.

7 Monitor Campista. Edições entre agosto /outubro de 1871. Acervo do APMCG.

133
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

A lei provincial mineira de nº. 1.762, de 04 de abril de 1871, es-


tabelecia, portanto, segundo os mesmos autores, um plano viário para
a província, para a construção e integração de estradas de rodagem,
concessão de privilégios para a montagem de ferrovias e promoção da
navegação fluvial. O programa apresentava duas possibilidades entre ca-
minhos e atalhos para transpor Minas Gerais e chegar ao Rio de Janeiro,
atingindo seu litoral norte. Por um lado, projetava-se uma estrada de
ferro que unisse São Paulo do Muriaé a Campos dos Goytacazes, trans-
pondo São Fidelis. De outro lado, estudava-se a viabilidade de um ramal
que ligasse Mariana a Itabapoana, nos limites entre as três províncias,
ultrapassando as localidades de Ponte Nova e Tombos do Carangola, in-
tegrando a tríplice fronteira.
A configuração desse tabuleiro regional há tempos fazia parte
do horizonte de lideranças locais como o Visconde de Araruama, José
Carneiro da Silva, anteriormente citado. Segundo Ana Lúcia Nunes (2014,
p. 537), uma representação, enviada pela Câmara Municipal de Campos
dos Goytacazes à Assembleia Provincial Fluminense, em 1835, propunha
a construção de uma ponte sobre o Rio Paraíba, uma estrada de Campos
a São João del Rei, em Minas Gerais, e canais navegáveis na região, in-
dicando os estreitos interesses entre fluminenses e mineiros. O próprio
José Carneiro seria beneficiado com a arrematação do contrato da obra
de construção do canal Campos – Macaé, formalizada em 1844, iniciada
a execução em 1845 e concluída apenas na década de 1870. Pouco tempo
depois, a EFCM entraria em operação, ligando Campos dos Goytacazes
ao Porto de Imbetiba, em Macaé, tornando assim o canal uma obra me-
nor, além de acentuar as críticas e controvérsias sobre sua construção e
sua utilidade.
Os ensaios da província mineira visavam atingir outros portos
fluminenses, como opção ao Porto do Rio de Janeiro. Ficava nítida, por-
tanto, a intenção dos mineiros de privilegiar o intercâmbio entre espaços
meridionais da província mediterrânea para compartilhar interesses co-
muns com baixadas e altiplanos das províncias oceânicas vizinhas. A cha-
ve de interpretação dos argumentos dos autores é a natureza mercantil
da complexa articulação entre regiões e províncias, com o fito de tratar
do abastecimento interno. Para Godoy e Barbosa, as obras públicas nas
províncias surgem como elemento integrador dos interesses regionais,
constituindo um fundamento sólido para a expansão de uma economia
de mercado. Sem dúvida, os projetos do século XIX revelavam a uni-
dade regional historicamente delimitada. A efetividade no escoamento
da produção mineira já estava demarcada pela província fluminense ao

134
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

estabelecer 11 agências para fiscalização de guias do café procedente


de Minas Gerais, dentre as quais podemos identificar algumas delas em
áreas de limites entre as duas províncias, prevalecendo a fronteira norte
da província do Rio de Janeiro: Flores, Mar de Espanha, Muriaé, Pomba,
Porto Novo do Cunha e Porto Velho do Cunha.8
Ponto a ponto, Campos dos Goytacazes tornara-se uma cidade
central às estratégias mercantis do norte fluminense, dos Sertões do Leste
de Minas Gerais e do sul capixaba. A cadeia regional fazia crescer a im-
periosa necessidade de conectar a cidade com o Atlântico, ou seja, fazer
de Campos, porto do mar. Havia a aposta em um complexo intermodal
amplo, que lançava fichas na melhoria das condições de navegação da
barra do Rio Paraíba do Sul, em São João da Barra. Era preciso superar
os obstáculos naturais para a utilização mais eficiente do porto, como
corredeiras e ventos, além dos baixios de São Tomé, que dificultam o
curso da navegação inicial com destino ao Rio de Janeiro (Penha, 2014, p.
524-544). A ideia seria tornar a entrada da barra acessível a embarcações
de maior calado, que pudessem aportar ao cais do Porto de São João da
Barra, colocando-o no roteiro da cabotagem nacional e, por extensão,
em contato com os principais terminais portuários da Europa, Estados
Unidos e da região do Rio da Prata. Se a demanda não fosse viável, havia
a alternativa da construção de um porto marítimo, nas proximidades da
vila sanjoanense, na localidade do Açu, no intuito de garantir uma cone-
xão permanente e vital para o escoamento da produção regional, papel
que seria, em parte, cumprido posteriormente pelas ferrovias.
Ainda que tais problemas estruturais e logísticos não tenham
sido superados, a Companhia União Campista e Fidelista, que detinha
o privilégio da navegação fluvial entre Campos e São Fidelis, além dos
vapores Ceres e Galgo, possuía, em 1863, 61 barcos de navegação conec-
tando portos fluviais com o Atlântico. Cada barco transportava em média
72 toneladas de produtos por viagem.9 Com todas as dificuldades ex-
postas, o Porto de São João da Barra foi fundamental para o intercâmbio
comercial antes das ferrovias entrarem em ação.
Antes da operação da malha ferroviária por Campos dos Goytaca-
zes, o Porto de São João da Barra recebeu, em três meses, ou seja, entre
dezembro de 1865 a março de 1866, 3.637 toneladas de café, transpor-
tadas a partir de São Fidelis em embarcações a vapor ou a vela, pelo Rio

8 Almanak Laemmert, 1863. Províncias, p. 6. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/


div_periodicos/almanak/al1863. Acesso em 27 mar. 2018.
9 Almanak Laemmert. 1863 Província, p. 176/177. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acer
vo_digital/div_periodicos/almanak/al1863. Acesso em: 27 mar. 2018.

135
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Paraíba do Sul.10 Em 1886, dez anos depois da instalação das estradas


de ferro que cruzavam Campos dos Goytacazes, circularam por seus ter-
minais 36 mil toneladas de café11, ou seja, dez vezes mais do que o vo-
lume transportado nas duas décadas anteriores, em conexão fluvial. Ao
contarmos com a hipótese de que o volume de café transportado pela
EFCC, desde então, seguisse, integralmente, para o Porto de Imbetiba,
em Macaé, por transbordo aos vagões da EFCM, podemos inferir que a
expressiva produção de café e de outros itens produzidos e comercializa-
dos na região ou exportados passou a ser transportada até aquele porto
atlântico, que se tornara o último ponto de uma conexão regional mais
ampla pela utilização dos caminhos de ferro. Pela EFCM, seriam trans-
portadas, no mesmo ano de 1886,24.000 toneladas de café, cultivado no
entorno regional, além de 26.000 toneladas de itens diversos e 11.000
toneladas de açúcar. Portanto, somente a EFCM transportou 61 mil to-
neladas de produtos em 1886. Ana Lúcia Nunes (2014) aponta que partia
de Campos, diariamente, da Estação do Saco, terminal da EFCC, uma
composição com 10/12 vagões rumo ao Porto de Imbetiba, em Macaé.
Podemos deduzir, grosso modo, que as ferrovias que cruzavam Campos
dos Goytacazes poderiam ter transportado relevante parcela da produ-
ção de café na Zona da Mata mineira, estimada, naquele mesmo ano, em
64 mil toneladas, equivalentes a 4.316.067 arrobas do produto (Almico,
2009, p. 65). Portanto, esses dados revelam a dimensão da produção e
do intercâmbio mercantil no circuito regional entre Campos dos Goyta-
cazes, a Zona da Mata mineira e o sul capixaba.
Naquele mesmo ano, o francês Alexandre Brethel, fazendeiro de
café no extremo norte fluminense, enviou uma carta aos seus parentes
na França, contando sobre uma viagem de trem feita com sua mulher e
filhas pela EFCC, a nova ferrovia que ligava Santo Antônio do Carangola,
atual Município de Porciúncula, no Rio de Janeiro, a Campos dos Goyta-
cazes. Depois de descrever a cidade, sua modernidade e suas mazelas,
Brethel chamava a atenção para o quanto era rica, utilizando, como um
dos parâmetros, para estabelecer seu ponto de vista, o fato de os dois
bancos locais recusarem depósitos, remunerados ou não, pois não ti-
nham mais onde empregá-los (Massa, 2016). A narrativa do fazendeiro
espelhava uma conjuntura que combinava escravidão e capitalismo ou,

10 Monitor Campista, 13 jan. 1865 e 05 abr. 1866. Acervo APMCG.


11 24.000 toneladas foram transportadas pela Estrada de Ferro Campos – Macaé e 12.000 tone-
ladas transportadas pela Estrada de Ferro Campos – Carangola, totalizando 36.000 toneladas
de café transportadas, ou seja, 2.400.000 arrobas do produto, considerando a relação de 01
arroba por 15 kg.

136
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

talvez, uma escala da economia de mercado imperfeita. Entretanto, o


que importa é que todo esse complexo mercantil escravista, no século
XIX, potencializou uma economia regional da mesma forma como poten-
cializou o capitalismo em contexto global.

Referências
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138
Escravidão e capitalismo: dimensões de uma economia regional no século XIX

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139
COMENTÁRIO
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E RAÍZES ESCRAVAS DA
MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA DO BRASIL

Renato Leite Marcondes

A segunda escravidão procura avançar o entendimento da plan-


tation escravista na economia-mundo do século XIX, reunindo estudos
acerca das cadeias de commodities e dos escravos. As mudanças institu-
cionais e tecnológicas modernizaram a economia, que se reforçava em
bases escravistas. A redução dos preços das commodities, favorecida pela
expansão da produção baseada na escravidão, acelerou o crescimento
britânico. O trabalho escravo em países independentes contribuiu lar-
gamente para a expansão britânica e a disseminação do capitalismo
industrial.
Para o Brasil, o reformismo ilustrado pombalino propiciou, em
momento posterior, o renascimento agrícola colonial do final do sécu-
lo XVIII. A chegada da corte em 1808 ampliou as possibilidades de ex-
pansão econômica. Mais tarde, o país resistiu à pressão inglesa, como a
continuidade do tráfico na ilegalidade. Havia quase um consenso interno
em favor da manutenção do tráfico. Após 1831, houve uma retração do
comércio ilegal, que, no entanto, foi retomado, em 1835, com a centrali-
zação monárquica. A escravidão deixou de ser colonial para se constituir
em peça-chave da economia nacional.
A proposta de pesquisa de Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico
estuda a persistência da escravidão para além do Sudeste, não se restrin-
gindo às informações demográficas dos escravos. Os outros complexos não
cafeeiros devem ser analisados por meio dos desdobramentos do tráfico
e da presença de uma população cativa expressiva até o final do Império.
Saraiva e Almico pretendem encontrar as raízes escravas do processo
de modernização da economia brasileira no século XIX, que poderia ser
denominado de uma modernização conservadora. As economias mercantis
escravistas regionais constituem a agenda de pesquisa proposta.
Algumas questões podem ser levantadas para a discussão, que
deve ser pautada também pela análise do desenvolvimento econômico

141
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

brasileiro no século XIX. E não apenas a partir da obra sobejamente co-


nhecida de Celso Furtado, mas também a de Cláudio Contador & Cláudio
Haddad (1975), Nathaniel Leff (1991), Mircea Buescu (1979), John Coast-
worth (1998), Stephen Haber (1997) etc. Esses autores apontaram para
o desempenho bastante limitado da renda per capita no Brasil do século
XIX, em comparação a outros países da América Latina e principalmente
aos EUA. Nesse debate, as razões do atraso brasileiro decorrem da geo-
grafia desfavorável, da herança colonial e instituições pouco favoráveis
ao desenvolvimento, da elevada desigualdade de riqueza e poder, da ins-
tabilidade pós-independência etc. Todos esses elementos precisam ser
considerados na proposta.
A existência de mais indústrias, bancos e urbanização nas regiões
de maior presença de escravos não constitui evidência suficiente para
rechaçar a tese de que a escravidão atrasou a modernização da economia
brasileira. Estarem numa mesma região não contraria essa tese. Há a ne-
cessidade de estabelecer uma relação de causalidade entre as variáveis.
Regiões mais ricas e de maior renda concentravam a posse de cativos,
mas não significa que a escravidão explique o crescimento econômico
da área.
As fazendas possuidoras de mais escravos conseguiam tomar
mais crédito. Porém, não por serem mais promissoras ou rentáveis do
que as demais, mas por deterem maiores garantias de pagamento. Os
ativos líquidos eram os escravos e as safras futuras, que poderiam mais
facilmente ser mobilizados para o financiamento. Nesse sentido, a desi-
gualdade da oferta de crédito entre os produtores de diferentes portes
foi um mecanismo importante de diferenciação social.
A economia da borracha vivenciou uma extraordinária expansão
desde o meado do século XIX. O crescimento realizou-se baseado em
mão de obra escrava, mas também cada vez mais por meio de traba-
lhadores livres, vinculados ao barracão. Nesse caso, não há turmas de
escravos, como no açúcar. Por outro lado, a economia de mercado inter-
no foi pouco destacada na discussão dos autores, e sem dúvida parcela
expressiva dos escravos alocava-se nessas ocupações. Não apenas o fumo
e o algodão direcionavam-se para o mercado doméstico, mas também
um leque amplo de produtos agropecuários e até mesmo manufaturas.
A proposta busca verificar se o desenvolvimento industrial brasi-
leiro foi explicado pela expansão das exportações e do emprego da mão
de obra escrava. De outro lado, o crescimento do mercado interno e as
questões das relações de trabalho escravista e livre constituem peças-
-chave para o entendimento da industrialização.

142
Segunda escravidão e raízes escravas da modernização capitalista do Brasil

A agenda de pesquisa proposta pode ser o início de uma discus-


são relevante sobre a economia brasileira no século XIX que permita su-
perar as visões clássicas e incorporar os novos estudos e resultados mais
recentes. Muitas das informações apresentadas pelos autores tratam do
período final do século XIX e início do XX, dificultando a comparação
com o período escravista. A concentração da indústria, bancos e paten-
tes ocorreu nos grandes centros urbanos, enquanto a escravidão, ao seu
final, centrou-se mais no meio rural. A criação de um grupo de pesquisa
dedicado a essa agenda deve alavancar o debate e permitir novas contri-
buições e informações, principalmente até o final do Império.

Walter Pereira – Campos na segunda metade do século XIX


O autor destaca o município de Campos dos Goytacazes, que re-
velou uma grande prosperidade e a incorporação de inovações na segun-
da metade do século XIX. De modo oportuno, logo no início do texto,
o autor ressalta que Campos faz parte da bacia do Rio Paraíba do Sul.1
Todavia, a sua economia manteve um dinamismo menos atrelado ao café,
que dominava o restante do Vale do Paraíba em meados do século XIX.
Esse dado chama a atenção para a necessidade de analisarmos o conjun-
to da bacia, que compreende realidades fluminenses, mineiras e paulis-
tas. A consideração da bacia do Paraíba é mais importante para o Rio de
Janeiro, pois abarca mais da metade da área fluminense, enquanto menos
de um décimo para os demais estados.
Uma rede fluvial favorecia a circulação de pessoas e mercado-
rias na região do baixo Paraíba do Sul, interligada à capital fluminense,
por cabotagem, e ao sul do Espírito Santo. O destaque do vínculo de
Campos com as bacias do Itabapoana, na divisa com o Espírito Santo, e
do Itapemirim pareceu-me exagerado, já que o comércio direcionava-se
principalmente ao Porto do Rio de Janeiro. Apenas com a ferrovia, nas úl-
timas décadas do século XIX, haveria um fluxo maior de mercadorias do
sul do Espírito Santo, através da região de Campos, e depois até a capital
fluminense. Os esforços de integração continuavam na primeira década
republicana, principalmente por meio do escoamento da produção cres-
cente de café. Assim, a centralidade de Campos encontrava-se mais bem
configurada ao final do século XIX.
Campos demonstra a importância da escravidão na oferta múl-
tipla de commodities, especialmente açúcar e café. Na primeira metade

1 Macaé não faz parte da bacia do Rio Paraíba do Sul.

143
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

do século XVIII, a criação de gado era a atividade mais relevante. Poste-


riormente, o açúcar assumiu a posição principal. Embora o café tenha se
tornado gradualmente mais importante no norte fluminense, o açúcar
ainda mantinha desempenho destacado. Contudo, houve exportação de
açúcar expressiva até os últimos anos do Império.
Várias inovações tecnológicas ocorreram no município, princi-
palmente no setor de transportes (bondes, ferrovias e vapores) e nos
serviços de iluminação e comunicação. O emprego de moendas a vapor
generalizou-se entre as fábricas de açúcar. Dois bancos formaram-se em
Campos, mantendo ativos expressivos. De modo semelhante, a própria
ferrovia de interligação com Minas e Espírito Santo foi montada princi-
palmente por meio de capitais locais. Por fim, na perspectiva da segunda
escravidão, faltou uma consideração maior acerca da população escrava
de Campos, além dos totais dos censos, e apresentar o contingente rural
relativamente ao urbano, bem como as diferentes atividades de traba-
lho dos cativos, desde as agrícolas internas ou externas a, até mesmo,
as artesanais e comerciais. O perfil demográfico dos escravos também
pode auxiliar na análise da intensidade do crescimento da população e
do tráfico até 1850.

Referências
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144
COMENTÁRIO
SEGUNDA ESCRAVIDÃO, ESPAÇOS ECONÔMICOS E
DIVERSIFICAÇÃO REGIONAL NO BRASIL IMPERIAL

Gabriel Aladrén

Este texto reúne algumas observações sobre a mirada renovada


que o conceito de segunda escravidão oferece sobre a relação entre es-
paços econômicos, regiões e a economia-mundo, tendo como foco o Bra-
sil no século XIX. Meu argumento enfatiza a importância de incorporar
analiticamente a diversidade econômica e regional do Império brasileiro
aos quadros conceituais da segunda escravidão. No final, comento os
dois trabalhos que compõem esta seção do livro e trazem uma importan-
te contribuição para o tema.
Os debates estimulados pela introdução e a difusão do conceito
de segunda escravidão no Brasil têm se traduzido em uma importante
renovação historiográfica. Em primeiro lugar, há uma retomada de dis-
cussões teóricas e metodológicas nos estudos da escravidão, algo que
costuma ocorrer sempre que um novo paradigma ganha adesão em um
campo científico. Não se trata da necessidade de afirmação ou do desejo
de estabelecer uma posição na sólida historiografia sobre a escravidão
brasileira. Percebe-se claramente um retorno aos grandes problemas teó-
ricos, tais como a relação entre estrutura, eventos e agência, a carac-
terização de sistemas, processos e rupturas, e as concepções sobre as
dimensões do tempo e do espaço na história da escravidão.
Naturalmente, essas reflexões estão presentes nos estudos atuais
sobre a escravidão, mas muitas vezes elas perdem a centralidade em nos-
sas pesquisas cotidianas sobre objetos específicos e ficam relegadas aos
especialistas dos campos de Teoria da História e História da Historiogra-
fia. Portanto, me parece importante e salutar a combinação de pesquisas
empíricas consistentes, um atributo da historiografia brasileira nas últi-
mas décadas, com abordagens teóricas explicitamente articuladas, algo
que os historiadores que dialogam com o conceito de segunda escravi-
dão realizam com sofisticação.
Um segundo ganho notável que a perspectiva da segunda escra-
vidão oferece é o potencial engajamento nas discussões sobre o mundo

145
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

contemporâneo. A desigualdade é percebida como o principal proble-


ma do capitalismo na atualidade. A disparidade de renda e riqueza tem
aumentado em todos os continentes e de forma dramática na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos, áreas que constituíram o centro do capi-
talismo global ao longo de sua existência. A desigualdade avança à medi-
da que o poder do capital se fortalece em detrimento dos trabalhadores
e os Estados e sistemas políticos, incluindo as democracias liberais, se
tornam espaços controlados por plutocratas e cada vez mais refratários
às demandas populares. Esse conjunto de fatores tem provocado um vivo
debate sobre a natureza e os rumos do capitalismo. Economistas, histo-
riadores, sociólogos e cientistas políticos têm empregado com frequên-
cia termos como patrimonialista, oligárquico e rentista para caracterizar
o capitalismo contemporâneo, e há aqueles que entendem que o sistema
está em crise terminal.
Neste século, o capitalismo está aparentemente perdendo atri-
butos que o definiam de acordo com a acepção hegemônica do conceito,
tais como a centralidade do trabalho livre assalariado e o predomínio da
economia de mercado autorregulado, os quais, em chave de leitura libe-
ral, ensejariam a maximização das liberdades humanas e a formação de
sociedades democráticas fundadas nos princípios da propriedade priva-
da e da igualdade perante a lei. Ao demonstrar que o sistema capitalista,
em suas origens e no decorrer de sua existência, se apropriou, promo-
veu e dependeu de um conjunto diversificado de relações de produção e
formas de trabalho não livre, como a escravidão negra, os historiadores
podem oferecer uma contribuição decisiva para a compreensão da crise,
dos conflitos e da dinâmica global do capitalismo.
Os pesquisadores brasileiros, em particular, estão em uma po-
sição privilegiada para articular a produção historiográfica nacional aos
estudos sobre o capitalismo contemporâneo. O Brasil tem um passado
marcado pelo escravismo e, como espaço de expansão de fronteiras da
mercadoria, constituiu zona periférica crucial para a formação e a repro-
dução da economia-mundo capitalista. Não por acaso, a historiografia
brasileira produziu uma rica e qualificada tradição de estudos sobre a
escravidão que remonta à época da Abolição. Ao mesmo tempo, também
integra a luminosa tradição intelectual latino-americana de interpretação
e análise da desigualdade social, do subdesenvolvimento e das relações
centro-periferia. O diálogo com o conceito de segunda escravidão pres-
supõe a combinação de fundamentos analíticos de ambas as tradições, o
que possibilita oferecer um aporte original e relevante para a compreen-
são da dinâmica do capitalismo global.

146
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

Uma preocupação central dos historiadores que trabalham com o


conceito, evidente entre os participantes do Seminário que deu origem
a este livro, é evitar seu engessamento. Mais do que uma categoria, jul-
ga-se conveniente pensar a segunda escravidão como uma perspectiva
de produção de conhecimento histórico sobre a escravidão moderna,
cujos fundamentos seriam o enquadramento analítico global, a atenção
às escalas e unidades de análise e observação, e o esforço dirigido para
a construção de interpretações e explicações totalizantes dos processos
históricos. Assim se evitaria, por um lado, a reificação do conceito – no
sentido de definir com absoluta precisão e completude seu conteúdo
empírico a ponto de torná-lo contingente e sem validade analítica para
além de objetos de investigação específicos – e, por outro, sua transfor-
mação em um modelo ao mesmo tempo fechado em suas premissas e
abrangente em sua utilização, passível de aplicação indistinta aos mais
diversos enquadramentos cronológicos e espaciais e conjuntos de evi-
dência empírica.
Com efeito, o emprego do conceito de segunda escravidão não é
monolítico. Há diferentes maneiras de compreendê-lo e avaliar sua per-
tinência e contribuição aos estudos históricos. Além tomar a segunda
escravidão como uma perspectiva – uma espécie de modelo dinâmico e
aberto –, ela também pode ser entendida como uma estrutura histórica
nos quadros do capitalismo industrial ou como uma categoria que des-
creve a instituição da escravidão on the ground, isto é, sua forma social e
econômica nas áreas de expansão das fronteiras do algodão, do café e do
açúcar nos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba no século XIX.
Compreender as diferentes leituras e maneiras de empregar o
conceito é especialmente relevante quando avaliamos a diversidade re-
gional do Império do Brasil, seus espaços econômicos e as feições espe-
cíficas que a escravidão assumia em cada zona geográfica e setor produ-
tivo. O processo mais visível no desenvolvimento da segunda escravidão
é a ampliação da escala de produção escravista de commodities essenciais
para as zonas industrializadas e urbanizadas do Atlântico Norte. Na dé-
cada de 1830, Estados Unidos, Cuba e Brasil eram os líderes no merca-
do mundial de algodão, açúcar e café. Entre os quinquênios 1821-25 e
1856-60, o volume de algodão produzido nos Estados Unidos aumentou
oito vezes, o de açúcar exportado por Cuba sete e o de café exportado
pelo Brasil doze. Em fins da década de 1850 o algodão norte-americano
dominava 77% do mercado consumidor britânico, 90% do francês, 60%
do germânico (Zollverein) e 92% do russo. Cuba produzia 25% do açúcar
mundial e o café brasileiro compunha mais de 50% da oferta no mercado

147
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

internacional. Naturalmente, esses artigos dominaram a pauta de expor-


tação de seus respectivos países. O algodão representava 50% do valor
total das exportações estadunidenses na década de 1850. O açúcar, nas
décadas de 1850 a 1870, entre 65% e 85% dos ingressos das exportações
cubanas. O café, na década de 1850, 49% do valor das brasileiras.1
Contudo, isso não significa afirmar que a escravidão oitocentista
girava unicamente em torno desses três cultivos. Entre 1790 e 1830, par-
ticularmente em Cuba e no Brasil, a escravidão se expandiu por um amplo
conjunto de atividades produtivas e regiões. Nessa época a escravidão se
espraiou pelo tecido social e estrutura econômica desses dois espaços e
apresentou sua face mais diversificada. Um conjunto de fatores explica o
quadro. A economia-mundo capitalista, entre 1750-1815, experimentou
uma conjuntura inflacionária que acirrou a competição entre os impérios
europeus pelo domínio do sistema interestatal. A Guerra dos Sete Anos,
a Independência dos Estados Unidos, a Revolução de São Domingos e as
guerras revolucionárias europeias foram marcadas por essa conjuntura
e, por sua vez, produziram alterações profundas no mercado atlântico.2
A Revolução do Haiti, em particular, retirou de cena a maior for-
necedora mundial de açúcar e café, uma oportunidade que os produto-

1 As informações sobre as exportações cubanas e brasileiras de açúcar e café e sua participação


no mercado mundial se baseiam em Marquese (2019, p. 147-148). Para a composição do valor
das exportações brasileiras cf. Pinto (1977, p. 139). Uma recente reavaliação das séries de
exportação do Brasil no século XIX não altera substancialmente o peso do café na década de
1850 (Absell; Tena-Junguito, 2016, apêndice 4). A participação do açúcar entre as exportações
cubanas se baseia em García; Santamaría (2006, p. 90-91). Para a composição da oferta mundial
de algodão e a participação norte-americana nos mercados europeus cf. Beckert (2014, caps.
5 e 9). Os dados sobre a produção de algodão nos Estados Unidos podem ser encontrados em
U.S. Bureau of the Census (1975, série K554, p. 518). Para a fatia do algodão no valor total
das exportações estadunidenses cf. Schoen (2009, p. 123). Se observarmos apenas os estados
escravistas obviamente o peso do algodão era muito maior. Às vésperas da Guerra Civil o item
representava 86% do valor das exportações sulistas, incluindo as destinadas aos estados livres
(Huertas, 1979, p. 89-90). Trata-se, no entanto, de um cálculo aproximado, pois os portos
sulistas reexportavam mercadorias dos estados livres do Oeste e do Norte. Para estimar as
exportações de artigos produzidos nos estados escravistas, costuma-se excluir do cálculo os
que provavelmente tinham origem em outros estados. A estimativa de Huertas, por exemplo,
não computa a farinha de trigo. Na década de 1850, mais de 15% das exportações estaduniden-
ses do artigo saíram dos portos de Richmond e Baltimore, cujos moinhos processavam trigo
cultivado por escravos na Virginia (Rood, 2016, p. 87-88).
2 Tâmis Parron caracteriza o período como uma conjuntura inflacionária de integração comple-
mentar dos mercados imperiais. Os Estados europeus, mirando as oportunidades geradas pelo
aumento de preços internacionais, aprofundaram a divisão internacional do trabalho para as-
segurar competitividade no sistema interestatal. As trocas eram de tipo complementar porque
os regimes de monopólio e preferências favoreciam a intensificação do comércio no interior
dos impérios. A produção mundial de artigos tropicais aumentou de maneira constante, lenta
e diversificada. Mesmo zonas produtoras pouco competitivas cresceram, aproveitando os pre-
ços ascendentes e os mercados protegidos (Parron, 2015, p. 14-22).

148
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

res cubanos e brasileiros não tardaram a aproveitar. Em Cuba, o açúcar


deslanchou no fim do século XVIII, mas foi acompanhado por um de-
sempenho igualmente impressionante do café. A pecuária, o cultivo de
alimentos e os serviços de transporte e infraestrutura urbana também
se desenvolveram incentivados pelo crescimento do setor exportador.
A escravidão negra esteve na base desse crescimento diversificado. Em
fins da década de 1820, os escravos cubanos estavam distribuídos em
proporções praticamente iguais por quatro setores da economia: açúcar;
café; serviços urbanos e manufaturas; criação de animais e cultivos di-
versos, especialmente alimentos e tabaco (Bergad, 2007, p. 142). O trá-
fico negreiro se intensificou. Entre 1791 e 1830, quase 350 mil africanos
escravizados chegaram à ilha, quantidade mais de dez vezes superior à
registrada nos cem anos precedentes. As décadas de 1810 e 1820 foram
particularmente brutais, com uma média de aproximadamente 12,6 mil
escravos desembarcados por ano, um salto em comparação aos 4,8 mil
do intervalo 1791-1810.3
No Brasil também se observam processos concomitantes de di-
versificação e expansão da produção escravista. O tradicional setor açuca-
reiro da Bahia e de Pernambuco foi revitalizado e novas zonas produtoras
foram abertas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Maranhão e províncias do
Nordeste se tornaram importantes produtoras de algodão e o Brasil pas-
sou a fornecer quantidades expressivas do artigo para o mercado britâni-
co. Os couros tiveram participação significativa na pauta de exportações.
O café demorou um pouco mais a arrancar, mas seu cultivo já se mostrava
promissor após 1808. Na década de 1820 a cafeicultura escravista do Vale
do Paraíba deslanchou. O crescimento geral das exportações brasileiras
dinamizou o mercado de abastecimento com efeitos importantes na pe-
cuária e na produção de alimentos para o mercado interno (Alden, 2004;
Luna; Klein, 2010; Marquese; Salles, 2016).
Uma região periférica e de fronteira como o Rio Grande do Sul,
onde a escravidão negra tivera pequena importância econômica em suas
primeiras décadas de ocupação, se tornou escravista com uma economia
de abastecimento (charque e trigo) e exportação (couros) vinculada aos cir-
cuitos mercantis e mercados consumidores do Rio de Janeiro e do Nordes-
te. O tráfico transatlântico foi crucial, mas nas zonas fronteiriças de pecuá-
ria os crioulos eram mais numerosos do que os africanos (Aladrén, 2012).
Minas Gerais havia se voltado à produção de mantimentos e in-
sumos após a crise da mineração e encontrou novos mercados com a

3 Aqui e doravante os dados sobre o tráfico transatlântico foram extraídos do banco de dados
Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. https://www.slavevoyages.org

149
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

revitalização da economia exportadora no Sudeste e o crescimento po-


pulacional da Corte. O motor da economia mineira foi o abastecimento
da província do Rio de Janeiro, facilitado pela infraestrutura de transpor-
tes e caminhos montada no século XVIII. Os escravos foram essenciais,
mesmo com a diminuição de seu peso em um contexto marcado por um
acelerado aumento da população livre de cor. Os escravos constituíam
quase 50% da população de Minas Gerais em 1786 e um pouco menos
de 30% em 1833 (Bergad, 1999, p. 26-43; 90-93). Depois de 1808 houve
crescimento absoluto da população escrava, embora os historiadores di-
virjam na explicação do fenômeno.4
Os números do tráfico transatlântico acompanharam a nova con-
juntura. Entre 1791 e 1830 entraram 1,6 milhões de africanos escravi-
zados no Brasil, quantidade quase duas vezes superior à dos quarenta
anos anteriores. Pouco mais de 50% desembarcaram no Centro-Sul (Rio
de Janeiro) e o restante na Bahia, Pernambuco, Maranhão e Grão Pará.
Assim como em Cuba, a intensidade do tráfico foi brutal nas décadas de
1810 e 1820, com uma média anual de quase 49 mil escravos, incremen-
to expressivo em relação aos 31 mil do período 1791-1810.
A redistribuição dos africanos que entravam pelo porto do Rio de
Janeiro corrobora a interpretação de que a época foi caracterizada pela
diversificação regional da escravidão. Os dados disponíveis são fragmen-
tários, mas apresentam razoável solidez para a segunda metade da déca-
da de 1820, quando Minas Gerais recebeu uma quantidade de escravos
novos superior à do interior da província do Rio de Janeiro (42% a 34%).
Depois seguiam São Paulo (15%) e Rio Grande do Sul (5%). No agro flu-
minense os municípios cafeeiros ainda não eram os maiores clientes do
tráfico transatlântico, posição que cabia à zona açucareira de Campos.5

4 Laird Bergad nota a crioulização da população escrava mineira e a importância da reprodução


natural. O autor alega que Minas Gerais praticamente interrompeu a importação de africanos
entre 1790 e 1820, voltou a fazê-lo até 1840, mas diminuiu o ritmo antes mesmo do fim do
tráfico transatlântico (Bergad, 1999, p. 142-146). Roberto Borges Martins descarta, baseado
em indícios convincentes, a interrupção do tráfico sublinhada por Bergad e defende, com ar-
gumentos mais frágeis, que o tráfico transatlântico foi o principal responsável pelo crescimen-
to da população escrava mineira até 1850 (Martins, 2018, p. 541-570). Douglas Libby sugere
que somente uma combinação entre reprodução natural e tráfico explica o fenômeno (Libby,
2008).
5 Os dados da redistribuição de escravos novos (africanos recém-chegados via tráfico transa-
tlântico) foram levantados e sistematizados por Fragoso; Ferreira (2001) com base nos passa-
portes e despachos da Intendência de Polícia do Rio de Janeiro. As proporções mencionadas
se referem ao intervalo 1824-1830, o mais consistente da série. Para a importância de Minas
Gerais como província compradora cf. também Florentino (1997, p. 38-41). Campos foi o des-
tino de 53% dos africanos desembarcados na Corte e remetidos para o interior da província do
Rio de Janeiro, de acordo com Soares (2017, p. 77-79) com base no banco de dados de Fragoso

150
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

A aceleração do tráfico negreiro no período 1791-1830 forneceu


trabalhadores escravizados para diversas províncias brasileiras, do Norte
ao Sul. No Brasil, assim como em Cuba, a fase de montagem da Segunda
Escravidão não se traduziu em especialização nos principais artigos de
exportação e tampouco acentuada concentração da propriedade escrava.
A escravidão alcançou uma importância econômica e uma diversificação
regional e social até então inéditas.6
A situação mudaria depois. De acordo com Tâmis Parron, na se-
gunda metade da década de 1810, as condições que haviam criado o qua-
dro mundial hiperinflacionário desapareceram. A Grã-Bretanha adotou o
padrão-ouro e as monarquias europeias, bem como os Estados Unidos,
instituíram barreiras alfandegárias para proteger sua economia domésti-
ca (manufaturas e cereais). Ao mesmo tempo, facilitaram a importação de
artigos como o algodão, o café e, em alguns casos, o açúcar, cujos preços
mundiais passaram a convergir e a declinar. A economia-mundo entrou
em uma fase deflacionária de alta pressão competitiva sobre os produ-

e Ferreira. A mesma fonte serviu para Roberto Borges Martins estimar que no período 1811-
1830 o Rio de Janeiro importou 225 mil africanos novos, Minas Gerais 224 mil, São Paulo 65
mil, Rio Grande do Sul 23 mil e demais destinos (Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso e Espírito
Santo) 17 mil (Martins, 2018, p. 551-556). Em seu cálculo, Martins projetou a distribuição dos
escravos novos registrados nos despachos para a quantidade total de africanos desembarca-
dos no Rio de Janeiro, de acordo com os dados do Trans-Atlantic Slave Trade Database. Sua
estimativa deve ser lida com muita reserva, por diversos motivos. Primeiro, por assumir que os
proprietários urbanos da Corte não compravam africanos recém-chegados, o que é insustentá-
vel. O principal problema, no entanto, é a baixa representatividade do registro nos despachos
perante os dados sobre os africanos introduzidos via tráfico transatlântico. No intervalo 1824-
30, o mais sólido, ela montava a 55%. Em toda a série (1809-1833), a 35% (Fragoso; Ferreira,
2001, quadro 3). Isto é, a fonte não fornece informações sobre o destino de 65% dos escravos
desembarcados. O equívoco da projeção pode ser aferido por meio de um teste. Segundo
Martins, no decênio 1811-1820 o Rio Grande do Sul recebeu 1.567 africanos novos remetidos
do Rio de Janeiro. Contudo, documentos lacunares sobre a entrada de escravos na capitania
sulina registram a entrada de 14.567 escravos africanos e crioulos no mesmo período (Ala-
drén, 2012, p. 53). Desses, 1.176 vieram de Salvador (Ribeiro, 2005, p. 115). Entre os 13.391
restantes, quantos eram novos? Baseado na proporção de crioulos e africanos novos e ladinos
no tráfico para o Rio Grande (Aladrén, 2012, p. 107), calculo que a capitania tenha recebido
10.300 africanos novos provenientes do Rio de Janeiro no decênio 1811-1820, quantidade
6,5 vezes maior do que a computada por Martins. Presumo que distorções também seriam
identificadas se o mesmo teste pudesse ser aplicado para São Paulo. De todo modo, a despei-
to das imprecisões da estimativa de Martins, não há dúvida de que Minas Gerais e o interior
da província do Rio de Janeiro foram os principais destinos dos africanos desembarcados no
Centro-Sul entre 1808 e 1830.
6 Contudo, nas zonas em que a intensificação do tráfico transatlântico se combinava com a
montagem de unidades produtivas agroexportadoras houve concentração da propriedade
escrava. No agro fluminense, entre 1790 e 1835, os senhores com pelo menos cinquenta es-
cravos aumentaram sua participação no conjunto dos escravos possuídos de 33% para 46%
(Florentino, 1997, p. 28-30). Em São Paulo, entre 1804 e 1829, os proprietários de mais de
quarenta cativos aumentaram sua participação de 11% para 29% (Luna; Klein, 2005, p. 158).

151
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

tores escravistas, que Parron define como uma conjuntura do mercado


integrado mundial de commodities da periferia. A escravidão tendeu a se
concentrar geograficamente nas fronteiras dinâmicas do algodão (Esta-
dos Unidos), café (Brasil) e açúcar (Cuba), e socialmente entre os grandes
fazendeiros que podiam enfrentar a queda dos preços e o acirramento
da competição por meio do incremento da produtividade e da ampliação
da escala de seus empreendimentos (Parron, 2015, p. 22-23; 213-221).
A evolução da escravidão em Cuba expressa a mudança de ma-
neira cristalina. Entre 1831 e 1860, pouco menos de 370 mil africanos
escravizados desembarcaram na ilha, uma média de 12,2 mil por ano,
praticamente igual à dos vinte anos precedentes. Contudo, era cada vez
mais provável que os recém-chegados fossem enviados para trabalhar
nos engenhos. No ocidente cubano, a região mais rica e populosa, havia
intensa competição por terra e mão de obra entre os produtores de açú-
car e café. Ao longo das décadas de 1830 e 1840, o café cubano entrou
em declínio, muito em função do sucesso dos fazendeiros do Vale do
Paraíba que avançaram sobre o mercado norte-americano e passaram a
influenciar os preços mundiais do artigo. Pesados investimentos na ma-
lha ferroviária e na mecanização dos engenhos ampliaram a rentabilidade
e a vantagem comparativa do açúcar. Por fim, os furacões que atingiram
a ilha em meados da década de 1840 devastaram os cafezais. O resulta-
do foi uma massiva drenagem de recursos (escravos, terras e capitais)
para o setor açucareiro, em detrimento de outras atividades produtivas
(particularmente o café) e de proprietários que não tinham condições
de arcar com os investimentos necessários para ampliar a escala de suas
operações (Tomich, 2011, p. 106-115; Marquese; Tomich, 2015; Funes;
Tomich, 2009).
A evolução das exportações cubanas reforça o quadro. Em 1837,
o açúcar representava 48% de seu valor, participação que beirou os 80%
na década de 1860 (García; Santamaría, 2006). Se antes os escravos esta-
vam distribuídos por diversos setores da economia, no início da década
de 1860 47% trabalhavam nas unidades açucareiras. Pouco mais de 20%
viviam nas cidades. O restante estava disperso na criação de gado, cultivo
de alimentos, café e tabaco (Scott, 2000, p. 10-12).
A escravidão acompanhou a geografia da expansão açucareira.
Em 1862, 70% da população escrava residia nas províncias de Havana,
Matanzas e Santa Clara, as principais produtoras do artigo (Bergad; Fe
Iglesias; García, 1995, p. 32-33). A posse de escravos se concentrou entre
os grandes proprietários. A mecanização dos engenhos e a instalação da
malha ferroviária permitiram a expansão de suas plantas produtivas, com

152
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

a incorporação de mais terras e trabalhadores (Funes; Tomich, 2009).


