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A n t ó n io J o s é A v e l ã s N u n e s

U m a In t r o d u ç ã o à

E c o n o m ia P o l ít ic a
O AU TO R

ANTÓNIO JOSÉ AVELÃS NUNES

É Professor Catedrático da Faculdade de Direito de


Coimbra, onde se doutorou com uma tese sobre
Industrialização e Desenvolvimento - A Economia
Política do “modelo brasileiro de desenvolvimento ",
editada no Brasil pela Quartier Latin, com um prefácio
de Celso Furtado.

Foi membro dos cinco primeiros Governos de


Portugal imediatamente a seguir à Revolução dos
Cravos (25 de Abril de 1974), com a tutela do Ensino
Superior e da Investigação Científica.

Foi Director da Faculdade de Direito de Coimbra entre


19% e 2000. Exerce, desde 2003, as funções de Vice-
Reitor da Universidade de Coimbra. É, desde 1995,
Director do Boletim de Ciências Económicas, revista
especializada editada pela Faculdade de Direito de
Coimbra.

É membro dos Conselhos Consultivo ou Editorial da


Revista da Universidade Federal do Paraná, da
Quaestio luris (revista da Pós-Graduação cm Direito
da UERJ), da Revista da Faculdade de Direito da USP
e da Revista de Direito do Estado.

Por convite da Direcção da CAPES, participou, cm


2001 e em 2004, como observador estrangeiro
convidado, nos trabalhos da Comissão de Avaliação
Trienal dos Programas de Pós-Graduação em Direito
(Mestrado e Doutorado). Aceitou idêntico convite
para participar nos trabalhos da mesma Comissão de
Avaliação, em Agosto de 2007.

É Vice-Presidente da Direcção do Instituto de Direito


Comparado Luso-Brasileiro. É membro da Academia
Brasileira de Direito Constitucional. Em 1999, foi-lhe
concedido, pela Associação dos Advogados de Minas
Gerais, o Diploma e a Comenda "Professor Gerson
Boson”.

É Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do


Paraná e Professor Honoris Causa da Universidade
Federal de Alagoas.

É autor de vários livros, editados em Angola, no


Brasil, na Hungria, no México e em Portugal, para
além de várias dezenas de trabalhos publicados sobre
matérias da sua especialidade. Foi agraciado pelo
Presidente da República Federativa do Brasil com a
Ordem do Rio Branco.
U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia
P o l ít ic a

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Rua Santo Amaro, 316 - CEP 01315-001
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dc 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
A n t ó n io J o s é A velãs N unes

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Paraná
Professor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas

U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia
P o l ít ic a

Editora Quartier Latin do Brasil c*vft*DE 0£ D/ftfuZ


* São Paulo, inverno de 2007
quartierlatin@ quartierlatin.art.br
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Editora Quartier Latin do Brasil
Rua Santo Amaro, 316 - C entro - São Paulo

Coordenação: Vinicius Vieira


Diagramação: Paula Passarelli
Revisão: Danilo S. Paes Landim
Capa: Studio Quartier

Nunes, AntónioJosé Avelãs


U m a Introdução à Economia Política - São P au lo : Q uartier
L atin, 2007.

ISBN 85-7674-208-X

1. Econom ia 2. Direito I.T ítulo

índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Economia
S u m á r io

Começando pelo Princípio: O que é a Economia Política?......................... 11


Referências Bibliográficas............................................................................... 51

PARTE I

Os Sistemas Económicos - Génese e Evolução do Capitalismo, 59

Introdução......................................................................................................... 60
I. A teoria dos sistemas económ icos............................................................... 60
II. As soluções................................................................................................... 61
1. A teoria dos “estádios económicos” ................................................... 61
2. A teoria dos modos de produção......................................................... 63
3. A Teoria dos “tipos de Coordenação” .................................................. 70
III. Apreciação C rítica ..................................................................................... 71

Capítulo I - D o Com unism o Primitivo ao C apitalism o......................... 77

A - O Comunismo Primitivo ......................................................................... 79


B - O Esclavagismo.......................................................................................... 84
C - O Feudalismo ............................................................................................ 87
1. Caracterização g e ra l............................................................................ 87
2. A desagregação da sociedade feudal................................................... 91
D - A Transição para o Capitalismo - A acumulação primitiva do
capital ........................................................................................................ 101
1. A acumulação do capital....................................................................... 102
2. A proletarização dos camponeses pobres: as enclosures e a
‘revolução agrícola’................................................................................ 107
3. A proletarização dos trabalhadores da indústria: da ‘indústria
artesana’ à indústria capitalista .......................................................... 111
4. A Reform a............................................................................................. 120
5. A formação dos estados modernos na E u ro p a .................................. 123
6. A ‘Revolução Inglesa’ .......................................................................... 124
7. A revolução industrial ........................................................................ 128
8. A Revolução F ra n c e sa ....................................................................... 141
Capítulo II - D o Capitalismo de Concorrência ao Capitalismo
M onopolista dc E stado.................................................... 175

A - O Capitalismo de C oncorrência............................................................. 178


B - O Capitalismo Monopolista ............................................................... 182
1. A concentração capitalista. Seus factores............................................ 183
2. A exportação de capitais privados e o recrudescimento do
im perialism o.......................................................................................... 189
C - O Capitalismo Monopolista de E stado.................................................. 196
1. Enquadramento H istó rico ................................................................... 197
2. Caracterização G e ra l............................................................................ 205
3. A finalizar, uma nota sobre a globalização ....................................... 226

Capítulo III - Capitalismo e Socialism o............................................. 241


1. A tese da convergência dos sistemas................................................... 242
2. Capitalismo e Socialismo - elementos essenciais.............................. 244
3. Um sistema m isto?................................................................................ 246
3.1. A perda de significado da propriedade privada................................. 247
3.2. A existência de um sector público...................................................... 259
3.3. A planificação nos países de economia capitalista.............................. 260
Referências Bibliográficas............................................................................... 273

P A R TE I I

História da Ciência Económica. O Pensamento Económico, 281

Nota Prévia........................................................................................................ 282

Capítulo I - O Pensam ento Económico na Antiguidade e na


Idade M é d ia ....................................................................... 285
1. O Pensamento Económico na A ntiguidade...................................... 286
2. O Pensamento Económico na Idade M é d ia ..................................... 286

Capítulo II - O M ercantilism o................................................................ 289


1. O “Sistema M ercantil”: o M ercantilism o........................................... 290
2. Os ‘M ercantilismos Nacionais’ ........................................................... 292
2.1. O Bulionismo Espanhol .................................................................. 293
2.2. O Mercantilismo Industrial (França)................................................... 294
2.3. O Mercantilismo Comercial (Inglaterra)............................................. 295
3. As grandes linhas do pensamento m ercantilista................................... 298
3.1. Uma política Nacionalista ............................................................... 298
3.2. O Populacionismo ........................................................................ 299
3.3. As teses dos mercantilistas no domínio m onetário .......... 300
3.4. Economia e política são inseparáveis: o papel do estado .. 301
4. A controvérsia acerca do m ercantilism o............................................... 304
4.1. Os mercantilistas e a “mania da regulamentação”.................................. 305
4.2. O ouro e a prata constituem a verdadeira riqueza de um país?..... 308
4.3. A importância do ouro e da prata .............................................. 312
4.4. Teoria da balança comercial e teoria quantitativa da moeda.
O “dilema mercantilista” .................................................................... 315
4.5. O mercantilismo e o seu tempo. A transição para o liberalismo............. 322

Capítulo III - Os Fisiocratas..................................................................... 327


1. A fisiocracia: os “economistas” ................................................................ 328
2. A “Ordem Natural” ................................................................................... 330
2.1. Lei natural, lei física e lei moral .................................................... 332
2.2. A propriedade, “base de todas as sociedades”.
Propriedade, liberdade e igualdade ................................................ 334
2.3. O individualismo e a harmonia dos interesses.
O “laisser-faire, laisser-passer" ................................................. 337
2.4. Natureza e funções do estado ................................................ 340
2.5. A ciência económica como “ciência física”, como “física económica” 344
3. O conceito de riqueza.............................................................................. 345
4. A noção de trabalho produtivo................................................................ 346
5. O conceito fisiocrático de excedente (produit n et)................................ 348
6. As classes sociais na análise do tableau................................................... 350
7 .0 Tableau Économique, o processo de produção e o processo de
circulação das m ercadorias..................................................................... 354
8. Algumas questões teóricas suscitadas pelo Tableau Économique........... 357
8.1. A actividade económica como processo auto-renovável........................ 357
8.2. A conexão entre a produção e a circulação numa economia mercantil.. 357
8.3. A moeda como simples intermediário nas trocas..................................... 358
9. A importância do excedente no modelo de reprodução do
Tableau Économique................................................................................ 358
10. O aumento do excedente agrícola e o crescimento económico
(o bon prix para os cereais, o impòt uni que e o laissez-faire,
laissez-passer)........................................................................................ 359
11. A noção de capital e a importância do investim ento........................ 362
11.1. Os Avances Foncières ............................................................... 363
11.2. Os Avances Primitives .......................................................... 365
11.3. Os Avances Annuelles .............................................................. 366
12. Juízo acerca do significado e da importância das teses
fisiocráticas.......................................................................................... 366
12.1. Uma perspectiva global: a importância das teorias fisiocráticas
'n a história da análise económica .............................................. 366
12.2. Os limites teóricos da abordagem do Tableau:
a ausência de uma teoria do valor................................................... 371

Capítulo IV - A Escola C lássica............................................................. 377

Capítulo V - Adam S m ith ....................................................................... 383


1. Adam Smith e o seu tem po................................................................... 384
2. A teoria do valor..................................................................................... 388
2.1. O padrão de medida do valor................................................. 391
2.2. A origem do valor ............................................................. 394
3. A teoria da distribuição do rendim ento............................................... 402
3.1. A teoria do salário........................................................................... 404
3.2. A teoria da renda.............................................................................. 413
3.3. A teoria do lucro................................................................................. 418
4. As causas da riqueza das nações........................................................... 422
4.1. A divisão do trabalho ............................................................. 424
4.2. A acumulação do capital ......................................................... 425
5. A filosofia social de Adam S m ith......................................................... 432

Capítulo VI - Jean-Baptiste S a y ............................................................ 443


1. A utilidade e a teoria do valor............................................................... 444
2. A teoria dos três factores de produção................................................. 445
3. A figura do “empresário” ....................................................................... 447
4. A lei dos mercados dos produtos (Lei de Say).................................... 448
Capítulo VII - T hom as Robert M a lth u s ................................................ 451
1 .0 “princípio da população” ................................................................... 452
2. A teoria da re n d a .................................................................................... 455
3 .0 problema da “procura efectiva” ......................................................... 456

Capítulo VIII - David R icardo............................................................... 461


1. Ricardo, fundador da economia política abstracta............................ 462
2. A teoria do valor..................................................................................... 463
3. A teoria da distribuição do ren d im en to ............................................... 467
3.1. A teoria da renda diferencial .................................................... 469
3.2. A teoria do salário ........................................................................ 470
3.3. A tendência para a baixa da taxa de lucro........................................ 474
4. Ricardo e a lei de S a y ............................................................................ 476
5. O livrecambismo e a teoria do comércio internacional..................... 477

Capítulo IX - As Reacções contra a Escola C lássica............................ 483


1. A crítica m etodológica........................................................................... 484
2. A crítica do livrecam bism o................................................................... 485
3. A crítica ‘socialista’ ................................................................................. 485

Capítulo X - D o ‘Socialismo Utópico’ ao ‘Socialismo


Científico’ ......................................................................... 489

Capítulo XI - Karl M arx ........................................................................... 497


1. Marx: a crítica da economia política.................................................... 498
2. A concepção materialista da história ................................................... 498
3. As leis da economia política marxista................................................... 500
4. A teoria do valor e a mais-valia............................................................. 502
5. A teoria da exploração............................................................................ 506
6. A teoria do salário................................................................................... 511
7. A teoria marxista das classes. A luta de classes................................... 516
8. A teoria da concentração........................................................................ 521
9. Tendência para a baixa da taxa média de lucro.................................... 525
10. A teoria das crises................................................................................. 529
11. A teoria da revolução e a construção do comunismo........................ 533
Capítulo XII - O M arginalismo e a Rotura com a Perspectiva
C lássica-M arxista................................................... 537
1. Say: as classes sociais fora da análise económ ica............................... 538
2. Os precursores da teoria subjectiva do valor....................................... 538
3. A “revolução marginalista” .................................................................... 540
4. A nova economia subjectivista-marginalista....................................... 541
5. A síntese de Lionel R obbins................................................................. 547
5.1. A lei da escassez e a conduta económica............................................ 547
5.2. Uma definição analítica da ciência económica.................................... 550
5.3. A ciência económica é neutra em relação aos fins............................... 552
5.4. A Economia como “ciência da escolha” .............................................. 555
5.5. A Economia configurada como ciência dedutiva................................ 557
5.6. A Economia estuda relações entre homens e bens económicos......... 558
6. A crítica do m arginalism o.................................................................... 559
6.1.0 âmbito da Economia marginalista.................................................. 559
6.2.0 significado do homo oecortomicus...................................................... 560
6.3. A ciência económica pode ser uma “ciência dos meios”? ..................... 563
6.4. A Economia marginalista não pode compreender o capitalismo......... 568

Capítulo X III - D a ‘Revolução Keynesiana’ à Contra-Revolução


M o n etarista..................................................................... 585
1. A Grande Depressão: o fim do laissex-faire....................................... 586
2. Keynes: a opção pela política financeira.............................................. 586
3. A fundamentação económica do estado-providência......................... 588
4. A estagnação e a “ascensão do monetarismo” ...................................... 590
5. A contra-revolução monetarista: do “estado mínimo” à
“morte da política económica” ............................................................. 591
6. A tese do “desemprego voluntário” .................................................... 594
7. O problema do emprego visto como problema de salários............... 595
8. O s “monopólios sindicais” e as “imperfeições” do mercado de
tra b a lh o .................................................................................................. 599
9. A crítica monetarista ao “princípio da responsabilidade social
colectiva” ................................................................................................. 602
10. Síntese da controvérsia entre keynesianismo e neoliberalism o....... 604
Referências Bibliográficas............................................................................... 621
C o m eçan d o pelo P r in c í p io

O que é a E c o n o m ia P o l ít ic a ?

1. - Etimologicamente, a expressão economia política significa administração do


património da cidade (do património do estado, do património público), uma vez
que tem a sua raiz nas palavras gregas oikonomia (o iko s-casa, património; nomos
- ordem, lei, administração) epolitica (relativa àpolis, a cidade-estado dos gregos).
Embora com um sentido não coincidente com o seu significado etimológico,
admite-se em geral que a designação de economia política tenha sido adoptada pela
primeira vez por Antoine de M ontchrestien, mercantilista francês (1576-1621),
no seu célebre Traité d'Économie Politique (1615).
Várias outras designações foram sugeridas ou utilizadas para traduzir o com­
plexo de questões que hoje constituem o objecto da nossa disciplina (v.g. economia
civil, economia pública, economia nacional, economia social), embora a mais corrente,
desde os clássicos ingleses, seja a de economia política. Depois de M ontchrestien,
esta designação foi adoptada por James Steuart (Inquiry into Principies ofPolitical
Econom y-1770), tornando-se de uso corrente depois da publicação dos trabalhos
de Ricardo, James Mill e outros autores clásicos.
2. - A nossa disciplina surgiu como Economia Politica. M as a partir de 1890
( I a ed. dos Principies ofEconomics, de Alfred M arshall) generalizou-se a desig­
nação Economics.
Com o êxito da ‘revolução marginalista’, a opção pela designação Economics
revela a preocupação de apresentar a disciplina como uma teoria pura, como uma
ciência teoréticapura, à semelhança da matemática (mathematics) ou da física (phi-
sics) e, por parte de alguns autores, o propósito de pôr em relevo que o que interes­
sa é o indivíduo e não os grupos, a sociedade ou o estado. Não terá mesmo faltado
quem tenha pretendido reservar a designação Economia para a ‘economia científi­
ca’ (ou economia positiva) c a expressão Economia Política para a ‘economia ideo­
lógica’ (ou economia normativa).
No mundo de língua inglesa, por meados da década de 1950, a designação
PoliticalEconomy só muito raramente era utilizada (quase exclusivamente na lite­
ratura de inspiração marxista, contrapondo a economia política dos clássicos ingle­
ses e também de Marx e de Engels à nova economics), o que terá levado John Hicks
a defender que Political Economy é tão só “the older name ofEconom ics”. Esta
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situação começou a mudar a partir do início da década de 80. E nos países francó-
fonos manteve-se a designação tradicional de Economia Politica.
Cremos que não têm razão os que atribuem à expressão Economia Política co­
notações ideológicas ou implicações metodológicas que anulariam a natureza ci­
entífica da sua abordagem dos problemas económicos. Não vemos fundamento
para se apontar a Economia como científica e a Economia Política como não-cien-
tífica, ou vice-versa.
De todo o modo, pensamos que à designação Economia Política se liga, em
regra, uma nota metodológica específica dentro da abordagem científica dos pro­
blemas económicos.
A Economia Politica não representa um paradigma autónomo, e talvez devamos
admitir que não há uma economiapolitica homogénea, mas várias economias políticas.
Colocando-se numa perspectiva interdisciplinar, a Economia Política abre o ca­
minho a diferentes ponderações acerca da importância dos elementos não-econó-
micos (históricos, políticos, culturais, religiosos, filosóficos, ideológicos) e a
diferentes combinações destes elementos.
Mas a Economia Política apresenta actualmente, como traço comum, uma atitu­
de crítica perante a mainstream economics, especialmente no que toca à sua preten­
são de ser uma ciência pura’, aos seus postulados individualistas, à sua defesa do
equilíbrio e da harmonia, à sua recusa cm considerar a perspectiva histórica e os
factores dinâmicos.
Do nosso ponto de vista, poderá dizer-se também que, embora se perfilem ‘leitu­
ras’da realidade ou propostas de política progressistas ou conservadoras tanto por parte
dos que se colocam na óptica da Economics como por parte dos que adoptam a
perspectiva da Economia Politica, a Economics veicula, em regra, a aceitação conserva­
dora do status quo, colocando-se a Economia Politica, em regra, numa perspectiva de
transformação da sociedade (para alguns de natureza revolucionária).
Deixando de lado outros aspectos, sublinharemos que os que integram o “clube
dos economistas políticos” (Kurt Rothschild) defendem também que a teoria eco­
nómica se confunde com a histoire raisonéeác que fala Schumpeter a propósito da
teoria económica de Marx. Segundo esta perspectiva, “o objecto da ciência econó­
mica é essencialmente um processo histórico continuado” (Schumpeter), porque a
nossa disciplina só pode aspirar ao estatuto de ciência “interpretando a história,
incluindo o presente na história” (Joan Robinson), tendo sempre presente que “as
ideias económicas são, sempre e intimamente, um produto do seu próprio tempo e
lugar, e não podem ser tidas como coisas distintas do mundo que interpretam”. (J.
K. Galbraith)
A v e l As N u n e s - 1 3

3. - Vale a pena analisar, muito rapidamente, o contexto histórico (económico,


social, cultural, ideológico) em que surgiu a actividade científica no domínio de
que nos ocupamos e quais os caminhos da sua evolução, como produto social, até
aos dias de hoje.
Começaremos por dizer que a ciência económica nasce, verdadeiramente, no
século XVIII, com o advento do capitalismo como sistema produtivo (como modo
de produção autónomo, se quisermos utilizar a linguagem de Marx), durante o
período em que a sociedade capitalista emergente se contrapunha à velha socieda­
de feudal, fazendo caminho à custa da transformação e da destruição desta.
Dir-se-á que antes desta época - muito antes mesmo - vários autores, desde
Aristóteles aos mercantilistas, formularam proposições e escreveram livros sobre
temas de economia. E verdade. M as a verdade também é que essas proposições se
integravam em discursos diferentes, relativos à moral, à política ou ao direito,
muito longe de configurarem uma ciência económica autónoma relativamente a
essas outras disciplinas. Não se aceitava na prática nem se concebia no plano
teorético que os processos económicos pudessem gerar os seus próprios imperati­
vos, originar as suas próprias leis ou proporcionar as bases de uma disciplina
intelectual autónoma. Antes do século XVIII, a esfera da actividade económica
não era considerada autónoma: a economia era vista como um simples meio ao
serviço da realização de valores ou fins de ordem moral ou religiosa, ou - no caso
dos mercantilistas - um meio de construir, de manter e de aumentar o poder polí­
tico do soberano e do estado.
Tanto na esfera da produção como na esfera do consumo, tudo é decidido
segundo critérios de poder (de poder político, que se confunde com o poder econó­
mico). Nas formações sociais pré-capitalistas, a produção está em absoluto subor­
dinada ao consumo, mas o consumo não é um fim em si mesmo, não passando -
como observa Cláudio Napoleoni - de simples condição material para o desenvol­
vimento das actividades (a cultura, a guerra, etc.) que então se admitia correspon­
derem à ‘dignidade’ do homem. O consumo encontra a sua ‘justificação’ fora do
processo económico, não constituindo, por isso, um elemento integrante do pro­
cesso de produção.
M esmo as relações de troca (monetária ou não), que tinham por objecto uma
parte do excedente apropriado pelos senhores, diziam respeito apenas à esfera da
circulação, completamente desligadas da esfera da produção (e dos custos de pro­
dução). Só com o advento do capitalismo as relações de troca reflectem as relações
de produção e são determinadas por elas (as mercadorias trocam-se no mercado
umas pelas outras tendo cm conta os seus custos reais de produção). Foi isto o que
1 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

compreendeu, desde logo, Adam Smith, que fez da Economia Política, essencial­
mente, uma teoria da produção e do crescimento económico.
Esta situação alterou-se profundamente com as revoluções burguesas, que vie­
ram pôr termo ao estatuto de servidão, proclamando que todos os indivíduos (in­
cluindo os trabalhadores) são seres livres, sujeitos de direitos e de deveres.
Os trabalhadores passam a poder dispor livremente da sua força de trabalho
(que então surge como mercadoria autónoma), substituindo-se o trabalho servil
pelo trabalho assalariado. O capitalista adquire os meios de produção (incluindo a
força de trabalho) e desencadeia o processo produtivo com o objectivo de obter
lucros e de transformar uma parte deles (uma parte do excedente) em meios de
produção adicionais e estes em maior quantidade de bens produzidos, destinados à
venda no mercado com fins lucrativos. Por outro lado, a propriedade feudal (pro­
priedade imperfeita) é substituída pela propriedade capitalista (perfeita, absoluta e
excluente). E a Revolução Industrial trouxe consigo a afirmação do processo co­
lectivo de produção, a divisão interna do trabalho, o aumento da produtividade, a
multiplicação da produção efectiva de bens, assim como a consciência social de
que tudo isto se estava a verificar.
O processo económico ganha então a sua autonomia não apenas cm relação ao
discurso metafísico, teológico ou ético, mas também relativamente ao discurso
político e à lógica do poder político. A ciência económica ocupa-se agora da
sociedade económica (ou sociedade civil) concebida como um sistema, como um con­
junto de relações sociais reguladas por leis próprias (leis naturais, independentes da
vontade dos governos, que podem ser descobertas pela investigação).
Mas o advento da nova era burguesa não ficou marcado apenas por transforma­
ções económicas e sociais. A ‘revolução’ fez-se sentir também na filosofia, na ciência
e no mundo das ideias em geral, percorrendo um caminho que se inicia com o
Renascimento e com as viagens oceânicas de portugueses e espanhóis. O homem
europeu rompe com os velhos tabus escolásticos e parte à descoberta de novos mun­
dos, de novas gentes e de novos produtos, desperto para a observação da natureza e
para a experimentação, para a capacidade de aprender sistematicamente com o que
se ‘vê claramente visto’, para a compreensão de que “todo o mundo é composto de
mudança” (parafraseando Camões), para a afirmação do homem como faber mundi
(e não apenas como viator mundi), para a confiança optimista no homem e na sua
capacidade de dominar a natureza e de ser senhor da sua própria história, para a
substituição de deus pelo homem, consciente da sua capacidade de “dar novos mun­
dos ao mundo”.
A v elã s N u n es - 15

A revolução burguesa é também a revolução racionalista, intimamente associada


à revolução científica e ao método científico moderno introduzido por Bacon e
por Descartes. O s filósofos do séc. XVIII abandonaram a concepção religiosa do
mundo, da vida e das relações sociais, substituindo-a pelo conceito de ordem natu­
ral e proclamando um mundo de harmonia e de justiça (lei natural = lei moral),
governado por leis naturais, tão rigorosas como as da Física.
É neste ambiente que nasce a Economia Política, empenhada em aplicar ao
estudo das relações entre os homens (considerados como elemento da “ordem
natural”) o método científico do racionalismo. Com o escreveu Maurice Dobb, a
Economia Política clássica “exerceu uma influência revolucionária sobre os con­
ceitos e a prática tradicionais”, formulando o “conceito de sociedade económica
como um sistema determinista, i.é, como um sistema regido por leis próprias, de
acordo com as quais poderiam fazer-se os cálculos e predições dos acontecimen­
tos”, e sustentando que “nas questões humanas existia um determinismo compará­
vel ao determinismo das leis naturais”.
Entendendo-se que o sistema capitalista de produção partilhava da ‘racionalida­
de’ inerente à ordem natural, o objecto da ciência económica passa a ser o de desco­
brir as leis naturais que regulam o processo de produção e de distribuição do produto
social, compreendendo-se que, a esta luz, o capitalismo fosse considerado (pelos
clássicos ingleses, v.g.) como uma construção definitiva, como o fim da história.
O conceito de ordem natural surgiu contra o ancien regime, autoritário, discrimina­
tório, regulamentador. Ao autoritário direito divino opunha-se o direito natural liber­
tador dos indivíduos, reconhecendo a cada um o direito de prosseguir o seu próprio
interesse. Desta forma, a ordem económica, funcionando por si própria, seria regida por
uma lei natural que asseguraria os melhores resultados para a comunidade.
Contra a orientação mercantilista - que considerava o ‘governo da economia’
pelo estado, através da regulamentação minuciosa e da intervenção permanente e
generalizada, indispensável para livrar do caos o ‘sistema comercial’ -, os fisiocra-
tas, para além de defenderem o princípio do laisser-faire, laisser-passer, vêm procla­
mar a existência de uma “ordem natural” (“a mais vantajosa para os homens reunidos
em sociedade”), governada por “leis soberanas”, “estabelecidas para todo o sempre
pelo Autor da Natureza”, leis que são leisfísicas, num m undo em que “a ordem
moral é traçada pela ordem física”, em que “as leis morais não são mais do que
injunções à nossa liberdade no sentido de obedecer às leis físicas”. A lei física e a
lei moral confundem-se cm favor da primeira na unidade da lei natural. A moral
não pode ter outro sentido que não seja o de mero instrumento de realização física
da ordem que resulta da lei natural.
1 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

A filosofia moral implícita nos trabalhos dos economistas clássicos (a filosofa


da liberdade natural oufilosofa da lei natural) e o seu apelo aos conceitos fundados
na natureza humana serviram, consciente ou inconscientemente, o objectivo de
encontrar uma justificação moral para o capitalismo nascente.
A Economia Política propõe-se, segundo Adam Smith, “enriquecer tanto os
indivíduos como o soberano”. Mas este desejo de enriquecer surge ao arrepio dos
valores que dominaram a civilização cristã europeia anterior à Reforma e que se
mantiveram até à consolidação da nova civilização burguesa e capitalista. Para que
os novos valores se impusessem contra a moral tradicional era necessário encontrar
para eles uma justificação moral. A filosofia da lei natural que informou a Economia
Política smithiana deu a resposta a esta necessidade, ao ligar o desejo de enriquecer
a princípios universais decorrentes da natureza humana e da razão humana. A natureza
e a razão legitimavam uma prática que a teologia condenava. E esta forma dejustifi­
cação moral casava-se perfeitamente com o ambiente cultural do tempo.
Os conceitos normativos da teoria económica clássica entroncam na tradição da
lei natural dos séculos XVII e XVIII, período em que a natureza e a razão substi­
tuíram Deus como fundamento da ordem social. A ideia da lei natural -já presente
nos fisiocratas -, com raízes na teologia cristã, constitui uma simbiose entre prin­
cípios normativos (que vinham da jurisprudência romana e da teologia medieval,
com a sua ideia de uma ordemjusta, uma ordem dejustiça) eprincípios científicos (as
‘leis naturais’ partilham de um certo cientismo mais ou menos determinista então
em voga).
Enquadrada pelos pressupostos da filosofia da lei natural, a Economia Política
clássica extraiu os seus princípios da natureza e da razão, trazendo implícita a
conclusão de que tais princípios conduziriam a uma ordem socialjusta, num tempo
em que o progresso das relações de produção capitalistas coincidia com o progres­
so da sociedade e em que os interesses e os projectos de transformação social da
burguesia poderiam facilmente identificar-se com os de todos os grupos sociais
que não integravam as clases dominantes feudais.
Parece claro, pois, que a Economia Política nasceu enquadrada na nova ideolo­
gia burguesa. A filosofia social presente cm A Riqueza das Nações assenta na defesa do
individualismo, na confiança no “sistema de liberdade natural”, na afirmação de uma
antropologia optimista (ultrapassando o pessimismo hobbesiano do homo homini lu-
pus)y que servia integralmente o objectivo ideológico fundamental da nova classe
burguesa: a afirmação de que os seus interesses são objectivamente coincidentes com
os da sociedade como um todo (desde que o estado não intervenha e a economia
funcione de acordo com as suas leis imanentes).
A v elà s N u n es - 1 7

Não será, por isso, descabido que aqui se acolha a tese - sustentada por Marx
e pelos autores marxistas - segundo a qual a Economia Política clássica surgiu e
desenvolveu-se como ciência da burguesia, num período em que a burguesia ascen­
dente, em luta para ocupar a posição de classe dominante, na economia, na socie­
dade e no estado, era a classe em condições de (e interessada em) analisar objectivamente a
sociedade e os mecanismos da economia.
4. - Não é fácil definir a ciência económica, por mais estranha que esta afirma­
ção possa parecer. Apetece dizer, com Alfred Marshall, que “todas as afirmações
breves sobre Economia são falsas (excepto esta, talvez)”.
H á pouco mais de um século, foi exactamente Alfred Marshall quem definiu a
ciência económica como “o estudo da humanidade nos assuntos correntes da vida”
(“the study o f mankind in the ordinary business o f life”). Poderíamos deixar esta
definição, que parece de bom senso, e passar à frente, embora com a consciência
de, com ela, pouco adiantarmos acerca do objecto da nossa disciplina.
Mas, hoje, teríamos de assumir igualmente que a definição de Marshall é
inconsistente com o ‘conceito vazio’ apresentado por Jacob Viner ao definir a
ciência económica através da mera descrição agnóstica dela como “aquilo que os
economistas fazem”. É que hoje não falta quem defenda que, graças ao desenvolvi­
mento da ciência económica c graças a uma certa crise por que ela passa, a maioria
dos economistas faz coisas que pouco têm a ver com as preocupações correntes das
pessoas de carne e osso. Talvez estejamos longe, e talvez estejamos mesmo a afas­
tar-nos, afinal, da concretização do maior desejo de Marshall, manifestado cm
1885 na lição inaugural da sua cátedra de Cambridge: o de enviar os seus estudan­
tes para a vida “com cabeças frias mas com corações quentes (...), com capacidade
para atenuarem os sofrimentos sociais que os rodeiam”.
Em regra, os manuais limitam-se a dar a noção de ciência económica que o seu
autor considera mais correcta. Não adoptaremos aqui esta solução, por conside­
rarmos preferível - desde logo no plano pedagógico - problematizar a questão,
enunciando e mostrando o significado das principais perspectivas analíticas em
confronto, estimulando os alunos a participar num debate sempre aberto, sem
fornecer receitas nem impor dogmas, embora sem esconder que estaproblematiza-
ção não pode deixar de reflectir as nossas próprias ideias.
Partilhamos, a este propósito, o ponto de vista dos autores (Paul Sweezy, Joan
Robinson, entre outros1) que defendem perfilarem-se actualmente duas grandes
correntes (ou paradigmas) acerca da ciência económica:

1 Cfr.Ctoudio NAPCX.EONI,ftsk x rx ij, SmHh, Rjcardo, M .vx,trad.esp.,Oikos, BaiceJona, 1974(1Jed italiana. 1973),Capsulo I.
1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

Por um lado, a perspectiva clássica-marxista, que se inicia com os fisiocratas,


passa por Smith e Ricardo e vem desembocar em Marx, tendo sido modernamente
renovada por Piero Sraffa.
Por outro lado, a perspectiva subjectivista-marginalista, que vem de Jean-Baptiste
Say e de W illiam Nassau Senior, que se afirmou com a chamada ‘revolução mar-
ginalista’, levada a cabo, à roda de 1870, por William Stanley Jevons, Cari M en-
ger e Léon Walras, e que hoje se apresenta como a perspectiva académica dominante,
a mainstream economics, que tem no já clássico ensaio de Lionel Robbins sobre a
natureza e o significado da ciência económica - I a ed., 1932 - a sua síntese mais elabo­
rada e representativa.
Vale a pena ler Paul Sweezy2:
“A economia política ortodoxa considera o sistema social existente como um
facto estabelecido, com o se ele fizesse parte da ordem natural das coisas. N o
interior deste quadro imutável, ela procura harmonizar os interesses dos indívíduos,
dos grupos, das classes, das nações; ela estuda as tendências que conduzem ao
equilíbrio, c ela supõe que a mudança se opera de modo progressivo e não através
de transformações bruscas. Penso que, para ilustrar e apoiar estes propósitos, não
será necessário mais do que lembrar que toda a economia ortodoxa se baseia no
equilíbrio geral e/ou parcial (os dois tipos de equilíbrio, longe de serem incompa­
tíveis, implicam-se, de facto, reciprocamente). E, no que se refere à concepção
‘gradualista da mudança, limitar-me-ei a lembrar esta divisa impressa na primei­
ra página do magnum opus de Alfred Marshall {Principies o f Economics): natura
nonfacit saltum - a natureza não dá saltos.

(...) É praticam ente no mesmo m om ento em que se desencadeava a revolução


marginalista, em que a ciência económica (distinta então da economia política
clássica) se tornava num a ideologia apologética, que Karl M arx propõe um
m odo de análise do sistema económico dom inante radicalm ente diferente e
oposto ao precedente. E m vez de harm onia, ele encontrou o conflito. E m vez
das forças tendentes ao equilíbrio, insistiu nas forças tendentes a rom per c a
destruir o status quo. E m vez das transformações progressivas, ele encontrou a
dcscontinuidade qualitativa. Natura fa cit saltum poderia perfeitam ente figurar
na primeira página de O Capital".

E também Joan Robinson3:


“As diferenças fundam entais entre a economia marxista e a ortodoxa tradicio­
nal são as seguintes: primeira, a de que os economistas ortodoxos aceitam o
sistema capitalista como parte da ordem eterna da Natureza, enquanto M arx o

2 Cfr. Paul SWEEZY, “Pour une critique de l'économie politique", em L'Homme et la Société, n° 15, |arvM ar/l970,139/140.
3 CítJoanROBINSON,fcor>om úM arx»ü,irad.8rasil.,E.FundodeCulturaí RiodeJaneiro, 1960 (1*ed. inglesa, 1942), 13/14.
A v e iAs N u n es - 1 9

encara com o um a fase passageira na transição da econom ia feudal do passado


para a economia socialista do futuro; segunda, a de que os economistas o rtodo­
xos argum entam em termos de um a harm onia de interesses entre proprietári­
os, que não trabalham , e trabalhadores, que nada possuem. Estes dois pontos
de diferença não são desconexos, pois se o sistema é aceite c a participação das
várias classes no produto social é determ inada pela lei natural inexorável, todos
os interesses se unem para pleitear um aum ento no total a ser dividido. N o
entanto, um a vez adm itida a possibilidade de alteração do sistema, aqueles que
esperam ganhar e aqueles que tem em perder com a m udança ficam im ediata­
mente separados em campos opostos.

O s econom istas ortodoxos, como um todo, identificaram -se com o sistem a e


assum iram o papel de seus apologistas, enquanto M arx se propôs entender o
funcionam ento do capitalismo a fim de apressar a sua derrocada. M arx estava
consciente deste propósito. O s economistas ortodoxos, num a inconsciência
total. Estes escreveram da única forma que lhes pareceu possível faze-lo, e
acreditaram-se dotados de imparcialidade científica. O s seus preconceitos apa­
recem mais nos problemas que escolheram para estudar e nas hipóteses sobre as
quais trabalharam do que num a doutrina política aberta”.

À luz da primeira perspectiva, a ciência económica tem no conceito de exce­


dente social o seu núcleo essencial e é construída a partir dele e à volta dele.
Desde os fisiocratas que a ciência económica se interroga acerca da origem da
riqueza e da natureza do excedente e procura explicar como é que ele se distribui
entre as várias classes sociais, em sociedades caracterizadas pelo conflito social. E
cremos que, desde os fisiocratas, se foi construindo a ideia - que ficou clara com
Adam Smith, Ricardo e Marx - segundo a qual as leis (ou os princípios) que
regulam a distribuição do excedente estão intimamente ligadas às regras (ou prin­
cípios) que enquadram o processo social de produção (ou, na terminologia de Marx,
estão intimamente ligadas à natureza das relações sociais deprodução).
A segunda perspectiva pode distinguir-se pelo facto de assentar numa concep­
ção atomística da sociedade, de não incluir as classes sociais na análise económica,
de ignorar a conflitualidade social e, com ela, os problemas do poder (do poder
económico e do poder político), de reduzir a vida económica ao mercado, a um
mundo de vendedores e de compradores, de fazer das ideias de equilíbrio dos
mercados e de harmonia social o pano de fundo da sua construção, de se afirmar
como ciência pura, como ciência positiva, por contraposição à economia política
ideológica e doutrinária.
5. - Apesar da equação comum que fazem da problemática central da ciência
económica, a partir da concepção global e de certos conceitos lançados pelos fisi-
2 0 - U m a In t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a

ocratas, vamos encontrar, nas correntes que integram a perspectiva clássica-mar-


xista, a economia política dos clássicos ingleses e a crítica da economia política desen­
volvida por Marx.
5.1. - Os trabalhos dos clássicos ingleses no domínio da economia política
foram obras científicas mas também instrumentos conscientes da luta ideológica e
da luta de classes em que a burguesia se encontrava empenhada contra as velhas
classes feudais. Neste período inicial do capitalismo - enquanto não se revelou e
não veio para o primeiro plano da luta de classes o conflito entre a burguesia
industrial c a nova classe proletária surgida com a indústria capitalista -, a econo­
mia política burguesa empenhou-se em analisar criticamente os mecanismos que
mantinham ainda de pé a velha sociedade feudal, mostrando como as instituições
feudais, a organização corporativa e os regulamentos da política mercantilista en­
travavam o desenvolvimento económico e como as novas relações capitalistas ar­
rastavam consigo o progresso económico e social.
Nestas condições, a economia política clássica foi, conscientemente, um ins­
trumento ao serviço da transformação da realidade social, contribuindo poderosa­
mente para acelerar a derrocada da velha sociedade.
A defesa dos princípios do laissez-fairee a demonstração da racionalidade e da
eficiência da mão invisível e da concorrência perfeita, v.g., constituíram, verdadei­
ramente, uma crítica da ordem social anterior.
O liberalismo e o livre-cambismo, que são fontes inspiradoras dos trabalhos de
Adam Smith e de David Ricardo, representam a crítica às rendas (monopolistas)
dos grandes senhores da terra e aos ganhos de monopólio assentes em privilégios
suportados pelo estado e em restrições impostas à circulação da riqueza e ao livre
desenvolvimento do comércio interno e externo. Na sua essência, são a crítica de
relações de propriedade já ultrapassadas, que sobreviviam graças à protecção do
estado e que entravavam o desenvolvimento das forças produtivas, na medida cm
que favoreciam o consumo em detrimento da acumulação, ao mesmo tempo que
restringiam a mobilidade do capital e a expansão dos mercados.
As noções de trabalho produtivo e trabalho improdutivo vieram para pôr em
evidência a natureza parasitária das velhas classes feudais e das camadas sociais a
elas ligadas, as quais consumiam de modo improdutivo uma parte significativa do
produto social (obtido pelo trabalho das outras classes), em contraste com o papel
dinâmico e progressivo da burguesia, que acumulava o capital e desenvolvia a
indústria c o comércio em novos moldes, os únicos capazes de promover o desen­
volvimento económico.
A v elã s N u n e s - 2 1

W illiam Petty, v.g., referia-se aos senhores feudais e às camadas sociais a eles
ligadas como pessoas que “não fazem nada mais do que comer, beber, cantar, tocar,
bailar e cultivar a metafísica”. E Adam Smith escreveu:4
“O trabalho de muitas das mais respeitáveis classes sociais, tal com o o dos
criados, não produz qualquer valor, não se fixando nem corporizando em qual­
quer objecto durável ou mercadoria vendável que continue a existir um a vez
term inado o trabalho, c que perm ita atingir, mais tarde, igual quantidade de
trabalho. O soberano, por exemplo, bem como todos os funcionários tanto da
justiça com o da guerra que servem sob as suas ordens, todo o exército e toda a
m arinha, são trabalhadores improdutivos. São servidores do público e é um a
parte do produto anual da actividade dos outros indivíduos que os m antém . (...)
N a m esm a classe terem os de incluir tanto algumas das mais sérias e im portan­
tes profissões, com o algum as das mais frívolas: os eclesiásticos, os advogados,
os médicos e os hom ens de letras de todos os géneros, os actores, os bobos, os
músicos, os cantores de ópera, os bailarinos, etc. O trabalho dos mais insigni­
ficantes m em bros destas profissões tem o seu valor, regulado pelos mesmos
princípios que regulam o de todas as outras espécies de trabalho, e m esmo o dos
mais nobres e mais úteis nada produz que perm ita mais tarde adquirir ou obter
igual quantidade de trabalho.Tal como a declamação de um actor, a arenga de
um orador ou a melodia de um músico, o trabalho de todos eles deixa de existir
no próprio m om ento cm que é produzido”.

A teoria do valor-trabalho (núcleo teórico das críticas à velha sociedade), con­


siderando o trabalho como a única fonte criadora de valor, punha em relevo, no
fim de contas, a oposição entre a igualdade e a justiça burguesas e a opressão e os
privilégios feudais.
As concepções liberais, por sua vez, significaram uma crítica empenhada em
acabar com as sobrevivências feudais e em transformar a sociedade e a economia
no sentido que correspondia, então, não só aos interesses da burguesia, mas tam ­
bém às necessidades do desenvolvimento económico e social da Inglaterra.
No plano das relações internacionais, o livre-cambismo (isto é, a defesa da
liberdade do comércio internacional, sem restrições artificiais impostas por qual­
quer estado) correspondia aos interesses da burguesia industrial inglesa cujo mo­
nopólio tecnológico dispensava o recurso à acção do estado, para proteger a sua
posição de domínio.
Em síntese: assim como o desenvolvimento das ciências naturais assegurava à
burguesia os instrumentos indispensáveis à permanente renovação das forças pro­
dutivas - na qual assentava a reprodução das relações de produção capitalistas e

4 Cír. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,582/583.


2 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

dos correspondentes mecanismos de apropriação do excedente, e, portanto, a ri­


queza e a importância social crescentes da burguesia a economia política burguesa
funcionava como arma no combate aos velhos vínculos que limitavam a iniciativa
e a actividade económica, ao mesmo tempo que punha em relevo, perante a pró­
pria classe burguesa e perante as camadas populares (cujo apoio a burguesia então
procurava e estava em condições de obter), a natureza economicamente produtiva
e socialmente progressiva da nova burguesia industrial.
5.2.- No entanto, a partir do momento em que a burguesia se instalou como
classe dominante e, sobretudo, a partir do momento em que a nova classe operária
começou a ganhar consciência da sua própria posição no processo produtivo soci­
al e do antagonismo entre os seus interesses de classe e os interesses da burguesia,
esta deixou de ter interesse no desenvolvimento da economia política enquanto
ciência orientada para a descoberta das leis económicas do funcionamento e da
evolução da sociedade capitalista.
Por esta altura, a economia política começava a pôr em causa o carácter de leis
naturais das leis económicas específicas do modo de produção capitalista; começava a
interrogar-se sobre os benefícios - para as massas populares e, sobretudo, para a classe
operária emergente com o desenvolvimento do capitalismo na indústria -, da liberdade
de actividade económica de que gozava a burguesia; começava, enfim, a pôr em dúvida
que a burguesia continuasse a ser a classe economicamente produtiva e socialmente
progressiva que tinha sido no período da viragem do feudalismo para o capitalismo.
Interrogações deste tipo ressaltam dos trabalhos de Sismonde de Sismondi
(1773-1842), cuja obra principal (Nouveauxprincipes d'économiepolitique) foi pu­
blicada em 1819, e - ainda em vida de Ricardo - das obras dos chamados socialis­
tas ricardianos, com destaque para Thom as Hodgkin (1787-1869), que publicou,
em 1825, um trabalho significativamente intitulado Defesa do trabalho contra as
pretensões do Capital, cujas conclusões poderão sintetizar-se nesta sua afirmação: “é
necessário o capital, mas não os capitalistas”.
A economia política científica deixava de ser útil à burguesia. A economia polí­
tica burguesa perdia então o seu carácter de análise científica da evolução económi­
ca da sociedade e transformava-se em ideologia, no sentido de má consciência (ou
defalsa consciência), i.é, de instrumento de defesa dos interesses da classe dominan­
te na sociedade capitalista (a burguesia), contra a ideologia da classe operária.
N o Prefácio à I a edição de O Capital(1867), advertia Marx:
“N o cam po da economia política, a investigação livre e científica encontra
m uitos mais inim igos do que nos outros campos. A natureza particular do
assunto de que se trata ergue contra ela c leva para o campo de batalha as
A v e l As N u n e s - 2 3

paixões mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coração hum ano, todas
as fúrias do interesse privado”.

Mas é no Posfácio à 2a edição alemã de O Capital (1873) que M arx faz uma
síntese de todo o processo que acabámos de referir:
“A economia política enquanto burguesa - isto é, enquanto vé na ordem capita­
lista não um a fase transitória do progresso histórico, mas antes a forma absoluta
e definitiva da produção social -, pode permanecer um a ciência enquanto a luta
de classes permanecer latente ou só se manifestar por fenómenos isolados.

(...) O período de 1820 a 1830 distingue-se, na Inglaterra, por um a vida


exuberante no dom ínio da economia política. É a época da elaboração da teoria
ricardiana, da sua vulgarização e da sua luta contra todas as outras escolas
resultantes da doutrina de A dam Smith.

(...) A situação dessa época explica a ingenuidade desta polém ica, em bora
alguns escritores sem partido tenham já feito da teoria ricardiana um a arm a
ofensiva contra o capitalismo. Por um lado, a grande indústria ainda estava a
sair da sua infância, pois que o início do ciclo periódico, típico da sua vida
m oderna, só surge com a crise de 1825. Por outro lado, a luta de classes entre
o capital e o trabalho era atirada para segundo plano: no plano político, pela
luta dos governos c do feudalismo, agrupados à volta da Santa-Aliança, contra
a massa popular, conduzida pela burguesia; no plano económico, pelas disputas
do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra que, n a França, se
ocultavam sob o antagonism o da pequena c da grande propriedade, c que, na
Inglaterra, se m anifestaram abertam ente, após as “leis dos cereais”.

(...) C onsiderem os a Inglaterra - continua M arx. O período cm que a luta de


classes ainda aí não está desenvolvida, é tam bém o período clássico da econo­
mia política. O seu últim o grande representante, Ricardo, é o prim eiro econo­
mista que faz deliberadam ente do antagonism o dos interesses de classe, da
oposição entre salário, lucro c renda, o ponto de partida da sua investigação.
Este antagonism o, que é efectivamente inseparável da própria existência das
classes que com põem a sociedade burguesa, form ula-o ele ingenuam ente como
a lei natural, imutável, da sociedade humana. Era atingir o limite, que a ciência
burguesa não transporá. A crítica ergueu-se perante ela ainda cm vida de
Ricardo, na pessoa de Sismondi.

(...) É em 1830 que rebenta a crise decisiva.

N a França e na Inglaterra, a burguesia apodera-se do poder político. A partir


daí, a luta de classes reveste, na teoria com o na prática, form as cada vez mais
declaradas, cada vez mais ameaçadoras. É ela que dá o toque de finados da
econom ia burguesa científica. D oravante, já se não trata de saber se tal ou tal
2 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

teorem a é verdadeiro, mas sim se é agradável ou desagradável, se é aprazível ou


não à polícia, útil ou prejudicial para o capital.

A investigação desinteressada cede o lugar ao pugilato pago, a investigação


conscienciosa à má consciência, aos miseráveis subterfúgios da apologética. No
entanto, os pequenos tratados com que a Anti-com La-wLeague, sob os auspícios
dos fabricantes Bright e Cobden, incomodou o público, ainda oferecem algum
interesse, senão científico, pelo m enos histórico, por causa dos seus ataques
contra a aristocracia fundiária. M as a legislação livre-cambista de Robert Peei
arranca bem depressa à economia vulgar, juntam ente com o seu últim o motivo
de queixa, a sua últim a garra”.

Com base na ideia de que a Economia Política é uma ciência de classe, os autores
marxistas costumam, aliás, distinguir várias fases na evolução da economia política
burguesa, fases que coincidiriam, grosso modo, com os vários estádios de evolução
do capitalismo:s
1) Um período de análise científica da realidade económica. É o período de ascen­
são da burguesia, em que a classe burguesa era inovadora e progressista, sendo,
portanto, a classe em condições de detectar o fenómeno económico: é o período de
elaboração da teoria do valor, de W illiam Petty (1676) a David Ricardo (1817);
2) Um período de controvérsia e de cisão. Depois da ascenção da burguesia capi­
talista, com o aparecimento do proletariado, dá-se início a uma luta de classes que
vem determinar uma nova orientação da economia política, na medida em que
foram postas à prova as contradições da teoria burguesa do valor - trabalho, origi­
nando a cisão entre a ‘escola’ marxista e as várias escolas burguesas pós-ricardianas;
3) Um período de carácter apologético. À medida que a burguesia consolida defi­
nitivamente a sua posição de domínio (pela eliminação das antigas classes domi­
nantes) e à medida que o proletariado vai intensificando a sua luta contra o
capitalismo, a economia política burguesa perde o seu carácter científico e vai
assumindo um carácter apologético, de instrumento de defesa dos interesses da
burguesia contra os interesses da classe trabalhadora. É o período de declínio da
economia política burguesa: a teoria do valor-trabalho é substituída pela economia
vulgar (eclética) e depois pela escola marginalista.
4) Um período de pragmatismo, que se iniciaria depois de Grande Depressão de
1929-33. Com efeito, essa foi uma crise que espalhou a confusão e a ruína nos
meios financeiros e industriais dos EUA, reflectindo-sc depois gravemente na
Europa capitalista. Após uma crise dessa envergadura, em que foram postas em

5 Seguimos aqui a proposta de E. MANDEL (Tra/té.. c i l, 1,9/10). O . LANGE (caps. VI e VII do 1v vol. de Economia
Política.. cit.) faz uma análise mais profunda e menos esquemática da evolução da economia política burguesa.
r k ü t üt
e/?a§,
AyeiAs N unes - 25
ff . R T H L .IO 1 r X A o

causa as estruturas do sistema capitalista, a posição apologética anterior deixou de


ter sentido, por já não ser eficaz. Por isso, a economia política burguesa passou a
te r um sentido pragm ático, capaz de asseg u rar a so b revivência do
sistema.Transformou-se numa técnica de consolidação prática do capitalismo.
Esta fase iniciar-se-ia com John Maynard Keynes. A revolução keynesiana e a
utilização das novas técnicas econométricas na economia política correspondem a
uma necessidade prática do sistema capitalista. Com efeito, m orto o capitalismo
de concorrência e adiantado já o processo de monopolização, a obra de Keynes
significou a elaboração teórica correspondente às necessidades do capitalismo,
num estádio da sua evolução em que a intervenção do estado no domínio da eco­
nomia passou a ser entendida, nas palavras de Keynes, “como o único meio de
evitar uma completa destruição das instituições económicas actuais”.
5.3.- Vimos já que a economia política marxista surgiu como crítica da econo­
mia política clássica, repudiando o seu carácter a-histórico, que correspondia à
consideração do capitalismo como a forma acabada, definitiva, de organização
económica e social, correspondente à ordem natural das coisas e cujo funciona­
mento era susceptível de ser apreendido através de leis imutáveis, de validade
eterna e universal.
Ao assumir-se como classe dominante, a burguesia perdeu o interesse no de­
senvolvimento da economia política enquanto ciência que abarca o conjunto das
relações económicas entre os homens, e, acima de todas, as relações de produção.
O lugar da ciência - observa Oskar Lange - é ocupado pela apologética, que se
limita a “exprimir de forma pseudo-científica um sistema de juízos apriori sobre o
capitalismo, pretendendo que exista harmonia entre os interesses de todas as clas­
ses sociais, e identificando as categorias e as leis económicas do capitalismo com
as categorias e os princípios universais da racionalidade económica”.
Este o resultado de um processo evolutivo da economia política burguesa no
sentido de liquidar esta disciplina enquanto ciência que estuda as relações sociais de
produção e distribuição. Esse processo iniciou-se com o que M arx chamou a “eco­
nomia vulgar” e continuou depois com as correntes subjectivistas e a escola histórica.
As primeiras, negando o carácter social das leis económicas e substituindo a eco­
nomia política clássica pela psicologia ou pela lógica da escolha racional; a se­
gunda, embora reconhecendo o carácter social do processo de produção e
distribuição, nega a existência de leis que governam esse processo, o que significa
a substituição da teoria económica pela história económica.
Aos olhos de Marx, foi então a vez de a classe operária e os intelectuais a ela
ligados chamarem a si a tarefa do desenvolvimento científico da economia políti­
2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

ca, a qual se converteu de ciência da burguesia em ciência doproletariado. Em 1873,


no Posfácio à 2a edição alemã de O Capital, Marx afirmava: “a compreensão que O
Capital rapidamente encontrou em largos círculos da classe operária alemã é a
melhor paga do meu trabalho”. E em 1886, no Prefácio à I a edição inglesa de O
Capital, Engels referia que ele era então correntemente designado como “a Bíblia
da classe operária”, de tal modo a condição social e as aspirações da classe operária
se encontravam reflectidas na análise de Marx.
Enquanto ciência do proletariado, a economia política marxista afirma-se um
instrumento científico apto a propiciar à classe operária a compreensão da sua
posição de classe explorada na sociedade capitalista e do seu papel histórico de classe
transformadora desta mesma sociedade, ao mesmo tempo que, através do conheci­
mento das leis de funcionamento e das perspectivas de desenvolvimento futuro do
capitalismo, fornece ao movimento operário os elementos indispensáveis para a
eficácia da acção prática orientada para acelerar a derrocada da sociedade capita­
lista e para abreviar o período de gestação e minorar os males do nascimento da
sociedade futura.6
Neste sentido, a economia política marxista passa a constituir um elemento es­
sencial do socialismo cientifico, corpo teórico que visa superar a espontaneidade do
desenvolvimento social e dar vida a relações sociais em que a acção das leis econó­
micas se desenvolva segundo a vontade humana.
5.4. - O que fica dito conduz-nos directamente ao problema das relações entre
ciência económica e ideologia, que é apenas um dos campos em que se coloca a
problemática da relação entre ciência e ideologia.

6 "A economia polftica, concebida como ciência das condições e das fornias em que as diversas sociedades têm
produzido, trocado e distribuído os produtos de forma correspondente, isto é, a economia polftica em toda a sua
extensão está ainda por fazer - escrevia Engels em 1878. O que possuímos de ciência económica até ao
presente - continua Engels - reduz-se, quase exclusivamente, à gênese e evolução da forma de produçào
capitalista. Esta ciência começa com a critica dos restos das formas feudais de produçào e de troca; demonstra
a necessidade da sua substituição pelas formas capitalistas; desenvolve, depois, as leis do modo de produçào
capitalista e da troca correspondente na sua fase positiva, i.é, no sentido em que as ditas leis favorecem os fins
gerais da sociedade; e termina com a crítica socialista do modo de produçào capitalista, ou seja, com a expo­
sição de tais leis na sua fase negativa, mostrando como esse modo de produçào tende, pela sua própria evolu­
ção, para um ponto em que também se torna impossível' (AntiDühring, trad. port., ed. cit., 187).
Mas a economia política marxista foi-se desenvolvendo à medida da evoluçào do próprio modo de produçào
capitalista, voltando a sua atenção para novos campos: análise mais particularizada do desenvolvimento do
capitalismo nos vários países; estudo dos problemas da reproduçáo da acumulação e das crises económicas;
estudo dos novos fenómenos e das leis económicas próprias da fase do capitalismo monopolista; elaboração da
teoria do imperialismo, da teoria da crise geral do capitalismo e da teoria do desenvolvimento desigual na
época imperialista; análise da problemática relacionada com a economia polftica das formações sociais pré-
capitalistas, especialmente do modo de produçào feudal; formulaçào da impossibilidade da revolução socia­
lista em todos os países simultaneamente; enunciado dos princípios fundamentais da economia política do
socialismo.
A v elã s N u n es - 2 7

Na óptica do pensamento marxista, o primeiro ponto a referir é o de que Marx


nunca considerou como ideologia o seu próprio sistema de ideias. E, nos seus
primeiros trabalhos, quer Marx quer Engels referiam-se sempre à ideologia como
ideologia mistifteadora da realidade, comofalsa consciência. Na Ideologia Alemã (1845)
a ideologia é considerada como um sistema de ideias falsas que constituem, no
espírito das pessoas, um reflexo deformado das condições materiais da vida social.
Mas a ideologia constitui, ao mesmo tempo, um sistema de ideias criadas pela
classe dominante: “as ideias da classe dominante - escreve M arx - são em cada
época as ideias dominantes”, dado que “a classe que dispõe dos meios da produção
material dispõe ao mesmo tempo, por isso mesmo, dos meios da produção intelec­
tual, de tal modo que a esta ficam globalmente subordinadas as ideias daqueles aos
quais faltam os meios da produção intelectual”.
Só mais tarde os clássicos do marxismo começam a conceber a ideologia
como sistema de ideias sociais, aproximando-se da noção que Gramsci consa­
graria c que hoje é correntemente acolhida na literatura (marxista ou não),
segundo a qual a ideologia é “uma concepção do mundo que se manifesta impli­
citamente na arte, no direito, na actividade económica, em todas as manifesta­
ções da vida individual e colectiva”.
Só com Lenine e Gramsci se consolidou, porém, entre os autores marxistas, o
entendimento de que também as ideias sociais do movimento operário (i.é, o soci­
alismo científico e, no seio deste, a economia política marxista) são ideologica­
mente enquadradas.
Nesta conformidade, poderemos dizer que, para os autores marxistas, as con­
cepções científicas têm que ver, directa ou indirectamente, com as relações sociais
e, por isso mesmo, constituem uma parte da ideologia, i.é, do conjunto das ideias
sociais correntes em determinada formação social, ideias com base nas quais os
homens valorizam, directa ou indirectamente, as relações sociais.
N o que tange às ciências sociais, sendo o seu objecto, justamente, as relações
sociais, isto significa que os seus enunciados científicos influem na valoração des­
tas relações. As ciências sociais apresentam, por isso, claramente, um carácter
ideológico, integram-se na ideologia existente em cada formação social. Indepen­
dentemente dos propósitos dos homens de ciência individualmente considerados
de buscar a verdade objectiva, as ciências sociais - e entre elas a economia política
- inserem-se em cheio na luta ideológica, dado que o processo social do conheci­
mento científico se desenvolve em condições sociais determinadas, e no quadro do
sistema de ideias que caracteriza cada formação social concreta.
2 8 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l It ic a

Assente este primeiro ponto, importa agora distinguir os vários tipos de ideo­
logias (i.é, as ideias sociais das diversas classes) que podem detectar-se nas socie­
dades caracterizadas pela existência de classes portadoras de interesses antagónicos,
sociedades nas quais a luta de classes reflecte esse antagonismo de interesses e nas
quais as ideias sociais de cada uma das classes assumem a natureza de ideologia
que exprime os interesses das classes que polarizam o conflito social. Em síntese,
poderá dizer-se que as ideologias conservadoras mistificam a realidade, enquanto as
ideologiasprogressistas clarificam a realidade e constituem um estímulo indispensá­
vel ao conhecimento científico.7 Fica assim claro que a ideologia é sempre ideo­
logia de classes e camadas sociais bem definidas.
No domínio das ciências sociais, e de modo particular no que se refere à eco­
nomia política, o conhecimento científico da realidade depende da existência de
uma ideologia que ponha a claro essa realidade. Pois bem. Com o vimos, os mar­
xistas sustentam que a ideologia da burguesia foi uma ideologia clarificadora da
realidade no período de ascenção da burguesia à posição de classe dominante,
contribuindo para esclarecer e desmascarar os entraves resultantes, para o desen­
volvimento económico e social, da manutenção das relações feudais, da organiza­
ção corporativa medieval e das regulamentações mercantilistas, e para pôr em
relevo o carácter progressista das novas relações de produção capitalistas.
M esmo então, o carácter de ideologia clarificadora só se revelava na sua capaci­
dade de compreender a natureza progressista do modo de produção capitalista em
confronto com os modos de produção anteriores. Porque a burguesia não tinha
interesse em desvendar toda a verdade acerca do capitalismo: os limites da ideolo­
gia burguesa não lhe permitiam, nomeadamente, apurar o carácter histórico e
transitório do modo de produção capitalista, analisar e esclarecer o aparecimento
e o amadurecimento de contradições internas no seu seio, compreender a evolução
no sentido do esgotamento do seu papel de classe progressista. Daí que os autores
marxistas vejam, mesmo na economia política clássica, uma ideologiaparcialmente
mistificadora, patente no entendimento do capitalismo como sistema social defini­
tivo e no entendimento das leis económicas do capitalismo como leis naturais, de
validade eterna e universal.

Seguindo a liçào de O . LA N C E (ú/t. ob. cit., 1,309/310), podem ainda referir-se as ideologias reaccionárias e
as ideologias d e compromisso. As primeiras sáo as ideologias de classes ou camadas sociais ligadas a uma
formação social ainda mais antiga e que pretendem restabelecer, ainda que parcialmente, as relações sociais
do passado. As segundas, as ideologias típicas da pequena burguesia e das chamadas classes médias, que
assumem uma posição indecisa na luta de classes e que aspiram apenas a uma mudança parcial das relações
sociais existentes.
A v elà s N u n es - 2 9

A ideologia burguesa revelar-se-ia, porém, como ideologia mistificadora com o


advento das escolas subjectivistas e da escola histórica. As primeiras, ao considerar
as relações sociais como expressão das categorias universais da racionalidade econó­
mica, i.é, independentes das condições sociais próprias de cada período histórico. A
segunda, ao considerar que é o espírito da época que determina a natureza das relações
sociais. Compreende-se, por isso, que os autores marxistas sustentem que estas duas
correntes de pensamento económico significam a liquidação da economia política
burguesa enquanto ciência social que se ocupa das relações de produção.
Está agora aberto o caminho para o último passo tendente à caracterização da
perspectiva marxista da economia política. O progresso dos conhecimentos cien­
tíficos no domínio da economia política pressupõe a existência de uma classe
social interessada em conhecer toda a verdade acerca das relações económicas e
das leis económicas que as regem, classe cujos interesses e aspirações aparecem,
por isso mesmo, reflectidos numa ideologia clarificadora da realidade. Ora, nas
condições históricas do capitalismo, só a classe operária reúne estes requisitos, só
a ideologia proletária pode assegurar o desenvolvimento da economia política em
bases científicas. Só a classe operária não tem qualquer interesse na afirmação de
ideologias mistificadoras. A mistificação serve às classes exploradoras (a burgue­
sia e, antes dela, os senhores feudais e os donos de escravos) para preservar as
relações de exploração. Quanto à classe operária, ela não tem qualquer interesse
em dissimular as contradições do capitalismo; a mistificação da realidade só enga­
na a si própria, impedindo ou prejudicando, por falta de esclarecimento ou por
esclarecimento deficiente, os êxitos historicamente possíveis da sua luta pela abo­
lição das relações de produção capitalistas e pela construção de uma sociedade
sem classes.
Para os autores marxistas, o carácter de classe abertamente assumido pela eco­
nomia política marxista não põe em causa a sua validade científica, a qual se mede
apenas pela sua aptidão para explicar a realidade. O ra esta aptidão depende, em
primeira linha, do reconhecimento e da compreensão do seu carácter de classe e
não da sua negação, da sua ignorância ou da sua incompreensão. A história do
pensamento económico mostraria, de resto, que os grandes progressos científicos
nesta disciplina se devem a autores que assumiram mais ou menos abertamente
uma posição de classe (desde Ricardo a Marx e a Keynes).
6. - Com o já vimos, Marx esforça-se por mostrar que a ciência económica
nasceu como ciência da burguesia. Reconhecendo o mérito científico de Smith e de
Ricardo, não deixou de afirmar a sua própria obra teórica como Crítica da Econo­
mia Política (da Economia Política burguesa). E defendeu que a ciência económica
atingira com Ricardo o limite que seria incapaz de ultrapassar ao formular ingenu­
3 0 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o ü t ic a

amente (a qualificação é de Marx) o antagonismo dos interesses de classe presente


na sociedade capitalista como “a lei natural, imutável, da sociedade humana”.
A crítica da Economia Política burguesa e a crítica da sociedade capitalista não
se baseiam, na obra de Marx, em um juízo moral sobre as injustiças do capitalismo,
não se fundam em apelos à morale ao direito.8 Marx não parte da indignação moral
para a construção da sua teoria económica. Como salientou Schumpeter, “Marx
não vertia lágrimas sentimentais sobre a bondade da ideia socialista”, justificando
plenamente a designação de socialismo científico.
A Economia Política marxista centra a sua atenção no processo de desenvolvi­
mento das forças produtivas no quadro da sociedade capitalista, processo que sig­
nifica, por um lado, a crescente concentração e centralização do capital e, por
outro lado, a afirmação e o desenvolvimento numérico do proletariado, da sua
homogeneidade, da consciência de classe, da organização e da disciplina da classe
operária. Isto mesmo gerará, necessariamente, a agudização dos conflitos de clas­
se, até que a classe operária tenha condições para remover a contradição entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações de produção, im­
pondo a sua própria emancipação, mediante a expropriação dos expropriadores e o
consequente desenvolvimento de novas relações de produção.
É uma visão optimista (e não miserabilista) esta, porque assenta a emergência
do socialismo no progresso das forças produtivas (o homem, em primeiro lugar,
graças ao desenvolvimento científico e tecnológico). Seguindo Engels (ao con­
cluir o Capítulo I da 2a Parte do Anti-Diihring, sobre o objecto e o método da
economia política), “as colossais forças produtivas, engendradas pelo modo de
produção capitalista e que este já não pode conter, esperam apenas a tomada de
posse por uma sociedade organizada por cooperação sistemática, a fim de garantir
a todos os membros da sociedade, de forma cada vez mais ampla, os meios de vida
e de livre desenvolvimento das suas faculdades. (...) Neste facto tangível, material,
que se impõe mais ou menos claramente, mas com invencível necessidade no espí­
rito dos proletários explorados, neste facto - c não nas ideias sobre o justo e o
injusto deste ou daquele sábio de gabinete - reside a certeza da vitória do socialis­
mo moderno”.

8 Nas palavras de Engels, “esse apelo à moral e ao direito n5o nos faz dar um passo em frente na ciência. A ciência
económica n3o pode ver na indignação moral, ainda que ela seja justificada, um argumento, mas apenas um
sintoma. A sua tarefa consiste antes em mostrar que os abusos sociais que se notam sâo as consequências
necessárias do modo de produção subsistente, ao mesmo tempo que os sinais da sua iminente dissolução, e
descobrir, no m eio do movimento económico que se desagrega, os elementos de uma nova organização
futura da produção c da troca, que porào fim a esses abusos'.
A v elã s N u n e s - 3 1

6.1. - Coerentemente, a Economia Política marxista assume-se como ciência de


classe, recusando afirmar-se como ciência neutra, indiferente à luta de classes que se
desenvolve no seio das sociedades de classes, porque a luta de classes constitui o
motor da história e a chave para a compreensão da história (recordemos o Manifesto
Comunista'.“ A história de todas as sociedades até aos nossos dias é a história da luta
de classes”). Enquanto ciência doproletariado, propõe-se “dar à classe operária (...) a
consciência das condições e da natureza da sua própria acção”. Esta é - como Engels
sublinha - “a tarefa essencial do socialismo científico, expressão teórica do movi­
mento operário”. À semelhança do que foi, a seu ver, o papel da Economia Política
burguesa relativamente à ordem feudal, Marx propõe-se compreender os mecanis­
mos e explicar as leis de funcionamento do modo de produção capitalista, para
ajudar a classe operária a transformá-lo num sentido convergente com o da sua lógica
evolutiva, procurando apressar a sua derrocada. Esta afirmação de Marx nas Teses
sobre Feuerbach (1845) foi significativamente escolhida para figurar na sua pedra
tumular: “Até ao presente, os filósofos só se têm preocupado com a interpretação do
mundo. Todavia, o problema está em se ser capaz de o transformar”.
6.2. - A Economia Política marxista assume-se, por outro lado, como ciência
teórica (voltada para o estudo das leis de movimento dos vários modos de produ­
ção), que é, simultaneamente, uma ciência histórica (“síntese dinâmica de história e
de teoria económica”, nas palavras de Ernest M andei), convertendo a teoria eco­
nómica em análise histórica e a exposição histórica em histoire raisonée (como
salienta Schumpeter).
M arx parte da Economia Política clássica, mas reelabora-a criticamente, inte­
grando-a na sua teoria do desenvolvimento social, baseada na concepção materialista
da história, que configura o mundo não como “um conjunto de coisas acabadas”
mas como “um conjunto de processos” em devir e que considera a dialéctica como
a “ciência das leis gerais do movimento”.
As categorias económicas e as leis económicas são vistas no quadro do desen­
volvimento histórico, transitório, do modo de produção capitalista. Por isso Marx
chama a atenção para o carácter histórico e transitório das categorias económicas e das
leis económicas elaboradas pela Economia Política clássica. M arx faz ironia a pro­
pósito da concepção fixista dos clássicos ingleses (“com todas estas eternidades
imutáveis e imóveis, deixa de haver história (...). Houve história, mas deixou de
haver”) e defende a tese de que os princípios, as ideias, as categorias não passam de
“produtos históricos e transitórios”, “tão pouco eternos como as relações que ex­
primem”: “H á um movimento contínuo de aumento nas forças produtivas, de des­
truição nas relações sociais, de formação nas ideias; imutável é apenas a abstracção
do movimento - mors immortalis”. (Miséria da Filosofia)
3 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o iít ic a

6.3. - A Economia Política marxista caracteriza-se também pela sua orienta­


ção sociológica.
Para Marx, a produção de bens materiais é a base da vida em sociedade, e toda
a produção éprodução social. Para produzirem, os homens contraem entre si deter­
minados vínculos e estabelecem relações uns com os outros, e só através destes
vínculos e relações sociais os homens se relacionam com a natureza e desenvolvem
a actividade de produção. Ao defender que a Economia não éuma tecnologia social,
Marx pretende sublinhar que o objecto da Economia Política não são as relações do
homem com a natureza, mas sim as relações entre os homens no processo da produção, i.é,
as relações (sociais) deprodução, as relações que entre si estabelecem os homens que
integram uma determinada sociedade ao produzirem os seus meios de subsistência
e ao trocarem entre si os produtos (na medida em que existe divisão do trabalho).
Para o entendimento da natureza das relações de produção assume particular
importância a consideração dasformas depropriedade sobre os meios deprodução, que,
por sua vez, determinam a posição dos homens no sistema de produção social, a
situação que na produção ocupam as classes e os grupos sociais (i.é, a estrutura de
classes da sociedade').
E são as relações de produção que determinam asformas de distribuição do que
se produz, embora se reconheça que as formas de distribuição, troca e consumo
actuam, por sua vez, sobre a produção, estimulando ou entravando o seu desenvol­
vimento. Produção, distribuição, troca e consumo formam uma unidade cujo fac­
tor determinante é a produção. A distribuição do produto do trabalho depende do
modo como se encontram distribuídos os meios de produção, sendo certo que toda
a produção pressupõe uma qualquerforma de propriedade, i.é, uma forma social e
historicamente determinada de apropriação dos meios de produção.
A Economia Política marxista estuda as relações deprodução, na sua interdepen­
dência com asforças produtivas, sendo que o conjunto das relações de produção e
das forças produtivas constitui o modo deprodução. Ela não se ocupa da ‘produção’,
mas das relações sociais dos homens na produção, do regime social da produção.
A ela caberá descobrir as leis que governam a produção e a distribuição dos bens
materiais nas sociedades humanas, enunciar as leis económicas inerentes a cada
um dos modos de produção e as leis que presidem à evolução das várias formas de
produção social.
Sobre a base das relações de produção assenta a superestrutura jurídica, políti­
ca e ideológica da sociedade. Ao estudar as relações de produção, a Economia Polí­
tica marxista toma em conta asformasjurídicas da propriedade dos meios de produção,
atende às relações entre as classes sociais, analisa o papel da instância política, releva
A v e iâ s N u n e s - 3 3

a influência recíproca entre a estrutura económica da sociedade e a superestrutura


(jurídica, política, ideológica), aquela condicionando esta e a superestrutura rea­
gindo depois sobre a base, acelerando ou entorpecendo o seu desenvolvimento.
Bem poderá dizer-se, por isso mesmo, que a Economia Política marxista é tam­
bém, em certo sentido, uma ciência sociológica. Sc é certo que a obra de Marx não
pode reconduzir-se a uma ou a outra das várias disciplinas sociais, pois Marx abor­
dou a realidade social sob uma perspectiva global (simultaneamente histórica, eco­
nómica, política e sociológica), poderá no entanto dizer-se, com Henri Lefebvre,
que “Marx nest pas un sociologue, mais il y a une sociologie dans le marxisme”.9
7. - As bases da perspectiva subjectivista-marginalista começam a delinear-se
com Jean-Baptiste Say, ao apresentar a teoria dos trêsfactores deprodução, a partir da
qual, apoiado num certo entendimento do papel do empresário, vai chegar a uma
teoria da distribuição do rendimento que rompe com o entendimento corrente desde
os fisiocratas, ignorando as classes sociais e os ‘poderes sociais’ e que é reduzida a
uma pura teoria daformação dospreços no mercado de cada um dos ‘serviços produ­
tivos’ prestados pelos titulares de cada um dos factores de produção.
M as a contestação radical das teorias de Ricardo e de Marx, em especial da
teoria do valor-trabalho (e das consequências que Marx extraiu dela: teoria da
mais-valia, teoria da exploração), foi obra da chamada revolução marginalista, de
que foram precursores M cCulloch e W . Nassau Senior, num primeiro momento,
e, mais tarde, Augustin Cournot, Heinrich VonThünen e Herman Gossen. Entre
1871 e 1874, Cari M enger (Áustria), Willian Stanley Yevons (Inglaterra) e Léon
Walras (Lausana - Suíça) enunciaram, independentemente uns dos outros, o prin­
cípio da utilidade marginal decrescente e a teoria subjectiva do valor, que vem identifi­
car o valor com o “grau final de utilidade” (Yevons) ou com a utilidade da última
unidade simultaneamente disponível de um bem (a utilidade marginal, na expres­
são cunhada por Alfred Marshall).

9 Algo diferente parece ser a posição de Georges CurvKch, para quem "Marx foi o maior e o menos dogmático de
todos os fundadores da sociologia. (...) Foi em primeiro lugar e antes de tudo um sociólogo, fazendo a sociologia
a unidade da sua obra. (...) O Capital só pode ser compreendido como obra científica se se considerar como uma
sociologia económica revelando que os fenómenos económicos, as actividades económicas, as características
económicas perdem o seu sentido e o seu carácter quando se encontram desligados do conjunto da sociedade,
da sua estrutura, do tipo desta última, do 'fenómeno social total', do 'homem total'. Deste ponto de vista - conclui
G . GURV1TCH, La vocation actuelle de la sociologie, vol. 2, cap. XII, 220-225 - afirmar que Marx reduziu toda
a vida social à vida económica é fundamentalmente falso, pois ele fez exactamente o contrário: revelou que a
vida económica 6 apenas uma paite integrante da vida social e que a nossa representação do que se passa na
vida económica é falseada na medida em que não se tiver em conta que, sob o capital, a mercadoria, o valor, o
preço, a distribuição dos bens, se escondem a sociedade e os homens que nela participam".
3 4 - U m a I n t r o o u ç à o â E c o n o m ia P o l ít ic a

8. - Nas últimas décadas, esta perspectiva subjectivista-marginalista da ciência


económica corre nos manuais e nos centros produtores da mainstream economics
dentro dos cânones da síntese apresentada por Lionel Robbins, há mais de oitenta
anos, num ensaio famoso, An Essay on the Nature andSigniftance ofEconomic Science,
cuja I a edição foi publicada em Londres em 1932.10
É clássica a definição de Robbins: “A economia é a ciência que estuda o com­
portamento humano enquanto relação entre fins e meios escassos susceptíveis de
usos alternativos”. É uma noção que corre o mundo, veiculada por centenas (ou
milhares) de manuais, que a adoptam como verdade indiscutível (por isso não se
discute), com saliência para o best-seller que é o Economics, de Paul Samuelson,
onde encontramos esta definição: “A economia é o estudo de como as pessoas e a
sociedade decidem empregar recursos escassos que podem ter utilizações alterna­
tivas, para produzir bens variados e para os distribuir para consumo, agora ou no
futuro, entre as várias pessoas e grupos da sociedade”.11
Fala-se de síntese neo-clássica, para significar que, nesta óptica, a análise dos pro­
blemas da economia (capitalista) se baseia essencialmente no jogo da oferta e da
procura, tendo como pontos de partida três pressupostos fundamentais: a Economia
é a ciência da escolha; o indivíduo é identificado com o homo oeconomicus, um ser
que procede sempre de acordo com os princípios do cálculo económico, independente­
mente das circunstâncias históricas e da sua inserção em qualquer classe social; os
preços são considerados como indicadores da escassez relativa, e, portanto, como
sinais orientadores das escolhas (racionais) de cada um dos agentes económicos.
9. - Actualmente, como dissemos atrás, a grande maioria dos autores que inte­
gram a mainstream economics adopta definições da ciência económica que andam à
volta da síntese apresentada em 1932 por Lionel Robbins: “A Economia - recor­
demos - é a ciência que estuda o comportamento humano enquanto relação entre
fins e meios escassos susceptíveis de usos alternativos”.

10 Logo em 1935 saiu a 2* edição (Macmillan). O autor regressou ao lema em 1981, com o estudo intitulado
"Econom ics and Political Economy", publicado em The Am erican Econom ic Review - Papers and
Proceedings, vol. 71, n° 2, Maio/1981,1-10.
A primeira abordagem da ciência económica como ciência que se ocupa do comportamento humano con­
dicionado pela escassez (de tempo, de forças produtivas, de bens e serviços de qualquer tipo) parece dever-se,
segundo a informação de Robbins, a David Hume, quando discute o problema da propriedade no volume 2®
do seu Treatise o f Human Nature, de 1882 (cír. L. ROBBINS, 'O n Latsis's Method and Appraisal in Economics:
A Review Essay", em Journal o f Economic Ulerature, vol. V XII, Set/1979,997).
11 Cír. P. SAMUELSONAV. NORDHAUS. Economia, 12*edição, McGraw-Hill, Lisboa, 1878,6. Poderíamos recor­
dar aqui vários outros manuais importantes e influentes em todo o mundo. Lembremos, v.g., o de Raymond
BARRE tfeonom ie Politique, 14* ed., PUF, Paris, 1,20): 'Aeconom ia polftica é a ciência da administração dos
recursos escassos. Estuda as formas que assume o comportamento humano no aproveitamento desses recursos:
analisa e explica as modalidades segundo as quais um indivíduo ou uma sociedade afecta meios limitados à
satisfação de necessidades numerosas e ilimitadas'.
A v elã s N u n es - 3 5

O problema económico - resultante da escassez relativa dos bens económicos perante


as necessidades ou os fins a satisfazer ou a prosseguir - é, na sua essência, o proble­
ma da utilização dos bens escassos susceptíveis de usos alternativos na satisfação
de objectivos de importância desiguale susceptíveis de ser escalonados segundo uma
escala depreferências.
O principio económico é o princípio de racionalidade económica que orienta o
homo oeconomicus na luta contra a escassez, e que se traduz na conduta económica, i.é,
“a conduta inteligente, preordenada a fins e logicamente adequada ao seu melhor
conseguimento”. (Teixeira Ribeiro) Esta conduta traduz-se na observância de um
principio do máximo resultado (maximização do grau de realização do fim a alcan­
çar mediante a utilização dos meios escassos disponíveis) e de um princípio de
economia de meios (obtenção de um determinado grau de realização do fim propos­
to com o mínimo dispêndio dos meios disponíveis).
Neste sentido, o homo oeconomicus è um agente racional maximizador da utilida­
de, quer a utilidade seja entendida na acepção hedonística de prazer, satisfação,
felicidade ou bem-estar psicológicos, quer se associe à utilidade o sentido praxeo-
lógico de grau de realização do objectivo da actividade económica, qualquer que
seja a sua natureza e qualidade, desde que se trate de uma grandeza susceptível de
diversos graus de realização (fala-se, em regra, de preferência).
O juízo económico, com base neste entendimento, consiste, segundo Robbins, em
averiguar se a acção em causa realiza a melhor escolha, na perspectiva do fim pró­
prio daquela acção, fim relativamente ao qual a ciência económica nada tem a dizer,
porque a ciência económica é neutra em relação aosfins, que assume como fins dados.
“Não há fins económicos - esclarece Robbins. H á apenas vias económicas e
não-económicas de alcançar fins dados. Não podemos dizer que a prossecução de
fins dados é não-económica porque os fins são não-económicos; podemos apenas
dizer que ela é não económica se os fins são prosseguidos com um dispêndio
desnecessário de meios”.
Considerando a escassez como um dado fundamental da vida dos homens e das
sociedades humanas, aponta-se como objecto da ciência económica “o estudo das
actividades e das instituições criadas pela escassez”, o estudo do “comportamento
humano condicionado pela escassez”.
A definição de Robbins não assenta na classificação dos factos ou dos tipos de
conduta humana em económicos e não-económicos para incluir apenas os primeiros
no (e excluir os segundos do) objecto da ciência económica. É que uma tal con­
cepção ‘classificatória’ sempre deixaria de pé “o problema económico de decidir
entre o económico e o não-económico*, i.é, o problema de saber como dividir o
3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a •

tempo e os meios escassos disponíveis entre as actividades económicas e as activi­


dades ditas não-económicas. E, na óptica de Robbins, este problema apresenta-se
sempre sob um aspecto económico e é, sem dúvida, um problema económico, uma vez
que os actos que implicam a afectação de tempo e meios escassos à prossecução de um
determinado objectivo representam sempre um custo de oportunidade (o sacrifício
da sua utilização para alcançar outro(s) objectivo(s) alternativo(s)).
Estamos, pois, perante uma definição analítica', a ciência económica “não procu­
ra escolher certos géneros de comportamentos - sublinha Robbins -, mas incide
especialmente num aspecto particular do comportamento, a forma de que ele se
reveste sob a influência da escassez”.
“Quando o tempo e os meios para conseguir os objectivos são limitados e
susceptíveis de aplicação alternativa, e os objectivos podem ser diferenciados se­
gundo uma ordem de importância, então a conduta assume necessariamente a
forma de uma escolha. Todos os actos que envolvem tempo e meios escassos para
alcançar um objectivo implicam o sacrifício da sua utilização para conseguir outro(s)
objectivo(s). Eles têm um aspecto económico”.
Em conformidade com todas as teorias subjectivistas sobre a ciência económi­
ca, Robbins considera o sistema económico como “uma série de relações interde­
pendentes, mas conceitualmente distintas, entre homens e bens económicos”, fazendo
da ciência económica - ao contrário da perspectiva clássica-marxista - a ciência
que estuda as relações entre homens e bens económicos.
A ciência económica transformou-se, deste modo, numa ciênciaformal, num
ramo da praxeologia: a ciência da escolha, a teoria geral da escolha racional, que se
aplica tanto ao homem isolado como ao homem em sociedade, qualquer que seja
o tipo de sociedade (ou mesmo a uma colmeia, como pretende Samuelson).
Ligando-se as proposições da Economia a princípios universais do comportamento
humano (representados no homo oeconomicus enquanto homo calculator), assume-se a
ciência económica como uma ciência a-histórica: a conduta económica - que constitui o
objecto da análise científica - obedece sempre ao mesmo princípio de racionalidade,
seja qual for o contexto histórico e institucional em que se desenvolva.
Esta ciência económica, entendida como “ciência pura” ou “ciência positiva”,
afirma-se como “ciência dedutiva”, consistindo a natureza da análise económica
“em deduções de uma série de postulados, dos quais os mais relevantes são factos
quase universais da experiência presente sempre que a actividade humana assume
um aspecto económico”. A análise económica reduz-se ao “esclarecimento das
implicações de escolher em circunstâncias várias assumidas inicialmente”. Assim
como “na M ecânica pura exploramos a implicação da existência de certas propri­
A v elà s N u n es - 3 7

edades dos corpos”, assim também - escreve Robbins - “na Economia pura exami­
namos a implicação da existência de meios escassos com usos alternativos”.
10. - Antes de concluir esta tentativa de explicar o que é a ciência económica, ainda
arriscamos uma pergunta provocatória (ou talvez não): éa Economia uma ciência?
A verdade é que esta pergunta não é uma simples figura de retórica. De um
modo ou de outro, ela tem sido formulada por muitos e importantes economistas.
E o facto de ela ser formulada já indicia que há aqui um problema que é necessário
encarar. Basta dizer que John Hicks utilizou a pergunta enunciada como título de
uma comunicação que apresentou em 1983, num encontro de laureados com o
Prémio Nobel.
10.1. - Alguns autores levam tão longe a afirmação da Economia como ciência
sem epítetos (uma ciência como as outras, i.é, como as ciências ditas exactas) que
acabam por negar a atitude de humildade intelectual que deve caracterizar o espí­
rito científico, desrespeitando mesmo as restantes ciências sociais. É elucidativo, a
este respeito, o seguinte episódio passado com o Prémio Nobel Georges Stigler e
relatado pelo próprio numa sessão pública da American Economic Association.
Um colega de Stigler, professor de Ciência Política, questionava-se, em con­
versa com ele, acerca da razão de haver um Prémio Nobel da Economia e não
haver um Prémio Nobel para nenhuma das outras ciências sociais. “Disse-lhe -
comenta Stigler - que eles já tinham um Prémio Nobel da Literatura”.
Esta ‘história’ fala por si. Fica sem comentários.
10.2. - Mas nem todos os economistas se apresentam tão seguros de si e da sua
disciplina.
A resposta de Hicks à pergunta há pouco enunciada é a de que “a Economia
está na fronteira da ciência e na fronteira da história”. Está nafronteira da ciência
porque pode utilizar métodos científicos ou quase científicos. M as, segundo H i­
cks, a Economia nãopassa dafronteira da ciência, porque as experiências que analisa
são constituídas por informação respeitante ao passado - “os registos do passado
são os fenómenos” - e têm, por isso, muito de não repetitivo (“os aspectos da vida
económica que precisamos de seleccionar a fim de produzir teorias úteis podem
ser diferentes em épocas diferentes”).
Daí a conclusão de Hicks no sentido de que “a economia não está no tempo, e,
portanto, na história, da mesma forma que a ciência”: as predições económicas
“colocam-se no tempo, no tempo histórico, de uma forma diferente da que corres­
ponde à maior parte das predições científicas”. Embora aceite que a análise econó­
mica tem um certo paralelismo com o trabalho do cientista, Hicks defende que
“há talvez um paralelismo mais estreito com o trabalho do historiador. Não do
3 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o ü t ic a

historiador estritamente narrativo, que não procura explicações, mas do género de


historiador mais elevado ou mais ambicioso, que procura explicar”.
Na 5a edição (1991) do seu notável manual, Baumol e Blinder escrevem que “a
Economia apresenta algo de desdobramento da personalidade”. E explicam: “Em ­
bora ela seja claramente a mais rigorosa das ciências sociais, apresenta-se decidi­
damente mais como ‘social’ do que como ‘científica’, quando comparada, digamos,
com a física”.
Esta ‘dupla personalidade’ da ciência económica aparece reflectida em vários
autores, que a consideram “simultaneamente a mais artística das ciências e a mais
científica das artes”.
Walter W eisskopf coloca a questão desta forma: “A ciência económica perten­
ce às disciplinas sociais que lidam com seres humanos e com a condição humana.
Com o tal, a ciência económica é um misto de ciência e de ética, e pouco importa
se entendemos que ela é uma ciência com implicações normativas ou um ethos
com fundamentos científicos”. Já Keynes defendera, aliás, que “a Economia é es­
sencialmente uma ciência morale não uma ciência natural”.
Defendem outros (Alessandro Vercelli, v.g.) que a Economia Política deve ser
entendida como uma “disciplina não-euclidiana, i.é, não demonstrativa”. E isto por­
que “as suas conclusões são de natureza probabilística e não podem ser apresentadas
com certeza”. A ciência económica surge, assim, como uma espécie de disciplina
argumentativa, na medida em que “a sua finalidade - observa Vercelli - pode ser
apenas a de persuadir e não a de demonstrar seja o que for de modo conclusivo”.
Paul Samuelson exprime com clareza esta mesma ideia. “A Economia - escre­
ve ele - não é uma ciência exacta. Assim, eu não posso provar a correcção deste
resultado pelo processo através do qual se prova o Teorema de Pitágoras ou se
confirma a constância da velocidade da luz”. E na 14a edição do seu manual (com
a colaboração de W illiam Nordhaus) podemos ler esta afirmação: “O objecto da
Economia é bem antigo e honrado, continuando a crescer e tendo ainda um longo
caminho a percorrer antes de se aproximar do estatuto de ciência com uma preci­
são aceitável”.
Christian Stoffaés defende que a Economia se apresenta como “a disciplina
(...) mais próxima do sagrado”. Porquê? Porque ela pretende “dar a caução da
ciência e fornecer conclusões indiscutíveis e absolutas a uma matéria que, mais do
que qualquer outra, deveria submeter-se ao debate contraditório e ao juízo relati­
vo”. Um livro editado em 1994 por Geoffrey Brennan e A. W aterman intitula-se
precisamente Economics and Religion: Are They Distinct? Em 2003, Paul Oslington
editou um outro livro intitulado Economics and Religion (Ed. Elgas, 2 vols.).
A v e ià s N u n e s - 3 9

10.3. - Sem dúvida que o facto de a Economia ser uma ciência humana (uma
ciência social) traz alguns problemas específicos, porque as ciências humanas pres­
supõem um projecto acerca do homem.
Assim sendo, toda a teoria económica pressupõe uma dada concepção do homem.
Por isso pensamos que Stoffaès tem razão quando defende que “há sempre uma
profissão de fé escondida quando uma doutrina se proclama ideologicamente neu­
tra” e quando alerta para que, “tanto como da tentação ideológica, os economistas
devem desconfiar da sua tentação de quererem construir uma ciência ‘cientista’,
autónoma e objectiva, desligada de toda a ingerência política e doutrinal”.
Na nossa disciplina, o investigador está ele próprio implicado no objecto da
sua investigação. O s temas que os economistas escolhem para objecto das suas
investigações “dependem, no mais alto grau, da sua própria situação na sociedade,
da sua psicologia, da sua história pessoal, das suas aspirações políticas. O seu
ângulo de visão da sociedade não pode ser neutro e reflecte a sua própria ética, a
sua esperança de transformar a sociedade ou, pelo contrário, de a conservar tal como
é”. (Ch. Stoffaès. Sublinhado nosso. AN)
No mesmo sentido, Robert Heilbroner observa que os cientistas sociais “fazem
parte de uma determinada ordem, têm um lugar dentro dela, beneficiam dela ou
perdem com ela, e vêem o seu futuro ligado ao seu sucesso ou à sua falência.
Perante este inevitável facto social, uma atitude de total ‘imparcialidade’ relativa­
mente ao universo dos eventos sociais é psicologicamente não-natural (contra-
natura) e, muito provavelmente, conduz a uma posição de hipocrisia moral”.
Heilbroner arrisca mesmo a afirmação (que se aproxima de uma confissão) de
que “todos os cientistas sociais abordam os seus trabalhos de investigação com o
desejo, consciente ou inconsciente, de demonstrar a praticabilidade ou a imprati­
cabilidade da ordem social que estão a investigar”. E defende que “não é indiferen­
te, para o neoclássico ou para o marxista, que os dados que obtém se ajustem às
hipóteses que está a testar, e cada um luta fortemente para ‘justificar’, para minimi­
zar ou para rejeitar os resultados que vão contra os seus pontos de vista iniciais”.
Perante o que fica dito, parece avisado admitir, com Stoffaès, que a Economia,
“sendo uma ciência social e política, que trata do governo dos homens, corre
também o risco de se transformar em ideologia, o risco de servir de instrumento
de propaganda às ambições dos homens, dos grupos sociais e das nações”.
10.4. - Com base na natureza do objecto da ciência económica, sustentam
alguns autores não ter fundamento a distinção entre economia positiva e economia
normativa. “A economia positiva não existe - escreve Hom a Katouzian. (...) A
Economia é uma ciência normativa, prescritiva”.
4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

“Desde os fisiocratas, de resto, a ciência económica esteve sempre no centro do


debate sobre a escolha do modelo de sociedade” (Henri Denis). Porque a ciência
económica é, por natureza, uma ciênciaprescritiva ou normativa', as suas propostas
teóricas têm em vista conseguir os melhores métodos para atingir objectivos públi­
cos ou privados, assumidos como objectivos desejáveis.
Poderemos talvez concordar em que a presença dos valores na análise científica
não é uma característica específica das ciências sociais. Passa-se o mesmo com as
ciências naturais.
Se se considera correcto o ponto de vista segundo o qual o processo científico
começa com a observação, não se vêem argumentos capazes de defender que as teorias
científicas podem ser inteiramente isentas de valores. Em primeiro lugar, os dados
da realidade têm que ser seleccionados, o que implica um critério (produto do espí­
rito humano) para definir o que é relevante e o que o não é; em segundo lugar, os
dados seleccionados para observação têm que ser tratados ou processados de acordo
com métodos empíricos e analíticos que são outro produto do espírito humano e
que são escolhidos pelo investigador; em terceiro lugar, a observação dos factos não
pode ser isenta de valores, porque não há observadores puros', a observação passa
sempre pelo espirito do observador, i.é, a observação é mediatizada pela experiência
da vida, pelos gostos, pelos conhecimentos, pelas concepções do observador. Por
isso é que ninguém espera que dois repórteres que observam os mesmos factos,
com espírito aberto e inteira honestidade intelectual, dêem deles a mesma imagem
(i.é, façam deles a mesma ‘leitura’).
Para quem defenda que o processo de análise científica se inicia com aformulação
de hipóteses a priori, não há maneira de fugir à conclusão de que toda a ciência está
impregnada de subjectividade, porque todas as hipóteses apriori são, por definição, pro­
duto do espírito do investigador. Elas podem revelar-se correctas ou incorrectas, mas
tal não tem que ver com a honestidade ou a desonestidade intelectual do investigador.
E poderemos dizer que sem este elemento subjectivo (a visão de que fala Schumpeter)
não é possível desenvolver qualquer processo de elaboração científica11A
Edgar M orin tem, pois, inteira razão quando defende que “seria um erro gros­
seiro sonhar com uma ciência purgada de toda a ideologia, na qual reinasse apenas
uma única visão do mundo teoricamente verdadeira. De facto - defende o filósofo

11 -A "É pertinente recordar outro aspecto da relação entre ideologia e visão - escreve Schumpeter no artigo clássico
sobre Science and Ideobgy, cit. Este ato cognitivo pré-cientffico que é a origem das nossas ideologias é também
o pré-requisito do nosso trabalho científico. Sem ele nenhum avanço é possível em qualquer ciência. Através
dele, adquirimos novo material para os nossos ensaios científicos e algo para reformular, para defender, para
atacar. O nosso estoque de factos e instrumentos cresce e rejuvenesce. E assim, embora avancemos devagar
por causa das nossas ideologias, sem elas poderíamos não avançar de todo."
A v elã s N u n es - 41

- o conflito das ideologias, dos pressupostos metafísicos (conscientes ou não) é


uma condição sine qua non da vitalidade da ciência”. Isto é válido para todas as
ciências, e, por maioria de razão, para a ciência económica.
No que respeita a esta última, seja-nos permitido invocar aqui a autoridade da
Prof* Joan Robinson para defender, com ela, a ideia de que “a ciência económica
não pode escapar nunca à ideologia” e de que, como em toda a actividade humana
e em toda a actividade de investigação, “há sempre uma direita e uma esquerda,
perspectivas ortodoxas e radicais, defesa do status quo e exigência de mudança”.
M as o facto de se aceitar que a ciência económica não está isenta de valores e
é influenciada por determinadas concepçõesfilosóficas acerca do homem e por deter­
minadas concepçõespolíticas acerca da organização da economia e da sociedade, não
significa que se ponha em causa o seu estatuto científico. Tal não impede a nossa
disciplina de adoptar os cânones do procedimento científico. Ela pode e deve fazê-lo.
A “ética da investigação” (Kurt Rothschild) obriga os investigadores no domí­
nio da ciência económica a não se dispensarem de procurar a verdade e de o
fazerem seguindo procedimentos que respeitem a honestidade intelectual e as ‘re­
gras do jogo’. A ninguém é lícito esconder factos ou argumentos e muito menos
falsificar ou manipular os dados de que dispõe, que devem ser analisados de acor­
do com as leges artis reconhecidas pela comunidade científica, tendo talvez como
meta o ideal da objectividade (que, por certo, dificilmente poderá ser alcançado).
O que se diz atrás significa que os economistas, enquanto cientistas sociais, não
podem (não devem) ignorar que o seu trabalho de investigação sofre sempre a
influência dos seus próprios valores e também dos valores dominantes, e devem,
tanto quanto possível, tornar claros os pressupostos filosóficos de que partem.
E significa também que o reconhecimento destas influências não tem que pôr
em causa a validade científica dos resultados da investigação levada a cabo. Adam
Smith, Ricardo, Marx e Keynes assumiram expressamente as concepçõesfilosóficas e
até os objectivos políticos que procuravam atingir com os seus trabalhos e as suas
propostas teóricas. E ninguém lhes recusará um lugar cimeiro na história da ciên­
cia económica. Para falarmos apenas do exemplo de Keynes, é sabido que ele não
se coibiu de afirmar abertamente que as suas propostas visavam “evitar a destrui­
ção completa das instituições económicas actuais” (i.é, do capitalismo) e permitir
“um feliz exercício da iniciativa individual”. Este economista comprometido não dei­
xou de ser um dos mais importantes teóricos do século XX. Em suma: o facto de
as teorias económicas serem elaboradas tendo em vista determinados fins e serem
utilizadas ao serviço de determinados objectivos de natureza político-ideológica
não lhes retira, só por si, o seu carácter científico.
4 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o ü t ic a

É difícil, no entanto, não partilhar com Don Patinkin a ‘angústia’ com que nos
dá conta da consciência que foi adquirindo de que o próprio trabalho de investiga­
ção empírica está fortemente condicionado (na prática, parece que determinado...)
pelos pressupostos de que partem os investigadores e até pelas suas concepções em
matéria de política económica. “O que provoca em mim uma grande dose de
cepticismo acerca do estado da nossa disciplina - escreve Patinkin - é a muito
elevada correlação positiva entre os pontos de vista sobre política económica de
um investigador (ou, o que é pior, do seu orientador de tese) e os resultados empí­
ricos a que chega. Começarei a acreditar na Economia como ciência quando sair
de Yale uma tese de doutoramento de natureza empírica a demonstrar a suprema­
cia da política monetária em qualquer episódio histórico, c quando sair de Chica­
go uma tese que demonstre a supremacia da política financeira”.
10.5. - M uitos autores têm associado à Economia matemática a ideia de uma
‘cicntificidade’ indiscutível. Para muitos deles, há uma Economia científica, e essa é
a Economia matemática. Entre eles contam-se os que sustentam que “science is
measurement” e defendem que a economia é susceptível de medida e é, portanto,
‘cientificável’ ou ‘objectivável’.
Foi Karl Popper quem escreveu que “o êxito da Economia matemática mostra
que pelo menos uma ciência social já passou pela revolução newtoniana”.
M uitos defendem, porém, um ponto de vista diferente do de Popper. John
Hicks, por exemplo, considera a economia matemática um “ramo da matemática
aplicada”, mas sustenta que “a matemática não é uma ciência”, porque “tem que ver
com conceitos e relações entre conceitos, não com fenómenos”, porque “as suas
proposições são logicamente verdadeiras: não precisam de observações que as
confirmem”. Daí que, segundo Hicks, o facto de a economia matemática ser um
ramo da matemática aplicada “não significa que ela deva ser considerada ciência”.
Outros autores consideram que a Economia matemática se tem traduzido em alte­
rações (quase) meramente formais ou notacionais, negando que a utilização da mate­
mática na análise económica tenha gerado qualquer mudança que “possa genuinamente
considerar-se como uma ‘revolução newtoniana e sustentando que “não é razoável
sugerir que algo deste tipo vá ocorrer no futuro previsível”. (T.W. Hutchison)
As reservas à Economia matemática surgiram, de resto, desde muito cedo.
Logo na recensão da MathematicalPhysics, de Edgeworth, Alfred Marshall deixa­
va o alerta: “será interessante ver até que ponto o autor conseguirá impedir que a
matemática corra com ele, fazendo-o perder de vista os factos económicos reais”.
Esta preocupação de Marshall será, aliás, partilhada por todos os que, com Ber-
trand Russel, entendem que a matemática é a disciplina em que “deixamos de
A v e i As N u n e s - 4 3

saber do que estamos a falar e deixamos de saber se aquilo de que estamos a falar
é verdadeiro”.
É conhecido também o desdém que Keynes manifesta na GeneralTheory rela­
tivamente aos “métodos pseudo-matemáticos”que, a coberto de refinada modelís-
tica, se revelam “tão inferiores como as suas hipóteses iniciais” e “permitem aos
autores esquecer, no labirinto de símbolos vãos e pretensiosos, as complexidades e
as interdependências do mundo real”, conduzindo a uma teoria económica cons­
truída dedutivamente a partir de pressupostos assumidos muitas vezes por razões
de simplicidade e elegância e não por se adaptarem à realidade da vida.
À ideia de que a Economia (nomeadamente a Economia matemática) é uma dis­
ciplina científica porque o seu objecto é susceptível de medida respondem, com razão,
os que pensam que, “no homem, o que não se mede é mais importante do que aquilo
que se mede”. É o caso de Jean Marchai: “a teoria pura de hoje, filha da ciência do
século XIX e neta do racionalismo do Renascimento, esquece-o talvez demasiado”.
E de muitos lados vem a crítica de que as complexas técnicas analíticas apoia­
das na matemática e os modelos altamente formalizados deixam de fora factores
não-económicos que são estratégicos para a abordagem adequada de muitos pro­
blemas dos nossos dias, em cuja análise a quantificação deve dar lugar à compreen­
são, valorizando menos as relações de causalidade do que as relações de interdependência,
inseridas numa realidade em permanente devir e enraizadas no ambiente históri-
co-cultural que caracteriza cada comunidade.
Não falta mesmo quem defenda que, “quanto mais avançada e mais rigorosa é a
análise económica, menos é capaz de ter em conta elementos não-económicos”. E o
ponto de vista de Gerald Meier, que deixa esta avisada recomendação: “apesar dos -
ou antes, por causa dos - esforços dos economistas matemáticos, precisamos de
lembrar que a Economia é, não obstante, uma ciência social, e que pode valer a pena
perder algum rigor e precisão na análise para introduzir políticas mais praticáveis”.
É a crítica a um certo ‘diletantismo’, que muitas vezes se deixa encandear pelo
brilho da técnica matemática, correndo o risco de transformar o seu refinamento
num fim em si mesmo (uma espécie de matemática pela matemática) ou numa acti­
vidade de puro deleite intelectual. E estes não são riscos hipotéticos ou imaginá­
rios. John Hicks confessa que “muita da teoria económica é prosseguida por uma
razão não melhor do que a sua atracção intelectual; ela é um bom jogo”.
A crítica ao ‘abuso’ da utilização da ‘tecnologia’ matemática na análise econó­
mica leva alguns autores (Alan Abouchar, v.g.) a denunciar o vício de muitos
economistas, cuja preocupação deixou de ser a de escrever os seus estudos em
inglês, em francês ou em português, mas a de os escrever em matemática. Hom a
4 4 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Katouzian observa que o deslumbramento com as possibilidades das técnicas ma­


temáticas vem substituindo a literatura económica por aquilo que ele chama ma-
thature (em vez de economic literature)}2
E tudo isto se passa ao arrepio da sábia lição de Popper, para quem “procurar a
simplicidade e a clareza de raciocínio é um dever moral de todos os intelectuais” e
para quem “a falta de clareza é um pecado”. M uitas são as vozes, com efeito, que
acusam os economistas matemáticos de praticar “o culto da ininteligibilidade, o
culto da linguagem difícil (bugb-sounding languagèf, a tal ponto que o “jogo tra­
dicional consiste em exprimir as maiores trivialidades em linguagem difícil (high-
sounding language)”(as palavras são de Popper). Jogar este ‘jogo’de mistificação e
de obscurantismo (encobrindo ideias simples e claras por detrás da roupagem
vistosa de artifícios matemáticos complexos e cada vez mais inacessíveis) transfor­
mou-se no caminho mais seguro para se conseguir a publicação dos trabalhos de
investigação em revistas consagradas e para se alcançar ‘sucesso’ nas carreiras aca­
démicas, até porque o “invisible college” da profissão foi ficando cada vez mais
dominado pelos ‘economistas matemáticos’.
A este propósito conta Hutchison uma história de espantar, a que chama Fox
Phenomenon. Que fenómeno é este? Segundo The Times de 9.6.1980, um tal Dr.
Fox proferiu, em três ocasiões diferentes, conferências destinadas a psicólogos e a
outros especialistas em ciências sociais, conferências para as quais elaborou textos
deliberadamente non sense. No final, todos os ouvintes declararam que as conferên­
cias tinham sido muito claras e estimulantes. E o articulista conclui que os inves­
tigadores que quiserem causar impressão junto dos seus colegas deverão escrever
textos pouco inteligíveis.
Esta história passada com psicólogos poderia muito bem ter-se passado com
economistas. Num a “carta a um jovem economista” (Economic Ajfairs, Janeiro/
1983), Alan Prest comenta: “Você descobrirá rapidamente que a sua situação e o
seu estatuto progredirão em proporção geométrica da não-pertinência e da obscu­
ridade dos seus ditos e dos seus escritos”.

12 Um economista português com vivência académica e com inserção na vida prática expõe assim a receita em
voga 'para se escrever um apreciável artigo sobre tema de economia': ' 19 Ensaia-se o texto sob forma literária;
2®Hermetiza-se, em primeira instância, passando para linguagem matemática: explicita-se o corpo de premis­
sas; adopta-se o código da simbologia, de preferência com letras gregas e muitos índices e subíndices nas
variáveis; especificam-se algumas funções submetidas a derivadas parciais e integrais múltiplos; 3®Hermetiza-
se, em segunda instância, implicitando passagensdo raciocínio, sincopando explicações de teor pedagógico,
condensando demonstrações, reduzindo, enfim, a extensão do texto a um quinto ou um décimo do normal; 4°
Hermetiza-se, em terceira instância, adensando o texto matemático com hipóteses adicionais de complexida­
de teórica crescente, ainda que de menor adequação à realidade; 5VApura-se a elegância do escrito mate­
mático, retirando toda a ganga literária que ainda reste e remetendo para notas de rodapé as citações que
mergulhem em revistas da especialidade'. (Miguel Cadilhe)
A v ela s N u n es - 4 5

Mas o mais grave é que a pretensa ‘revolução matemática’ na Economia aca­


bou em inversão ou ‘subversão’ de papéis: em vez de ser o objecto da ciência
económica a condicionar as técnicas utilizadas, foi a técnica matemática que aca­
bou por condicionar a substância e o conteúdo da análise económica e do conhe­
cimento económico, percorrendo caminhos que têm semeado a desilusão, às vezes
de forma dramática, em muitos economistas que utilizam a matemática, incluindo
alguns dos mais ilustres.
Maurice Dobb lamenta que muitos economistas, procurando salvar a ciência
económica do ‘partidarismo’, a reduzam a uma técnica matemática, puramentefor-
mal. “Por este caminho poderão, sem dúvida, levar a sua ciência a uma pureza de
claustro; mas fá-lo-ão evadindo-se às questões que eram a razão de ser da Econo­
mia Política, pelo menos na sua forma clássica, sem as resolverem”.
F. H ahn, Presidente da Econometric Society, não hesita em escrever, a este pro­
pósito, que a situação actual da ciência económica “é um estado de coisas insatis­
fatório e algo desonesto”.
O utro dos mais importantes economistas matemáticos, Wassily Leontief(o pri­
meiro economista a trabalhar com computadores, o inventor da análise matemática
input-output, Prémio Nobel da Economia em 1973), manifestava, na Presidential
Address de 1970 à American EconomicAs soeiation, a sua crescente preocupação com o
facto de os economistas trabalharem com uma ‘realidade’ imaginária, hipotética, em
vez de se aterem à realidade observável. E denunciava o ‘processo darwiniano’que,
através da selecção do pessoal académico, contribui grandemente para a perpetuação
deste estado de coisas, promovendo os economistas ‘puros’ e afastando os ‘impuros’,
aqueles que não se conformam com os cânones dominantes.
Leontief critica o processo de selecção académica que leva a que “os economis­
tas mais jovens, particularmente os que estão empenhados no ensino e na investi­
gação académicos, pareçam satisfeitos com uma situação em que podem demonstrar
o seu valor (c, incidentalmente, avançar nas suas carreiras) construindo modelos
matemáticos cada vez mais complicados e inventando métodos de inferência esta­
tística cada vez mais sofisticados sem nunca se terem comprometido com a inves­
tigação empírica”.
Num a carta à revista Science (Julho/1982), publicada sob o título Academic
Economics, Leontief denuncia o apertado controlo exercido pelos membros titula­
res dos mais importantes departamentos de Economia dos EUA sobre “a prepara­
ção, a promoção e as actividades de investigação dos membros das Faculdades”.
Q uanto aos “métodos utilizados para manter a disciplina intelectual nos mais in­
fluentes departamentos de Economia deste país”, Leontief não esconde que eles
4 6 - U m a I n t r o o u ç á o à E c o n o m ia P o i It c a

“podem ocasionalmente recordar os utilizados pelos Marines para manter a disci­


plina em Parris Island”.
Na mesma carta à revista Science, Leontief critica amargamente o “esplêndido
isolamento” da economia académica: ”Ano após ano, os economistas teóricos conti­
nuam a produzir grandes quantidades de modelos matemáticos e a explorar com
grande pormenor as suas propriedades formais; e os econometristas fornecem fun­
ções algébricas de todos os modelos possíveis para, essencialmente, os mesmos
conjuntos de dados sem serem capazes de avançar, em nenhum sentido perceptível,
uma compreensão sistemática da estrutura e das operações de um sistema econó­
mico real”. O desencanto de Leontief é de tal ordem que este Prémio Nobel da
Economia decidiu deixar de publicar os seus estudos em revistas especializadas
em Economia.
Alguns são mais radicais, ao menos na linguagem. Robert Kuttner sustenta que
as escolas de Economia “estão em vias de produzir uma geração de sábios idiotas,
brilhantes em matéria de matemáticas esotéricas, mas desprovidos de qualquer
ideia sobre a vida económica real”. E Alan Abouchar, Professor da Universidade
de Toronto, não resiste a este comentário: “A matemática é muitas vezes chamada
a ‘rainha e a serva das ciências sociais’. O modo como dela abusaram os econo­
mistas poderia levar alguns a acrescentar que a essas duas funções a matemática
junta a prática do que nós designamos correntemente ‘a mais velha profissão do
mundo”’. Outros são mais reflexivos e talvez mais certeiros. Christian Stoffaés
defende que “a economia contemporânea tem mais necessidade de filósofos do que
de econometristas”. Por nós, acreditamos que ele tem razão.
10.6. - Em jeito de síntese, diremos que a tentação cientista (o desvio cientista), ao
procurar afastar a ‘ciência económica’ da Economia Política clássica enquanto
“ramo da filosofia social”, acabou por transformar-se numa armadilha, enredando
a disciplina nas malhas de uma “concepção absolutista” de efeitos por vezes per­
versos, na óptica do seu próprio desenvolvimento enquanto ciência. Para remediar
a dificuldade (ou impossibilidade) de experimentação ao natural, foram concebi­
dos modelos de simulação matemática, que se considera representarem o funcio­
namento real da economia. A elegância e a virtuosidade dos modelos matemáticos
levaram os economistas a sucumbir ao fascínio por eles exercido, acabando por
ficar prisioneiros de técnicas que se vão refinando cada vez mais, porque “this is a
good game” (Hicks), a um ponto tal que o desencanto acerca dos resultados atinge,
como acabamos de ver, alguns dos seus mais qualificados cultores.
A ciência económica - como as demais ciências - recorre à abstracção, utiliza
modelos que simplificam a realidade para afastar pormenores sem importância e pôr
cm relevo os aspectos significativos da questão em análise. E é certo que simplificar
A v elAs N u n e s - 4 7

é sempre falsificar. No entanto, como bem observou Paul Valéry, se é verdade que
“tudo o que é simples é falso”, também é verdade que “tudo o que não é simples é
inutilizável”.
É importante compreender, por outro lado, que esta propensão da Economia
para abstrair da realidade não resulta de um qualquer gosto especial dos econo­
mistas em parecerem absurdos ou em procurarem o absurdo. Esta propensão re­
sulta da enorme complexidade da vida económica, das relações económicas e de
todo o tecido institucional que as envolve, sempre em processo de mudança.
Mas é igualmente importante ter sempre presente as limitações que daqui de­
correm. A falta de consciência disto mesmo pode levar a um divórcio entre o
mundo da Economia e o mundo dos homens, com risco de o homem deixar de ser o
princípio e o fim da Economia enquanto ciência social. Vale a pena, por isso,
seguir o conselho de Maurice Dobb: “Não parece ser uma regra má, em matéria
tão cheia de problemas práticos e complexos como a Economia Política, a de
manter os pés firmemente plantados na terra, ainda que à custa de certa elegância
lógica de definição e de precisão na formulação algébrica, tão impressionante,
apesar de frequentemente responsável por erros”.
Só esta atitude ‘descontraída’em relação ao rigor de um cientismo infalível pode ter
em conta as limitações que caracterizam a análise económica, decorrentes do facto -
salientado pela generalidde dos autores - de ter de recorrer com frequência ao as i f
approachz de as suas proposições estarem sempre sujeitas à condição coeterisparibus. Não
ter isto presente pode colocar os economistas perante situações que, de forma inconse­
quente, escondem muita incapacidade por detrás de alguma ‘fanfarronice’.13
Por nossa parte, cremos que releva de um certo infantilismo (ou doença infantil)
a pretensão das ciências sociais e humanas e, nomeadamente, da Economia Políti­
ca em se assumirem como ‘científicas’ tal como o são as ciências ditas exactas ou
ciências da natureza.
A Economia Política corre graves riscos se ‘esquecer’que é uma ciência social,
se fizer de contas que, por detrás dos fenómenos e dos processos que nela se
estudam, não estão sempre os homens, os homens de carne e osso, os grupos e as

13 Ocorre lembrar, a este propósito, uma 'história' contada por Baumol/Blinder e por M. Blaug. A 'história' 6 esta.
Três pessoas (um químico, um físico e um economista) encontraram-se numa ilha deserta. Tinham abundância
de latas com alimentos de conserva, mas não tinham instrumentos para abrir as latas. Perante a situação, o
químico sugeriu que acendessem uma fogueira e pusessem as latas ao lume, esperando que a dilatação do seu
conteúdo as fizesse rebentar. O físico preferiu outra solução e propós que construíssem uma catapulta com a
qual pudessem atirar as latas contra umas pedras próximas, esperando que elas abrissem com o embate.
Chegada a vez de o economista se pronunciar, 'resolveu' o problema desta maneira: “Suponhamos que temos
um abre-latas..."
4 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a

classes sociais, as várias formas de organizações criadas pelos homens, as nações e


os estados, e se esquecer’ que o homem deve estar no centro das suas preocupações
enquanto ciência, mas está também, necessariamente, no início e no fim do pro­
cesso de investigação e de conhecimento científico.
J. Stuart M ill já tinha advertido para que “não pode ser bom economista quem
for apenas economista”. E Keynes partilhava sem dúvida deste ponto de vista.
Basta recordar o retrato que ele faz do economista perfeito, quando fala de Alfred
Marshall: “o economista perfeito deve possuir uma rara combinação de predicados.
Deve atingir um elevado padrão em várias direcções diferentes e deve combinar
talentos que não se encontram juntos muitas vezes. Ele tem que ser, de algum
modo, matemático, historiador, homem de estado, filósofo. Deve contemplar o
particular em termos do geral, e tocar o abstracto e o concreto na mesma linha de
raciocínio. Deve estudar o presente à luz do passado, tendo em vista o futuro.
Nenhum aspecto da natureza humana ou das suas instituições deve ficar inteira­
mente fora da sua observação. Deve ser simultaneamente comprometido e desin­
teressado; tão distante e incorruptível como um artista, embora por vezes tão próximo
da terra como um político”.
Seguindo a lição de Jean Marchai, a ciência económica tem de abandonar o
‘mundo’a que a conduziu a teoriapura. Porque “esse mundo não é o dos homens”.
É preciso uma ciência económica que se ocupe do “homem total”, uma ciência
que aspire a ser, como todas as ciências sociais, “uma visão global do homem”.
(Fernand Braudel)
A ciência económica, enquanto ciência social, não pode reduzir-se, como su­
blinha Aníbal Almeida, a um “modelo ‘analítico’evacuado de personagens, insti­
tuições e história”. A Economia Política deve recusar a assepsia da teoria pura,
“impressionante pela sua lógica sem falhas”, mas que “descura importantes facto­
res humanos, factores que só se apreendem de perto e que não se deixam comoda­
mente pôr em equação” e que dá por vezes “a sensação de um deserto de pedras c
de gelo, de um mundo sem homens”. Como Jean Marchai - a quem pertencem as
palavras acabadas de citar -, pensamos que é de rejeitar uma perspectiva que “subs­
titui o homem verdadeiro pelo homo oeconomicus simplificado e o estudo socioló­
gico e histórico por uma investigação de pura lógica aplicada às coisas económicas”,
perseguindo o ideal de “uma ciência económica que aspira, como a economia
marxista, a abarcar o homem total, mas que, em conformidade com a tradição
saída do Renascimento, queira encarar os fenómenos sem preconceitos”.
A ciência económica pressupõe sempre, a nosso ver, uma determinada concepção
do homem. O que acontece é que a nossa disciplina nunca elaborou o enquadramento
filosófico deste seu pressuposto implícito. Antes da revolução científica e da revolu­
A v elã s N u n es - 4 9

ção industrial - antes, portanto, do desenvolvimento da Economia Política como


ciência autónoma a filosofia e a teologia ocupavam-se do homem na sua totalida­
de. Mas aquelas ‘revoluções’e o desenvolvimento da Economia Política relegaram
para um plano secundário a importância da reflexão teológico-filosófica, a única
capaz de abranger em toda a dimensão a problemática da natureza humana.
Mais uma razão, se bem vemos, para que a ciência económica, enquanto ciência
social, se assuma como “um ramo da filosofia social”, tomando o homem na sua
verdadeira e única dimensão, a de “pessoa confrontada com escolhas morais”. Na sín­
tese de Walter Weisskopf,“os economistas podem tomar-se de novo mais interessados
na sabedoria do que na análise quantitativa. A sua imagem de homem pode então mudar
de uma estrutura matemática para uma pessoa humana real com liberdade limitada,
guiada pelo sentimento moral e pela constelação dos padrões morais”.
A Economia Política não deve confundir-se com um a‘técnica’e muito menos
com uma técnica esotérica: os problemas da economia não são, na sua base, pro­
blemas técnicos que possam ser resolvidos por uma qualquer ‘Economia técnica’;
são problemas políticos, que têm de ser equacionados e resolvidos na esfera da
política. As realidades económicas, o processo económico em toda a sua comple­
xidade, devem ser analisados no contexto social, político e jurídico em que se
inserem. Como se escreve num livro s o b re i Ciência Económica editado pela U N ES­
C O em 1970, “temos a convicção de que, para enfrentar as realidades futuras, os
economistas deverão fazer entrar elementos sócio-económicos, no sentido mais
lato do termo, na corrente principal da investigação teórica. A ciência económica
deve tomar-se uma ciência mais social, que não é mais do que a economia política
no sentido próprio desta expressão”.
Com G unnar Myrdal, pensamos que “a ciência económica tem sido ao longo de
dois séculos a ciência ‘política’, no sentido próprio desta palavra”. E, porque enten­
demos que a Economics se afastou desta perspectiva, defendemos que a nossa disci­
plina deve assumir-se de novo como Economia Política, “com os seus aspectos
normativos concretamente especificados e as suas estratégias claramente definidas”.
(ShigetoTsuru)
Terminamos recorrendo à síntese de Joan Robinson e de John Eatwell: “a
ciência económica tem três aspectos ou funções: tentar compreender como funci­
ona a economia; fazer propostas para a melhorar; justificar o critério pelo qual a
melhoria é julgada”.
Com estes autores, acreditamos que “o critério definidor daquilo que é desejável
envolve necessariamente juízos morais ou políticos” e que “a ciência económica nun­
ca pode ser uma ciência perfeitamente ‘pura’, não penetrada de valores humanos”. E
5 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o ü t ic a

pensamos que Mos pontos de vista morais ou políticos através dos quais são vistos os
problemas económicos se tomaram, frequentemente, tão inextricavelmente entrela­
çados com as questões postas, e mesmo com os métodos de análise utilizados, que
nem sempre é fácil distinguir aqueles três elementos da Economia Política”.
11. —Uma nota final: na Parte II deste nosso livro analisaremos com mais vagar
as contribuições dos fisiocratas, de Adam Smith, de David Ricardo e de Marx, por
um lado; e aprofundaremos algo mais as teses defendidas por Say e pelos margina-
listas. Ficarão então mais claras as diferenças entre as duas perspectivas da ciência
económica que temos vindo a referir, e será então formulada a crítica à perspectiva
marginalista e à sua incapacidade para entender o capitalismo.
A v e i As N u n e s - 5 1

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1989.
WEISSKOPF, Walter A. - “The Image of Man in Economics”, em Social Research, Vol.
40, n° 3/1973, 547 - 563.
PARTE I

Os S is t e m a s E c o n ó m ic o s
G én ese e E volução d o

C a p it a l is m o
6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

In tro d u ção

I . A TEORIA DOS SISTEMAS ECONÓMICOS

A vida dos homens em sociedade e a sua organização com vista à satisfação das
necessidades materiais tem apresentado características diversas ao longo da sua
evolução histórica, correspondendo a cada período e a cada lugar um certo sistema
de organização económica e social.
Na verdade, toda a economia é um sistema, no sentido em que toda a economia
é um conjunto de elementos (pessoais e materiais), de processos e relações (de
produção, de distribuição, v.g.) interligados de acordo com um princípio orienta­
dor, um princípio de unidade, que assegura uma certa coerência e estabilidade à
estrutura constituída por aqueles elementos, processos e relações económicas.
M as a expressão sistema económico ganhou originariamente estatuto científico
na acepção de tipo de economia, capaz de integrar uma multiplicidade de economias
concretas, distintas de outros conjuntos históricos por determinadas características
fundamentais. Na verdade, a ideia de sistema económico liga-se à distinta realida­
de das economias historicamente concretizadas.
D o conceito de sistema económico costuma distinguir-se o conceito de forma
económica, referindo-se este último aos vários modos (tipificados) de manifestação
de um determinado sistema, modos que se distinguem em função de critérios
como o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a forma e a dimensão das
unidades de produção, a organização dos sujeitos económicos, o modo de coorde­
nação da economia, etc.
Particularmente importante é o modo de coordenação. É precisamente em função
dele que costumam distinguir-se as várias formas históricas do capitalismo: capita­
lismo de concorrência, capitalismo monopolista, capitalismo monopolista de estado.
O conceito de forma económica não existe independentemente do conceito de
sistema económico, porque a forma económica é sempre a forma de um determi­
nado sistema. O conceito de forma económica é, pois, uma qualificação do concei­
to de sistema económico, sendo certo também que nenhum sistema económico
existe em si mesmo: qualquer sistema económico apresenta-se sempre, historica­
mente, sob determinada(s) forma(s). Como escreve Vital Moreira, “os sistemas
económicos e as formas económicas não existem. O que existe são as economias
concretas que os ‘efectivam’(‘revelam’)”.
Na prática, nenhuma economia concreta se apresenta como a realização de um
único sistema económico ou de uma única forma económica. Cada economia cor­
A v elã s N u n e s - 6 1

responde, ao invés, a uma determinada combinação de vários sistemas, um dos


quais emerge como sistema dominante, imprimindo carácter àquela economia,
moldando a sua estrutura ordenadora, definindo-a como ordem económica.
Pois bem. A questão que se põe à teoria dos sistemas económicos reside exactamente
em identificar o tecido estrutural de cada economia em concreto, o princípio de ordem
que há-de permitir dar uma resposta adequada a três interrogações fundamentais:
1) como se processa, em cada situação histórica concreta, a direcção e o fun­
cionamento da economia?
2) qual o critério que preside à distribuição do produto social?
3) qual o elemento dinamizador do desenvolvimento, i.é, qual o princípio que
explica a (e dá sentido à) sucessão dos sistemas que a história regista?
Esta problemática foi ignorada pela chamada Escola Clássica Inglesa, cujos au­
tores concebiam a ordem económica como um mecanismo comandado por leis
naturais de validade absoluta e universal (em tudo idênticas às leis da Física) e
viam na ordem capitalista não uma fase transitória na marcha da humanidade, mas
a forma absoluta e definitiva da actividade económica e da organização social (o
fim da história).
Contra esta concepção reagiu a Escola Histórica Alemã (teoria dos estádios de
desenvolvimento) e Karl Marx (materialismo histórico e teoria dos modos deprodução).
A teoria dos sistemas económicos surge, pois, como reacção contra a postura uni-
versalista a-histórica da Escola Clássica, à qual se contrapôs uma visão evolucio-
nista e historicista.

I I . A S SOLUÇÕES

1. A TEORIA DOS "ESTÁDIOS ECONÓMICOS" 14' 15


A análise dos estádios de evolução constituiu, efectivamente, preocupação funda­
mental para os autores que integram a Escola Histórica Alemã, operando com base

14 Ver TEIXEIRA RIBEIRO , Economia Política, cit., e V. M OREIRA, Economia e Constituição, cit.
15 As teses evolucionistas dos primeiros históricos parecem ter renascido com a obra de Colin CLARK (The Condiüons
o f Economic Progress, 1* ed. 1940). Segundo este autor, o progresso económico, nos países capitalistas como
nos socialistas, caracterizar-se-ia por uma deslocação progressiva da população activa do sector da agricultura
para o sector da indústria e deste para o dos serviços. Esta tese tem servido para justificar a conclusão de que o
que distingue as economias dos vários países é o facto de se encontrarem em uma ou outra fase deste processo
evolutivo que, a partir de um primeiro estádio de predomínio da agricultura, encaminharia os países para a
situação de economias terciárias.
A concepção evolucionista é patente também no livro de Walter Whitman ROSTOW, The Stages o f Economic
Crowth ■A Non Communist Manifesto, Cambridge, Mass., 1960 (editado no Brasil pela Zahar Editores, Rio de
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em critérios históricos, pressupondo uma sucessão regular dos vários sistemas ao longo
dos séculos. Resumiremos a seguir as mais importantes dessas tentativas de distinção
e classificação das várias fases pelas quais passariam, mais ou menos obrigatoria­
mente, segundo os autores da “Escola Histórica”, todas as sociedades humanas.
a) Friedrich List propôs o critério da actividade dominante. A vida económica
desenvolver-se-ia, historicamente, ao longo de quatro fases: pastorícia; agricultu­
ra; agricultura c indústria; agricultura, indústria e comércio. Para esta última,
correspondente à nação normal, tenderiam as economias de todos os povos.
b) Bruno Hildebrandt atende aos sucessivos instrumentos de troca como critério
distintivo das três etapas que distingue com base nele: a da economia natural (ca­
racterizada por um sistema de troca directa - produtos por produtos); a da economia
monetária (caracterizada pela prática da troca monetária, funcionando a moeda como
intermediário geral nas trocas); a da economia creditícia (caracterizada pela impor­
tância do recurso às vendas a crédito e ao empréstimo de dinheiro).
c) Para Karl Bücher, por sua vez, o critério distintivo das várias fases da evolu­
ção histórica seria o âmbito territorial dentro do qual se circunscreve a actividade
económica. Nas palavras de Bücher, o critério essencial é “a relação existente entre
produção e consumo dos bens ou, para ser mais exacto, a extensão do caminho que
os bens percorrem, na passagem do produtor ao consumidor”16.
De acordo com este critério, a humanidade passaria por três fases na sua evo­
lução: a economia doméstica (reduzida, sucessivamente, àfamília, à tribo, ao domínio
senhorialefeudal- confinada a um âmbito territorial bastante restrito); a economia
urbana (centrada na actividade artesanal das cidades, que entravam em relações de
troca com as populações agrícolas vizinhas); a economia nacional (resultante do
desenvolvimento das relações de troca entre os vários núcleos urbanos).
Gustav Schmõller acrescentaria às anteriores a fase da economia mundial’ que
corresponderia a um novo período de relações económicas estabelecidas entre as
várias comunidades nacionais.

Janeiro, 1966 - Etapas d o Desenvolvimento Econômico (Um manifesto não-comunista). Defende o autor
que é possível distinguir no processo de evolução económica e social, por que teriam de passar todas as soci­
edades, cinco etapas distintas: a sociedade tradicional, as condições prévias para arranque, o arranque (take
ofí), o progresso para a maturidade, a era do consumo de massa. Em tais termos se concebe este processo, que
a situação dos chamados países subdesenvolvidos, entendida como mero atraso no percurso das várias etapas
assinaladas, só seria susceptível de vencer-se fazendo percorrer aos 'países atrasados' as etapas que lhes falta
percorrer, daquelas por que passaram os países capitalistas desenvolvidos.
16 A p u d M . D O B B,/\ E vo lu çã o ...,cit., 17.
A v elà s N u n es - 6 3

2. A TEORIA DOS MODOS DE PRODUÇÃO


A teoria dos sistemas económicos enquanto teoria dos modos deprodução foi enun­
ciada em primeiro lugar por Karl Marx, influenciando depois, em alguma medida,
os trabalhos de W emer Sombart. Segundo esta concepção, a estrutura fundamental
de cada sistema económico assenta nas relações sociais de produção, i.é, nas relações
que entre si desenvolvem as várias categorias de agentes económicos, podendo defi-
nir-se estas relações, no plano jurídico, pela relação (de apropriação ou de separa­
ção) que se estabelece entre os trabalhadores e os meios de produção.
Em termos muito genéricos, poderemos ilustrar a afirmação anterior distin­
guindo estas três situações:
1) se os produtores directos são eles próprios, simultaneamente, proprietários
dos meios de produção, estamos perante um sistema deprodução de mercadorias sim­
ples ou sistema deprodução independente', o produto do trabalho produtivo pertence
por inteiro ao produtor autônomo\
2) se os meios de produção pertencem a pessoa diferente do produtor directo,
esta circunstância vai permitir ao proprietário dos meios de produção, em certas
condições históricas, assumir a direcção do processo produtivo, contratar traba­
lhadores assalariados e apropriar-se do sobreproduto social (é esta a essência do
sistema capitalista);
3) se não existir propriedade privada dos meios de produção e estes pertence­
rem a toda a comunidade, a esta caberá a direcção do processo produtivo, rever­
tendo o produto social para a colectividade dos produtores (é esta a essência do
sistema socialista).
a) A concepção de M arx
Marx faz assentar o desenvolvimento histórico no desenvolvimento das forças
produtivas, ele mesmo fruto da acção consciente dos homens no sentido de dominar
a natureza, em ordem à consecução dos seus objetivos. E a evolução dos modos de
produção explica-se pelo facto de o desenvolvimento das forças produtivas levar, a
certa altura, a uma contradição entre estas e as relações sociais de produção, por tal
forma que estas passam a constituir obstáculos ao pleno desenvolvimento daquelas.
Para que um determinado sistema de organização económica e social seja um
todo coerente, para que um dado modo deproduçãoyenquanto conjunto das rela­
ções de produção e das forças produtivas, seja capaz de assegurar o livre desen­
volvimento e o pleno aproveitamento da técnica e dos meios de produção17, é

17 Por meios de produção entende-se, na teoria marxista, o conjunto dos objectos de trabalho e dos meios de
trabalho.
6 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o lít ic a

necessário que as relações sociais de produção estejam em correspondência com


as forças produtivas. Se esta correspondência deixar de se verificar, isso significa,
nos quadros da teoria de Marx, que o sistema económico, essencialmente carac­
terizado pelo modo de produção, está prestes a desagregar-se, para dar lugar a
um outro sistema económico. E esta uma das leis fundamentais da teoria econó­
mica marxista: a lei da necessária correspondência entre a natureza das relações de
produção e o carácter dasforças produtivas.
O significado intrínseco desta lei é o de que o factor económico é que está na
base das revoluções sociais: quando, perante o desenvolvimento das forças produ­
tivas, as relações de produção se mantêm estacionárias ou não evoluem em confor­
midade, elas passam a constituir um entrave ao desejável desenvolvimento das
forças produtivas. Daí resulta a sua necessária substituição por novas relações de
produção, correspondentes a um estádio mais avançado de desenvolvimento das
forças produtivas. Marx fala de revolução social, para traduzir a ideia de que essa
substituição não se faz sem a oposição da classe dominante e sem a participação
consciente da classe dominada (é a ideia da luta de classes como motor da história,
posta em destaque no Manifesto Comunista).
Porforças produtivas entende-se o conjunto dos instrumentos deprodução (ele­
mento mais importante na dinâmica do processo histórico), dos objectos de trabalho
(cuja importância se compreende quando se atenta no relevo que, ao longo dos
tempos, foi assumindo a descoberta de novas matérias-primas e de novas fontes de
energia) e ainda o próprio homem, com a suaforça de trabalho, os seus conhecimentos
(informação) e a sua técnica (elementos estes que permitem a utilização dos instru­
mentos de produção e o seu contínuo aperfeiçoamento, o qual vai, por sua vez,
aumentar a produtividade do trabalho, num processo ininterrupto de desenvolvi­
mento das forças produtivas).
Para o marxismo, as forças produtivas são o elemento mais dinâmico e revolu­
cionário da produção, embora reconhecendo que as relações de produção entre os
homens, desenvolvendo-se em resultado do progresso das forças produtivas, exer­
cem, por sua vez, influência activa sobre estas.

Objecto de trabalho é tudo aquilo sobre que vai incidir a força de trabalho do homem (actividade inteligente
do homem em sociedade, orientada para transformar e adaptar as forças da natureza, com o fim de alcançar
o objectivo cm vista).
Meios de trabalho sáo todos os objectos de que os homens se servem para transformar a realidade física sobre
a qual actuam (a terra, os edifícios, as estradas, etc.). Os mais importantes de entre eles sèo os instrumentos de
produção (desde a pedra e o cajado do homem primitivo até às máquinas complexas de hoje), dos quais
depende, fundamentalmente, o domínio do homem sobre a natureza.
A v e i As N u n e s - 6 5

Relações deprodução são as relações que os homens mantêm entre si no quadro


do processo produtivo, as quais se manifestam na relação entre os ‘sujeitos ou
‘agentes’ económicos e os meios de produção, e que têm a sua expressão jurídica
nas formas de propriedade sobre os meios de produção.
Segundo o entendimento de Marx, é a natureza da propriedade sobre os meios
de produção que determina a posição relativa dos homens no sistema de produção
social, que marca a divisão da sociedade cm classes e define a natureza da relação
entre elas (relação de antagonismo ou relação de cooperação, conforme a estrutura
de classes da sociedade).
A natureza das relações sociais de produção - elemento que distingue, na sua
essência, os modos de produção - é que determina a titularidade do poder de direc­
ção do processo produtivo e explica o critério que preside a essa direcção, o móbil
que orienta a actividade social de produção e o critério segundo o qual se opera a
distribuição do produto social, entendendo-se que produção, distribuição, troca e
consumo formam uma unidade cujo factor determinante é a produção.
Toda a produção pressupõe uma qualquer forma de propriedade, i.é, uma for­
ma social e historicamente determinada de apropriação dos meios de produção, e
a distribuição do produto social depende exactamente da forma por que se apre­
senta essa apropriação dos meios de produção, embora se reconheça que as formas
de distribuição, troca e consumo actuam, por sua vez, sobre a produção, estimu­
lando ou entravando o seu desenvolvimento.
Assim se explica que Marx caracterize os sistemas económicos pelo modo de
produção e distinga os modos de produção (comunismo primitivo, esclavagismo,
feudalismo, capitalismo e socialismo) pela natureza das relações de produção.
Compreender-se-á agora a diferença entre a perspectiva de Marx e a dos auto­
res da Escola Histórica. Ao contrário destes, que renunciam a explicar o desenvol­
vimento histórico, Marx faz da história uma histoire raisonnée e traz a história para
o seio da teoria económica, convertendo a teoria económica em análise histórica,
como salientou Schumpeter:18
“M arx atingiu efectivamente um objectivo de im portância fundam ental do
ponto de vista da metodologia económica. Sempre os econom istas actuaram
com o historiadores económicos ou utilizaram a contribuição dos trabalhos
históricos de outrem , mas os dados da história económica eram classificados
num com partim ento distinto. Só tinham assento (eventualm ente) na teoria a
título de ilustração, se não de confirmação das conclusões elaboradas cm

18Cfr. Cãpttaksm.. cit., 44.


6 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o U t ic a

abstracto. Só eram abrangidas por um processo de mistura mecânica. O ra a


mistura de M arx é química; por outras palavras, ele inseriu os dados históricos
na própria argum entação de que faz derivar as suas conclusões. Foi ele o p ri­
meiro econom ista de grande classe a reconhecer e a ensinar sistem aticamente
como a teoria económica pode ser convertida em análise histórica e com o a
exposição histórica pode ser convertida em histoire raisonnée”.

A construção teórica de Marx pretende, exactamente, explicar o processo glo­


bal da evolução social, evolução que, a seu ver, resulta de uma interacção dialéctica
de factores de vária ordem (naturais, técnicos, sociais), e que se traduz num movi­
mento dialéctico (não linear), em que cada estádio do processo evolutivo é superior
ao estádio que o antecede, e em que cada novo modo de produção encontra o seu
fundamento e a sua ‘explicação’ no desenvolvimento histórico das contradições
imanentes ao anterior.
E conhecido o célebre trecho de Marx:19
“O resultado geral que se me ofereceu e que, um a vez ganho, serviu de fio
condutor aos meus estudos, pode ser form ulado assim, sucintam ente: na p ro­
dução social da sua vida, os hom ens entram em determ inadas relações, neces­
sárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem
a um a determ inada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas m ate­
riais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da
sociedade, a base concreta sobre a qual se ergue um a superestrutura jurídica e
política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
m odo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social,
política e espiritual. N ão é a consciência dos hom ens que determ ina o seu ser,
mas, inversamente, o seu ser social que determ ina a sua consciência. N um a
certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é
apenas um a expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das
quais se tinham movido até então. D e formas de desenvolvimento das forças
produtivas que eram , estas relações transform am -se em grilhões das mesmas.
O corre então um a época de revolução social. C om a transform ação do fun­
dam ento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a
imensa superestrutura. N a consideração de tais revolucionam entos tem de se
distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas
da produção, o qual é verificável rigorosamente como nas ciências naturais, e as
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideoló­
gicas, em que os hom ens ganham consciência deste conflito e o resolvem. D o

19 'P re fácio ..., cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., 1,530/531.


A v e ià s N u n e s - 6 7

m esmo m odo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele im agina de si
próprio, tão-pouco se pode julgar um a tal época de rcvolucionam ento a partir
da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das
contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e
relações de produção sociais. U m a formação social nunca decai antes de esta­
rem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente
ampla, e nunca surgem relações de produção novas c superiores antes de as
condições m ateriais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da
própria sociedade velha. Por isso a hum anidade coloca sem pre a si mesma
apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a um a consideração mais rigorosa,
se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos
estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução. Nas
suas gran d es lin h as, os m odos de p rodução asiático, an tig o , feudal e,
m odernam ente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da
formação económica e social. A s relações de produção burguesas são a últim a
forma antagónica do processo social de produção, antagónica não no sentido
de antagonism o individual, mas de um antagonism o que decorre das condições
sociais da vida dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no
seio da sociedade burguesa criam, ao m esm o tem po, as condições materiais
para a resolução deste antagonism o. C om esta formação social encerra-se, por
isso, a pré-história da sociedade hum ana.”

A luz da teoria marxista, a estrutura política (o poder político, o estado) faz parte
da superestrutura, sendo esta determinada pela base económica, a infraestrutura.
O que constitui problema é a questão de saber em que consiste essa determinação
e em que medida a superestrutura é determinada pela base económica ou dela depen­
de. Marx não abordou expressamente a questão. Embora não faltem trechos em que
parece repassar uma concepção economicista (determinação absoluta da superestrutura -
especialmente da estrutura política, do estado - pela infraestrutura), está implícita
nas suas obras de análise histórica da Revolução Francesa a ideia de que a estrutura
política (e mesmo a estrutura ideológica) goza de uma autonomia relativa.
À visão economicista estreita (a que se associam os nomes de Edouard Bernstein e
de Karl Kautsky) opõe-se a concepção voluntaristay que atribui autonomia e eficácia
absolutas à acção política c à luta de classes. Estes são os dois pólos extremos dentro
dos quais se tem desenvolvido a discussão no quadro do pensamento marxista.
O ponto de partida desta discussão continua a ser uma carta de Engels a Joscph
Bloch, escrita em Setembro de 189020:

20 Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., III, 547/548.


6 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

“Segundo a concepção materialista da história, o mom ento em última instância


determ inante, na história, é a produção e reprodução da vida real. N em Marx
nem eu alguma vez afirmámos mais. Se alguém agora torce isso [afirmando] que
o m om ento económico é o único determinante, transforma aquela proposição
numa frase que não diz nada, abstracta, absurda. A situação económica é a base,
mas os diferentes mom entos da superestrutura - formas políticas da luta de
classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez
ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas
reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões
religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas - exercem
tam bém a sua influência sobre o curso das lutas históricas c determinam em
muitos casos preponderantem ente a form a delas. H á uma acção recíproca de
todos estes m om entos, em que, finalmente, através de um conjunto infinito de
casualidades (isto é, de coisas c eventos cuja conexão interna é entre eles tão
rem ota ou é tão indemonstrávcl que nós a podemos considerar como não exis­
tente, a podemos negligenciar), o movimento económico vem ao de cima como
necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria
mais fácil do que a resolução de uma simples equação do primeiro grau.

Nós fazemos a nossa história nós próprios, mas, em primeiro lugar, com pressu­
postos e condições m uito determinados. Entre eles, os económicos são final­
mente os decisivos. M as também os políticos, etc., mesmo a tradição que assom­
bra as cabeças dos homens, desempenham um papel, se bem que não o decisivo.

(...) a história faz-se de tal m odo que o resultado final provém sem pre de
conflitos de muitas vontades individuais, em que cada um a delas, por sua vez,
é feita aquilo que é por um conjunto de condições de vida particulares; há,
p o rtan to , inúm eras forças que se cntrecruzam , um núm ero in fin ito de
paralelogramas de forças, de que provém um a resultante - o resultado histórico
-, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder
que, com o todo, actua sem consciência c sem vontade.(...)

Marx e eu temos, nós próprios, que ser culpados, cm parte, de que, por vezes, seja
pelos mais jovens dado mais peso ao lado económico do que o que lhe cabe. Nós
tínhamos de acentuar, perante os adversários, que o negavam, este princípio princi­
pal c nem sempre havia tempo, lugar e oportunidade para dar a devida importância
aos restantes momentos participantes na acção recíproca. Mas, assim que se tratava
da exposição de uma secção histórica, portanto, da aplicação prática, as coisas
alteravam-se, e aí nenhum erro era possível. Infelizmente, é, porém, demasiado
frequente alguém acreditar que entendeu completamente uma teoria nova c que a
pode manejar sem mais logo que se apoderou dos seus principais princípios, e deles
também nem sempre correctamente. E eu não posso poupar a esta censura muitos
dos novos ‘marxistas’, e também aqui se cometeram coisas espantosas...”
A v elã s N u n es - 6 9

O debate continua acerca destes pontos suscitados e não resolvidos pelo texto
de Engels: 1) em que consiste a “determinação em última instância”?; 2) em que
consiste a eficácia especifica dos elementos superestruturais?; 3) em que condições
pode ser preponderante a acção da superestrutura?
b) A concepção de Sombart
Mais tarde, W erner Sombart (1863-1941), reconhecendo embora a influência
que sobre ele exerceu a obra de Marx21, elaborou a sua própria construção teórica
assente em bases claramente diferentes das do marxismo. Superando certas difi­
culdades dos autores da Primeira Escola Histórica, Sombart propõe outro critério
histórico, fazendo apelo a três elementos que, a seu ver, distinguiriam os vários
sistemas económicos:
1) o espírito (o móbil, o objectivo fundamental da produção);
2) aforma (ou seja, o conjunto dos elementos sociais, jurídicos e institucionais,
que constituem o quadro dentro do qual se desenvolve a actividade económica, as
relações entre sujeitos económicos - regime da propriedade, estatuto dos trabalha­
dores, papel do estado);
3) a substância (que fundamentalmente se refere à técnica utilizada).
Com base neste critério, distingue Sombart três sistemas económicos: o sistema
de economiafechada, o sistema de economia artesana e o sistema de economia capitalista.
No caso concreto do capitalismo (mas o seu raciocínio é o mesmo para qual­
quer dos outros sistemas que considera), Sombart não procurou o elemento carac-
terizador fundamental em qualquer dos aspectos da estrutura económica ou do
funcionamento, nem considerou que a essência do capitalismo reside na natureza
das relações de produção que lhe são próprias. Na óptica de Sombart, o capitalis­
mo distingue-se essencialmente pelo seu espirito de busca do lucro, espírito que tem
as suas raízes na totalidade dos aspectos representados no espirito que inspirou a
vida de toda uma época, o espírito da Europa moderna, aquele “espírito que nos
deu o Renascimento nas letras, o protestantismo na religião, o novo estado na
política e o método experimental na ciência”. 22
Pois esse mesmo espírito da Europa moderna ter-se-ia concretizado, na esfera
económica, no espirito de lucro do capitalismo, como síntese do ‘espírito burguês’

21 “Marx sabia pòr as questões magistralmente, e nisso residia a sua mais alta qualidade - escreveu Sombart. Dos
seus problemas vivemos nós ainda hoje. Com o seu génio cm colocar as questões, i ndicou à ciência económica
o caminho de uma fecunda investigação para todo o século. Todos os economistas que não procuraram fazer
seus os problemas por ele postos foram condenados à esterilidade científica, como já hoje podemos afirmar com
certeza" iA p o d O . LA N C E, Economia Política, I, cit., 260).
22 TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 164.
7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

(dc ponderação, de laboriosidade, de cálculo e racionalidade) do artesano medie­


val e do espírito de aventura e de empreendimento (espírito de Fausto, já se lhe
chamou) do homem moderno.
O homem pré-capitalista era um “homem natural”, que via na actividade econó­
mica o meio de satisfazer as suas necessidades naturais. Segundo a perspectiva de
Sombart, no período pré-capitalista, “no centro de todo o esforço e preocupação
estava o homem, medida de todas as coisas”. Ao contrário, o ‘homem capitalista’veio
alterar todos os valores do “homem natural”, orientando-se por um novo espírito,
uma nova atitude (“aquela atitude que busca o lucro, racional e sistematicamente”,
como diria Max Weber), à qual passou a subordinar-se tudo o mais, desumanizando
a economia, deixando de ver no homem a mensura omnium rerum23.

3 . A T e o r ia dos "T ip o s d e C o o rd en a çã o "


Atitude diversa é a de autores como Walter Eucken, que, abstraindo da sucessão
histórica, e negando mesmo a existência de uma sucessão regular, pretendeu cons­
truir, na esteira dos “tipos ideais” de Max Weber, os tipos abstractos de organização
económica, as ‘ordens económicas’puras, às quais seriam susceptíveis de reconduzir-
se todos os sistemas ou organizações concretas, passados ou presentes.
Eucken parte do princípio de que a actividade do homem enquanto produtor
se desenvolve de acordo com um plano orientador daquela actividade24 e defende
que o importante é saber quem dita oplano: se é o mercado, onde se encontram a
oferta c a procura dos vários sujeitos económicos, ou se é alguma entidade exterior
ao mercado e à economia. Assim chega à distinção entre economia de mercado e
economia de direcção central.
Nas economias de mercado, os indivíduos traçam autonomamente os seus pla­
nos, cuja coordenação se opera pelo mercadoy através da concorrência entre os
vários operadores económicos. No mercado formam-se os preços e é o sistema de

23 Como escreve TEIXEIRA RIBEIRO, úh. ob. cit., 165/166, 'o capitalismo |também| desumanizou a economia.
Ele arrancou do mundo das relações económicas um sentimento e a palavra que o exprimia: a piedade. Só
interessa o lucro. 'Se tens fome e tens dinheiro, vendo-te; mas se tens fome e náo tens dinheiro, náo te vendo nem
te dou'. Nâo foi apenas sob este aspecto - continua Teixeira Ribeiro - que o capitalismo desumanizou a eco­
nomia. Também procurou criar um homem condizente com os seus fins e distante, por isso, da natureza que
o modelara. O que interessa é o lucro. O que interessa, pois, é que os consumidores sintam necessidades, para
que, sentindo-as, comprem produtos e os capitalistas lucrem, vendendo-os. As necessidades deixam de ser,
portanto, o fim da actividade económica; transformam-se em simples meio de obter lucros. Náo há necessida­
des? Sc as náo há, criam-se, isto é, convencem-se os consumidores a comprar os produtos. D aí a publicidade,
o reclamo, que sâo fruto do capitalismo”.
24 Isto mesmo quer significar Friedrich HAYEK quando eseteve (The American íconom ic Review, 1945,520):
"Na linguagem corrente, designamos pela palavra plano o complexo de decisões interrelacionadas acerca da
alocação dos nossos recursos disponíveis. Neste sentido, toda a actividade económica obedece a um plancT.
A v e l á s N u n e s - 71

preços relativos que vai servir de critério orientador das opções e das decisões de
cada um dos agentes económicos (compradores e vendedores). E no mercado,
portanto, que se define a lógica segundo a qual funciona a economia. O mercado é
o mecanismo que dita oplano segundo o qual funciona a econom ia.
Nas economias de direcção central, a economia é dirigida a partir do centro, com
base num plano único imposto pelo estado (ou por uma unidade central) às unidades
técnicas de produção e aos consumidores, cabendo ao estado (ou à unidade central)
determinar os objectivos a prosseguir, os meios a utilizar, os preços a fixar.
Estes seriam os dois tipos de coordenação que, embora não se encontrassem na
sua forma pura, permitiriam explicar o funcionamento de qualquer economia, pois
as economias concretas seriam sempre uma composição (em proporções e moda­
lidades diversas) daqueles dois tipos puros.

III. A p r e c ia ç ã o C r ít ic a

1. - Comecemos pela Escola Histórica. Perante a afirmação, pela Escola Clás­


sica Inglesa, da existência de leis absolutas, eternas, universais, o seu mérito foi,
sem dúvida, o de ter chamado a atenção para o facto de os estudos económicos
deverem ser encarados numa perspectiva histórica. Todas as instituições económi­
cas e sociais são consideradas categorias históricas, inscritas num certo tempo e
num certo espaço, em permanente devir, que só podem compreender-se se analisa­
das enquanto produtos históricos da evolução das sociedades humanas.
Os autores da Primeira Escola Histórica atrás referidos, embora diviijam - nos
termos apontados - quanto à determinação do elemento definidor dos vários está­
dios de evolução, partilham a ideia de que todas as economias passam por um
processo evolutivo de algum modo idêntico ao processo de crescimento de um
corpo orgânico, podendo distinguir-se várias fases (estádios) nesse processo evo­
lutivo, apresentando-se cada um desses estádios como um novo marco (idade) do
crescimento orgânico, linear, da economia (que evoluiria por acrescentamentos su­
cessivos, à semelhança do que acontece com o tronco das árvores).
Tais critérios admitem (postulam) uma evolução histórica, mas cortam essa
evolução em fases, em secções, esperando os autores que propõem esses critérios
descobrir, para cada uma das fases (ou estádios), uniformidades ou ‘leis’que não
seriam válidas para as fases anteriores ou posteriores. Não podem servir, portanto,
como método de abordagem da evolução das sociedades humanas, uma vez que
não fornecem qualquer explicação para a própria evolução histórica. São critérios
meramente descritivos, exteriores ao próprio processo evolutivo, incapazes de com­
preender os factores que explicam a passagem de um sistema a outro e o sentido da
7 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o íít ic a

linha evolutiva que a história regista. Concebendo os vários estádios como outras
tantas idades no processo de crescimento das economias, aos adeptos da Escola
Histórica nem sequer se põe a necessidade de explicar essa evolução, esse cresci­
mento, que se verificaria por si, tal como um corpo orgânico cresce em virtude do
seu próprio princípio vital.
Os critérios de List, Hildebrandt e Bücher - que referimos atrás -, atendo-se
apenas a elementos da estrutura económica da sociedade, somente dão conta da
evolução (linear) das forças produtivas, mas não podem apreender o processo (di­
aléctico) de evolução da economia nem explicar a sua dinâmica.
Esta só resulta inteligível quando se tem em conta a relação dialéctica entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações sociais de produ­
ção no seio das quais aquelas se desenvolvem e com as quais entram em contradi­
ção. E é esta contradição que, acentuando-se, abre uma “época de revolução social”,
no termo da qual surgirá, a partir do anterior (do seu desenvolvimento), um novo
estádio superior de desenvolvimento.
As próprias limitações do seu método impediram os autores da Primeira Esco­
la Histórica de ir além da mera acumulação de dados relativos à actividade econó­
mica. Afirmando a existência de uma oposição absoluta entre a ciência da História
e as ciências exactas, a Escola Histórica acabou por negar a possibilidade de qual­
quer teoria da história.
Com efeito, o método histórico-genético praticado pela Escola Histórica renun­
cia à elaboração teórica, limitando-se os seus autores à reunião, descrição e siste­
matização dos factos da vida económica e sua sequência histórica, sem capacidade
para apreender as mudanças qualitativas das formas de organização económico-
social ao longo do processo histórico. Cada autor propõe um esquema das várias
fases pelas quais passariam mais ou menos obrigatoriamente todas as sociedades.
E cada uma dessas fases é considerada independente das outras, na medida em que
cada fase substitui inteiramente a fase anterior, sem consideração por aquilo que, em
cada ‘sistema’, permanece do ‘sistema’ anterior e por aquilo que, em cada ‘sistema’,
prenuncia elementos do ‘sistema’ futuro. Neste quadro, resulta impossível a expli­
cação do processo de passagem de um estádio a outro e a compreensão das causas
da evolução histórica.
Renunciando à teoria, os adeptos da Escola Histórica limitam-se a uma histó­
ria dosfactos económicos. Negando a possibilidade de uma teoria da história, torna­
ram inconsistente a sua posição metodológica, dada a impossibilidade de
desenvolvimento da ciência sem teoria. Por isso se falou já, a seu respeito, de
“nihilismo teórico”, de “ciência morta”.
A v e l As N u n e s - 7 3

2 . - 0 critério de Sombart, ao incluir naforma - como acima se refere - certos


elementos institucionais que não se confinam à simples estrutura económica, ul­
trapassa algumas das dificuldades que se apontaram aos autores da Primeira Esco­
la Histórica.
O problema da transição dos sistemas é por ele encarado numa perspectiva cultu-
ralista e explicado, portanto, não a partir de factores económicos, mas de factores de
ordem cultural ou espiritual', o que, essencialmente, mudaria era o espírito dos siste­
mas, dentro de um processo de evolução cultural global. A ideia fundamental da sua
obra é, nas palavras do próprio Sombart, a de que, “em épocas diferentes vigoraram
sempre atitudes económicas diferentes, e que esse espírito é que tem criado a forma
adequada para si próprio e com ela uma organização económica”25.
Só que esta concepção culturalista, ‘espiritualista, idealista (comum a Sombart
e a Max Weber), de que o capitalismo, como forma económica, é uma criação do
espírito capitalista, implica que se explique a génese deste último. Desta exigência
surgiu o debate (que se afigura de todo inconcludente) quanto à questão de saber
se foi a Reforma e o protestantismo que geraram o espírito capitalista (como quer
Max Weber) ou se, diversamente, o espírito do capitalismo foi em grande parte
criação dos judeus (como pretende Sombart).
A esterilidade de tal debate é um pouco a imagem da esterilidade do critério de
Sombart. Na verdade, ele revela-se, ao fim e ao cabo, incapaz de detectar os aspec­
tos essenciais que verdadeiramente distinguem os sistemas económicos uns dos
outros, exactamente porque sobrestima certos elementos ‘espirituais’ ao mesmo
tempo que subestima os elementos materiais, os elementos económicos, que ver­
dadeiramente imprimem carácter aos vários sistemas.
Talvez assim se compreenda a dificuldade de Sombart em distinguir a essência
do capitalismo e do socialismo, o que explica a sua conclusão de que “entre um
capitalismo estabilizado e regularizado e um socialismo racionalizado que utilize
todos os recursos da técnica a diferença não%
é muito grande” .
Em 1934, viria a defender uma noção de socialismo na qual caberia inclusiva­
mente o regime nazi.26 O socialismo seria para Sombart, “um estado de vida social
em que o comportamento dos indivíduos é determinado em princípio por normas
obrigatórias que radicam numa razão universal, intimamente ligada à comunidade
política, e que encontram a sua expressão na lei (nomos)”.
Como o próprio Sombart reconhece, trata-se de definir o socialismo como um
puro “normativismo social”, de “libertá-lo de qualquer determinação de conteúdo

25 Der Moderne Kapitalismus (ed. 1928) (a p udM. D O BB, A Evolução..., e it , 16).


26 Em Deutscher Sozialismus (Há uma trad. it. de 19 4 1: II Socialismo Tedesco, Vallechi Editore, Firenze).
7 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

e de concebê-lo de modo puramente formal”, em termos tais que, identificando o


nomos com o socialismo, considera socialismo as simples prescrições de “não fu­
mar”, “circular pela direita”, “é proibido colher flores”, etc.
Por nós, acompanhamos Teixeira Ribeiro quando defende que, mesmo que o
socialismo aspirasse à normalização de toda a vida social, não podem “confundir-se
sob o mesmo nome doutrinas, movimentos e sistemas que têm um sentido histórico
muito diverso e cujas finalidades são muito diferentes.”2^ normalização de toda a
vida social foi sem dúvida uma aspiração do nazismo. Mas a verificação disto mes­
mo não pode autorizar a conclusão (a que Sombart pretendia chegar) de que, afir-
mando-se essa normalização como a característica essencial do socialismo, o nazismo
podia considerar-se também como socialismo {nzcioniX-socialismo).
3. - A teoria dos tipos de coordenação (ou tipos de organização) tem a indiscutível
vantagem de perm itir o enquadramento de qualquer economia concreta em um
dos seus tipos, fornecendo assim indicações acerca da teoria do seu funcionamen­
to. O que a noção de sistema económico não faculta (o conhecimento sobre o
funcionamento global concreto da economia) oferece-o a teoria de Eucken.
Mas não parece correcto fazer do diferente modo defuncionamento {forma de
organização) de cada economia cm concreto o elemento distintivo dos sistemas
económicos. A nosso ver, não é possível dizer-se, sem mais, que, se a economia for
uma economia de direcção central, estaremos perante um sistema socialista, do
mesmo modo que, se a economia for uma economia de mercado, estaremos peran­
te um sistema capitalista. Noutra perspectiva, não parece aceitável a conclusão de
que, conforme se opte por um modelo de economia de direcção central ou por um
modelo de economia de mercado, assim se optará pela propriedade colectiva ou
pela propriedade privada dos meios de produção, ou seja, respectivamente, pelo
socialismo ou pelo capitalismo.
É que o mesmo tipo de coordenação é compatível com sistemas económicos
diversos. Economia centralizada, v.g., foi a economia dos senhorios feudais. Mas
foi-o também a economia da Alemanha nacional-socialista, como o foi, em larga
medida, a economia dos restantes países capitalistas durante a Segunda Grande
Guerra (o período do chamado “comunismo de guerra”). Em certo sentido, foi-o
também, nas décadas imediatamente posteriores a 1945 - através da planificação
pública - , o capitalismo dos países mais industrializados, que progressivamente se
foi afastando da forma clássica das economias de mercado). E foi economia cen­
tralizada a dos países que, na Europa e em outras paragens, integraram, até à sua
derrocada, a chamada comunidade socialista.

27 Cfr. A Nova Estrutura.. cit., 36.


A ve lA s N unes - 7 5

À luz destes exemplos, parece claro que a teoria dos tipos de organização não é
capaz de fomecer um critério de distinção entre sistemas tão diversos (feudalismo,
capitalismo, socialismo) que podem incluir-se num dos dois tipos considerados.
Nem parece que ela seja capaz de explicar por que é que, em épocas tão diferentes e
em circunstâncias tão diversas, foi idêntico o tipo de organização. Se bem vemos,
estas são questões que só poderão compreender-se através de uma análise feita numa
perspectiva histórica, à luz da história económica, através da história dos sistemas
económicos, caracterizados pelos respectivos modos de produção.
O critério de Eucken afasta, em suma, qualquer perspectiva histórica do de­
senvolvimento dos povos, negando que da história possa colher-se qualquer senti­
do de desenvolvimento ou de progresso. E, ao sustentar que a história é constituída
por um conjunto de avanços e recuos insusceptíveis de explicação teórica, acaba
por fazer da história algo de contrário à histoire raisonée de que fala Schumpeter a
respeito da teoria de Marx.
Por isso, enquanto a teoria dos modos de produção (nomeadamente a teoria
marxista) é capaz de fomecer uma explicação para o desenvolvimento histórico, o
critério dos tipos de coordenação, como concepção anti-histórica, é incapaz de
esclarecer acerca das causas e do sentido da evolução de um sistema económico
para outro, encarando o problema numa perspectivafuncional, como se se tratasse
de alternativas abertas à livre escolha, em qualquer tempo c lugar, comparando-se
soluções técnicas possíveis, na sua eficiência, nas suas dificuldades e facilidades,
nos seus prós e contras, como que na mira de esclarecer uma opção entre eles.
A teoria dos tipos de coordenação permite relevar, na análise das formas con­
cretas em que os sistemas se manifestam (já que, como se diz acima, os sistemas
puros não existem, ou não esgotam a realidade), certos elementos importantes para
a compreensão da dinâmica interna do sistema (nomeadamente o papel do estado
perante o económico) e que poderiam não ser devidamente ponderadas numa aná­
lise que apenas se ativesse às relações de produção. M as não pode substituir a
teoria (histórica) dos sistemas económicos, pela simples razão de que “as formas
económicas são sempre formas de um determinado sistema” 28.
4. - Por nossa parte, utilizando a formulação de Teixeira Ribeiro29, considera­
mos que “o que imprime carácter a qualquer economia e a individualiza como tipo
é o modo de produção c repartição dos bens.” Quer dizer, o que distingue os sistemas
é o modo de produção, i.é, a natureza das relações de produção (propriedade privada
ou propriedade colectiva dos meios de produção?) e aforma de repartição do produto

28 V. M OREIRA, Economia e Constituição, c it ..., 114.


29 Lições d e Direito Corporativo, cit., 114. Ver também A Nova Estrutura..., cit., 5-6.
7 6 - U m a In t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

(há rendimentos da propriedade? ou só rendimentos do trabalho? ou rendimentos de


ambas as origens?). Só depois virá o móbil da actividade económica (produz-se com
vista à satisfação das necessidades do produtor ou dos titulares dos meios de produ­
ção? para obter lucros? para satisfazer as necessidades colectivas?). Poderá mesmo
dizer-se que é a natureza das relações sociais deprodução (a posição relativa dos homens
no que toca aos meios de produção) que, em último termo, distingue os sistemas.
Nesta lógica é que se fala do socialismo como sistema caracterizado pela propri­
edade colectiva dos meios de produção e do capitalismo como sistema que assenta
na propriedade privada dos meios de produção. Esta é uma propriedade perfeita,
absoluta, que exclui os não-proprietários do respectivo poder de disposição, vendo-
se estes obrigados a vender aos donos dos meios de produção a própria força de
trabalho transformada em mercadoria, assim se configurando as relações capitalistas
de produção entre os produtores não-proprietários e os donos do capital.
Conforme a natureza das relações de produção, assim varia a forma que assume
o excedente social da produção sobre o consumo e a titularidade do controlo desse
excedente. No capitalismo, o sobreproduto social assume a forma de lucro (rendi­
mento sem trabalho) que cabe aos proprietários dos meios de produção, aos quais
pertence também decidir do destino a dar-lhe, não só para consumo pessoal dos
próprios capitalistas mas também para investimento em novos meios de produção.
No socialismo, o excedente assume a forma de fundo social que será distribuído
por consumo e investimento por decisão da própria colectividade30.
Já se vê como a distinção dos sistemas económicos com base nos modos de
produção, i.é, a partir da natureza das relações sociais de produção, permite carac­
terizar também, para cada um deles, o modo como se processa a direcção da
economia e o critério que preside à distribuição do produto social, ao mesmo
tempo que permite explicar a evolução histórica dos modos de produção. Esta
teoria dos modos de produção afigura-se-nos, por isso, a mais adequada para a
análise dos sistemas económicos e da sua evolução.
Os sistemas distinguem-se uns dos outros pela afirmação de determinadas for­
ças produtivas e determinadas formas de organização material da produção, a base
económica (estrutura económica ou infraestrutura) no seio da qual se desenvolvem
determinadas relações sociais de produção e a partir da qual se erguem e instalam
determinadas estruturas políticas, jurídicas, culturais, ideológicas (superestrutura).
O que nos vai interessar aqui é a questão de saber quais os elementos estrutu­
rais que permitem distinguir entre si os vários sistemas económicos, como se pro­
cessou a evolução que a história regista e que factores a podem explicar.

30 No sentido do texto, cfr. S. TSURU, Aonde vai o capitalismo, ciL, 41 ss.


C apítulo I

Do C o m u n is m o P r im it iv o

ao C a p it a l is m o
7 8 - U m a I n t r o o u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Depois das breves considerações introdutórias que ficam nas páginas antece­
dentes, vamos acompanhar a evolução das sociedades humanas, desde as comuni­
dades primitivas até aos nossos dias, numa tentativa de esclarecer o sentido dessa
evolução, do comunismo primitivo ao esclavagismo, do esclavagismo ao feudalis­
mo e deste ao capitalismo, de modo a tornar claro:
1) que a transição de um sistema para o outro é fruto de “um processo contínuo
de transformação” (Teixeira Ribeiro);
2) que cada sistema económico que a história regista é produto da evolução
dialéctica do sistema que o precedeu;
3) que há uma racionalidade na ordem cronológica da sucessão: o capitalismo
não poderia ter precedido o feudalismo, do mesmo modo que o feudalismo não
poderia preceder o esclavagismo, já que foi a evolução do esclavagismo que, evi­
denciando as suas contradições, abriu o caminho à ordem feudal e ao modo de
produção feudal, e foi a evolução do feudalismo que, perante a impossibilidade de
manter a servidão pessoal, criou as condições para o desenvolvimento das relações
de produção capitalistas;
4) que a evolução se tem verificado de tal modo que - na lição de Teixeira
Ribeiro31 - “nenhum sistema conseguiu substituir integralmente o anterior”, em
termos tais que, em cada época histórica, o dizer-se que em determinado país ou
região se nos depara o sistema capitalista ou o sistema feudal, por exemplo, só pode
significar que aí são dominantes os elementos definidores essenciais do capitalismo
ou do feudalismo, sendo certo que a predominância dos elementos que informam
um dado sistema não afasta a sobrevivência de elementos de sistemas anteriores e a
emergência de factores que prenunciam já. um estádio superior de evolução.
Em cada época histórica e em cada país ou região, modo de produção dom i­
nante é aquele cujas relações de produção caracterizam e enquadram o desenvolvi­
mento económico e social. Seguindo o critério de François Perroux, poderá dizer-se
que um determinado país será capitalista ou viverá sob o sistema feudal, v.g.,
quando “a maior parte dos valores económicos que nele se obtêm ou a maior parte
desses valores nos sectores estratégicos” resultar de produção desenvolvida medi­
ante relações de produção de tipo capitalista ou de tipo feudal.32

31 Cfr. Economia Política, cit., 185-189.


32 Cfr. F. PERRO UX, Le Capitalisme, cit., 17.
A v e iâ s N u n e s - 7 9

O C o m u n is m o P r i m i t i v o 33

A qualidade de produtor distingue o homem dos outros animais, na medida em


que só o homem é capaz de fabricar instrumentos (de trabalho) que utiliza na
actividade de produção, actividade inteligente que visa colocar a natureza ao servi­
ço das suas necessidades e dos seus objectivos.
Durante muitos séculos, as forças produtivas foram muito rudimentares e as
condições materiais de vida muito precárias, pois os frutos do trabalho do homem
mal bastavam para garantir a sobrevivência diária. O homem começou por utilizar
as pedras e os paus para procurar os seus meios de subsistência; só mais tarde
passou a confeccionar instrumentos muito simples, com a ajuda dos quais caçava e
colhia os alimentos de origem vegetal, a tanto se resumindo a actividade económi­
ca, neste período em que o homem era simples colector.
Nesses primeiros tempos do processo de domínio e adaptação da natureza, os
homens viviam e trabalhavam juntos, em comunidades que caçavam em grupo e
partilhavam em conjunto os resultados da caça. Esta forma comunitária de vida
explica-se, aliás, facilmente, se tivermos presente que os homens primitivos preci­
savam de se unir e de actuar em grupo, quer para se defenderem dos animais
selvagens quer para poderem prover à sua alimentação, tarefas que tinham de levar
a cabo com instrumentos mais que rudimentares. Como Marx salienta numa carta
para Vera Zassoulitch, é a necessidade do trabalho colectivo inerente às condições
de vida próprias das comunidades primitivas que explica a propriedade comum da
terra, e não o contrário.
Não fazia sentido, então, falar-se de propriedade (privada) dos meios de pro­
dução, que eram utilizados (tal como a terra) por toda a colectividade para satisfa­
zer as necessidades de todos. Não havia, portanto, diferenciação social nem divisão
da sociedade em classes, nem exploração de uma classe de homens por outra.
Nestas sociedades primitivas, em que a organização colectiva e a disciplina do
trabalho resultavam da força do costume, do prestígio c do poder de que gozavam
certos elementos da comunidade (os chefes de clãs), que não raras vezes eram
mulheres. Não havia, por isso, necessidade de qualquer aparelho de coerção des­
tinado a garantir a “exploração do homem pelo homem”, o domínio de uma classe

33 Cfr., sobre este perfodo, J. EATON, Manual.... cit., 6-9; E. M A N D EI, Traité..., cit., I, cap. 1«; HINDESS/HIRST,
Modos de Produção. .., cit., 28 ss.; C . CO M ES, Economia do Sistema Comunitário, cit.
8 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o ü t ic a

social sobre outra(s) classe(s) social(sociais). Não havia lugar para o estado en­
quanto aparelho de poder (político, militar e judiciário) ao serviço da manutenção
de determinado status quo.
No período colector, a única divisão do trabalho conhecida era a que se fazia
em função do sexo: os homens, mais virados para o fabrico de armas e para a caça;
as mulheres, encarregadas da defesa das habitações e da colheita e confecção de
alimentos vegetais.
Entretanto, a lenta acumulação de invenções foi aumentando a produtividade
do trabalho. A invenção do arco e da flecha como instrumentos de caça e do arpão
como instrumento de pesca vieram permitir maior regularidade e maior abundân­
cia no abastecimento de géneros, reduzindo-se a importância da simples colheita
de frutos, que passou a ser uma actividade meramente suplementar das demais.
O homem começou a trabalhar a pele, os ossos, os chifres dos animais caçados
regularmente. A descoberta de zonas de caça ou de pesca particularmente abun­
dantes veio perm itir que nelas se fossem fixando as primeiras tribos, pois a abun­
dância da caça e da pesca, aliada ao uso de instrumentos mais perfeitos, permitiu o
abandono progressivo do nomadismo, enquanto prática imposta pela necessidade
de procurar novas regiões onde pudessem encontrar alimentos. O próprio regime
sedentário, por seu turno, proporciona o aumento da produtividade do trabalho,
permitindo que se produzam mais e melhores instrumentos de trabalho.
Assim se foram criando condições para que as comunidades primitivas produ­
zissem, além do necessário à sobrevivência, um excedente (sobreproduto social). As­
sim se puderam constituir reservas de alimentos, reduzindo o risco da ocorrência
de períodos de fome. Assim foi possível uma divisão do trabalho mais avançada e
o consequente aumento da população (fenómeno que é, ele próprio, revelador da
existência de um excedente social). Este aumento da população abre, por sua vez,
novas possibilidades de especialização e de divisão do trabalho, ampliando a quan­
tidade e a eficiência das forças produtivas à disposição da humanidade.
A existência de um excedente regular e permanente de alimentos foi a base mate­
rial necessária para que pudesse acontecer a grande revolução económica e social do
período neolítico - a revolução neolítica, como justamente lhe chamam os autores. Foi
o início da agricultura, da domesticação e da criação de animais, actividades que pressu­
põem necessariamente a existência de uma certa reserva de alimentos.
Em primeiro lugar, porque é preciso dispor de alimentos para se lançarem à
terra e de animais para criar com vista à reprodução, ou seja, é preciso dispor de
alimentos que possam não ser consumidos no presente com vista à obtenção de
maiores quantidades de alimentos no futuro.
A v e l A s N u n e s - 81

Em segundo lugar, porque são necessários alimentos para a comunidade sub­


sistir no intervalo de tempo que medeia entre as sementeiras e as colheitas. Daí
que estas formas de actividade produtiva só progressivamente fossem sendo adop­
tadas pelos povos, primeiro como actividades secundárias, em relação à caça e à
colheita de frutos, mais tarde como actividades principais, durante muito tempo
complementadas por aquelas.
O que fica dito permite compreender a importância do excedente social, surgido
pela primeira vez na história da humanidade como resultado do aumento da pro­
dutividade do trabalho agrícola. E permite compreender a razão de Ernest M an­
dei quando defende que “o sobreproduto agrícola é a base de todo o sobreproduto
e, portanto, de toda a civilização. Se a sociedade tivesse de consagrar todo o seu
tempo de trabalho a produzir meios de subsistência, nenhuma outra actividade
profissional seria possível, quer se tratasse de actividade artesanal, industrial, cien­
tífica ou artística.”34
O desenvolvimento implica, com efeito, a criação de um excedente social, i.é,
exige que a sociedade produza mais do que aquilo de que necessita para estar em
condições de renovar a produção em períodos seguintes. Quando esse excedente
atinge proporções consideráveis, há saltos no desenvolvimento. Foi o que aconte­
ceu com a passagem do comunismo primitivo para o esclavagismo; foi o que
significou, mais tarde, a revolução industrial- um grande salto no desenvolvimento
dos povos.
Em certas condições históricas, o crescimento do excedente pode não resultar
directamente do aumento da produtividade. Ele pode verificar-se porque se sujei­
tam as populações a esquemas de acentuada poupança forçada, recorrendo a for­
mas de trabalho escravo ou de trabalho forçado, a políticas deliberadas de inflação,
de salários baixos e de congelamento de salários, ao pedido de sacrifícios por
razões patrióticas (situação frequente em períodos de imediato após-guerra) ou
por razões revolucionárias (no período de acumulação na URSS).
Mas regressemos à revolução neolítica. Ela trouxe pela primeira vez ao homem
a possibilidade de controlar a produção dos seus meios de subsistência, ao mesmo
tempo que veio abrir novas perspectivas de desenvolvimento do artesanato profis­
sional, com o consequente aperfeiçoamento dos instrumentos de produção, acarre­
tando profundas modificações no modo de vida e nas relações entre os homens.

Cfr. E. M A N D EI, Trjité.. . , ciL, 1,112. Sobre a noção de excedente {sobreproduto social) e sua importância, ver,
além de E. M A N D EI, últ. ob.cit., cap. I, P. BARAN, A Econom ia..., cit., 22-34; C . BETTELHEIM, PlanifícaÜon...,
cit., 51ss; C. FURTADO , Prefácio..., cit., 13-70.; R. LÓPEZ-SUEVOS, Excedente Económ ico..., cit.
8 2 - U m a In t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o i Id c a

Surgiu então uma grande diferenciação entre as tribos que continuaram uma
vida nómada, vivendo essencialmente da caça, e aquelas que adoptaram uma acti­
vidade económica que permitiu (e exigiu) a sedentarização, ao mesmo tempo que
surgiu a primeira importante divisão social do trabalho entre as tribos que se
dedicaram à pastoricia e as que se dedicaram à cultura da terra.
O nomadismo foi sendo progressivamente abandonado, transformando-se as
tribos em comunidades mais ou menos estáveis. A produtividade do trabalho au­
mentou nestas comunidades, que passaram a poder produzir regularmente uma
quantidade de bens superior à necessária para satisfazer as suas necessidades, am­
pliando assim o excedente social.33
Com a sedentarização, começaram as famílias a reservar normalmente as mes­
mas terras para a sua agricultura, assim se generalizando a utilização particular das
terras na posse de cada família, embora, durante muito tempo, esta posse continu­
asse a ter como pressuposto a existência da comunidade c a propriedade colectiva
da terra.
A agricultura desenvolveu-se, passando a adequar-se as sementeiras e as colheitas
às estações do ano, uma vez compreendida a importância da energia do sol. Por
outro lado, nos vales do Nilo, do Tigre e do Eufrates reconheceu-se o valor das
águas como reconstituinte da fertilidade das terras e iniciou-se a prática da irrigação.
A produção de alimentos aumentou de tal forma que, entretanto, com a descoberta
dos metais (cobre e estanho - o ferro só bastante mais tarde), da arte de trabalhá-los
e de fazer ligas (bronze), foi possível operar-se uma nova divisão do trabalho entre a
agricultura e o artesanato (a indústria). A sociedade estava agora em condições de
alimentar milhares de homens que não tinham de produzir alimentos, podendo
dedicar-se exclusivamente a actividades ‘industriais’ou a outro tipo de actividades (a
guerra, as artes, a filosofia, a ‘ciência’). Foi o período em que se descobriram a roda
de cerâmica, os carros de rodas, o arado com ponta de metal, os barcos à vela, a
técnica do fabrico de tijolos (com importantes consequências ao nível da construção,
tanto para fins civis como para fins religiosos). Com a técnica da irrigação, surgiu,
verdadeiramente, a civilização.
A utilização de novos e mais aperfeiçoados instrumentos de trabalho e de
novas técnicas agrícolas aumenta enormemente a produtividade do trabalho. Nos
tempos primitivos, o homem não era capaz de produzir mais que a sua subsis­
tência; agora produz-se um excedente, que se transforma em objecto de trocas

35 O gado constitui o primeiro meio de acumulação de riqueza. A função de acumulação de riqueza é uma das
funções da moeda. E a verdade 6 que o gado foi um dos primeiros bens que funcionaram como moeda. A
palavra latina pecus (gado) é a raiz de palavras como pecúlio, pecuniário, etc.
A v e l As N u n e s - 8 3

entre os homens, assim se iniciando a troca de produtos como acto corrente da


vida em sociedade.
Mas, se cada homem pode produzir, com o seu trabalho, mais que o necessário
para a sua subsistência, ganha sentido a exploração do homem pelo homem. Nos
tempos primitivos era corrente a prática do infanticídio, bem como o abandono ou
a morte dos deficientes e dos velhos (aqueles que não eram capazes de assegurar a
sua própria subsistência), com o fim de evitar a população excessiva, a fome e o
possível extermínio de toda a comunidade. Por isso mesmo as tribos vencedoras
matavam (e comiam) os seus prisioneiros de guerra. Agora, torna-se vantajoso
fazê-los escravos e obrigá-los a trabalhar para que os senhores possam apropriar-
se do excedente criado pelo trabalho escravo. A primitiva comunidade de vida e de
trabalho foi assim destruída pelo progresso das técnicas, pela divisão do trabalho
e pelas consequências desta: a divisão da sociedade em classes e o aparecimento do
estado como instrumento de domínio de um grupo social sobre outro. Assim es­
creveu Engels:
“O aum ento da produção em todos os ramos - criação de gado, agricultura,
ofícios domésticos - deu à força de trabalho hum ana a capacidade de conseguir
um produto m aior do que o necessário para a sua subsistência. (...) A introdu­
ção de novas forças de trabalho tornou-se desejável. A guerra forneceu-as: os
prisioneiros de guerra foram transformados em escravos. A prim eira grande
divisão social do trabalho, com o seu aum ento da produtividade do trabalho, e
portanto da riqueza, c o alargamento do campo da produção, trouxe consigo,
necessariamente, naquelas condições históricas, a escravatura. D a primeira gran­
de divisão social do trabalho resultou a primeira grande divisão da sociedade em
duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados”.36

O modo de produção e a organização social próprios do comunismo primitivo


deram lugar a um novo modo de produção e a uma diferente organização social:
o esclavagismo.

36 Cfr. M ARX/ENGEIS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 357/358.


8 4 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

O E s c l a v a g is m o 37

O esclavagismo, enquanto modo de produção, assenta na exploração do trabalho


forçado da mão-de-obra escrava: os senhores alimentam os seus escravos e apropri-
am-se do (restante) produto do trabalho destes. Surgiu nos vales do Nilo e do Eu-
frates, na índia e na China, conformando mais tarde as civilizações grega e romana.
A exploração do trabalho escravo tornou possível a produção de grandes exce­
dentes e uma enorme acumulação de riquezas, estando, assim, na base do desen­
volvimento económico e cultural que a humanidade então conheceu: construíram-se
diques e canais de irrigação, exploraram-se minas, abriram-se estradas, construí-
ram-se pontes e fortificações, desenvolveram-se as artes e as letras.
M as a civilização esclavagista da Grécia e de Roma não tardaria a entrar em
declínio, primeiro a Grécia, subjugada por Roma, e depois o próprio Império
Romano, e, com ele, a civilização do mundo antigo.
Nas civilizações esclavagistas, não era pela via do aperfeiçoamento dos méto­
dos de produção que os senhores de escravos procuravam aumentar a sua riqueza;
e os escravos, sem qualquer interesse nos resultados do seu trabalho, não se empe­
nhavam na descoberta de técnicas mais produtivas38.
O aumento de riqueza realizava-se mediante a conquista de novos territórios,
capazes de fornecer escravos em maior número e mais impostos ao fisco. Daí a
expansão colonial da Grécia e de Roma.
As conquistas militares de Roma enriqueciam os poderosos donos de escravos
e grandes proprietários de terras. Mas arruinavam os pequenos proprietários livres
que o serviço obrigatório no exército levava a abandonar as suas terras, das quais

37 Cfr. J. EATON, ob.cit., 9-10; H. DENIS, H istória...,c it., 83-84; HINDESS/HIRST, ob. cit., 127«.
38 Recorde-se, aliás, que a escravatura - renascida mais tarde como consequência das viagens atlânticas de
portugueses e espanhóis e do desenvolvimento do comércio capitalista - viria a ser abolida no séc. XIX por
pressão das potências capitalistas, principalmente a Inglaterra e os estados industriais do norte dos EUA, em
oposição aos estados rurais e esclavagistas do sul (a Guerra da Secessão pode, aliás, considerar-se "uma forma
especial de revolução burguesa contra a aristocracia latifundiária e plantadora do Sul", como salienta A . SE­
DAS NUNES, em Análise Social, n°s. 27/28, p. 371, nota 52). É que ao capitalismo interessava o trabalho livre:
\.°) porque a produtividade dos trabalhadores livres é maior que a dos escravos; 2 .V porque o capitalismo
precisa de consumidores e os escravos não o eram, pois nâo recebiam rendimentos monetários e os donos
gastavam com eles apenas o indispensável; 3. °) porque a própria subsistência dos trabalhadores deixava de
ser um encargo para o capital.
A v e ià s N u n e s - 8 5

acabavam por ser expulsos, por dívidas, indo elas engrossar as grandes proprieda­
des cultivadas por mão-de-obra escrava; c arruinavam também os pequenos artesanos
das cidades, em virtude do recurso a artífices escravos. Assim se criaram enormes
massas empobrecidas e sem meios de ganhar a vida, que os senhores de Roma iam
entretendo distribuindo pão e circo (panem etcircensis).
As novas conquistas c os novos escravos que elas propiciavam (trabalhando de
má vontade, com produtividade reduzida em comparação com as necessidades)
começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração
romana. O s conflitos no seio das classes de homens livres começam a abalar as
estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre
latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruina­
dos, aliados aosproletarii das cidades.
Ao mesmo tempo, começa a manifestar-se o movimento de revolta dos escra­
vos contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu
o ponto mais alto com a revolta de Espártaco (73-71 A. C.). Os escravos foram
vencidos, mas a República romana cairia pouco depois. Em 27 A. C. Augusto
inicia o período do Império.
A partir do séc. II R C., a necessidade de obter receitas leva o estado romano a
organizar grandes explorações nas suas terras e a encorajar a concentração das propri­
edades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista. As classes médias,
arruinadas, integravam as grandes massas inactivas das cidades, onde o recurso ao
trabalho escravo impedia - como nos campos - qualquer melhoria de produtividade.
Esmagada por Caracala, no início do séc. III, uma revolta da aristocracia, a classe
dominante em todo o Império passará a ser a dos curiales (colectores de impostos),
responsáveis directamente perante o imperador, e cuja autoridade se transmite heredita-
riamente. Os imperadores organizam as artes em corporações obrigatórias e passam a
intervir cada vez mais na economia.
Com Diocleciano, generaliza-se o pagamento em espécie aos funcionários, utilizando
o estado directamente os produtos da terra, sem os deixar passar pelo mercado, cuja
importância diminui, justificando a tendência dos grandes proprietários para se consti­
tuírem em economiasfechadas, de dimensões cada vez maiores, colocando-se os peque­
nos proprietários - desarmados perante o fisco - sob a protecção dos grandes.
Por outro lado, com vista a facilitar a cobrança dos impostos (frequentemente
pagos em géneros), o estado procurou fixar à terra que cultivavam os pequenos
agricultores livres das aldeias, instituindo o regime de colonos. Estes não podiam
deixar a terra, nem casar fora do domínio, nem vender os seus bens sem autoriza­
ção do proprietário da terra. Assim se institui um regime de grande propriedade,
8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a

mas sem bases técnicas capazes de proporcionar índices razoáveis de produtividade


do trabalho agrícola.
Minado por dificuldades internas, o império romano sucumbirá à invasão dos
bárbaros do norte (cm 476). Não conhecendo a propriedade privada das terras, os
povos invasores, à medida que vão penetrando nos territórios do império romano,
constituem-se cm comunidades de aldeia, sendo as terras periodicamente repartidas
entre os habitantes.
Paralelamente, a apropriação pelos chefes bárbaros dos grandes domínios dos
romanos vencidos dá origem a uma nova aristocraciafundiária, sob cuja protecção se
viriam colocar os camponeses livres das aldeias, ameaçados permanentemente pelo
clima de insegurança que marcou o período entre o séc. V e o séc. IX.
Em troca do compromisso defidelidade pessoal e (em regra) da entrega dos seus
bens, os camponeses pobres passavam a integrar a ‘família, a ‘casa dos grandes
donos de terras, que, por sua vez, se obrigavam a protegê-los e a garantir-lhes o
sustento. Por este processo, os camponeses livres transformam-se em servos, come­
çando a delinear-se assim os domínios senhoriais característicos da Idade Média.39
Nas regiões menos afectadas pelas invasões bárbaras, os servos tomaram também o
lugar dos escravos, dada a impossibilidade de manter a exploração agrícola com um
tipo de relações de produção cuja ineficácia se vinha progressivamente acentuando.
Entretanto, as cidades espalhadas pelo império romano eram assaltadas, saquea­
das e abandonadas, arruinando-se por completo a actividade ‘industrial’ que nelas se
localizava, desaparecendo com a indústria antiga a escravatura cm que ela se apoiava.
Regressava-se a uma actividade económica quase exclusivamente rural.
Com as invasões normandas, no séc. IX, os delegados das administrações reais
constroem fortificações a cuja protecção se acolhem as populações indefesas e tor-
nam-se praticamente independentes da autoridade dos reis, considerando-se apenas
vassalos a quem os reis concedem poderes sobre uma parte dos seus domínios, con­
cedendo eles, por sua vez, direitos idênticos aos seus subordinados. Assim se consti­
tui a hierarquia da sociedadefeudal c se desmembra o estado.
As invasões dos povos germânicos vieram acentuar e acelerar tendências já em
marcha no sentido da perda de importância da actividade industrial e comercial
e da economia monetária, reforçando a base rural da economia e da sociedade e
provocando a rotura das estruturas económicas, sociais e políticas, com a conse­
quente fragmentação do espaço económico e do espaço político.40

39 Sobre a génese das relações de dependência pessoal, cfr. M. BLO C H , A Sociedade Feudal, cit., 171 ss.
40 Cfr. A. HESPANHA, História das Instituições, cit., 81/82. Em geral sobre a transição da 'sociedade antiga' para o
feudalismo, ver: F. LOT, O fim d o mundo antigo, cit.; P. ANDERSON, Passagens..., cit.
A v elAs N u n e s - 8 7

c
O F e u d a l is m o 41

1. C a r a c t e r iz a ç ã o g eral

Na sociedade feudal toda a vida social era marcada por um elemento comum,
a subordinação de indivíduo a indivíduo, a relação de dependência pessoal, a cir­
cunstância de cada um M scr o homem de outro homem”, na expressão de Marc
Bloch.42 Esta relação de dependência pessoal caracterizava todo o tecido da socie­
dade feudal, independentemente da natureza jurídica exacta do vínculo e sem dis­
tinção de classes: o conde era o ‘homem’ do rei, do mesmo modo que o servo era
o ‘homem’ do senhor da terra onde vivia e trabalhava.
As formas deste laço humano apresentavam, porém, algumas singularidades,
conforme os níveis sociais em que se verificavam. N o grau inferior, as relações de
dependência encontraram o seu enquadramento natural no senhorio rural, que é,
fundamentalmente, uma terra habitada e os seus súbditos. N o âmbito do senhorio,
o vínculo de dependência pessoal tinha no aspecto económico o seu campo de
iniciativa primordial: o objectivo do senhor era, preponderantemente, o de obter
rendimentos, através da apropriação dos frutos do trabalho gratuito dos servos.
Tradicionalmente, a designação feudalismo vem associada a determinadas es­
truturas jurídicas e políticas (a “vassalagem”), que apontam para um entendimento
do feudalismo como regime jurídico-político. Por nós, utilizá-la-emos aqui no
sentido de modo de produção feudal ou sistema económico-social feudal.43

41 Sobre o feudalismo, ver: TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Foliüca, cit, 147ss.; M. DOBB, A Evolução..., cit; P. SWEEZY, M.
D 0 6 8 e outros,ob.ci.; PARAI NtVllAR e outros, cò.dt; HINDESSHIRST, Modos de Produção, cit., 260ss.; A HESPANHA
História..., d l, 88ss.; C . CONTE, D. i Crise..., d l, 12-40.
42 Cfr. Marc BLOCH, A Sociedade Feudal, c it, 169.
43 Durante muito tempo, os historiadores da Idade Média distinguiram entre feudalismo e senhorio. Mas esta
distinção foi sendo abandonada pela historiografia mais recente, graças, sobretudo, aos trabalhos de inspira­
ção marxista. Reconhece-se, por um lado, que não 6 fácil isolar, no contexto económico, social e político das
sociedades medievais, aquelas duas realidades (feudalismo e senhorio), e salienta-se, por outro lado, que
ambas relevam na conformação de um mesmo sistema económico-social (o sistema feudal, o feudalismo,
na acepção cm que aqui se utiliza esta palavra).
Alguns historiadores (sobretudo franceses) ensaiaram a distinção entre feudalismo efeudaUdade. A expressão
feudalismo traduziria o entendimento tradicional de regime jurídico-político caracterizado pelas relaçóes
de vassalagem entre o rei e os grandes vassalos, que disporiam de poderes majestáticos bastante amplos. A
expressão feudalidade traduziria a concepção alargada de regime senhorial, caracterizado este pela
8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

N o início da Idade M édia as terras, na Europa Ocidental, encontravam-se


divididas em três partes:
1) as terras que o senhor reservava para si (o domínio, a reserva) e que explora­
va utilizando o trabalho não pago dos servos e colonos obrigados à corveia (presta­
ção, não paga, de certos dias de trabalho ou de certos serviços);
2) as terras que os senhores colocavam à disposição dos camponeses para eles
cultivarem com vista à satisfação das suas próprias necessidades (tenures, concessões);
3) as terras comunais, utilizáveis livremente pelos camponeses e pelo senhor, que
forneciam essencialmente lenha e madeira para as construções e pastos para os gados.
Enquanto os colonos podem abandonar as terras para ir servir outros senhores,
os servos encontram-se hereditariamente ligados às terras do seu senhor, não po­
dendo abandoná-las. M as estes deveres de servidão têm como contrapartida o direi­
to dos servos de permanecer nas terras do senhor e de cultivar uma parcela delas,
para aí proverem à satisfação das suas necessidades. Na expressiva síntese que
Fustel de Coulanges faz do estatuto do servo, “la terre le tient et il tient la terre”.44
Este ‘direito’ hereditário das famílias servas constitui um limite ao direito de
propriedade do senhor. Por isso se diz que a propriedade feudal é uma propriedade
imperfeita: os proprietários da raiz não podem expulsar os servos das terras que
eles habitam e que lhes garantem o sustento.
Servos e colonos estão sujeitos ao estatuto de servidão pessoal, sobre eles reca­
em idênticas obrigações pessoais de prestar ao senhor certos serviços ou dias de
trabalho gratuitos, de entregar uma parte das colheitas, ou, mais tarde, de pagar
uma dada renda em dinheiro. Esta relação de servidão pessoal é, sem dúvida, a
característica fundamental do modo de produção feudal. Seguindo Maurice Dobb,
podemos defini-la como “a obrigação imposta ao produtor pela força e indepen­
dentemente da sua própria vontade, para que satisfaça certas exigências económi­
cas de um senhor, quer tais exigências tomem a forma de serviços a prestar, ou de
tributos a satisfazer em dinheiro ou em espécies - em trabalho ou no que o Dr.
Nielson chamou ‘presentes para a despesa do senhor’. Essa força coerciva pode ser
a força militar, detida pelo senhor feudal, a do costume apoiado por uma espécie
de processo judicial, ou a força da lei.”45

existência de laços de dependência económica, política e social fundados na posse da terra e extensivos a toda a
sociedade e nâo apenas ao topo da escala social. Este entendimento da feudalidade enquanto estrutura social comple­
xa marcada por laços de dependência em que o proprietário da terra era também senhor ce m que os produtores
directos eram também servos nâo é substancialmente diferente do entendimento que fazemos do feudalismo como
modo de produçáo feudal ou sistema económico-social feudal. Cfr. A. HESPANHA, História..., d l., 84ss.
44 A p u d E. M ANDEL, Tra/té..., d l , III, 116.
45 Cfr. M. D O B B, A Evolução..., c i l, 35-36.
A v elã s N u n es - 8 9

Nas condições do feudalismo, a força de trabalho não é uma mercadoria autó­


noma, porque os servos, não sendo homens livres, não são livres de vender a sua
própria força de trabalho: têm de a exercer nas terras do senhor, em parte para
garantir a sua própria sobrevivência e reprodução, em parte, obrigatória e gratui­
tamente, em benefício do senhor. Como contrapartida, os servos têm direito a
trabalhar as terras indispensáveis para obter os meios de subsistência para si e para
as suas famílias.
Quer isto dizer que os servos não estão separados dos meios de produção, uma
vez que têm garantida a posse dos meios materiais da sua existência, uma posse
que lhes permite viver do seu próprio trabalho utilizando os instrumentos de pro­
dução que lhes são necessários e com os quais estabelecem uma relação directa. O
que significa que eles não são economicamente obrigados a trabalhar nas terras do
senhor. Eles são obrigados a trabalhar gratuitamente para o seu senhor em virtude
do estatutojurídico-político da servidão a que estão sujeitos.46
E este estatuto é respeitado porque os senhores têm o direito e o poder (polí­
tico, militar ejudicial) de os compelir a isso, e porque os próprios servos se sentem
obrigados a respeitar o seu estatuto, na medida em que aceitam a ideologia domi­
nante, veiculada pela Igreja, que advoga uma sociedade hierarquizada, em que
tudo e todos estão no seu lugar e não podem deixar de estar, sob pena de se pôr em
risco o equilíbrio indispensável à própria sobrevivência do edifício social. Neste
sentido, pode dizer-se que as relações de produção são, no quadro do feudalismo,
relações entre os produtores directos e o seu suserano, verificando-se a exploração
dos produtores através de uma compulsãopolítico-legaldirecta (Maurice Dobb): a
apropriação do trabalho excedente pelos senhores feudais efectua-se directamente,
por coerção extra-económica, sem a mediação das leis económicas de troca de mer­
cadorias. “A possibilidade de apropriação do sobreproduto por parte do senhor -
escreve G. Conte47 - reside unicamente no poder de impor o seu direito, enquanto
proprietário nominal da terra, pela coerção jurídica ou pela pura violência”.
Nos tempos feudais, como sublinha Galbraith, “a propriedade era uma fonte
duradoura de poder temporal.”48 O poder político, que tinha a origem e o funda­
mento na propriedade da terra, era um poder descentralizado e fragmentado, dis­
perso por uma pluralidade de titulares, dando a ideia do desaparecimento do estado.
Mas o poder político (o estado, hocsensu) existe, exercendo-se a sua autoridade de
pessoa para pessoa. Charles Parain observa que “o facto essencial, sob este aspecto,

46 Cfr. C . CON TE, Da Crise..., c it , 12 ss. e A. GUERREAU, O feudalismo. .., c it , 215 ss.
47 U lt .o b .c iL ,\ 5 .
48 Cfr. J. K. CAL BRAITH, Anatomia do Poder, cil., 110.
9 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

é que a justiça é exercida pelo ‘suserano’ sobre os seus vassalos e pelo ‘senhor’ sobre
os camponeses. A exploração das prestações económicas e o aparelho jurídico-
político encontram-se, por isso mesmo, muito estreitamente unidos”.49
A natureza de classe do estado aparece, nestas condições, sem qualquer dúvida
nem disfarce: o poder político e a violência que ele representa é exercido pela
classe dominante (que dispõe do poder militar e administra a justiça através de
tribunais nomeados pelos senhores e responsáveis perante eles) para garantir a
apropriação do sobreproduto criado pelos trabalhadores servos e, em último ter­
mo, para defesa dos seus interesses de classe, que exige a manutenção do estatuto
de servidão e das relações de produção servis.
Acompanhemos a lição de M arx:50
“É precisam ente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que
todas as relações sociais aparecem como relações entre pessoas. O s trabalhos
diversos c os seus produtos não carecem, por isso, de adoptar um a figura
fantástica distinta da sua realidade. A presentam-se como serviços, prestações e
entregas itt natura. A forma natural do trabalho, a sua particularidade - e não a
sua generalidade, o seu carácter abstracto, como na produção de mercadorias -
é tam bém a sua forma social. A corvcia é medida pelo tem po do m esm o m odo
que o trabalho que produz mercadorias; mas cada prestador da corveia sabe
m uito bem , sem recorrer a um A dam Sm ith, que é um a quantidade d eterm i­
nada da sua força de trabalho pessoal que ele despende ao serviço do seu senhor.
(...) D e qualquer maneira que se julguem as máscaras que os hom ens trazem
nesta sociedade, as relações sociais das pessoas nos seus trabalhos afirmam-se
nitidam ente com o as suas próprias relações pessoais, cm vez de se disfarçarem
sob a forma de relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho”.

Durante uma grande parte da Idade Média, o excedente social (o que os trabalha­
dores produziam para além do necessário à sua sobrevivência) foi apropriado pelos
senhores feudais, que dele viviam, uma vez que não participavam na actividade pro­
dutiva. A grande massa dos produtores limitavam-se a consumir o que produziam
nos dias em que trabalhavam para si nas terras que os senhores afectavam à subsis­
tência dos trabalhadores. Estes não aparecem no mercado, nem a comprar nem a
vender. A produção era essencialmente produçãopara uso e não para venda.
As trocas eram essencialmente trocas internas, trocas directas de produtos e
serviços entre os produtores. Só os senhores dispunham de bens para vender e só
eles podiam comprar os produtos de ‘luxo’ da produção artesanal, ela mesma sem

49 Cfr. PARAI N e outros, cit. ,2 6 .


50 Cfr. K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 73.
A v e l ã s N u n e s - 91

estímulos para o seu desenvolvimento, dada a falta absoluta de poder de compra da


grande maioria da população e a consequente exiguidade do mercado. Daí que a
agricultura fosse a actividade dominante da economia feudal. Daí que praticamen­
te não houvesse trocas entre o domínio senhorial e o exterior. Daí que a economia
feudal fosse uma economiafechada, em que o domínio senhorial era a unidade de
produção e de consumo, produzindo-se no seu seio tudo o que se consumia e
consumindo-se tudo o que se produzia.
Por outro lado, o modo de produção feudal criou condições propícias à estag­
nação da técnica, que se manteve rudimentar e rotineira', os instrumentos de trabalho
eram muito simples e o acto de produção era geralmente de carácter individual,
quase não havendo divisão do trabalho.
Pelo que toca aos servos, qualquer melhoria nos resultados da produção era
sempre pretexto para novas exigências do senhor, o que ‘matava qualquer iniciati­
va no sentido de beneficiar as terras ou melhorar as técnicas de cultivo e os instru­
mentos de trabalho.
Na óptica da classe senhorial, os senhores não têm interesse em promover o
desenvolvimento da produção nas suas terras para além do limite resultante da sua
própria capacidade de consumo. Em virtude da quase inexistência de mercado, os
bens tinham apenas valor de uso e a acumulação teria de ser acumulação de valores
de uso (alimentos, vestuário, madeira, etc.) ou assumir formas ‘irracionais’, im­
produtivas, do ponto de vista da sua utilização para aumentar a capacidade de
produção (construção de grandes castelos, de grandes edifícios religiosos, consti­
tuição de grandes tesouros em mosteiros e catedrais). Daqui deriva a ausência de
incentivo ao desenvolvimento das forças produtivas. Daqui deriva também que o
móbil da actividade produtiva, imposto pelo senhor, consistisse na satisfação das
necessidades elementares de consumo do senhor do domínio, dos que viviam na
sua roda e dos que trabalhavam as terras do senhor.

2. A DESAGREGAÇÃO DA SOCIEDADE FEUDAL 51

Caracterizada, em traços gerais, a economia feudal, centrada sobre os domínios


senhoriais, veremos agora como se processou a sua evolução e que factores pode­
rão explicar a sua desagregação c o advento do capitalismo.
E um problema controvertido este da passagem do feudalismo ao capitalismo,
desde logo quanto à questão de saber se deve ou não reconhecer-se autonomia ao

51 Ver: A. HESPANHA, "O Estado absoluto.. cit.; C . CO N TE, Da Crise...,c it


9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

que Sombart chamou sistema de economia artesana e quanto à relevância a atribuir


ao período do chamado capitalismo comercial.
A o contrário de Sombart, Marx e a historiografia marxista não reconhecem
como modo de produção autónomo a economia artesana, i.é, a economia industrial
que se desenvolveu nas cidades em sentido económico, como agregados populaci­
onais cujos habitantes vivam apenas do seu ofício, sem trabalharem a terra.
Este é, também, o nosso ponto de vista. Com efeito, a economia artesana nunca
teve, verdadeiramente, um carácter dominante. Não pode dizer-se que os artesanos
tenham dominado a produção social daquela época: os núcleos urbanos da Idade
Média aparecem como autênticas ilhas no grande mar da economia rural dos domí­
nios senhoriais, cujas relações sociais de produção marcaram a essência da sociedade
medieval. Por outro lado, a verdade é que as cidades se integravam na estrutura
hierárquica da sociedade medieval. Como ensina Pierre Vilar,M as cidades dependi­
am dos senhores. Foram, porém, mais fortes do que as aldeias para discutir com os
seus amos, rebelar-se, obter ou impor ‘cartas de franquia. Colectivamente, manti­
nham-se vinculadas ao sistema feudal, já que reconheciam suseranos e elas próprias
possuíam senhorios. Contudo, no seu território, e sobretudo no recinto amuralhado,
os habitantes eram livres e participavam da organização colectiva.”52
M as também é verdade que não pode negar-se a importância do desenvolvi­
mento da indústria artesana como elemento de desagregação da ordem feudal nem
a importância do desenvolvimento das cidades no processo que levou à criação dos
estados modernos da Europa, quadro dentro do qual surgiu e se desenvolveu o
capitalismo dos primeiros tempos. Trata-se, portanto, de fenómeno que é preciso
ter em conta para se compreender a dialéctica do processo de gestação do capita­
lismo. E importante se apresenta também, do mesmo ponto de vista, o desenvolvi­
mento do comércio e do capital mercantil que a partir de certa altura se verificou
nas economias europeias (ou a partir delas).
M elhor será, porém, tentarmos acompanhar as grandes linhas da evolução do
feudalismo, para vermos como, a partir dele, se gerou o capitalismo.
A evolução do feudalismo veio a traduzir-se na ocorrência de conflitos e difi­
culdades de vária ordem que acabariam por minar as relações de servidão que
constituíam a base da sobrevivência de toda a estrutura feudal. E da interacção
destes conflitos internos com factores externos ao sistema mas que condicionam o seu
desenvolvimento (incremento do comércio e desenvolvimento das cidades) é que
resultou o lento processo de desagregação do feudalismo. Afasta-se assim a expli­

52 Cfr. C PARAIN e outros, ob.ciL, 56.


A v e ià s N u n e s - 9 3

cação simplista e mccanicista do declínio da sociedade feudal exclusivamente a


partir daquelas contradições internas ou exclusivamente como consequência da
acção dos referidos factores externos.
Na verdade, não parece que seja correcta a tese dos autores (Paul Sweezy, v.g.)
que pretendem que a decadência do feudalismo se deve ao facto de o comércio,
acarretando o desenvolvimento das cidades e da economia urbana, ter originado o
aparecimento de um sistema deprodução para troca que, entrando em conflito com o
sistema deproduçãopara uso (com o qual se identificaria o feudalismo), terá causado
a dissolução deste, uma vez que “produção de mercadorias e feudalismo são con­
ceitos que mutuamente se excluem”.
A nosso ver, a busca do que há de essencial num sistema não deve fazer-se ao
nível das relações de troca mas ao nível das relações de produção. O que importa
averiguar, perante uma dada economia, não é a questão de saber se nela se verifica
a produção de mercadorias (valores de troca) e se a moeda é utilizada, mas antes a
questão de saber como são produzidas as mercadorias (qual a forma social de exis­
tência dos produtores directos e o modo social da reprodução da força de traba­
lho) e qual a função que a moeda desempenha.
Vem de muito longe, com efeito, o uso da moeda, mas só em certas circunstân­
cias históricas a moeda passou a funcionar como capital (capital-dinheiro). Por
outro lado, a troca de mercadorias é compatível com a escravatura, com a servidão,
com o trabalho livre de trabalhadores independentes, com o trabalho assalariado.
Os produtos dos latifúndios romanos eram mercadoriasproduzidas por escravos; os
produtos que advinham aos senhores feudais em resultado do trabalho gratuito
prestado em seu benefício pelos servos ou dos tributos que estes pagavam em
espécie eram, em parte, trocados como mercadoriasproduzidas por servos; os produ­
tos trocados pelos pequenos agricultores e artesanos independentes são mercadorias
produzidas por trabalhadores livres e autónomos; os produtos vendidos pelos empre­
sários capitalistas são mercadoriasproduzidas por trabalhadores assalariados.
Em síntese: o que caracteriza o feudalismo são as relações de produção de tipo
servil, segundo as quais os produtores imediatos se encontram ligados à terra que
trabalham e da qual extraem os seus meios de subsistência (os meios de reprodução
daforça de trabalho) e se encontram obrigados a entregar aos senhores (que, sendo
proprietários da terra, não participam na produção) o sobreproduto que lhes garan­
te a existência como classe dominante. E o sobreproduto (trabalho não pago) pode
consistir, como vimos, em dias de trabalho gratuito, em prestações em espccie,
numa renda em dinheiro). O feudalismo parece, pois, indissociável da servidão,
como acima se disse.
9 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

A história ensina-nos, de resto, que o desenvolvimento do comércio e a expan­


são da economia monetária não têm que implicar necessariamente o declínio da
servidão. Com efeito, parece certo que foi nas regiões mais atrasadas da Inglaterra
que a servidão desapareceu mais cedo, ao menos sob a forma de prestação de
trabalho gratuito, permanecendo até mais tarde nas regiões do sudoeste, mais pró­
ximas dos centros comerciais, das artérias pelas quais fluía o dinheiro. Este não é,
afinal, ao contrário do que sustentam os autores que consideram o desenvolvimen­
to do comércio a causa principal da decadência do feudalismo, “o solvente mais
destruidor do poder senhorial”.53
a) As contradições internas: afuga dos servos
O que fica dito não pretende significar que a expansão do comércio e o desen­
volvimento das cidades não tenham desempenhado nenhuma fiinção no processo
de desagregação do feudalismo. A sua influência traduziu-se, porém, no facto de
contribuirem para acentuar as contradições e os conflitos internos do modo de
produção feudal e da correspondente organização social. Ao agravamento destas
contradições (que tornou impossível a manutenção da servidão pessoal) deverá
atribuir-se a maior relevância no conjunto dos factores cuja interacção explica o
declínio do feudalismo.
Com efeito, o que fez ruir o feudalismo foi a sua ineficiência como modo de
produção, perante as necessidades crescentes de rendimento por parte das classes
senhoriais. Já vimos que eram rudimentares as técnicas de produção e os instru­
mentos utilizados no cultivo das terras. A produtividade do trabalho era baixa c
era miserável a condição de vida dos trabalhadores camponeses. Com o os senho­
res feudais viviam do sobreproduto que cobravam da classe servil, o único modo
de aqueles aumentarem os seus proventos era o do aumento do trabalho excedente
exigido dos servos. O teor de vida destes, porém, era já tão baixo que qualquer
exigência suplementar os colocava numa situação intolerável.
O ra a luta pelo domínio da terra provocava guerras frequentes entre os senho­
res feudais, de tal modo que a guerra e o banditismo que lhe andava inerente foram
uma característica marcante da Idade Média. Ao mesmo tempo que a pilhagem e
a destruição arruinavam os camponeses pobres e produziam a morte de muitos
deles, as exigências militares aumentavam as despesas dos senhores feudais, que
por isso careciam de maiores rendimentos.

53No sentido do texto, cfr. M. DO BB, A Evolução.. cit., 39 e E. MANDEL, Traité. .., cit., 1,11 (Vl 17. Poderá também
observar-se que, em outro contexto, o recrudescimento do esclavagismo nos EU A e em certos países da América
Latina (produtores de algodão, café e outros produtos de exportação), bem como a permanência da servidão
na Europa Central e de Leste até praticamente à Revolução de Outubro (1917), são explicáveis exactamente
como resultado da inserção desses produtos no circuito comercial do capitalismo à escala mundial.
A v e iA s N u n e s - 9 5

Por outro lado, a necessidade de fortalecer o poderio militar dos grandes se­
nhores levou à prática corrente do sub-enfeudamento, que aumentou muito o nú­
mero de vassalos, sobretudo na Europa Continental. Assim aumentava o número
dos que não participavam na produção e tinham de ser sustentados pelo sobrepro­
duto exigido à classe servil, dizimada e empobrecida pelas guerras.
O desenvolvimento da cavalaria trouxe consigo a emulação entre as casas da
nobreza, que gastavam fortunas em festins e extravagâncias, os quais constituíam,
juntamente com as guerras, o domínio onde se fazia sentir a ‘concorrência entre os
senhores feudais. Assim se dissipava o excedente social, insusceptível então, dada a
sua natureza não monetária, de ser aforrado com vista à posterior utilização no
desenvolvimento da capacidade produtiva.
Acresce que as Cruzadas constituíram uma ‘empresa’ que exigiu grande dis­
pêndio de rendas feudais e desviou muita gente do trabalho dos campos, embora
viessem a trazer riquezas importantes à Europa, fruto da violência sobre as popu­
lações árabes, vítimas do saque e da pilhagem das suas cidades.
Estes foram alguns dos factores que contribuíram para acentuar as exigências
feitas aos servos, cuja situação se agravou para o final do séc. XIII. Esse agrava­
mento não será alheio, aliás, à diminuição da população que por essa altura se
verificou, provocando a retracção das rendas feudais e abrindo a situação de crise
aguda que caracterizou a economia feudal no séc. XIV, crise acentuada pela ocor­
rência de pestes particularmente destruidoras em virtude da subnutrição das popu­
lações camponesas e da carência de reservas alimentares (a peste negra dizimou
cerca de um terço da população europeia).
As dificuldades da economia feudal e as crescentes exigências dos senhores
(que não podiam subsistir sem as prestações extorquidas aos servos, cada vez mais
pobres e em menor número) tiveram como resultado, nas palavras de Maurice
D obb54, “não só exaurir a galinha que punha os ovos de ouro para o castelo, mas
provocar, em virtude de um total desespero, um movimento de emigração ilegal
das propriedades senhoriais - uma deserção em massa por parte dos produtores,
que viria retirar do sistema o seu sangue vital e provocar a série de crises em que
a economia feudal se veria envolvida nos séculos XIV e X V ”.
Estes ‘emigrantes’, que em parte se acolhiam às cidades então em período de
crescimento, alimentaram também bandos de marginais e vagabundos e estiveram
na base das jaequeries, tão frequentes na Idade Média. Com o à frente se verá, este
movimento de fuga dos servos marca o início do processo que havia de subtrair ao

54 Cfr. M . D O BB, A Evolução.. c i l , 46.


9 6 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o ü t ic a

modo de produção feudal o elemento indispensável à sua sobrevivência - os traba­


lhadores servis.
Em algumas regiões e países legislou-se no sentido de proibir o abandono dos
domínios senhoriais por parte dos servos, mas o movimento não cessou. Apesar
dos acordos celebrados de início entre os senhores no sentido de se ajudarem
mutuamente na captura dos servos fugidos, a carência de mão-de-obra veio pro­
vocar acesa competição entre os senhores feudais para atrair e furtar os servos do
domínio vizinho. Nesta perspectiva, o declínio do feudalismo na Europa Ociden­
tal deveu-se à incapacidade da classe senhorial dominante para conservar o con­
trolo sobre (para explorar) a força de trabalho servil.
b) Factores externos: a expansão do comércio e o desenvolvimento das cidades
É claro que nesta ‘fuga aos campos’ as cidades exerceram a função relativamen­
te importante de centros de atracção das populações servis desejosas de abandonar
os domínios senhoriais e as suas penosas condições de vida. Não obstante, o efeito
especial que tal fuga dos servos teve no desenvolvimento da ordem feudal resulta
do carácter específico da relação que, no seio do feudalismo, ligava os produtores
aos senhores feudais.
Na verdade, este movimento de fuga dos servos decorre paralelamente ao de­
senvolvimento das cidades medievais, por volta dos sécs. XII e XIII. Por um lado,
as cidades ofereciam melhores condições de vida e ofereciam, sobretudo, liberda­
de (“Stadtluft machts frei”, o ar das cidades liberta, dizia-se nas cidades alemãs).
Por outro lado, os próprios burgueses que nelas habitavam, necessitando de mais
trabalhadores e de mais soldados, parece que tudo fizeram para incitar os servos a
abandonar as terras senhoriais.55
Vimos que a actividade económica dominante nos senhorios feudais era a agri­
cultura. M as é certo que o trabalho industrial não estava totalmente ausente, em ­
bora a princípio se tratasse de uma indústria meramente subsidiária e complementar
da agricultura: era com matérias-primas de origem agrícola e nas horas de folga
do trabalho dos campos que os camponeses manufacturavam certos produtos (te­
cidos e vestuário, calçado, alfaias agrícolas, etc.).
O aumento da população que se verificou nos países da Europa até ao séc. XIII
é índice de que a produtividade do trabalho agrícola ia aumentando também. E foi
este facto que permitiu a constituição, dentro dos próprios domínios senhoriais, de
núcleos de indivíduos que se dedicavam exclusivamente ao trabalho industrial,
dele fazendo o seu modo de vida: o rendimento do trabalho agrícola era agora

55 Numa carta a Engels, Marx observa: "passa-se frequentemente algo de bastante patético com o modo como
os burgueses no séc. XII incitaram os camponeses a fugir para a cidade".
A v elà s N un es - 9 7

suficiente para a alimentação de camponeses e ‘industriais’, apesar de estes não


cuidarem de tarefas agrícolas. Com o agravamento das exigências dos senhores e
com a progressiva degradação do teor de vida dos habitantes dos domínios senho­
riais, não admira que estes artesanos (que já viviam sem ter de trabalhara terra)
tenham estado entre os primeiros a fugir às peias institucionais da economia feu­
dal.56 “E quando os trabalhadores industriais abandonam o campo em grande
número e se fixam no burgo ou na civitas - escreve Teixeira Ribeiro57 - , começam
a generalizar-se as cidades em sentido económico, aqueles grupos de pessoas que
vivem apenas do seu ofício ou mester”.
Por outro lado, as economias dos domínios rurais não eram exclusivamente
(embora fossem essencialmente) economias de produção para uso. N o seu seio,
conhecia-se a troca (embora fundamentalmente troca directa de produtos por pro­
dutos), que mais se terá desenvolvido a partir da altura em que, dentro do domínio,
alguns indivíduos passaram a dedicar-se exclusivamente a actividades industriais.
E também não eram economias absolutamente fechadas sobre si mesmas, pois
uma parte do sobreproduto entregue aos senhores era por estes vendida para com­
prar artigos de luxo (os únicos que inicialmente eram objecto de comércio, já
porque a massa dos camponeses não tinha poder de compra, já porque só produtos
caros podiam suportar os custos elevados dos transportes). As cidades funciona­
ram como entrepostos desse comércio a longa distância, que fornecia aos senhores
os bens que o domínio lhes não dava. E não há dúvida de que o desenvolvimento
das cidades acompanhou em regra a sua importância como centros comerciais.58
O comércio (mediterrânico) fora, no período de formação do feudalismo na
Europa Ocidental (do séc. VII ao séc. X), quase inteiramente controlado pelos
árabes (Império de Bagdad, Califado de Córdova). A partir das invasões turcas na
Ásia M enor (séc. XI) e do declínio da civilização muçulmana, o comércio passou
a fazer-se através das cidades italianas, vindo as Cruzadas (séc. XII) confirmar o
seu domínio sobre as rotas mediterrânicas. A partir das cidades italianas, este
comércio de bens de luxo desenvolve-se por toda a Europa, em centros situados ao
longo dos rios e das grandes vias de comunicação. E o comércio estimulou novas
artes, novas técnicas de trabalho industrial, novas forças de produção, factores que

56 A legislação inglesa punia severamente a fuga dos servos ao 'serviço' feudal, havendo mesmo penalidades
contra a aprendizagem de um ofício (actividade artesanal) por parte daqueles que estivessem ligados a um
senhorio (manor), sendo proibido a qualquer homem dono de terra de rendimento anual inferior a £ 20 tornar
um filho aprendiz de um ofício. Cfr. M. D O B B, A Evolução. .., cit., 16, nota 3.
57 Cfr. I. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Polilica, cit., 152.
58 Ver: J. KUCKZYNSKI, Pequena História. .., cit., 171 -195; C . FO U R Q U IN , História Económica. . ., cit., 221 ss. e
239 ss.
9 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

contribuíram para aumentar o poder e a importância das cidades onde se localiza­


va esse artesanato.
Lembremos, porém, que, como Marx sublinha, por alturas do início da “era
capitalista” associada à revolução comercial do séc. XVI, “a abolição da servidão era
um facto consumado desde há muito, e o regime das cidades soberanas, glória da
idade média, estava já em plena decadência”. O factor que verdadeiramente abriu o
caminho à nova classe capitalista que haveria de liderar o processo de afirmação
do modo deprodução capitalista foi “o esbulho das grandes massas camponesas dos
seus meios de produção e de existência tradicionais, oferecidos pela antiga ordem
de coisas”. Foi esta expropriação dos camponeses que os lançou no mercado de traba­
lho, e “a história desta expropriação está escrita nos anais da humanidade em letras
indeléveis de sangue e de fogo”.59
c) Síntese
Procurámos dar conta da história dos factores de cuja complexa interacção
resultaria a destruição do feudalismo. A fuga dos servos não significou apenas
mudança na condição dos que partiam, acelerou também o fim da condição servil
dos que ficavam nos domínios. Sob a pressão das dificuldades, os senhores foram
obrigados a conceder maior liberdade aos servos e a transformar em rendas em
difiheiro as prestações de trabalho directo e as rendas em espécie.
Mas a verdade é que, com a maior liberdade, vinha também a separação dos
produtores directos dos meios de produção. Os servos, ao ganharem o direito de
deixar a terra do seu senhor, perdiam, ao mesmo tempo, o direito de nela perma­

59 Cfr. K. MARX, Le Capital (trad.). Roy), cit., 529.


No capítulo do Livro III de O Capital, dedicado à compreensão histórica do capital mercantil, Marx deixa muito
clara esta ideia: " O desenvolvimento do comércio e do capital mercantil favorece a orientação em geral da
produção no sentido do valor de troca; ele aumenta o seu volume, diversifica-o e internacionaliza-o, transforma
a moeda em moeda universal. O comércio comporta sempre, por isso mesmo, uma acção mais ou menos
dissolvente sobre as organizaçóes existentes da produção que, em toda a diversidade das suas formas, são
principalmente orientadas no sentido do valor de uso. Mas a medida em que ele destrói o antigo sistema de
produção depende em primeiro lugar da solidez e da estrutura interna deste. Não é de modo nenhum do
comércio, mas da natureza do antigo modo de produção que depende o resultado do processo de dissolução,
isto é, o modo de produção novo que substituirá o antigo". "Nâo sofre dúvida - continua Marx - que as grandes
revoluções dos sécs. XVI e XVII que as descobertas geográficas provocaram no comércio, arrastando consigo
o rápido desenvolvimento do capital mercantil, constituerft um factor essencial que acelerou a passagem do
modo de produção feudal ao modo capitalista. (...) A brusca ampliação do comércio mundial, a multiplicação
das mercadorias em circulação, a emulação entre as nações europeias para se tornarem senhoras dos produtos
asiáticos e dos tesouros americanos, o sistema colonial contribuíram em larga medida para fazer saltar os limites
feudais da produção. Entretanto, o modo de produção modemo, no seu primeiro período, o das manufacturas,
desenvolveu-se apenas onde, durante a Idade Média, se criaram condições para isso. Basta comparar o exem­
plo da Holanda com o de Portugal". Quer dizer: o elemento decisivo não está no capital mercantil mas no
desenvolvimento das contradições internas do velho modo de produção. Cfr. K. M ARX, Le Capital, Livro III, t.
I, Éd. Sociales, cit., 340/341.
A v elã s N u n es - 9 9

necer, começando assim a alterar-se a forma social de existência e de reprodução


da força de trabalho típica do feudalismo. Dialecticamente, a emancipação dos
servos foi também, em certo sentido, a emancipação dos proprietários da terra, que
não tinham de respeitar o direito dos servos a permanecer nas suas terras e a nelas
prover à sua subsistência. Tendo agora perante si homens livres não adstritos à
terra, os senhores começaram a poder dispor desta última, recorrendo a contratos
de arrendamento de duração relativamente curta, o que lhes permitia aumentar
periodicamente a respectiva renda.
A renda em dinheiro continua a ser uma renda feudal, i.é, trabalho excedente
obrigatoriamente pago ao senhor, agora sob a forma de dinheiro obtido pela venda
do produto excedente.60 E pode dizer-se que ela representou mesmo uma adaptação
imposta pela necessidade de sobrevivência do sistema. Com efeito, ela foi, muitas
vezes, o único meio de os senhores ‘quebrarem’a revolta dos camponeses, conceden­
do-lhes maior liberdade. Por outro lado, conhecida que era a pouca produtividade
do trabalho obrigatório prestado ao senhor, em comparação com o trabalho efectu­
ado pelos servos nas terras que lhes estavam confiadas, tal prática permitiu aos
senhores beneficiar da maior produtividade do trabalho não compulsório, através do
aumento das rendas no momento da renovação dos contratos de arrendamento.
O pagamento das rendas em dinheiro trouxe consigo, porém, a necessidade de
os camponeses venderem os seus produtos no mercado, assim entrando a econo­
mia fechada dos domínios rurais na roda das relações de comércio. A produção
agrícola para uso (dos produtores e dos senhores feudais) começa a dar lugar a
uma produção para venda. E o desenvolvimento do comércio, melhorando as pos­
sibilidades de venda dos produtos agrícolas nos mercados locais, provocou um
processo de diferenciação social entre os pequenos produtores, levando ao apare­
cimento da Yeomanry, uma classe de camponeses livres (Yeomen) por um lado, e de
um semi-proletariado rural, por outro, lançando assim as bases da divisão tripar­
tida entre os senhores da terra, os rendeiros capitalistas e os jornaleiros sem terra,
característica da agricultura capitalista, especialmente na Inglaterra.61
A exploração agrícola assente no trabalho servil foi substituída pela exploração
feita pelo rendeiro (ligado ainda por vínculos feudais ao dono das terras), que
progressivamente iria recorrendo ao trabalho assalariado dos seus vizinhos mais
pobres. Para estes, ainda não de todo libertos do domínio senhorial, o salário era,
muitas vezes, uma forma suplementar de subsistência, embora não fosse a única.

60 Cfr. H . K. TAKAHASHI, em P. SWEEZY e outros, ob. cil.. 95ss.


61 Cfr. M . D O BB, A evolução..., cit., 60ss.
1 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Assim surgia o embrião de relações capitalistas na agricultura.62


O desenvolvimento do comércio e das actividades artesanais nas cidades teve
ainda a consequência de trazer consigo uma quantidade e uma variedade cada vez
maior de bens, despertando nas classes dominantes o desejo de os adquirir. Aqui
residirá uma outra razão explicativa das crescentes necessidades de rendimentos
monetários por parte da classe dos senhores feudais e das crescentes exigências
que faziam aos camponeses.
O pagamento das rendas em dinheiro, para além de ter permitido o aumento das
rendas, tomou mais fácil o acesso ao mercado e a realização de grandes despesas em
consumos sumptuários e improdutivos, que não poderiam ter outra consequência que
não fosse o empobrecimento da classe dos produtores e, porventura, a acumulação de
valores de uso, perfeitamente inúteis do ponto de vista do desenvolvimento das forças
produtivas. Entretanto, o comércio veio enriquecer os comerciantes das cidades, que
foram acumulando riqueza, “não - como nota Sweezy63- segundo a forma absurda de
amontoar bens perecíveis, mas de forma mais fácil e volúvel em dinheiro e valores.”
Ficam, assim, indicadas as linhas de força da evolução da economia feudal. O
agravamento das suas contradições internas estimulou a fuga dos servos. Esta con­
duziu, por um lado, ao desaparecimento da servidão, forma específica de relações
sociais que assegurava a manutenção do feudalismo como modo de produção e dos
senhores feudais como classe dominante nas condições do feudalismo. E conduziu,
por outro lado, à separação dos produtores da terra a que estavam adstritos, criando
deste modo o embrião de uma classe de trabalhadores livres, que não têm outro meio
de prover à própria subsistência que não seja a venda da sua força de trabalho.
Por outra via, o desenvolvimento do comércio e a expansão e consolidação das
cidades (a “revolução comunal” de que falam alguns autores), além de agravarem
os conflitos internos da sociedade feudal, permitiram a acumulação de capitais que
mais tarde seriam aplicados na produção, mediante a contratação de trabalhadores
assalariados. Quando isto se verifica, estamos perante um novo tipo de relações de
produção, as relações de produção próprias do modo deprodução capitalista.

62 Como escreveu MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 530), “ na Inglaterra a servidão tinha desaparecido de fado
por volta do final do séc. XIV. A imensa maioria da população compunha-se entâo, e mais inteiramente ainda
no séc. XV, de camponeses libres que cultivavam as suas próprias terras, quaisquer que fossem os títulos feudais
com que se encobrisse o seu trtulo de posse. (...) O s assalariados rurais eram em grande parte camponeses - que,
durante o tempo disponível deixado pela cultura dos seus campos, se alugavam ao serviço dos grandes propri­
etários -, em parte uma classe particular e pouco numerosa de jornaleiros. Mesmo estes eram em certa medida
cultivadores por conta própria, pois além do salário fazia-se-lhes concessão de campos de pelo menos quatro
acres, com casa de habitação; além disso, participavam, juntamente com os camponeses propriamente ditos,
no usufruto dos bens comunais*.
63 Cfr. P. SW EEZY e outros, ob. cit., 35.
A v e lã s N u n f s -101
* B IB L IO T E C A 0

A T r a n s iç ã o p a r a o C a p it a l is m o

A ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL 64

Na senda das concepções que alimentaram o movimento religioso da Reforma,


Adam Smith explicou, com base nas qualidades dos homens, a acumulação do
capital que serviu de base ao arranque do capitalismo. À partida, todos têm igual
direito a enriquecer. M as verdade é que uns são trabalhadores (industriosos), fru­
gais (parcimoniosos) e inteligentes, enquanto que outros são indolentes (pregui­
çosos), perdulários e incapazes de gerir bem o dinheiro que ganham. Assim se
explicaria que uns tivessem ficado ricos e outros pobres.65
Perante a concepção smithiana da “previous accumulation”, comenta Marx que
“esta acumulação original desempenha na economia política aproximadamente o
mesmo papel que o pecado original na teologia (...). Num tem po remoto, havia,
de um lado, uma elite diligente, inteligente, e, sobretudo, frugal, e, do outro, uma
escumalha preguiçosa, que dissipava tudo o que tinha e mais (...) E deste pecado
original - conclui Marx 66 - datam a pobreza da grande massa, a qual continua, a
despeito de todo o trabalho, a não ter para vender a não ser a si própria, e a riqueza
de uns poucos, a qual cresce continuamente, embora eles há muito tenham deixa­
do de trabalhar”.
Marx vai recorrer à história para tentar explicar como é que se verificam as
duas condições que tornaram possíveis as relações de produção capitalistas: por
um lado, a acumulação de capitais nas mãos de uma nova classe social; por outro
lado, a separação dos produtores dos meios de produção e a emergência de uma
nova classe social de trabalhadores livres.

64 Sugestões para leitura: Adam SM ITH, Riqueza das Nações, ed. cit., 1,581 ss (Cap. III, Livro III); K. M ARX, O
Capital, vol. XXIV (em MARX/ENCELS, Obras Escolhidas, cit., II, 104-158, e Le Capital(trad. J. Roy), cit., 527-
529 c caps. XXVI a XXXI; R. THOMPSON, ob. c it , III, 963-966; P. VILAR, Desenvolvimento Económico..., cit.,
104-106;J.deV RIES,A ecor> om «...,cit., 185-192 ; 0 . LA N C Eeoutros,P rob lem a s...,cit., 18/19e36ss.
65 Na última categoria de pessoas incluíam-se os trabalhadores: no século XVIII teve muita voga a tese da preguiça
natural das classes trabalhadoras, que, por isso (por 'culpa sua'), eram pobres. Começavam a fazer o caminho
as concepções deterministas que mais tarde vieram a informar as teorias que procuram 'legitimar' o racismo
e que tentaram (e tentam) 'explicar' o subdesenvolvimento como um fenómeno perfeitamente natural, dadas
as características 'naturais' dos povos dos países 'subdesenvolvidos' e das regiões em que habitam.
66 Cfr. O Capital, em MARX/ENGELS, Obras Encolhidas, ed. cit., II, 104/105.
1 0 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

Tentaremos explicar a acumulação de capitais analisando vários acontecimentos


históricos: as Cruzadas, a prática da especulação e da usura, as viagens atlânticas
de portugueses e espanhóis (a mundialização do comércio, a exploração colonial,
a “revolução dos preços”). E pondo em relevo a importância da Reforma.
Para compreender a separação dos produtores dos meios de produção e a emer­
gência do salariato, estudaremos o processo das enclosures como forma mais siste­
mática e radical de expulsar os camponeses pobres (servos ou não) das terras que
cultivavam c nas quais garantiam a sua subsistência, separando-os dos meios de
produção, libertando-os dos vínculos feudais e condenando-os à proletarização (à
condição de “mercenários”, como foram então designados). E estudaremos tam ­
bém o processo de transformação dos produtores artesanos cm operários industri­
ais assalariados: da indústria artesana à indústria assalariada no domicílio; desta às
manufacturas e à maquinofactura capitalista.
A compreensão global deste processo de génese do capitalismo (do capitalis­
mo industrial de base nacional) exige também um olhar sobre a formação dos
estados modernos na Europa c a compreensão da chamada ‘revolução inglesa’ (a
‘revolução agrícola’, a ‘revolução industrial’ e a ‘revolução política’) e da Revolu­
ção Francesa.

1 . A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL
a) As Cruzadas
Foi com as Cruzadas (séc. XII) que se restabeleceram as relações entre o O ci­
dente e o Próximo Oriente, reabrindo a rota do Mediterrâneo, desenvolvendo-se
intenso tráfego comercial, feito através das Repúblicas Italianas e dos Países Bai­
xos para o norte da Europa. Deste comércio de produtos de luxo (especiarias e
produtos do Oriente, tecidos italianos e flamengos) provieram grandes lucros, de
que aproveitaram sobretudo os mercadores italianos (que tinham, aliás, financiado
parcialmente as expedições à Terra Santa) e flamengos, que dominaram - princi­
palmente os primeiros - a vida económica europeia até ao séc. XV. E foram os
lucros deste comércio internacional de bens apenas ao alcance das classes dom i­
nantes que propiciaram - a par das riquezas que à Europa afluíram como resultado
directo das Cruzadas - a primeira grande acumulação de capitais na Europa, capi­
tais que fizeram a fortuna de uma nova classe de comerciantes que assim se apro­
priava de uma parte do sobreproduto agrícola que os camponeses entregavam à
classe dominante dos senhores feudais.
A v elã s N u n e s - 1 0 3

b) O capital usurário e a especulação


Mas foi sobretudo a partir dos sécs. XIV e XV que esta acumulação primitiva de
capital s t acentuou e, com ela, o enriquecimento e o poderio de açambarcadores,
usurários, comerciantes, especuladores e banqueiros.
Com o ainda hoje acontece em economias pré-industriais, a acumulação de
dinheiro provinha então do empréstimo a juros elevados aos camponeses pobres
(para pagarem os impostos, comprarem sementes ou alfaias) e aos grandes senho­
res da nobreza (para manterem o seu teor de vida)67.
Provinha da especulação com os preços dos produtos, perante os frequentes
períodos de penúria. Nestas alturas, os açambarcadores vendiam os cereais e os
produtos alimentares acumulados a quem mais desse, a preços elevadíssimos.
Provinha ainda, lá para finais do séc. XV e séc. XVI, da especulação comercial
propiciada pelo tráfego que, a partir de Lisboa, Cádiz c Sevilha, se estabeleceu com
o Extremo Oriente e com a América. Os primeiros conquistadores e colonos paga­
vam somas fabulosas em ouro e prata (que para eles eram mercadorias baratas), em
troca do azeite, do vinho e dos panos idos da Europa. Foi o período áureo do poderio
da Península Ibérica, a cujas feiras acorriam os mercadores de toda a Europa.
Os comerciantes e banqueiros, que assim absorviam em seu proveito as rendas
dos senhores feudais, não se comportavam antagonicamente em relação à nobreza,
cedo se tendo verificado, em vários países, uma aproximação notória e estratégica
entre a nobreza e a nova burguesia comercial.
c)As viagens atlânticas deportugueses e espanhóis. O comércio mundial. O capital mercantil
Entretanto, ao longo do séc. XV, surgem invenções importantes, com acentua­
da repercussão no desenvolvimento das forças produtivas. Estudos recentes leva­
ram à conclusão de que o número de inventos foi maior no séc. XV do que no séc.
XVIII: funcionou no séc. XV o primeiro alto forno; a utilização da artilharia
impulsionou a metalurgia; a ciência náutica e os feitos que permitiu vieram trazer
novos horizontes no campo científico e revolucionar a concepção do homem e do
mundo, que a invenção da imprensa, como poderoso veículo de difusão do pensa­
mento, viria consolidar. “Pela primeira vez técnicas industriais e técnicas de comu­
nicação equiparam-se com a técnica agrícola. É o começo de um processo que
situará a indústria no primeiro plano do progresso”, como salienta Pierre Vilar.68

67 Foi o tempo de banqueiros famosos, como os Médici, os Fugger, os Welser, o francês Jacques Coeur. Este chegou
a emprestar dinheiro ao rei de França a juros que atingiam por vezes 50% ; calcula-se que a sua fortuna
equivalia, por volta de 1450, a cerca de 22 milhões de francos com o poder de compra de meados do séc. XX
(H. DENIS, História..., c i l, 89).
68 Cfr. Pierre Vilar, em C. PARAIN e outros, ob. cit., 58.
1 0 4 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o i It ic a

Os novos conhecimentos (astronomia, cartografia, estudos dos ventos e marés)


e as novas técnicas utilizados na arte de navegar marcam o início das grandes
expedições marítimas de portugueses e espanhóis. Nos finais do séc. XV, Bartolo-
meu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança (1487); Cristóvão Colombo alcança a
América (1492); Vasco da Gama chega à índia pela rota atíântica (1498); Pedro
Álvares Cabral desembarca em terras de Vera Cruz (1500).
As viagens atlânticas dos povos peninsulares tornaram conhecidas novas terras
e novas gentes, trouxeram novos produtos para a Europa, do mesmo passo que
novos mercados se abriram aos produtos com que a Europa comerciava.
Como escreveria Marx, “o comércio mundial e o mercado mundial abrem, no
séc. XVI, a moderna história da vida do capital”. E foi de tal modo importante a
viragem operada por esta mundialização do comércio, que se fala de “revolução
comercial”, da “mais importante transformação na história da humanidade desde a
revolução metalúrgica”, do “maior boom histórico do capital mercantil”.69
O contacto com novos mundos trouxe novos produtos como objecto de comér­
cio: o açúcar, o chá, o café, o tabaco, o cacau, o milho, as especiarias, os escravos
negros70. Comércio próspero, em breve seria monopolizado por grandes socieda­
des por acções então constituídas: a Oost-Indische Companie, nos Países Baixos; a

69 Cfr. E. M ANOEL, Trailé. ... cif., 1,130 e P. VILAR, ú/f. ob. cit., 64.
70 Não foram, evidentemente, os portugueses que iniciaram o tráfego de escravos, já praticado nas civilizações
africanas; mas o contacto dos navegadores lusos com os povos africanos foi o factor decisivo no desenvolvimen­
to desse comércio, a partir dos sécs. XV e XVI. Logo na primeira viagem dos portugueses às Canárias (1341)
foram feitos cativos, sendo os escravos canários utilizados na colonizaçáo e cultivo do açúcar na Madeira, a par
de escravos mouros, negros e mulatos. Quanto aos escravos africanos, as primeiras exportações por mar des­
tinaram-se 5s plantações de cana de açúcar da Madeira e, depois, de S. Tomé. O s primeiros escravos negros
chegaram a Portugal, vindos da Guiné, em 1441. Deste acontecimento faz Zurara um impressivo relato no cap.
XXV da Crónica dos Feitos de Guiné (ediçáo da Agência Geral do Ultramar, II, 1949, 124-127). M ais tarde
chegaram escravos negros provenientes de Cabo Verde, de Angola e de Moçambique, além de 'japões', 'chins'
e 'índios' (da índia), calculando-se que havia em Lisboa, por volta de 1551, uns 10.000 escravos (num total de
100.000 habitantes), existindo também na capital 12 corretores de escravos, que eram simultaneamente cor­
retores de cavalos, e 60 a 70 mercadores que se dedicavam ao tráfico de escravos. A grande maioria dos
escravos negros saiu de Angola, com destino ao Brasil e às colónias espanholas. Calcula-se que, a partir da
criação da capitania de Angola (1571), tenham saído pelos seus portos, todos os meses, entre 9.000 e 12.000
escravos, sendo estes escravos, "durante séculos, a única mercadoria de tomo que manteve a presença do
comércio português naquelas paragens, poiso marfim, que se lhe segue em importância, ocupou sempre uma
posiçào muito secundária*. Só por Decreto de 1Q/Xll/1836, viria a ser proibida a exportação e a importação de
escravos nas colónias portuguesas ao sul do equador, o que equivale, praticamente, à abolição do tráfico de
escravos em todo o território sob jurisdição portuguesa. Finalmente, em 23/11/1869, foi abolida a escravatura
em todos os domínios portugueses.
As estimativas mais divulgadas apontam no sentido de terem sido exportados, a partir da costa ocidental da
África, até finais do séc. XIX, à roda de 11 milhões de escravos. Se admitirmos que chegava ao destino final, e
morriam cinco na caça aos escravos e durante as viagens (por doença, motim ou inadaptação), o tráfego de
escravos terá imposto ao continente africano uma hemorragia de cerca de 60 milhões de pessoas
Sobre o objecto desta nota, ver J. A NOGUEIRA, ob. cA;V. ALEXANDRE, Origens. .., ciL, 21 ss.; P. R. ALMEIDA, ob.dt.
A v elã s N un es - 1 0 5

East índia Companye a Hudson Bay Companie, na Inglaterra; a Compagnie des Indes
Orientales, na França.
d) A exploração colonial e a \revolução dospreços’
Como consequência imediata das viagens e das conquistas de portugueses e es­
panhóis, afluem à Europa tesouros fabulosos, produto do saque a que foram sujeitos
os povos autóctones, nomeadamente os tesouros dos Incas e dos Maias. Grande
parte dessas riquezas imensas foi gasta em despesas sumptuárias e em aventuras
militares, mas acabou por cair nas mãos dos grandes mercadores e banqueiros da
época, que desde cedo se tomaram poderosos intermediários dos negócios coloniais.
A pirataria e a pilhagem dos navios espanhóis em breve passaram a constituir
importante fonte de réditos da corte de Inglaterra, país que mais tarde (séc. XVIII)
aplicaria na índia os métodos de usurpação violenta que primeiro foram usados
nas Américas e que os holandeses igualmente tinham adoptado no Extremo O ri­
ente (séc. XVII).
A colonização e a exploração sistemática dos territórios colonizados vieram
cm seguida substituir este primeiro período de saque desenfreado. Além de utili­
zarem mão-de-obra escrava, as potências colonizadoras impuseram aos povos in­
dígenas das colónias pesados tributos, pagáveis em dinheiro, que apenas poderiam
obter se trabalhassem para os colonizadores. Com este mesmo objectivo, foram
utilizados outros meios de coerção, como a proibição de os povos colonizados
cultivarem produtos comercializáveis, o confisco das suas terras de cultivo, o en­
cargo cometido aos chefes tradicionais das colónias de enviarem jovens para tra­
balhar nas minas e nas plantações.71
A dureza das condições de trabalho impostas aos povos colonizados (escravos
ou não) foi de tal ordem que populações inteiras foram dizimadas (v.g. os índios
de São Domingos e de Cuba) e outras, destruídas as bases da sua civilização,
foram forçadas a render-se (v.g. as populações do México).
Era muito baixo, nestas condições, o custo de produção do ouro e da prata, que
afluíram à Europa, ao longo do séc. XVI, em grande quantidade. O valor do ouro e
da prata obtidos nas colónias das Américas ficava diminuído em relação ao valor dos
restantes bens, que viram subir os seus preços em termos dos metais usados como
moeda. Os lucros provenientes desta subida de preços devem-se, pois, em primeiro
lugar, à exploração das riquezas mineiras do Novo M undo e do trabalho das suas
populações. De tal forma assim é, que no séc. XVII a acumulação de capital foi
menos intensa, na Europa, do que no séc. XVI, dado que a subida do custo de

71 Cfr. W . A. LEWIS, ob. c/f., 38-39.


106 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

produção do ouro a partir de 1600 provocou a sua revalorização e a baixa dos preços
em ouro dos produtos europeus. Só no séc. XVIII o processo de acumulação de
capitais retomaria o seu ritmo, pois o aumento demográfico veio permitir a reorga­
nização da exploração colonial, o que, a par da descoberta de novas minas no Méxi­
co e no Brasil, provocou uma nova baixa do valor do ouro e da prata.72
Marx referia-se assim, em 1847, a este fenómeno da revolução dospreçosrP
“N o séc. XVI, a quantidade de ouro e prata em circulação na Europa aumentou
cm consequência da descoberta das m inas americanas, mais ricas c mais fáceis
de explorar. O resultado foi que o valor do ouro e da prata dim inuiu em relação
ao dos outros artigos de consumo. O s trabalhadores continuaram a receber o
mesmo dinheiro pela sua força de trabalho. O seu salário m onetário m anteve-
se estável e no entanto o seu salário tinha baixado, pois cm troca da mesma
quantidade de dinheiro recebiam uma quantidade menor de outras m ercadori­
as. Este foi um dos factores que favoreceram o crescim ento do capital, a
ascensão da burguesia no séc. X VI”.

Esta diminuição do poder de compra da m oeda74, paralelamente à acumula­


ção de capitais que propiciou, está, sem dúvida, na base da profunda crise social
que abalou a Europa de então.
A situação das classes sociais, do ponto de vista da riqueza de cada uma, alte-
rou-se consideravelmente em favor da burguesia comerciante e em desfavor da
nobreza rural e das classes trabalhadoras. Vivendo de rendas fixas a longo prazo, a
nobreza vê-se arruinada, na mesma medida cm que a propriedade da terra se
degrada como forma e fonte de riqueza, perdendo assim a posição dominante de
que gozava desde os alvores da civilização. Os comerciantes ricos acabaram por
comprar muitas das terras, adquirindo por vezes os títulos nobiliárquicos inerentes
à propriedade delas.
A verdadeira riqueza, aliás, deixa de consistir na propriedade das terras, para
passar a residir na titularidade dos papéis de crédito. São as acções das sociedades
anónimas; são as letras que, de meros instrumentos de câmbio que inicialmente
foram, se transformam - com a descoberta da técnica do endosso - em instrumen­

72 'Deste modo - conclui P. Vilar (em C. PARAIN e outros, ob. cit., 63) - vemos que a intensidade da acumulação
monetária na Europa, condição para a instalação do capitalismo, dependeu do grau de exploração do traba­
lhador americano. Isto não vale apenas para as minas. O ouro e a prata são mercadorias. O açúcar, o cacau,
o café fxxJem provocar fenómenos análogos. A acumulação primitiva do capital europeu dependeu tanto do
escravo cubano como do mineiro dos Andes".
73 Ver K. M ARX, Le CapitaHuad. |. Roy), cit., 89.
74 Calcula-se que foi de 80% a redução do poder de compra na França, entre 1462 e 1602. Na Inglaterra, entre
1500 e 1602, o índice de preços passou de 95 para 243, enquanto o índice dos salários subiu apenas de 95 para
124 (cfr. H. D EN IS,H istó ria ...,cit., 9 2 e E . MANDEL, Traité...,cit.,1 ,131).
A v e iâ s N u n e s - 1 0 7

tos poderosos de mobilização da riqueza; são os títulos representativos de hipoteca


(nos quais o devedor reconhece a dívida e oferece certos imóveis como garantia de
pagamento), que facilitam a circulação dos créditos. Desmaterializando-se, a ri­
queza torna-se mais facilmente mobilizável e o comércio ganha novas possibilida­
des de desenvolvimento.
As classes trabalhadoras, dos campos e do artesanato, sofrendo duramente a
diminuição do poder de compra da moeda, viram ainda a sua situação dificultada
em virtude da intervenção dos poderes públicos, preceituando certas regras de
fixação dos salários ou negando o direito de coalição e de associação.75

2. A PROLETARIZAÇÃO DOS CAMPONESES POBRES: AS


ENCLOSURES E A 'REVOLUÇÃO AGRÍCO LA'

A sorte das massas camponesas, ligadas à terra que cultivavam em virtude de


direitos feudais que limitavam a propriedade dos senhores, havia de sofrer profun­
damente as consequências do afluxo de capitais à agricultura.
Um pouco por toda a parte, na França e em Castela, os campos são ocupados
com rebanhos de gado lanígero, para aproveitar da subida do preço da lã, resultan­
te do desenvolvimento da manufactura de panos, impulsionado pelas novas dimen­
sões que o comércio adquirira. Foi uma primeira especialização na agricultura, de
sentido e efeitos favoráveis ao capitalismo: produção para o grande comércio,
êxodo rural e afluxo de mão-de-obra às cidades, proletarização dos camponeses.
“Em todos os países da Europa ocidental se produziu o mesmo movimento -
escreve Marx 76 - embora varie a sua cor local ou se encerre num círculo mais
estreito, ou apresente um carácter menos pronunciado ou siga uma ordem de su­
cessão diferente”.

75 Recorde-se o remoto Stalute o f Labourcrs (promulgado na Inglaterra sob Eduardo III, em 1349), no qual, a
pretexto da diminuição acentuada dos trabalhadores cm consequência da peste, se fixava um horário de doze
horas de trabalho por dia e se proibia que os salários ultrapassassem um máximo determinado, mas não se
previa qualquer salário mínimo. Na França, ficaram célebres as Ordonnances de VillersCotterêts (1539), que
tiveram paralelo na Inglaterra em uma disposição de 1630. As referidas Ordonnances, cujos princípios foram
passando para sucessivas disposiçAes legais, até à Lei Le Chapelier (1791), proibiam "a todos os mestres, aos
companheiros e serviçais de todos os mestres realizar qualquer congregação ou assembleia, grande ou peque*
na, seja para que assunto for, fazer qualquer monopólioe ter ou tomar qualquer combinação uns com os outros
por causa da sua profissão, sob pena de confisco de corpo e bens”. Na Inglalerra, de resto, desde o séc. XIV que
as coaliçâcs de trabalhadores eram consideradas entre os crimes mais graves (e assim se mantiveram as coisas
até 1824/ 1825, com a promulgação das leis que vieram autorizar a constituição de sindicatos e o recurso á
greve).
76 Ver K. M ARX, Le Capital(trad. J. Roy), 529.
1 0 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Mas foi na Inglaterra que o movimento das enclosures encontrou a sua mais
clara expressão e só aí (no séc. XVIII) o processo se radicalizou. As terras caem
nas mãos da burguesia rica, interessada em tirar delas produtos que pudesse co­
merciar. O desenvolvimento da indústria de panos na Flandres garantia mercado
para a lã, a preços compensadores: não tardou, por isso, que a Inglaterra se trans­
formasse num país “onde os cordeiros comem os homens” (Thomas M orus).77
Em consequência da Guerra das Duas Rosas (a rosa branca da Casa de York e a
rosa vermelha da Casa de Lancaster), entre 1455 e 1485, verificou-se o aniquila­
mento das antigas casas feudais e o início da monarquia absoluta dosTudor. A nova
nobreza que emergiu da guerra compreendeu que a riqueza era agora a fonte do
prestígio e do poder. E tratou de se lançar também na constituição de unidades
agrícolas de grande dimensão, reunindo parcelas até aí dispersas por vários pequenos
camponeses, transformando as terras de cultura em terras de pastagens para criação
de ovinos (a literatura da época fala de quintas de capital ou quintas de comerciantes).
Ao mesmo tempo, os grandes proprietários de terras começaram a apropriar-se
das terras comunais, cercando-as para nelas fazerem pastar os seus rebanhos. Assim se
iniciava a prática conhecida por enclosures, que haveria de revigorar-se mais tarde e
que tão importante foi na evolução da economia inglesa para o capitalismo.
Uma lei de Henrique VII (1498) ainda veio proibir a demolição das casas de
camponeses que agricultassem pelo menos 20 acres de terra, proibição renovada
com Henrique VIII, que ordenou mesmo a reconstrução de casas de camponeses
destruídas e fixou a proporção entre terras de pastagem e terras de trigo. Proibi­
ções platónicas, pois o processo não cessou.
A criação de gado dispensava grande número de trabalhadores (depopulatingpastu-
re) e implicava a diminuição da área disponível para a produção de alimentos (além de
que as terras mais férteis eram destinadas a pastagens). A ocupação das terras comunais
(depopulating enclosures) impedia que os camponeses continuassem a usá-las para nelas
apascentarem o gado e para delas extraírem madeira para aquecimento e para a cons­
trução. A Reforma e a extinção dos conventos traduziram-se na expropriação dos bens
da Igreja Católica, a maior proprietária feudal de Inglaterra. Grande número de cam­
poneses foram assim separados das terras e ficaram sem trabalho, o mesmo acontecen­
do a muitos agricultores independentes (Yeomen), afastados da posse das terras.
Assim se formam grandes massas de ‘mendigos’ e ‘vagabundos’ (desemprega­
dos), abandonados à maior miséria, sem possibilidades de proverem à sua subsis­
tência a não ser que encontrassem trabalho como assalariados, o que não era fácil,

77 Em 1533, um texto oficial referiahaver proprietários que possuíam 24.000carneiros (cfr.K. MARX, uh. ob.cH.,532).
A v elã s N un es - 1 0 9

dada a abundância de mão-de-obra desocupada. Assim se inicia um longo período


de perseguições que se abateram sobre esses desgraçados, às quais se refere T ho-
mas M orus na Utopia (1516). Esses‘vagabundos’, forçados a mendigar e a roubar,
podiam sofrer castigos corporais, ser reduzidos a escravos de quem os denunciasse,
ou mesmo ser executados.78 Em 1551 instituem-se as famosas Workhouses, insti­
tuições onde se recolhem os ‘vagabundos’ (que assim perdem a sua liberdade), que
depois são forçados a trabalhar.79
Entretanto, tinham-se descoberto novas técnicas de cultivo das terras, que vie­
ram favorecer a grande propriedade fundiária. Trata-se da substituição da prática
do pousio e do afolhamento trienal pela cultura periódica de luzerna e outras
plantas forraginosas, com aptidões para renovar a produtividade das terras. O riun­
das da Flandres e da Lombardia, as novas técnicas agrícolas acabaram por se
espalhar pelos outros países, incluindo a Inglaterra. O sobreproduto agrícola au­
menta enormemente e os proprietários, para poderem aproveitar os ganhos da
maior produtividade conseguida, modificam o sistema de arrendamento, transfor­
mando o antigo arrendamento cnfitêutico (em geral por noventa e nove anos) por
arrendamentos a prazo mais ou menos curto, no máximo nove anos (tenance at
will). Assim era possível aumentar periodicamente as rendas, processo que viria a
contribuir para a liquidação dos pequenos camponeses independentes (Yeomen)
que entretanto tinham surgido e, em alguns casos, prosperado.
Justifica-se que aqui chamemos a atenção para a importância decisiva da ‘revo­
lução agrícola’ e do excedente agrícola na criação das condições que tornaram
possível o processo contínuo de desenvolvimento económico, técnico e científico
que caracteriza o mundo moderno, depois da revolução industrial inglesa.
Tendo sido a Inglaterra o país que primeiro conheceu a industrialização em
moldes capitalistas, foi também na Inglaterra que a ‘revolução agrícola’ assumiu
maior importância, podendo talvez considerá-la como ‘modelo’, caracterizado es­
sencialmente pelos seguintes elementos: 1) supressão progressiva do pousio, subs-

78 Só no reinado de Henrique VIII teriam sido executados 72 000 (cír. K. M ARX, Le Capital, trad. J. Roy, cit., 544).
Também na França, no último terço do séc. XVIII, a mendicidade atingiu proporções consideráveis, verifican-
do-se o afluxo às cidades das massas de indivíduos que o campo, saturado, nào podia albergar. Considerada a
'mendicidade' um delito punido pelo estado, propunham alguns que esses 'mendigos' fossem enviados para as
galés por toda a vida, enquanto outros propunham que se desenvolvessem as manufacturas para absorver a
força de trabalho dos 'vagabundos' (produzir era resolver os problemas). Esses 'vagabundos' do séc. XVIII esti­
veram na base do proletariado moderno. Como nota M. PERROT, ob. cit., 74, "ces errants se sont fixés, ces
insolents se sont combés, ces indolents se sons hâtés, ces braillards se sont tus. Ils ont gagné du pain et perdu la
route'.
79 Acerca da atitude adoptada, na filosofia e na prática social e política, relativamente a estes 'vagabundos', cfr. R.
SOARES, ob. cit., 60-62.
1 1 0 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

tituído por um sistema de rotação contínua das culturas; 2) introdução ou extensão


de culturas novas; 3) melhoramento dos utensílios tradicionais e introdução de
novos instrumentos; 4) selecção das sementes e dos reprodutores animais; 5) ex­
tensão e melhoramento das terras aráveis; 6) extensão do uso dos cavalos nos
trabalhos agrícolas.
No espaço de 40 a 60 anos, o aumento da produtividade na agricultura inglesa
veio permitir que o excedente agrícola passasse de cerca de 25% para algo acima
dos 50%. Ultrapassado assim o risco de fome em consequência de más colheitas, a
revolução agrícola veio romper o ‘engarrafamento’que tal risco constituía, tornando
possível a aventura da industrialização.
Tomando o exemplo da Inglaterra, onde o início da revolução industrial costu­
ma situar-se à volta de 1760, Paul Bairoch põe em relevo o acordo dos autores
quanto à anterioridade da revolução agrícola (primeiros anos do séc. XVIII), an­
terioridade que se verificaria em todos os países que depois se industrializaram.80
E sintetiza deste modo a importância da revolução agrícola no desencadear do
processo de industrialização: “Assim, a agricultura não só libertou os recursos
alimentares e os operários necessários a esta vasta aventura que foi a revolução
industrial, não só permitiu ou mesmo provavelmente provocou a revolução demo­
gráfica e suscitou o nascimento das indústrias têxteis e siderúrgicas modernas, mas
forneceu igualmente, nas primeiras fases, uma fracção dominante dos capitais e
dos empresários que animaram os sectores motores desta revolução”.81
Convergentes com estas foram as consequências do recrudescimento da prática
das enclosures. Agora, a ocupação e a vedação das terras comunais passa a ser
autorizada por lei do Parlamento (Billfo r enclosures o f commons, 1730): “no século
XVIII - vejam o progresso!- a própria lei torna-se instrumento de espoliação, o
que não impediu, de resto - ensina M arx 82 -, que os grandes proprietários tives­
sem recorrido também a pequenas práticas particulares, extra-legais”.

80 Sobre esta problemática, cír. R. LÓPEZ-SUEVOS, O excedente. . ., cit., 157ss. Colocando-se na perspectiva de
quem pretende traçar uma estratégia de desenvolvimento para os actuais países subdesenvolvidos, Paul Baran
sustenta que, tal como no séc. XVIII, só a industrialização pode permitir uma 'revolução tecnológica' na agri­
cultura e o aumento da produtividade deste sector. É certo. Mas o que se pretende dizer no texto é que a
industrialização só pode ser levada a cabo autonomamente (soberanamente) com base no excedente
mobilizável a partir da agricultura, o que implica uma 'revolução agrícola' que modifique, desde logo e para
além de outros factores, as estruturas da propriedade da terra. Cfr. P. BARAN, A Economia. . ., cit., 359ss.
81 Cfr. P. BAIRO CH , Le Tiers-Monde. .., cit., 19ss. Marx sublinha que 'n o final do século XVI a Inglaterra possuía
uma classe de rendeiros capitalistas muito rica para a época', enriquecida à custa dos trabalhadores assala­
riados e dos proprietários rurais, uma vez que, por essa altura, os contratos de arrendamento de terras eram
ainda celebrados por um perfodo de 99 anos, correndo contra os proprietários a desvalorização das rendas
pagas em dinheiro. Cfr. Le CapitaUtrad.). Roy), ciL, 551.
82 Cfr. Le Capital (trad. de J. Roy), cit., 535.
A v elã s N u n es - 1 1 1

E a prática das enclosures mostrou então em larga escala os seus efeitos: 1)


reduziu as terras de cultivo; 2) privou os camponeses pobres dos meios de subsis­
tência; 3) favoreceu o desenvolvimento da grande propriedade; 4) provocou a
subida dos preços dos produtos alimentares; S) conduziu ao despovoamento dos
campos; 6) transformou os pequenos proprietários e rendeiros em jornaleiros, em
“vendedores de si próprios”, em “mercenários”.83
Estes efeitos foram de tal forma claros que, segundo a generalidade dos autores,
por meados do séc. XVIII a Yeomanry tinha sido liquidada na Inglaterra, dando o lugar
a grandes agricultores capitalistas que passam a recorrer à mão-de-obra assalariada.84

3. A PROLETARIZAÇÃO DOS TRABALHADORES DA INDÚSTRIA: DA


' in d ú s t r i a a rtesa n a ' À INDÚSTRIA CAPITALISTA 85

a) A indústria artesana
Vimos como, a partir dos sécs. XII e XIII, se desenvolveram na Europa as
cidades em sentido económico. A actividade industrial levada a cabo pelos habi-

83 Assim escreveu, em meados do séc. XVIII, o célebre Dr. Price (citado por MARX, ú ll ob. cit., 537): 'O s próprios
escritores que defendem as enclosures convém em que elas reduzem as culturas, fazem subir os preços das
subsistências e conduzem ao despovoamento. (...) E, mesmo quando se trata de terras incultas, a operação, tal
como se pratica hoje, retira aos pobres uma parte dos seus meios de subsistência e acelera o desenvolvimento
de quintas que já sâo demasiado grandes. (...) Quando a terra cai na máo de grandes agricultores, os pequenos
rendeiros Ique noutro lugar - esclarece Marx - tinha designado como pequenos proprietários e tenentes
(tenjnts - possuidores da terra) que vivem, eles e as suas famílias, do produto da terra que cultivam, dos carneiros,
das aves, dos porcos, etc., que póem a pastar nas terras comunaisl serào transformados em outras tantas pessoas
forçadas a ganhar a sua subsistência trabalhando para outrem e comprando no mercado o que lhes é neces­
sário. Trabalhar-se-á mais talvez, porque a pressáo das necessidades é maior (...) As cidades e as manufacturas
crescerão porque a í se apanharão mais pessoas cm busca de emprego. É neste sentido que a concentraçáo das
quintas opera espontaneamente e assim vem operando neste reino desde há bastantes anos. (...) Os pequenos
proprietários e rendeiros foram reduzidos à condiçáo de jornaleiros e mercenários, ao mesmo tempo que se
lhes tornou mais difícil ganhar a vida nesta condiçáo.'
84 Fenómeno análogo verificou-se nas Highlands da Escócia, mais para o final do séc. XVIII: os povos a í fixados, que
viviam da agricultura, sâo expulsos para as terras - pouco férteis - junto ao mar, proibindo-se-lhes a emigração para
o estrangeiro, a fim de os obrigar a afluir a Glasgow e a outros centros manufactureiros. Movimentos idênticos de
ocupação das terras comunais ocorreram, embora com atraso no tempo em relação à Inglaterra, na generalida­
de dos países da Europa, sendo de referir a França (sobretudo a partir de 1789), a Alemanha e a Bélgica. Na
Espanha, pode referir-se a Real Pragmática de 1793 sobre distribuição de terras comunais e a lei de desamortização
de 1855, que permitiu que fossem postos à venda os bens comunais dos povos (cfr. J. V. VIVES, ob. cit., 576ss.).
Alain Touraine refere práticas idênticas na América Latina, no início da industrialização. Para salvaguardar o
seu nível de vida, nas condições resultantes do desenvolvimento da economia industrial, os grandes proprietá­
rios do Perú apropriaram-se pela violência das terras dos comuneros e cercaram-nas, provocando a desagre­
gação das comunidades camponesas. Cfr. 'L a marginalidad urbana", em Revista Mexicana d e Sociologia,
vol. XXXIX, n®4, Dez/l 977,1.123.
85 Sobre este ponto, cfr. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 153-161 e 178-185 e E. M ANDEL, Traité...,
cit., 1,136ss.
1 1 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

tantes das cidades realizava-se em pequenas oficinas cuja propriedade, bem como
a propriedade dos instrumentos de trabalho, pertencia ao próprio artesano que
nelas trabalhava com os familiares ou com um número reduzido de companheiros
e aprendizes, considerados como se fossem pessoas de família.
Tratando-se de pequenos produtores autónomos, que viviam dos rendimentos do
seu trabalho, realizados pela venda - que eles próprias faziam, sem intermediários -
dos produtos que manufacturavam, não havia nas ‘cidades corporativas’ diferenças
sociais relevantes: no fim da aprendizagem, os companheiros ascenderiam à catego­
ria de mestres e ninguém auferia rendimentos que não proviessem do trabalho pró­
prio, desenvolvido com vista à satisfação das necessidades do agregado familiar.
O artesano produzia muitas vezes por encomenda ou então para os mercados
locais. De qualquer modo, tinha em vista um quadro de consumidores sensivel­
mente estável, até porque a população se manteve mais ou menos estacionária em
boa parte da Idade M édia (deficientes condições higiénicas nas cidades, epidemi­
as, guerras e fomes serão as principais razões explicativas do fenómeno).
Perante a ausência de estímulos ao aumento da produção, não admira, pois, que a
técnica utilizada fosse em geral rudimentar e pouco progressiva. As necessidades de
defesa perante a exiguidade do mercado levaram os artesanos a agruparem-se em
corporações de artes e ofícios e a fazer das corporações o elemento básico da força e da
autonomia das suas cidades. Dentro das cidades, as próprias corporações foram leva­
das a adoptar um comportamento de tipo monopolístico, tornando cada vez mais
difíceis as condições de acesso à condição de mestre. O aumento do número de
artesanos, perante a rigidez do mercado, haveria mesmo de conduzir a acesa concor­
rência entre as cidades, que adoptaram rigorosas medidas proteccionistas.
b) A indústria assalariada no domicílio
Entretanto, como vimos, o comércio desenvolveu-se por toda a Europa. E a cons­
tituição dos estados modernos, por volta do séc. XVI, viria alterar a situação das cida­
des e dos seus artesanos. Para poderem exercer a sua autoridade em todo o território
nacional, e assim derrubarem as últimas manifestações de autoridade dos senhores
feudais, os reis promoveram a abertura de pontes e estradas que facilitassem as comu­
nicações. As relações entre as cidades tomaram-se mais fáceis e frequentes.
E este alargamento da zona de trocas, a expansão do mercado e o distancia­
mento dos consumidores iriam trazer novos problemas aos pequenos produtores
artesanos. Por um lado, para trabalharem na sua oficina não podiam deslocar-se às
feiras e mercados, cada vez mais distantes; por outro lado, dilatava-se o período de
tempo entre o início da produção e o momento da venda; finalmente, era necessá­
rio produzir em mais larga escala e era necessário suportar as elevadas e crescentes
desesas de transporte. E os artesanos não tinham capitais para financiar tudo isto.
A v elã s N u n es - 1 1 3

Daí que, a certa altura, os artesanos passassem a vender os seus produtos, não
directamente aos consumidores, mas a um intermediário - o comerciante. Este é
que fica em contacto com o mercado, conhece as necessidades e o poder de com­
pra. Não tarda que o artesano passe a produzir, não para o mercado, mas para o
comerciante que lhe encomenda a produção. Quando isto acontece, o pequeno
produtor perde o controlo do produto do seu trabalho, embora continue a dispor dos
meios de produção.
M as as necessidades de capital acentuar-se-ão com o progressivo desenvolvi­
mento do comércio e a ampliação dos mercados (a população aumenta e a melho­
ria da rede de comunicações abre novos mercados). O comerciante passará a fornecer
ele próprio ao artesano as matérias-primas e os instrumentos de produção neces­
sários para produzir as quantidades correspondentes à procura acrescida.
Quando isto se verifica, o artesano acaba de perder a sua independência como
produtor, pois passa a não dispor dos meios deprodução', labora matérias-primas que
outrem lhe fornece com instrumentos de produção que não são seus; passa a ter
um ‘patrão’ (o dono dos meios de produção) a quem entrega as mercadorias pro­
duzidas, mediante uma remuneração em dinheiro que é, de facto (não de direito),
o seu ‘salário’. O produtor artesano continua, juridicamente, a vender os produtos
que fabrica ao comerciante. M as o comerciante-patrão deduz ao preço a impor­
tância que cobra pelo adiantamento dos instrumentos de trabalho e das matérias-
primas, não restando para o trabalhador artesano mais do que a remuneração da
sua força de trabalho (o seu ‘salário’). O produtor autónomo deu lugar ao ‘assalari­
ado’, que continua a trabalhar no seu domicílio para um ‘patrão’ que tem vários
outros ‘assalariados’, dispersos, a produzir por sua conta. Começa assim a penetra­
ção do capital na produção. Fala-se de indústria assalariada no domicilio.
Por outro lado, esta indústria assalariada no domicílio começou a surgir fora
das antigas cidades corporativas, pois os comerciantes, para fugirem à complexa
regulamentação das corporações e aos ‘salários’ relativamente elevados cobrados
pelos mestres artesanos, começaram a encomendar os produtos a artífices que
viviam nos campos, aos quais forneciam as matérias-primas e os meios de produ­
ção. Estes artesanos trabalhavam também no próprio domicílio a troco de um
salário. Esta forma de actividade industrial - que terá começado a espalhar-se a
partir do séc. XV na Bélgica, na Itália, na França e na G rã-Bretanha, sobretudo
nas indústrias de panos e na tapeçaria - evoluiu muito lentamente e só no séc.
XVIII se generalizou a situação de os produtores não disporem dos meios de
produção, que pertenciam agora ao capitalista.
A separação dos produtores dos seus meios de produção realizou-se, porém,
mais cedo nas actividades mineira e metalúrgica, em que são mais caros os meios
1 1 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

dc produção. Nalguns casos, por volta de finais do séc. XVI, as mais importantes
dessas actividades eram já desenvolvidas com mão-de-obra assalariada concentra­
da num mesmo local de trabalho, efectuando-se a produção em termos semelhan­
tes aos da manufactura que mais tarde surgiria na indústria transformadora.
Com o Marx observou, a emergência do modo de produção capitalista a partir
do modo de produção feudal pode efectuar-se de dois m odos:86
1) “O produtor torna-se comerciante e capitalista, em oposição à economia
agrícola natural e ao artesanato corporativo da indústria urbana medieval. Esta é a
via verdadeiramente revolucionária”.
2) “O comerciante adquire directamente a produção. Esta última via desem­
penha historicamente um papel de transição, mas, verdadeiramente, ela não chega
a revolucionar o antigo modo de produção, que conserva como a sua base” (...),
“continuando os artesanos o seu trabalho nas velhas condições”. (...) “Sem sub­
verter o velho modo de produção, ela limita-se a agravar a situação dos produtores
directos, transformando-os em simples assalariados e proletários em condições
ainda mais desfavoráveis do que as dos operários submetidos directamente ao ca­
pital, e apropriando-se do sobretrabalho deles na base do antigo modo de produ­
ção”. Esta última via corresponde à indústria assalariada no domicilio.
c) As manufacturas
A iniciativa da produção por parte dos próprios capitalistas, fora do âmbito das
antigas indústrias corporativas, haveria de verificar-se, porém, sobretudo a partir
do aparecimento das manufacturas. No séc. XVIII, com efeito, começou a desen­
volver-se uma nova forma de organização da actividade produtiva, que antecipa e
cria as bases para as grandes fábricas modernas: a manufactura.
Com Ernest Mandei, poderemos dizer que “a manufactura é a reunião, debaixo
do mesmo tecto, de operários que trabalham com meios de produção que lhes são
fornecidos e com matérias-primas que lhes são entregues. Mas, em vez dc serem
pagos pelo valor total do produto acabado, do qual se deduz o preço da matéria-
prima adiantada e o preço da locação dos instrumentos de trabalho, como aconte­
ceu na indústria no domicílio, a ficção da venda do produto acabado ao empresário
é abandonada. Ao operário cabe apenas aquilo que, de facto, ele já ganhava no
sistema da indústria assalariada no domicílio: um simples salário”.87
E as manufacturas depressa se desenvolveram e se sobrepuseram à indústria no
domicílio, dadas as vantagens por elas oferecidas aos novos industriais capitalistas:

86 Cfr. Le Capital, Éd. Sociales, cit., Livro III, 1.1,342/343.


87 Crf. E. MAN DEL, Traité..., c it , 1,142-142.
A v elã s N u n es - 1 1 5

1) cm primeiro lugar, suprimiram os intermediários que o anterior sistema


exigia, para a distribuição das matérias-primas e a recolha dos produtos acabados;
2) em segundo lugar, reduziram os custos de produção, ao permitirem o con­
trolo directo do patrão relativamente ao uso das matérias-primas e dos instrumen­
tos de produção, evitando ‘fugas’e desperdícios;
3) por último - e principalmente trouxeram consigo elevados ganhos de
produtividade em virtude da especialização interna e da sujeição dos trabalhadores a
um ritmo de trabalho e a um horário de trabalho impostos pelo empresário.
O advento da indústria artesana marcara um relativo progresso em relação às
economias dos domínios senhoriais, pois tornara possível a especialização em pro­
dutores agrícolas e produtores industriais e, nas cidades, a especialização dos arte-
sanos, cada um em seu ofício (especialização externa). Cada artesano efectuava,
porém, todas as operações atinentes ao processo produtivo dos bens que confecci­
onava: não havia, pois, especialização no interior de cada ofício ou mester (condi­
ções que não se alteraram com a indústria assalariada no domicílio).
Com as manufacturas surgiu a empresa como organizaçãoprodutiva. Ao concen­
trar os trabalhadores no mesmo local de trabalho, esta forma de organização da
produção permitiu a subdivisão do processo produtivo de cada produto numa série
dc operações parcelares, encarregando-se cada operário de apenas uma destas ope­
rações, tarefa que em breve realizará quase automaticamente, com grande rapidez e
perfeição, sem ter que perder tempo em deslocações dentro da própria oficina e na
adaptação a cada uma das várias tarefas. Esta especialização interna veio, sem dúvida,
aumentar o “poder produtivo do trabalho”, na expressão de Adam Smith.
Mas esta subdivisão do processo produtivo de cada bem em um grande número
de operações parcelares vem tom ar cada uma destas operações muito simples,
podendo ser perfeitamente realizada por trabalhadores sem qualquer qualificação.
E esta foi outra vantagem da manufactura para os empresários: permitiu a utiliza­
ção de mão-de-obra não qualificada, a mão-de-obra barata das mulheres e das
crianças e até de pessoas com deficiências mentais. E isto proporcionou uma redu­
ção substancial dos custos dc produção, uma vez que, durante o período das manu­
facturas, o trabalho manual continuou a predominar na actividade industrial,
constituindo os salários a maior parte das despesas totais da indústria.
Na óptica dos trabalhadores da indústria, os velhos artesanos perderam o que
lhes restava da sua autonomia: passaram a trabalhar fora da sua casa ou da sua
oficina; ficaram sujeitos a um horário de trabalho fixado pelo patrão; perderam o
controlo do processo técnico de produção (a especialização interna, assente na frag­
mentação do processo de produção, veio desvalorizar o monopólio do conhecimento
dos antigos mestres artesãos); passaram a ter de se sujeitar ao poder de direcção do
1 1 6 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a

dono da empresa. O produtor autónomo da indústria urbana medieval transformou-se


em ‘mercenário’, em trabalhador assalariado, vendendo a sua força de trabalho em
troca de um salário. A propriedade capitalista e as relações deprodução capitalistas (as­
sentes na relação entre o empregador capitalista e o trabalhador assalariado excluído
do acesso directo aos meios de produção) penetram assim na indústria.
As manufacturas resultaram em alguns casos do processo de transformação da
antiga indústria artesana. M as surgiram principalmente com a criação de novas
indústrias, já sob a forma capitalista.
As classes burguesas tinham, entretanto, ocupado posições de maior destaque
nos países mais avançados e o seu poderio económico foi-lhes propiciando um
crescente poder político. Não admira, por isso, que o estado se tenha empenhado
em incentivar e proteger a criação e o desenvolvimento das novas manufacturas
capitalistas. Umas vezes, o estado criava manufacturas que administrava directa­
mente: as manufacturas reais\ outras vezes, o estado fomentava a constituição de
manufacturas privadas às quais concedia privilégios monopolistas: as manufacturas
privilegiadas. Foi esta, como se sabe, a política desenvolvida por Colbert na França,
pelos Stuarts na Inglaterra e, em Potugal, pelo Marquês de Pombal.88
O apoio do estado às indiistrias nacionais foi, aliás, um factor importantíssimo no
arranque da indústria capitalista:
“O s diferentes m étodos de acumulação primitiva que a era capitalista criou -
escreve M arx,89 - distribuem -se em primeiro lugar, por ordem mais ou menos
cronológica, por Portugal, Espanha, H olanda, França e Inglaterra, até que esta
os combina todos, no últim o terço do séc. XVII, num conjunto sistemático que
abrange sim ultaneam ente o regime colonial, o crédito público, a finança m o­
derna c o sistema proteccionista. A lguns destes m étodos assentam no emprego
da força bruta, mas todos sem excepção exploram o poder do estado, a força
concentrada c organizada da sociedade, a fim de precipitar violentam ente a
passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista c abrevi­
ar as fases de transição. E, com efeito, a Força é a parteira de toda a velha
sociedade em trabalho de parto. A Força e um agente económico”.

88 Prosseguindo a política de 'industrialização' iniciada por D . Luís da Cunha (Conde da Ericeira) no tempo de D.
João V, o Marquês de Pombal criou a Junta do Comércio e, em colaboração com a Direcção da Real Fábrica
das Sedas, promoveu a criação de manufacturas do estado, instaladas nas Amoreiras em regime experimental;
apoiou a criação de manufacturas privadas, concedendo-lhes crédito através da Junta de Comércio, conferin-
do-lhes estatuto de monopólio e privilégios vários, designadamente fomentando a formação de técnicos capa­
zes, para o que mandou vir especialistas estrangeiros (holandeses, franceses, italianos e ingleses) que ensinavam
nos estabelecimentos das Amoreiras, a que o Marquês chamava Real Colégio das Manufacturas. Acerca
deste período da história económica portuguesa, ver J. BARBOSA, o b .c i t A. CASTRO , ob.cit. (estudos onde
poderá colher-se indicação de outra bibliografia) e J. 8. M ACEDO, ob.cit.
89 Cfr. O Capital. Cap. XXIV, em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 145.
A v e i As N u n e s - 1 1 7

O estado concedeu especial protecção aos novos centros (fora das ‘cidades cor­
porativas) onde se instalavam as manufacturas capitalistas, desejosas de se desenvol­
verem, livres das restrições impostas pela organização corporativa, à medida e ao
ritmo exigidos pelo mercado mundial criado pela descoberta das rotas atlânticas.
O estado concedeu crédito em boas condições às novas indústrias: o recurso,
generalizado, à dívida pública alimentou os fundos das grandes sociedades anóni­
mas, incentivou o comércio de títulos e a especulação e impulsionou a banca
moderna (o Banco de Inglaterra foi criado em 1694).
O estado empenhou-se em assegurar mercados às novas indústrias, quer atra­
vés da celebração de tratados de comércio na Europa, quer através da conquista de
territórios coloniais.
Por outro lado, o proteccionismo foi prática generalizada, já através do lança­
mento de direitos alfandegários protectores, já pela concessão de prémios à expor­
tação, já pela garantia do monopólio de venda no mercado interno e de monopólios
coloniais, já pela ‘liquidação’ das indústrias nos territórios dominados pela ‘metró­
pole’ industrial.90
O estado promulgou, em todos os países, legislação que proibia e considerava
crimes as coligações operárias, as associações profissionais e o recurso à greve.91
O estado - Sombart refere variadíssimos exemplos92 - obrigou as populações a
um verdadeiro trabalhoforçado nas manufacturas, nomeadamente na Espanha, na
França, na Alemanha, na Holanda, na Suíça, na Áustria, na Inglaterra e na Rússia
(país onde a servidão ainda subsistia). E sabe-se também como o estado favoreceu
o recrutamento de trabalho infantil, num tempo em que multidões de crianças, a

90 Basta recordar o que a Inglaterra fez à manufactura de 13 na Irlanda. Eis o comentário de um antigo professor da
Faculdade de Direito de Coimbra: "Um rei da Inglaterra, Guilherme III, respondeu a uma ignóbil representação
do Parlamento contra as manufacturas florescentes da Irlanda com o programa ainda mais ignóbil - Eu hei-de
fazer tudo o que em mim e s tia r para desanimar toda e qualquer manufactura na Irlanda. À América proibiu-
se-lhe constmir forjas e fornos para fabricar aço; proibiu-se-lhe fazer um prego, uma argpla, uma ferradura. Foi esta
proibição da indústria e nào uma questão de impostos, pensa Leroy-Beaulieu, que fez revoltar os Estados Unidos.
Com relaçáo à Irlanda, o ignóbil plano de Guilherme III, seguido com a tenacidade e com o egoísmo de tigre
da Inglaterra, tornou aquela desgraçada ilha exclusivamente agrícola, horrorosamente miserável. Por fim,
julgou-se que a emigraçáo era o único remédio, e dos púlpitos começou-se a pregar: - Emigrai. E em cinco anos
emigrou com efeito a oitava parte da populaçáo total" ( Cfr. J. F. LARANJO, ob. cit., 89). Segundo informação
colhida em K. MARX, Le Capital, Annexe X, em Oeuvres (ed. de Maximilien Rubel, cit.) 1 ,1.389, a população
da Irlanda passou de 8.222.664 habitantes em 1841 para cerca de 5 milhões e meio em 1866.
91 Para além de outras medidas legislativas anteriores, acima referidas, tais proibições resultam, na Inglaterra, das
Combinations Acts (1789 e 1800) e, na França, da Lei Le Chapelier (1791). Estas disposições só viriam a ser
revogadas cm 1824, na Inglaterra; na França, em 1864 (direito à greve) e em 1884 (direito de constituir sindi­
catos). Em Portugal, os sindicatos vieram a ser reconhecidos por um diploma legal de 1891 e o direito à greve
só mais tarde, com a legislação da República (1910).
92 A p u d E. M A N D EI, Traité...,ciL, 1, 144.
1 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

partir dos seis anos de idade, trabalhavam nas manufacturas durante 17 e 18 horas
em cada dia, em turnos diurnos e nocturnos.93
Assim foi ganhando terreno a indústria capitalista, ‘matando’os pequenos pro­
dutores independentes, que tentaram reagir até ao fim: em 1794, esses pequenos
produtores de Leeds ainda tiveram força e ânimo para mandarem uma deputação
ao Parlamento a pedir que fosse promulgada uma lei que proibisse aos comercian­
tes tornarem-se fabricantes.94
E foram estas transformações económicas, operadas entre o séc. XVI e o séc.
XVIII, foi todo este processo evolutivo que originou o aparecimento do proletari­
ado moderno, classe de indivíduos aos quais, uma vez desligados da terra enquanto
meio de produção da sua subsistência, só restava a alternativa de se deixarem
contratar como mão-de-obra assalariada. E capitais não faltavam, que o comércio
e a exploração coloniais tinham propiciado a acumulação de lucros fabulosos à
burguesia mercantil da Holanda, da França e principalmente da Inglaterra. O
capitalismo, porém, só se instalaria como sistema dominante quando a burguesia
logrou tomar o poder político e, a partir dele, realizar o enquadramento político e
jurídico e instaurar uma estrutura depoder que lhe permitiu aplicar na produção os
capitais acumulados c a mão-de-obra disponível, desenvolvendo a indústria à margem
dos obstáculos institucionais do feudalismo. Só então o capitalismo se afirmaria
como um modo de produção específico.Tal aconteceria pela primeira vez na In ­
glaterra, como veremos.

93 Em Portugal, o art. 1427° do Código Civil de 1867 dispunha, a respeito do contrato de aprendizagem: "Nenhum
aprendiz, antes dos catorze anos, pode ser obrigado a trabalhar mais de nove horas em cada vinte e quatro,
nem, antes dos dezoito, mais de doze".
Recorde-se que, na Inglaterra, John Locke (1632-1704), o teórico da 'revolução' de 1684, propôs um sistema
de educação compartimentado: uma educação superior para os ricos e o que ele chamava uma "escola de
trabalho" para os "filhos dos trabalhadores", salientando que assim "se acostumarão ao trabalho desde a infân­
cia, o que não é de pouca importância dentro do objectivo de os tornar parcimoniosos e industriosos durante
toda a vida". Na França, Colbert fazia trabalhar nas manufacturas crianças de seis anos, inspirado pela ideia de
que "l'oisiveté des premières années est la source des désordres du reste de la vie". A partir do pré-jufzo, tâo
corrente no século XVIII, que dava como assente a "preguiça natural das classes trabalhadoras", compreende-
se esta sentença de Arthur Young iapud R. SOARES, ob. cit., 60): "Every one but an idiot knows that the lower
classes must be kept poor, or they never w ill be industrious".
Particularmente desumana foi a situação em que foram colocadas as crianças inglesas recolhidas nas
Workhouses e depois cedidas aos manufactureiros. O s contramestres das manufacturas inglesas recebiam
salários variáveis em função do rendimento obtido nas oficinas, razão por que o chicote era usado com frequência
para castigar as crianças que chegavam atrasadas à oficina, depois de longas distâncias percorridas a pé, ou
que, exaustas de fome e de sono, adormeciam no trabalho.
94 Informação colhida em K. MARX, Le Capital (trad. |. Roy, cit.), 557.
A v e ià s N u n e s - 119

d) Síntese
O processo que tínhamos surpreendido no início da desagregação do feudalismo
continuou o seu curso, proporcionando a concretização das duas condições sem as
quais não teria sido possível a emergência das relações de produção capitalistas:
1) Por um lado, verificou-se uma grande acumulação de capitais por parte da
nova burguesia comercial;
2) Por outro lado, a rotura do vínculo de servidão pessoal deu origem a uma
nova classe de trabalhadores livres, sujeitos de direito, com capacidade para contra­
tar, com capacidade para comprar e vender. Estes trabalhadores livres (“livres de
todos os vínculos sociais e livres de toda a propriedade”, nas palavras de Engels95)
constituíram grandes reservas de mão-de-obra disponível para ser contratada em
regime de salariato, uma vez que não dispunham de outro meio de subsistência
(libertos da servidão da gleba, ficaram do mesmo passo separados das terras que até
aí cultivavam por direito próprio e nas quais obtinham os meios de subsistência).
A essência das relações de produção capitalistas reside na “separação radical
dos produtores relativamente aos meios de produção”, e foi este, precisamente, o
papel histórico do processo de acumulação prim itiva do capital', “separar o trabalho
das suas condições exteriores”.
Do que fica dito poderemos concluir, acompanhando Marx, que “a ordem eco­
nómica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A dissolução de
uma libertou os elementos constitutivos da outra”:
“Q u an to ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor da sua p ró ­
pria pessoa, precisava, em primeiro lugar, de deixar de estar ligado à gleba ou de
estar enfeudado a um a outra pessoa. Ele não tinha tam bém qualquer possibi­
lidade de se tornar vendedor livre de trabalho, oferecendo a sua mercadoria
onde haja um m ercado para ela, sem se libertar prim eiro do regim e das
corporações, com a sua hierarquia, as suas regras.. .O m ovimento histórico que
converteu os produtores cm assalariados apresenta-se, portanto, com o a sua
libertação da servidão e da hierarquia industrial corporativa”.

Mas “a metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista” baseou-se


essencialmente na “expropriação dos camponeses, na espoliação das grandes mas­
sas dos seus meios de produção e de existência tradicionais”. Com efeito, os traba­
lhadores, libertos da servidão e das teias corporativas, “só se tornam vendedores de
si próprios depois de terem sido despojados de todos os seus meios de produção e
de todas as garantias de existência oferecidas pela antiga ordem”.

95 Cír. Anti-Dühring, ed.cit., 260.


1 2 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l Ittca

“Quanto aos capitalistas empreendedores, estes novos potentados tinham que


anular não apenas os mestres artesanos mas também os detentores feudais das
fontes de riqueza. Deste ponto de vista, a sua emergência é o resultado de uma luta
vitoriosa contra o poder senhorial e as suas prerrogativas revoltantes e contra o
regime corporativo e os entraves que ele levantava ao livre desenvolvimento da
produção e à livre exploração do homem pelo homem”.96
Só que - como salienta Pierre Vilar 97 - “a acumulação primitiva do capital
provoca a sua própria destruição”. Numa primeira fase, a subida dos preços, o
aumento dos impostos reais, os empréstimos vultuosos a que recorriam os reis e os
grandes senhores da nobreza, asseguraram ganhos fartos a usurários e especulado­
res. Depois, as perspectivas de acumulação por via da usura esgotaram-se: quando
o dinheiro circula em abundância é mais difícil exigir juros elevados. Por fim, a
realidade do mercado mundial saído da descoberta das rotas atlânticas reduziu as
ocasiões de grande especulação comercial: as taxas médias de juro e de lucro
tendem a igualar-se e a diminuir.
Torna-se necessário encontrar novas vias de reprodução do capital, o que só
virá a alcançar-se quando a nova classe burguesa assegurar, a par do controlo da
produção, o controlo do poder político.

4 . A R efo rm a
Para além desta acumulação de capital, e em estreita relação com ela, importa
ter em conta outros factores cujo significado não pode ignorar-se quando se pre­
tende compreender a ascensão da burguesia e a consolidação do capitalismo.
Começamos pela Reforma, que Engels considera uma das “três grandes bata­
lhas decisivas” na “longa luta da burguesia contra o feudalismo”.98 A Igreja C ató­
lica, enquanto proprietária de terras (“possuía seguramente um terço do mundo
católico”), cobradora de dízimos e centro produtor de ideologia, era a pedra angu­

% Cfr. K. MARX, Le CapitaHlràd. |. Roy), c it, 528/529. Marx interroga-se sobre as razões que levam os trabalhadores
a celebrar um contraio pelo qual não só se colocam ao serviço do empregador capitalista e na dependência dele,
mas pelo qual 'renunciam também a qualquer irtulo de propriedade sobre o seu próprio produto". A resposta é
esta: "porque os trabalhadores não possuem nada a não ser a sua força pessoal, o trabalho em estado de potência,
enquanto todas as condições externas necessárias para dar corpo a esta potência, a matéria e os instrumentos
necessários para o exercício útil do trabalho, o poder de dispor das subsistências necessárias à manutenção da
força de trabalho e à sua conversão em movimento produtivo, tudo isso se encontra do outro lado'.
97 Cfr. P. Vilar, em C. PARAIN e outros, 06. cit., 64-65.
98 Cfr. F. ENGELS, D o Socialism o..., cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, 114-117. As outras duas
batalhas referidas por Engels são aquilo a que poderemos chamar a 'revolução inglesa' e a Revolução Fran­
cesa, a que à frente nos referiremos.
A v e ià s N u n e s - 1 2 1

lar da sociedade e da economia feudais. A Igreja Católica (que organizara a sua


própria hierarquia segundo o modelo feudal) era “o grande centro internacional
do feudalismo”, que “unificava a Europa Ocidental” e “envolvia as instituições
feudais com a auréola da consagração divina”. A derrota do sistema feudal passava,
pois, pela destruição do poder da Igreja.
Engels refere ainda outro aspecto relevante para explicar o advento da Refor­
m a" , chamando a atenção para o facto de, paralelamente à ascensão da burguesia,
se ter verificado “o grande renascimento da ciência”, com o desenvolvimento da
astronomia, da mecânica, da física, da anatomia e da fisiologia. Durante a Idade
M édia, a ciência foi “uma servidora humilde da Igreja”: “não lhe fora permitido
ultrapassar os limites impostos pela fé, e por essa razão jamais tinha sido ciência
nenhuma”. Por isso “a ciência revoltou-se contra a Igreja”.100 E como, “para o
desenvolvimento da sua produção industrial, a burguesia precisava de uma ciência
que lhe asseverasse as propriedades físicas dos objectos naturais e os modos de
acção das forças da natureza (...), a burguesia não podia passar sem a ciência”. Ela
“teve de aderir à rebelião”.
Na época a que nos reportamos, “todas as lutas contra o feudalismo tinham de
ser dirigidas antes de mais contra a Igreja”. E não há dúvida de que a classe mais
directamente interessada nesta luta era a burguesia. Até porque, “se os primeiros a
soltar o grito de guerra foram as universidades e os comerciantes das cidades”, era
inevitável que tal grito encontrasse, como encontrou, “um forte eco nas massas da
população rural, nos camponeses, que cm toda a parte tinham de lutar pela sua
própria existência contra os senhores feudais, espirituais e temporais”.
Em bora nos pareça inconsistente a tese já referida de Max W eber segundo a
qual o protestantismo teria gerado o espírito capitalista e este espírito teria dado
origem ao capitalismo,101 a verdade é que não pode ignorar-se a importância da
Reforma e da teologia do protestantismo quando se analisa o processo que acaba­

99 Ibidem, W S.
100 Para ilustrar a reacção violenta da Igreja ao progresso científico, basta recordar que os trabalhos de Copérnico
foram colocados no índex, que Galileu teve de responder perante a Inquisição e que a teoria de Darwin sobre
a origem e a evolução das espécies ainda hoje náo é abertamente aceite pela Igreja Católica oficial.
101 KaH Kautsky procurou mostrar que o "espírito capitalista' de que fala Weber era o espirito burguês dos artesanos
medievais, mu ito anterior ao calvinismo. Esse modo depensar que Weber pretende ser uma criação do calvinismo
encontrar-se-ia, segundo Kautsky, no 'comunismo' dos anabatistas e dos predecessores (que náo se inclinavam
para o capitalismo). Trata-se - escreve Kautsky, citado por O . LANGE, Economia Política, I, ed. c it, 264/265 - de
um espírito de rebelião do artesano contra a exploração e o desperdício do feudalismo, da Igreja, dos príncipes e
dos usurários; um espírito de sobriedade, de assídua laboriosidade, mesmo de poupança e de acumulação pro­
dutiva"’. E este "espírito ético religioso" explicar-se-ia, segundo Kautsky, "não pelo desenvolvimento autónomo da
religião e da ética, mas pelas condiçfles de vida do artesano, que possuía a força e a vontade para se subtrair ao
domínio da nobreza feudal e de todos os seus acessórios económicos, politicos e éticos".
1 2 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a

ria por levar à tomada do poder pela burguesia e à implantação do capitalismo


como sistema económico dominante.
O pensamento medieval, por força do magistério da Igreja Católica, submetia
a actividade económica às leis da moral religiosa: condenava-se, em geral, o exer­
cício do comércio como modo de vida; considerava-se pecado o desejo de enri­
quecer para cada um elevar a sua condição social e a da sua família; proibia-se o
empréstimo de dinheiro a juros.
Não falta mesmo quem veja nesta proibição ditada pela Igreja Católica uma
reacção de defesa da sociedade feudal perante a importância adquirida pelos novos
burgueses ricos e desejosos de valorizar o seu dinheiro.102 Simplesmente, a partir
do séc. XII, o desenvolvimento do comércio mediterrânico alargou as ocasiões de
enriquecer; a própria Igreja passou a ter interesses nesse comércio e a participar
nos empréstimos a juros. “A medida que se acumulava, a riqueza ia-se tornando
mais respeitável - salienta W . A. Lewis 103 - e, muito antes da Reforma, os
teólogos cristãos dedicavam-se a rever os seus preceitos de maneira a provar que o
comércio e a usura não eram forçosamente actividades condenáveis. Na época em
que surge a Reforma, no séc. XV, esta revisão estava já bastante adiantada.”
Sendo assim, uma vez que as religiões reflectem alterações verificadas ao nível
das realidades económicas, não fará sentido pretender-se explicar os fenómenos
económicos exclusivamente em função da religião. Mas também não poderá es-
quecer-se a influência das crenças religiosas na definição do comportamento eco­
nómico dos povos.
Como Marx enfatizou, “o protestantismo é essencialmente uma religião burgue­
sa”.104 E se é certo que o luteranismo se transformou, segundo Engels, numa “reli­
gião adaptada à monarquia absoluta”, tomando-se um “joguete nas mãos dos príncipes
alemães”, poderemos dizer que, “onde Lutero falhou, Calvino triunfou”.105

102 Cír. E. M A N D EI, Traité.. cit., 1,124.


103 Cír. W . A. LEWIS, o b .c it, 27-28. No capítulo III deste seu livro, Lewis estuda, em termos gerais, as relações que
podem ocorrer entre as alterações de ordem religiosa e de ordem económica.
104 K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy, ed. cit.), 533.
105 Engels (u/r ob. cit., 116) invoca duas ordens de razões: 1*) 'a doutrina da predestinação era a expressão
religiosa do facto de no mundo comercial da concorrência o êxito ou o fracasso não dependerem da actividade
ou da esperteza de um homem, mas de circunstâncias por ele incontroláveis. Não é do que ele quer ou
persegue, mas da mercê de forças económicas superiores desconhecidas; e isto era especialmente verdade
num período de revolução económica, quando todas as velhas rotas e centros comerciais foram substituídos por
outros novos, quando a índia e a América foram abertas ao mundo e quando até os mais sagrados artigos de fé
económicos - o valor do ouro e da prata - começaram a abrir fendas e a ruir"; 2*) "a constituição da Igreja de
Calvino era toda ela democrática e republicana; e, sendo o reino de Deus republicanizado, poderiam os reinos
deste mundo permanecer sujeitos a monarcas, bispos e senhores?"
A v elã s N u n es - 1 2 3

Com efeito, pela via do calvinismo, ela vem legitimar o juro e vem dar outro
significado ao trabalho enquanto meio de enriquecimento e factor justificativo da
riqueza. Enquanto Lutero considerou o trabalho como remediumpeccati, Calvino
glorifica o trabalho como instrumento de realização do plano divino. Para o purita-
nismo, o trabalho é uma “disciplina activa” e os bens materiais são um “dom de
Deus”. Como Kautsky sublinhou, o puritanismo da pequena burguesia constituída
pelos artesanos das cidades valorizava o trabalho como “fonte da sua força, orgulho
e honra”. E este modo de pensar contaminou todos os trabalhadores, “independen­
temente do facto de trabalharem na sua própria oficina ou na de outrem”. 106
Calvino e os puritanos anglo-saxões defendem que o desejo de enriquecer dei­
xou de ser condenável em si mesmo. Os homens devem esforçar-se por ser ricos,
para Deus, não para a came e o pecado.107 Com o calvinismo, lançou-se o fermen­
to do lema que viria a ser tornado célebre por G uizot (1847): “enrichissez-vous
par le travail et par l'epargne”. A riqueza é entendida como sinal da bênção de
Deus: o sucesso comercial revela a protecção divina. Esta filosofia inspirará o
mito individualista do self-made-man, típico do pensamento sócio-político do séc.
XIX e ainda hoje bastante arreigado no sentimento popular norte-americano.108 A
doutrina calvinista conduziria, no fim de contas, à ideia de que “não deve querer-
se o lucro pelo próprio lucro, mas sim para desenvolver a actividade económi­
ca”.109 A vida económica ganhava assim uma ‘moral’ própria, conquistava autonomia
relativamente à teologia católica. Àqueles que dispunham de capitais, à burguesia
enriquecida, ficava aberto o caminho para a valorização desses capitais.

5 . A FORMAÇÃO DOS ESTADOS MODERNOS NA EUROPA

Por volta dos sécs. XV e XVI assiste-se também na Europa à constituição dos
modernos estados nacionais, unificando, sob a autoridade do soberano, o território e o

106 A p u d O . LA N C E , op. loc. ult. cit..


Talvez esía glorificação do trabalho explique que o calvinismo tenha dado uma contribuição importante para
a génese do capital, desde logo "por ter transformado quase todos os dias festivos tradicionais em dias de traba-
lho", como observa Marx (citado por LANGE, ibidem).
107 Assim se exprimia Richard Baxter, pastor puritano (1615-1691): "Se Deus vos designa um dado caminho no qual
podeis legalmente ganhar mais do que em outro (e isso sem prejufzo para a vossa alma nem para a de outrem) e se
recusaiso mais proveitoso para escolher o caminho que o é menos, estais a contrariar um dos fins da vossa vocaç«V>,
recusais fazer de vós o intendente cie Deus e aceitar os seus dons e empregá-los ao seu serviço se ele o exigi r. Trabalhai,
pois, para ser ricos para Deus e náo para a carne e o pecado" (apt/c/H. DENIS, História. .., c i l, 96).
108 Destas ideias puritanas que concd>em a riqueza como bênção de Deus - invoca-se S. Paulo: 'tudo é para os eleitos"
-, "viria a resultar que a indigência assinalava indelevelmente uma denegação da Graça. Por isso se percebe -
continua R. SOARES, Direito Público. .., cit., 60 - que no sistema das 'Manufacturas', onde se impunha a ascese do
trabalho aos criminosos e vagabundos, também os pobres fossem tratados da mesma desapiedada maneira".
109 V erJ.J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Politica, cit., 172-173.
1 2 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

poder político fragmentados característicos do período feudal. Foi um movimento


em que os soberanos se apoiaram na burguesia e que a burguesia apoiou de bom
grado, pois se tratava de abolir as últimas regalias da feudalidade e o poderio das
‘cidades corporativas’, com a sua actividade industrial realizada por produtores autó­
nomos. A Inglaterra realizou a sua unificação com Henrique VII (1485-1509); a
França, com Luís XI (1461-1483); a Espanha, em 1469, com o casamento de Fer­
nando de Aragão e Isabel de Castela. Os Países Baixos só em 1609 se libertaram da
Espanha. A Alemanha e a Itália atingiriam a unificação bastante mais tarde.
Já referimos o enorme apoio que os modernos estados nacionais deram ao
grande comércio e à indústria capitalista nascente, apoiando as burguesias nacio­
nais na luta acesa travada na exploração colonial e protegendo de vários modos as
manufacturas capitalistas, quer perante as prerrogativas das cidades, quer perante a
concorrência dos produtores estrangeiros.

6 . A 'R evo lu ç ã o I n g lesa '

A Inglaterra foi, como se sabe, a primeira grande potência capitalista. E por


‘revolução inglesa’ designa-se aqui precisamente o lento e longo processo que
levou a burguesia inglesa a tomar conta do comércio, a controlar a actividade
produtiva (nomeadamente a indústria) e a ocupar o poder político.
Tendo como ponto de partida a doutrina calvinista, a ‘revolução’ foi obra, es­
sencialmente, da classe média das cidades e dos camponeses remediados (yeoman-
ry)y que a impuseram pelas armas. Com o Engels põe em relevo, sem a acção dos
plebeus das cidades e d ayeomanry, a burguesia não teria levado a luta até ao fim,
levando Carlos I ao cadafalso.110
Lisboa e Cádis desalojaram Florença, Génova c Veneza da posição de centros
do comércio [mcditcrrânico] entre o séc. XII e o séc. XVI e tomaram-se, no
século XVI, graças às viagens marítimas dos navegadores ao serviço de Portugal e
da Espanha e à consequente expansão ultramarina, os verdadeiros centros do co­
mércio do mundo, por onde passaram as especiarias e outros produtos exóticos do
Oriente, a prata e o ouro da América e da África.
Foi efémero, porém, o ‘reinado’ português: em 1580, com a união das duas
coroas na pessoa do rei de Espanha, os interesses portugueses passaram a segundo

110 “É curioso verificar - escreve ENGELS, úlL ob. c it . III, 116 - que nas três grandes insurreições da burguesia é
o campesinato que fornece o exército que tem de combater; e o campesinato é justamente a classe que, uma
vez alcançada a vitória, é com toda a certeza arruinada pelas consequências económicas dessa vitória". E a
verdade é que, cem anos depois de Cromwell, a yeomanry tinha praticamente desaparecido.
A v e l As N u n e s - 1 2 5

plano. E não durou muito mais o domínio espanhol, cujo declínio terá tido o seu
início logo em 1588, com a derrota da Invencível Armada.
Pouco depois, em 1609, os Países Baixos tornam-se independentes da Espa­
nha. No séc. XVII, a Republicadas Províncias Unidas (Holanda) torna-se o pólo de
atracção do comércio mundial. Revoltada contra a Espanha, a Holanda ficava
privada do comércio dos produtos que iam de Lisboa e de Cádis para o norte da
Europa. Pois a Holanda partiu à conquista dos mares e foi buscar as especiarias
aos países de origem. Apoderou-se de Java, das ilhas de Sonda e das Molucas,
negociou com a China e o Japão e os navios holandeses em breve passaram a
transportar as especiarias para a Europa e a fazer o comércio de escravos.
Verdadeira iniciadora do regime de exploração económica dos territórios coloniais,
a Holanda atingiu o seu apogeu por volta de 1648. Controlava então quase em
exclusivo o comércio das índias Ocidentais e as comunicações entre o sudoeste e o
nordeste da Europa. Auferindo enormes lucros da sua posição monopolista, os
holandeses não hesitaram, sempre que baixavam na Europa os preços das especi­
arias, em recorrer à destruição das respectivas culturas e ao massacre das popula­
ções para que estas não plantassem mais árvores 111. Em meados do séc. XVII, a
sua frota de pesca, a sua marinha e as suas manufacturas ultrapassavam as dos
outros países e Amesterdão (cuja Bolsa data de 1513) foi então (sucedendo a
Antuérpia) o maior porto comercial do mundo.
A supremacia comercial assegurou à Holanda a supremacia no domínio das
manufacturas e a nova burguesia acumulou enormes somas de capitais, fruto do
comércio e da exploração coloniais. MA Holanda - escreveu M arx 1,2 - era no séc.
XVII a nação capitalista por excelência. (...) Os capitais da República eram talvez
mais importantes que todos os do resto da Europa em conjunto”.
A Inglaterra iria, por sua vez, afastar a Holanda desta posição de supremacia.
Vejamos como, no século XVIII, a burguesia inglesa chegou ao domínio do co­
mércio mundial, ao longo de um processo que “é a própria história da subordina­
ção do capital mercantil ao capital industrial”.113
Referimos atrás que no final do séc. XV (após o termo da Guerra das Duas
Rosas) a aristocracia inglesa começou a abandonar as formas tradicionais de ex­
ploração das terras, para poder beneficiar do comércio da lã. A velha aristocracia
tentava transformar-se no primeiro burguês da Inglaterra. Vimos também como a
nova burguesia comercial se vinha aliando à nobreza, comprando algumas das

111 Cfr. E. M ANDEL. Trailé...,dl(f, I , 133-134.


112 Or. K. MARX, Le O p«j/(trad . J. Roy, cit.), 558/559.
113 Cír. K. MARX, Le Capital, td . Sociales, cit., livro III, 1. 1,341.
1 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a

suas terras e convertendo-as em pastagens para criação de gado lanígero. Vimos


como a prática das enclosures começou a minar a posição dos pequenos campone­
ses independentes, criando legiões de desempregados.
Afastando-se de Roma e fazendo-se chefe supremo da Igreja de Inglaterra por
volta de 1530-1532, Henrique VIII procederá à distribuição das terras da Igreja
Católica, que era o maior proprietário feudal da Inglaterra, dando origem a uma
nova burguesia rural, que se apressou a expulsar os camponeses das suas terras,
somando os seus efeitos aos efeitos das enclosures, o que aumentou o número de
famílias separadas das terras que até aí cultivavam, acrescentando as levas de ‘va­
gabundos (assalariados potenciais).
Entretanto, a nova classe rica (nobreza-burguesia) entra em conflito com a
dinastia dos Tudor, empenhada em manter o seu poder absoluto e em salvar a
ordem feudal. O agravamento do conflito levará à Revolução de 1648, que culmina
com a execução de Carlos I e a instauração da ditadura de CromwelL
Este, compreendendo que a vitória sobre a Holanda exigia a constituição de
uma poderosa marinha mercante, não tardou a levar por diante a política conveni­
ente aos interesses da burguesia inglesa e promove a promulgação dos Actos de
Navegação (1651 e 1660). Em último termo, estas leis vieram determinar que os
navios estrangeiros só podiam descarregar nos portos ingleses mercadorias oriun­
das do próprio país. Assim perdia a Holanda o mercado inglês, pois os navios
holandeses não podiam transportar para Inglaterra os produtos vindos do Oriente.
Assim ficava a Inglaterra em condições de constituir a sua própria frota, à qual se
reservava desde logo o monopólio do transporte para a Inglaterra dos produtos
coloniais. Com essa frota iria a Inglaterra bater o pé à Holanda até ocupar o lugar
que a esta pertenceu no séc. XVII. Com a conquista da colónia holandesa da
América do N orte (New Amesterdam) em 1664, a Inglaterra afirmou-se como
senhora dos mares e, portanto, senhora do comércio mundial.
O crescente poderio da classe burguesa vai dar-lhe alento para impor novas
alterações no aparelho do estado, que se traduziriam, naturalmente, em maior
poder político para ela. Em 1689 ocorreu o movimento revolucionário que os
autores normalmente designam por Glorious Revolution. Ao novo rei, Guilherme
III, príncipe de Orange, é imposto o B illofRights, que valoriza o papel do Parla­
mento (onde a nova classe burguesa começava a dominar), ao qual passa a caber o
poder de fazer as leis e de discutir e aprovar o orçamento do estado (separado o
erário público do património pessoal do rei).
Dentro do compromisso que marca a Revolução de 1689, os quadros da admi­
nistração pública e as sinecuras políticas continuavam a ser ocupados pelas gran­
des famílias da nobreza, mas a burguesia foi já suficientemente forte para confiar
A v elã s N u n es - 1 2 7

Parlamento poderes bastantes para que a política geral da nação passasse a ser con­
duzida de acordo com os interesses dessa mesma burguesia comercial, industrial e
financeira. M
A burguesia torna-se, a partir de então - como salienta Engels 114-, um
elemento modesto, mas oficialmente reconhecido, das classes dominantes de Ingla­
terra, tendo, com as outras fracções, um interesse comum na manutenção da sujeição
da grande massa trabalhadora da nação.”
A burguesia ia penetrando no seio da nobreza e as grandes famílias da aristo­
cracia rural compreendiam que a sua prosperidade económica estava irrevogavel-
mente ligada à da burguesia comerciante e industrial.“A nova aristocracia fundiária
- anota M arx115 - era a aliada natural da nova bancrocracia, da alta finança de
fresca data e dos grandes manufactureiros, então fautores do proteccionismo”. Não
admira, portanto, que tenha havido perfeito entendimento entre estes grupos soci­
ais a respeito da apropriação dos bens do domínio público e da pilhagem dos bens
da Igreja Católica, que então prosseguiu aceleradamente.116
O Tratado de Methwen (1703) mostra bem a preocupação do estado inglês em
assegurar mercados para os produtos manufacturados britânicos, conferindo à In­
glaterra uma posição praticamente monopolista no que respeita ao comércio de
panos em Portugal e nas colónias, designadamente o Brasil.
Por altura da Paz de Utrecht (1713), a Inglaterra conseguiu da Espanha o pri­
vilégio de fazer o tráfego de escravos entre a África e a América espanhola, negó­
cio que ditaria a prosperidade do porto de Liverpool e proporcionaria elevados
lucros aos negreiros ingleses.117

114 Ver F. ENGELS, D o socialismo utópico..., cit., 111,118.


115 Cír. K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit), 5 3 5 .0 Partido Whig representou entáo esta 'aliança' estratégica entre
a nova burguesia e a aristocracia rural.
116 As revoluções burguesas (e a 'revolução inglesa' é um caso típico, a este respeito) podem acontecer num
quadro de compromisso entre as velhas e as novas classes dominantes, até ao ponto de se manterem estruturas
de poder político náo resultantes do sufrágio (a Realeza e a Câmara dos Lordes). Isto porque o decisivo, para a
burguesia ascendente, era o domínio da economia e do p o d e r económ ico, a par da afirmação dos seus
interesses no enunciado da ideologia burguesa dominante. E isso foi conseguido em vários países, em que as
velhas classes aristocráticas adoptaram a ideologia burguesa e começaram a fazer o necessário para se torna­
rem o 'primeiro burguês do reino'.
Processo idêntico náo parece viável quando se tratar da passagem do capitalismo ao socialismo. Neste caso,
a condição primeira indispensável para se começar a construir o socialismo será o controlo d o poder politico,
porque só a partir dele se podem destruir as estruturas da propriedade burguesa e se podem pôr de pé as novas
formas de propriedade, de produção e de acumulaçáo. Alguns defendem, com Gramsci, que, antes da tomada
do poder político, é indispensável que o proletariado assegure a hegemonia na sociedade c iv il, assumindo a
direcção 'cultural' (ideológica)da sociedade.
U7 Na sequência deste Tratado foi constituída a Companhia de Inglaterra, tendo como sócios, a titulo privado, o rei
de Inglaterra e o rei de Espanha, cada um com 25% do capital (cír. C. FURTADO, Prefácio..., c iL , p. 31, n. 19).
Segundo informa M ARX (Le Capital, trad. |. Roy, cit., 563-564), o número de navios ingleses utilizados no
comércio de escravos passou de 15, cm 1730, para 132, cm 1792. De acordo com dados colhidos em E.
1 2 8 - U m a I n t r o d u ç Ao A E c o n o m ia P o Ut ic a

Mas a Inglaterra tinha ainda a França como sua concorrente. No início do séc.
XVII, com Richelieu, constituíram-se na França grandes companhias coloniais
(algumas das quais acabariam por falir).
Em 1628, os franceses estabeleceram-se em Argel e em 1631 instalam-se em
Marrocos, expulsando os portugueses; em 1633, a Compagniedu Cap- Vert estabele­
ce-se no Senegal com vista ao tráfego de escravos; em 1635, a Compagnie des Illes d'
Amérique instala-se na Martinica, em Guadalupe e Dominique; em 1642 os france­
ses dominam Madagascar. Mais tarde, sob o governo do cardeal Fleury, os estabele­
cimentos das Antilhas, das índias e da Luisiana conhecem um período de prosperidade.
A Inglaterra tinha interesse em desalojar a França de todos estes territórios. E
vai fazê-lo, aproveitando a guerra que a França (ao lado da Prússia) mantinha
contra a Áustria, para se lançar à conquista das colónias francesas. Em 1763, pelo
Tratado de Paris, a França vê-se obrigada a ceder à Inglaterra o Canadá, uma parte
das Antilhas, todas as possessões das índias, a feitoria do Senegal.
Assim, no séc. XVIII, a Inglaterra ficava senhora do grande comércio mundial.

7 . A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL 118

Só em finais do séc. XVIII, porém, o capitalismo se instala decisivamente na


produção industrial. A Inglaterra conhecera a sua ‘revolução agrícola’ nos primei­
ros anos do séc. XVIII; dispunha de capitais abundantes e de grandes reservas de
mão-de-obra; tinha visto, nos finais do séc. XVII, a sua ‘revolução burguesa’ dar
um importante passo em frente; dominava o comércio mundial e tinha um subsolo
rico em carvão e em ferro. Reunia, por isso, todas as condições para se tornar, no
séc. XVIII, o primeiro país a conhecer uma importante indústria capitalista e uma
estrutura jurídico-política capaz de assegurar as condições exigidas para a afirma­
ção e o pleno desenvolvimento do capitalismo.
A Inglaterra dominava o comércio mundial, o que então significava o controlo
das fontes de abastecimento de matérias-primas e dos mercados de colocação dos

MANOEL, Traité..., cit., 1,135, os negreiros de Liverpool venderam, de 1783 a 1793,300 000 escravos por 15
milhões de libras.
118 A expressão Revolução Industrial começou a ser utilizada por autores franceses por volta de 1820, com o
intuito de sublinhar que as mudanças sociais provocadas na Inglaterra pela industrialização eram t3o profundas
como as operadas na França pela Revolução Francesa. Cír. A. GERSCH EN KRON, A tra so ..., cit., 95/96.
A expressão foi depois utilizada por Engels em 1845 (1 * edição de A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra, p. 18 da trad. port., cit.), ao defender que ela teve "para a Inglaterra a mesma importância da
revolução política para a França e a revolução filosófica para a Alemanha".
Mais tarde, Arnold Toynbee utilizaria a expressão nas suas Lectures (1887), entendendo-se em geral que foi a
partir de então que o uso da expressão se generalizou.
A v elã s N u n es - 1 2 9

produtos industriais. Depois de ter afastado a Holanda e a França do domínio dos


mares, a Inglaterra conseguiu uma enorme acumulação de capitais, que permitiria
a sua rápida industrialização: em 1688, com 5,5 milhões de habitantes, 4,5 mi­
lhões eram ainda agricultores (81,8%); em 1768, a Inglaterra conta apenas 3 mi­
lhões de agricultores em 8,5 milhões de habitantes (35,2%); cm 1810, a Inglaterra
ocupava apenas 35% dos seus activos na agricultura, percentagem que baixou em
1850 para cerca de 20% (a agricultura gerava cerca de 20% do produto), enquanto
na Europa Ocidental a agricultura ocupava entre 40% a 50% da força de trabalho
e produzia cerca de 20% do pro d u to .119
A Inglaterra não ocupava, porém, ao iniciar-se o século XV III, o primeiro
lugar na Europa no domínio da ciência e da técnica. No plano científico, estavam
mais avançadas a Itália, a França, e talvez mesmo os Países Baixos. No domínio
das técnicas, a Inglaterra só tinha supremacia no ramo da construção naval. Os
holandeses iam na vanguarda no sector da tecelagem e na construção de canais; os
alemães e os suecos, no campo da metalurgia do ferro e do chumbo; os italianos,
no respeitante ao vidro e à seda; quanto às técnicas de construção, iam na dianteira
a Itália, a França, a Suíça.120
M as foi na Inglaterra que se verificaram os inventos que haveriam de revoluci­
onar as técnicas de produção logo que foram aplicados à indústria, o que também
se verificou pela primeira vez neste país. Aqui se inventaram a máquina a vapor, a
máquina de fiar e a máquina de tecer. Em 1765, Hargreaves inventa uma máquina
de fiar (a célebre spinning-jenny), espécie de fuso movido manualmente que podia
fiar oito fios simultaneamente; em 1769, Arkwright cria uma fiação onde aplica a
Water-Frame, máquina de fiar que utiliza como energia a força da água corrente;
em 1769 James W att regista a patente da sua máquina a vapor, que começou a ser
utilizada na indústria algodoeira em 1785 e nos altos fornos em 1788; ainda em
1785, Cartw right construiu um tear mecânico que viria revolucionar a indústria
têxtil algodoeira.121

119 Cír. H . DENIS, História.. c it, 137 e P. BA1ROCH, "Structure..., cit, 962. À escala mundial, calcula-se que. em 1860,
se ocupava no sector primário 76,5% da população, percentagem que, em 1970, ainda se mantinha em 54,5%
120 Com base nestes dados, nâo falta quem sustente que "o desenvolvimento da ciência europeia e o nascimento
da revolução industrial só muito levemente tiveram relaçóes directas". Só mais tarde, em meados do século
XIX, a ciência e a indústria se teriam conjugado. Ver P. BAIROCH, 1701,25. Cír. também E. HOBSBAW M, A era
das revoluções, cit., 46-48. Outro parece ser o ponto de vista de Oskar LANGE (cír. Economia Politica, ed. cit.,
1,276): "A história do capitalismo é a história do desenvolvimento triuníal das ciências naturais e das suas apli­
cações práticas, apesar de todas as resistências das classes e grupos sociais dominantes da sociedade íeudal, ou
- na primeira íase do capitalismo - de uma parte do aparelho estatal, eclesiástico e escolástico herdado da
sociedade feudal. Em síntese, poderemos dizer que a burguesia apoiou o desenvolvimento das ciências natu­
rais, ao passo que as classes e grupos sociais pré-capitalistas o refrearam".
121 Cfr. M . D O B B, A Evolução. .., cit., 312ss.
1 3 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

Foi importante a invenção destas máquinas. Mas o que é uma máquina?“A má­
quina define-se pelo automatismo; ela executa movimentos por si, aproveitando a
força que lhe é transmitida. É o automatismo, na verdade, que distingue a máquina
do instrumento', este executa apenas os movimentos que lhe imprimimos”. A aplica­
ção das máquinas à indústria leva à substituição das manufacturas pelasfábricas, que
são - na definição de Teixeira Ribeiro - “oficinas onde a actividade dos operários se
conjuga mediante a especialização interna e é potenciada pelas máquinas”.122
A utilização das máquinas em larga escala começou a verificar-se por meados
do século XVIII, trazendo consigo a substituição progressiva da energia humana e
animal pela energia do vapor de água.123 O processo de produção ganhava defini­
tivamente o carácter de um processo colectivo, social, de dezenas ou centenas de
pessoas. Assim se realizou a “revolução industrial”. O uso das máquinas expandiu-
se de tal forma que nos fins do século XIX abarcava toda a indústria. A actividade
económica entrava na era da maquinofactura.
Analisaremos a seguir a revolução industrial inglesa, começando por chamar a
atenção para algumas das notas que justificam que se fale dela como revolução:
1) É preciso, em primeiro lugar, ter em conta a importância da chamada ‘revo­
lução agrícola’.
2) Sublinharemos a seguir a ‘revolução tecnológica’ e a substituição da energia
humana e animal por outras formas de energia (sucessivamente, a energia da água
corrente, a energia do vapor, a energia eléctrica, o petróleo, a energia nuclear).
3) Destacaremos o aumento da produtividade: o crescimento económico e a
tomada de consciência deste fenómeno.
4) Importante é também o crescimento demográfico e o aumento do número
de pessoas a viver nas cidades e da percentagem da população urbana.
5) O capitalismo surgiu como “civilização da desigualdade”, desigualdade que
a industrialização tornou tão patente como a capacidade de produzir riqueza.
6) Um último ponto fundamental a realçar é o aparecimento do novo operari­
ado e a luta pela organização desta nova classe operária industrial, nomeadamente
no plano sindical, através de um processo histórico que poderemos escalonar deste
modo: a) uma primeira fase de proibição dos sindicatos e de criminalização de
todas as formas de associação; b) admissão e legalização das associações mutualis-

122 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia PoliUcs. cit-, 181/182.


123 À escala do mundo, porém, em 1850, a energia mecânica representava apenas 6% do total da energia utili­
zada, cabendo 79% à energia animal e 15% à energia do homem. Em 1900, estes valores eram: 38% para a
energia mecânica (84% em 1930; 96% em 1960); 52% para a energia animal (12% em 1930e 1% em 1960);
10% para a energia humana (4% em 1930; 3% em 1960). Dados colhidos em V. PRÉVOT, oò. c/f., 12.
A v elã s N u n es - 131

tas; c) tolerância dos sindicatos; d) legalização dos sindicatos (1824-25) e criação


do primeiro partido dos trabalhadores (o Partido Cartista - 1834); e) aceitação da
participação dos sindicatos na contratação colectiva;f ) reconhecimento constitu­
cional da liberdade sindical (na Constituição de Weimar, 1919).
A indústria têxtil inglesa foi a primeira grande indústria capitalista.124 A meca­
nização da fiação do algodão, que se iniciou na década de 70 do século XVIII,
progrediu de tal forma que, em 1810, Robert Owen calculou que 2500 operários
asseguravam uma produção equivalente à de 600 000 operários meio século an­
tes.125 Os custos de produção baixaram; a produção aumentou enormemente; proi­
biu-se na Inglaterra a importação de tecidos de algodão e concederam-se prémios
à exportação. As exportações da indústria algodoeira britânica passaram de um
valor de cerca de 200 000 libras em 1764 para 73 milhões de libras cm 1871.126
Nas minas e na metalurgia, registaram-se progressos assinaláveis no período
das manufacturas: foi no séc. XV que se construiu o primeiro alto-forno e foi nas
minas que se utilizaram os primeiros modelos de equipamento de transporte por
caminho de ferro. M as só com a aplicação das máquinas a vapor nas minas de
carvão é que os preços deste baixaram, permitindo a substituição da madeira pelo
coque como combustível nos altos-fomos127 e só então a indústria de produção do
ferro se desenvolveu. A Inglaterra viu a sua produção aumentar, de 12 a 17 mil
toneladas anuais por volta de 1750, para 455.000 toneladas em 1823.128 A partir
de 1825, a construção dos caminhos de ferro (mais de 100 000 km de vias em
exploração por volta de 1860) cimentará a vitória da máquina e do modo de pro­
dução capitalista, ligando o campo à cidade, facilitando o transporte das matérias-
primas e dos produtos acabados, ao mesmo tempo que a construção de vias férreas
(primeiro na Inglaterra, depois nos restantes países da Europa, até chegar à Am é­
rica e ao mundo todo) se apresentava como o melhor mercado das indústrias do
carvão, do aço e da metalurgia.
A penetração do capital na esfera da produção, a introdução das máquinas na
produção e nos transportes marcam o triunfo definitivo do modo de produção

124 Tendo em conia os vários países, em 1860 o têxtil e o vestuário representavam ainda cerca de 65% do emprego
na indústria transformadora (P. BAIROCH, "Structure..., cit-, 962).
125 Cfr.P. BAIROCH, "lesécarts.. cit., 499.
126 Cfr. E. MANDEL, Traité..., cit., 1,149.
127 Segundo P. BAIROCH ("Les écarts..., cit., 499), cm 1770, provavelmente mais de 50% do ferro produzido na
Inglaterra provinha de altos-fornos que utilizavam carvào como combustível, taxa que a maior parte dos outros
países europeus só atingiria na 2* metade do séc. XIX.
128 Cfr. E. M A N D EI, Traité..., ö l , 1,149. A escala mundial, P. BAIROCH (ú /Lo b .d t., 500) calcula que a produção
de ferro andaria por 0,6 milhões de toneladas em 1770, tendo atingido 12 milhões de toneladas em 1870. No
mesmo período, o consumo de carvão teria multiplicado por 30.
1 3 2 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P c x It ic a

capitalista (primeiro na indústria e depois na agricultura, ela própria ‘industriali­


zada’ com a introdução da maquinaria agrícola).
Marx salienta bem este aspecto129:
“O capital industrial é o único m odo dc cxistcncia do capital, cm que este tem
por função não só a apropriação da mais-valia ou do trabalho excedente, mas
tam bém a sua criação. Ele c, por conseguinte, a condição do carácter capitalista
da produção; a sua existência implica o antagonism o dc elasses entre capitalis­
tas e trabalhadores. À m edida que ele se apodera da produção social, a técnica
c a organização social do processo de trabalho são revolucionadas, e com elas o
tipo económ ico e histórico da sociedade. As outras espécies de capital, que
tinham aparecido antes do capital industrial, no seio de relações dc produção já
ultrapassadas ou cm declínio, não só ficam subordinadas a ele e vêem o m eca­
nism o das suas funções adaptar-se às necessidades dele, como tam bém só na
base dele podem doravante mover-se; e é com esta base que elas vivem e
m orrem , persistem c cacm".

A revolução industrial significou, essencialmente, a transição de um capitalismo


ainda não realizado em todas as suas potencialidades para um novo estádio em que a
‘revolução’das técnicas de produção permitiu que o capitalismo atingisse o seu pró­
prio processo específico de produção, centrado nafábrica enquanto unidade de pro­
dução colectiva e em larga escala, o que se traduziu na separação definitiva e total do
produtor relativamente aos meios de produção e no estabelecimento de uma relação
simples e directa entre empregadores capitalistas e trabalhadores assalariados.130
Por outro lado, a revolução industrial trouxe consigo, pela primeira vez na
história da humanidade, a possibilidade de um crescimento da produção (que se
julgou sem limites) e a tomada de consciência dessa possibilidade. O desenvolvi­
mento da produção deixou de ser limitado pelas forças naturais, sobre as quais o
homem tinha conseguido definitivo domínio. A economia crescia a uma taxa tão
elevada, que, como anotou um observador da época, era como se M a economia
levantasse voo”.
As necessidades de consumo das classes possidentes deixaram de marcar os
limites do desenvolvimento das forças produtivas. A necessidade permanente de
valorização do capital, ilimitada por natureza, fez do capitalismo uma força que
veio revolucionar as condições de desenvolvimento económico de toda a humani­
dade, uma economia susceptível dc progredirem todas as direcções, compreendi­
da a agricultura, mas que encontra na indústria a sua esfera de acção privilegiada.

129 Cfr. K. MARX, O euvres... (ed. Maximilien Rubel), c it , II, 556/557.


130 Cfr. M. D O B B, A Evolução. .., c it , 19.
A v elã s N u n es - 1 3 3

Nas sociedades pré-capitalistas o excedente social assumia, fundamentalmente, a


forma de valores de uso e as classes a quem cabia a direcção da economia só desen­
volviam a produção enquanto tivessem interesse em apropriar-se desses valores de
uso. Este um dos factores que pode explicar as baixas taxas de crescimento econó­
mico e o ritmo muito lento de desenvolvimento das forças produtivas (taxas e
ritmo marcados pela capacidade de consumo das classes dominantes).
Com o advento do capitalismo verifica-se uma mudança radical. O excedente
social assume a forma monetária e é apropriado pelos proprietários dos meios de
produção. Simplesmente, em vez de visar em primeira linha alimentar o consumo
improdutivo dos capitalistas, visa essencialmente a sua acumulação. A concorrên­
cia entre as empresas e as lutas dos trabalhadores obrigam a classe capitalista a
transformar uma parte do excedente em capital adicional.
A própria concorrência obrigava as empresas a vender ao mais baixo preço pos­
sível; por outro lado, como consequência do aumento da produção, a procura dc
trabalhadores poderia ser superior à oferta e provocar alta dos salários. Exactamente
por isso c que a concorrência, ameaçando as margens de lucro, estimulava o sistema
a reagir, introduzindo novas técnicas aptas a propiciar custos mais baixos e economia
de mão-de-obra. Com este sentido é que no Manifesto Comunista se diz que M a bur­
guesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produ­
ção”. Na verdade, o capitalismo é o primeiro modo de produção que traz inscrito nas
suas leis de desenvolvimento uma tendência para o progresso contínuo da técnica e
para a aplicação das conquistas da ciência à actividade produtiva.
Até meados do século XVIII, os aumentos de produtividade eram tão baixos
que não se tinha sequer consciência da possibilidade de progresso (o aumento do
rendimento per capita ter-se-á verificado, a partir da Idade M édia, a um ritmo
inferior a 0,5% ao ano). Depois da revolução industrial, os dados relativos aos
EUA permitem a conclusão dc que a produtividade do trabalho aumentou 25%
durante a primeira metade do século XIX, 100% durante a segunda metade e
200% durante os primeiros 50 anos do século XX.
De resto, em comparação com o que se tinha verificado até então, o próprio
ritmo, a velocidade, o tempo de desenvolvimento adquiriu uma rapidez por vezes
fulgurante. Não admira, pois, que o próprio Manifesto Comunista se refira nestes
termos entusiásticos à vitória da burguesia sobre as antigas classes dominantes131:
“A burguesia desem penhou na história um papel em inentem ente revolucioná­
rio (...). Foi ela que mostrou aquilo de que a actividade hum ana era capaz. (...)
N o decurso dc um dom ínio dc classe de um scculo apenas, criou forças produ-

131 Ver Manifesto..., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., 1,106ss.


1 3 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

tivas mais numerosas e mais colossais do que o que tinham feito todas as
gerações passadas. O controlo das forças da natureza, o m aquinismo, a aplica­
ção da quím ica à indústria c à agricultura, a navegação a vapor, os cam inhos dc
ferro, os telégrafos eléctricos, o desbravam ento de continentes inteiros, a
navegabilidade dos rios...: que século anterior teria suspeitado que semelhantes
forças produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social?"

Em vários campos, aliás, se fizeram sentir as consequências da revolução in­


dustrial: “tudo se passava - escreve Teixeira Ribeiro132 - como se tivesse havido
uma revolução nos costumes, nos modos de vida, na mentalidade”. A industrializa­
ção produziu, efectivamente, uma revolução nos costumes, que um autor apresenta
nestes termos expressivos:133
“Transform ar os costumes, os hábitos, os valores e os sonhos dc um a população
camponesa ou artesana dc ritm os solares e ociosos; destruir comunidades fam i­
liares para sujeitar indivíduos isolados às hierarquias da ordem industrial; am on­
toar essas pessoas habituadas ao ar livre cm sombrios tugúrios dc bairros infectos,
de cuja pavorosa sobremortalidade falam todos os médicos dos anos 1830;
fechá-las quinze horas (ou mais) por dia em fábricas sujas, poeirentas,
alternadam ente geladas ou sufocantes, pois, em certas fábricas, nunca se abre
um a janela, invadidas pelo barulho que condena ao silêncio; am arrá-las a um
lugar, reduzi-las a um gesto, cada vez mais parcelar c repetido; persuadi-las, ao
m esm o tem po, de que este trabalho odioso é a única salvação, neste m undo e
no outro, e de que um indivíduo não som ente vive apenas pelo seu trabalho,
mas ainda de que só vale cm função dele; acrescentar assim ao peso arrasante da
realidade a tremenda insinuação de discursos portadores de ideologias alienantes;
tal é o im enso dram a da industrialização, a outra face do crescim ento”.

As novas técnicas da indústria moderna - particularmente as novas fontes de


energia utilizadas e o desenvolvimento dos transportes134 - ajudam a compreender
que a indústria se concentrasse nas cidades. E aos centros industriais afluiu um
numeroso proletariado miserável, atraído pela mira de conseguir emprego na in­
dústria, onde os salários eram de início mais elevados que na agricultura.

132 Cfr. Economia Política, cit., 180.


133 Cfr. M . PERROT, oò. cit., 74.
134 Marx realça, a este respeito, a importância da máquina a vapor de Watt: só com ela se conseguiu 'um primeiro
motor capaz de produzir por si a sua própria força motriz consumindo água e carváo, e cuja potência é
inteiramente controlada pelo homem. Mòvel e meio de locomoção, citadino e náo campestre como a roda
hidráulica, permite concentrar a produção nas cidades em vez de a disseminar pelos campos. Finalmente, é
universal na sua aplicaçáo técnica e o seu uso depende relativamente pouco das circunstâncias locais” tte
Capital, trad. J. Roy, ciL, 275).
A v e l As N u n e s - 1 3 5

A revolução industrial provocou, com efeito, uma autêntica explosão demográfi­


ca (um crescimento decenal de 10% no final do século XVIII e de 14% na primeira
década do século XIX) e um crescimento acelerado da população urbana (em 1851,
apenas 25% da população inglesa vivia no campo): entre 1801 e 1851, a população
de Manchester aumentou de 35.000 para 353.000 habitantes; a de Leeds, de 53.000
para 152.000; a de Sheffield, de 46.000 para 111.000; a de Birmingham, de 23.000
para 181.OOO.135
As cidades não ofereciam condições para receber tanta gente, e a indústria,
cada vez mais mecanizada, não absorvia toda aquela massa de trabalhadores em
busca de emprego. Daí a miséria social, as condições péssimas de habitação e de
trabalho nas fábricas, os salários baixos para longos dias de trabalho (o horário de
11 horas só foi conquistado cm 1833 136), situação que se agravava nas épocas de
crise da indústria, em que o desemprego se acentuava ainda mais.137
O capitalismo industrial fazia já sentir os seus efeitos, radicalizando a estrutura
social e tomando patentes as suas contradições aos olhos dos observadores atentos.
Disraêli proclamava que a rainha de Inglaterra reinava sobre duas nações, “os ricos
e os pobres”:
“N ão existe com unidade na Inglaterra, existe apenas um agregado... A nossa
rainha... reina sobre duas nações... D uas nações entre as quais não há relação
nem simpatia; que são tão ignorantes dos costumes, dos pensam entos c dos
sentim entos um a da outra com o se morassem cm zonas diferentes ou fossem
habitantes de planetas diferentes; que são formadas por um a educação diferen­
te; que se alim entam de alimentos diferentes, que se regem por costumes
diferentes, que não são governadas pelas mesmas leis".

135 Cfr. F. BEDARIDA, 'Le Socialisme.. ., c i l, 1,259; M. D O BB, A Evolução.., ciL. 314; MORTON/TATE, O movimen­
to operário..., cit., 16.
136 Historicamente, o aumento da jornada de trabalho verificou-se com o advento do capitalismo. Nos séculos XVIII e
XIX, os operáriosda indústria trabalhavam por vezes 17 horas por dia, todos os dias, incluindo os domingos (é conhe­
cida a boutade de Napoleâo: "como o povo come todos os dias, deve ser-lhe permitido trabalhar todos os dias*).
137 “Na realidade - anota P. SAM UELSON, Econom ia..., d l , 154 -, nenhum dos romances de Dickens exagerou
as condições do trabalho infantil, da duraçáo do trabalho diário ou da segurança e sanidade vigentes nas
fábricas do princípio do séc. XIX. A regra eram 84 horas de trabalho semanal. Exigia-se já bastante trabalho
duma criança de seis anos c , quanto aos homens, se um perdia dois dedos numa máquina, ainda lhe restavam
oito para trabalhar- .
Para mais indicações acerca das condições de vida que marcaram as classes trabalhadoras apõs a revolução
industrial, na Inglaterra e na França, ver K. MARX, Le Capital(trad. J. Roy, cit.), 562/563, onde se transcrevem
documentos e depoimentos da época; V1LLERMÉ, ob. cit. Perante estas realidades (de ontem c de hoje), ganha
pleno sentido o que um dia escreveu Aneurin Bevan (a p u d P BARAN , A Economia PoHtica..., cit., 367):
'grande parte do montante do capital de que dispomos actualmente nâo é mais do que o resultado dos salários
que os nossos pais náo receberam'.
1 3 6 - U m a In tro o u ç à o à E co n o m ia P o lític a

E em um número de 1813 escrevia-se na Edimburgh Review.m


“N unca cm toda a história do m undo se verificou um fenóm eno comparável ao
progresso da Inglaterra no decurso do século passado; nunca e cm parte alguma
houve um a tal multiplicação de riqueza e de luxo; nunca as artes conheceram
tão admiráveis invenções; nunca a ciência e a técnica produziram tanto; nunca
a cultura do solo progrediu tanto; nunca o comércio se expandiu assim - e
contudo este m esmo século viu o núm ero dos indigentes quadruplicar na In ­
glaterra para atingir hoje um décim o da população total; apesar das somas
enorm es vindas do im posto ou de donativos privados e consagradas à assistên­
cia pública, apesar da destruição das guerras que arrebanharam m uita gente, a
tranquilidade do país está perpetuam ente ameaçada pela violência dc m ulti­
dões esfomeadas”.

Paralelamente à implantação da indústria capitalista, assiste-se na Inglaterra à


organização dos trabalhadores, quer com objectivos meramente sindicais, quer
com objectivos políticos. Ao longo do século XVIII e durante o primeiro quartel
do século XIX, apesar da ilegalidade a que as remetiam as Combinations Acts (1799
e 1800), foram surgindo várias organizações da classe operária, sob a forma de
lojas, clubes ou sociedades mutualistas (estas últimas legalmente reconhecidas pela
Friendly Societies Act, de 1793).
O objectivo destas organizações, cujos membros provinham muito mais das
indústrias tradicionais (tipógrafos, alfaiates, chapeleiros, carpinteiros, etc.) do que
das indústrias modernas saídas da ‘revolução industrial’, era não só o de assegurar
protecção aos seus aderentes mas também o de fazer frente à baixa dos salários, por
vezes mediante o recurso à greve.
Perante as condições de miséria em que viviam, a primeira atitude dos operári­
os, principalmente nos momentos dc crise, foi a de considerarem as máquinas
culpadas do desemprego, o que levou à sua sabotagem e destruição, numa furia de
que foram primeiras vítimas as Jennies dc Hargreaves e, mais tarde, durante a
grande revolta dos camponeses do Sul, em 1832, também as máquinas agrícolas.
Como bem observa Marx, “é preciso tempo e experiência antes que os operários,
tendo aprendido a distinguir entre a máquina e o seu emprego capitalista, dirijam
os seus ataques não contra o meio material de produção mas contra o seu modo
social de exploração”.139
Entre 1811-1813 e 1815-1816, o chamado Movimento dos Luddites traduziu-se
ainda na destruição dc máquinas (principalmente na indústria de malhas), mas ad-

138 A p ud F. BÉDARIDA, 06. cit., 258.


139 Cfr. K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 307.
A v elã s N u n es - 1 3 7

quiriu já o significado mais fundo de uma revolta contra o regime social existente.
Em 1817, os tecelões de Manchester organizam uma marcha de protesto com des­
tino a Londres, que ficou conhecida como a Marcha dos Blanketeers (de blankets, os
cobertores que eles produziam e que levavam sobre os ombros durante a marcha).
Em 1824 e 1825 são aprovadas duas leis que autorizam os sindicatos e o
recurso à greve, embora punindo a intimidação e o uso da violência. N o espaço
de alguns meses, assistiu-se a uma autêntica explosão de organizações sindicais
e em 1827 surgiu o primeiro jornal sindical, o Trades' Newspaper. O s sindicatos
tinham, porém, regras muito apertadas de recrutamento, efectuado sobretudo
entre os operários qualificados. Só depois de 1829 se inicia, a partir dos distritos
de implantação da indústria têxtil, no Lancashire, o movimento que levaria à
organização de sindicatos modernos, movimento que conheceu o seu ponto alto
em 1830, com a criação da National Association o f United Tradesfor the Protection
o f Labour (N A PL), que em 1831 afirmava ter 100 000 associados, mas que viria
a soçobrar em 1832.
Ao mesmo tempo, a partir de 1824, assiste-se a uma grande expansão do
movimento cooperativo, com base nos ensinamentos e no impulso de Robert Owen.
Entretanto - como observa A. Sedas Nunes140- a burguesia industrial via-se
“envolvida num longo e rude conflito colectivo com os detentores tradicionais do
poder económico e político: os senhores da terra, que em seu próprio benefício
haviam legislado de modo a manterem artificialmente elevados os preços dos pro­
dutos agrícolas c a limitarem severamente a importação de cereais”. M as a verdade
é que a riqueza e o poderio económico da burguesia industrial eram agora bastante
superiores aos da aristocracia rural e mesmo da oligarquia financeira. Não admira,
por isso, que o velho compromisso de 1689 (mesmo com as alterações, favoráveis
à burguesia, que lhe foram sendo introduzidas) viesse a ser substituído por uma
nova composição de interesses, traduzida na alteração do xadrez das forças políti­
cas que resulta do Reform Bill (1832), o qual veio acabar com o monopólio
político da aristocracia e da burguesia financeira, outorgando à nova classe diri­
gente industrial o direito de representação no Parlamento.
As classes trabalhadoras e a pequena burguesia, que tinham apoiado a luta pela
reforma, continuavam afastadas da participação política. Só que o proletariado
industrial não era agora o mesmo que, durante os primeiros tempos do capitalismo
industrial, tinha encarado a sua situação ora passivamente, ora desesperadamente.
Este proletariado “organizou a reivindicação, desencadeando-se, assim, uma luta

»40 cfr. A. SEDAS NUNES, oò. c/f., 289.


1 3 8 - U m a I n t r o d u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a

de classes, não já (como antes) na parte alta da estrutura social, entre industriais e
latifundiários, mas entre operários e capitalistas”.141
Com o reacção ao Reform Bill, 1833 foi um ano de violenta agitação por parte
dos trabalhadores.
Por iniciativa de Owcn c John Doherty (o antigo presidente da NA PL), é
criada a Societyfor Promoting National Régénération, cujo objectivo fundamental era
a defesa da jornada dc oito horas.
No plano sindical, cria-se em 1834 um grande sindicato geral, Grand National
ConsolidatedTrades Union (GNCTU), que em poucos meses atinge 500 000 membros.
Sucedem-se as greves e os lock-out, mas a acção adversa dos empresários e a repressão
do governo, a par de dificuldades internas, levarão à dissolução da G N C T U logo em
Agosto de 1834.142 Por esta altura, registam-se os primeiros sinais (ténues, é certo) de
aceitação da contratação colectiva e da ideia de um salário mínimo legal.143
N o plano político, constitui-se o primeiro partido operário que a história re­
gista, o Partido Cartista, que haveria de desenvolver uma importante luta dc massas
até à sua dissolução em 1848.144
As reivindicações do Partido constavam da Cariado Povo e resumiam-se a estes
seis pontos: sufrágio universal; abolição da qualificação com base na propriedade;
parlamentos eleitos anualmente; igualdade dos colégios eleitorais; salário para os
parlamentares; voto secreto. Este programa foi na altura considerado revolucioná­
rio (subversivo), pois o sufrágio universal era então encarado como autêntica ‘revo­
lução permanente’, acreditando-se que, mal os trabalhadores gozassem de poderes
políticos, estaria em perigo o elemento básico da sociedade capitalista - a propri­
edade privada dos meios de produção. A maioria dos cartistas admitia também,
aliás, que a adopção do sufrágio universal se viria a traduzir na instauração de uma
sociedade socialista. Nem de um lado nem dc outro se antevia que o sufrágio

141 Cfr. A SEDAS NU N ES, op. loc. cit..


142 Só em 1865 viria a ser criado o primeiro sindicato dc trabalhadores agrfeolas (inicialmente limitado à Escócia),
facto que Marx considerou um 'verdadeiro acontecimento histórico*, (cfr. K. M ARX, Le Capital, ( trad. |. Roy,
d l) , 615)
143 Cfr. M. D O B B, A evolução.. ., cit.» 389/390.
144 Sobre o movimento cartista, cfr. P. SWEEZY, Socialismo, cit., 111-114 e F. B ÉD A RID A , "Le socialisme en
Angleterre..., cit., 319-328 e "Le socialisme anglais..., cit., 558-567.
Perante as lutas operárias, ficou em evidência a desadequaçáo do aparelho repressivo, reduzido na prática às
forças armadas. A náo existência dc polícias favorecia as acções dc rua das classes trabalhadoras por falta de
uma actuação preventiva. Em Londres c cm Paris a dimonsáo e a violência das manifestações alimentavam
o receio de que poderia estar em causa a ordem burguesa. A intervenção das forças armadas na repressão das
acções de rua transformava-se rapidamente em sangrentos massacres, conferindo às lutas sociais o carácter de
guerra civil. Por isso se criou a polícia dc Londres cm 1835, após as lutas, greves e lock-ouls resultantes dos
protestos contra o Reform Bilide 1832 (1833) e contra a dissolução do GN CTU (1834).
A v ela s N u n es - 1 3 9

universal pudesse não ser capaz de anular o peso da ideologia dominante e pudes­
se, por isso mesmo, revelar-se um factor de ‘anestesia’ da contestação operária, de
‘integração’ dos contestatários dentro do ‘sistema’, de ‘apólice de seguro’ contra o
perigo de revolução.
Do lado das classes dominantes, o sentido da evolução acabaria por consagrar
a supremacia da burguesia industrial. Enquanto deteve o poder político, a aristo­
cracia rural legislou de modo a proibir ou limitar fortemente a importação dos
cereais, a fim de beneficiar dos preços altos do trigo. Este foi o escopo das famosas
Com Laws} promulgadas em 1815.
Com o desenvolvimento da industrialização, as necessidades crescentes de pro­
dutos alimentares para corresponder à procura de uma população em aumento
levaram ao cultivo de novas terras menos férteis e ao cultivo intensivo das terras
até aí cultivadas. O resultado foi o aumento dos custos de produção dos produtos
agrícolas (nomeadamente do trigo), cujo preço subia até ao nível do custo de
produção (mais elevado) das terras menos férteis (de outro modo, ninguém culti­
varia estas terras marginais). Subia o preço de todo o trigo, mesmo do trigo produ­
zido a custos mais baixos nas terras mais férteis. Daqui resultava um ganho para
aqueles que exploravam as terras mais férteis (a renda diferencial, correspondente à
diferença entre o custo de produção nas terras menos férteis (custo marginal =
preço) e o custo de produção (mais baixo) das terras mais férteis.
Este ganho (esta ‘renda’) cabia, num primeiro momento, aos rendeiros capitalistas
que promoviam o cultivo das terras mais férteis. Só que, terminado o contrato de
arrendamento, a concorrência entre os rendeiros para obter o direito de tratar as terras
mais férteis permitia aos proprietários das terras beneficiar do aumento da renda da
terra, aumento que tendia a coincidir com a diferença acima referida (para ganharem
ou manterem o direito de cultivar as terras mais férteis, os rendeiros dispunham-se a
pagar a mais, a título de renda da terra, o montante da renda diferencial).
Assim se explicava o aumento das rendas da terra, em benefício dos grandes
proprietários, que viviam apenas dessas rendas, sem participar, de qualquer modo, na
actividade produtiva. Por outro lado, o aumento do preço do trigo arrastaria consigo,
necessariamente, o aumento dos salários pagos não só pelos rendeiros capitalistas
mas também pelos empresários industriais. Admitindo que os salários tendiam a
coincidir com um valor correspondente ao mínimo de subsistência, a subida do
preço do trigo (base da alimentação) implicava um aumento do custo de vida (do
custo da subsistência). Para que os operários pudessem manter o seu poder de com­
pra a este nível mínimo (abaixo do qual os salários não poderiam manter-se dura­
douramente), era indispensável que aumentassem os salários nominais.
1 4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o iít ic a

Esta, muito sumariamente, a explicação de Ricardo para o facto de, nas condi­
ções da Inglaterra do tempo e em virtude da vigência das leis dos cereais, subirem as
rendas das terras e a prosperidade dos landlords, enquanto a jovem indústria capi­
talista se ia debatendo com dificuldades, agravadas nos períodos de crise, clara­
mente reflectidas na baixa das taxas de lucro.
David Ricardo, justamente considerado “o profeta económico da burguesia
industrial”, considerava um ‘absurdo’ inadmissível o facto de ser afinal a classe
ociosa dos proprietários de terras a ganhar com o desenvolvimento da indústria.
Por isso desencadeou uma luta sem tréguas contra este estado de coisas, advogando
a revogação das Leis dos Cereais e a prática do livrecambismo, de modo a permitir a
entrada livre de trigo importado na Inglaterra a preços mais baixos, assim evitando
a subida das rendas, a subida do preço do trigo, a alta dos salários monetários e a
consequente redução da taxa de lucro.
Se “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente como a Santa Inquisi­
ção tinha conquistado a Espanha” (como Keynes sublinhou), não admira que as
suas teses livrecambistas tenham encontrado eco no Parlamento inglês, que, ao
decidir a revogação das Com Laws, em 1846, decreta, efectivamente, a vitória
definitiva da burguesia industrial sobre a aristocracia rural inglesa. Com o Marx
salientava, logo em 1848, no seu Discurso Sobre o Livrecambismo, “a abolição das
leis dos cereais na Inglaterra foi o maior triunfo que o livrecambismo alcançou no
séc. XIX”.
A classe operária aliou-se inicialmente com osfree-traders no combate aos últi­
mos vestígios da feudalidade, até à abolição das Com Laws. A velha aristocracia
procurou tirar desforço desta derrota, viabilizando a aprovação no Parlamento, em
Junho de 1847, da lei que impôs a redução do horário de trabalho para dez horas,
aspiração por que os operários vinham lutando havia mais de trinta anos. À medida,
porém, que o proletariado se ia afirmando como força social c política, e uma vez
ultrapassada a luta que a burguesia industrial, como classe que aspirava ao poder,
teve de travar contra a aristocracia feudal, podemos dizer - com Sedas Nunes ,4S -
que “latifundiários e industriais foram-se aproximando uns dos outros, tendendo a
fundir-se, através de vínculos políticos, financeiros, matrimoniais e outros, numa só
classe dominante; do mesmo passo, o livre comércio por sobre a fronteira das nações
e o imperialismo colonial abriam à indústria britânica insuspeitadas perspectivas de
incremento e prosperidade”. Como escreveu Joan Robinson, o livrecambismo “foi,
verdadeiramente, uma projecção dos interesses nacionais britânicos”.146

145 Cfr. A . SEDAS NUNES, 06. cil.. 290.


146 Cfr. |. ROBINSO N, F ilo s o fia ..cit., 127.
A v e i A s N u n e s - 141

8 . A R ev o lu ç ã o F ran cesa

a) O seu carácter exemplar como revolução burguesa.


Antes da Revolução Francesa de 1789 verificaram-se as revoluções burguesas
na Holanda (séc. XVI), na Inglaterra (séc. XVII) e na América (séc. XVIII). Já no
séc. XIX, ocorreram as revoluções burguesas na Alemanha e na Itália.147
Simplesmente, a Grande Revolução Francesa apresenta, perante todas elas, um
carácter exemplar que explica a sua universalidade e a distingue do jogo de compro­
missos que levaram a burguesia a partilhar o poder, na Holanda, na Inglaterra, na
América, na Itália, na Alemanha e no Japão.
No entanto, mesmo no caso da Revolução Francesa, a tomada das estruturas do
poder político representou apenas a conquista pela burguesia da única esfera do
poder que ainda lhe escapava. Na verdade, a burguesia era já a força económica
dominante, era a classe mais rica e mais culta, as relações capitalistas e a ideologia
burguesa já eram dominantes no seio das sociedades feudais em profunda desagrega­
ção. Como vimos já, o processo de desenvolvimento do capitalismo já vinha de trás;
as revoluções burguesas foram o ponto culminante desse processo, ponto a partir do
qual a implantação da nova ordem económica, social e política se acelerou.
Com parando a ‘revolução inglesa* com a Revolução Francesa, Jaurès não hesi­
tou em designar aquela de “estreitamente burguesa e conservadora” e em qualificar
esta de “largamente burguesa e democrática”. A diferença de condições em que um
e outro movimento surgiram poderão, aliás, explicar a sua diferente natureza.
Na Inglaterra, a nobreza tinha poucos privilégios (v. g. os seus membros pagavam
impostos como toda a gente) e só os lords constituíam uma ordem legalmente distinta.
Com a Guerra das Duas Rosas, quase desapareceu a antiga aristocracia que se
realizava no exercício das virtudes militares, e a nova nobreza reconstituída pelos
Tudor não sentia qualquer preconceito que a impedisse de se dedicar aos negócios
(a riqueza passou muito cedo a definir a situação social das pessoas).
As necessidades da expansão marítima e colonial originariam, por sua vez, um
certo grau de solidariedade de interesses entre a aristocracia rural e a burguesia.
Nestas condições, aceitando a aristocracia a nova ordem burguesa, foi fácil um
compromisso de partilha do poder, sem ter que ser reivindicada pela burguesia a
igualdade de direitos entre todos os homens. As liberdades fundamentais eram recla­

147 Como releva A. SO B O U L, "La Révolution Française..., cit., 27, "os movimentos de unificação nacional que
a Europa conheceu no séc. XIX devem, a mais de um título, ser considerados como revoluções burguesas.
Qualquer que seja, com efeito, a importância do factor nacional no Risorgimento ou na unifícação alemã, as
forças nacionais não teriam podido atingir a criação de uma sociedade moderna e de um estado unitário, se
a evolução económica interna não tivesse tendido para o mesmo objectivo."
1 4 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l It ic a

madas como uma conquista, a partir da Magna Carta (1215), sem necessidade de
apelar para o direito natural. Como salienta Albert Soboul, “a Constituição britâ­
nica reconhecia não os direitos do homem, mas os dos Ingleses: faltava o univer­
salismo às liberdades inglesas”.148
Diversa era a situação na França do Ancien Regime.
1) O desenvolvimento do comércio e da indústria artesana, a partir dos séculos
X e XI, conferiram importância à riqueza mobiliária e esta veio promover social­
mente a burguesia, que no século XIV seria admitida nos Estados Gerais.
2) No século XV III, não obstante, eram camponeses 90% dos 25 milhões de
habitantes da França. Camponeses livres, pois a servidão só vigorava em regiões
muito restritas.149
3) A propriedade da terra encontrava-se fortemente concentrada nas mãos da
pequena minoria do clero e da nobreza, cabendo apenas 35% das terras aos 22 ou
23 milhões de camponeses que viviam em condições particularmente duras.150
4) A miséria desta grande massa de pessoas agravou-se ainda pelo aumento da
população que marcou o século XVIII francês e pela acentuada subida do custo de
vida que então se verificou (62% entre 1726-1741 e 1785-1789) e que provocou
uma baixa de 25% no poder de compra das camadas populares, em cujo orçamento
de despesas o pão representava em média 50%, chegando a atingir 88% em 1789.151
Sobre esta grande maioria de franceses pobres recaía todo o preço da sobrevivên­
cia do Ancien Regime, que se lhes tornava dia a dia mais odioso.
5) A nobreza, por sua vez, perante a crise que afectou a agricultura francesa
durante toda a década de 70 do séc. XVIII e perante a subida do custo de vida,
aumentou as suas exigências junto dos camponeses, muitos dos quais, arruinados e
miseráveis, abandonaram os campos, constituindo grandes grupos de vagabundos,
que frequentemente se revoltaram, incendiando e saqueando os castelos senhoriais
e executando mesmo, em alguns casos, os senhores dos respectivos domínios.

148 Cfr. A. S O B O U l, últ. ob. c/f., 16.


149 Em outras regiões da Europa a servidáo só viria a ser oficialmente abolida bastante mais tarde: na Prússia, em
1807 (mantendo-se a obrigação de corveia até 1861); na Boémia e na Hungria, em 1848; na Rússia, em 1861.
150 É conhecida a descrição de La Bruyère: “Vêem-se certos animais ferozes, machos e fêmeas, espalhados pelos
campos, negros, lívidos e todos queimados pelo sol, agarrados à terra que revolvem e remexem com invencível
obstinação; possuem algo como uma voz articulada e, quando se equilibram sobre os pés, mostram um rosto
humano; e, com efeito, sào homens. Ã noite retiram-se para covis, onde vivem de páo negro, água e raízes".
151 Cfr. A . SO B O U L, "La Révolution Française..., cit., 9. Segundo uma conhecida lei econômica (a lei de EngeD.
a percentagem do rendimento gasta em bens de primeira necessidade diminui à medida que aumenta o
rendimento disponível das famílias. Se as estatísticas indicam que os bens alimentares absorvem uma parcela
importante do rendimento disponível, esse é um sinal inequívoco de pobreza acentuada.
A v elà s N u n es - 1 4 3

6) Ao mesmo tempo, nas vésperas da Revolução de 1789, a burguesia domina­


va a finança, o comércio e a indústria, fornecendo ao estado os quadros adminis­
trativos e os recursos financeiros de que este carecia.
7) Entretanto, o comércio tinha-se desenvolvido, ocupando o comércio com as
colónias uma posição importante. Bordéus, Marselha, Le Havre e Nantes conhe­
ciam a prosperidade como portos de comércio, ao mesmo tempo que neles se
desenvolvia a indústria de construção naval.
8) A indústria francesa adquiria também um certo relevo. Em 1785, os produ­
tos industriais representavam metade do valor das exportações francesas. Nas vés­
peras da Revolução, Paris tinha mais de 500 mil habitantes, dos quais cerca de
20% (100.000) seriam operários assalariados. Em Rouen e em Le Havre desen-
volvera-se a indústria têxtil algodoeira; em Lyon, a das sedas; a metalurgia flores­
cia na Alsácia, na Lorena e nas Ardenas; na indústria de vidros, a Saint-Gobain era,
na época, talvez a empresa de técnica mais avançada. Já não eram raras as manu­
facturas que empregavam entre 50 a 100 operários, principalmente na indústria
metalúrgica e nas minas (4000 operários trabalhavam nas minas de carvão da
Compagnte de A nzin ). A exigência dos novos processos técnicos não deixava de se
fazer sentir (recorde-se que foi na França que Denis Papin experimentou a sua
marmita a vapor em 1690 e construiu o primeiro barco a vapor em 1707).
9) Contudo, o sistema das corporações medievais mantinha-se de pé, com as suas
tradições conservadoras e técnicas rotineiras. Apesar do razoável desenvolvimento
das manufacturas, estas eram cm geral de pequena dimensão e nelas predominava o
trabalho manual. O tipo de organização mais corrente era ainda o da indústria assa­
lariada no domicílio, com centros de produção dispersos, utilizando trabalhadores
que muitas vezes não estavam ainda totalmente separados dos seus instrumentos de
produção e que frequentemente conservavam a posse de uma pequena porção de
terra, situação que não tomava possível ao capitalista exercer um controlo directo
sobre a produção nem impor aos trabalhadores a sua própria disciplina.
Em conclusão. Com o desenvolvimento do comércio e da indústria, a agricul­
tura tinha perdido importância como fonte de riqueza e de poderio económico,
que agora eram apanágio, não da nobreza rural, mas da burguesia de comerciantes
e de industriais. Diferentemente do que aconteceu na Inglaterra, a nobreza e o
clero mantiveram até mais tarde os seus privilégios, resistindo a todas as tentativas
de os diminuir. Sieyès denunciava: “A usurpação é completa; eles [os nobresj
reinam verdadeiramente”. A detenção desses privilégios verificava-se, aliás, em
termos perfeitamente desajustados relativamente à distribuição social da riqueza e
do poder económico.
1 4 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o iít ic a

Pois foi contra esses privilégios da nobreza e do clero que se fez a Revolução
Francesa, esse “oceano popular” (Romain Rolland), fruto do descontentamento da
burguesia rica e culta e da revolta das camadas populares (do campo e das cidades),
obra do Terceiro Estado, à frente do qual se colocou a burguesia revolucionária, a
única classe que então estava em condições de dirigir a luta contra a ordem feudal.
Durante muito tempo, a grande aspiração da burguesia francesa consistiu em
alcançar um título de nobreza, aspiração que, a partir do século XVI, muitos dos
seus membros conseguiram concretizar, adquirindo os cargos públicos que a mo­
narquia vendia, atribuindo-lhes privilégios corporativos ou títulos de nobreza pes­
soais ou hereditários.
No séc. XVIII, porém, a filosofia das Luzes deitava por terra a base ideológica
do Ancien Regime, ao mesmo tempo que a burguesia se ia engrandecendo em
número, em poder económico, em bagagem cultural, em consciência de classe:
“classe ascendente, crente no progresso, tinha a convicção de representar o interes­
se geral e de assumir a responsabilidade da nação; classe progressiva, exercia uma
atracção decisiva tanto sobre as massas populares, como sobre os sectores dissi­
dentes da aristocracia”.152
Enquanto a nobreza feudal invocava os seus direitos históricos para reclamar,
perante o absolutismo monárquico, maior dose de poder e de liberdade, a fim de
aumentar e consolidar os seus privilégios feudais, a burguesia culta do século
XVIII, inspirada na filosofia de John Locke, invocava a razão e o direito natural
para reclamar a abolição dos privilégios e a igualdade de direitos.
Perante a obstinada resistência das classes privilegiadas a qualquer compro­
misso que admitisse a burguesia como sua associada no poder, à burguesia só
restava, para sair vitoriosa, a aliança com as camadas populares, predom inante­
mente camponesas, unidas na sua miséria e no seu ódio à feudalidade.153
Anti-feudal, a Grande Revolução Francesa é, porém, essencialmente, uma re­
volução burguesa, um momento importante - e dos mais importantes, atendendo à
repercussão que iria ter em vários outros países, talvez mesmo em todos os países
- no longo processo que permitiu à nova burguesia apear dos seus privilégios as
antigas classes feudais, ocupar o poder e realizar, através do controlo do poder de
estado, as mudanças institucionais capazes de assegurar as condições favoráveis ao
livre desenvolvimento do capitalismo.154

152 Cír. A. S O B O U L, últ. ob. c/f., 6.


153 Dado o peso das populações camponesas e a violência das jxq u e rie s, não admira que a questão agrária tenha
ocupado uma posição importante no quadro do movimento revolucionário, que, em 17 de Julho de 1793,
aboliria definitivamente todos os privilégios feudais.
154 'É com razão que se lhe chama grande - escreveu Lenine, citado por A. M ANFRED, A Revolução Francesa,
A v elã s N u n es - 1 4 5

Na transição do feudalismo para o capitalismo, a Revolução Francesa repre­


senta, em comparação com as outras revoluções burguesas do séc. XVIII e do séc.
XIX, a via realmente revolucionária, centrada num terreno absolutamente político,
de luta pela tomada do poder, luta que se arrastou até à derrota de um dos conten­
dores (as classes feudais) e à vitória do outro (a burguesia), que destruiu a base
económica do poder dos senhores feudais e liquidou fisicamente uma boa parte
dos membros da velha classe dominante.
A Revolução destruiu a propriedade feudal sobre a terra e libertou os campo­
neses de todas as sujeições, abrindo o caminho da liberdade aos pequenos produ­
tores e criando as condições para a divisão das massas camponesas em proprietários
capitalistas e trabalhadores assalariados. A liberdadepessoal é, com efeito, condição
do salariato. Só quando os trabalhadores adquiriram o estatuto de homens livres
ficaram em condições de poder contratar, podendo então vender a sua força de
trabalho. A emergência de trabalhadores livres permitiu o aparecimento da força de
trabalho como mercadoria autónoma.
A Revolução aboliu as corporações e os monopólios corporativos, uniformizou o
sistema de pesos e medidas e eliminou as alfândegas no interior do espaço geográfi­
co da França, removendo assim os factores que impediam a unificação do mercado
nacional e assegurando à indústria capitalista a liberdade económica de que ela carecia.
A par desta alteração das estruturas económicas e sociais, a Revolução veio
proclamar todos os cidadãos livres e iguais em direitos; eliminou antigas autono­
mias e privilégios locais e regionais; consolidou a unidade nacional ainda imper­
feita em 1789; dotou a nação francesa de um aparelho de estado moderno e de
uma administração racionalizada e provocou alterações profundas nas estruturas
políticas do país.
Por tudo isto, é com inteira razão que os autores destacam o significado e a
importância da Revolução Francesa na criação de condições favoráveis ao desen­
volvimento de novas relações sociais de tipo capitalista.
b) A nova ordem burguesa
Em 26 de Agosto de 1789, a Assembleia Constituinte aprovou os dezassete
artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em cujo art. 1.° se procla­
ma que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” e em cujo
art. 17.° a propriedade é também considerada como direito “inviolável e sagrado”.

cit., 377. Pela sua classe, em proveito da qual trabalha, pela burguesia, fez tanto que todo o século XIX, esse
século que deu a civilização e a cultura a toda a humanidade, decorreu sob o signo da Revolução Francesa.
De um extremo ao outro do mundo, nada mais íoi preciso do que pAr em prática, realizar parcialmente, acabar
o que os grandes revolucionários franceses da burguesia tinham criado
1 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

Assim se aboliam todos os privilégios pessoais e todas as servidões, para se


encarar o homem em geral e os seus direitos em geral. Assim se proclamava a
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mas uma liberdade e uma igualdade que ti­
nham de confinar-se aos quadros impostos pelo reconhecimento da propriedade
(privada) como um dos direitos sagrados e invioláveis, que só conhece como limi­
tes “os que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direi­
tos” (art. 17° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). Ao proclamar a
igualdade como igualdade de direitos e ao consagrar o direito de propriedade entre
os direitos naturais e imprescritíveis, a Assembleia Constituinte abria uma contra­
dição que a manutenção da escravatura (só abolida, para os negros das colónias
francesas, por lei de 4 de Fevereiro de 1794) e a organização censitária do sufrágio
vieram pôr a claro.
Dentro deste espírito, compreende-se que, cinco dias depois da aprovação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Assembleia Constituinte come­
çasse a discussão de uma proposta de Mounier, que retomava a tese, já advogada
em Julho por Sieyès, da instituição do regime do sufrágio censitário e da divisão dos
cidadãos em cidadãos activos e cidadãospassivos, proposta que viria a ser transforma­
da em diploma legal em Dezembro de 1789.
Citoyenspassifs eram todos os que não pagassem determinado montante de im­
posto, excluídos do direito de votar e de ser eleito.
Citoyens actifs eram aqueles que tinham determinado montante mínimo de ren­
dimento e dividiam-se em três categorias, conforme a contribuição que pagavam:
os que designavam os eleitores; os eleitores, a quem competia nomear os deputa­
dos; os que podiam ser eleitos deputados.
O movimento revolucionário, que começara com a rejeição do sistema de vota­
ção por ordens ou estados, considerado discriminatório por assegurar a maioria à
nobreza e ao clero, vem afinal a adoptar um sistema de sufrágio igualmente discri­
minatório, mas agora em proveito dos proprietários e dos ricos e em desfavor dos
pobres e não dos proprietários. De acordo com este critério, apenas 4 milhões de
franceses (de um total de cerca de 25 milhões) eram considerados cidadãos activos e
só uma pequena minoria de possidentes - a “nova aristocracia dos ricos” de que falava
Marat - ficava a ter acesso às cadeiras da Assembleia Nacional. Albert Soboul subli­
nha que “os direitos que a burguesia constituinte tinha concedido ao homem e ao
cidadão foram apenas os do homem burguês, continuaram abstractos c teóricos para
a massa dos cidadãos passivos”.155 Na Inglaterra do século XVIII apenas uma pe­
quena minoria de 300.000 homens gozava do direito de voto. Daí a conclusão de

155 Cfr. A. SO BO UL, "U topie..., cit., 197.


A v elã s N u n es - 1 4 7

Rogério Soares: “as representações políticas da burguesia impõem uma forma de


Estado Liberal que não é outra coisa senão uma aristocracia”.
A este mesmo autor vamos buscar a síntese da‘filosofia’ inspiradora do sufrágio
censitário, ‘legitimadora’ da nova aristocracia do capital: “Participar na publicida­
de significa ser produtor, e ser produtor equivale a ter uma família independente,
em cujo seio pode alcançar-se a dimensão de sujeito crítico da coisa pública. Só
vale como homopoliticus o pai de família dono de empresa”.156
Entendia-se, por um lado, que só aqueles que tivessem um certo rendimento
seriam capazes da independência e do esclarecimento exigidos a um sujeito políti­
co racional. Daí o afastamento do sufrágio imposto às mulheres, aos filhos e a
todos os economicamente dependentes, cujos interesses se supõem idênticos aos
do pai de família e do patrão, só a estes cabendo representar aqueles. A única
excepção a esta regra eram os funcionários públicos, porque, em relação a eles, não
pode aplicar-se a regra de que a sua representação cabe ao patrão.
Aceitava-se, por outro lado, que, garantida a liberdade para todos (a liberdade
de empresa), qualquer um podia tornar-se burguês; por isso, excluir os que o não
conseguissem significava apenas o afastamento dos incapazes.
Repare-se nesta proclamação eloquente feita na Assembleia Nacional, durante
a discussão do projecto de Constituição do ano III, pelo deputado Boissy d’Anglas
(23.6.1795): “Deveis garantir a propriedade do rico. A igualdade civil, eis tudo o
que o homem razoável pode exigir... Devemos ser governados pelos melhores: os
melhores são os mais instruídos e os mais interessados na manutenção das leis;
ora, com bem poucas excepções, só encontrareis tais homens entre os que, possu­
indo uma propriedade, estão ligados ao país que a contém, às leis que a protegem,
à tranquilidade que a conserva, e que devem a esta propriedade e às vantagens que
ela propicia a educação que os tornou aptos a discutir leis que fixam a sorte da
pátria. O país governado pelos proprietários vive na ordem social, aquele em que
os não-proprietários governam está no estado de natureza”.
Por vezes a justificação coloca mesmo os destituídos de propriedade num plano
idêntico ao do “inimigo interno”: “aqueles que, pela sua pobreza, se vêem conde­
nados a uma dependência constante, ou ao trabalho à jorna, não possuem mais
inteligência do que as crianças, nem estão mais interessados do que os estrangeiros
no bem-estar nacional”.157
O sistema consagrado nas leis da Revolução era, aliás, a concretização das
concepções filosóficas que vinham de Voltaire e dos enciclopedistas.

156 Cfr. R. SOARES, Direito Público..., cit, 58-62.


157 Benjamin Constant, apod V. S. PO KROVSKI, História das Ideologias, cit.. Ill, 75.
1 4 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

D ’Holbach, por sua vez, afirmou que “só o proprietário é um verdadeiro cida­
dão”. E Diderot sustentou que “é a propriedade que faz o cidadão”. E Rousseau
defendeu, na 9a das suas Lettres de la Montagne (1762), que “o direito de proprieda­
de é o mais sagrado de todos os direitos dos cidadãos” e que “a própria propriedade
é apenas um meio para a aquisição sem entraves e posse segura”.
Os artigos de Vòltaire no Dictionnaire Philosophique sobre Egalité, Économie
Publique e Propriétésão uma autêntica antologia do conservadorismo. Segundo o
filósofo, a sociedade tem de estar necessariamente dividida cm duas classes, “uma
dos ricos que mandam, outra dos pobres que servem”, acrescentando que “o género
humano, tal como é, só pode subsistir se existir uma infinidade de homens úteis
que não possuam absolutamente nada; porque, com toda a certeza, um homem que
não tenha dificuldades não deixará a sua terra para vir trabalhar na vossa; e, se
tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um mestre de cerimónias que
vo-lo fará”.158
Chama-se a atenção para este último trecho para realçar o seu significado: os
homens cujas concepções alimentaram os ideais dos revolucionários de 1789 enten­
diam que a nova ordem burguesa devia assentar no postulado de que a propriedade
de uns implica a exclusão da propriedade de todos os outros (a infinidade dos homens
úteis que nãopossuem absolutamente nada). Aqui transparece o conceito da propriedade
burguesa, propriedade perfeita, absoluta e excluenteyimplicando a separação completa
dos não-proprietários relativamente aos meios de produção. Aqui transparece tam­
bém o reconhecimento da estrutura de classes própria da sociedade capitalista.
Fica assim esclarecido o significado da Igualdade e da Liberdade proclama­
das na famosa Declaração de 1789. E o seu sentido ficará ainda mais cabalmente
elucidado se atentarmos numa outra lei saída da Assembleia C onstituinte, a Lei
Le Chapelier (14-6-1791), que informou o quadro jurídico do jovem capitalismo
francês durante quase um século. Na sequência do espírito da chamada Lei de
Allarde (14-3-1791), que abolira as corporações medievais, o art. 1.° da Lei Le
Chapelier dispõe: “Sendo uma das bases fundamentais da Constituição francesa a
liquidação de todas as espécies de corporações dos cidadãos do mesmo estado e
profissão, é proibido restabelecê-las de facto, qualquer que seja o pretexto e
qualquer que seja a forma”.159 Assim se fechava, no respeitante aos sindicatos
operários, a porta aberta por diploma de 21-8-1790, no qual se concedia a todos

158 O mesmo Voltaire defende, cm 1737 (La defense du Mondain), que 'o luxo dos ricos faz viver os pobres e é
um fndice da prosperidade dos impérios" e afirma, no artigo Égalité da Enciclopédia, que "se a canalha se põe
a pensar está tudo perdido'.
159 Em Portugal, o processo de liquidação da organização corporativa começa ainda antes da revolução liberal
(1820). Em 1761 (reinado de D. José) as organizações corporativas foram privadas do direito de emitir as licenças
A v e ià s N u n e s - 1 4 9

os cidadãos o direito de livremente se reunirem e formarem entre si sociedades


e associações livres.160
O art. 2.° da LeiLe Chapeliervzxo proibir qualquer forma de coalição ou combina­
ção entre operários (ou entre empresários), proibindo igualmente “estabelecer acordos
sobre os seus pretensos interesses comuns”. E o art. 4.° dispunha deste modo: “Se,
contra os princípios da liberdade e da constituição, os cidadãos ligados às mesmas
profissões, artes e ofícios tomarem entre si deliberações e convenções tendentes a recu­
sar concertadamente ou só a um preço determinado fornecer o concurso da sua indús­
tria ou das suas actividades, as ditas deliberações e convenções, acompanhadas ou não
de juramento, serão declaradas inconstitucionais, atentatórias da liberdade e da decla­
ração dos direitos do homem e de nenhum efeito (...)”. Os arts. 7.° e 8.°, finalmente,
proibiam qualquer actuação “contra os operários que usassem da liberdade concedida
pelas leis constitucionais ao trabalho e à indústria” e, em geral, “contra o livre exercício
da indústria e do trabalho que assiste a todas as espécies de pessoas”.
Este o regime necessariamente postulado pelos princípios individualistas invoca­
dos pelo advogado Le Chapelier no relatório que acompanhava a sua proposta de lei.
No plano filosófico-político, aí se afirmava, na esteira de Rousseau: “Não há
corporações dentro do Estado. H á apenas o interesse particular de cada indivíduo
e o interesse geral. Não é permitido a ninguém inspirar aos cidadãos um interesse
intermédio, separá-los da coisa pública por um espírito de corporação”. Daí a
conclusão lógica de que “cabe às convenções livres de indivíduo para indivíduo
fixar o salário de cada trabalhador.”161

de fabrico; a influência do pensamento dos fisiocratas durante o reinado de D . Maria I contribuiu para a dimi­
nuição da importância das velhas corporações. Finalmente, o decreto de extinção das corporações dos mesteres
viria a ser promulgado cm 7 de Maio de 1834, cujo art. 1odispõe: "Ficam extintos os lugares de Juiz e Procu­
radores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e Quatro, e os Grémios dos diferentes ofícios", instituições que no
Relatório são qualificadas como "outros tantos estorvos à indústria nacional, que para medrar muito carece da
liberdade, que a desenvolva, e da protecção que a defenda".
160 Só na segunda metade do séc. XIX (lei de 25/5/1864) viria a ser reconhecido aos operários o direito de coalição,
ficando aberta a possibilidade legal de recurso à greve, embora a medida fosse de reduzido alcance, por
continuar a não existir liberdade de associação. Vinte anos depois, a lei de 21/3/1884 veio reconhecer a liber­
dade de associação profissional, tornando legais os sindicatos operários, medida que o ministro do interior do
governo de Jules Ferry, Waldeck-Rousseau, considerou então como o melhor meio para enquadrar a acção
sindical no esforço de melhoria da condição humana e afastá-la do pendor revolucionário.
161 O contratualismo foi um dos tópicos do liberalismo. Partindo do pressuposto de que todos os homens são livres
e iguais, defendia-se que todos os negócios e todas as relações sociais deveriam ser regulados por meio de
contrato, a 'lei' que as duas partes acertavam entre elas, em plano de igualdade (Ver: A. HESPANHA, Prática
Social..., cit.).
No que se refere ao 'contrato de trabalho', constitui mérito de Adam Smith (um dos pais fundadores do libera­
lismo) ter posto em evidência que este 'contrato' nâo era um contrato como os outros, porque as duas partes não
se encontram em plano de igualdade e uma delas (o patrão) tem meios de obrigar os trabalhadores a aceitar
"os seus próprios termos". Desenvolveremos este ponto de vista quando, no caprtulo II, estudarmos Adam Smith.
1 5 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

No plano mais estritamente económico, o deputado justificava assim a necessi­


dade de combater as associações e organizações operárias (aquelas que, ao fim e ao
cabo, a lei tinha em vista): “o objectivo destas assembleias que se propagam no
reino (...) é forçar os empresários, os atrás referidos mestres, a aumentar o preço
da jornada de trabalho, impedir os operários e os particulares que os ocupam nas
suas oficinas de celebrar entre si convenções por mútuo consenso, obrigá-los a
aceitar a obrigação de se submeterem à jornada de trabalho fixada por essas as­
sembleias e a outros regulamentos que eles se permitem estipular. Emprega-se
mesmo a violência para fazer executar os acordos assim estabelecidos”.
Já se vê como o individualismo se ocupa dos indivíduos em abstracto e não dos
homens em concreto e como as abstracções filosóficas de Liberdade e Igualdade,
traduzidas no preceito que proclama todos os indivíduos iguais em direitos, acaba­
ram por conduzir à proibição do recurso à greve e da constituição dos sindicatos
operários. Assim se colocavam os trabalhadores, objectivamente em situação de
dependência (i.é, coagidos, não juridicamente - como os escravos ou os servos -,
mas economicamente - por não possuírem os meios de produção -, a trabalhar por
conta de quem possui meios de produção), à mercê dos interesses dos empresários
(titulares da liberdade de empresa), interesses com os quais se fazia coincidir o
“intérêt general”.162
É certo que na proibição eram abrangidos também os sindicatos de patrões; mas
o Código Penal previa penas mais leves na repressão das associações patronais. Esta
desigualdade efectiva, que a lei legitimava como ordem estabelecida e que os artigos
do Código Penal reflectiam, era muito mais patente ainda na vida real do que nos
textos. Assim o confirmam as investigações de dois historiadores franceses:
“A desigualdade é evidente, mas ela não existia apenas nos textos, foi m uito
mais nítida ainda nos factos, pois os poderes jurídicos hesitaram sem pre cm
perseguir as coligações de empregadores. O s relatórios das autoridades de
polícia e dos órgãos de justiça explicam esta atitude pelo receio de que as suas
perseguições constituíssem um mau exemplo para os assalariados revelando a
existência de coligações patronais. Prefere-se tolerar as actuações dos em pre­
gadores e não as divulgar, porque se considera que os patrões não têm interesse
cm com prom eter a riqueza e a prosperidade da nação, enquanto os operários
representam apenas elem entos de desordem social e de agitação política".165

162 O abade Jacques Roux, um dos defensores dos interesses populares, clamava perante a Convenção que "a
liberdade nào passa de um fantasma quando uma classe de homens pode reduziroutra à fome, impunemente.
A igualdade nâo passa de um fantasma quando os ricos, através do monopólio, exercem um direito de vida ou
de morte sobre os seus semelhante" e denunciava a aristocracia mercantil, "mais terrível do que a aristocracia
nobiliária e sacerdotal".
163 Cfr. DOLLÉANS/DEHOVE, oó. c/f., 1,163. Como veremos no cap. II, Adam Smith, tendo em vista a realidade
A v elA s N u n e s - 151

c) Os sans-culottes e ojacobinismo
A força das classes populares, que tinham participado activamente na eclosão e
na vitória do movimento revolucionário, haveria, porém, de manifestar-se mais
tarde contra a nova aristocracia do dinheiro (a ditadura da burguesia, que substitu­
íra a ditadura das classesfeudais), quase sempre mais sob a forma de movimentos
espontâneos de revolta perante as condições de vida e de trabalho miseráveis,164 do
que sob a forma de movimentos revolucionários organizados, o que explicará o
fracasso das revoltas operárias e a violência da sua repressão.
Em 1792, a declaração de guerra da França à Áustria suscita novo fervor revo­
lucionário. Por pressão dos sans-culottes de Paris, inicia-se o período do Terror, que
durante dois anos concretizou a realização de algumas aspirações das camadas
populares e a esperança de estas imporem à França o seu programa. Em Setembro
de 1792 a Convenção proclama a República e Luís XVI foi executado em Janeiro
de 1793.
As monarquias europeias fazem a guerra contra a França revolucionária. A
acção dos sans-culottes não se faz esperar, afastando da Convenção os principais
deputados girondinos e forçando a constituição de um Comité de Salvação Pública
presidido por Robespierre.
As primeiras medidas adoptadas caracterizavam-se por uma feição ‘socializan-
te’: instituição da partilha igual das heranças, mesmo a favor dos filhos naturais,
de modo a promover a fragmentação da riqueza; criação de um imposto sobre os
ricos; partilha em pequenos lotes dos bens dos emigrados e dos bens comunais;
atribuição aos ‘patriotas indigentes dos bens dos ‘suspeitos’; institucionalização de
um esquema de segurança social, com assistência médica garantida no domicílio,
pensões por doença e velhice, subsídios às famílias numerosas; proclamação do
carácter obrigatório, gratuito e laico do ensino básico; tentativa de direcção da
economia, para harmonizar os preços com os salários e garantir assim a subsistên­
cia de todos; nacionalização da produção de guerra e do comércio externo, etc.
Saliente-se, entretanto, que a sans-culotterieymesmo a de feição mais revoluci­
onária (a de Paris), não era essencialmente constituída por operários industriais,
mas por uma coligação de pequenos comerciantes e mestres artesãos, juntamente
com os ‘companheiros’ que com eles trabalhavam c viviam. Daí, a mentalidade
pequeno-burguesa das suas aspirações e das suas actuações. Nem pelo pensamento

da Inglaterra, denunciou corajosamente esta desigualdade de tratamento e a hipocrisia dominante na aborda­


gem desta problemática. Cfr. A . J. AVELÃS NUNES, Adam Smith e a Teoria..., cit, especialmente pp. 28-34.
Condições bem documentadas nos relatórios entáo elaborados, entre os quais se destaca o do Dr. Villermé
(ob.cit.).
1 5 2 - U m a I n t r o o u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

nem pela acção, os trabalhadores assalariados constituíam, ainda, um corpo autó­


nomo, actuante e influente na sociedade francesa.
O elemento fundamental desta mentalidade popular era o igualitarismo, reflec­
tido na “egalité des jouissances” que os sans-culottes apontavam como a sua primei­
ra reivindicação. A República tinha o dever de “assegurar a todos os meios de
obter os géneros de primeira necessidade, a quantidade sem a qual não se poderá
conservar a existência”.
A égalité des jouissances não conduzia à supressão do direito de propriedade
consagrado nos textos constitucionais, implicava apenas a sua limitação enquanto
direito absoluto.165
Neste sentido é que uma brochura anónima da época (1793) proclamava o indi­
gente comproprietário imprescritível dos bens do rico. A ideia da felicidade comum
implica que o rico não deve viver melhor que o pobre e por isso aquele deve ceder o
supérfluo e este tem direito a ele: “Tomai tudo o que um cidadão tem de inútil -
afirma-se nos textos políticos da sans-culotterie - (...)Todo o homem que tem mais
que o necessário não pode usá-lo, mas só abusar dele: assim, deixando o que lhe é
estritamente necessário, tudo o resto pertence à República e aos seus membros infor­
tunados.” Acima do direito de propriedade afirmava-se o direito à existência: “A pri­
meira propriedade é a existência; é preciso comer não importa a que preço” (Hébert).
O mesmo projecto igualitarista é o que transparece nas obras e na acção dos
EnragéSy sobretudo em Leclcrc e no abade Jacques Roux. Este visionava que em
breve “o século da idade do ouro sucederá finalmente ao século de ferro”. Com este
objectivo, propunha a criação, cm todos os centros importantes, de ‘armazéns públi­
cos’, nos quais os ricos seriam obrigados a entregar os seus géneros, “oferecendo a
França, por toda a parte, o espectáculo e os recursos de um celeiro imenso”.
Esta santa igualdade foi uma constante no pensamento francês do séc. XVIII, de
Montesquieu a Rousseau, iluminando o anseio de uma República onde nenhuma
pessoa se encontrasse “sob a dependência directa e não recíproca de qualquer
outro particular”. Este objectivo igualitarista e o objectivo de assegurar a subsis­
tência de todos marcaram a actuação dos Jacobinos, o pensamento de Robespierre
e de Saint-Just, sempre amarrados ao ideal de uma sociedade depequenosprodutores
independentes, em que a propriedade seria semprefundada no trabalho pessoal.

165 Compreende-se, assim, a justeza do retraio que do sans<ullole nos dá PrudKomme: “Nenhum ssns<ulotte
se torna ou se mantém rico; respeita o sào direito de propriedade; morreria de fome em vez de arrancar pela
força a subsistência de uma família honesta e próxima do nível das suas necessidades; mas é sem quartel para
essas fortunas rápidas e insolentes, obra da intriga e da avidez. Entâo ele toma os seus bens e restabelece o
equilíbrio, sem o qual náo há igualdade e, portanto, náo há República."
A v elã s N u n es - 1 5 3

Ideal impossível, em contradição com a realidade, que eles próprios ajudaram a


construir, de uma sociedade em que a força de trabalho de trabalhadores livres
adquiriu a categoria de mercadoria; em que a propriedade (ou a apropriação) de uns
implica a não-propriedade (ou a não-apropriação) de outros, cimentando-se a pro­
priedade daqueles no recurso ao trabalho assalariado destes; em que a concentração
da propriedade nas mãos de um pequeno estrato da burguesia vem pôr termo à
multidão dos pequenos produtores independentes, substituindo a propriedade funda­
da no trabalho pessoal pela propriedade fundada no regime do salariato.
Este objectivo igualitarista e as suas contradições estão patentes em vários escri­
tos de Robespierre: “O primeiro direito é o de existir - escreveu ele em 1793 - , a
primeira lei social é portanto a que garante a todos os membros da sociedade os
meios de existir; todas as outras estão subordinadas a esta”.
Daí a sua crítica ao direito de propriedade, tal como era consagrado na Declara­
ção de 1789: “Definindo a liberdade como o primeiro dos bens do homem, o mais
sagrado dos direitos que ele recebe da natureza, dissestes com razão que ela tinha
por limites os direitos de outrem. Porque não aplicastes este princípio à propriedade
que é uma instituição social?... Multiplicastes os artigos para assegurar a mais ampla
liberdade ao exercício da propriedade e não dissestes uma palavra para determinar a
sua legitimidade; de maneira que a vossa Declaração parece feita, não para os ho­
mens, mas para os ricos, para os açambarcadores e para os tiranos”.
Daí o seu entendimento do direito de propriedade, não como direito natural e
imprescritível, anterior à própria organização social, mas como uma instituição
social, um direito inscrito em determinada realidade histórica, definido e limitado
pela lei: “a propriedade é o direito que têm todos os cidadãos de gozar e de dispor
da porção de bens que lhes é garantida pela lei”.
Sustentando que “a extrema desproporção de fortunas é a origem de muitos
males e de muitos crimes”, Robespierre teve no entanto a consciência de que “a
igualdade dos bens é uma quimera” (como afirmou na Convenção em 24-4-1793),
o que esclarece o sentido desta sua frase-programa: “II s’agit bien plus de rendre la
pauvreté honorable que de proscrire l’opulence”. Não se tratava, portanto, de
subverter a ordem social nem de pôr em causa a predominância da burguesia,
conquistadas em 1789.
Com o Saint-Just, os Jacobinos entendiam que “a opulência está nas mãos de
número bastante grande de inimigos da Revolução” e que “as necessidades colo­
cam o povo que trabalha na dependência dos seus inimigos.” Este diagnóstico da
situação e a força das circunstâncias - as necessidades da guerra, os imperativos da
defesa nacional, a defesa dos valores da Revolução - empurraram os jacobinos para
uma ligação mais estreita com as massas populares, crentes - como o afirmou
1 5 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

Saint-Just na Convenção - em que “um povo que não é feliz não tem pátria” e
cientes de que a Revolução não poderia manter-se “se as relações civis favorecem
aqueles que são contrários à forma de governo”.
Saint-Just não deixava de reconhecer - em Fevereiro de 1794 - que “a força das
coisas nos [aos jacobinos] conduziu talvez a resultados em que não tínhamos pen­
sado”. Mas o seu programa aparece claro em vários passos dos seus discursos e nas
suas obras doutrinárias: “As propriedades dos patriotas são sagradas, mas os bens
dos conspiradores aí estão para os desafortunados. (...) Não sofrais que haja um
infeliz ou um pobre no Estado”. Daí a sua proposta: “Aboli a mendicidade que
desonra um estado livre”. Nas Institutions Républicaines (1794), Saint Just define de
modo paradigmático o espírito que vimos analisando: “II ne faut ni riches ni pau-
vres... Lopulencc est une infamie”. Por isso o bom cidadão seria “o que não possui
mais bens do que aqueles que as leis lhe permitem possuir”. Daí que o objectivo da
Revolução fosse o de “dar a todos os franceses os meios de satisfazer as primeiras
necessidades sem outra dependência que não fosse a das leis e sem dependência
mútua no estado civil”. “É preciso que o homem viva independente”!
Sempre presente - como se vê - o ideal de uma sociedade constituída por
pequenos proprietários e produtores independentes, ideal cujas ressonâncias utó­
picas são particularmente notórias nos escritos de Saint-Just.
Em Abril de 1794, porém, Robespierre fazia executar, ao mesmo tempo que
Danton e os adversários do Terror, alguns dos dirigentes das camadas populares.
Com a vitória sobre a coligação das nações europeias em Fleurus (Junho de 1794),
afastado o perigo de uma derrota da França, a reacção viu chegada a sua hora e o
Comité de Salvação Pública é afastado pela Convenção em 27-7-1794 (9T her-
midor do ano II). No dia seguinte, Robespierre e os seus colaboradores são execu­
tados. Assim terminava o período de dois anos em que a revolução burguesa, com
a ditadura jacobina de Robespierre, mais se aproximara, nas suas realizações, dos
anseios populares.
Assim chegavam ao fim as duas revoluções que alguns distinguem no seio da
Grande Revolução Francesa: a primeira, de 1789 a 1791, é obra da burguesia,
empenhada em pôr de pé a nova ordem burguesa; a segunda, entre 1792 e 1794,
foi obra das camadas populares, que agiram com violência contra as resistências à
marcha da Revolução.166

166 Cfr. Albert Soboul, em Vértice, Julho de 1989,15.


Como escreveu o historiador Mignet (1824), "os privilegiados quiseram impedir a Revolução; a Europa tentou submetè-
la e, (orçada à luta, não pôde nem medir os seus esforços nem moderar a sua vitória. A resistência interna conduziu
à soberania da multidão; a agressão externa, ao domínio militar. No entanto, o objectivo foi alcançado, apesar da
anarquia e do despotismo: a antiga sociedade (oi destruída durante a Revolução, a nova ergueu-se sob o Império".
A v e l As N u n e s - 1 5 5

Robespierre foi um dos dirigentes jacobinos que aceitou a necessidade da vio­


lência revolucionária. Em 5.XI. 1792, afirmava na Convenção: “Cidadãos, quereis
uma revolução sem revolução? As prisões são ilegais? Porque não nos censurais
por termos desarmado os cidadãos suspeitos? Por termos afastado das nossas as­
sembleias os inimigos reconhecidos da Revolução? Todas essas coisas eram ile­
gais, tão ilegais com a Revolução, como a queda do trono e da Bastilha, tão ilegais
como a própria liberdade... (...) A força só se fez para proteger o crime?”.
E Saint-Just, num texto célebre de 26.2.1794, avisava que não há “império que
possa existir se as relações sociais forem aquelas que se mostram contrárias à
forma de governo” e que “os que fazem revoluções até ao meio limitam-se a cavar
a sua própria sepultura”.
Robespierre compreendeu, porém, os perigos dos excessos da violência. Por isso,
em 5.2.1794, apresentou à Convenção um relatório “Sobre os princípios de moral
política que devem guiar a Convenção”. Aí propõe como correctivo a virtude, a virtude
cívica, “essa virtude que não é mais do que o amor da pátria e das suas leis”, virtude que
não pode ser posta em prática sem a rectidão da vida privada (“um homem revolucio­
nário - escreveu Saint-Just - é um herói de bom senso e de probidade”).
d) O Directório. Babeuf e a *Conspiração dos Iguais"
Liquidada a ditadura jacobina e dissolvida a Convenção, iniciou-se, com o
Directório - saído da reacção do 9 Therm idor do ano II -, um período de Terror
Branco, que começou por anular todas as leis sociais entretanto promulgadas.
A miséria abatia-se sobre as classes populares e um grupo de homens, à frente
dos quais Graccus Bafeuf, dispõe-se a organizar uma sublevação armada, com o
objectivo de instituir a igualdade perfeita, o “viver e morrer iguais como nasce­
mos”. Foi a chamada Conspiração dos Iguais, movimento que viria a ser anulado
pelo Directório em 1796.
Babeuf deu de si próprio a ideia de um homem “que o universo inteiro bendirá
e que todas as nações, todos os séculos olharão como o salvador do género hum a­
no”. Animado deste espírito messiânico, acreditava bastar que a ordem social me­
recesse ser substituída para que essa substituição se pudesse operar em qualquer
momento, desde que houvesse um grupo de homens dispostos a tomar opoder e a
instaurar o regime da igualdade, tal como os Jacobinos tinham conquistado o poder
e implantado a República, em 1793. Para Babeuf, como observa Albert Soboul, “o
comunismo deixou de ser simples exercício literário, sonho sentimental ou siste­
ma moral: é uma sociedade a construir”.
Desmistificando a igualdade de direitos consagrada no art. 1.° da Constituição
de 1791, os seguidores de Babeuf pretendiam a igualdade real (não a mera igualda­
1 5 6 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l It ic a

de civil), objectivo da República dos Iguais: “Queremos a igualdade real ou a morte;


eis o que precisamos. E tê-la-emos, esta igualdade real, não importa a que preço.
Desgraçados daqueles que encontrarmos entre ela e nós!”.
Philippe Buonarroti (1761-1837) foi um dos discípulos de Babeuf e resumiu
assim, num livro publicado em 1828 {La Conspirationpour 1'Egalitédite de Babeuf),
os princípios fundamentais da República dos Iguais:
“A rt. I o - A natureza deu a todos os homens um direito igual ao gozo de todos os
bens. A rt. 2o - O fim da sociedade é defender esta igualdade, muitas vezes atacada
pelo forte e pelo mau no estado da natureza, c aumentar, pelo concurso de todos, os
benefícios comuns. Art. 3.° A natureza impôs a todos a obrigação de trabalhar,
ninguém pode, sem crime, subtrair-se ao trabalho. Art. 4.° - O s trabalhos e os
benefícios devem ser comuns. Art. 5.° - H á opressão quando um se esgota pelo
trabalho e tem falta de tudo, enquanto outro nada na abundância sem trabalhar (...)
Art. 7.° - Num a verdadeira sociedade, não deve haver nem ricos nem pobres (...)
Art. 10.° - O fim da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer a felicidade
comum. A rt. 11.° - A revolução não acabou, pois os ricos absorvem todos os bens
c só eles mandam, enquanto os pobres trabalham como autênticos escravos, defi­
nham na miséria e não são nada dentro do Estado."

À semelhança dos sans-culottes e dos Jacobinos, Babeuf proclamava como ob­


jectivo social a “felicidade comum”, associando-a à “égalité des jouissances”, à
“égalité de fait”. Este objectivo vem esclarecido pelas propostas que Babeuf apre­
senta no Manifeste des Égaux (publicado no jornal de Babeuf, o Tribun du Peuple,
em 30-X1-1795), as quais resumem a sua filosofia social: ”Nós provaremos -
assegura o tribuno - que tudo o que um indivíduo açambarca para além do que o
pode alimentar é um roubo social (...)”. E logo a seguir adianta que a solução para
os males sociais não reside na “loi agraire” (i.é, na repartição das terras em parce­
las iguais), pois que, a seu ver, “a lei agrária não pode durar mais que um dia; e,
desde o dia seguinte ao do seu estabelecimento, a desigualdade reapareceria”.
Por isso o Manifeste des Égaux proclamava que “o único meio de lá chegar (à
igualdade defacto) é estabelecer a administração comum, suprimir a propriedade
particular, ligar cada homem às suas aptidões, à indústria que ele conhece, obrigá-
lo a depositar o respectivo fruto em espécie no armazém comum; e estabelecer
uma simples administração de distribuição, uma administração das subsistências
que, registando todos os indivíduos e todas as coisas, fará repartir estas dentro da
mais escrupulosa igualdade”.
Com razão os autores qualificam as teses de Babeuf como um comunismo de
repartição e de consumo e apontam-lhes um certo pessimismo econômico, traduzido no
facto de não haver nenhuma referência a uma sociedade comunista alicerçada na
A v elà s N u n es - 1 5 7

abundância dos bens de consumo (a França de 1795 não permitia ainda a confian­
ça no industrialismo, que viria a caracterizar a obra de Saint-Simon).
Mas a verdade, por outro lado, é que Babeuf foi além do pensamento da sans-
culotterie e dos jacobinos, ultrapassando o apego destes à propriedade privada fun­
dada no trabalho pessoal, deixando para trás aquilo a que um autor chamou “a
ilusão burguesa do pequeno proprietário”. E é por isso que Albert Soboul subli­
nha nestes termos a importância de Babeuf e dos Iguais:
“Pelo pensam ento c pela acção, ultrapassou o seu tem po e afirm ou-se como
iniciador de um a sociedade nova. (...) A im portância da Conjuration des Égaux
e do babouvismo só pode medir-se à escala do séc. XX. N a história da Revolu­
ção e do D irectório, constituem um simples episódio que m odificou sem
dúvida o equilíbrio político do m om ento, mas sem ressonância social profun­
da. E ntretanto, pela primeira vez, a ideia comunista tinha-se transform ado em
força política: daí, a im portância de Babeuf, do babouvismo e da Conspiração
dos Iguais na história do socialismo.”167

Na leitura de Babeuf, a situação da França em 1795 revelava “uma guerra decla­


rada entre os nobres e os plebeus, entre os ricos e os pobres”. Neste quadro de
“guerra de classes”, a revolução violenta seria inevitável “quando as instituições ten­
dem a que uns fiquem com tudo e nada reste para os outros”, “quando a existência da
maioria se tomou de tal modo penosa que já não a pode suportar por mais tempo.”
Em 30.XI.1795 o Tribun du Peuple publica o Manifesto dos Plebeus}** Aí se
conclama o povo a que “derrube todas as antigas instituições bárbaras e as substi­
tua por aquelas que são ditadas pela natureza e pela eterna justiça”.
Aos que rejeitavam a violência Babeuf respondia: “E que guerra civil há mais
revoltante do que aquela que mostra todos os assassinos de um lado e todas as
vítimas sem defesa do outro? (...) Não é preferível a guerra civil em que os dois
partidos possam defender-se reciprocamente?”
Por isso Babeuf defendia a subversão total. “Todos os males chegaram ao cúmulo;
não podem piorar mais; só podem reparar-se por uma subversão total! Que tudo então
se confunda! Que todos os elementos se misturem, não se destrincem c se entrecho­
quem! Que tudo volte ao caos e que do caos saia um mundo novo e regenerado!”.
Condenado à morte e executado Babeuf em Maio de 1797, a conspiração que
sonhara, com o espírito de “salvador do género hum ano”, ficaria adiada.

167Cfr. A . SO B O U L, "U to p ie..., cit., 245 e 2 5 2 .0 próprio Lcnine reconheceu que "a Revoluç3o Francesa cons­
truiu as ideias do comunismo (Babeuf) que, elaboradas de modo consequente, continham a ideia da ordem
nova do mundo'' ( j pudV . M. DALINE, oò. c /t, 63).
168 Cfr. A. SO B O U L, Vértice, Julho/1989,13/14.
1 5 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o í Itic a

e) Do 18 Brumário aos movimentos revolucionários da década de 1830


Pouco antes do term o do séc. XV III, o golpe de estado de 18 Brumário (9-
XI-1799) afasta o Directório e leva ao poder Napoleão Bonaparte.
Em 15-XII-1799, o Primeiro Cônsul proclamará: “Citoyens! La Révolution est
fixée aux príncipes qui Font commencée, elle est finie”. Assim se pretendia consagrar
como ordem estabelecida o conjunto de valores saídos da Revolução de 1789.
Em 1804, Napoleão é proclamado Imperador dos Franceses. Durante o seu go­
verno foram promulgados dois documentos jurídicos de excepcional importância na
consolidação da ordem burguesa: o Code C ivil(1804), ainda hoje conhecido por Code
Napoléon, modelo dos códigos civis do liberalismo, e o Code de Commerce(1808).
Em 1814 chega ao fim o Primeiro Império. Derrotado Napoleão, sobe ao
trono Luís XVIII e inicia-se a Restauração, apenas interrompida pelo Governo dos
Cem Dias, em 1815.
Os anos imediatamente anteriores a 1830 foram férteis em manifestações po­
pulares nos campos (em virtude da alta de preços dos cereais) e nas cidades, onde
se sucederam as greves, as revoltas, a sabotagem das máquinas, as manifestações de
protesto contra a baixa de salários, contra o alongamento da jornada de trabalho e
contra a introdução das máquinas (responsabilizadas pelo desemprego reinante).
Em 1830, por acção das camadas populares, cai Luís X V III e a dinastia dos
Bourbon e inicia-se a Monarquia de Julho. Em certo sentido, poderá dizer-se
que “a Revolução de 1789 só acabou verdadeiramente em 1830, quando a bur­
guesia, tendo conduzido ao poder um rei que aceitava os seus princípios, tomou
definitivamente posse da França”.169 Na verdade, no momento da subida ao po­
der do Duque de Orleães (o rei Luís Filipe), o banqueiro Laffitte proclamava:
“Agora, o reino dos banqueiros vai começar”. Sob a M onarquia de Julho, a
oligarquia financeira passa a controlar efectivamente o poder económico e o
poder político: “elle se logea dans toutes les places”, reconhece Tocqueville. E
Marx: “quem dominava era apenas umafracção da burguesia: banqueiros, reis da
Bolsa, reis do caminho de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro e de
florestas e uma parte dos proprietários fundiários aliados a estes - a chamada
aristocraciafinanceira. (...) A burguesia industrial propriamente dita constituía
uma parte da oposição oficial, isto é, estava representada nas Câmaras apenas
como minoria. (...) Tanto a pequena burguesia, em todas as suas gradações, como
a classe camponesa estavam totalmente excluídas do poder político. (...) a monar­
quia de Julho não passava de uma sociedade por acções para explorar a riqueza

169 Cfr. A. S O B O U l, ‘ La Révolution.. c it , 26.


A v elã s N u n e s - 1 5 9

nacional da França, cujos dividendos eram distribuídos por ministros, Câmaras,


240 000 eleitores e o seu séquito”.170
M as quem foi o sujeito histórico desta ‘revolução’? Parece correcta a resposta
de Alexandre Dumas (pai): “Quem fez a Revolução de 1830 foi essa juventude
ardente do proletariado heróico, que provoca o incêndio, é verdade, mas que o
extingue com o seu sangue”.
Mas o povo, como então observava Lamennais, “pergunta-se para quem é que ele
venceu, e se não tem nada a esperar de uma vitória que pagou tão ricamente; se deve
arrastar-se eternamente na mesma miséria, na mesma baixeza. Não! Tal é a sua
resposta. Então põe-se a grande questão, começa a grande luta”. Com efeito, apesar
de, na análise de Augusto Blanqui, a ‘revolução’ pouco mais ter sido do que simples
“mudança de efígie nas moedas que os proletários vêem raramente”, a verdade é que
a classe operária começa a reconhecer-se e começa a ser reconhecida como tal.
Em Novembro de 1831, os canuts de Lyon desencadearam uma revolta que teve
como lema o célebre “vivre libre en travaillant, ou mourir en combattant”. Uma
parte dos empresários, com apoio do governo, recusava-se a praticar as novas tarifas
salariais convencionadas em Outubro. Daí a revolta dos operários da indústria da
seda, que chegaram a constituir um governo provisório em Lyon, mas acabaram por
ser vencidos cm 3 de Dezembro pelos vinte mil soldados enviados pelo governo.
Justificando a revogação do acordo de Outubro, o chefe do Governo, Casimir
Périer (ele próprio industrial), declarava na Câmara dos Deputados em 25-XI-
1831, numa clara invocação da filosofia social inspiradora da Lei Le Chapelier.
“Essa medida era ilegal, uma vez que as leis não permitem de modo algum fixar o
preço do trabalho, e que este preço deve ser sempre o resultado de um acordo
inteiramente voluntário entre o fabricante e o operário”.
Esmagada a revolta, o mesmo Casimir Périer declarava abertamente: “É preci­
so que os operários saibam bem que não há remédio para eles que não seja a
paciência e a resignação”.
Apesar do fracasso, a insurreição dos canuts de Lyon é tida como um ponto de
viragem na história do movimento operário, não só na França mas no mundo
inteiro: “Ela revelou - escrevia-se em Le Journal des De'bats> de 8-XII-1831 - um
grave segredo, o da luta interna que se verifica na sociedade entre a classe que
possui c a que não possui (...). Os bárbaros que ameaçam a sociedade não estão no
Cáucaso, nem nas estepes da Tartária; estão nos arrabaldes das nossas cidades
manufactureiras”. Resulta deste trecho uma clara consciência da luta de classes, na
medida em que os interesses da “classe que possui” (os interesses da burguesia) são

*70 Cfr. C. M A R X , A s lutas de classes...,c it., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, c d . cit., 1,210-212.
1 6 0 - U m a I n t r o o u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

identificados com o interesse da sociedade, ao passo que a “classe que não possui” é
identificada com os bárbaros que ameaçam invadir a cidade (o inimigo da sociedade,
o inimigo interno).
Entretanto, a agitação operária não cessou e as reivindicações iam ganhando
um grau crescente de politização. Em 1832 houve luta nas ruas de Paris. Por toda
a França os trabalhadores começaram a cuidar da sua organização, fazendo-o sob
a forma de mútuas. Em 1834, os operários de Lyon tiveram forças para organizar
uma greve, a qual viria a ser dominada depois de seis dias de luta com as tropas da
realeza, cuja intervenção deixou claro aos operários que Mla royauté est liée à la
fabrique”. A natureza de classe do estado (a ‘ditadura da burguesia ) começava a
tornar-se clara aos olhos do novo operariado.
f) A industrialização e a situação social da França nas vésperas de 1848
A realidade económica da França ia-se alterando em relação ao que era nos
anos que antecederam a Revolução de 1789. As máquinas penetram em todos os
sectores da indústria francesa. Aplicam-se novas técnicas na indústria têxtil, na
metalurgia e na siderurgia, conhecendo estas últimas um período de acentuado
desenvolvimento com o arranque dos caminhos de ferro. O coque vai substituindo
a madeira nos altos fornos. O fenómeno da concentração começa a ser notório na
indústria mineira (a Compagnie des Mines dela Lo ire, constituída em 1845, gozava
de verdadeiro monopólio), o mesmo acontecendo com a indústria algodoeira (so­
bretudo em Mulhouse) e na metalurgia (sector onde sobressaíam os grupos Creu-
sot e De Wendel), embora as grandes empresas não sejam ainda muito frequentes.
Este desenvolvimento industrial produziu efeitos notórios sobre a estrutura da
sociedade francesa: em 1847 ocupavam-se na indústria cerca de seis milhões de
trabalhadores franceses, embora apenas pouco mais de um quarto trabalhassem
em fábricas. A crescente utilização das máquinas veio, por outro lado, permitir a
utilização da força de trabalho das mulheres e das crianças, desvalorizando a qua­
lificação profissional c o estatuto social dos antigos artesanos.
Às cidades industriais afluíam grandes massas de trabalhadores, que a indústria
não podia ocupar permanentemente e que, por isso, se m antinham, como uma
espécie de ‘exército camponês de reserva, à mercê dos empregadores.
As condições de vida e de trabalho das famílias operárias eram verdadeiramen­
te alarmantes, como o comprova a leitura dos inquéritos à situação das classes
trabalhadoras que então se efectuaram, o mais conhecido dos quais é o do Dr.
Villermé, levado a efeito em 1840.171

171 Ver P. VILLERM É, ob.cit.


A v el A s N u n e s - 1 6 1

“Em Mulhouse - escreve o Dr. Villermé - as oficinas abriam às cinco horas,


com uma hora e meia para o almoço (...) Em Ruão, a jornada normal é de 15 horas
e meia e os operários da tecelagem do algodão chegam a trabalhar 17 horas”.
Na fiação de algodão, cerca de 30% dos operários são crianças, metade das
quais com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos.172 Nem por isso, segundo
o relato de Villermé, a sua situação era mais favorecida:
“perm anecem 16 a 17 horas de pé por dia, das quais treze pelo m enos numa
divisão fechada, quase sem mudança de lugar ou de posição. N ão se trata de um
trabalho, de um a função: e um a tortura; e é infligida a crianças de 6 a 8 anos,
mal alim entadas, mal vestidas, obrigadas a percorrer, desde as cinco horas da
m anhã, a distância enorm e que as separa das oficinas, e que o regresso, à noite,
dessas m esmas oficinas, acaba por esgotar com pletam ente.”

Acresce que eram péssimas as condições de trabalho nas fábricas. Os acidentes


no trabalho eram frequentíssimos, sobretudo com as crianças. As doenças profis­
sionais cedo começaram a minar a saúde dos trabalhadores, em cujo espírito se ia
acentuando o ódio àfábrica.
O espectáculo desta gente que todos os dias vem dos arrabaldes para os locais
de trabalho nas cidades é narrado de forma impressionante no referido relatório
de Villermé:
“É preciso vc-los chegar todas as m anhãs e partir à noite. H á entre eles uma
multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando descalças no meio da lama,
as quais, por não terem guarda-chuva, trazem o avental ou a saia voltada sobre
a cabeça, quando chove (...), c um núm ero ainda m aior de crianças não menos
sujas, não m enos macilentas, cobertas de andrajos engordurados pelo óleo que
das máquinas cai sobre eles quando trabalham (...). T razem na mão ou escon­
dem sob a roupa, como podem , o pedaço de pão que os alim entará até à hora
do regresso a casa.”

Para evitar as longas caminhadas a pé dos subúrbios até às oficinas da cidade,


muitas famílias preferiam albergar-se de qualquer modo nas cidades, em bairros
sombrios e superlotados, habitando tugúrios insalubres em condições da maior
promiscuidade: “(...) na maior parte dos leitos de que acabo de falar - relata
Villermé - vi deitados juntos indivíduos dos dois sexos e de idades muito diferen­
tes, a maioria das vezes num estado de sujidade repelente. Pai, mãe, adultos, todos
aí se acumulavam.”

172 Um Primeiro Miniaro inglês, W illiam Pitt dava este bom conselho aos empregadores: "se os salários sáo muito
elevados, contratem as crianças" (apud J. M ARCHAL, C ours..., cit., 103.). Em Portugal, ainda em 1910 se fazia
uma greve de "trabalhadores" com idades entre os 6 e os 11 anos.
1 6 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Não admira que proliferassem a degradação moral e o alcoolismo e que a


prostituição constituísse o ganha pão de muitas raparigas de 12 a 14 anos, oriun­
das dos meios operários.
Os salários eram tão baixos que a alimentação absorvia entre 70% e 80% dos
orçamentos das famílias operárias, sendo certo que, em muitos casos, não cobriam
sequer as necessidades da simples sobrevivência fisiológica. De novo nos socorre­
mos de Villermé:
“É necessário adm itir (...) que a família cujo trabalho é mal retribuído só
subsiste graças aos seus ganhos na medida em que o marido e a m ulher tenham
saúde, estejam em pregados durante todo o ano, não tenham nenhum vício e
não tenham outros encargos além do que representam dois filhos de tenra
idade. Suponham um terceiro filho, o desemprego, um a doença, a falta de
espírito de economia, hábitos ou apenas um a ocasião fortuita de intem perança
e esta família encontra-se na maior dificuldade, numa miséria horrível.”

Acrescente-se que as taxas de desemprego eram elevadíssimas, chegando a atin­


gir, em média e para certas indústrias, entre 30% e 50% dos trabalhadores. As altas
taxas de mortalidade, a calamidade da epidemia de cólera (1832) alarmaram toda a
gente. Por esta época, Ramazzini inicia o estudo das doenças profissionais. A reali­
dade comprovava a acusação de Fourier: “En civilisation, la pauvreté nait de
labondance même”. A miséria dos trabalhadores acompanhava o progresso do capi­
talismo, a acumulação do sofrimento andava de par com a acumulação do capital.
Em 1837, Villermé denunciava “le dépérissement effrayant de la génération
qui se développe”. A consciência desta delapidação do ‘capital hum ano’ e a cons­
ciência de que o trabalho precoce das crianças estava a gerar uma “sociedade
ameaçada por uma população desamparada e sem princípios” foi-se generalizan­
do. E foi esta necessidade de preservar a ‘galinha dos ovos de ouro’ que levou o
estado a deixar a sua atitude de não-intervenção para promulgar, em 1841, a pri­
meira lei social, que regulamentava o trabalho das crianças nas oficinas. Eis o
comentário de um dos membros da Câmara dos Pares em 4.3.1840:
“se um tirano, um conquistador estrangeiro, tivesse ocupado a França e nos
tivesse falado deste modo: logo que se consigam m anter sobre as pernas, cen­
tenas de m ilhares das vossas crianças ser-vos-ão retiradas, serão introduzidas
cm estabelecimentos onde a sua organização fisica será degradada, enfraquecida
de ano a ano, onde, cm vez de conhecerem as brincadeiras, a alegria, a liberdade
da sua idade, serão iniciadas cm tudo o que há de mais deplorável na depravação
h u m an a, o n d e serão p rim eiro m o ralm en te e dep o is in te lec tu a lm e n te
em brutecidas, para serem em seguida fisicamente debilitadas, onde as vossas
filhinhas perderão a inocência antes mesmo da idade núbil, se um tirano - dizia
A v el A s N u n e s - 163

eu - tivesse agido assim com a França não haveria ódio c injúrias suficientes
para lançar sobre a sua cabeça. Pois bem! O juízo da indústria é esse”.173

A lei aprovada veio fixar nos oito anos a idade de admissão das crianças num
posto de trabalho e proibir o desempenho de trabalho nocturno ou perigoso, mas
permitia que, a partir dos 12 anos de idade, as crianças trabalhassem 72 horas por
semana. Com esta lei pioneira - que não chegou, aliás, a ser aplicada, por a ela se
oporem os industriais e todos os defensores da ‘liberdade de empresa’ - inicia a
legislação do trabalho a sua orientação no sentido da protecção do trabalhador en­
quanto parte mais fraca da relação laborai (favor laboratoris), na esteira da lição de
Lacordaire, para quem, “entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le
maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprimme et la loi qui affranchit.”174
O curso da industrialização continuou, ao longo da década de 1840, a acentuar
os seus efeitos na sociedade francesa, concentrando um número crescente de ope­
rários em empresas cada vez maiores e em centros urbanos polarizadores da acti­
vidade industrial, nos quais os operários viviam em grande número, em bairros
miseráveis que, com o tempo, lhes foram ficando ‘reservados’. Assim se foram
criando condições para o aparecimento, entre os trabalhadores, de uma certa cons­
ciência da sua existência como classe social e da identidade dos seus problemas e
dos seus interesses. Embora se continuassem a verificar, sobretudo por parte dos
trabalhadores recém-chegados dos campos, revoltas espontâneas que eram apenas
fruto do desespero (autênticas jacqueries prolétariennes, como alguém lhes cha­
mou), a verdade é que a necessidade de tomadas de posição colectivas, organiza­
das, começou a sobrepor-se às revoltas individuais, mais ou menos desarticuladas.
A década de 1840 marcou, neste aspecto, uma profunda mudança.
Num inquérito publicado em 1840 (tal como o de Villermé, já referido) cha­
ma-se a atenção para que “os operários (...), isolados da nação, afastados da comu­
nidade social e política, sozinhos com às suas necessidades e as suas misérias,
agitam-se para sair desta solidão desesperada e, como os bárbaros, aos quais já
foram comparados, meditam talvez uma invasão.” Perante esta leitura da situação

173 Tendo em conta a realidade inglesa, Marx cita o depoimento de um médico de Londres perante a Câmara dos
Comuns, pouco antes da aprovação do FactoryAct de 1833: "É necessária legislação para impedir que possa
infligir-se a morte sob qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é corrente nas fábricas) deve ser segu­
ramente considerada como um dos métodos mais cruéis de a infligir". Refere também um artigo do jornal
Morning Star (Junho/1863) em que se fala dos "escravos brancos vítimas do trabalho que os leva ao túmulo",
obrigados a trabalhar até à morte, como denuncia um outro médico de Londres, o Dr. Richardson, uma morte
po r overdose de trabalho ("death from simple overwork"). Perante esta realidade, o Factory Act veio entao
determinar que o horário de trabalho normal nas fábricas devia começar às 5,30 horas da manhã e acabar às
8,30 horas da noite, para trabalhadores com treze anos de idade ou mais. O s trabalhadores entre os 9 e os 13
artossó poderiam trabalhar 8 horas por dia. Cfr. Le CapitaHlrad. J. Roy,cit.), 194, 208/209 e 616.
174 A pud R. BARRE. 06. c it , II, 102.
1 6 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

social na França, não espanta que o autor do relatório concluísse que “esperar pôr
cobro à miséria pela caridade é tentar tolamente esvaziar o oceano”.
O grau de compreensão da realidade francesa desse tempo é expresso por Buret
nesta sua interrogação: “A acumulação dos capitais nas mãos de um pequeno nú­
mero de indivíduos, o aparecimento dessas grandes entidades mercantis que cha­
mamos capitalistas, não correspondem naturalmente à constituição regular dessas
famílias privilegiadas dos tempos feudais que absorviam em seu proveito toda a
independência e todos os direitos?”
Na esteira do movimento babouvista, expande-se por toda a França o ideário
comunista, sobretudo a partir da influência exercida pelo livro, acima referido, de
Buonarroti (velho companheiro de Babeuf). Um conhecido industrial francês,
Daniel Legrand, observava em 1847 que M as ideias comunistas e socialistas come­
çam a expandir-se e a ganhar raízes com uma rapidez assustadora e poderiam
transformar-se em factos de um dia para o outro e pôr em perigo toda a sociedade,
na medida em que ela não tenha posto cobro a esses intoleráveis abusos”.
Em Janeiro de 1848,Tocqueville perguntava na Câmara dos Deputados: “Não
vedes que se expandem pouco a pouco no seu seio [no seio das classes trabalhado­
ras] opiniões que não visam apenas substituir determinadas leis, um dado ministé­
rio, mesmo um certo governo, mas a sociedade, subvertendo as bases sobre as
quais ela assenta hoje?”
Estamos em 1848, ano em que foi publicado o Manifesto Comunista, que come­
ça exactamente com esta observação: “Anda um espectro pela Europa - o espectro
do comunismo”.
g) A Revolução de 1848
Quase no final da década de 1840, um acontecimento viria marcar a história da
França: a Revolução de 1848. A miséria das camadas trabalhadoras, acima ilustrada
através das conclusões de Villermé, não cessou de agravar-se. O poder de compra,
embora muito baixo, manteve-se mais ou menos estacionário entre 1840 e 1845,
ano em que começou a baixar acentuadamente, de tal modo que em 1847 caiu para
um nível inferior ao de 1834.
Entretanto, três outros factores vieram agravar a situação: 1) a aliança da M o­
narquia de Julho com a alta finança degenerou em corrupção generalizada, com a
utilização do aparelho de estado ao serviço dos interesses dos magnates da banca
e dos caminhos de ferro, beneficiários do progressivo endividamento do estado e
da especulação desenfreada que se lhe seguiu; 2) as más colheitas agrícolas e a
doença da batata nos anos de 1845 e 1846, que contribuíram decisivamente para a
carestia da vida, particularmente acentuada em 1847; 3) a crise económica que
provocou a falência de vários bancos e o encerramento de muitas fábricas na In ­
A v elAs N u n e s - 1 6 5

glaterra (onde atingiu o seu ponto alto em 1847) e que não deixou de afectar as
economias capitalistas do Continente, incluindo a da França, onde a falência atin­
giu grande número de pequenos industriais e comerciantes, cujo descontentamen­
to ajudou à insurreição de Fevereiro de 1848 nas ruas de Paris.
A Monarquia deJulho e o seu governo tiveram que ceder o lugar a um Governo
Provisório, composto fundamentalmente por elementos da pequena e média bur­
guesia republicana, no meio dos quais Louis Blanc e o operário Albert represen­
tavam os interesses populares, e o poeta Lamartine - como alguém escreveu - “não
representava nenhum interesse real, nenhuma classe determinada; era a própria
revolução de Fevereiro, o levantamento comum, com as suas ilusões, a sua poesia,
o seu conteúdo imaginário e as suas frases”.
Apesar da oposição de Lamartine à implantação da República antes que a
maioria dos franceses o decidisse através do voto, o povo nas ruas fazia pressão no
sentido da proclamação imediata da República. Em 25 de Fevereiro, Raspail, em
nome dos trabalhadores da capital, apresentava ao Governo Provisório um autên­
tico ultimato para que proclamasse a República dentro de duas horas, caso contrá­
rio regressaria à frente de 200 mil homens. A República foi proclamada e
restabelecido o sufrágio universal. O proletariado de Paris afirmava-se como força
política, desejoso de novas conquistas.
Blanqui proclamava que “a República seria uma mentira se se limitasse a ser
a substituição de uma forma de governo por outra. Não basta mudar as palavras:
é preciso mudar as coisas”. E Tocqueville, num texto de 1850-1851, não deixava
de observar:
“desde 25 de Fevereiro, mil sistemas estranhos saíram im petuosam ente do
espírito perturbado da m ultidão... Era como se, com o choque da revolução, a
própria sociedade tivesse sido reduzida a pó e tivesse sido posta a concurso a
nova forma que era necessário dar ao edifício que se ia construir em seu lugar
(...). O socialismo ficará como a característica essencial e a lem brança mais
terrível da revolução de Fevereiro. A República só aparecerá de longe com o um
meio, não com o um fim”.

Senhores da sua força, os trabalhadores levaram o Governo Provisório a reco­


nhecer legalmente o direito ao trabalho (e o consequente dever do estado de garan­
tir a todos os trabalhadores a existência pelo trabalho), reivindicação que, a partir
da Revolução de 1848, substituiu a reivindicação da liberdade de trabalhar, que
marcara o século anterior e tinha sido alcançada como corolário do fim da servi­
dão e do reconhecimento dos trabalhadores como seres livres, sujeitos de direitos
e de deveres.
1 6 6 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

Em 27 de Fevereiro começaram a funcionar os ateliers nationaux. No dia 28, os


trabalhadores clamavam pela constituição de um Ministério do Trabalho. Não o
conseguiram, mas desta reivindicação saiu a Comissão do Luxemburgo (assim cha­
mada por estar sediada no Palais du Luxembourg), que integrava elementos das
várias artes e ofícios e era presidida por Louis Blanc e Albert. O seu objectivo era
o de procurar os meios de melhorar a condição das classes trabalhadoras. O go­
verno (o poder efectivo) continuava nas mãos da burguesia e a Comissão do Lu­
xemburgo viria a revelar-se impotente para resolver os problemas dos trabalhadores.
Como Marx salienta em A Luta de Classes em França, M a classe operária francesa
(...) era ainda incapaz de fazer a sua própria revolução.”
Entretanto, as classes trabalhadoras iam alcançando alguns benefícios, como a
redução da jornada de trabalho para dez horas em Paris (onze horas na província).
Noutros locais (Lyon, porex.) foram-se criando comissões idênticas à Comissão
do Luxemburgo. