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U m a In t r o d u ç ã o à
E c o n o m ia P o l ít ic a
O AU TO R
/
w
& Q u a r t ie r l a t in
Editora Quartier Latin do Brasil
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A n t ó n io J o s é A velãs N unes
U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia
P o l ít ic a
ISBN 85-7674-208-X
1. Brasil : Economia
S u m á r io
PARTE I
Introdução......................................................................................................... 60
I. A teoria dos sistemas económ icos............................................................... 60
II. As soluções................................................................................................... 61
1. A teoria dos “estádios económicos” ................................................... 61
2. A teoria dos modos de produção......................................................... 63
3. A Teoria dos “tipos de Coordenação” .................................................. 70
III. Apreciação C rítica ..................................................................................... 71
P A R TE I I
O que é a E c o n o m ia P o l ít ic a ?
situação começou a mudar a partir do início da década de 80. E nos países francó-
fonos manteve-se a designação tradicional de Economia Politica.
Cremos que não têm razão os que atribuem à expressão Economia Política co
notações ideológicas ou implicações metodológicas que anulariam a natureza ci
entífica da sua abordagem dos problemas económicos. Não vemos fundamento
para se apontar a Economia como científica e a Economia Política como não-cien-
tífica, ou vice-versa.
De todo o modo, pensamos que à designação Economia Política se liga, em
regra, uma nota metodológica específica dentro da abordagem científica dos pro
blemas económicos.
A Economia Politica não representa um paradigma autónomo, e talvez devamos
admitir que não há uma economiapolitica homogénea, mas várias economias políticas.
Colocando-se numa perspectiva interdisciplinar, a Economia Política abre o ca
minho a diferentes ponderações acerca da importância dos elementos não-econó-
micos (históricos, políticos, culturais, religiosos, filosóficos, ideológicos) e a
diferentes combinações destes elementos.
Mas a Economia Política apresenta actualmente, como traço comum, uma atitu
de crítica perante a mainstream economics, especialmente no que toca à sua preten
são de ser uma ciência pura’, aos seus postulados individualistas, à sua defesa do
equilíbrio e da harmonia, à sua recusa cm considerar a perspectiva histórica e os
factores dinâmicos.
Do nosso ponto de vista, poderá dizer-se também que, embora se perfilem ‘leitu
ras’da realidade ou propostas de política progressistas ou conservadoras tanto por parte
dos que se colocam na óptica da Economics como por parte dos que adoptam a
perspectiva da Economia Politica, a Economics veicula, em regra, a aceitação conserva
dora do status quo, colocando-se a Economia Politica, em regra, numa perspectiva de
transformação da sociedade (para alguns de natureza revolucionária).
Deixando de lado outros aspectos, sublinharemos que os que integram o “clube
dos economistas políticos” (Kurt Rothschild) defendem também que a teoria eco
nómica se confunde com a histoire raisonéeác que fala Schumpeter a propósito da
teoria económica de Marx. Segundo esta perspectiva, “o objecto da ciência econó
mica é essencialmente um processo histórico continuado” (Schumpeter), porque a
nossa disciplina só pode aspirar ao estatuto de ciência “interpretando a história,
incluindo o presente na história” (Joan Robinson), tendo sempre presente que “as
ideias económicas são, sempre e intimamente, um produto do seu próprio tempo e
lugar, e não podem ser tidas como coisas distintas do mundo que interpretam”. (J.
K. Galbraith)
A v e l As N u n e s - 1 3
compreendeu, desde logo, Adam Smith, que fez da Economia Política, essencial
mente, uma teoria da produção e do crescimento económico.
Esta situação alterou-se profundamente com as revoluções burguesas, que vie
ram pôr termo ao estatuto de servidão, proclamando que todos os indivíduos (in
cluindo os trabalhadores) são seres livres, sujeitos de direitos e de deveres.
Os trabalhadores passam a poder dispor livremente da sua força de trabalho
(que então surge como mercadoria autónoma), substituindo-se o trabalho servil
pelo trabalho assalariado. O capitalista adquire os meios de produção (incluindo a
força de trabalho) e desencadeia o processo produtivo com o objectivo de obter
lucros e de transformar uma parte deles (uma parte do excedente) em meios de
produção adicionais e estes em maior quantidade de bens produzidos, destinados à
venda no mercado com fins lucrativos. Por outro lado, a propriedade feudal (pro
priedade imperfeita) é substituída pela propriedade capitalista (perfeita, absoluta e
excluente). E a Revolução Industrial trouxe consigo a afirmação do processo co
lectivo de produção, a divisão interna do trabalho, o aumento da produtividade, a
multiplicação da produção efectiva de bens, assim como a consciência social de
que tudo isto se estava a verificar.
O processo económico ganha então a sua autonomia não apenas cm relação ao
discurso metafísico, teológico ou ético, mas também relativamente ao discurso
político e à lógica do poder político. A ciência económica ocupa-se agora da
sociedade económica (ou sociedade civil) concebida como um sistema, como um con
junto de relações sociais reguladas por leis próprias (leis naturais, independentes da
vontade dos governos, que podem ser descobertas pela investigação).
Mas o advento da nova era burguesa não ficou marcado apenas por transforma
ções económicas e sociais. A ‘revolução’ fez-se sentir também na filosofia, na ciência
e no mundo das ideias em geral, percorrendo um caminho que se inicia com o
Renascimento e com as viagens oceânicas de portugueses e espanhóis. O homem
europeu rompe com os velhos tabus escolásticos e parte à descoberta de novos mun
dos, de novas gentes e de novos produtos, desperto para a observação da natureza e
para a experimentação, para a capacidade de aprender sistematicamente com o que
se ‘vê claramente visto’, para a compreensão de que “todo o mundo é composto de
mudança” (parafraseando Camões), para a afirmação do homem como faber mundi
(e não apenas como viator mundi), para a confiança optimista no homem e na sua
capacidade de dominar a natureza e de ser senhor da sua própria história, para a
substituição de deus pelo homem, consciente da sua capacidade de “dar novos mun
dos ao mundo”.
A v elã s N u n es - 15
Não será, por isso, descabido que aqui se acolha a tese - sustentada por Marx
e pelos autores marxistas - segundo a qual a Economia Política clássica surgiu e
desenvolveu-se como ciência da burguesia, num período em que a burguesia ascen
dente, em luta para ocupar a posição de classe dominante, na economia, na socie
dade e no estado, era a classe em condições de (e interessada em) analisar objectivamente a
sociedade e os mecanismos da economia.
4. - Não é fácil definir a ciência económica, por mais estranha que esta afirma
ção possa parecer. Apetece dizer, com Alfred Marshall, que “todas as afirmações
breves sobre Economia são falsas (excepto esta, talvez)”.
H á pouco mais de um século, foi exactamente Alfred Marshall quem definiu a
ciência económica como “o estudo da humanidade nos assuntos correntes da vida”
(“the study o f mankind in the ordinary business o f life”). Poderíamos deixar esta
definição, que parece de bom senso, e passar à frente, embora com a consciência
de, com ela, pouco adiantarmos acerca do objecto da nossa disciplina.
Mas, hoje, teríamos de assumir igualmente que a definição de Marshall é
inconsistente com o ‘conceito vazio’ apresentado por Jacob Viner ao definir a
ciência económica através da mera descrição agnóstica dela como “aquilo que os
economistas fazem”. É que hoje não falta quem defenda que, graças ao desenvolvi
mento da ciência económica c graças a uma certa crise por que ela passa, a maioria
dos economistas faz coisas que pouco têm a ver com as preocupações correntes das
pessoas de carne e osso. Talvez estejamos longe, e talvez estejamos mesmo a afas
tar-nos, afinal, da concretização do maior desejo de Marshall, manifestado cm
1885 na lição inaugural da sua cátedra de Cambridge: o de enviar os seus estudan
tes para a vida “com cabeças frias mas com corações quentes (...), com capacidade
para atenuarem os sofrimentos sociais que os rodeiam”.
Em regra, os manuais limitam-se a dar a noção de ciência económica que o seu
autor considera mais correcta. Não adoptaremos aqui esta solução, por conside
rarmos preferível - desde logo no plano pedagógico - problematizar a questão,
enunciando e mostrando o significado das principais perspectivas analíticas em
confronto, estimulando os alunos a participar num debate sempre aberto, sem
fornecer receitas nem impor dogmas, embora sem esconder que estaproblematiza-
ção não pode deixar de reflectir as nossas próprias ideias.
Partilhamos, a este propósito, o ponto de vista dos autores (Paul Sweezy, Joan
Robinson, entre outros1) que defendem perfilarem-se actualmente duas grandes
correntes (ou paradigmas) acerca da ciência económica:
1 Cfr.Ctoudio NAPCX.EONI,ftsk x rx ij, SmHh, Rjcardo, M .vx,trad.esp.,Oikos, BaiceJona, 1974(1Jed italiana. 1973),Capsulo I.
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2 Cfr. Paul SWEEZY, “Pour une critique de l'économie politique", em L'Homme et la Société, n° 15, |arvM ar/l970,139/140.
3 CítJoanROBINSON,fcor>om úM arx»ü,irad.8rasil.,E.FundodeCulturaí RiodeJaneiro, 1960 (1*ed. inglesa, 1942), 13/14.
A v e iAs N u n es - 1 9
W illiam Petty, v.g., referia-se aos senhores feudais e às camadas sociais a eles
ligadas como pessoas que “não fazem nada mais do que comer, beber, cantar, tocar,
bailar e cultivar a metafísica”. E Adam Smith escreveu:4
“O trabalho de muitas das mais respeitáveis classes sociais, tal com o o dos
criados, não produz qualquer valor, não se fixando nem corporizando em qual
quer objecto durável ou mercadoria vendável que continue a existir um a vez
term inado o trabalho, c que perm ita atingir, mais tarde, igual quantidade de
trabalho. O soberano, por exemplo, bem como todos os funcionários tanto da
justiça com o da guerra que servem sob as suas ordens, todo o exército e toda a
m arinha, são trabalhadores improdutivos. São servidores do público e é um a
parte do produto anual da actividade dos outros indivíduos que os m antém . (...)
N a m esm a classe terem os de incluir tanto algumas das mais sérias e im portan
tes profissões, com o algum as das mais frívolas: os eclesiásticos, os advogados,
os médicos e os hom ens de letras de todos os géneros, os actores, os bobos, os
músicos, os cantores de ópera, os bailarinos, etc. O trabalho dos mais insigni
ficantes m em bros destas profissões tem o seu valor, regulado pelos mesmos
princípios que regulam o de todas as outras espécies de trabalho, e m esmo o dos
mais nobres e mais úteis nada produz que perm ita mais tarde adquirir ou obter
igual quantidade de trabalho.Tal como a declamação de um actor, a arenga de
um orador ou a melodia de um músico, o trabalho de todos eles deixa de existir
no próprio m om ento cm que é produzido”.
paixões mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coração hum ano, todas
as fúrias do interesse privado”.
Mas é no Posfácio à 2a edição alemã de O Capital (1873) que M arx faz uma
síntese de todo o processo que acabámos de referir:
“A economia política enquanto burguesa - isto é, enquanto vé na ordem capita
lista não um a fase transitória do progresso histórico, mas antes a forma absoluta
e definitiva da produção social -, pode permanecer um a ciência enquanto a luta
de classes permanecer latente ou só se manifestar por fenómenos isolados.
(...) A situação dessa época explica a ingenuidade desta polém ica, em bora
alguns escritores sem partido tenham já feito da teoria ricardiana um a arm a
ofensiva contra o capitalismo. Por um lado, a grande indústria ainda estava a
sair da sua infância, pois que o início do ciclo periódico, típico da sua vida
m oderna, só surge com a crise de 1825. Por outro lado, a luta de classes entre
o capital e o trabalho era atirada para segundo plano: no plano político, pela
luta dos governos c do feudalismo, agrupados à volta da Santa-Aliança, contra
a massa popular, conduzida pela burguesia; no plano económico, pelas disputas
do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra que, n a França, se
ocultavam sob o antagonism o da pequena c da grande propriedade, c que, na
Inglaterra, se m anifestaram abertam ente, após as “leis dos cereais”.
Com base na ideia de que a Economia Política é uma ciência de classe, os autores
marxistas costumam, aliás, distinguir várias fases na evolução da economia política
burguesa, fases que coincidiriam, grosso modo, com os vários estádios de evolução
do capitalismo:s
1) Um período de análise científica da realidade económica. É o período de ascen
são da burguesia, em que a classe burguesa era inovadora e progressista, sendo,
portanto, a classe em condições de detectar o fenómeno económico: é o período de
elaboração da teoria do valor, de W illiam Petty (1676) a David Ricardo (1817);
2) Um período de controvérsia e de cisão. Depois da ascenção da burguesia capi
talista, com o aparecimento do proletariado, dá-se início a uma luta de classes que
vem determinar uma nova orientação da economia política, na medida em que
foram postas à prova as contradições da teoria burguesa do valor - trabalho, origi
nando a cisão entre a ‘escola’ marxista e as várias escolas burguesas pós-ricardianas;
3) Um período de carácter apologético. À medida que a burguesia consolida defi
nitivamente a sua posição de domínio (pela eliminação das antigas classes domi
nantes) e à medida que o proletariado vai intensificando a sua luta contra o
capitalismo, a economia política burguesa perde o seu carácter científico e vai
assumindo um carácter apologético, de instrumento de defesa dos interesses da
burguesia contra os interesses da classe trabalhadora. É o período de declínio da
economia política burguesa: a teoria do valor-trabalho é substituída pela economia
vulgar (eclética) e depois pela escola marginalista.
4) Um período de pragmatismo, que se iniciaria depois de Grande Depressão de
1929-33. Com efeito, essa foi uma crise que espalhou a confusão e a ruína nos
meios financeiros e industriais dos EUA, reflectindo-sc depois gravemente na
Europa capitalista. Após uma crise dessa envergadura, em que foram postas em
5 Seguimos aqui a proposta de E. MANDEL (Tra/té.. c i l, 1,9/10). O . LANGE (caps. VI e VII do 1v vol. de Economia
Política.. cit.) faz uma análise mais profunda e menos esquemática da evolução da economia política burguesa.
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AyeiAs N unes - 25
ff . R T H L .IO 1 r X A o
6 "A economia polftica, concebida como ciência das condições e das fornias em que as diversas sociedades têm
produzido, trocado e distribuído os produtos de forma correspondente, isto é, a economia polftica em toda a sua
extensão está ainda por fazer - escrevia Engels em 1878. O que possuímos de ciência económica até ao
presente - continua Engels - reduz-se, quase exclusivamente, à gênese e evolução da forma de produçào
capitalista. Esta ciência começa com a critica dos restos das formas feudais de produçào e de troca; demonstra
a necessidade da sua substituição pelas formas capitalistas; desenvolve, depois, as leis do modo de produçào
capitalista e da troca correspondente na sua fase positiva, i.é, no sentido em que as ditas leis favorecem os fins
gerais da sociedade; e termina com a crítica socialista do modo de produçào capitalista, ou seja, com a expo
sição de tais leis na sua fase negativa, mostrando como esse modo de produçào tende, pela sua própria evolu
ção, para um ponto em que também se torna impossível' (AntiDühring, trad. port., ed. cit., 187).
Mas a economia política marxista foi-se desenvolvendo à medida da evoluçào do próprio modo de produçào
capitalista, voltando a sua atenção para novos campos: análise mais particularizada do desenvolvimento do
capitalismo nos vários países; estudo dos problemas da reproduçáo da acumulação e das crises económicas;
estudo dos novos fenómenos e das leis económicas próprias da fase do capitalismo monopolista; elaboração da
teoria do imperialismo, da teoria da crise geral do capitalismo e da teoria do desenvolvimento desigual na
época imperialista; análise da problemática relacionada com a economia polftica das formações sociais pré-
capitalistas, especialmente do modo de produçào feudal; formulaçào da impossibilidade da revolução socia
lista em todos os países simultaneamente; enunciado dos princípios fundamentais da economia política do
socialismo.
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Assente este primeiro ponto, importa agora distinguir os vários tipos de ideo
logias (i.é, as ideias sociais das diversas classes) que podem detectar-se nas socie
dades caracterizadas pela existência de classes portadoras de interesses antagónicos,
sociedades nas quais a luta de classes reflecte esse antagonismo de interesses e nas
quais as ideias sociais de cada uma das classes assumem a natureza de ideologia
que exprime os interesses das classes que polarizam o conflito social. Em síntese,
poderá dizer-se que as ideologias conservadoras mistificam a realidade, enquanto as
ideologiasprogressistas clarificam a realidade e constituem um estímulo indispensá
vel ao conhecimento científico.7 Fica assim claro que a ideologia é sempre ideo
logia de classes e camadas sociais bem definidas.
No domínio das ciências sociais, e de modo particular no que se refere à eco
nomia política, o conhecimento científico da realidade depende da existência de
uma ideologia que ponha a claro essa realidade. Pois bem. Com o vimos, os mar
xistas sustentam que a ideologia da burguesia foi uma ideologia clarificadora da
realidade no período de ascenção da burguesia à posição de classe dominante,
contribuindo para esclarecer e desmascarar os entraves resultantes, para o desen
volvimento económico e social, da manutenção das relações feudais, da organiza
ção corporativa medieval e das regulamentações mercantilistas, e para pôr em
relevo o carácter progressista das novas relações de produção capitalistas.
M esmo então, o carácter de ideologia clarificadora só se revelava na sua capaci
dade de compreender a natureza progressista do modo de produção capitalista em
confronto com os modos de produção anteriores. Porque a burguesia não tinha
interesse em desvendar toda a verdade acerca do capitalismo: os limites da ideolo
gia burguesa não lhe permitiam, nomeadamente, apurar o carácter histórico e
transitório do modo de produção capitalista, analisar e esclarecer o aparecimento
e o amadurecimento de contradições internas no seu seio, compreender a evolução
no sentido do esgotamento do seu papel de classe progressista. Daí que os autores
marxistas vejam, mesmo na economia política clássica, uma ideologiaparcialmente
mistificadora, patente no entendimento do capitalismo como sistema social defini
tivo e no entendimento das leis económicas do capitalismo como leis naturais, de
validade eterna e universal.
Seguindo a liçào de O . LA N C E (ú/t. ob. cit., 1,309/310), podem ainda referir-se as ideologias reaccionárias e
as ideologias d e compromisso. As primeiras sáo as ideologias de classes ou camadas sociais ligadas a uma
formação social ainda mais antiga e que pretendem restabelecer, ainda que parcialmente, as relações sociais
do passado. As segundas, as ideologias típicas da pequena burguesia e das chamadas classes médias, que
assumem uma posição indecisa na luta de classes e que aspiram apenas a uma mudança parcial das relações
sociais existentes.
A v elà s N u n es - 2 9
8 Nas palavras de Engels, “esse apelo à moral e ao direito n5o nos faz dar um passo em frente na ciência. A ciência
económica n3o pode ver na indignação moral, ainda que ela seja justificada, um argumento, mas apenas um
sintoma. A sua tarefa consiste antes em mostrar que os abusos sociais que se notam sâo as consequências
necessárias do modo de produção subsistente, ao mesmo tempo que os sinais da sua iminente dissolução, e
descobrir, no m eio do movimento económico que se desagrega, os elementos de uma nova organização
futura da produção c da troca, que porào fim a esses abusos'.
A v elã s N u n e s - 3 1
9 Algo diferente parece ser a posição de Georges CurvKch, para quem "Marx foi o maior e o menos dogmático de
todos os fundadores da sociologia. (...) Foi em primeiro lugar e antes de tudo um sociólogo, fazendo a sociologia
a unidade da sua obra. (...) O Capital só pode ser compreendido como obra científica se se considerar como uma
sociologia económica revelando que os fenómenos económicos, as actividades económicas, as características
económicas perdem o seu sentido e o seu carácter quando se encontram desligados do conjunto da sociedade,
da sua estrutura, do tipo desta última, do 'fenómeno social total', do 'homem total'. Deste ponto de vista - conclui
G . GURV1TCH, La vocation actuelle de la sociologie, vol. 2, cap. XII, 220-225 - afirmar que Marx reduziu toda
a vida social à vida económica é fundamentalmente falso, pois ele fez exactamente o contrário: revelou que a
vida económica 6 apenas uma paite integrante da vida social e que a nossa representação do que se passa na
vida económica é falseada na medida em que não se tiver em conta que, sob o capital, a mercadoria, o valor, o
preço, a distribuição dos bens, se escondem a sociedade e os homens que nela participam".
3 4 - U m a I n t r o o u ç à o â E c o n o m ia P o l ít ic a
10 Logo em 1935 saiu a 2* edição (Macmillan). O autor regressou ao lema em 1981, com o estudo intitulado
"Econom ics and Political Economy", publicado em The Am erican Econom ic Review - Papers and
Proceedings, vol. 71, n° 2, Maio/1981,1-10.
A primeira abordagem da ciência económica como ciência que se ocupa do comportamento humano con
dicionado pela escassez (de tempo, de forças produtivas, de bens e serviços de qualquer tipo) parece dever-se,
segundo a informação de Robbins, a David Hume, quando discute o problema da propriedade no volume 2®
do seu Treatise o f Human Nature, de 1882 (cír. L. ROBBINS, 'O n Latsis's Method and Appraisal in Economics:
A Review Essay", em Journal o f Economic Ulerature, vol. V XII, Set/1979,997).
11 Cír. P. SAMUELSONAV. NORDHAUS. Economia, 12*edição, McGraw-Hill, Lisboa, 1878,6. Poderíamos recor
dar aqui vários outros manuais importantes e influentes em todo o mundo. Lembremos, v.g., o de Raymond
BARRE tfeonom ie Politique, 14* ed., PUF, Paris, 1,20): 'Aeconom ia polftica é a ciência da administração dos
recursos escassos. Estuda as formas que assume o comportamento humano no aproveitamento desses recursos:
analisa e explica as modalidades segundo as quais um indivíduo ou uma sociedade afecta meios limitados à
satisfação de necessidades numerosas e ilimitadas'.
A v elã s N u n es - 3 5
edades dos corpos”, assim também - escreve Robbins - “na Economia pura exami
namos a implicação da existência de meios escassos com usos alternativos”.
10. - Antes de concluir esta tentativa de explicar o que é a ciência económica, ainda
arriscamos uma pergunta provocatória (ou talvez não): éa Economia uma ciência?
A verdade é que esta pergunta não é uma simples figura de retórica. De um
modo ou de outro, ela tem sido formulada por muitos e importantes economistas.
E o facto de ela ser formulada já indicia que há aqui um problema que é necessário
encarar. Basta dizer que John Hicks utilizou a pergunta enunciada como título de
uma comunicação que apresentou em 1983, num encontro de laureados com o
Prémio Nobel.
10.1. - Alguns autores levam tão longe a afirmação da Economia como ciência
sem epítetos (uma ciência como as outras, i.é, como as ciências ditas exactas) que
acabam por negar a atitude de humildade intelectual que deve caracterizar o espí
rito científico, desrespeitando mesmo as restantes ciências sociais. É elucidativo, a
este respeito, o seguinte episódio passado com o Prémio Nobel Georges Stigler e
relatado pelo próprio numa sessão pública da American Economic Association.
Um colega de Stigler, professor de Ciência Política, questionava-se, em con
versa com ele, acerca da razão de haver um Prémio Nobel da Economia e não
haver um Prémio Nobel para nenhuma das outras ciências sociais. “Disse-lhe -
comenta Stigler - que eles já tinham um Prémio Nobel da Literatura”.
Esta ‘história’ fala por si. Fica sem comentários.
10.2. - Mas nem todos os economistas se apresentam tão seguros de si e da sua
disciplina.
A resposta de Hicks à pergunta há pouco enunciada é a de que “a Economia
está na fronteira da ciência e na fronteira da história”. Está nafronteira da ciência
porque pode utilizar métodos científicos ou quase científicos. M as, segundo H i
cks, a Economia nãopassa dafronteira da ciência, porque as experiências que analisa
são constituídas por informação respeitante ao passado - “os registos do passado
são os fenómenos” - e têm, por isso, muito de não repetitivo (“os aspectos da vida
económica que precisamos de seleccionar a fim de produzir teorias úteis podem
ser diferentes em épocas diferentes”).
Daí a conclusão de Hicks no sentido de que “a economia não está no tempo, e,
portanto, na história, da mesma forma que a ciência”: as predições económicas
“colocam-se no tempo, no tempo histórico, de uma forma diferente da que corres
ponde à maior parte das predições científicas”. Embora aceite que a análise econó
mica tem um certo paralelismo com o trabalho do cientista, Hicks defende que
“há talvez um paralelismo mais estreito com o trabalho do historiador. Não do
3 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o ü t ic a
10.3. - Sem dúvida que o facto de a Economia ser uma ciência humana (uma
ciência social) traz alguns problemas específicos, porque as ciências humanas pres
supõem um projecto acerca do homem.
Assim sendo, toda a teoria económica pressupõe uma dada concepção do homem.
Por isso pensamos que Stoffaès tem razão quando defende que “há sempre uma
profissão de fé escondida quando uma doutrina se proclama ideologicamente neu
tra” e quando alerta para que, “tanto como da tentação ideológica, os economistas
devem desconfiar da sua tentação de quererem construir uma ciência ‘cientista’,
autónoma e objectiva, desligada de toda a ingerência política e doutrinal”.
Na nossa disciplina, o investigador está ele próprio implicado no objecto da
sua investigação. O s temas que os economistas escolhem para objecto das suas
investigações “dependem, no mais alto grau, da sua própria situação na sociedade,
da sua psicologia, da sua história pessoal, das suas aspirações políticas. O seu
ângulo de visão da sociedade não pode ser neutro e reflecte a sua própria ética, a
sua esperança de transformar a sociedade ou, pelo contrário, de a conservar tal como
é”. (Ch. Stoffaès. Sublinhado nosso. AN)
No mesmo sentido, Robert Heilbroner observa que os cientistas sociais “fazem
parte de uma determinada ordem, têm um lugar dentro dela, beneficiam dela ou
perdem com ela, e vêem o seu futuro ligado ao seu sucesso ou à sua falência.
Perante este inevitável facto social, uma atitude de total ‘imparcialidade’ relativa
mente ao universo dos eventos sociais é psicologicamente não-natural (contra-
natura) e, muito provavelmente, conduz a uma posição de hipocrisia moral”.
Heilbroner arrisca mesmo a afirmação (que se aproxima de uma confissão) de
que “todos os cientistas sociais abordam os seus trabalhos de investigação com o
desejo, consciente ou inconsciente, de demonstrar a praticabilidade ou a imprati
cabilidade da ordem social que estão a investigar”. E defende que “não é indiferen
te, para o neoclássico ou para o marxista, que os dados que obtém se ajustem às
hipóteses que está a testar, e cada um luta fortemente para ‘justificar’, para minimi
zar ou para rejeitar os resultados que vão contra os seus pontos de vista iniciais”.
Perante o que fica dito, parece avisado admitir, com Stoffaès, que a Economia,
“sendo uma ciência social e política, que trata do governo dos homens, corre
também o risco de se transformar em ideologia, o risco de servir de instrumento
de propaganda às ambições dos homens, dos grupos sociais e das nações”.
10.4. - Com base na natureza do objecto da ciência económica, sustentam
alguns autores não ter fundamento a distinção entre economia positiva e economia
normativa. “A economia positiva não existe - escreve Hom a Katouzian. (...) A
Economia é uma ciência normativa, prescritiva”.
4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
11 -A "É pertinente recordar outro aspecto da relação entre ideologia e visão - escreve Schumpeter no artigo clássico
sobre Science and Ideobgy, cit. Este ato cognitivo pré-cientffico que é a origem das nossas ideologias é também
o pré-requisito do nosso trabalho científico. Sem ele nenhum avanço é possível em qualquer ciência. Através
dele, adquirimos novo material para os nossos ensaios científicos e algo para reformular, para defender, para
atacar. O nosso estoque de factos e instrumentos cresce e rejuvenesce. E assim, embora avancemos devagar
por causa das nossas ideologias, sem elas poderíamos não avançar de todo."
A v elã s N u n es - 41
É difícil, no entanto, não partilhar com Don Patinkin a ‘angústia’ com que nos
dá conta da consciência que foi adquirindo de que o próprio trabalho de investiga
ção empírica está fortemente condicionado (na prática, parece que determinado...)
pelos pressupostos de que partem os investigadores e até pelas suas concepções em
matéria de política económica. “O que provoca em mim uma grande dose de
cepticismo acerca do estado da nossa disciplina - escreve Patinkin - é a muito
elevada correlação positiva entre os pontos de vista sobre política económica de
um investigador (ou, o que é pior, do seu orientador de tese) e os resultados empí
ricos a que chega. Começarei a acreditar na Economia como ciência quando sair
de Yale uma tese de doutoramento de natureza empírica a demonstrar a suprema
cia da política monetária em qualquer episódio histórico, c quando sair de Chica
go uma tese que demonstre a supremacia da política financeira”.
10.5. - M uitos autores têm associado à Economia matemática a ideia de uma
‘cicntificidade’ indiscutível. Para muitos deles, há uma Economia científica, e essa é
a Economia matemática. Entre eles contam-se os que sustentam que “science is
measurement” e defendem que a economia é susceptível de medida e é, portanto,
‘cientificável’ ou ‘objectivável’.
Foi Karl Popper quem escreveu que “o êxito da Economia matemática mostra
que pelo menos uma ciência social já passou pela revolução newtoniana”.
M uitos defendem, porém, um ponto de vista diferente do de Popper. John
Hicks, por exemplo, considera a economia matemática um “ramo da matemática
aplicada”, mas sustenta que “a matemática não é uma ciência”, porque “tem que ver
com conceitos e relações entre conceitos, não com fenómenos”, porque “as suas
proposições são logicamente verdadeiras: não precisam de observações que as
confirmem”. Daí que, segundo Hicks, o facto de a economia matemática ser um
ramo da matemática aplicada “não significa que ela deva ser considerada ciência”.
Outros autores consideram que a Economia matemática se tem traduzido em alte
rações (quase) meramente formais ou notacionais, negando que a utilização da mate
mática na análise económica tenha gerado qualquer mudança que “possa genuinamente
considerar-se como uma ‘revolução newtoniana e sustentando que “não é razoável
sugerir que algo deste tipo vá ocorrer no futuro previsível”. (T.W. Hutchison)
As reservas à Economia matemática surgiram, de resto, desde muito cedo.
Logo na recensão da MathematicalPhysics, de Edgeworth, Alfred Marshall deixa
va o alerta: “será interessante ver até que ponto o autor conseguirá impedir que a
matemática corra com ele, fazendo-o perder de vista os factos económicos reais”.
Esta preocupação de Marshall será, aliás, partilhada por todos os que, com Ber-
trand Russel, entendem que a matemática é a disciplina em que “deixamos de
A v e i As N u n e s - 4 3
saber do que estamos a falar e deixamos de saber se aquilo de que estamos a falar
é verdadeiro”.
É conhecido também o desdém que Keynes manifesta na GeneralTheory rela
tivamente aos “métodos pseudo-matemáticos”que, a coberto de refinada modelís-
tica, se revelam “tão inferiores como as suas hipóteses iniciais” e “permitem aos
autores esquecer, no labirinto de símbolos vãos e pretensiosos, as complexidades e
as interdependências do mundo real”, conduzindo a uma teoria económica cons
truída dedutivamente a partir de pressupostos assumidos muitas vezes por razões
de simplicidade e elegância e não por se adaptarem à realidade da vida.
À ideia de que a Economia (nomeadamente a Economia matemática) é uma dis
ciplina científica porque o seu objecto é susceptível de medida respondem, com razão,
os que pensam que, “no homem, o que não se mede é mais importante do que aquilo
que se mede”. É o caso de Jean Marchai: “a teoria pura de hoje, filha da ciência do
século XIX e neta do racionalismo do Renascimento, esquece-o talvez demasiado”.
E de muitos lados vem a crítica de que as complexas técnicas analíticas apoia
das na matemática e os modelos altamente formalizados deixam de fora factores
não-económicos que são estratégicos para a abordagem adequada de muitos pro
blemas dos nossos dias, em cuja análise a quantificação deve dar lugar à compreen
são, valorizando menos as relações de causalidade do que as relações de interdependência,
inseridas numa realidade em permanente devir e enraizadas no ambiente históri-
co-cultural que caracteriza cada comunidade.
Não falta mesmo quem defenda que, “quanto mais avançada e mais rigorosa é a
análise económica, menos é capaz de ter em conta elementos não-económicos”. E o
ponto de vista de Gerald Meier, que deixa esta avisada recomendação: “apesar dos -
ou antes, por causa dos - esforços dos economistas matemáticos, precisamos de
lembrar que a Economia é, não obstante, uma ciência social, e que pode valer a pena
perder algum rigor e precisão na análise para introduzir políticas mais praticáveis”.
É a crítica a um certo ‘diletantismo’, que muitas vezes se deixa encandear pelo
brilho da técnica matemática, correndo o risco de transformar o seu refinamento
num fim em si mesmo (uma espécie de matemática pela matemática) ou numa acti
vidade de puro deleite intelectual. E estes não são riscos hipotéticos ou imaginá
rios. John Hicks confessa que “muita da teoria económica é prosseguida por uma
razão não melhor do que a sua atracção intelectual; ela é um bom jogo”.
A crítica ao ‘abuso’ da utilização da ‘tecnologia’ matemática na análise econó
mica leva alguns autores (Alan Abouchar, v.g.) a denunciar o vício de muitos
economistas, cuja preocupação deixou de ser a de escrever os seus estudos em
inglês, em francês ou em português, mas a de os escrever em matemática. Hom a
4 4 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a
12 Um economista português com vivência académica e com inserção na vida prática expõe assim a receita em
voga 'para se escrever um apreciável artigo sobre tema de economia': ' 19 Ensaia-se o texto sob forma literária;
2®Hermetiza-se, em primeira instância, passando para linguagem matemática: explicita-se o corpo de premis
sas; adopta-se o código da simbologia, de preferência com letras gregas e muitos índices e subíndices nas
variáveis; especificam-se algumas funções submetidas a derivadas parciais e integrais múltiplos; 3®Hermetiza-
se, em segunda instância, implicitando passagensdo raciocínio, sincopando explicações de teor pedagógico,
condensando demonstrações, reduzindo, enfim, a extensão do texto a um quinto ou um décimo do normal; 4°
Hermetiza-se, em terceira instância, adensando o texto matemático com hipóteses adicionais de complexida
de teórica crescente, ainda que de menor adequação à realidade; 5VApura-se a elegância do escrito mate
mático, retirando toda a ganga literária que ainda reste e remetendo para notas de rodapé as citações que
mergulhem em revistas da especialidade'. (Miguel Cadilhe)
A v ela s N u n es - 4 5
é sempre falsificar. No entanto, como bem observou Paul Valéry, se é verdade que
“tudo o que é simples é falso”, também é verdade que “tudo o que não é simples é
inutilizável”.
É importante compreender, por outro lado, que esta propensão da Economia
para abstrair da realidade não resulta de um qualquer gosto especial dos econo
mistas em parecerem absurdos ou em procurarem o absurdo. Esta propensão re
sulta da enorme complexidade da vida económica, das relações económicas e de
todo o tecido institucional que as envolve, sempre em processo de mudança.
Mas é igualmente importante ter sempre presente as limitações que daqui de
correm. A falta de consciência disto mesmo pode levar a um divórcio entre o
mundo da Economia e o mundo dos homens, com risco de o homem deixar de ser o
princípio e o fim da Economia enquanto ciência social. Vale a pena, por isso,
seguir o conselho de Maurice Dobb: “Não parece ser uma regra má, em matéria
tão cheia de problemas práticos e complexos como a Economia Política, a de
manter os pés firmemente plantados na terra, ainda que à custa de certa elegância
lógica de definição e de precisão na formulação algébrica, tão impressionante,
apesar de frequentemente responsável por erros”.
Só esta atitude ‘descontraída’em relação ao rigor de um cientismo infalível pode ter
em conta as limitações que caracterizam a análise económica, decorrentes do facto -
salientado pela generalidde dos autores - de ter de recorrer com frequência ao as i f
approachz de as suas proposições estarem sempre sujeitas à condição coeterisparibus. Não
ter isto presente pode colocar os economistas perante situações que, de forma inconse
quente, escondem muita incapacidade por detrás de alguma ‘fanfarronice’.13
Por nossa parte, cremos que releva de um certo infantilismo (ou doença infantil)
a pretensão das ciências sociais e humanas e, nomeadamente, da Economia Políti
ca em se assumirem como ‘científicas’ tal como o são as ciências ditas exactas ou
ciências da natureza.
A Economia Política corre graves riscos se ‘esquecer’que é uma ciência social,
se fizer de contas que, por detrás dos fenómenos e dos processos que nela se
estudam, não estão sempre os homens, os homens de carne e osso, os grupos e as
13 Ocorre lembrar, a este propósito, uma 'história' contada por Baumol/Blinder e por M. Blaug. A 'história' 6 esta.
Três pessoas (um químico, um físico e um economista) encontraram-se numa ilha deserta. Tinham abundância
de latas com alimentos de conserva, mas não tinham instrumentos para abrir as latas. Perante a situação, o
químico sugeriu que acendessem uma fogueira e pusessem as latas ao lume, esperando que a dilatação do seu
conteúdo as fizesse rebentar. O físico preferiu outra solução e propós que construíssem uma catapulta com a
qual pudessem atirar as latas contra umas pedras próximas, esperando que elas abrissem com o embate.
Chegada a vez de o economista se pronunciar, 'resolveu' o problema desta maneira: “Suponhamos que temos
um abre-latas..."
4 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a
pensamos que Mos pontos de vista morais ou políticos através dos quais são vistos os
problemas económicos se tomaram, frequentemente, tão inextricavelmente entrela
çados com as questões postas, e mesmo com os métodos de análise utilizados, que
nem sempre é fácil distinguir aqueles três elementos da Economia Política”.
11. —Uma nota final: na Parte II deste nosso livro analisaremos com mais vagar
as contribuições dos fisiocratas, de Adam Smith, de David Ricardo e de Marx, por
um lado; e aprofundaremos algo mais as teses defendidas por Say e pelos margina-
listas. Ficarão então mais claras as diferenças entre as duas perspectivas da ciência
económica que temos vindo a referir, e será então formulada a crítica à perspectiva
marginalista e à sua incapacidade para entender o capitalismo.
A v e i As N u n e s - 5 1
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A v elAs N u n e s - 5 3
Os S is t e m a s E c o n ó m ic o s
G én ese e E volução d o
C a p it a l is m o
6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
In tro d u ção
A vida dos homens em sociedade e a sua organização com vista à satisfação das
necessidades materiais tem apresentado características diversas ao longo da sua
evolução histórica, correspondendo a cada período e a cada lugar um certo sistema
de organização económica e social.
Na verdade, toda a economia é um sistema, no sentido em que toda a economia
é um conjunto de elementos (pessoais e materiais), de processos e relações (de
produção, de distribuição, v.g.) interligados de acordo com um princípio orienta
dor, um princípio de unidade, que assegura uma certa coerência e estabilidade à
estrutura constituída por aqueles elementos, processos e relações económicas.
M as a expressão sistema económico ganhou originariamente estatuto científico
na acepção de tipo de economia, capaz de integrar uma multiplicidade de economias
concretas, distintas de outros conjuntos históricos por determinadas características
fundamentais. Na verdade, a ideia de sistema económico liga-se à distinta realida
de das economias historicamente concretizadas.
D o conceito de sistema económico costuma distinguir-se o conceito de forma
económica, referindo-se este último aos vários modos (tipificados) de manifestação
de um determinado sistema, modos que se distinguem em função de critérios
como o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a forma e a dimensão das
unidades de produção, a organização dos sujeitos económicos, o modo de coorde
nação da economia, etc.
Particularmente importante é o modo de coordenação. É precisamente em função
dele que costumam distinguir-se as várias formas históricas do capitalismo: capita
lismo de concorrência, capitalismo monopolista, capitalismo monopolista de estado.
O conceito de forma económica não existe independentemente do conceito de
sistema económico, porque a forma económica é sempre a forma de um determi
nado sistema. O conceito de forma económica é, pois, uma qualificação do concei
to de sistema económico, sendo certo também que nenhum sistema económico
existe em si mesmo: qualquer sistema económico apresenta-se sempre, historica
mente, sob determinada(s) forma(s). Como escreve Vital Moreira, “os sistemas
económicos e as formas económicas não existem. O que existe são as economias
concretas que os ‘efectivam’(‘revelam’)”.
Na prática, nenhuma economia concreta se apresenta como a realização de um
único sistema económico ou de uma única forma económica. Cada economia cor
A v elã s N u n e s - 6 1
I I . A S SOLUÇÕES
14 Ver TEIXEIRA RIBEIRO , Economia Política, cit., e V. M OREIRA, Economia e Constituição, cit.
15 As teses evolucionistas dos primeiros históricos parecem ter renascido com a obra de Colin CLARK (The Condiüons
o f Economic Progress, 1* ed. 1940). Segundo este autor, o progresso económico, nos países capitalistas como
nos socialistas, caracterizar-se-ia por uma deslocação progressiva da população activa do sector da agricultura
para o sector da indústria e deste para o dos serviços. Esta tese tem servido para justificar a conclusão de que o
que distingue as economias dos vários países é o facto de se encontrarem em uma ou outra fase deste processo
evolutivo que, a partir de um primeiro estádio de predomínio da agricultura, encaminharia os países para a
situação de economias terciárias.
A concepção evolucionista é patente também no livro de Walter Whitman ROSTOW, The Stages o f Economic
Crowth ■A Non Communist Manifesto, Cambridge, Mass., 1960 (editado no Brasil pela Zahar Editores, Rio de
6 2 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a
em critérios históricos, pressupondo uma sucessão regular dos vários sistemas ao longo
dos séculos. Resumiremos a seguir as mais importantes dessas tentativas de distinção
e classificação das várias fases pelas quais passariam, mais ou menos obrigatoria
mente, segundo os autores da “Escola Histórica”, todas as sociedades humanas.
a) Friedrich List propôs o critério da actividade dominante. A vida económica
desenvolver-se-ia, historicamente, ao longo de quatro fases: pastorícia; agricultu
ra; agricultura c indústria; agricultura, indústria e comércio. Para esta última,
correspondente à nação normal, tenderiam as economias de todos os povos.
b) Bruno Hildebrandt atende aos sucessivos instrumentos de troca como critério
distintivo das três etapas que distingue com base nele: a da economia natural (ca
racterizada por um sistema de troca directa - produtos por produtos); a da economia
monetária (caracterizada pela prática da troca monetária, funcionando a moeda como
intermediário geral nas trocas); a da economia creditícia (caracterizada pela impor
tância do recurso às vendas a crédito e ao empréstimo de dinheiro).
c) Para Karl Bücher, por sua vez, o critério distintivo das várias fases da evolu
ção histórica seria o âmbito territorial dentro do qual se circunscreve a actividade
económica. Nas palavras de Bücher, o critério essencial é “a relação existente entre
produção e consumo dos bens ou, para ser mais exacto, a extensão do caminho que
os bens percorrem, na passagem do produtor ao consumidor”16.
De acordo com este critério, a humanidade passaria por três fases na sua evo
lução: a economia doméstica (reduzida, sucessivamente, àfamília, à tribo, ao domínio
senhorialefeudal- confinada a um âmbito territorial bastante restrito); a economia
urbana (centrada na actividade artesanal das cidades, que entravam em relações de
troca com as populações agrícolas vizinhas); a economia nacional (resultante do
desenvolvimento das relações de troca entre os vários núcleos urbanos).
Gustav Schmõller acrescentaria às anteriores a fase da economia mundial’ que
corresponderia a um novo período de relações económicas estabelecidas entre as
várias comunidades nacionais.
Janeiro, 1966 - Etapas d o Desenvolvimento Econômico (Um manifesto não-comunista). Defende o autor
que é possível distinguir no processo de evolução económica e social, por que teriam de passar todas as soci
edades, cinco etapas distintas: a sociedade tradicional, as condições prévias para arranque, o arranque (take
ofí), o progresso para a maturidade, a era do consumo de massa. Em tais termos se concebe este processo, que
a situação dos chamados países subdesenvolvidos, entendida como mero atraso no percurso das várias etapas
assinaladas, só seria susceptível de vencer-se fazendo percorrer aos 'países atrasados' as etapas que lhes falta
percorrer, daquelas por que passaram os países capitalistas desenvolvidos.
16 A p u d M . D O B B,/\ E vo lu çã o ...,cit., 17.
A v elà s N u n es - 6 3
17 Por meios de produção entende-se, na teoria marxista, o conjunto dos objectos de trabalho e dos meios de
trabalho.
6 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o lít ic a
Objecto de trabalho é tudo aquilo sobre que vai incidir a força de trabalho do homem (actividade inteligente
do homem em sociedade, orientada para transformar e adaptar as forças da natureza, com o fim de alcançar
o objectivo cm vista).
Meios de trabalho sáo todos os objectos de que os homens se servem para transformar a realidade física sobre
a qual actuam (a terra, os edifícios, as estradas, etc.). Os mais importantes de entre eles sèo os instrumentos de
produção (desde a pedra e o cajado do homem primitivo até às máquinas complexas de hoje), dos quais
depende, fundamentalmente, o domínio do homem sobre a natureza.
A v e i As N u n e s - 6 5
m esmo m odo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele im agina de si
próprio, tão-pouco se pode julgar um a tal época de rcvolucionam ento a partir
da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das
contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e
relações de produção sociais. U m a formação social nunca decai antes de esta
rem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente
ampla, e nunca surgem relações de produção novas c superiores antes de as
condições m ateriais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da
própria sociedade velha. Por isso a hum anidade coloca sem pre a si mesma
apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a um a consideração mais rigorosa,
se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos
estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas
suas gran d es lin h as, os m odos de p rodução asiático, an tig o , feudal e,
m odernam ente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da
formação económica e social. A s relações de produção burguesas são a últim a
forma antagónica do processo social de produção, antagónica não no sentido
de antagonism o individual, mas de um antagonism o que decorre das condições
sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no
seio da sociedade burguesa criam, ao m esm o tem po, as condições materiais
para a resolução deste antagonism o. C om esta formação social encerra-se, por
isso, a pré-história da sociedade hum ana.”
A luz da teoria marxista, a estrutura política (o poder político, o estado) faz parte
da superestrutura, sendo esta determinada pela base económica, a infraestrutura.
O que constitui problema é a questão de saber em que consiste essa determinação
e em que medida a superestrutura é determinada pela base económica ou dela depen
de. Marx não abordou expressamente a questão. Embora não faltem trechos em que
parece repassar uma concepção economicista (determinação absoluta da superestrutura -
especialmente da estrutura política, do estado - pela infraestrutura), está implícita
nas suas obras de análise histórica da Revolução Francesa a ideia de que a estrutura
política (e mesmo a estrutura ideológica) goza de uma autonomia relativa.
À visão economicista estreita (a que se associam os nomes de Edouard Bernstein e
de Karl Kautsky) opõe-se a concepção voluntaristay que atribui autonomia e eficácia
absolutas à acção política c à luta de classes. Estes são os dois pólos extremos dentro
dos quais se tem desenvolvido a discussão no quadro do pensamento marxista.
O ponto de partida desta discussão continua a ser uma carta de Engels a Joscph
Bloch, escrita em Setembro de 189020:
Nós fazemos a nossa história nós próprios, mas, em primeiro lugar, com pressu
postos e condições m uito determinados. Entre eles, os económicos são final
mente os decisivos. M as também os políticos, etc., mesmo a tradição que assom
bra as cabeças dos homens, desempenham um papel, se bem que não o decisivo.
(...) a história faz-se de tal m odo que o resultado final provém sem pre de
conflitos de muitas vontades individuais, em que cada um a delas, por sua vez,
é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; há,
p o rtan to , inúm eras forças que se cntrecruzam , um núm ero in fin ito de
paralelogramas de forças, de que provém um a resultante - o resultado histórico
-, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder
que, com o todo, actua sem consciência c sem vontade.(...)
Marx e eu temos, nós próprios, que ser culpados, cm parte, de que, por vezes, seja
pelos mais jovens dado mais peso ao lado económico do que o que lhe cabe. Nós
tínhamos de acentuar, perante os adversários, que o negavam, este princípio princi
pal c nem sempre havia tempo, lugar e oportunidade para dar a devida importância
aos restantes momentos participantes na acção recíproca. Mas, assim que se tratava
da exposição de uma secção histórica, portanto, da aplicação prática, as coisas
alteravam-se, e aí nenhum erro era possível. Infelizmente, é, porém, demasiado
frequente alguém acreditar que entendeu completamente uma teoria nova c que a
pode manejar sem mais logo que se apoderou dos seus principais princípios, e deles
também nem sempre correctamente. E eu não posso poupar a esta censura muitos
dos novos ‘marxistas’, e também aqui se cometeram coisas espantosas...”
A v elã s N u n es - 6 9
O debate continua acerca destes pontos suscitados e não resolvidos pelo texto
de Engels: 1) em que consiste a “determinação em última instância”?; 2) em que
consiste a eficácia especifica dos elementos superestruturais?; 3) em que condições
pode ser preponderante a acção da superestrutura?
b) A concepção de Sombart
Mais tarde, W erner Sombart (1863-1941), reconhecendo embora a influência
que sobre ele exerceu a obra de Marx21, elaborou a sua própria construção teórica
assente em bases claramente diferentes das do marxismo. Superando certas difi
culdades dos autores da Primeira Escola Histórica, Sombart propõe outro critério
histórico, fazendo apelo a três elementos que, a seu ver, distinguiriam os vários
sistemas económicos:
1) o espírito (o móbil, o objectivo fundamental da produção);
2) aforma (ou seja, o conjunto dos elementos sociais, jurídicos e institucionais,
que constituem o quadro dentro do qual se desenvolve a actividade económica, as
relações entre sujeitos económicos - regime da propriedade, estatuto dos trabalha
dores, papel do estado);
3) a substância (que fundamentalmente se refere à técnica utilizada).
Com base neste critério, distingue Sombart três sistemas económicos: o sistema
de economiafechada, o sistema de economia artesana e o sistema de economia capitalista.
No caso concreto do capitalismo (mas o seu raciocínio é o mesmo para qual
quer dos outros sistemas que considera), Sombart não procurou o elemento carac-
terizador fundamental em qualquer dos aspectos da estrutura económica ou do
funcionamento, nem considerou que a essência do capitalismo reside na natureza
das relações de produção que lhe são próprias. Na óptica de Sombart, o capitalis
mo distingue-se essencialmente pelo seu espirito de busca do lucro, espírito que tem
as suas raízes na totalidade dos aspectos representados no espirito que inspirou a
vida de toda uma época, o espírito da Europa moderna, aquele “espírito que nos
deu o Renascimento nas letras, o protestantismo na religião, o novo estado na
política e o método experimental na ciência”. 22
Pois esse mesmo espírito da Europa moderna ter-se-ia concretizado, na esfera
económica, no espirito de lucro do capitalismo, como síntese do ‘espírito burguês’
21 “Marx sabia pòr as questões magistralmente, e nisso residia a sua mais alta qualidade - escreveu Sombart. Dos
seus problemas vivemos nós ainda hoje. Com o seu génio cm colocar as questões, i ndicou à ciência económica
o caminho de uma fecunda investigação para todo o século. Todos os economistas que não procuraram fazer
seus os problemas por ele postos foram condenados à esterilidade científica, como já hoje podemos afirmar com
certeza" iA p o d O . LA N C E, Economia Política, I, cit., 260).
22 TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 164.
7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a
23 Como escreve TEIXEIRA RIBEIRO, úh. ob. cit., 165/166, 'o capitalismo |também| desumanizou a economia.
Ele arrancou do mundo das relações económicas um sentimento e a palavra que o exprimia: a piedade. Só
interessa o lucro. 'Se tens fome e tens dinheiro, vendo-te; mas se tens fome e náo tens dinheiro, náo te vendo nem
te dou'. Nâo foi apenas sob este aspecto - continua Teixeira Ribeiro - que o capitalismo desumanizou a eco
nomia. Também procurou criar um homem condizente com os seus fins e distante, por isso, da natureza que
o modelara. O que interessa é o lucro. O que interessa, pois, é que os consumidores sintam necessidades, para
que, sentindo-as, comprem produtos e os capitalistas lucrem, vendendo-os. As necessidades deixam de ser,
portanto, o fim da actividade económica; transformam-se em simples meio de obter lucros. Náo há necessida
des? Sc as náo há, criam-se, isto é, convencem-se os consumidores a comprar os produtos. D aí a publicidade,
o reclamo, que sâo fruto do capitalismo”.
24 Isto mesmo quer significar Friedrich HAYEK quando eseteve (The American íconom ic Review, 1945,520):
"Na linguagem corrente, designamos pela palavra plano o complexo de decisões interrelacionadas acerca da
alocação dos nossos recursos disponíveis. Neste sentido, toda a actividade económica obedece a um plancT.
A v e l á s N u n e s - 71
preços relativos que vai servir de critério orientador das opções e das decisões de
cada um dos agentes económicos (compradores e vendedores). E no mercado,
portanto, que se define a lógica segundo a qual funciona a economia. O mercado é
o mecanismo que dita oplano segundo o qual funciona a econom ia.
Nas economias de direcção central, a economia é dirigida a partir do centro, com
base num plano único imposto pelo estado (ou por uma unidade central) às unidades
técnicas de produção e aos consumidores, cabendo ao estado (ou à unidade central)
determinar os objectivos a prosseguir, os meios a utilizar, os preços a fixar.
Estes seriam os dois tipos de coordenação que, embora não se encontrassem na
sua forma pura, permitiriam explicar o funcionamento de qualquer economia, pois
as economias concretas seriam sempre uma composição (em proporções e moda
lidades diversas) daqueles dois tipos puros.
III. A p r e c ia ç ã o C r ít ic a
linha evolutiva que a história regista. Concebendo os vários estádios como outras
tantas idades no processo de crescimento das economias, aos adeptos da Escola
Histórica nem sequer se põe a necessidade de explicar essa evolução, esse cresci
mento, que se verificaria por si, tal como um corpo orgânico cresce em virtude do
seu próprio princípio vital.
Os critérios de List, Hildebrandt e Bücher - que referimos atrás -, atendo-se
apenas a elementos da estrutura económica da sociedade, somente dão conta da
evolução (linear) das forças produtivas, mas não podem apreender o processo (di
aléctico) de evolução da economia nem explicar a sua dinâmica.
Esta só resulta inteligível quando se tem em conta a relação dialéctica entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações sociais de produ
ção no seio das quais aquelas se desenvolvem e com as quais entram em contradi
ção. E é esta contradição que, acentuando-se, abre uma “época de revolução social”,
no termo da qual surgirá, a partir do anterior (do seu desenvolvimento), um novo
estádio superior de desenvolvimento.
As próprias limitações do seu método impediram os autores da Primeira Esco
la Histórica de ir além da mera acumulação de dados relativos à actividade econó
mica. Afirmando a existência de uma oposição absoluta entre a ciência da História
e as ciências exactas, a Escola Histórica acabou por negar a possibilidade de qual
quer teoria da história.
Com efeito, o método histórico-genético praticado pela Escola Histórica renun
cia à elaboração teórica, limitando-se os seus autores à reunião, descrição e siste
matização dos factos da vida económica e sua sequência histórica, sem capacidade
para apreender as mudanças qualitativas das formas de organização económico-
social ao longo do processo histórico. Cada autor propõe um esquema das várias
fases pelas quais passariam mais ou menos obrigatoriamente todas as sociedades.
E cada uma dessas fases é considerada independente das outras, na medida em que
cada fase substitui inteiramente a fase anterior, sem consideração por aquilo que, em
cada ‘sistema’, permanece do ‘sistema’ anterior e por aquilo que, em cada ‘sistema’,
prenuncia elementos do ‘sistema’ futuro. Neste quadro, resulta impossível a expli
cação do processo de passagem de um estádio a outro e a compreensão das causas
da evolução histórica.
Renunciando à teoria, os adeptos da Escola Histórica limitam-se a uma histó
ria dosfactos económicos. Negando a possibilidade de uma teoria da história, torna
ram inconsistente a sua posição metodológica, dada a impossibilidade de
desenvolvimento da ciência sem teoria. Por isso se falou já, a seu respeito, de
“nihilismo teórico”, de “ciência morta”.
A v e l As N u n e s - 7 3
À luz destes exemplos, parece claro que a teoria dos tipos de organização não é
capaz de fomecer um critério de distinção entre sistemas tão diversos (feudalismo,
capitalismo, socialismo) que podem incluir-se num dos dois tipos considerados.
Nem parece que ela seja capaz de explicar por que é que, em épocas tão diferentes e
em circunstâncias tão diversas, foi idêntico o tipo de organização. Se bem vemos,
estas são questões que só poderão compreender-se através de uma análise feita numa
perspectiva histórica, à luz da história económica, através da história dos sistemas
económicos, caracterizados pelos respectivos modos de produção.
O critério de Eucken afasta, em suma, qualquer perspectiva histórica do de
senvolvimento dos povos, negando que da história possa colher-se qualquer senti
do de desenvolvimento ou de progresso. E, ao sustentar que a história é constituída
por um conjunto de avanços e recuos insusceptíveis de explicação teórica, acaba
por fazer da história algo de contrário à histoire raisonée de que fala Schumpeter a
respeito da teoria de Marx.
Por isso, enquanto a teoria dos modos de produção (nomeadamente a teoria
marxista) é capaz de fomecer uma explicação para o desenvolvimento histórico, o
critério dos tipos de coordenação, como concepção anti-histórica, é incapaz de
esclarecer acerca das causas e do sentido da evolução de um sistema económico
para outro, encarando o problema numa perspectivafuncional, como se se tratasse
de alternativas abertas à livre escolha, em qualquer tempo c lugar, comparando-se
soluções técnicas possíveis, na sua eficiência, nas suas dificuldades e facilidades,
nos seus prós e contras, como que na mira de esclarecer uma opção entre eles.
A teoria dos tipos de coordenação permite relevar, na análise das formas con
cretas em que os sistemas se manifestam (já que, como se diz acima, os sistemas
puros não existem, ou não esgotam a realidade), certos elementos importantes para
a compreensão da dinâmica interna do sistema (nomeadamente o papel do estado
perante o económico) e que poderiam não ser devidamente ponderadas numa aná
lise que apenas se ativesse às relações de produção. M as não pode substituir a
teoria (histórica) dos sistemas económicos, pela simples razão de que “as formas
económicas são sempre formas de um determinado sistema” 28.
4. - Por nossa parte, utilizando a formulação de Teixeira Ribeiro29, considera
mos que “o que imprime carácter a qualquer economia e a individualiza como tipo
é o modo de produção c repartição dos bens.” Quer dizer, o que distingue os sistemas
é o modo de produção, i.é, a natureza das relações de produção (propriedade privada
ou propriedade colectiva dos meios de produção?) e aforma de repartição do produto
Do C o m u n is m o P r im it iv o
ao C a p it a l is m o
7 8 - U m a I n t r o o u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Depois das breves considerações introdutórias que ficam nas páginas antece
dentes, vamos acompanhar a evolução das sociedades humanas, desde as comuni
dades primitivas até aos nossos dias, numa tentativa de esclarecer o sentido dessa
evolução, do comunismo primitivo ao esclavagismo, do esclavagismo ao feudalis
mo e deste ao capitalismo, de modo a tornar claro:
1) que a transição de um sistema para o outro é fruto de “um processo contínuo
de transformação” (Teixeira Ribeiro);
2) que cada sistema económico que a história regista é produto da evolução
dialéctica do sistema que o precedeu;
3) que há uma racionalidade na ordem cronológica da sucessão: o capitalismo
não poderia ter precedido o feudalismo, do mesmo modo que o feudalismo não
poderia preceder o esclavagismo, já que foi a evolução do esclavagismo que, evi
denciando as suas contradições, abriu o caminho à ordem feudal e ao modo de
produção feudal, e foi a evolução do feudalismo que, perante a impossibilidade de
manter a servidão pessoal, criou as condições para o desenvolvimento das relações
de produção capitalistas;
4) que a evolução se tem verificado de tal modo que - na lição de Teixeira
Ribeiro31 - “nenhum sistema conseguiu substituir integralmente o anterior”, em
termos tais que, em cada época histórica, o dizer-se que em determinado país ou
região se nos depara o sistema capitalista ou o sistema feudal, por exemplo, só pode
significar que aí são dominantes os elementos definidores essenciais do capitalismo
ou do feudalismo, sendo certo que a predominância dos elementos que informam
um dado sistema não afasta a sobrevivência de elementos de sistemas anteriores e a
emergência de factores que prenunciam já. um estádio superior de evolução.
Em cada época histórica e em cada país ou região, modo de produção dom i
nante é aquele cujas relações de produção caracterizam e enquadram o desenvolvi
mento económico e social. Seguindo o critério de François Perroux, poderá dizer-se
que um determinado país será capitalista ou viverá sob o sistema feudal, v.g.,
quando “a maior parte dos valores económicos que nele se obtêm ou a maior parte
desses valores nos sectores estratégicos” resultar de produção desenvolvida medi
ante relações de produção de tipo capitalista ou de tipo feudal.32
O C o m u n is m o P r i m i t i v o 33
33 Cfr., sobre este perfodo, J. EATON, Manual.... cit., 6-9; E. M A N D EI, Traité..., cit., I, cap. 1«; HINDESS/HIRST,
Modos de Produção. .., cit., 28 ss.; C . CO M ES, Economia do Sistema Comunitário, cit.
8 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o ü t ic a
social sobre outra(s) classe(s) social(sociais). Não havia lugar para o estado en
quanto aparelho de poder (político, militar e judiciário) ao serviço da manutenção
de determinado status quo.
No período colector, a única divisão do trabalho conhecida era a que se fazia
em função do sexo: os homens, mais virados para o fabrico de armas e para a caça;
as mulheres, encarregadas da defesa das habitações e da colheita e confecção de
alimentos vegetais.
Entretanto, a lenta acumulação de invenções foi aumentando a produtividade
do trabalho. A invenção do arco e da flecha como instrumentos de caça e do arpão
como instrumento de pesca vieram permitir maior regularidade e maior abundân
cia no abastecimento de géneros, reduzindo-se a importância da simples colheita
de frutos, que passou a ser uma actividade meramente suplementar das demais.
O homem começou a trabalhar a pele, os ossos, os chifres dos animais caçados
regularmente. A descoberta de zonas de caça ou de pesca particularmente abun
dantes veio perm itir que nelas se fossem fixando as primeiras tribos, pois a abun
dância da caça e da pesca, aliada ao uso de instrumentos mais perfeitos, permitiu o
abandono progressivo do nomadismo, enquanto prática imposta pela necessidade
de procurar novas regiões onde pudessem encontrar alimentos. O próprio regime
sedentário, por seu turno, proporciona o aumento da produtividade do trabalho,
permitindo que se produzam mais e melhores instrumentos de trabalho.
Assim se foram criando condições para que as comunidades primitivas produ
zissem, além do necessário à sobrevivência, um excedente (sobreproduto social). As
sim se puderam constituir reservas de alimentos, reduzindo o risco da ocorrência
de períodos de fome. Assim foi possível uma divisão do trabalho mais avançada e
o consequente aumento da população (fenómeno que é, ele próprio, revelador da
existência de um excedente social). Este aumento da população abre, por sua vez,
novas possibilidades de especialização e de divisão do trabalho, ampliando a quan
tidade e a eficiência das forças produtivas à disposição da humanidade.
A existência de um excedente regular e permanente de alimentos foi a base mate
rial necessária para que pudesse acontecer a grande revolução económica e social do
período neolítico - a revolução neolítica, como justamente lhe chamam os autores. Foi
o início da agricultura, da domesticação e da criação de animais, actividades que pressu
põem necessariamente a existência de uma certa reserva de alimentos.
Em primeiro lugar, porque é preciso dispor de alimentos para se lançarem à
terra e de animais para criar com vista à reprodução, ou seja, é preciso dispor de
alimentos que possam não ser consumidos no presente com vista à obtenção de
maiores quantidades de alimentos no futuro.
A v e l A s N u n e s - 81
Cfr. E. M A N D EI, Trjité.. . , ciL, 1,112. Sobre a noção de excedente {sobreproduto social) e sua importância, ver,
além de E. M A N D EI, últ. ob.cit., cap. I, P. BARAN, A Econom ia..., cit., 22-34; C . BETTELHEIM, PlanifícaÜon...,
cit., 51ss; C. FURTADO , Prefácio..., cit., 13-70.; R. LÓPEZ-SUEVOS, Excedente Económ ico..., cit.
8 2 - U m a In t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o i Id c a
Surgiu então uma grande diferenciação entre as tribos que continuaram uma
vida nómada, vivendo essencialmente da caça, e aquelas que adoptaram uma acti
vidade económica que permitiu (e exigiu) a sedentarização, ao mesmo tempo que
surgiu a primeira importante divisão social do trabalho entre as tribos que se
dedicaram à pastoricia e as que se dedicaram à cultura da terra.
O nomadismo foi sendo progressivamente abandonado, transformando-se as
tribos em comunidades mais ou menos estáveis. A produtividade do trabalho au
mentou nestas comunidades, que passaram a poder produzir regularmente uma
quantidade de bens superior à necessária para satisfazer as suas necessidades, am
pliando assim o excedente social.33
Com a sedentarização, começaram as famílias a reservar normalmente as mes
mas terras para a sua agricultura, assim se generalizando a utilização particular das
terras na posse de cada família, embora, durante muito tempo, esta posse continu
asse a ter como pressuposto a existência da comunidade c a propriedade colectiva
da terra.
A agricultura desenvolveu-se, passando a adequar-se as sementeiras e as colheitas
às estações do ano, uma vez compreendida a importância da energia do sol. Por
outro lado, nos vales do Nilo, do Tigre e do Eufrates reconheceu-se o valor das
águas como reconstituinte da fertilidade das terras e iniciou-se a prática da irrigação.
A produção de alimentos aumentou de tal forma que, entretanto, com a descoberta
dos metais (cobre e estanho - o ferro só bastante mais tarde), da arte de trabalhá-los
e de fazer ligas (bronze), foi possível operar-se uma nova divisão do trabalho entre a
agricultura e o artesanato (a indústria). A sociedade estava agora em condições de
alimentar milhares de homens que não tinham de produzir alimentos, podendo
dedicar-se exclusivamente a actividades ‘industriais’ou a outro tipo de actividades (a
guerra, as artes, a filosofia, a ‘ciência’). Foi o período em que se descobriram a roda
de cerâmica, os carros de rodas, o arado com ponta de metal, os barcos à vela, a
técnica do fabrico de tijolos (com importantes consequências ao nível da construção,
tanto para fins civis como para fins religiosos). Com a técnica da irrigação, surgiu,
verdadeiramente, a civilização.
A utilização de novos e mais aperfeiçoados instrumentos de trabalho e de
novas técnicas agrícolas aumenta enormemente a produtividade do trabalho. Nos
tempos primitivos, o homem não era capaz de produzir mais que a sua subsis
tência; agora produz-se um excedente, que se transforma em objecto de trocas
35 O gado constitui o primeiro meio de acumulação de riqueza. A função de acumulação de riqueza é uma das
funções da moeda. E a verdade 6 que o gado foi um dos primeiros bens que funcionaram como moeda. A
palavra latina pecus (gado) é a raiz de palavras como pecúlio, pecuniário, etc.
A v e l As N u n e s - 8 3
O E s c l a v a g is m o 37
37 Cfr. J. EATON, ob.cit., 9-10; H. DENIS, H istória...,c it., 83-84; HINDESS/HIRST, ob. cit., 127«.
38 Recorde-se, aliás, que a escravatura - renascida mais tarde como consequência das viagens atlânticas de
portugueses e espanhóis e do desenvolvimento do comércio capitalista - viria a ser abolida no séc. XIX por
pressão das potências capitalistas, principalmente a Inglaterra e os estados industriais do norte dos EUA, em
oposição aos estados rurais e esclavagistas do sul (a Guerra da Secessão pode, aliás, considerar-se "uma forma
especial de revolução burguesa contra a aristocracia latifundiária e plantadora do Sul", como salienta A . SE
DAS NUNES, em Análise Social, n°s. 27/28, p. 371, nota 52). É que ao capitalismo interessava o trabalho livre:
\.°) porque a produtividade dos trabalhadores livres é maior que a dos escravos; 2 .V porque o capitalismo
precisa de consumidores e os escravos não o eram, pois nâo recebiam rendimentos monetários e os donos
gastavam com eles apenas o indispensável; 3. °) porque a própria subsistência dos trabalhadores deixava de
ser um encargo para o capital.
A v e ià s N u n e s - 8 5
acabavam por ser expulsos, por dívidas, indo elas engrossar as grandes proprieda
des cultivadas por mão-de-obra escrava; c arruinavam também os pequenos artesanos
das cidades, em virtude do recurso a artífices escravos. Assim se criaram enormes
massas empobrecidas e sem meios de ganhar a vida, que os senhores de Roma iam
entretendo distribuindo pão e circo (panem etcircensis).
As novas conquistas c os novos escravos que elas propiciavam (trabalhando de
má vontade, com produtividade reduzida em comparação com as necessidades)
começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração
romana. O s conflitos no seio das classes de homens livres começam a abalar as
estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre
latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruina
dos, aliados aosproletarii das cidades.
Ao mesmo tempo, começa a manifestar-se o movimento de revolta dos escra
vos contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu
o ponto mais alto com a revolta de Espártaco (73-71 A. C.). Os escravos foram
vencidos, mas a República romana cairia pouco depois. Em 27 A. C. Augusto
inicia o período do Império.
A partir do séc. II R C., a necessidade de obter receitas leva o estado romano a
organizar grandes explorações nas suas terras e a encorajar a concentração das propri
edades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista. As classes médias,
arruinadas, integravam as grandes massas inactivas das cidades, onde o recurso ao
trabalho escravo impedia - como nos campos - qualquer melhoria de produtividade.
Esmagada por Caracala, no início do séc. III, uma revolta da aristocracia, a classe
dominante em todo o Império passará a ser a dos curiales (colectores de impostos),
responsáveis directamente perante o imperador, e cuja autoridade se transmite heredita-
riamente. Os imperadores organizam as artes em corporações obrigatórias e passam a
intervir cada vez mais na economia.
Com Diocleciano, generaliza-se o pagamento em espécie aos funcionários, utilizando
o estado directamente os produtos da terra, sem os deixar passar pelo mercado, cuja
importância diminui, justificando a tendência dos grandes proprietários para se consti
tuírem em economiasfechadas, de dimensões cada vez maiores, colocando-se os peque
nos proprietários - desarmados perante o fisco - sob a protecção dos grandes.
Por outro lado, com vista a facilitar a cobrança dos impostos (frequentemente
pagos em géneros), o estado procurou fixar à terra que cultivavam os pequenos
agricultores livres das aldeias, instituindo o regime de colonos. Estes não podiam
deixar a terra, nem casar fora do domínio, nem vender os seus bens sem autoriza
ção do proprietário da terra. Assim se institui um regime de grande propriedade,
8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a
39 Sobre a génese das relações de dependência pessoal, cfr. M. BLO C H , A Sociedade Feudal, cit., 171 ss.
40 Cfr. A. HESPANHA, História das Instituições, cit., 81/82. Em geral sobre a transição da 'sociedade antiga' para o
feudalismo, ver: F. LOT, O fim d o mundo antigo, cit.; P. ANDERSON, Passagens..., cit.
A v elAs N u n e s - 8 7
c
O F e u d a l is m o 41
1. C a r a c t e r iz a ç ã o g eral
Na sociedade feudal toda a vida social era marcada por um elemento comum,
a subordinação de indivíduo a indivíduo, a relação de dependência pessoal, a cir
cunstância de cada um M scr o homem de outro homem”, na expressão de Marc
Bloch.42 Esta relação de dependência pessoal caracterizava todo o tecido da socie
dade feudal, independentemente da natureza jurídica exacta do vínculo e sem dis
tinção de classes: o conde era o ‘homem’ do rei, do mesmo modo que o servo era
o ‘homem’ do senhor da terra onde vivia e trabalhava.
As formas deste laço humano apresentavam, porém, algumas singularidades,
conforme os níveis sociais em que se verificavam. N o grau inferior, as relações de
dependência encontraram o seu enquadramento natural no senhorio rural, que é,
fundamentalmente, uma terra habitada e os seus súbditos. N o âmbito do senhorio,
o vínculo de dependência pessoal tinha no aspecto económico o seu campo de
iniciativa primordial: o objectivo do senhor era, preponderantemente, o de obter
rendimentos, através da apropriação dos frutos do trabalho gratuito dos servos.
Tradicionalmente, a designação feudalismo vem associada a determinadas es
truturas jurídicas e políticas (a “vassalagem”), que apontam para um entendimento
do feudalismo como regime jurídico-político. Por nós, utilizá-la-emos aqui no
sentido de modo de produção feudal ou sistema económico-social feudal.43
41 Sobre o feudalismo, ver: TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Foliüca, cit, 147ss.; M. DOBB, A Evolução..., cit; P. SWEEZY, M.
D 0 6 8 e outros,ob.ci.; PARAI NtVllAR e outros, cò.dt; HINDESSHIRST, Modos de Produção, cit., 260ss.; A HESPANHA
História..., d l, 88ss.; C . CONTE, D. i Crise..., d l, 12-40.
42 Cfr. Marc BLOCH, A Sociedade Feudal, c it, 169.
43 Durante muito tempo, os historiadores da Idade Média distinguiram entre feudalismo e senhorio. Mas esta
distinção foi sendo abandonada pela historiografia mais recente, graças, sobretudo, aos trabalhos de inspira
ção marxista. Reconhece-se, por um lado, que não 6 fácil isolar, no contexto económico, social e político das
sociedades medievais, aquelas duas realidades (feudalismo e senhorio), e salienta-se, por outro lado, que
ambas relevam na conformação de um mesmo sistema económico-social (o sistema feudal, o feudalismo,
na acepção cm que aqui se utiliza esta palavra).
Alguns historiadores (sobretudo franceses) ensaiaram a distinção entre feudalismo efeudaUdade. A expressão
feudalismo traduziria o entendimento tradicional de regime jurídico-político caracterizado pelas relaçóes
de vassalagem entre o rei e os grandes vassalos, que disporiam de poderes majestáticos bastante amplos. A
expressão feudalidade traduziria a concepção alargada de regime senhorial, caracterizado este pela
8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
existência de laços de dependência económica, política e social fundados na posse da terra e extensivos a toda a
sociedade e nâo apenas ao topo da escala social. Este entendimento da feudalidade enquanto estrutura social comple
xa marcada por laços de dependência em que o proprietário da terra era também senhor ce m que os produtores
directos eram também servos nâo é substancialmente diferente do entendimento que fazemos do feudalismo como
modo de produçáo feudal ou sistema económico-social feudal. Cfr. A. HESPANHA, História..., d l., 84ss.
44 A p u d E. M ANDEL, Tra/té..., d l , III, 116.
45 Cfr. M. D O B B, A Evolução..., c i l, 35-36.
A v elã s N u n es - 8 9
46 Cfr. C . CON TE, Da Crise..., c it , 12 ss. e A. GUERREAU, O feudalismo. .., c it , 215 ss.
47 U lt .o b .c iL ,\ 5 .
48 Cfr. J. K. CAL BRAITH, Anatomia do Poder, cil., 110.
9 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a
é que a justiça é exercida pelo ‘suserano’ sobre os seus vassalos e pelo ‘senhor’ sobre
os camponeses. A exploração das prestações económicas e o aparelho jurídico-
político encontram-se, por isso mesmo, muito estreitamente unidos”.49
A natureza de classe do estado aparece, nestas condições, sem qualquer dúvida
nem disfarce: o poder político e a violência que ele representa é exercido pela
classe dominante (que dispõe do poder militar e administra a justiça através de
tribunais nomeados pelos senhores e responsáveis perante eles) para garantir a
apropriação do sobreproduto criado pelos trabalhadores servos e, em último ter
mo, para defesa dos seus interesses de classe, que exige a manutenção do estatuto
de servidão e das relações de produção servis.
Acompanhemos a lição de M arx:50
“É precisam ente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que
todas as relações sociais aparecem como relações entre pessoas. O s trabalhos
diversos c os seus produtos não carecem, por isso, de adoptar um a figura
fantástica distinta da sua realidade. A presentam-se como serviços, prestações e
entregas itt natura. A forma natural do trabalho, a sua particularidade - e não a
sua generalidade, o seu carácter abstracto, como na produção de mercadorias -
é tam bém a sua forma social. A corvcia é medida pelo tem po do m esm o m odo
que o trabalho que produz mercadorias; mas cada prestador da corveia sabe
m uito bem , sem recorrer a um A dam Sm ith, que é um a quantidade d eterm i
nada da sua força de trabalho pessoal que ele despende ao serviço do seu senhor.
(...) D e qualquer maneira que se julguem as máscaras que os hom ens trazem
nesta sociedade, as relações sociais das pessoas nos seus trabalhos afirmam-se
nitidam ente com o as suas próprias relações pessoais, cm vez de se disfarçarem
sob a forma de relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho”.
Durante uma grande parte da Idade Média, o excedente social (o que os trabalha
dores produziam para além do necessário à sua sobrevivência) foi apropriado pelos
senhores feudais, que dele viviam, uma vez que não participavam na actividade pro
dutiva. A grande massa dos produtores limitavam-se a consumir o que produziam
nos dias em que trabalhavam para si nas terras que os senhores afectavam à subsis
tência dos trabalhadores. Estes não aparecem no mercado, nem a comprar nem a
vender. A produção era essencialmente produçãopara uso e não para venda.
As trocas eram essencialmente trocas internas, trocas directas de produtos e
serviços entre os produtores. Só os senhores dispunham de bens para vender e só
eles podiam comprar os produtos de ‘luxo’ da produção artesanal, ela mesma sem
53No sentido do texto, cfr. M. DO BB, A Evolução.. cit., 39 e E. MANDEL, Traité. .., cit., 1,11 (Vl 17. Poderá também
observar-se que, em outro contexto, o recrudescimento do esclavagismo nos EU A e em certos países da América
Latina (produtores de algodão, café e outros produtos de exportação), bem como a permanência da servidão
na Europa Central e de Leste até praticamente à Revolução de Outubro (1917), são explicáveis exactamente
como resultado da inserção desses produtos no circuito comercial do capitalismo à escala mundial.
A v e iA s N u n e s - 9 5
Por outro lado, a necessidade de fortalecer o poderio militar dos grandes se
nhores levou à prática corrente do sub-enfeudamento, que aumentou muito o nú
mero de vassalos, sobretudo na Europa Continental. Assim aumentava o número
dos que não participavam na produção e tinham de ser sustentados pelo sobrepro
duto exigido à classe servil, dizimada e empobrecida pelas guerras.
O desenvolvimento da cavalaria trouxe consigo a emulação entre as casas da
nobreza, que gastavam fortunas em festins e extravagâncias, os quais constituíam,
juntamente com as guerras, o domínio onde se fazia sentir a ‘concorrência entre os
senhores feudais. Assim se dissipava o excedente social, insusceptível então, dada a
sua natureza não monetária, de ser aforrado com vista à posterior utilização no
desenvolvimento da capacidade produtiva.
Acresce que as Cruzadas constituíram uma ‘empresa’ que exigiu grande dis
pêndio de rendas feudais e desviou muita gente do trabalho dos campos, embora
viessem a trazer riquezas importantes à Europa, fruto da violência sobre as popu
lações árabes, vítimas do saque e da pilhagem das suas cidades.
Estes foram alguns dos factores que contribuíram para acentuar as exigências
feitas aos servos, cuja situação se agravou para o final do séc. XIII. Esse agrava
mento não será alheio, aliás, à diminuição da população que por essa altura se
verificou, provocando a retracção das rendas feudais e abrindo a situação de crise
aguda que caracterizou a economia feudal no séc. XIV, crise acentuada pela ocor
rência de pestes particularmente destruidoras em virtude da subnutrição das popu
lações camponesas e da carência de reservas alimentares (a peste negra dizimou
cerca de um terço da população europeia).
As dificuldades da economia feudal e as crescentes exigências dos senhores
(que não podiam subsistir sem as prestações extorquidas aos servos, cada vez mais
pobres e em menor número) tiveram como resultado, nas palavras de Maurice
D obb54, “não só exaurir a galinha que punha os ovos de ouro para o castelo, mas
provocar, em virtude de um total desespero, um movimento de emigração ilegal
das propriedades senhoriais - uma deserção em massa por parte dos produtores,
que viria retirar do sistema o seu sangue vital e provocar a série de crises em que
a economia feudal se veria envolvida nos séculos XIV e X V ”.
Estes ‘emigrantes’, que em parte se acolhiam às cidades então em período de
crescimento, alimentaram também bandos de marginais e vagabundos e estiveram
na base das jaequeries, tão frequentes na Idade Média. Com o à frente se verá, este
movimento de fuga dos servos marca o início do processo que havia de subtrair ao
55 Numa carta a Engels, Marx observa: "passa-se frequentemente algo de bastante patético com o modo como
os burgueses no séc. XII incitaram os camponeses a fugir para a cidade".
A v elà s N un es - 9 7
56 A legislação inglesa punia severamente a fuga dos servos ao 'serviço' feudal, havendo mesmo penalidades
contra a aprendizagem de um ofício (actividade artesanal) por parte daqueles que estivessem ligados a um
senhorio (manor), sendo proibido a qualquer homem dono de terra de rendimento anual inferior a £ 20 tornar
um filho aprendiz de um ofício. Cfr. M. D O B B, A Evolução. .., cit., 16, nota 3.
57 Cfr. I. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Polilica, cit., 152.
58 Ver: J. KUCKZYNSKI, Pequena História. .., cit., 171 -195; C . FO U R Q U IN , História Económica. . ., cit., 221 ss. e
239 ss.
9 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
62 Como escreveu MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 530), “ na Inglaterra a servidão tinha desaparecido de fado
por volta do final do séc. XIV. A imensa maioria da população compunha-se entâo, e mais inteiramente ainda
no séc. XV, de camponeses libres que cultivavam as suas próprias terras, quaisquer que fossem os títulos feudais
com que se encobrisse o seu trtulo de posse. (...) O s assalariados rurais eram em grande parte camponeses - que,
durante o tempo disponível deixado pela cultura dos seus campos, se alugavam ao serviço dos grandes propri
etários -, em parte uma classe particular e pouco numerosa de jornaleiros. Mesmo estes eram em certa medida
cultivadores por conta própria, pois além do salário fazia-se-lhes concessão de campos de pelo menos quatro
acres, com casa de habitação; além disso, participavam, juntamente com os camponeses propriamente ditos,
no usufruto dos bens comunais*.
63 Cfr. P. SW EEZY e outros, ob. cit., 35.
A v e lã s N u n f s -101
* B IB L IO T E C A 0
A T r a n s iç ã o p a r a o C a p it a l is m o
64 Sugestões para leitura: Adam SM ITH, Riqueza das Nações, ed. cit., 1,581 ss (Cap. III, Livro III); K. M ARX, O
Capital, vol. XXIV (em MARX/ENCELS, Obras Escolhidas, cit., II, 104-158, e Le Capital(trad. J. Roy), cit., 527-
529 c caps. XXVI a XXXI; R. THOMPSON, ob. c it , III, 963-966; P. VILAR, Desenvolvimento Económico..., cit.,
104-106;J.deV RIES,A ecor> om «...,cit., 185-192 ; 0 . LA N C Eeoutros,P rob lem a s...,cit., 18/19e36ss.
65 Na última categoria de pessoas incluíam-se os trabalhadores: no século XVIII teve muita voga a tese da preguiça
natural das classes trabalhadoras, que, por isso (por 'culpa sua'), eram pobres. Começavam a fazer o caminho
as concepções deterministas que mais tarde vieram a informar as teorias que procuram 'legitimar' o racismo
e que tentaram (e tentam) 'explicar' o subdesenvolvimento como um fenómeno perfeitamente natural, dadas
as características 'naturais' dos povos dos países 'subdesenvolvidos' e das regiões em que habitam.
66 Cfr. O Capital, em MARX/ENGELS, Obras Encolhidas, ed. cit., II, 104/105.
1 0 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
1 . A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL
a) As Cruzadas
Foi com as Cruzadas (séc. XII) que se restabeleceram as relações entre o O ci
dente e o Próximo Oriente, reabrindo a rota do Mediterrâneo, desenvolvendo-se
intenso tráfego comercial, feito através das Repúblicas Italianas e dos Países Bai
xos para o norte da Europa. Deste comércio de produtos de luxo (especiarias e
produtos do Oriente, tecidos italianos e flamengos) provieram grandes lucros, de
que aproveitaram sobretudo os mercadores italianos (que tinham, aliás, financiado
parcialmente as expedições à Terra Santa) e flamengos, que dominaram - princi
palmente os primeiros - a vida económica europeia até ao séc. XV. E foram os
lucros deste comércio internacional de bens apenas ao alcance das classes dom i
nantes que propiciaram - a par das riquezas que à Europa afluíram como resultado
directo das Cruzadas - a primeira grande acumulação de capitais na Europa, capi
tais que fizeram a fortuna de uma nova classe de comerciantes que assim se apro
priava de uma parte do sobreproduto agrícola que os camponeses entregavam à
classe dominante dos senhores feudais.
A v elã s N u n e s - 1 0 3
67 Foi o tempo de banqueiros famosos, como os Médici, os Fugger, os Welser, o francês Jacques Coeur. Este chegou
a emprestar dinheiro ao rei de França a juros que atingiam por vezes 50% ; calcula-se que a sua fortuna
equivalia, por volta de 1450, a cerca de 22 milhões de francos com o poder de compra de meados do séc. XX
(H. DENIS, História..., c i l, 89).
68 Cfr. Pierre Vilar, em C. PARAIN e outros, ob. cit., 58.
1 0 4 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o i It ic a
69 Cfr. E. M ANOEL, Trailé. ... cif., 1,130 e P. VILAR, ú/f. ob. cit., 64.
70 Não foram, evidentemente, os portugueses que iniciaram o tráfego de escravos, já praticado nas civilizações
africanas; mas o contacto dos navegadores lusos com os povos africanos foi o factor decisivo no desenvolvimen
to desse comércio, a partir dos sécs. XV e XVI. Logo na primeira viagem dos portugueses às Canárias (1341)
foram feitos cativos, sendo os escravos canários utilizados na colonizaçáo e cultivo do açúcar na Madeira, a par
de escravos mouros, negros e mulatos. Quanto aos escravos africanos, as primeiras exportações por mar des
tinaram-se 5s plantações de cana de açúcar da Madeira e, depois, de S. Tomé. O s primeiros escravos negros
chegaram a Portugal, vindos da Guiné, em 1441. Deste acontecimento faz Zurara um impressivo relato no cap.
XXV da Crónica dos Feitos de Guiné (ediçáo da Agência Geral do Ultramar, II, 1949, 124-127). M ais tarde
chegaram escravos negros provenientes de Cabo Verde, de Angola e de Moçambique, além de 'japões', 'chins'
e 'índios' (da índia), calculando-se que havia em Lisboa, por volta de 1551, uns 10.000 escravos (num total de
100.000 habitantes), existindo também na capital 12 corretores de escravos, que eram simultaneamente cor
retores de cavalos, e 60 a 70 mercadores que se dedicavam ao tráfico de escravos. A grande maioria dos
escravos negros saiu de Angola, com destino ao Brasil e às colónias espanholas. Calcula-se que, a partir da
criação da capitania de Angola (1571), tenham saído pelos seus portos, todos os meses, entre 9.000 e 12.000
escravos, sendo estes escravos, "durante séculos, a única mercadoria de tomo que manteve a presença do
comércio português naquelas paragens, poiso marfim, que se lhe segue em importância, ocupou sempre uma
posiçào muito secundária*. Só por Decreto de 1Q/Xll/1836, viria a ser proibida a exportação e a importação de
escravos nas colónias portuguesas ao sul do equador, o que equivale, praticamente, à abolição do tráfico de
escravos em todo o território sob jurisdição portuguesa. Finalmente, em 23/11/1869, foi abolida a escravatura
em todos os domínios portugueses.
As estimativas mais divulgadas apontam no sentido de terem sido exportados, a partir da costa ocidental da
África, até finais do séc. XIX, à roda de 11 milhões de escravos. Se admitirmos que chegava ao destino final, e
morriam cinco na caça aos escravos e durante as viagens (por doença, motim ou inadaptação), o tráfego de
escravos terá imposto ao continente africano uma hemorragia de cerca de 60 milhões de pessoas
Sobre o objecto desta nota, ver J. A NOGUEIRA, ob. cA;V. ALEXANDRE, Origens. .., ciL, 21 ss.; P. R. ALMEIDA, ob.dt.
A v elã s N un es - 1 0 5
East índia Companye a Hudson Bay Companie, na Inglaterra; a Compagnie des Indes
Orientales, na França.
d) A exploração colonial e a \revolução dospreços’
Como consequência imediata das viagens e das conquistas de portugueses e es
panhóis, afluem à Europa tesouros fabulosos, produto do saque a que foram sujeitos
os povos autóctones, nomeadamente os tesouros dos Incas e dos Maias. Grande
parte dessas riquezas imensas foi gasta em despesas sumptuárias e em aventuras
militares, mas acabou por cair nas mãos dos grandes mercadores e banqueiros da
época, que desde cedo se tomaram poderosos intermediários dos negócios coloniais.
A pirataria e a pilhagem dos navios espanhóis em breve passaram a constituir
importante fonte de réditos da corte de Inglaterra, país que mais tarde (séc. XVIII)
aplicaria na índia os métodos de usurpação violenta que primeiro foram usados
nas Américas e que os holandeses igualmente tinham adoptado no Extremo O ri
ente (séc. XVII).
A colonização e a exploração sistemática dos territórios colonizados vieram
cm seguida substituir este primeiro período de saque desenfreado. Além de utili
zarem mão-de-obra escrava, as potências colonizadoras impuseram aos povos in
dígenas das colónias pesados tributos, pagáveis em dinheiro, que apenas poderiam
obter se trabalhassem para os colonizadores. Com este mesmo objectivo, foram
utilizados outros meios de coerção, como a proibição de os povos colonizados
cultivarem produtos comercializáveis, o confisco das suas terras de cultivo, o en
cargo cometido aos chefes tradicionais das colónias de enviarem jovens para tra
balhar nas minas e nas plantações.71
A dureza das condições de trabalho impostas aos povos colonizados (escravos
ou não) foi de tal ordem que populações inteiras foram dizimadas (v.g. os índios
de São Domingos e de Cuba) e outras, destruídas as bases da sua civilização,
foram forçadas a render-se (v.g. as populações do México).
Era muito baixo, nestas condições, o custo de produção do ouro e da prata, que
afluíram à Europa, ao longo do séc. XVI, em grande quantidade. O valor do ouro e
da prata obtidos nas colónias das Américas ficava diminuído em relação ao valor dos
restantes bens, que viram subir os seus preços em termos dos metais usados como
moeda. Os lucros provenientes desta subida de preços devem-se, pois, em primeiro
lugar, à exploração das riquezas mineiras do Novo M undo e do trabalho das suas
populações. De tal forma assim é, que no séc. XVII a acumulação de capital foi
menos intensa, na Europa, do que no séc. XVI, dado que a subida do custo de
produção do ouro a partir de 1600 provocou a sua revalorização e a baixa dos preços
em ouro dos produtos europeus. Só no séc. XVIII o processo de acumulação de
capitais retomaria o seu ritmo, pois o aumento demográfico veio permitir a reorga
nização da exploração colonial, o que, a par da descoberta de novas minas no Méxi
co e no Brasil, provocou uma nova baixa do valor do ouro e da prata.72
Marx referia-se assim, em 1847, a este fenómeno da revolução dospreçosrP
“N o séc. XVI, a quantidade de ouro e prata em circulação na Europa aumentou
cm consequência da descoberta das m inas americanas, mais ricas c mais fáceis
de explorar. O resultado foi que o valor do ouro e da prata dim inuiu em relação
ao dos outros artigos de consumo. O s trabalhadores continuaram a receber o
mesmo dinheiro pela sua força de trabalho. O seu salário m onetário m anteve-
se estável e no entanto o seu salário tinha baixado, pois cm troca da mesma
quantidade de dinheiro recebiam uma quantidade menor de outras m ercadori
as. Este foi um dos factores que favoreceram o crescim ento do capital, a
ascensão da burguesia no séc. X VI”.
72 'Deste modo - conclui P. Vilar (em C. PARAIN e outros, ob. cit., 63) - vemos que a intensidade da acumulação
monetária na Europa, condição para a instalação do capitalismo, dependeu do grau de exploração do traba
lhador americano. Isto não vale apenas para as minas. O ouro e a prata são mercadorias. O açúcar, o cacau,
o café fxxJem provocar fenómenos análogos. A acumulação primitiva do capital europeu dependeu tanto do
escravo cubano como do mineiro dos Andes".
73 Ver K. M ARX, Le CapitaHuad. |. Roy), cit., 89.
74 Calcula-se que foi de 80% a redução do poder de compra na França, entre 1462 e 1602. Na Inglaterra, entre
1500 e 1602, o índice de preços passou de 95 para 243, enquanto o índice dos salários subiu apenas de 95 para
124 (cfr. H. D EN IS,H istó ria ...,cit., 9 2 e E . MANDEL, Traité...,cit.,1 ,131).
A v e iâ s N u n e s - 1 0 7
75 Recorde-se o remoto Stalute o f Labourcrs (promulgado na Inglaterra sob Eduardo III, em 1349), no qual, a
pretexto da diminuição acentuada dos trabalhadores cm consequência da peste, se fixava um horário de doze
horas de trabalho por dia e se proibia que os salários ultrapassassem um máximo determinado, mas não se
previa qualquer salário mínimo. Na França, ficaram célebres as Ordonnances de VillersCotterêts (1539), que
tiveram paralelo na Inglaterra em uma disposição de 1630. As referidas Ordonnances, cujos princípios foram
passando para sucessivas disposiçAes legais, até à Lei Le Chapelier (1791), proibiam "a todos os mestres, aos
companheiros e serviçais de todos os mestres realizar qualquer congregação ou assembleia, grande ou peque*
na, seja para que assunto for, fazer qualquer monopólioe ter ou tomar qualquer combinação uns com os outros
por causa da sua profissão, sob pena de confisco de corpo e bens”. Na Inglalerra, de resto, desde o séc. XIV que
as coaliçâcs de trabalhadores eram consideradas entre os crimes mais graves (e assim se mantiveram as coisas
até 1824/ 1825, com a promulgação das leis que vieram autorizar a constituição de sindicatos e o recurso á
greve).
76 Ver K. M ARX, Le Capital(trad. J. Roy), 529.
1 0 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Mas foi na Inglaterra que o movimento das enclosures encontrou a sua mais
clara expressão e só aí (no séc. XVIII) o processo se radicalizou. As terras caem
nas mãos da burguesia rica, interessada em tirar delas produtos que pudesse co
merciar. O desenvolvimento da indústria de panos na Flandres garantia mercado
para a lã, a preços compensadores: não tardou, por isso, que a Inglaterra se trans
formasse num país “onde os cordeiros comem os homens” (Thomas M orus).77
Em consequência da Guerra das Duas Rosas (a rosa branca da Casa de York e a
rosa vermelha da Casa de Lancaster), entre 1455 e 1485, verificou-se o aniquila
mento das antigas casas feudais e o início da monarquia absoluta dosTudor. A nova
nobreza que emergiu da guerra compreendeu que a riqueza era agora a fonte do
prestígio e do poder. E tratou de se lançar também na constituição de unidades
agrícolas de grande dimensão, reunindo parcelas até aí dispersas por vários pequenos
camponeses, transformando as terras de cultura em terras de pastagens para criação
de ovinos (a literatura da época fala de quintas de capital ou quintas de comerciantes).
Ao mesmo tempo, os grandes proprietários de terras começaram a apropriar-se
das terras comunais, cercando-as para nelas fazerem pastar os seus rebanhos. Assim se
iniciava a prática conhecida por enclosures, que haveria de revigorar-se mais tarde e
que tão importante foi na evolução da economia inglesa para o capitalismo.
Uma lei de Henrique VII (1498) ainda veio proibir a demolição das casas de
camponeses que agricultassem pelo menos 20 acres de terra, proibição renovada
com Henrique VIII, que ordenou mesmo a reconstrução de casas de camponeses
destruídas e fixou a proporção entre terras de pastagem e terras de trigo. Proibi
ções platónicas, pois o processo não cessou.
A criação de gado dispensava grande número de trabalhadores (depopulatingpastu-
re) e implicava a diminuição da área disponível para a produção de alimentos (além de
que as terras mais férteis eram destinadas a pastagens). A ocupação das terras comunais
(depopulating enclosures) impedia que os camponeses continuassem a usá-las para nelas
apascentarem o gado e para delas extraírem madeira para aquecimento e para a cons
trução. A Reforma e a extinção dos conventos traduziram-se na expropriação dos bens
da Igreja Católica, a maior proprietária feudal de Inglaterra. Grande número de cam
poneses foram assim separados das terras e ficaram sem trabalho, o mesmo acontecen
do a muitos agricultores independentes (Yeomen), afastados da posse das terras.
Assim se formam grandes massas de ‘mendigos’ e ‘vagabundos’ (desemprega
dos), abandonados à maior miséria, sem possibilidades de proverem à sua subsis
tência a não ser que encontrassem trabalho como assalariados, o que não era fácil,
77 Em 1533, um texto oficial referiahaver proprietários que possuíam 24.000carneiros (cfr.K. MARX, uh. ob.cH.,532).
A v elã s N un es - 1 0 9
78 Só no reinado de Henrique VIII teriam sido executados 72 000 (cír. K. M ARX, Le Capital, trad. J. Roy, cit., 544).
Também na França, no último terço do séc. XVIII, a mendicidade atingiu proporções consideráveis, verifican-
do-se o afluxo às cidades das massas de indivíduos que o campo, saturado, nào podia albergar. Considerada a
'mendicidade' um delito punido pelo estado, propunham alguns que esses 'mendigos' fossem enviados para as
galés por toda a vida, enquanto outros propunham que se desenvolvessem as manufacturas para absorver a
força de trabalho dos 'vagabundos' (produzir era resolver os problemas). Esses 'vagabundos' do séc. XVIII esti
veram na base do proletariado moderno. Como nota M. PERROT, ob. cit., 74, "ces errants se sont fixés, ces
insolents se sont combés, ces indolents se sons hâtés, ces braillards se sont tus. Ils ont gagné du pain et perdu la
route'.
79 Acerca da atitude adoptada, na filosofia e na prática social e política, relativamente a estes 'vagabundos', cfr. R.
SOARES, ob. cit., 60-62.
1 1 0 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
80 Sobre esta problemática, cír. R. LÓPEZ-SUEVOS, O excedente. . ., cit., 157ss. Colocando-se na perspectiva de
quem pretende traçar uma estratégia de desenvolvimento para os actuais países subdesenvolvidos, Paul Baran
sustenta que, tal como no séc. XVIII, só a industrialização pode permitir uma 'revolução tecnológica' na agri
cultura e o aumento da produtividade deste sector. É certo. Mas o que se pretende dizer no texto é que a
industrialização só pode ser levada a cabo autonomamente (soberanamente) com base no excedente
mobilizável a partir da agricultura, o que implica uma 'revolução agrícola' que modifique, desde logo e para
além de outros factores, as estruturas da propriedade da terra. Cfr. P. BARAN, A Economia. . ., cit., 359ss.
81 Cfr. P. BAIRO CH , Le Tiers-Monde. .., cit., 19ss. Marx sublinha que 'n o final do século XVI a Inglaterra possuía
uma classe de rendeiros capitalistas muito rica para a época', enriquecida à custa dos trabalhadores assala
riados e dos proprietários rurais, uma vez que, por essa altura, os contratos de arrendamento de terras eram
ainda celebrados por um perfodo de 99 anos, correndo contra os proprietários a desvalorização das rendas
pagas em dinheiro. Cfr. Le CapitaUtrad.). Roy), ciL, 551.
82 Cfr. Le Capital (trad. de J. Roy), cit., 535.
A v elã s N u n es - 1 1 1
a) A indústria artesana
Vimos como, a partir dos sécs. XII e XIII, se desenvolveram na Europa as
cidades em sentido económico. A actividade industrial levada a cabo pelos habi-
83 Assim escreveu, em meados do séc. XVIII, o célebre Dr. Price (citado por MARX, ú ll ob. cit., 537): 'O s próprios
escritores que defendem as enclosures convém em que elas reduzem as culturas, fazem subir os preços das
subsistências e conduzem ao despovoamento. (...) E, mesmo quando se trata de terras incultas, a operação, tal
como se pratica hoje, retira aos pobres uma parte dos seus meios de subsistência e acelera o desenvolvimento
de quintas que já sâo demasiado grandes. (...) Quando a terra cai na máo de grandes agricultores, os pequenos
rendeiros Ique noutro lugar - esclarece Marx - tinha designado como pequenos proprietários e tenentes
(tenjnts - possuidores da terra) que vivem, eles e as suas famílias, do produto da terra que cultivam, dos carneiros,
das aves, dos porcos, etc., que póem a pastar nas terras comunaisl serào transformados em outras tantas pessoas
forçadas a ganhar a sua subsistência trabalhando para outrem e comprando no mercado o que lhes é neces
sário. Trabalhar-se-á mais talvez, porque a pressáo das necessidades é maior (...) As cidades e as manufacturas
crescerão porque a í se apanharão mais pessoas cm busca de emprego. É neste sentido que a concentraçáo das
quintas opera espontaneamente e assim vem operando neste reino desde há bastantes anos. (...) Os pequenos
proprietários e rendeiros foram reduzidos à condiçáo de jornaleiros e mercenários, ao mesmo tempo que se
lhes tornou mais difícil ganhar a vida nesta condiçáo.'
84 Fenómeno análogo verificou-se nas Highlands da Escócia, mais para o final do séc. XVIII: os povos a í fixados, que
viviam da agricultura, sâo expulsos para as terras - pouco férteis - junto ao mar, proibindo-se-lhes a emigração para
o estrangeiro, a fim de os obrigar a afluir a Glasgow e a outros centros manufactureiros. Movimentos idênticos de
ocupação das terras comunais ocorreram, embora com atraso no tempo em relação à Inglaterra, na generalida
de dos países da Europa, sendo de referir a França (sobretudo a partir de 1789), a Alemanha e a Bélgica. Na
Espanha, pode referir-se a Real Pragmática de 1793 sobre distribuição de terras comunais e a lei de desamortização
de 1855, que permitiu que fossem postos à venda os bens comunais dos povos (cfr. J. V. VIVES, ob. cit., 576ss.).
Alain Touraine refere práticas idênticas na América Latina, no início da industrialização. Para salvaguardar o
seu nível de vida, nas condições resultantes do desenvolvimento da economia industrial, os grandes proprietá
rios do Perú apropriaram-se pela violência das terras dos comuneros e cercaram-nas, provocando a desagre
gação das comunidades camponesas. Cfr. 'L a marginalidad urbana", em Revista Mexicana d e Sociologia,
vol. XXXIX, n®4, Dez/l 977,1.123.
85 Sobre este ponto, cfr. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 153-161 e 178-185 e E. M ANDEL, Traité...,
cit., 1,136ss.
1 1 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
tantes das cidades realizava-se em pequenas oficinas cuja propriedade, bem como
a propriedade dos instrumentos de trabalho, pertencia ao próprio artesano que
nelas trabalhava com os familiares ou com um número reduzido de companheiros
e aprendizes, considerados como se fossem pessoas de família.
Tratando-se de pequenos produtores autónomos, que viviam dos rendimentos do
seu trabalho, realizados pela venda - que eles próprias faziam, sem intermediários -
dos produtos que manufacturavam, não havia nas ‘cidades corporativas’ diferenças
sociais relevantes: no fim da aprendizagem, os companheiros ascenderiam à catego
ria de mestres e ninguém auferia rendimentos que não proviessem do trabalho pró
prio, desenvolvido com vista à satisfação das necessidades do agregado familiar.
O artesano produzia muitas vezes por encomenda ou então para os mercados
locais. De qualquer modo, tinha em vista um quadro de consumidores sensivel
mente estável, até porque a população se manteve mais ou menos estacionária em
boa parte da Idade M édia (deficientes condições higiénicas nas cidades, epidemi
as, guerras e fomes serão as principais razões explicativas do fenómeno).
Perante a ausência de estímulos ao aumento da produção, não admira, pois, que a
técnica utilizada fosse em geral rudimentar e pouco progressiva. As necessidades de
defesa perante a exiguidade do mercado levaram os artesanos a agruparem-se em
corporações de artes e ofícios e a fazer das corporações o elemento básico da força e da
autonomia das suas cidades. Dentro das cidades, as próprias corporações foram leva
das a adoptar um comportamento de tipo monopolístico, tornando cada vez mais
difíceis as condições de acesso à condição de mestre. O aumento do número de
artesanos, perante a rigidez do mercado, haveria mesmo de conduzir a acesa concor
rência entre as cidades, que adoptaram rigorosas medidas proteccionistas.
b) A indústria assalariada no domicílio
Entretanto, como vimos, o comércio desenvolveu-se por toda a Europa. E a cons
tituição dos estados modernos, por volta do séc. XVI, viria alterar a situação das cida
des e dos seus artesanos. Para poderem exercer a sua autoridade em todo o território
nacional, e assim derrubarem as últimas manifestações de autoridade dos senhores
feudais, os reis promoveram a abertura de pontes e estradas que facilitassem as comu
nicações. As relações entre as cidades tomaram-se mais fáceis e frequentes.
E este alargamento da zona de trocas, a expansão do mercado e o distancia
mento dos consumidores iriam trazer novos problemas aos pequenos produtores
artesanos. Por um lado, para trabalharem na sua oficina não podiam deslocar-se às
feiras e mercados, cada vez mais distantes; por outro lado, dilatava-se o período de
tempo entre o início da produção e o momento da venda; finalmente, era necessá
rio produzir em mais larga escala e era necessário suportar as elevadas e crescentes
desesas de transporte. E os artesanos não tinham capitais para financiar tudo isto.
A v elã s N u n es - 1 1 3
Daí que, a certa altura, os artesanos passassem a vender os seus produtos, não
directamente aos consumidores, mas a um intermediário - o comerciante. Este é
que fica em contacto com o mercado, conhece as necessidades e o poder de com
pra. Não tarda que o artesano passe a produzir, não para o mercado, mas para o
comerciante que lhe encomenda a produção. Quando isto acontece, o pequeno
produtor perde o controlo do produto do seu trabalho, embora continue a dispor dos
meios de produção.
M as as necessidades de capital acentuar-se-ão com o progressivo desenvolvi
mento do comércio e a ampliação dos mercados (a população aumenta e a melho
ria da rede de comunicações abre novos mercados). O comerciante passará a fornecer
ele próprio ao artesano as matérias-primas e os instrumentos de produção neces
sários para produzir as quantidades correspondentes à procura acrescida.
Quando isto se verifica, o artesano acaba de perder a sua independência como
produtor, pois passa a não dispor dos meios deprodução', labora matérias-primas que
outrem lhe fornece com instrumentos de produção que não são seus; passa a ter
um ‘patrão’ (o dono dos meios de produção) a quem entrega as mercadorias pro
duzidas, mediante uma remuneração em dinheiro que é, de facto (não de direito),
o seu ‘salário’. O produtor artesano continua, juridicamente, a vender os produtos
que fabrica ao comerciante. M as o comerciante-patrão deduz ao preço a impor
tância que cobra pelo adiantamento dos instrumentos de trabalho e das matérias-
primas, não restando para o trabalhador artesano mais do que a remuneração da
sua força de trabalho (o seu ‘salário’). O produtor autónomo deu lugar ao ‘assalari
ado’, que continua a trabalhar no seu domicílio para um ‘patrão’ que tem vários
outros ‘assalariados’, dispersos, a produzir por sua conta. Começa assim a penetra
ção do capital na produção. Fala-se de indústria assalariada no domicilio.
Por outro lado, esta indústria assalariada no domicílio começou a surgir fora
das antigas cidades corporativas, pois os comerciantes, para fugirem à complexa
regulamentação das corporações e aos ‘salários’ relativamente elevados cobrados
pelos mestres artesanos, começaram a encomendar os produtos a artífices que
viviam nos campos, aos quais forneciam as matérias-primas e os meios de produ
ção. Estes artesanos trabalhavam também no próprio domicílio a troco de um
salário. Esta forma de actividade industrial - que terá começado a espalhar-se a
partir do séc. XV na Bélgica, na Itália, na França e na G rã-Bretanha, sobretudo
nas indústrias de panos e na tapeçaria - evoluiu muito lentamente e só no séc.
XVIII se generalizou a situação de os produtores não disporem dos meios de
produção, que pertenciam agora ao capitalista.
A separação dos produtores dos seus meios de produção realizou-se, porém,
mais cedo nas actividades mineira e metalúrgica, em que são mais caros os meios
1 1 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a
dc produção. Nalguns casos, por volta de finais do séc. XVI, as mais importantes
dessas actividades eram já desenvolvidas com mão-de-obra assalariada concentra
da num mesmo local de trabalho, efectuando-se a produção em termos semelhan
tes aos da manufactura que mais tarde surgiria na indústria transformadora.
Com o Marx observou, a emergência do modo de produção capitalista a partir
do modo de produção feudal pode efectuar-se de dois m odos:86
1) “O produtor torna-se comerciante e capitalista, em oposição à economia
agrícola natural e ao artesanato corporativo da indústria urbana medieval. Esta é a
via verdadeiramente revolucionária”.
2) “O comerciante adquire directamente a produção. Esta última via desem
penha historicamente um papel de transição, mas, verdadeiramente, ela não chega
a revolucionar o antigo modo de produção, que conserva como a sua base” (...),
“continuando os artesanos o seu trabalho nas velhas condições”. (...) “Sem sub
verter o velho modo de produção, ela limita-se a agravar a situação dos produtores
directos, transformando-os em simples assalariados e proletários em condições
ainda mais desfavoráveis do que as dos operários submetidos directamente ao ca
pital, e apropriando-se do sobretrabalho deles na base do antigo modo de produ
ção”. Esta última via corresponde à indústria assalariada no domicilio.
c) As manufacturas
A iniciativa da produção por parte dos próprios capitalistas, fora do âmbito das
antigas indústrias corporativas, haveria de verificar-se, porém, sobretudo a partir
do aparecimento das manufacturas. No séc. XVIII, com efeito, começou a desen
volver-se uma nova forma de organização da actividade produtiva, que antecipa e
cria as bases para as grandes fábricas modernas: a manufactura.
Com Ernest Mandei, poderemos dizer que “a manufactura é a reunião, debaixo
do mesmo tecto, de operários que trabalham com meios de produção que lhes são
fornecidos e com matérias-primas que lhes são entregues. Mas, em vez dc serem
pagos pelo valor total do produto acabado, do qual se deduz o preço da matéria-
prima adiantada e o preço da locação dos instrumentos de trabalho, como aconte
ceu na indústria no domicílio, a ficção da venda do produto acabado ao empresário
é abandonada. Ao operário cabe apenas aquilo que, de facto, ele já ganhava no
sistema da indústria assalariada no domicílio: um simples salário”.87
E as manufacturas depressa se desenvolveram e se sobrepuseram à indústria no
domicílio, dadas as vantagens por elas oferecidas aos novos industriais capitalistas:
88 Prosseguindo a política de 'industrialização' iniciada por D . Luís da Cunha (Conde da Ericeira) no tempo de D.
João V, o Marquês de Pombal criou a Junta do Comércio e, em colaboração com a Direcção da Real Fábrica
das Sedas, promoveu a criação de manufacturas do estado, instaladas nas Amoreiras em regime experimental;
apoiou a criação de manufacturas privadas, concedendo-lhes crédito através da Junta de Comércio, conferin-
do-lhes estatuto de monopólio e privilégios vários, designadamente fomentando a formação de técnicos capa
zes, para o que mandou vir especialistas estrangeiros (holandeses, franceses, italianos e ingleses) que ensinavam
nos estabelecimentos das Amoreiras, a que o Marquês chamava Real Colégio das Manufacturas. Acerca
deste período da história económica portuguesa, ver J. BARBOSA, o b .c i t A. CASTRO , ob.cit. (estudos onde
poderá colher-se indicação de outra bibliografia) e J. 8. M ACEDO, ob.cit.
89 Cfr. O Capital. Cap. XXIV, em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 145.
A v e i As N u n e s - 1 1 7
O estado concedeu especial protecção aos novos centros (fora das ‘cidades cor
porativas) onde se instalavam as manufacturas capitalistas, desejosas de se desenvol
verem, livres das restrições impostas pela organização corporativa, à medida e ao
ritmo exigidos pelo mercado mundial criado pela descoberta das rotas atlânticas.
O estado concedeu crédito em boas condições às novas indústrias: o recurso,
generalizado, à dívida pública alimentou os fundos das grandes sociedades anóni
mas, incentivou o comércio de títulos e a especulação e impulsionou a banca
moderna (o Banco de Inglaterra foi criado em 1694).
O estado empenhou-se em assegurar mercados às novas indústrias, quer atra
vés da celebração de tratados de comércio na Europa, quer através da conquista de
territórios coloniais.
Por outro lado, o proteccionismo foi prática generalizada, já através do lança
mento de direitos alfandegários protectores, já pela concessão de prémios à expor
tação, já pela garantia do monopólio de venda no mercado interno e de monopólios
coloniais, já pela ‘liquidação’ das indústrias nos territórios dominados pela ‘metró
pole’ industrial.90
O estado promulgou, em todos os países, legislação que proibia e considerava
crimes as coligações operárias, as associações profissionais e o recurso à greve.91
O estado - Sombart refere variadíssimos exemplos92 - obrigou as populações a
um verdadeiro trabalhoforçado nas manufacturas, nomeadamente na Espanha, na
França, na Alemanha, na Holanda, na Suíça, na Áustria, na Inglaterra e na Rússia
(país onde a servidão ainda subsistia). E sabe-se também como o estado favoreceu
o recrutamento de trabalho infantil, num tempo em que multidões de crianças, a
90 Basta recordar o que a Inglaterra fez à manufactura de 13 na Irlanda. Eis o comentário de um antigo professor da
Faculdade de Direito de Coimbra: "Um rei da Inglaterra, Guilherme III, respondeu a uma ignóbil representação
do Parlamento contra as manufacturas florescentes da Irlanda com o programa ainda mais ignóbil - Eu hei-de
fazer tudo o que em mim e s tia r para desanimar toda e qualquer manufactura na Irlanda. À América proibiu-
se-lhe constmir forjas e fornos para fabricar aço; proibiu-se-lhe fazer um prego, uma argpla, uma ferradura. Foi esta
proibição da indústria e nào uma questão de impostos, pensa Leroy-Beaulieu, que fez revoltar os Estados Unidos.
Com relaçáo à Irlanda, o ignóbil plano de Guilherme III, seguido com a tenacidade e com o egoísmo de tigre
da Inglaterra, tornou aquela desgraçada ilha exclusivamente agrícola, horrorosamente miserável. Por fim,
julgou-se que a emigraçáo era o único remédio, e dos púlpitos começou-se a pregar: - Emigrai. E em cinco anos
emigrou com efeito a oitava parte da populaçáo total" ( Cfr. J. F. LARANJO, ob. cit., 89). Segundo informação
colhida em K. MARX, Le Capital, Annexe X, em Oeuvres (ed. de Maximilien Rubel, cit.) 1 ,1.389, a população
da Irlanda passou de 8.222.664 habitantes em 1841 para cerca de 5 milhões e meio em 1866.
91 Para além de outras medidas legislativas anteriores, acima referidas, tais proibições resultam, na Inglaterra, das
Combinations Acts (1789 e 1800) e, na França, da Lei Le Chapelier (1791). Estas disposições só viriam a ser
revogadas cm 1824, na Inglaterra; na França, em 1864 (direito à greve) e em 1884 (direito de constituir sindi
catos). Em Portugal, os sindicatos vieram a ser reconhecidos por um diploma legal de 1891 e o direito à greve
só mais tarde, com a legislação da República (1910).
92 A p u d E. M A N D EI, Traité...,ciL, 1, 144.
1 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
partir dos seis anos de idade, trabalhavam nas manufacturas durante 17 e 18 horas
em cada dia, em turnos diurnos e nocturnos.93
Assim foi ganhando terreno a indústria capitalista, ‘matando’os pequenos pro
dutores independentes, que tentaram reagir até ao fim: em 1794, esses pequenos
produtores de Leeds ainda tiveram força e ânimo para mandarem uma deputação
ao Parlamento a pedir que fosse promulgada uma lei que proibisse aos comercian
tes tornarem-se fabricantes.94
E foram estas transformações económicas, operadas entre o séc. XVI e o séc.
XVIII, foi todo este processo evolutivo que originou o aparecimento do proletari
ado moderno, classe de indivíduos aos quais, uma vez desligados da terra enquanto
meio de produção da sua subsistência, só restava a alternativa de se deixarem
contratar como mão-de-obra assalariada. E capitais não faltavam, que o comércio
e a exploração coloniais tinham propiciado a acumulação de lucros fabulosos à
burguesia mercantil da Holanda, da França e principalmente da Inglaterra. O
capitalismo, porém, só se instalaria como sistema dominante quando a burguesia
logrou tomar o poder político e, a partir dele, realizar o enquadramento político e
jurídico e instaurar uma estrutura depoder que lhe permitiu aplicar na produção os
capitais acumulados c a mão-de-obra disponível, desenvolvendo a indústria à margem
dos obstáculos institucionais do feudalismo. Só então o capitalismo se afirmaria
como um modo de produção específico.Tal aconteceria pela primeira vez na In
glaterra, como veremos.
93 Em Portugal, o art. 1427° do Código Civil de 1867 dispunha, a respeito do contrato de aprendizagem: "Nenhum
aprendiz, antes dos catorze anos, pode ser obrigado a trabalhar mais de nove horas em cada vinte e quatro,
nem, antes dos dezoito, mais de doze".
Recorde-se que, na Inglaterra, John Locke (1632-1704), o teórico da 'revolução' de 1684, propôs um sistema
de educação compartimentado: uma educação superior para os ricos e o que ele chamava uma "escola de
trabalho" para os "filhos dos trabalhadores", salientando que assim "se acostumarão ao trabalho desde a infân
cia, o que não é de pouca importância dentro do objectivo de os tornar parcimoniosos e industriosos durante
toda a vida". Na França, Colbert fazia trabalhar nas manufacturas crianças de seis anos, inspirado pela ideia de
que "l'oisiveté des premières années est la source des désordres du reste de la vie". A partir do pré-jufzo, tâo
corrente no século XVIII, que dava como assente a "preguiça natural das classes trabalhadoras", compreende-
se esta sentença de Arthur Young iapud R. SOARES, ob. cit., 60): "Every one but an idiot knows that the lower
classes must be kept poor, or they never w ill be industrious".
Particularmente desumana foi a situação em que foram colocadas as crianças inglesas recolhidas nas
Workhouses e depois cedidas aos manufactureiros. O s contramestres das manufacturas inglesas recebiam
salários variáveis em função do rendimento obtido nas oficinas, razão por que o chicote era usado com frequência
para castigar as crianças que chegavam atrasadas à oficina, depois de longas distâncias percorridas a pé, ou
que, exaustas de fome e de sono, adormeciam no trabalho.
94 Informação colhida em K. MARX, Le Capital (trad. |. Roy, cit.), 557.
A v e ià s N u n e s - 119
d) Síntese
O processo que tínhamos surpreendido no início da desagregação do feudalismo
continuou o seu curso, proporcionando a concretização das duas condições sem as
quais não teria sido possível a emergência das relações de produção capitalistas:
1) Por um lado, verificou-se uma grande acumulação de capitais por parte da
nova burguesia comercial;
2) Por outro lado, a rotura do vínculo de servidão pessoal deu origem a uma
nova classe de trabalhadores livres, sujeitos de direito, com capacidade para contra
tar, com capacidade para comprar e vender. Estes trabalhadores livres (“livres de
todos os vínculos sociais e livres de toda a propriedade”, nas palavras de Engels95)
constituíram grandes reservas de mão-de-obra disponível para ser contratada em
regime de salariato, uma vez que não dispunham de outro meio de subsistência
(libertos da servidão da gleba, ficaram do mesmo passo separados das terras que até
aí cultivavam por direito próprio e nas quais obtinham os meios de subsistência).
A essência das relações de produção capitalistas reside na “separação radical
dos produtores relativamente aos meios de produção”, e foi este, precisamente, o
papel histórico do processo de acumulação prim itiva do capital', “separar o trabalho
das suas condições exteriores”.
Do que fica dito poderemos concluir, acompanhando Marx, que “a ordem eco
nómica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A dissolução de
uma libertou os elementos constitutivos da outra”:
“Q u an to ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor da sua p ró
pria pessoa, precisava, em primeiro lugar, de deixar de estar ligado à gleba ou de
estar enfeudado a um a outra pessoa. Ele não tinha tam bém qualquer possibi
lidade de se tornar vendedor livre de trabalho, oferecendo a sua mercadoria
onde haja um m ercado para ela, sem se libertar prim eiro do regim e das
corporações, com a sua hierarquia, as suas regras.. .O m ovimento histórico que
converteu os produtores cm assalariados apresenta-se, portanto, com o a sua
libertação da servidão e da hierarquia industrial corporativa”.
4 . A R efo rm a
Para além desta acumulação de capital, e em estreita relação com ela, importa
ter em conta outros factores cujo significado não pode ignorar-se quando se pre
tende compreender a ascensão da burguesia e a consolidação do capitalismo.
Começamos pela Reforma, que Engels considera uma das “três grandes bata
lhas decisivas” na “longa luta da burguesia contra o feudalismo”.98 A Igreja C ató
lica, enquanto proprietária de terras (“possuía seguramente um terço do mundo
católico”), cobradora de dízimos e centro produtor de ideologia, era a pedra angu
% Cfr. K. MARX, Le CapitaHlràd. |. Roy), c it, 528/529. Marx interroga-se sobre as razões que levam os trabalhadores
a celebrar um contraio pelo qual não só se colocam ao serviço do empregador capitalista e na dependência dele,
mas pelo qual 'renunciam também a qualquer irtulo de propriedade sobre o seu próprio produto". A resposta é
esta: "porque os trabalhadores não possuem nada a não ser a sua força pessoal, o trabalho em estado de potência,
enquanto todas as condições externas necessárias para dar corpo a esta potência, a matéria e os instrumentos
necessários para o exercício útil do trabalho, o poder de dispor das subsistências necessárias à manutenção da
força de trabalho e à sua conversão em movimento produtivo, tudo isso se encontra do outro lado'.
97 Cfr. P. Vilar, em C. PARAIN e outros, 06. cit., 64-65.
98 Cfr. F. ENGELS, D o Socialism o..., cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, 114-117. As outras duas
batalhas referidas por Engels são aquilo a que poderemos chamar a 'revolução inglesa' e a Revolução Fran
cesa, a que à frente nos referiremos.
A v e ià s N u n e s - 1 2 1
99 Ibidem, W S.
100 Para ilustrar a reacção violenta da Igreja ao progresso científico, basta recordar que os trabalhos de Copérnico
foram colocados no índex, que Galileu teve de responder perante a Inquisição e que a teoria de Darwin sobre
a origem e a evolução das espécies ainda hoje náo é abertamente aceite pela Igreja Católica oficial.
101 KaH Kautsky procurou mostrar que o "espírito capitalista' de que fala Weber era o espirito burguês dos artesanos
medievais, mu ito anterior ao calvinismo. Esse modo depensar que Weber pretende ser uma criação do calvinismo
encontrar-se-ia, segundo Kautsky, no 'comunismo' dos anabatistas e dos predecessores (que náo se inclinavam
para o capitalismo). Trata-se - escreve Kautsky, citado por O . LANGE, Economia Política, I, ed. c it, 264/265 - de
um espírito de rebelião do artesano contra a exploração e o desperdício do feudalismo, da Igreja, dos príncipes e
dos usurários; um espírito de sobriedade, de assídua laboriosidade, mesmo de poupança e de acumulação pro
dutiva"’. E este "espírito ético religioso" explicar-se-ia, segundo Kautsky, "não pelo desenvolvimento autónomo da
religião e da ética, mas pelas condiçfles de vida do artesano, que possuía a força e a vontade para se subtrair ao
domínio da nobreza feudal e de todos os seus acessórios económicos, politicos e éticos".
1 2 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a
Com efeito, pela via do calvinismo, ela vem legitimar o juro e vem dar outro
significado ao trabalho enquanto meio de enriquecimento e factor justificativo da
riqueza. Enquanto Lutero considerou o trabalho como remediumpeccati, Calvino
glorifica o trabalho como instrumento de realização do plano divino. Para o purita-
nismo, o trabalho é uma “disciplina activa” e os bens materiais são um “dom de
Deus”. Como Kautsky sublinhou, o puritanismo da pequena burguesia constituída
pelos artesanos das cidades valorizava o trabalho como “fonte da sua força, orgulho
e honra”. E este modo de pensar contaminou todos os trabalhadores, “independen
temente do facto de trabalharem na sua própria oficina ou na de outrem”. 106
Calvino e os puritanos anglo-saxões defendem que o desejo de enriquecer dei
xou de ser condenável em si mesmo. Os homens devem esforçar-se por ser ricos,
para Deus, não para a came e o pecado.107 Com o calvinismo, lançou-se o fermen
to do lema que viria a ser tornado célebre por G uizot (1847): “enrichissez-vous
par le travail et par l'epargne”. A riqueza é entendida como sinal da bênção de
Deus: o sucesso comercial revela a protecção divina. Esta filosofia inspirará o
mito individualista do self-made-man, típico do pensamento sócio-político do séc.
XIX e ainda hoje bastante arreigado no sentimento popular norte-americano.108 A
doutrina calvinista conduziria, no fim de contas, à ideia de que “não deve querer-
se o lucro pelo próprio lucro, mas sim para desenvolver a actividade económi
ca”.109 A vida económica ganhava assim uma ‘moral’ própria, conquistava autonomia
relativamente à teologia católica. Àqueles que dispunham de capitais, à burguesia
enriquecida, ficava aberto o caminho para a valorização desses capitais.
Por volta dos sécs. XV e XVI assiste-se também na Europa à constituição dos
modernos estados nacionais, unificando, sob a autoridade do soberano, o território e o
110 “É curioso verificar - escreve ENGELS, úlL ob. c it . III, 116 - que nas três grandes insurreições da burguesia é
o campesinato que fornece o exército que tem de combater; e o campesinato é justamente a classe que, uma
vez alcançada a vitória, é com toda a certeza arruinada pelas consequências económicas dessa vitória". E a
verdade é que, cem anos depois de Cromwell, a yeomanry tinha praticamente desaparecido.
A v e l As N u n e s - 1 2 5
plano. E não durou muito mais o domínio espanhol, cujo declínio terá tido o seu
início logo em 1588, com a derrota da Invencível Armada.
Pouco depois, em 1609, os Países Baixos tornam-se independentes da Espa
nha. No séc. XVII, a Republicadas Províncias Unidas (Holanda) torna-se o pólo de
atracção do comércio mundial. Revoltada contra a Espanha, a Holanda ficava
privada do comércio dos produtos que iam de Lisboa e de Cádis para o norte da
Europa. Pois a Holanda partiu à conquista dos mares e foi buscar as especiarias
aos países de origem. Apoderou-se de Java, das ilhas de Sonda e das Molucas,
negociou com a China e o Japão e os navios holandeses em breve passaram a
transportar as especiarias para a Europa e a fazer o comércio de escravos.
Verdadeira iniciadora do regime de exploração económica dos territórios coloniais,
a Holanda atingiu o seu apogeu por volta de 1648. Controlava então quase em
exclusivo o comércio das índias Ocidentais e as comunicações entre o sudoeste e o
nordeste da Europa. Auferindo enormes lucros da sua posição monopolista, os
holandeses não hesitaram, sempre que baixavam na Europa os preços das especi
arias, em recorrer à destruição das respectivas culturas e ao massacre das popula
ções para que estas não plantassem mais árvores 111. Em meados do séc. XVII, a
sua frota de pesca, a sua marinha e as suas manufacturas ultrapassavam as dos
outros países e Amesterdão (cuja Bolsa data de 1513) foi então (sucedendo a
Antuérpia) o maior porto comercial do mundo.
A supremacia comercial assegurou à Holanda a supremacia no domínio das
manufacturas e a nova burguesia acumulou enormes somas de capitais, fruto do
comércio e da exploração coloniais. MA Holanda - escreveu M arx 1,2 - era no séc.
XVII a nação capitalista por excelência. (...) Os capitais da República eram talvez
mais importantes que todos os do resto da Europa em conjunto”.
A Inglaterra iria, por sua vez, afastar a Holanda desta posição de supremacia.
Vejamos como, no século XVIII, a burguesia inglesa chegou ao domínio do co
mércio mundial, ao longo de um processo que “é a própria história da subordina
ção do capital mercantil ao capital industrial”.113
Referimos atrás que no final do séc. XV (após o termo da Guerra das Duas
Rosas) a aristocracia inglesa começou a abandonar as formas tradicionais de ex
ploração das terras, para poder beneficiar do comércio da lã. A velha aristocracia
tentava transformar-se no primeiro burguês da Inglaterra. Vimos também como a
nova burguesia comercial se vinha aliando à nobreza, comprando algumas das
Parlamento poderes bastantes para que a política geral da nação passasse a ser con
duzida de acordo com os interesses dessa mesma burguesia comercial, industrial e
financeira. M
A burguesia torna-se, a partir de então - como salienta Engels 114-, um
elemento modesto, mas oficialmente reconhecido, das classes dominantes de Ingla
terra, tendo, com as outras fracções, um interesse comum na manutenção da sujeição
da grande massa trabalhadora da nação.”
A burguesia ia penetrando no seio da nobreza e as grandes famílias da aristo
cracia rural compreendiam que a sua prosperidade económica estava irrevogavel-
mente ligada à da burguesia comerciante e industrial.“A nova aristocracia fundiária
- anota M arx115 - era a aliada natural da nova bancrocracia, da alta finança de
fresca data e dos grandes manufactureiros, então fautores do proteccionismo”. Não
admira, portanto, que tenha havido perfeito entendimento entre estes grupos soci
ais a respeito da apropriação dos bens do domínio público e da pilhagem dos bens
da Igreja Católica, que então prosseguiu aceleradamente.116
O Tratado de Methwen (1703) mostra bem a preocupação do estado inglês em
assegurar mercados para os produtos manufacturados britânicos, conferindo à In
glaterra uma posição praticamente monopolista no que respeita ao comércio de
panos em Portugal e nas colónias, designadamente o Brasil.
Por altura da Paz de Utrecht (1713), a Inglaterra conseguiu da Espanha o pri
vilégio de fazer o tráfego de escravos entre a África e a América espanhola, negó
cio que ditaria a prosperidade do porto de Liverpool e proporcionaria elevados
lucros aos negreiros ingleses.117
Mas a Inglaterra tinha ainda a França como sua concorrente. No início do séc.
XVII, com Richelieu, constituíram-se na França grandes companhias coloniais
(algumas das quais acabariam por falir).
Em 1628, os franceses estabeleceram-se em Argel e em 1631 instalam-se em
Marrocos, expulsando os portugueses; em 1633, a Compagniedu Cap- Vert estabele
ce-se no Senegal com vista ao tráfego de escravos; em 1635, a Compagnie des Illes d'
Amérique instala-se na Martinica, em Guadalupe e Dominique; em 1642 os france
ses dominam Madagascar. Mais tarde, sob o governo do cardeal Fleury, os estabele
cimentos das Antilhas, das índias e da Luisiana conhecem um período de prosperidade.
A Inglaterra tinha interesse em desalojar a França de todos estes territórios. E
vai fazê-lo, aproveitando a guerra que a França (ao lado da Prússia) mantinha
contra a Áustria, para se lançar à conquista das colónias francesas. Em 1763, pelo
Tratado de Paris, a França vê-se obrigada a ceder à Inglaterra o Canadá, uma parte
das Antilhas, todas as possessões das índias, a feitoria do Senegal.
Assim, no séc. XVIII, a Inglaterra ficava senhora do grande comércio mundial.
MANOEL, Traité..., cit., 1,135, os negreiros de Liverpool venderam, de 1783 a 1793,300 000 escravos por 15
milhões de libras.
118 A expressão Revolução Industrial começou a ser utilizada por autores franceses por volta de 1820, com o
intuito de sublinhar que as mudanças sociais provocadas na Inglaterra pela industrialização eram t3o profundas
como as operadas na França pela Revolução Francesa. Cír. A. GERSCH EN KRON, A tra so ..., cit., 95/96.
A expressão foi depois utilizada por Engels em 1845 (1 * edição de A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra, p. 18 da trad. port., cit.), ao defender que ela teve "para a Inglaterra a mesma importância da
revolução política para a França e a revolução filosófica para a Alemanha".
Mais tarde, Arnold Toynbee utilizaria a expressão nas suas Lectures (1887), entendendo-se em geral que foi a
partir de então que o uso da expressão se generalizou.
A v elã s N u n es - 1 2 9
119 Cír. H . DENIS, História.. c it, 137 e P. BA1ROCH, "Structure..., cit, 962. À escala mundial, calcula-se que. em 1860,
se ocupava no sector primário 76,5% da população, percentagem que, em 1970, ainda se mantinha em 54,5%
120 Com base nestes dados, nâo falta quem sustente que "o desenvolvimento da ciência europeia e o nascimento
da revolução industrial só muito levemente tiveram relaçóes directas". Só mais tarde, em meados do século
XIX, a ciência e a indústria se teriam conjugado. Ver P. BAIROCH, 1701,25. Cír. também E. HOBSBAW M, A era
das revoluções, cit., 46-48. Outro parece ser o ponto de vista de Oskar LANGE (cír. Economia Politica, ed. cit.,
1,276): "A história do capitalismo é a história do desenvolvimento triuníal das ciências naturais e das suas apli
cações práticas, apesar de todas as resistências das classes e grupos sociais dominantes da sociedade íeudal, ou
- na primeira íase do capitalismo - de uma parte do aparelho estatal, eclesiástico e escolástico herdado da
sociedade feudal. Em síntese, poderemos dizer que a burguesia apoiou o desenvolvimento das ciências natu
rais, ao passo que as classes e grupos sociais pré-capitalistas o refrearam".
121 Cfr. M . D O B B, A Evolução. .., cit., 312ss.
1 3 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
Foi importante a invenção destas máquinas. Mas o que é uma máquina?“A má
quina define-se pelo automatismo; ela executa movimentos por si, aproveitando a
força que lhe é transmitida. É o automatismo, na verdade, que distingue a máquina
do instrumento', este executa apenas os movimentos que lhe imprimimos”. A aplica
ção das máquinas à indústria leva à substituição das manufacturas pelasfábricas, que
são - na definição de Teixeira Ribeiro - “oficinas onde a actividade dos operários se
conjuga mediante a especialização interna e é potenciada pelas máquinas”.122
A utilização das máquinas em larga escala começou a verificar-se por meados
do século XVIII, trazendo consigo a substituição progressiva da energia humana e
animal pela energia do vapor de água.123 O processo de produção ganhava defini
tivamente o carácter de um processo colectivo, social, de dezenas ou centenas de
pessoas. Assim se realizou a “revolução industrial”. O uso das máquinas expandiu-
se de tal forma que nos fins do século XIX abarcava toda a indústria. A actividade
económica entrava na era da maquinofactura.
Analisaremos a seguir a revolução industrial inglesa, começando por chamar a
atenção para algumas das notas que justificam que se fale dela como revolução:
1) É preciso, em primeiro lugar, ter em conta a importância da chamada ‘revo
lução agrícola’.
2) Sublinharemos a seguir a ‘revolução tecnológica’ e a substituição da energia
humana e animal por outras formas de energia (sucessivamente, a energia da água
corrente, a energia do vapor, a energia eléctrica, o petróleo, a energia nuclear).
3) Destacaremos o aumento da produtividade: o crescimento económico e a
tomada de consciência deste fenómeno.
4) Importante é também o crescimento demográfico e o aumento do número
de pessoas a viver nas cidades e da percentagem da população urbana.
5) O capitalismo surgiu como “civilização da desigualdade”, desigualdade que
a industrialização tornou tão patente como a capacidade de produzir riqueza.
6) Um último ponto fundamental a realçar é o aparecimento do novo operari
ado e a luta pela organização desta nova classe operária industrial, nomeadamente
no plano sindical, através de um processo histórico que poderemos escalonar deste
modo: a) uma primeira fase de proibição dos sindicatos e de criminalização de
todas as formas de associação; b) admissão e legalização das associações mutualis-
124 Tendo em conia os vários países, em 1860 o têxtil e o vestuário representavam ainda cerca de 65% do emprego
na indústria transformadora (P. BAIROCH, "Structure..., cit-, 962).
125 Cfr.P. BAIROCH, "lesécarts.. cit., 499.
126 Cfr. E. MANDEL, Traité..., cit., 1,149.
127 Segundo P. BAIROCH ("Les écarts..., cit., 499), cm 1770, provavelmente mais de 50% do ferro produzido na
Inglaterra provinha de altos-fornos que utilizavam carvào como combustível, taxa que a maior parte dos outros
países europeus só atingiria na 2* metade do séc. XIX.
128 Cfr. E. M A N D EI, Traité..., ö l , 1,149. A escala mundial, P. BAIROCH (ú /Lo b .d t., 500) calcula que a produção
de ferro andaria por 0,6 milhões de toneladas em 1770, tendo atingido 12 milhões de toneladas em 1870. No
mesmo período, o consumo de carvão teria multiplicado por 30.
1 3 2 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P c x It ic a
tivas mais numerosas e mais colossais do que o que tinham feito todas as
gerações passadas. O controlo das forças da natureza, o m aquinismo, a aplica
ção da quím ica à indústria c à agricultura, a navegação a vapor, os cam inhos dc
ferro, os telégrafos eléctricos, o desbravam ento de continentes inteiros, a
navegabilidade dos rios...: que século anterior teria suspeitado que semelhantes
forças produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social?"
135 Cfr. F. BEDARIDA, 'Le Socialisme.. ., c i l, 1,259; M. D O BB, A Evolução.., ciL. 314; MORTON/TATE, O movimen
to operário..., cit., 16.
136 Historicamente, o aumento da jornada de trabalho verificou-se com o advento do capitalismo. Nos séculos XVIII e
XIX, os operáriosda indústria trabalhavam por vezes 17 horas por dia, todos os dias, incluindo os domingos (é conhe
cida a boutade de Napoleâo: "como o povo come todos os dias, deve ser-lhe permitido trabalhar todos os dias*).
137 “Na realidade - anota P. SAM UELSON, Econom ia..., d l , 154 -, nenhum dos romances de Dickens exagerou
as condições do trabalho infantil, da duraçáo do trabalho diário ou da segurança e sanidade vigentes nas
fábricas do princípio do séc. XIX. A regra eram 84 horas de trabalho semanal. Exigia-se já bastante trabalho
duma criança de seis anos c , quanto aos homens, se um perdia dois dedos numa máquina, ainda lhe restavam
oito para trabalhar- .
Para mais indicações acerca das condições de vida que marcaram as classes trabalhadoras apõs a revolução
industrial, na Inglaterra e na França, ver K. MARX, Le Capital(trad. J. Roy, cit.), 562/563, onde se transcrevem
documentos e depoimentos da época; V1LLERMÉ, ob. cit. Perante estas realidades (de ontem c de hoje), ganha
pleno sentido o que um dia escreveu Aneurin Bevan (a p u d P BARAN , A Economia PoHtica..., cit., 367):
'grande parte do montante do capital de que dispomos actualmente nâo é mais do que o resultado dos salários
que os nossos pais náo receberam'.
1 3 6 - U m a In tro o u ç à o à E co n o m ia P o lític a
quiriu já o significado mais fundo de uma revolta contra o regime social existente.
Em 1817, os tecelões de Manchester organizam uma marcha de protesto com des
tino a Londres, que ficou conhecida como a Marcha dos Blanketeers (de blankets, os
cobertores que eles produziam e que levavam sobre os ombros durante a marcha).
Em 1824 e 1825 são aprovadas duas leis que autorizam os sindicatos e o
recurso à greve, embora punindo a intimidação e o uso da violência. N o espaço
de alguns meses, assistiu-se a uma autêntica explosão de organizações sindicais
e em 1827 surgiu o primeiro jornal sindical, o Trades' Newspaper. O s sindicatos
tinham, porém, regras muito apertadas de recrutamento, efectuado sobretudo
entre os operários qualificados. Só depois de 1829 se inicia, a partir dos distritos
de implantação da indústria têxtil, no Lancashire, o movimento que levaria à
organização de sindicatos modernos, movimento que conheceu o seu ponto alto
em 1830, com a criação da National Association o f United Tradesfor the Protection
o f Labour (N A PL), que em 1831 afirmava ter 100 000 associados, mas que viria
a soçobrar em 1832.
Ao mesmo tempo, a partir de 1824, assiste-se a uma grande expansão do
movimento cooperativo, com base nos ensinamentos e no impulso de Robert Owen.
Entretanto - como observa A. Sedas Nunes140- a burguesia industrial via-se
“envolvida num longo e rude conflito colectivo com os detentores tradicionais do
poder económico e político: os senhores da terra, que em seu próprio benefício
haviam legislado de modo a manterem artificialmente elevados os preços dos pro
dutos agrícolas c a limitarem severamente a importação de cereais”. M as a verdade
é que a riqueza e o poderio económico da burguesia industrial eram agora bastante
superiores aos da aristocracia rural e mesmo da oligarquia financeira. Não admira,
por isso, que o velho compromisso de 1689 (mesmo com as alterações, favoráveis
à burguesia, que lhe foram sendo introduzidas) viesse a ser substituído por uma
nova composição de interesses, traduzida na alteração do xadrez das forças políti
cas que resulta do Reform Bill (1832), o qual veio acabar com o monopólio
político da aristocracia e da burguesia financeira, outorgando à nova classe diri
gente industrial o direito de representação no Parlamento.
As classes trabalhadoras e a pequena burguesia, que tinham apoiado a luta pela
reforma, continuavam afastadas da participação política. Só que o proletariado
industrial não era agora o mesmo que, durante os primeiros tempos do capitalismo
industrial, tinha encarado a sua situação ora passivamente, ora desesperadamente.
Este proletariado “organizou a reivindicação, desencadeando-se, assim, uma luta
de classes, não já (como antes) na parte alta da estrutura social, entre industriais e
latifundiários, mas entre operários e capitalistas”.141
Com o reacção ao Reform Bill, 1833 foi um ano de violenta agitação por parte
dos trabalhadores.
Por iniciativa de Owcn c John Doherty (o antigo presidente da NA PL), é
criada a Societyfor Promoting National Régénération, cujo objectivo fundamental era
a defesa da jornada dc oito horas.
No plano sindical, cria-se em 1834 um grande sindicato geral, Grand National
ConsolidatedTrades Union (GNCTU), que em poucos meses atinge 500 000 membros.
Sucedem-se as greves e os lock-out, mas a acção adversa dos empresários e a repressão
do governo, a par de dificuldades internas, levarão à dissolução da G N C T U logo em
Agosto de 1834.142 Por esta altura, registam-se os primeiros sinais (ténues, é certo) de
aceitação da contratação colectiva e da ideia de um salário mínimo legal.143
N o plano político, constitui-se o primeiro partido operário que a história re
gista, o Partido Cartista, que haveria de desenvolver uma importante luta dc massas
até à sua dissolução em 1848.144
As reivindicações do Partido constavam da Cariado Povo e resumiam-se a estes
seis pontos: sufrágio universal; abolição da qualificação com base na propriedade;
parlamentos eleitos anualmente; igualdade dos colégios eleitorais; salário para os
parlamentares; voto secreto. Este programa foi na altura considerado revolucioná
rio (subversivo), pois o sufrágio universal era então encarado como autêntica ‘revo
lução permanente’, acreditando-se que, mal os trabalhadores gozassem de poderes
políticos, estaria em perigo o elemento básico da sociedade capitalista - a propri
edade privada dos meios de produção. A maioria dos cartistas admitia também,
aliás, que a adopção do sufrágio universal se viria a traduzir na instauração de uma
sociedade socialista. Nem de um lado nem dc outro se antevia que o sufrágio
universal pudesse não ser capaz de anular o peso da ideologia dominante e pudes
se, por isso mesmo, revelar-se um factor de ‘anestesia’ da contestação operária, de
‘integração’ dos contestatários dentro do ‘sistema’, de ‘apólice de seguro’ contra o
perigo de revolução.
Do lado das classes dominantes, o sentido da evolução acabaria por consagrar
a supremacia da burguesia industrial. Enquanto deteve o poder político, a aristo
cracia rural legislou de modo a proibir ou limitar fortemente a importação dos
cereais, a fim de beneficiar dos preços altos do trigo. Este foi o escopo das famosas
Com Laws} promulgadas em 1815.
Com o desenvolvimento da industrialização, as necessidades crescentes de pro
dutos alimentares para corresponder à procura de uma população em aumento
levaram ao cultivo de novas terras menos férteis e ao cultivo intensivo das terras
até aí cultivadas. O resultado foi o aumento dos custos de produção dos produtos
agrícolas (nomeadamente do trigo), cujo preço subia até ao nível do custo de
produção (mais elevado) das terras menos férteis (de outro modo, ninguém culti
varia estas terras marginais). Subia o preço de todo o trigo, mesmo do trigo produ
zido a custos mais baixos nas terras mais férteis. Daqui resultava um ganho para
aqueles que exploravam as terras mais férteis (a renda diferencial, correspondente à
diferença entre o custo de produção nas terras menos férteis (custo marginal =
preço) e o custo de produção (mais baixo) das terras mais férteis.
Este ganho (esta ‘renda’) cabia, num primeiro momento, aos rendeiros capitalistas
que promoviam o cultivo das terras mais férteis. Só que, terminado o contrato de
arrendamento, a concorrência entre os rendeiros para obter o direito de tratar as terras
mais férteis permitia aos proprietários das terras beneficiar do aumento da renda da
terra, aumento que tendia a coincidir com a diferença acima referida (para ganharem
ou manterem o direito de cultivar as terras mais férteis, os rendeiros dispunham-se a
pagar a mais, a título de renda da terra, o montante da renda diferencial).
Assim se explicava o aumento das rendas da terra, em benefício dos grandes
proprietários, que viviam apenas dessas rendas, sem participar, de qualquer modo, na
actividade produtiva. Por outro lado, o aumento do preço do trigo arrastaria consigo,
necessariamente, o aumento dos salários pagos não só pelos rendeiros capitalistas
mas também pelos empresários industriais. Admitindo que os salários tendiam a
coincidir com um valor correspondente ao mínimo de subsistência, a subida do
preço do trigo (base da alimentação) implicava um aumento do custo de vida (do
custo da subsistência). Para que os operários pudessem manter o seu poder de com
pra a este nível mínimo (abaixo do qual os salários não poderiam manter-se dura
douramente), era indispensável que aumentassem os salários nominais.
1 4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o iít ic a
Esta, muito sumariamente, a explicação de Ricardo para o facto de, nas condi
ções da Inglaterra do tempo e em virtude da vigência das leis dos cereais, subirem as
rendas das terras e a prosperidade dos landlords, enquanto a jovem indústria capi
talista se ia debatendo com dificuldades, agravadas nos períodos de crise, clara
mente reflectidas na baixa das taxas de lucro.
David Ricardo, justamente considerado “o profeta económico da burguesia
industrial”, considerava um ‘absurdo’ inadmissível o facto de ser afinal a classe
ociosa dos proprietários de terras a ganhar com o desenvolvimento da indústria.
Por isso desencadeou uma luta sem tréguas contra este estado de coisas, advogando
a revogação das Leis dos Cereais e a prática do livrecambismo, de modo a permitir a
entrada livre de trigo importado na Inglaterra a preços mais baixos, assim evitando
a subida das rendas, a subida do preço do trigo, a alta dos salários monetários e a
consequente redução da taxa de lucro.
Se “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente como a Santa Inquisi
ção tinha conquistado a Espanha” (como Keynes sublinhou), não admira que as
suas teses livrecambistas tenham encontrado eco no Parlamento inglês, que, ao
decidir a revogação das Com Laws, em 1846, decreta, efectivamente, a vitória
definitiva da burguesia industrial sobre a aristocracia rural inglesa. Com o Marx
salientava, logo em 1848, no seu Discurso Sobre o Livrecambismo, “a abolição das
leis dos cereais na Inglaterra foi o maior triunfo que o livrecambismo alcançou no
séc. XIX”.
A classe operária aliou-se inicialmente com osfree-traders no combate aos últi
mos vestígios da feudalidade, até à abolição das Com Laws. A velha aristocracia
procurou tirar desforço desta derrota, viabilizando a aprovação no Parlamento, em
Junho de 1847, da lei que impôs a redução do horário de trabalho para dez horas,
aspiração por que os operários vinham lutando havia mais de trinta anos. À medida,
porém, que o proletariado se ia afirmando como força social c política, e uma vez
ultrapassada a luta que a burguesia industrial, como classe que aspirava ao poder,
teve de travar contra a aristocracia feudal, podemos dizer - com Sedas Nunes ,4S -
que “latifundiários e industriais foram-se aproximando uns dos outros, tendendo a
fundir-se, através de vínculos políticos, financeiros, matrimoniais e outros, numa só
classe dominante; do mesmo passo, o livre comércio por sobre a fronteira das nações
e o imperialismo colonial abriam à indústria britânica insuspeitadas perspectivas de
incremento e prosperidade”. Como escreveu Joan Robinson, o livrecambismo “foi,
verdadeiramente, uma projecção dos interesses nacionais britânicos”.146
8 . A R ev o lu ç ã o F ran cesa
147 Como releva A. SO B O U L, "La Révolution Française..., cit., 27, "os movimentos de unificação nacional que
a Europa conheceu no séc. XIX devem, a mais de um título, ser considerados como revoluções burguesas.
Qualquer que seja, com efeito, a importância do factor nacional no Risorgimento ou na unifícação alemã, as
forças nacionais não teriam podido atingir a criação de uma sociedade moderna e de um estado unitário, se
a evolução económica interna não tivesse tendido para o mesmo objectivo."
1 4 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l It ic a
madas como uma conquista, a partir da Magna Carta (1215), sem necessidade de
apelar para o direito natural. Como salienta Albert Soboul, “a Constituição britâ
nica reconhecia não os direitos do homem, mas os dos Ingleses: faltava o univer
salismo às liberdades inglesas”.148
Diversa era a situação na França do Ancien Regime.
1) O desenvolvimento do comércio e da indústria artesana, a partir dos séculos
X e XI, conferiram importância à riqueza mobiliária e esta veio promover social
mente a burguesia, que no século XIV seria admitida nos Estados Gerais.
2) No século XV III, não obstante, eram camponeses 90% dos 25 milhões de
habitantes da França. Camponeses livres, pois a servidão só vigorava em regiões
muito restritas.149
3) A propriedade da terra encontrava-se fortemente concentrada nas mãos da
pequena minoria do clero e da nobreza, cabendo apenas 35% das terras aos 22 ou
23 milhões de camponeses que viviam em condições particularmente duras.150
4) A miséria desta grande massa de pessoas agravou-se ainda pelo aumento da
população que marcou o século XVIII francês e pela acentuada subida do custo de
vida que então se verificou (62% entre 1726-1741 e 1785-1789) e que provocou
uma baixa de 25% no poder de compra das camadas populares, em cujo orçamento
de despesas o pão representava em média 50%, chegando a atingir 88% em 1789.151
Sobre esta grande maioria de franceses pobres recaía todo o preço da sobrevivên
cia do Ancien Regime, que se lhes tornava dia a dia mais odioso.
5) A nobreza, por sua vez, perante a crise que afectou a agricultura francesa
durante toda a década de 70 do séc. XVIII e perante a subida do custo de vida,
aumentou as suas exigências junto dos camponeses, muitos dos quais, arruinados e
miseráveis, abandonaram os campos, constituindo grandes grupos de vagabundos,
que frequentemente se revoltaram, incendiando e saqueando os castelos senhoriais
e executando mesmo, em alguns casos, os senhores dos respectivos domínios.
Pois foi contra esses privilégios da nobreza e do clero que se fez a Revolução
Francesa, esse “oceano popular” (Romain Rolland), fruto do descontentamento da
burguesia rica e culta e da revolta das camadas populares (do campo e das cidades),
obra do Terceiro Estado, à frente do qual se colocou a burguesia revolucionária, a
única classe que então estava em condições de dirigir a luta contra a ordem feudal.
Durante muito tempo, a grande aspiração da burguesia francesa consistiu em
alcançar um título de nobreza, aspiração que, a partir do século XVI, muitos dos
seus membros conseguiram concretizar, adquirindo os cargos públicos que a mo
narquia vendia, atribuindo-lhes privilégios corporativos ou títulos de nobreza pes
soais ou hereditários.
No séc. XVIII, porém, a filosofia das Luzes deitava por terra a base ideológica
do Ancien Regime, ao mesmo tempo que a burguesia se ia engrandecendo em
número, em poder económico, em bagagem cultural, em consciência de classe:
“classe ascendente, crente no progresso, tinha a convicção de representar o interes
se geral e de assumir a responsabilidade da nação; classe progressiva, exercia uma
atracção decisiva tanto sobre as massas populares, como sobre os sectores dissi
dentes da aristocracia”.152
Enquanto a nobreza feudal invocava os seus direitos históricos para reclamar,
perante o absolutismo monárquico, maior dose de poder e de liberdade, a fim de
aumentar e consolidar os seus privilégios feudais, a burguesia culta do século
XVIII, inspirada na filosofia de John Locke, invocava a razão e o direito natural
para reclamar a abolição dos privilégios e a igualdade de direitos.
Perante a obstinada resistência das classes privilegiadas a qualquer compro
misso que admitisse a burguesia como sua associada no poder, à burguesia só
restava, para sair vitoriosa, a aliança com as camadas populares, predom inante
mente camponesas, unidas na sua miséria e no seu ódio à feudalidade.153
Anti-feudal, a Grande Revolução Francesa é, porém, essencialmente, uma re
volução burguesa, um momento importante - e dos mais importantes, atendendo à
repercussão que iria ter em vários outros países, talvez mesmo em todos os países
- no longo processo que permitiu à nova burguesia apear dos seus privilégios as
antigas classes feudais, ocupar o poder e realizar, através do controlo do poder de
estado, as mudanças institucionais capazes de assegurar as condições favoráveis ao
livre desenvolvimento do capitalismo.154
cit., 377. Pela sua classe, em proveito da qual trabalha, pela burguesia, fez tanto que todo o século XIX, esse
século que deu a civilização e a cultura a toda a humanidade, decorreu sob o signo da Revolução Francesa.
De um extremo ao outro do mundo, nada mais íoi preciso do que pAr em prática, realizar parcialmente, acabar
o que os grandes revolucionários franceses da burguesia tinham criado
1 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
D ’Holbach, por sua vez, afirmou que “só o proprietário é um verdadeiro cida
dão”. E Diderot sustentou que “é a propriedade que faz o cidadão”. E Rousseau
defendeu, na 9a das suas Lettres de la Montagne (1762), que “o direito de proprieda
de é o mais sagrado de todos os direitos dos cidadãos” e que “a própria propriedade
é apenas um meio para a aquisição sem entraves e posse segura”.
Os artigos de Vòltaire no Dictionnaire Philosophique sobre Egalité, Économie
Publique e Propriétésão uma autêntica antologia do conservadorismo. Segundo o
filósofo, a sociedade tem de estar necessariamente dividida cm duas classes, “uma
dos ricos que mandam, outra dos pobres que servem”, acrescentando que “o género
humano, tal como é, só pode subsistir se existir uma infinidade de homens úteis
que não possuam absolutamente nada; porque, com toda a certeza, um homem que
não tenha dificuldades não deixará a sua terra para vir trabalhar na vossa; e, se
tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um mestre de cerimónias que
vo-lo fará”.158
Chama-se a atenção para este último trecho para realçar o seu significado: os
homens cujas concepções alimentaram os ideais dos revolucionários de 1789 enten
diam que a nova ordem burguesa devia assentar no postulado de que a propriedade
de uns implica a exclusão da propriedade de todos os outros (a infinidade dos homens
úteis que nãopossuem absolutamente nada). Aqui transparece o conceito da propriedade
burguesa, propriedade perfeita, absoluta e excluenteyimplicando a separação completa
dos não-proprietários relativamente aos meios de produção. Aqui transparece tam
bém o reconhecimento da estrutura de classes própria da sociedade capitalista.
Fica assim esclarecido o significado da Igualdade e da Liberdade proclama
das na famosa Declaração de 1789. E o seu sentido ficará ainda mais cabalmente
elucidado se atentarmos numa outra lei saída da Assembleia C onstituinte, a Lei
Le Chapelier (14-6-1791), que informou o quadro jurídico do jovem capitalismo
francês durante quase um século. Na sequência do espírito da chamada Lei de
Allarde (14-3-1791), que abolira as corporações medievais, o art. 1.° da Lei Le
Chapelier dispõe: “Sendo uma das bases fundamentais da Constituição francesa a
liquidação de todas as espécies de corporações dos cidadãos do mesmo estado e
profissão, é proibido restabelecê-las de facto, qualquer que seja o pretexto e
qualquer que seja a forma”.159 Assim se fechava, no respeitante aos sindicatos
operários, a porta aberta por diploma de 21-8-1790, no qual se concedia a todos
158 O mesmo Voltaire defende, cm 1737 (La defense du Mondain), que 'o luxo dos ricos faz viver os pobres e é
um fndice da prosperidade dos impérios" e afirma, no artigo Égalité da Enciclopédia, que "se a canalha se põe
a pensar está tudo perdido'.
159 Em Portugal, o processo de liquidação da organização corporativa começa ainda antes da revolução liberal
(1820). Em 1761 (reinado de D. José) as organizações corporativas foram privadas do direito de emitir as licenças
A v e ià s N u n e s - 1 4 9
de fabrico; a influência do pensamento dos fisiocratas durante o reinado de D . Maria I contribuiu para a dimi
nuição da importância das velhas corporações. Finalmente, o decreto de extinção das corporações dos mesteres
viria a ser promulgado cm 7 de Maio de 1834, cujo art. 1odispõe: "Ficam extintos os lugares de Juiz e Procu
radores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e Quatro, e os Grémios dos diferentes ofícios", instituições que no
Relatório são qualificadas como "outros tantos estorvos à indústria nacional, que para medrar muito carece da
liberdade, que a desenvolva, e da protecção que a defenda".
160 Só na segunda metade do séc. XIX (lei de 25/5/1864) viria a ser reconhecido aos operários o direito de coalição,
ficando aberta a possibilidade legal de recurso à greve, embora a medida fosse de reduzido alcance, por
continuar a não existir liberdade de associação. Vinte anos depois, a lei de 21/3/1884 veio reconhecer a liber
dade de associação profissional, tornando legais os sindicatos operários, medida que o ministro do interior do
governo de Jules Ferry, Waldeck-Rousseau, considerou então como o melhor meio para enquadrar a acção
sindical no esforço de melhoria da condição humana e afastá-la do pendor revolucionário.
161 O contratualismo foi um dos tópicos do liberalismo. Partindo do pressuposto de que todos os homens são livres
e iguais, defendia-se que todos os negócios e todas as relações sociais deveriam ser regulados por meio de
contrato, a 'lei' que as duas partes acertavam entre elas, em plano de igualdade (Ver: A. HESPANHA, Prática
Social..., cit.).
No que se refere ao 'contrato de trabalho', constitui mérito de Adam Smith (um dos pais fundadores do libera
lismo) ter posto em evidência que este 'contrato' nâo era um contrato como os outros, porque as duas partes não
se encontram em plano de igualdade e uma delas (o patrão) tem meios de obrigar os trabalhadores a aceitar
"os seus próprios termos". Desenvolveremos este ponto de vista quando, no caprtulo II, estudarmos Adam Smith.
1 5 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a
162 O abade Jacques Roux, um dos defensores dos interesses populares, clamava perante a Convenção que "a
liberdade nào passa de um fantasma quando uma classe de homens pode reduziroutra à fome, impunemente.
A igualdade nâo passa de um fantasma quando os ricos, através do monopólio, exercem um direito de vida ou
de morte sobre os seus semelhante" e denunciava a aristocracia mercantil, "mais terrível do que a aristocracia
nobiliária e sacerdotal".
163 Cfr. DOLLÉANS/DEHOVE, oó. c/f., 1,163. Como veremos no cap. II, Adam Smith, tendo em vista a realidade
A v elA s N u n e s - 151
c) Os sans-culottes e ojacobinismo
A força das classes populares, que tinham participado activamente na eclosão e
na vitória do movimento revolucionário, haveria, porém, de manifestar-se mais
tarde contra a nova aristocracia do dinheiro (a ditadura da burguesia, que substitu
íra a ditadura das classesfeudais), quase sempre mais sob a forma de movimentos
espontâneos de revolta perante as condições de vida e de trabalho miseráveis,164 do
que sob a forma de movimentos revolucionários organizados, o que explicará o
fracasso das revoltas operárias e a violência da sua repressão.
Em 1792, a declaração de guerra da França à Áustria suscita novo fervor revo
lucionário. Por pressão dos sans-culottes de Paris, inicia-se o período do Terror, que
durante dois anos concretizou a realização de algumas aspirações das camadas
populares e a esperança de estas imporem à França o seu programa. Em Setembro
de 1792 a Convenção proclama a República e Luís XVI foi executado em Janeiro
de 1793.
As monarquias europeias fazem a guerra contra a França revolucionária. A
acção dos sans-culottes não se faz esperar, afastando da Convenção os principais
deputados girondinos e forçando a constituição de um Comité de Salvação Pública
presidido por Robespierre.
As primeiras medidas adoptadas caracterizavam-se por uma feição ‘socializan-
te’: instituição da partilha igual das heranças, mesmo a favor dos filhos naturais,
de modo a promover a fragmentação da riqueza; criação de um imposto sobre os
ricos; partilha em pequenos lotes dos bens dos emigrados e dos bens comunais;
atribuição aos ‘patriotas indigentes dos bens dos ‘suspeitos’; institucionalização de
um esquema de segurança social, com assistência médica garantida no domicílio,
pensões por doença e velhice, subsídios às famílias numerosas; proclamação do
carácter obrigatório, gratuito e laico do ensino básico; tentativa de direcção da
economia, para harmonizar os preços com os salários e garantir assim a subsistên
cia de todos; nacionalização da produção de guerra e do comércio externo, etc.
Saliente-se, entretanto, que a sans-culotterieymesmo a de feição mais revoluci
onária (a de Paris), não era essencialmente constituída por operários industriais,
mas por uma coligação de pequenos comerciantes e mestres artesãos, juntamente
com os ‘companheiros’ que com eles trabalhavam c viviam. Daí, a mentalidade
pequeno-burguesa das suas aspirações e das suas actuações. Nem pelo pensamento
165 Compreende-se, assim, a justeza do retraio que do sans<ullole nos dá PrudKomme: “Nenhum ssns<ulotte
se torna ou se mantém rico; respeita o sào direito de propriedade; morreria de fome em vez de arrancar pela
força a subsistência de uma família honesta e próxima do nível das suas necessidades; mas é sem quartel para
essas fortunas rápidas e insolentes, obra da intriga e da avidez. Entâo ele toma os seus bens e restabelece o
equilíbrio, sem o qual náo há igualdade e, portanto, náo há República."
A v elã s N u n es - 1 5 3
Saint-Just na Convenção - em que “um povo que não é feliz não tem pátria” e
cientes de que a Revolução não poderia manter-se “se as relações civis favorecem
aqueles que são contrários à forma de governo”.
Saint-Just não deixava de reconhecer - em Fevereiro de 1794 - que “a força das
coisas nos [aos jacobinos] conduziu talvez a resultados em que não tínhamos pen
sado”. Mas o seu programa aparece claro em vários passos dos seus discursos e nas
suas obras doutrinárias: “As propriedades dos patriotas são sagradas, mas os bens
dos conspiradores aí estão para os desafortunados. (...) Não sofrais que haja um
infeliz ou um pobre no Estado”. Daí a sua proposta: “Aboli a mendicidade que
desonra um estado livre”. Nas Institutions Républicaines (1794), Saint Just define de
modo paradigmático o espírito que vimos analisando: “II ne faut ni riches ni pau-
vres... Lopulencc est une infamie”. Por isso o bom cidadão seria “o que não possui
mais bens do que aqueles que as leis lhe permitem possuir”. Daí que o objectivo da
Revolução fosse o de “dar a todos os franceses os meios de satisfazer as primeiras
necessidades sem outra dependência que não fosse a das leis e sem dependência
mútua no estado civil”. “É preciso que o homem viva independente”!
Sempre presente - como se vê - o ideal de uma sociedade constituída por
pequenos proprietários e produtores independentes, ideal cujas ressonâncias utó
picas são particularmente notórias nos escritos de Saint-Just.
Em Abril de 1794, porém, Robespierre fazia executar, ao mesmo tempo que
Danton e os adversários do Terror, alguns dos dirigentes das camadas populares.
Com a vitória sobre a coligação das nações europeias em Fleurus (Junho de 1794),
afastado o perigo de uma derrota da França, a reacção viu chegada a sua hora e o
Comité de Salvação Pública é afastado pela Convenção em 27-7-1794 (9T her-
midor do ano II). No dia seguinte, Robespierre e os seus colaboradores são execu
tados. Assim terminava o período de dois anos em que a revolução burguesa, com
a ditadura jacobina de Robespierre, mais se aproximara, nas suas realizações, dos
anseios populares.
Assim chegavam ao fim as duas revoluções que alguns distinguem no seio da
Grande Revolução Francesa: a primeira, de 1789 a 1791, é obra da burguesia,
empenhada em pôr de pé a nova ordem burguesa; a segunda, entre 1792 e 1794,
foi obra das camadas populares, que agiram com violência contra as resistências à
marcha da Revolução.166
abundância dos bens de consumo (a França de 1795 não permitia ainda a confian
ça no industrialismo, que viria a caracterizar a obra de Saint-Simon).
Mas a verdade, por outro lado, é que Babeuf foi além do pensamento da sans-
culotterie e dos jacobinos, ultrapassando o apego destes à propriedade privada fun
dada no trabalho pessoal, deixando para trás aquilo a que um autor chamou “a
ilusão burguesa do pequeno proprietário”. E é por isso que Albert Soboul subli
nha nestes termos a importância de Babeuf e dos Iguais:
“Pelo pensam ento c pela acção, ultrapassou o seu tem po e afirm ou-se como
iniciador de um a sociedade nova. (...) A im portância da Conjuration des Égaux
e do babouvismo só pode medir-se à escala do séc. XX. N a história da Revolu
ção e do D irectório, constituem um simples episódio que m odificou sem
dúvida o equilíbrio político do m om ento, mas sem ressonância social profun
da. E ntretanto, pela primeira vez, a ideia comunista tinha-se transform ado em
força política: daí, a im portância de Babeuf, do babouvismo e da Conspiração
dos Iguais na história do socialismo.”167
167Cfr. A . SO B O U L, "U to p ie..., cit., 245 e 2 5 2 .0 próprio Lcnine reconheceu que "a Revoluç3o Francesa cons
truiu as ideias do comunismo (Babeuf) que, elaboradas de modo consequente, continham a ideia da ordem
nova do mundo'' ( j pudV . M. DALINE, oò. c /t, 63).
168 Cfr. A. SO B O U L, Vértice, Julho/1989,13/14.
1 5 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o í Itic a
*70 Cfr. C. M A R X , A s lutas de classes...,c it., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, c d . cit., 1,210-212.
1 6 0 - U m a I n t r o o u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
identificados com o interesse da sociedade, ao passo que a “classe que não possui” é
identificada com os bárbaros que ameaçam invadir a cidade (o inimigo da sociedade,
o inimigo interno).
Entretanto, a agitação operária não cessou e as reivindicações iam ganhando
um grau crescente de politização. Em 1832 houve luta nas ruas de Paris. Por toda
a França os trabalhadores começaram a cuidar da sua organização, fazendo-o sob
a forma de mútuas. Em 1834, os operários de Lyon tiveram forças para organizar
uma greve, a qual viria a ser dominada depois de seis dias de luta com as tropas da
realeza, cuja intervenção deixou claro aos operários que Mla royauté est liée à la
fabrique”. A natureza de classe do estado (a ‘ditadura da burguesia ) começava a
tornar-se clara aos olhos do novo operariado.
f) A industrialização e a situação social da França nas vésperas de 1848
A realidade económica da França ia-se alterando em relação ao que era nos
anos que antecederam a Revolução de 1789. As máquinas penetram em todos os
sectores da indústria francesa. Aplicam-se novas técnicas na indústria têxtil, na
metalurgia e na siderurgia, conhecendo estas últimas um período de acentuado
desenvolvimento com o arranque dos caminhos de ferro. O coque vai substituindo
a madeira nos altos fornos. O fenómeno da concentração começa a ser notório na
indústria mineira (a Compagnie des Mines dela Lo ire, constituída em 1845, gozava
de verdadeiro monopólio), o mesmo acontecendo com a indústria algodoeira (so
bretudo em Mulhouse) e na metalurgia (sector onde sobressaíam os grupos Creu-
sot e De Wendel), embora as grandes empresas não sejam ainda muito frequentes.
Este desenvolvimento industrial produziu efeitos notórios sobre a estrutura da
sociedade francesa: em 1847 ocupavam-se na indústria cerca de seis milhões de
trabalhadores franceses, embora apenas pouco mais de um quarto trabalhassem
em fábricas. A crescente utilização das máquinas veio, por outro lado, permitir a
utilização da força de trabalho das mulheres e das crianças, desvalorizando a qua
lificação profissional c o estatuto social dos antigos artesanos.
Às cidades industriais afluíam grandes massas de trabalhadores, que a indústria
não podia ocupar permanentemente e que, por isso, se m antinham, como uma
espécie de ‘exército camponês de reserva, à mercê dos empregadores.
As condições de vida e de trabalho das famílias operárias eram verdadeiramen
te alarmantes, como o comprova a leitura dos inquéritos à situação das classes
trabalhadoras que então se efectuaram, o mais conhecido dos quais é o do Dr.
Villermé, levado a efeito em 1840.171
172 Um Primeiro Miniaro inglês, W illiam Pitt dava este bom conselho aos empregadores: "se os salários sáo muito
elevados, contratem as crianças" (apud J. M ARCHAL, C ours..., cit., 103.). Em Portugal, ainda em 1910 se fazia
uma greve de "trabalhadores" com idades entre os 6 e os 11 anos.
1 6 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
eu - tivesse agido assim com a França não haveria ódio c injúrias suficientes
para lançar sobre a sua cabeça. Pois bem! O juízo da indústria é esse”.173
A lei aprovada veio fixar nos oito anos a idade de admissão das crianças num
posto de trabalho e proibir o desempenho de trabalho nocturno ou perigoso, mas
permitia que, a partir dos 12 anos de idade, as crianças trabalhassem 72 horas por
semana. Com esta lei pioneira - que não chegou, aliás, a ser aplicada, por a ela se
oporem os industriais e todos os defensores da ‘liberdade de empresa’ - inicia a
legislação do trabalho a sua orientação no sentido da protecção do trabalhador en
quanto parte mais fraca da relação laborai (favor laboratoris), na esteira da lição de
Lacordaire, para quem, “entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le
maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprimme et la loi qui affranchit.”174
O curso da industrialização continuou, ao longo da década de 1840, a acentuar
os seus efeitos na sociedade francesa, concentrando um número crescente de ope
rários em empresas cada vez maiores e em centros urbanos polarizadores da acti
vidade industrial, nos quais os operários viviam em grande número, em bairros
miseráveis que, com o tempo, lhes foram ficando ‘reservados’. Assim se foram
criando condições para o aparecimento, entre os trabalhadores, de uma certa cons
ciência da sua existência como classe social e da identidade dos seus problemas e
dos seus interesses. Embora se continuassem a verificar, sobretudo por parte dos
trabalhadores recém-chegados dos campos, revoltas espontâneas que eram apenas
fruto do desespero (autênticas jacqueries prolétariennes, como alguém lhes cha
mou), a verdade é que a necessidade de tomadas de posição colectivas, organiza
das, começou a sobrepor-se às revoltas individuais, mais ou menos desarticuladas.
A década de 1840 marcou, neste aspecto, uma profunda mudança.
Num inquérito publicado em 1840 (tal como o de Villermé, já referido) cha
ma-se a atenção para que “os operários (...), isolados da nação, afastados da comu
nidade social e política, sozinhos com às suas necessidades e as suas misérias,
agitam-se para sair desta solidão desesperada e, como os bárbaros, aos quais já
foram comparados, meditam talvez uma invasão.” Perante esta leitura da situação
173 Tendo em conta a realidade inglesa, Marx cita o depoimento de um médico de Londres perante a Câmara dos
Comuns, pouco antes da aprovação do FactoryAct de 1833: "É necessária legislação para impedir que possa
infligir-se a morte sob qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é corrente nas fábricas) deve ser segu
ramente considerada como um dos métodos mais cruéis de a infligir". Refere também um artigo do jornal
Morning Star (Junho/1863) em que se fala dos "escravos brancos vítimas do trabalho que os leva ao túmulo",
obrigados a trabalhar até à morte, como denuncia um outro médico de Londres, o Dr. Richardson, uma morte
po r overdose de trabalho ("death from simple overwork"). Perante esta realidade, o Factory Act veio entao
determinar que o horário de trabalho normal nas fábricas devia começar às 5,30 horas da manhã e acabar às
8,30 horas da noite, para trabalhadores com treze anos de idade ou mais. O s trabalhadores entre os 9 e os 13
artossó poderiam trabalhar 8 horas por dia. Cfr. Le CapitaHlrad. J. Roy,cit.), 194, 208/209 e 616.
174 A pud R. BARRE. 06. c it , II, 102.
1 6 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
social na França, não espanta que o autor do relatório concluísse que “esperar pôr
cobro à miséria pela caridade é tentar tolamente esvaziar o oceano”.
O grau de compreensão da realidade francesa desse tempo é expresso por Buret
nesta sua interrogação: “A acumulação dos capitais nas mãos de um pequeno nú
mero de indivíduos, o aparecimento dessas grandes entidades mercantis que cha
mamos capitalistas, não correspondem naturalmente à constituição regular dessas
famílias privilegiadas dos tempos feudais que absorviam em seu proveito toda a
independência e todos os direitos?”
Na esteira do movimento babouvista, expande-se por toda a França o ideário
comunista, sobretudo a partir da influência exercida pelo livro, acima referido, de
Buonarroti (velho companheiro de Babeuf). Um conhecido industrial francês,
Daniel Legrand, observava em 1847 que M as ideias comunistas e socialistas come
çam a expandir-se e a ganhar raízes com uma rapidez assustadora e poderiam
transformar-se em factos de um dia para o outro e pôr em perigo toda a sociedade,
na medida em que ela não tenha posto cobro a esses intoleráveis abusos”.
Em Janeiro de 1848,Tocqueville perguntava na Câmara dos Deputados: “Não
vedes que se expandem pouco a pouco no seu seio [no seio das classes trabalhado
ras] opiniões que não visam apenas substituir determinadas leis, um dado ministé
rio, mesmo um certo governo, mas a sociedade, subvertendo as bases sobre as
quais ela assenta hoje?”
Estamos em 1848, ano em que foi publicado o Manifesto Comunista, que come
ça exactamente com esta observação: “Anda um espectro pela Europa - o espectro
do comunismo”.
g) A Revolução de 1848
Quase no final da década de 1840, um acontecimento viria marcar a história da
França: a Revolução de 1848. A miséria das camadas trabalhadoras, acima ilustrada
através das conclusões de Villermé, não cessou de agravar-se. O poder de compra,
embora muito baixo, manteve-se mais ou menos estacionário entre 1840 e 1845,
ano em que começou a baixar acentuadamente, de tal modo que em 1847 caiu para
um nível inferior ao de 1834.
Entretanto, três outros factores vieram agravar a situação: 1) a aliança da M o
narquia de Julho com a alta finança degenerou em corrupção generalizada, com a
utilização do aparelho de estado ao serviço dos interesses dos magnates da banca
e dos caminhos de ferro, beneficiários do progressivo endividamento do estado e
da especulação desenfreada que se lhe seguiu; 2) as más colheitas agrícolas e a
doença da batata nos anos de 1845 e 1846, que contribuíram decisivamente para a
carestia da vida, particularmente acentuada em 1847; 3) a crise económica que
provocou a falência de vários bancos e o encerramento de muitas fábricas na In
A v elAs N u n e s - 1 6 5
glaterra (onde atingiu o seu ponto alto em 1847) e que não deixou de afectar as
economias capitalistas do Continente, incluindo a da França, onde a falência atin
giu grande número de pequenos industriais e comerciantes, cujo descontentamen
to ajudou à insurreição de Fevereiro de 1848 nas ruas de Paris.
A Monarquia deJulho e o seu governo tiveram que ceder o lugar a um Governo
Provisório, composto fundamentalmente por elementos da pequena e média bur
guesia republicana, no meio dos quais Louis Blanc e o operário Albert represen
tavam os interesses populares, e o poeta Lamartine - como alguém escreveu - “não
representava nenhum interesse real, nenhuma classe determinada; era a própria
revolução de Fevereiro, o levantamento comum, com as suas ilusões, a sua poesia,
o seu conteúdo imaginário e as suas frases”.
Apesar da oposição de Lamartine à implantação da República antes que a
maioria dos franceses o decidisse através do voto, o povo nas ruas fazia pressão no
sentido da proclamação imediata da República. Em 25 de Fevereiro, Raspail, em
nome dos trabalhadores da capital, apresentava ao Governo Provisório um autên
tico ultimato para que proclamasse a República dentro de duas horas, caso contrá
rio regressaria à frente de 200 mil homens. A República foi proclamada e
restabelecido o sufrágio universal. O proletariado de Paris afirmava-se como força
política, desejoso de novas conquistas.
Blanqui proclamava que “a República seria uma mentira se se limitasse a ser
a substituição de uma forma de governo por outra. Não basta mudar as palavras:
é preciso mudar as coisas”. E Tocqueville, num texto de 1850-1851, não deixava
de observar:
“desde 25 de Fevereiro, mil sistemas estranhos saíram im petuosam ente do
espírito perturbado da m ultidão... Era como se, com o choque da revolução, a
própria sociedade tivesse sido reduzida a pó e tivesse sido posta a concurso a
nova forma que era necessário dar ao edifício que se ia construir em seu lugar
(...). O socialismo ficará como a característica essencial e a lem brança mais
terrível da revolução de Fevereiro. A República só aparecerá de longe com o um
meio, não com o um fim”.
Pouco depois, Blanqui, Raspail e Albert (talvez os mais avançados e os mais lúci
dos dos representantes dos trabalhadores) são presos e os clubes socialistas são
encerrados. “Trata-se apenas de reconduzir o trabalho às suas antigas condições” -
proclamava na Assembleia o ministro Trelat. Desfaziam-se as ilusões de Feverei
ro: a República que os operários de Paris obrigaram a proclamar, na esperança de
alcançarem uma república democrática e social, não passara de uma república burguesa.
Agora, ficava definitivamente claro que a República proclamada pela nova As
sembleia Nacional não veio pôr em causa a ordem burguesa, antes se afirmou
como república burguesa, apostada na consolidação do poder da burguesia, de acor
do com o lema de que “a burguesia não tem rei, a verdadeira forma da sua domi
nação é a república”.175
Os ateliers nationaux, desviados dos objectivos que Louis Blanc lhes assinalara,
em breve se transformaram numa nova edição dos ateliers de charitédo Ancien Régime.
Como nas workhouses inglesas, neles eram acolhidos os trabalhadores lançados no
desemprego em virtude da crise económica e da revolução, os quais iam removendo
a terra no Champ de Mars, num trabalho fastidioso e improdutivo, a troco de um
salário de subsistência. Os meios da burguesia não deixavam de identificar essa
criação do Governo Provisório com as ideias socialistas de Louis Blanc, para depois
poderem concluir: “Uma pensão do Estado para uma aparência de trabalho, eis o
socialismo”. Assim se preparava o caminho para futuras medidas que levaram prati
camente à dissolução dos ateliers nationaux, com os quais se foram as últimas espe
ranças de um socialismo realizado pela organização do trabalho.
De 22 a 26 de Junho desse ano de 1848, lutou-se duramente nas ruas de Paris:
assim se iniciava “a primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a
sociedade moderna”. Os operários revoltados, cujo lema era du pain ou du plomb
receberam o chumbo disparado pelas armas dos homens do general Cavaignac,
que assumira poderes ditatoriais após a dissolução da Comissão Executiva. Vários
milhares de mortos e mais de 25 mil presos dizem bem de quanto tinha sido
utópica a revolução de Fevereiro, “a revolução da simpatia geral”: “a fraternidade -
escreveu Marx - durou justamente o tempo durante o qual o interesse da burguesia
era irmão do interesse do proletariado.(...) A fraternidade das classes antagónicas,
uma das quais explora a outra, essa fraternidade proclamada em Fevereiro, inscrita
em grandes letras por toda a Paris, em todas as prisões, em todos os quartéis - a sua
expressão verdadeira, autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil na sua
forma mais horrenda, a guerra entre o trabalho e o capital.”176
178No Estado de Nova York, uma lei de 1811 autorizava já a constituição de sociedades anónimas sem necessi
dade de prévia autorização do estado. Na Inglaterra, até 1844, a constituição de sociedades anónimas depen
dia de lei expressa do parlamento para cada caso. E, até 1862, a emissão de acçóes ao portador e o regime de
responsabilidade limitada continuaram sujeitos a autorização individual do parlamento. Cfr. C FURTADO.
Prefácio. .., cit., 31 e V. M OREIRA, A Ordem Jurídico..., cit., 82.
179 Cfr. C . RIPERT, Aspects..., cit., 59ss.
170 - Um a In tro d u ç ã o à Eco nom ia P o lític a
Em 1852, uma lei vem permitir as associações de socorros mútuos, que ficam,
porém, sujeitas a apertada vigilância e às quais é proibido conceder subsídios de
desemprego. Pelo menos até 1860, a subida dos salários nominais é insuficiente
para acompanhar o ritmo de subida dos preços. Nas grandes cidades, os bairros
operários começam a distinguir-se nitidamente da cidade burguesa.
Com excepção de Proudhon c Blanqui, deixaram de dar sinais de vida quase
todos aqueles que tinham animado as várias correntes do pensamento socialista na
França de antes de 1848. Em 1854, um autor pode escrever: “O socialismo mor
reu, falar dele é fazer a sua oração fúnebre”. Com efeito, apesar de algumas greves
e da conversão das associações de socorros mútuos em autênticos organismos de
resistência, o movimento operário francês foi bastante débil até 1860. Não obstan
te, o procurador-geral de Lyon descrevia assim, em 1854, o qu^ parecia estar por
detrás da aparente acalmia: “o operário é hoje comunista e igualitário como o
burguês era filósofo antes de 1789”, observação que condiz com o ponto de vista
expresso no M anifesto Comunista (1848), segundo o qual “o comunismo já é
reconhecido por todas as potências europeias como uma potência”.
t) A Associação Internacional dos Trabalhadores e as lutas operárias
A partir de 1860, pode observar-se uma certa mudança na situação política e
social. Napoleão III, a braços com certas dificuldades internas, provocadas pela
crise económica de 1857, pela Campanha da Crimeia e pela guerra com a Itália,
foi levado a procurar certo apoio junto das camadas populares. Por alturas da
Exposição Industrial de Londres, em 1862, o Imperador patrocinou a visita à
Exposição de uma delegação de 183 trabalhadores franceses, todos eles perten
centes às indústrias tradicionais. Durante três meses, os delegados puderam tomar
contacto com o bem organizado movimento operário inglês. Nos relatórios desses
delegados, um ponto comum: a reivindicação do direito à greve e do direito de
organização sindical.
Ao longo dos anos de 1862,1863 e 1864, as greves sucedem-se, em Paris e na
província, com tal força que os poderes públicos se sentiram incapazes de aplicar as
leis que as proibiam para reprimir os grevistas. Em Fevereiro de 1864, cm apoio a
candidaturas de representantes dos trabalhadores nas eleições legislativas parciais
então realizadas, aparece o chamado Manifeste des Soixante, entre cujos subscritores
figuram alguns nomes que viriam a destacar-se entre os revolucionários da Comuna.
Os resultados eleitorais foram um fracasso, mas o conteúdo do Manifeste des Soixante
é significativo. Aí se reivindica, além do mais, a revogação da legislação que proíbe
as greves, a liberdade de criação de sindicatos, o alargamento da competência das
associações de socorros mútuos, a regulamentação do trabalho das mulheres, a ins
A v e lA s N u n e s - 171
tituição da instrução primária gratuita... Não é por acaso que o direito à greve vem
a ser reconhecido por uma lei de 25 de Maio desse ano de 1864.
Em 1867, por ocasião da Exposição Universal de Paris, volta a ser reposta a
reivindicação da liberdade de criação de sindicatos. O Governo pronuncia-se, a
instâncias de uma comissão operária, no sentido de tolerar a existência de sindica
tos.180 Tanto bastou para que, de 1868 a 1870, se constituíssem algumas dezenas
de sindicatos, se criassem as primeiras federações nacionais e se constituísse em
Paris o esboço de uma confederação de todas as associações operárias, que entabu
lou os primeiros contactos com a Associação Internacional dos Trabalhadores, funda
da em Londres, no Saint M artins Hall, em 28.9.1864.
Entre 1867 e 1870, ganha força a acção grevista,181 reprimida por vezes com
violência, ao mesmo tempo que se instauram processos contra a A.I.T., a pretexto de
complots que a própria polícia organizava para justificar os ataques a uma instituição
que vinha ganhando ascendente entre os meios operários. Num dos processos ins
taurados contra a Internacional, o procurador imperial acusava: “as greves surgem em
diversos pontos, suscitadas ou pelo menos encorajadas ou apoiadas pela Associação
Internacional”. A verdade é que, em finais de 1870, os adeptos da secção francesa da
Internacional representam a principal força do movimento operário francês. Signifi
cativamente, é em finais do Segundo Império que a actuação dos trabalhadores
ganha mais acentuadamente um carácter político, a par da actuação sindical. Por essa
altura começa a andar no ar a ideia de constituir um partido operário. Em 1870,
aparece, aliás, um livro de Vermorel intitulado Le Parti Socialiste.
Em 1872, no Congresso da Haia, a Internacional aprova uma proposta de Marx
e Engels no sentido da criação de partidos políticos operários em cada país. Os
delegados portugueses votaram a favor, e em 1875 fundou-se em Portugal um Parti
do Socialista (no mesmo ano da fundação do Partido Social-Democrata Alemão).
j ) A Comuna de Paris
A derrota das forças imperiais francesas na guerra franco-prussiana dita a que
da do Segundo Império e gera amplo e profundo descontentamento popular, pe
rante a humilhação que significou para o patriotismo francês a assinatura do
Armistício de Versalhes (28-1-1871), após as capitulações de Sédan, Estrasburgo,
Metz e Paris, onde o cerco das tropas de Bismark fez reinar a fome.
>80 Só mais tarde, como acima se diz, a lei Waldeck-Rousseau, de 21/3/1884, virá a reconhecer plenamente o
direito de associação dos trabalhadores.
181 Em 1867, verificou-se ainda, em Roubaix, por parte dos operários da fiação e da tecelagem, uma das últimas
manifestações do recurso ao método primitivo de luta, a destruição das máquinas, atitude que os adeptos
franceses da A . I. T. condenaram, embora simultaneamente organizassem o movimento de solidariedade com
os grevistas.
1 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a
Do C a p ita lis m o d e
C o n c o rrê n c ia
ao
C a p it a l is m o M o n o p o l is t a d e
E st a d o
1 7 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o íít ic a
183 Sobre esses problemas, cfr. V. T. M OREIRA, em A. CASTRO e outros. Sobre o capitalismo. .., cit-, 5-68 e Ch.
PALLCMX, A economia m undial..., cit.
A v elàs N u n es - 1 7 7
O C a p it a l is m o d e C o n c o r r ê n c ia
184 Considerando a Inglaterra (1810), a França (1850), a Bélgica (1850), os EUA (1880) e o Japáo (1905), P. BAIROCH
(te Tiers-Monde..., ciL, 57) conclui que, salvo o caso dos EUA, em que eram muitas as terras disponíveis, nestes
países, à volta das datas apontadas, a venda de uma empresa agrícola média que ocupasse um activo propor
cionava os capitais suíucientes para pôr de pé uma empresa industrial capaz de ocupar oito operários.
A v elãs N u n es - 17 9
la), sempre apareceriam novas empresas no mercado enquanto a indústria fosse atractiva
para os investidores em busca de lucro. O aumento do número de empresas provo
cava aumento da oferta c este conduzia à diminuição dos preços do mercado, elimi
nando os ineficientes e obrigando as empresas que quisessem manter-se e aumentar
os seus lucros a um permanente esforço de inovação técnica (só deste modo, baixan
do os custos, poderia uma qualquer empresa aumentar os seus lucros, perante um
preço que não podia controlar, antes tinha de aceitar como um dado).
Assim, nas condições da concorrência perfeita, o mercado e o mecanismo dos
preços eram tidos como os garantes da eficiência social do sistema. O mecanismo
dos preços forneceria aos agentes económicos a informação necessária para que
eles pudessem decidir racionalmente, e o respeito pelos princípios do cálculo económi
co garantiria que as empresas que permanecem no mercado produziriam a maior
quantidade de bens possível, ao mais baixo custo possível, vendendo-as ao mais
baixo preço possível, proporcionando o grau máximo de satisfação das necessida
des dos consumidores. Se se produzem mercadorias inúteis ou extravagantes, tal só
pode acontecer em resposta a uma procura extravagante do consumidor. Só o
comportamento errado ou o desequilíbrio das pessoas (ou as políticas erradas do
estado), não as deficiências do sistema económico, podem explicar os desequilí
brios, os desvarios ou as crises do capitalismo.
d) A economia funcionaria por si, segundo as suas próprias leis, à margem da
política. A economia é a esfera de acção dos particulares, uma esfera da vida
inteiramente separada da política, do estado.
Cada indivíduo actua com vista à realização do seu próprio interesse; mas, se
assim fizer, “cada indivíduo é guiado por uma mão invisível, a aingir um objectivo
que ele não tinha de modo algum visado. Prosseguindo o seu interesse particular,
cada indivíduo serve o interesse social mais eficazmente do que se tivesse real
mente o objectivo de o servir” (Adam Smith). As ‘leis naturais’ da economia, o
livre jogo das forças do mercado encarregar-se-iam de fazer convergir espontane
amente e automaticaamente a actuação de todos na realização da racionalidade
económica, da eficiência e do equilíbrio económico. Qualquer intervenção estra
nha só poderia ser fonte de perturbação e de desperdício.
Assim se justifica a concepção liberal de rigorosa separação entre o estado e a
economia, entre a economia e a esfera política. Só esta última diria respeito ao
estado, cabendo aos cidadãos, cm último termo, o poder político. A esfera econó
mica diria respeito apenas à esfera privada dos indivíduos, enquanto produtores/
vendedores e consumidores/compradores.
1 8 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a
185 Conhecem-se as ideias de Adam Smith cm matéria de impostos: estes devem ser certos, a sua cobrança deve
ser cómoda e não dispendiosa, todos os cidadãos devem pagar impostos (havendo grupos privilegiados, isentos
do seu pagamento, os outros cidadãos seriam obrigados a pagar também por aqueles), todos devem ser tribu
tados na proporção dos respectivos haveres (cfr. A . SMITH, Riqueza das Nações, cit., II, 485ss).
E a concepção das chamadas finanças clássicas ou finanças neutras transparece com clareza na conhecida
síntese de Gaston Jèze: 'II y a des dépenses publiques, il íaut les couvrir". Quer dizer: só porque o estado tem que
fazer certas despesas se admite que ataque, com a cobrança de impostos, a riqueza privada de cada um, mas
- por isso mesmo - só se admite que o faça nos limites do indispensável para cobrir aquelas despesas.
186 Cfr. R. C A R A U D Y, 06. cit., 76.
A v elã s N u n es - 1 8 1
O C a p it a l is m o M o n o p o l is t a
N o último quartel do séc. XIX, começa a ser notório um fenómeno que Marx
considerara em O Capital como inerente à lógica da acumulação do capital. Refe
rimo-nos à concentração capitalista e à consequente ‘monopolização’ da economia,
que marca uma nova fase da história do capitalismo, o capitalismo monopolista, que
se prolongará até à Primeira Guerra Mundial.
A expressão capitalismo monopolista e o significado que em geral se lhe associa
são originários da teoria económica marxista, nomeadamente com os trabalhos de
Rudolf Hilferding (1910), Rosa Luxemburgo (1913), Nicolai Bukarine (1915) e
Lenine (1916).187 Esta nova fase do capitalismo assinala uma alteração nas estru
turas económicas do sistema, agora caracterizadas pelo domínio de um pequeno
número de grandes empresas, à volta das quais, em posição de subordinação, vai
crescendo um grande número de pequenas empresas sem qualquer capacidade de
influenciar o mercado, substituído pela ‘mão visível’ das ‘empresas monopolistas’.
Ao falarmos aqui de monopólio ou de concentração monopolista não queremos
significar que os sectores onde a concentração se verifica venham necessariamente
a ficar confiados a uma única empresa (monopólio no sentido rigoroso da palavra).
Com aquelas expressões pretendemos qualificar as situações em que uma indústria
passa a ser controlada por um número muito reduzido de grandes empresas que
estão em condições de impor os seus preços aos consumidores, em termos tais que
o mercado deixa de ser o instrumento de orientação e de controlo das empresas
para passar a ser dirigido por elas. As ‘empresas monopolistas’, exactamente por
serem muito grandes, nem sequer terão que recear que a sua situação se altere em
virtude do aparecimento de eventuais novas concorrentes: a existência de situações
monopolistas significa, desde logo, que os de fora não têm liberdade de (ou têm
muita dificuldade em) entrar na indústria.
Estas grandes empresas, além de virem acentuar o carácter social do processo
produtivo (que a maquinofactura apontou definitivamente - como vimos - como
uma característica do modo de produção capitalista), vêm também conferir carácter
social ãpropriedade dos meios deprodução.
187 Mais recentemcnte, foi importanie o livro de Paul BARAN e Paul SWEEZY, M onopoly C a pital-A n Essayon
the American Economie and Social Order, Monthly Review Press, N. York, 1966 (hé uma ediçâo brasileira,
Zahar Editores, 1966).
A v u à s N u n es - 18 3
1 . A C O N C EN T R A Ç Ã O CAPITALISTA. S E U S FACTORES
188 A constituição das sociedades por acções, que inicialmente exigia carta régia e depois autorização do gover
no, começou a poder realizar-se livremente a partir de 1867, desde que observados os requisitos estabelecidos
em lei geral: na França (Lei de 24-7-1867), em Portugal (Lei de 22-6-1867), na Espanha (1869), na Alemanha
(1870), na Bélgica (1873), na Itália (1882).
•89 Cfr. Le Capital, Livro lll„ L II, Cap. XXVII (ÉditionsSociales).
190 Estamos a referir-nos ao processo de concentração ao nível das empresas, mas a verdade é que a própria
concentração da produçáo cm grandes unidades originou a concentração dos operários e facilitou a tomada
de consciência dos seus interesses de classe. Náo admira, por isso, que a maior força dos operários organizados
tenha provocado, nas últimas décadas do séc. XIX ou até á 14Grande Guerra, o reconhecimento legal dos seus
sindicatos (o direito dos trabalhadores à livre constituição de sindicatos foi consagrado pela primeira vez, em
texto constitucional, na Constituição de Weimar, de 1919). Neste período surgiu, pois, um elemento novo nas
economias capitalistas: o sindicalismo (a que se seguiria a constituição de partidos políticos ligados à classe
operária). E com a expansão do sindicalismo tendeu também a mitigar-se, em alguma medida, a concorrência
no mercado da força de trabalho. Perante as grandes concentrações monopolistas, aparece agora o sindicato
representativo dos trabalhadores. Assim se dizia numa resolução sobre os sindicatos, tomada no 1. Congresso
da Associação Internacional dos Trabalhadores (Genebra, 1866): "A dispersão dos operários é provocada e
1 8 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
mantida pela sua inevitável concorrência. O s sindicatos nasceram acima de tudo para suprimir ou pelo menos
restringir esta concorrência". Reconhecer a mudança resultante da contratação colectiva (um golpe impor
tante no 'contratual ismo' liberal) náo significa concordar com os autores que falam de monopólio bilateral para
traduzir a ideia de que também a mercadoria força de trabalho passa a ser negociada num mercado onde se
verifica monopólio do lado da procura e do lado da oferta. Alguns pretenderam mesmo aplicar aos sindicatos
(monopolistas) a legislação anti-monopolista...
191 A invenção da bateria eléctrica por Volta data de 1800; mas só em 1831 Henry inventa o motor eléctrico; a
primeira locomotiva eléctrica é de 1851; em 1875 surge o motor a gasolina para automóvel (o 1®motor diesol foi
construído em 1898). No que se refere à situação em Portugal, eis o testemunho de José A CÜ RC IO DAS NEVES,
em 1 820: “É lastimoso o estado em que nos achamos a respeito de máquinas. Fazemos tudo à força de braços e
de animais, enquanto nos outros países a força dos elementos quase dispensa a mão do homem nos trabalhos
manuais pesados e aumenta prodigiosamente os frutosda indústria. Numa parte da Europa e nos Estados Unidos
da América, já os rios e até os mares se navegam pelo agente do fogo, sem mastros, sem velas e sem remos; e, entre
nós, ainda se náo acha estabelecida uma só máqui na de vapor nas nossas fábricas* (ob. d t., 111/ 112 ).
A vel A s N u n es - 1 8 5
192 Esta perspectiva - algo utópica, que a realidade posterior viria a desmentir - chegou a ser defendida por Lenine,
em escritos de 1917 (A Catástrofe Iminente e outros): "O s grandes bancos são o 'aparelho de estado' que é
necessário para a realização do socialismo, que nós tomamos pronto a usar ao capitalismo".
1 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Saliente-se, porém, que Hilferding evoluiria para concepções que nunca foram as de Lenine. Começando por
admitir que o socialismo só poderia alcançar-se através da luta revolucionária do proletariado contra o capi
talismo e o imperialismo, o autor de Finanzkapitalviria a defender, a partir de 1919, que a “tendência histórica
do capital financeiro” para se tornar um cartel geral permitiria uma passagem pacifica ao socialismo: o
capitalismo financeiro deixava de ser a última fase d o capitalismo para se tornar no inicio d o capitalismo
organizado. Cfr. D . GRISONI, ob. cit., vol. 2,11 -47.
193 E.M A N D EL, 7ra/(é...,cit.,lll, 159, indica a existência de 40 cartéis internacionais em 1897.
194 A primeira linha de caminho de ferro construiu-se em 1825 na Inglaterra, entre Stockton e Darlington. Pois a
rede ferroviária construída por empresas britânicas passa de 800 Kms cm 1876 para 24 000 Kms em 1910; de
1850 a 1900, os investimentos na construção de caminhos de ferro excederam os investimentos no conjunto
das indústrias transformadoras; calcula-se que no último quartel do séc. XIX cerca de 40% a 50% da formaçáo
de capital privado se tenha verificado no sector ferroviário, o que representa uma concentração de capital
numa só indústria sem paralelo na história económica. Igualmente de salientar é o facto de cerca de 80% da
rede ferroviária existente em 1913 se concentrar nas cinco potências de então: EUA, Império britânico, Rússia,
Alemanha e França (cfr. LENINE, Imperialismo, cit., 130/131; H. DENIS, História..., c i l , 600; BARAN/SWEEZY,
Capitalismo monopolista, cit., 220/221).
195 Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, Livro 1,566^567.
A v e lA s N u n e s - 1 8 7
1% Tâo importante como o afluxo de capitais foi, sem dúvida, a entrada de imigrantes, em grande maioria origi
nários da Europa. Entre 1821 e 1915 emigraram para os territórios apetecíveis para a colonização da América,
Oceânia e Áírica do Sul cerca de 45 milhões de europeus, com particular intensidade nas três décadas ante
riores 5 1* Guerra Mundial, durante as quaiso número de imigrantes europeus nestas regiões rondou um milháo
por ano (dados apresentados por Aldo FERRER, em El Trimestre Económ ico, 1975,1 01 6). Especificamente
para os EU A , ver L. NEAL e P. USELD IN G , "Immigration, a neglecled source o í american economic
development", em O xford Economic Papers, Março/l 9 7 2 , 68-88.
1 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
197 Cfr. H . DENIS, História.. cit., 603/604 e, sobre o significado da restauração Meiji, H . K. TAKAHASHI, em P.
A v elã s N u n es - 1 8 9
SW EEZY e outros, D o Feudalism o..., cit., 74-85. Cfr. também JO H N STO N /M EllO R ,o 6. c/f., 566-593.
198 Cfr. M. D O BB, Capitalismo..., cit., 38.
1 9 0 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a
199 Alguns autores (Marshall e W icksell, v.g.) explicam em função deste fenómeno a depressão que afectou o
capitalismo europeu de 1873 a 1896. Alguns, à maneira de Bentham, reclamavam porque " foram dedicados
recursos ao investimento no exterior, ao invés de aplicá-los na reconstrução das cidades imundas da Grã-
Bretanha, simplesmente porque aquela actividade parecia mais remuneradora" (Assim, Clapham, citado por
M. D O BB, A Evolução..., cit, 386).
200 Cfr. E. M ANDEL, Traité..., ciL. III, 137.
201 Maurice D O BB (A Evolução.. c iL , 362) chama a atenção para o facto de a exportação de capitais ter desem
penhado um papel importante logo a partir de meados do séc. XIX, não tanto sob a forma de investimento
privado directo, mas sob a forma de empréstimos a governos estrangeiros, muitas vezes destinados a finan
A v e l à s N u n e s - 191
A expansão colonial foi, por sua vez, mais um factor a favorecer a concentração
e a centralização do capital, na medida em que abriu novos mercados e propiciou
vastos campos de acção, permitindo a constituição de grandes empresas para ex
plorar os transportes entre as metrópoles e as colónias, para explorar as riquezas
agrícolas e mineiras dos territórios coloniais, para rasgar as redes ferroviárias que
facilitassem o acesso daqueles bens aos portos de embarque.
Neste negócio especializaram-se os banqueiros ingleses (Rothschild, v.g.) e só
os investimentos britânicos no estrangeiro passaram de 800 milhões de libras em
1871 para cerca de 3500 milhões em 1913.202 Com o observa G . Hobson, “parece
que os obstáculos ao investimento vitorioso no exterior nos sectores industriais
estão a ser removidos”; e muitos passaram a acreditar que “as raízes da prosperida
de estavam no ultramar” (Clapham).203 Na França, o Presidente do Governo, Jules
Ferry, afirmava na Câmara dos Deputados (28.7.1885): “Para os países ricos, as
colónias constituem uma das formas mais vantajosas de colocação de capitais. (...)
A questão colonial é, para os países impulsionados pela própria natureza da sua
indústria a uma grande exportação, a própria questão dos mercados”.204
O extraordinário incremento que então conheceram os meios de transporte
(navegação a vapor, caminhos de ferro, abertura de novos portos) e de comunica
ção (telégrafo) veio unificar definitivamente o mercado mundial (em 1896, o Ca
nal do Suez ligara o Mediterrâneo ao Indico; em 1915, o Canal do Panamá ligou
o Atlântico ao Pacífico), facilitando o que Nicolai Bukarine designou por interna
cionalização do ca p ita is
Mas esta mesma unificação do mercado mundial veio colocar novos problemas às
potências capitalistas, agora concorrentes umas das outras, quer nos mercados de
venda dos produtos industriais, quer nos mercados de abastecimento de matérias-
primas ou de mão-de-obra barata, quer na busca de campos de investimento. Por
isso, a exportação de capitais não fez esquecer a necessidade de exportar mercado
rias. Antes pelo contrário, aquela é muitas vezes um meio de impulsionar esta.206
ciar a construção de vias férreas, o que permitiu encontrar um campo de aplicação muito lucrativo para os
capitais ingleses, mas também a exportação de bens de capital produzidos pela indústria inglesa.
202 Cfr. E.M AN DEL, Traité....ciL, III, 132.
203 A p ud M . D O B B, /\ EvoluçSo.. ., cit, 384-386.
204 A p u d H . PÉREZ, ob.cit., 61.
205 Nunca é demais sublinhar a importância dos caminhos de ferro neste processo. Na Europa, o obstáculo dos
Alpes foi vencido: o túnel de Brenncr foi acabado em 1867, o de Mont-Cenis em 1870 e o de S. Gotardo em
1880. Na Rússia, começou em 1883 a construção do transcaspiano e em 1891 a do transsiberiano, que chegou
a Vladivostoque em 1902. Nos EUA, em 1869 encontraram-se em Ogden dois comboios, um vindo do Pacifico,
outro do Atlântico. Cfr. J. M A RC H A I, Cours..., cit., 155.
206 Basta recordar o exemplo das relações comerciais entre a Inglaterra e a India. Em 1814, a índia exportava para
a Inglaterra cerca de um milhão e trezentas mil peças de pano de algodão, enquanto a Inglaterra exportava
1 9 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
para a índia pouco mais de oitocenias mil peças; em 1835, a situação inverte-se: a índia exporta para a Ingla
terra pouco mais de trezentas mil peças de algodão, enquanto a Inglaterra exportava para a índia cerca de
cinquentaeoito milhões de peças. Cfr. P. IÉO N , ob.cil., vol. III, 1.1,225.
Ainda r»oque respeita ã Inglaterra, o valor das exportações de produtos industriais entre 1870 e 1913 foi superior
ao valor do investimento interno total, correspondendo a cerca de 1/5 do rendimento nacional e a cerca de 1/
3 do valor da produção industrial inglesa. Em meados do séc. XIX as exportações têxteis representavam à roda
de 80% do valor total das exportações britânicas. Os têxteis de algodão exportaram em média 57% da produ-
çàocntre 1841 e 1845 e 74% entre 1871 e 1875; a indústria de lanifícios exportou 17%daproduç3onosanos
1840 e cerca de 50% na década de 1870. Mas outras indústrias dependiam fortemente dos mercados ultrama
rinos: as exportações de ferro e aço representaram 27% da produção entre 1841 e 1845 e 45% da produção
entre 1871 e 1875.
207 Cfr. F. PERRO UX, L e capitalhme. c i t , 43/44.
A v elà s N u n es - 19 3
(1890). Em 1899, é a Guerra dos Boers, movida pela Inglaterra aos Boers (colonos
de origem holandesa que anos antes os ingleses tinham expulso da África do Sul e
que se tinham estabelecido nos estados deTransval e de Orange), depois da desco
berta das minas de ouro doTransval em 1884. A guerra terminou com a transfor
mação dos dois estados Boers em domínios do Império Britânico.
A Inglaterra estabeleceu-se ainda na Birmânia, no Boméu, na Nova-Guiné e na
Malásia, além de penetrar economicamente em vários países da América Latina, ao
mesmo tempo que mantinha as suas posições na América do Norte, na Austrália e na
Nova Zelândia. A parte de leão na partilha do mundo coube, portanto, à Inglaterra.
Mas a França, sob o impulso de Jules Ferry, fixou-se na Tunísia, no Tchad, no
Congo, em Madagáscar e na Indochina. A Bélgica constituiu o seu ‘Estado inde
pendente do Congo’, por iniciativa do próprio rei Leopoldo. A Holanda consolida a
sua posição na Indonésia e nas índias Ocidentais. A Itália fixa-se na região dos
Somalis. Na Alemanha, a pressão das cidades industriais do norte empurrará tam
bém Bismark para a expansão colonial, cabendo-lhe, na África, o Togo, os Cama
rões, a África Oriental alemã e territórios no Sudoeste Africano. Os EUA, ocupado
todo o território do Oeste (por volta de 1870), lançam-se em busca de ‘novas fron
teiras’, passando do colonialismo interno ao colonialismo externo', em 1896, declaram
guerra à Espanha e tomam Cuba, Porto Rico e as Ilhas Filipinas; depois, anexam as
ilhas Hawai, estabelecem-se no Panamá e na República Dominicana e intervém
militarmente na Nicarágua (1912), nas Honduras (1911) e no México (1914). Em
páginas anteriores, apontámos já o rumo tomado pelo imperialismo japonês.
Esta corrida às colónias a partir do último quartel do séc. XIX constitui, sem
dúvida, um dos acontecimentos que mais fundo havia de marcar a história con
temporânea. Em primeiro lugar, pelos conflitos que gerou entre as potências capi
talistas (em último termo, os dois grandes conflitos mundiais deste século tiveram
origem em conflitos inter-imperialistas na luta por “espaço vital”). Em segundo
lugar, pela situação que criou aos territórios dominados, sejam ou não formalmen
te independentes no plano político.
Com efeito, o regime colonial e a exploração económica das colónias trouxe
ram consigo uma divisão do trabalho à escala mundial que fez dos países dominados
produtores e exportadores de bens primários (produtos minerais, alimentos ou
matérias-primas de origem agrícola), muitas vezes em regime de monocultura. E
esta degrada os solos, reduz a produção de géneros alimentares e torna os países
produtores inteiramente dependentes do mercado de um único produto, às vezes
monopsonizado pelo país dominante.
Por outro lado, os países primário-exportadores ficam reduzidos à posição de
consumidores de produtos manufacturados produzidos pelas empresas das metró
1 9 4 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a
1700 representariam entre 15% e 20% da população mundial), não haveria entre
os vários países diferenças que fossem além de 50% a 70% acima ou abaixo da
média. O mesmo autor, num artigo publicado em 1982, aponta as seguintes con
clusões dos seus trabalhos sobre este assunto. O PNB per capita dos actuais ‘países
desenvolvidos’ era (em dólares e a preços de 1960): 1750-180 dólares; 1930-790
dólares; 1980-3000 dólares. Para os actuais ‘países subdesenvolvidos’, a evolução
foi esta: 1750-180/190 dólares; 1930-190 dólares; 1980-410 dólares.208
Vimos que o capitalismo surgiu como a “civilização das desigualdades”. E não
é fácil fugir à conclusão de que a desigualdade, também no confronto entre países,
surgiu igualmente com o capitalismo e tem-se vindo a acentuar com a evolução do
capitalismo. Estes dados obrigam, por outro lado, a equacionar a relação entre o
‘subdesenvolvimento’ e a colonização, processo indissociável do próprio processo
de desenvolvimento do capitalismo.
c
O C a p it a l is m o M o n o p o l is t a d e Estad o
209 É uma expressão que parece dever-se a Lenine (Prefácio à 14ed. de O Estado e a Revolução, 1917) e lem sido
adoptada por alguns autores marxistas (também por alguns não-marxistas). Esta designação e o seu significado
não têm sido pacíficos, mesmo no campo marxista. Não é o momento para análise desta problemática. Utili
zamos aqui esta formulação pelas razões e com o sentido que explicamos no texto. Sobre este ponto, ver:
BARAN/SWEEZY, Capitalismo Monopolista, cit., 73ss.; C. PALLOIX, A Economia Mundial, 11 Sss.; V. T. MOREIRA,
em A . CASTRO e outros, Sobre o capitalism o..., cit., 5-68; S. TSURU e outros. Aonde vai o capitalism o....
c\l.;TENDENZE dei Capitalismo Europeo, cit.; Economte et Politique, n% 143-144 e 145-146 (Julho-Setembro/
1966), onde se publicam os textos apresentados numa conferência internacional realizada em Choisy-Le-Roy,
20-29 de Maio de 1966); LE CAPITAUSME Monopoliste d ttat, cit.
A vel A s N u n es - 1 9 7
Por outro lado, a própria política é hoje - e cada vez mais - política económica.
E o próprio direito vem-se ocupando cada vez mais com a regulação da economia
(em vez de ‘parar à porta das fábricas’), sendo a ordem económica um elemento
relevante da ordemjurídica. É este novo estatuto do estado no seio do capitalismo
que aqui se pretende relevar com a expressão capitalismo monopolista de estado.2,°
1 . E n q u ad ram en to H is t ó r i c o
Esta é, a nosso ver, a alteração mais significativa operada neste período nas estruturas do capitalismo. Mas cabe
assinalar também que é por esta altura que costuma assinalar-se o nascimento da chamada sociedade de
consum o, com o início da produção em série do íamoso Ford Model T, nas fábricas de Detroit da empresa
dirigida por Henri Ford.
Estes números são elucidativos: no período de 1880 a 1884, as exportações anuais da indústria alemã do ferro
e do aço representavam cerca de 40% das exportações das indústrias inglesas correlativas; no período de 1909
a 1913, o volume das exportações alemãs tomou-se sensivelmente igual ao das inglesas, nas indústrias referidas.
E não admira que assim tenha acontecido, se soubermos que a produção alemã de ferro fundido, que em 1870
era apenas 1/5 da inglesa, igualou esta cm 1905, tendo-a ultrapassado em 1910; em 1912aAlemanha produzia
17,6 milhões de toneladas, contra apenas 9 milhões produzidos na Inglaterra (cfr. LENINE, O imperialismo, ed.
c i l, 131; H . DENIS, História.. ciL, 604).
1 9 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
A Guerra veio tornar claro, fundamentalmente, que o estado não podia conti
nuar na posição do sinaleiro que, do seu pedestal, se limitava a regular o trânsito
dos interesses particulares, apenas intervindo em caso de colisão mais ou menos
grave. Na grande corrida económica que conduziu à Guerra (e que esta exigiu
depois aos beligerantes), era necessária a presença do estado, enquanto força indis
pensável para se evitarem ‘acidentes’ e se poder prosseguir no caminho com a
máquina capitalista. Ao contrário do que antes se admitia, ao estado era agora
atribuída a posição de primeiro responsávelpela economia.212
Até então, o estado só esporadicamente intervinha na economia e em relação a
certos aspectos ou questões restritas. A um nível global, a mais importante tomada de
posição do estado talvez tenha sido a legislação anti-truste que se iniciou nos EUA
com o ShermanAct (1890). Perante o perigo em que a concentração monopolista vinha
colocando a ‘livre concorrência’ (com cujas virtudes se identificavam as virtudes do
capitalismo), hesitou-se acerca da atitude que o estado devia tomar. Devia não se
intrometer, cumprindo assim a sua função? O u deveria intervir por só assim poder
cumprir essa função? Entendia-se que salvar a concorrência era salvar o próprio capi
talismo. Por isso, o estado interveio, proibindo todas as formas susceptíveis de prejudi
car a livre concorrência, para assegurar as condições que se consideravam indispensáveis
ao bom funcionamento do sistema. E claro que o capitalismo continuou a sua evolução
e as leis não foram suficientes para impedir a concentração.
Em 1924 Keynes proferiu na Universidade de Oxford a célebre conferência su
bordinada ao título (significativo) The end o f laissez-faire, na qual afirma, logo no
terceiro período: “We do not dance even yet a new tune. But a change is in the air”.
b) As décadas de 1920e 1930
Entretanto, novos acontecimentos vieram marcar as condições que enquadra
ram a evolução do capitalismo, com um após-guerra difícil, particularmente na
Europa, agora a ter de contar com mais um importante concorrente no mercado
mundial (os EUA, enriquecidos e fortalecidos com a guerra). O desemprego é
mais ou menos geral, principalmente nas indústrias voltadas para a exportação.
Ainda em plena guerra e em grande medida na sequência dela, eclodiu na
Rússia, cm O utubro de 1917, a revolução bolchevista, que se consolidou como
revolução socialista ao cabo de três anos de guerra civil. E o exemplo da Revolu
ção de Outubro, no ambiente escaldante do fim da guerra, não deixou de se fazer
sentir em outras paragens, confirmando os receios de muitos responsáveis políti
cos. Numa carta que dirigiu a Clemenceau e a W oodrow W ilson, Lloyd George
212 O próprio lenine escreveu que a 1* Guerra Mundial tinha "acelerado extraordinariamente a transformação
do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de estado" tipu d Ph. ZARIFIAN, Inflação.... c it , 110).
2 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
214 Cír. A . V. MARTINS, ob. cit., 144/145 e j. ELLEINSTEIN, 06. cit., 1,183.
215 Tomando como base a produção de 1929 (= 100), são estes os índices da produção de 1932:E U A - 53,8;
Alemanha - 53,5; França - 71,6; Grã-Bretanha - 83,5 (cfr. H . DENIS, História..., cit., 606). O comércio no mundo
capitalista reduziu-se enormemente e a produção global diminuiu cerca de 1/3.
216 Cfr. M. D O B B, /\ Evolução..., cit., 393 e 404.
217 Este 'pessimismo teórico' assumiu uma outra face, a dos autores que defendem que a depressão não foi ultra
passada graças a medidas de política económica que tenham sido adoptadas com esse objectivo, mas como
consequência do rearmamento e da economia de guerra que marcaram o mundo capitalista (com a Alema-
A Administração americana de Franldin Roosevelt tenta uma solução reformista
(que ficaria conhecida por New Deat), através de uma política de fomento financeiro,
ao mesmo tempo que, com a promulgação do National Industrial RecoveryAct (1933),
o estado concede às associações profissionais (ao jeito das soluções corporativas na
Europa) o poder de elaborar e fazer aplicar coercivamente regulamentos que deter
minam os limites e as formas de concorrência nos vários sectores.
Ainda em 1933, foi criada a National RecoveryAdministration, entidade a que foram
atribuídos, entre outros, poderes para obrigar a indústria a reorganizar-se, para fixar os
preços, distribuir quotas de produção. A N.R.A. foi uma estrutura de planificação
económica centralizada de tipo moderno, significando a rejeição do capitalismo do
velho estilo, que marcou os primeiros tempos da política rooseveltiana.
Na síntese de A rthur Schlesinger, seriam estes os dogmas da primeira fase do
New-Deal: “Que a revolução tecnológica tornara inevitável o gigantismo; que não
era possível continuar a confiar na concorrência para proteger os interesses soci
ais; que as grandes unidades eram uma oportunidade a aproveitar e não um perigo
a combater; e que a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deve ser com
binação e cooperação sob uma autoridade federal ampliada”.218
Com a declaração de inconstitucionalidade da National RecoveryAdministrati
on pelo Supremo Tribunal Federal em 1935 e sua consequente dissolução, desapa
receu o organismo de cúpula da intervenção do estado na economia, organizada
corporativamente, com base nas associações profissionais autónomas, às quais era
confiada a ‘administração’ do respectivo sector de actividade económica. Cortadas
assim as ambições mais radicais do New-Deal, nem por isso este deixaria de ser
um dos momentos mais importantes na evolução do estado capitalista para a sua
fase actual de estado económico.
Na Alemanha, porém, os resultados políticos da crise foram muito diferentes.
Em Março de 1933, Hitler é nomeado chanceler. Em 1934, a pretexto do incên-
nha à frente) até ao final da 2* Guerra Mundial e que se prolongou após o fim da Guerra com a corrida aos
armamentos alimentada pela 'guerra fria'. É este, v.g., o ponto de vista de BARAN/SWEEZY, Capitalismo
Monopolista, cit.. Cfr também GAMBLE AVALTON, ob. cit., 119ss.
218 Há quem entenda, aliás, que "o N ew Deal nâo significou uma brusca ruptura com a tradição americana, mas,
simplesmente, uma continuação, num ritmo bastante mais acelerado, de um processo que se iniciara nos
alvores do século XIX e afectou tanto os governos republicanos como os democráticos". Cfr. A. SHONFIELD,
Capitalismo M oderno..., cit., 306,311 e 447/448, onde podem colher-se mais indicações acerca do significado
e alcance do N ew Deal. Andrew Shonfield ilustra abundantemente a ampla e continuada tradição
intervencionista do estado na economia americana, com particular realce na primeira metade do séc. XIX,
mas ainda suficientemente importante até finais do séc. XIX, apesar da reacçáo verificada no terceiro quartel
do século, que forçou os governos estaduais a abrir mão da sua participação no capital e na gestão de nume
rosas empresas, especialmente de serviços de utilidade pública. Esta intervenção pública na economia é mesmo
apontada como um dos mais importantes factores da concentração operada nas décadas de 1880 e 1890.
A v elãs N un es - 2 0 3
dio do Reichstag (provocado pelos nazis, para o imputarem aos comunistas), ini
cia uma violenta perseguição contra as organizações e os partidos operários. Uma
lei de 25 de Julho de 1933 vem generalizar a cartelização obrigatória anteriormente
aplicada apenas em alguns sectores. Em Novembro de 1934, determina-se a cria
ção, nos vários sectores da produção, de associações profissionais (Reichsgruppen),
às quais se atribuem amplos poderes de regulamentação e direcção do respectivo
sector, podendo ir até ao encerramento das empresas que não cumprissem os regu
lamentos promulgados pelo Reichsgruppe ou julgadas excedentes. Em regra, eram
as grandes empresas monopolistas que dirigiam as associações profissionais, atra
vés das quais passou a ser controlada, em estreita ligação com o estado nazi, toda
a economia alemã. “Os grandes industriais - escreve um autor - tinham-se tomado
em muitos casos os verdadeiros dirigentes da nação, e não é muito certo que
tenham actuado sempre no interesse geral”. E o mesmo autor dá conta do que lhe
declarara, cm 1937, um pequeno industrial alemão: “Agora tudo está regulamen
tado, dizem-me o que devo produzir e a que preço; fornecem-me matérias-primas
cujo valor é fixado pelo governo. Não tenho qualquer possibilidade de intervir seja
no que for, na marcha da economia geral ou do meu negócio. Tornei-me um
funcionário inútil”.219
c)A Segunda Guerra Mundial
Depois de um período de preparação, a Alemanha lança-se à conquista de
“espaço vital” (lebensraum). Em 1937, anexa a Áustria; em 1938, foi a vez da região
dos Sudetas, na Checoslováquia, por cedência das democracias europeias no Pacto
de Munique (conhecido por pacto da vergonha). A invasão da Polónia, em 1 de
Setembro de 1939, marca o início formal da Segunda Guerra Mundial, em que a
Alemanha teve como aliados dois países igualmente empenhados na anexação de
novos territórios (a Itália, que em 1935 fizera guerra à Etiópia, e o Japão, que em
1931 conquistara a Manchúria e em 1937 invadira a China).
Nesta Guerra, os equipamentos económicos tornaram-se alvos militares prio
ritários para cada um dos beligerantes e o esforço de guerra exigiu de todos um
enorme esforço no terreno da economia. Neste contexto, o estado teve de ocupar-
se directamente não só da distribuição dos alimentos e do controlo da utilização da
mão-de-obra e dos recursos disponíveis, mas também da produção, ao menos nos
sectores mais directamente ligados às necessidades bélicas. Os autores falam de
planificação económica deguerra (comunismo deguerra, não apenas na URSS, mas na
generalidade dos países beligerantes).
220 O s industriais americanos, com efeito, procuraram confinar a sua produção para fins bélicos às fábricas
construfdas pelo governo, produzindo nas suas próprias fábricas bens nâo especificamente desti nados à nação
em guerra, mas 'utilizáveis em tempo de guerra e previstos para o tempo de paz", como salienta Jean Romeuf,
que conclui deste modo: "De facto o Estado dirige bem a economia, mas nas condiçóes mais onerosas e menos
rentáveis possíveis. Encontra-se sensivelmente na situação do indivíduo que, tendo necessidade absoluta de um
objecto, dá 'cana branca' a um fornecedor para lho conseguir num prazo determinado. Não poderá, portanto,
falar-se de planificação relativamente à indústria* (Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 59/60).
221 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura..., cit.
222 Num relatório do Research Institute o f America (Junho de 1964), afirmava-se: 'Está em curso uma terceira
A v e i As N u n e s - 2 0 5
2. C a r a c t e r iz a ç ã o G era l
revolução industrial tão espectacular como as que resultaram da utilização da máquina a vapor e da expansão
da electricidade. Tem na origem a libertação da energia nuclear e termo-nuclear, a transformação electrónica
da energia cm trabalho e a utilização da cibernética e das calculadoras para libertar a energia humana das
decisóes rotineiras. Por volta de 1980 - concluía o relatório o mundo industrial será tão diferente do mundo
actual como este édiferente do mundo doséc. XIX'(apue/A. BERLE, "Propriété...,cit., 231).
2 0 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a
pela extensão do mercado, no qual cada uma delas tem, porventura, de competir com
outras empresas igualmente grandes que não serão facilmente elimináveis.
Por outro lado, atingido que seja um grau elevado de concentração numa dada
indústria, a(s) empresa(s) que goze(m) de uma posição monopolista não terão interes
se em aumentar os investimentos no sector, para não se sujeitarem, com o aumento da
produção, a uma baixa de preços (que poderá significar redução dos lucros). Nestas
condições, se a empresa tem fundos para investir, a diversificação da produção para
novos sectores é uma das soluções possíveis (a par da exportação de capitais).
Acresce que a diversificação - como o provou a Grande Depressão - torna as
empresas menos vulneráveis às crises cíclicas (e sazonais). A diversificação apre
senta-se também como a melhor saída para a expansão de uma empresa que dis
põe de capacidade de produção não utilizada. Em outras circunstâncias, a
diversificação constitui uma autêntica reconversão da actividade das empresas, por
forma a assegurar a sua subsistência, quando a respectiva empresa (ou mesmo o
sector de actividade em que se integra) se encontra em declínio.
b) A partir da década de 1950, assistiu-se ao desenvolvimento e à predominân
cia das grandes empresas (que à guerra total - que todas temem - preferem uma
política de entendimento com as rivais, ainda que em campos suficientemente
delimitados) e ao domínio dos sectores mais importantes por um reduzido número
de empresas, interessadas em se defenderem, no seu conjunto, da concorrência
eventual de novos produtores.
Esta situação permitirá explicar a prática frequente da celebração de acordos
de vária ordem entre grandes empresas, acordos que, para além dos objectivos
tradicionais dos cartéis, visam organizar a colaboração das empresas associadas no
que respeita a problemas de ordem técnica (investigação; normalização de produ
tos; serviços de vendas; trocas de licenças, patentes, modelos industriais, etc.).
E, à luz das características actuais do capitalismo, não espantará que tais acor
dos se tenham realizado também, em certa época, sobretudo nos países mais de
senvolvidos, entre empresas públicas e empresas privadas (nomeadamente como
forma de contornar os obstáculos políticos e jurídicos à fusão entre elas).
c) A concentração ganha hoje relevância especial na perspectiva dos grupos de
sociedades. Ora, ao nível das empresas, para além das formas de integração (concen
tração vertical), a concentração horizontal, tal como em regra se apresenta, aparece
fundamentalmente como concentração homogénea (i.é, respeitante a empresas que
produzem bens homogéneos ou sucedâneos próximos, que fabricam o mesmopro
duto). Ao nível dos grupos, porém, a concentração horizontal apresenta-se já como
concentração heterogénea (reunião, no mesmo grupo, de empresas que fabricam pro-
A v ela s N u n es - 2 0 7
dutos diferentes), modalidade que já não pode justificar-se por motivos de ordem
técnica, i.é, fazendo apelo ao princípio das economias de escala.
Esta prática da concentração heterogénea visa reunir, sob o controlo de um mes
mo grupo, o maior número possível de empresas especializadas e dominantes em
diferentes ramos de actividade económica, integrando-se perfeitamente na lógica da
concorrência entre grandes colossos, tal como ela se apresenta na actual fase do
capitalismo, procurando enfrentar as exigências dessa mesma concorrência.
A lógica da concorrência impõe a especialização; mas a especialização torna as
empresas mais vulneráveis, colocando-as na dependência do mercado de um único
produto, situação arriscada numa época em que as inovações tecnológicas se suce
dem a um ritmo particularmente acelerado. A via acima indicada - cuja meta é a
criação de condições de multimonopôlio - tem em vista, portanto, eliminar o aspec
to negativo da especialização, pela especialização em vários sectores diferentes.
d) Só que, no âmbito deste processo de concentração horizontal heterogénea, podem
ainda distinguir-se duas situações diferentes: a concentraçãofuncionale o conglomerado.
No primeiro caso, trata-se de associação entre empresas que fabricam produtos
diferentes, mas que são susceptíveis de preencher a mesma função (de satisfazer a
mesma necessidade) ou são complementares do ponto de vista de uma mesma
função. A concentração funcional pode, portanto, entender-se como semi-heterogé-
nea ou complementar.
O conglomerado, porém, é uma forma de concentração totalmente heterogénea.
O conglomerado caracteriza-se, na verdade, pela existência de uma única direcção
económica (que não é incompatível com uma relativa autonomia de gestão dos
váriosprofit centers, desde que estes se mantenham dentro dos objectivos e assegu
rem as taxas de lucro planificadas pelos órgãos de topo), a par de uma diversificação
multilateral (produção e venda de bens que, na perspectiva do produtor, não têm
que apresentar entre si qualquer relação de ordem técnica e que, na perspectiva do
consumidor, não são directamente substituíveis nem complementares). Este pro
cesso de concentração opera essencialmente através de sucessivas aquisições de em
presasjá existentes nos vários sectores de actividade económica.
Trata-se de um tipo de concentração que se iniciou na economia americana e
que, a partir de 1945, conheceu, nos EUA, na Europa e no m undo capitalista em
geral, um acentuado ritmo de desenvolvimento, a ponto de poder considerar-se o
conglomerado como a forma de concentração mais corrente hoje em dia nos paí
ses industrializados.
e) A par desta diversificaçãofuncional daprodução, representada pelos conglome
rados, tem-se acentuado aquilo a que por vezes se chama diversificação geográfica da
produção, como consequência da expansão das empresas multinacionais.
2 0 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
223 Em 1959 viria a constituir-se a EFTA (íuropean Free Trade Associalion). Liderada pelo RU (e integrando
também a Áustria, a Dinamarca, a Noruega, Portugal, a Suécia e a Suíça), era uma organização que pretendia
constituir tão só uma zona d e com ércio livre para produtos industriais, afastando, ao contrário da CEE,
qualquer projecto de integração política, que nào agradava ao R U , à Dinamarca e à Noruega e que era
incompatível com o estatuto de neutralidade da Áustria, da Suécia e da Suíça e com o regime de tipo fascista
que permanecia em Portugal como subproduto da guerra fria.
2 1 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a
Entretanto, o Tratado de Roma foi sendo alterado: em 1986, pelo Acto Único
Europeu (que veio promover a implantação efectiva, até 31.12.1992, do mercado
interno único de mercadorias, capitais, serviços e pessoas); em 1992, pelo Tratado de
Maastricht (que criou a União Europeia e decidiu instituir a União Económica eMone
tária, assente na criação do Banco Central Europeu, na adopção de uma política mone
tária e cambial únicas e na adopção do euro como moeda única dos já treze países que
aderiram ao Eurosistema); em 1997, pelo Tratado deAmesterdão (que tentou a defi
nição de uma estratégia não vinculativa no domínio do emprego); ainda em 1997, os
estados da zona euro estabeleceram o Pacto de Estabilidade e Crescimento (que veio
enfeudar a política monetária e a política orçamental a rigorosos critérios moneta-
ristas, sacrificando todos os outros objectivos económicos e sociais das políticas
públicas ao objectivo primordial da estabilidade monetária); em 2000, pelo Tratado
de Nice (que reorganizou os poderes políticos no seio da UE, tendo em vista o futuro
alargamento); à margem deste Tratado foi aprovada a Carta dos Direitos Fundamen
tais, objecto de mera declaração política, porque o RU se opôs a que ela fosse incor
porada no Tratado e dotada de força jurídica vinculativa.
O processo de integração económica dos países da Comunidade Económica
Europeia, ao criar condições favoráveis à actuação das empresas no seio de merca
dos mais vastos, tem constituído, por isso mesmo, um poderoso factor de concentra
ção, em especial após a instituição do mercado interno único (1986) e a adopção do
curo como moeda única (1999). Num primeiro momento, aproveitaram-se dele,
talvez em maior medida, as grandes empresas americanas, com posições dominantes
em vários sectores estratégicos da chamada ‘sociedade da informação’ (electrónica,
informática, telecomunicações). Mas também entre as empresas dos países membros
da União Europeia o movimento de concentração tem sido enorme.
As normas do Tratado de Roma não contrariam a concentração, pretendendo
apenas evitar os abusos da posição dominante por parte das grandes empresas, com o
objectivo de garantir uma “concorrência livre e não falseada”. E não falta quem
entenda, desde o início, que “o fim a atingir é fazer da C E E um mercado de oligo
pólios”, de modo a “estreitar a solidariedade entre as economias em presença, subs
tituindo uma concorrência cega e desordenada por uma concorrência organizada,
(...) suscitando assim a eclosão de um ‘espírito comunitário’.”224 O pensamento
oficial e a acção dos estados tem-se igualmente manifestado no sentido de facilitar e
estimular as operações de concentração entre empresas de diferentes países que inte
gram o mercado único e agora utilizam a mesma moeda (união monetária).
Dentro dos vários países, aliás, o ritmo de concentração tem sido notável, ale-
gando-se que esse é o único caminho para que as empresas de cada país possam
adaptar-se a um mercado mais vasto, de modo a enfrentarem com êxito a concor
rência das empresas estrangeiras, e para que a integração económica fique facilita
da, permitindo uma ulterior unificação política, de modo a evitar a ‘colonização’
por parte dos EUA (esta seria, para alguns, desde o início, a resposta necessária do
capital europeu ao “défi américain”...).
g) Em outras partes do mundo registaram-se também experiências de integra
ção económica regional. Segue uma nota breve sobre as mais relevantes.
NaÁírica:
União Árabe do Magrebe: O Tratado que instituiu a UAM foi assinado em M ar-
raquexe em Fevereiro de 1989 e entrou em vigor em Julho do mesmo ano. São
Estados-membros a Líbia, Marrocos, Mauritânia, Tunísia e Argélia. Tem como
propósito a constituição de uma união aduaneira e de um mercado comum.
Comunidade Económica da África Ocidental (West African Economic Community):
OTratado que instituiu a C EA O foi assinado em Abril de 1973, tendo entrado em
vigor em Janeiro de 1974. São Estados-membros o Benin, Burkina-Faso, Costa
do Marfim, Mali, Mauritânia, Níger e Senegal. Anteriormente, alguns destes Es
tados tinham constituído a União Aduaneira dos Estados da África Ocidental. Os
objectivos são os de promover a circulação preferencial ou mesmo livre dos bens
originários de cada um dos Estados nos demais e a instituição de uma pauta adu
aneira comum face ao exterior.
Comun idade Económica dos Estados da África Ocidental (Economic Community o f
WestAfrican States - ECOWAS): OTratado que instituiu esta Comunidade foi assi
nado em Lagos cm M aio de 1975 e foi revisto em Julho de 1993. São Estados-
membros o Benin, Burkina-Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Ghana,
Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.
Tem como objectivo o estabelecimento de uma união económica e conta com um
quadro institucional de algum relevo (uma Autoridade, um Parlamento e várias
comissões técnicas especializadas).
Comunidade Económica dos Estados da África Central (Economic Community o f
CentralAfrican States - ECCAS): Instituída em Dezembro de 1981. Conta com a
participação dos seguintes países: Angola, Burundi, Camarões, República Centro
Africana, Chade, Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Ruanda, S.Tomé e Príncipe e
Zaire. A intenção é a de constituir uma união aduaneira.
2 1 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a
Na América:
Mercado Comum da América Central. Entrou em vigor em Junho de 1961, abran
gendo inicialmente a Costa Rica, São Salvador, Guatemala, Honduras e Nicará
gua. Procurava-se a instituição de uma união aduaneira. Em 1975 determinou-se
a criação da Comunidade Económica e Social da América Central, prevendo-se a adop
ção progressiva de medidas configuradoras de um mercado comum.
Mercado Comum das Caraíbas (Caribbean Community and Common Market -
CARICOM): Reúnem-se neste mercado países da área das Caraíbas, desde 1973
(antes vigorava um acordo de comércio livre). Determinou-se a instituição de uma
união aduaneira, entre outras medidas de coordenação e de cooperação.
Comunidade Andina'. Esta Comunidade tem actualmente como membros a
Bolívia, Colômbia, Equador e Peru e entrou em vigor (como Pacto Andino) em
Outubro de 1969. A partir de 1988 iniciou-se um programa de liberalização co
mercial regional e de adopção de uma pauta aduaneira comum, que se consolidou
nos anos 1990.
A v el As N u n e s - 2 1 3
NaÁsia-Pacífico:
Conselho de Cooperação dos Estados Arabes do Golfo: Acordo assinado em 1981,
abrangendo o Bahrain, o Kuwait, Oman, Qatar, Arábia Saudita e Emiratos Árabes
Unidos. Em 1992 foi enunciado o objectivo de estabelecer até 2000 um mercado
comum, tendo-se no ano seguinte unificado o sistema pautai da região.
Associação de Cooperação Regional da Asia do Sul: O tratado de associação foi
assinado em Dezembro de 1985, para efeitos de cooperação económica (com estí
mulo ao comércio intra-regional) e social, pelos seguintes países: Bangladesh,
Butão, India, Maldivas, Nepal, Paquistão e Sri Lanka.
Acordo Comercial de Aproximação Económica entre a Austrália e a Nova Zelândia
(Australia-Nev) Zealand Closer Econom ic Relations Trade Agreement -A N Z C E R T A
ou CER): Criado em 1983 e revisto em 1988, é um dos espaços de integração
regional mais avançados.Trata-se de uma zona de comércio livre, com liberaliza
ção adicional nos domínios do comércio de serviços e dos mercados públicos.
Existe também alguma convergência em políticas sectoriais (‘z/.gda concorrência).
Associação das Nações do SudesteAsiático (Association ofSouth-East Asian Nations -
ASEAN): Esta associação foi constituída em 1967, tendo actualmente como mem
bros a Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura,Tailândia, C am
2 1 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
225Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, ver A .). AVELÃS NUNES, D o capitalismo. .., ciL, 30-42 e 64-74.
2 1 6 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Sabe-se como o avanço das técnicas exige mão-de-obra cada vez mais instruída
e com melhor preparação científica, profisional e cultural. Por isso se proclama que
os estados, para promoverem o desenvolvimento das respectivas populações, não
podem descurar os sectores do ensino, da saúde, da segurança social, da habitação.
Por isso se compreende que tais despesas propiciem vantagens aos donos do capital,
que assim acabam por ‘amortizar uma parte do que pagam a título de impostos.
E de tal modo essas despesas são rentáveis que, quando a actuação do estado
não satisfaz, muitas são as empresas que, embora a custos mais elevados, suportam
directamente o encargo de centros próprios de formação profissional, cantinas,
centros de saúde e de recreio, bairros para o pessoal, etc.
3) Como cúpula de toda a intervenção do estado, aparece a planificaçãopública,
cuja origem e significado serão esclarecidos mais à frente.
Este facto anda, de resto, associado à relativa liberdade das grandes empresas
relativamente à taxa de juro do mercado. Na verdade, tais empresas estão normal
mente em condições de determinar os seus preços de modo a constituir os fundos
necessários para o reinvestimento, e a possibilidade de autofmanciamento coloca-as
fora da dependência de fundos alheios agravados pelo juro. M uitas vezes, o aforro
interno excede as necessidades de capitais para investimento próprio, sendo trans
ferido para sociedades subsidiárias cujo escopo é conceder crédito para financiar o
consumo dos bens que as empresas principais têm para vender.
Invoca-se por vezes que esta situação de domínio das grandes empresas tem o
significado positivo de uma superação do ‘carácter anárquico’ do mercado. Em
contrapartida, poderá dizer-se que este fenómeno, como inerência do grau cres
cente de ‘monopólio’ e do declínio da eficácia do mecanismo dos preços, não é
motivo de orgulho para o capitalismo.226 Na verdade, o reverso da medalha con
siste em se admitir que deixou de funcionar eficazmente o mecanismo de auto-
adaptação vulgarmente citado como o maior mérito do capitalismo: assegurar a
maior eficiência das empresas, o maior volume de produção, a produção orientada
no sentido dos gostos dos consumidores, com base no mecanismo dos preços, que
forneceria a informação indispensável à tomada das decisões de investimento e de
produção das empresas e das decisões de consumo e de aforro dos particulares,
assegurando, assim, a realização automática da racionalidade económica para a soci
edade no seu conjunto.
Quer dizer que o mecanismo dos preços deixou de realizar a função que se
entendia ser por ele desempenhada dentro dos pressupostos teóricos do capitalis
mo de concorrência. A monopolização crescente da economia permite às grandes
empresas, que por si só ou juntamente com um pequeno número de outras, domi
nam os mercados das indústrias mais importantes, impor os preços ao consumidor.
Além de que as próprias características dos mercados concentrados num pequeno
número de grandes empresas asseguram a estas a vantagem de não correrem o
risco de ver a sua situação posta em perigo por eventuais concorrentes, dada a
dificuldade (se não mesmo impossibilidade) de novas empresas entrarem no mer
cado - o que propicia às empresas existentes autênticas situações de tipo monopo
lista, estabelecendo acordos entre si (expressa ou tacitamente), no que toca à fixação
dos preços, à distribuição do mercado, etc., e podendo efectuar com segurança os
seus planos a longo prazo.
Por outro lado, a produção em série de grandes quantidades de bens de consu
mo implica a existência de um consumo de massa, pois as empresas capitalistas
dos sistemas públicos de saúde e de ensino é uma forma nào tolerável de concorrência desleal com as empresas
privadas 'produtoras' de serviços de saúde e de ensino.
2 2 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
empresas de grande dimensão, não podem hoje confinar-se nos limites exíguos
dos espaços nacionais.
Com o sempre aconteceu desde Ricardo, o livrecambismo tem sido utilizado
como um instrumento ao serviço dos países dominantes e dos interesses dominan
tes, aspecto que se acentuou com a passagem do sistema de negociação permanen
te que caracterizava o GeneralAgreement on Trade and Tariffs (GATT) para o modelo
de agência reguladora do livre comércio internacional, que é a O M C (Organiza
ção M undial do Comércio), muito mais facilmente dominável pelos EUA, à seme
lhança do que vem acontecendo com outras agências da ON U , como o FM I e o
Banco Mundial.
Ao contrário da ‘filosofia’ inspiradora da O M C , que vê na liberdade absoluta das
trocas, na plena abertura dos mercados e no simples desenvolvimento do comércio a
solução para todos os problemas dos países de desenvolvimento impedido ou marca
dos por um desenvolvimento dependente ou desenvovlimento maligno, muitos autores
aparecem hoje a defender que as relações comerciais internacionais devem inspirar-
se, por parte dos países dominantes, nos princípios da solidariedade e do desenvolvimento
sustentável e no reconhecimento do direito dos povos à auto-suficência alimentar.
Entretanto, os valores do comércio mundial aumentam sem cessar, mas as desigual
dades e a exclusão social aumentam a um ritmo ainda maior.
240 Sobre este ponto, cfr. A . J. AVELÃS NUNES, Neoliberalismo, Globalização.. cit., onde podem ver-se outras
indicações bibliográficas.
A v elãs N u n e s - 2 2 7
cado mundial unificado, controlado pelo capital funanceiro e orientado para go
vernar a economia mundial e impor um determinado modelo de sociedade.
d) Uma quarta nota para salientar que esta “política de globalização” se tornou
possível graças aos desenvolvimentos operados nos sistemas de transporte (que
tornaram quase negligenciável o custo do transporte por unidade de produto, re
duzindo a pouco a resistência ao transporte) e nas tecnologias da informação, que
permitem controlar a partir do ‘centro’ uma estrutura produtiva dispersa por várias
regiões do mundo e permitem obter informação e actuar com base nela, em tempo
real, em qualquer parte do planeta, a partir de qualquer ponto do planeta.
Neste mundo de comércio livre de barreiras físicas ou legais pretende-se que
circulem livremente todo o tipo de bens (matérias-primas, semi-produtos e pro
dutos acabados da indústria e da agricultura), serviços (incluindo os chamados
“produtos financeiros”), capitais e tecnologia. Mas esta liberdade já não se aplica
aos trabalhadores. Quanto a estes, os grandes centros imperiais procuram barri
car-se nas suas fortalezas armadas, para evitar esta nova ‘invasão dos bárbaros’.
Parafraseando Galileu, diremos que, no entanto, as pessoas movem-se: estudos da
O N U estimam que cerca de 160 milhões de pessoas se desloquem do Sul para o
Norte até 2025.
e) Uma outra nota para recordar que uma das características da “política de
globalização” em curso é a que se relaciona com o esbatimento do papel do estado
na economia e com a anulação do estado nacional.
Este está em risco de perder os tradicionais atributos da soberania e já perdeu
- diz-se - a capacidade de controlar a vida económica e o poder económico. Os
capitalismos nacionais, que constituiram o quadro de desenvolvimento do primeiro
capitalismo, teriam sido submersos pela onda globalizadora.
Alguns procuram dar a entender que, à semelhança do capitalismo liberal,
também o actual capitalismo quer ignorar o estado, fazendo da economia um
assunto regulado pelas leis naturais do mercado. Assim se regressaria à separação
entre o estado e a economia, cabendo ao estado as funções atinentes à organização
política e administrativa, e cabendo aos agentes económicos privados (à sociedade
civil) a organização das tarefas produtivas reguladas pelo mercado.
f ) Uma nota mais para sublinhar, porém, que não pode correr-se o risco de
interpretar a globalização como um regresso aos tempos do ‘capitalismo de con
corrência’, agora projectado à escala mundial. Neste nosso tempo, os protagonistas
quase exclusivos são os grandes conglomerados transnacionais, orientados por uma
estratégia planetária, apoiados num poder económico (e político) que anula em
absoluto os mercados tal como os entendia a teoria da concorrência, e apostados
em controlar o processo de desenvolvimento económico à escala mundial.
A v elã s N u n es - 2 2 9
g) Uma última nota para pôr em relevo que a globalização se caracteriza tam
bém - segundo alguns essencialmente - pelo domínio do capital financeiro, justi
ficando perfeitamente o epíteto de capitalismo de casino, que S. Strange inventou
para caracterizar o estádio actual do capitalismo.
Com efeito, o processo deglobalizaçãofinanceira assume uma importância funda
mental no quadro da globalização, traduzindo-se, grosso modo, na criação de um
mercado único de capitais à escala mundial, que permite aos grandes conglomerados
transnacionais colocar o seu dinheiro e pedir dinheiro emprestado em qualquer
parte do mundo.
A desintermediação, a descompartimentação e a desregulamentação são as três
características essenciais deste processo.
- A desintermediação traduz-se na perda de importância da tradicional interme
diação da banca nos mecanismos do crédito. Os grandes investidores institucionais
(empresas multinacionais, empresas seguradoras, bancos, fundos de pensões e mesmo
os Tesouros nacionais de alguns países) têm acesso directo e em tempo real aos
mercados financeiros de todo o mundo para a colocação dos fundos disponíveis e
para a obtenção de crédito, dispensando o recurso aos intermediários financeiros e
os respectivos custos de intermediação (o financiamento directo e autofmancia-
mento substituem o financiamento indirecto).
- A descompartimentação significa a perda de autonomia de (a abolição das ‘fron
teiras’entre) vários mercados até há pouco separados (mercado monetário, mercado
financeiro, mercado de câmbio, mercados a prazo) e agora transformados em um
mercadofinanceiro único, não só à escala de cada país mas também à escala mundial.
- A desregulamentação consiste na plena liberalização dos movimentos de capi
tais, processo que teve início nos anos 70 do século passado nos EUA, a que se
seguiu a abertura do sistema financeiro japonês em 1983/84 (em grande parte por
imposição dos EUA), o desmantelamento dos sistemas nacionais de controlo de
câmbios na Europa (nomeadamente com a criação do Mecanismo de Taxas de Câm
bio do Sistema Monetário Europeu e a liberalização completa dos movimentos de capitais,
no início da década de 1990) e a liberalização ‘imposta’ aos países da Europa
Central, da América Latina e da Ásia do Sudoeste.
Os membros do chamado G 7 desempenharam neste processo um papel deci
sivo, ao imporem a todo o mundo a lógica ‘libertária’ que adoptaram para si pró
prios no que toca aos movimentos de capitais. O FM I (controlado, de facto, desde
há muito, pelas grandes potências capitalistas, e, cm particular, pelos EUA) foi o
instrumento escolhido para, em nome da ‘comunidade internacional’, executar esta
cruzada*. A partir da década de 70 do séc. XX, sempre que um país recorre aos
serviços do FM I, este tem condicionado o apoio pretendido à aceitação, pelo país
2 3 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
241 Por volta de 2001, os dados disponíveis apontavam no sentido de que os EUA absorviam cerca de 80% da
poupança mundial Kle Monde Diplomatique, Maio/2001), estimando-se que, nos dez anos anteriores, os 11
países mais ricos do mundo teriam acolhido 78% do investimento estrangeiro global, cabendo aos cem países
mais pobres apenas 1% (Folha de S. Paulo, 1.7.2001).
A v elã s N u n e s - 2 3 1
go) e têm ficado também os países mais fracos e menos desenvolvidos, muitos
deles enleados na teia infernal da dívida externa, uma espécie de ‘prisão perpétua
por dívidas*.
3.3. - O s factos dão razão ao velho Keynes, que, há mais de 50 anos, advertia
para os perigos de paralisação da actividade produtiva em consequência do au
mento da importância dos mercados financeiros e da finança especulativa.
A aceleração do processo de inovação financeira, nomeadamente o desenvolvi
mento dos mercados de produtos derivados, tem acentuado estes perigos. Criados
como instrumentos de gestão dos riscos inerentes à instabilidade das taxas de juro
e das taxas de câmbio, estes novos ‘produtos financeiros’ tornaram-se rapidamente
o objecto preferido da actividade especulativa (dada a pequena percentagem do
capital investido em relação aos ganhos possíveis) e um novo e poderoso factor de
instabilidade dos mercados financeiros.
Os especialistas falam de risco sistémico para caracterizar este novo risco global
resultante da liberalização dos movimentos de capitais no quadro de um mercado
financeiro único de dimensões planetárias. A semelhança do que a teoria refere
para os mercados de oligopólio, também neste mercado financeiro global os ope
radores tendem a actuar em função daquilo que eles pensam irá ser o comporta
mento dos demais operadores. A turbulência causada pela especulação em um
dado país ou região (agravada pela manipulação dos novos ‘produtos financeiros’)
tende a propagar-se a todo o sistema financeiro mundial graças ao comportamento
mimético dos grandes especuladores.
Noutro plano, vale a pena chamar a atenção para o facto de estas poderosas
‘forças do mercado’ terem vindo a sobrepor-se às políticas nacionais de regulação
das taxas de câmbio, uma vez que as autoridades competentes de muitos países não
têm meios para se defender eficazmente da acção dos especuladores. Basta recor
dar que o montante das reservas detidas pelos bancos centrais de todo o mundo
(principal meio de defesa das moedas nacionais) é sensivelmente igual ao montan
te das transacções diárias no mercado cambial.
As crises recorrentes dos últimos anos aí estão para ilustrar o que acabamos de
dizer: a crise do Sistema Monetário Europeu em 1992/93; a crise do peso mexicano
em 1994 (“a primeira grande crise dos mercados globalizados”, segundo o Director
do FM I, Michel Camdessus, crise que fez tremer o sistema financeiro dos EUA e,
por reflexo, o sistema financeiro de todo o mundo capitalista); a crise das moedas
asiáticas em 1997/98; a crise do rublo em 1998/99; a crise do real brasileiro em
1999; a grave crise financeira, económica, política e social da Argentina, por muitos
2 3 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
242 Após a crise que teve o México como protagonista, M. Camdessus escreveu que o mundo é dominado por um
poder polftico sem controlo, à mercê de uma "classe composta por agentes globais que manipulam divisas e
acções e dirigem um fluxo de capital de investimento livre, fluxo esse que todos os dias se torna mais importante,
praticamente ao abrigo de todos os controlos estaduais”. Referindo-se a estes especuladores profissionais, Camdessus
não hesitou em afirmar que "o mundo está nas màos destes tipos". E John Major, então Primeiro- Ministro britânico,
observava que o jogo dos especuladores assume "dimensões que o colocam fora de qualquer controlo dos
governos e das instituições internacionais". O Primeiro-Ministro italiano, lamberto Dini, proclamava que "não se
pode permitir aos mercados minarem a política económica de todo um país". Mais radical foi o Presidente francês
Jacques Chirac (Outubro/l 955); os especuladores são a "a sida da economia mundial".
Apesar deste alarme dos criadores perante o comportamento das suas próprias criaturas, a verdade é que os
poderosos do mundo nada fizeram para pôr cobro a esta vertigem libertária, nem sequer com o pretexto de
salvar a economia mundial desta espécie de sida que vai diminuindo as suas resistências.
Sobre o objecto desta nota, cfr. MARTI N/5CHUMANN, A Armadilha..., d L , e A. J. AVELÀS NUNES, NeoUxrabmo,
G lobalização.. cit.
243 Segundo os especialistas, por estes e outros canais passa diariamente o branqueamento de mil milhões de
dólares provenientes do crime organizado, de cujos lucros globais - calculados em cerca de 500 mil milhões
de dólares anuais - sobra muito dinheiro para corromper dirigentes e comprar partidos políticos.
A v e l As N u n e s - 2 3 3
244 S3o palavras de um jornalista português (Francisco Sarsfield Cabral, jornal Público, 6.10.01): "Será na determi
nação de pôr fim aos off-shores que teremos a prova real quanto à vontade política de combater o terrorismo
eos seus aliados. Por aí, maisdo que por acções militares, se verá se a campanha antiterrorista é mesmo a sério".
Pelo que se vé, parece que náo é a sério...
2 3 4 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o ü t ic a
Alguns especialistas temem que a situação venha a piorar, para os países menos
desenvolvidos, com a generalização do regime de plena liberdade das trocas inter
nacionais aos produtos agrícolas, como pretende a O M C . Este é o regime já pre
visto na Convenção de Cotonou (Junho de 2000) para as relações entre a
Comunidade Europeia e 40 países ACP (africanos, na sua maioria), com início
marcado para 2008.
Neste quadro, as exportações dos países subdesenvolvidos terão de ser feitas
aos ‘preços internacionais’, controlados pelas grandes multinacionais do agro-busi-
ness, preços que são, em regra, (muito) mais baixos que os custos de produção
praticados pelas pequenas e médias explorações agrícolas, que asseguram emprego
à maior parte da população rural e respondem pela maior parte da produção agrí
cola daqueles países.
Este regime de liberdade significa que as grandes multinacionais do sector
tomarão conta (ainda mais rigidamente do que hoje) do comércio agrícola (e,
consequentemente, da produção agrícola) à escala mundial. Os recursos agrícolas
dos países subdesenvolvidos ficarão ainda mais sujeitos à sobre-exploração com
vista ao lucro rápido da agricultura voltada para a exportação, acentuando os riscos
da monocultura (dependência das receitas de um só produto, degradação dos so
los, desertificação). Isto pode significar, em último termo, o agravamento da de
pendência alimentar destes países, com a diminuição da produção de alimentos
para as populações locais, em favor da chamada agricultura de sobremesa, voltada
para a exportação. Não falta quem recorde que o acordo NA FTA (North American
Free Trade Agreement - Acordo de Comércio Livre Norte-Americano, entre os
EUA, o Canadá e o México) já arruinou a agricultura mexicana, do mesmo modo
que a integração de Portugal na C E E destruiu a agricultura portuguesa.
Uma visão alternativa será precisamente aquela que assenta na defesa do direito
de todos os países à soberania alimentar, i.é, à auto-suficiência alimentar no que
toca aos produtos básicos. Alguns autores recordam que o princípio da auto-sufici
ência alimentar foi - e continua a ser - um dos princípios orientadores da PAC
(Política Agrícola Comum) desde a constituição da C EE.
À luz deste princípio, muitos defendem que a melhor forma de proteger os
agricultores dos países menos desenvolvidos é o recurso a medidas proteccionistas,
talvez a única política acessível a estes países. Sobretudo no domínio dos produtos
agrícolas, ganha sentido a posição dos que defendem que as soluções livrecambis-
tas entre países ou regiões com níveis de desenvolvimento muito diferentes só
podem traduzir-se na acentuação da hegemonia dos mais fortes e da dependência
dos mais fracos, impedindo estes de adoptar as medidas mais adequadas para ga
rantir prioritariamente a satisfação das necessidades alimentares dos seus povos.
A v e i As N u n e s - 2 3 5
3.6. - Perante dados como estes, não falta quem anuncie uma outra panaceia, a
nova economia áa sociedade da informação e da internet. Estas maravilhas da técnica
são apontadas como um novo mito redentor do capitalismo, com promessas de
paraíso ao alcance de qualquer computador ou de um qualquer telefone móvel da
última geração (basta navegar na internet, o resto vem por si...)- A nova economia
surge, assim, como a última versão da velha tese de que os avanços da ciência e da
tecnologia bastam para salvar o mundo. Sem dúvida que as conquistas da ciência
são um elemento fundamental na caminhada dos homens para a sua libertação.
Mas o mais importante é saber como e em proveito de quem são efectivamente
utilizados os conhecimentos científicos, que estão longe de ser considerados como
um património comum da humanidade, que beneficia sempre, em cada geração, dos
conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores.
Nas condições actuais, parece difícil não concordar com os autores que defen
dem que o controlo da produção científica e tecnológica tem vindo a revelar-se
como o principal factor do domínio neo-colonialista do nosso tempo, sendo do
minantes os países que produzem tecnologia e dominados os países que a não
produzem. E as chamadas novas tecnologias só têm vindo a acentuar este último
tipo de colonialismo.
Bem vistas as coisas, a nova economia é apenas um novo disfarce do velho
capitalismo, agora globalizado, instalado no mundo do pensamento único, talvez não
inteiramente convencido de que ele seja ofim da história, mas vivamente interessa
do cm que o comum das pessoas acredite nisso e fortemente empenhado em fazer,
por sua parte, o necessário para tentar atrasar o curso da história.
3.7. - à luz do panorama que acabamos de traçar, faz sentido perguntar que
expectativas se abrem aos povos injustiçados de todo o mundo. Ninguém terá uma
resposta infalível, mas temos de ter a coragem de evitar que a ‘censura’ totalitária
do pensamento único nos impeça de dizer e de escrever aquilo que pensamos e nos
impeça de pensar aquilo que dizemos e escrevemos.
Apesar da ‘ditadura global’ que caracteriza este tempo de hegemonia unipolar
e de pensamento único, começam a divisar-se algumas brechas na fortaleza do
capitalismo globalizado. “Os que protestam contra a globalização - escrevia The
Economist, de 23.9.2000 - têm razão quando dizem que a questão moral, política e
económica mais urgente do nosso tempo é a pobreza do Terceiro M undo. E têm
razão quando dizem que a onda de globalização, por muito potentes que sejam os
seus motores, pode ser travada. E o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que
toma os que protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos”.
Em Maio de 1997 reuniu em Belo Horizonte a Aliança Social Continental (que
inclui estruturas várias e organizações sindicais, incluindo a americana AFL-CIO ,
2 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
C a p it a l is m o e S o c ia l is m o
2 4 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a
indivíduos 6 determinado em princípio por normas obrigatórias que radicam numa razâo universal, intima
mente ligada à comunidade política, e que encontram a sua expressão na lei (pomos).“ Trata-se, como o próprio
Sombart reconhece, de definir o socialismo como um puro 'normativismo social"’, de “libertá-lo de qualquer
determinação de conteúdo c de concebê-lo de modo puramente formal", em termos tais que, identificando o
nomos com o socialismo, considera socialismo as simples prescrições de "náo-fumar", 'circular pela direita",
"é proibido colher flores", etc.
248 Cfr. P. PITTAeCUN H A, “As reformas.... cit., 30.
249 cfr. j. TINBERGEN, 'Face à l'a ve n ir, c it , 11-12.
2 4 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
puro”. Daí que, em outro texto publicado pela mesma altura250, concluísse, coe
rentemente, que apresentar o litígio ideológico entre os EU A e a URSS “de m a
neira simplista, como o litígio entre o ‘capitalismo’e o ‘socialismo’” era uma forma
ultrapassada de ver a questão, pois, em seu entender, “tudo mostra como a contro
vérsia sobre o sistema social e económico óptimo se tornou, de controvérsia abso
lutamente qualitativa, em problema de natureza relativa e quantitativa
Alguns autores levaram esta lógica bastante mais longe. A dolf Berle, v.g., como
conclusão da sua análise das grandes corporations americanas, sustentou que “o
aparecimento e o desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a
propriedade como instituição quase tão profundamente como o fazem a doutrina e
a prática comunistas” e não hesitou em afirmar “que o sistema económico ameri
cano baseado na propriedade privada se tornou, no fim de contas, tão socialista
como muitos sistemas socialistas”.251
Finalmente, esta amostra das conclusões a que pode levar (e tem levado) a
lógica que subjaz e os elementos em que se apoia a teoria da convergência dos
sistemas: “O conceito de comunismo de Marx - escreve um professor americano,
Robert Tucker252 - seria aplicável hoje, com rigor, à América; o seu conceito de
capitalismo está absolutamente antiquado e ultrapassado”.
2. C a p i t a l is m o e S o c ia l is m o - e l e m e n t o s e s s e n c ia is
produção”. A sua resposta é incisiva: “isso apenas significa que tais partidos desis
tiram de implantar um sistema económico socialista”.257
Relativamente à satisfação das necessidades enquanto móbil específico do socia
lismo, o mesmo professor comenta: “claro que a economia capitalista também
satisfaz necessidades, e nenhuma economia atingiu até hoje tanto êxito como ela
em tal domínio”. N o entanto, Teixeira Ribeiro põe em relevo esta diferença, que
considera essencial: “na economia capitalista a satisfação de necessidades é um
meio, e não um fim; é o meio de a empresa, vendendo os seus artigos, ganhar nessa
venda, obter lucros; enquanto na economia socialista a satisfação de necessidades é
ela própria o fim da actividade económica”. E porque “a satisfação de necessidades
é um meio e não um fim”, no quadro do capitalismo, conclui o autor, “sempre que
seja conveniente sacrifica-se o meio à realização do fim, procurando alcançar-se
mais lucro mesmo à custa de satisfazer menos necessidades”.258
E poderia alargar-se a indicação de autores e obras que apontam a propriedade
social dos meios de produção como um elemento essencial para se poder falar de
socialismo, incluindo, portanto, na caracterização do socialismo, aquela que foi a
principal reivindicação dos autores do Manifesto Comunista: a “abolição da propri
edade privada” dos meios de produção: “o que caracteriza o comunismo não é a
abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. O ra a
propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa, é a última e a mais perfeita
expressão do modo de produção e de apropriação baseado em antagonismos de
classes, na exploração de uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem
resumir a sua teoria nesta fórmula única: ‘abolição da propriedade privada’”.
3. Um s is t e m a m is t o ?
a) O \capitalismo popular
Defendem alguns que o capitalismo sofreu uma mudança essencial pela via da
difusão da propriedade accionista, da democratização do capital resultante da emis
são de acções adquiridas por milhares ou mesmo milhões de pessoas. Assim se
criaria uma situação de capitalismo popular, fenómeno que arrastaria consigo um
nivelamento das classes e um clima de ‘harmonia social’ e de ‘paz social’.261
260 Cfr. K. M ARX, Le Capital, em Oeuvres (ed. de M. RUBEL, c it), II, 1175.
261 Nesta lógica se inserem, aliás, as tentativas de fazer participar os operários no capital e nos lucros das empresas
(accionariado operário e outras técnicas de participação, que, em regra, nâo têm colhido o favor dos sindicatos).
Mas a verdade é que nâo é por isso que tais empresas deixam de ser capitalistas: os operários-accionistas
A v el A s N u n e s - 2 4 9
limitam-se, em regra, a receber tftulosde participação que lhes dâo direito a receber uma certa percentagem
do lucro da empresa (como recompensa da sua antiguidade ou dos seus bons serviços), mas sem direito a voto
e muito menos a ser eleito para a administração. Estes 'accionistas' nâo passam a decidir dos fins da produção
nem do destino do sobreproduto, decisões que continuam a caber quase por inteiro aos grandes accionistas que
controlam a sociedade e controlam a aplicação do sobreproduto, com a vantagem de que, interessando os
trabalhadores na empresa (fazendo-os crer que a empresa também é deles), asseguram maior estabilidade da
mâo-de-obra e maior rendimento do trabalho.
2 5 0 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a
dade socialista europeia, por exemplo (ou da URSS). Parece ser igualmente a tese
deTinbergen, que reconhece diferenças apenas quanto ao “grau de liberdade nas
decisões da produção. Os managers que dirigem as organizações industriais no
Ocidente - escreve ele - têm, sob este aspecto, uma liberdade bastante maior do
que aquela que têm os managers dos países comunistas, onde um número de pro
blemas ainda assaz considerável vem planificado do centro”.274
Também Galbraith fala dos “fins próprios da tecnostrutura”, construindo a partir
deles um “sistema regido pela lei do crescimento”, por contraposição a um outro
“sistema regido pela lei do lucro” (capitalismo). Galbraith ainda concede que “o seu
[da tecnostrutura] primeiro fim é, na verdade, assegurar um mínimo de lucros para
garantir a sua independência. Mas, a partir daí - acrescenta -, o seu interesse é muito
mais o de assegurar o crescimento da empresa do que o de aumentar os lucros, pois
os lucros advêm aos accionistas, dos quais a tecnostrutura já não depende”.275
Contra tal tese poderá logo objectar-se que esta “lei do crescimento”, de que
fala Galbraith, quer se considere um crescimento pelo crescimento (inspirado por
uma qualquer misteriosa ideia de grandeza...), quer se trate de um crescimento
destinado a enfrentar o aumento da população ou a corresponder à elevação dos
níveis de vida, não encontra explicação possível nos quadros de um sistema cuja
finalidade é “a transformação de certa soma de dinheiro em uma soma de dinheiro
maior” (Teixeira Ribeiro276). D ito de outra maneira: num modo de produção em
que a iniciativa da actividade económica cabe aos detentores do capital, o cresci
mento da empresa não poderá conceber-se como um fim em si mesmo, só ga
nhando sentido como meio de valorização do capital.
E poderá acrescentar-se que a diferença entre a posição dos managers das gran
des sociedades anónimas capitalistas e a dos directores das unidades de produção
da ex-comunidade socialista não residia fundamentalmente no maior ou menor
grau de liberdade de manobra de que gozavam uns e outros. O que importa saber
é a quem pertence a propriedade das empresas, a quem pertence o sobreproduto, a
quem cabe decidir do seu destino. E ninguém duvidará de que as respostas a estas
questões não poderiam ser as mesmas num caso e noutro.
A liberdade de decisão de que gozam os managers é a liberdade de actuarem
por forma a alcançar a máxima valorização do capital (próprio ou do ‘patrão’); a
liberdade de decisão dos directores das empresas públicas numa economia socia
lista é a liberdade de adequarem a actuação destas à melhor realização das deter
277 Para uma perspectiva critica das teses sustentadas por Burnham em The Managerial Revolution, cfr. P. SWEEZY,
£nsa/as...,cit.,40.
278 Tese que tem a sua expressão mais acabada em BERLE/MEANS, ob. cit.; J. BU RN H A M , ob. cit., e em obras
posteriores de A. BERLE {The Twentieth..., cit).
279 Cfr. BARAN/5WEEZY, Capitalismo Monopolista, c it , 34/35.
A v elà s N u n es - 2 5 7
havendo “razões para acreditar que a revolução dos gerentes não foi tão longe
como por vezes se pensa (ou se afirma sem pensar).”
Vimos já que, mesmo nos países capitalistas, o estado tem sido também em
presário.
Em certas condições, o estado adquiriu a propriedade de indústrias ou ramos em
dificuldades financeiras, ou cuja exploração apresenta riscos excessivos ou baixas taxas
de lucro, ou que só dão lucro ao fim de vários anos, ramos pouco atractivos para o
sector privado, mas necessários para o desenvolvimento da produção em geral.
Outras vezes, o estado tornou-se proprietário de empresas fornecedoras de
matérias-primas (sector mineiro, v.g.) ou de serviços diversos (energia, transpor
tes) de que as grandes empresas privadas são os principais clientes, beneficiando,
enquanto tais, de condições e tarifas particularmente favoráveis. O estado contro
lou, em alguns países, uma parte importante do sector bancário, embora essa cir
cunstância não lhe garantisse uma supremacia significativa sobre as grandes empresas
privadas, que recorrem cada vez mais intensamente ao autofinanciamento e se
integram em grupos que contam no seu seio pelo menos um banco e uma compa
nhia de seguros.
A situação ficou de tal forma clara que os interesses privados - que inicialmente
reagiram contra a intervenção sistemática do estado na economia e contra todas as
formas de propriedade pública - acabaram por aceitar, serenamente, a propriedade
do estado na generalidade dos países capitalistas: “a empresa particular - escreve
Andrew Shonfíeld 283 - acabou por considerar o grandemente reforçado sector pú
blico menos como um perigoso rival do que como um aliado útil, de facto, quase
como uma garantia - pois era agora tão vasto e maciço que não poderia mover-se na
direcção errada, por um instante sequer, sem fazer encalhar o barco todo.” Ainda
neste aspecto, portanto, a presença do estado na vida económica é considerada como
uma garantia para o sector privado, como um instrumento de racionalidade, não
como actuação orientada para fazer encalhar o barco capitalista.
Cfr. A. SHONFÍELD, Capitalismo Moderno, cit., 224. Em Portugal, durante o debate do Programa do IV Governo
Constitucional, M . jacinto Nunes exprimia esta ideia em discurso na Assembleia da República (dez71978): "As
nacionalizações, a menos que o seu fim seja o estabelecimento de uma direcção central total, destinam-se a
coordenar e dirigir, com o mínimo de burocracia, as actividades para as quais a iniciativa privada é inadequada
ou politicamente perigosa. Mas não devem ser uma sanção ou uma espoliação. É uma das técnicas de controlo
da economia e uma 'última ratio' em relação ao poder económico quando o poder politico não consegue
dominá-lo por outros meios'.
2 6 0 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
A propriedade estadual dos meios de produção será, pois, apenas uma nova (e a
mais recente) forma jurídica da propriedade capitalista, a par da propriedade indivi
dual e da propriedade corporativa (sociedades por acções), deixando inalterada a
natureza capitalista da propriedade de um estado que, nas palavras de François
Perroux 284, “nunca é neutro”, antes é a “expressão das classes dominantes”, de um
estado “largamente dependente do capitalismo dos monopólios”, de um estado
que, “nas democracias ocidentais, não é certamente independente dos grandes inte
resses: estes assediam-no e ocupam-no mesmo”.
quantidades a produzir e dos preços de venda) pela fixação prévia, por parte das
empresas, dos bens e das quantidades a produzir, c dos preços a pagar pelos
consumidores. Esta a explicação dada pelo próprio Galbraith: “uma empresa não
pode, utilmente, prever e programar a acção futura ou preparar-se para as contin
gências se não souber quais serão os seus preços e as suas vendas, assim como os
seus custos, inclusive os custos do trabalho e do capital e se não souber o que
estará disponível a esses custos. Se o mercado é inseguro, não poderá conhecer
esses dados. E não poderá, por isso, estabelecer os seus planos (...), a menos que o
mercado também ceda ante a planificação. M uito daquilo que a empresa considera
como planificação consiste em tornar mínimas ou em fazer desaparecer as influên
cias do mercado”.
Através de acordos (expressos ou tácitos, mas igualmente eficientes), as empre
sas ‘monopolistas’ controlam os preços que impõem aos consumidores. Assim evi
tam as flutuações derivadas de variações da oferta e da procura, sendo certo que a
estabilidade dos preços é um elemento importante para se poder planificar com
segurança. Através do controlo da utilização das patentes de invenção, através da
publicidade e das técnicas de vendas, as empresas monopolistas conseguem colo
car no mercado a espécie de produtos que mais lhes interessa produzir e nas
quantidades mais convenientes.
Nos primeiros tempos do capitalismo industrial, o lucro das empresas derivava
do nível dos custos que cada uma delas conseguia, em confronto com o preço que
se fixava no mercado por força do jogo da oferta e da procura e da concorrência
que entre elas se estabelecia. Uma vez atingida a fase do capitalismo monopolista,
os consumidores (o ‘mercado’) passaram a ser comandados pelos planos das gran
des empresas monopolistas e a planificação transformou-se em instrumento ne
cessário da prossecução dos objectivos próprios das empresas capitalistas.
b) Osprimórdios da planificaçãopública
Se a planificação levada a efeito pelas grandes empresas que controlam os
sectores altamente concentrados da economia é uma característica fundamental do
capitalismo na sua fase monopolista, a planificação levada a efeito pelos estados
capitalistas é, sem dúvida, o ponto mais alto e mais acabado da intervenção do
estado tal como ela se processou (por força de exigências resultantes da própria
evolução do capitalismo e da sua salvaguarda), particularmente a partir da Primei
ra Grande Guerra.
De início, porém, assim como a concentração foi combatida e negada durante
muitos anos, em razão da paternidade marxista da respectiva teoria e em homena
gem às virtudes do capitalismo de concorrência (identificado com o próprio capi
talismo), assim também a planificação foi proscrita nos países capitalistas, por se
A v elã s N un es - 2 6 3
entender que planificação significava socialismo, e por se julgar a sua prática in
compatível com a liberdade de empresa, considerada esta como ponto fundamental
da ‘filosofia’ inspiradora do capitalismo.
Esta era, contudo, uma atitude ‘idealista’, que não resistiria à prova dos factos.
A partir da última década do séc. XIX, o movimento de concentração acelerou-se,
nos termos e por força dos factores que atrás referimos. Neste quadro, a expansão
colonial suscitou a primeira reflexão de conjunto acerca do apoio que o estado
podia prestar ao grande capital privado.
Com a Guerra de 1914-18, as múltiplas intervenções do estado na vida econó
mica passam a tomar uma forma global, e a necessidade de ‘planificar’a interven
ção do estado faz-se sentir, principalmente na Rússia e na Alemanha. N o contexto
de uma economia militarizada, a planificação consiste então, fundamentalmente,
em repartir concertadamente entre os principais ‘monopólios’ as matérias-primas
e os recursos disponíveis, bem como as encomendas do estado. A guerra ‘empur
rou’ definitivamente o estado para o campo da economia, exigindo do estado novas
e múltiplas formas de presença e intervenção na ordem económica para poder
preencher a sua função nos quadros do sistema. As dificuldades que o capitalismo
vinha experimentando, bem como a complexidade e a importância das interven
ções estaduais, impunham que o sector privado (altamente ‘monopolizado’) e o
estado concertassem as suas actuações e que o estado planificasse as suas políticas, em
articulação com grandes empresas, obrigadas a planificar a sua própria actividade,
à medida que progredia a tecnologia e a concentração do capital. Falam alguns de
administração concertada e de economia concertada.
E é claro que a situação real do capitalismo não escapava aos autores mais
lúcidos, empenhados em o salvar. Em 1926, escrevendo sobre as crises do capita
lismo, Keynes defendia: que “a cura para estas questões deve ser procurada, em
parte, no controlo deliberado da moeda e do crédito por uma instituição centrale, em
parte, na compilação e divulgação, em larga escala, de dados relativos à situação
dos negócios (...). Estas medidas - continua Keynes - envolveriam a sociedade no
exercício de uma inteligência directiva, através de um apropriado órgão de acção
sobre muitas das complexidades intrínsecas dos negócios privados, mas que, entre
tanto, deixaria a iniciativa e as empresasprivadas livres de obstáculos”
A crise económica que nos anos trinta quase prostrou o capitalismo levou os
vários governos a lançar mão de todos os meios de salvação, entre eles a planifica
ção. Na França, surgem o Plano Tardieu (1929) e o Plano Marquet (1934). Na
Itália, foi apresentado o plano de secagem dos pântanos da planície aluvial do
ços públicos (de que beneficiam cm maior medida os principais clientes - as gran
des empresas privadas); na organização de esquemas de crédito e de seguro de
crédito à exportação; na concessão de subsídios às empresas exportadoras e no
estabelecimento de direitos alfandegários protectores; no financiamento da inves
tigação, quer seja realizada em centros públicos quer nas empresas privadas, etc.
O progresso técnico tem que ver com o processo da planificação económica. E,
como salienta François Perroux, o progresso técnico “já não é entendido como uma
variável que seria subtraída à decisão dos poderes públicos: estes estimulam a
investigação fundamental e aplicada; formam investigadores e trabalhadores qua
lificados; dedicam-se a prever, por mais imperfeitamente que seja, as grandes va
gas de transformações técnicas, a tornar mais curtos os períodos que separam a
invenção da aplicação experimental e do uso generalizado na indústria. Tendo em
conta a natureza de alguns grandes progressos do séc. XX, na exploração das novas
energias, por exemplo, a acção directa dos poderes públicos é insubstituível; ela
desdobra-se em subvenções, em participação nos riscos e no financiamento da
inovação das empresas privadas e dos seus grupos”.
O estado actua, por outro lado, no sentido de reduzir as dificuldades e incerte
zas da própria planificação das empresas, reunindo e divulgando informações292;
actuando sobre as taxas de crescimento da população e sobre a percentagem da
população activa em relação à população total; promovendo a adequada prepara
ção de mão-de-obra e intervindo para assegurar a sua conveniente distribuição
pelos vários ramos de actividade; procurando assegurar a necessária coerência no
desenvolvimento das chamadas infra-estruturas sociais (planos de urbanização,
parques industriais, estradas, portos, vias férreas, etc.).
Neste contexto, a intervenção do estado na ordem económica torna-se um
elemento essencial para que possa prosseguir-se a lógica do modo de produção
capitalista. Naqueles sectores do “sistema industrial” onde a tecnologia avançada,
com uma investigação e exploração demoradas, acarreta para as empresas a neces
sidade de suportar um período de produção muito longo e um vultuoso investi
mento de capitais, é necessária a intervenção do estado em larga escala para
estabelecer os preços e garantir a procura, ‘suspendendo’ assim o funcionamento
do mercado e eliminando a sua incerteza: “o estado - escreve Galbraith 293 -
garante um preço mínimo com uma margem conveniente para cobrir os custos. E
292 Acerca da importância económica da informação no mundo actual, ver F. PERROUX, "Le Q u a triè m e .c it.,
4* parte. L'information économique, 347ss.
293 Cfr. |. K. GAI BRAITH, The N ew Industrial. .., cit., 31.
A v e ià s N u n e s - 2 6 7
294 "Quando Sehvyn lloyd (ministro das Finanças conservador) entrou no Governo, já defendia que uma planifi
cação das despesas a longo prazo era, como outras coisas em que ele acreditava, algo que relevava do senso
comum". Assim se exprime Samuel Briitan (apue/ E. MANDEL, Lc TroisiémeÂge..., cit., 3,207/208), que explica
ter sido na Conferência organizada em Brighton pela Federaçáo das Indústrias Britânicas (Novembro/l 960)
que se traçaram os planos para relançar a indústria britânica nos cinco anos seguintes. D aí saiu a ideia de que
"valia a pena reunir as previsões e os planos com base nos quais as empresas vinham já trabalhando, cada uma
por si, para ver se todos eram compatíveis".
295 Cfr. J.-P. CO U RTHÉO UX, "Problèmes..., cit., 795.
2% Cfr. FO URASTIÉ/CO URTH ÉO UX, ia phnification .. . , cit., 40.
2 6 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
Tem razão, a nosso ver, todos os que entendem que é esta a verdadeira natureza
da ‘planificação’ levada a cabo pelos estados capitalistas: em relação às grandes
empresas, funciona como uma garantia de segurança, serve-lhes como um largo
estudo do mercado, esforçando-se por evitar ‘engarrafamentos’da produção e duplos
empregos e procurando conciliar os antagonismos porventura existentes entre grupos
capitalistas rivais, ao mesmo tempo que salvaguarda a liberdade das empresas em
matéria de investimentos e de orientação da produção.
O poder dessas grandes empresas sobre os órgãos de planificação é de tal
ordem, que François Perroux pôde escrever que “nas estruturas actuais, a moeda e
o Plano são a favor das unidades de produção e dos grupos económicos e financei
ros mais poderosos”.300 E Shonfield afirma sem rodeios que “o Plano (francês)
reflecte, em grande parte, as suas ideias [as ideias das grandes sociedades anóni
mas] ou, pelo menos, um compromisso entre os seus desejos e os dos funcionários
responsáveis pela política económica do Governo”, acrescentando que os funcio
nários “provenientes do ministério de tutela de um determinado ramo de comércio
ou indústria actuam, com bastante frequência, como se fossem, em certo sentido,
os representantes desses interesses sectoriais, em vez de funcionários nomeados
para exercer vigilância sobre os mesmos, em nome do interesse público.” E con
clui: “não há dúvida de que a actividade da planificação, tal como se pratica na
297 Ugo Papi, citado por E. M A N D EI, Trailé. .., cit., III, 206.
298 Cfr. A. SHON FIELD, ob. cit., 139.
299 Cfr. M. JACINTO NUNES, "A lógica.. c i l, 26.
300 Cfr. F. PERROUX, "tequatrième P la n ...,c it., 8.
A v elã s N un es - 2 6 9
De planificação indicativa falam os autores, para significar que ela não pode aspi
rar a ser um instrumento imperativo de direcção do processo económico. Em siste
ma capitalista, o estado não pode impor os seus planos, não pode pôr em causa os
direitos que derivam da propriedade privada, nomeadamente a liberdade de empresa.
Mas o estado dispõe de meios indirectos que lhe permitem influenciar (condicio
nar) o comportamento das (grandes) empresas privadas de modo a conseguir al
cançar os objectivos planificados. Não dispõe do chicote, mas dispõe da cenoura:
através da disciplina jurídica da economia o estado consegue que o sector privado
actue em conformidade com o previsto no plano (as empresas que o fizerem bene
ficiarão de isenções fiscais, de crédito bonificado, de seguro de crédito à exporta
ção, de subsídios a fundo perdido, de programas de construção de infra-estruturas
ou de formação de mão-de-obra, etc.).
Por outro lado, nos países de economia capitalista a planificação pública tem de
operar dentro dos limites e da lógica do próprio sistema, o que significa que ela só
terá viabilidade de execução se for ‘realista’e só será ‘realista’ se respeitar e favorecer
os interesses dos grandes grupos monopolistas304, se, de uma forma ou de outra, criar
condições mais favoráveis de lucro e de segurança naqueles sectores ou naquelas
regiões onde pretende incrementar os investimentos.
Mas a planificação, a existência de um plano imperativo é, por sua vez, conside
rada pela generalidade dos autores como um elemento essencial do socialismo.305
Nesta qualidade, a planificação “expressa o facto de que a economia socialista não
se desenvolve de um modo elementar, antes é dirigida e orientada conscientemente
pela sociedade. A planificação - escreve Oskar Lange306 - é um meio para subme
ter a actuação das leis económicas e o desenvolvimento económico da sociedade à
vontade humana”.
304 Alguns autores sustentam que, para o planeamento ser eficaz, a distribuição da produção na i ndústria deve ser de
tal ordem que cerca de 80% da produção provenham de 20% das empresas, considerando impossível a direcção
da economia quando 60% da produção couber a 40% das empresas (cfr. A. SHON FIELD, «í/t ob. c/f., 138). A
planificação (pública ou privada) não teria sido possível em economias capitalistas cuja estrutura econômica
assentasse em uma multidão de pequenas e médias empresas. A planificação nos países de economia capita
lista não foi uma opção livre de polfticos ou de economistas, foi uma 'exigência' da concentração monopolista.
305 Marx, fiel à sua ideia de não fazer a cozinha do futuro, não aborda sistematicamente a problemática do plano,
embora surja na sua obra um ou outro afloramento. Em dado passo, caracteriza a sociedade socialista como
"uma reunião de homens livres, que trabalham com meios de produção comuns e despendem, segundo um
plano concertado, as suas numerosas forças individuais como uma única e a mesma força de trabalho social"
(cfr. Livro 1,1'Secção, Capítulo I de Le Capital, Ed. M. Rubel, cit., 1,613). Engels, talvez de forma mais explícita,
se refere que, na sociedade socialista, "a anarquia no interior da produção social é substituída pela organização
consciente e planificada", tornando-se possível "uma produção social de acordo com um plano pré-estabele-
cido". Cfr. “ Do socialismo utópico..., cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. c it , III, 165 e 167.
306 Cfr. O . LANCE, A economia. . ., c it , 37.
A v elã s N u n e s - 2 7 1
307 Para maiores desenvolvimentos sobre a discussão deste ponto, cfr. A. J. AVELÃS NUNES, "Alguns aspectos...,
cit., 36ss.
2 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o iít ic a
308 "O uso do lucro - escreve M. KAYSER, em PRO BLEM I.. cit., 95 - é dirigido a melhorar a conformidade com
as determinações centrais essenciais, nâo a desviar-se delas, embora se possa observar uma certa flexibilidade
na escolha da direcção."
309 Cír. A. C. P IC O U , ob. cit., 8.
A v elã s N u n e s - 2 7 3
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2 8 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
H is t ó r ia
da C iê n c ia E c o n ó m ic a .
O P en sa m en to
E c o n ó m ic o
2 8 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l Itic a
N o ta P r é v ia
Breves considerações para apontar o sentido com que é aqui encarada esta
história sumária da ciência económica e do pensamento económico.
As ideias e as teorias têm uma história. Surgem em determinada época, reflec
tindo, em certa medida, as históricas condições materiais da vida das comunidades
humanas e sofrendo a influência da Weltanschauung dos autores que lhes dão cor
po. As ideias e as teorias económicas não fogem a este princípio. E parece-nos
importante mostrar isto mesmo aos alunos de uma disciplina com as característi
cas desta nossa.
Sem dúvida que algumas das questões que se levantaram nos primeiros tempos
da ciência económica continuam actuais nos nossos dias: v.g. o aparecimento, a
natureza e a importância do excedente social; a origem da riqueza individual -
nomeadamente a origem, significado e justificação do lucro - e as causas da rique
za das nações, i.é, os mecanismos do desenvolvimento económico; o problema das
crises; o problema dos preços das mercadorias; o problema da moeda; a questão
da justiça social e tantas outras. Cremos que é particularmente enriquecedora a
tentativa de explicar por que variam, de época para época, as respostas a estas (e a
outras) questões.
M as também é verdade que, ao longo dos dois séculos da ciência económica,
novos problemas foram surgindo, variando de geração para geração, ao mesmo
tempo que variam os temas nucleares dos grandes debates políticos e doutrinais
nos quais se insere a evolução da ciência económica e do pensamento económico.
“A economia de épocas diferentes - salienta Schumpeter - trata cm grande medida
conjuntos diferentes de factos e problemas”. Talvez porque, como M arx observou,
os homens só colocam, em cada período histórico, os problemas que estão em
condições de resolver. N o presente capítulo procuraremos igualmente deixar claro
este ponto de vista.
Considerando que o objecto de estudo da economia política é “um processo
histórico continuado” (Schumpeter), compreende-se que se atribua ao estudo da
sua própria história uma importância relevante, o que aproxima muito mais a
nossa disciplina da arte ou da filosofia do que das ciências da natureza. “A teoria
económica contemporânea - escreve M ark Blaug - (...) só pode ser compreendida
como uma herança do passado”. O progresso científico não significa, no que se
refere à economia política, que as ideias e as teorias do passado se convertam,
necessariamente, em meras peças ‘arqueológicas.
A v elã s N u n es - 2 8 3
O P e n s a m e n t o E c o n ó m ic o n a
A n t ig u id a d e e n a
I d a d e M é d ia
2 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
1. O P e n s a m e n t o E c o n ó m ic o na A n t ig u id a d e
2. O P e n s a m e n to E c o n ó m ic o n a Id a d e M é d ia
Durante a Idade Média, os problemas económicos foram abordados numa pers
pectiva ético-normativa, do mesmo modo que a vida económica, sobretudo a par
tir de Carlos M agno, se apresenta fortemente subordinada a valores e normas de
natureza religiosa e moral. A discussão da problemática económica decorria nos
quadros da doutrina teológica, sobressaindo, entre as questões abordadas, o pro
blema do justo preço {justampretium) e os problemas da legitimidade do comércio
A v e ià s N u n e s - 2 8 7
O M e r c a n t il is m o
2 9 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o lít ic a
1. O "S is t e m a M e r c a n t il " : o M e r c a n t il is m o
310 Em 1629, um edito de Luís XIII permite aos nobres de França o exercício do comércio marftimo e da armação,
sem risco de perda de tAulos.
311 Sobre o papel e as características do estado neste período da transição do feudalismo para o capitalismo, cfr. |.
SC H U M PETER, Historia..., d t , 184-190 e também J. ALM EIDA GARRETT, o b . d l , 26 ss.
A v elã s N u n e s - 2 9 1
Pois bem. Foi neste tempo de profundas transformações, no quadro desta “re
volução do séc. XVI” (Jean Marchai), que, entre finais do séc. XVI e meados do
séc. XVIII, se desenvolveu na Europa (especialmente na Espanha e em Portugal,
na França e na Inglaterra) uma corrente de ideias que ficou conhecida por mercan
tilismo, na sequência da utilização deste termo por autores da Escola Histórica
Alemã (2a metade do séc. XIX). Num período em que o comércio esteve na base
do enriquecimento dos estados mais poderosos, não admira que os autores cen
trassem as suas preocupações c a sua análise na actividade comercial. D e “sistema
do comércio” ou “sistema mercantil” falou Adam Smith, na esteira dos fisiocratas.
Entre os mais destacados representantes do pensamento e da política mercan-
tilistas, referiremos: na Espanha, Damian de Olivarez, Santis O rtiz e o jesuíta
Mariana; em Portugal, Luís Mendes de Vasconcelos, Duarte Gomes Solis, M anu
el Severim de Faria, Alexandre de Gusmão, Duarte Ribeiro de M acedo, D. Luís
da Cunha, António Ribeiro Sanches, avultando o M arquês de Pombal como o
nosso grande político mercantilista; na Itália, Giovanni Botero e A ntonio Serra;
na França, Jean Bodin, Antoine de Montchrestien, Sully, Barthélémy de Laffemas,
salientando-se Colbert como o político mais representativo; na Inglaterra, John
Hales,Thomas M un, Josiah Child, destacando-se Olivier Cromwell como o grande
político do mercantilismo britânico.
Quando se fala de mercantilismo parece que se está a admitir a existência de um
‘sistema de ideias’, um corpo coerente dotado de certo grau de abstracção. A verdade,
porém, é que nenhum autor, do séc. XVI ao séc. XVIII, se designou a si mesmo
como mercantilista. Os especialistas nesta matéria destacam a grande dificuldade na
interpretação dos textos da época, dada a ausência de uma terminologia comum e de
um vocabulário técnico minimamente rigoroso e dado o carácter pré-analítico dessa
literatura. Por outro lado, não é observável, nos vários autores que costumam ser
apontados como mercantilistas, qualquer preocupação de dar o seu contributo (ou a
consciência de estar a contribuir) para uma determinada corrente do pensamento
económico. Antes pelo contrário: é difícil encontrar concordância entre eles, quer
quanto aos princípios quer quanto aos instrumentos analíticos utilizados, e é fre
quente detectarem-se contradições entre os escritos dos ‘mercantilistas’.
E difícil, por isso mesmo, falar de ‘escola’ a respeito dos mercantilistas. E
Schumpeter entende que o “sistema mercantilista” de que por vezes se fala não
passa de uma “entidade imaginária”.
Alguns autores defendem mesmo que o mercantilismo não constitui uma teo
ria social minimamente estruturada, não tendo existido nunca nem uma escola
nem uma doutrina mercantilista (P. Deyon: “Nunca existiu um a‘escola mercanti
lista’ esclarecida e consciente de si mesma”). O utros, como Heckscher, negam
2 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a
312 De acordo com a análise de Heckscher, as medidas preconizadas pelos autores que se preocuparam com os
negócios do estado entre o séc. XVI e meados do séc. XVIII têm de entender-se todas como instrumentos de uma
polftica de unificaçáo e de poder relativamente à qual o estado surge ao mesmo tempo como sujeito e como
objecto. Neste quadro de preocupações políticas devem considerar-se as medidas populacionistas; a orienta
ção no sentido da constituição de um tesouro nacional e da auto-suficiência de cada nação no plano da
economia; a luta contra os particularismos e a pulverização no âmbito das alfândegas, do sistema de pesos e
medidas, da cunhagem e da circulação da moeda.
313 Émile James admite que se use o eprteto de mercantilistas - "altamente discutível", segundo ele - relativamente
"àqueles autores que, nos sécs. XVII c XVIII, procuraram saber como enriquecer a nação" (oò. dl, 62). Dadas
as condições da época, tudo conduzia à exigência de governos fortes. "E os governos fortes - observa
SCHUM PETER, ob. d t , 187/188 - , que sofrem cronicamente de ambições polfticas situadas fora do alcance
dos seus meios económicos, viram-se movidos (...) a conseguir cada vez mais força, mediante o desenvolvi
mento dos recursos dos seus territórios e a submissão dos referidos recursos ao seu serviço. Isto explica, por sua
vez, entre outras coisas, que os impostos tenham tomado não apenas uma importância muito maior mas um
significado verdadeiramente novo".
A v elã s N u n es - 2 9 3
2 .1 . O B u l io n is m o E s p a n h o l
Em 1480, os Reis Católicos promulgaram uma pragmática que castigava, com penas que iam até à pena de
morte, os que fizessem sair o ouro e a prata do reino. Daqui resultou o aumento considerável do 'prémio'
cobrado pelos contrabandistas, e a saída do ouro e da prata aumentou a um ritmo de tal modo acelerado que
aquele regime acabou por ser abandonado em 1515. Cfr. J. VICENS V IVES, ob. cit., 283.
2 9 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
O que é certo é que, por razões de vária ordem, o estado espanhol não conse
guiu evitar que o comércio externo viesse a ser dominado pelos estrangeiros, ao
mesmo tempo que o comércio interno continuava asfixiado (más estradas, porta
gens e alfândegas internas, impostos indirectos gravosos).
2 .2 . O M e r c a n t il is m o I n d u s t r ia l ( F r a n ç a )
2 .3 . O M e r c a n t il is m o C o m e r c ia l ( I n g l a t e r r a )
À semelhança da Holanda - que enriquecera graças ao comércio, sem dispor
de uma indústria forte - também a expansão económica da Inglaterra, no séc.
XVII , se operou basicamente a partir do comércio externo.
Daí que os mercantilistas ingleses do séc. XVII, embora considerassem que a
indústria podia contribuir para alimentar as exportações, entendiam que ela era
apenas um meio, entre outros, de os países enriquecerem. Ao contrário do que
vimos acontecer com os autores franceses, os mercantilistas ingleses atribuíam
pouca importância à regulamentação da actividade industrial. A sua preocupação
2 9 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a
315 Em termos gerais, o regime do pacto colonial visava estabelecer circuitos comerciais fechados, transformando
os territórios coloniais em 'reserva' da metrópole. Para tanto: a) proibiam-se as colónias de produzir os bens que
a metrópole podia fornecer; b ) obrigavam-se as colónias a vender os seus produtos exclusivamente à metró
pole e a comprar só à metrópole os produtos de que careciam, os quais seriam transportados apenas em navio«
sob pavilhão da metrópole; c ) obrigava-se o comércio das colónias com o estrangeiro, quando existisse, a
passar por um porto metropolitano, tanto para as exportações como para as importações (era o que se passava,
v.g., com o comércio entre o Brasil e a Inglaterra antes do Tratado de Methwen, o que permitia à metrópole
portuguesa arrecadar uma certa percentagem por esta intermediação forçada); d ) reservava-se à metrópole
o poder de determinar os preços, a política monetária e os direitos alfandegários.
A v elã s N u n es - 2 9 7
Alguns dos mais tardios mercantilistas ingleses aproximavam-se deste modo da noçâo de liberdade comercial,
antecipando as críticas de Oavid Hume à "inveja comercial". É o caso, v.g., de Dudley North e de Charles
Davenant, aos quais nos referiremos à frente (cfr. P. D EYO N , 06. cit., 79-81 ).
2 9 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a
3 .1 . U m a p o l ít ic a n a c io n a l is t a
Enquanto que Maquiavel defendera que “num governo bem organizado o esta
do deve ser rico e os cidadãos pobres”, poderá dizer-se que os mercantilistas com
preenderam que a melhor maneira de aumentar a riqueza e o poderio do estado
consiste em favorecer o enriquecimento dos cidadãos.
Num período em que na Europa se desenvolvia o chamado ‘capitalismo co
mercial’, não admira que fosse comum entre os mercantilistas a ideia da suprema
cia do comércio como meio de obter riqueza. “O comércio - escreveu o francês
M ontchrestien - é de certo modo o fim principal das diversas artes, das quais a
maior parte só através do comércio trabalham para outrem”. Daí a sua conclusão
de que “os comerciantes são mais que úteis no estado e que a sua busca do lucro faz
e causa uma boa parte do bem público”.
Por outro lado, os mercantilistas compreenderam que a prosperidade do co
mércio de uma nação depende muito estreitamente da afirmação do poderio polí
tico do soberano e do êxito das suas campanhas militares de expansão, em terra c
no mar, uma vez que destas depende a possibilidade de ampliar a dimensão dos
territórios coloniais (i.é, de aumentar a zona de comércio reservado e protegido,
em benefício da economia nacional).
Homens do seu tempo, os mercantilistas aceitaram a busca da riqueza indivi
dual como fim da actividade humana, pondo em relevo que este fim individual não
colide com a ideia de que o alargamento do poderio do estado é o fim supremo das
sociedades humanas.
Assim, defendem que a riqueza consiste fundamentalmente nos lucros do comér
cio e das manufacturas. Mas esses lucros dependem sobretudo das exportações e da
actividade das indústrias exportadoras. O desenvolvimento destas, porém, está alta
mente condicionado, por um lado, pela abundância de homens no mercado do trabalho
e, por outro lado, pela abundância de dinheiro que permita crédito fácil e juro baixo.
Convém, por isso, aos particulares, para que possam obter lucros (e, portanto, rique
za), que exista uma população abundante e que seja abundante a moeda em circulação.
Ora esses são precisamente os fins que o estado prossegue, pois que o seu
poderio depende da possibilidade de constituição de um exército (população abundan
te) e da possibilidade de constituição de um tesouro de guerra (abundância de moeda).
Sendo assim, os fins prosseguidos pelo estado e pelos particulares (comerciantes)
ligam-se no interior do processo social. A sociedade orientada para a busca do
lucro não contém contradições fundamentais. Haveria antes uma harmonia econó
mica, na medida cm que o desenvolvimento da indústria e das exportações em vista
A v e ià s N u n e s - 2 9 9
do lucro (que é para os comerciantes o fim a atingir), é o meio para o estado atingir
o seu próprio fim (abundância de homens e de dinheiro); reciprocamente, estefim
do estado é um meio que permite desenvolver a indústria e o comércio com vista à
obtenção de lucros (fim dos comerciantes).
Desfeito o sonho medieval de fazer da Cristandade um potência política, qual
novo Sacro-Império Romano-Gcrmânico, a política passou a ter como objectivo
assegurar a sobrevivência, a expansão, a riqueza e o poderio de cada um dos novos
estados. E era corrente a ideia de que este objectivo se poderia conseguir não só
pelo reforço do poderio económico de cada país mas também (e porventura mais
facilmente) pela via do enfraquecimento económico e político dos países vizi
nhos.317 Considerando-se fixada a quantidade de recursos disponíveis à escala
mundial, concluía-se que um país só poderia enriquecer à custa de outro e admi-
tia-se que a própria sobrevivência de um estado dependia de este ser capaz de
assegurar o seu desenvolvimento económico e a sua riqueza mais rapidamente que
o seu vizinho (e rival). Daí a importância do poderio militar, eventualmente ne
cessário para subjugar outros povos pela via da guerra. Daí a rapacidade com que
os próprios estados se comprometeram na conquista e na pilhagem dos territórios
coloniais e na prática da mais violenta pirataria nos mares.
No contexto desta aceitação do antagonismo entre os interesses económicos
das nações se insere também a guerra do dinheiro cm que os novos estados se
empenharam, com o objectivo de obterem mais ouro c prata que os outros países.
Se “apenas uma determinada quantidade de dinheiro circula em toda a Europa -
escreveu Colbert - , (...) não é possível aumentar o dinheiro em um reino sem o
retirar simultaneamente, em quantidade idêntica, dos estados vizinhos”.
O capitalismo anunciava-se, nos sées. XVI e XVII, sob o signo do antagonismo
entre estados e os autores mercantilistas parece terem-se apercebido desta realidade: “o
que convém a uma nação - sublinha Josiah Child - não convém a todas as outras”. No
terreno económico e ao nível das relações entre os estados, os mercantilistas justifica
vam a velha máxima de Montaigne: “nul ne gagne qu’un autre ne perde”.
A nação afirmava-se, assim, como espaçodepoder (poder político e poder económico).
3 .2 . O POPULACIONISMO
317 John Locke poria em relevo que a riqueza nâo consiste apenas em mais ouro e prata, mas mais relativamente
aos outros países (apud M. BLA U G , oò. d l , 14).
3 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a
3 .4 . E c o n o m ia e p o l ít ic a s ã o in sep a r á v e is : o papel d o e s t a d o na
ECONOMIA
318 Assim se exprimia (osiah Child: "o preço do juro do dinheiro é para o comércio o que a alma é para o corpo*.
Por isso, dizia ele, "para saber se um país é rico ou pobre, náo é preciso perguntar mais do que isto: qual é o preço
do juro do dinheiro?"
319 A generalidade dos autores considera, porém, que só no séc. XVIII se teria ganho a consciência generalizada
de que a ordem social pode ser uma causa relevante da felicidade ou infelicidade dos homens. "A ideia de
felicidade é nova na Europa", escreveu Saint-Just, um dos expoentes do jacobinismo, em cujo ideário se inscre
v ia o p rin c fp io segundo o q ual a fe lic id a d e pode co n stru ir-se alte ra n d o a ordem s o c ia l.
Ficavam assim para trás as velhas concepções fatalistas e fixistas, que consideravam a ordem social, política e
económica algo que os homens nâo podiam (nem deviam) mudar. A sorte dos pobres e dos oprimidos - segundo
a ideologia que manteve durante séculos a rígida estratificação da sociedade medieval - seria o fruto de
3 0 2 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Por outro lado, os escritos dos mercantilistas sobre problemas económicos des
dobram-se em estilo de comentário e propostas de solução de problemas da actu
alidade, e não aparecem confundidos com questões de especulação filosófica e
teológica, como acontecera em períodos anteriores e mesmo ainda com o pensa
mento renascentista e a Reforma. A Economia passa a ser encarada como arte
empírica, como conjunto de preceitos para uso dos governos, como “máximas de
sabedoria prática”, na expressão de Keyncs.
Na base das concepções fundamentais dos mercantilistas está, no entanto, uma
filosofia individualista de busca do máximo lucro a partir do aumento da produção
e do comércio. A actuação dos regimes mercantilistas caracterizou-se, de resto,
pela ajuda prestada às actividades privadas, incentivando-as e protegendo-as nos
primeiros passos do seu desenvolvimento em moldes capitalistas. A política mer
cantilista esteve na origem das primeiras grandes companhias privadas e dos pri
vilégios de que beneficiaram, propiciando condições favoráveis à acumulação
de capitais que viria a tornar possível o desenvolvimento da produção capitalista
na indústria. Historicamente, o mercantilismo contribuiu, no plano doutrinal e no
plano da acção política, para a acumulação de capitais necessária à implantação do
capitalismo como modo de produção dominante.
O “sistema mercantil”, escreveu Adam Smith, é, “por natureza e essência”, “um
sistema de restrições e regulamentações”. Na verdade, é pelo menos desde o Traité
d'Économie Politi que de Montchrestien (1616) que nos escritos dos mercantilistas se
reconhece a impossibilidade de separar a economia da política. Este autor defende que
é função do estado estimular a produção e as trocas para acrescentar as riquezas e os
lucros dos mercadores, dos manufactureiros e dos financeiros. Da acumulação e do
reinvestimento desses lucros é que resultariam novas riquezas e lucros suplementares.
Os mercantilistas foram, na verdade, os primeiros a dar-se conta da importância
da intervenção do estado na vida económica e a compreender a dinâmica do cresci
mento económico. Os seus escritos reflectem em geral a preocupação de adequar a
intervenção do estado ao objectivo de alcançar o mais alto nível de riqueza para a
nação, na perspectiva de que o estado só pode ser rico se o forem os seus cidadãos.
Ao contrário do liberalismo do séc. XIX, os mercantilistas não conceberam a
ordem económica como algo separado da política; não defenderam que o estado
nada tinha a ver com a actividade económica. Antes acentuaram o papel decisivo
circunstâncias fortuitas ou inalteráveis (a má sorte, a falta de saúde, as maquinações dos inimigos, a malvadez
do senhor ou do patrão, a vontade de Deus...), que nada tinham que ver com a ordem social.
Talvez nào seja infundado pretender que com os mercantilistas esta concepção do mundo e da vida começou
a ser posta em causa.
AvoA5N^fS> 303
Vv ^ <
320 Cfr. SCHUMPETER, oò. o f., 188. Efectivamente, como muito bem salienta P. LÉON, "a seriedade das propos
tas mercantilistas é função do grau de desenvolvimento do aparelho de estado e da sua autoridade. Náo há
política mercantilista eficaz a náo ser quando existe um poder forte capaz de impor aos particularismos locais
ou corporativos o respeito pelas suas decisões” (o b.cit ,193).
321 Cfr. |. SCHUMPETER, passim. René GO NN ARD {ob.cit., 49) considera que o mercantilismo é "estatista* e fala,
a respeito das economias mercantilistas (em especial a francesa), de "socialisme monarchique*.
3 0 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
322 Esta acção dos mercantilistas no sentido da unificação económica dos espaços nacionais foi particularmente
importante na Inglaterra e na França. Neste último país, foi um édito de Colbert que em 1664 criou uma uniâo
aduaneira constituída por um grupo de províncias do norte de França (as "cinq grosses fermes"). no seio da qual
o comércio passou a ser inteiramente livre e a agricultura se começou a desenvolver em moldes capitalistas.
323 Nas novas condições da actividade económica, “produção e venda autonomizam-se como poios de toda a
política: e daí que -escreve J. ALM EIDA GARRETT, oò. d t , 60 - à situação psicológica medieval, à fome de
bens, se suceda um pavor de bens, dos estoques excessivos de produtos, sentimento cuja compreensão não
pode desprender-se das condições sócio-cconómicas criadas pela revolução capitalista*.
A v elà s N u n es - 3 0 5
XIX e a sociedade comunista para que este aponta. Daí a oposição entre estes
autores e os mercantilistas, defensores dos valores próprios do ‘capitalismo comer
cial’ de então.
Pensamos, porém, que não é por este caminho que deve tentar-se a leitura
crítica dos mercantilistas, à luz da realidade do seu tempo. C om o salienta Jean
Marchai, a condenação do capitalismo que resulta das obras referidas é muito
mais uma reminiscência do espírito medieval, uma espécie de “nostalgia do claus
tro” do que a antecipação do ideário socialista do séc. XIX.
XVIII e XIX), pela simples ausência de intervenção do estado. Para eles, nas
palavras de Gonnard, a liberdade é antes “um poder de acção que se desenvolve
com e pelo concurso do estado”.
Encarada nesta perspectiva e à luz do seu tempo, a política mercantilista foi,
sem dúvida, um factor de progresso: a acção do estado contribuiu para a generali
zação de técnicas industriais mais aperfeiçoadas e eficientes e foi a base da criação
de verdadeiras economias nacionais. O que não significa que a manutenção roti
neira dos regulamentos e até o excesso de intervencionismo não se tenham cons
tituído, com o decurso do tempo, em obstáculos ao desenvolvimento económico.
Mas a defesa da liberdade de comércio só mais tarde se radicaria nos autores,
ganhando progressivamente a indispensável cobertura teórica.
No final do reinado de Luís XIV, os mais lúcidos de entre os comerciantes
franceses protestavam contra os monopólios concedidos a determinadas Com pa
nhias e proclamavam que “a liberdade é a alma do comércio, excita o génio e a
aplicação dos mercadores e permite a abundância”.
Mas foi Pierre Boisguillebert (1646-1714) o autor que marcou a transição - neste
como em outros aspectos - entre os pontos de vista dos mercantilistas e o pensamento
liberal que começou a ser veiculado, no domínio da Economia, pelos fisiocratas.
Ao contrário dos mercantilistas, Boisguillebert considera o mercado interno mais
importante que os mercados externos como fonte do desenvolvimento das rique
zas. E sustenta que a má situação económica da França se deve, precisamente, à
quebra do consumo. Considerando, por outro lado, que a produção agrícola é mais
importante que a produção industrial, defende que devem libertar-se os mercados
dos cereais (permitindo mesmo a sua exportação) para que aumente o consumo e
a produção agrícola e a prosperidade da agricultura se estenda, naturalmente, a
toda a nação. Na mesma linha, Boisguillebert defende a supressão dos impostos
indirectos, que se traduzem em aumento dos preços e provocam, por isso, redução
da procura por parte da maioria dos consumidores.
Dos escritos deste autor ressalta a ideia de que a criação da riqueza pressupõe
o (e baseia-se no) mecanismo da livre formação dos preços. Das relações de troca
aproveitariam as duas partes, harmonizando-se os objectivos egoístas de cada in
divíduo para a melhor prossecução do interesse geral. Esta seria uma lei natural
aplicável a toda a actividade económica de produção e de troca. Bastaria, pois,
“laisser agir la nature”. “Não se trata de agir - escreve Boisguillebert; é necessário
deixar de agir com a violência que usamos para com a natureza. (...) Assim que for
posta em liberdade, a mesma natureza (...) restabelecerá o comércio e a proporção
de preços entre todas as mercadorias”. Por antecipação, eis o anúncio da tese da
mão invisível\ de Adam Smith.
3 0 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
324 Cfr. Adam SMITH, Rique/a das Nações, ed. cit., II, 719 ss.
A v e ià s N u n e s - 3 0 9
O próprio Marx acolhe uma interpretação idêntica acerca deste ponto do ‘pen
samento mercantilista’. E parece mesmo justificá-la, embora classifique de “realis
mo grosseiro” algumas teses daqueles autores, as quais exprimiriam, porém, na
leitura de Marx, os interesses dos comerciantes e dos fabricantes de então, em
correspondência com o nível de desenvolvimento do capitalismo na época: “o que
importa - diz Marx —, no âmbito da transformação das sociedades rurais da feuda-
lidade cm sociedades industriais, e no quadro dos conflitos entre as nações no
mercado mundial, é um crescimento acelerado do capital, que não poderia obter-
se pela via da actividade produtiva, mas apenas pelo emprego da força”.325
Os primeiros mercantilistas, na interpretação de Marx, consideravam o comér
cio mundial e os ramos particulares do trabalho nacional que nele desembocavam
directamente como “as únicas fontes autênticas da riqueza ou do dinheiro”. Mas
importa considerar - diz Marx - que nessa época a maior parte da produção
nacional evoluía ainda segundo formas feudais, nas quais os produtores encontra
vam as fontes da sua própria subsistência imediata. “Os produtos não se transfor
mavam em mercadorias, nem, por isso mesmo, em moeda; não entravam no
metabolismo geral da sociedade; não apareciam, portanto, como a materialização
do trabalho geral abstracto; e, de facto - alega Marx - , não constituíam riqueza no
sentido burguês da palavra”.
No limiar da produção burguesa, quando “a esfera económica propriamente
burguesa era a da circulação das mercadorias”, todo o complexo sistema da produ
ção em moldes capitalistas era apreciado na óptica da circulação, o que pode
explicar que os autores da época confundissem o dinheiro com o capital326 e con
siderassem o ouro e a prata (i.é, a moeda) como a única riqueza, riqueza gerada na
esfera da circulação.
Enquanto fim da circulação, o dinheiro é o fim determinante, o princípio e o
móbil da produção. Nestas condições, Marx considera “perfeitamente natural” que
os autores “se agarrassem à forma tangível e brilhante do valor de troca, à sua
forma de mercadoria geral, por oposição a todas as mercadorias particulares”.
E ainda M arx quem escreve: “As primeiras análises teóricas do modo de pro
dução moderno - devidas à escola mercantilista - partiram forçosamente dos fe
nómenos superficiais do processo de circulação tal como eles se apresentam no
movimento do capital mercantil, primeira manifestação autónoma do capital, cuja
325 Cfr. Karl M ARX, “Critique de 1'économie politique", cm Oeuvres (ed. Maximilien Rubel), 1,419/420 e Le Capital,
em Oeuvres, cit., caps. XIII e XIV, II. 1104/1105 e 1393/1394.
326 Pierre DE YON (ob.cit., 99) parece ir no mesmo sentido quando faz a seguinte pergunta: “Numa economia em
que a maior parte das unidades de produção utilizavam muito capital circulante e muito pouco capital fixo,
seria assim tão pouco razoável considerar o dinheiro simultaneamente como capital e como moeda?'.
3 1 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
327 Cfr. J. SCHUM PETER, ob. d t., 413-415. Nem sequer os bulionistas espanhóis, como Ortiz e Olivarez, podem
ser acusados de confundir riqueza e moeda (cfr. É. JAMES, ob. d t., 64).
A v elã s N u n es - 311
realidade: pode-se dizer que um homem possui dez mil libras quando acaso não
tenha em dinheiro de verdade nem sequer cem libras; mas as suas posses, se for
um agricultor, consistem em terras, cereais, gado ou alfaias agrícolas”.
Idêntica clareza de ideias pode ver-se em Dudley N orth (1691): “Nenhum
homem é mais rico por ter a sua riqueza toda em dinheiro, prata guardada a seu
lado, mas, pelo contrário, é mais pobre por essa razão. O homem mais rico é
aquele cuja riqueza cresce em terra lavrada, em dinheiro a juros ou em bens em
tráfego”. Poderemos dizer que desponta aqui a distinção entre capitalista passivo e
capitalista activo.
A separação nítida da noção de riqueza relativamente ao ouro e à prata (à
moeda) surge nos escritores de transição, como Boisguillebert ou W illiam Petty.
O primeiro admitia mesmo que a sociedade poderia até, “se os homens se enten
dessem, dispensar o ouro” e utilizar apenas o papel-moeda.
O que vimos afirmando encontra confirmação ainda no empenho que os
mercantilistas puseram no fomento da produção nacional.328 Salientámos atrás como
os mercantilistas ingleses prosseguiram uma política agrícola que deu resultados
positivos. No que se refere à França, Colbert foi acusado pela oposição aristocrá
tica do seu tempo de sacrificar os interesses da agricultura aos da “vil burguesia”.
Boisguillebert e os fisiocratas criticaram duramente Colbert por ter sacrificado os
interesses da agricultura aos das manufacturas. Ao serviço da exportação de pro
dutos manufacturados, Colbert terá prosseguido uma política de salários baixos, o
que exigia preços baixos para os produtos agrícolas. Daí certas medidas que os
fisiocratas consideraram nocivas para a agricultura (a proibição de exportar, a
regulamentação do mercado interno, a proibição de estocar os cereais, etc.).
A generalidade dos autores reconhece que os mercantilistas franceses, com
excepção de Sully, foram abertamente ‘industrialistas’. M as alguns historiadores
negam que tenha havido uma política deliberada desfavorável à agricultura. A
parte algumas medidas de circunstância, reconhecem estes autores que o colber-
tismo não teve uma política agrícola (Colbert acreditava que o desenvolvimento
das manufacturas rurais resolveria o problema da pobreza nos campos). M as ne
gam que a baixa acentuada dos preços agrícolas na França (designadamente entre
328 “Se os mercantilistas sublinham o carácter nacional do seu sistema - escreve M ARX, ú/f. ob. c / t, ed. cit., II,
1394 - , tal não é, na sua boca, uma simples frase. Sob o pretexto de terem em conta apenas a riqueza da nação
e os recursos do estado, eles defendem de facto os interesses da classe capitalista e o enriquecimento em geral
como o fim supremo do estado, e proclamam a sociedade burguesa relativamente ao velho estado do direito
divino. Mas, ao mesmo tempo - sublinha Marx - eles têm consciência de que, na sociedade moderna, o
desenvolvimento dos interesses do capital e da classe capitalista, da produção capitalista, constitui o próprio
fundamento do poderio nacional e da supremacia nacional".
3 1 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o U t ic a
1662 e 1687) tenha sido consequência da política de Colbert, uma vez que tal
fenómeno se verificou por toda a Europa ocidental.329
E incontestável, porém, o apoio que os mercantilistas concederam às manufacturas,
tanto na Inglaterra como na França, o que ilustra bem a importância que lhes concedi
am no que toca à sua contribuição para o enriquecimento e o poderio do estado.
Na Inglaterra, promulgou-se legislação que obrigava os pobres (e não apenas
os internados nas Workhouses) a trabalhar nas manufacturas; institui-se um sistema
público de fixação dos salários e toda uma legislação variada que procurou disci
plinar a mão-de-obra recém-chegada dos campos e fornecer aos industriais mão-
de-obra abundante.
O mercantilismo francês procurou pôr a funcionar um serviço nacional e obri
gatório de emprego em benefício das manufacturas, às quais concedeu monopólios
e subsídios vários. Para estimular os empresários modernos, que pretendiam fugir
à rotina e à estagnação das corporações de artes e ofícios, Colbert dá edifícios e
instalações às manufacturas privadas; concede-lhes crédito a juro baixo, isenções e
reduções de impostos; garante o aprovisionamento de matérias-primas a bom pre
ço, através da isenção de direitos de importação e da autorização para a utilização
gratuita das matas reais, quando necessário; assegura, por vários modos, o escoa
mento dos produtos manufacturados; desenvolve uma política populacionista, para
que não falte a mão-de-obra (isenção temporária de impostos para os que se ca
sem com menos de 20 anos; isenção de impostos para as famílias numerosas;
proibição da emigração dos operários e apoio à imigração de operários estrangei
ros qualificados; obrigação de as raparigas solteiras, os padres e as religiosas tra
balharem na indústria, etc.).
poderem contar com as antigas ajudas feudais. Para tanto, era necessário ouro,
sobretudo em períodos de guerra, tão frequentes naquela época.330
Compreende-se, por isso, que os políticos mercantilistas atribuissem especial
importância à detenção de grandes quantidades de ouro e de prata, tanto mais que
não existiam então instituições capazes de permitir a obtenção de recursos finan
ceiros através do crédito.
Por outro lado, apesar de já se verificar a circulação de letras de câmbio como
meio de pagamentos nas relações internacionais, a verdade é que não existia, ao
menos até finais do séc. XVII, um sistema internacional de crédito que facilitasse
os pagamentos internacionais. As condições da época dificilmente dispensavam,
por isso mesmo, a existência de consideráveis estoques de metais preciosos, que
constituíam os meios de pagamento indispensáveis para satisfazer as exigências de
um comércio em desenvolvimento crescente.331
Dificuldades semelhantes sentiam-se igualmente no plano interno. Na generali
dade dos países europeus, a inexistência de um sistema bancário minimamente es
truturado e o desenvolvimento deficiente dos mecanismos do crédito obrigavam à
utilização das moedas para regular as relações comerciais. Só nos finais do séc. XVII
começou a ser frequente, mesmo na França, a circulação de letras de câmbio, mas
continuava a ser inviável a utilização das transferências de conta a conta como meio
de pagamentos. As trocas directas e as compensações por encontro dos livros comer
ciais não permitiam dispensar o ouro e a prata para a regularização periódica dos
saldos. O s próprios impostos tinham de pagar-se em “boas espécies”, recusando em
regra os cobradores quaisquer moedas que não fossem de ouro ou de prata.
No período a que nos reportamos, as crises resultantes de más colheitas provo
cavam frequentemente não só a penúria de alimentos, o seu encarecimento e a
fome, mas também a crise nas manufacturas (por falta de matérias-primas e/ou
por falta de mercados) e ainda dificuldades enormes na obtenção de crédito. Com
efeito, o dinheiro necessário para a importação de cereais e matérias-primas fazia
falta aos negócios e as taxas de juro subiam em plena crise. Perante a inexistência
O estado de guerra era uma situação normal nas relações entre estados, quase sempre tendo como causa
conflitos comerciais (ataque à posição monopolista de um país, disputa sobre a posse de territórios coloniais, etc.).
Basta dizer que de 1494 a 1559 houve guerras na Europa quase todos os anos; ao longo do séc. XVIII, houve
apenas sete anos de paz completa; de 1656 a 1815, a Inglaterra esteve em guerra 84 anos (cír. H . DENIS, ob.
c/t., 93). Compreende-se, deste modo, a conclusão de Schumpeter: 'Naquele mundo cm fermentação (...), a
paz não passava de um armistício, a guerra era o remédio normal para o desequilíbrio político, o estrangeiro
transformava-se ipso facto em inimigo, como nos tempos primitivos' (Cfr. J. SCHUM PETER, ob. cit., 187).
Sobre o processo corrente de efectuar os pagamentos internacionais naquela época, cfr. J. ALM EIDA GARRETT,
ob. cit., 45/46.
3 1 4 - U m a I n t r o o u ç A o A E c o n o m ia P o Ut ic a
O " d il e m a m e r c a n t il is t a "
comerciais; tornar o comércio mais fácil e mais livre; praticar uma política de taxa
de juro baixa (Child propõe 4%); assegurar a supremacia militar no mar e pô-la
ao serviço da conquista do ‘respeito’pelas outras nações do domínio dos transpor
tes marítimos, dos entrepostos comerciais e da pesca do alto.
Estas preocupações e estas medidas ganham sentido, à luz do seu tempo, se se
compreender que elas pressupõem determinadas hipóteses acerca da realidade, por
ventura tão indiscutíveis para os autores dos sécs. XVI e XVII que nem sempre
consideravam necessário explicitá-las. E o caso da concepção segundo a qual, nas
relações económicas, o que um ganha o outro perde; é o caso da aceitação de que as
necessidades são limitadas, de que a procura é praticamente inelástica; de que é fraca
a acção dos estímulos pecuniários sobre a produção e a oferta, etc. Por outro lado,
numa época em que o comércio interno se desenvolvia irregularmente e se confinava
a áreas determinadas e em que o comércio internacional, graças à pirataria e a outros
factores, era uma actividade acentuadamente aleatória, era natural pensar-se que
uma balança comercial superavitária constituía um suplemento indispensável aos
ganhos de um comércio interno de reduzidas dimensões e que uma nação só pode
enriquecer através de políticas que empobreçam os outros países.335
Estas são ideias que podem compreender-se no quadro de sociedades pré-
industriais, nas quais as taxas de crescimento da produção e da população eram tão
lentas que cada geração mal se apercebia de qualquer crescimento. Daí a tese
segundo a qual, sendo limitados os recursos disponíveis, só pela violência cada
nação podia chamar a si um quinhão maior que os outros. O comércio externo,
com o seu cortejo de conquistas, de pilhagens, de pirataria, de guerras, de violên
cias de toda a espécie, desempenhou então um papel fundamental como instru
mento da acumulação capitalista e como estímulo eficaz do ‘espírito de empresa’.
Num mercado constituído por estados ecomómica e politicamente opostos uns
aos outros de forma violenta, seria deslocada a concepção liberal que desconhecia
as nações e via as relações de comércio internacional como relações entre indiví
duos pertencentes a nações diferentes, de natureza idêntica às relações de comércio
interno, entre indivíduos do mesmo país. Parece mais realista a concepção mer
cantilista, que parte da ideia de nação enquanto a entidade economicamente autó-
335 Dada a importância que então se atribuía à detenção de um estoque de metais preciosos, compreende-se a
relevância atribuída pelos mercantilistas ao comércio externo; para os países que não produziam aqueles
metais, o comércio externo aparecia como o único expediente para reunir o desejado estoque de ouro e prata.
Compreende-se, também, nesta lógica, a importância atribuída à obtenção de um saldo positivo da balança
comercial: "a posição dominante da contratação internacional - escreve J. ALM EIDA GARRfc 1 1, oò. c/f., 30
- ( ...) representa o sucedâneo, na paz, do domínio do vencedor na guerra*.
A v e i As N u n e s - 3 1 7
multilaterais foi o do comércio do Báltico. Era um comércio deficitário para os ingleses; mas era indispensável
para aprovisionar de matérias-primas os estaleiros navais britânicos, o que fazia dele uma actividade económica
essencial para a expansão do poderio britânico nos mares e para o êxito dos Actos de Navegação.
339 J. SCHUM PETER (ob.cil., 404-406) atribui esse mérito ao italiano Antonio Serra (1613), que apresentou uma
concepção clara da balança comercial e da sua utilização como instrumento analftico. Além de ter em conta
os movimentos de invisíveis, Serra explicou o comportamento da balança comercial e os movimentos do ouro
e da prata pelas condições económicas do país, considerando os fenómenos monetários como consequências
e não como causas, como meros sintomas, não importantes em si mesmos.
340 Cfr. M . B LA U G , oh. c/t., 12.
A balança com ercial ou a balança dos pagamentos correntes podem apresentar saldo positivo ou negativo.
Mas a balança dos pagamentos, no seu conjunto, tem de estar, necessariamente, equilibrada. Com efeito, um
país constrói o seu activo através da exportação de bens e serviços, da exportação de ouro e da importação de
capitais (investimentos directos estrangeiros realizados no país, entradas de lucros de investimentos do país no
estrangeiro; empréstimos obtidos no estrangeiro). No passivo inscrevem-se as importações de bens e serviços,
a importação de ouro c as exportações de capital (investimentos feitos no estrangeiro, pagamento de lucros no
estrangeiro, abertura de créditos em favor do estrangeiro). Pois bem. Os desequilíbrios porventura registados em
sede das exportações e importações de bens e serviços e de ouro são compensados contabilisticamenie através
da inscrição de movimentos de sinal contrário no âmbito dos movimentos de capital (o défice é 'coberto' com
entrada de capitais; o saldo positivo é 'coberto' com saída de capitais).
A v elã s N u n e s - 3 1 9
341 Jean Bodin considerava que a alta de preços podia resultar de cinco causas possíveis, de importância desigual:
o aumento da oferta de ouro e de prata; a existência de monopólios; a adopção de medidas ou a ocorrência
de circunstâncias susceptíveis de reduzir os fluxos comerciais das mercadorias disponíveis; as despesas exces
sivas dos monarcas; a depreciação do teor metálico das moedas. A primeira causa era, segundo Bodin, a causa
decisiva da subida dos preços e da consequente perda de poder de compra da moeda. Cfr. J. SCHUM PETER,
Historia..., cit., 360-367.
3 2 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
e prata aos países que consigam saldos positivos da balança comercial. Eis o “di
lema mercantilista”, de que fala M ark Blaug.342
A resolução deste dilema deve procurar-se, segundo Blaug, na concepção dos
escritores mercantilistas - que terá tido em John Law o seu intérprete mais acaba
do - segundo a qual a moeda estimula o comércio e a actividade económica em
geral, na medida em que a sua abundância aumenta a velocidade de circulação das
mercadorias. Na verdade, embora na versão inicial de Locke a teoria quantitativa
apontasse no sentido de que o nível geral dos preços é sempre proporcional à
quantidade de moeda (na qual se tinha em conta a velocidade de circulação da moe
da), a teoria quantitativa aparece intrinsecamente ligada, ao longo dos sécs. XVII
e XVIII, ao princípio segundo o qual “a moeda estimula a actividade económica”.
De acordo com este princípio, qualquer aumento da oferta de moeda deveria ser
sempre seguido por um aumento da procura de moeda, o que significaria que é o
volume dos negócios e não o nível dos preços que vem afectado por um afluxo de
metais preciosos e inerente aumento da quantidade de moeda em circulação.343
A partir de David Hum e (1711-1776), a chamada equação das trocas costuma
apresentar-se como uma identidade (M V = PT ), em que o produto da quantidade
de moeda (M ) pela sua velocidade de circulação ( V = número de vezes que cada
unidade monetária muda de mãos durante um período dado) é igual ao produto do
volume das trocas (T) pelo preço médio das mercadorias transaccionadas (P).
Admitindo q u e T e V são insensíveis às variações da quantidade de moeda (sendo
T determinado pelas forças ‘reais’ da economia e V pelos hábitos das pessoas e
pelo comportamento das instituições financeiras do país), a teoria quantitativa da
moeda é apresentada como uma relação causal entre M e P: P varia em função de
M (e na mesma proporção de M ).
Na interpretação dos mercantilistas, porém, a teoria quantitativa era entendida,
essencialmente, como uma relação entre M e T .
345 Repare-se neste texto, tâo elucidativo da confiança de D . Hume nos mecanismos naturais e na livre iniciativa
de cada um: "Deve concordar-se que, quando nos afastamos desta igualdade, privamos o pobre de maior
satisfação do que aquela que proporcionamos ao rico; é muitas vezes à custa de um grande número de famílias
e mesmo de províncias inteiras que um só homem satisfaz a sua vaidade frívola...
Entretanto (...) se anulais tais virtudes [as qualidades activas dos indivíduos, destruídas pela adopçáo de esquemas
de igual repartição da propriedadel nas suas operações, em breve reduzireis a sociedade à extrema indigência
e, para impedir um pequeno número de homens de cair na miséria, lançareis nela toda a sociedade".
3 2 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
Por outro lado, se um país perde ouro, daí resulta uma baixa de preços, a qual,
na linha dos raciocínios anteriores, há-de conduzir ao aumento das exportações e
à diminuição das importações, desaparecendo o défice da balança de pagamentos e
regressando o ouro ao país de onde saíra. Segundo a lógica deste mecanismo
automático, a própria saída do ouro de um país desencadearia uma série de conse
quências que conduziriam o ouro ao país de onde tinha saído.
Resumindo: os metais preciosos distribuir-se-ão automaticamente pelos vários
países que participam no comércio internacional em função do volume do comér
cio de cada um. Cada país disporá, em princípio, da quantidade de ouro e de prata
de que necessita para o seu comércio, e apenas dessa quantidade.
Aparece nesta construção, tal como se disse antes, todo o optimismo e confian
ça das teses liberais num mecanismo natural, ao mesmo tempo que se põe de parte
a filosofia mercantilista tendente a justificar a necessidade de o estado intervir a
incentivar as exportações e a assegurar um excedente da balança comercial.
As críticas dos liberais visavam negar o fundamento à política económica dos
mercantilistas. A par de alguns fracassos, permaneciam, porém, certos êxitos in
discutíveis, particularmente na França c na Inglaterra, a comprovar a “necessidade
histórica do mercantilismo” (P. Deyon) e a indicar que as pretensas obsessões dos
mercantilistas foram muitas vezes opções sensatas e racionais, adequadas às reali
dades do seu tempo. M esmo Adam Smith, tão cáustico para com os mercantilis
tas, não deixou de ‘compreender’ os Actos de Navegação.
A partir de finais do séc. XIX tem-se assistido ao ressurgir de algumas das
teses ou de alguns dos temas caros aos mercantilistas. Os primeiros defensores da
reabilitação dos mercantilistas foram os autores alemães ligados à Escola Históri
ca e empenhados na defesa dos princípios do nacionalismo e de políticas protecci
onistas, que consideravam indispensáveis à industrialização da Alemanha.
O mercantilismo está ligado historicamente ao processo de afirmação dos esta
dos modernos na Europa, do seu desenvolvimento económico e da sua emancipação
económica no quadro nacional. Não admira, por isso, que as suas teses tenham
conhecido algum favor no âmbito da Alemanha empenhada na sua unificação naci
onal, na constituição de um estado e de uma economia ao serviço da nação. Numa
Alemanha que protegia as suas fronteiras económicas no quadro do Zolverein, Fri-
edrich List denunciava (1841) o livrecambismo como a expressão teórica dos inte
resses ingleses e defendia a intervenção do estado para que a Alemanha pudesse
exercer o seu direito à industrialização e ao desenvolvimento.346 Compreende-se,
346 Razões do mesmo tipo ajudam-nos a compreender que, actualmente, nos países do chamado Terceiro Mundo,
desejosos de promover o seu desenvolvimento económico, se aceite uma forte e insubstituível participação do
A v elà s N u n es - 3 2 5
por isso, que René Gonnard, mostrando a defesa, por Montchrestien, da necessidade
de afirmação política e económica das nações, na base de uma economia nacional
completa que se baste a si própria e se expanda para o exterior, comente deste modo:
“C est dèjà tous List, ou presque que nous trouvouns chez lui”.347
Mesmo na Inglaterra, o interesse pelos mercantilistas renasceu em pleno período
da corrida às colónias nos finais do séc. XIX (recorde-se que os mercantilistas atri
buíram um papel de primeiro plano aos mercados externos, à pilhagem das colónias
e ao regime do pacto colonial) e as práticas de proteccionismo alfandegário recupera
ram posições no âmbito da depressão económica se registou entre 1873 e 1896.
Após a Primeira Guerra M undial, a experiência pôs em causa as concepções
liberais e os seus mecanismos automáticos no que se refere à divisão internacional
do trabalho, ao comércio internacional e à balança de pagamentos. O padrão-ouro
chegou ao fim como sistema monetário internacional, e, com ele, os mecanismos
de auto-regulação que lhe eram próprios no âmbito das relações económicas in
ternacionais e da balança de pagamentos. Perante situações continuadas de défice
da balança, muitos países intervieram nos mercados de câmbios. Ressurgiram as
práticas proteccionistas e as aspirações de autarcia económica. Com a Grande
Depressão, foi o descrédito do laissez-faire e a comprovação da necessidade de
intervenção do estado na economia.
Neste ambiente, compreende-se o despertar do interesse pelas obras e pela
política dos mercantilistas, que foram objecto de vários estudos, dos quais o mais
importante é o de E.F. Heckscher, O Mercantilismo (1932). O próprio Keynes
dedicou um capítulo da GeneralTbeory (1936) ao mercantilismo, pondo em relevo
a importância atribuída à política de taxa de juro baixa, que Keynes igualmente
advogou. N o entanto, assim como não é correcto - como M . Blaug mostrou -
considerar os mercantilistas como precursores de Keynes, também não terá senti
do falar-se de neo-mercantilismo, como alguns pretenderam, a respeito destes mo
mentos de interesse renovado pelos temas mercantilistas.
O mercantilismo tem de entender-se no contexto histórico em que surgiu. Ele
foi a doutrina e a prática económicas dos estados nacionais no período que decorre
entre o séc. XVI e meados do séc. XVIII, o período histórico do desenvolvimento
dos capitalismos nacionais, em pleno florescimento do chamado capitalismo co
mercial. Nesse período de transição, o mercantilismo enquadrou-se nas exigências
O s F isiocratas
3 2 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l Itjca
1. A f is io c r a c ia : o s " e c o n o m is t a s "
A França de meados do séc. XVIII era um país com uma economia predominan
temente agrícola, assente, em boa parte, na propriedade senhorial da terra. Nas provin
das do norte, uma classe de rendeiros capitalistas desenvolviajá uma agricultura baseada
no recurso ao trabalho assalariado, caracterizada por uma produtividade bastante su
perior à que se registava no sul do país. Esta “grande cultura” correspondia apenas a
cerca de 1/6 da área cultivada (produzindo 1/4 do total de cereais), permanecendo no
resto do país uma agricultura pré-capitalista, organizada em explorações camponesas
onde predominavam formas de trabalho e de gestão de tipo feudal.
No que toca à actividade industrial, ela assentava basicamente em unidades de
produção de tipo artesanal, começando então a ensaiar os primeiros passos as
manufacturas de tipo capitalista.
A actividade comercial era igualmente de pequeno alcance e estava sujeita a entra
ves e regulamentos de vária ordem, especialmente no tocante ao comércio de produtos
agrícolas, quer no plano interno quer no plano das trocas internacionais. No artigo
sobre “grains” da Enciclopédia (1757), o próprio Quesnay criticava, a este propósito, os
mercantilistas, por terem descurado a agricultura em beneficio das manufacturas e
ainda porque, “através da excessiva procura de um comércio concorrencial, pretende
mos prejudicar os nossos vizinhos (...), mas, devido a semelhante política, extingui
mos, entre eles e nós, um comércio recíproco que nos beneficiava largamente”.
Pois bem. Foi nesta época, correspondente à penetração das relações capitalis
tas de produção na agricultura - uma “época em que a feudalidade se aburguesa e
a burguesia adopta ares feudais”, no dizer de Marx - , que se desenvolveu, numa
atitude crítica relativamente à política mercantilista de Colbert, uma nova corrente
de ideias, que ficaria conhecida pelo nome defisiocracia.
A designação de fisiocracia terá sido utilizada pela primeira vez por D upont de
Nemours, intitulando deste modo uma antologia de escritos de Quesnay, editada
em 1767. Etimologicamente, a palavra significa governo da natureza (a palavra
gregaphysis significa natureza), ideia que se adapta bastante bem ao núcleo essen
cial do pensamento dos autores que integram esta corrente.
De seita fala Adam Smith (“seita considerável, conhecida na república das letras
francesas pelo nome de Os Economistas”). E esta definição traduz bem a relação
especial que se estabeleceu entre o mestre (Quesnay) e os seus discípulos, marcada
pelo fervor quase religioso com que os restantes fisiocratas adoravam Quesnay. Atente-
se neste trecho do Marquês de Mirabeau, transcrito por Adam Smith:348
348 Cfr. Adam SMITH, Riqueza das Nações, cit., II, 272-273.0 mesmo Mirabeau defendia, aliás, que o Tableau
A v elAs N u n es - 3 2 9
Économique deveria ser "afixado nas escolas, nas sacristias e nas câmaras municipais" (apudA. VACHET, ob.
cif.. 321).
349 Cfr. I. SCHUM PETER, Historia..., c it . 167.
350 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c iL , II, 249.
3 3 0 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
trabalhos têm suscitado prolonga-se até aos nossos dias, o que, só por si, justifica
a atenção que vamos dedicar ao seu estudo.
Começaremos por enquadrar os fisiocratas no contexto do pensamento liberal
e da ideologia liberal. Com este objectivo, tentaremos esclarecer o seu conceito de
ordem natural (no seio da qual a “lei física” determina a “lei moral”) e o papel que
nela desempenham a propriedade, a liberdade e a igualdade. É ainda no quadro desta
ordem natural (igual a ordem económica, i.é, a uma sociedade que só existe na
medida em que os homens estabelecem entre si relações de troca) que destacaremos
o individualismo social dos fisiocratas, a sua antropologia optimista, a sua crença na
harmonia universal dos interesses, as suas ideias acerca das funções do estado (no
meadamente no que concerne às relações entre o estado e a economia) e a sua
concepção metodológica acerca da ciência económica.351
Concebendo a ordem natural como a ordem resultante das leis constitutivas das
sociedades, enquanto leis instituídas de uma vez por todas pelo Criador com vista
à reprodução e distribuição contínua dos bens necessários às necessidades dos
homens reunidos em sociedade, compreende-se que os fisiocratas considerem que
os homens estão inevitavelmante sujeitos a essas leis (“a ordem imutável das leis
físicas e morais que asseguram a prosperidade dos Impérios”, no dizer de M ira-
beau), as quais constituem “o corpo moral e político da sociedade” (Quesnay).
Dupont de Nemours afirma-o claramente quando escreve que o homem está “sub
metido pela sua essência às leis físicas da ordem natural e geral do universo”.
Os homens e a sociedade em que se inserem regem-se, pois, por leis naturais
que são leisfísicas em tudo idênticas às que asseguram o equilíbrio do mundo
físico. São “leis que existem eternamente de uma maneira implícita num código
natural, geral e absoluto, que não sofre nunca excepções nem vicissitudes” (Bau-
A v ela s N u n es - 3 3 3
deau). São leis absolutas, às quais a acção humana só pode acrescentar a desordem.
São leis de origem divina, leis “cuja instituição é obra de uma sabedoria que gover
na o universo através de regras invariáveis”, leis que são “menos um presente da
Divindade do que a própria Divindade”, de tal modo que “pecar contra a lei é
pecar contra a Divindade” (Mercier de La Rivière).
Tendo em conta este “totalitarismo da lei física sobre o homem e a sociedade”
de que fala Vachet353, é natural que no pensamento fisiocrático não tenha lugar
nenhum sistema de valores autónomos relativamente aos valores que estão inscri
tos nas leisfísicas que governam a Natureza, a ordemfísica providencial, a ordem
económica, aquela ordem em que os homens “podem encontrar a maior quantidade
posssível de prazeres e de felicidade”(Mercier de La Rivière). A moral não pode
ter outro sentido que não seja o de mero instrumento de realização física da ordem
que resulta da lei natural. A lei física e a lei moral confundem-se em favor da
primeira na unidade da lei natural. Assim se exprime Quesnay: “As leis naturais ou
são leis físicas ou leis morais. Entendemos por lei física o curso regulado de todos
os acontecimentos físicos da ordem natural evidentemente mais vantajosa para o
género humano. Entendemos aqui por lei moral a regra de todas as acções hum a
nas da ordem moral conforme à ordem física evidentemente mais vantajosa para o
género humano. Estas leis formam em conjunto o que chamamos a lei natural”.
“Chez-nous, pour nous, tout est physiquc et le moral en dérive”, escreveu Ques
nay. E o Marquês de Mirabeau: “A ordem moral é traçada pela ordem física. O
bem e o mal moral consistem em fazer o bem ou o mal físico na organização da
sociedade. As leis morais não são mais do que injunções à nossa liberdade no
sentido de obedecer às leis físicas”. E estas são as leis físicas da produção de
riquezas, com vista a “estabelecer o bem-estar de cada mortal, a conservação e a
felicidade do género hum ano”. (Baudeau)
Enquanto princípio regulador do comportamento humano, o juízo moral só
pode ser o juízo económico. Na síntese feliz de Mirabeau, “o dever natural do
homem é viver e ser feliz (...), a nossa moral deve ser inteiramente económica”.
De tal modo esta ideia é importante na filosofia dos fisiocratas que D upont de
Nemour defende que é Économiste “todo aquele que pense encontrar-se nas leis da
ordem física a base das leis da ordem moral”.
de fazer este uso ou de não o fazer. (...) Ser livre é não ser impedido, de nenhum
modo, de adquirir propriedades nem de fruir daquelas que se adquiram”.
A mesma tese de que a propriedade é o verdadeiro conteúdo da liberdade é
lapidarmente exposta por Mercier de La Rivière no trecho que segue: “A liberdade
social encontra-se naturalmente contida no direito de propriedade. A propriedade é
precisamente o direito de fruir, ora é evidentemente impossível conceber o direito de
fruir separadamente da liberdade de fruir, impossível também que esta liberdade
possa existir sem este direito, porque ela deixaria de ter objecto, tendo em conta que
só temos necessidade dela relativamente ao direito que queremos exercer”.
No sistema fisiocrático parece observar-se, pois, uma espécie de metamorfose
da liberdade universal do homem na liberdade do proprietário: toda a liberdade
efectiva e real é a liberdade do proprietário. A liberdade em sentido filosófico é, no
sistema fisiocrático, uma pura abstracção enquanto não é concretizada por inter
médio da propriedade. Para os fisiocratas a propriedade é, afinal, a lei fundamental
da sociedade, M a base sobre a qual assenta todo o edifício das sociedades”. (Turgot)
Mas a propriedade, entendida como “a liberdade geral de fruir em toda a ex
tensão os direitos de propriedade”, pressupõe necessariamente que a todos seja
garantida a plena segurança desta fruição. “Propriedade - escreve D upont de N e
mours - é o direito exclusivo de possuir uma coisa qualquer, ela exige a liberdade
e a segurança”. E Mirabeau: “A liberdade c a segurança são anexos inseparáveis da
propriedade”. “É evidente - observa M . de La Rivière - que ninguém cultivaria as
terras se ninguém tivesse a certeza moral de gozar a colheita, e só na sociedade
esta certeza moral pode estabelecer-se”. Nas suas Maximes générales du gouverne
ment économique d'un royaume agricole (1760), Quesnay define claramente o ponto
de vista dos fisiocratas a este respeito: “Que a propriedade dos bens de raiz e das
riquezas mobiliárias seja assegurada aos seus legítimos possuidores; porque a se
gurança da propriedade éofundamento essencial da ordem económica da sociedade.; sem
a garantia da propriedade, o território ficaria inculto. Não haveria proprietários
nem rendeiros dispostos a fazer as despesas necessárias para o valorizar e cultivar,
se a posse dos fundos nele empregados e dos seus produtos não fosse assegurada
àqueles que fazem os adiantamentos para essas despesas. E a garantia da posse
continuada que incentiva o emprego do trabalho e das riquezas na beneficiação e
no cultivo das terras, e nos empreendimentos comerciais e industriais. Somente o
poder soberano, que garante a propriedade aos seus súbditos, tem o direito origi
nário a partilhar os frutos da terra, única fonte de riquezas”.354
35S Ao considerarem o trabalho como único titulo natural e legítimo da propriedade, nomeadamento no estado primitivo
de natureza, os fisiocratas enfileiram na tradição puritana que Locke consagra. Cfr. A . VACHET, o b .cii, 294-300.
3 3 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o í It ic a
segura, mais certa e mais proveitosa para a nação e para o estado consiste na plena
liberdade de concorrência”.
Para os fisiocratas, o comércio interno está na origem das sociedades (“ele é tão
antigo como a sociedade”, escreveu Mirabeau) e constitui a própria essência da vida
das sociedades: “as trocas de bens são a primeira relação física das sociedades”, “o
comércio é o objecto e o cimento da sociedade” (são ainda expressões de Mirabeau).
Também o comércio internacional, desde que decorra livremente, é encarado
como um meio de unir as nações pelo seu interesse recíproco. É o que defende Le
Trosne ao considerar o comércio internacional como “o agente da comunicação
universal, o instrumento de satisfação das necessidades, o traço de união entre os
povos.” Mais claro é ainda Quesnay na afirmação das vantagens do livre comércio
internacional como fundamento da ordem internacional e como factor de harmo
nia universal. Assim se exprime Quesnay: “Se a Religião é o primeiro elo desta
cadeia política que mantém em conjunto as nações da Europa, o comércio é o
segundo. O seu efeito é tanto mais certo quanto ele se funda no interesse mútuo; é
bastante mais sensível que todas as ideias políticas e todas as atenções parecem
estar voltadas para ele. Ele mantém todas as nações em correspondência contínua;
torna-as reciprocamente credoras e devedoras; liga uns aos outros os negócios, os
bens, os interesses”.
Toda a concepção liberal dos fisiocratas assenta, pois, nos interesses da ordem
económica, ligados às “leis físicas naturais e essenciais da sociedade”. Este mesmo
fundamento é invocado pelos fisiocratas quando procuram justificar a liberdade in
dividual (ou, noutra óptica, o fim das corporações, maîtrises,jurandes eoutros direi
tos banais): “o interesse dos proprietários - escreve Dupont de Nemours - exige a
liberdade, a felicidade e a imunidade de todos os outros habitantes do país e de todos
os trabalhos”. E é invocado também quando, contraditando os mercantilistas, os
fisiocratas defendiam o fim da escravatura e da servidão (Quesnay: “a terra só pode
frutificar sob a mão de homens livres”) ou reclamavam a libertação das colónias
(Mirabeau: “o espírito de conquista é incompatível com o espírito de governo”).
2 .4 . N a t u r e z a e f u n ç õ e s d o es t a d o
Le Trosne observa, de resto, a este respeito, que “são as leis físicas da reprodu
ção que devem governar os homens, como são elas que os alimentam. O poder de
fazer leis não pode, pois, pertencer aos homens, já que estes só poderiam abusar
dele para sua perda e sua infelicidade. Deus reservou esse direito só para ele: a
autoridade que ele confere aos homens não contém mais que um poder de execu
ção, de aplicação e de administração”. E esta ideia casa-se perfeitamente com esta
outra de D upont de Nemours: “as leis são todas feitas pela mão daquele que criou
os direitos e os deveres. As leis sociais, estabelecidas pelo Ser Supremo, prescre
vem unicamente a conservação do direito de propriedade e da liberdade que é
inseperável dele. As leis dos soberanos, que chamamos leis positivas, devem ser
meros actos declaratórios daquelas leis essenciais da ordem social”.
O domínio do proprietário sobre os seus bens é considerado “absoluto e sem
limites (...); ele pode usar e abusar deles livremente, consumi-los, dá-los ou per
dê-los. Este direito - refere Mercier de La Rivière - é inerente à sua plena propri
edade”. Este direito de propriedade, enquanto “direito natural e essencial” - afirma
ainda este autor - , “é o primeiro princípio de todos os direitos e de todos os
deveres recíprocos que os homens devem ter entre eles”, pelo que “não pode haver
direito onde não existe a propriedade”, uma vez que é “impossível imaginar um
direito que não seja um desenvolvimento, uma consequência, uma aplicação do
direito de propriedade. Eliminem o direito de propriedade e não ficam quaisquer
direitos”, conclui de La Rivière.
Nas palavras deTurgot, dirigindo-se ao soberano, “há uma lei, Senhor, anteri
or às leis civis, cuja manutenção deve ser o único fim das instituições sociais; uma
lei pela qual e para a qual vós reinais: é a lei sagrada da propriedade”. E ainda
Turgot: “Creio, Senhor, que o interesse principal ao qual todos os outros estão
subordinados é o interesse dos proprietários; é quando as suas propriedades forem
tão protegidas quanto possível que eles extrairão a maior vantagem que puderem,
que eles estarão interessados em valorizar quanto possível as suas terras, que as
produções de todos os géneros se multiplicarão”. A mesma tese de Mirabeau: “o
monarca acumula na sua pessoa dois direitos divinos, o da autoridade e o da pro
priedade; mas é o segundo que faz o primeiro. (...) O estado não tem, portanto, e
não poderia ter interesses que não sejam também o interesse dos proprietários. Os
direitos do estado são portanto os direitos dos proprietários”.
Para este autor, é, aliás, “impossível que o governo tenha em algum local pre
cedido a propriedade, uma vez que a propriedade é necessária para m anter os
homens juntos e formar a sociedade, e o governo não pode ter sido anterior à
sociedade. O governo deriva portanto da propriedade e não a propriedade do go
verno”. A esta ideia de que o governo (i.é, o estado) só apareceu depois de (e por
3 4 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
356 Confiados em que esla ordem física e natural é a melhor forma de governo para as sociedades humanas, os
fisiocratas sustentam que a ignorância das suas leis é 'o princípio necessário de todos os males* e que 'o conhe
cimento evidente da ordem é a fonte natural de todos os bens que nos estâo destinados na terra* (Mercier de La
Rivière). Por isso mesmo Mirabeau defende: "Bani a ignorância e a impostura (...) e tudo se aproximará da ordem*.
O aba<le Baudeau salienta, a este propósito, que combater a ignorância é ensinar "a moral económica que trata
das relações, dos deveres e dos direitos respectivos das três classes da sociedade, segundo a ordem natural*. E o
Marquês de Mi rabeau manifesta-se no sentido de que o Tabieau íconomique seja *afixado nas escolas, nas sacristias,
nas câmaras municipais* e defende que "deve ensinar-se a todos que há só um Deus e que há um único imposto,
que tudo se resume a um só direito e a um só dever; (...) o que é o capital (“avances"), o que é a propriedade*.
A v elã s N un es - 3 4 3
não ser “se dispenser d’agir”. E também Mercier de La Rivière: o governo “ría rien
à faire; il lui sufFit de ne rien empêcher”.
Le Trosne sustenta igualmente que a função do soberano, a maior parte das
vezes, é a de “laisser jouir les citoyens sans y intervenir”, acreditando que “o que
eles farão tendo em vista apenas o seu próprio interesse é o que eles podem fazer
de mais vantajoso para a sociedade” e que o soberano “não pode fazer nada de mais
injusto e ao mesmo tempo mais deplorável do que pretender restringir a sua [dos
cidadãos] liberdade, regular o comércio, etc.”. Também Turgot sustenta que, pe
rante os homens de negócios, o homem de estado deve dizer-lhes apenas: “enri-
chessez-vous par le travail et par 1’épargne”, “faites ce que vous voudrez”.
Liberais no terreno da economia, os fisiocratas não foram liberais no que toca
às liberdades políticas, domínio em que criticaram Montesquieu e outros defenso
res do ideário democrático e republicano. Para os fisiocratas, a autoridade do
soberano funda-se na propriedade. Pela sua acção ao serviço da propriedade de
todos, a autoridade do soberano torna-se proprietária de toda a superfície do esta
do, situação que se traduz no direito à cobrança do imposto. A prosperidade de
cada um dos proprietários é, assim, a condição da prosperidade do monarca. Eis
como Mercier de La Rivière expõe a tese fisiocrática da autoridade política (a
“monarquia económica” ou o “despotismo legal”, de que falava o abade Baudeau):
“Qual é a melhor forma de governo? Qual é aquela que se apresenta tão conforme
à ordem natural e essencial da sociedade que dela não possa resultar nenhum
abuso? Esta melhor forma de governo é aquela que não permite que se possa
ganhar governando mal e que, pelo contrário, obrigue aquele que governa a não
ter outro interesse maior que o de bem governar”.
“Que a autoridade soberana seja única e superior a todos os indivíduos da
sociedade e a todos os empreendimentos injustos dos interesses particulares - es
creve Q uesnay-, porque o objectivo da autoridade e da obediência é a segurança e
o interesse lícito dc todos”. E ainda Quesnay: “é preciso que a autoridade sobera
na, sempre esclarecida pela evidência, institua as melhores leis e as faça observar
rigorosamente, para segurança de todos e para atingir a maior prosperidade possí
vel da sociedade”.
Turgot, embora admitisse uma assembleia representativa dos proprietários,
confiava-lhe poderes meramente consultivos, reservando para o rei-déspota a ac
tividade soberana, enquanto participante da propriedade universal. E defende as
sim as vantagens do despotismo esclarecido sobre a democracia: “(...) um déspota é
limitado pelo seu próprio interesse; ele tem o freio do remorso ou da opinião
pública; mas uma multidão não calcula nada; nunca tem remorsos, e atribui a
glória a si própria, quando merece a maior vergonha”.
3 4 4 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a
Um bon despote, segundo os fisiocratas, deveria informar-se acerca das leis natu
rais e impor a sua observância, deixando-as actuar sem quaisquer entraves. Sujeito
ele próprio às leis da natureza instituídas pelo Criador, não pode transgredi-las, sob
pena de lesar os interesses dos súbditos e os interesses da sociedade. “L’Etat -
escreve D upont de Nemours - est un législateur et non un légisfacteur, cest un
porteur de lois et non un faiseur de lois”.
A tese da primazia da lei económica sobre a lei moral (“chez nous, pour nous,
tout est physique, et le moral en derive”) permitiu aos fisiocratas desenvolver os
estudos económicos numa base científica. Este ‘imperialismo’ dos valores da or
dem económica explicará mesmo um certo “carácter imperialista” (A. Vachet) dos
estudos económicos dos fisiocratas, que tendem a abranger no seu campo de pre
ocupações o conjunto das leis naturais que dizem respeito ao homem enquanto ser
cujo fim último é a busca da felicidade, através da multiplicação dos bens necessá
rios à sua subsistência e perpetuação.
Os fisiocratas sofreram a influência das concepções do seu tempo, o séc. XVIII
do pensamento newtoniano. As concepções de Newton conduzem ao enunciado
de leis absolutas, imutáveis e universais. Os métodos da nova física matemática
tomam-se a metodologia dominante da época, não só nas ciências da natureza mas
também nas ciências humanas. Estas aspiram igualmente à descoberta de leis ab
solutas e universais, susceptíveis de formulação matemática, único meio de se atin
gir, também neste domínio, a inteligibilidade newtoniana.
Rendidos ao método da física newtoniana, que “subjuga imperiosamente toda a
inteligência e toda a razão humana com uma precisão que se demonstra até ao
pormenor, geometricamente e aritmeticamente” (Quesnay), os fisiocratas conce
bem a ciência económica como a ciência que se ocupa do “cálculo dos objectos
físicos relativos aos nossos interesses recíprocos” (D upont de Nemours), uma “ci
ência física, muito nobre, muito clara e muito ampla” (Dupont de Nemours), uma
“física económica” (Mirabeau), cujas leis atingiriam o mesmo grau de certeza que
as leis das ciências físicas.
E é razoável que assim seja, no quadro do sistema de ideias dos fisiocratas. Se
gundo eles, a lei natural que governa a ordem física da Natureza é a mesma que
regula a ordem humana e social: o homem, escreveu Dupont de Nemours, “está
submetido, pela sua essência, às leis físicas da ordem natural e geral do universo”.
A v e l As N u n e s - 3 4 5
3 . O CONCEITO DE RIQUEZA
4 . A NOÇÃO d e t r a b a l h o p r o d u t iv o
“Poderiam ainda dizer-nos - continua Q uesnay - que este trabalho produz, pelo
menos, a subsistência do trabalhador e da suafam ília. M as não nos parece que se
queira abusar das palavras a ponto de querer fazer ver que um simples consumo
constitui um a produção. Porque um a produção tal como a entendem os aqui é
um a riqueza rcnascente, e difícil reunir num m esm o conceito duas coisas tão
opostas; cm qualquer caso, seria um conceito bem complicado que teria de ser
desenvolvido para evitar a confusão. O operário fala com mais propriedade: diz
que ganha a sua subsistência e não que a prodirz
5 . O c o n c e i t o f i s i o c r á t i c o de e x ced en te ( P R O D U IT n et)
O excedente é, pois, uma diferença. Mas uma diferença entre duas grandezas
físicas, não uma diferença entre duas grandezas em valor, o produit net é entendido
pelos fisiocratas como um excedente físico de riqueza material, medida em termos
quantitativos, não como um excedente de riqueza social em abstracto, medida pelo
seu valor de troca. Os fisiocratas não determinam o excedente em termos da qua
lidade social dos bens (o valor), mas em termos da sua materialidade concreta, em
termos de grandezas físicas. Não comparam o valor dos outputs com o valor dos
inputs, mas comparam directamente a quantidade de bens materiais obtidos no fim
do processo produtivo com a quantidade de bens materiais existentes no início do
processo produtivo e ‘consumidos’ na produção.
Ora - observam alguns autores - esta comparação só é possível se os bens
produzidos forem da mesma natureza dos bens utilizados na produção, e só na
agricultura se verifica esta perfeita homogeneidade (física) entre o produto final e
os bens consumidos no processo produtivo.
A observação da realidade mostra que, tanto na agricultura como na pecuária,
os processos naturais de crescimento e de procriação produzem mais bens do que os
utilizados na produção (i.é, do que aquilo que se adianta, que se investe sob a forma
de alimentos para os trabalhadores, de sementes, de animais para criação). “Este
acréscimo m aterial- comenta Cláudio Napoleoni - é precisamente a origem, se
gundo os fisiocratas, do produto líquido”.360
Compreende-se agora melhor o que queriam dizer os fisiocratas quando afir
mavam que só a agricultura é actividade produtiva, que só a agricultura cria um
produto líquido, um excdente, i.é, riqueza que se pode consumir sem se empobre
cer. Só a agricultura produz excedente porque só no domínio da actividade agríco
la é materialmente visível que os bens lançados à terra geram uma quantidade maior
de bens da mesma espécie.
Já vimos, quando nos referimos à “revolução neolítica”, que o excedente agrícola
foi a primeira forma histórica de excedente social, tendo surgido como resultado do
aumento da produtividade do trabalho agrícola. A existência de um excedente
agrícola e a capacidade de produzir esse excedente de forma regular e permanente
permitiram ao homem do neolítico iniciar a prática da agricultura, da domestica
ção e da criação de animais, potenciando deste modo a capacidade de produção de
alimentos e, por isso mesmo, lançando as bases da civilização.
Se as comunidades humanas fossem obrigadas a consagrar todo o seu tempo à
obtenção dos meios de subsistência dos seus elementos, seria impossível o desenvol
vimento de qualquer outra actividade (comercial, industrial, científica ou artística),
uma vez que todo o tempo de todas as pessoas tinha de ser dedicado à obtenção dos
alimentos necessários à subsistência. Sem a possibilidade de dispor regularmente de
um excedente agrícola não é possível a nenhuma sociedade garantir a subsistência
das pessoas que não produzam elas próprias os seus alimentos (i.é, que se dediquem
a quaisquer outras actividades que não a de obtenção dos próprios alimentos). Assim
se explica que se sustente que “o sobreproduto agrícola é a base de todo o sobrepro-
duto e, portanto, de toda a civilização”. (Ernest Mandei)
A consciência disto mesmo transparece nos escritos de Quesnay e poderá aju
dar a compreender o relevo concedido ao excedente agrícola e à agricultura em todo
o sistema fisiocrático:
“Todos os hom ens se veriam obrigados a trabalhar a terra se os produtos desta
apenas lhes proporcionassem a alimentação" - escreve Q uesnay.361 ( ...) O
agricultor, por si mesmo, apenas necessitaria da simples reprodução para viver.
M as a nação precisa que a terra produza o mais possível e que os p rodutos se
transform em cm riquezas. (...) Por m uito fraca, dura e reduzida que fosse a
subsistência que os Ilotas forneciam aos Espartanos, é certo que, se as terras de
Esparta só produzissem o necessário para sustentar aqueles que as cultivavam,
os Espartanos teriam perecido ou teriam sido obrigados a expulsar os seus
escravos e a cultivar eles próprios as suas terras; e, assim, ter-se-iam tornado
eles próprios em Ilotas, abandonando os exercícios de ginástica, as mesas co
m uns e a defesa da Pátria”.
reserva, no fundo, o papel de capitalistas aos proprietários, os quais chamam a si, sob
a forma de renda, todo o produto líquido resultante da actividade agrícola.
2) A c/asse dos proprietários (também designada por classe distributiva ou classe
soberana) é constituída por aqueles que, não desenvolvendo qualquer actividade
económica, gozam do direito de receber a renda (que absorve todo o produto
líquido, como veremos à frente).
Nela se integram não só os proprietários de terras, mas também o soberano
(com a corte e o conjunto dos funcionários da administração estadual) e a Igreja,
uma vez que a todos eles cabe uma parcela da renda (i.é, do excedente agrícola),
quer porque são proprietários (e entre os proprietários contam-se o soberano e a
Igreja) quer porque gozam do direito de cobrar impostos (o soberano) ou dízimos
(a Igreja).
3) A classe estérilé constituída pelos que se dedicam à indústria, ao comércio e
às profissões liberais, actividades que podem produzir bens úteis, mas que não
criam produto líquido (também aqui não se distinguem os trabalhadores assalari
ados dos empregadores capitalistas).
Schumpeter defende que o esquema utilizado por Quesnay no Tableau “não é
primordialmente um esquema de classes entendidas como entidades sociais, mas
de classes como grupos económicos do tipo que encontramos nas estatísticas cor
rentes dos indivíduos ‘afectados’, por exemplo, à agricultura, ou às minas, ou às
indústrias transformadoras”.365 A equiparação dos rendeiros (capitalistas) aos tra
balhadores assalariados no âmbito da classe produtiva, bem como a indiferencia-
ção com que é apresentada a classe estéril apontam no sentido de legitimar a
análise de Schumpeter.
Outros autores, porém, sustentam que, na análise macroeconômica apresentada
no Tableau, Quesnay opera com o conceito de classes sociais entendidas como
“agregados sociais definidos pela função que desempenham no processo produti
vo”.366 Em abono desta tese poderá invocar-se, se bem vemos, o facto de resultar
claramente do Tableau que a classe dos proprietários se apropria do excedente pelo
facto de ser a proprietária da terra, daí resultando o seu direito à renda e não de
qualquer contribuição sua para o processo produtivo e, nomeadamente, para a
criação do produto líquido (Quesnay não reconhece qualquer produtividade ao
capital que pudesse fundamentar o direito à renda).
M as outras considerações dão consistência a esta última tese. Com o já vimos,
os fisiocratas consideram a propriedade como a base essencial da sociedade e
7. O T a b l e a u É c o n o m iq u e , o p r o c e s s o de p r o d u ç ã o e o
PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DAS MERCADORIAS
DIAGRAMA I
SITUAÇÃO ANTES DA TROCA. NO FIM DO CICLO PRODUTIVO
M OEDA
AU M ENTO S A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S
A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S
Classe Produtiva
DIAGRAMA II
SITUAÇÃO DEPOIS DE FEITAS TODAS A S COM PRAS E TODAS A S VENDAS
M OEDA 4 — I M O EDA
A R T IG O S
M A N U FA C T U R A D O S
A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S
Classe Produtiva
3 5 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a
É c o n o m iq u e
8.3. A M O E D A C O M O S IM P L E S I N T E R M E D I Á R I O N A S T R O C A S
do Ta blea u E c o n o m iq u e
371 No sistema fisiocrático tem, pois, acolhimento a tese - mais tarde desenvolvida por Malthus - segundo a qual
os consumos de luxo dos grandes proprietários de terras constituem uma condição de equilíbrio da circulação
e, por isso mesmo, da estabilidade e da prosperidade da economia.
372 Cfr. M. B LA U G , ob.cit.. p. 29.
373 Cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 279.
3 6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
sobre a renda. Se a renda absorvia todo o produto líquido, ela deveria ser a base da
tributação e deveria ser a classe dos proprietários a pagar os impostos. Uma das
‘máximas gerais’ de Quesnay para o governo económico de um reino agrícola
consistia exactamente em
“que o im posto não seja destrutivo ou desproporcionado à massa dos rendi
m entos da nação; que o seu aum ento siga o aum ento dos rendim entos; que seja
estabelecido im ediatam ente sobre o produto líquido dos bens de raiz e não
sobre o salário dos hom ens, nem sobre os géneros agrícolas, pois multiplicaria
os encargos de cobrança, prejudicaria o comércio c destruiria anualm ente uma
parte das riquezas da nação”.
Com esta reforma tão contrária à tradicional isenção de impostos de que bene
ficiavam as classes feudais, Quesnay visava sobretudo facilitar a utilização de uma
parte do excedente na acumulação de capitais, potenciando deste modo o aumento
do investimento na agricultura (“avances au sol”) e, consequentemente, o aumento
do produit net e o progresso de toda a sociedade. M arx ( Teorias da mais-valia) pôs
em relevo o significado desta proposta dos fisiocratas enquanto ataque aos privilé
gios tributários dos proprietários feudais, sublinhando que o imposto sobre a ren
da da terra conduz a “um confisco parcial da propriedade rural, que a legislação
revolucionária francesa procurou realizar”.
As duas primeiras condições acima referidas alimentam e justificam a orienta
ção dos fisiocratas em favor do liberalismo económico, condensado na fórmula do
laissez-faire, laissez-passer.
Dentro da sua concepção de que a produção decorre menos da actividade do ho
mem do que de uma qualidade da Natureza, Quesnay defende a liberdade económica
porque ela lhe aparece como o caminho conforme à lei natural e a intervenção como
contrária a ela. A liberdade realiza “a ordem natural evidentemente mais vantajosa para
o género humano” - escreveu Quesnay, que apresenta, entre as ‘máximas gerais’já
referidas, também esta: “Que se garanta a liberdade total do comércio; porque a poli-
3 6 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a
tica de comércio interno e externo mais segura, mais exacta e mais proveitosa para a
nação e para o estado consiste na plena liberdade de concorrência”.374
Mas alguns especialistas - com destaque para Jean Marchai e Ronald M eek -
põem em relevo que os fisiocratas defenderam o laissez-faire menos por considerar
o liberalismo económico como o melhor sistema do que por entenderem que a
liberdade de circulação (incluindo a liberdade de exportação) dos produtos agrí
colas era um factor essencial para o desenvolvimento da agricultura francesa.375
E, na verdade, Quesnay defendeu veementemente a necessidade de o estado
intervir com firmeza no sentido de criar as condições para que as leis naturais
pudessem impor-se. Por outro lado, Quesnay não hesitou em defender a continu
ação de certas formas de regulamentação da actividade económica, sempre que
elas fossem favoráveis à agricultura (defendeu, v.g., que continuasse condicionada
a liberdade em matéria de empréstimo de dinheiro a juros, para garantir boas
condições de financiamento da agricultura).376
siderar o capital como um estoque de bens (“as riquezas pré-existentes, cujo dispên
dio faz renascer anualmente igual volume de riquezas”), constituído pelo conjunto
dos meios de produção e de subsistência que, tendo sido previamente acumulados,
são adiantados para permitir o início do processo produtivo. O capital é, pois,
entendido como o conjunto dos adiantamentos (“avances”) feitos sobre a futura
produção e que têm de ser reconstituídos (“reprises”) no fim do processo de circu
lação do produto social.
A importância dos adiantamentos (i.é, do investimento, ou do capital) é posta em
relevo pelo próprio Quesnay:377
“É da m anutenção ou do crescimento dos adiantamentos que fazem renascer as
riquezas anualmente, que depende a prosperidade das nações agrícolas. Porque,
se os adiantam entos não forem suficientes para originar um a reprodução tão
superabundante que dê o maior rendim ento possível, a nação perde sobre o
produto que ela poderia retirar do seu território. M as, se eles forem tão redu
zidos que apenas se possam reproduzir a si próprios, então faltará o rendim en
to, os adiantam entos da classe estéril desaparecerão, toda a produção se lim ita
rá rigorosam ente à subsistência do agricultor e dos seus trabalhadores".
respeitável, uma vez que ele é a base sobre a qual assenta todo o edifício das sociedades; quero dizer com isto
o direito inviolável, ligado à propriedade, de ser senhor absoluto dos seus bens, de n5o poder ser privado dela
sem seu consentimento, e de náo poder associar o seu consentimento a uma condiçáo que se julga apropriada".
Cfr. A . VACHET, o b .d L, 318-319.
377 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 150.
378 Deixamos de lado os “avances souveraines", constituídos por despesas públicas em caminhos, abertura de
canais fluviais, etc.
3 6 4 - U m I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a
379 Outra parece ser a conclusão de A. VACHET (06. d l , 298-303). Eiso essencial da sua argumentação. Segundo
os fisiocratas, nas sociedades evoluídas, de economia organizada e complexa, os avances foncières são "a
origem necessária de toda a fertilidade*. (Baudeau) Quer dizer: nestas sociedades (i.é, fora do estado de natu
reza) todo o trabalho pressupõe a existência de capital, uma vez que só o capital permite ao trabalho produzir.
'O trabalho daquele que não possui nada náo lhe pertence: pertence àquele que pode empregá-lo a troco de
um salário', escreve um adepto da fisiocracia. E Turgot é muito claro quando escreve que "todo o trabalho
pressupõe adiantamentos ('avances*), um capital; para trabalhar livremente - acrescenta - é preciso, portanto,
dispor livremente do capital necessário para a produção, isto é, ser seu proprietário*.
Dentro desta lógica, dir-se-á que, para os fisiocratas, o capital é a causa primeira da produtividade do trabalho.
Uma vez instituída a propriedade (sobre a terra) e reunido um certo capital (a partir de economias feitas no
consumo), o seu investimento faz que a propriedade não só se reproduza mas crie tembém um excedente, que
peitencerá ao titular da propriedade e do capital. Vachet cita, a propósito, este texto de Le Trosne: 'Se a cultura
se limitasse a restituir os seus adiantamentos, ela exigiria o trabalho pessoal de todos os proprietários: ela poderia
apenas alimentar duas classes de homens; os seus agentes e aqueles que se empregassem a servi-los de dife
rentes modos. Mas, desde que ela é apoiada por despesas mais fortes e encorajada pelos êxitos, ela proporciona
um excedente para além dos seus custos. (...) Foi então que a faculdade produtiva da terra em condições de ser
cultivada pôde ser licitada por pessoas que se encarregaram de a explorar a seu risco e de pagar um rendimen
to certo ao possuidor. Foi então que este possuidor pôde dispensar-se de cultivar ele próprio a terra, que ele
partilhou os frutos sem contribuir com o seu trabalho para a reprodução (...), e que ele pôde fazer viver com a
sua despesa uma quantidade de homens que se empregaram em servi-lo na razão da porção de frutos que ele
pôde ceder-lhes em troca dos seus trabalhos. Foi então que a sociedade ficou completamente formada, que ela
pôde manter uma autoridade tutelar e ter um património destinado a pagar a despesa pública e a garantir a
segurança interna e externa".
Este papel do capital (esta 'auto-fecundidade necessária da propriedade*) não seria posta em causa pelo facto
de, segundo os fisiocratas, o produit net ser um *dom da natureza*. Ê que o capital, para os fisiocratas, é, antes
de mais, uma porção da natureza, apropriada inicialmente com base no trabalho. Só que a natureza, sem
'adiantamentos', abandonada a si própria, produziria apenas o necessário para a sobrevivência, mas não
proporcionaria um excedente. Só o investimento, ao permitir a "grande culture* que multiplica os rendimentos
para além dos custos, toma possível este excedente.
Nesta perspectiva, André Vachet conclui que os fisiocratas terão 'erigido em princípio um processo de cresci
mento essencialmente capitalista: aforro-investimento-excedente-aforro, etc.*
A v elAs N u n e s - 3 6 5
Acerca dos “avances foncières”, dir-se-á, finalmente, que eles não são conside
rados no Tableau, que ignora o processo de acumulação. Este facto é explicado pelos
autores com base na interpretação segundo a qual o modelo utilizado no Tableau
pressupõe um estádio em que toda a actividade agrícola se desenvolve já em mol
des capitalistas, tendo-se alcançado, por isso mesmo, o mais elevado grau de pro
dutividade e o maior volume de excedente, de tal modo que “o benefício dos
proprietários não pode aumentar mais” (pressupondo a tecnologia constante, evi
dentemente). Só nestas condições - i.é, nas palavras de Quesnay, “no estado de
prosperidade dum reino cujo território fosse integralmente cultivado pelos melho
res métodos possíveis, onde o comércio fosse tão livre e tão fácil quanto possível e
onde, por consequência, o rendimento dos proprietários não pudesse ser maior”
se justificará o modelo de economia estacionária adoptado no Tableau, no qual não
tem lugar a ideia de acumulação e a própria dinâmica de formação do capital.380
11.2. O s A v a n c e s P r im itiv e s
11.3. Os A v a n c e s A n n u e lle s
383 Cír. C. N APOLEONI, Fisiocracia..., d l , 19. Alguns sustentam que o sistema fisiocrático se apresenta como um
sistema de capitalismo integral, ainda que provisoriamente limitado ao capitalismo agrícola (Cfr. A VACHET, ob.
c il, 365/366).
384 Cfr. M . B LA U G , ob. c iL , 25.
3 6 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a
E que fundam ento havia para tais ideias na França do séc. XVIII? - pergunta
M aurice D obb. M as o seu em penho tácito em favor da abolição das restrições
feudais ao desenvolvimento agrícola e ao investimento de capitais nas actividades
agrícolas, a sua insistência na liberdade do comércio e na renda da terra como base
apropriada para a tributação, o seu conceito de um a ordem económica ‘natural’
que ‘funcionaria por si’, sem o auxílio da fiscalização da autoridade, têm um
significado revolucionário. No campo das ideias económicas - conclui M . D obb
- foram como que o João Baptista da próxima revolução burguesa, assim como
Voltaire c Rousseau representam igual papel no campo das ideias políticas".385
Alguns autores defendem, aliás, que ainda hoje as concepções dos fisiocratas
são particularmente interessantes para a compreensão de vários aspectos da estru
tura económica e social dos países subdesenvolvidos, nos quais o sector industrial
c reduzido e atrasado (o sector capitalista, quase sempre protegido por elevadas
barreiras alfandegárias, produz bens de luxo para a minoria rica ou para a expor
tação) e a maior parte da população activa trabalha na agricultura. Dado o grau
elevado de autosuficiência das explorações camponesas, as despesas de exploração
consistem, basicamente, nos produtos intermédios e no autoconsumo. Para a gene
ralidade dos trabalhadores, a alimentação constitui uma percentagem elevadíssima
dos seus custos de manutenção e reprodução. Embora menor do que a parte da
população activa agrícola na população activa total, é em regra muito elevada a
participação da agricultura no produto nacional. Daí a importância muito particu
lar do excedente agrícola, especialmente de um excedente agrícola exportável (ele
mento que, em muitos países subdesenvolvidos, ocupa o lugar do sector de produção
de bens de produção, sendo o factor determinante principal da capacidade de im
portar, sem a qual o desenvolvimento económico pode ser muito difícil). “Nestas
condições - sustenta R. López-Suevos - mobilizar o excedente económico para o
desenvolvimento é, em grande medida, mobilizar o excedente agrícola”.386
Como quer que seja, não há dúvida de que os estudos económicos dos fisiocratas
têm suscitado a atenção de sucessivas gerações de economistas, pelo menos desde
que Marx os reconheceu como “os verdadeiros fundadores da economia moderna”.
Aos fisiocratas cabe, sem dúvida, o mérito de terem introduzido na análise eco
nómica certos conceitos que viriam a revelar-se bastante fecundos (v.g., os conceitos
de excedente, de trabalho produtivo, a ideia do processo económico como um fluxo
que se renova permanentemente, o conceito de capital como um estoque de bens
previamente acumulados que se adiantam para que a produção seja possível).
Quesnay e os fisiocratas podem considerar-se precursores do utilitarismo en
quanto filosofia social. N a verdade, eles definem como princípio económico aquele
que se traduz na obtenção do máximo de satisfação com a menor despesa (ou com
o menor esforço em trabalho), configurando o problema fundamental da teoria
económica como um problema de máximos. Nesta perspectiva é que os fisiocratas
defendem que a satisfação máxima das necessidades de todos os membros da soci
edade globalmente considerados só se alcançará se cada um puder actuar livre
mente de acordo com o seu interesse individual, funcionando a concorrência como
“árbitro natural e absoluto” capaz de harmonizar os interesses em presença.387
M as a projecção teórica das concepções dos fisiocratas não se fica por aqui.
Quesnay terá, segundo alguns, antecipado a lei de Say; o conceito d eproduit neté
por muitos considerado como um dos antecedentes da teoria marxista da mais-
valia; o modelo de produção/circulação do Tableau terá influenciado M arx na
elaboração dos esquemas de reprodução; é frequente os especialistas aproximarem
a análise feita ao Tableau com a teoria do equilíbrio económico geral, de Walras;
a representação numérica do sistema económico e a análise da interdependência
entre os vários sectores de actividade económica reflectidas no Tableau vieram a
projectar-se modernamente na análise de input-output desenvolvida por Wassily
Leontief, autor que reconhece Quesnay como seu precursor, pondo em relevo a
preocupação de ambos em atribuir a cada grandeza mencionada um valor concre
to, tão próximo da realidade quanto possível388; outros autores reclamam para o
Tableau de Quesnay o papel de pioneiro das modernas técnicas da contabilidade
387 Cfr. J. SCHUMPETER, Historia..., d l , 277/278. As qucstôes referidas no texto sào pontos basilares do pensamento
de Adam Smith. Segundo este, não devemos o pào à benevolência do padeiro, mas ao seu interesse egofsta.
Quer dizer que nem todas as actuaçâes inspiradas pelo objectivo de obter lucros sào, por esse facto, acções anti
sociais. Este ponto de vista de Adam Smith nâo afectava, porém, a sua clara percepçào do antagonismo exis
tente entre as classes sociais. Quesnay, ao contrário, parte da compatibilidade ou da complementaridade dos
interesses individuais na sociedade concorrencial para a tese da harmonia universal dos interesses das várias
classes sociais, o que faz dele -co m o bem salienta Schumpeter - um precursor do "harmonismo" do séc. XIX
(Say, Carey, Bastiat)-
388 Alguns autores têm mesmo tentado interpretações do Tableau à luz dos modelos de input-output. Cfr. v.g. A.
PHILLIPS, "The Tableau Economique as a simple Leontief model", em Quartely journal o f Econom ics, Vol.
LXIX, 1955,137-144 e S. M AITAL, "The Tableau tconom ique as a Leontief model", em Quarterly Journal o f
Economics, Vol. LXXXIV, 1972,504-507.
3 7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
389 "Q uesnay-escreve J. SCHUMPETER, Historia..., cit., 287-288-identificou o equilíbrio geral, i. é, o equilíbrio
da economia como um todo, diferentemente do equilíbrio de qualquer sector isolado da mesma economia,
com o equilíbrio de agregados sociais, exactamente como os modernos keynesianos". Harry Johnson ensaiou
uma interpretação do Tableau na óptica da teoria keynesiana do multiplicador (cír. H . JOHNSON, "Quelques
réflexions sur le Tableau Economique de Quesnay", em Revue d'Économie Politique, Vol. 1975,397-407).
390 Cfr. J. SCHUMPETER, Historia..., c i l, 277.
391 Ronald MEEK sustenta, no entanto, que o Tableau "é um dos mais impressionantes exemplos, em toda a história
do pensamento económico, de harmoniosa unidade entre teoria abstracta e investigação concreta" (cfr. The
Economics o f Physiocracy, c iL , 259/260).
A v elã s N u n e s - 3 7 1
Cfr. C . LARANJEIRO, ob. c/f., 27. "A noção nâo mercantil de valor - escreve este autor - representa ainda a
perspectiva feudal de produção em que o mercado nâo tem significado especial e os proventos dos terratenentes
sâo ainda proporcionais è quantidade de produtos recebidos dos cultivadores. A abstractizaçào da forma de
valor - para usar a expressão de Marx -supóe a produção anónima para o mercado, a única em que o valor
se autonomiza dos bens concretos que o suportam".
3 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a
não é susceptível de gerar qualquer produto líquido (de criar riqueza).393 Só a sua
incorporação na terra permite o aumento da produtividade desta: aos proprietários
da terra cabe, por isso, a título de renda, a totalidade do produto líquido por ela
criado (mesmo naquela parte em que a produtividade da terra vem acrescentada
pelos investimentos, quer os feitos pelos proprietários quer os feitos pelos rendeiros).
É certo que em algumas passagens de escritos seus Quesnay fala de “um lucro
assegurado para o empresário”, ou de “um juro líquido anual” que os adiantamen
tos devem assegurar aos rendeiros,394 parecendo revelar “o implícito reconheci
mento da autonomia do capital enquanto gerador de excedente”.395
No entanto, esse ‘lucro’dos rendeiros revela-se, de acordo com a análise de Ques
nay, uma “vantagem” meramente temporária. Vejamos o que ele próprio escreveu:
“O s rendeiros de bens de raiz tiram vantagens do aum ento constante de preços
que se verificou no decurso dos seus arrendam entos, até à renovação destes. E
este ganho é o mais frutuoso, o mais vantajoso c o mais necessário a um a nação
cuja agricultura tem necessidade de ser desenvolvida e m elhorada. Porque os
rendeiros, se não forem oprim idos, não abandonam a sua ocupação; os lucros
que eles obtèm acrescem as suas riquezas de exploração, com grande vantagem
para*a agricultura. E estes lucros fazem aum entar o núm ero de rendeiros ricos,
provocam, aquando da renovação dos arrendamentos, um a concorrência maior
entre eles, o que assegura então aos proprietários e ao soberano a percepção
integral do produto líquido e não som ente daquele que, para além desse, o
m aior desafogo dos rendeiros faz nascer”.
393 Tal como mais tarde Marx, Quesnay não reconhece qualquer aptidão ao capital (no sentido de instalações,
equipamento, etc.) para produzir um excedente. Considerado como mera cristalização de um excedente
(mais-valia) já produzido pela terra (ou pelo trabalho), os dois autores entendem que o capital não acrescenta,
por si mesmo, qualquer produto líquido (ou valor).
Mas há diferenças essenciais entre as duas concepções.
Por um lado, Marx defende que a 'produtividade' (i.é, a capacidade de produzir um excedente, a mais-valia)
é uma qualidade da força de trabalho. Ao invés, os fisiocratas não atribuem ao trabalho o estatuto de agente
produtor do produit n e t O trabalho agrícola não é considerado estéril apenas porque a terra em que ele se
aplica é produtiva por natureza (o trabalho é um mero instrumento de valorização da terra). Mas já no caso da
indústria e do comércio o trabalho não acrescenta qualquer produit net (a matéria sobre que ele incide é
apenas modificada ou deslocada). Vendo na produção mais a consequência de uma qualidade da Natureza
do que uma forma de actividade humana, os fisiocratas não puderam compreender o significado do trabalho
(do trabalho produtivo) como a causa da riqueza, como a origem d o valor.
Por outro lado, a capacidade da força de trabalho para criar mais-valia traduz-se, segundo Marx, na criação
de valor (com base na teoria do valor-trabalho é que Marx desenvolve a sua explicação sobre a origem e o
significado da mais-valia), enquanto que, para os fisiocratas, a produtividade da terra é produtividade física.
traduz-se na criação de bens materiais concretos (de mais bens do que os 'consumidos' na produção) e não
na criação de valor. "Quesnay admitiu que a produtividade física implica produtividade de valor (...), erro nítido
que Marx não cometeu* (cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 282).
394 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 155 e 247.
395 Cfr. C . LARANJEIRO, oò. cit., 42.
3 7 4 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
Sendo assim, podemos concluir, com Cláudio Napoleoni, que “deste modo o
produto líquido acaba por identificar-se com a renda do proprietário fundiário, e a
relação entre a renda e a massa dos gastos na agricultura acaba por representar a
medida da produtividade do sistema global. Isto significa que os fisiocratas dão da
produção capitalista uma imagem não liberta ainda de um invólucro de tipo feu
dal. Esta confusão só viria a ter fim com a economia política clássica inglesa”.
Os limites do modelo do Tableau relativamente à compreensão das sociedades
capitalistas estão bem patentes no entendimento da classe produtiva e da classe
estéril (sobretudo desta) como blocos homogéneos, sem qualquer diferenciação
no seio de cada uma delas. Se esta perspectiva pode ter bastado no período cm que
as relações de produção capitalistas davam os primeiros passos, ela revelou-se
claramente incapaz logo que a implantação do capitalismo na indústria (e depois
também na agricultura) como modo de produção dominante trouxe para o primei
ro plano dos conflitos sociais o que colocou frente a frente a nova burguesia indus
trial e o proletariado das indústrias novas.
Nestas novas condições, emergiu naturalmente a necessidade de explicar a ori
gem do lucro industriale de justificar a sua apropriação pelos empresários capita
listas. Ficaram então às claras os limites da abordagem do Tableau. Os fisiocratas
só reconheciam a existência de um excedente na agricultura e, mesmo aqui, o
excedente era considerado como um dom da Natureza. Ora, se apenas a Natureza
fecunda a matéria, só a terra (a Natureza) é produtiva. Está, pois, excluída em
absoluto a possibilidade de se verificar a existência de um excedente industrial. E
mesmo quanto ao excedente agrícola, resultante da produtividade natural da terra,
já vimos que os fisiocratas o concebem em termos físicos (como uma quantidade
adicional de bens obtidos no fim do processo produtivo, em comparação com a
quantidade de bens existentes no início dele). Quer dizer, confundindo a “produti
vidade física” com a “produtividade em valor” (como salienta Schumpeter), os
fisiocratas não foram capazes de explicar o produto líquido em termos de valor.
M as - já o vimos - a identificação do produitnet com uma quantidade adicional
de bens pressupunha a sua medida cm termos quantitativos, o que implicava a
possibilidade de comparação física entre os bens existentes no início do ciclo pro
dutivo e os bens existentes no fim dele, possibilidade que só é viável se houver
homogeneidade entre os bens adiantados e o produtoftnal.
O ra - como também já vimos - Quesnay incluiu no Tableau, entre os “avances
primitives” feitos pela classe produtiva, elementos provenientes do sector manu-
factureiro. Assim sendo, desfeita a homogeneidade acima referida, seria impossível
comparar inputs e outputs, sendo impossível medir o excedente.
A v elAs N u n es - 3 7 5
3% é por isso mesmo, aliás -co m o bem nota C. LARANJEIRO, ob. c it , 29 - , que Quesnay considera fundamental
manter a estabilidade monetária, para que nâo seja "subvertida a ordem económica da naçào e a ordem das
suas riquezas relativamente às outras nações".
397 Cfr. C. NAPOLEONI, O valor..., cit., 17.
C apítulo IV
A E s c o l a C l á s s ic a
3 7 8 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
É vulgarmente designada por Escola Clássica (ou Escola Clássica Inglesa) a cor
rente de pensamento económico que se desenvolveu na Inglaterra entre fins do séc.
XVIII e meados do séc. XIX.
Como autores e obra mais representativos, indicaremos: ADAM SM ITH (1723-
1790) - A n inquiry in/o the nature and causes o fthe wealth o fnations (1776); DAVID
RICARDO (1772-1823) - Principies ofpoliticaleconomyandtaxation (1817);THO-
MAS ROB ERT M ALTHUS (1776-1836) - Essay on theprincipie o f population as it
affects thefuture improvement o f society (1798);JONH STUART M IL L (1806-1873)
- Principies o f politicaleconomy (1848), todos ingleses. Na França, o nome mais im
portante é o de JEA N -BA PTISTE SAY (1767-1832), autor de um Traitéd'Économie
Politique ou simple exposition de la manière dont seforment, se consomment les richesses
(1803) e de um Cours complet d'économiepolitique pratique (6 vols., 1828-1829).
A Escola Clássica é considerada em regra o primeiro grande movimento científico
no domínio da economia política, apontando-se como ponto de partida a já referida
obra de Adam Smith, Riqueza das Nações. Neste sentido, invoca-se o facto de terem
sido os autores ligados à Escola Clássica Inglesa que lançaram as bases da teoria do
valor, verdadeiro “princípio quantitativo unificador da Economia Política”.
A Escola Clássica assentou basicamente na defesa da existência de um mecanis
mo natural que asseguraria sempre o equilíbrio da vida económica e que, automa
ticamente, restabeleceria a ordem económica porventura alterada. E é com base
nessa concepção que os clássicos consideram que a tarefa da ciência económica é
a investigação e a descoberta das leis naturais que regulam todo aquele mecanis
mo, leis válidas em qualquer tempo e lugar, leis universais que o homem, através
da observação e do estudo, pode apreender, devendo, aliás, fazê-lo para poder
assegurar-se o progresso da sociedade.
Daí que se entenda, por um lado, que as leis científicas têm validade universal
precisamente porque derivam da própria natureza humana e, por outro lado, que é
a ordem natural que harmoniza todos os interesses a partir da natural actuação de
cada um no sentido de obter o máximo de satisfação com o mínimo de esforço.
Nas palavras de Adam Smith,
“O esforço uniform e, constante c ininterrupto de cada hom em para m elhorar
a sua condição - princípio de que originariamente deriva tanto a opulência
nacional e pública como a opulência privada - é frequentem ente bastante
poderoso para m anter o progresso natural das coisas para melhor, mau grado as
extravagâncias dos governos e os maiores erros de administração. Assim como
um desconhecido princípio da vida anim al, que restabelece m uitas vezes a
saúde e o vigor não só contra a doença, mas tam bém a despeito das absurdas
prescrições do médico”.
A v elã s N u n es - 3 7 9
A d a m S m it h
3 8 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
Viveu entre 1723 e 1790 este filósofo e economista escocês que Engels cha
mou o “Lutero da economia política” e que um outro autor considerou “o mais
poderoso soberano da Europa, a par de Napoleão”.
Em 1776 publicou a sua obra mais importante, An Inquiry Into the Nature and
Causes o f the Wealth ofNations,398 Desta obra fizeram-se, até ao fim do séc. XVIII,
nove edições inglesas, várias edições na Irlanda e nos EUA, várias edições também
das traduções em francês e alemão, além de traduções em italiano e espanhol,
dinamarquês e holandês. Com a possível excepção de Origin ofSpecies, de Darwin,
Riqueza das Nações foi, até hoje, o livro científico que maior êxito conheceu. G ra
ças a ela, Adam Smith tornou-se, a partir de 1790, e durante muito tempo, o
mestre incontestado de todos os professores de Economia. Como salienta Schum-
peter, Riqueza das Nações “foi o canal pelo qual as ideias do séc. XVIII acerca da
natureza humana chegaram aos economistas”.
Da obra de Adam Smith disse David Hume: “ela possui profundidade, solidez
e agudeza, e é tão ilustrada com factos curiosos que tem de atrair por fim a atenção
do público”. M as há quem faça do trabalho do professor de Glasgow um severo
juízo: “A Wealth ofNations não contém uma só ideia, um só princípio ou um só
método analíticos que fosse completamente novo em 1776”. No entanto, Schumpe-
ter - a quem pertence a afirmação anterior399 - defende que “ Wealth ofNations é, de
qualquer modo, um grande empreendimento e merece perfeitamente o seu êxito,
apesar de não conter ideias realmente novas e de não se poder comparar, como
produto intelectual, com os Principia de Newton nem com a Origin de Darwin”.
Tinha chegado, porém, o momento de se fazer uma síntese compreensiva, e a
obra de Smith é essa síntese, “resultado de um trabalho perseverantemente realizado,
sem um gemido, durante mais de vinte e cinco anos, com concentração exclusiva
nele durante cerca de dez”. “As suas próprias limitações - considera Schumpeter -
contribuíram para o êxito. Se tivesse sido mais brilhante não o teriam levado tão a
sério. Se tivesse aprofundado mais a análise, se tivesse revelado mais verdades recôn
ditas, se tivesse utilizado métodos difíceis e subtis, não teria sido compreendido”.
Em 1776, ano da I a edição de a Riqueza das Nações, as vinte ou trinta unidades
industriais mais importantes das Ilhas Britânicas utilizavam a força da água cor
rente como energia (roda hidráulica) e ocupavam 300 a 400 operários. Na esteira
de Toynbee, costuma aceitar-se o ano de 1760 - em que foram utilizados pela
398 Todas as transcrições feitas referem-se à trad. portuguesa, ed. F. Calouste Gulbenkian (2 vols.), cit.
399 Cfr. Historia ... c i t , 223-236.
A v elã s N u n es - 3 8 5
No que se refere à ciência económica, Adam Smith faz assentar a sua análise
na teoria do valor-trabalho, o que lhe permitiu explicar o lucro (não só o lucro
enquanto rendimento auferido pelos rendeiros capitalistas na agricultura, mas tam
bém o lucro industrial), ultrapassando assim a limitação fundamental do pensa
mento fisiocrático. A economia inglesa em vias de industrialização reflecte-se,
assim, na obra teórica de Smith: o capital e o lucro não se confinam agora à
agricultura; é na indústria nascente que o capital encontra o seu mais amplo e
dinâmico campo de aplicação.
A elaboração da teoria do valor vai também permitir a Adam Smith explicar
todo o sistema de trocas que caracteriza a vida económica e pôr de pé uma teoria da
distribuição do rendimento que tem em conta a divisão da sociedade (capitalista) em
classes sociais agora claramente caracterizadas pelo modo de participação de cada
uma delas na actividade produtiva. A análise teórica de Riqueza das Nações incide
sobre um modelo de sociedade em que o produto global criado pelo trabalho
produtivo vai ser distribuído em salários, rendas e lucros. O salário assegura a ma
nutenção e a reprodução dos trabalhadores produtivos. Da parte restante (o ‘pro
duto líquido’ou ‘excedente’) vão sair a renda d os proprietários e o lucro dos capitalistas,
categorias que Smith considera “deduções ao produto do trabalho”.
Na sociedade do seu tempo Adam Smith aceita a ocorrência de situações em
que “um produtor independente disponha do capital necessário para adquirir as
matérias-primas da sua obra c para se manter até ao momento de levar os seus
produtos ao mercado”. Nestas situações - que ele considera situações marginais,
pouco representativas —, aquele produtor independente “é patrão e operário ao mes
mo tempo, desfrutando de todo o produto do seu trabalho”.
M as relações de produção normais implicam a participação dos proprietários
fundiários, dos capitalistas e dos trabalhadores assalariados. Partindo desta reali
dade, Adam Smith elaborou as categorias teóricas que lhe permitiram responder à
questão de saber como se explica o “poder produtivo do trabalho” (i.é, a produtivi
dade do trabalho, a causa principal da riqueza das nações, que ele associa à divisão do
trabalho, à especialização interna, que se iniciou exactamente com o advento da
indústria capitalista) e à questão de saber como se distribui o produto pelas três
classes sociais referidas. O Livro I de Riqueza das Nações tem como título, precisa
mente, “Das causas de melhoria da capacidade produtiva do trabalho, e da ordem
segundo a qual o seu produto é naturalmente distribuído entre as diferentes classes
de cidadãos”.
Poderá dizer-se que este é, para Adam Smith, o objecto da Economia Política
enquanto disciplina científica. De forma mais sintética, isto mesmo é dito no título
A v elà s N u n es - 3 8 7
2. A TEORIA DO VALOR
De acordo com esta propensão para a troca, entendida como tendência inerente à
natureza humana, anterior à própria circulação dos bens, as sociedades humanas
acabam por organizar-se de tal forma que as relações de produção, baseadas na
especialização de cada trabalhador, permitem levar ao mais alto grau de realização
aquela propensão para a troca.
“U m a vez que a divisão do trabalho se tenha estabelecido com pletam ente, só
um a parte m uito pequena das necessidades de cada pessoa será suprida pelo
produto do seu próprio trabalho. D e longe a maior parte dessas necessidades
terá de ser satisfeita graças à troca da parte do produto do trabalho de cada um
que excede o seu próprio consumo, por aquelas parcelas do produto do trabalho
dos outros hom ens de que ele necessita. Assim, todos os hom ens vivem da
troca, tornando-se, até certo ponto, mercadores, e a própria sociedade se vai
transform ando num a verdadeira sociedade mercantil”.
regras que determinam o valor relativo ou valor de troca dos bens, noção que Smith
distingue claramente da de valor de uso. Esta a distinção, tal como é feita no Cap.
IV do Livro I de Riqueza das Nações'.
“Deve observar-se que a palavra VALOR tem dois significados diferentes; umas
vezes exprime a utilidade de um determinado objecto; outras, o poder de compra
de outros objectos que a posse desse representa. O primeiro pode designar-se por
valor de uso\ o segundo por valor de troca. As coisas que têm o maior valor de uso,
têm , em geral, pouco ou nenhum valor de troca; e, pelo contrário, as que têm o
maior valor de troca têm , geralmente, pouco ou nenhum valor de uso. Nada é
mais útil do que a água: mas com ela praticamente nada pode comprar-se;
praticam ente nada pode obter-se cm troca dela. Pelo contrário, um diam ante
não tem praticamente qualquer valor de uso; no entanto, pode norm alm ente
obter-se grande quantidade de outros bens cm troca dele”.
A concluir este Cap. IV, aponta Adam Smith as questões que se propõe estudar
nos capítulos seguintes. No Cap. V investigará “qual é a verdadeira medida do valor
de trocan ou “em que consiste o preço real de todos os bens” (sublinhados nossos).
No Cap. VI ocupar-se-á das “diferentes parcelas de que esse preço se compõe ou
é formado”.
trabalho que ela lhe permite comprar ou dominar. O trabalho constitui, pois, a
verdadeira medida do valor de troca de todos os bens". [Sublinhado nosso]
(..) Q uando cessa a troca directa e a moeda se torna no instrum ento generali
zado do comércio - continua Sm ith cada mercadoria passa a ser mais fre
quentem ente trocada por moeda do que por qualquer o utra mercadoria. (...)
D aí que o valor de troca de cada mercadoria seja mais frequentem ente calcu
lado cm termos da quantidade de moeda por que é possível trocá-la, do que em
term os de trabalho ou de qualquer outro bem”.
Mas é o próprio Adam Smith que logo adverte para o facto de que:
“o ouro e a prata, como todos os outros bens, têm valor variável, sendo um a
vezes mais baratos, outras vezes mais caros, umas vezes mais fáceis de adquirir,
outras mais difíceis. A quantidade de trabalho que uma certa quantidade desses
metais perm ite adquirir ou dominar, ou a quantidade de outros bens por que é
possível trocá-los, depende, cm qualquer mom ento, da abundância ou escassez
das minas conhecidas por essa altura”.
Daí a sua conclusão no sentido de rejeitar a moeda como medida do valor dos
outros bens e de defender que o trabalho “é a única medida universal e também a
única medida justa do valor”, ou seja, “o único padrão em relação ao qual se podem
referir os valores de todos os bens, em todos os tempos e lugares”:
“Tal com o um a m edida de quantidade cujo valor se altera constantem ente,
com o acontece com o pé, a braça ou a mão-cheia propriam ente ditos, nunca
pode constituir um a boa medida das outras coisas, tam bém um bem cujo valor
constantem ente varia nunca pode proporcionar um a m edida precisa do valor
dos outros bens. (...) E m todos os tem pos e lugares é caro aquilo que é difícil de
conseguir, aquilo cuja aquisição exige m uito trabalho; c e barato aquilo que se
obtém facilm ente ou com m uito pouco tra b alh a Portanto, só o trabalho, cujo
valor nunca varia, é o genuíno c verdadeiro padrão em termos do qual o valor de
todos os outros bens pode, em qualquer m om ento e lugar, ser estim ado e
com parado. É esse o seu preço real, a moeda é som ente o preço nom inal”.
Smith começa por conceber uma situação hipotética em que as relações entre os
homens decorreriam em conformidade com o direito natural. Designa esta situação
como “o rude estado da sociedade, que precede tanto a acumulação do capital como
a apropriação da terra”. Nesta situação a “relação entre a quantidade de trabalho
necessário para se obterem diferentes objectos parece ser o único elemento com base
no qual se determina a razão de troca”. E Adam Smith exemplifica:
A v el A s N u n e s - 3 9 5
“Se, por exemplo, num país de caçadores, custa habitualm ente o dobro do
trabalho m atar um castor que m atar um veado, um castor valerá ou trocar-se-
á naturalm ente por dois veados. É natural que aquilo que constitui norm al
m ente o p roduto de dois dias ou de duas horas de trabalho, valha o dobro do
que é habitualm ente produzido num dia ou num a hora de trabalho”.
409 Mas Adam Smith chama a atençáo para a necessidade de ter em conta determinados aspectos:
“Se um tipo de trabalho for mais árduo do que outro, terá, naturalmente, de tomar-se em conta essa maior
dificuldade; e o produto de uma hora de trabalho desse tipo, podo, muitas vezes, trocar-se pelo de duas horas
de trabalho doutro género.
O u , se uma espécie de trabalho exigir um grau excepcional de destreza e engenho, o apreço em que os
homens lém esses talentos levará naturalmente a atribuir ao seu produto um valor superior ao que lhe adviria
somente do tempo de trabalho nele gasto. Tais talentos só conseguem normalmente adquirir-se à custa de longa
aplicação, e o maior valor atribuído aos seus produtos náo será normalmente mais que uma compensação
razoável pelo tempo e trabalho gastos em adquiri-los. No estádio avançado da sociedade, a maior dificuldade
e a maior perícia sào normalmente tomadas em conta nos salários do trabalho, e, provavelmente, na sua fase
mais rude e primitiva fazia-se algo de semelhante".
410 Cfr. C . NAPO LEONI, Fistocracia..., ciL, 46/47 e C. LARANJEIRO, ob. c it , 78-80.
3 9 6 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a
Neste tipo de sociedade, qual a solução encontrada pelo nosso autor? Vejamos:
“N este estado de coisas, o produto total do trabalho deixa de pertencer sempre
aos trabalhadores. (...) E deixa tam bém de ser a quantidade de trabalho habitu
alm ente empregada na obtenção ou na produção de um bem o único factor que
pode determ inar a quantidade por que ele poderia, norm alm ente, trocar-se,
que poderia, por seu interm édio, ser adquirida ou dom inada”.
A quantidade de trabalho que se pode obter por troca com uma determinada
mercadoria (labour commanded) continua a ser o padrão de medida do valor de troca
dessa mercadoria. M as o trabalho necessário (o tempo de trabalho normalmente
despendido para produzir ou obter essa mercadoria) deixa de ser “o único factor
que pode determinar a quantidade por que ele poderia, normalmente, trocar-se”.
Vejamos o raciocínio de Smith:411
“Logo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos de determ inadas
pessoas, algum as delas utilizá-la-ão naturalm ente para assalariar indivíduos
industriosos a quem fornecerão m atérias-primas e a subsistência, a fim de
obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse trabalho
acrescenta ao valor das matérias-primas. A o trocar-se o produto acabado por
dinheiro, por trabalho ou por outros bens, num a quantidade superior à que
seria necessária para pagar o preço das m atérias-primas e os salários dos traba
lhadores, parte dela tem de constituir os lucros do empresário do trabalho, que
arrisca o seu capital nesta aventura. O valor que os trabalhadores acrescentam às
matérias-primas consistirá, portanto, neste caso, em duas partes, um a das quais
constituída pelos respectivos salários, a outra pelos lucros dopatrão, relativos ao
volume de matérias-primas e salários por ele adiantados. Ele não teria qualquer
interesse em em pregá-los se não esperasse obter, com a venda do seu trabalho,
um pouco mais do que o necessário para reconstituir a sua riqueza inicial; e não
teria qualquer interesse cm em pregar um maior núm ero de bens, de preferên
cia a um volume menor, se os lucros que aufere não fossem proporcionais ao
volume do capital em pregado”. [Sublinhado nosso]
Q uer dizer: “Neste estado de coisas, o produto total do trabalho deixa de per
tencer sempre ao trabalhador. Na maioria dos casos, ele é obrigado a partilhá-lo
com o proprietário do capital, que o emprega”.
M as no preço dos bens, diz Smith, para além do salário e do lucro, conta-se
também a renda da terra:412
“Logo que toda a terra de um país se torna propriedade privada, os seus propri
etários, que, como todos os homens, gostam de colher o que nunca semearam,
Até aqui, a análise de Smith acerca das partes que compõem o preço dos bens
pressupõe a aceitação do princípio segundo o qual o trabalho é a única origem do
valor. É isto mesmo que Smith afirma quando defende que o lucro e a renda são,
a par dos salários, parte do “valor que os trabalhadores acrescentam às matérias-
primas”. Todo o valor é criado pelo trabalho vivo, a esse valor se deduzindo o
montante do lucro e da renda, que não vão pertencer aos trabalhadores.
É isto mesmo que Smith torna claro ao expor, no Cap. VIII de Riqueza das
Nações, a sua concepção da renda e do lucro como deduções aoproduto do trabalho:413
“Assim que a terra se torna propriedade privada o proprietário passa a exigir um a
parte de quase todos os produtos que o trabalhador nela pode criar ou colher. A
renda toma-se na primeira dedução ao produto do trabalho que se emprega na terra.
É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o emprega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, c que não teria qualquer interesse em
em pregá-lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se
o respectivo capital lhe não fosse restituído com um lucro. Este lucro corresponde
a uma segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra.
414 Cfr. M. D O B B, Teorias..., cit., 64; C. NAPOLEONI, Fiskxracia..., cit., 48 e C. LARANJEIRO, ob. cit., 82. Ver, no
entanto, as reflexões de C. NAPOLEONI, Discorso..., c it , 37/38.
A v e ià s N u n e s - 3 9 9
A ideia que emerge com mais força da elaboração de Adam Smith parece ser
a que idenfica o trabalhoprodutivo com o trabalho que origina valor.415 O trabalho
(o trabalho abstracto) aparece, assim, como a única fonte de valor.
Trabalho improdutivo é o que “não produz qualquer valor, não se fixando nem
corporizando em qualquer objecto durável ou mercadoria vendável que continue a
existir uma vez terminado o trabalho e que permita adquirir, mais tarde, igual
quantidade de trabalho”.
Um operário é tipicamente um trabalhador produtivo, do mesmo modo que
um criado é um típico trabalhador improdutivo (tal como é improdutivo - salienta
Smith - Mo trabalho de muitas das mais respeitáveis classes sociais”).
“O trabalho dos últimos [dos criados] tem, contudo, o seu valor e merece um a
recompensa tal como o primeiro. M as o trabalho do operário fixa-se c corporiza-
se em qualquer objecto particular ou mercadoria vendável, que dura, pelo menos,
durante algum tem po após a conclusão do trabalho. É como se se armazenasse
uma certa quantidade de trabalho para ser utilizada, se necessário, em qualquer
outra ocasião. Esse objecto ou, o que é o mesmo, o preço respectivo, pode mais
tarde, se necessário, pôr em movimento um a quantidade de trabalho igual à que
lhe deu origem. O trabalho de um criado, pelo contrário, não se fixa nem se
corporiza em qualquer objecto particular ou numa mercadoria vendável. O s seus
serviços deixam, cm geral, de existir no próprio instante em que são prestados e
raramente deixam atrás de si qualquer resíduo ou valor com o qual se torne
possível obter, mais tarde, igual quantidade desse serviço”.416
Por isso Adam Smith defende que “um homem enriquece empregando grande
número de operários e empobrece se mantiver uma multidão de criados”. Exacta
mente porque M o trabalho de um criado nada acrescenta a qualquer valor”, o que
significa que “a manutenção de um criado nunca é recuperada”. Pelo contrário,
“embora o patrão adiante ao operário os seus salários, ele, na realidade, não impli
ca qualquer dispêndio para o patrão, uma vez que o valor desses salários lhe é, em
regra, restituído, com um lucro, por meio do valor acrescido do objecto sobre o
415 É esta a noçáo que mais se aproxima da noção fisiocrática de trabalho produtivo. É esta a noção que Marx
chamou "a definição correcta*. O valor criado pelo trabalho produtivo e incorporado nos bens produzidos
paga o trabalho necessário para produzir estes bens (salário) e deixa ainda um excedente (renda e lucro). Neste
sentido, pode dizer-se que o trabalho produtivo é o que produz um excedente: *o valor criado pelos trabalha
dores produtivos - escreve Smith - inclui o valor da sua própria manutenção e o lucro do patrão". Esta parece
ser também a interpretação de Cláudio Napoleoni quando define a noção smithiana de trabalho produtivo
como "aquele trabalho que não só reproduz o valor dos próprios meios de subsistência, mas reproduz também
um valor adicional (que é apropriado como renda ou como lucro); podemos agora precisar - acentua C.
NAPOLEONI, Fisiocracia..., cit., 49 -dizendo que é produtivo aquele trabalho que dá lugar a um produto pelo
qual o labour com mandedé maior que o trabalho incorporado".
416 C f r. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,582.
4 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
3.1.1. OS F A C T O R E S P O L ÍT IC O S E IN S T IT U C IO N A IS
É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o em prega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, e que não teria qualquer interesse em
em pregá-lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se
o respectivo capital lhe não fosse restituído com um lucro. Esse lucro corresponde
a uma segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra.
“N ão é difícil prever qual das partes, cm circunstâncias norm ais, levará sempre
a m elhor nesta disputa [a disputa entre os operários que “pretendem obter o
máximo possível” e os patrões que “procuram pagar-lhes o mínim o possível”] c
obrigará a outra a aceitar os seus próprios termos. O s patrões, sendo cm menor
núm ero, têm m uito m aior facilidade cm associar-se; além disso, a lei autoriza,
ou pelo m enos não proibe, as suas coligações, enquanto proibe as dos trabalha
dores. N ão tem os qualquer lei do parlam ento contra as coligações destinadas a
baixar o preço do trabalho, mas tem os muitas contra aquelas que pretendam
elevá-lo. E m todas as disputas desse género, os patrões podem resistir por
m uito m ais tem po. U m proprietário, um rendeiro, um dono de um a fábrica,
ou um com erciante, poderiam norm alm ente subsistir um ou dois anos sem
empregar um único trabalhador, com base no pecúlio previamente acumulado.
M uitos trabalhadores não conseguiriam subsistir um a semana, poucos subsis
tiriam um mês, c praticam ente nenhum sobreviveria um ano sem em prego. A
longo prazo, o operário pode ser tão necessário ao patrão como o patrão é
necessário a ele, mas a necessidade não é tão imediata.
Tem -se d ito que é raro ouvir-se falar de coligações de patrões, enquanto se
ouve com frequência falar nas dos operários. M as quem quer que, com base
nesse facto, im agine que os patrões raram ente se coligam é tão ignorante do
m undo com o deste assunto. O s patrões m antêm sempre e por toda a parte
um a espécie dc acordo tácito, mas constante e uniform e, tendente a que os
salários do trabalho se não elevem para além da taxa que vigora no m om ento.
A violação dc tal acordo é, em toda a parte, considerada como o mais im popu
lar dos actos e constitui um a espécie dc motivo dc censura a qualquer patrão
entre os seus próximos c iguais. É raro, na verdade, ouvirmos falar desse acordo
porque ele corresponde à situação habitual, pode m esmo dizer-se natural, que
jam ais é com entada. Às vezes, os patrões entram tam bém em coligações espe
cíficas para fazer dcsccr os salários do trabalho ainda abaixo dessa taxa. Estas
são sempre organizadas debaixo do maior silêncio e segredo, até serem postas
em prática e, quando os trabalhadores cedem , como p or vezes acontece, sem
opor resistência, as outras pessoas nunca chegam a ouvir falar delas, por m uito
gravem ente que pesem sobre os trabalhadores”.
das provisões, outras vezes sobre o elevado lucro que os patrões auferem à custa
do seu trabalho. M as, quer estas coligações tenham carácter ofensivo, quer
defensivo, ouve-se sempre falar delas em abundância. Para conseguirem um a
decisão rápida, os trabalhadores recorrem sempre ao mais alto clam or e, em
certos casos, à mais chocante violência c desacato. Sentem -se desesperados, e
actuam com o delírio e im oderação dc hom ens desesperados, a quem só resta
m orrer de fom e ou, pelo medo, obrigar os patrões a aceitar im ediatam ente as
suas reivindicações. E m tais circunstâncias, os patrões erguem , pelo seu lado,
idêntico clamor, reivindicando incessantemente o auxílio das autoridades civis
e o rigoroso cum prim ento das leis destinadas a, com tanta severidade, se o p o
rem às coligações de criados, trabalhadores e jornaleiros”.
Como se vê, Adam Smith atribui um papel importante aosfactores sociais, polí
ticos e institucionais na conformação dos mecanismos de formação dos salários.
3.1.2. O ESTADO DA EC O N O M IA
Adiantadas estas observações, podemos agora analisar como e que Adam Smi
th procura explicar a formação do salário em função do comportamento da procu
ra e da oferta de mão-de-obra.432
“Q uando, em qualquer país, a procura daqueles que vivem dos salários, traba
lhadores, jornaleiros, servidores de qualquer espécie, está em constante aum en
to, quando cada ano proporciona em prego a um m aior núm ero do que o ano
que o precedeu, os trabalhadores não terão oportunidade dc se coligar para
fazerem subir os salários. A escassez dc braços provocará a concorrência entre
os patrões, que licitarão uns contra os outros a fim de conseguirem trabalhado
res, quebrando assim voluntariamente o acordo natural entre eles existente para
não subirem os salários”.
3.1.3. OS F A C T O R E S D E M O G R Á FIC O S
Q uer dizer: sempre que o nível do salário é superior ao preço natural do traba
lho, daí deriva um estímulo ao aumento da população; este aumento da oferta de
trabalho vai, por sua vez, reconduzir o salário ao seu nível natural. Se o nível do
salário for inferior ao preço natural’ dar-se-á um fenómeno inverso, de tal modo
que o salário acabará por elevar-se até ao seu nível natural.
Mas a chave da compreensão do pensamento simithiano acerca da formação
dos salários talvez esteja na afirmação de que “é a procura de trabalhadores que
necessariamente regula a produção de trabalhadores”. E como a procura de tra
balhadores depende do estado da economia (estado estacionário, progressivo ou
regressivo), este será o factor decisivo na determinação do nível dos salários.437
Nos trechos de Smith que acima se transcrevem poderá ler-se, nos seus traços
essenciais, a teoria dos salários que mais tarde Ferdinand Lassale designaria por lei
de bronze dos salários: actuando em conjugação com a oferta e a procura de mão-
de-obra, leis naturais de evolução da população explicariam que o salário corrente
U m hom em tem sempre que viver do seu trabalho, c o salário que recebe tem, pelo
menos, de ser suficiente para o manter.Tem mesmo, na maior parte dos casos, de
ir um pouco além disso, dc outro modo scr-lhe-ia impossível manter um a família,
c a raça dc tais trabalhadores não perduraria para além da primeira geração”.
DEVE M A N TE R -SE B A IX O ?
Adam Smith distingue entre preço real do trabalho (“quantidade de bens neces
sários à vida e ao conforto que são dados em troca dele”) e preço nom inal do trabalho
(“quantidade de dinheiro que o trabalhador recebe), sustentando que “o trabalha
dor é rico ou pobre, bem ou mal remunerado, consoante o preço real, e não o
nominal, pago pelo seu trabalho”.
Pois bem. Adam Sm ith defende que “a recompensa real do trabalho, a quanti
dade real de bens necessários à vida e ao conforto que ela pode proporcionar ao
trabalhador, aumentaram no decurso deste século [a I a edição de Riqueza das
Nações é de 1776] talvez ainda em maior proporção que o seu preço monetário”.
Ele próprio pergunta: “devemos considerar esta melhoria das condições de
vida das classes mais baixas do povo como uma vantagem ou um inconveniente
para a sociedade?”
“A resposta parccc, à prim eira vista, absolutam ente óbvia - escreve S m ith 439.
O s criados, os trabalhadores agrícolas e os operários de diferentes tipos consti
tuem dc longe a maioria em qualquer grande sociedade política. E o que
m elhora as condições dc vida da m aior parte nunca pode ser considerado p re
judicial ao todo. N enhum a sociedade pode certamente ser florescente e feliz, se
a maior parte dos seus m em bros for pobre e desgraçada. A lem disso, não é mais
do que simples equidade que aqueles que alim entam , vestem c proporcionam
habitação a todo o conjunto dc pessoas, desfrutem de um a parcela do produto
do seu próprio trabalho que lhes baste para que andem eles próprios sofrivel
mente bem alim entados, vestidos e abrigados".
Q uer dizer: quem cria a riqueza deve receber, pelo menos, uma parte dela para
prover sofrivelmente às suas necessidades básicas (em termos compatíveis Mcom
um mínimo de humanidade”, nas palavras de Smith).
Outras razões justificam ainda o favor com que Adam Smith vê o aumento dos
salários reais:440
“A pobreza, em bora constitua um entrave ao casam ento, nem sem pre o im pe
de. E parece m esmo ser favorável à procriação. U m a mulher das Terras Altas,
meia m orta de fome, dá frequentem ente à luz mais de vinte filhos, enquanto
um a senhora fina regalada de mimos e muitas vezes incapaz de conceber um só,
c dois ou três deixam -na em geral exausta. A esterilidade, tão frequente entre
as mulheres elegantes, é muito rara entre as de posição inferior. O luxo, embora
talvez inflame a paixão do prazer, parece sempre enfraquecer c frequentem ente
destruir com pletam ente no belo sexo os poderes de procriação. M as a pobreza,
em bora não impeça a procriação, é extrem am ente desfavorável à criação dos
filhos. A tenra planta é produzida, mas, num solo tão frio, num clima tão
rigoroso, depressa murcha c morre. T em -se dito com frequência que não é
invulgar, nas Terras A ltas da Escócia, que um a mãe que tenha concebido vinte
filhos não chegue a ter dois vivos”.
Se a pobreza não permite aos trabalhadores a criação dos filhos, uma “remune
ração liberal do trabalho”, ao contrário, incentiva a multiplicação dos trabalhadores:
“Todas as espécies animais se multiplicam naturalm ente em proporção dos seus
meios de subsistência e não podem , em caso algum , m ultiplicar-se para além
deles. M as, num a sociedade civilizada, é som ente entre as classes inferiores do
povo que a escassez dos meios de subsistência pode im por limites à multiplica
ção da espécie hum ana, e só pode consegui-lo pela destruição de um a grande
parte das crianças a que os seus casamentos fecundos dão origem.
“Tem -se afirmado - continua A dam Sm ith - que, nos anos fartos, os trabalha
dores tendem geralmente mais para a ociosidade c, nos anos de carestia, se
revelam mais industriosos que habitualmente. Conclui-se, assim, que um a sub
sistência farta reduza sua actividade, enquanto uma subsistência parca a aum en
ta. Q ue um pouco mais dc abundância do que lhes é habitual pode tornar ociosos
alguns trabalhadores, é facto que não pode pôr-se em dúvida; mas que esse efeito
atinja a maioria, ou que os homens em geral trabalhem melhor quando estão mal
alimentados do que quando comem o suficiente, quando estão desanimados do
que quando estão dc boa disposição, quando estão doentes com frequência do
que quando estão habitualm ente dc boa saúde, não parccc m uito provável. O b
serva-se que os anos de fome são, cm geral, para a arraia-miúda, anos de doença
c m orte, que não podem deixar de dim inuir o produto do seu trabalho”.
situação previamente despoletada por um outro factor (...). A lei da população não tende por si só a deslocar o
salário para o nível mínimo de subsistência."(cfr. C. LARANJEIRO, 90/91)
443 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,200-203.
A v elã s N u n e s - 4 1 3
3 .2 . A T E O R IA DA R EN D A
A renda é, para Adam Smith, “o preço pago pela utilização da terra”. Este
preço (a renda da terra), a renda absoluta - explica Sm ith - “não varia só com a
respectiva fertilidade, sejam quais forem os produtos nela cultivados, mas também
com a sua localização, seja qual for a respectiva fertilidade”. Esta renda é exigida
pelos proprietários da terra - “mesmo pelas suas produções naturais”, observa
Smith - “logo que toda a terra de um país se torna propriedade privada.
A análise da renda em Riqueza das Nações parte, pois, de um determinado esta
tuto de propriedade da terra, pressupõe um certo tipo de relações sociais de produ
ção. A possibilidade de exigência de uma renda pela utilização da terra decorre de
uma situação de escassez natural de terra (a terra existe em quantidade limitada)
na qual assenta o poder de monopólio dos seus titulares, o qual “se manifesta - como
nota Napoleoni 445 - pela manutenção dos preços dos produtos agrícolas a um
nível mais elevado do que o justificado pelo nível da produção agrícola”. Em
circunstâncias normais, estes receberão dos rendeiros tudo o que resta do valor do
produto da terra depois de pagos os salários e de retirados os “lucros médios
auferidos pelos capitais empregados nas explorações agrícolas vizinhas”.
Assim o exprime Adam Smith:
“A renda da terra, considerada como o preço pago pelo uso da terra, constitui
naturalm ente um preço de monopólio. N ão é por qualquer forma proporcional
àquilo que o proprietário possa ter despendido na respectiva beneficiação, ou ao
valor que se lhe torna possível exigir; é-o, sim, àquilo que o rendeiro tem
possibilidade dc pagar”. [Sublinhado nosso]
Exige, por vezes, renda por terras em que o hom em não tem qualquer possibi
lidade de introduzir melhorias”.*4®
dadc do trabalho. A verdade, no entanto, é que Riqueza das Nações começa pela
demonstração de que a produtividade do trabalho depende da divisão do trabalho e
não de qualquer dom da natureza. Por outro lado, a teoria do valor smithiana
implica o abandono da noção fisiocrática de produtividadefísica, para se tomar em
consideração a produtividade em termos de valor.
No trecho acima transcrito Smith fala da fertilidade natural da terra, fala dos
poderes da natureza e do produto que resulta destes poderes, produto que tem um
valor, o qual se explica pela circunstância de que, “na agricultura, a natureza traba-
Ihajuntamente com os homens”, (sublinhado nosso) Ao contrário do que se veri
fica na indústria (“nela a natureza nada produz, todo o trabalho é do homem”),
parece que Smith admite aqui que a maior produtividade do trabalho empregado
na agricultura se deve aos tais poderes da natureza (que fazem lembrar o dom da
natureza dos fisiocratas), que fariam com que a natureza também ‘trabalhasse’,
com que a natureza produzisse um produto que tem um valor.
O que, em última instância, Smith parece esquecer aqui é a defesa que ele
próprio faz - como vimos - de que o trabalho é a única origem do valor, de que só
o trabalho produtivo cria um excedente, de que o que conta - como causa do valor
- é o trabalho enquanto tal, o trabalho abstracto, e não qualquer tipo de trabalho
concreto, cujas características dependeriam do objecto sobre que ele incide.
Este ponto fundamental da teoria do valor-trabalho está necessariamente pressu
posto, porém, no entendimento da renda como “dedução ao produto do trabalho
que se emprega na terra”, i.é, como “uma parte de quase todos os produtos que o
trabalhador nela pode criar ou colher”. Segundo este entendim ento (cfr. a teoria
dedutiva a que nos referimos anteriormente), todo o valor é criado pelo trabalho;
o trabalho (o trabalhoprodutivo) não só é capaz de reproduzir o seu próprio salário
como gera ainda um excedente que vai ser distribuído em rendas e lucros (as duas
deduções ao produto do trabalho referidas por Adam Smith).
Esta ideia transparece igualmente na referência de Adam Smith aos proprietá
rios de terras como aqueles que “gostam de colher o que nunca semearam” e que
podem fazê-lo - i.é, que podem receber um “rendimento que não custa trabalho”,
que podem exigir, a título de renda, “uma parte daquilo que o seu trabalho [do
trabalhador que se ocupa da terra] colheu ou produziu” - porque disfrutam do
poder de monopólio acima caracterizado.452
452 Cfr. Riqueza das Nações, 1 ,151 e 475. Não é, de resto, lisonjeira a apreciação que Smith faz dos proprietários
de terras (ú/f. loc. c/f.):
"Eles constituem a única das três classes a quem o rendimento não custa trabalho nem cuidados, chegando até
eles como que de moto-próprio, independentemente de qualquer plano ou projecto da sua responsabilidade.
A indolência, que é a consequência natural da despreocupação da situação de que disfrutam, torna-os, dcma-
4 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
3.3. A T E O R I A D O LUCRO
Até Adam Smith, pode dizer-se que as condições históricas não permitiram
separar claramente o lucro de outras espécies de rendimento (salários, rendas e
juros), e muito menos tornaram possível a definição rigorosa do novo conceito de
lucro do capital e sua distinção das outras categorias de rendimento.453
É precisamente em Riqueza das Nações que o lucro do capital aparece identifica
do como uma nova categoria geral de rendimento de que beneficiam todos os que
utilizam a riqueza acumulada para contratar, como assalariados, trabalhadores pro
dutivos. Esta nova categoria distingue-se da renda da terra, dos salários dos traba
lhadores e do juro cobrado pelo empréstimo de dinheiro.
“O produto de quase todo o restante trabalho está sujeito a um a dedução
[sem elhante à representada pela renda da terra], devida ao lucro. E m todas as
artes c ofícios, a m aior parte dos trabalhadores necessita dc um patrão que lhe
adiante as m atérias-prim as para o seu trabalho, bem como os respectivos salá
rios e m anutenção até que ele se ache terminado. O patrão com participa do
produto do trabalho, ou do valor que ele acrescenta às matérias-primas sobre as
quais se aplica; e nessa comparticipação consiste o lucro”.
Vimos atrás em que consiste, segundo Adam Smith, a renda da terra. Mas o
lucro do rendeiro capitalista (patrão que emprega trabalhadores produtivos assalari
ados) não se confunde com a renda da terra:4S4
“É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o emprega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, e que não teria qualquer interesse cm empregá-
lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se o respectivo
capital lhe não fosse restituído com um lucro. Este lucro corresponde a um a
segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra”.
siadas vezes, nào só ignorantes, mas incapazes daquela aplicação do espírito necessária para prever e com
preender as consequências de qualquer regulamento público”.
453 Cfr. R. M EEK, Economia e ideologia, cit.,33 ss.
454 Cír. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,175.
A v el A s N u n e s - 4 1 9
suposto trabalho dc inspecção e direcção. São unicam ente determ inados pelo
valor do capital empregado, e são maiores ou m enores consoante o volume
desse capital.
Entre estes princípios diferentes deve referir-se que os “lucros do patrão” (“os
lucros do empresário do trabalho, que arrisca o seu capital nesta aventura”) se
relacionam com “o volume de matérias-primas e salários por ele adiantados”. Isto
é: a taxa de lucro mede-se em função do montante do capital adiantado para o
desenvolvimento da actividade produtiva (para o pagamento dos salários, das ma
térias-primas e dos restantes meios de produção).
Finalmente, Smith distingue o lucro do capital do juro que auferem os que
emprestam dinheiro.456
Diferentemente do lucro (“rendimento obtido do capital por aquele que o ad
ministra ou emprega”), o juro (ou “usura do dinheiro”) é caracterizado como o
rendimento “que deriva do capital que a própria pessoa não emprega, mas empres
ta a outros”. O juro - continua Adam S m ith -
“é a compensação que o mutuário paga ao m utuante pelo lucro que ele lhe dá
possibilidade dc obter pela utilização do seu dinheiro. Parte do lucro pertence
naturalm ente ao mutuário, que corre o risco e tem o trabalho de o empregar, c
parte ao m utuante, que lhe proporciona a oportunidade dc obter esse lucro. O
juro do dinheiro é sempre um rendim ento derivado que, se não for pago a partir
do lucro obtido pela utilização desse dinheiro, terá de sé-lo com base em qualquer
outra fonte de receita, a menos que, p or acaso, o mutuário seja um esbanjador
que contraia um a segunda dívida a fim dc pagar os juros da primeira”.457
O aum ento dc volume de capital acumulado, que faz subir os salários, tende a
fazer baixar os lucros. Q uando os capitais de m uitos ricos mercadores são
investidos na m esm a actividade, a concorrência que m utuam ente se fazem
tende naturalm ente a reduzir os lucros de cada um; e, quando se verifica um tal
aum ento de capital em todas as actividades levadas a cabo num a sociedade, essa
m esm a concorrência deverá produzir idêntico efeito em todas elas”.
Esta mesma ideia surge em outros passos de Riqueza das Nações. Neste, por
exemplo (1,215/216):
“N um a sociedade próspera, as pessoas que têm grandes volumes dc capital para
empregar não podem muitas vezes obter o número dc trabalhadores de que
necessitam, o que as leva a concorrer umas com as outras, procurando conseguir
tantos quanto possível, e elevando assim os salários do trabalho, ao mesmo
tem po que reduzem os lucros do capital. N as partes distantes do país, não há
muitas vezes capital suficiente para empregar toda a gente, o que leva os trabalha
dores a competirem uns com os outros no sentido de obter emprego, baixando
assim os salários do trabalho e fazendo com que se elevem os lucros d o capital”.
D o que fica dito poderá concluir-se também a compreensão (que Marx desen
volveria e esclareceria) de que a dinâmica do processo de produção capitalista
assenta na obtenção de lucros. Como salienta Ronald Meek, “em Riqueza das Nações
a tendência para maximizar o lucro e para acumular capital apresenta-se como o
requisito essencial e a causa básica do crescimento da riqueza”.461
Nas economias pré-capitalistas, a produção destinava-se à satisfação de neces
sidades: ou pelo consumo dos próprios bens que cada um produz, ou por troca de
uma parte destes bens por outros que esse indivíduo não produz, mas de que
igualmente carece. A troca (directa ou monetária - servindo a moeda como simples
intermediário nas trocas) visa apenas proporcionar a cada interveniente uma satisfa
ção mais adequada das necessidades, mediante a obtenção de um valor de uso
maior do que aquele que se dá.
Na economia capitalista, o processo assenta na iniciativa do capitalista: quem
dispõe de dinheiro acumulado vai utilizá-lo na compra de força de trabalho e de
meios de produção, com vista à produção de mercadorias que destina à venda no
mercado, para obter mais dinheiro do que aquele que utilizara. Já não se pretende
obter, por troca com os bens produzidos, outros bens diferentes com valor de uso
diferente, mas sim a expansão quantitativa do valor de troca. A obtenção de mais
dinheiro (Marx falará de Mehrwert: mais valor ou mais-valia), é, pois, o objectivo
directo e o incentivo determinante da produção nos quadros do capitalismo.
4. As C A U SA S D A R IQ U E Z A D AS N A Ç Õ E S
A seu ver, a causa principal da riqueza das nações reside no trabalho produtivo.
Assim começa a introdução do famoso livro de Smith:
“O trabalho anual de um a nação é o fundo de que provém originariam ente
todos os bens necessários à vida c ao conforto que a nação anualm ente conso
me, e que consistem sem pre ou em produtos im ediatos desse trabalho, ou em
bens adquiridos às outras nações em troca deles".
Noutro passo, Smith escreve que, “se exceptuarmos alguns produtos espontâ
neos da terra, a produção anual total é, com efeito, devida ao trabalho produtivo”.
O bem-estar de uma nação (“a maior ou menor proporção” em que se apresente
a produção “relativamente ao número daqueles que vão consumi-la”) é regulado -
escreve Adam Smith - por duas circunstâncias diferentes:
“em prim eiro lugar, pela perícia, destreza e bom senso com que o seu trabalho
é geralm ente executado; e, em segundo lugar, pela proporção entre o núm ero
dos que estão empregados em trabalho útil e o daqueles que o não estão. Sejam
quais forem o solo, o clima c a extensão do território de um a nação, a abundân
cia ou a escassez do seu suprim ento anual dependerão sempre, cm cada caso
particular, dessas duas condições.” (Riqueza das Nações, 1 ,69/70)
462 É muito conhecido o exemplo do fabrico de alfi netes relatado na Riqueza das Nações. É um exemplo extraído
da actividade industrial. Smith observa, aliás, que, "por natureza, a agricultura nào admite tantas subdivisfies do
trabalho como a indústria, nem uma completa separaçáo entre as diferentes tarefas." (Cfr. Riqueza das Nações,
cd. c it, 1,77-81).
Antes de Smith, já os enciclopedistas franceses se tinham apercebido da importância da divisáo do trabalho
como factor dc elevação da produtividade nas manufacturas. Cfr. C. FURTADO, cit., 40.
463 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,83.
A v elà s N u n es - 4 2 5
Neste contexto é que podemos inserir o relevo que ganha, na obra de Adam
Smith, o papel atribuído ao comércio externo e à especialização à escala internacional,
antecipando o optimismo que Ricardo associará, em moldes teóricos mais elabora
dos, à prática do livre comércio internacional.
Sigamos de novo Adam Smith:464
“Sejam quais forem os locais entre os quais o comércio externo se exerça, todos
retiram dele duas vantagens distintas. Faz sair a parte exccdentária da produção da
terra c trabalho, para a qual não existe procura, e, em troca, traz ao país algo para o
qual existe procura. Confere um valor ao que é supérfluo, trocando-o por qualquer
outra coisa, que pode vir a satisfazer parte das suas necessidades e aumentar a sua
satisfação. Devido a ele, a insuficiência do mercado interno não impede que a
divisão do trabalho atinja em qualquer ramo particular da actividade ou manufactura
a maior perfeição. A brindo um mercado mais amplo para toda e qualquer produ
ção de trabalho que exceda o consumo interno, vai encorajá-las a melhorar as suas
forças produtivas e a aumentar a sua produção anual até ao máximo e, assim, a
aumentar o crédito real e a riqueza da sociedade. Estes são os grandes e importantes
serviços que o comércio externo vem prestando a todos os países onde se efectua”.
464 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,9 9 ,745 e 759.
465 Ronald Meek põe em destaque a ideia de que "a intensa acentuação da função económica do lucro do capital
e da acum ulação do capital é o que mais decisivamente dá unidade e força á estrutura da Riqueza das
Nações". (Cfr. R. M EEK, Economia e Ideologia, cit., 36).
4 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a
(...)Tal com o a acumulação dc capital deve, pela própria natureza das coisas, ser
anterior à divisão do trabalho, assim tam bém o trabalho só poderá subdividir-
se cada vez mais na m edida cm que se tenha previamente acum ulado mais e
mais capital”.
Mas isto significa que Adam Smith considera que o crescimento é um proces
so self-reinforcing. como o aumento da riqueza produzida favorece os lucros, dele
resulta o aumento da parte do rendimento que é poupada e que vai ser acrescenta
da ao capital existente; o aumento da acumulação do capital vai, por sua vez,
aumentar a procura de trabalhadores produtivos, cuja actividade vai traduzir-se
em novo aumento de riqueza. E assim por diante. Esta confiança no processo de
crescimento auto-sustentado é um dos afloramentos do optimismo que ressalta de
toda a obra de Adam Smith.
É precisamente esta capacidade de acumulação que distingue a sociedade capi
talista da sociedade feudal. Nesta, o fim da produção é, em larga medida, o de
satisfazer o consumo senhorial, o que significa que o excedente se destina quase
exclusivamente à manutenção de trabalhadores improdutivos. As economias fica
vam, assim, condenadas a uma situação estacionária. Na sociedade capitalista, os
capitalistas, enquanto classe social, não são considerados por Sm ith como consu
midores puros. Uma parte do excedente que eles recebem a título de lucro vai ser
convertida em capital adicional, isto é, vai ser utilizada para empregar um maior
número de trabalhadores produtivos:
“L ogo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos dc determ inadas
pessoas, algum as delas utilizá-la-ão naturalm ente para assalariar indivíduos
industriosos a quem fornecerão m atérias-prim as c a subsistência, a fim dc
obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse
trabalho acrescenta ao valor das m atérias-primas”.468
469 Cfr. Riqueza das Nações, ed. ciL, 1,476. Noutro ponto da Riqueza das Nações (1,634), Adam Smith observa que
'quando o capital de um país nâo for suficiente para atender àquelas três finalidades (manter o cultivo, as
manufacturas e os transportes!, quanto maior for a parte dele empregada na agricultura, tanto maior será a
quantidade de trabalho produtivo que ele movimentará dentro do país, e o mesmo acontecerá com o valor
acrescentado pdo emprego desse capital ao produto da terra e do trabalho da sociedade em cada ano. A seguir
à agricultura, é o capital empregado nas indústrias que movimenta a maior quantidade de trabalho produtivo
e acrescenta o maior valor ao produto anual. O que é empregado no comércio de exportação é o que, dos trés,
produz o menor efeito'. Perpassa aqui um certo apego à valorização fisiocrática da agricultura.
470 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,600.
471 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,494/49S e 600.
A v elAs N u n e s - 4 2 9
(...) O produto anual da terra e do trabalho do país é agora, sem dúvida, muito
superior ao registado ao tem po quer da restauração, quer da revolução. Deve,
por conseguinte, ser tam bém m uito elevado o capital anualm ente em pregado
no cultivo das suas terras e na m anutenção do seu trabalho. N o m eio dc todas
as exigências do governo, esse capital foi silenciosa c gradualm ente acumulado
pela frugalidade c bom em prego dos capitais por parte dos particulares, pelo
seu universal, contínuo e ininterrupto esforço para m elhorar a situação de cada
um. Foi cstc esforço, protegido pela lei e acompanhado da liberdade de exer
cer-se da form a mais proveitosa, que manteve a Inglaterra no cam inho da
riqueza c do progresso, em todos os tem pos passados, e esperamos bem que o
continue a conseguir em todos os tem pos vindouros. C ontudo, assim com o a
Inglaterra nunca beneficiou de um governo frugal, tam bém jam ais contou a
parcimónia entre as virtudes características dos seus habitantes. Por consequência,
constitui a m aior im pertinência c presunção por parte dos reis e m inistros o
pretenderem fiscalizar a economia dos cidadãos e restringir os seus gastos, seja
através de leis sum ptuárias, seja pela proibição da importação de bens de luxo.
Eles são sem pre, e sem excepção, os maiores perdulários que existem na soci
edade. C uidem bem dos seus próprios gastos c poderão confiadam ente deixar
aos particulares o cuidado dos deles. Se a extravagância dos governantes não
arruinar o estado, poderem os estar certos de que a dos súbditos jam ais o fará”.
“Todo o homem - escreve Smith -, desde que não viole as leis da justiça, tem direito
a lutar pelos seus interesses como melhor entender e a entrar em concorrência, com a sua
indústria e capital, com os de qualquer outro homem, ou ordem de homens”.
“Um homem só aplica capital numa indústria com vista ao lucro”. E, actuando
desta forma, cada homem “só está a pensar na sua própria segurança”; “na realida
de, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que
ponto o está a fazer”. Não obstante, Adam Smith sustenta que, dessa forma, “cada
um trabalha, necessariamente, para que o rédito anual da sociedade seja o maior
possível, (...) guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte
das suas intenções”.476
Seria assim, pelo menos, numa sociedade ideal que Adam Smith configura
como “uma sociedade onde se permitisse que as coisas seguissem o seu curso
natural, onde houvesse liberdade perfeita e onde cada homem fosse totalmente
livre de escolher a ocupação que quisesse e de a mudar sempre que lhe aprouvesse.
O seu próprio interesse - observa o autor - o levaria a procurar os empregos
vantajosos e a evitar os desfavoráveis”. Cada indivíduo - conclui Adam Smith -,
“ao tentar satisfazer o seu próprio interesse, promove, frequentemente, de um modo
mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer”.
“Na verdade, aquilo que [cada indivíduo] tem em vista é o seu próprio benefício e
não o da sociedade. Mas o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente- ou
melhor, necessariamente - , a preferir o emprego mais vantajoso para a socieda
de”.477 (o sublinhado é nosso)
Esta confiança no individualismo e nas virtudes do “sistema de liberdade natu
ral” radica numa antropologia optimista que representa a ultrapassagem do pessimis
mo característico da filosofia social de Hobbes.
Segundo Hobbes, a natureza humana é essencialmente egoísta. E o egoísmo
transformaria o homem no inimigo do homem (homohomini lupus), caracterizan
do-se o estado dc natureza como um estado de guerra permanente (bellum om-
mium contra omnes). A antropologia pessimista que informa o seljish system
hobbesiano arrasta a conclusão de que a sociedade civil não pode constituir-se
sem a intervenção coerciva do estado, a qual implica que os homens renunciem à
sua própria liberdade.
Ao irracionalismo deste estado natural de guerra vem Locke contrapor uma lei
racional, eventualmente inspirada pela natureza divina, que o leva a uma visão antro
pológica optimista. No estado de natureza, o homem é essencialmente bom, só não
se realizando a harmonia porque a natureza física é avara, o que implica a afirmação
da desigualdade natural como a outra característica do estado de natureza.
Porque se trata de desigualdade natural, o estado não pode pretender superá-la.
Em Locke o estado já não é configurado como a fonte da sociedade civil, mas
também não se lhe reconhecem condições para resolver o conflito social inerente
a uma sociedade que assenta na liberdade de cada indivíduo. Liberdade que con
476 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,284 e 757/758. Sublinhado nosso.
477 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,231/232 e 757/758.
4 3 4 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a
Adam Smith critica Mandeville por considerar como vícios certas qualidades
(ou paixões) que, cm seu juízo, o não são. Em termos tais - enfatiza Smith - que
“até uma camisa lavada ou uma habitação confortável são um vício. (...) É graças
a este sofisma que chega à sua conclusão predilecta de que os vícios privados
constituem virtudes públicas”. No entanto, Smith não deixou de reconhecer que o
sistema do Dr. Mandeville estava, “em alguns casos, muito próximo da verda
de”.480 Compreende-se, por isso, a sintonia de certas passagens de Riqueza das
Nações com a tese de Mandeville.
Dois trechos para o comprovar:481
“O esforço natural de cada indivíduo para melhorar a sua própria condição cons
titui, quando lhe é permitido cxerccr-se com liberdade c segurança, um princípio
tão poderoso que, sozinho e sem ajuda, c não só capaz de levar a sociedade à
riqueza e prosperidade, mas tam bém de ultrapassar centenas dc obstáculos ino
portunos que a insensatez das leis humanas demasiadas vezes opõe à sua actividade”.
480 Cfr. Riqueza das Nações (Introdução do Editor), ed. cit., 1,58/59.
481 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., II, 68 e 1,94/95 [sublinhados nossosl.
4 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
482 Cfr. M. D O BB, Teorias..., cit., 55; C. NAPOLEONI, últ.ob. c/f., 36/37 e M . B L A U G ,H istó ria ...,cit.,59-65.
483 Cfr. C . LARANJEIRO, ob. cit., 68.
484 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c it , 1,755-758.
A v elã s N u n es - 4 3 7
ras” - como o próprio Smith põe em relevo - “um grande número de pessoas não
exerce qualquer actividade e muitas delas consomem o produto de dez vezes, fre
quentemente de cem vezes, mais trabalho do que aqueles que as exercem”, admiti
rá Adam Smith uma qualquer intervenção do estado com fins correctivos?
De modo nenhum:
“Ferir os interesses de um a dasse dc cidadãos, por mais ligeiramente que possa
ser, sem outro objectivo que não seja o de favorecer os dc qualquer outra classe, é
uma coisa evidentemente contrária àquela justiça, àquela igualdade dc protecção
que o soberano deve, indistintam ente, aos seus súbditos dc todas as classes”.486
Com o bom liberal, Adam Smith defende que o máximo de utilidade social se
consegue quando a vida económica decorre naturalmente, prosseguindo cada um o
seu próprio interesse. A vida económica, assim entendida, é o fundamento da soci
edade civil, o princípio da própria existência do estado, cujas funções devem res
tringir-se ao mínimo compatível com a sua capacidade para garantir a cada um e a
todos, em condições dc plena liberdade, o direito de lutar pelos seus interesses
como melhor entender.
“O soberano - escreve Smith 487 - fica totalm ente liberto (...) do dever de
superintender o trabalho das pessoas privadas e dc o dirigir para as actividades
mais necessárias à sociedade. Segundo o sistema de liberdade natural, o soberano
tem apenas três deveres a cumprir.Três deveres de grande importância, na verda
de, mas simples e perceptíveis para o senso comum: cm primeiro lugar, o dever de
proteger a sociedade da violência e das invasões dc outras sociedades independen
tes; em segundo lugar, o dever dc proteger, tanto quanto possível, todos os
membros da sociedade da injustiça ou opressão dc qualquer outro m em bro, ou o
dever de estabelecer uma administração da justiça; c, em terceiro lugar, o dever de
criar c preservar certos serviços públicos c certas instituições públicas que nunca
poderão ser criadas ou preservadas no interesse de um indivíduo ou de um peque
no núm ero de indivíduos, já que o lucro jamais reembolsaria a despesa dc qual
quer indivíduo ou pequeno número dc indivíduos, embora possa, muitas vezes,
fazer mais do que reembolsar esse lucro a uma grande sociedade”.
vil” e compreende-se que uma das funções do estado seja a da administração exacta
da justiça, uma vez que ué só com a protecção do magistrado civil que o dono dessa
valiosa propriedade, adquirida com o trabalho de muitos anos ou, talvez, de muitas
gerações, poderá dormir em segurança”. “A aquisição de propriedades valiosas e
vastas - conclui Adam Smith - exige, necessariamente, o estabelecimento de um
governo civil. Quando não há propriedades ou, pelo menos, propriedades que
excedam os dois ou três dias de trabalho, o governo civil não será tão necessário”.
Eis o que o próprio Smith escreve acerca do aparecimento e evolução do estado:488
“C om o, entre caçadores, raram ente existe a propriedade ou, pelo m enos, p ro
priedades superiores a dois ou três dias de trabalho, raram ente existe qualquer
magistrado, ou qualquer adm inistração regular da justiça”.
Logo a seguir, Adam Smith torna bem clara a sua concepção do estado en
quanto instrumento de defesa dos proprietários contra aqueles que não dispõem da
propriedade do capital. Na esteira de Locke (Civil Government, § 94: “o governo
488 cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,316 e II, 315-322.
4 4 0 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a
não tem qualquer outro objectivo que não seja a preservação da propriedade”),
Smith defende que Mo governo civil, na medida em que é instituído com vista à
segurança da propriedade, é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos
em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detri
mento daqueles que nada possuem”.
São afirmações como esta que levam, por certo, M ark Blaug a sustentar que,
nesta Parte II do Cap. I do Livro V de Riqueza das Nações, Smith “apresenta uma
teoria ‘marxista do estado”.489
Fica agora mais claro porque é que, em plena coerência consigo próprio, Adam
Smith rejeita a intervenção do estado com vista à correcção das injustiças: exacta
mente porque sabe qual é o verdadeiro papel do estado e aceita que ele deve
cumprir a sua função, que é “a defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles
que têm alguma propriedade em detrimento daqueles que nada possuem”.
Por outro lado, resulta dos escritos de Adam Smith a ideia (comum aos autores
da escola clássica) de que a propriedade (a acumulação do capital) é o fruto da
“frugalidade” e da “prudência” de alguns, é “adquirida com o trabalho de muitos
anos ou, talvez, de muitas gerações”.
Adam Sm ith pensa, além disso, que todos podem ser proprietários, mesmo o
mais pobre dos homens, “se for frugal e industrioso”. D ir-se-ia que “o ódio ao
trabalho e a tendência para a preguiça e para o ócio nos pobres” é que explicam as
diferenças sociais.
Estas não seriam, aliás, tão gritantes como poderiam sugerir certas passagens
de Riqueza das Nações que atrás transcrevemos.
Acompanhemos Smith:490
“Nas nações civilizadas c prósperas, embora um grande número de pessoas não
exerça qualquer actividade e muitas delas consumam o produto dc dez vezes,
frequentemente de cem vezes, mais trabalho do que aquelas que as exercem, ainda
assim o produto dc todo o trabalho da sociedade é tão grande que, em geral, se
encontram abundantemente providas, c um trabalhador, ainda que da classe mais
baixa c mais pobre, se for frugal e industrioso, poderá usufruir de uma quota-parte
maior de bens necessários à vida c ao conforto do que qualquer selvagem”.
489 Cfr. M. BLA U G , últ. ob. cit, 61. É também de Mark Blaug este comentário: 'Quando lemos as suas análises sobre
a evolução do governo civil, da justiça, das forças armadas e da família, torna-se evidente que ele tinha ideias
claras sobre a natureza do processo histórico. Como outros autores escoceses da época, v.g. Adam Ferguson,
John M illar, W illam Robertson e mesmo Oavid Hume, ele expõe uma filosofia da história que atribui uma
importância fundamental à natureza e à distribuição da propriedade. Não é exagerado descrever estes ho
mens como os precursores da 'concepção materialista da história'".
490 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,70/71.
A v elã s N u n es - 441
1. A U T IL ID A D E E A T E O R IA D O VALOR
492 Como comenta A. SEDAS NUNES (História..., cit., 262), "a Ciência revelaria, com efeito, sendo uma fisiologia,
porquê e como seria racional, por que significaria precisamente o respeito da fisiologia do corpo social, o
respeito das leis por que se exprime a ordem fisiológica das sociedades - ou, noutros termos ainda: o respeito
da própria natureza da sociedade, apreendida no dado de observação científica e n5o através de dedução
lógica, a partir de conceitos a priori
A v e ià s N u n e s - 4 4 5
J.-B. Say contraria, porém, em certa medida, não só os fisiocratas, mas também
a própria escola clássica inglesa, particularmente a distinção smithiana entre tra
balho produtivo e trabalho improdutivo. Com efeito, Say considera trabalhadores
produtivos todos os que “fornecem uma utilidade verdadeira, em troca dos seus
salários”, desde o médico ao militar e ao administrador da coisa pública. Em
correspondência polémica com D upont de Nemours, escreve Say:
“Segundo o nosso respeitável Q uesnay e os seus respeitáveis discípulos, só a
matéria é um a mercadoria, quando é vendável. Segundo S m ith c a sua escola,
o trabalho é tam bém um a mercadoria quando é vendável; e segundo o hum ilde
discípulo que vos escreve, o trabalho do barbeiro é um a mercadoria igualmente
vendável, em bora m e tenha cortado a barba c não m e ten h a deixado nenhum
objecto em seu lugar. D eu-m e os seus serviços e eu consum i-os; mas, em bora
destruídos, são produto, pois satisfizeram um a das m inhas necessidades, do
m esm o m odo que a maçã que o senhor comeu à sobremesa, quefoi destruída
também, mas que era um a riqueza, pois podia fazer algum bem”.
A par do trabalho (a que Say chama indústria), intervêm, pois, como factores
de produção, produtosjá existentes, i.é, o capital. Fazendo entrar na sua análise a
figura do empresário que reúne os factores de produção, Say como que coloca na
mesma posição os capitalistas e os trabalhadores: uns e outros dependem dos
empresários que lhes compram os seus serviços. Enquanto em A. Smith as relações
de produção se estabeleciam entre o detentor de capitais e os trabalhadores que ele
contratava, agora as relações de produção são desencadeadas pelo empresário, que
vai comprar os serviços produtivos aos capitalistas, aos trabalhadores e aos donos
da terra.
Enquanto Adam Smith apontara as injustiças a que conduz o jogo dos meca
nismos naturais, embora aceitando que nada poderia fazer-se em contrário, Say
pretende mostrar, por este caminho, que, numa sociedade liberal, cada um recebe,
pela sua contribuiçãoprodutiva, a remuneração adequada, não havendo discrepân
cia entre a distribuição natural dos rendimentos e a justiça social.
Segundo a concepção de Say, quer a terra, quer o trabalho, quer o capital,
trazem uma contribuição natural para a produção. E a renda, o salário e o lucro
fixar-se-iam independentemente uns dos outros, formando-se o valor dos bens (o
preço, igual ao custo de produção, por que se venderiam os bens em virtude da
concorrência entre os produtores) pela soma das despesas efectuadas com os três
factores de produção.
Já se vê como Say se afasta, também neste ponto, da teoria da distribuição do
rendimento de Smith, agora por forma a evitar certos conflitos de interesses que
este apontara. Ao contrário do que Smith defendia, Say entende que os proprietá
rios de terras, os capitalistas e os trabalhadores não têm que dividir entre si o
produto total. O rendimento de cada uma destas classes determina-se autonoma
mente,, não limitando cada um deles o montante dos outros. Assim constrói Say
A v elà s N u n es - 4 4 7
uma visão harmoniosa da ordem social existente: “Cada um dos três grandes mei
os de produção - escreve Say - é tanto mais recompensado, isto é, retira tanto
maior parte da produção, quanto menos oferecido e mais procurado for, relativa
mente aos outros dois”.
3. A F IG U R A D O "E M P R E S Á R IO "
Por outro lado, os agentes da produção, hom ens e coisas, terras, capitais e
trabalhadores, oferecem-se em maior ou m enor quantidade, de acordo com
diversos motivos (...), e form am assim a outra base d o valor que se estabelece
para esses mesmos serviços".
4. A LEI D O S M E R C A D O S D O S PRODUTOS (L E I D E S a y )
Escreve Say:
“o hom em cuja indústria sc aplica a dar valor às coisas, tornando-as úteis para
qualquer fim , só pode esperar que esse valor seja apreciado c pago quando os
outros hom ens disponham de meios para fazer a aquisição. O ra, em que co n
sistem estes meios? E m outros valores, outros produtos, frutos da sua indústria,
dos seus capitais, das suas terras; donde resulta, apesar de em prim eira análise
tal parecer um paradoxo, que é a produção que abre mercados aos produtos”.
E Say conclui: “E, pois, com o valor dos produtos, transformado momentane
amente numa soma de dinheiro, que se compram, que todas as pessoas compram
as coisas de que cada um tem necessidade”.
“Lcs produits s’échangent contre les produits”. A moeda não passaria de simples
intermediário nas trocas.
A v e lã s N u n e s - 4 4 9
Como Adam Smith, Say parte do princípio de que todo o aforro éinvestido, afastan
do assim, dentro do entendimento da loides débouchés, a possibilidade da ocorrência de
crises de sobreproduçãogeral nas economias capitalistas. “O equilíbrio não deixaria de se
verificar, se os meios de produção estivessem entregues à sua liberdade”. O liberalismo
asseguraria, pois, uma plena harmonia de interesses. Say admite apenas a sobreprodução
parcialde certas mercadorias, “quer porque foram produzidas em quantidades demasi
ado grandes, quer mais propriamente porque outras produções são insuficientes. Cer
tos produtos superabundam porque outros faltam”. Simplesmente, tais situações de
desequilíbrio parcial seriam sempre transitórias, pois a subida dos preços das produ
ções insuficientes incentivaria o aumento da sua produção, criando-se assim os meios
de compra das mercadorias até aí existentes em excesso.
Eis a síntese de Say:
“L im itar-m e-ei a fazer notar, aqui, que um a deficiência no escoam ento de um
produto não é mais do que o resultado de um a obstrução cm um ou em vários
dos canais da indústria; que nesses canais se encontram , então, quantidades
m aiores de produtos do que as necessidades gerais reclam am e que é sempre
porque outros canais, longe dc estarem obstruídos, se encontram pelo contrá
rio desprovidos de vários produtos que, cm vista da sua raridade, são tão procu
rados com o os prim eiros o são pouco. É porque a produção dos produtos
escassos é reduzida que os produtos superabundantes não se vendem e o seu valor
se altera. E m term os mais vulgares, m uita gente com pra menos porque menos
ganha; c ganham m enos porque encontram dificuldades no em prego dos seus
m eios dc produção, ou porque lhes faltam esses meios.
Assim, verifica-se que as épocas em que certos géneros não se vendem bem são
precisam ente aquelas em que outros géneros alcançam preços excessivos; c
como os preços elevados servem de motivo para favorecer a produção, é preciso
que haja causas maiores ou meios violentos, como desastres naturais ou políti
cos, a avidez ou a incom petência dos governos, para que se m antenha forçosa
m ente esta penúria num lado, que causa um a obstrução no outro. D esapareci
da essa causa de moléstia política, os meios dc produção dirigem -se para os
canais vagos e o produto destes absorve o excesso dos outros; o equilíbrio
restabelece-se, e raram ente deixaria de existir se se deixassem os meios dc
produção entregues à sua inteira liberdade”.
C a p ítu lo VII
TH O M A S R o b e r t M althus
4 5 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
1 . O " p r in c íp io d a p o p u l a ç ã o "
493 Do Ensaio sobre o princípio da população, de Malthus (1798), existe uma edição em português, Europa-
América, Lisboa, s/d.
A v e ià s N u n e s - 4 5 3
(...) M as, com o - continua M althus - , em virtude dessa lei da nossa natureza
que torna o alim ento necessário à vida do homem , a população não pode nunca
aum entar, efectivam ente, para além da mais fraca quantidade de alim ento
capaz de m anter a vida, um freio enérgico da população, resultante da dificul-
4 5 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o í It ic a
A questão que se pôs então a Malthus foi a de saber se, para além desta implacável
lei da natureza, não haveria outros meios de limitar o desenvolvimento da população.
Pondo de lado os meios que se traduziam em aumento da mortalidade (antro
pofagia, infanticídio, imolação dos velhos, fome, epidemias, guerras), restavam os
meios de redução da natalidade. De entre estes, M althus negou eficácia à regula
mentação legislativa da idade dos casamentos e rejeitou, por contrárias à natureza e
portadoras de vícios, todas as formas artificiais de controlo da natalidade. E às
razões de ordem moral acrescentou M althus outro tipo de considerações:
“Sempre reprovei todos os meios artificiais e não naturais de lim itar a popula
ção, sim ultaneam ente cm razão da sua imoralidade e da sua tendência para
suprim ir um estim ulante necessário à actividade económica (industry). Se fos
se possível cada casal lim itar à vontade o núm ero dos seus filhos, seria certa
mente dc tem er que a indolência da raça humana aumentasse fortem ente (...)”.
2. A T E O R I A DA RENDA
É evidente que o preço não pode ser m enor, pois, se o fosse, a terra não seria
cultivada e o capital não seria empregado. E não se poderá, tão-pouco, exceder
sensivelm ente esse preço, pois a terra pobre sucessivamente cultivada dá um a
renda apenas dim inuta ou nula c o rendeiro que dispõe de capital terá sempre
interesse em investi-lo na sua terra se o produto suplem entar resultante da
operação assegurar plenam ente a rentabilidade desse capital, embora não renda
nada ao proprietário fundiário.
D este facto resulta que o preço do produto bruto, válido para a totalidade da
quantidade obtida, é o preço natural ou necessário, quer dizer, o preço necessá-
4 5 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a
rio para obter o m ontante actual do produto, em bora de longe a m aior parte
seja vendida a um preço muito superior ao que é necessário para a sua produção,
considerada a fracção que é produzida a m enor custo, enquanto o seu valor de
troca não aparecer dim inuído.
de um m ontante justam ente igual ao que pagou aos seus trabalhadores adicio
nais. Deve haver qualquer coisa na situação anterior da procura e da oferta da
mercadoria cm questão ou no seu preço, previamente à procura ocasionada pelos
novos trabalhadores e independentemente dessa procura, para que o emprego de
um núm ero adicional dc pessoas na produção seja garantido”.
B - M althus não ignora, por outro lado, que, além do consumo dos assalaria
dos, há ainda o consumo das outras classes. M as entende que o comportamento
destas é marcado por uma tendência para o subconsumo: elas não gastam todos os
seus rendimentos, aforrando uma parte, porventura excessiva. Escreve Malthus:
“Q uanto aos capitalistas reunidos cm proprietários e outras pessoas ricas, supo
mos que resolveram ser parcimoniosos e, privando-se dos seus prazeres, do seu
luxo ordinário, poupar dos seus rendim entos para aum entar o seu capital. (...)
O objectivo principal dc toda a sua vida é conseguir acumular um a fortuna à
força de econom ia”.
A v e ià S N u n es - 4 5 9
D a v id R ic a r d o
4 6 2 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o í It ic a
1 . R ic a r d o , f u n d a d o r d a e c o n o m ia p o l ít ic a a b s t r a c t a
Nasceu em 1772 e morreu em 1823 o mais importante teórico da Escola Clás
sica inglesa (“o economista mais distinto do nosso século”, como lhe chamou
Marx), que começou a interessar-se pelo estudo da Economia Política após a
leitura de Riqueza das Nações, em 1799.
Maurice Dobb considera que “Ricardo foi, por excelência, o profeta económico
da burguesia industrial”. E Keynes escreveu que “Ricardo conquistou a Inglaterra
tão completamente como a Santa Inquisição tinha conquistado a Espanha”, expli
cando este êxito de Ricardo “por um conjunto de simpatias entre a sua doutrina e o
meio em que foi lançada. O facto de (...) ela apresentar muitas injustiças sociais e
crueldades aparentes como incidentes inevitáveis na marcha do progresso, e os es
forços destinados a modificar este estado de coisas como susceptíveis de fazer, em
última análise, mais mal que bem, recomendava-a à autoridade. O facto de ela for
necer certas justificações às livres actividades do capitalista individual valia-lhe o
apoio das forças sociais dominantes agrupadas por detrás da autoridade”.
Alguns autores são talvez mais afirmativos. J. K. Ingram escreveu em 1907 que
a elevada reputação de que Ricardo gozou no seu tempo se ficou a dever, em boa
parte, a “um sentido dc apoio que o seu sistema deu aos industriais e outros capi
talistas no seu crescente antagonismo em relação à antiga aristocracia dos senho
res da terra”.494
Poderá talvez dizer-se que, antes de Ricardo, a economia política ignora o seu
objecto. A produção da riqueza era rodeada de uma certa dose de mistério e o
próprio conceito de riqueza estava longe de ser unívoco.
Antes de Ricardo, muitas das obras teóricas sobre problemas de economia
política incluíam no título palavras como inquiry, origin, recherche, ou outras de
sentido idêntico. Ricardo foi mais afirmativo e intitulou a sua obra maior On the
Principies ofPolitical Economy and Taxation.A9S
O objecto da economia política estava definitivamente encontrado, dispensan
do-se qualquer inquérito ou investigação para o descobrir. Sobre o valor é o título do
Capítulo I dos Princípios, podendo ler-se, como epígrafe da Secção I: “O valor de
um bem, ou seja, a quantidade de qualquer outro bem com o qual se possa trocar,
depende da quantidade relativa de trabalho necessária para o produzir e não da
maior ou menor remuneração auferida por esse trabalho”.
2. A TEORIA DO VALOR
O s bens que possuem utilidade vão buscar o valor de troca a duas fontes: à sua
escassez c à quantidade dc trabalho necessária para a sua obtenção.
H á alguns bens cujo valor c determ inado unicam ente pela sua escassez. A
quantidade de tais bens não pode ser aumentada pelo trabalho e, portanto, não
se pode reduzir o seu valor aum entando a oferta. Pertencem a esta classe
estátuas e pinturas célebres, moedas e livros raros e vinhos de qualidade que só
se podem fazer com uvas produzidas em terreno especial e disponível em
pequena quantidade. O seu valor é absolutamente independente da quantidade
de trabalho necessária para os produzir, mas, em contrapartida, varia com as
alterações na situação económica e nos gostos dos que os desejam possuir.
Porém , estes produtos representam um a parcela dim inuta da massa dos bens
diariam ente trocada no mercado. D e longe, a maior parte dos bens procurados
são obtidos por m eio do trabalho e podem ser multiplicados quase ilim itada
m ente não só num país mas cm muitos, se estivermos dispostos a utilizar o
trabalho necessário para os obter.
Por isso ao escrever sobre os bens, o seu valor de troca e as leis que regulam os
seus preços relativos, referim o-nos sempre aos bens cuja quantidade pode ser
aum entada pela actividade hum ana e em cuja produção a concorrência actua
sem restrições”.497
Suponhamos que a arm a necessária para matar o castor era fabricada com muito
mais trabalho do que a necessária para matar o veado, em razão da maior dificul
dade em chegar perto do primeiro animal c da consequente necessidade de ela ser
mais aperfeiçoada: um castor teria naturalm ente mais valor do que dois veados,
precisamente por esta razão, isto é, no total era necessário mais trabalho para o
caçar. O u supunham os que era necessária a mesma quantidade dc trabalho para
produzir as duas armas, mas que a sua duração era m uito dcs-igual; só uma
pequena parte do valor da mais resistente seria transferida para o produto, ao
passo que sc incorporaria uma parte m uito maior do valor da arm a menos
duradoura no outro produto”.498
Ricardo acrescenta logo a seguir que o valor relativo dos bens há-de ser “pro
porcional ao trabalho empregado tanto na formação do capital como na caça dos
animais”, mesmo numa sociedade dividida em classes, em que “todas as armas
necessárias para caçar o castor e o veado possam pertencer a uma classe de homens
e o trabalho empregado na sua caça possa ser oferecido por outra classe”. O prin
cípio de que o valor de troca dos bens depende da quantidade de trabalho necessá
ria para os produzir é válido, segundo Ricardo (ao contrário do que pensava Smith),
mesmo nas situações em que se verifica, na expressão de Adam Sm ith, “a acumu
lação de capital (...) nas mãos das pessoas privadas” e “a apropriação da terra”.
E Ricardo sustenta que os bens variam de valor segundo este mesmo princípio,
mesmo em “uma sociedade mais desenvolvida, onde a arte e o comércio florescem”.
“Ao calcular-se o valor de troca das meias, por exemplo, - escreve Ricardo -
concluirem os que o seu valor, relativamente às outras coisas, depende da quan-
No entanto, Ricardo chama a atenção para o facto de nem sempre tais pressu
postos se verificarem:
“Duas actividades podem utilizar o mesmo montante dc capital mas este pode ser
dividido dc modo muito diferente cm relação à parte que c fixa e à que é circulante.
Quer dizer: o valor de troca do trigo, por exemplo, afere-se pela quantidade de
trabalho necessária para a sua produção na terra menos fértil de entre as que são
cultivadas. O valor de troca de um produto será igual ao seu custo marginal, ao
custo suportado para a sua produção na terra menos fértil, que será, por isso, uma
no rentland. Se assim não fosse, ninguém cultivaria tais terras, pois ninguém esta
ria disposto a cultivar nelas o trigo se tivesse de o trocar (vender) por um valor
inferior ao seu custo, ou mesmo por um valor igual ao custo, se tivesse de pagar
ainda uma renda ao proprietário.
Terras que propiciam uma renda ao seu proprietário serão, portanto, todas
aquelas cuja fertilidade é superior à da terra cultivada em que os produtos se obtêm
a um custo mais elevado. Como o preço das quantidades globais do produto acaba
por coincidir com o custo em trabalho mais elevado, a situação dos proprietários
das terras em que os custos são menos elevados e a concorrência entre os rendeiros
4 7 0 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a
3 .2 . A TEORIA DO SALÁRIO
O mesmo ‘pessimismo’ aparece na sua teoria do salário.
A v e iAs N u n e s - 4 7 1
Por outro lado, o preço de mercado do trabalho define-o Ricardo como “o preço
realmente pago por ele com base na relação natural entre a oferta e a procura; é
caro quando escasseia e barato quando abunda”.502
Ricardo esclarece a seguir que o preço natural do trabalho não se confunde com
o necessário para assegurar a mera subsistência biológica dos trabalhadores:
“Isto não quer dizer que o preço natural do trabalho, m esm o calculado em
term os dc produtos alimentares e bens de primeira necessidade, seja absoluta
m ente fixo e constante. N um m esmo país ele varia no tem po e difere acentu-
adam ente de um país para outro. D epende essencialmente dos usos e costumes
do povo. U m trabalhador inglês consideraria o seu salário abaixo do seu preço
natural c insuficiente para sustentar um a família se com cie não pudesse com
prar senão batatas para a sua alim entação nem viver num a habitação que não
passasse dum a choça dc lama; porém , estas m odestas exigências naturais são
frequentem ente consideradas suficientes cm países onde ‘a vida hum ana é ba
rata’ e as suas necessidades facilmente satisfeitas. M uitas das com odidades que
sc desfrutam hoje num a casa inglesa seriam consideradas com o luxos num
período mais recuado da nossa história.
Adm itindo que o valor da moeda se mantém, Ricardo mostra que os salários
variam em função de duas causas: a oferta e a procura de trabalhadores; o preço
dos produtos em que os trabalhadores despendem os salários.
M as defende que, “com o progresso natural da sociedade, os salários terão
tendência a descer enquanto forem regulados pela oferta e pela procura, pois a
oferta de trabalhadores continuará a aumentar à mesma taxa enquanto a procura
aumentará a uma taxa lenta”.
Ao fim e ao cabo, “por muito que o preço de mercado do trabalho se desvie do
seu preço natural, tem tendência, como os outros produtos, a ajustar-se-lhe”.
A lei da população de M althus está na base da explicação dada por Ricardo
para esta tendência:504
“Q uando o preço de m ercado do trabalho excede o seu preço natural o traba
lhador é próspero e feliz visto ter à sua disposição um a proporção m aior de bens
de prim eira necessidade c dc satisfações e assim poder sustentar um a família
sadia e numerosa. Porém , quando aum enta o número de trabalhadores devido
ao facto de os salários elevados estim ularem o crescim ento da população, os
salários descem novamente até ao seu preço natural c, na realidade, algumas
vezes até descem abaixo dele com o reacção.
A tendência clara c directa das leis dos pobres está em com pleta oposição a
estes princípios evidentes: não se destinam , com o o legislador benevolente
m ente desejava, a m elhorar a condição dos pobres, mas sim a piorar a situação
tanto dos pobres como dos ricos; cm vez de enriquecerem os pobres destinam -
se a em pobrecer os ricos. E nquanto vigorarem as presentes leis parece absolu
tam ente natural que aumente progressivamente o fundo destinado à m anuten
ção dos pobres até que absorva todo o rendim ento líquido do país, ou, pelo
menos, tudo o que o estado nos deixar depois de satisfazer a sua perpétua
procura dc fundos para fazer frente às despesas públicas.
(...) As leis da gravidade não são mais verdadeiras do que a tendência de tais leis
para transform ar a riqueza e o poder em miséria e fraqueza; para fazerem o
hom em renunciar a todo o trabalho que não tenha por objectivo a obtenção de
meios de subsistência; para abolirem todas as distinções quanto às faculdades
intelectuais, para ocuparem continuam ente o espírito com a satisfação das
necessidades do corpo até que, form alm ente, todas as classes sociais sejam
atacadas pela moléstia da indigência universal”.505
Em resumo:
“Apesar de o trabalhador ser na realidade menos bem pago, este aumento dos
salários diminuiria necessariamente os lucros do industrial, pois os seus produtos
não seriam vendidos mais caros embora as despesas de produção aumentassem”.507
uma parte do trabalho antes necessário, e, portanto, baixar o preço dos bens de
primeira necessidade para os trabalhadores”.
M as Ricardo considera-a uma ameaça permanente ao “estado progressivo”,
porque, no limite, se os lucros baixarem muito, “deixará de haver acumulação pois
então nenhum capital poderá dar lucros; não será então necessário mais trabalho
adicional e a população terá atingido o seu máximo”. Concluindo o seu raciocínio,
Ricardo adverte, aliás, para o facto de, “muito tempo antes desta situação, a taxa de
lucro mais baixa terá acabado com a acumulação e a quase totalidade da produção
do país, depois de se ter pago aos trabalhadores, pertencerá aos proprietários da
terra e aos cobradores de dízimos e de outros impostos”.509
A tendência para a baixa da taxa de lucro há-de ser mais tarde considerada por
Marx como uma das contradições do modo de produção capitalista, contradições que
hão-de levar à substituição do capitalismo pelo socialismo. Ricardo, porém, nunca põe
em dúvida a perenidade do sistema, apoiado nos elementos optimistas da sua teoria: 1)
a impossibilidade de crises de sobreprodução, nos termos da lei de Say; 2) as vantagens
inerentes ao livrecambismo. Referiremos a seguir estes dois aspectos.
4 . R ic a r d o e a l ei d e Say
Se é certo que os resultados da análise de Ricardo parecem comprometer a
visão de Adam Sm ith e a sua confiança num progresso sem limites desde que se
deixasse actuar livremente a mão invisível, também é verdade que este optimismo
ressurge em Ricardo graças à sua aceitação entusiástica da lei de Say.S10
“O s produtos com pram -sc com outros produtos ou com serviços; a m oeda é só
um meio através do qual se efectua a troca. Pode produzir-se cm excesso um
determ inado bem e pode haver um a tal superabundância dele no mercado que
não chcguc para rem unerar o capital nele aplicado. M as isto não se verifica cm
relação a todos os bens. A procura de trigo é limitada pelo núm ero dc bocas que
o devem comcr, a de sapatos c dc casacos pelo núm ero dc pessoas que os usam;
mas, em bora a sociedade, ou um a parte da sociedade, tenha tanto trigo c tantos
chapéus c sapatos quantos os que possa ou queira consumir, já não se pode dizer
o mesmo a respeito dos bens produzidos pela natureza ou pelo trabalho. M uita
gente desejaria consum ir mais vinho se tivesse meios para isso. O utros, que
dispõem de vinho suficiente para o seu consum o, desejariam ter mais móveis
ou possuir outros dc m elhor qualidade. O utros desejariam em belezar os seus
jardins ou aum entar as suas casas. O desejo dc fazer tudo isto, integralmente ou
cm parte, é próprio de todos os indivíduos. M as é necessário dispor de m eios c
É aqui que se insere a defesa que fez da revogação imediata das Corn Laws
(promulgadas em 1815 para proteger o mercado interno do trigo, proibindo a
sua importação).
Ricardo foi, sem dúvida, “o apóstolo dosfree-traders ingleses”, fazendo da sua
teoria da distribuição a base teórica do ataque contra as Leis dos Cereais. Comba
tendo os interesses dos landlords, as teorias de Ricardo estavam em perfeita sinto
nia com os interesses da burguesia industrial (a classe mais dinâmica naquela
época), à qual convinha a liberdade do comércio.
A revogação das Leis dos Cereais em 1846 constitui, sem dúvida, “o maior
triunfo que o livrecambismo alcançou no séc. XIX” (como salientaria Marx em
1848, no Discurso sobre o livrecàmbio), e marcou a vitória definitiva da burguesia
industrial sobre a aristocracia rural inglesa.
Na Inglaterra, a pressão resultante do aumento da população obrigara ao cul
tivo de terras sáfaras e à cultura intensiva das terras férteis, o que - já o vimos -
conduzia ao aumento dos preços do trigo, ao aumento da renda diferencial e ao
aumento dos salários nominais, com a consequente baixa da taxa de lucro.
Ora, a possibilidade de a Inglaterra importar livremente trigo (alimentos) a
preços mais baixos que os praticados no país aparecia a Ricardo como a compen
sação necessária para os rendimentos decrescentes e indispensável para afastar o fan
tasma do estado estacionário.
Num texto de 1819, Ricardo refere-se à “escassez e consequente subida do
custo dos alimentos e outros produtos fundamentais” como o único obstáculo ao
desenvolvimento económico “por tempo indefinido”. E sustenta que se os alimen
tos e outros bens essenciais forem “fornecidos do estrangeiro em troca de bens
manufacturados, será difícil determinar o limite em que se deixará de acumular
riqueza e obter lucro com a sua aplicação”.511
Compreende-se, assim, que a questão relacionada com as pautas de importação
de produtos essencias fosse considerada como “uma questão da máxima importância
para a economia política”. Relativamente a ela, é inequívoca a posição de Ricardo:
“Preconizo o comércio livre dos cereais fundam entando-me no facto de que,
sendo o com ércio livre e os cereais baratos, os lucros não descerão, por m uito
im portante que possa ser a acumulação dc capital. Se nos lim itarm os aos
recursos do nosso próprio solo, penso eu - continua Ricardo a renda acabará
por absorver a m aior parte do produto que resta depois de pagos os salários, c,
consequentem ente, os lucros serão baixos”.
511 Perante a facilidade com que Ricardo se desembaraça do fantasma do estado estacionário, ganha sentido a
tese dos autores para quem a noçâo de estado estacionário e a invocação da possibilidade da sua concretização
poderão ter sido, na obra de Ricardo, um expediente destinado a assustar os defensores do proteccionismo.
A v ela s N u n es - 4 7 9
Sem dúvida, pois, que, para Ricardo, a liberdade do comércio externo pode
constituir para um dado país um factor importante de desenvolvimento económi
co, na medida em que permita o aumento da taxa de lucro. E Ricardo explica quais
os requisitos indispensáveis para que tal se verifique.
“N o dccurso dcstc trabalho - cscrcvc clc no Cap. VII dos Princípios - tentei provar
que a taxa de lucro nunca pode aumentar senão pela diminuição dos salários e que
esta descida não pode ser permanente se não diminuir o preço dos bens nos quais são
despendidos os salários. Se, com o alargamento do comércio externo ou os aperfei
çoamentos nas máquinas, se puder fornecer o trabalhador com os produtos ali
mentares c os bens dc primeira necessidade a um preço mais acessível, os lucros
devem aumentar. Se, em vez de produzirmos o trigo ou confeccionarmos o vestu
ário e outros bens de primeira necessidade para o trabalhador, descobrirmos um
novo mercado que nos pode abastecer a preços mais baixos, os salários diminuem
e aumentam os lucros. M as se os produtos obtidos mais baratos, quer pelo alarga
m ento do comércio externo, quer pelo aperfeiçoamento das máquinas, forem
cxdusivamcntc consumidos pelos ricos, a taxa de lucro não sofrerá alteração. O s
salários não seriam afectados mesmo que o vinho, o veludo, a seda e outros bens dc
luxo diminuissem 50% e, consequentemente, os lucros manter-se-iam inalterados.
É por isso que o comércio externo, em bora extrem am ente benéfico para um
país, visto aum entar o volume e a variedade dos produtos em que se pode
aplicar o rendim ento c incentivar a poupança e a acumulação de capital, devido
à abundância e baixo preço dos produtos, não tem ten d ên d a para fazer aum en
tar os lucros d o capital, salvo se os produtos im portados forem aqueles que os
trabalhadores consomem”.
As R e a c ç õ e s contra a E scola
C l á ssic a
4 8 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o lít ic a
1. A CRÍTICA METODOLÓGICA
Neste aspecto, a crítica da Escola Clássica foi feita a partir de diferentes perspectivas.
a) Augusto Comte (1798-1857) sustentou que a Economia Política clássica
não passara ainda da idade metafísica (a fase intermédia de evolução do espírito
humano, de acordo com a sua lei dos três estados: idade teológica, idade metafísica
e idade positiva).
Para o positivista francês, só esta última corresponderia ao conhecimento cientí
fico, o qual deve limitar-se ao estabelecimento da existência de certas relações inva
riáveis entre factos observáveis. Para quem não admitia a possibilidade de o homem
aceder ao conhecimento da verdadeira essência das coisas, compreende-se a negação
da natureza científica à nova Economia Política, que fazia da noção de valoro núcleo
da sua pesquisa, procurando atingir a essência do sistema económico.
b) A Escola Histórica Alemã, como vimos atrás, criticou aos autores da Escola
Clássica o facto dc muitas das suas construções serem obtidas pelo método dedu
tivo a partir dos pressupostos que se inscrevem na racionalidade atribuída à figura
abstracta do homo oeconomicus ou em princípios decorrentes de leis naturais.
Mas é sobretudo o carácter a-histórico do método de análise dos autores clássi
cos, a validade absoluta e universal que estes atribuem às leis económicas (enquanto leis
naturais, imutáveis e insubstituíveis como as leis da Física), que constituem o ponto
essencial da crítica da Escola Clássica feita pelos adeptos da Escola Histórica.
O grande mérito destes autores residiu em ter chamado a atenção para a neces
sidade de os estudos económicos serem encarados numa perspectiva histórica,
considerando todas as instituições económicas e sociais como categorias históricas.
M as - já o sabemos - a ausência de uma perspectiva teórica, de uma teoria da
História, acabaria por converter a Escola Histórica numa história dosfactos econó
micos, numa ciência morta.
c) Também o marxismo contém uma crítica ao carácter a-histórico da teoria
económica dos clássicos, procurando mostrar, na síntese de Schumpeter, “corno a
teoria económica pode ser convertida em análise histórica e como a exposição
histórica pode ser convertida em histoire raisonée.”
Ao contrário dos autores da Escola Histórica, porém, Marx afirmou a necessi
dade de uma teoria da História. Como à frente veremos melhor, M arx prosseguiu
A v elã s N u n es - 4 8 5
2. A CRÍTICA DO LIVRECAMBISMO
De entre outros (Cabet, Leroux, Louis Blanc, v.g.), destacam-se o inglês Ro-
bert Ovven (1771-1858) e o francês Charles Fourier (1772-1837).
Owen foi sobretudo um homem de acção. Procurou - e em grande parte con
seguiu - fazer da sua fábrica em New Lanark uma sociedade-modelo, erradicando
completamente o alcoolismo, a polícia, a caridade pública. Em 1824 fundou na
América uma colónia segundo o modelo das aldeias cooperativas por ele idealizadas
(a New Harmony, que viria a fracassar após o regresso de Owen à Europa). Robert
Owen foi um dos pioneiros do cooperativismo.
Fourier foi um visionário, considerando-se “possuidor do livro dos Destinos”,
capaz, só por si, de “demolir vinte séculos de imbecibilidade política”, de “rasgar
as trevas políticas e morais e, sobre as ruínas das ciências incertas, erguer a teoria
da harmonia universal”.
O estado de harmonia que preconizava baseava-se na generalização dos falansté-
rios. Estes seriam associações de vida e de trabalho formadas por um número fixo
de homens e de mulheres. Nelas predominaria o trabalho agrícola, de preferência
até a jardinagem. Todos os membros dafalange teriam direito ao trabalho, poden
do escolhê-lo de acordo com as suas preferências. Assim deixará de existir a espe
cialização excessiva, derivada da divisão forçada do trabalho, com a consequente
mutilação do homem. O trabalho perderia o seu carácter penoso para se tornar
uma necessidade e fonte de prazer. Deste trabalho criador resultaria a abundância
dos bens materiais e com ela a harmonia social.
É acerca de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) que alguns autores falam de
socialismo burguês, porventura por influência de Marx, que disse de Proudhon: “não
passa de um pequeno burguês, balançando constantemente entre o Capital e o
Trabalho, entre a economia política e o comunismo”.
As concepções de Proudhon reflectem e exprimem as aspirações utópicas das
classes médias, inexoravelmente proletarizadas à medida que o capitalismo se de
senvolvia, vendo o seu capital ‘expropriado’ pelo grande capital.
Por isso se compreende que ele tenha escrito que “a propriedade é o roubo” e
que tenha fundado um Banco do Povo, onde se emprestaria dinheiro sem juro (as
dificuldades de crédito e a tirania dos bancos eram dos problemas mais sentidos
pelas camadas pequeno-burguesas). Por isso mesmo Proudhon define o socialis
mo como “a constituição de fortunas moderadas, a universalização da classe mé
dia”, uma concepção onde espreita o velho ideal jacobino de uma sociedade composta
por pequenos proprietários, em que a propriedade é o fundamento da liberdade e
da igualdade.
4 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
C apítulo X
Do ‘S o c ia l is m o U t ó p i c o ’ a o
‘S o c ia l is m o C i e n t í f i c o ’
4 9 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a
513 Cfr. F. EN GELS, Socialismo Utópico e Socialismo Científíco, em M ARX/EN GElS, Obras Escolhidas, ed. cit.,
56/57; ou Anti-EXihríng, ed. cit., 316-317.
4 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
pulos form am são sempre reaccionárias, (...) continuam a sonhar com a reali
zação experim ental das suas utopias sociais (...), e, para a construção de todos
esses castelos em Espanha, vêem-se forçados a fazer apelo ao coração e à bolsa
dos filantropos burgueses. (...) O põem -se, portanto, com veemência, a toda a
acção política da elasse operária, pois, em sua opinião, tal acção só poderia
provir de um a falta de fé cega no novo evangelho."
(...) O socialismo, para M arx, não era uma obsessão que oblitera todas as outras
nuances da vida c que provoca um ódio c um desprezo doentios e estúpidos para
com as outras civilizações. E justifica-se em mais de um sentido o título que
M arx reivindicava para as categorias dc pensamento socialista e de vontade soci
alista ligadas pelo cimento da sua posição fundamental: o Socialismo Científico”.
K a r l M a rx
4 9 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a
1. M a r x : a c r í t i c a d a e c o n o m ia p o l í t i c a
2. A CONCEPÇÃO m a t e r ia l is t a d a h is t ó r ia 517
517 Na Parte I já expusemos o essencial sobre este ponto, a propósito da teoria marxista dos modos de produçáo.
A v e lã s N u n e s - 4 9 9
Agora, recordamos apenas o necessário para dar sentido à visão global das concepções específicas da teoria
económica de Marx.
5 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
Dissemos que Marx iniciou a sua análise a partir dos princípios teóricos enunci
ados pelos clássicos ingleses, especialmente por Ricardo. E o que, desde logo, se
poderá concluir da análise da teoria do valor, pedra angular da teoria ricardiana,
com base na qual Marx vai tentar explicar que a essência do capitalismo é a explo
ração dos trabalhadores asalariados. Para tanto, como escreveu M aurice Dobb,
Marx “tomou o sistema de Ricardo, despojou-o da sua armação de ‘lei natural’ e
revolucionou o seu significado qualitativo”.
As mercadorias apresentam um valor de uso (uma utilidade para quem as pos
sui) e um valor de troca, valores que se ligam um ao outro, pois nenhuma mercado
ria se trocará (venderá) se não for útil a alguém. Só que não pode reconduzir-se o
valor de troca de uma mercadoria à sua utilidade, uma vez que o valor (de troca)
das mercadorias não é tanto maior quanto maior for a sua utilidade.
Marx sublinha que o valor de uso (laço particular entre o objecto e o indivíduo)
não poderá de maneira nenhuma erigir-se em um elemento objectivo, em medida
comum utilizável simultaneamente pelos compradores e pelos vendedores, uma
vez que, por definição, a mercadoria vendida não tem utilidade para o vendedor no
518 C ír. O . LA N CE, Economia Política, trad. it., ed. cit., 1,225/226.
A v elã s N u n es - 5 0 3
momento em que a vende. O valor de troca deve medir-se por uma qualidade que
seja comum para todos os produtores que aparecem a vender as suas (várias) mer
cadorias, uma qualidade social que permita as relações entre os vários produtores. A
estas exigências satisfaz a teoria do valor de Ricardo: o valor de troca de uma
mercadoria representa a quantidade de trabalho necessária para a sua produção.
Com o Ricardo, também Marx adverte que esta noção de valor de troca só se
aplica aos objectos produzidos regularmente com vista à sua venda no mercado (as
mercadorias). O preço das obras de arte, v.g., terá de explicar-se por considerações
inteiramente diferentes.
Como Ricardo, Marx esclarece também que o trabalho utilizado na produção
dos materiais e dos instrumentos de produção faz parte do valor dos bens acabados.
M arx acrescenta que o trabalho que importa, do ponto de vista da lei do valor,
não é o trabalho concretamente gasto por um determinado trabalhador ou por
uma dada empresa, mas antes o trabalho socialmente necessário à produção. E acres
centa ainda que o que importa é o trabalho abstracto, ao qual se reconduzem os
diferentes tipos de trabalho fornecidos pelos indivíduos que pertencem a profis
sões diferentes, o que não significa aceitar-se que todos os trabalhadores forne
cem, no mesmo tempo, a mesma quantidade de trabalho abstracto. Tanto assim
não é, que a sociedade atende à qualificação e à intensidade do trabalho fornecido,
pagando salários diferentes para remunerar trabalhadores de diferente qualifica
ção ou com intensidade de trabalho diferente.
Q uer dizer, em resumo: o que determina o valor de uma mercadoria é o tempo de
trabalho socialmente necessáriopara a produzir, o trabalho despendidopor um operário de
habilidade média, trabalhando com uma intensidade média e utilizando os instrumentos
deprodução normalmente utilizados em determinada época.
Marx retoma também a distinção de Adam Smith entre trabalho produtivo e
trabalho improdutivo. Nesta última categoria inclui, como Smith, os funcionários e
as domésticas e - ao contrário do autor de Riqueza das Nações - a actividade pura
mente comercial (por entender que o tempo gasto pelo vendedor para obter um
preço mais elevado não pode aumentar o valor da mercadoria). Considera, porém,
como trabalho produtivo- além do trabalho utilizado na produção de bens materi
ais - o trabalho dos que se ocupam em empresas produtoras de serviços (v.g.
empresas de transporte).
Ao contrário de Ricardo, Marx não identificou o valor do mercado com o valor
em trabalho, o que explica a sua tese (que para Ricardo era apenas uma excepção)
segundo a qual, nas condições do capitalismo, as mercadorias se não trocavam
pelo seu valor, mas antes por aquilo que Marx chamou preço de produção (igual ao
montante dos salários mais um tanto sobre o capital adiantado).
5 0 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o íít i c a
5. A TEORIA DA EXPLORAÇÃO
519 Sobre a noçâo de mais-valia, ver O Capital, Livro I, secção V, caps. XVI e XVIII.
A v elã s N u n es - 5 0 7
classes e assenta na exploração de uma classe por outra classe, o que explica que,
neste contexto, as classes sociais se apresentem como classes antagónicas, portadoras
de interesses inconciliáveis. Por um lado, os que recebem a mais-valia (os capitalis
tas); por outro lado, os que produzem a mais-valia e não podem apropriar-se dela
por não serem proprietários dos meios de produção, “os operários modernos, que só
vivem - diz o Manifesto - se encontrarem trabalho e que só encontram trabalho se o
trabalho aumentar o capital - os operários obrigados a vender-se dia a dia, que são
uma mercadoria, um artigo de comércio como outro qualquer”.
Este antagonismo entre capitalistas e assalariados (entre o capital e o trabalho)
aparecia assim como elemento essencial do capitalismo industrial, ultrapassando o
antagonismo que Ricardo apontara (num período em que a burguesia industrial
lutava ainda pela sua afirmação) entre a classe dos proprietários rurais e a burgue
sia industrial.
Dos trabalhos de Marx resulta que a força de trabalho só se transformou em
mercadoria em determinadas condições históricas (as condições históricas do ca
pitalismo), quando a evolução histórica criou, por um lado, um proletariado sem
bens e sem outros meios de vida além da sua capacidade de trabalho, e por outro
lado, um classe proprietária dos meios de produção, que, tendo capital acumulado,
precisa de (e tem condições para) adquirir a força de trabalho indispensável para
levar por diante a actividade produtiva.
Num regime csclavagista, por exemplo, a força de trabalho não pode considerar-
se, em si, uma mercadoria, pois, em rigor, a capacidade de trabalho é o próprio traba
lhador, simplesmente, como escravo, está ele mesmo sujeito ao direito dc propriedade
do senhor, não podendo, portanto, negociar no mercado a sua força de trabalho.
Também o pequeno agricultor que cultiva a sua terra ou o artesano que traba
lha na sua oficina não tem que vender a sua força de trabalho, pois, como produ
tores autónomos, utilizam-na ao seu próprio serviço.
Tal não significa que, para Marx, a exploração dc uma classe por outra só
tenha surgido com o capitalismo. O que acontece é que com o advento das rela
ções de produção capitalistas, a exploração ganhou características específicas.
A exploração do trabalho de outrem só não tinha razão de ser nas sociedades
primitivas, em que cada homem não era capaz de produzir mais que os meios neces
sários para assegurar a própria subsistência, em que o produto resultante do trabalho
produtivo era sensivelmente igual ao que era necessário para assegurar a subsistência
e a reprodução do homem-trabalhador, em que não havia propriedade privada, nem
classes sociais (nem exploração de uma classe por outra ...), nem estado.
Só quando intervieram os primeiros grandes progressos técnicos (no momento
em que as comunidades humanas abandonam o nomadismo e a actividade mera
5 0 8 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a
Suponham os, por outro lado, o servo camponês tal com o existia, podem os
dizer, ainda ontem , em toda a Europa oriental. Este cam ponês trabalhava, por
exemplo, 3 dias para si mesmo no seu próprio cam po ou no que lhe ten h a sido
cedido, e, nos 3 dias seguintes, fazia trabalho forçado e gratuito nos dom ínios
do seu senhor. Aqui, por conseguinte, trabalho pago e o trabalho não pago
estavam visivelmente separados, no tem po e no espaço. (...)
Os clássicos ingleses, embora admitindo que o lucro e a renda são uma parte dos
frutos criados pelo trabalho, consideram natural que essa parte do valor criado pelo
trabalho reverta para os capitalistas e os proprietários de terras, porque aceitam que
a própria natureza das coisas é que impõe que os trabalhadores recebam apenas o
necessário para a sua subsistência (lei de bronze dos salários) e aceitam como natural
que o proprietário de uma terra mais fértil receba uma renda mais elevada.
Marx, pelo contrário, vem defender que o lucro não é uma categoria ‘natural’,
inerente à ordem natural das coisas, mas antes uma categoria própria de um perí
odo histórico determinado e caracterizado pela existência de uma sociedade de
classes, no seio da qual a força de trabalho se transformou em mercadoria.
5 1 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o ü t ic a
Na construção teórica de Marx - como salienta Henri D enis520 ““a lei do valor,
longe de confirmar o carácter ‘natural’ dos rendimentos capitalistas, revela o seu
carácter histórico. Sob a aparência de rendimentos naturais, a análise põe a desco
berto a realidade essencial da exploração”. Por sua vez, Emest Mandei resume assim
a importância das conclusões de Marx a partir da teoria do valor ricardiana:
“O progresso decisivo que o pensam ento sócio-económico em preende com
M arx é precisam ente a redução das categorias separadas de ‘lucro’, de ‘renda’ e
de ‘ju ro ’ a um a única categoria fundam ental, tratada com o tal, a categoria de
mais-valia ou de sobretrabalho. Graças a esta redução que A dam S m ith tinha
apenas entrevisto, e que Ricardo tinha com preendido mas perante a qual se
quedara, M arx pode por sua vez descobrir a natureza real desta mais-valia que
é apenas um a form a particular, m onetária, da categoria histórica geral do
sobreproduto social, d o sobretrabalho. A partir daí, o proletariado m oderno apa
rece com o herdeiro do servo medieval e do escravo da A ntiguidade, a sua
exploração pela classe capitalista deixa de constituir um mistério”.521
Na construção de Marx, a noção de mais-valia vem tornar claro que uma parte
do valor criado pela força de trabalho não vai pertencer aos trabalhadores. A
mais-valia é apropriada pelos empregadores capitalistas, sem qualquer justificação
moral baseada na quantidade de trabalho por eles despendida. Os capitalistas ex
propriam, deste modo, uma parte do valor criado pelos trabalhadores assalariados;
estes são, nessa medida, explorados.
Em vez da distribuição natural do produto do trabalho entre as diferentes classes,
Marx defende que a distribuição do produto do trabalho é uma consequência lógica
da natureza das relações sociais de produção características do capitalismo, marcadas
pela diferente posição dos empregadores-capitalistas e dos trabalhadores assalaria
dos relativamente à propriedade dos meios de produção e consequente antagonismo
de interesses entre estas duas classes sociais. Os primeiros, por serem proprietários
dos meios de produção, estão em condições de adquirir, através de contrato, aforça de
trabalho dos trabalhadores e de se apropriarem, nos termos desse mesmo contrato,
de tudo o que resultar da utilização da mercadoria-força-de-trabalho depois de
pagos os salários; os segundos, por não disporem dos meios de produção, vêem-se
‘obrigados’ a trabalhar para os patrões capitalistas a troco do pagamento do salário
(que é apenas uma parte do valor que a força de trabalho cria), bem conscientes de
que - como já sublinhara Adam Smith - “o patrão não teria qualquer interesse em
empregá-los se não esperasse obter, com a venda do seu trabalho, um pouco mais do
que o necessário para reconstruir a sua riqueza inicial”.
Perante o que fica dito, não admira que Marx - ao contrário dos fisiocratas e
dos clássicos ingleses - não tenha atribuído importância à questão de saber como
se distribui a mais-valia entre os proprietários de terras (renda), os que emprestam
dinheiro (juro) e os rendeiros industriais ou comerciantes capitalistas (lucro). Ele
próprio explica claramente o seu ponto de vista:
“Renda, taxa de juro e lucro industrial são apenas nomes das diferentes partes da
mais-valia da mercadoria, quer dizer, do trabalho não pago que aquela encerra
e têm todos a m esmo origem e apenas esta origem. N ão provêm nem da terra
nem do capital, com o tais, mas a terra e o capital perm item aos seus proprie
tários apropriarem -se cada um da sua parte da mais-valia extraída do operário
pelo patrão capitalista. Para o próprio operário é de im portância secundária que
esta mais-valia, resultado do seu sobretrabalho, do seu trabalho não pago, seja
embolsada exclusivamente pelo em pregador capitalista, ou que este seja obri
gado a ceder partes, sob o nome de renda e de juro, a terceiros. Supunham os
que o em pregador utiliza unicam ente o seu próprio capital e que seja o proprie
tário da terra: toda a mais-valia seria agora embolsada por ele.
6. A TEORIA DO SALÁRIO
para os capitalistas (e por conseguinte para os que, com estes últimos, vivem da
mais-valia); que todo o sistema da produção capitalista visa prolongar este
trabalho gratuito pela extensão da jornada dc trabalho ou pelo desenvolvimen
to da produtividade, quer dizer, por um a tensão maior da força de trabalho,
ctc.; que o sistema de trabalho assalariado é, por conseguinte, um sistem a de
escravatura, a bem dizer, um a escravatura tanto mais dura quanto mais se
desenvolvem as forças sociais produtivas do trabalho, qualquer que seja o salá
rio, bom ou m au, que o operário recebe”.
Por isso se compreende que “a burguesia não pode existir sem revolucionar
constantemente os instrumentos de produção”; por isso - como Marx escreveu
noutro local - “é da essência da produção capitalista limitar a parte do produtor ao
que é necessário para a manutenção da sua força de trabalho”. O progresso técni
co, a introdução de novas máquinas traduz-se num aumento do capital constante em
relação aos salários (capitalvariável). Ora, escreve Marx,
“A lei do decrescim ento proporcional do capital variável tem (...) por com ple
m ento a produção dc um a sobrepopulação relativa. C ham am o-la ‘relativa,
porque provém não dc um aum ento positivo da população operária que ultra
passaria os limites da riqueza em vias de acumulação, mas, ao contrário, dc um
crescim ento acelerado do capital social que lhe perm ite passar sem um a parte
mais ou menos considerável dos seus operários. (...) Produzindo acumulação de
capital e à m edida que esta se realiza, a dasse assalariada produz ela própria os
instrum entos da sua substituição ou da sua metamorfose cm sobrepopulação
relativa. Eis a lei da população que distingue a época capitalista e corresponde ao
seu m odo de reprodução particular. C om efeito, cada um dos modos históricos
da produção social tem tam bém a sua lei dc população própria, lei que apenas
a ele se aplica, que passa com cie e que, por consequência, apenas tem valor
histórico. U m a lei dc população abstracta e imutável existe apenas para as
plantas e os animais, c apenas enquanto não sofrerem a influência do hom em ”.
vezes ‘com prom etida’ outras vezes ‘livre’, numa palavra, os seus movimentos
alternados de expansão c de contracção, correspondentes, por sua vez, às vicissi
tudes do ciclo industrial, eis o que determina exclusivamente essas variações”.
“Abolição do salariato!”
7. A T E O R IA M A R X IS T A D A S C L A S S E S . A LU TA D E CLA SSES
(...) E sta união [a união dos trabalhadores] é facilitada pelo crescim ento dos
meios de comunicação criados pela grande indústria, que perm item aos operá
rios de localidades diferentes contactarem entre si. Bastou esta tom ada de
contacto para centralizar num a luta nacional, numa luta de classes, as num ero
sas lutas sociais que têm por todo o lado o m esmo carácter. M as toda a luta de
classes é política. E a união que os burgueses da idade média levaram séculos a
estabelecer, com os seus caminhos vicinais, é realizada pelos proletários m oder
nos, com os cam inhos de ferro, cm alguns anos”.
M as o que é o capitaft Que sentido tem esta palavra, quando se diz que a
acumulação do capital é condição da existência e do domínio da burguesia, ou
quando se fala do antagonismo entre o capitale o trabalho?
5 2 0 - U m a I n t r o o u ç A o A E c o n o m ia P o l ít ic a
Para Marx, os meios de produção, cm si mesmos, não são capital', nem uma
máquina, nem uma quantia de dinheiro, nem um estoque de mercadorias, são,
naturalmente, capital. A existência dos meios de produção é indispensável para o
progresso de qualquer sociedade, mesmo uma sociedade sem classes. O que é
capital são os equipamentos, o dinheiro, os estoques, os meios de produção, em
suma, quando se encontram apropriados em propriedade privada pelos membros
de uma classe (a classe capitalista), que os utiliza em termos de se verificar a
exploração necessária daqueles que não têm a propriedade dos meios de produção
(os trabalhadores) e se vêem, por isso, obrigados a vender a sua força de trabalho.
O capital é, portanto, um valor que proporciona ao seu titular uma mais-valia,
através da exploração de trabalho assalariado. O capital não tem, pois, existência
sem o trabalho: o trabalho morto, propriedade da classe que detém a titularidade
dos meios sociais de produção, explora, assim, o trabalho vivo. Neste sentido, o
capital é apenas um trabalho de outrem não pago que se vai renovando mediante a
exploração do trabalho alheio: “Na sociedade burguesa - escreve-se no Manifesto
-, o trabalho vivo é apenas um meio de acrescentar o trabalho acumulado. Na
sociedade comunista, o trabalho acumulado é apenas um meio de expandir, de
enriquecer, de favorecer a existência dos trabalhadores”.
O capital não é considerado como uma coisa nem como uma relação entre
coisas, mas sim uma relação entre homens na produção, isto é, uma relação entre
duas classes (antagónicas), a classe capitalista e a classe proletária: “o capital não é
uma coisa - escreveu Marx; é uma relação determinada de produção”.
“O modo de produção e de acumulação capitalista e, portanto, a propriedade
privada capitalista pressupõe a destruição da propriedade fundada sobre o trabalho
pessoal; a sua base - escreveu Marx - é a expropriação do trabalhador”. E Marx
acentua que “a propriedade privada, fundada no trabalho pessoal, essa propriedade
que liga por assim dizer o trabalhador isolado e autónomo às condições exteriores
do trabalho, vai ser suplantada pela propriedadeprivada capitalista,fundada na ex
ploração do trabalho de outrem, no regime de salariato”\o sublinhado não é de Marx].
Quer dizer que a propriedade privada só se torna capital [propriedade privada ca
pitalista] quando, historicamente, surgiram as condições que permitiram a uma
classe proprietária dos meios dc produção contratar trabalhadores assalariados, ex
cluídos da propriedade dos ditos meios de produção.
O carácter conflitual das sociedades capitalistas reflecte-se tanto em Marx como
em Ricardo. Mas as contradições resultantes do conflito social ganham em Marx
contornos diferentes e assumem um significado diferente.
A contradição fundamental que ressalta da obra de Ricardo é a que opõe a nova
burguesia industrial à velha aristocracia fundiária. Dela resulta a ameaça do estado
A v elã s N u n es - 5 2 1
8. A TEORIA DA CONCENTRAÇÃO
Marx foi o primeiro economista a enquadrar teoricamente o fenómeno da con
centração capitalista, ao atribuir-lhe em O Capital um papel importante, decisivo
mesmo, no seio da sua teoria da acumulação do capital. O seu fulgor teórico impres
siona tanto mais quanto é certo que 0 Capitalé anterior ao movimento de concen
tração desencadeado fundamentalmente na década 80-90 do século XIX (Marx
morreu em 1883).
No fenómeno global da concentração distingue ele dois aspectos. Por um lado,
a concentração propriamente dita, resultante da apropriação da mais-valia pelos
5 2 2 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a
capitalistas, que leva à acumulação do capital nas empresas industriais. Estas, obe
decendo ã lógica do capital, que é a sua valorização permanente, vão fazer investi
mentos sob a forma de capital constante, aumentando assim a sua capacidade de
produção, o seu poderio, a riqueza relativa dos empresários privados: “Aumentan
do os elementos de reprodução da riqueza - escreve Marx —, a acumulação opera
ao mesmo tempo a sua concentração crescente entre as mãos dos empresários
privados. Todavia, este género de concentração, que é o corolário da acumulação,
move-se dentro de limites mais ou menos estreitos”.
Simplesmente, a este nível, a concentração sofre limites que vêm a traduzir-se
na multiplicação dos centros de acumulação, “quer pela força de novos capitais
[v.g. criação de novas empresas], quer pela divisão de capitais antigos” [v.g. em
caso de partilha de herança no seio de famílias capitalistas].
Contudo, “num certo ponto do progresso económico - salienta M arx - esta
fragmentação do capital social numa multidão de capitais individuais, ou o movi
mento de repulsão das suas partes integrantes, vem a ser contrariado pelo movi
mento oposto da sua atracção mútua”, fenómeno que Mane designa por centralização (“a
atracção do capital pelo capital”):
“Já não é a concentração que se confunde com a acumulação, mas antes um
processo csscncialmcntc distinto, é a atracção que reúne vários centros de
acumulação e de concentração, a concentração de capitais já formados, a fusão
de um núm ero superior de capitais cm um núm ero menor, num a palavra, a
centralização propriam ente dita”.
9 . T e n d ê n c ia p a r a a b a ix a d a t a x a m é d ia d e l u c r o
523 Usaremos na exposição alguns símbolos, com os seguintes significados: M - mais-valia; K - capital total: C -
capital constante; V - capital variável; L - taxa de lucro; Z - com posição orgânica d o capital, expressão
adoptada por Marx para traduzir a relação entre o capital constante e o capital variável (C/V).
A v elã s N u n es - 5 2 7
Efectivamente,
T_ M _ M
K C +V
T- M M M x 1
" VZ + V ’ V (1 + Z) " v " (1 + Z)
Sc, por hipótese, M /V não se altera e se, em virtude das próprias condições do
desenvolvimento capitalista, Z aumenta (o que significa que diminuirá a relação
___í___, é claro que L (igual a x ___ í _ ) diminuirá também.
(1 ♦ Z) V (1 + Z)
Q uer dizer, se o capital investido por trabalhador aumenta, para que a taxa de
lucro se mantenha é preciso que a mais-valia obtida de cada operário aumente tam
bém proporcionalmente.
E Marx aponta, na verdade, alguns factores que, traduzindo-se em aumento da
taxa de mais-valia ou taxa de exploração, podem retardar ou limitar a evolução
tendencial no sentido da baixa da taxa de lucro: o aumento da produtividade,
inerente à crescente utilização das máquinas, pode provocar a redução do valor do
capital constante por unidade de trabalho, embora tenha subido o volume material
do capital constante posto em movimento pela mesma quantidade de força de
5 2 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a
as crises comerciais que, pela sua periodicidade, ameaçam cada vez mais a
existência da sociedade burguesa. C ada crise destrói regularm ente não só uma
grande massa de produtos já fabricados, mas tam bém um a grande parte das
forças produtivas já existentes. N as crises, assiste-se ao alastrar de um a epide
mia social que, em qualquer outra época, teria parecido absurda: a epidem ia da
sobreprodução".
524 Mais tarde, Lénine escreveria: "A questão do poder 6 certamente a questão mais importante de qualquer
revolução. Qual é a classe que detém o poder? Este é o fundo do problema (...) a questão do poder n5o pode
ser iludida nem relegada para último plano (...) é a questão fundamental'.
A v elã s N u n es - 5 3 5
Só nesta fase de evolução o poder público deixará de ter sentido como poder
político. Só então - como escreveu Engels525 o estado, “chegando, por fim, a ser
o representante de uma sociedade inteira, torna-se supérfluo”; só então “deixa de
ser necessário um poder especial de repressão, ou seja, o estado”:
“A intervenção do estado nos assuntos sociais - conclui Engels - torna-se
progressivamente supérflua e acaba por extinguir-se. A administração das coisas
c a direcção dos processos dc produção substitui o governo daspessoas. O estado
não é abolido’; morre", [só a palavra morrevem sublinhada por Engels].
nas suas bandeiras: 'D e cada um segundo as suas capacidades, a cada um segun
do as suas necessidades!’”
O M a r g in a l is m o e a R o t u r a
com a P e r s p e c t iv a
C l á s s ic a - M a r x ist a
5 3 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a
1 . Say: a s c l a s s e s s o c i a is f o r a d a a n á l is e e c o n ó m i c a
2. O s p r e c u r s o r e s d a t e o r i a SUBJECTIVA DO VALOR
dos bens pelo sacrifício dos que produzem e não pela quantidade de trabalho. O
segundo considera a abstinência, a renúncia ao consumo imediato, como elemento
(subjectivo) do valor, e defende que a abstinência dos detentores do capital justifica
uma compensação (o lucro), tal como o sacrifício representado pelo trabalho justi
fica o salário.
Nestes termos, o valor (o custo real) de um bem é igual ao trabalho (.sacrifício)
necessário para o produzir mais a abstinência dos detentores do capital. No custo
monetário contabiliza-se tanto o salário como o lucro, deixando este de ser consi
derado como um excedente no sentido fisiocrático, sentido que conserva nos clás
sicos e em Marx.
Foi esta a orientação da generalidade dos economistas que contestaram a teoria
do valor ricardiana: limitaram-se, quase sempre, a aceitar o princípio dos trêsfacto
res, enunciado por Say, e a afirmar que os capitalistas, os trabalhadores e os propri
etários de terras recebem uma parte dos rendimentos, porque os seus serviçosprodutivos
são, todos eles, elementos raros e indispensáveis à produção.
Fora da análise ficava a questão de saber qual desses ‘factores’é, efectivamente,
criador dc valor. Adm itindo que o preço de mercado de cada um desses ‘factores’é
função da sua escassez, do seu grau de raridade, limitaram-se ao problema dos
preços. Fora da análise ficava, portanto, o problema teórico da criação do valor (da
natureza e das causas da riqueza das nações), tal como foi assumido pelos clássicos
e por Marx. Fora da análise também a preocupação com o facto de os preços dos
‘factores de produção’ se formarem num mercado caracterizado por uma desigual
dade estrutural, expressa na circunstância de a propriedade dos meios de produção
pertencer, de modo excluente, a uma determinada classe social, o que coloca a
classe dos não-proprietários perante a necessidade de vender a sua força de traba
lho para poder subsistir.
A solução enunciada resolvia algumas das dificuldades da teoria de Ricardo,
mas abandonava o conceito unitário do valor, sacrificando este como conceito de
equivalência entre mercadorias. Apareciam agora agora duas componentes do custo
real (trabalho e abstinência), qualitativamente diferentes, não se vendo como fun
di-las para obter uma quantidade única, o custo real (valor).
Para além da dificuldade inerente a este dualismo dc base, há ainda a dificulda
de - que o próprio Senior enunciou - de definir os limites relevantes do ‘sacrifí
cio’: deve contar-se o ‘sacrifício’ dos que se abstêm de consumir uma riqueza
herdada ou o ‘sacrifício’ de poupar um rendimento de todo em todo inesperado?
É o velho problema da acumulação do capital. Será que a abstinência das pessoas
muito ricas que não consomem todo o seu rendimento (apesar de gastarem, e até
esbanjarem, rios de dinheiro) representa um verdadeiro sacrifício? Se a noção de sacri
5 4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
fício tem algum conteúdo útil, este sacrifício, o sacrifício que conta, não será o dos
pobres que recebem salários muito baixos, que sofrem o desemprego, que pagam os
custos da inflação, muitas vezes para alimentar o crescimento dos ganhos dos ricos?
Brecht coloca a questão em termos poéticos: quem construiu Tebas, o faraó ou os seus
escravos? Neste sentido vai o comentário de Maurice Dobb: “se o faraó emprestou os
seus escravos para se construírem as pirâmides, não foram só os escravos que fizeram
o sacrifício, no sentido que Marshall dá à expressão: o faraó participou também do
‘sacrifício’ na proporção dos gozos diversos que os seus escravos lhe teriam proporci
onado se os tivesse utilizado para outro fim. O ponto de vista dos escribas da corte
egípcia pode ter sido o de que o ‘custo real’ que cabia ao faraó era da mesma natureza
e espécie que o dos escravos construtores das pirâmides. Mas é difícil pensar que
alguém que não seja um casuísta ou um adulterador poderia descobrir algum sentido
de utilidade em que este ‘sacrifício’ do faraó seja da mesma natureza do que teria
suportado se tivesse ele próprio trabalhado na construção das pirâmides”.
3. A " r e v o l u ç ã o m a r g in a li s t a "
Foi, porém, a partir de 1870 que a ciência económica tomou o rumo que ficaria
conhecido por marginalismo. A análise marginalista parte de novos conceitos sub
jectivos de valor e centra-se na investigação das causas das variações dos preços de
mercado, com base no raciocínio na margem.
Entre os precursores, destacam-se Augustin Cournot (o iniciador da economia
matemática, que se preocupou fundamentalmente com a análise das condições da
troca e da formação dos preços), Heinrich Von Thünen (considerado o verdadeiro
fundador da análise marginal) e Herman Gossen (que enunciou várias leis - co
nhecidas por leis de Gossen - sobre as necessidades e os bens económicos e foi o
imediato antecessor da Escola Austríaca).
Quase simultaneamente (1871 e 1874) e sem qualquer ligação entre si, o aus
tríaco Cari Menger, o inglês William Stanley Jevons e o francês Léon Walras
(professor em Lausana) enunciaram o princípio da utilidade marginal decrescente e
começaram a utilizá-lo de forma consciente e consequente na sua elaboração teó
rica. Estava lançada a “revolução marginalista”, a ‘revolução’ subjectivista, a ‘revo
lução’ da utilidade marginal, a ‘revolução’ do equilíbrio económicogeral, que receberia
contributos e desenvolvimentos posteriores de autores como Eugen Von Bõhm-
Bavverk, Friedrich Von Wieser, Ludwig Von Mises, Friedrich Hayek, Vilfredo
Pareto, Alfred Marshall e A rthur Cecil Pigou, John-Bates Clark, Phillip W icks-
teed, entre outros.
A v elã s N u n e s - 5 4 1
tamos nós. AN] no quadro de uma acesa luta de classes”. Enquanto os marxistas se
propõem estudar as leis de movimento do capitalismo para melhor poderem ace
lerar o processo da sua destruição, os marginalistas identificam-se com o capita
lismo, defendem as suas virtudes e proclamam a sua aspiração à eternidade.
Há, no entanto, uma grande diferença, como observa Sweezy: o marxismo
assumiu abertamente que assim era; os marginalistas perfilaram-se para a luta a
coberto de uma auto-proclamada cientificidade da “economia pura” (uma “ciência
físico-matemática”, com “o mesmo grau de certeza que possui a mecânica racio
nar), com o que isso significa de neutralidade científica para os seus postulados e
para as suas conclusões e de objectividade para as suas verdades.
526 Poderá já náo ser assim para os que têm que respirar oxigénio com certa frequência, em virtude de trabalharem
em locais fortemente polufdos; ou quando se trata de ar condicionado, ou do ar que se respira num aviáo, num
submarino ou numa nave cósmica.
5 4 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o U t ic a
Nessa situação, deixariam de existir bens económicos, isto é, bens que fossem
relativamente escassos. E, m uito provavelmente, já não haveria necessidade de
se realizarem estudos económicos ou de se econom izar’.Todos os bens seriam
bens livres, com o acontece com o ar ou com a areia do deserto.
M as, na realidade, os bens não são todos livres. N este nosso m undo, as crianças
aprendem que A m bos’ não é um a resposta admissível para um a escolha entre
‘Q ual deles queres?’. A s sociedades industriais m odernas parecem realm ente
m uito ricas quando comparadas com os países atrasados ou com os séculos
anteriores. N o entanto, os níveis de produção mais altos parecem arrastar
consigo níveis de consum o cada vez mais exigentes. A escassez perm anece
com o um facto real”.
• C om o se devem produzir os bens, isto é, por quem , com que recursos e por
que processo tecnológico devem ser produzidos? Q uem caça, quem pesca?
Q ue fonte de energia escolher para produzir electricidade: petróleo e carvão,
• Para quem são os bens que se produzem? Isto 6, quem é que se vai aproveitar dos
bens e serviços produzidos no país? O u, por outras palavras, como é que é repar
tida a totalidade do produto nacional entre os diversos indivíduos e famílias?
Deveremos aceitar um a sociedade onde existem alguns ricos e m uitos pobres?
O u um a sociedade onde todos partilham igualmente os frutos da produção?
Remuneração elevada para os músculos ou para o Q I? M erecerão os ambiciosos
c os egoístas herdar a terra? Terão os preguiçosos direito a comer bem?”.
5 .2 . U m a d e f in iç ã o a n a l ít ic a d a c iê n c ia e c o n ó m ic a
Todos os actos que envolvem tempo e meios escassos para alcançar um objectivo
implicam o sacrifício da sua utilização para conseguir outro(s) objectivo(s). Eles
têm um aspecto económico”.
A sua definição de ciência económica é, pois, perante uma definição analítica', a
ciência económica “não procura escolher certos géneros de comportamentos, mas
incide especialmente num aspecto particular do comportamento, a forma de que ele
se reveste sob a influência da escassez”.
Para que a actividade humana se apresente sob um aspecto económico, i.é, para
que assuma a forma de uma escolha, são necessários certos requisitos, que Rob
bins explica assim:
“D o ponto de vista do economista, as condições da existência hum ana possuem
quatro características fundam entais. O s objectivos são m últiplos. O tem po e
os meios para os atingir são limitados e susceptíveis dc utilizações alternativas.
A o m esmo tem po, os objectivos têm im portâncias diversas. E is-nos criaturas
sensíveis, com múltiplos desejos e aspirações, com um a gam a enorm e dc ten
dências instintivas, todas estim ulando-nos à acção por diferentes vias. M as o
tem po em que estas tendências podem ser expressas é lim itado. O m undo
exterior não oferece plena oportunidade à sua com pleta realização. A vida é
breve. A natureza é avara.
O s nossos com panheiros têm outros objectivos. E todavia nós podem os u tili
zar as nossas vidas para realizar coisas diferentes, podem os utilizar os nossos
m ateriais e os serviços dc outros para alcançar diversos objectivos. O ra a
m ultiplicidade dos objectivos não tem em si, necessariamente, interesse para o
economista. Sc eu tenho necessidade de fazer duas coisas e disponho de tem po
c dc meios suficientes para fazê-las a ambas, não me sendo necessários o tem po
e os meios para outras coisas, então a m inha conduta não assume nenhum a das
formas que constituem o objecto da ciência económica. O nirvana não é neces
sariam ente um a simples beatitude. C onstitui nada mais nada m enos do que a
satisfação com pleta de todas as necessidades.
N em a simples lim itação dos meios é por si suficiente, para dar origem a
fenóm enos económicos. Se os meios de satisfação não tiverem um uso alterna
tivo, podem ser escassos, mas não podem ser econom izados. O m aná que
chovia do céu podia ser escasso, mas, na m edida em que era impossível trocá-
lo por qualquer outra coisa ou adiar o seu uso 529, não era objecto dc nenhum a
actividade que revestisse um aspecto económico.
529 Em nota de rodapé (p. 13), Robbins escreve que 'vale talvez a pena pôr em relevo o significado desta qualifi
cação. A aplicação de meios tecnicamente idênticos para a prossecução de objectivos qualitativamente idên
ticos em tempos diferentes constitui uma forma de uso alternativo desses meios. Se isto não for claramente
5 5 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia PoihriCA
Tam bém a aplicabilidade alternativa dos meios escassos não é, por si só, condi
ção suficiente para a existência do género de fenómenos que estamos a analisar.
Se o sujeito económ ico tiver dois objectivos e apenas um meio para os satisfa
zer, e se os dois objectivos tiverem a mesma im portância, a sua posição será
igual à do asno da fábula, incapaz de se mover entre dois feixes dc feno igual
mente apetecíveis.
5.3. A C IÊ N C IA E C O N Ó M I C A É N E U T R A EM R E L A Ç Ã O A O S F IN S
compreendido, será desprezado um dos mais importantes tipos de acção económ ica'.
É ainda Robbins quem esclarece (últ. ob. cit., 21 ) que “é verdade que a escassez de liens materiais é uma das
limitaçóes da conduta humana. Mas a escassez do nosso próprio tempo e dos serviços de outros é exactamente
tâo importante como aquela".
530 Cfr. L. ROBBINS, Essay..., ch., 12-17.
A v elà s N u n es - 5 5 3
Assim - conclui Robbins - não é legitim o dizer que é não económico ir para a
guerra, se, tendo em conta todas as consequências e todos os sacrifícios neces
sariam ente envolvidos, se decide que o resultado previsto justifica o sacrifício.
Só é legítim o descrever as coisas assim se se procurar alcançar esse fim com um
grau de sacrifício não-necessário”.s,J
explicaçõcs das suas causas ou consequências são científicas, elas são neutras a
este respeito”.SJ2
532 C f r. L. RO BBIN S, ob. cit. (1981), 4. A propósito destas considerações de Robbins, vale a pena recordar aqui a
conhecida distinção conceituai entre teoria, política e doutrina (cfr. 1.1. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política,
ciL, 17-19).
A teona 6 constituída pelas hipóteses (juízos de existência formulados com base em relações supostas entre
fenómenos, o que significa que ainda náo sáo ciência) e pelas leis científicas (aquelas que exprimem, sob a
forma de juízos de existência, relações reais entre fenómenos). Apresentando a teoria um carácter essencial
mente dedutivo, a teoria económica é integrada apenas pelas leis lógicas ou leis tendenciais (enunciados de
conexões lógicas que se obtêm extraindo, das premissas inicialmente admitidas e colhidas da realidade por via
dedutiva, as suas consequências ou tendências), ficando de fora as leis impíricas ou leis estatísticas (que expri
mem apenas uniformidades observadas no lugar e durante o período considerados, as quais náo passam de
meras hipóteses de leis, ou de 'leis' cuja validade se restringe necessariamente ao período em causa, nada
provando que as uniformidades durante ele verificadas se repetiráo sempre no futuro).
Sc as leis económicas forem aplicadas à prossecução de determinado fim, transformam-se em regras. E cha
ma-se política económica ao conjunto de regras (principalmente formuladas para serem aplicadas pelo esta
do) conducentes ao mesmo fim.
Finalmente, a doutrina é um conjunto de juízos de valor que qualificam actos ou factos em relação a um fim.
Em, resumo: 'a teoria diz o que é; a política, o que pode ser; a doutrina, o que deve ser*.
533 Sobre estas questões, cfr. O . LA N C E, Economia Política, ed. cit., 147-222 e UN ESCO, A Ciência Económica,
ed. cit-, 50ss.
5 5 6 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o ü t ic a
como vimos, na economia de meios. Nas suas próprias palavras, Robbins concebe “the
subject-matter o f Economics as the rationaldisposal ofgoods”, acrescentando que as
generalizações da Economia se baseiam no postulado fundamental das valorações relativas
(“relative valuations”) e no postulado psicológico mais geral de uma conduta inteira
mente racional, não no sentido de conduta eticamente adequada, mas no sentido de acção
logicamente consistente. O próprio Robbins considera “perigoso equívoco” o entendi
mento segundo o qual “as generalizações da Economia são essencialmente histórico-
relativas, sendo a sua validade limitada a certas condições históricas fora das quais elas
não têm qualquer relevância para a análise dos fenómenos sociais”.535
A ciência económica assim concebida assume uma perspectiva a-histórica, na
medida em que a conduta económica que constitui o objecto da análise científica
obedece sempre ao mesmo princípio de racionalidade, seja qual for o contexto
histórico e institucional em que se desenvolva.
5.5. A E c o n o m ia c o n f i g u r a d a c o m o c iê n c ia d e d u t iv a
mente admitida de que fins múltiplos e de importância diversa podem ser obtidos
com meios escassos, aplicáveis a usos alternativos”.
Outros autores põem em relevo que, na sequência das concepções de Lionel
Robbins, a ciência económica emerge não como “uma ciência social que estuda a
realidade objectiva”, mas como “um sistema de proposições dedutivas que não
podem ser empiricamente verificadas”, como uma “teoria com características de
conhecimento apriori, do mesmo modo que a matemática, que não pode originar
verificações empíricas (quer estatísticas, quer históricas)”.539
Esta é, porém, uma conclusão que parece não coincidir com os pontos de vista
expressamente defendidos pelo próprio Robbins. Para ele, “o objectivo do econo
mista é a interpretação da realidade. (...) E verdade que nós [os economistas] dedu
zimos muito de definições. Mas não é verdade que as definições sejam arbitrárias”.
Uma característica das generalizações científicas - continua Robbins - reside em
que “elas referem-se à realidade” e, por isso mesmo, quer se apresentem como hipó
teses, quer se apresentem como categorias “elas são distintas das proposições da
lógica pura ou da matemática pelo facto de, em certo sentido, a sua referência ser ao
que existe, ou ao que pode existir, e não a relações puramente formais”. As proposi
ções da Economia “são deduções de postulados simples que reflectem factos muito
elementares da experiência corrente. Se as premissas se referem à realidade, as dedu
ções obtidas a partir delas têm que ter um ponto de referência semelhante”. Daí, em
conclusão, ser incorrecto dizer que a Economia “é um mero sistema de inferências
formais que não têm uma relação necessária com a realidade”.540
5 . 6 . A E c o n o m ia es tu d a r ela ç õ es en tr e h o m en s e ben s
E C O N Ó M IC O S
Marx, o qual, considerando que o valor de uso indicia uma relação entre o consu
midor e o objecto consumido, defende que “o valor de uso como tal está fora da
esfera de investigação da Economia Política”542, já que, sendo esta uma ciência
social (uma ciência que se ocupa de relações entre homens), tal implica que as
categorias nela utilizadas sejam categorias sociais, i.é, categorias que se reportam a
relações entre pessoas.
6. A C R ÍT IC A D O M A R G IN A L IS M O
6 .1 . O â m b it o d a E c o n o m ia m a r g in a l is t a
542 Cfr. C . M ARX, Critique de UÍconom ie Politique, em KarlM ARX-Oeuvres (ed. Maximilien RUBEL, c it), 1,278.
5 6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a
6 .2 . O S IG N IF IC A D O D O H O M O O ECO NO M ICUS
Terá sido Nassau Sênior quem pela primeira vez distinguiu a economiapositiva
(“uma ciência pura e estritamente positiva”) da economia normativa (“uma arte da
economia impura e inerentemente normativa”).
Também David Hum e e, depois, John Stuart M ill apresentaram propostas
semelhantes. A afirmação de Hume, segundo a qual “não se pode deduzir o dever
ser do ser”, ficou conhecida por guilhotina de Hume, porque ela estabelece uma
separação radical entre positivo e normativo, entre ser e dever ser, entre factos e
valores, entre objectivo e subjectivo, entre ciência e arte, entre juízo de verdadeiro
ou falso e juízo de bom ou mau.
N o final do séc. XIX, a questão da Wertfreiheit (i.é, a possibilidade de uma
ciência económica isenta de valores, imune à interferência de juízos de valor)
esteve presente na famosa luta dos métodos (“M ethodenstreit”), uma controvérsia
entre os adeptos da Escola Histórica Alemã (representada por Gustav Schmõller)
e os representantes da Escola Subjectivista de Viena (encabeçada por Cari M en-
ger). Os primeiros valorizavam a perspectiva histórica e a compreensão da economia
e da sociedade, com a inerente valoração da evolução verificada, considerando-se
esta valoração como um elemento indispensável do estudo ‘objectivo’ da economia
e da sua ‘esssência’; os segundos defendiam uma teoria estritamente empírica,
analítica e dedutiva.
M as foi com a “revolução marginalista”, a partir do início da década de 70 do
século XIX, que a nova economia começou a defender sistematicamente, como
verdade indiscutível (‘científica’), o seu carácter científico, objectivo, neutro em rela
ção a valores éticos ou políticos, com o objectivo de separar a sua ‘ciência’ das
‘doutrinas’ socialistas (em especial o marxismo) que tinham surgido a partir da
Economia Política clássica.
A própria afirmação da sua neutralidade e do seu carácter ‘científico’ e ‘apolíti-
co’ não é alheia a objectivos de natureza ideológica e política. A reivindicação para
a nova ciência económica subjectivista-marginalista (depois consagrada sob a desig
nação de Economics) dos métodos e dos padrões de validade científica aplicados às
ciências físicas buscava para ela a ‘credibilidade’ que o cientismo da época outorga
va às ciências da natureza. Ao mesmo tempo, a adopção de uma perspectiva a-
histórica orientada para a descoberta de princípios de comportamento, categorias
teóricas e leis de validade absoluta e universal foi um meio de subtrair ao estudo da
ciência económica os grandes temas da Economia Política clássica que, com Marx,
começaram a pôr em causa a aspiração da ‘ordem burguesa’ à eternidade.
Actualmente, muitos economistas - entre os quais dois prémios Nobel, Milton
Friedman e Georges Stigler - defendem a distinção entre Economia Positiva e
Economia Normativa, querendo significar que só pode falar-se de ciência (= ciência
A v elã s N u n es - 5 6 5
E esta circunstância é que leva vários autores - com particular destaque para
G unnar M yrdal - a defender a impossibilidade de uma Wertfreiheit absoluta e a
admitir que elementos ético-valorativos entrem na análise económica (o que, em
certos casos, pode até ser desejável), imputando aos investigadores o dever (ético e
científico) de esclarecer aberta e explicitamente as premissas de que partem, no
plano dos valores, as quais, seja qual for o grau de consciência ou a intenção de
cada investigador, influenciam a escolha dos temas a investigar e levam à inserção
de elementos normativos nas teorias elaboradas. Só deste modo não se corre o
risco de se fazer passar as concepções filosóficas de que se parte por resultados
obtidos através da análise científica.
A este respeito, G unnar Myrdal (Prémio Nobel da Economia) não hesita em
afirmar que “nunca existiu uma ciência social ‘desinteressada e, por razões lógicas,
nunca poderá existir”. Na sua opinião, a “única forma de podermos atingir a ‘ob
jectividade’ na actividade teórica consiste em expor claramente as valorações, tor-
ná-las consistentes, bem definidas e explícitas, permitindo que os seus efeitos
condicionem a nossa investigação, mas de uma forma clara”.
E o economista sueco explica: “A elucidação das nossas visões e a definição das
nossas específicas premissas de valor são mais obviamente imperativas e ao mesmo
tempo mais fáceis se não compreendermos que não devemos esperar ingenuamente
que as nossas ideias, mesmo no domínio da investigação científica, não são condicio
nadas por nenhum outro elemento que não seja o nosso anseio de buscar a verdade”.
Um outro crítico do princípio de uma Wertfreiheit absoluta, Robert Heilbroner,
defendeu (num importante ensaio publicado na revista Social Research) que, dada a
especial relação do investigador com o objecto da investigação no âmbito da ciên
cia económica, a interpretação da realidade será sempre impregnada de valores,
tornando-se a defesa de valores um elemento inseparável - na verdade, um elemento
desejável - da investigação científica, qualquer que seja o grau de consciência dos
investigadores relativamente a este ponto. Segundo Heilbroner, “a Economia não
é e não deve ser isenta de valores”. Por isso ele defende que os economistas não
devem definir como objectivo uma análise isenta de valores. A sua obrigação en
quanto cientistas traduz-se no dever de esclarecer os seus leitores acerca dos pres
supostosfilosóficos da sua análise, e no dever de explicitar os juízos de valor que os
inspiram, em vez de os fazerem passar por leis inerentes à natureza das coisas ou por
verdades cientificas inatacáveis.
Seria talvez redundante acompanhar aqui o raciocínio e os argumentos de
vários outros autores cujas conclusões não andam longe das que ficam enunciadas.
Recordaremos Schumpeter, Joan Robinson, Maurice Dobb, H om a Katouzian,
Kurt Rotschild, M ark Blaug, entre outros. A propósito desta questão de saber se é
A v elã s N u n es - 5 6 7
possível atingir uma ciência económica que seja uma pura ciência dos meios, neutra
em relação aos fin s y referiremos apenas François Perroux, o autor em que mais
frontalmente vimos defendido o ponto de vista de que “é impossível uma ciência
humana dos meios puros, separados dos objectivos e dos valores”, porque “uma
ciência dos meios não pode estudá-los com precisão e exactidão deixando de lado
as finalidades que eles revelam”.
A pretexto da distinção entre os dados e as variáveis, o que se pretende - escreve
Perroux num ensaio sobre Poder e Economia - é deixar de fora da análise do econo
mista elementos como “o regime de propriedade e as regras do jogo social, as rela
ções entre poderes sociais”. Deste modo, o economista elabora conceitos implicitamente
normativos, “sendo a norma, neste caso, a combinação das regras do jogo que servem
a ‘parte superior da sociedade, os seus interesses económicos e a duração do seu
poder”. A lógica moderna - conclui François Perroux - condena a distinção simplista
segundo a qual a economia é uma ciência dos meios e não uma ciência dosfinsr. “se os
fins estão de fora do alcance dos economistas, eles poderão ficar reduzidos à aceita
ção da ordem social existente (...), confundida com a ordem social sem epítetos”.
Como corolário, espreita o risco - denunciado por Samuel Bowles - de os econo
mistas se verem transformados nos “novos servidores do poder”.
A pretensa neutralidade da ciência (ou dos cientistas) é, aliás, contestada por
alguns autores no próprio plano da metodologia científica.
Hom a Katouzian admite que os investigadores podem ser indiferentes relati
vamente a certos problemas. M as defende que a indiferença, a neutralidade (hoc
sensii) é ela própria uma posição moral, significa um juízo de valor, sendo certo que
a neutralidade (a indiferença, a imparcialidade) não é, em si mesma, sem ter em
conta o respectivo contexto, nem necessariamente correcta nem necessariamente
superior a um empenhamento consciente.
Robert Heilbroner e Hom a Katouzian mostram, por outro lado, que o pressu
posto maximizador em que assenta a construção subjectivista-marginalista é a ne
gação da neutralidade que se invoca.
Este pressuposto casa-se perfeitamente com o ponto de vista dominante de que
mais é melhor. Nestes termos, o pressuposto da maximização confere uma certa
autoridade ‘científica’ às afirmações correntes nos manuais da mainstream economics
segundo as quais o consumidor que atinge o cume da sua curva de indiferença fica
mais (melhor) satisfeito do que aquele que se queda num ponto mais abaixo, ou
segundo as quais uma economia com uma taxa de crescimento elevada oferece
necessariamente melhor nível de bem-estar do que outra com uma taxa de cresci
mento mais baixa.
5 6 8 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o l ít ic a
6 .4 . A E c o n o m i a m a r g in a l is t a n ã o p o d e c o m p r e e n d e r o
C A PIT A L ISM O
tam acerca da utilização dos recursos disponíveis (que não pode deixar de se con
siderar um problema social).
6.4.5. - As concepções subjectivistas partem da existência de necessidades indi
viduais e tomam como objecto da ciência económica a luta contra a escassez, com
vista à satisfação dessas necessidades.
O ra a verdade é que, nas economias capitalistas, a produção não visa a satisfa
ção das necessidades. MA finalidade da economia capitalista - como escreve Teixei
ra Ribeiro - resume-se à transformação de certa soma de dinheiro em uma soma
de dinheiro maior”. Como sublinha este mesmo autor, “na economia capitalista a
satisfação das necessidades é um meio, e não um fim”, o que significa que, “sempre
que seja conveniente, sacrifica-se o meio à realização do fim, procurando alcan-
çar-se mais lucro, mesmo à custa de satisfazer menos necessidades”.S43
Não admira, por isso, que os críticos do marginalismo considerem a ciência
económica subjectivista incapaz de enquadrar as questões fundamentais que se
colocam no quadro do capitalismo, nomeadamente a problemática da chamada
sociedade de consumo, no seio da qual as necessidades humanas se transformam em
“puro produto do sistema.”. A análise da sociedade de consumo - comenta H ubert
Brochier - “é um escândalo para os economistas, desde sempre habituados a raci
ocinar em termos de funcionalidade, de utilidade. É um desafio às categorias mais
incontestadas do pensamento económico e em primeiro lugar à noção de utilidade
sobre a qual se encontra alicerçado todo o edifício do marginalismo e do equilí
brio paretiano”.
A Economia entendida como ciência da escolha caracteriza o capitalismo como
economia de mercado livre, na qual a soberania do consumidor (a liberdadepara escolher
de que fala M ilton Friedman) determina todas as escolhas feitas livremente no
mercado por cada um dos indivíduos que nele actuam, os quais decidem, em último
termo, à escala da economia como um todo, o quê\ como epara quem se vai produzir.
No fundo, o mito da soberania do consumidor é um reflexo do mito liberal do
contratualismo, que reduz toda a vida em sociedade - nomeadamente a vida eco
nómica - a relações contratuais livremente assumidas por indivíduos livres, indepen
dentes e iguais em direitos, cada um dos quais dispõe de informação completa
sobre todas as alternativas possíveis e sabe perfeitamente o que quer.
A soberania do consumidor é invocada também para ‘legitimar’ os resultados do
funcionamento das economias de mercado livre no que toca à distribuição da riqueza
e do rendimento. A sua ‘legitimação’ deriva da ideia de que eles são livremente
queridos e assumidos por todos e por cada um, através da livre escolha individual.
Von Mises defende expressamente que, “numa sociedade capitalista, a riqueza só
pode adquirir-se e conservar-se mediante uma atitude que corresponda às exi
gências dos consumidores. Assim, a riqueza de prósperos comerciantes é sempre o
resultado de um plebiscito dos consumidores e, uma vez adquirida, a riqueza só
pode conservar-se se for utilizada da forma que os consumidores considerem mais
benéfica para eles”.
Em sentido contrário, invoca-se toda a lógica da sociedade de consumo, em que
as necessidades são um mero pretexto para vender aquilo que se produz (se não há
necessidades, inventam-se, e os desejos ‘produzem-se’ao mesmo tempo que os bens).
O peso crescente da moda e da publicidade na determinação do comportamento
dos consumidores dá razão aos que defendem (como Alvin Hansen) que “os dese
jos dos consumidores deixaram de ser uma questão de escolha individual”, tendo-
se tornado ”uma produção de massa”. A realidade quotidiana mostra que, para
além de um certo grau de inter-actividade, as grandes empresas criam necessida
des e desejos, fabricam as modas, modificam os hábitos de consumo, praticamente
à escala do planeta.
Os defensores das virtudes do mercado sustentam que, dando a todos iguais
possibilidades de participar na orientação da vida económica, o mercado é a base
de um autêntico governo democrático da economia, indo outros ao extremo de afir
mar que “a economia de livre empresa é a outra face da democracia”: “nesta
grande e contínua eleição geral da economia livre - escreveu Enoch Powel -,
ninguém, nem mesmo o mais pobre, é privado do seu direito de voto: estamos
todos a votar a todo o momento”.
Contra a ‘leitura’ do significado da ‘votação’ efectuada no mercado parece
decisivo, porém, o argumento de M ark Blaug, segundo o qual um tal ponto de
vista ‘esquece’ o facto essencial de que no mercado se efectua “uma eleição em que
alguns eleitores podem votar mais do que uma vez”, porque, no mercado livre, o
peso (a influência) do voto de cada consumidor depende do que cada um gasta no
mercado, o que, por sua vez, depende da riqueza e do rendimento de cada um.
Os marginalistas dirão que os rendimentos de cada pessoa correspondem à
‘contribuição’ de cada uma para o rendimento da comunidade. Os críticos da teo
ria da produtividade marginal negam que assim seja. E se não houver uma ‘justi
ficação moral’ para as diferenças de rendimento e para a diferença de natureza dos
rendimentos dos trabalhadores e dos rendimentos dos capitalistas, é inevitável a
conclusão de que a ‘votação’ do mercado está viciada à partida e conduz a resulta
dos injustos, que reflectem e ajudam a perpetuar as estruturas (de poder) que ge
ram e mantêm as diferenças de rendimentos. Esta conclusão será ainda mais evidente
A v e iA s N u n e s - 5 7 5
fica claro que as relações sociais de produção são essencialmente relações depoder,
se entendermos a dimensão económica do poder como M a capacidade que tem um
grupo social de forçar a formação de um excedente e/ou de se apropriar dele” (na
formulação de Celso Furtado). Neste sentido, a apropriação do excedente s'urge,
em Marx, como expressão do poder de que disfruta a classe capitalista enquanto
detentora dos meios de produção.
O poder começou a ser ‘esquecido’ como objecto de análise económica com as
primeiras representações matemáticas da economia (Walras e Pareto), acabando
por ser banido de todas as concepções da ciência económica que a identificam
como uma ciência da escolha, uma teoria das trocas ou uma teoria da formação
dos preços em (supostos) mercados de concorrência.
Actualmente, as relações económicas, quer no quadro de cada economia naci
onal quer no plano das relações económicas internacionais, tendem a configurar-
se cada vez mais como relações depoder. Nestas condições, ganha redobrada força a
posição de François Perroux ao condenar a tese dos que excluem da teoria econó
mica a análise do poder. Tal tese “coloca-se numa posição objectivamente e cientifi
camente insustentável relativamente às outras ciências sociais. O esquema de base
da relação social trata o poder como um factor omnipotente e ineliminável”.
6.4.7. - Um dos pressupostos da Economia marginalista é a consideração do
mercado como o mecanismo mais eficiente de afectação de recursos escassos a usos
alternativos, sendo o sistema de preços o critério de avaliação dessa eficiência.
Mais: na medida em que nele se realiza o princípio universal de racionalidade
inerente à natureza humana, o mercado é, para os marginaiistas, o único instru
mento racional de afectação de recursos escassos a usos alternativos.
Mas a adopção deste critério implica, desde logo, que se afastem da análise todas
as motivações que não possam ser avaliadas através do padrão de medida da moeda.
Por outro lado, “a afectação eficiente de recursos escassos entre fins alternativos
não pode ser efectuada sem um padrão de avaliação. E o facto de o sistema de
preços ser um padrão de avaliação particular, nomeadamente aquele que avalia
cada dólar do mesmo modo, independentemente da forma que ele tem, não nos
deveria cegar - observa M . Blaug - quanto ao facto de a aceitação dos resultados
do sistema de preços concorrenciais ser um juízo de valor”. E isto porque “o
sistema de preços é uma eleição em que alguns eleitores podem votar mais do que
uma vez, e a única forma de votar é gastando dinheiro”.
Os críticos desta concepção sustentam, ao invés, que o mercado não é um puro
mecanismo natural de afectação eficiente e neutra de recursos escassos e de regulação
automática da economia. Para quem assim pensa, o mercado deve antes conside-
5 7 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o iít ic a
rar-se, como o estado, uma instituição social, um produto da história, uma criação
histórica da humanidade (correspondente a determinadas circunstâncias económi
cas, sociais, políticas e ideológicas), que veio servir (e serve) os interesses de uns
(mas não os interesses de todos), uma instituição política destinada a regular e a
manter determinadas estruturas depoder que asseguram a prevalência dos interesses
de certos grupos sociais sobre os interesses de outros grupos sociais.
Segundo este outro ponto de vista, o mercado e o estado são ambos instituições
sociais (“longe de serem ‘naturais’, os mercados são políticos” - David Miliband),
que não só coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se
um ao outro no processo da sua inter-acção.
Nesta óptica, a questão fundamental não é a de saber se deve escolher-se o
mercado ou o estado, ou mesmo a de saber qual o peso do mercado e qual o peso
do estado (sendo certo que bom estado significa algo mais do que menos estado). A
questão fundamental é a de saber “que espécie de mercados desejamos criar e que
espécie de estado queremos desenvolver”. (D. Miliband).
À luz do que fica dito, resulta que a defesa do mercado como mecanismo de
regulação automática da economia, por oposição à intervenção do estado neste do
mínio e com este objectivo, não representa apenas um ponto de vista técnico sobre
um problema técnico.
A defesa do mercado é a defesa de uma certa concepção do mundo, expressa na
doutrina liberal, que vê no mercado uma instituição natural, autónoma, soberana,
capaz de uma arbitragem neutral dos conflitos de interesses, uma instituição que -
nas palavras de Hayek - “não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não
são planeados nem previstos e dependem de uma multidão de circunstâncias que
não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja”544.
E é a defesa da concepção liberal do estado, entendendo este como instância
separada da economia e da sociedade civile considerando a não-intervenção do estado
na economia como corolário da natureza do estado enquanto pura instância política.
Uma concepção que - deixando de lado o entendimento dos fisiocratas, de
Locke e de Adam Smith - deliberadamente ignora a ‘compreensão’ da natureza de
544 Hayek entende que só faria sentido falar de justiça ou injustiça acerca da distribuição dos benefícios e dos ónus
operada pelos mecanismos do mercado se essa distribuição fosse o resultado da acção deliberada de alguma
pessoa ou grupo de pessoas, o que não é o caso. Por isso ele defende que a expressão justiça social deveria ser
abolida da nossa linguagem. "A expressão 'justiça social' não é, como a maioria das pessoas provavelmente
sente — escreve ele — , uma expressão inocente de boa vontade para com os menos afortunados, (...) tendo-
se transformado numa insinuação desonesta de que se deve concordar com as exigências de alguns interesses
específicos que não oferecem para tanto qualquer razão autêntica' (apud D. GREEN , ob. c/f., 127). No limite,
a confiança nas virtudes do mercado e da free society poderá levar mesmo à conclusão de que "a pobreza
é o fruto da preguiça' (W illiam Simon, citado por P. R O S A N V A llO N , ob. cit., 89).
A v e i As N u n e s - 5 7 9
regras por que se pautava a vida económica no modo de produção feudal eram ou
não adaptadas aos fins que então se ligavam à actividade económica.
Só uma apreciação desta natureza é possível relativamente ao capitalismo. Não
há lugar, portanto, para qualquer juízo comparativo sobre a racionalidade (eficiência)
dos dois sistemas e sobre o significado económico da passagem de um a outro. Quer
dizer: a ciência económica nada pode dizer acerca do significado económico da
passagem do capitalismo ao socialismo. O único juízo económico admissível consis
te tão só na definição dos meios mais adequados para conseguir certos fins que se
proponham no âmbito de um ou de outro dos sistemas considerados.
Esta é, se bem vemos, uma limitação importante imposta à ciência económica
pelas concepções que aceitam os princípios fundamentais da definição de Robbins.
E não faltam os autores que contrariam abertamente este tipo de limitações à
análise económica, mesmo autores não marxistas.
É o caso, v.g., de François Perroux, o qual sustenta que “ninguém tem o direito, a
pretexto de fazer ciência, de subtrair à análise científica o exame das consequências
económicas, favoráveis ou desfavoráveis, da mudança da ordem social”. E isto tanto
mais quanto é certo que (é ainda Perroux quem sublinha) “lutar contra a escassez não
é apenas aperfeiçoar o mercado (...), é também modificar o regime de mercado e,
mais latamente, rectificar as instituições de que o mercado é apenas um aspecto”.
A verdade é que a Economia Política surgiu e afirmou-se como disciplina cientí
fica no contexto da passagem da velha ordem feudal para a nova ordem capitalista e -
como fica dito acima - a Economia Política de Adam Smith e de Ricardo foi uma
ciência empenhada em transformar o mundo, em acelerar a dissolução da sociedade feu
dal, e os conceitos e categorias teóricas da Economia Política clássica não se furtaram
à comparação de formas económicas e sociais alternativas, antes evidenciaram a supe
rioridade das relações de produção capitalistas em confronto com as relações de pro
dução feudais e com a regulamentação e os monopólios do mercantilismo.
6.4.9. - Nos dias de hoje, com a entrada em cena dos problemas do ambiente,
parece irrecusável a consideração de modelos alternativos de organização econó
mica e de crescimento económico.
A mainstream economics assume a escassez como um dadofundamental da vida,
faz da escassez a sua categoria identificadora como ciência cujo objecto é identifica
do com o estudo do comportamento do homem condicionado pela escassez.
M as é incapaz de se aperceber de que o planeta é hoje oprimeiro bem escasso. O
que indicia que problemas como o da poluição não cabem na lógica da análise
marginalista, que compara custos e benefíciosprivados, mas não é sensível aos custos
sociais de um crescimento baseado na maximização dos lucros, nem é capaz de
comparar custos sociais e benefícios sociais.
A v e là s N u n e s - 5 8 1
lógico permite que se disponha de mais tempo para as actividades do espírito, para as
actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada vez mais bens
para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens. O que está em
causa, nos países capitalistas industrializados, é a necessidade de encontrar outro modo
de organizar a economia e a sociedade, num quadro histórico em que o trabalho, se
ainda não é, “ele próprio, a primeira necessidade vital”, começa a não ser somente “um
meio de viver” (parafraseando o Marx da Critica do Programa de Gotha).
A ciência económica não pode adiar por muito mais tempo a necessidade de enca
rar a busca de um outro padrão de racionalidade, que admita, por exemplo, resolver o
problema do desemprego a partir da redução do horário de trabalho e do aumento dos
tempos livres, em vez de pretender atrasar duzentos anos o relógio da história, agitan
do o papão dos “tigres asiáticos” e sacrificando tudo no altar da sacrossanta competiti
vidade. Esta é, porém, uma tarefa que a ciência económica marginalista não está em
condições de levar a cabo e para a qual não pode dar qualquer contributo.
6.4.11. - Já dissemos que a escassez é o centro de gravidade da mainstream
economics. Resta saber, então, se o problema da escassez será o problema central que
hoje se coloca à humanidade, apesar dos milhões de miseráveis que a ‘civilização
da abundância gerou e continua a gerar. Basta pensarmos nos gastos astronómicos
da União Europeia para retirar os excedentes agrícolas de circulação (e, se possível,
para os ‘destruir como bens aptos para a sua função normal de bens capazes de
satisfazer necessidades das pessoas) ou no famoso take aside da nova PAC: a U E
paga para que se deixem terras incultas e se reduza a produção, para evitar os
excedentes..., não para resolver problemas suscitadospela escassez.
Se a fome existe (e até vai aumentando), não é porque os meios naturais, hu
manos e técnicos disponíveis não permitam a produção de alimentos suficientes
para alimentar todos os habitantes do nosso planeta. O problema é outro. E faz
todo o sentido a resposta de Amartya Sen quando defende que o facto de haver
pessoas que passam fome - e que morrem de fome -, apesar da abundância de bens
(ou pelo menos da existência de quantidades suficientes de bens), só pode expli
car-se pela falta de direitos e não pelafalta de bens. O problema fundamental não é,
pois, a escassez, mas a organização da sociedade.
Com entando este ponto de vista de Sen, pergunta Dahrendorf: “Porque é que
os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmente
para si aquilo em que supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcance?
Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes que o ser ou não ser}n [subli
nhados nossos. AN]
Para os que reduzem os homens ao fantasma do homo oeconomicus enquanto ser
capaz de escolhas racionais, dir-se-ia que os homens, mesmo quando está em causa a
A v elã s N u n es - 5 8 3
sua sobrevivência, quando está em causa ser ou não ser, escolhem, racionalmente, não
fazer nada, i.é, escolhem não tomar para si aquilo de que carecem em absoluto e
que está ao seu alcance.
Mas é claro que o absurdo desta resposta deixa antever que a questão é outra.
Não é uma questão defalta de bens, é uma questão defalta de direitos (ou defalta de
poder). A organização económica das sociedades capitalistas representa uma deter
minada estrutura depoder (a autoridade e subordinação de que falava Smith), assente
na propriedade burguesa. Esta é uma propriedade perfeita e excluente, consagrada
pelo direito e garantida pelo estado, que exclui os não proprietários do acesso ao que
está ao seu alcance mas que não têm o direito (opoder...) de tocar. Porque o estado “não
tem qualquer outro objectivo que não seja a preservação da propriedade” (John
Locke), e é instituído “com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou
daqueles que possuem alguma coisa em detrimento daqueles que nada possuem”,
cabendo-lhe a missão fundamental de “manutenção e consolidação dessa autoridade
e subordinação” que surgiu nas sociedades humanas com o aparecimento da propri
edade privada (de “propriedades valiosas e vastas”) e a “desigualdade de fortuna”.
São palavras de Adam Smith, estas últimas. E assim o liberal Adam Smith dá
a resposta à pergunta do liberal Dahrendorf: a fome não resulta da escassez de
bens, mas de uma organização sócio-económica garantida pelo poder político e
militar de um estado que existe para “defesa dos ricos em prejuízo dos pobres”. O
problema do poder - completamente afastado da análise económica pelos margina-
listas e por todos os que se integram na mainstream economics - parece ser o proble
ma decisivo, não o problema da escassez.
A o equacionar esta problemática, é natural a pergunta de Dahrendorf: “o que
seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém
tivesse fome?” [sublinhado nosso] Esta é uma pergunta que a teoria económica de
raiz marginalista não faz, porque não se consente analisar as consequências de uma
mudança de ordem social. M as a própria pergunta parece encerrar a ideia de que
é necessário modificar as estruturas de direitos (i.é, as estruturas do poder económico
e do poder político).
Se assim é, poderemos concluir que a Economia marginalista não tem qualquer
resposta para este tipo de questões, por deixar de fora da análise o poder, as relações
de poder e as estruturas do poder. E, se assim é, têm igualmente de afastar-se, por
inadequadas, respostas como a de M ilton Friedman: tudo o que a humanidade
precisa é de um mercado livre, o resto vem por si. É que o mercado livre é precisa
mente um dos mecanismos fundamentais da estrutura de direitos e poderes que se
admite ser necessário modificar.
,
_________
C a p ítu lo XIII
D a ‘R e v o l u ç ã o K e y n e s ia n a ’
C o n tr a - R evolução
M o n e t a r is t s
5 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a
1 . A G r a n d e D e p r e s s ã o : o fim d o l a i s s e z - f a i r e
A Grande Depressão veio deitar por terra os mitos liberais e pôr a nú as limi
tações da política monetária. Os mais optimistas passaram a defender que a polí
tica monetária poderia talvez suster a inflação, mas não poderia parar a depressão.
E o que se costuma exprimir através do aforismo “you can lead a horse to water
but you can not make it to drink.”
Keynes mostrou que a Grande Depressão não poderia explicar-se em termos
monetários, defendendo que são asforças reais da economia (os planos do governo,
dos empresários e dos consumidores), e não a oferta de moeda, os factores determi
nantes do comportamento do nível dos preços. A crise só podia entender-se como
o reflexo de um colapso no investimento privado e/ou de uma situação de escassez
de oportunidades de investimento e/ou de um excessivo espírito de economia por
parte do público, o que legitimava a sua conclusão de que a política monetária era
inadequada para contrariar a depressão.
A rejeição da lei de Say e do mito do pleno emprego constituem pontos fulcrais da
obra de Keynes e encerram o núcleo central da crítica keynesiana dos economistas
“clássicos”. Defendendo que nas economias capitalistas a circulação se faz segundo o
modelo marxista ‘D - M -D ’, Keynes sustenta que as situações de equilíbrio com
desemprego involuntário são situações inerentes às economias que funcionam segun
do a lógica do lucro e não segundo a lógica da satisfação das necessidades.
Para explicar as situações de desemprego involuntário - que considera o proble
ma mais grave das economias capitalistas - Keynes lança mão do conceito de
procura efectiva, o montante das despesas que se espera a comunidade fa ç a -por ter
capacidade para as p a g a r m consumo e em investimento novo. Se esta procura
efectiva não for suficiente para absorver toda a produção a um preço compensador,
haverá desemprego de recursos produtivos.
Este desemprego será desemprego involuntário, no sentido de que há pessoas
sem emprego desejosas de trabalhar por um salário real inferior ao praticado. Isto
significa que, ao contrário do que defendiam os “clássicos”, o nível de emprego
não depende do jogo da oferta e da procura no mercado de trabalho, antes é
determinado por um factor exterior ao mercado de trabalho, a procura efectiva. E
significa também que é o volume do emprego que determina, de modo exclusivo,
o nível dos salários reais, e não o contrário.
2 . K e y n e s : a o p ç ã o pela p o l ít ic a f in a n c e ir a
A necessidade de ultrapassar as situações de insuficiência da procura efectiva para
combater o desemprego exigia, na óptica de Keynes, uma intervenção mais ampla
A v elã s N un es - 5 8 7
549 Sem querer minimizar a influência da teorização de Keynes, cremos que o estado-providência e os ganhos
que ele trouxe para os trabalhadores se devem sobretudo às lutas dos próprios trabalhadores, no plano sindical
e no plano político, e à emulação que exerceu, na generalidade dos países capitalistas (perante a falência da
'solução' nazi-fascista), o simples facto da existência da URSS e da comunidade socialista europeia e mundial
constituída no após-guerra.
550 Cfr. J. KEYNES, The General Th eory..., cit., 372-374.
5 9 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
35 dólares por onça troy de ouro. Daqui resultou a adopção do sistema de câmbios
flutuantes (uma velha reivindicação dos monetaristas), primeiro entre os EUA e os
seus parceiros comerciais, e logo de imediato aplicado em todo o mundo. Esta
circunstância marcou um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. Pode
dizer-se que começa então, na prática, a “ascensão do monetarismo”, a “contra-
revolução monetarista”.554
Os neoliberais souberam aproveitar o desnorte dos keynesianos, surpreendidos com
o “paradoxo da estagflação” (J. Stein), confusos perante o “dilema da estagflação”
(Samuelson). Hayek veio proclamar que a inflação é o caminho para o desemprego
(“The Path to Unemployment” é o título de um conhecido artigo de H ayek555) e,
parafraseando o título de um célebre opúsculo de Keynes, colocou o keynesianismo no
banco dos réus, sustentando que a inflação e o desemprego são “the economic conse-
quences of Lord Keynes”.556 O “ideological monetarism” começou a ser “sistematica
mente difundido a partir do outro lado do Atlântico por um crescente grupo de entusiastas
que combinam o fervor dos primeiros cristãos com a delicadeza e a capacidade de um
executivo de Madison Avenue.” (Nicholas Kaldor)557
Abandonado há muito o padrão-ouro sem qualquer hipótese de recuperação e
esgotado o sistema monetário internacional saído dos Acordos de Bretton Woods
(1944), a “irmandade dos bancos centrais” (James Tobin)558 colou-se à ortodoxia mo
netarista, na esperança de encontrar nas suas receitas instrumentos de defesa perante as
pressões políticas dos governos, o que ajudou ao êxito da “contra-revolução”.
A inflação surgiu como o inimigo público número um, inimigo perante o qual
se deveria actuar como perante o terrorismo: não ceder nem um milímetro. O
desemprego deixou de constar das preocupações dos responsáveis, até porque, se
gundo a nova/velha teoria, as economias se encaminhariam espontaneamente para
a situação de pleno emprego, desde que se deixassem funcionar livremente os
mecanismos do mercado.
554 Cfr. M. FRIEDMAN, r/>e Rote..., cit. e H .G . JOHNSON, “The Keynesian..., cit. e Inflation...,c it.
555 Cfr. J. HAYEK, “Inflation..., oil.
556 Ver F. HAYEK, Studies. .., cit.
557 Cfr. N. KALD O R, ob. cit., 1.
558 C f t ). TOBIN, “The monetarist..., cit., 30/31.
5 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a
Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração (“monetarists mark II”,
como lhes chama JamesTobin), defensores da chamada teoria das expectativas raci
onais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma informa
ção que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes
económicos racionais, antecipam plena e correctamente quaisquer políticas públi
cas. As políticas económicas sistemáticas deixariam, pois, de ter qualquer efeito
sobre a economia, restando aos governos ‘enganar’ os agentes económicos através
de medidas de surpresa, incompatíveis com o cientismo e a programação de que se
reclama a política económica.562
Desta neutralidade da política econômica passa-se, quase sem solução de conti
nuidade, à defesa da morte da política económica, porque esta seria desnecessária,
perniciosa e sem sentido. Assim estamos de regresso ao velho mito liberal da
separação estado/economia e estado/sociedade: a economia seria coisa exclusiva
dos privados (da sociedade civil, da sociedade económica), cabendo ao estado tão
somente garantir a liberdade individual (a liberdade económica, a liberdade de
adquirir e de possuir sem entraves), que proporcionaria igualdade de oportunida
des para todos.
563 Sobre esta problem ática ver, m ais desenvolvidam ente, A .). AVELÀS N U N ES, O Keynesianismo. .., c it., 109ss.
A v elã s N u n es - 5 9 5
dução do salário real suficiente para que a sua remuneração iguale a produtividade
marginal do seu trabalho e os empregadores tenham interesse em os contratar. Por
outras palavras: quem não tiver emprego poderá sempre encontrar um posto de
trabalho, se aceitar um salário mais baixo que o corrente. Se o não aceitar é porque
prefere continuar sem emprego, optando por procurar um novo posto de trabalho
(voluntary searchingfor a betterjob).
Um dos teóricos do desemprego voluntário vai mesmo ao ponto de afirmar que
os despedimentos são um ‘véu’ cuja aparência é enganadora: os trabalhadores que
são despedidos perdem o emprego por, implicitamente, rejeitarem a opção que
lhes seria oferecida de continuarem a trabalhar por um salário mais baixo. A nte
cipando a objecção de que estas situações são muito raras na prática, A. L. Alchian
alega que tal acontece porque a experiência ensinou aos empregadores que não
teriam êxito quaisquer propostas e negociações com esse objectivo...564
Se fosse caso para fazer ironia, dir-se-ia que M ilton Friedman quase sugere
que só estarão empregados os trabalhadores que não se comportarem racional
mente. Na verdade, ele defende que “muitas pessoas podem ter, estando desempre
gadas, um rendimento em termos reais tão elevado como o que poderiam ter
estando empregadas”. Sendo assim, se “o desemprego é uma situação com muitos
atractivos”, como Friedman sustentava em 1976, comprccnder-se-á que os tra
balhadores optem por estar desempregados... E compreender-se-á também que o
estado não se preocupe em remediar as situações de desemprego (consideradas,
nas palavras mordazes de Modigliani, uma espécie de epidemia de “preguiça conta
giosa”), antes devendo deixar correr, como insinua o hum or azedo de S.-C. Kolm,
para “respeitar a livre escolha das pessoas” de entrar em período, mais ou menos
longo, de “férias voluntárias” (Robert Solow).565
xar o emprego do que os homens adultos, precisamente porque estão menos segu
ros de encontrar outro emprego.569
Em segundo lugar, o fortalecimento do ‘poder monopolista dos sindicatos, a
legislação que impõe o salário mínimo, a instituição dos subsídios de desemprego
e outras contribuições da segurança social em benefício dos desempregados, e/ou
a sua aplicação a categorias mais amplas de trabalhadores, o aumento do seu
montante e da sua duração.
Mas há quem responda, com inteira razão, que a existência de subsídios de desem
prego e de outras prestações da segurança social, bem como do salário mínimo garan
tido e de outros factores do mesmo tipo, explicam apenas uma reduzida percentagem
do aumento da taxa natural de desemprego. E há quem lembre o que história ensina:
aquelas medidas constituem, historicamente, uma resposta expost ao aumento do de
semprego para níveis económica, política e socialmente intoleráveis.570
Os neoliberais insistem, porém, nos malefícios resultantes da existência do
sistema público de segurança social.
Invocam, por um lado, que ele contribuiu para tornar mais atractiva a entrada
no mercado de trabalho, o que terá provocado um aumento da população traba
lhadora enquanto percentagem da população total, e não será alheio também às
alterações da composição da população activa acima referidas.
Sustentam, por outro lado, que da existência desse sistema resulta uma dim i
nuição do custo relativo do lazer perante o trabalho, exactamente porque as pesso
as temporariamente sem emprego continuariam, durante um período de tempo
mais ou menos longo, a ver satisfeitas as suas necessidades básicas, o que lhes
permitiria aguardar mais tempo sem procurar novo posto de trabalho e ser mais
exigentes na aceitação de postos de trabalho alternativos.
De acordo com este raciocínio, a maior mobilidade e o grau crescente de
exigência dos que procuram emprego é que seriam responsáveis pelo aumento das
taxas de desemprego. Também por esta via chegam os monetaristas à conclusão de
que o desemprego seria, substancialmente, desemprego voluntário, sustentando que,
em mercados de trabalho concorrenciais, o emprego e o desemprego efectivos
revelariam as verdadeiras preferências dos trabalhadores entre trabalhar e dedicar
o seu tempo a usos alternativos.571
Por outro lado, ele considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos
sindicatos, poder que, a seu ver, se traduz na “coerção de homens sobre outros ho
mens”, na “coerção de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só
porque se tem admitido que eles exerçam um tal poder de coerção “sobre aqueles
que querem trabalhar em condições não aprovadas pelos sindicatos” é que estes se
tomaram capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os emprega
dores. “Pessoalmente - conclui H ayek-, estou convencido de que o poder dos mo
nopólios sindicais é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal
factor de desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.”
A aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta
os aumentos da produtividade - hoje geralmente considerada socialmente justa e
economicamente vantajosa - significa, para Hayek, o reconhecimento do direito
de expropriar uma parte do capital das empresas. Vejamo-lo nas suas próprias
palavras: “O reconhecimento do direito do trabalhador de uma empresa de parti
cipar, enquanto trabalhador, numa quota dos lucros, independentemente de qual
quer contribuição que ele tenha feito para o seu capital, faz dele proprietário de
uma parte da empresa. Neste sentido, tal exigência é, sem dúvida, puramente soci
alista e, o que é mais, não baseada em qualquer teoria socialista do tipo mais
sofisticado e racional, mas no mais grosseiro tipo de socialismo, vulgarmente co
nhecido por sindicalismo.”
À luz do que fica dito, compreende-se que Hayek pergunte “até onde se permi
tirá que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coer
civo que adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições
fundamentais em que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma
tal subversão das instituições, compreende-se que responda: “H á um momento em
que todos os que desejam a preservação do sistema de mercado baseado na livre
empresa têm que desejar e apoiar sem ambiguidade uma recusa frontal daquelas
exigências [as exigências sindicais], sem vacilar perante as consequências que esta
atitude possa ter a curto prazo”.578
Igualmente claras são as reflexões de Gottfried Haberler num artigo muito
conhecido sobre política de salários, emprego e estabilidade económica.
Nele pode ler-se que muitas das dificuldades por ele consideradas das mais
relevantes das economias capitalistas actuais (“salários monetários rígidos à baixa”
e “pressão constante à alta das taxas de salário monetário”) devem ser imputadas à
“legislação do salário mínimo, aos planos de segurança social, aos subsídios de
desemprego mais liberais”. E estas são realidades apontadas como o fruto da acção
583 Cfr. M . e Rose FRIEDM AN , ú/f. ob. cit., 172-178. O s monetaristas sustentam que as transferências sociais,
reduzindo o custo do ócio (do nào-trabalho), s5o uma autêntica subvenção à preguiça. Utilizando o comen
tário de Galbraith perante as opçóes da Administração Reagan neste domínio, talvez possamos sintetizar deste
modo a 'filosofia' dos neoliberais: "os ricos nâo trabalham o suficiente porque náo ganham o suficiente; os pobres
trabalham pouco porque ganham demasiado".
6 0 4 - U m a In tro o u ç à o A E co n o m ia P o lItic a
defender que a única igualdade a que os homens têm direito é “o seu igual direito
à liberdade”, o liberalismo friedmaniano não pode garantir a todos os homens a
liberdade e a dignidade a que cada um tem direito. A proposta friedmaniana de
regresso ao passado não contém a promessa de nenhum ‘paraíso’, mas contém a
ameaça de nos fazer regressar ao ‘inferno perdido’ do apogeu do laissez-faire.
Fiel à sua matriz ideológica, Friedman defende, com toda a clareza, a necessi
dade de “derrubar definitivamente este estado-providência ao serviço dos ricos e
das classes m éd ia s”, advogando a ideia de q ue, em vez d ele, “é
altura de as democracias ocidentais retomarem os incentivos para produzir, em
preender, investir”.584 As vantagens da sua proposta seriam as vantagens do ‘estado
liberal’: “A extinção do actual sistema de Segurança Social eliminaria os efeitos
que presentemente se fazem sentir relativamente à falta de incentivo para a procura
de trabalho, o que representaria, igualmente, um maior rendimento nacional cor
rente. Conduziria à poupança individual e, portanto, à formação de taxas de capital
mais elevadas e de uma taxa de crescimento do rendimento mais acelerada. Esti
mularia o desenvolvimento e a expansão de planos de pensões privados, aumentan
do deste modo a segurança de muitos trabalhadores”.585
Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da
época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e
política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os
indivíduos no plano económico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de
libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo que está
na base dos sistemas públicos de segurança social.
1 0 . S ín t e s e d a c o n t r o v é r s ia e n t r e k e y n e s ia n is m o e
NEOLIBERALISM O
Keynes) e, por outro lado, a corrente constituída pelos críticos da teoria quantita
tiva tradicional (Cantillon, Thornton, Wicksell, von Mises, o Hayek dos anos
trinta, Myrdal e o Keynes do Treatise on Money) e pelos críticos da lei de Say (na
tradição de Malthus, Marx, Hobson e o Keynes da General Theory).
A - Deixaremos a seguir algumas observações sobre questões teóricas aborda
das na controvérsia entre os adeptos das duas correntes de pensamento económico
que marcaram o século XX, embora seja nossa convicção que só à luz de uma
perspectiva ideológica será possível entender o que verdadeiramente está em causa
neste debate que foi considerado o mais importante debate do século XX, ao me
nos no que diz respeito à ciência económica.
Na sua nova veste, o debate reanimou-se, poderá dizer-se, em 1956, com a
publicação de “T he Quantity Theory o f M oney - A Restatement”, de M ilton
Friedman, a que se seguiu, logo em 1957, a publicação de “T he T heory of Con-
sumption Function”. Em 1963, Friedman publicaria outros dois trabalhos: um, em
colaboração com Anna Schwartz, em que procura mostrar empiricamente que a
procura de moeda é relativamente estável e quantitativamente insensível às varia
ções da taxa de juro; outro, em colaboração com David Meiselman, em que desen
volve análise empírica destinada a mostrar que a velocidade de circulação da moeda
é uma variável mais estável que o multiplicador keynesiano. Com a Presidential
Address de M ilton Friedman (1967), encerra-se esta primeira fase do monetaris-
mo. A segunda fase inicia-se com a publicação, em 1970, de “A Theoretical Fra-
mework for the M onetary Analysis”, a que se seguiram outros estudos em 1971 e
em 1972. Com a entrada em cena da teoria das expectativas racionais, começou - por
volta de 1972 - a terceira fase do monetarismo.586
Quando, em 1956, Friedman ‘redescobriu’ a teoria quantitativa, ela apareceu
como “uma loucura peculiar de Chicago, indulgentemente desdenhada por al
guns, mas considerada como não perigosa” 587 (57). M as em 1970 M . Friedman
afirmava que o quadro teorético que informava a sua análise monetária era a teoria
quantitativa da moeda. E o certo é que, por razões que tentámos enunciar em outro
momento, o êxito do monetarismo foi fulgurante, especialmente junto dos respon
sáveis pela política económica e junto da opinião pública não especializada. Para
este êxito terá contribuído a simplicidade atraente do que Modigliani chamou
“monetarism for the masses”: os principais problemas a nível macroeconômico
têm origem nas políticas de estabilização de inspiração keynesiana, geradoras de
grande instabilidade monetária; a solução para os nossos males reside na adopção
Times (17.7.81) afirmava que, tendo sido a década de setenta a década do moneta
rismo, a década de oitenta se preparava para remeter as suas propostas para a
secção da história do pensamento económico dos manuais de economia.
É possível que o monetarismo esteja em perda de velocidade. M as a verdade
é que continua aí e não é possível ignorá-lo nem no plano teórico nem no terre
no das políticas económicas. E, no entanto, cremos que podemos definir hoje
um monetarista como Friedman se vem definindo desde 1956 e como M ark
Blaug o definiria cm 1985: “M onetarista é alguém que acredita na teoria quan
titativa da moeda”.595
B - O debate entre keynesianos e monetaristas - que foi particularmente vivo
no início dos anos setenta do séc. X X 596 - tem continuado até aos nossos dias.
Parece correcto afirmar-se que, até 1970, os trabalhos de M ilton Friedman
apontavam no sentido de que o cerne da divergência entre keynesianos e moneta
ristas residia na diferença de pontos de vista acerca da elasticidade-juro da procura
de moeda. E assim o entendia a generalidade dos autores.597 As críticas à ‘de
monstração empírica’ até aí apresentada por M ilton Friedman 598 levaram-no à
elaboração de um quadro teórico que desse sentido às regularidades estatísticas
por ele apuradas. Nesses trabalhos teóricos599 M ilton Friedman acaba, no entanto,
por afastar-se da sua tese inicial segundo a qual a procura de moeda é “interest
inelastic”, aproximando-se assim das posições keynesianas.
O “empirismo ingénuo de Milton Friedman’’600 foi desde o início alvo de muita
contestação, quer no plano metodológico quer no que se refere aos resultados a que
chegou e às conclusões que deles extraiu.601 No entanto, Friedman insistia, em 1970,
em que “as diferenças básicas entre economistas são empíricas, não teóricas”. Relati
vamente a uma das questões centrais da problemática monetarista - o papel da mo
eda na actividade económica -, a controvérsia travada entre keynesianos e monetaristas
diz respeito, em sua opinião, “a diferentes respostas implícitas ou explícitas a ques
tões empíricas”.602 Não admira, por isso, que a guerra das verificações empíricas das
teses de uma e de outra das correntes em presença tenha continuado até hoje, acu
mulando “montanhas de evidência empírica” (M. Blaug). Depois de todo este esfor
ço, há quem entenda que “o suporte empírico do monetarismo é muito mais fraco do
que parece”.603 Outros concluem que “uma observação mais atenta da literatura
revela uma tendência regular para o estreitamento da distância existente entre os
distintos pontos de vista, e em especial para o crescente reconhecimento das limita
ções que apresentam todas as contrastações (confirmações) ao uso da eficiência rela
tiva das políticas financeira e monetária”.604
C - Poderá dizer-se, aliás, que este longo debate ainda em curso tem permitido
a ambas as partes aprender algo com a outra, daí resultando maior rigor na formu
lação teórica e na justaposição das respectivas propostas e alguma aproximação de
pontos de vista em determinados aspectos que vêm constituindo objecto de deba
te.605 Tal não é mais do que o resultado natural de uma atitude de espírito que
Solow traduziu nestes termos coloquiais: “Toda a ortodoxia, incluindo a minha,
necessita com frequência de um pontapé no traseiro para evitar que se torne auto-
indulgente e aplique a si própria normas pouco exigentes”.606
Poucos aceitarão hoje, por exemplo, a tese de que a controvérsia possa equacio
nar-se na oposição monetaristas/fiscalistas, pondo a ênfase nos diferentes pontos de
vista acerca de qual a política mais adequada para se conseguir a estabilização da
economia: a política monetária, segundo os monetaristas, que a consideram o instru
mento mais eficaz para controlar a oferta de moeda, principal factor determinante do
nível de rendimento; apolíticafinanceira, segundo os keynesianos, que vêem na acção
sobre as receitas e as despesas públicas o caminho mais seguro para controlar a
procura global, da qual depende, essencialmente, a seu ver, o nível do rendimento.
Na verdade, nenhum não-monetarista afirmará hoje que “money does not mat-
ter”. Em 1973, Samuelson criticava o Radcliffe Committe porque, tendo mostrado
não ser verdade que money alone matters, daí concluiu que money does not matter, e
602 Cfr. M. FRIEDMAN, *A Theoretical..., cit., 234/235. A mesma ideia é retomada por Friedman em "Comments on
Tobin and Buiter", c it , 315. No prefácio que fez para a ediçáo das comunicações apresentadas à Conferência
organizada pela Brown University a que nos referimos atrás, Jerome Stein diz que "as propostas mais importantes
dos monetaristas sâo uma espécie de observaçáo empírica cuja validade é ainda objecto de controvérsia, em vez
de uma teoria cm oposição directa à análise neo-keynesiana" (cfr. J. STEIN, Monetarism. .., cit., 2).
603 Cfr. M. DESAI, Testing. .., cit., 12.
604 Cfr. M. B LA U G , ia metodologia.. . cit., 243.
605 Há quem admita que poderá chegar-se a uma síntese das duas correntes. Nesta hipótese, "na medida em que
se verifique esta síntese científica, o monetarismo perderá a magnética simplicidade essencial ao seu atractivo
ideológico' (cfr.). TOBIN, "Inflation and Unemployment..., c it, 42).
606 A p od G . FEIW EL, "Samuelson..., cit., 180.
A v e LAs N u n es - 6 0 9
614 Vale a pena referir o trecho da General Theory: "Uma das propriedades essenciais do sistema económico em
que vivemos é a de nâo ser violentamente instável, embora esteja sujeito a flutuações severas no que se refere
à produção e ao emprego. Na verdade, este sistema parece apto a permanecer durante um lapso de tempo
considerável num estado de actividade inferior ao normal, sem que haja tendência marcada para o relançamento
da actividade económica ou para o afundamento completo. Além disso, resulta claramente que o pleno emprego
ou mesmo uma situação vizinha do pleno emprego é tào rara como efémera. As flutuações podem amortecer-
se bruscamente, mas parece que elas se amortecem antes de terem adquirido uma amplitude extrema; e a
nossa sorte normal consiste numa situação intermédia que nâo é nem desesperada nem satisfatória". Cfr. J.
KEYNES, The General Th eo ry..., cit., 249/250.
615 Cfr. F. M O DIGLIAN I, "Keynesianism..., cit., 12-19.
AveLÀs N unes - 611
618 Cfr. F. M O DIG LIAN I, 'Some em pirical..., cit., 244. É uma posição que decorre da aceitação do ponto de vista
segundo o qual a taxa de crescimento da oferta de moeda influencia, em alguma medida, o nível do rendimen
to. Contra a sugestão de Modigliani têm-se invocado, porém, alguns argumentos dignos de atenção (cfr. E.
SHAPIRO, 06. d l , 457/458).
619 Cfr. W . HELLER, oò. cit., 332.
620 Cfr. M. FRIEDMAN, 'R e p ly*..., c it , 336.
A v elã s N u n es - 6 1 3
is all that matters for changes in nominal income and for short-run changes in real
income’ como um exagero, mas que dá o tom exacto das nossas considerações”.621
A maior ou menor relevância atribuída ao papel da moeda no sistema econó
mico influencia também a diferente posição de monetaristas e keynesianos acerca
da explicação (das origens) da inflação e da prioridade que uns e outros lhe atri
buem entre os objectivos da política económica. Os keynesianos, embora levem
hoje a inflação muito mais a sério do que há vinte anos, continuam a considerar
prioritária a luta contra o desemprego (desemprego involuntário) e a prossecução do
pleno emprego. O s monetaristas, pelo contrário, continuam a defender os seus
pontos de vista de que uma grande parte do desemprego / desemprego voluntário, de
que a taxa natural de desemprego só pode baixar através de medidas estruturais de
longo prazo que nada têm a ver com as políticas de pleno emprego; de que a
tentativa de alcançar taxas de desemprego inferiores à taxa natural de desemprego
implica o preço insustentável de taxas de inflação muito elevadas e crescentes; de
que, em conformidade, deve ser atribuída prioridade absoluta ao combate à infla
ção e à prossecução da estabilidade monetária.
F - E claro que ninguém poderá hoje defender que a essência da controvérsia a
que nos vimos referindo radica no diferente entendimento acerca de quais os instru
mentos mais adequados da política monetária (o controlo da oferta de moeda, defen
dido pelos monetaristas, ou o controlo das condições de concessão do crédito -
nomeadamente as taxas de juro -, advogado pelos keynesianos). Nem sequer pode
reduzir-se esta controvérsia à Velha’distinção entre monetaristas efiscalistas.
M as cremos que continua a ser verdadeira a afirmação de que os monetaristas
favorecem a política monetária (identificada como o conjunto de instrumentos ao
dispor das autoridades para controlar a oferta de moeda) e de que os keynesianos
continuam a preferir a política financeira à política monetária, à qual insistem em
atribuir, basicamente, o controlo da taxa de juro e das condições do mercado de
crédito, especialmente pela via das operações de open market. Para os keynesianos,
é maior a eficácia da política financeira, uma vez que as variações do nível das
despesas públicas, dos impostos e das transferências garantem um controlo mais
directo sobre o volume da procura global do que as variações das taxas de juro, às
quais correspondem variações incertas e aleatórias da procura (o investimento
privado pode ser muito pouco sensível às variações da taxa de juro).
Os monetaristas continuam a defender, no essencial, que a política financeira,
se não provocar variações da quantidade de moeda, não exerce qualquer influência
sobre a procura real global, o rendimento nominal ou o nível dos preços: os efeitos
da política financeira - defende M ilton Friedman 622 -são “sem dúvida temporá
rios e provavelmente de menor importância”.
Enquanto os monetaristas desvalorizam a importância da procura (cujas varia
ções associam basicamente às variações da quantidade de moeda em circulação),
os neokeynesianos continuam a privilegiar a importância da procura agregada na
determinação da produção, do rendimento e do emprego (e das suas flutuações,
i.é, dos ciclos económicos), ligando as variações da procura agregada aos fluxos de
entrada na economia (investimento privado, despesas públicas, receitas das expor
tações) e aos fluxos de saída da economia (aforro, cobrança de impostos, despesas
em bens importados). Em conformidade, os neo-keynesianos mantêm a sua tese
de que o aumento das despesas públicas reais e o incremento da procura agregada
se traduz, em períodos de depressão, em aumento da produção, do emprego e do
rendimento nacional que se projectará ao longo de vários anos (mecanismo do
multiplicador), no pressuposto de que a elasticidade da oferta em períodos de
desemprego de recursos produtivos será suficientemente elevada para responder
ao aumento da procura agregada (os preços poderão subir a curto prazo, mas
baixarão a médio e a longo prazos, ao contrário do que pressupõe a long-run
quantity theory).623
G - Com o advento da teoria das expectativas racionais, assistiu-se a uma valo
rização, no quadro da teoria económica, do problema da distinção entre curtoprazo
e longo prazo, do problema do tempo e do problema da perspectivação do futuro
(ou da formulação das expectativas acerca do futuro) por parte dos agentes econó
micos. E estas foram questões que ganharam relevo também no âmbito da con
trovérsia entre keynesianos e monetaristas.
Os keynesianos adoptam, desde Keynes, uma óptica de curto prazo. Segundo
Joan Robinson, Keynes costumava dizer que o estudo das “questões de longo prazo
eram coisa de estudantes”. 624 E ficou famosa a sua sentença de que “a longo prazo
estaremos todos mortos”.
M ilton Friedman, por sua vez, torna claro que “tende a adoptar uma perspecti
va de longo prazo e a colocar maior ênfase nas consequências últimas e permanen
tes das políticas do que nas consequências transitórias, imediatas e possíveis”. 625 E
dos seus trabalhos teóricos resulta que a dicotomia curto prazo/longo prazo marca
622 Cfr. M. FRIEDM AN , “Comments on the Critics", cit., 915-917. Cfr. também BRUNNER//M ELTZER, "An
aggregative..., cit..
623 Cfr. J. TREVITHICK, Como viver.. cit., 115-123; MODIGLIANI/ANDO, "Impacts.. ., cit.; TOBIN/BUITER, ob.
Cit., 302/303.
624 Cfr. J. ROBINSON, Filosofia..., cit., 88 .
625 Cfr. M. FRIEDMAN, "Why Economists Disagree".. ., c it, 8.
A v e lã s N unes - 61 5
de forma decisiva a ‘tensão’ do debate que vem travando com os keynesianos. Mas
se, para os monetaristas friedmanianos, “only long run matters”, para os defensores
das expectativas racionais, como vimos, não tem qualquer sentido a distinção curto
prazo/longo prazo. Todos os monetaristas, no entanto, desvalorizam os efeitos de
curto prazo da política económica (osfirst roundeffects) apostando nas mudanças
institucionais de longo prazo e valorizando os seus efeitos cumulativos (steady state
effects ou ultima te effects) .626
O s keynesianos assumem que a sua teoria económica e a sua política económica
assentam sobre problemas de curto prazo. Esclarecem alguns que o keynesianismo
se preocupa com o equilíbrio entre a oferta e a procura agregadas, década após
década, ano após ano, trimestre após trimestre, mas não diz grande coisa acerca dos
processos de longo prazo relativos ao desenvolvimento económico, os quais não
colocam, em regra, problemas do lado da procura, mas problemas do lado da oferta
(acumulação do capital, nível de educação e de preparação profissional da popula
ção, espírito empresarial, investigação para o desenvolvimento, etc.).627 Outros, po
rém, sustentam que o longo prazo não passa de uma sucessão de períodos de curto
prazo, não existindo de modo independente: a economia funciona com certos pro
blemas e restrições e o modo como se resolvem os problemas de cada momento ou
de cada período curto é que condiciona a evolução futura da economia. O conceito
monetarista de longo prazo não passaria, para alguns, de “um mito teórico-utópico
no qual se resolveram todos os problemas do presente”.628
Entendem os monetaristas que o curto prazo não é relevante porque é de muito
curta duração. Para os keynesianos, trata-se de saber, exactamente, o que é o curto
prazo (semanas? meses? anos?). Isto porque é no curto prazo que se registam as
situações de desequilíbrio com os respectivos custos sociais.
Na óptica monetarista, ao abstrair-se do curto prazo para centrar a análise nas
condições do equilíbrio de longo prazo (segundo eles a única solução de equilí
brio possível) abstrai-se também das variações de curto prazo das variáveis reais
(produção, desemprego), ignorando-se os custos sociais que lhes são inerentes.
Eles constituiriam como que o castigo necessário para a remissão dos ‘pecados’
dos períodos anteriores (‘pecados por obras’, porque concretizados nas políticas
activas anti-cíclicas de inspiração keynesiana).
Por nossa parte, cremos que uma certa ‘violência, um certo ‘furor que tem
marcado, frequentemente, este debate é consequência de ele se travar, em boa
medida, no terreno dos pré-supostos, das concepções a priori, das convicções. O que está
em causa, ao fim e ao cabo, são diferentes concepções acerca da economia e da
sociedade e, de modo particular, acerca do papel do estado perante a economia e
perante a sociedade. Os monetaristas e os neoliberais em geral são fiéis ao ideário
liberal do laissezfaire, da mão invisívele da lei de Say; os keynesianos não confiam
nos mecanismos automáticos da economia e atribuem ao estado um papel impor
tante no domínio da promoção do desenvolvimento económico, do combate ao
desemprego e da promoção do pleno emprego, no domínio da redistribuição do
rendimento e da segurança social.
Estamos, pois, perante um debate em que qualquer dos intervenientes dificil
mente pode despir as suas vestes ideológicas. Cremos, por isso, que valerá a pena, a
concluir o nosso trabalho, tentar analisar sob este ângulo o debate de que nos ocupá
mos. Não ignoramos os riscos inerentes a uma tal empresa. Mas acreditamos que
vale a pena enfrentá-los, abandonando, como propõe Meghnad Desai, “the aesthetic
and scientific satisfaction of conducting a debate objectively and at leisure”.642
Acreditamos que o esclarecimento da matriz ideológica das questões mais
marcantes da controvérsia entre as duas correntes do pensamento económico aju
dará a esclarecer melhor o alcance do debate teórico que procurámos acompanhar.
Como James Tobin, pensamos que “as recomendações monetaristas em matéria de
política económica resultam menos de considerações teóricas ou de resultados
empíricos do que de óbvios juízos dc valor. As preferências consistentemente reve
ladas nessas recomendações são no sentido de minimizar o sector público e de
pagar um preço elevado em termos de desemprego para estabilizar os preços”.643
642 Cfr. M. DESAI, TesUng..., c iL , 13. Ao fazê-lo, talvez estejamos, afinal, a seguir na esteira de Keynes, ao menos
para quem faça uma leitura da 'revolução keynesiana' como a que dela faz |oan Robinson, que merece o
nosso acordo: "Ao tomar impossfvd acreditar por mais tempo na conciliação automática de interesses conflituantes
num todo harmonioso, a General Theory pôs a claro o problema da escolha e do julgamento que os neoclássicos
tinham conseguido escamotear. A ideologia que pretende acabar com todas as ideologias esboroou-se. A
ciência económica tomou-se uma vez mais economia política* (Cfr. J. ROBINSON, Filosofia..., cit., 86).
643 Cfr. J. TOBIN, " R e p ly ...,c iL ,336.
A v e lã s N u n e s - 6 2 1
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Gilberto Bercovici
Tü-Tü
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