Plantations com centenas de escravos proliferaram. Em Matanzas, havia
em média 159 por engenho, em Havana 149 e em Santa Clara 90 (Scott,
2000, p. 22). Mesmo se tomarmos Cuba em seu conjunto, a posse era
concentrada. Em 1857, um quarto dos escravos pertencia a grandes pro-
prietários, possuidores de mais de 80 cativos. Computadas apenas as
unidades rurais, a proporção atingia 31% (Engerman; Higman, p. 74).
No Brasil, o novo regime de trocas também provocou uma mu-
dança substancial no desenvolvimento econômico, social e geográfico
da escravidão. Entre 1831 e 1850, pouco menos de 740 mil africanos
escravizados desembarcaram nos portos do Império, uma média anual
de quase 37 mil. A diminuição da intensidade do tráfico na comparação
com o período 1811-1830 pode ser explicada por dois fatores. Primei-
ro, os agentes que conceberam e aprovaram a lei de 7 de novembro de
1831, bem como traficantes e proprietários, acreditavam que ela cessaria
o comércio transatlântico de escravos. Não se tratou de uma “lei para
inglês ver” e os números do tráfico assim o demonstram. Entre 1831 e
1834, foram introduzidos apenas 46 mil escravos. Foi somente no fim da
década de 1830 que a cada vez mais poderosa classe senhorial do eixo
Rio-Minas-São Paulo logrou costurar uma aliança com agentes políticos
para reabrir o tráfico transatlântico por meio do contrabando em larga
escala protegido pelo Estado imperial (Parron, 2011, p. 84-191; Parron,
2015, p. 309-348).
O segundo fator está relacionado ao desempenho dos setores da
economia escravista no Brasil. Se no período 1791-1830 diferentes pro-
víncias e atividades produtivas se beneficiaram da aceleração do tráfico
negreiro em um contexto de crescimento e dinamismo de suas econo-
mias, agora a demanda era puxada pelas zonas de expansão da cafeicul-
tura no Sudeste. O Centro-Sul foi o destino de 78% dos africanos escra-
vizados que chegaram ao Brasil entre 1831 e 1850. A população escrava
da província do Rio de Janeiro (excetuando a Corte) saltou de 120 mil em
1821, para 294 mil em 1850. Em São Paulo, de 64 mil em 1822, para 118
mil em 1854. Na Corte, de 55 mil em 1821, para 111 mil em 1848 (Luna;
Klein, 2010, p. 192-195).
A desaceleração do crescimento econômico das províncias do
Norte já era visível desde a Independência, e houve retração do ritmo do
tráfico na década de 1820 em comparação à anterior. As entradas dimi-
nuíram 45% no Maranhão e Grão-Pará, e 15% na Bahia e Pernambuco, ao
passo que aumentaram 51% no Rio de Janeiro. A comparação global dos
períodos 1791-1830 e 1831-1850 amplifica o contraste. No Centro-Sul, a

153
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

média anual de escravos desembarcados teve um crescimento de 40%. No


Norte e Nordeste, uma queda de 57%.
A pressão competitiva do mercado integrado mundial de com-
modities da periferia jogou a produção brasileira de algodão em crise e a
de açúcar em ritmo de crescimento lento. Os efeitos da nova conjuntura
atingiram de maneira desigual os setores e as províncias produtoras dos
dois artigos, também em função de circunstâncias locais. As exportações
de algodão, cultivado especialmente no Maranhão e em Pernambuco,
haviam crescido exponencialmente depois da década de 1780, puxadas
pela demanda da industrialização britânica. A produção norte-americana
reconfigurou o mercado mundial e provocou declínio dos preços do ar-
tigo a partir de 1819. As exportações brasileiras decaíram em valor e de-
pois de 1837 também em volume, especialmente no Maranhão. O setor
se recuperou brevemente durante a Guerra de Secessão (Pereira, 2017,
p. 24-80). Na década de 1820 o algodão ainda representava 21% do valor
das exportações brasileiras, participação que caiu para 7,5% na década de
1840 (Pinto, 1977, p. 135).
A trajetória do açúcar é mais complexa. O volume e os ingressos
das exportações brasileiras cresceram até a década de 1850. Só é possí-
vel identificar uma crise no período posterior, quando o incremento do
volume exportado não mais compensava a queda dos preços.7 Contudo,
uma mirada comparativa com a trajetória do açúcar cubano demonstra a
perda de dinamismo do setor em um momento de expansão da demanda
na Europa e nos Estados Unidos. Entre os quinquênios 1821-25 e 1856-
60, a média anual de açúcar exportado no Brasil aumentou de 41 mil para
106 mil toneladas métricas, enquanto em Cuba saltou de 63 mil para 435
mil. Assim como a competitividade da produção cafeeira do Brasil havia
contribuído para deprimir a de Cuba, a eficiência da produção açucareira
cubana limitou as possibilidades de crescimento da brasileira (Marquese,
2019, p. 147-149). Para compreender a relação entre os movimentos, a
chave é o mercado consumidor dos Estados Unidos, que se expandiu
fortemente a partir da década de 1830. Por suas respectivas capacida-
des produtivas, bem como por políticas tarifárias e redes mercantis, os
cafeicultores brasileiros e senhores de engenho cubanos encontraram
nos Estados Unidos seu principal mercado e expulsaram, ou pelo menos

7 Dados sobre o volume e valor das exportações de açúcar foram compilados por Eisenberg
(1974, p. 9-10). A crise atingiu as zonas produtoras de modo desigual. A Bahia experimentou
estagnação e declínio a partir da década de 1860, mas Pernambuco e outras províncias do
Nordeste ampliaram sua produção. Para o desempenho das diferentes províncias cf., além de
Eisenberg, Barickman (2003; 1996) e Galloway (1971).

154
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

reduziram, a fatia dos concorrentes (Parron, 2015, p. 283-285; 322-327;


454-459).
No Brasil, no entanto, não ocorreu um processo semelhante de
especialização cafeeira como em Cuba com o açúcar. Uma série de fato-
res ajuda a explicar a situação. A ocupação territorial brasileira era mais
extensa e sua população, livre e escrava, maior e mais bem distribuída
entre o Sudeste cafeeiro e o Nordeste açucareiro. A competição por ter-
ras e mão de obra entre os dois setores não era nem de longe acirrada
como em Cuba, talvez fosse até inexistente, salvo em algumas áreas.
Mesmo depois do fim do tráfico transatlântico, demorou a se estruturar
um mercado interno unificado de escravos. Existiam mercados regionais
até o deslanche do tráfico interprovincial na década de 1870. Além disso,
os mercados e processos produtivos do café e do açúcar eram distintos.
O principal importador do açúcar brasileiro era a Grã-Bretanha, mas vá-
rios países europeus e alguns da América do Sul também eram impor-
tantes. Já o mercado de café tinha poucos compradores e, entre eles,
os Estados Unidos despontavam soberanos com 40% das importações
mundiais no fim do século XIX (Topik, 2003, p. 37). Isso significa que a
tomada do mercado estadunidense pelo café brasileiro teve um impacto
imediato e decisivo para os fazendeiros de Cuba. Já o domínio do açúcar
cubano sobre o mesmo não teve um efeito comparável para os senhores
de engenho do Brasil, embora certamente tenha limitado seu horizonte
de expansão.
O peso do consumo doméstico de açúcar, muito mais vultoso
do que o de café, também ajuda a compreender a tenacidade do setor
em uma conjuntura internacional adversa. Sabe-se que em meados do
século XIX, os produtores do Rio de Janeiro e de São Paulo passaram a
abastecer o mercado interno (Melo, 2009, p. 90-120; Corrêa do Lago,
2014, p. 108-118). No início da década de 1870, um terço do valor do
açúcar comercializado via marítima no Brasil não se destinava a portos
estrangeiros, mas sim a outras províncias, com destaque para São Paulo e
Rio Grande do Sul. O contraste com o café é marcante, pois apenas 9% era
comercializado no país. Pernambuco, o principal exportador de açúcar,
escoava um quarto de suas vendas via comércio de cabotagem (Marcon-
des, 2009, p. 45-58; 123-127; 217-220).8 O peso do mercado doméstico
se torna ainda mais significativo se considerarmos que em praticamente
todas as províncias brasileiras se produzia açúcar e muitas delas eram au-

8 Parte dos artigos transportados via cabotagem era reexportado ao exterior. No caso do açúcar,
65% eram consumidos no mercado doméstico. No do café, apenas 31% (Marcondes, 2012, p.
161-163).

155
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

tossuficientes. Minas Gerais, por exemplo, contava com um pujante setor


de derivados de cana que empregava milhares de escravos (Godoy, 2008).
As características da planta produtiva dos dois artigos também
eram distintas. Por mais que os pés de café tivessem caráter de bens de
capital, os investimentos iniciais eram relativamente baixos e a cultura
era itinerante (Marquese, 2013). Os engenhos de açúcar, pelo contrário,
exigiam altos investimentos na aquisição de equipamentos e terras. Isso
diminuía a flexibilidade da empresa açucareira, de modo que os senhores
de engenho demoravam a responder às oscilações do mercado e prefe-
riam operar em prejuízo a abandonar a atividade (Schwartz, 1988, p.
177-206). A diferença é bem explicada por Felipe Alfonso em seu estudo
sobre Campinas na primeira metade do século XIX. O custo elevado de
construção e manutenção da indústria açucareira desestimulava a transi-
ção rápida para o café. Nas propriedades também se cultivavam alimen-
tos que eram comercializados nos mercados locais e ofereciam retorno
em períodos de declínio dos preços do açúcar. A partir da década de
1830, os proprietários campineiros passaram progressivamente a diver-
sificar seus investimentos e a introduzir o café, mas o açúcar dominou o
setor agroexportador do município até 1850 (Alfonso, 2018, p. 95-147).
Se isso ocorria em áreas onde havia competição por capital e
trabalho entre os dois setores, no Nordeste, onde a produção escravista
de açúcar estava plenamente enraizada desde o século XVII, é natural
que se apostasse na atividade até o limite. Na Bahia, cujas exportações
de açúcar estagnaram na segunda metade do século XIX, os senhores
de engenho mais ricos do Recôncavo conseguiram manter grandes es-
cravarias depois da interrupção do tráfico transatlântico. Foi somente
na década de 1870 que eles passaram a investir preferencialmente em
outros cultivos como o fumo, o café e a mandioca (Barickman, 1996). Ain-
da assim, quando o tráfico interprovincial drenava milhares de escravos
do Nordeste para o Sudeste, não eram os municípios açucareiros os que
mais perdiam cativos, mas sim as cidades e zonas agrárias do interior. As
províncias açucareiras (Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas) tampouco
foram as mais atingidas no auge do tráfico interprovincial. A maior parte
dos escravos do Nordeste que rumavam para o Sudeste vinham do Rio
Grande do Norte, Ceará, Paraíba e Piauí, províncias que haviam desenvol-
vido um setor exportador de algodão na década de 1860 (Slenes, 2004,
p. 333-344; Motta, 2006).
A tenacidade do açúcar e das atividades produtivas orientadas
ao abastecimento impediu que a escravidão se concentrasse de forma
avassaladora na economia cafeeira. Houve, efetivamente, uma mudança

156
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

substancial na distribuição regional da população escrava. Às vésperas


da Independência, nas províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo residiam 35% dos escravos do Brasil. No início da década de 1870,
a proporção havia aumentado para 55-57%.9 A nova configuração geográ-
fica da escravidão brasileira expressava o redirecionamento do tráfico
transatlântico para o Sudeste. Provavelmente, se existissem levantamen-
tos censitários confiáveis para a década de 1850, já seria possível visua-
lizar o movimento.
Embora seja evidente que a concentração geográfica da escravi-
dão no Sudeste resultou do crescimento econômico da região, a maior
parte dos escravos não estava nos cafezais. Francisco Vidal Luna e Her-
bert Klein afirmam que havia 320 mil trabalhando no setor no início da
década de 1870, 21% dos 1,5 milhão de escravos que viviam no Brasil
(Luna; Klein, 2010, p. 112). Sua estimativa soma os arrolados como re-
sidentes nos municípios cafeeiros do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais, o que é questionável, pois nem todos pertenciam a cafeicultores.
Luiz Aranha Corrêa do Lago utilizou uma metodologia baseada nos índi-
ces de produtividade e volume exportado para sugerir o emprego direto
de 150 mil a 180 mil escravos nas fazendas de café na mesma época, isto
é, de 10% a 12% da população total (Corrêa do Lago, 2014, p. 252). Seu
método, no entanto, não computa a grande quantidade de escravos per-
tencentes a cafeicultores que transportavam as sacas de café e se ocupa-
vam em atividades subsidiárias nas próprias fazendas. Os empregados no
cultivo não compunham mais de 60% dos escravos de uma fazenda (Luna;
Klein, 2010, p. 109). A situação só mudaria com a expansão da malha
ferroviária depois da década de 1860 (Marquese, 2013).10
Independentemente do critério utilizado, se nota que não ocor-
reu uma concentração setorial da escravidão equivalente à de Cuba e dos
Estados Unidos, pelo menos até o início da década de 1870. Na ilha ca-
ribenha, quase metade dos escravos trabalhava nos engenhos em 1862.
Nos Estados Unidos, 60% a 65% nas unidades algodoeiras (Wright, 2006,
p. 84; Fogel; Engerman, 1995, p. 38-43).
A comparação da distribuição setorial é cheia de armadilhas, pois
a intensidade dos vínculos mercantis das unidades agroexportadoras com
fornecedores nacionais e estrangeiros de mantimentos e insumos era

9 Para 1818/19, estimativa do Conselheiro Velloso, reproduzida em Luna; Klein (2010, p. 92;
192-195). O Censo de 1872 computa 57% dos escravos vivendo nas províncias de Minas Gerais,
Rio de Janeiro e São Paulo. Na matrícula de 1873 são 55% (Slenes, 1976, p. 57).
10 Roberto Borges Martins estima em 141 mil a quantidade de escravos ocupados no café nas
três províncias no início da década de 1870 (Martins, 2018, p. 129-133).

157
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

muito diferente nos três espaços. Na maior parte dos estados sulistas, as
plantations de algodão alcançaram a autossuficiência alimentar. O pânico
de 1837 induziu os plantadores a integrarem a produção de mantimentos
como componente central na administração de suas propriedades. Uma
porção significativa do tempo de trabalho dos escravos se destinava ao
cultivo de milho e à criação de animais (Gallman, 1970; Parron, 2015, p.
370; Olmstead e Rhode, 2017). Em Cuba, a especialização açucareira foi
tão aguda que gerou dependência de alimentos importados do exterior
(charque, bacalhau, farinha de trigo e arroz) e podou o desenvolvimento
da pecuária e da agricultura de subsistência (Funes, 2012).
A vitalidade da produção mercantil de mantimentos e insumos
realizada com trabalho escravo constitui uma dimensão fundamental da
economia escravista no Brasil. A relação entre zonas agroexportadoras
e retaguardas produtivas regionais voltadas ao abastecimento remonta
ao século XVII, com a expansão combinada do açúcar e da pecuária no
Nordeste. Os efeitos demográficos e econômicos do ciclo da mineração
ligaram espaços produtivos diversificados por meio de circuitos mercan-
tis. Foi, no entanto, a grande transformação ocorrida entre as últimas
décadas do século XVIII e as primeiras do XIX que gerou um mercado in-
terno relativamente integrado por meio de rotas de transporte terrestre
e da navegação de cabotagem. A expansão cafeeira não parece ter rom-
pido essa estrutura. Até o fim do tráfico transatlântico, pelo contrário,
lhe deu mais força. A dinâmica mudaria depois. São necessárias novas
pesquisas sobre os vínculos entre as diferentes zonas do café e os setores
de abastecimento. Na década de 1850, a “carestia de gêneros” aumentou
o preço dos alimentos no Brasil. Uma das explicações aventadas pelos
contemporâneos foi exatamente a escassez de mão de obra, atribuída ao
fim do tráfico e à concentração dos escravos nos cafezais (Costa, 2010, p.
173-180; Slenes, 2004, p. 342-343).
Na medida em que a produção escravista orientada ao abasteci-
mento foi uma marca duradoura da economia brasileira, a plantation não
dominou a paisagem social das diferentes províncias. Trata-se de um qua-
dro bem distinto do verificado em Cuba, onde os engenhos de grande
porte proliferaram. Dada a hiperespecialização da ilha no setor açucarei-
ro, os efeitos para a estrutura de posse de escravos foram evidentes. No
Sul dos Estados Unidos a concentração não era tão elevada, entre outros
motivos porque as plantations de algodão típicas mobilizavam uma força
de trabalho mais modesta. Os ganhos de produtividade eram maiores
nas unidades que contavam com pelo menos dezesseis escravos, mas
tendiam a decrescer nas que possuíam mais de cinquenta (Fogel, 1989, p.

158
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

74-75). Em 1850, os proprietários de pelo menos cinquenta cativos deti-


nham 22% dos escravos. Se contabilizarmos os que possuíam no mínimo
vinte, o que os qualificava como planters, a proporção sobe para 51%. A
outra metade residia em unidades menores (Gray, 1933, p. 530).11
No Brasil, a posse era mais dispersa. Na década de 1870, os
proprietários que possuíam até 19 cativos detinham 73% dos escra-
vos nas regiões contempladas pela pesquisa de Renato Marcondes. Os
grandes proprietários (quarenta ou mais) concentravam apenas 14% dos
escravos. Se incluirmos no grupo os que possuíam pelo menos vinte a
proporção aumenta para 27% (Marcondes, 2009, p. 175). Sua amostra,
contudo, sub-representa municípios cafeeiros do Rio de Janeiro e Minas
Gerais, o que seguramente enviesa os resultados. Diversas pesquisas
demonstram que na segunda metade do século XIX o acesso à proprie-
dade escrava se tornou mais restrito. Os pequenos proprietários perde-
ram seus cativos, ao passo que os grandes tinham mais recursos para
mantê-los. Muitos fazendeiros de café ampliaram suas escravarias. O
declínio da escravidão urbana, notoriamente mais pulverizada, também
reforçou a tendência para uma progressiva concentração (Luna; Klein,
2010, p. 89-164).
A expansão cafeeira promoveu concentração desde o princípio.
Pequenos proprietários cultivavam o artigo, mas as grandes fazendas
logo se tornaram a regra. Ricardo Salles demonstrou que elas domina-
ram a paisagem do Vale do Paraíba fluminense desde a década de 1830.
Entre 1836 e 1880, os grandes proprietários (cinquenta escravos ou mais)
detinham 70% dos escravos de Vassouras (Salles, 2007; Salles, 2008). Na
zona paulista do Vale, alguns municípios apresentavam o mesmo perfil.
Em Bananal, os grandes proprietários detinham mais de 75% dos escravos

11 A planta produtiva dos diferentes artigos era decisiva na conformação da estrutura da posse
de escravos. Os engenhos de açúcar e as plantações de arroz exibiam concentrações mais
elevadas. As fazendas de tabaco e trigo, mais baixas. As plantations de algodão ficavam num
patamar intermediário (Niemi Jr., 1977). Nos distritos açucareiros da Louisiana os proprietários
de pelo menos cinquenta escravos controlavam mais de dois terços dos escravos e das terras
e eram responsáveis por três quartos da produção (Follett, 2005, p. 21-33). As vinte e nove
maiores plantações de arroz da Carolina do Sul e da Geórgia em 1850 tinham pelo menos
trezentos escravos e seus proprietários possuíam em média quatrocentos e cinquenta, não
necessariamente no cultivo de arroz. Em 1860, havia apenas quatorze propriedades em todo
o Sul com mais de quinhentos escravos. Nove eram plantações de arroz (Dusinberre, 1996, p.
387-396). O padrão de concentração do açúcar e do arroz, no entanto, não teve um impacto
abrangente na estrutura de posse do Sul como um todo, pois esses setores juntos reuniam
apenas 10% da população escrava. O mesmo pode ser dito sobre o tabaco (12%) e os serviços e
manufaturas urbanas (12%). O setor algodoeiro concentrava quase 65% dos escravos. Calculei a
distribuição com base na estimativa de J. D. B. DeBow, superintendente para o censo de 1850,
também utilizada por Gavin Wright, Stanley Engerman e Robert Fogel.

159
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

arrolados em inventários de cafeicultores entre 1830 e 1859 (Moreno,


2013, p. 93).
Com efeito, o novo padrão de reprodução do escravismo no sé-
culo XIX gerou uma estrutura social comum nas fronteiras do café, do
açúcar e do algodão no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos, caracte-
rizada por grandes unidades agroexportadoras que concentravam terras
e escravos, adotavam tecnologia industrial na produção e no transporte
e se valiam de regimes disciplinares rígidos para incrementar a produti-
vidade do trabalho. No Brasil, porém, essa nova forma social não foi tão
abrangente como em Cuba e nos Estados Unidos e conviveu com a dis-
seminação da posse e a diversificação da economia escravista. Portanto,
se empregarmos o conceito de segunda escravidão para descrever os
quadros sociais e a estrutura econômica do escravismo é forçoso reco-
nhecer que ele não se ajusta perfeitamente à realidade brasileira antes
da década de 1870.12
A meu ver, sem necessariamente abandonar a leitura que subli-
nha a homologia entre as formas do cativeiro no Brasil, em Cuba e nos Es-
tados Unidos, o conceito ganha potencial explicativo quando incorpora
o significado sistêmico do escravismo oitocentista na economia-mundo
capitalista, sua relação com a formação dos Estados Nacionais e seu im-
pacto na política internacional. A formulação de Dale Tomich desenvolve
o primeiro ponto, ao demonstrar que a hegemonia britânica e o padrão
de acumulação ditado pelo capital industrial geraram uma divisão inter-
nacional do trabalho que transformou qualitativamente as relações entre
centro e periferia na economia-mundo. Os espaços escravistas emergen-
tes se incorporaram a um mercado mundial unificado e foram cruciais
para o barateamento dos custos de produção de commodities consumidas
pela indústria e pelos trabalhadores assalariados nas zonas centrais do
sistema capitalista. Mais importante do que estimar a viabilidade e a lu-

12 Essa leitura é apropriada para identificar as novas formas assumidas pela escravidão oitocen-
tista em espaços específicos e também permite a comparação estática entre formações sociais
escravistas, de modo a delinear semelhanças e diferenças entre elas. Tal método foi utilizado,
por exemplo, por Richard Graham (1981) para comparar o desenvolvimento econômico e a
estrutura social do Sul dos Estados Unidos e do Brasil e o levou a atestar que a escravidão
norte-americana exibia um caráter moderno e uma integração ao capitalismo industrial sem
paralelo com a brasileira. Evidentemente, Graham não trabalhava com o conceito de segunda
escravidão. Recentemente, historiadores que analisam a relação entre escravidão e capitalis-
mo tendem a esposar concepção semelhante para sublinhar a excepcionalidade norte-ame-
ricana. Capitalismo e escravidão são tomados como fenômenos que só interagem e ganham
sentido em enquadramentos analíticos nacionais e regionais (Beckert; Rothman, 2016). Em
linha oposta, a perspectiva da segunda escravidão desafia os historiadores a construírem obje-
tos e a formularem quadros explicativos que rompam com os limites espaciais e temporais de
formações sociais específicas (Kaye, 2009).

160
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

cratividade do trabalho escravo é compreender que a emergência de um


mercado mundial integrado e a expansão do trabalho assalariado torna-
ram as condições de existência da escravidão mais vulneráveis e voláteis
do que na época colonial (Tomich, 2011, p. 81-97).
Rafael Marquese e Ricardo Salles (2016) argumentam que a nova
escravidão do Brasil oitocentista teve seu polo dinâmico e estruturante
na grande propriedade rural produtora de commodities para o mercado
mundial capitalista. As atividades voltadas ao mercado interno giravam
em torno de núcleos exportadores e dependiam de seu dinamismo. A
plantation não foi, portanto, um enclave sobreposto ao tecido social e es-
cravista disperso herdado do século XVIII, mas sim sua espinha dorsal.13
Marquese e Salles demonstram que o desenvolvimento da eco-
nomia cafeeira no Vale do Paraíba assegurou recursos financeiros e poder
político para a consolidação do Estado nacional. Ao mesmo tempo, a re-
produção das relações sociais escravistas dependeu da ação permanente
do aparato estatal do Império. Só foi possível preservar a legitimidade e
a segurança jurídica da escravidão, bem como a retomada do tráfico ne-
greiro contra a pressão diplomática e militar britânica, com a construção
de um consenso dentro dos marcos do Estado nacional brasileiro.
A reprodução da escravidão oitocentista se ancorou na existên-
cia de classes senhoriais poderosas que tinham condições de impor a
proteção da instituição no plano político nacional. Mas isso não era su-
ficiente para assegurar condições sistêmicas para a preservação e a ex-
pansão da escravidão em um quadro internacional hostil liderado pela
Grã-Bretanha. Os espaços escravistas dinâmicos se integraram ao longo
da primeira metade do século XIX. Na década de 1830, Cuba e Brasil
se inscreveram no eixo econômico e geopolítico norte-americano e o
escravismo deixou de ser um conjunto de unidades relativamente dis-
persas para conformar um subsistema do capitalismo global, no qual os
interesses dos Estados escravistas convergiam em busca de legitimação,
poder e recursos econômicos para enfrentar as pressões antiescravistas.
O escravismo oitocentista, portanto, rompeu com os quadros sociais da

13 Quando se trata da escravidão moderna, não há como se falar em sistemas escravistas iso-
lados ou autossuficientes, como propôs Roberto Borges Martins (2018) para Minas Gerais
no século XIX. A reprodução da escravidão no Brasil oitocentista, em todas as suas formas
particulares, dependeu de laços econômicos, políticos e ideológicos que ganhavam expressão
e sustentação no Estado nacional. A crítica que Stanley Engerman e Eugene Genovese (1983)
realizaram ao trabalho de Martins emprega esse argumento. Segundo os autores, as socie-
dades escravistas modernas dependiam da vinculação com o mercado mundial capitalista e
eram incapazes de se reproduzir sem ele. Setores produtivos escravistas de subsistência ou
orientados ao mercado interno só poderiam perseverar se integrados a economias escravistas
exportadoras de commodities.

161
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

escravidão colonial e com suas formas de integração nas cadeias mer-


cantis do capitalismo global. Nesse processo, para assegurar sua conti-
nuidade, se unificou como um espaço intermediário do sistema mundial,
que Parron conceitua como a oikoumenê da segunda escravidão (Parron,
2015, p. 452-462).
Ao ler o conceito sob a ótica da incorporação analítica das dimen-
sões da economia-mundo, do Estado nacional e do sistema interestatal, a
diversidade regional da escravidão brasileira no século XIX deixa de ser
vista como uma anomalia ou sobrevivência arcaica destinada fatalmente
ao desaparecimento ou, ao contrário, como prova da continuidade da
escravidão colonial para se tornar um fenômeno substantivo na evolução
da segunda escravidão no Brasil. A expansão do café teve um impacto
contraditório na economia escravista brasileira. Até o fechamento do
tráfico transatlântico, ela foi o veículo que assegurou a prosperidade de
todas as formas de produção escravista e delas se alimentou. Na segunda
metade do século, sua crescente vitalidade em um contexto em que as
condições de reprodução do escravismo haviam se modificado, dinami-
tou as bases da diversificação, gerou concentração e perda da legitimida-
de social do cativeiro.
Os dois trabalhos desta seção oferecem contribuições originais
e sugestivas para repensarmos o lugar da diversidade regional brasileira
nos quadros da segunda escravidão. Luiz Fernando Saraiva e Rita Almi-
co indicam balizas para a investigação da relação entre a escravidão e
os processos de industrialização no Brasil. Os autores demonstram que,
em diversos espaços do Império, a expansão de atividades primário-
-exportadoras foi acompanhada por uma crescente urbanização e pelo
desenvolvimento de setores de serviços e manufaturas. Se valendo da
formulação de Wilson Cano sobre os complexos agroexportadores e da
interpretação de Wilson Suzigan sobre o setor exportador como indutor
do desenvolvimento industrial, Saraiva e Almico entendem que o fortale-
cimento da escravidão foi fundamental para a constituição de mercados
regionais e para a acumulação de capitais que podiam ensejar processos
de industrialização.
Discordando de Cano, porém, eles argumentam que a formação
de um complexo agroexportador não foi atributo exclusivo da econo-
mia cafeeira no Oeste de São Paulo. Diversas regiões brasileiras tam-
bém desenvolveram complexos agroexportadores e mercados regionais
e até o fim do século XIX os indicadores de industrialização (fábricas,
emissão de patentes e fundação de instituições de crédito) não estavam
concentrados em São Paulo. Sem ser especialista no tema, eu gostaria

162
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

de sugerir que o modelo de Cano, em linhas gerais, está correto quando


contrasta a economia cafeeira do Oeste de São Paulo à do Vale do Paraíba
fluminense.
Segundo o autor, a expansão da escravidão na produção de café
no Oeste de São Paulo se combinou com relações capitalistas de produ-
ção, fortalecimento do mercado interno e avançada agricultura mercan-
til. Esse conjunto de atividades formava um complexo econômico que
envolvia café, agricultura, transportes, indústria, comércio e finanças, o
que ampliou o potencial de acumulação do complexo paulista e criou as
bases para o desenvolvimento industrial na Primeira República (Cano,
1990, p. 17-120).
O processo de montagem e expansão da economia cafeeira do
Vale do Paraíba foi todo ritmado pelos padrões da segunda escravidão. Nas
áreas pioneiras de fronteira do Oeste paulista (“Oeste Novo”), o processo
se inscreveu em uma nova temporalidade, balizada pelo fechamento do
tráfico atlântico (e, depois de 1881, também do tráfico interprovincial),
pela Lei do Ventre Livre e pelo papel crucial das ferrovias (Marquese, 2013).
Ao contrário do que postula Cano, a montagem da economia ca-
feeira no “Oeste Novo” dependeu do trabalho escravo e, não por acaso,
a região foi um dos principais destinos do fluxo de escravos comercia-
lizados na época do tráfico interprovincial. Contudo, a nova classe de
fazendeiros do Oeste paulista lidou, desde a década de 1870, com a ne-
cessidade de obter novas fontes de trabalho. Fortalecidos pelo dinamis-
mo de uma zona pioneira com grandes possibilidades de crescimento,
esses fazendeiros articularam com o governo provincial de São Paulo as
condições para a imigração subsidiada que assegurou a força de trabalho
necessária para expandir a cafeicultura paulista e superar a dependência
do trabalho escravo, ao contrário do que ocorreu no Vale do Paraíba. Não
se trata de repor a análise que opõe uma suposta mentalidade capitalista
e moderna dos fazendeiros paulistas à mentalidade escravista e arcaica
dos fluminenses, mas sim de compreender as condições materiais que
permitiram que os primeiros gerenciassem a transição do regime de tra-
balho sem que isso afetasse sua capacidade de acumulação (Marquese,
2013). Nesse sentido, é possível readequar a explicação de Cano sobre
as diferenças entre os complexos paulista e fluminense, inscrevendo sua
formação e desenvolvimento na temporalidade da crise do cativeiro.
O trabalho de Saraiva e Almico nos permite refletir sobre o im-
pacto desigual da escravidão e dos diferentes complexos agroexportado-
res nos processos de industrialização no Brasil. Se, até o fim do século
XIX, eles estimularam a urbanização, a diversificação dos serviços e as

163
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

manufaturas em várias províncias, durante a Primeira República as con-


dições particulares do complexo paulista impulsionaram um crescimento
industrial que o apartou dos demais, em uma unidade contraditória en-
tre café e indústria que só seria superada na década de 1930 (Silva, 1981,
p. 97-105).
O texto de Walter Pereira analisa a economia de Campos dos
Goytacazes na segunda metade do século XIX e apresenta uma visão
muito refinada sobre espaço geográfico que articula o desenvolvimento
regional aos processos de expansão da segunda escravidão e do capita-
lismo global. O ponto alto do trabalho é a forma como Pereira mobiliza
uma noção de região que extrapola os limites administrativos das provín-
cias e enfatiza vínculos econômicos. Campos é concebida como o centro
de um espaço constituído pelo norte fluminense, o sul do Espírito Santo
e alguns municípios da Zona da Mata de Minas Gerais. O enquadramento
proposto pelo autor demonstra como as análises que operam a partir de
divisões administrativas e políticas tendem a ser superficiais.
O estudo de Pereira é particularmente importante para examinar
a forma como a escravidão brasileira se desenvolveu na segunda metade
do século XIX. Campos, região açucareira pujante desde o fim do sécu-
lo XVIII, manteve uma numerosa população escrava até às vésperas da
Abolição. Embora o açúcar ainda constituísse o setor mais importante
da economia campista, foi o cultivo do café e a articulação mercantil e
financeira com as zonas cafeeiras do Espírito Santo e de Minas Gerais
que manteve o dinamismo da escravidão. O café e o açúcar se reforçaram
em simbiose e promoveram uma profunda transformação econômica na
região, que ganhou ferrovias, bancos, indústrias, engenhos a vapor, ser-
viços urbanos e obras de infraestrutura. O município de Campos cresceu
como centro desse espaço econômico. Na década de 1880 era um dos
cinco maiores do Império, incluídas suas freguesias urbanas e rurais. Sua
evolução demográfica também demonstra que a manutenção da escra-
vidão dependeu do café. A população escrava das freguesias cafeeiras
cresceu até a década de 1860, quando nas demais já estava em declínio.
O texto nos permite observar no espaço campista a relação entre
os setores do café e do açúcar, que analisei anteriormente no contexto
mais amplo da economia brasileira. Com sua produção voltada ao abas-
tecimento da cidade do Rio de Janeiro e da província fluminense, os en-
genhos de Campos modernizaram parcialmente suas plantas produtivas.
Na década de 1870, de 377 fábricas de açúcar e aguardente que existiam
na região, 252 eram movidas a vapor. Apesar da crescente dificuldade
para repor a mão de obra, a introdução de aperfeiçoamentos técnicos

164
Segunda escravidão, espaços econômicos e diversificação regional no Brasil imperial

permitiu que o município exportasse a quantidade respeitável de 17 mil


toneladas de açúcar para o Rio de Janeiro naquela década. Às vésperas da
Abolição, ainda era o setor açucareiro o que mais empregava escravos no
município. Por outro lado, a extensão da malha ferroviária contemplou
prioritariamente as áreas de ocupação mais recentes produtoras de café,
que também formavam um espaço de articulação com as zonas cafeeiras
do Espírito Santo e Minas Gerais. Campos era o centro dessa conexão
ferroviária e abrigava três terminais.
A cidade também se destacou na segunda metade do século XIX
como uma importante praça mercantil que integrava diferentes áreas
produtivas. Segundo Pereira, a centralidade da cidade no espaço eco-
nômico do Norte Fluminense, com suas ligações com o Espírito Santo e
Minas, pode ser aferida não apenas por suas remessas de açúcar, café e
aguardente, mas também pela grande quantidade de casas comerciais,
pela existência de duas instituições bancárias e pela arrecadação tributá-
ria do município, equivalente à soma da arrecadação dos sete municípios
da região sul do Vale do Paraíba. No entanto, eu entendo que neste últi-
mo caso a comparação proposta pelo autor não é mais adequada. Pode
se dizer que, assim como Campos postulava o posto de centro mercantil
e administrativo do norte fluminense, era a cidade do Rio de Janeiro, e
não os municípios do interior, que inegavelmente constituía o centro
mercantil, financeiro e administrativo da região sul do Vale.
A noção de região apresentada por Pereira remete à categoria de
espaço econômico, caracterizado pela existência de um centro e zonas
produtivas diversificadas a ele articuladas. Um espaço econômico não
necessariamente corresponde a uma jurisdição política. A posição do-
minante que uma cidade ocupa deriva de sua importância como polo
produtivo dinâmico ou centro mercantil. Em um espaço econômico inte-
grado, a intensidade do intercâmbio que cada zona mantém com outras
do mesmo espaço é superior à que cada uma delas (exceto o centro) man-
tém com a arena exterior (Perroux, 1950; Assadourian, 1982). A análise
de Pereira sugere que Campos se estabeleceu como centro de um espaço
econômico emergente na segunda metade do século XIX.
Na medida em que os espaços se consolidam, surgem grupos
que buscam expressar politicamente seus interesses econômicos e ins-
titucionais. Pereira elenca uma série de iniciativas das elites locais nas
Assembleias provinciais com o fim de fortalecer a articulação entre Cam-
pos, a Zona da Mata e o Espírito Santo, por meio de obras de infraes-
trutura, construção de ferrovias, abertura de estradas e melhoramento
dos portos. Contudo, os projetos que colocariam Campos como centro

165
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

desse espaço econômico na fronteira entre as três províncias não foram


suficientes para romper a sua subordinação ao Rio de Janeiro.
Os trabalhos de Saraiva, Almico e Pereira são exemplos de como
a perspectiva da segunda escravidão estimula o debate conceitual asso-
ciado a pesquisas empíricas sólidas e promove uma renovação dos estu-
dos sobre a economia brasileira no século XIX. Ao enfatizarem a diver-
sidade regional e as condições particulares de cada atividade produtiva,
eles expõem o desenvolvimento assimétrico dos espaços econômicos do
Império, articulando-os ao impacto estrutural da segunda escravidão e
do capitalismo global.

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171
PARTE III
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E
PERÍODO COLONIAL TARDIO
A INSERÇÃO DOS INGLESES NO IMPÉRIO
PORTUGUÊS: O CASO DA FAMÍLIA GULSTON
NO RIO DE JANEIRO, c.1710-c.17201

Carlos Gabriel Guimarães

O objetivo deste capítulo consiste em analisar as estratégias de-


senvolvidas pelos irmãos e negociantes ingleses Joseph e Ralph (ou Ra-
phael) Gulston, na Cidade do Rio de Janeiro, no período 1710-1720.
Presentes em Lisboa desde o último quarto do sécu-
lo XVII, em consequência da perseguição religiosa
e política na Inglaterra, os Gulston foram uma das
famílias inglesas autorizadas pela Coroa Portuguesa
a comercializar no Império, decisão essa relacionada
com os tratados diplomáticos e comerciais celebra-
dos entre Portugal e a Inglaterra após a Restaura-
ção Portuguesa. Não se sabe exatamente quando os
Gulston chegaram ao Rio de Janeiro. Teria ocorrido
no período da primeira invasão francesa à cidade,
em 1710, com o corsário Jean-François Duclerc. No
ano seguinte, nova invasão, desta vez empreendida
pelo também corsário francês René Duguay-Trouin,
quando a cidade foi obrigada ao pagamento de um
elevado resgate, o que provocou desdobramentos
políticos, como a reação dos moradores e da Câma-
ra junto ao governador da capitania, Francisco de
Castro Morais.

Nessa conjuntura política difícil, porém de expansão da atividade


comercial do Rio de Janeiro face ao ouro das Minas, os irmãos Gulston
apareceram inseridos na comunidade mercantil, atuando como consig-
nadores e procuradores do negociante e contratador lisboeta Francis-
co Pinheiro, como também do capitão-general e governador da Ilha da
Madeira Duarte Sodré Pereira. Além disso, desenvolveram atividades co-
merciais próprias, e entre essas estava a formação de sociedades para o
comércio de carne humana na África.

1 Uma primeira versão do texto foi publicada no livro em (Mathias, 2017).

175
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Diante da crescente pressão portuguesa contra a presença de ne-


gociantes de outras nações no interior do Império, em 1720, os Gulston
retornaram de vez para a Europa, primeiro para Lisboa e, depois, para
Londres, desfrutando da riqueza e prestígio acumulados no Brasil e Por-
tugal. Por conta do êxito em seus negócios no Rio de Janeiro, Joseph
Gulston recebeu o apelido na City de Londres de Joseph the Rio Gulston.
Mais do que pejorativo, tal sobrenome ressaltou a importância simbólica
da praça do Rio de Janeiro para o prestígio desse negociante e da sua
família.

A presença inglesa no Rio de Janeiro da Brazilian Golden Age


A descoberta do ouro em Minas bem como a assinatura do Tra-
tado de Methuen em 1703 constituíram-se nos fatores político e eco-
nômico que historiadores de diferentes perspectivas historiográficas
ressaltaram como animadores para a maior presença de negociantes in-
gleses no Império Português, mais particularmente no Estado do Brasil
da primeira metade do século XVIII (Boxer, 1969a; Boxer, 1969b; Fisher,
1963).
No entanto, através de novas perspectivas teóricas e metodoló-
gicas, bem como nas fontes primárias utilizadas, diversos autores anali-
saram a relação comercial dos reinos de Portugal e Inglaterra no contex-
to da economia e da diplomacia internacionais da época. A partir dessa
relação, os sucessos ou fracassos econômicos e políticos no Setecentos,
sejam do Império Inglês (Hopkins, 1986; Hopkins, 1988; Porter, 1990;
Hancock, 1995; Bowen, 1996; Akita, 2002), sejam do Império Português
(Boxer, 1981; Mauro, 1991; Almeida, 1995; Magalhães, 2005; Bicalho,
2007; Silva, 2007), ganharam novas abordagens, tais como a de Evaldo
Cabral de Mello (1988), que concebeu o tratado de Methuen como o
último celebrado por Portugal, de uma série iniciada em 1654 com a
Inglaterra. Outras análises, a partir da economia política internacional,
relacionaram o Tratado de Methuen com tratados do ano de 1703, enfa-
tizando a relação portuguesa de “dependência e subordinação” aos in-
gleses (Sideri, 1978; Castro, 1978; Pereira, 1979; Rossini, 2009; Batista,
2014; Cardoso, 2003a; Cardoso 2003b).
Embora a presença de comerciantes estrangeiros no comércio
legal e ilegal (contrabando) no Império Português fosse comum, ainda
mais no período da União Ibérica, com a pressão de ingleses, franceses e
holandeses (Províncias Unidas) no Atlântico e no Índico Português, agora

176
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

sob hegemonia espanhola (Boxer, 1969b; Almeida, 1993; Puga, 2009; No-
vais, 1995), foi com o Tratado de Paz e Aliança de 1654, celebrado entre
os reinos de Portugal e da Inglaterra, essa última ainda sob o governo
do protetorado de Cromwell, que formalmente tivemos a abertura do
mercado imperial português para o comércio direto com os negociantes
ingleses. Com esse tratado,2 que só pode ser compreendido dentro da
conjuntura da Restauração Portuguesa (1640) e da diplomacia e da políti-
ca europeias pós-Guerra dos 30 anos,3 os negociantes ingleses passaram
a atuar formalmente no fretamento de navios no Império Português, ou
seja, participaram diretamente do comércio das frotas. Além disto, face
à pressão política inglesa, foi criado o cargo de juiz conservador em Lis-
boa e no Porto para tratar das questões judiciais envolvendo os súditos
ingleses (Shaw, 1998, p. 65-66; p. 114-116).
Em 1661, a Coroa Portuguesa celebrou novo tratado com os
ingleses, que, como enfatizou Evaldo Cabral de Mello, por pouco não
emperrou o Tratado de Haia, que firmou a paz entre Portugal e as Pro-
víncias Unidas (Mello, 1998, p. 227-253). O Tratado de 1661 não só
vinculou a Coroa Portuguesa à Coroa Inglesa, com a realização do casa-
mento de Catarina de Bragança com Carlos II, como rendeu à Inglaterra
um dote de dois milhões de coroas portuguesas (cruzados), só definiti-
vamente pago em 1684, além de Tanger, no Norte da África, e Bombaim,
na Ásia, essa última de fato em 1665. O tratado estabeleceu também
a tolerância religiosa e a reafirmação da participação dos negociantes
ingleses no comércio direto no Império Português. Num artigo secreto,
os ingleses se comprometiam a defender Portugal, caso houvesse um
ataque das Províncias Unidas por terra e mar (Mello, 1998; Shaw, 1998,
p. 15-16; p. 210-211).
Entretanto, no referido Tratado, mais especificamente nos arti-
gos 12 e 13, quatro famílias inglesas tiveram permissão para se fixarem
com privilégios e imunidades “em Goa, Cochim e Dio (Artigo 12) e Bahia
de todos os Santos, Rio de Janeiro e Pernambuco, tão bem quanto todos
os outros dos domínios portugueses nas Índias Ocidentais” (Artigo 13)
(Shaw, 1998, p. 15).
A respeito desses ingleses no Estado do Brasil, Boxer destacou o
relato do aventureiro, Capitão William Dampier, na Bahia, em 1699, que,

2 Ratificado em 1656, quando a armada de Robert Blake “exigiu ratificação, sob a ameaça de
novo bloqueio em Lisboa”, como também de “captura o comboio da Cia Geral do Brasil (Mello,
1988, p. 182). A respeito da criação da Cia. Geral do Brasil”. cf. (Costa, 2002).
3 Significa uma relação com o fim da Guerra Anglo-Holandesa e a capitulação holandesa de
Recife, de maio de 1654.

177
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

citando um certo Sr. Cock, único mercador inglês residente na cidade de


Salvador, destacou que
ele tinha uma patente para ser o nosso cônsul
Inglês, mas não se preocupou em tomar sobre si
qualquer caráter público, porque raramente os na-
vios ingleses vem cá, e nenhum aqui de ter parado
em onze ou doze anos antes deste tempo. (Boxer,
1969b, p. 462).

Com a descoberta de ouro do Brasil no final do século XVII e iní-


cio do XVIII (Boxer, 1969a, p. 53-105), e a importância desta mercadoria
para a revitalização da economia e do Império portugueses, a presença
inglesa nas principais praças do Império foi vista com desconfiança cada
vez maior pelas autoridades, ainda mais com o contrabando correndo
solto. Segundo Boxer: “essa concessão forçada teve muito ressentimento
por sucessivos monarcas portugueses, e seus representantes no Brasil
estavam contra qualquer tentativa de expandi-lo ou mesmo para fazer
pleno uso do mesmo” (Boxer, 1969b, p. 462).
Nesse contexto, mais a descoberta de ouro nas Minas Gerais e o
crescimento do Rio de Janeiro como principal porto importador e expor-
tador do Centro-Sul brasileiro, evidenciado pelas invasões corsárias de
Duclerc (1710) e Trouin (1711),4 aportaram na cidade carioca os irmãos e
negociantes ingleses Joseph and Ralph Gulston. É deles que trataremos
a seguir.

A trajetória dos irmãos Gulston no Rio de Janeiro, c.


1710-c.1720
Em 1828, no Illustrations of the Literary History of the eighteenth
century consisting of authentic memoirs and original letters of eminent per-
sons (Nichols, 1828, p. 36),5 publicado pelo famoso editor John Nichols,
outrora editor por mais de 40 anos do influente periódico Gentleman’s
Magazine, apareceu a seguinte informação:

4 Duclerc chegou ao Rio de Janeiro em 11/08/1710, se rendeu em 19/09/1710 e foi assassinado


em 18/03/1711. A respeito dessa tentativa de 1710 e da invasão de 1711, essa última chefiada
por Du Guay Trouin, cf. (Boxer, 1969a, cap. IV; Cavalcanti, 2004, p. 44-48).
5 O livro Illustrations of the Literary History of the eighteenth century consisting of authentic
memoirs and original letters of eminent persons foi publicado por John Nichols a partir de 1817
e, após sua morte, por seu filho John Bowyer Nichols (J. B. Nichols). John Nichols, além de
editor de prestígio junto à boa sociedade londrina, foi membro da Sociedade de Antiquários e um
trustee de várias instituições de Londres. A partir deste utilizaremos a sigla ILH.

178
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

179
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Quem eram os falecidos Joseph Gulston, squire (cavalheiro), e


com o apelido (nickname) the Rio Gulston em plena City de Londres, e
Ralph Gulston, também squire (cavalheiro) e “Turkey Merchant”?6 A res-
posta, com toda ressalva do documento, pois tratou-se de uma pequena
biografia,7 estava na própria Illustrations of the Literary History (Nichols,
1828, p. 2), que dedicou várias páginas à Joseph Gulston, sua origem
familiar e sua vida. Segundo a dita fonte, Joseph era neto (homônimo) de
Joseph Gulston, “Deão (dean) de Chinchester, e Capelão do rei Charles I”.8
Por causa da sua ligação com o rei decapitado,

provavelmente, sua família emigrou para Portugal,


e nada mais é conhecido até o aparecimento do pai
de Mr. Gulston, da qual a memória é reverenciada
aqui, que aparece como chefe/diretor da primeira
casa mercantil (feitoria) em Lisboa, onde ele (Jose-
ph) nasceu. Seu pai (que nunca esteve em Londres)
deixou sob sua provisão, um irmão e duas irmãs. O
irmão foi enviado para Barbados onde uma proprie-
dade foi comprada para ele.9

Essas informações sobre o avô e os nomes do pai e do irmão (ne-


grito abaixo) de Joseph Gulston apareceram em outra obra, que destacou
o seguinte:

Rev. Joseph Goulston, D. D, (born 1603), Dean of


Chichester, Chaplain and Almoner to Charles I, at-
tended the king throughout all his misfortune, and
was with him at his exeecution (died 1669). He mar-
ried Anna --- (died 1684) ...
William Goulston (filho do reverendo) (born 1652 –
died 1736), married Sarah, daughter Ralph Backnall
(died 1688), and issued ---:

6 “Turkey Merchant” se refere ao membro (acionista) da Companhia do Levante (Levant Com-


pany, 1592-1825), uma companhia comercial inglesa organizada sob a forma de sociedade
anônima por carta real (charter company), fruto da fusão da Companhia do Venice (Venice
Company) e da Companhia da Turquia (Turkey Company). (Davies, 1967; Laidlaw, 2010).
7 A respeito da biografia como fonte e problemas, cf. (Silva, 2007, p. 9-15)
8 Joseph Gulston foi o deão da Catedral de Chichester em Sussex (Inglaterra), 1663-1669. Char-
les I (ou Carlos I) foi o rei dos três reinos, Inglaterra, Escócia e Irlanda, de 27 de março de 1825
até 1649, quando foi executado por Cromwell. Uma síntese sobre a dinastia Stuart (escocesa),
Charles I e a Revolução Inglesa, cf. em (Hill, 198; Stone, 2000).
9 (grifo nosso) (Nichols, Joseph, IHL, 1828, p. 2-3).

180
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

Joseph Goulston, the Rio born 1682, died 1757


Ralph Goulston, born 1684, died 1738 (...).10

Cruzando as informações acima com os trabalhos de Willian


Donavan (1990) e Maria Julia de Oliveira e Silva (1992; 1995, p. 27-44),
pudemos esclarecer algumas dúvidas. Joseph Gulston já estava em Lis-
boa desde a década de 1690 (Silva, 1995, p. 32).11 A “primeira referência
conhecida acerca de Joseph Gulston indica-o fazendo parte de uma so-
ciedade com outro inglês, João Ache. Em todos os contratos a referência
é sempre igual, até 1699” (Silva, 1995, p. 31). Maria Julia Oliveira e Silva
ressaltou que a firma Joseph Gulston & Cia. fora fundada em Lisboa no
ano de 171112, e realizou negócios com outros negociantes ingleses por
lá13. A historiadora destacou também que os Gulston tiveram correspon-
dentes no Recife e no Rio de Janeiro. Nessa última cidade, chamou aten-
ção o nome do negociante Francisco de Seixas da Fonseca, um dos mais
importantes do Rio de Janeiro da época (Sampaio, 2005, p. 1-17).
Outro importante elo da cadeia mercantil de Joseph Gulston,
e mais precisamente com a firma Joseph Gulston & Cia., foi o fidalgo-
-mercador Duarte Sodré Pereira, quando esse era Governador e Capitão
General da Ilha da Madeira,14 cuja capital, Funchal, ao longo do século
XVIII, “se consolidou como importante centro internacional de comércio,

10 Annals and Antiquities of the Counties and County Families of Wales,..., by Thomas Nicholas.
London: Longmans, Green, Reader & Co., 1872. v.1, p. 288. (Mantive em inglês como na obra
citada). Assim como na Illustrations of Literary History, apareceu Ralph Gulston, morto em
1739, mais precisamente em 11/03/1739. O periódico Gentleman’s Magazine and Historical
Chronicle, v. IX, for year MDCCXXIX, noticiou o falecimento de Ralph Gulston, squire, Turkey
Merchant, em 11/03/1739. Gentleman’s Magazine and Historical Chronicle, v. IX, for the year
MDCCXXIX, p. 161.
11 Em Lisboa, Joseph Gulston ficou conhecido como o Velho, pois, seu filho homônimo, que fez
parte da firma a partir de 1719, era conhecido como Joseph Gulston, o Moço.
12 Em Portugal, os Gulston tinham residência na Rua das Pedras Negras. No entanto, e segundo
Silva, “com excepção de um pequeno período, à volta de 1720, em que moraram na Rua das
Canastras” (Silva, 1995, p. 29).
13 Em 1713, a firma estava associada com outro negociante inglês, Thomas Crofford (Sil-
va,1995, p. 32).
14 Duarte Sodré Pereira fora Governador da Ilha da Madeira quando tomou posse do morgado
dos Tibaus, em 1712. No retorno para Lisboa, em 1713, recebeu outras mercês de D. João V,
como fidalgo escudeiro da sua casa. Em 1717, procedeu ao tombo das propriedades do seu
morgado de Aguas Belas e, em 1718, foi indicado para o governo da Capitania de Pernambuco
pelo Duque de Cadaval, como também para a Capitania do Rio de Janeiro, pelo Conselheiro
do Conselho Ultramarino António Rodrigues da Costa, ambas sem confirmação. Em 1719, foi
provido por carta para Governador e Capitão da Praça de Mazagão, retornando ao Reino em
1724. Em 1727, foi nomeado para Governador e Capitão-General da Capitania de Pernambuco,
ficando no cargo por dez anos, até 1737 (Silva, 1992, p. 28-30).

181
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

fortalecendo interesses mercantis britânicos instalados na Ilha no século


XVII, após o casamento de Catarina de Bragança com Carlos II” (Santos,
2011, p. 2). A firma inglesa, assim como a firma genovesa Barduce & Judi-
ci, funcionavam como casa comissária-consignatária.15 No entendimento
de Maria Julia de Oliveira e Silva, “quer-nos parecer até que Duarte Sodré
depositava maior confiança nos seus correspondentes ingleses, a quem
mandava entregar as letras seguras ou de risco ou ouro em pó ou em
barra enviados do Brasil”.16
Importante ressaltar que, no Império Português,17 a atividade
comercial fora exercida largamente por aqueles que ocuparam cargos
ultramarinos, como os governadores. As atuações mercantis de Duarte
Sodré Pereira e outros, citados nos trabalhos de Victorino Magalhães
Godinho (1971) e Luis Filipe Thomaz (1994), demonstraram muito bem
a importância do comércio para a formação da riqueza de boa quantida-
de de fidalgos. Entretanto, muitos desses fidalgos-mercadores estavam
associados aos negociantes de grosso trato ou homens de negócio, pois,
esses comerciantes que negociavam a grosso, ou seja, no comércio de
atacado, numa linguagem mais contemporânea, tinham experiência, co-
nhecimento e informação para os negócios de risco, como no comércio
de longo alcance.18 Como bem definiu Jacque Savary des Brullons:
compreende a ocupação de um membro que remete
para os países estrangeiros as produções da sua pá-
tria, ou seja com o fim de trocá-las por outras neces-
sárias, ou por dinheiro este comercio feito por ter-

15 Segundo Silva, não existia esse tipo misto de agente na “legislação comercial” portuguesa,
com base nas Ordenações Filipinas. De acordo com seu estudo, “o correspondente se ocupa
cumulativamente da comissão e da consignação” (Silva, 1992, p. 89). Designa-se como comis-
sário “o negociante que, em seu próprio nome, recebe ou compra mercadorias para vender
ou expedir por conta de outros”, e consignatário, “aquele que, em praça diferente daquela em
que se encontra o mandante, vende por conta deste, as mercadorias remetidas” (Silva, 1992,
p. 81; 84).
16 As letras seguras são as letras de câmbio, emitidas pelos negociantes. Letra de câmbio consti-
tuiu-se numa ordem de pagamento, à vista ou a prazo, que o sacador dá ao sacado em benefício
do tomador. Sacador é o que cria a letra de câmbio; sacado é aquele contra quem a ordem de
pagamento é dirigida, e tomador é aquele que se beneficia do saque da letra de cambio (Silva,
1992, p. 88).
17 No entendimento de António Manuel Hespanha, com ênfase na História do Direito, o Império
Marítimo Português do período moderno fora marcado pela fragmentação territorial, e polí-
tica, em detrimento de uma concepção centralizada. Cf. (Hespanha, 2001, p. 163-188). Uma
crítica a tal concepção foi feita por Laura de Mello e Souza (2007). A réplica de Hespanha à
crítica de Laura veio em Hespanha (2007, p. 55-66).
18 Max Weber denominou esses negociantes “comerciantes atacadistas”, e Fernand Braudel de-
nominou-os “negociantes-capitalistas”. Para Webber e Braudel, esses negociantes eram “capi-
talistas modernos” (Weber, 2006; Braudel, 1992, p. 329-382).

182
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

ra, ou por mar, na Europa, ou com outras partes do


mundo, tem distinto nome de comercio em grosso,
e os que se ocupam nele são chamados de homens
de negócios.19

Tal foi o caso do referido fidalgo-mercador Duarte Sodré Pereira,


que teve como representante em Lisboa o negociante Domingos da Silva
Carvalho (Silva, 1992, p. 33-34).20 Em 2 de janeiro de 1712, Carvalho es-
creveu para a firma Joseph Gulston & Cia. o seguinte, sobre uma remessa
de trigo para Argel (Norte da África):
Serve esta de dizer a Vossas Mercês que serão ser-
vidos fretar uma balangra inglesa, ou outra embar-
cação em que pouco mais ou menos possam em-
barcar-se 100 moios de trigo o qual Vossas Merces
mandarão a Argel, a carregar o dito trigo a metade
por conta do senhor Governador e Capitão general
Duarte Sodré Pereira e outra em igual parte pelas
nossa David Lovegro e Recharte Miller, a qual Vossas
Mercês mandarão remeter a esta ilha a nossa con-
signação (...)”.21

Em outra carta, para Joseph Gulston & Cia, Duarte Sodré Pereira
chamou atenção de uma carregação22 de trigo vindo de Nova York (EUA)
para Lisboa, na qual 400 bucheís (bushel) eram enviados para a firma
inglesa em Lisboa:

19 Embora nesse momento, início do século XVIII, não houvesse uma diferenciação institu-
cional que separasse negociante de mercador, como ocorreu no Período Pombalino com a
criação da Junta de Comércio, a definição de negociante de grosso é válida para aqueles do
comércio de alto risco e do ultramar. SALES, Alberto Jaqueri de. Diccionario Universal de
Commercio. Tradução e adaptação manuscrita do Dictionnaire Universel de Commerce, de
Jacques Savary de Brulons. Lisboa: [s.n.], 1813. 3 v. O dicionário francês foi editado em 1723,
e há uma extensa bibliografia sobre os negócios e os negociantes de grosso no Império
Português, seja no Reino, seja nas regiões coloniais da América Portuguesa no século XVIII.
Uma pequena síntese está em (Guimarães, 2007, p. 35-64; Borrego, 2006; Pesavento, 2009;
Souza, 2012; Prado, 2015).
20 Em conversas com Maria Julia de Oliveira e Silva sobre a relação do negociante com o governa-
dor, a mesma destacou que Domingos era “o seu ‘homem de negócios’, encarregado de cumprir
as ordens dadas por Duarte Sodré Pereira.
21 Copiador de Cartas de Duarte Sodré, fl. 119v. (Apud Silva,1992, p. 81). David Lovrego era um
negociante inglês radicado na Ilha da Madeira. Balangra é um veleiro de um mastro de espicha
ou de latino quadrangular, com velas de proa, originalmente utilizadas no Mediterrâneo. Cf.
Medeiros (1993, p. 33). 100 moios é igual a 6000 alqueires, que é igual a 83.400 litros (1 alq =
13,9 litros - capacidade, peso).
22 Carregação era o termo utilizado para designar uma carga específica (mercadoria, inclusive
escravos), pertencente a uma ou mais pessoas, e enviada para uma localidade distinta daquela
em que seus proprietários residiam, com a finalidade de ser vendida.

183
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

...os últimos 400 bucheis de trigo remetidos a Vos-


sas Mercês por Abraam de Pexter fazem somente
por conta de David Lovegro, e Pedro de Faria, a
quem Vossas Mercês abonarão o seu rendemento
que he ajuste que ca fizeram....”.23

A respeito deste comércio do trigo realizado por Duarte Sodré


Pereira, Maria Julia de Oliveira e Silva destacou que a maior parte provi-
nha das colônias da América do Norte, como Nova York, e “destinava-se
a três zonas em que a sua venda era fácil: Lisboa, Madeira e portos do
Brasil” (Silva, 1992, p.99). O pagamento do trigo no Brasil era feito em
ouro e remetido para Lisboa (Silva, 1992, p. 100).
Além de Duarte Sodré Pereira, outro reinol com negócios com os
Gulston foi o negociante de grosso trato lisboeta Francisco Pinheiro.24
Natural de Alcochete, Cavalheiro da Ordem de Cristo, membro da Mesa
do Bem Comum do Espírito Santo dos Homens de Negócios e com múl-
tiplos negócios na Europa e no Império Português, Francisco Pinheiro e
seus correspondentes no Rio de Janeiro, como o seu sobrinho Antonio
Pinheiro Neto, se associaram a Ralph e Joseph Gulston, e essa relação
mercantil foi muito superior no tempo, se comparada com a do fidalgo
mercador Duarte Sodré Pereira.
Analisando as (cartas) de Francisco Pinheiro (Lisanthi Filho,
1973), ficou bem nítida a troca de correspondência com Ralph Gulston,
em razão da sua presença no Rio de Janeiro.25 Ficando mais em Lisboa,
na firma Joseph Gulston & Cia, Joseph apareceu nas correspondências
em determinados momentos, mas sempre com Ralph. Esta constatação é
interessante, já que coube a Joseph o apelido the Rio na Illustrations of the
Literary History (...), já citada. Acreditamos que sua posição hierárquica na

23 Copiador de Cartas de Duarte Sodré, fl. 128. (Apud Silva, 1992, p. 96). Não temos certeza,
porém, Abraam de Pexter pode ser na realidade, Abrahan de Peyster, o 20º prefeito de New
York, em 1698, e com outros cargos públicos na cidade, da família de negociantes de Peyster,
de origem huguenote francesa, que se refugiou nas Províncias Unidas no período do Massacre
de São Bartolomeu. Seu pai, Johannes de Peyster, nasceu na Holanda e migrou para Nova Ams-
terdã, que depois se tornou New York. Sobre Abraham de Peyster cf. Koot (2011, p. 164; 204;
207); Dobson (2009, p. 19). 1 bushel (bsh ou bu) de trigo = 60 lb = 27,2155422 kg.
24 A respeito de Francisco Pinheiro cf. Levy (1977); Ellis (1982); Donovan (1990); Furtado (1999);
Guimarães (2007); Honda (2005).
25 Ainda não achamos a data de chegada do Ralph Julia Gulston no Rio de Janeiro. A fonte inglesa
destacou o ano de 1710, assim como Maria de O e Silva. William Donovan citou o ano de 1709
(Donovan, 1990, p. 265).

184
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

sociedade Joseph Gulston & Cia., na família e na rede de sociabilidade26


pesaram no reconhecimento a Joseph Gulston.
Embora não diga do que se tratou, se foi venda por consignação
ou por comissão, numa carta escrita da Bahia em 3/08/1715 para Francis-
co Pinheiro, o caixeiro João Diniz de Azevedo27 fez menção ao pagamen-
to realizado por Ralph Gulston (na carta estava escrito Raphael Gultom)28
no Rio de Janeiro, destacando o seguinte:
Sr. Francisco Pinheiro
Meu amo e sr. que estimarei; (...)
Meu Sr. A V.M. “escrevi da Juda e do Rio de Janeiro,
e juntamente depois que cheguei a esta cidade em
o navio Santa Família que partio a 20 do passado, e
como em todas dou a V. M., larga nota do precedido
que esta serve so de anunciar a V. M. (...) e levo em
minha o cabedal de V.M a saber1.789 ½ 8as (oitavas)
de outro, e 3.904,748 rs (3:904$748) em dinheiro da
conta dos negros (grifo nosso) porque isto ficou por
pagar a dívida do gor; e o Sr. Antonio Pinheiro Netto
me disses mo havia de remeter paguando lhe a tem-
po que apanhasse aqui a frotta, porem por carta que
tive do Sr. em 28 passada; me diz que que no gor não
há o que falar ainda; assim mais levo 961/8as de ouro
e 1.060$ que o do sr. me entregou das mais contas
de V. M; assim mais levo que me entregou Raphael
Gultom 417.600 rs (47$600) que he o que lhe tocava
a V. M. (...)29

Ainda em 1712, numa carta de Antonio Pinheiro Neto, irmão de


Francisco Pinheiro, o primeiro relatava uma carregação de mercadorias

26 Michel Bertrand definiu a rede de sociabilidade como um “sistema de intercâmbios no seio


do qual formam-se vínculos e relações que permitem a realização da circulação de bens ou de
serviços – materiais e imateriais. São os intercâmbios realizados pelo grupo que caracterizam
e qualificam os vínculos. Sua realização supõe que as trocas são transversais, isto é, afetam
não somente as duas pessoas diretamente postas em relação no marco do intercâmbio, mas,
também, repercutem nos vínculos e relações próximas aos demais atores” (Bertrand, 1999, p.
19; Lacerda, 2010).
27 “Caixeiro de Francisco Pinheiro, tendo feito várias viagens entre Portugal, África e Brasil, em
negócios de escravos (...)”. NC, v. I, p. CXXXI.
28 No copiador de cartas de Duarte Sodré Pereira, apareceu o nome José Gloston (Joseph
Gulston), e na carregação de escravos de que tratamos mais adiante, Rafael Glouston (Ralph
Gulston).
29 João Diniz de Azevedo para Francisco Pinheiro, 12/09/1712, Cartas da Bahia. NC, v. I, p. 57.
Mantivemos a grafia da época. “1 onça de ouro é igual 8 oitavas. 1 oitava é igual a 3,5856 g. 1
oitava de ouro correspondia a 1.200 réis (já descontado o quinto)”.

185
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

enviadas pelo negociante lisboeta, e que, na sua ausência do Rio de Ja-


neiro, já que estava em Minas Gerais, coube Ralph Gulston recebê-la e
vendê-la como consignador. A carta dizia o seguinte:
Entrada de uma carregação vinda da cidade de Lixa
(Lisboa) em os navios nomeados e carregada por
meu irmão Francisco Pinheiro e por sua conta e ris-
co consigna a mim Antônio Pinheiro Netto neste Rio
de Janeiro aubz.te (ausente) a Raphael Gluston, e mar-
cada com FP a de fora.
Em o navio N. Sr.a da Supção e S. João Baup.ta capp.am
Antônio Luis Branco p. 15 barris de azeite doce com
72 ½ almudes e uma canada a
2.400 rs almude
174.200 para gastos e desp.os até bordo
8.540
182.74030

A importância de Ralph Gulston como receptor e consignador


das carregações de Francisco Pinheiro para o Rio de Janeiro também se
verificou em outras cartas. Numa, de Ralph Gulston para Francisco Pi-
nheiro, em 1713, escrita no bom português da época, o que corroborou
a tese de que ele morou muito tempo em Portugal antes de vir para o Rio
de Janeiro, explicou a liquidação de uma carregação de Pinheiro, o envio
do ouro fruto dessa carregação, o crédito que coube aos irmãos ingleses
pela atividade desempenhada de consignação e a união/confiança dos
agentes envolvidos para o bom comércio. Assinada em nome dos irmãos
Joseph & Raphael Gulston, embora não esclareça se Joseph, no momen-
to, se encontrava no Rio de Janeiro, a carta destacava o seguinte:
S.r Fran.co Pinheiro
Pela frota recebemos o favor da carta de VM. assim
o geral que trata da carregação em que VM. É inte-
ressado como também a sua p.ar que nos faz m.ce
e delas vemos ser VM. interessado numa 3ª parte
na carregação do pataxó N. S.ra do Monte do Car-
mo e S.to Antonio da qual temos tomado entrega e
no que resp.to a venda dela, por não repetir escusa-
damente a mesma matéria, reportamo-nos a carta
geral desta mesma data esta serve principalmente

30 Antonio Pinheiro Netto para Francisco Pinheiro, 12/06/1712, Cartas de Minas Gerais, NC, v.
I, p. 383. Almude é uma medida de volume equivalente a 25 litros; Canada é uma medida de
volume equivalente a 2,622 litros.

186
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

de coberta aos conhecimentos e carregavam inclusa


de 1.280/8ªs (oitavas) de ouro carregado por conta
de VM. nas naus de Guerra repartido como VM. vera
dos mesmos conhecimentos e carregavam exami-
nara VM. achando a certa lançara em nosso credito
em 1.931.321 (1:931$32) que é a sua importância ,
no respeito a recomendação de VM. nos faz a união
que é necessária para o beneficio da carregação, es-
teja VM., na certeza que não haverá diferença em
matéria nenhuma. (...).31

Em outra carta de Ralph Gulston para Pinheiro, também de 1713,


e também assinada em nome dos irmãos, o negociante inglês explicou
ao colega português a baixa venda de vários gêneros de comestíveis e de
fazendas secas. Infelizmente, o relato não especifica as causas da pou-
ca demanda, se foi por excesso (oferta) de produto na praça carioca,
ou ainda como rescaldo da situação complexa causada pelas invasões
francesas, principalmente a de 12 de setembro de 1711, liderada por Du
Guay Trouin, como a perda do navio Nossa Senhora do Rosário e os em-
préstimos forçados, para o Governador do Rio de Janeiro, para que este
pudesse pagar o resgate aos franceses. Na carta, Ralph Gulston relatava:
Sr. Francisco Pinheiro
(...)
Esperamos em D.s esteja VM brevemente entregue
dada remeça que lhe fizemos na frota que quere-
rá D.s levar a salvamento, os comestíveis de todo
gênero tem pouca saída de presente fazenda seca
vai a saber baetas a 780 e 800 rs côvados sarafina a
14.500 (14$500) e o mais a esse respeito, é o que de
presente se nos oferece D.s g.de a VM. muitos anos.
Muitos servidores de VM.32

Em 1715, Joseph e Ralph Gulston enviaram cartas para Francisco


Pinheiro, aos negociantes ingleses Guilherme Villet e Cudsden, à firma

31 (Grifo e destaque nosso). Ralph Gulston para Francisco Pinheiro, 10/08/1713, Carta do Rio de
Janeiro, NC. v. II, p. 30. Patacho era um barco à vela, de dois mastros tendo, a vela de proa
redonda e a de ré do tipo latina, podendo carregar de 40 a 100 ton; era utilizado para o trans-
porte de mercadorias e de tropas.
32 Ralph Gulston para Francisco Pinheiro, 24/11/1713, Carta do Rio de Janeiro, NC. v. II, p. 38.
Baeta é um pano de lã felpudo, que não foi apisoado (batido, encorpado a malho). Covado é
uma medida de comprimento equivalente a 66 cm. Sarafina era um tecido fino de lã, usado para
forro. A respeito das frotas do século XVIII, que ligavam Lisboa a Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro cf. (Godinho, 1953, p. 69-88; Lobo, 1975, p. 49-107).

187
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Milner & Danby33 e para Guilherme Earle34. Nessa correspondência, os ir-


mãos destacavam o resumo de tudo o que fora vendido no Rio de Janeiro
até aquele momento, o caixa (sobra) e o que fazer com produtos como
ferro e pólvora. Nas mesmas cartas, chamou atenção o fato de que, não
havendo demanda da mercadoria pólvora no Rio de Janeiro, a proposta
dos irmãos era vender “afiado” para Angola, podendo ser utilizada para
a compra de escravos, juntamente com a jeribita e armas (Miller, 1988;
Acioli, Menz, 2008, 43-73). Interessante contatar que, diferentemente
das demais cartas, nas quais constava somente o nome de Ralph, nessas
apareceram os nomes dos dois, o que levantou a possibilidade da presen-
ça de Joseph no Rio de Janeiro. Dizia a carta:
Pela frota deste ano não recebemos carta geral de
VM., mas pelas particulares de cada um vemos fica-
rem VM. entregues das remeças que fizemos a frota
passada a conta da carregação que recebemos pelo
Pataxo Monte do Carmo m.te (comandante) Custodio
dos Reis, das remeças que agora fazemos a mesma
conta vão conhecimento com as cartas particulares
que nesta ocasião escrevemos a cada um de VM. e
nesta só remetemos o resumo de tudo que temos
vendido até o presente da carregação que importa
12.407.480 (12:407$480) como VM. Verão da dita
conta e abatidos os fretes e mais gastos resta liq.
do
8.872.650 (8:872$650) a cuja conta temo remeti-
do 7.600.240 (7:600$240) com que resta agora em
caixa um conto e duzentos e setenta e dois mil e
quatrocentos e seis reis (1:272$406) da dita quantia
fazemos agora remessa pela nau de guerra N. Se-
nhora da Piedade a cada uma troca parte que impor-
ta 424.135 (424$135).
O resto do ferro fomos vendendo a 5$ quintal e
4.800 mas muito devagar por haver tanto na terra e
tão pouco gasto com tudo como não é gênero que
apodreça mais dia menos dia sempre se vendera,
mas a pólvora não sabemos na verdade o que ha-
vemos de fazer com ela porque esta dada na maior
droga que é possível nesta terra que VM. vejam o
que ordenam com ela caso que cá não tenha saída
se quer que a vendamos fiada para Angola a alguns

33 Luis Lisante destacou que Terence Milner, “comerciante em Lisboa, teve negócios com Fran-
cisco Pinheiro. Uma Carta Régia de 10/08/1725, concedeu-lhe moratória de 4 anos, visto que
seus credores o tinham abonado”. NC, v. I, . CXXXVII.
34 Guilherme Earle era sobrinho do cônsul geral inglês em Lisboa João Earle, e Cudsden era João
Cudsden.

188
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

capitães que navegam para lá, que suposto ter o ris-


co do mar (...).35

Analisando as cartas enviadas de Lisboa por Francisco Pinheiro


para Ralph Gulston no Rio de Janeiro, em 1714, o negociante lisboeta
reforçava sua relação com os ingleses no Rio de Janeiro, como também
com os ingleses em Lisboa, no caso, Guilherme Violet e Tempest Milner.
Respondendo a carta enviada por Gulston, Pinheiro agradeceu o envio, e
ressaltou a relação de reciprocidade entre as partes com o cumprimento
das ordens de Lisboa de enviar ouro e não letras.36 Dizia a carta:
Sr. Raphael Gluston

Rio
Meu Sr. recebi a de VM. que estimei muito por me
assegurar que goza de boa saúde, que assiste fica
a dispor do VM., recebi as 1280/8 de ouro que VM.
fizeram mercê de me remeter por conta da carre-
gação que foi no Navio N. Sr.a M.te Carmo e Santo
Antônio em que fomos interessados em igual parte
Timpeste Millenes e G.me Viollete e espero que VM.
tenham dado saída a toda carregamento e espero
que remetam a minha parte na forma das nossas or-
dens em ouro nessa nau de guerra, e eu não faltarei
em servir a VM. no que tiver préstimo destas parte
q.m D.s g,de. 37

A questão envolvendo o pagamento em ouro pelos Gulston no


Rio de Janeiro e sua remessa através das frotas para Lisboa, seja para
Francisco Pinheiro, seja para Duarte Sodré Pereira, que, estando na Ilha
da Madeira, recomendava que o mesmo fosse enviado para D. Jorge Hen-
rique Pereira, Senhor das Alacaçovas,38 teve como uma das explicações o
diferencial de preço do metal/moeda no Rio de Janeiro e Lisboa. Segundo
Maria Julia de Oliveira e Silva, “para Lisboa não existia a proibição de
mandar ouro não amoedado (como para os Açores e Madeira), e o ouro

35 (grifo nosso) Joseph e Ralph Gulston para Guilherme Vilett e Guilherme Earle, Cudsden, Milner
& Danby, e o Sr. Francisco Pinheiro, 15/06/171, Carta do Rio de Janeiro. NC, V. II, p. 68. Quintal
é uma medida de peso equivalente a 4 arrobas (@), e a 58,7465 Kg. 1@ equivale a 14,6866
Kg.
36 A respeito do ouro cruzando o Atlântico pelos particulares e pela Coroa cf. (Costa, Rocha,
Souza, 2005, p. 71-81).
37 Francisco Pinheiro para Ralph Gulston, 25/02/1714, Carta de Lisboa, NC. v. IV, p. 700.
38 Cf. Nota 42.

189
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

‘em pó ou por cunhar’ é conseguido no Brasil, a um preço mais barato


do que o amoedado. Assim, Duarte Sodré (como Pinheiro) lucrava ‘esse
enteresse’” (Silva, 1992, p. 144). No entanto, sabe-se hoje em dia que
a remessa de ouro estava atrelada a vários fatores (Costa; Rocha; Sou-
za, 2013; Carrara, 2010, p. 217-239), e que, como disse muito bem Rita
Martins e Fernando Carlos Cerqueira Lima, “na historiografia brasileira
torna-se mais consensual o entendimento de que o Brasil do século XVIII
não foi uma economia meramente exportadora, tendo o seu comércio
interno dinâmicas multiplicadoras” e “que os particulares não enviavam
toda a moeda nacional de ouro recebida para Lisboa, sobretudo, a rece-
bida na Casa da Moeda do Rio de Janeiro” (Lima, 2015, p. 2; 16).
Em outra carta, de 1716, Francisco Pinheiro solicitou a Ralph
Gulston que vendesse as mercadorias no Rio de Janeiro e que, não tendo
consumo, que enviasse as mesmas para Angola. Em nome dele, como
também dos sócios, Guilherme Violet e Tempest Milner, era necessário
finalizar a conta dessa carregação.
Sr. Raphael Gluston
Rio
Pelas duas naus que desta partiram para esse porto
em 25 de fevereiro, escreve a VM.; e agora novamen-
te o faço desejando notas da boa saúde de VM. e que
se sirva da que me assistem o que for de seu serviço;
serve esta de pedir a VM. que o resto que VM. tem
em seu poder da carregação do pataxó N. Sra. do
Carmo o que VM. vender quando nessa cidade tenha
consumo; ou remetê-lo para Angola ou para onde
VM. entender terá saída; e Tempester Milne e Gu-
lherme Violet suponho fazem a VM. o mesmo aviso;
porque desejamos dar fim a esta conta (...).39

Importante constatar que, no período de 1717 até 1720, a cor-


respondência trocada entre os negociantes ingleses e Francisco Pinheiro
cessou. Segundo Donovan, isto se deveu ao recrudescimento da Coroa
para com os estrangeiros após 1714 (Boxer, 1969b, p. 462), principalmen-
te com relação à autorização das famílias inglesas pelo tratado de 1661
de se fixarem em certas cidades do Império Português. Ralph Gulston
passou por infortúnios, fosse por ser protestante, fosse por não se so-
cializar com a comunidade mercantil do Rio de Janeiro, eminentemente
católica, nem com a “nobreza local” que comandava a Câmara Municipal

39 Francisco Pinheiro para Ralph Gulston, 10/03/1716, Carta de Lisboa, NC. v. IV, p. 723.

190
A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

(Bicalho, 2003), importante instituição de poder na cidade, o que acabou


fazendo com que ele e outros estrangeiros retornassem para Lisboa na
frota de 1716 (Donovam, 1990, p. 266-267; Pjning, 1997, p. 180).
Entretanto, podemos rever a análise de Donovan sobre Ralph
Gulston. David Francis destacou que, mesmo com toda pressão sobre
os estrangeiros, certos indivíduos retornaram para o Rio de Janeiro. Tal
foi o caso do anterior cônsul inglês na cidade, Ralph Gulston. Embora, o
cargo de cônsul não tenha sido mencionado na tese de Donovan, nem na
documentação Negócios Coloniais, Ralph teve permissão para retornar ao
Brasil em 1717 (Francis, 1985, p. 43; Pjning, 1997, p. 181). Segundo Ersnt
Pijning, baseado nas correspondências consulares enviadas pelo ministro
plenipotenciário britânico em Lisboa, Henry Worseley, para o Secretário
de Estado para o Departamento Sul, Paul Methuen, e pelo Conselheiro
e Secretário de Estado, Diogo de Mendonça Corte Real, para o próprio
Henry Worseley, ambas em 1717, fora permitido a Ralph Gulston retor-
nar ao Rio de Janeiro por um ano para liquidar os seus negócios (Pjning,
1997, p. 181).
Em novas cartas de Francisco Pinheiro aos seus correspondentes,
como para Thomas Brum da Silveira P Taveira,40 da Ilha de Faial, no Ar-
quipélago dos Açores (Rodrigues, 2012), houve menção a Joseph e Ralph
Gulston no Rio de Janeiro, em 1720. Nas cartas de 30 de janeiro e de 26
de abril do corrente ano, Francisco Pinheiro cobrava com veemência o
compromisso de Thomas Brum de remeter ouro e o não cumprimento do
mesmo com relação a Joseph e Ralph Gulston:
Por se oferecer a ocasião destes navios torno a repe-
tir a VM. nesta o q. na passada lhe visei; e agora com
maior razão; pois vejo que VM. nem por via do Brasil
como VM. me mandou dizer me mandava 41
Depois de 1720, tanto nas correspondências de
Francisco Pinheiro, quanto na documentação in-
glesa, como no Journals of the House of Commons de
1722, Ralph Gulston não estava mais no Rio de Ja-
neiro, e sim, “ at Lisbon from 1720 to 1725”.42 Nos

40 Era irmão de outro correspondente de Pinheiro, Antonio Xavier de Montojos e Silveira, que
estava na Ilha de São Miguel, a maior e principal ilha do Arquipélago dos Açores. A ilha do
Faial situa-se no extremo ocidental do Arquipélago dos Açores, separada da Ilha do Pico por um
estreito braço de mar.
41 (grifo nosso) Francisco Pinheiro para Thomas Debrun da Silveira, Carta de Lisboa, 26/04/1720,
NC. v. V, p. 7.
42 Journals of the House of Commons, v. 20, 1722, p. 842. Numa outra fonte, The Works of the
Right Honourable Joseph Addison. Squire, os irmãos ingleses apareceram como subscritores
para publicação: Messiers Joseph and Ralph Gulston of Lisbon. Cf. The Works of the Right
Honourable Joseph Addison. Squire. London: Printed Jacob Tonson, 1721. v.4.

191
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

anos 1730, Joseph e Ralph estavam em Londres e,


como já ressaltamos, Joseph Gulston ficou conheci-
do na City londrina como the Rio Gulston, e Ralph,
como Turkey Merchant. Só que Ralph desenvolveu
outros negócios, como na colônia inglesa da Amé-
rica do Norte. Thomas P. Slaughter destacou a sua
participação no importante comércio de madeira de
pinho branco de Massachusetts. Segundo Slaught
“in 1730, the Crown has licensed Ralph Gulston to
cut and deliver a stated number of white pine mast
from the colonies” (Slaughter, 2014, p. 203).

Embora nesta parte do trabalho enfatizemos a rede mercantil e


a importância dos Gulston para com o fidalgo-mercador Duarte Sodré
Pereira e o negociante Francisco Pinheiro, o negociante Ralph Gulston
e a firma Joseph Gulston & Cia. realizaram negócios próprios (Figura 1).
Tal foi o caso da carregação de escravos para a Costa da Mina, de que
tratamos a seguir (Sampaio, 2001, p. 91).

Figura 1: A rede mercantil de Joseph e Ralph Gulston,


c.1710 –c.1720. Fonte: Elaboração do autor
OBS: Fe é ferro.

A carregação de 1712 e a sociedade de ingleses e reinóis


Em 6 de agosto de 1712, no Cartório do 2º Ofício de Notas da
Cidade do Rio de Janeiro, foi registrada uma sociedade comercial com-

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A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

posta pelos reinóis e homens de negócios Manoel Casado Viana e João


de Oliveira, e os negociantes ingleses João Cheren, na realidade John
Sherman, Rafael Gulston (Ralph Gulston) e Thomas Bound, para efetuar
uma carregação (resgate) de 300 escravos da Costa da Mina, África,
através do frete do navio Nossa Senhora da Boa Hora, capitão Antonio
da Costa.43
Analisando os nomes dos negociantes reinóis na sociedade, des-
tacamos o comerciante e traficante de escravos Manoel Casado Viana,
proprietário da chácara do Casado, cujo desmembramento gerou o ter-
reno do Paço (Mathias, 2009, p. 30; 39; 79-81). No tocante aos ingleses,
além do Ralph Gulston, destacamos também o inglês John Sherman, já
que ainda não temos maiores informações sobre Thomas Bound, perso-
nagem importantíssimo, pois, como administrador do resgate, receberia
uma comissão de 10% de todos os escravos “que chegarem vivos a esse
porto (RJ)” (Sampaio, 2001, p. 92).44 Segundo Donovan, John Sherman era
um inglês católico que chegou ao Brasil, em 1696, e começou a comer-
cializar mercadorias secas (fios e tecidos) e escravos para Minas. Atuou,
também, como comissário de firmas portuguesas em Lisboa, Porto e Lon-
dres (Donovan, 1990, p. 267).
No Rio de Janeiro de inícios do Setecentos, John Sherman casou-
-se com Barbara de Sá de Souto Maior, descendente de uma das mais po-
derosas famílias da “nobreza da terra carioca” (Donovan, 1990, p. 267),
e esse casamento foi muito importante para a sua permanência no Rio
de Janeiro, face à pressão da expulsão dos estrangeiros a partir de 1714.
Segundo Donovan, sucessivas petições foram enviadas do Senado da Câ-
mara do Rio de Janeiro para a Coroa, para excluir Sherman da lista dos
estrangeiros que foram obrigados a se retirar do Rio de Janeiro, como foi
o caso de Ralph Gulston (Donovan, 1990, p. 268).
Retornando à sociedade comercial, infelizmente não achamos ain-
da a documentação que comprove o retorno da carregação dos africanos
da Costa da Mina (Soares, 2000, p. 86). No entanto, para Antonio Carlos
Jucá de Sampaio, a organização da sociedade na Cidade do Rio de Janei-
ro se constituiu num exemplo de autonomia da elite mercantil, pois foi
essa que possibilitou um ajuste com a Royal African Company (Eltis, 1994,
p. 237-249; Morgan, 2007, p. 57-60), que permitiria que suas feitorias na
costa africana abastecessem tal carregação, “em troca passa letras para a

43 BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de Notas, Fundo 5E,
Livro 17, f. 93. (AN, CSON, 5E, L.17).
44 BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de Notas, 5E, L.17, f. 93.

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A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

companhia inglesa resgatar em Lisboa”.45 As ditas letras só seriam válidas


com a assinatura de Bound,46 e, para os pagamentos das mesmas, teriam
que ser sacadas sobre Joseph Gulston & Cia., em Lisboa47, ou seja, a firma
dos Gulston era a responsável pela aceitação e o pagamento das letras.
No tocante à presença da Royal African Company, pudemos supor
que os Gulston tinham reconhecimento junto à companhia inglesa na
City de Londres, além do fato de que Ralph Gulston esteve em Barbados,
um centro do comércio de escravos importante da companhia (Nash,
2005, p. 95-151).

Considerações finais provisórias


Ana Crespo Solana (2010), nos seus trabalhos sobre as atividades
mercantis flamengas na Espanha, ressaltou a importância das redes e das
comunidades nacionais e transnacionais na atividade mercantil, particu-
larmente em momentos de conflito. Segundo a autora, “la nacion, como
categoria histórica, servia como habitáculo para la expansion de estas
redes, y proponiamos la hipótesis de que la nación, como tal categoria
histórica era entendida como uma versión más o menos ampliada del
clan familiar” (Solana, 2010, p. 50; Solana, 2007, p. 13-85).
Ainda no tocante aos privilégios, Crespo Solana destacou que a
comunidade mercantil flamenga tinha, desde naturalização especial con-
cedida pelo monarca espanhol, até um foro de justiça especial, os “fueros
de conservaduria”, ou seja, as mesmas conservatórias adquiridas pelos
ingleses junto aos portugueses. No seu entendimento, esse foro de jus-
tiça “creó una superestructura institucional que amparaba a la vez que
pretendia vigilar a los mercaderes extranjeros y que se convertió em um
hecho de transcendência política” (Solana, 2007, p. 58).
Embora as pesquisas nos arquivos ainda estejam no início, po-
demos afirmar que a rede de sociabilidade dos Gulston, rede trans e
extra-imperiais (Pesavento, 2009; Prado 2012, p. 168-184), e os pri-
vilégios diplomáticos concedidos à nação inglesa foram fundamentais
não somente para que os referidos irmãos realizassem suas atividades

45 BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de Notas, 5E, L.17, f.
93. (Sampaio, 2001, p. 91-92).
46 BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de Notas, 5E, L.17, f.
94.
47 BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de Notas, 5E, L.17, f.
94. (Sampaio, 2001, p. 92).

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A inserção dos ingleses no império português: o caso da família Gulston no Rio de Janeiro, c.1710-c.1720

comissárias e de consignação com outros negociantes, como também


desenvolvessem negócios próprios, como a carregação de escravos de
1712. Semelhante aos flamengos em Espanha, os ingleses Gulston, face
ao conturbado momento, utilizaram seus privilégios para realizar os
seus negócios em Lisboa e no Rio de Janeiro, tanto com negociantes, a
exemplo de Francisco Pinheiro, como com fidalgos-mercadores, como
Duarte Sodré Pereira. Tais atividades, desenvolvidas no mercado atlân-
tico português, possibilitaram-lhes riqueza e prestígio ao retornarem
para Londres, e o apelido (nickname) the Rio para Joseph Gulston mos-
trou muito bem isso.
Finalizando, é importante ressaltar que a rede dos irmãos Gulston
possibilitou aos mesmos o acesso às informações e ao bom andamento
dos negócios, ainda mais no mercado onde predominava a economia
substantiva (Polany, 2012, p. 133-152), ou seja, uma economia não regida
pelo fator exclusivamente econômico. Coerentemente com o mercado, a
racionalidade dos agentes e as assimetrias das informações, a rede dos
irmãos Gulston se constituiu num mecanismo de defesa e aumento dos
seus lucros face aos custos de transação e da informação do mercado
colonial e atlântico.48

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BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de
Notas, 5E, L.17, f. 93
BRASIL. Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Cartório do Segundo Ofício de
Notas, , 5E, L.17, f. 93.

48 Neste momento da pesquisa, não cabe uma discussão sobre o conceito e as críticas à Nova
Economia Institucional (NEI) e à teoria dos custos de transação. Por ora, basta o significado
de custos de transação, que são os custos totais associados a uma transação (comercial, finan-
ceira e outras), executando-se o mínimo preço possível do produto (custos de produção), com
o intuito de maximizar o lucro face às imperfeições dos mercados e à racionalidade limitada
dos agentes. Cf. (Coase, 1937, p. 386-405; Coase, 1992, p. 713-719; Williamson, 1985; William-
son; Winter, 1991). No tocante às críticas à NEI cf. (Britto, 1994, 120-139; Fagundes, 1997).

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204
O ANACRONISMO DE UM ATAVISMO? A
PROPÓSITO DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO
SOB ÉGIDE MERCANTILISTA

Carlos Leonardo Kelmer Mathias

Introdução
Creio que a explicação do título se impõe. Importa, de saída, es-
clarecer a primeira parte do enunciado. Julgo-me dispensado de tecer
considerações no que toca ao significado semântico do termo anacro-
nismo, o que me remete diretamente à elucidação da palavra atavismo.
Conforme o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, entende-se por ata-
vismo: “reaparição em um descendente de caracteres de um ascenden-
te remoto e que permaneceram latentes por várias gerações” (Houaiss;
Villar, 2001, p. 331). Na medida em que um atavismo necessariamente
encerra uma observação temporal do passado em direção ao presen-
te, o raciocínio inverso demanda uma regressão do presente rumo ao
passado, donde o risco de se incorrer em uma análise anacrônica. Em
minha defesa prévia, evoquei o caráter interrogativo no enunciado, ou
seja, minhas premissas argumentativas estão em construção, abertas ao
debate. Não trago certezas, mas dúvidas. O que proponho é um exer-
cício arriscado; a saber: procurar em um ascendente características ob-
serváveis em um descendente. Ir do presente para o passado. Em se
tratando do recorte temporal do conceito aqui trabalhado, ir do passa-
do oitocentista para o passado setecentista. Isso estabelecido, passo à
segunda parte da alcunha do meu texto.
Aqui, a trama se complica. Peço que meu leitor seja indulgente e
me conceda o benefício da dúvida. Pois bem, vamos ao cerne da questão.
O estudioso familiarizado com o tema da escravidão, própria ao sécu-
lo XIX, indubitavelmente já esbarrou na definição de segunda escravidão
formulada por Dale Tomich. Em essência, o autor envidou esforços no
sentido de compreender um aparente paradoxo: como a instituição da
escravidão floresceu em algumas regiões, ou experimentou maximização
em outras (respectivamente Cuba e Brasil, por exemplo), em pleno albor
e desenvolvimento do sistema capitalista de produção? Em síntese, a res-

205
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

posta nos encaminha para a concepção das relações sociais de produção


e das particularidades históricas de cada região como partes integrantes
e unificadas do desenvolvimento capitalista em escala mundial. Mais de
perto, tanto os mercados, como a escravidão, adquirem a roupagem de
relações historicamente formadas, reforçando a interdependência entre
ambas as esferas (Tomich, 2004, p. 3; Tomich, 2016, p. 66).
Avançando, o modelo do autor admite produção, distribuição,
troca e consumo como um campo unificado de conceitos relacionais e
conectados na forma de mercadoria, donde cada um deles é definido a
partir da interação mútua. Do posto, temos um complexo orgânico no
qual, e a partir do qual, esses campos estão em perene correspondência
uns com os outros, sendo a mercadoria o nexo de ligação entre eles. Ou
seja, para compreendê-los, não podemos prescindir de compreender a
natureza em si das mercadorias produzidas, distribuídas, trocadas e con-
sumidas no sistema então vigente. Interessa-me destacar que, consoante
o autor, cada uma dessas instâncias possui características historicamente
dadas. Ao abrigo de semelhantes considerações, a escravidão oitocen-
tista não é vista como capitalista por produzir para o nascente mercado
capitalista, nem classificada como não capitalista por não ser uma forma
de produção assalariada.
Em boa verdade, “o trabalho escravo é tratado como parte da
organização do trabalho social em uma escala mundial”, sendo tal or-
ganização parte constitutiva de “uma forma específica de produção de
mercadoria que está relacionada com outras formas através do mercado
mundial e da divisão internacional do trabalho”. O mercado mundial e a
divisão internacional do trabalho encerram condição para a reprodução
das próprias relações escravistas de produção (Tomich, 2004, p. 29-30).
Para Tomich, esse modelo viabiliza a reconstrução da divisão
internacional do trabalho historicamente dada como uma relação entre
processos materiais específicos e formas sociais de trabalho em regiões
particulares, integradas pelo mercado mundial e em constante transfor-
mação, a partir de uma inter-relação no tempo e no espaço. Em conclu-
são, “tanto o caráter capitalista da escravidão, como o caráter escravista
do capitalismo emergem das relações evoluídas historicamente entre
várias formas de produção e de troca dentro dessa totalidade”. As impli-
cações sobre o tema facultam a reconstrução do desenvolvimento histó-
rico da escravidão imanente a cada região como resultante do sistema
econômico mundial, assim como oferecem condições de se diferenciar
cada uma dessas esferas escravistas face ao lugar que ocupam no todo
econômico e político (Tomich, 2004, p. 29-30).

206
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

As ilações aferidas com base nesses sumários e lacônicos apon-


tamentos das ideias do autor restringem a aplicação de seu modelo ao
século XIX. Afinal, estou a dialogar com um modelo analítico pensado
sob as limitações de “características historicamente dadas”. E assim o
é, essencialmente, porque compreendo não ser de todo prudente assu-
mirmos os traços basilares observáveis no sistema produtivo capitalista
oitocentista para os períodos que precedem a chamada Revolução In-
dustrial. Determinados aspectos (fundamentalmente de ordem mercantil
e, em menor medida, financeira), componentes do modelo capitalista,
podem perfeitamente ser observáveis no Século das Luzes. Em que pese
o caráter histórico desse sistema, a lógica de funcionamento das socie-
dades setecentistas não responde, ipsis litteris, aos preceitos do sistema
capitalista de produção. A rigor, tais preceitos enterneciam-se diante do
caráter substantivo da economia coeva.
Outra dificuldade que me antepôs repousa no emprego do termo
segunda escravidão. Outros, antes de mim, já observaram a faceta insidio-
sa que a palavra segunda evoca ao ser adstrita ao termo escravidão. Ora,
se houve uma segunda, forçosamente tem de ter havido uma primeira!
Infelizmente, não é tão simples assim.
A premissa da escravidão remonta às sociedades clássicas, sen-
do que, usualmente, a distinção se dá no âmbito da escravidão antiga e
da escravidão moderna, das sociedades com escravos e das sociedades
escravistas (Finley, 1991). Tomich instrumentaliza o termo “segunda es-
cravidão” com vistas a empreender uma diferenciação entre as relações
de produção escravistas pré e pós advento da Revolução Industrial com
a consequente efetiva implementação do sistema capitalista. Ciente de
que minha argumentação apenas recrudescerá o viés contencioso do cor-
rente capítulo, não posso endossar o axioma da segunda escravidão se o
mesmo demanda uma primeira escravidão, pois, do contrário, teríamos
que arrolar todas as idiossincrasias das sociedades escravistas no tempo
e no espaço. Antes, compreendo que a ideia de segunda evoca apenas
uma diferença em si, uma diferença entre dois modelos de relação de
produção escravista subsumidos a dois sistemas econômicos igualmente
diversos, a saber: o capitalista e o mercantilista. Com isso encerro minha
justificativa precípua para o termo segunda vir em itálico no título do
texto. Não por nada apenas segunda está destacado, e não todo o termo
“segunda escravidão”. No referente a tal matéria, não assumo a escravi-
dão mercantilista como primeira, mas tão somente diferente da segunda.
Corolário direto: segunda está em itálico em observância ao fato de que
o subtítulo poderia perfeitamente ser lido subtraindo-a de seu enuncia-

207
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

do. Por outro lado, o emprego do termo se impõe como ancoragem ao


modelo de Tomich.
O objetivo do corrente capítulo consiste em esboçar uma rudi-
mentar tentativa de retroceder ao Século da Razão, o modelo de Tomich,
permutando capitalismo por mercantilismo, sob o risco de incorrer em
um dos pecados capitais do historiador: o anacronismo. Pretendo iden-
tificar quais características desse modelo imanente ao século XIX podem
ser aplicadas como ferramentas heurísticas de compreensão das condi-
ções históricas da reprodução das relações sociais escravistas no século
XVIII, sob a égide do capcioso termo mercantilismo. Uma vez esclareci-
dos meus intentos, passo à tarefa em si.

Diálogos com o mercantilismo


A primeira vez que o termo système mercantile foi citado em uma
publicação data de 1763 e teve vez pelas mãos de Mirabeau. A difusão
ocorreu somente em 1776, com a publicação de A riqueza das nações, sob
os cuidados de Adam Smith, para quem foram os grandes mercadores e
as nascentes manufaturas, mais do que o povo, os principais beneficia-
dos pelo dito sistema – até porque a balança comercial favorável teria
sido o centro do mercantilismo, tanto como um sistema de pensamento,
como em termos práticos. Desde então, todo o debate concernente ao
tema gravita, por um lado, ao redor da natureza do termo (se é ou não
uma política econômica, um conjunto normativo das sociedades etc.) e,
por outro, ao entorno da viabilidade de empregá-lo para se compreender
a relação entre riqueza e poder no decurso da chamada Idade Moderna
(Magnusson, 2015, p. 15-54). No que toca aos interesses aqui esclareci-
dos, não cabe empreender um debate extenso a propósito da bibliografia
atinente ao tema. Importa, pois, destacar alguns autores cuja visão me
interessa mais de perto.1

1 O debate acerca do mercantilismo reúne um volume colossal de interpretações. A título de


exemplo, os economicistas históricos do século XIX tentaram apresentar o mercantilismo
como uma escola de pensamento com o fito de promover o crescimento econômico e a mo-
dernização através do protecionismo e do nacionalismo econômico. Por seu turno, Schomol-
ler o define como uma política econômica que promoveu a unidade nacional, cuja essência re-
pousou não em determinada doutrina sobre dinheiro, balança comercial favorável, impostos,
tarifas protecionistas ou atos de navegação (como quis Adam Smith), mas, antes, representou
uma completa transformação da sociedade e de suas organizações, assim como dos estados e
suas instituições, de uma economia local e territorial para um Estado nacional. Lorde Keynes,
por exemplo, reduziu o mercantilismo a uma política voltada para a busca do pleno emprego.
Joel Mokyr, influenciado por Smith, argumentou que, a princípio, o pensamento mercantilista

208
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

Leitura indispensável para qualquer pesquisador do tema, Eli


Hecksher entende o mercantilismo não apenas como “uma fase na histó-
ria da política econômica”, mas, outrossim, um “corpo característico de
ideias econômicas”. Pode-se argumentar que, em sua visão, o mercan-
tilismo encerra uma específica construção moral e comportamental da
sociedade, o que lhe faculta operacionalizar o termo com o escopo de
acessar uma concepção materialista da mesma. Tal concepção responde
ao anseio do Estado (sujeito e objeto da política econômica mercantilis-
ta) de promoção da “unificação” do país, rompendo, dessa forma, com a
herança de segregação territorial herdada do Medievo. Dito de outra for-
ma, o mercantilismo teria servido ao processo de formação dos Estados
nacionais a partir das necessidades e características de cada país. Corolá-
rio direto dessa política, houve um fortalecimento do poder estatal. Em
realidade, para o autor, o Estado teria se valido das forças econômicas
com o claro objetivo de majorar sua autoridade em detrimento de seus
rivais. Com que então, “tanto o trabalho de unificação, como a luta por
poder foram resultados claros do mercantilismo enquanto um sistema
econômico do novo estado soberano”.2 Dadas a força da Monarquia bri-
tânica e a relevância de seu transporte marítimo, a Inglaterra teria sido

esteve baseado na ideia segundo a qual, para vencer a competição ultramarina, os produtores
domésticos haveriam de ser subsidiados e seus competidores, taxados. Contudo, em finais
do século XVIII, tal premissa sofreu uma modificação - momento em que o triunfo sobre os
competidores estaria alicerçado nos avanços tecnológicos voltados para produção. Em adi-
ção, essas seriam sociedades rentistas, donde a influência do pensamento de Adam Smith.
Já na perspectiva marxista, o mercantilismo seria parte constituinte da chamada acumulação
primitiva de capital. Posteriormente, os pensadores marxistas correlacionaram semelhante en-
tendimento com o trato ultramarino favorável às potências europeias na esteira do comércio
assimétrico (as colônias exportavam matéria-prima e as metrópoles produtos industriais), cujo
desfecho explicaria o desenvolvimento industrial via comércio ultramarino. Lars Magnusson
faz terra arrasada da historiografia acerca do tema, com honrosa exceção a Hecksher. Para o
autor, o mercantilismo foi primeiro, e acima de tudo, literatura em forma de livros, manuais,
tratados e periódicos acerca de uma variada sorte de assuntos, desde temas políticos contro-
versos até práticas relativas a comércio, transporte, manufaturas domésticas, imigração de
trabalhadores habilidosos, taxas de juros, enriquecimento, poder estatal etc. De passagem, o
autor prefere definir o mercantilismo em termos do que ele não foi. Ou seja, o mercantilismo
não teria sido uma doutrina bem estruturada erigida em cima de princípios igualmente bem
estruturados através dos quais seria possível descrever um comportamento econômico e/ou
medidas políticas. Sobre os autores aqui citados, conferir a bibliografia ao final do capítulo.
2 Um dos autores mais trabalhados pela historiografia, Pierre Deyon, faz eco ao entendimento
de Hecksher, segundo o qual o mercantilismo consistiu, dentre outras facetas, em uma pode-
rosa força de unificação nacional e de obtenção de poder pelo Estado (Deyon, 2001, p. 51-53).
Segundo o Dictionary of Political Economy, por sistema mercantilista se entende “a política
econômica da Europa desde a ruptura da organização medieval da indústria e do comércio até
o domínio do sistema de Laissez-faire”, sendo a Inglaterra o único país passível de ser estuda-
do por todos os vieses mercantilistas (Palagrave, 1906, p. 727). Disponível em: https://archive.
org/stream/cu31924052158262#page/n7/mode/2up. Acesso em: 04 jan. 2018.

209
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

o país que gozou de maior facilidade em seu processo de rompimento


das amarras medievais e unificação estatal. Em contrapartida, a Holanda
foi a nação menos afetada pelo mercantilismo, podendo ser considerada
“antítese” desse sistema (Heckscher, 1935, passim; Heckscher, 1936, p.
45-46).
Outra faceta mercantilista que me interessa discutir conver-
ge para a correlação entre trabalho assalariado e mão de obra escrava.
Quanto menos por comungar com as explicações puramente econômicas
para a implementação da força escrava nas Américas, mas pelo intuito
de suscitar o debate, resgato a premissa a seguir. Segundo Eric Williams,
até finais do século XVII, o grosso da força de trabalho nas colônias bri-
tânicas era composto por camponeses imigrantes livres ou em regime de
servidão. Por esses tempos, o foco da política econômica mercantilista
consistia em envidar esforços no sentido de potencializar a acumulação
de metais preciosos, o chamado bulionismo. Sem embargo do posto, nes-
ses idos, tal política econômica teria vivenciado uma alteração, passando
a entronizar o desenvolvimento industrial, o crescimento do emprego e
o encorajamento das exportações. Em diapasão com a política mercan-
tilista coetânea, o caminho perfeito para reduzir custos e, logo, compe-
tir em melhores condições com os demais Estados modernos repousava
no decréscimo salarial, com que então o crescimento demográfico se
impunha como conditio sine qua non para o desenvolvimento nacional
britânico. Segundo o autor, resulta claramente que a condição essencial
da colonização (o povoamento que incorria no movimento emigratório)
encerrava óbice ao projeto econômico britânico. Diante de semelhante
incongruência, o governo inglês se voltou, a princípio via Companhia
Real Africana, para o tráfico de escravos (Williams, 1994, p. 15-19).3
Ao que precede, advogo que o mercantilismo serviu à consolida-
ção não apenas do sistema econômico atlântico, mas também do sistema
econômico mundial. Explico-me. Aceitando a premissa segundo a qual a
política econômica mercantilista favoreceu a formação dos Estados na-

3 Em linha argumentativa afim à anteriormente enunciada, Robert Haywood infere que a con-
cepção mercantilista inglesa defendia a fulcral importância do crescimento demográfico como
sustentáculo para o desenvolvimento da Grã-Bretanha, proibindo-se, dessa forma, o movi-
mento de emigração para as colônias britânicas. Pari passu à percepção segundo a qual se
impunha o povoamento das conquistas ultramarinas, a adoção do trabalho escravo se avizi-
nhou como solução ideal, dentre outros fatores, por: a) gerar lucro; b) nascida fora do império
britânico, essa mão de obra adicionaria densidade demográfica aos seus domínios; c) baixo
custo de manutenção (com demandas limitadas ao necessário para a sobrevivência física dos
africanos); d) suposta facilidade de controle por meios coercitivos e, por fim, e) o nível de pro-
dutividade dessa mão de obra dependia única e exclusivamente da vontade de seus senhores
(Haywood, 1957, p. 456-458).

210
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

cionais modernos por intermédio do rompimento das amarras medievais


e do recrudescimento do poder estatal, teríamos, pois, o cenário ótimo
para convalidar as engrenagens postas em funcionamento a partir das
Grandes Navegações principiadas no século XV.4 Antes que o leitor teça
considerações restritivas à minha argumentação, não estou afirmando
que as viagens ultramarinas foram um desdobramento direto da políti-
ca mercantilista. O ponto em tela consiste em sublinhar que, no século
XVIII, uns dos períodos áureos do sistema mercantilista, os pré-requisitos
basilares de seu funcionamento inexoravelmente demandaram a consoli-
dação do sistema econômico mundial na medida em que o fortalecimen-
to do poder estatal exigia, dentre outros pontos, governabilidade, um
poder militar expressivo, um corpo mercantil forte, moeda, territórios
ultramarinos, diplomacia, ou seja, uma lógica de funcionamento alinha-
da e pronta para interagir com as mais diversas conjunturas passíveis de
serem experimentadas no período em questão.
Defronte a conjuntura setecentista, talvez não seja de todo des-
propositado sugerir que a escravidão, direta e indiretamente, concate-
nava-se com todos os aspectos anteriormente arrolados. Desde os pro-
dutos manufaturados empregados para o resgate de escravos na costa
africana (incluindo, nesse rol, mercadorias provenientes da América, tais
como: geritiba, fumo, ouro etc.), passando pelos engenhosos instrumen-
tos de crédito direcionados para a implementação/reiteração do sistema
escravista em seu sentido mais latu, pelas relações sociais de produção
escravista (quer atinente à produção de mercadorias em si, quer no que
respeita às relações sociais firmadas entre senhores e escravos com vis-
tas à manutenção da tão necessária governabilidade mantedora da es-
tabilidade do sistema em si),5 pelos vultosos retornos provenientes do
tráfico de escravos, pela relação simbiótica entre o mesmo e as disputas
de poder imanentes ao continente africano, pelas questões de contra-
bando em toda a bacia atlântica, pelas disputas diplomáticas envolvendo
o controle não apenas de regiões escravistas, mas também o monopólio
do tráfico de escravos, pelos instrumentos de poder que toda essa engre-
nagem depositava nas mãos de alguns dos mais destacados indivíduos
em posições cimeiras na governabilidade europeia, enfim, por todas as
externalidades próprias à escravidão, avento a correlação escravista e

4 Naturalmente, tratar-se-ia de um movimento de longa duração, recorte propício para a per-


cepção das estruturas mais persistentes da história das civilizações. Acerca da longa duração,
cf. Braudel, 2005, p. 41-78.
5 Refiro-me a questões como alforria, compadrio escravo, emprego dos cativos como braço
armado etc.

211
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

mercantilismo como a condição base para a consolidação do sistema


econômico mundial no século XVIII.
A conclusão que se impõe, e que interessa extrair, é precisa-
mente que devemos compreender as relações sociais de produção es-
cravista à luz da ótica mercantilista que, ao final e ao cabo, favoreceu,
no que tange ao século XVIII, a consolidação do processo de instituição
do sistema econômico em escala mundial. Pergunto-me, dessa forma,
se obviamente seria leviano considerarmos, por exemplo, as relações de
compadrio entre senhor e escravo à luz do mercantilismo, enquanto uma
específica construção moral da sociedade com vários desdobramentos, a
saber: reiteração temporal do sistema escravista, signo do engenho das
estratégias dos escravos com vistas a maximizar ganhos, estratégia se-
nhorial de produção ou exemplo de um comportamento condizente com
a sociedade católica coeva.
De toda sorte, por que não observar o compadrio como fator
componente da complexidade política, social, cultural e econômica que
instituiu o sistema econômico mundial setecentista? Estreitando o foco
para a correlação basilar do texto, as relações sociais de produção es-
cravista podem ser pensadas dentro da perspectiva mercantilista a fim
de acessarmos os matizes históricos da formação do sistema econômico
mundial, cujos desdobramentos redundaram tanto na Revolução Indus-
trial, como no advento do sistema capitalista.6
O tema ora discutido não carece de polêmica. E assim o é em
razão, dentre outros pontos, da própria discussão conceitual do termo
mercantilismo. Há uma passagem nos escritos de Peer Vries que elucida
bem o cerne do problema, ao mesmo tempo em que estende ao debate
proposto um norte relativamente seguro. Conforme o autor:

Se eu fosse obrigado a caracterizar a política econô-


mica dos governos europeus na era moderna com
uma palavra, essa palavra seria “mercantilismo”.
Mas não sem riscos. Falar em mercantilismo como

6 Faz-se mister observar que não tenho a menor intenção de reduzir as relações sociais escra-
vistas à esfera econômica. O que proponho é pensar a lógica atinente à segunda escravidão
dentro da perspectiva mercantilista, tomando-a como expoente de uma moral social. À vista
disso, penso sistema econômico mundial na matriz de uma organização política, social e eco-
nômica, proveniente da organicidade das relações sociais dos indivíduos. Não comungo com
as teorias que defendem centro e periferia, acumulação de capital via transferência de riqueza,
capitalismo mercantil ou financeiro etc. Penso, antes, no processo de unificação mundial cau-
datário do engenho humano, cujas ações são compostas por uma série de valores que somen-
te de forma arbitrária podem ser isolados e reduzidos às esferas do econômico, do político,
do social e do cultural.

212
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

uma política econômica “europeia” pode facilmente


sugerir muito mais uniformidade e “sistema” do que
de fato existiu (...) Mas isso não exclui a existência
de um “centro” de suposições e princípios que fo-
ram adotados pela maioria dos governantes euro-
peus na maior parte do tempo” (Vries, 2015, p. 325,
sublinhado do autor).7

A exata medida da inviabilidade de uniformizar sistema mercan-


tilista, contraditoriamente, parece erigir dado nível de assertividade à
existência de tal sistema. Confesso que a argumentação não deixa de
apresentar um cariz sofista. Por outro lado, o debate concernente ao
tema parece sugerir que quaisquer esforços de circunscrever e de definir
mercantilismo são natimortos. No que se refere ao que foi discutido até
o momento, trabalho com sistema mercantilista enquanto uma variada
sorte de decisões humanas com vistas à busca, manutenção e maximiza-
ção de poder em todas as esferas da ação social, quer a nível macro, quer
a nível micro.
Na época mercantilista, a obtenção de mercados se configurou
como tarefa árdua e duradoura. Nesse cenário, e entre os países mais
poderosos, o mercantilismo, a construção dos estados, a ereção, con-
servação e mantenimento dos impérios ultramarinos, ou mesmo suas
expansões, sempre estiveram interconectados. Em alguns estados, o
mercantilismo esteve mais orientado para aquisição de mercados e para
aspectos financeiros, produtivos e de desenvolvimento tecnológico. Em
outros, serviu à conquista e preservação territoriais. Seja como for, todos
estiveram, em diversos níveis, envolvidos com a escravidão africana. E
este é precisamente o elo que pretendo estabelecer para acessar a corre-
lação entre mercantilismo e poder.
A concordar com Peer Vries, a maior parte dos mercantilistas
acreditava haver uma conexão positiva entre poder e fartura, e que,
para acessar o poder, não era possível prescindir do exercício bélico.

7 Para o autor, os governos mercantilistas almejavam, acima de tudo, a produção de merca-


dorias manufaturadas ou serviço com valor agregado. Com o escopo de aferir um excedente
exportador, implementaram uma política de substituição de importações. Em síntese, o mer-
cantilismo pode ser resumido como uma série de medidas de promoção do setor manufatu-
reiro. A incessante demanda por geração de riqueza estava a cargo das políticas financeiras
e do poder do Estado, cujo fortalecimento cabia, na visão dos mercantilistas, às atividades
comerciais. De resto, o sistema mercantilista promoveu a nacionalização das atividades eco-
nômicas internas, dando margem, no todo, de ser interpretado como uma forma de naciona-
lismo econômico, cujos desdobramentos favoreceram a construção dos impérios modernos,
notadamente no caso britânico (Vries, 2015, p. 326-327, p. 409).

213
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Do posto, os interesses econômicos deveriam ser sustentados pelo em-


prego militar que, por seu turno, dependia de uma fazenda robusta
e próspera. Tudo isso com o escopo último de os Estados se fazerem
poderosos. Não deve causar espécie, pois, o fato de esses Estados não
terem hesitado em se valer da violência, e mesmo de guerras, com o
intuito de proteger e promover seus comércios. Segundo o autor: “a
conexão entre guerra e economia, ou, de forma mais ampla, entre po-
der e lucro”, foi amplamente difundida e debatida na época moderna,
sendo que “a maioria das pessoas tendia a endossar a ideia de que
violência e força eram fatos ordinários da vida, e que apenas nações
fortes poderiam ter economias fortes”. Talvez o fato de que as guerras
empreendidas pela Grã-Bretanha tenham sido basilares na obtenção de
sua supremacia oceânica explique a constatação de que seus gastos
militares e a soma de suas exportações domésticas hajam apresentado
números similares (Vries, 2015, p. 311-329).
Na medida em que o tráfico de escravos foi um dos mais lucra-
tivos circuitos mercantis da época mercantilista, e que várias disputas
diplomáticas e bélicas gravitaram, quer ao redor do direito de exercê-lo,
quer da conquista de territórios cuja principal mão de obra era a escra-
va africana, creio não afigurar desarrazoado aventar a hipótese segundo
a qual a escravidão, pelo menos no que tange ao tráfico de escravos,
concorreu diretamente para a otimização do fim último da política eco-
nômica mercantilista; a saber: a obtenção de poder. Sendo verossímil a
referida conjectura, podemos avançar um pouco mais na argumentação
e expandi-la para todos os circuitos mercantis cujas mercadorias eram
caudatárias do emprego da mão de obra africana. Escusado aduzir que
boa parte das regiões componentes da América setecentista se valia do
braço africano como força produtiva. Quiçá eu esteja flertando com a
ousadia caso insira nessa proposição todas as mercadorias utilizadas
para o resgate de escravos na própria África. O corolário se prefigura
inquietante, pois, basicamente, a otimização do sistema mercantilista
era profundamente devedora do emprego da escravidão africana como
força produtiva. A nível macro, o poder dos estados modernos dependia
do bom funcionamento da escravidão em seu sentido mais latu. Assim
posto, como pensar as relações sociais de produção escravista sob ótica
mercantilista? Em uma primeira aproximação, essas relações sociais sim-
plesmente viabilizaram a reiteração temporal, não somente do próprio
mercantilismo, mas dos Estados modernos, das diferentes conjunturas
bélicas nas quais tais estados tomaram parte, de vários circuitos mer-
cantis, das complexas engrenagens financeiras e administrativas e, em

214
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

última instância, do próprio sistema econômico mundial, de cujo povir o


capitalismo é resultante.8

Diálogos com Tomich


“A escravidão nas Américas foi o produto histórico da expansão
da economia mundial europeia”. Nesses termos, para se compreender
o caráter sócio-histórico da expansão da escravidão não é possível dei-
xar de abordar “o problema de conceptualizar a relação entre o mer-
cado e a produção dentro da trajetória histórica da economia mundial
capitalista”. Em adição, “historicamente, a escravidão foi a principal
forma de expansão da produção de mercadorias, de criação de um
mercado mundial e de fornecimento das condições substantivas para o
desenvolvimento da forma de trabalho capital-salário” (Tomich, 2004,
p. 3; 23). No que respeita à primeira citação, ressalvo apenas que a
escravidão nas Américas foi também o produto histórico da expansão
da economia europeia. Não tenho o menor interesse em adentrar na
descomunal bibliografia acerca do tema. Contudo, não me sinto confor-
tável em limitar a implementação do sistema escravista na América às
condicionantes de ordem econômica. Apenas para citar um contrapon-
to, não podemos prescindir de elencarmos fatores de ordem cultural,
religiosos ou mesmo étnicos.
Avançando para a segunda citação, outrossim ressalvo a impor-
tância de não tratarmos como capitalista os períodos que antecederam
a efetiva implementação desse sistema. Assim como uma crisálida só se
torna uma borboleta quando finda seu período de incubação, o sistema
econômico mundial apenas refletirá a lógica capitalista no século XIX.
Não é porque podemos identificar determinadas características ancilares
de ordem mercantil e/ou financeiras nos séculos precedentes, e que se
tornarão basilares no século XIX, que podemos classificá-las como capi-
talistas. Por oportuno, vale trazer à baila a percepção de Eli Heckscher
sobre o tema. Para o autor, se a premissa de “capitalismo moderno” esti-
ver vinculada à noção de capital, então, isso nada tem a ver com o mer-
cantilismo. Por outro lado, se “capitalismo moderno” for uma expressão
relativa à vida econômica que pavimentou o caminho para a implemen-

8 Como argumento cautelar, sou forçado a explanar que as relações sociais de produção es-
cravista eram extremamente complexas, fruto das constantes negociações entre senhores e
escravos, e estavam imersas na lógica de funcionamento das sociedades em suas diversas
facetas: cultural, social, religiosa, política, econômica etc.

215
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

tação do sistema econômico observável a partir do século XIX, então,


isso é apenas um termo enganador para se referir à História Econômica
Europeia desde o final da Idade Média até o presente (Heckscher, 1936,
p. 45).9 Isto posto, e atinente ao propósito do corrente estudo, estou de
acordo com a segunda citação, subtraindo “capitalismo” da sentença.
Não quer isto dizer que podemos simplesmente substituir capitalismo
por mercantilismo – até porque esse último é um termo insidioso. Eco-
nomia substantiva, nos termos de Karl Polanyi, talvez se coadune melhor
com as facetas do sistema mercantilista.
Sobre a terceira citação, nada tenho a discordar. Em boa medida,
entendo que as implicações passíveis de serem desenvolvidas na argumen-
tação em questão consubstanciam a tentativa de compreender as relações
sociais de produção escravista no seio das considerações arroladas no item
anterior do corrente capítulo, até porque não devemos isolar as regiões
escravistas do mercado mundial e do capital mundial (Tomich, 2004, p.
11). Partamos, pois, de duas premissas; a saber: a) o objetivo central do
mercantilismo é a busca por poder se valendo, para tanto, de circuitos
mercantis fortes e militarmente protegidos e b) a escravidão era o principal

9 Neste ponto, creio que o diálogo com Blackburn se impõe. Para o autor, a primeira escravidão,
compreendida entre 1520 e 1800, “se desenvolveu em um mundo feudal tardio, pré-moder-
no, quando o capitalismo ainda estava em sua infância”. Em sua perspectiva, “a difusão das
relações sociais capitalistas nos séculos XVI e XVII pôs o dinheiro em novas mãos e incentivou
formas de existências cada vez mais dependentes do mercado. Muitas pessoas já começaram
a esperar que suas necessidades básicas fossem atendidas pelo dinheiro que ganhavam, e não
pelo que produziam”. O modo oblíquo pelo qual enxergo a questão me força a questionar, por
exemplo, como mensurar a porcentagem frente à população das “muitas pessoas” cada vez
mais dependentes do quanto ganhavam, Não posso deixar de entender que o autor toma o
todo pela parte. Seja como for, para Blackburn, a primeira escravidão e a segunda guardaram
entre si, dentre outras semelhanças, o fato de que “eram dependentes da chamada ‘economia
natural’’’. Dito de outro modo, os escravos eram incentivados a “suprir sua própria necessida-
de de comida”, sendo que a família escrava buscava assegurar a posse de animais e/ou terras
– às vezes concedida pelos senhores. Percebe a primeira escravidão permeada pela luta de
classes entre escravos e senhores no âmbito da “economia natural”, perspectiva da qual me
afasto. Seja como for, é sugestivo o fato de o autor, mesmo que não explicitamente, acabar por
analisar a primeira escravidão sob o aparato da perspectiva mercantilista. A título de exem-
plo: “Os comerciantes europeus, ao longo de todo o período moderno, pagavam pelos escra-
vos a mercadores e governantes africanos. Os plantadores do Novo Mundo compravam muitos
outros insumos dos mercadores coloniais e desejavam vender artigos tropicais e subtropicais,
produzidos por escravos, nos mercados europeus. Na época colonial, a ‘primeira escravidão’ foi
organizada em monopólios mercantis, de tal maneira que os colonos ingleses, franceses e por-
tugueses se viam obrigados a vender seus produtos exclusivamente a transportadores nacionais.
Muitos colonos europeus começavam a vida como imigrantes independentes que não aceitavam
o controle colonial, mas logo se viam obrigados a aceitar a autoridade da metrópole, uma vez
que as potências coloniais controlavam as rotas marítimas e os portos. Esses sistemas coloniais
eram beligerantes e competitivos, com um histórico tempestuoso de guerras e uma ressaca de
concorrência comercial” (Blackburn, 2016, p. 14-18).

216
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

instrumento de expansão da produção de mercadorias e de criação de um


mercado mundial. Sob o risco de soar rasteiro, porém com vistas a melhor
me fazer entender, parto da argumentação mais simplória.
Todo circuito mercantil implicava na movimentação de merca-
dorias, grosso modo e no que toca à presente proposta, produzidas a
partir da mão de obra escrava. A expansão da produção das mercadorias
nas áreas escravistas favorecia a formação do sistema mundial. Concomi-
tante a tal estabelecimento, os Estados modernos se engalfinharam no
controle desses mesmos circuitos mercantis, por vezes através da via bé-
lica (urge salientar o corriqueiro emprego dos escravos armados nessas
mesmas disputas!). Em tempo, tais contendas acabavam por fomentar, di-
reta ou indiretamente, aqueles circuitos. Quer isto dizer que a busca por
poder no sistema mercantilista e as premissas enunciadas por Tomich na
citação ora discutida interagem de forma orgânica, sendo que uma não
apenas complementa a outra, mas, em verdade, devem ser pensadas jun-
tas. Acrescentando que o desfecho desse processo histórico criou as con-
dições necessárias para o advento do sistema capitalista no século XIX,
e que um dos pontos centrais desse sistema era o alçamento da forma
de trabalho capital-salário como principal relação de produção, temos
que a escravidão, via sistema mercantilista, atuou diretamente na criação
(no decurso da época moderna) das condições históricas favoráveis ao
posterior implemento (a partir do século XIX) do sistema capitalista de
produção. Não deve causar espécie, pois, que, por algum tempo, escra-
vidão e capitalismo tenham coexistido sem que isso encerrasse qualquer
tipo de contradição em termos de sistema mundial.
Observando alguns pontos positivos do modelo analítico, Tomich
destaca que ele permite “conceituar terra, trabalho e capital (mercado)
como relações históricas substantivas e examinar a maneira como esses
elementos são interdependentes e mutuamente formativos entre si den-
tro da divisão do trabalho da economia-mundo” (Tomich, 2016, p. 85).
Nada contra. Porém, advogo ser possível afunilar esse instrumental caso,
novamente, trabalhemos com o viés mercantilista de busca por poder.
“Terra, trabalho, capital (mercado) como relações históricas substanti-
vas”. Pois bem, por que não inserirmos nessa equação o caráter humano
atinente a tais fatores? Independentes da orientação religiosa vigente
nas sociedades escravistas americanas, a escravidão reificava “terra, tra-
balho e capital (mercado)” em relações de poder. Possuir terras, escravos
e fazenda transfigurava o indivíduo em alguém de melhor qualidade, o al-
çava à posição de efetivo exercício do poder. Tendo em conta que vários
deles ocupam cargos cimeiros em campos administrativos, econômicos,

217
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

políticos etc., cargos esses que lhes viabilizavam influenciar até mesmo
a política (mercantilista) dos grandes Estados modernos, talvez seja fac-
tível analisar a interdependência e a mútua formação desses elementos
não apenas na divisão do trabalho do sistema mundial, mas também na
configuração social do trabalho nas sociedades escravistas, ou seja, es-
tudar as relações sociais de produção escravista imersas nas relações de
poder reificadas a partir da tríade “terra, trabalho, capital (mercado)”,
sem perder de vista que esses elementos são “interdependentes e mu-
tuamente formativos”.
No devir do trecho citado, o autor acrescenta que, por intermé-
dio da perspectiva da economia-mundo, a escravidão pode ser percebida
“como uma forma específica de produção social que é continuamente
feita e refeita através da relação historicamente cambiante entre terra,
trabalho e mercado”. O fator humano é precisamente o agente que res-
ponderá tanto pela perenidade anteriormente mencionada, como pela
mutabilidade histórica de terra, trabalho e mercado. Insisto nesse pon-
to por compreender que a chave para concatenarmos escravidão e mer-
cantilismo à luz da proposição de Tomich repousa em admitirmos que,
dentro da lógica de funcionamento das sociedades pré-capitalistas, a es-
cravidão interagia com uma economia substantiva, ou seja, caudatária da
compreensão humana dos fatores terra, trabalho e renda.10
Por fim, e ainda na passagem em questão, assevera Tomich:
além disso, ao conceber complexos determinados
de produção escravista como parte de uma singular
divisão mundial de trabalho, essa perspectiva nos
permite especificar as relações e os processos atra-
vés dos quais cada um desses processos é formado,
bem como diferenciar sistemas escravistas entre si,
dentro do conjunto evolutivo das relações que for-
mam a economia-mundo (Tomich, 2016, p. 85).

Em consideração ao colocado anteriormente, não poderíamos


nos valer do mercantilismo como uma forma de pensarmos as especi-
ficidades das relações e dos processos de formação de cada sistema es-
cravista, assim como diferenciá-los entre si, no tempo e no espaço? A
discussão levada a cabo previamente acerca do mercantilismo, embora
pobre e lacônica, deve ter servido pelo menos para elucidar que o dito
variou, no tempo e no espaço, de Estado para Estado. A ilação subse-
quente consiste em acessarmos as variações temporais e espaciais dos

10 Acerca da noção de economia substantiva, cf. Polanyi (2012), (2000).

218
O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob égide mercantilista

sistemas escravistas vis-a-vis às nuances do sistema mercantilista de cada


Estado moderno. As inferências que se impõem nos conduzem a pensar
as relações sociais de produção escravista à luz da natureza das relações
de poder, quer a nível macro, quer a nível micro. Entendo que a forma-
ção do sistema econômico mundial da época moderna é caudatária da
conjugação dessas duas escalas de observação. Assim posto, e conforme
avançado, a partir da integração conferida pelo mercantilismo ao sistema
econômico mundial, esse pode ser visto, em diapasão com a proposta de
Tomich, como um “sistema de relações estruturado e coerente” (Tomich,
2016, p. 65-66).
Para o autor, dispensar atenção às especificidades das formas de
produção social permite a compreensão da economia mundial não ape-
nas como a soma de suas partes, mas como “relações distintas entre
formas sociais particulares e processos materiais de produção integrados
entre si através de modelos definitivos de troca e poder político – como
uma mudança estruturada e diferenciada ao longo do tempo”. Avançan-
do, Tomich entende que as “formas específicas de produção de mercado-
rias presumem relações de troca e são constituídas através delas dentro
de uma divisão de trabalho distinta”, e que cada uma dessas formas de
trabalho está sujeita “à complexidade de múltiplas determinações e me-
diações” (Tomich, 2015, p. 50).
Adaptar o raciocínio anterior ao contexto mercantilista do século
XVIII não deixa de ser um exercício desafiador. De todo modo, esta é a
tarefa que me impus. Assim sendo, primeiro temos que mapear as diver-
sas formas de produção social das várias partes integrantes da economia
mundial. Tais formas englobavam escravidão negra, escravidão indíge-
na, escravidão por dívida, servidão, campesinato, trabalho assalariado,
trabalho autônomo (refiro-me a ofícios mecânicos, por exemplo) etc.,
embora seguramente houvesse outras.
Faço uma apóstrofe para ressalvar que, malgrado não seja pos-
sível classificar, por exemplo, a Europa Oriental e a Ásia como regiões
cujas políticas econômicas possam ser classificadas como mercantilistas,
ainda assim os Estados lá inseridos restavam por tomar parte no mes-
mo, ainda que indiretamente, haja vista a integração econômica mundial
da época.11 Isto posto, volto meus esforços para tentar articular essas

11 Com fito de asseverar minha argumentação, basta observarmos as várias guerras e disputas
comerciais perpetradas no Estado da Índia, na África etc. pelas nações europeias no contexto
mercantilista precisamente pelo controle de circuitos mercantis, por exemplo. Outro ponto
radica no forte impacto que a política monetária chinesa exercia sobre a economia mundial no
que toca ao comércio e circulação da prata. Não é demais repisar a importância do bulionismo
no debate mercantilista.

219
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

formas sociais de produção com a compreensão do caráter orgânico da


economia mundial.
Pois bem, cada uma dessas formas sociais respondia a processos
materiais de produção adequados às suas especificidades. Na medida em
que as mercadorias originárias eram transacionadas, quer a nível local,
quer a nível internacional, ao abrigo das estratégias de cada Estado, po-
demos, com a devida acuidade, compreender seus modelos de troca e de
poder político em diapasão com objetivo último do sistema mercantilis-
ta; a saber: precisamente a busca por poder valendo-se, comumente, de
aspectos mercantis. Para que bem se entenda, proponho que o estudo
das diversas formas sociais de produção favoreça a compreensão da or-
ganicidade da economia mundial, caso tenhamos em conta as estratégias
de poder consubstanciadas pela visão mercantilista de cada Estado. Até
porque essas estratégias influenciavam a adoção dessa ou daquela for-
ma social de produção. Nesses termos, poderíamos estudar as relações
sociais de produção escravista africana e indígena da América lusa e da
América espanhola, respectivamente, como componentes integrantes do
sistema mundial, segundo as artimanhas de cada Estado na perene dis-
puta de poder na Península Ibérica. Outrossim, e recuando até o século
XVII, a adoção da servidão, e posterior escravidão negra, na região do
Caribe e em parte da América do Norte, estariam em perfeito diapasão
com as condições materiais de produção de seus respectivos Estados.
Dentro de uma perspectiva espacial e temporal de análise, a im-
plementação dessas diversas formas de produção social auxiliariam no
entendimento da organicidade do sistema mundial sob a perspectiva
mercantilista. De acordo com o autor, essa abordagem permite explicar
“a inter-relação sistêmica e a interdependência dos processos materiais
diversos e das formas sociais de produção”, assim como enseja o pesqui-
sador a evitar as dificuldades atinentes ao esforço de unir “entidades se-
paradas”. Para Tomich, “relações de produção específicas afiguram como
partes constituintes de um sistema global de trabalho, não como empi-
ricamente distintas, sistemas de trabalho mutualmente excludentes” (To-
mich, 2015, p. 50). Tal passagem, creio, corrobora a hipótese de analisar
as relações sociais de produção escravista à luz do sistema mercantilista.

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A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

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222
COMENTÁRIO
BENEFÍCIOS E LIMITES DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO
COMO MÉTODO PARA UMA RAZÃO DIALÉTICA

Rodrigo Goyena Soares

Reduzido a seu primeiro fundamento, o conceito de segunda es-


cravidão, amplamente definido nas páginas que precedem e sucedem
este comentário, emerge de uma aparente contradição entre o desen-
volvimento do capitalismo industrial e o alargamento coetâneo da es-
cravidão afro-americana em escala até então inédita. Dale Tomich, que
formulou o conceito, sugere a resolução do paradoxo por intermédio de
uma abordagem que, embora crítica, apadrinha a perspectiva do sistema-
-mundo para vislumbrar mais complementariedade do que oposição nas
relações entre trabalho cativo e assalariado. Desigualmente dispersas no
espaço, as diferentes formas de emprego e reprodução de mão de obra,
sugere Tomich, estiveram temporalmente combinadas, uma servindo à
constituição da outra em um processo amparado pela celeridade da cir-
culação de capital.
Mais implicitamente, a aparência da contradição dispõe-se pela
substituição de um processo histórico em proveito de uma suposta es-
sência atávica – para retomar o termo de Carlos Leonardo Kelmer Ma-
thias – que o caracterizaria: se o capitalismo é a acumulação competitiva
de capital, motivada pela incansável maximização do lucro por meio da
exploração do trabalho assalariado, a escravidão seria externa e contrá-
ria ao desenvolvimento do modo capitalista de produção. Na formula-
ção de Tomich, de maneira oposta, não é a essência do capitalismo – e
tampouco a do trabalho cativo – o que perfaz o conceito de segunda
escravidão, mas a evolução histórica de uma totalidade singular que
conferiu qualidade capitalista à escravidão e atributo escravista ao capi-
talismo. Se levada a novo grau de abstração, a proposta de Tomich dis-
tancia-se sobremaneira de uma razão analítica cuja expressão preconiza
a regressão de um todo constituído, no intuito de lhe dar fundamento,
às partes constitutivas, que, malgrado suas associações, guardam força
de determinação hierárquica diferente na formação essencial do todo.

223
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Antes disso, a segunda escravidão tem em seu cerne a relação dialética


que ajusta forças políticas e econômicas dentro de uma unidade, cujas
contradições, agora menos aparentes porque não regredidas a partir de
uma essência, relatam sua formação e sua deformação.
É a partir da razão dialética, pois, que interessará compreender
os benefícios e os limites da segunda escravidão, para um tempo no qual,
a priori, não poderia valer. Quando não reificado, tampouco em sua apa-
rente contradição distintiva, o conceito sugere como método enxergar a
adaptabilidade dos fatores a um modo de produção que se faz e refaz,
justamente, na relação social historicamente cambiante entre terra, tra-
balho e mercado (Tomich, 2016). O próprio epíteto segunda insinua a
reacomodação, espacial e temporal, do cativeiro em uma nova forma,
porém igualmente contemporânea, de circulação de capital. Assumi-lo
como manifestação não contemporânea da contemporaneidade diz mais
do pensamento analítico do que do dialético1, demovendo-o, quiçá, do
principal benefício do conceito de segunda escravidão como método:
compreender, em escala global, os ajustes político-econômicos decorren-
tes da liberdade – e não da arbitrariedade – com que se move o capital.
Quanto a isso, na historiografia brasileira, têm sido particularmente no-
tórias, embora não exclusivamente, as contribuições de Alain El Youssef,
Leonardo Marques, Rafael Marquese, Tâmis Parron e Waldomiro Louren-
ço da Silva Júnior, direta ou indiretamente referenciados nesta coletânea.
Pelo lado dos limites, a proposta de Tomich, porque não colap-
sa em momento algum a distinção entre o objeto de observação e a
unidade de análise – digamos, a escravidão no sistema-mundo atlântico
Oitocentista –, implode as relações formativas de sua unidade de análise,
subsumindo-as pelo prisma das configurações e reconfigurações de seu
objeto de observação. O resultado informa, então, a reativação do traba-
lho servil em um sistema-mundo capitalista no qual contradições estatais
inter e intrapostas – em última instância, o que lhe dão solda – esmo-
recem em proveito dos efeitos globais gerados pelo trânsito do objeto
de observação. Nisso, parece-me que guardo proximidade com o que foi
previamente exposto por Ricardo Salles.
Do ponto de vista historiográfico, para passar aos comentários
sobre os textos de Carlos Gabriel Guimarães e de Kelmer Mathias, o que
se ganha com o conceito de Tomich é do tamanho do que se pode per-
der. A dialética invertida de 1960 a 1990, a partir da qual Emília Viotti da
Costa ponderou a passagem polarizada dos mecanicismos e reducionis-

1 A referência é a fórmula contemporaneidade do não-contemporâneo, de Reinhart Koselleck


(2006).

224
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

mos economicistas às sobredeterminações do cultural e da linguagem,


tenderia agora a reinverter-se em detrimento da agência individual, que
definiu os ritmos da história nacional na década de 1990, e em benefício
da escala global, que subdeterminou, mais decididamente nos últimos
anos, a parcela da história nacional e internacional que cabe aos indiví-
duos constituídos em classes dentro de ainda rígidos Estados-nacionais.
É o que interessará em um último momento.

Os benefícios do conceito: o desenvolvimento desigual e


combinado
Na Crítica da razão dialética, Jean-Paul Sartre, de maneira se-
melhante ao procedimento que Karl Marx adotou para compreender
a mercadoria no volume I de O Capital, considera a agência uma passi-
vidade em primeira instância. Interessa, como ponto de partida, não o
efeito que a ação histórica, inclusive quando diminuída à subjetividade
individual, possa originar, mas o que a agência, antes, internalizou para
poder constituir-se como movimento (Sartre, 1960). Sartre evidencia
uma dimensão prático-inerte que circunstancia as possibilidades e as
direções da agência, em uma reformulação que, disposta mais simples-
mente, guarda imenso paralelo com Marx quando afirma que “os ho-
mens fazem sua história, mas não a fazem como querem; não a fazem
sob circunstancias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defron-
tam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 2011).
Sob pena de não se transformar em ação, a internalização de situações
externas somente cobra, para Sartre, sentido de agência quando entra
em contradição com o próprio ser, dando ensejo à práxis e fazendo da
dimensão prático-inerte o momento de luta – ou de externalização da
mesma contradição.
Na pesquisa ainda em andamento de Carlos Gabriel, e em uma
adaptação possível, a inserção dos negociantes ingleses Joseph e Ralph
Gulston na cidade do Rio de Janeiro caracterizou-se, na microescala, pela
constituição de uma rede de sociabilidades somente autorizada, na ma-
croescala, pelas contradições que Londres e Lisboa acomodaram após a
Restauração de 1640: o Tratado de Paz e Aliança de 1654, o casamento de
Catarina de Bragança com Carlos II da Inglaterra, o escudo militar contra
as Província Unidas, o Tratado de Methuen de 1703. Embora o faça em
outros termos, Guimarães assinala, em sua introdução, a dimensão práti-
co-inerte, que Sartre identifica como condição para a agência.

225
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Na trama dessas condições, vislumbradas como oportunidades


de negócio, Guimarães assinala a formação de sociedades para o tra-
to negreiro levada a cabo pelos irmãos Gulston. Não apenas devido ao
florescimento da economia mineira, em termos locais, mas também às
ramificações comerciais e financeiras, em dimensão global, que a mão
de obra cativa franqueava, o trato foi percebido pelos irmãos Gulston,
consoante sugere Guimarães, como o elo lucrativo de suas atividades
comerciais. O tempo prestava-se para tanto. Kelmer Mathias recomenda,
acertadamente inclusive na perspectiva metodológica da segunda sscra-
vidão, uma concatenação direta ou indireta do cativeiro com
os produtos manufaturados empregados para o
resgate de escravos na costa africana [...], os enge-
nhosos instrumentos de crédito direcionados para a
implementação ou reiteração do sistema escravista,
[...] as relações sociais [...] quer atinentes à produção
de mercadorias em si, quer no que respeita àquelas
firmadas entre senhores e escravos com vistas à ma-
nutenção da [...] governabilidade [...] do sistema em
si, [...] os vultosos retornos provenientes do tráfico
[...], os conflitos diplomáticos envolvendo o mono-
pólio do tráfico, [...]”

ou, ainda, “com todas as externalidades” – que, na proposta dialé-


tica, poderiam ser externalizações – “próprias à escravidão”. Segundo ele,
“a correlação escravismo e mercantilismo” seria “a condição de base para
a consolidação do sistema econômico mundial no século XVIII”, conje-
turando-se, a crer na densidade dos “circuitos mercantis caudatários do
emprego de mão de obra cativa”, uma concorrência direta do cativeiro
para a “otimização do fim último da política econômica mercantilista, a
saber, a obtenção de poder”.
Um dos méritos da proposta, que igualmente é aquele da se-
gunda escravidão, está na percepção da desigualdade, entre sociedades
ou no seio de cada uma, como decorrência de uma forma combinada
de integração. O ponto de partida de Leon Trotsky, embora ancorado
na História da Revolução Russa, consistiu em uma observação empírica da
multiplicidade fatorial que caracterizaria o desenvolvimento econômico
– e humano: o tamanho demográfico das sociedades, a organização po-
lítica, a produtividade material e sua cultura imaterial. Às descrições me-
ramente quantitativas – as sociedades são efetivamente múltiplas – ou
qualitativas – a multiplicidade incorre em diferenças –, Trotsky sobrepôs,
a partir da interação dialética entre sociedades, os efeitos recíprocos da
multiplicidade social sobre as diferenças sociais. Em outros termos, a di-

226
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

nâmica contraditória entre sociedades – e, insisto, dentro das sociedades


– constituem, para Trotsky, a urdidura ontológico-relacional basilar do
processo histórico, e as identidades desiguais das formações históricas
inter ou intranacionais, nesse sentido, derivam das maneiras como elas
se combinam no tempo e no espaço (Trotsky, 2000; 2008; Rosenberg,
2006; 2013; Anievas; Nisancioglu, 2015).
Decorre dessa compreensão, que tolera mal o estabelecimento
de uma natureza social atrasada ou avançada, a incompatibilidade lógica
de arcaísmo qualquer como projeto, exceto como critério de julgamento
de valor, com as formas não essencializadas de produção e de circulação
do capital, na ocorrência, do século XVIII. Mas não só. Desiguais, por-
que combinadas, as relações inter ou intranacionais constituem centros
e periferias caracterizados por desequilíbrios na distribuição de poder,
na qualificação de Kelmer Mathias, o fim último da política mercantilista.
Ocorre que a obtenção de poder – em sua formulação mais abstrata,
também ponderável nos sistemas de produção tributário ou capitalista –
guardou estreita relação, no século XVIII, com o processo de associação,
identificado no texto de Kelmer Mathias, entre a produção e a circulação
de capital em escala global.
Em célebre passagem do volume III de O Capital, Marx conside-
ra que:
É o comércio que [...] possibilita que o produto
se transfigure em mercadoria, não é a mercadoria
produzida que, por seu movimento, faz surgir o co-
mércio. E aqui o capital como tal apresenta-se pela
primeira vez no processo de circulação, no qual o
dinheiro se transmuta em capital. Na circulação, o
produto se desenvolve pela primeira vez como va-
lor de troca: como mercadoria e dinheiro. O capi-
tal pode-se formar no processo de circulação e tem
necessariamente de se formar nele antes de apren-
der a controlar seus extremos, as diversas esferas
da produção, mediadas pela circulação [...]. Essa au-
tonomização do processo de circulação, na qual as
esferas da produção são interligadas por meio de
um terceiro elemento, expressa duas coisas. Por um
lado, que a circulação ainda não se apoderou da pro-
dução, mas relaciona-se com ela como um pressu-
posto dado. Por outro, que o processo de produção
ainda não incorporou a circulação como mera fase
dele mesmo. Já na produção capitalista, ocorrem
as duas coisas. O processo de produção se baseia
inteiramente na circulação, e a circulação é um sim-

227
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

ples momento, uma fase de transição da produção, a


mera realização do produto produzido como merca-
doria e a reposição de seus elementos de produção
produzidos como mercadoria (Marx, 2017).

Embora esquemática, a fórmula assume o advento do capitalis-


mo consoante dois momentos críticos: a formação do capital por inter-
médio, primeiro, das esferas de produção medidas pela circulação e, de-
pois, via a absorção da circulação na própria produção – o que, em última
análise, sugere uma questão de volume e um sentido de celeridade. Dito
de outro modo, caracterizaria o capitalismo as desiguais porém combi-
nadas dimensões e velocidades com as quais – em mútua correspondên-
cia entre produção e circulação e sempre em uma lógica de maximização
de lucro – bens, serviços e ideais se transformam em capital após cada
etapa de término e recomeço dos ciclos produtivo e monetário, em uma
dinâmica que, para completar-se, acomoda instituições a seu proveito: a
propriedade, o trabalho e o mercado.
Na história, identificar o momento de transição é singularmen-
te mais problemático, porque, sob pena de essencializar o processo, o
capitalismo não poderia encontrar-se na mera quantificação do produto
circulado ou de sua absorção no processo produtivo – e tampouco do
volume ou da velocidade que perfaz a associação entre circulação e pro-
dução. Uma alternativa, vislumbrável no texto de Guimarães, é ponderar
o sentido da obtenção de poder da qual fala mais explicitamente Kelmer
Mathias. A primeira vantagem do procedimento está em evitar o des-
membramento entre a economia e a política, apenas analiticamente tra-
táveis como esferas de existência desassociadas, e perceber quão fulcral
foi a ação do Estado no processo de absorção da circulação na própria
produção. De maneira correlata, a segunda vantagem diz respeito à per-
sonificação das relações que compõem as formas de produção social e,
naturalmente, sua incidência na condução do Estado.
Considerando os efeitos do cativeiro na multiplicação dos circui-
tos mercantis, Kelmer Mathias expressa “o efetivo exercício de poder”
de que as forças produtivas amparadas no trabalho escravo dispunham,
“tendo em conta que vários deles ocupa[vam] cargos cimeiros em cam-
pos administrativos, econômicos e políticos, cargos esses que lhes via-
bilizavam influenciar até mesma a política (mercantilista) dos grandes
Estados modernos”. Em uma extensão possível do argumento, se essa
influência correspondeu, como parece ter sido o caso na segunda me-
tade do século XVIII, à dinamização dos processos de transformação do
produto em mercadoria nos quadros de franca associação entre circula-

228
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

ção e produção – e isso também por intermédio do trabalho servil –, as


vias de poder tiveram forçosamente direção capitalista em uma ordem
pública progressivamente organizada no mesmo sentido, para usar uma
expressão que denota, quiçá mais historicamente, a formação estatal do
modo de produção capitalista.
Quando personificadas, no entanto, as relações sociais oriundas
das formas como circula o capital produzem um resultado largamente
mais conflitivo, porque cindem as sociedades em classes. Quanto a isso,
o conceito de segunda escravidão fornece um instrumental metodológi-
co mais preocupado com os efeitos da interiorização – e aqui o sentido
não é o das fronteiras estatais – da escravatura atlântica nas formações
sociais pela qual trafegou, do que os de sua exteriorização, por inter-
médio de classes e Estados. Não à toa, a dimensão prático-inerte, para
voltar a Sartre, das sociedades escravistas tem amplamente mais resso-
nância no conceito de Dale Tomich do que a práxis, o momento de luta
– o projeto, nas palavras de Sartre.
As reacomodações produtivas, desigual e combinadamente de-
senvolvidas em escala global, compõem, não resta dúvida, as matrizes
sociais que atingem direta ou indiretamente, mas não passam incólu-
mes pela práxis dos blocos históricos nacionais, na expressão de Antonio
Gramsci.2 Isso, sobremaneira, porque essas reacomodações se atualizam,
justamente, pelas contradições que as classes sociais se interpõem com
vistas à realização de seus respectivos projetos no espaço que melhor
franqueia suas concretizações – a ordem estatal.

Os limites do conceito: a classe e o Estado


Obstinadamente escrita contra a razão analítica, a Crítica da razão
dialética – um título provavelmente arrolado em contraposição à obra de
Immanuel Kant – tem como método filosófico, antes do que historiográ-
fico, a negação do recuo reflexivo para fundar a apreensão do real. Não
há, suscintamente, a possibilidade de bipartir razão e realidade, porque
o ato pelo qual a razão identifica a inteligibilidade do real é constitutivo
e coetâneo da própria realidade. Mais perto do que interessa diretamen-
te a este comentário, o processo histórico, na acepção de Sartre, não é
apreensível pela aplicação de um princípio pelo qual se tornaria refletido,
mas pela realização do princípio na própria manifestação histórica – o

2 Para oportuna discussão sobre o conceito de bloco histórico, anteriormente definido por
Ricardo Salles, ver Hugues Portelli (1977).

229
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

que equivale a dizer que a coisa real se torna ela mesma seu próprio prin-
cípio, em uma interpretação que denota a pedra angular do pensamento
existencialista.
Disso decorre que a história não é pura contingência – há um
princípio –, porque ela expressa, em seu desenrolar, uma inteligibilidade
– principalmente dialética – feita pela contradição. Para Jean-Paul Sartre,
todas as finalidades são contrafinalidades, e todos os movimentos da
matéria, seja no sentido da continuidade ou da ruptura, revelam con-
tradições sustentadas e dirigidas pelos homens – e mulheres. Em um
esforço para dar saída libertária ao estruturalismo característico de sua
época, a dialética de Sartre propunha uma história sempre realizada por
seres de carne e osso, que, em seu relacionamento conflitivo, projetam
por interiorização da práxis pretérita uma nova práxis exteriorizada. Tro-
cando em miúdos, na própria realização da contradição estaria o balão
de oxigênio ao inferno que são outros.3 Uma via de escape, no entanto,
circunstanciada pela contradição que a possibilitou e limitada, por ex-
tensão, por aquela que será seu produto. Eventos históricos, diria Sartre,
terminam sempre em uma indecisão, porque as soluções obtidas em sín-
tese não são apenas originárias de um grupo, mas a decorrência de um
tolhimento à ação de um grupo em relação a outro. Expectativas sempre
frustradas, portanto, visto que o resultado da contradição escapa a cada
parte.
O grupo social, no sistema de pensamento considerado, faz as
vezes do motor da história, na medida em que nele se manifestam tanto
as condições da ação histórica – o prático-inerte – quanto as possibili-
dades dessa ação – o projeto e a luta. Sartre nega que o grupo impeça a
realização de um destino individual – cada um vive sua vida particularmen-
te, sugere na Crítica da razão dialética –, mas, ao mesmo tempo, considera
que essa realização está circunscrita a um campo restrito de possibili-
dades, onde a própria experiência individual produz o ser de grupo. A
ampliação das margens que constringem o grupo sujeita-se, a seu turno,
à efetivação da classe na práxis. Isto é, ultrapassar a condição de grupo
significa realizar a própria classe, em uma trama de finalidades e contra-
finalidades de classe, que deglutem as de indivíduo.
Daqui emerge talvez o principal limite da proposta de Tomich. Ao
distinguir o objeto de observação da unidade de análise, o que implica
um recuo reflexivo incompatível com a razão dialética, a segunda es-
cravidão subsome as relações formativas desta pelo prisma daquele. Em

3 A expressão, assim formulada, aparece em outra obra de Jean-Paul Sartre: a peça de teatro
Huis Clos, A portas fechadas, em português.

230
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

uma abordagem inteiramente diversa, a unidade de análise, se fosse para


manter a distinção, se constituiria à medida que o objeto de observação
se desenvolve, no tempo e no espaço, como produto das contradições in-
teriorizadas e externalizadas por aqueles que agem, também, na unidade
de análise. Não se trata, nas entrelinhas, de uma percepção que obrigue
o historiador a desfazer-se daquilo que forçosamente sabe de antemão –
a unidade de análise –, mas de uma forma de aquilatar que as estruturas
não são dadas ao objeto – ou ao sujeito que o tem em contradição. Pelo
contrário, a dialética sugerida compreende a unidade de análise a partir
das relações contraditórias que lhe dão solda, circunstanciando as possi-
bilidades que o momento prático-inerte aventa à realização do projeto.
Antes de 1960, quando publicou a Crítica da razão dialética, Sartre
havia sugerido, muito influenciado pela fenomenologia, a inseparabili-
dade dos dualismos que, por conduzir a aporias, limitariam mais do que
libertariam as possibilidades de transformação – para o que cá importa
– social. Em O Ser e o nada, redigido durante a ocupação de Paris, pres-
creveu-se a separação do corpo e da alma, do sujeito e do objeto ou do
ser e da aparência como abstrações que compeliriam a pensar no estado
isolado, o que não existe senão de forma integrada (Sartre, 1943). Por
meio de um ajuste possível às formas de compreender a história, o que
interessa à dialética não é a estrutura e a agência cindidas pela abstra-
ção de um recuo reflexivo – uma espécie de ficção para Sartre –, mas a
contradição que as vivifica – no fundo, reciprocamente – na experiência
relacional. Daí o lugar pervasivo que ocupa, na Crítica da razão dialética,
uma práxis sempre mediada pela unidade irredutível de transformação: o
indivíduo constituído em classes.
Para compreender de que maneira a práxis constitui, para voltar
a Tomich, um objeto de observação que faz, por contradições relacionais
que o dilatam temporal e espacialmente, a unidade de análise da qual
depende e, portanto, pela qual também é feito, Sartre propõe, toman-
do-o emprestado de Henri Lefebvre, o método regressivo-progressivo. A
fórmula alvitra um duplo movimento que parte, no primeiro momento,
do fenômeno descrito – regredindo-o, no tempo e de forma a expressar
o prático-inerte, do imediatamente vivido à constituição estrutural do
fenômeno – para progredir, em um segundo momento, e vislumbrar o
projeto, em direção à inteligibilidade de uma práxis social reconstituída.
Não é forçosamente uma questão de escala, embora o método possa
sugeri-lo. Tampouco de hierarquia, malgrado o insinue. É sobretudo uma
questão de tempo o que preocupa o movimento regressivo-progressivo.
Seja na regressão histórica do fenômeno, na progressão em sua direção

231
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

ou na recomposição regressiva-progressiva para trilhar seu devir, impor-


tam, no tempo, as relações que estruturam o objeto, como prático-iner-
te, e aquelas que o transformam, como projeto.
Permanecendo na distinção de Tomich, o método de Sartre acon-
selharia, na regressão, desenvolver as contradições do objeto de obser-
vação na unidade de análise, com a condição de, no progressivo, des-
vendar as relações formativas da unidade de análise que se acumulam,
então, no objeto de observação. Trata-se de uma questão de temporali-
dade, porque as contradições do objeto de observação são atualizações,
vislumbradas por regressão, daquelas explicitadas, na progressão, na uni-
dade de análise – que, no vai-e-vem, se tornam a seu turno atualizações
das novas contradições de um objeto de observação ampliado. Em um
casamento rápido com Fernand Braudel (2014), não se estaria distante
da possibilidade de distinguir contradições estruturais, conjunturais ou
acontecimentais, novamente, desde que enxergadas não por hierarquia
ou escala, mas em sua interdependência: as acontecimentais seriam atua-
lizações das conjunturais, por sua vez, atadas às estruturais, que somen-
te se atualizam, a seu turno, por força das duas outras.
No concreto, se a segunda escravidão articula, em primeiro pla-
no, escravidão e capitalismo por intermédio de suas dinâmicas cocons-
titutivas – fornecendo, inclusive, um método para não essencializar o
mercantilismo, retornando a Guimarães e a Kelmer Mathias; subsome, no
âmbito do sistema-mundo, as direções que os Estados assumem, a par-
tir das contradições de suas respectivas classes dominantes, na própria
composição da ordem global. Não se pretende com isso que essas clas-
ses – costumeiramente, no século XIX, de genética nacional e comporta-
mento patriótico ou nacionalista – não tenham se comunicado com suas
homólogas de outros Estados ou, ainda, sofrido a influência do sistema
global no qual também operavam. Antes, busca-se salientar que, se os
padrões de expansão e de contração do capitalismo são apenas possíveis
porque ele não está localizado em um Estado singular, mas abrigado em
um sistema-mundo – é a ponderação de Immanuel Wallerstein (2013)
–, são os Estados que dimensionam em suas relações contraditórias as
expansões e as contrações do capitalismo.
Na obra de Dale Tomich, que não se escoima de sujeitos históri-
cos, classes e Estados tendem a emergir mais na passividade que o siste-
ma-mundo lhes impõem do que na agência que os realiza – e que realiza
o sistema-mundo, também. Em certo sentido, produção, consumo e pre-
ços globais apresentam-se com maior força explicativa do que bancos,
empresas, partidos e gabinetes. O efeito é de implosão do que separa o

232
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

interno do externo – aqui no sentido das fronteiras nacionais. Em uma


conversão mundo-sistêmica da proposta de Nicos Poulantzas (1971), a
história da segunda escravidão tende a revelar-se, implicitamente, na
autonomia muito relativa que os Estados têm – não em face a suas pró-
prias forças capitalistas, o que era a preocupação de Poulantzas –, mas
sobremaneira em relação ao sistema-mundo capitalista. A consideração
sustenta-se, na condição de haver, retomando a Crítica da razão dialética,
a resolução do momento prático-inerte – todos os Estados interiorizam
os efeitos do sistema-mundo capitalista – pela contradição que engendra
o projeto – a readequação do Estado à reprodução expandida do capital
é obra não das elites capitalistas forçosamente constituídas na adminis-
tração pública, mas das externalizações que essas elites assentam, em
luta, na estrutura formal e institucional do Estado (Poulantzas, 1971).
Ainda que seja justo ratificar a expressividade do momento prá-
tico-inerte, no conceito de Tomich, pelo lugar periférico que ocuparam
as sociedades escravistas no arranjo sistêmico-laboral de então, não por
isso é menos relevante a particularização dessa passividade, inclusive para
compreender as permanências e as transformações do sistema-mundo,
nas fronteiras nacionais. Não se trata somente de considerar a eloquência,
suponhamos, das contradições do bloco histórico britânico nas configura-
ções do Atlântico Oitocentista, mas igualmente de realçar quão responsá-
veis, resguardadas as relações de força na análise das situações nacionais e
globais4, foram os blocos, em novo exemplo, norte-americano e brasileiro
na reprodução ou no esgotamento da segunda escravidão. Se o desenvol-
vimento capitalista conviveu bem em sua desigualdade combinada com
a reabilitação do cativeiro, é também porque o escravismo como projeto
– nos termos de Sartre – dos blocos históricos suportou e fez o sistema
atlântico em dada época e por tempo determinado.

Desinverter a dialética: a história total de Jean-Paul Sartre


Formulada em um tempo no qual as ciências humanas, e espe-
cialmente a antropologia, se afirmavam como disciplinas autônomas da
filosofia, a principal crítica à obra de Sartre veio pela mão de Claude Lévi-
-Strauss. O antropólogo havia consagrado à obra de Sartre um seminário
de quase um ano na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais
(EHESS). O resultado da investigação permeou a redação de O Pensamento
Selvagem e revelou-se mais explicitamente no último capítulo do livro,
História e dialética. Afora a polêmica quanto ao lugar da antropologia na

4 A referência aqui é ao caderno 13 de Antonio Gramsci (1978).

233
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

realização do conhecimento social, as duas outras, que interessam mais


diretamente a esta discussão, disseram respeito às possibilidades de des-
membrar a razão analítica da dialética e às práticas de uma história total.
Lévi-Strauss acusou a Crítica da razão dialética de ser essencial-
mente constituída pela razão analítica: ao longo do texto, comentou o
antropólogo, Sartre define, distingue, classifica e opõe, em um exercício de
descrédito da razão analítica que, em sua efetivação, alcança os mes-
mos resultados que os obtidos pela razão dialética (Lévi-Strauss, 2012).
A segunda crítica que cá importa deu-se mais pelo conteúdo do que pela
forma. Ainda que se pretendendo à universalidade, quis Lévi-Strauss, a
história não seria mais do que
a justaposição de algumas histórias locais, dentro
das quais (e entre as quais) os vazios são muito mais
numerosos do que os espaços cheios. Seria vão
acreditar que multiplicando os colaboradores e in-
tensificando as pesquisas obter-se-ia um resultado
melhor: pelo fato de a história aspirar à significação,
ela está condenada a escolher regiões, épocas, gru-
pos de homens e indivíduos dentro desses grupos
e a fazê-los surgir como figuras descontínuos, num
contínuo suficientemente bom para servir de pano
de fundo (Lévi-Strauss, 2012).

Sartre não respondeu verdadeiramente em duas rápidas entrevis-


tas, nas edições das revistas L’Arc e Situations IX de 1966, que concedeu
sobre as críticas de Lévi-Strauss, o que este assumiu como um dar de
ombros daquele, supostamente incompreendido (Eribon; Lévi-Strauss,
1988).
Seja como for, os comentários de Lévi-Strauss, tidos do ponto de
vista historiográfico, são oportunos para o que nos interessa, sobretudo
quando investigados à luz da dialética. Definir, distinguir, classificar e
opor não são procedimentos forçosamente contrários a uma historio-
grafia movida pela razão dialética, desde que as preconcepções do fe-
nômeno histórico estudado se modifiquem pelo movimento regressivo-
-progressivo – que se torna, por sua vez, uma práxis historiográfica, pois
internaliza e externaliza por contradição o que acumula e ultrapassa no
tempo historiográfico. No fundo – e Lévi-Strauss o destaca –, a oposição
entre razões analítica e dialética não é absoluta, porque as formas não
são puras, nem no ato histórico, nem no historiográfico. Relacionam-se
dialeticamente, poderia dizer Sartre.
A segunda crítica é a que mais responde ao propósito desta sín-
tese. A defesa implícita que Lévi-Strauss fez da antropologia mostrou-se

234
Benefícios e limites da Segunda Escravidão como método para uma razão dialética

uma compreensão da história em sua condição de eterna parcialidade.


A ponderação é justa, inclusive a partir do entendimento de Sartre, que,
contudo, não arrola a característica fragmentada da história – e da his-
toriografia – como um tolhimento à possibilidade de sua totalização.
Isso, porque a história total que propõe Sartre não é a que se alça à
universalidade, mas a que se totaliza, por acúmulo de tempo e projeto
de transformação, no desenrolar de suas contradições. Não é, precisa-
mente, a justaposição de algumas histórias locais o que lhe interessa, mas
sua relação. Tampouco é o espaço cheio ou descontínuo em um suposto
vazio que se presta à uma pretensa continuidade suficientemente boa para
servir de pano de fundo – dualidade que, neste debate, guarda proximidade
com a distinção entre objeto de observação e unidade de análise –, mas
a relação de totalização unicamente autorizada pelo entendimento que
agente e estrutura são reciprocamente formados e transformados por
contradições entre o tempo acumulado como prático-inerte e o decor-
rente espaço estreito de ação como projeto.
O resultado informa então um proceder historiográfico no qual o
objeto se dilata à medida que se transformam as relações que o tinham
por inércia e que passam a tê-lo por projeto. Nesse sentido, a possibi-
lidade de totalização está menos, para efeitos práticos, na escravidão
considerada nos quadros do sistema-mundo atlântico do que nas con-
tradições que o cativeiro produz entre senhores, bancos e partidos; e,
em outro sentido, entre Estados e suas práticas industriais, comerciais e
financeiras no sistema-mundo atlântico. Implodir as relações formativas
de uma unidade de análise – para manter a distinção –, subsumindo-as
pelo prisma do objeto de observação, tende a desautorizar que o próprio
objeto histórico se faz outro à medida que é tido em contradição. Em
outras palavras, se a escravidão é capitalista, ela o é, porque ela é tam-
bém o senhor, o banco, o partido e os Estados e suas práticas industriais,
comerciais e financeiras – em uma história total, por conseguinte, que é
totalizante pela relação contraditória, e não pela justaposição com vistas
à universalidade.
A relevância da segunda escravidão, da qual me considero um
entusiasta, não é diminuída sequer em um décimo com as considera-
ções que precedem. Pelo contrário, é tão somente pela oxigenação que
permitiu na historiografia nacional ou internacional sobre a escravi-
dão que me parece ser possível retornar a Emília Viotti da Costa, para
insistir – foi também a intenção do texto – no que se pode perder se
o conceito de classe permanecer ausente – ou relativamente ausen-
te – do que propomos como interpretações da história. Na inversão

235
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

apreendida por Viotti da Costa para as décadas de 1960 a 1990, as


sobredeterminações estruturalistas, e via de regra economicistas, te-
riam produzido generalizações e, ainda, explicações reducionistas o
suficiente para amputar da história seus principais personagens: os ho-
mens e as mulheres de carne e osso, que, em suas experiências relacio-
nais, suportam e atualizam as estruturas pelas quais se circunscrevem
as possibilidades de ação (Costa, 2014). Para Sartre, a revisão do estru-
turalismo era uma maneira de recuperar os personagens da história no
interior de um marxismo rígido demais para reposicionar o lugar da
existência nas sobredeterminações da essência.
Viotti da Costa, no mesmo ensaio, consentiu que as então novas
abordagens da história se teriam constituído contra os defeitos assina-
lados por Sartre, embora por veredas que as levaram a outros rumos. A
pluralidade tendeu a ganhar pulso contra a generalização, e os reducio-
nismos tenderam a apagar-se perante a singularidade do individual. A in-
teligibilidade da história perdeu espaço, portanto, para a relatividade do
evento contingente, erguido ao primeiro plano das sobre-, e por vezes,
indeterminações históricas. Na virada que se opera atualmente, a escala
global tende a reinverter a primazia do individual, vislumbrando-o, cor-
retamente, antes como uma passividade do que como uma agência no
plano das transformações históricas.
Uma espécie, pois, de pré-agência que carece, ajustaria, da con-
versão do momento prático-inerte em projeto. Essa conversão, e talvez
por isso a reinversão da dialética não se complete, revela-se apenas mar-
ginalmente em uma história global que presume mais as classes sociais e,
não à toa, os espaços que melhor autorizam suas concretizações – isto é,
os Estados – do que os alça como locus de interiorização e externalização
das contradições que movem a história. Para o que interessa à segunda
escravidão – no fundo, a constituição do capitalismo histórico – a tarefa
parece ainda mais urgente, porque apenas nas formações capitalistas as
contradições inerentes ao modo de produção tendem a coincidir plena-
mente com as fontes do conflito de classes. Talvez seja esse o principal
desafio que deixa a segunda escravidão tanto como conceito, quanto
como método.

Referências
ANIEVAS, Alexander, NISANCIOGLU, Kerem. How the West Came to Rule.
The Geopolitical Origins of Capitalism. London: Pluto Press, 2015.

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238
PARTE IV
SEGUNDA ESCRAVIDÃO,
MICRO-HISTÓRIA E AGÊNCIA

239
SEGUNDA ESCRAVIDÃO E
MICRO-HISTÓRIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL

Mariana Muaze

Neste capítulo, apresento algumas questões acerca do debate


interno existente entre os membros do grupo de pesquisa O Vale do Pa-
raíba e a Segunda Escravidão, que, no fundo, atualizam discussões teóricas
concernentes à própria construção do objeto histórico e ao método em-
pregado para estudá-lo. Na opinião de alguns, a Micro-História, através
da metodologia proposta, seria incapaz de fornecer análises consubs-
tanciais para os estudos da segunda escravidão. Isso ocorreria devido a
uma incompatibilidade epistemológica fundada em formas diferenciadas
e diametralmente opostas de se pensar a História. De acordo com essa
visão, o conceito de segunda escravidão foi cunhado, sobretudo, a partir
de uma preocupação de fundo estrutural, com intuito de discutir as rela-
ções entre a escravidão atlântica e o capitalismo mundial, enfatizando a
longa duração temporal, a macroestrutura e uma história total (Tomich,
2011; 2016). Já a Micro-História destacaria, partindo de trajetórias indi-
viduais e casos excepcionais, o tempo curto do acontecimento, o universo
micro da vida humana e a experiência dos sujeitos sociais no cotidiano.
Tendo nascido, justamente, como uma resposta à história-síntese brau-
deliana e marxista, inspiração de muitos historiadores da segunda escra-
vidão, estaríamos diante de uma incompatibilidade fundante.
Tais argumentos se somam à afirmação de que, ao fazer a análise
do social a partir dos agentes, muitos micro-historiadores operam com
os sujeitos históricos como atores autônomos e construtores de suas
próprias histórias, sem considerar todos os campos de forças políticas,
econômicas, sociais e culturais a que estão submetidos. Guardadas as
especificidades do debate em questão, pode-se dizer que a querela tam-
bém retoma antigas reflexões sobre o lugar da autonomia dos sujeitos na
História, e das relações entre indivíduo e sociedade. A desconfiança em
relação à Micro-História de alguns historiadores da segunda escravidão se
acirra ainda mais quando misturada às críticas feitas à chamada História
Social da Escravidão no Brasil. Nesse contexto, os ganhos interpretativos
de se pensar a agência escrava, o protagonismo dos cativos, os direitos

241
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

costumeiros, as resistências, as negociações, conflitos e concessões, bem


como a ampliação de temas (escravidão urbana, mercado interno, alfor-
ria, família escrava, revoltas, tráfico interno e externo, dentre outros),
ocorridos a partir dos anos de 1980, são reconhecidos como de grande
importância para o conhecimento da sociedade escravista e do Império
brasileiro.1 No entanto, também são apontados como responsáveis por
um “desvirtuamento” da perspectiva macro em benefício da micro, o que
teria trazido a perda da análise relacional entre os indivíduos e as estru-
turas socioeconômicas.2 Por esta ótica, o conceito de segunda escravi-
dão, para além de seus ganhos interpretativos, também seria uma forma
de resgatar o debate macro, a perspectiva da longa duração, o estudo das
estruturas, do capitalismo e da escravidão no Brasil e no mundo.
Deste ponto em diante, vou defender que considero possível
pensar o conceito de segunda escravidão e operar com a metodologia
da microanálise, desde que se busque entrecortar as diversas tempora-
lidades e se jogue com as múltiplas escalas do objeto em análise com o
objetivo de se refletir sobre os processos históricos mais amplos. Assim,
acredito ser possível captar as relações entre estrutura e experiência, en-
tre constrições estruturais e singularidades individuais, entre temporali-
dades lentas e ações cotidianas. Isso porque são os sujeitos que fazem a
História, mas sempre dentro de condições limitadas por estruturas men-
tais, políticas, econômicas e sociais, cujo peso não pode ser descartado
(Costa, 2013). Tal postura ajuda a responder questões que ainda estão
em aberto e merecem mais pesquisas por parte de nós, historiadores da
segunda escravidão no Brasil, tais como: o que efetivamente a segunda
escravidão trouxe de mudança no cotidiano dos escravos? Como esta
nova configuração alterou as formas de trabalho escravo no universo mi-
cro e nas diferentes zonas escravistas do mundo atlântico?
Em que medida a segunda escravidão transformou as relações
senhores-escravos em seus diversos tempos e espaços? Como as relações
entre escravidão e capitalismo se efetivaram nas diferentes áreas, re-
giões, comunidades e localidades ao longo do tempo? No Vale do Paraíba

1 Este debate pode ser acompanhado através dos seguintes textos: Machado (1987); Lara
(1988); Chalhoub (1990); Slenes (1995); Lara (1995); Marquese (2008, 2013); Marquese; Salles
(2016).
2 A referência mais direta aqui é o livro Visões da Liberdade, de Sidney Chalhoub, que analisa
casos de ações de liberdade movidas por escravos e intermediada por livres como forma de
luta por direitos na justiça. A crítica recai sobre um protagonismo insuspeito dos cativos na
condução de suas lutas contra os senhores, tratando-se de uma análise dos atores sociais na
qual a sociedade escravista mais geral, em seu momento de crise, não teria sido considerada.
Sobre esse debate, consultar: Salles; Marquese (2016, p. 117-118). De uma forma mais geral, a
mesma critica aparece em Tomich (2018).

242
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

fluminense, no Rio Grande do Sul e no Sertão da Bahia ou no Maranhão,


ela se estabeleceu da mesma forma? De que maneira as áreas economica-
mente periféricas foram afetadas pela segunda escravidão? Como ela se
configurou nessas regiões e que mudanças acarretou para os agentes so-
ciais envolvidos? O diálogo com a Micro-História e o jogo de escalas por
ela proposto podem ser um bom caminho metodológico para responder
a essas e outras provocações que certamente estão por vir.

Sobre o conceito de segunda escravidão


O conceito de segunda escravidão, desenvolvido pelo historiador
norte-americano Dale Tomich, se baseia na percepção das diferenças e es-
pecificidades existentes entre a escravidão moderna, preponderante entre
os séculos XVI e XVII, e aquela levada a cabo entre 1790 e 1888 (Tomich,
2011).3 Dessa forma, a primeira escravidão se configuraria pelos monopó-
lios mercantis, os impérios marítimos do mundo pré-moderno (Portugal,
Espanha, Países Baixos, Inglaterra e França), quando o capitalismo estava
em sua fase de acumulação primitiva de capital. Neste contexto, a partir
da expansão marítima e da descoberta das Américas, a escravidão assu-
miu um caráter colonial, foi regida por fundamentos legais provenientes
dos estados europeus e envolveu, sob nova dinâmica, duas instituições
tipicamente coloniais: a plantation escravista e o tráfico transatlântico de
escravos (Blackburn, 2011; Tomich, 2011b). Cada vez mais, passou-se a es-
cravizar pessoas em escala crescente no continente africano para trans-

3 O livro saiu em inglês em 2004 e, em português, em 2011, reunindo artigos do autor, escri-
tos entre 1987 e 1997. Sua organização é feita em três partes. Na primeira, A escravidão na
economia mundial, apresenta o conceito de segunda escravidão e discute seu ponto de vista
teórico contrário a três grandes interpretações da escravidão moderna: a Nova História Econô-
mica (de autores como Robert Fogel e S. Engerman), a marxista, de Eugene Genovese, e a do
moderno sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein. “Resumida e esquematicamente, a Nova
História Econômica presumia a validade universal das categorias econômicas, aplicáveis tanto
à economia capitalista quanto à economia escravista, deixando sem resposta as questões per-
tinentes à interpretação histórica e à formação das relações sociais. Já Genovese veria escra-
vidão e capitalismo como sistemas incompatíveis, este mais moderno e aquele mais atrasado,
envolvendo momentos difíceis do processo evolutivo histórico. Finalmente, para Wallerstein,
o moderno sistema-mundo, compreendendo relações de trabalho tanto assalariadas quanto
coercivas – dentre elas, a escravidão -, se constituiria em uma estrutura histórica empírica,
com múltiplas formas de trabalho, entretanto perdendo de vista as diferenças fundamentais
entre as distintas relações sociais de produção.” Salles (2013, p. 251-252). Nas partes seguin-
tes, O global no local e Trabalho, tempo e resistência: mudando os termos da comparação,
apresenta uma análise comparativa do Caribe Inglês, Francês e Espanhol, entre o final do XVIII
e a primeira metade do XIX, a partir do conceito exposto. Para uma resenha do livro aqui
citado, ver Salles (2013, p. 249-254).

243
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

portá-las, organizá-las e explorá-las nas cidades e plantations das Américas.


Para tanto, foi montado um complexo e moderno sistema de tráfico que
envolveu diversos agentes sociais na África, na Europa e no Novo Mundo
(Blackburn, 2016). Como demonstra Seymour Drescher, o tráfico atlântico
conectava fronteiras distantes. Entre meados do século XV e fins do século
XVIII, a instituição da escravidão já havia se expandido por todas as cos-
tas atlânticas, fazendo com que governantes e negociantes de cada centro
comercial europeu e africano procurassem, de alguma forma, participar
desse sistema bastante lucrativo (Drescher, 2010).
Enquanto a primeira escravidão se apoiava em uma política de
concessão de monopólio, a segunda escravidão representaria um sistema
escravista mais maduro, autônomo, duradouro, produtivo e veiculado ao
mundo capitalista em ascensão. Foi, em grande parte, pós-colonial, in-
dustrial, incentivadora de novas tecnologias (tais como ferrovias, trans-
porte a vapor e modernas máquinas agrícolas), e apoiada pelos estados
independentes e suas classes dominantes, que passaram a ter uma liga-
ção direta com os poderes regionais e nacionais (Baptist, 2014). Seus
plantadores locais integraram o maquinário industrial à utilização da
mão de obra escrava para a produção em larga escala. Dessa forma, a
segunda escravidão esteve intrinsicamente ligada à aceleração do capi-
talismo industrial em perspectiva global e ao tráfico maciço de escravos,
interno e externo, legal e ilegal, dependendo do espaço e tempo em foco
(Blackburn, 2016).
A expansão da segunda escravidão no mundo foi impulsionada
por diversos eventos e tendências históricas. De um lado, o aumento
populacional europeu e o advento da Revolução Industrial, responsáveis
pelo incentivo ao consumo de commodities por trabalhadores assalaria-
dos e pelas classes médias urbanas das cidades da Europa, Inglaterra e
Norte dos Estados Unidos. De outro, as guerras de independência nas
Américas, com a formação de elites nacionais locais, e a Revolução Hai-
tiana, que abriria um gap produtivo catalizador de uma nova dinâmica
para a economia atlântica. Até a independência do Haiti, proclamada em
1791, a Ilha de Saint Domingue era a principal colônia francesa produto-
ra de açúcar e café, matérias-primas bastante valorizadas no comércio in-
ternacional. Contudo, devido aos graves conflitos políticos ocorridos em
solo haitiano após a emancipação, houve uma drástica desorganização
das principais áreas produtivas. Em pouco tempo, o mercado mundial
desse gênero passou por uma forte reconfiguração. As antigas commodi-
ties sofreram um barateamento e integraram a dieta do trabalhador, pas-
sando rapidamente de artigos de luxo a produtos de massa. As regiões

244
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

escravistas do Caribe Francês e Inglês não se adaptaram à nova dinâmica


e viram sua produção decair. Nesse mesmo momento, outras áreas, antes
marginais, da economia atlântica se tornaram centrais na produção de
gêneros voltados para a indústria e na conformação de novos hábitos de
consumo (Tomich; Marquese, 2015; Tomich, 2018).
Assim, o Brasil que tinha sido líder na produção açucareira no
século XVI e XVII, expandiu seu cultivo no Nordeste e em localidades do
Centro-Sul, mas, gradativamente, aumentou os investimentos no café,
impulsionado pela demanda internacional. Cuba, por sua vez, passou um
período investindo simultaneamente no açúcar e no café, até que, na
década de 1820, concentrou suas forças no açúcar, devido às limitações
de terras plantáveis e à competição do café brasileiro. A terceira área que
se destacou foi o Sul dos Estados Unidos, com o plantio de algodão em
larga escala para alimentar a indústria têxtil dos chamados panos leves
na Inglaterra (Kaye, 2009). Assim, fazia-se a transição de uma economia
atlântica alicerçada em mercadorias tropicais de consumo de luxo (com
mercado consumidor restrito) para o cultivo de gêneros de primeira ne-
cessidade numa economia industrial. No novo contexto, as commodities
passaram a ser produzidas em quantidades antes nunca vistas na econo-
mia atlântica mundial.
As novas zonas produtivas - o cinturão algodoeiro do Sul ame-
ricano, a região açucareira cubana e a zona cafeeira do Vale do Paraíba
brasileiro - eram áreas previamente inexploradas, cujas características
geográficas, naturais, econômicas e sociais permitiram uma produção
em larga escala. De forma complementar e inter-relacionada ao processo
de industrialização, mantiveram o uso da mão de obra escravizada já
utilizada, contudo sob uma nova e mais intensa dinâmica de exploração
dos trabalhadores de suas plantations. Nessas áreas, os meios de trans-
portes, especialmente ferrovias e barcos a vapor, tiveram um grande sal-
to, bem como o maquinário voltado para o beneficiamento de gêneros, e
a própria organização e gestão das plantations (Marquese, 2004). Assim,
em cada uma dessas zonas, a escala de produção e o tamanho da força
de trabalho aumentaram enormemente. As tarefas em grupos predomi-
naram, foram quantificadas e calculadas com o objetivo de maximizar a
produção, aumentar o ritmo e os lucros obtidos nas grandes unidades de
produção (Tomich, 2016, p. 89; Baptist, 2014).
Assim, o conceito de segunda escravidão permite pensar a es-
cravidão como parte integrante do sistema capitalista em ascensão e
vice versa. Se por um lado, o capitalismo industrial fomentou a imple-
mentação do regime de trabalho assalariado nos polos europeus, por

245
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

outro, incentivou o trabalho escravo realizado em larga escala em áreas


específicas produtoras de gêneros, como forma de aquisição de bens
primários baratos, principalmente no Sul dos Estados Unidos, Brasil e Ca-
ribe (Tomich, 2011; Tomich; Marquese, 2015; Tomich, 2018). Essas novas
zonas de produção escravista seriam, portanto, uma parte importante
da expansão material da economia mundial na era do capitalismo indus-
trial. Sua proposição se funda no estudo relacional e global do sistema
escravista nas suas especificidades, assimetrias e desigualdades locais,
para lançar luz sobre o capitalismo como processo histórico estruturan-
te. Sob o prisma defendido por Tomich, a escravidão nas Américas não
seria mera coadjuvante na compreensão da economia mundial, mas sim
parte integrante e fundamental do capitalismo (2011).
No debate mais amplo, o conceito de segunda escravidão procura
responder a uma historiografia que percebe a escravidão como uma ins-
tituição necessariamente arcaica (Genovese, 1967; Florentino; Fragoso,
1993), condenada ao desaparecimento na fase do capitalismo industrial
por ser incompatível com a modernidade, extemporânea ao progresso
industrial, antagônica ao liberalismo e à política moderna. Ao contrá-
rio, a segunda escravidão se afirma como dinamizadora do capitalismo,
do tráfico atlântico, das novas áreas de alta produção de commodities e
de uma nova divisão internacional do trabalho (Tomich; Zeusck, 2008).
Como conclusão, as áreas escravistas atlânticas em ascensão não são vis-
tas como arremedos do capitalismo mundial, pois estavam inter-relacio-
nadas, interligadas e participavam ativamente do processo em curso.

As trilhas da Micro-História
A Micro-História italiana não foi um movimento homogêneo e,
portanto, não se constituiu como um corpo unificado de proposições
ou uma escola historiográfica (Lima, 2006, 2009; Revel, 1998; Oliveira;
Almeida, 2009). Ao contrário, pode ser mais bem definida como uma me-
todologia, uma prática historiográfica com referências teóricas múltiplas
e ecléticas (Levi, 1991, p. 133). Com esta característica, a Micro-História
se desenvolveu em articulação com variados debates na revista Quaderni
Storici, a partir dos anos de 1970.
Inicialmente dirigida por historiadores com tradição marxista e
dos Annales, o periódico promoveu o encontro de pesquisadores italia-
nos de diferentes gerações e tendências teóricas. Seus principais colabo-
radores foram Carlo Ginzburg, Eduardo Grendi, Giovanni Levi, Carlo Poni,

246
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

Luisa Accati e vários outros, que desenvolveram suas reflexões se dife-


renciando das perspectivas globalizantes da segunda geração dos Annales
(principalmente Fernand Braudel), da New Economic History (cujos maiores
expoentes foram Alfred H. Conrad, Robert Fogel e Stanley Engerman) e
da história serial quantitativa e demográfica (com destaque para Louis
Henry e Peter Laslett), que enfatizavam os longos processos históricos,
a análise quantitativa, os largos espaços geográficos e as variáveis ma-
teriais e estruturais como as únicas capazes de explicar as sociedades.4
A principal crítica apontava que tais abordagens se atinham so-
mente à análise de estruturas e desencarnavam os sujeitos históricos do
tratamento dos processos mais gerais. Assim, os micro-historiadores se
esforçaram para dar à experiência cotidiana dos atores, grupos e comu-
nidades uma nova significação frente ao jogo das estruturas dominantes.
Apesar das ponderações aqui explicitadas, a revista Quaderni Storici des-
tacava temas clássicos da História Social, Econômica e Agrária. Contudo,
abria-se às reflexões sobre família e comunidade, às inovações no campo
da demografia histórica, aos debates com a Antropologia (cujas maiores
influências foram Frederik Barth e Clifford Geertz), à cultura material e à
história oral, ainda bastante recente na época.
A primeira tentativa de formular uma metodologia comum aos
autores que trabalhavam com a Micro-História veio com o artigo O nome e
o como: troca desigual e mercado historiográfico, escrito por Ginzburg e Poni,
em 1979.5 Neste momento, para além das diferenças, os autores faziam
um esforço a posteriori para unificar as propostas do grupo, enfatizando:
o tratamento intensivo e qualitativo das fontes, o desenvolvimento do
método nominativo,6 o destaque para os grupos subalternos, a prioriza-

4 Jacques Revel nos sinaliza que muito do programa crítico da Micro-História à História Social
estava relacionado ao método sociológico proposto pelo durkheimiano François Simiand para
as Ciências Sociais e adotado pelos Annales. Insistia que os historiadores deveriam evitar os
estudos do único; do acidental (entendidos como o indivíduo, o acontecimento singular) para
priorizar a repetição, as regularidades, estas sim mais viáveis ao conhecimento científico.
(1998, p. 17).
5 Henrique Espada Lima (2006) já aponta o artigo Microanálise e história social, de Eduardo
Grendi, publicado em 1977, na revista Quaderni Storici, como o primeiro a possuir uma pro-
posta metodológica integradora para a Micro-História. Ronaldo Vainfas (2002) ressalta ainda
Sinais: raízes de um paradigma indiciário como outro texto importante para a proposição de
um método alternativo à história-síntese.
6 Carlo Ginzburg propõe o “método nominativo” como forma de explorar e dialogar com as
séries documentais na investigação histórica. O nome seria “o fio de Ariadna que guia o inves-
tigador no labirinto documental, é aquilo que distingue um indivíduo de outro em todas as
sociedades conhecidas: o nome”. (…) “Este não fecha necessariamente a porta à investigação
serial. Serve-se dela. (…) Mas o centro de gravidade do tipo de investigação micronominal
encontra-se noutra parte. As linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo

247
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

ção de uma história vista de baixo (em forte diálogo com a antropologia
cultural e as propostas do historiador inglês Edward P. Thompson), a cen-
tralidade da experiência dos atores para análise do social (Lima, 2006;
Ginzburg, 1991) e a inclusão de novos grupos (mulheres, judeus, campo-
neses, proletários) na investigação histórica. Dessa forma, reforçavam a
importância da lente microscópica e da redução da escala de observação
para a reconstituição do vivido, sem abrir mão das estruturas nas quais
os sujeitos históricos se articulam. Em suas palavras: “para além delas
[as experiências individuais diversificadas] é possível atingir aquele nível
mais profundo, invisível, que é constituído pelas regras do jogo, a histó-
ria que os homens não sabem que fazem”, lição dada por Marx e Freud
(Ginzburg, 1989, p. 177).
Tal esforço, como o próprio título do artigo confirma, era um
convite ao método da microanálise, ao uso dos arquivos italianos (abun-
dantes em fontes seriais com forte potencial qualitativo) e à implemen-
tação de uma agenda de pesquisa, que buscasse marcar uma posição
política na historiografia italiana e no campo da História Social dos anos
1970/80 (Revel, 1998).
A Micro-História não nega nem se desinteressa pela estrutura
ou a escala macro, como criticam alguns. Apenas, não as considera o
ponto de partida da investigação histórica. Parte de um problema ge-
ral. Entretanto, acredita que a análise do individual, através da lente mi-
croscópica, da descrição etnográfica do comportamento humano, leve
ao conhecimento dos desvios e das liberdades dos sujeitos no interior
dos sistemas prescritos, ou seja, dentro da própria estrutura. Tais pro-
cedimentos buscam conhecer as estruturas em todos os seus aspectos
e não somente nos aspectos hegemônicos. A proposição é uma inversão
da lógica anterior.7 Ao invés de buscar a homogeneidade, a repetição de
padrões, e descartar as heterogeneidades das análises, parte-se das bre-
chas, das irregularidades e das contradições para se pensar os sistemas

uma série de teias de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que
o indivíduo está inserido”. (1989, p. 174-175).
7 Segundo Guinzburg, selecionar como objeto de conhecimento apenas o que é representativo
e, por isso, passível de serialização, significa pagar um preço, em termos cognitivos, muito
alto. Nem todas as temporalidades e temáticas históricas possuem documentação abundante
para fazê-lo. Além do que, “em qualquer sociedade a documentação é intrinsicamente dis-
torcida, uma vez que as condições de acesso à sua produção estão ligadas a uma situação de
poder e, portanto, de desequilíbrio. Por outro lado, anula as particularidades da documen-
tação existente em benefício do que é homogêneo e comparável”. Para ele, o conhecimento
histórico científico implica na construção de séries documentais, mas até o documento mais
anômalo pode ser inserido e analisado para lançar luz sobre uma série mais ampla. (2006, p.
262-263)

248
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

normativos que as governam (Levi, 1991). Aqui, a discrepância tem valor


explanatório, deve ser investigada e não desprezada. Assim, é importan-
te não sacrificar de início o conhecimento dos elementos individuais a
uma generalização mais ampla, pois servem para revelar as brechas dos
fenômenos mais gerais (Levi, 1991, p. 158).
Para a microanálise, a variação entre as escalas de observação é
uma ferramenta-chave do novo método proposto: “o olhar aproximado
nos permite captar algo que escapa da visão de conjunto, e vice-versa”
(Ginzburg, 2006, p. 267). Fenômenos maciços, que estamos habituados
a pensar em termos globais, como o crescimento do Estado, a forma-
ção da sociedade industrial e, no caso deste artigo, a própria segunda
escravidão, podem ser lidos de maneiras completamente diferentes, se
tentarmos apreendê-los por intermédio das estratégias individuais, das
trajetórias biográficas ou das comunidades locais (Revel, 1998). A expe-
riência dos sujeitos históricos dá acesso às lógicas sociais, econômicas e
simbólicas, constituindo lógicas de família, grupo e classe ou configura-
ções muito maiores, e que, portanto, permitem uma análise mais geral.
Mas, esta lógica mais abrangente é o ponto de chegada, e não o ponto de
partida da reflexão proposta pela Micro-História. No entanto, a dimensão
micro não goza de nenhum princípio valorativo ou privilégio em relação
à macro. É a variação de escala que enriquece a interpretação (Revel,
1998, p. 12-13).
Cada ator histórico participa, de maneira próxima
ou distante, de processos – e portanto se insere em
contextos – de dimensões e de níveis variáveis, do
mais local ao mais global. Não existe portanto hiato,
menos ainda oposição, entre história local e histó-
ria global. O que a experiência de um indivíduo, de
um grupo, de um espaço permite perceber é uma
modulação particular da história global. Particular e
original, pois o que o ponto de vista micro-histórico
oferece à observação não é uma versão atenuada,
ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais:
é (...) uma versão diferente. (Revel, 1998, p. 28)

Para melhor referendar o que apresento, cito duas pesquisas de


micro-historiadores que tiveram grande circulação e influência no Brasil,
a partir das décadas de 1990 e 2000, respectivamente. Em O Queijo e
os Vermes (1976), Ginzburg explorou o caso do moleiro Menocchio para
estudar a cultura camponesa na Itália da Era Moderna, definindo-a como
“um conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios
das classes subalternas em certo período histórico” (Revel, 1998, p. 32).

249
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Sua análise, muito inspirada no estudo de Mikhail Bakthin sobre Fran-


çois Rabelais, apontou a circularidade de elementos, crenças e noções da
cultura popular e da cultura erudita, esta última definida como letrada e
das classes dominantes. Ao final, o que Ginzburg demonstrou, através do
caso Menocchio, foi como se davam os conflitos e as relações de classe
no plano cultural na Itália da Inquisição.
Enquanto Ginzburg enfatizou o cultural, Giovani Levi enfocou o
social. Em A herança imaterial, o historiador parte da biografia de um
curandeiro e exorcista do baixo clero de Santena, o padre Giovan Battista
Chiesa, para investigar o mercado de terras, as relações políticas e de
poder daquela comunidade no Piemonte, do século XVII (Levi, 2000; Oli-
veira, 2017). Faz uma prosopografia da pequena cidade com milhares de
ocorrências nominativas, verticaliza algumas famílias que enriqueceram,
estuda a reciprocidade e o comércio de terras, atentando para o entrela-
çamento entre riqueza e prestígio. De fundo, havia uma questão maior:
compreender as transformações sociais que destruíram o sistema feudal
no Piemonte. Todavia, não lhe escaparam as estratégias individuais e co-
letivas usadas para agir e reagir aos sistemas normativos e às estruturas
sociais vigentes. Sua proposta não deixava de pensar a economia moral
das classes populares numa clara alusão ao trabalho de Thompson,8 nem
de refletir sobre a vida material e cultural daquela localidade.
Em ambos os autores mencionados, bem como em muitos escri-
tos de Micro-História, há a preocupação essencial com a narrativa em-
preendida pelo historiador. A proposta é compartilhar com o leitor as
lacunas documentais, as escolhas teóricas e as formulações de hipóteses,
ao longo do texto. Todavia, esta ênfase na narrativa em nada se confunde
com a renúncia à veracidade dos fatos ou a diminuição das fronteiras en-
tre fato e ficção, história e literatura, como reivindicado pelos defensores
da virada linguística (Levi, 1991, p. 152-153; Ginzburg, 2010).
Sobre as transformações e a recepção da Micro-História no deba-
te historiográfico, Henrique Espada Lima (2006) atenta para duas princi-
pais correntes - a social, que opera com as redes de sociabilidade, como
fazem Levi e Grendi, e a cultural, cuja ênfase se coloca no universo men-
tal conforme trabalhado por Ginzburg -, que, na verdade, diferem muito

8 Juntamente com os artigos da revista Quaderni Storici, foi importante para o aprofundamento
dos debates sobre Micro-História a coleção Microstorie, editada pela Einaudi a partir de 1981,
e dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Entre os quinze primeiros números lançados
estavam: Sociedade patrícia e sociedade plebeia, de E. P. Thompson (com textos que mais tarde
seriam reunidos no livro Costumes em Comum), O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon
Davies, A herança imaterial, de Giovanni Levi e Biografia de uma cidade: história e narrativa:
Terni, 1830-1885, de Alessandro Portelli.

250
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

pouco entre si. Apesar de usarem ferramentas conceituais distintas, há a


convicção comum na capacidade de reconstruir o passado através da lei-
tura intensa dos documentos e no potencial reflexivo das singularidades
dos casos abordados. A aproximação com a noção de descrição densa
da Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz é evidente. Contudo,
apesar da influência, os micro-historiadores fizeram várias críticas que
atentavam para o perigo do relativismo histórico, no qual o passado se-
ria explicado a partir da compreensão dos próprios atores, sem o cotejo
com outros grupos e instituições sociais.9
Fazendo um balanço da Micro-História, mais de uma década
depois do seu surgimento, Giovanni Levi reafirmou a importância da
relação entre estrutura e experiência, buscando também pensar suas
fronteiras. Partindo da investigação dos atores sociais, afirma que o
historiador deve buscar uma descrição realística do comportamento
humano que reconheça a relativa liberdade dos sujeitos, mas também
as limitações dos sistemas normativos prescritos e opressivos. Desta
forma, para o autor:
toda ação social é vista como resultado de negocia-
ção, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo,
diante de uma realidade normativa que, embora
difusa, não obstante oferece muitas interpretações
diferentes e liberdades pessoais. A questão é, por-
tanto, como definir as margens - por mais estreitas
que possam ser - da liberdade garantida a um in-
divíduo pelas brechas e contradições dos sistemas
normativos que os governam. Em outras palavras,
uma investigação da extensão e da natureza da von-
tade livre dentro da estrutura geral da sociedade hu-
mana. Neste tipo de investigação, o historiador não
está simplesmente preocupado com a interpretação
dos significados, mas antes em definir as ambiguida-
des do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis
interpretações desse mundo e a luta que ocorre em
torno dos recursos simbólicos e também dos recur-
sos materiais (Levi, 1992, p. 135).

9 Giovanni Levi coloca duas principais diferenças entre as prerrogativas defendidas por Geertz e
pelos micro-historiadores: “1 – a antropologia interpretativa enxerga um significado homogê-
neo nos sinais e símbolos públicos, enquanto a micro-história busca defini-los e medi-los com
referência à multiplicidade de representações sociais que eles produzem; 2 – a micro-história
não rejeitou a consideração de diferenciação social da mesma maneira que a antropologia
interpretativa, mas a considera essencial para se ter uma interpretação tão formal quanto pos-
sível das ações, do comportamento, das estruturas, dos papéis e dos relacionamentos sociais”.
(Vainfas, 2002, p. 124-125).

251
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

A Micro-História e outros movimentos da chamada virada cul-


tural foram capazes de enfatizar a heterogeneidade das vivências dos
vários agentes sociais, ampliar a gama de fontes consultadas, perceber
as diferenças culturais, políticas e ideológicas existentes no seio dos pró-
prios grupos/classes sociais, incluir setores marginalizados na pesquisa
histórica (história vista de baixo), bem como suas estratégias de negocia-
ção, conflito e resistência. Todavia, os estudos mais bem-sucedidos fo-
ram aqueles que conseguiram traçar nexos entre essas vivências e os
sistemas normativos, trazendo reflexões mais amplas sobre a sociedade
em questão. Para os micro-historiadores, a chave desses nexos é, sem
dúvida, o jogo de escalas.

Construindo pontes
Nesta parte final do capítulo, cabe retomar a pergunta que origi-
nou nossa reflexão: seria a metodologia da Micro-História incompatível
com os estudos da segunda escravidão? Sem medo, me arrisco a reafir-
mar que não, já que o próprio Dale Tomich tem escrito sobre as possibi-
lidades de diálogo, mesmo que as pesquisas nesta direção ainda sejam
bastante recentes.
Aqui, é importante pensar a historicidade do debate. Pelo prisma
da escravidão saiu em inglês, em 2004, reunindo artigos publicados entre
1987 e 1997, sendo a primeira parte, onde se encontram as principais
proposições da obra, inclusive o conceito de segunda escravidão, a mais
antiga.10 O livro objetivava:
reconstruir teoricamente o desenvolvimento históri-
co de regimes escravistas particulares, locais, como
resultados de processos econômicos mundiais e di-
ferenciar esses regimes uns dos outros por sua
posição dentro da totalidade político-econômica. A
especificidade dos regimes escravistas particulares
contribui simultaneamente para e revela a heteroge-
neidade espacial e temporal da economia mundial ca-
pitalista. Desse modo, a escravidão revela a constan-
te assimetria, desigualdade e tensão entre histórias
locais particulares e os diversos, porém unificados,
ritmos temporais e tensões espaciais dos processos
econômicos mundiais (Tomich, 2011, p. 52).

10 A primeira versão do capítulo A segunda escravidão (capítulo 3), do livro Pelo prisma da
escravidão, foi publicada, em 1988, em Rethinking the nineteenth century: movements and con-
tradiction, uma coletânea organizada por Francisco O. Ramirez. (Salles, 2013).

252
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

A ênfase de Tomich é a macroestrutura, a História Global e com-


parativa, descritas como capazes de construir uma história unificada da
escravidão atlântica, ao invés de diferentes histórias sobre a escravidão
no Atlântico. Desse modo, seria possível pensá-la como parte integran-
te do capitalismo em curso. As especificidades e particularidades locais
não são negadas. Todavia, estão circunscritas aos processos econômicos
mundiais de longa duração. Os atores sociais - senhores, escravos, li-
bertos, homens livres e pobres e outros agentes sociais - não são negli-
genciados, mas suas vontades, lutas, conflitos e decisões são percebidos
dentro do horizonte de possibilidades orientado essencialmente pelas
grandes transformações econômicas.11
Em Pelo prisma da escravidão (Tomich, 2004), a prerrogativa global
é parte integrante da própria noção de segunda escravidão como ins-
trumental teórico-metodológico essencial para a construção da mirada
histórica relacional desejada: uma história da escravidão e do capitalismo
na perspectiva atlântica. Também se configura como uma resposta aos
efeitos da “virada cultural” na historiografia americana da escravidão e a
crença de que a dimensão cultural, compreendida como locus da criação
autônoma dos indivíduos, seria um fator explicativo mais importante do
que a economia.12
Desde a publicação do livro, em 2004, Dale Tomich escreveu dois
textos, advogando um maior contato entre a Micro-História e a segunda
escravidão: Introduction, the second slavery: mass slavery, world-economy, and
comparative microhistories (2008), em coautoria com o’ historiador Michael
Zeuske, e The order of historical time: longue durée and Micro-History (2011).
Em ambos, no primeiro de forma mais crítica e no segundo mais concilia-
dora, afirmou que a Micro-História teria o potencial de revelar, através do
estudo do tempo curto, as descontinuidades e a heterogeneidades dos
lugares, grupos, indivíduos e instâncias estudadas. Desta forma, o tempo
curto também poderia ser entendido como uma confluência de tempos
múltiplos, constituintes de um tempo plural. Para Tomich, essa reordena-
ção do tempo histórico que a metodologia microanalítica potencializa se

11 “Uma explicação completa da história da destruição da escravidão durante o século XIX teria
de levar em conta a diversidade dos fatores políticos, sociais, ideológicos, dos quais as ações
dos escravizados não foram menos importantes. Não obstante, a transformação da economia
mundial tornou as condições da existência do trabalho mais vulneráveis e voláteis do que
antes”. (Tomich, 2011, p. 96).
12 Segundo Baptist, a própria “virada cultural”, como se desenhou, foi uma reação à interpreta-
ção de que as pessoas escravizadas eram passivas e se comportavam como o tropo sub-huma-
no dos racistas e paternalistas que defendiam a escravidão. Eram chamadas de “sambos”, ou
submissos, que renunciavam a seus interesses em prol de seus senhores, conforme encontrado
em David Elkins. (2016, p. 280-181).

253
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

aproximaria da noção de “longue durèe”, de Fernand Braudel. Traria ainda


um questionamento importante sobre o contexto histórico, que deixa-
ria de ser entendido como pano de fundo, cenário para os acontecimen-
tos, para se tornar uma agência estruturadora capaz de moldar e limitar
o espectro de possibilidades (Tomich, 2011, p. 49-51). Todavia, Tomich
adverte: “o resultado da análise micro-histórica não pode ser automa-
ticamente transferido para esferas estruturais mais gerais e vice-versa”
(2011, p. 50). É preciso que se pense como o micro engendra o macro,
mas também como o macro engendra o micro. Assim, seria possível exa-
minar a “longue durée”, o tempo estrutural, através do tempo curto, do
local e do particular, abrindo uma grande possibilidade de diálogo com
os estudos da segunda escravidão.
Para tanto, nos artigos citados, Michael Zeuske e Dale Tomich
advertem que os micro-historiadores deveriam evitar: (a) tratar os atores
como determinados por aspectos fixos pertencentes à estrutura e (b)
pensar os agentes como prioridade de forma isolada das relações que
os criam e fazem suas ações possíveis (Tomich; Zeuske, 2008, p. 97).
Dessa maneira, caberia à Micro-História não descuidar da longa duração
em prol das temporalidades mais singulares que trazem os indivíduos
ao proscênio. Uma autoconsciência da redução de escala permitiria con-
textualizar de perto a agência humana, a diversidade; enquanto o jogo
de escalas com outras temporalidades, especialmente a longa duração,
poderia dar conta das contingências da ação social, dos limites e possibi-
lidades da agência. Desta forma, haveria uma abertura para o que Tomich
e Zeuske chamaram de “micro-história como uma historia mundial feita
da perspectiva do indivíduo” (Tomich; Zeuske, 2008, p. 97).
Nessa abordagem, Michael Zeuske e Nobert Finzsch estudaram
Cuba e o Sul dos Estados Unidos no pós-emancipação, e combinaram a
análise dos microssistemas escravistas locais com a investigação das ma-
croestruturas atuantes no processo de transição da escravidão para a liber-
dade e no pós-emancipação (Zeuske; Finzsch, 2011). Aspectos da Micro-
-História foram reivindicados como ferramentas importantes para colocar
os escravos no centro da investigação histórica (2010, p. 284) e diferenciar
como a escravidão ocorria distintamente dependendo do lugar, do espaço
e do contexto ambiental (2010, p. 286).13 Já o historiador Christopher Sch-

13 Neste artigo, as diferenças entre Cuba e Estados Unidos eram exacerbadas e permitiam res-
ponder questões como: para onde os escravos se destinaram após a abolição? Que status pu-
deram obter naquelas sociedades (incluindo status civil, direito de propriedade e voto)? Que
estratégias as classes dominantes foram capazes de utilizar para manter as hierarquias sociais
estabelecidas? Como os escravos e seus aliados lutaram contra isso? (Zeuske; Finzch, 2010).

254
Segunda escravidão e Micro-História: um diálogo possível

midt-Nowara partiu de um indivíduo, George Danson Flinter, um emigrado


irlandês naturalizado espanhol, que escreveu em defesa da escravidão no
Caribe Espanhol entre 1820/30, para analisar o pensamento pró-escravista
no mundo atlântico durante a segunda escravidão.14
Contudo, apesar da qualidade dos estudos mencionados, meu
questionamento se dirige ao objetivo final da proposta em tela: a ela-
boração de uma história mundial da perspectiva do indivíduo. Primeiro, a
Micro-História não é uma história biográfica, um estudo de caso, ou so-
mente uma história na perspectiva do indivíduo. Estamos diante de uma
metodologia que se construiu a partir de múltiplas prerrogativas, como
já foi explicitado. Investigar o pensamento de um indivíduo ou o funcio-
namento diferenciado de uma região escravista em relação a outra traz
um olhar mais singular ao objeto, mas não caracteriza Micro-História.
Segundo, tenho dúvidas de que o resultado final deva ser ne-
cessariamente a construção de uma História Mundial ou Global. Afinal,
como equilibrar estrutura e experiência nessa perspectiva que, no limite,
foge de um ponto fundamental da microanálise que é a estrutura (cons-
trução ou reconstrução) como resultado da pesquisa histórica e do jogo
de escalas e não como seu ponto de partida?15
Neste sentido, penso que outras experiências ainda estão por
vir com o propósito de estabelecer pontes consistentes entre macro
e microestrutura para os estudos da segunda escravidão. Acredito ser
possível um profícuo diálogo entre a segunda escravidão e a Micro-His-
tória, mas não necessariamente com a finalidade de construir uma his-
tória mundial ou global. Isso poderia ocorrer, ou não, de acordo com a
questão e o objeto de pesquisa propostos. A Micro-História certamente
pode contribuir para o estudo de totalidades e estruturas, fundadas
localmente, comunitariamente, nacionalmente, ou mesmo em outros
recortes mais amplos de espaço e tempo. Tais camadas podem ser tra-

14 Para o historiador, a experiência de George Danson Flinter como emigrado na Venezuela, du-
rante a Independência, e seus processos de revolução e contrarrevolução, o tornaram um defen-
sor da escravidão. Para ele, a escravidão era a melhor forma de trabalho, não somente em Porto
Rico e Cuba, mas para todas as colônias espanholas. Seus escritos, publicados em espanhol e
inglês, afirmavam que a escravidão espanhola era mais humana e benevolente, em termos legais,
do que as experiências inglesa e francesa, e, por isso, as revoltas eram bem menos frequentes.
A análise de Nowara demonstra como Flinter se tornou um autor do pró-escravismo na fase
pós-Revolução Francesa, pautando discussões com os abolicionistas ingleses e influenciando
escravagistas do Brasil, Estados Unidos e Império Espanhol (Schimidt-Nowara, 2014).
15 Em resposta à perspectiva da História Global, mas não necessariamente à segunda escravidão
como conceito, Giovani Levi comenta em entrevista que a História Global não é uma nova me-
todologia, mas um alerta à falta de consciência do eurocentrismo por parte dos historiadores.
Portanto, trata-se da defesa da totalidade policêntrica, sem necessariamente uma proposição
metodológica nova. (Oliveira, 2017).

255
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

balhadas na tessitura de histórias globais e de longa duração que, por


sua vez, devem descer ao terreno da experiência pois, caso contrário,
correm o risco de subsumirem os sujeitos da análise histórica. De am-
bos os lados, o jogo de escalas é fundamental.

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259
MICROANÁLISE E SEGUNDA ESCRAVIDÃO: A
NARRATIVA DOS INDIVÍDUOS E A MODERNIDADE
ESCRAVISTA NO VALE DO CAFÉ

Thiago Campos Pessoa

Pensar a segunda escravidão por meio da microanálise, de partida,


nos coloca numa encruzilhada teórica e metodológica sobre o fazer do his-
toriador: é possível trabalhar com um conceito macroanalítico, construído
na perspectiva da Global History, tendo como instrumento de análise os
métodos da Micro-História italiana? Em caso afirmativo, quais seriam os
avanços no estado da arte, no que tange à historiografia em seu sentido
lato, e a da escravidão brasileira, em particular, ao pensarmos processos
globais por meio de trajetórias individuais ou da “sociedade dos indiví-
duos”, como definiu a sociologia de Norbert Elias? (Elias, 1994).
As questões despachadas, longe de serem originais, são compar-
tilhadas por muitos historiadores, que se perguntam sobre a efetividade
da Micro-História na construção de análises totais ou globais. No início do
Terceiro Milênio, o avanço da Global History, em suas múltiplas variações,
reformula o problema (Revel, 2010). A partir de então, para intelectuais
canônicos no campo da microanálise, protagonistas na consolidação do
método na historiografia ocidental, a questão passa a ser o quanto os
procedimentos de redução de escala nos ajudariam a construir uma pers-
pectiva global para determinados processos e suas temporalidades.
Carlo Ginzburg, em Micro-History and World-History, analisa como
a redução da escala pode orientar práticas metodológicas profícuas na
construção de uma perspectiva generalizante da História. Como ferra-
menta de análise, o “fechar do microscópio”, ou seja, a troca de len-
te para uma análise dos detalhes a priori imperceptíveis, permitiria a
projeção de novas perguntas sobre o passado, muitas vezes revelando
questões advindas de resultados inesperados diante de nossa ignorância
empírica (Ginzburg, 2015). A rigor – vale lembrar Carlo Poni –, essa limi-
tação de escala deveria recuar ao microssomo mais individual, ao “nome
próprio”, encarado como espécie de fio condutor de diversas histórias
individuais, que, por serem também coletivas, tornam-se passíveis de

261
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

generalização (Ginzburg, 1989, p. 169-178). Assim, analisando experiên-


cias singulares, conectando histórias individuais e familiares, em vários
contextos em que seus sujeitos tomaram parte, viabilizar-se-ia o acesso
à multiplicidade de processos sociais, seus tempos e espaços, na diversi-
dade de relações sociais que se constituem em torno dessas trajetórias e
significam existências individuais em seu caráter coletivo.
Na passagem ao Terceiro Milênio, por contraste, Jacques Revel
relacionou a apologia por uma história global à perspectiva desenvolvida
por Fernand Braudel e seus pares da segunda geração dos Annales. Assim,
a despeito da ascensão da microanálise no final dos anos 1970 e sua
ressonância avassaladora nas décadas seguintes, “para uma ampla parte
da historiografia da segunda metade do século XX, o modelo dominante
foi o de uma história dos objetos sociais fundada na série e na medida,
quer se trate de fatos econômicos, sociais ou, em último lugar, culturais”
(Revel, 2010, p. 435-436).
Apesar dos extraordinários avanços promovidos pelo método se-
rial francês, é inegável que se relegou a escanteio o nível individual na
História, no mesmo balaio da dinâmica dos eventos, vistos, ambos, como
“as brumas das ondas”, no dizer do próprio Braudel (Burke, 1992, p. 31-
35). Assim, em que pese certa marginalidade ainda hoje persistente, os
métodos da Micro-História apresentam avanços irrefutáveis para o ofício
do historiador. O maior deles é a ênfase na alternância das escalas e nos
efeitos heurísticos resultantes, capazes de revelar dimensões das experiên-
cias históricas imperceptíveis em nível macroanalítico e passíveis de ge-
neralização. Considerando que os processos históricos se configuram em
diferentes níveis e por determinações diversas, “os jogos de escalas”, na
expressão certeira de Revel, permitem a emersão de múltiplas dimensões
de determinadas realidades, evidenciando-se, igualmente, as descontinui-
dades das estruturas sociais e seus diferentes níveis de incerteza.
Francesca Trivellato reitera as perguntas levantadas, se ques-
tionando: há futuro para a Micro-História, em face à virada do final
do século em direção à Global History? A rigor, a historiadora tenta
entender como as reflexões dos seus colegas italianos sobre a relação
entre micro e macro pode provocar uma boa dose de autocrítica nas
práticas e nas certezas das análises globalizantes. Assim, sua ênfa-
se incide, antes, sobre a conciliação da escala micro às perspectivas
e problemas macroanalíticos, do que simplesmente em fazer da Mi-
cro-História profissão de fé. Para os defensores da análise micro, tal
como para Trivellato, a questão passa por recuperar o valor e a impor-
tância heurística do empirismo e do nível da experiência em estudos

262
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

de caso que se valem de métodos que não exclusivamente a seriação


à francesa (Trivellato, 2011).
A valorização da experiência individual como categoria analíti-
ca possibilitou o “excepcional-normal” de Edoardo Grendi, conceito por
meio do qual as regularidades normativas inerentes às contradições das
sociedades no tempo são evidenciadas nas fontes e nos estudos de casos
tidos por excepcionais (Grendi, 2000). Ou ainda com Ginzburg, na con-
versão de histórias individuais em veículos para compreensão da comple-
xidade de determinadas realidades históricas e seus componentes estru-
turais (Ginzburg, 2005). Em ambos os casos, o problema a ser enfrentado
estava na transcendência do individual ao nível das experiências com-
partilhadas, suas regularidades, estruturas, disfunções e incertezas. Em
outros termos, na “sociedade dos indivíduos” de Norbert Elias. A insis-
tência da Micro-História italiana nas agências individuais foi, e continua
sendo, uma clara alternativa aos modelos metodológicos hegemônicos
na segunda metade do século passado.
Efetivamente, como nos ensina Revel, não há hiato entre história
local e global. Tampouco, como afirma Trivelatto, trata-se de hierarquizar
as duas dimensões em círculos concêntricos que se ampliam do menor
para o maior. A proposta sintetizada pela historiadora italiana argumenta
em favor da redução da escala como um caminho metodológico para
conectar micro e macro histórias, pelas próprias relações estabelecidas
pelos indivíduos. A análise da dimensão do vivido permite, portanto,
acessar o nível das mudanças estruturais, da mesma maneira que trajetó-
rias particulares são, por vezes, capazes de personificar valores, ideias e
instituições em transformação.
Nesse sentido, nos interessam as múltiplas relações entre indiví-
duos e estruturas, e, em particular, as estabelecidas entre os membros
da classe senhorial do Império do Brasil e o processo de reerguimento
da escravidão no Oitocentos, definido por Dale Tomich como “segunda
escravidão”. Nesse particular, um problema nada original de pesquisa nos
inquietou: a relação de compatibilidade entre as ideias e práticas liberais,
e o fortalecimento da escravidão no Brasil do século XIX. Para nós, a
questão se colocou pela presença, na memória pública e na historiogra-
fia, de Joaquim Breves, um dos maiores – se não o maior – senhor de
escravos do Império do Brasil na segunda metade do Oitocentos. O que
motivara aquele homem, a partir de meados dos anos de 1860 – quando
a escravidão era instituição moribunda no plano internacional e parecia
condenada no Império –, a continuar investindo em um complexo de fa-

263
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

zendas abarrotado de africanos e seus descendentes, que, segundo seus


contemporâneos, eram contados na casa dos três mil escravizados?
Em certo sentido, questão bastante semelhante foi formulada há
mais de duas décadas pela tese brilhante e monumental de João Fragoso.
Recentemente o autor voltou à carga:
Um dos resultados que me surpreenderam quando
terminei a pesquisa, e que ainda hoje desperta mi-
nha curiosidade, é o fato de os barões de café te-
rem permanecido fiéis a suas práticas empresarias
rotineiras até os estertores da agricultura escravista
(...) Alguns grandes lavradores de outras regiões,
nos anos de 1860 e 1870, começaram a transferir
suas aplicações da produção escravista para apólices
públicas ou atividades com menor risco, como imó-
veis. (...) Este não foi o caso da maioria dos empre-
sários de Paraíba do Sul. Eles continuaram nas déca-
das de 1880 a investir no café e no cativeiro. Além
disso, tais empresários permaneceram valendo-se
das práticas do capital mercantil, como a usura, para
alimentar suas plantations cafeeiras com terras e ca-
tivos; ambos subtraídos de lavradores endividados
(Fragoso, 2013, p. 17-18).

A inquietação do autor segue baseada na concepção de que a


grande lavoura escravista respondia à “lógica de uma hierarquia social de
Antigo Regime”, possibilitando “o retorno à produção do sobretrabalho
apropriado pelo capital mercantil nas diversas formas de produção” (Fra-
goso, 2013, p. 14-15). Resumidamente argumenta-se que aquelas fazen-
das estariam atreladas à praça mercantil do Rio de Janeiro, caracterizada
pelo predomínio das aplicações rentistas na Corte, pelo reduzidíssimo
espaço das manufaturas e do sistema fabril, assim como pelo elevado
peso da intervenção do Estado na política e na economia (Fragoso, 2015,
p. 157-167).1 Esses elementos articulados acabavam por configurar uma
economia “pré-industrial” que, no limite, seguia como antítese da eco-
nomia capitalista.2 Da mesma forma, o escravismo, até seus estertores,

1 Segundo o autor, “os números apresentados sugerem que se prefira imobilizar capital em
prédios – atitudes características do Antigo Regime – do que abrir empresas por ações, signo
de um possível capitalismo” (Fragoso, 2013, p. 160).
2 A crítica de Thompson ao termo pré-industrial parece reveladora: “É uma queixa comum que os
termos ‘feudal’, ‘capitalista’ ou ‘burguês’ sejam demasiado imprecisos para serem úteis numa
análise séria, abrangendo fenômenos demasiado vastos e díspares. Entretanto, agora encon-
tramos constantemente o emprego de novos temos, como ‘pré-industrial’, ‘tradicional’, ‘pater-
nalismo’ e ‘modernização’ (...) Com um cientificismo enganador, esses termos se apresentam
como se não contivessem julgamento de valor. Também possuem estranha temporalidade.

264
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

era visto “distante das relações sociais baseadas no trabalho assalariado,


e, portanto, da produção de mais valia”. Nesse sentido, era justamente
esse caráter, articulado aos expedientes do capital mercantil, aos quais a
economia do Centro-Sul se vinculava, que justificavam, em grande parte,
a permanência dos “barões de café fluminense na exaurida agricultura
extensiva” (Fragoso, 2013, p. 180).3
Nessa nova análise, Fragoso parece evitar muitos conceitos em-
pregados em trabalhos anteriores. As ideias de “arcaico” ou de “mercado
imperfeito” seguem ausentes na qualificação da “elite agrária” oitocen-
tista.4 Entretanto, ao indicar a emergência de uma nova elite econômica
no pós-1850, atrelada, essencialmente, ao mercado financeiro, esse sim
tido por “capitalista”, em substituição “[a]os negociantes de grosso trato
de finais do Setecentos” (Fragoso, 2013, p. 173), os grandes senhores do
Vale seguem presos às lógicas de investimentos de uma sociedade de An-
tigo Regime, ou seja, continuam a reverter suas fortunas para atividades
rentistas e, quando se lançam ao mercado usurário, seu objetivo final
continua sendo o acúmulo de terras e de mais escravos. Na visão do au-
tor, entre os séculos XVII e XIX, havia um processo de longa duração no
qual as elites seiscentista e oitocentista mantinham em comum a “ideia
de honra, entendida como qualidade social aristocrática de Antigo Regi-
me (capacidade de mando em uma sociedade estamental)”. Assim, “os
negociantes de grosso trato se transformaram em barões de café, tendo
como móvel aquela preocupação, enquanto a antiga nobreza quinhentis-
ta baseava sua vida naquela ideia de honra” (Fragoso, 2013, p. 42).
Por meio da alternância de escalas, construída na análise de tra-
jetórias individuais e entrelaçada a um plano macrossocial específico,
entendido como dimensão da ascensão e queda da segunda escravi-
dão, chegamos a conclusões diametralmente opostas àquelas encon-
tradas por Fragoso. Em trabalho recentemente concluído, analisamos

Desgosto particularmente de ‘pré-industrial’, uma tenda cujas pregas espaçosas acolhem lado
a lado os fabricantes de roupas do Oeste da Inglaterra, os ourives persas, os pastores guate-
maltecos e os bandoleiros corsos” (2005, p. 27). Para crítica semelhante, cf. Marquese (2013,
p. 223-253).
3 Embora o autor não seja assertivo nessa antítese, a leitura do terceiro capítulo Ensaio sobre
a economia da Corte e sua elite empresarial entre 1850 e 1880 indica que há uma equivalência
direta entre “economia industrial” e economia capitalista. Da mesma forma que o conceito de
capitalismo segue pautado na ideologia do mercado autorregulado, na definição de mercado
assalariado e no conceito de mais-valia (Fragoso, 2013, p. 157-178). Sobre a perspectiva de
Marx e o reconhecimento da produção de mais valia nas sociedades escravistas cf. Pires; Costa
(2010, p. 13-15). Para uma a crítica à ideologia do mercado autorregulado cf. Polanyi (2012).
4 Ao que parece deram lugar a “continuidades setecentistas” e à “economia pré-industrial” (Fra-
goso, 2013, p.162; 167).

265
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

como a montagem e manutenção de um amplo complexo de fazendas


escravistas no coração do vale do café esteve em profunda sintonia
com o desenvolvimento do capitalismo no plano da economia-mundo,
não significando, ao seu tempo, o resultado de um projeto arcaico,
destituído de racionalidade e cálculo econômico. Tampouco os prota-
gonistas daquela história – José e Joaquim Breves – representavam a
personificação do atraso brasileiro ao investirem suas vidas e fortunas
no reerguimento da escravidão no Império. Pelo contrário, levaram ao
limite a escravidão como mola mestra do patrimônio que constituíram
(Pessoa, 2015; 2018).
Os irmãos Breves nasceram no início do Oitocentos, filhos de
abastada família, possuidora de sesmarias na região de S. João do Prínci-
pe, hoje municípios fluminenses de Rio Claro e Piraí. Atuaram ativamente
na reabertura do comércio negreiro na clandestinidade, enviando tum-
beiros seus ao litoral centro-ocidental africano, e mantendo em Ambriz
representantes comerciais. Nas águas de Mangaratiba a Angra dos Reis,
entre os portos de cabotagem que escoavam a produção de café do Vale,
ergueram fazendas que funcionavam como portos clandestinos, estru-
turados para garantir a logística de finalização dos empreendimentos
negreiros. Agiram também politicamente, apresentando na Assembleia
Provincial Fluminense, juntamente com outros senhores do Vale, no iní-
cio da década de 1840, projeto que visava a revogação da lei de 7 de
novembro de 1831. Mesmo após a Lei Eusébio, mantiveram-se no ilícito
trato até os navios de guerra da Marinha Brasileira atracarem em suas
praias, e os reais marinheiros, juntamente com a polícia da província,
devassarem suas fazendas. Joaquim, o irmão liberal, foi desmoralizado
na imprensa da época. José, o conservador, recorreu a seu amigo Eusébio
de Queiroz, e o caso foi silenciado nos meandros dos laços pessoais. O
fim do tráfico representou para ambos, assim como para fração da classe
senhorial, especialmente a hegemônica, uma ampla derrota política, mas
nem de longe, naquele momento, era sinônimo de condenação à escravi-
dão brasileira (Pessoa, 2015; 2018).5
O período aberto pela formação do complexo cafeeiro e pelo
reerguimento do tráfico na clandestinidade segue ainda como hiato
em algumas análises sobre a economia brasileira em meados do Oito-

5 A relação entre o tráfico de africanos na ilegalidade e a estruturação do complexo cafeeiro


no sul fluminense é atualmente objeto do projeto Ilícitas fortunas: o tráfico de africanos na mon-
tagem do complexo cafeeiro (c1831-c.1855), em execução no PPGH-UFF no âmbito de estágio de
pós-doutoramento financiado pela Faperj. Seus resultados parciais foram publicados em um
capítulo e um artigo de minha autoria em destaque nas referências bibliográficas indexadas ao
fim do texto.

266
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

centos. No estudo mais recente de Fragoso, o recorte adotado para o


aparecimento de uma nova elite oitocentista é o fim do comércio de
africanos em escala atlântica em 1850 (Fragoso, 2013, p. 157-178). O
autor segue interpretação clássica de liberação dos capitais diante do
fechamento em definitivo do tráfico. Entretanto, trajetórias como a dos
irmãos Breves, entrecortadas por muitas outras, em diversas e dife-
rentes inserções sociais, nos fazem pensar o início da década de 1830
como um tempo de descontinuidade relevante para a economia brasi-
leira. Ao desconsiderá-lo, na amplitude da primeira metade do século
XIX, compromete-se a compreensão efetiva de mudanças contextuais
relevantes na redefinição dos arranjos políticos e econômicos daquela
época. Isso porque, se a lei de 1831 desarticulou e reorganizou as re-
des de negócio do tráfico nas duas margens do Atlântico, e se aqueles
homens de “grossa aventura” que monopolizavam o crédito, os tum-
beiros e as companhias de seguro não fossem mais, em sua maioria,
encontrados naquelas redes (Ferreira, 1996), uma nova elite não teria
se configurado a partir dos anos de 1830, em torno da reorganização
do tráfico ilegal e da montagem do complexo cafeeiro? E isso, não só
em 1850, quando esse vínculo já se encontrava estruturado, estando
em curso, aí sim, um outro processo de realocação dos investimentos.
O quanto essa dinâmica do comércio clandestino de africanos, articu-
lada à economia-mundo, tornou o processo de formação da economia
cafeeira mais complexo, nas múltiplas relações entre os novos agentes
do tráfico, a elite agrária, e a própria reconfiguração da praça do Rio de
Janeiro a partir daquela década?6 Por último, mas não menos impor-
tante, em que medida a inserção de senhores como os Breves no ilícito
trato materializa, na experiência histórica pretérita, um nível de com-
prometimento muito mais qualificado da classe senhorial hegemônica
no Oitocentos brasileiro com a abertura e manutenção do comércio
negreiro na ilegalidade?
Não parece gratuito o fato de um dos maiores expoentes dessa
nova elite financeira, João Martins Cornélio dos Santos, diretor-fundador
do banco mais importante da Corte, depois do Banco do Brasil, tivesse se
casado com Cecília de Souza Breves, filha do maior escravista do Impé-

6 Luís Henrique Tavares foi categórico ao relacionar o tráfico à economia capitalista. Segundo
ele: “Conclusão: nada disso podia ficar no nível dos comerciantes de escravos no Brasil ou
em Cuba, esses negreiros de todas as nacionalidades; nem apenas nas iniciativas pessoais de
um Manoel Pinto da Fonseca, de um José Bernardino de Sá, de um Joaquim de Souza Breves,
grandes negreiros no Rio de Janeiro dessa época; (...) Em verdade só poderia ter se dado como
se deu: no conjunto complexo de enlaces que tinham suporte nas grandes praças comerciais
da Europa e dos Estados Unidos” (1988, p. 29).

267
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

rio, tornando-se, assim, genro do comendador Joaquim Breves.7 Nem que


João Henrique Ulrich, outro integrante dessa elite empresarial do pós-
1850, tenha sido o principal agente dos Breves nos negócios negreiros
em África, dono de barracão armado para o tráfico ao norte de Luanda
em novembro de 1840 (Pessoa, 2018b). Segundo os jornais da Corte,
Ulrich passara de pajem de Breves, a negociante negreiro na costa de
Ambriz, onde teria construído as bases de sua imensa fortuna. Nos anos
de 1850, com sua trajetória silenciada, frequentava os círculos fechados
da Corte e comandava o aristocrático Cassino Fluminense, causando indig-
nação àqueles que conheciam sua biografia, sem que de fato seu passado
nada ilibado impedisse sua nobilitação no Brasil e em Portugal (Pessoa,
2018b). Ou ainda que no Banco Comercial e Agrícola figurassem como
principais acionistas, e, por isso, membros da diretoria, “o presidente
João Evangelista Teixeira Leite (Barão de Vassouras), e cabeça da família
Teixeira Leite, conjuntamente com os suplentes José Frazão de Souza
Breves e Antônio Vidal Leite Ribeiro, das famílias Souza Breves e Leite
Ribeiro” (Guimarães, 2007, p. 25-26), ambos potentados do Vale do Paraí-
ba. Frazão era ninguém menos que o filho mais velho de Joaquim Breves,
sócio do pai na firma Souza Breves & Cia.
Assim, a defesa de que a segunda metade do século XIX inaugu-
rou a edificação de uma nova elite, “acima do comércio e do processo
produtivo”, uma elite “capitalista” (Fragoso, 2013, p. 157-178), porque
essencialmente atrelada aos empréstimos, à liquidez da economia, e des-
vinculada do escravismo como opção privilegiada de investimento, pare-
ce não se adequar à observação focada nos indivíduos e na experiência
concreta, somente evidente no processo de redução de escala.
Atualmente, em projeto ainda em desenvolvimento, analisamos a
hipótese de que algumas das principais fortunas imperiais, constituídas na
esteira da expansão do complexo cafeeiro, tenham se projetado articulan-
do aquela dimensão à reabertura do comércio negreiro na clandestinidade,
num processo de rearticulação atlântica imposto pelo abolicionismo in-
glês. Nesse sentido, a saída de cena dos grandes traficantes, que atuavam
na praça do Rio de Janeiro entre 1790-1830 (Florentino, 1995; Ferreira,
1996; 2012), cedeu espaço a novos agentes, em parte ainda desconhe-
cidos da historiografia, mas que circulavam na dimensão atlântica como
negociantes de escravos, grandes fazendeiros, investidores em ações,

7 Segundo Fragoso, “Além dos já citados nesta seleta faixa de fortuna apareciam senhores como
João Martins Cornélio dos Santos, que em 1870 era diretor de uma companhia de seguros
chamada de Garantia, além de estar envolvido com o Banco Comercial do Rio de Janeiro, que
seria o segundo mais importante da cidade em 1876” (2013, p. 163; 169).

268
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

companhias de seguro e agentes do capital financeiro. Para além dos ca-


sos já citados, vale curta referência à trajetória de José Bernardino de Sá,
português pobre que, de jovem caixeiro, passou a Visconde de Vila Nova
do Minho e um dos homens mais ricos do Império do Brasil. A princípio,
trajetórias como essas não pareciam exceção em meio ao corpo de nego-
ciantes estabelecidos no Rio de Janeiro no início do Oitocentos (Martinho;
Gorenstein, 1992). Chama atenção, no entanto, que, no caso de Sá, essa
projeção tenha se dado articulando a ilegalidade do tráfico no Atlântico,
nas costas do Brasil e da África, contando com fazendas de recepção de
africanos no litoral fluminense e paulista, e com barracões próprios na cos-
ta de Ambriz. O nível de envolvimento de Bernardino de Sá no ilícito trato
parece emblemático, sendo a ele atribuída quase meia centena de viagens
negreiras na ilegalidade, segundo os dados do The Trans-Atlantic Slave Trade
Database – http://www.slavevoyages.org (Pessoa, 2018c).
Figuras como a do Visconde de Vila Nova do Minho, nobilitado
em Portugal em 1º maio de 1855, dias antes de morrer, a dos irmãos co-
mendadores José e Joaquim Breves, a de João Henrique Ulrich e de tantos
outros senhores-traficantes, ou mesmo senhores que estruturaram suas
fortunas diretamente vinculadas à redução de milhares de africanos li-
vres à escravidão durante a estruturação do complexo cafeeiro, estavam,
mesmo sem saber, vinculados a uma estrutura histórica que operava com
o tráfico atlântico e a escravidão como ativo econômico altamente lucra-
tivo, sem que isso, necessariamente, negasse o potencial de hierarquiza-
ção e mobilidade herdado de uma sociedade historicamente escravista.
Portanto, homens como aqueles não estavam no descompasso da mo-
dernidade capitalista da economia-mundo do Oitocentos. Pelo contrário,
construíam novos significados no correr do seu desenvolvimento. Signi-
ficados esses particularmente contraditórios numa sociedade na qual a
escravidão era conjugada com a racionalidade econômica do seu tempo.
Sugerimos, com isso, que, se de fato uma nova elite surgia no
contexto aberto com a montagem e expansão do complexo cafeeiro, pa-
ralela à reorganização socioeconômica das redes de negócio do tráfico,
conjugou de maneira economicamente hábil, porque sintonizada com
a economia-mundo de época, a reversão de seus investimentos à am-
pliação e concentração da escravidão a partir dos anos de 1830. Assim,
ainda que a praça do Rio de Janeiro fosse marcadamente pré-industrial,
isso não significava que os agentes que produziam sua dinâmica agissem
unicamente pautados em uma lógica de Antigo Regime, tampouco que
tivessem apartados da economia-mundo capitalista. Em que pesem as
determinações sociais, políticas e culturais, para essa nova elite do café

269
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

a escravidão, antes de se tornar o “cancro roedor do Império”,8 era um


investimento viável, racional, e há quem diga até bastante lucrativo, pelo
menos até o final da década de 1870.
Relembremos, nesse sentido, a abordagem clássica de José de
Souza Martins, para quem os donos das grandes lavouras eram “fazen-
deiros-capitalistas” porque, para além das relações de produção não ca-
pitalistas, circunscritas ao universo das unidades agrícolas, mantinham
intensas relações de troca com os agentes do capital, casas comissárias,
ensacadores de café e instituições de crédito (Martins, 1998, p. 14-15).
Embora tal hipótese estivesse pautada no colonato como “relação não
capitalista de produção”,9 sua formulação, refinada nos conceitos mar-
xistas, trouxe para primeiro plano “as formas de disseminação do capita-
lismo” e sua acepção numa escala global.10 A despeito de certa dicotomia
entre o mundo das fazendas e um sistema exógeno do capital em cons-
trução, Martins reconhece ambas as dimensões, diferenciando a dinâmi-
ca da circulação das relações sociais de produção.
A manutenção de amplas escravarias em meados do Oitocentos,
em um aparente contrassenso ao seu tempo, configurou um dos proble-
mas de pesquisa mais incandescentes na historiografia norte-americana
dos anos 1970, sobretudo, após a publicação de Time on the cross: the
economics of American negro slavery, de Robert W. Fogel e Stanley L. Enger-
man (1974). Alvo de densas críticas, sobretudo por quebrar severamente
os protocolos acadêmicos e pelo conteúdo estritamente quantitativo dos
métodos e da análise, as hipóteses de Fogel e Engerman, assim como
a questão norteadora daquela obra foram deixadas no armário da his-
toriografia brasileira. O problema central de que a escravidão não era
uma instituição economicamente moribunda em quase todo o século XIX
passaria quase incólume aos debates brasileiros nas últimas três décadas,
não fossem duas obras de envergadura colossais, produzidas no final da
década de 1970: as teses de Robert Slenes e Pedro Carvalho de Mello
(Slenes, 1976; Mello, 1977).

8 A expressão é do Barão de Paty do Alferes (Silva, 1984).


9 “Minha hipótese é a de que o capitalismo, na sua expansão, não só redefine antigas relações,
subordinando-as à reprodução do capital, mas também engendra relações não capitalistas
iguais e contraditoriamente necessárias a essa reprodução. Marx já havia demonstrado que
o capital preserva, redefinindo e subordinando relações pré-capitalistas” (Martins, 1998, p.
19-20).
10 Segundo Martins: “A primeira etapa da expansão do capitalismo é a produção de mercadorias
e não necessariamente a produção de relações de produção capitalista (...) Estou, portanto,
trabalhando com a premissa de que a mercadoria dá um caráter mundial ao capitalismo” (Mar-
tins, 1998, p. 21).

270
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

Discutindo com aqueles que encontravam uma suposta mentali-


dade pré-capitalista entre os senhores de escravos, ou que imputavam a
plantation e ao escravismo o atraso no desenvolvimento do capitalismo,
os autores asseveraram que “a escravidão não foi, então, um sistema de
trabalho intrinsecamente menos racional do que a mão de obra livre”
(Slenes; Mello, 1980). Guardando as margens de imprevisibilidade dos
processos históricos, Slenes e Mello demonstram que o crescimento da
escravidão nas zonas de plantation seguiu um cálculo econômico racio-
nal, no qual o cativo figurava como ativo mais atraente do que outras op-
ções de investimento abertas no contexto da segunda metade do século
XIX. Em seus próprios termos:
A taxa média de retorno do investimento em escravos
do sexo masculino com idade entre 20 e 29 anos foi
de 13% no triênio 1870-1872; 12% no 1873-75; 15%
no 1876-78 e 11,5% no 1878-81. Estas taxas foram
comparadas ao valor de 10% para a taxa alternativa
de retorno – estimada com base em relatórios gover-
namentais, hipotecas e jornais – que um fazendeiro
de café poderia obter caso aplicasse seu capital em
outras modalidades de investimento que não escra-
vos no período 1871-88 (...) Os resultados mostram
que o capital investido em escravos era pelo menos
tão remunerativo para os fazendeiros de café quanto
os usos alternativos que esse capital pudesse ser em-
pregado. Esses resultados são bastante significativos,
pois os preços reais de escravos entre 1871 e 1881
continuavam crescendo, o que indica que os fazen-
deiros de café estavam obtendo uma taxa positiva de
ganhos de capital no investimento em mão de obra
escrava (Slenes; Mello, 1980, p. 102).

Apesar das críticas aos métodos de Fogel e Engerman, as as-


sertivas de Robert Slenes e Pedro Carvalho de Mello seguem baseadas
em profundas análises demográficas e econômicas, mas seus resultados
aparecem quase sempre apartados dos debates sobre a escravidão no
Império do Brasil. Não retornaremos aos números nem ao método ado-
tado. Interessa, em particular, uma de suas conclusões: os fazendeiros
do médio vale cafeeiro aplicavam seus recursos na escravidão “(...) tal
como qualquer outro grupo empresarial orientado para o lucro”, e o
obtinham em graus satisfatórios, a despeito das suposições sobre a
superioridade produtiva do trabalho livre (Slenes; Mello, 1980, p. 102).
Nesse tempo, a perspectiva de adquirir escravos por prestígio, ideal
aristocrático e reprodução de status senhorial talvez fosse menos ou

271
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

tão importante quanto a real lucratividade produzida pela economia da


plantation escravista, diante dos fluxos do café no quadro da economia-
-mundo ocidental.
Salvo exceções, até o final da década de 1870, a elevação do pre-
ço do café e a expansão da malha ferroviária potencializavam os ganhos
dos fazendeiros do Vale. Por sua vez, esses elementos impulsionavam a
compra de mais escravos, em um contexto favorável aos grandes fazen-
deiros do Sudeste cafeeiro. Como resultado, do pós-1850 até o início
da década da Abolição, as informações censitárias e os índices do fluxo
de escravos apontam para o crescimento econômico da grande lavoura
escravista.
Os dados do mercado de escravos não deixam dúvidas: a deman-
da de cativos seguia aquecida para os municípios do Vale a um ritmo de
1,6% ao ano, o que representava um pouco mais da metade da média de
crescimento para as décadas de 1840-50, que girava em torno de 2,9% ao
ano (Slenes, 1986, p. 111). O aquecimento da demanda e a elevação dos
preços dos cativos, até o final da década de 1870, são indicativos de que
aquele investimento estava antes orientado para o lucro, do que essen-
cialmente atrelado a estratégias de “prestígio”.11 Na maioria das áreas
cafeeiras, somente no correr da década de 1880, a “pressão abolicionis-
ta” inviabilizaria gradativamente o investimento em cativos, tornando-o,
definitivamente, uma instituição economicamente moribunda (Mello,
1978, p. 45-49). Assim, o abandono da escravidão como investimento
econômico era antes resultado dos embates sociais, políticos e morais,
do que fruto da incompatibilidade ontológica entre seu desenvolvimento
e a economia liberal.
Essas questões, bastante caras à geração emergente na década
de 1970, foram totalmente desconsideradas nos debates historiográficos
das décadas seguintes no Brasil. A crítica ao marxismo estruturalista e
aos paradigmas construídos em torno do “modo de produção escravista

11 Segundo Mello, “- se existiam alguns fazendeiros demandando escravos por motivos de prestí-
gio ou ostentação, a demanda agregada desta categoria de donos de escravos era muito limitada
e incapaz de elevar o preço de mercado de escravos acima do nível ditado por motivos normais
de rentabilidade. - Se para a maioria dos fazendeiros de café o prestígio social fosse parte sig-
nificativa da sua demanda de escravos, o preço destes estaria acima do nível que existiria, caso
considerações econômicas apenas estivessem presentes, e a taxa de retorno seria mais baixa do
que a de ativos com risco equivalente, a diferença entre as duas sendo o prêmio pago pelo con-
sumo conspícuo. - Se os fazendeiros de café tinham uma mentalidade pré-capitalista e estavam
limitados por atitudes tradicionais e um comportamento paternalista, isso não os impedia de
responder aos incentivos de ordem econômica e de alocarem seus recursos como faria qualquer
outro grupo orientado para o lucro e possuindo uma mentalidade capitalista” (Mello, 1978, p.
37-38).

272
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

colonial”, ainda que essenciais à época, levaram junto abordagens semi-


nais sobre a escravidão brasileira em sua fase mais robusta e contraditó-
ria (Marquese; Salles, 2016, p. 99-161). Vale atualizá-las frente ao desafio
de compreender como a crise de dominação política que acometeu toda
a América detonou mudanças fundamentais nas instituições sociais, pro-
vocando “o desmantelamento da escravidão colonial e a construção de
novos sistemas escravistas” que avançaram em um tempo promotor de
sua força e semeador de seu declínio (Blackburn, 2002, p. 16-40).
O reconhecimento dessa reestruturação em um novo tempo mar-
cado, igualmente, pelas condições de sua expansão e fortalecimento de
sua crítica, encontra na ideia de segunda escravidão sua melhor defini-
ção. O conceito, tecido na linha da história social por Dale Tomich, segue
uma apreensão refinada das incoerências normativas que caracterizam o
devir histórico do universo escravista. Sendo assim,

(...) o trabalho escravo e sua abolição não podem


ser vistos como um processo linear, mas sim como
relações complexas, múltiplas e qualitativamente
diferentes dentro dos processos globais de acumu-
lação e divisão do trabalho (...) [Portanto], longe de
ser uma instituição moribunda durante o século XIX,
a escravidão demonstrou toda sua adaptabilidade e
vitalidade” (Tomich, 2011, p. 95-96).

Baseado em Immanuel Wallestein e em sua perspectiva glo-


bal, o entendimento da economia capitalista se dá pela “coexistência
e interdependência sistemática de uma multiplicidade de formas de
trabalho, tanto assalariado quanto não assalariado, que compreende
o sistema mundial moderno” (Tomich, 2011, p. 58). Para Wallestein, a
persistência de diferentes formas de trabalho compulsório configura fa-
tor basilar do próprio desenvolvimento do capitalismo, que não segue
definido pela expansão da força de trabalho assalariada, nem tampouco
pela ilusão do mercado autorregulado. Assim, na lógica de desenvolvi-
mento da economia-mundo oitocentista, o investimento social e eco-
nômico no escravismo encontrava lugar nas possibilidades abertas na
economia capitalista e na relação entre centro e periferia no processo
de acumulação de capital.
O conceito definido por Tomich surge como importante instru-
mento de análise para explicar o processo de montagem e expansão dos
complexos de fazendas no Vale do Paraíba e no oeste paulista, inseridos
em um contexto maior, no qual a escravidão se ampliou em áreas peri-

273
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

féricas a fim de suprir a demanda gerada em torno da crescente procura


por algodão, açúcar e café.12 Assim, a reabertura na clandestinidade do
comércio atlântico de africanos no Império do Brasil e a consequente
constituição de comunidades escravas ampliadas, integradas a conjuntos
de fazendas de propriedade de poucas famílias, encontravam correspon-
dentes em um processo maior de reestruturação das relações de produ-
ção na economia-mundo, fosse no vale do café brasileiro, nas haciendas
cubanas ou nas plantations do Sul dos Estados Unidos.
Em síntese, as questões arroladas foram construídas no trabalho
cotidiano e sistemático com os irmãos Breves e seus complexos de fazen-
das, e ampliadas recentemente com a análise ainda em curso de outras
trajetórias de senhores-traficantes. Para tanto, nos valemos de diferen-
tes fontes, de inventários a processos criminais, registros que sustentam
análises advindas da construção de séries documentais e abordagens
qualitativas, esclarecedoras da dinâmica social (Pessoa, 2015, 2018).
No entanto, como evidenciamos, os problemas essenciais de pes-
quisa estavam no nível das escolhas individuais e seus condicionamentos
na sociedade dos indivíduos. Para enfrentá-los, na fuga incessante do ana-
cronismo do presente, ou daquele colocado às avessas, fez-se fundamen-
tal a alternância de escalas, entre as experiências concretas, perceptí-
veis nas trajetórias individuais, e o nível macro analítico, informado pelo
fortalecimento da escravidão no Brasil, enquanto o Estado Imperial se
constituía como nação e redefinia seu espaço geopolítico e econômico
na própria economia-mundo do Oitocentos.
Entender o porquê de realidades como a encontrada na casa
de José Breves, a famosa fazenda do Pinheiro, com seus 400 escravos
em plena década da abolição, era o mote do problema. Tratá-lo em sua
complexidade exigiu que jogássemos com as escalas e, por conseguin-
te, que operássemos com a análise micro numa perspectiva global. Isso
porque aquele nível analítico envolvia um espaço geográfico e uma rea-
lidade transnacional, definido a posteriori nos quadros analíticos da se-
gunda escravidão. Nessa cartilha, a história dos indivíduos, suas redes,
contradições e incertezas contribuem sobremaneira para a miragem de
uma história total, à moda dos Annales, e, igualmente, para entendermos
a complexidade de processos históricos globais em suas múltiplas di-

12 Dessa forma, “a persistência de relações não assalariadas não é vista simplesmente como uma
‘resistência’ dos grupos feudais, (semifeudais ou quase feudais) ao avanço do capitalismo, mas
sim com uma característica definidora do sistema”. Sua expansão “acarreta a incorporação
diferencial de várias formas de ‘controle do trabalho’ e não a generalização do trabalho assa-
lariado” (Tomich, 2011, p. 83).

274
Microanálise e segunda escravidão: a narrativa dos indivíduos e a modernidade escravista no vale do café

mensões, superando, ou evitando, estendermos abstrações teóricas para


além do nível das experiências históricas.

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278
A SEGUNDA ESCRAVIDÃO: O
RETORNO DE QUETZALCOATL?

Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

Dale Tomich, o autor do conceito de segunda escravidão, em seu


artigo A ordem do tempo histórico, defendeu o diálogo entre abordagens
historiográficas diversas. Nomeadamente, referiu-se, de um lado, às que,
afinadas à concepção braudeliana de temporalidade plural, assumem uma
escala macrocontextual (como é o caso da historiografia da segunda es-
cravidão), e, de outro, a Micro-História, definida pela metáfora de uma
análise microscópica, que toma o local ou o particular como ponto de
partida e explora vivências individuais (Tomich, 2011, p. 38-51).
Ao partir de um estudo intensivo da documentação, a microaná-
lise evidencia relações e fenômenos particularizados no evento e de cur-
to prazo – dimensão temporal depreciada e negligenciada pelo modelo
original de Braudel –, que, de outra maneira, permaneceriam ocultos,
encapsulados, esquecidos na noite dos tempos. Mas, ao invés de refutar
a perspectiva do tempo plural, esse procedimento (ou experimento como
preferem alguns) pode amplificar a sua complexidade, preenchendo a
lacuna, testando os efeitos e as limitações da big picture. Por outro lado, a
Micro-História, ao dialogar com outras dimensões do tempo (longa dura-
ção e conjuntura), pode também adensar o seu campo de possibilidades,
sustentando a variação de escalas e situando o local e o particular em
movimentos históricos mais abrangentes, de maior duração, que ajudem
a explicar dinâmicas econômicas, tradições, sistemas normativos e assim
por diante. Este é, em linhas bem gerais, o argumento central de Tomich.
Antes de refletir mais diretamente, seguindo esta linha, sobre
a maneira como Micro-História e segunda escravidão poderiam efetiva-
mente dialogar, ou melhor, compor um repertório analítico integrado
com vistas a um melhor entendimento da escravidão no Brasil e no es-
paço atlântico ao longo do século XIX, gostaria de refletir brevemente
sobre as reservas em relação ao conceito de segunda escravidão.
A tarefa é peculiar, já que, até onde sei, ninguém formulou crí-
ticas consistentes em relação a essa concepção, por escrito, em algum
estudo monográfico, livro ou artigo. Parece a alforria onerosa na longa

279
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

duração do escravismo brasileiro: permanece na esfera do costume. Via


de regra, essas críticas são vocalizadas em congressos, debates internos
de grupos de pesquisa ou em bancas de mestrado e doutorado. Por ve-
zes, alguém reconhece as mudanças às quais a categoria se refere, mas
com relutância em acolher a conceituação, referindo-se “ao que alguns
autores chamaram de ‘segunda escravidão’” (Lima, 2015, p. 585). Há até
quem admita integralmente a sua validade, mas queira lhe atribuir uma
conotação autoral, efetuando uma tradução mais “precisa” – “segundo
escravismo” (Chalhoub, 2012, p. 43).
O certo “mal-estar na civilização” historiográfica nacional em re-
lação à abordagem da segunda escravidão se deve aos fundamentos de
duas de suas principais vertentes, a saber, a linha de estudos derivada do
programa de história agrária da Universidade Federal Fluminense, que
tem como vértice a obra de João Fragoso e Manolo Florentino, O arcaísmo
como projeto, e a história social da escravidão capitaneada pela Universi-
dade Estadual de Campinas (Fragoso; Florentino, 2001; Chalhoub, 1990;
Marquese, 2013).
Tal como a Micro-História, na Itália, ambas representaram reações
à essência da história serial da segunda geração da Escola dos Annales e ao
marxismo dos anos 1930-1960, os quais privilegiavam o grande número
e as regularidades em detrimento do particular; os laços de dependência
da América com a Europa e o centro do capitalismo em detrimento de
dinâmicas e nexos locais; a coletividade em detrimento do indivíduo.
Tanto as pesquisas sobre a escravidão da Escola de São Paulo quanto
os estudos coloniais que partiam do paradigma pradiano do sentido da
colonização, atribuíam importância menor, segundo os novos anseios, ao
mercado interno e às especificidades regionais, promovendo, como diria
Ginzburg, uma “equalização dos indivíduos” (Ginzburg, 1993, p. 18-21).
Por um lado, buscaram-se práticas econômicas, articulações po-
líticas e redes de sociabilidade que escapavam do fluxo para o exterior
orientado pelo estatuto colonial e, mais tarde, pela posição subordinada
do Brasil nas relações econômicas internacionais. Por outro, estudou-se
a agência escrava por meio da perspectiva thompsoniana, de uma história
vista de baixo e em confluência com proposições como as de Ginzburg e
Poni – que defendiam que o nome próprio, o marcador individual, fosse
o fio condutor da história social – e de Clifford Geertz, pela perspectiva
de “descrição densa” (Ginzburg; Poni, 1979; Geertz, 2008, p. 181-190).
Ambos os campos, pautados em um exame intensivo da documentação e
com resultados bastante sólidos.

280
A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl?

Com efeito, a segunda escravidão representa o fantasma dos


natais passados de toda uma geração de pesquisadores ainda ativos e
de seus continuadores. Incorporar tal conceito e a perspectiva analítica
subjacente desponta no horizonte como uma forte ameaça de retroces-
so, uma capitulação diante de um inimigo que há décadas dava-se como
vencido, o soterramento dos protagonismos individuais e das especifici-
dades regionais frente aos imperativos da economia-mundo capitalista
e dos avanços das fronteiras das mercadorias de exportação. Seria algo
como o retorno de Quetzalcoatl para tomar de volta seu reino das mãos
dos mexicas.13
Cumpre destacar que o texto original de Dale Tomich, publicado
em 1988, A “segunda escravidão”, é um (curto e denso) estudo de história
econômica, que situa o trabalho escravo nas transformações do capitalis-
mo, na Era Industrial, considerando essencialmente o remanejamento da
produção de commodities com sua alocação maciça e inédita no sudeste
do Brasil (café), no ocidente da ilha de Cuba (açúcar) e no Sul dos Esta-
dos Unidos (algodão). Não leva em conta a multiplicidade de relações de
escravidão nas macrorregiões ou o peso de outras esferas da realidade,
como a política, o direito e a cultura. Muito menos reflete sobre o campo
de possibilidades para a ação dos sujeitos históricos no novo contexto
descrito.
Aí está o fundamento de toda a desconfiança. Em sua formatação
original e mesmo em estudos posteriores que exploraram a perspectiva,
o conceito deu conta unicamente das zonas de plantação mais dinâmi-
cas, capitalizadas e diretamente articuladas ao movimento da economia
global, o que representa somente uma fatia do mundo da escravidão (To-
mich; Marquese, 2009, p. 339-374). Apenas para pensar no caso nacional,
como ficaria a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas
escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria
baleeira de Santa Catarina? Nada disso estaria contemplado, ou melhor,
não poderia ser explicado pela elaboração de Tomich. Mesmo porque os
contornos daquelas outras formas do cativeiro em geral coincidiam com
as práticas ancestrais do escravismo colonial, ou de uma pressuposta
primeira escravidão, ao menos até o momento de crise da instituição. Mas,
então, a crise per se poderia ser tomada como o fator transformador e,
não, propriamente, o movimento da segunda escravidão.

13 Numa das versões sobre o comportamento de Moctezuma II em relação aos conquistadores,


em 1519, ele teria confundido Hernán Cortés com Quetzalcoatl, o mítico príncipe tolteca que
estaria voltando para recobrar os domínios que antes lhe pertenciam. Evidentemente, esta minha
menção tem um fundo absolutamente alegórico.

281
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

Qual a conclusão? Que a noção de segunda escravidão, no que


diz respeito ao Brasil, só é operacional para tratar do Vale do Paraíba ou,
posteriormente, do oeste Paulista? E exclusivamente por uma perspectiva
de história econômica devotada ao circuito internacional de commodities?
Responder positivamente a esta indagação seria o mesmo que
supor que a noção de capitalismo não ajuda a entender a exploração do
trabalho infantil em carvoarias no Mato Grosso do Sul nos dias atuais,
porque Marx não a previu em O Capital. Trata-se de uma questão elemen-
tar de epistemologia. A validade cognitiva de uma categoria de análise
não se limita necessariamente às constatações empíricas que respalda-
ram a sua formulação.
O conceito de segunda escravidão é relevante por três razões
fundamentais: 1) imprime uma escala transnacional ao desenvolvimento
do escravismo brasileiro; 2) ajuda a entender as razões de seu dinamismo
e vigor econômico, político e social em um contexto de desconstrução
progressiva da legitimidade da instituição; 3) redefine, sobre novas ba-
ses, as suas conexões com o desenvolvimento do capitalismo.
As outras formatações da escravidão só persistiram a longo pra-
zo no Brasil porque existiu uma base material nuclear suficientemente
sólida (a base da segunda escravidão), que garantiu, no campo político,
as condições para a sua perpetuação. O desenvolvimento da escravidão
oitocentista brasileira foi desigual, mas combinado (Trotsky, 2000). Tra-
tava-se de um único organismo econômico e político, não obstante as es-
pecificidades. A evidência mais óbvia é a própria manutenção da unidade
da antiga América Portuguesa.
É importante ressaltar que, no interior de uma mesma ordem
socioeconômica, nem todas as práticas estão diretamente ligadas à ativi-
dade econômica principal, isto é, àquela que gera a reprodução do capi-
tal em ritmo mais intenso. Fernand Braudel, ao analisar a arquitetura do
capitalismo na era pré-industrial, destacou que as atividades que o distin-
guiam, a saber, aquelas que promoviam a geração de lucros extraordiná-
rios (grandes feiras, bolsas de valores), constituíam estágios superiores
que não envolviam, em absoluto, a totalidade das práticas econômicas.
Estas coexistiam com mecanismos rudimentares de produção da vida ma-
terial, ligados ao consumo imediato, de circulação restritíssima, e com
atividades ordinárias da economia de mercado que não encerravam em si
as mesmas práticas capitalistas.
Decerto, a noção braudeliana de capitalismo pode ser relativiza-
da. Provavelmente, melhor do que restringir a prática capitalista ao piso
superior da alta lucratividade seja explorar o nexo global do sistema, isto

282
A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl?

é, a forma como movimentos diversos de expansão material e financeira


se integram em escala planetária, em função da reprodução incessante
do capital. Mas, mesmo mudando um pouco a chave, a forma de pen-
sar ainda preserva a sua validade. No Brasil oitocentista, nem todas as
relações de escravidão estavam na ponta de lança da economia agroex-
portadora, nem assumiam a forma da segunda escravidão. Era possível
encontrar condições de produção, ritmos de trabalho, modos de vida,
oportunidades de alforria, padrões de propriedade e de posse bastante
variáveis. No entanto, a constatação de que coexistiam modalidades dis-
tintas de exploração do trabalho escravo (o que está longe de ser novi-
dade na historiografia) não deve acarretar a presunção de que havia uma
espécie de impermeabilidade. Todas integravam uma mesma dinâmica
histórica. A macropolítica imperial, as leis e normas que regulavam o
cativeiro, a flutuação dos preços dos escravos, a circulação e as redes do
tráfico transatlântico e do comércio interno de cativos, as pressões inter-
nacionais ao país eram elementos que combinavam as diferentes práticas
naquele contexto (Silva Jr., 2015, p. 24-25).
O meu ponto de chegada não é defender que a escravidão brasilei-
ra do século XIX só possa ser analisada à luz da segunda escravidão, mas
afirmar que a concepção pode sustentar uma agenda de pesquisa renova-
da, que venha a iluminar novos aspectos, especialmente a combinação e a
permeabilidade assinaladas. Isto será possível caso haja uma sofisticação
do emprego da categoria, mediante o diálogo com abordagens como a
Micro-História, que o próprio Dale Tomich propôs, mas ainda não realizou.
Trata-se, antes de mais nada, de reduzir a escala do procedimen-
to metodológico que já fundamenta a perspectiva da segunda escravidão
(mas sobretudo nas relações interestatais desenroladas nos quadros da
economia-mundo), qual seja, a reconstrução analítica do todo por meio
de um exame integrado de suas partes. É o que Philip McMichael de-
nominou comparação incorporada (1990, p. 385-397). Este procedimento
não projeta o governo das partes pelo todo. O nexo entre partes e todo
não é pressuposto, mas o resultado do estudo. Nessa perspectiva, cada
parte representa e carrega em si uma certa configuração geo-histórica,
com particularidades quanto aos ritmos de tempo e à territorialidade,
integrando-se, em diferentes níveis, a processos de ordem nacional e
global, pela via da cultura, da política e da economia. Assim, por exem-
plo, compreende-se a escravidão no Vale Amazônico como um complexo
específico integrado a um conjunto mais vasto, e não, meramente, como
a manifestação local da segunda escravidão em todos os seus aspectos
(Barroso; Laurindo Junior, 2017, p. 568-588). Os níveis e os efeitos dessa

283
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

integração constituem o grande ponto de interesse da abordagem. Com


isso, evita-se o determinismo e salientam-se os mútuos e múltiplos con-
dicionamentos que as evidências demonstrarem.
O procedimento sugerido, essa microcomparação incorporada,
adequa-se e completa a noção de tempo estrutural (combinação de
longa duração e conjuntura) com a qual Tomich dialoga. Articulando-se
aos moldes da microanálise, ele supõe a inclusão da dimensão de curto
prazo e das vivências individuais, e, ao mesmo tempo, faculta o exame
de práticas, tradições, usos e costumes locais longevos, em termos de
sua reprodução, ressignificação ou transformação. É como uma espécie
de ampliação, para além do campo da cultura, da noção de “reavaliação
funcional de categorias”, formulada por Marshall Sahlins, que se refere
precisamente à forma como o contexto imediato se articula a estruturas
culturais pregressas e, por isso, traz diacronia e sincronia para o centro
da análise (Sahlins, 1990, p. 10-15).
Terminando esta breve reflexão com a metáfora de Quetzalcoatl,
que remete a uma cultura que nutria uma concepção de tempo pendular,
ou circular, a depender da interpretação, é preciso reconhecer o senti-
mento de retorno ao antigo ensejado por este debate. Não só pela refe-
rência ao macro, mas pelo próprio discurso do imperativo de uma via de
mão dupla entre o acontecimento e a estrutura, entre o geral e o particu-
lar. Talvez, apenas agora, a sua concretização seja possível.

Referências
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segunda escravidão? A dinâmica da escravidão no vale amazônico
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285
COMENTÁRIO
PARA UMA NOVA DIMENSÃO DOS ESTUDOS SOBRE
A HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO: DIÁLOGOS ENTRE
A SEGUNDA ESCRAVIDÃO E A MICRO-HISTÓRIA

Mônica Ribeiro de Oliveira

A possibilidade do diálogo entre distintas abordagens metodo-


lógicas a princípio excludentes, aplicadas ao estudo da escravidão, foi a
questão colocada pelo seminário promovido pelo Grupo de Pesquisas O
Vale do Paraíba, o Império do Brasil e a Segunda Escravidão e do Programa de
Pós-Graduação em História Social da UNIRIO/MAST da UNIRIO. Ela deveria
ser respondida sob olhar atento de três grandes historiadores, em uma
rica experiência de debate, infelizmente pouco presente na academia
brasileira. A questão proposta, com ares de provocação, acabou por ge-
rar interessantes reflexões e exercícios de método. Chamada a participar
na qualidade de debatedora, me deparei com três diferentes enfoques
sobre o tema que, no entanto, confluíram mais para as intercessões, para
as possibilidades concomitantes das dimensões de curto e largo prazos,
para o equilíbrio entre estrutura e experiência e a tessitura em camadas
de uma história global a partir da compreensão das múltiplas dimensões
do vivido.
Silva Júnior. inicia sua reflexão recuperando a perspectiva de Dale
Tomich acerca da necessária interação entre as diversas abordagens me-
todológicas. A Micro-História ao dialogar com a longa duração e conjun-
tura, mas sem abrir mão das pesquisas quantitativas, centra seu olhar no
particular, possibilitando um adensamento da reflexão sobre processos
históricos mais amplos e de maior duração. Esse foi o eixo escolhido
por Silva Júnior. Para conduzir seu ensaio. O autor enfatiza os limites do
conceito de segunda escravidão como uma abordagem pouco precisa no
Brasil, ou mesmo, que esta teria gerado um retrocesso, quando os impe-
rativos da economia e mundo capitalista se imporiam ao protagonismo
do indivíduo e do local.
Para o autor, a perspectiva crítica à segunda escravidão esteve,
em suas origens, vinculada aos debates de duas importantes academias

287
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

reativas aos Annales e Marxismo, a saber: a história agrária da Universi-


dade Federal Fluminense e a história social da Unicamp. Questiono se
essa perspectiva europeizante, pano de fundo do conceito de segunda
escravidão, tinha sido realmente rechaçada pela historiografia brasileira
dos anos 1990. No que se refere à escravidão, metodologicamente, ainda
continuaram muito próximos da clássica história quantitativa, dos agre-
gados anônimos e, principalmente, da preocupação com as regularida-
des e busca de comportamentos sistêmicos. No meu entender, naquele
momento, a “equalização dos indivíduos” (Ginzburg, 1993) ainda estava
em marcha. No entanto, considero que para esses historiadores, a eco-
nomia mundo perdeu sua centralidade e foi substituída por uma outra
referência, também macro: o escravismo brasileiro – palco de diversas
disputas conceituais. Os autores brasileiros das escolas UFF e UNICAMP
voltavam-se para dentro, enquanto Dale Tomich situava o escravismo
brasileiro no bojo das transformações do capitalismo da Era Industrial.
Opostas? A meu ver não, simplesmente complementares. Nos anos sub-
sequentes, a riqueza dos trabalhos acerca do mercado interno colonial,
as pequenas escravarias e a concomitância da pequena propriedade às
plantations, maior em número, mas não em dimensão e produção de ri-
queza, contudo dinâmicas e articuladas de diferentes formas ao merca-
do, se multiplicavam, descortinando nossas diferenças, mesmo em um
contexto de economia mundo.
Até esse momento, a perspectiva centrada no indivíduo já havia
sido fundada na Itália, mas não havia impactado no Brasil. Na década
de 1990, a revista Quaderni Storici, berço da Micro-História, já estava
se consolidando enquanto resposta à falência das perspectivas teóricas
baseadas no fato político e da história das instituições, conjugadas ao
engajamento político. A revista reunia pesquisadores interessados em
propor “experimentações” monográficas que buscassem alternativas
para a situação de crise historiográfica da Itália (Lima, 2006). Em resumo,
a entrada da perspectiva da Micro-História no Brasil demoraria a romper
os limites do mercado editorial, em uma época em que a internet ainda
não havia superado as barreiras do tempo e espaço. Na esteira das publi-
cações das obras de Carlo Ginzburg, a tradução do Herança Imaterial em
francês (Levi, 1989), e logo depois, em espanhol e português (Levi, 2000)
introduziria a discussão na academia brasileira, aprofundado posterior-
mente pelo primoroso trabalho de Henrique Espada Lima (Lima, 2006).
Naqueles anos, uma profunda dúvida afligia os ânimos dos historiadores
que se perguntavam: Seria possível fazer Micro-História no Brasil, com
seus arquivos falhos e incompletos? Para J. Fragoso, a fragilidade dos

288
Para uma nova dimensão dos estudos sobre a história da escravidão:
diálogos entre a Segunda Escravidão e a Micro-História

arquivos traria sérios obstáculos à Micro-História produzida no Brasil,


impedida que estaria de rastrear pessoas e recompor experiências so-
ciais. Esta seria “feia, tapuia, diferente da italiana. (Fragoso, 2002, p. 63)
Voltando ao autor em tela, Silva Júnior afasta-se da dicotomia
que insistiu em observar entre a perspectiva de segunda escravidão
e a historiografia brasileira dos anos 1990 e recupera a relevância do
conceito macro, retomando sua questão inicial e defendendo o tributo
das outras formas de escravidão no Brasil oitocentista à lógica global
- vinculada à segunda escravidão. Realça que em uma mesma ordem
socioeconômica coexistiam diferentes práticas, distintas formas de re-
produção do capital e de exploração escravista. Até aí seu argumento
é bom. No entanto, seu ponto de chegada é a via de mão-dupla entre
as abordagens da segunda escravidão e as abordagens de redução de
escala, ou a reconstrução analítica do todo por meio das partes, o que
me oponho mais uma vez. Procedimentos microanalíticos não geram
os mesmos resultados do método indutivo ou, por outras palavras, a
dimensão micro não possui nenhum privilégio em relação ao macro.
Como bem considerou Revel, é a variação de escala que enriquece a
interpretação (Revel, 1998, p. 12-13).
O segundo ensaio crítico de Mariana Muaze insere outras ques-
tões no debate e avança um pouco mais, mesmo que sua opção ainda se
mantenha no âmbito da discussão especificamente metodológica. Logo
no início de seu texto, a autora se posiciona quanto ao debate, realçan-
do uma certa incompatibilidade epistemológica entre a perspectiva da
segunda escravidão e a microanálise. Para ela, desde que se jogue com
múltiplas escalas do objeto e se reflita sobre processos históricos mais
amplos, é possível captar as relações entre estrutura e experiência. Em
suas palavras, entre “constrições estruturais e singularidades individuais,
entre temporalidades lentas e ações cotidianas”.
Para aprofundar mais o debate, Muaze realiza uma série de ques-
tionamentos, exercitando múltiplas possibilidades de interação entre as
duas perspectivas. Como mesmo a autora sustenta, as questões levanta-
das soam mais como provocações, cujas respostas dependem de muitas
pesquisas e exercícios metodológicos, do que apontam como pontes e
interações entre as duas perspectivas.
Em seguida, a autora aprofunda a discussão historiográfica so-
bre a segunda escravidão, realizando um excelente exame das origens
e evolução do conceito. O mesmo faz em seguida com relação à micro
história, desvendando sua trajetória na Itália e Brasil e em busca de uma
arqueologia do conceito, a autora perpassa pelos trabalhos que mais res-

289
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

soaram no Brasil. Ressalta que os trabalhos mais bem-sucedidos “foram


aqueles que conseguiram traçar nexos entre essas vivências e os sistemas
normativos, trazendo reflexões mais amplas sobre a sociedade em ques-
tão”. A autora é enfática ao defender que a chave da compreensão das
interações entre as diferentes perspectivas reside no jogo de escalas. Até
esse momento, toda a construção do texto conflui para as interfaces e
conexões em pensar o conceito de segunda escravidão e operar com a
metodologia da Micro-História.
Na terceira parte do ensaio, a autora nomeia sua reflexão como
“Construindo Pontes”, nos levando a entender que a tessitura dessa in-
teração deve passar por uma ressignificação das diferentes possibilida-
des de leitura dos conceitos. No meu entender, nessa parte, a autora
realiza uma outra inflexão e realiza um excelente trabalho ao analisar a
historicidade do conceito de segunda escravidão e como foi construída
a intercessão entre as duas perspectivas metodológicas que remetem ao
que Giovanni Levi critica como a Microglobal History ou de Global Micro
History (Oliveira, 2017)
Para Tomich a relação entre os grupos sociais, em distintas posi-
ções na hierarquia social deveriam ser percebidos dentro do horizonte
de possibilidades e orientado para as grandes transformações econômi-
cas (Tomich, 2011, p. 96). Para os autores, a longa duração surgiria das
relações entre o micro e o macro para a elaboração de uma “história
mundial da perspectiva do indivíduo”. Nesse momento, Muaze se des-
cola da reflexão proposta e questiona se de fato o resultado final deva
ser necessariamente a construção de uma história mundial ou global.
Recupera a crítica de G. Levi quando este denuncia a nova roupagem do
eurocentrismo que estaria por trás da discussão da segunda escravidão,
ao invés de uma totalidade policêntrica. (Oliveira, 2017).
A autora reafirma a importância fundamental dos jogos de esca-
las para ambos os lados, quando a Micro-História contribui para o estudo
das estruturas e quando a história global desce ao terreno da experiência
cotidiana e dos indivíduos. A meu ver este ainda se constitui um desafio
da investigação histórica contemporânea.
O terceiro texto, de Thiago Campos, imbuído da proposta da
mesa de discutir a (in)compatibilidade da Global History com os métodos
da Micro-História, caracteriza-se por sair de uma análise metodológica e
ensaística para adentrar no terreno da investigação empírica. Desta for-
ma, consegue aliar suas reflexões à investigação, materializando o quan-
to que os procedimentos de redução de escala permitem a construção de
uma perspectiva global.

290
Para uma nova dimensão dos estudos sobre a história da escravidão:
diálogos entre a Segunda Escravidão e a Micro-História

Pessoa traz à reflexão outros textos, captando o quanto essa


preocupação metodológica está presente na academia italiana e como
estão sendo produzidas as pontes entre as diferentes perspectivas, an-
tes tidas como epistemologicamente excludentes. Para Carlo Ginzburg,
o “fechar do microscópio” permitiria a projeção de novas perguntas e a
revelação de resultados inesperados. Para Francesca Trivelatto (2011) a
redução da escala conecta micro e macro pelas próprias relações estabe-
lecidas entre os indivíduos, quando a dimensão do vivido permite acessar
o nível das mudanças estruturais. A percepção das múltiplas dimensões
por meio do jogo de escalas, permitiriam captar em detalhe o que seria
impossível perceber a nível macro ou mesmo revelar as descontinuidades
estruturais, submetidas às escolhas dos agentes históricos.
Em seguida, Pessoa, imbuído dessa perspectiva metodológica e
por meio da análise de trajetórias individuais entrelaçadas em um plano
macro, se debruça sobre as relações entre indivíduos e estruturas, entre
a classe senhorial do Império e a permanência da escravidão sob novos
moldes no Oitocentos no contexto da segunda escravidão. Esse novo fa-
zer metodológico o levou a contestar a tese de João Fragoso, inspiradora
de várias gerações subsequentes, acerca do comportamento tradicional
e arcaico dos grandes senhores do vale Fluminense. Em suas palavras, o
“Vale do café esteve em profunda sintonia com o desenvolvimento do ca-
pitalismo no plano da economia mundo, não significando, ao seu tempo,
o resultado de um projeto arcaico, destituído de racionalidade e cálculo
econômico”.
Com a proibição do tráfico em 1831 e a saída de cena dos prin-
cipais traficantes, a pesquisa do autor o levou a perceber a atuação de
outros agentes, menos conhecidos, cujas trajetórias puderam ser recons-
tituídas, e revelaram uma atuação que conjugava tráfico ilegal e atua-
ções com capital financeiro, compra de ações e companhias de seguro. A
pesquisa realizada em diferentes escalas captou homens originários de
setores provenientes de outros grupos hierárquicos que superaram bar-
reiras, não reproduziram valores tradicionais e que, no entanto, estavam
antenados com a economia mundo.
É nesse momento que o autor retoma sua questão inicial e o
conceito de segunda escravidão é ressignificado por meio da alternân-
cia de escalas e da apreensão de uma determinada realidade a partir de
incoerências normativas – justamente aquelas originárias das escolhas
individuais e do conceito de sociedade dos indivíduos de Norbert Elias.
Trocar as lentes, conectar histórias individuais, familiares e suas redes,
captar diferentes dimensões, enfim, articular a escala micro aos proble-

291
A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica

mas macro. Essa foi a trajetória metodológica do autor. Esse comporta-


mento permitiu entender o porquê de o fortalecimento da escravidão e
do Estado estarem conectados à economia mundo e, principalmente, o
quanto a história dos indivíduos e suas redes conferem mais sentido à
história total.

***
A utilização do microscópio enquanto metáfora nada mais é que
a aproximação do olhar para captar um traço, uma singularidade ou um
comportamento que, em um olhar distante poderiam escapar. Uma pes-
quisa com essa proposta metodológica deve ser aquela também desven-
cilhada de qualquer preocupação com a captação de comportamentos
uniformes e tampouco de uma hierarquização do menor para o maior.
Com a variação das escalas, que se concretiza pela utilização de distintas
fontes, emergem as diferentes instâncias de percepção, as brechas, as
contradições e as irregularidades (Ginzburg, 2006, p. 267; Levi, 1991).
A esse procedimento de pesquisa se devem somar outras preocu-
pações próprias também da Micro-História. Se a fonte consultada pode ge-
rar uma instância de percepção, a escolha dela atinge uma enorme centra-
lidade e pode definir os rumos da investigação proposta. É esta a exortação
das falas e textos de Giovanni Levi nos dias de hoje, que mais se aproxima
de uma dimensão política do método. O foco na história daqueles que
produziram menos documentos, como as mulheres, os desafortunados e
as minorias, pode enriquecer a compreensão dos mundos relacionais.
Se realmente a Micro-História consegue se articular à perspectiva
macro, tal como defendida pelos historiadores acima, considero ainda,
mesmo com os atuais esforços, um grande desafio para nós historiadores.

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294
OS AUTORES

Carlos Gabriel Guimarães


Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF
Carlos Leonardo Kelmer Mathias
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
Gabriel Aladrén
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF
Leonardo Marques
Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF
Luiz Fernando Saraiva
Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF
Mariana Muaze
Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
– UNIRIO
Mônica Ribeiro de Oliveira
Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Rafael Marquese
Professor da Universidade de São Paulo – USP
Renato Leite Marcondes
Professor da Universidade de São Paulo – USP
Ricardo H. Salles
Professor da Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro – UNIRIO
Rita Almico
Professora da Universidade Federal Fluminense – UFF
Rodrigo Goyena Soares
Doutor em História pela UNIRIO, pesquisador em pós-doutorado na
Universidade de São Paulo – USP
Thiago Campos Pessoa
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF
Waldomiro Lourenço da Silva Júnior
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Walter Luiz C. de M. Pereira
Professor da Universidade Federal Fluminense – UFF
CASA LEIRIA
Rua do Parque, 470
São Leopoldo-RS Brasil
casaleiria@casaleiria.com.br
Organizadores:

Mariana Muaze
Professora do Departamento de História da Uni-
rio, pós-doutora pela universidade de Michigan,
pesquisadora do CNPq, autora do livro As memó-
rias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império
(Zahar, 2008), organizadora dos livros O Vale do
Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segun-
da Escravidão, em parceria com Ricardo Salles,
(7 Letras, 2015) e O 15 de Novembro e a queda da
Monarquia, em parceria com Keila Grinberg (Chão
Ed., 2019).

Ricardo H. Salles
Professor do Departamento de História da Uni-
rio, pesquisador do CNPq, autor de Guerra do
Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do
Exército (Paz e Terra, 1990), Nostalgia Imperial: Es-
cravidão e formação da identidade nacional no Brasil
do Segundo Reinado (Ponteio, 2013, 2a ed.), Joa-
quim Nabuco, um pensador do Império (Topbooks,
2002), E o vale era escravo. Vassouras, século XIX:
senhores e escravos no coração do Império (Civiliza-
ção brasileira, 2008) e organizador de Escravidão
e capitalismo histórico no século XIX – Cuba, Brasil e
Estados Unidos, em parceria com Rafael Marquese
(Civilização Brasileira, 2016).
A reflexão sobre as relações entre capitalismo e es-
cravidão no Mundo Atlântico e no Brasil em particular traz
consigo o questionamento sobre como a escravidão mol-
dou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade.
Por mais que a campanha abolicionista e o movimento dos
escravos pela emancipação tenham sido vitoriosos no 13
de Maio, eles não foram capazes de se transformar em lu-
tas nacionais por direitos sociais e igualdade racial. Hoje,
mais de 130 anos depois, essa pauta é cada vez mais ur-
gente no país que mais mata jovens negros em idade entre
15 e 29 anos, que possui a quinta maior taxa de feminicí-
dio do mundo, sendo a maioria das vítimas mulheres ne-
gras, e que insiste em retirar direitos das populações mais
pobres em prol de um capitalismo de agenda neoliberal.
Tais índices não são meros acidentes de percurso. Eles têm
fundamento histórico e se justificam, dentre outras coisas,
pela construção de uma nação calcada na hierarquia e na
exploração da mão de obra escrava.
Esse fundamento histórico de nosso presente é
abordado por diferentes historiadores nos capítulos de A
Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histó-
rica que tratam de vários aspectos da escravidão brasileira
do século XIX.

ISBN 978-65-990698-7-1

casa leiria 9 786599 069871 >

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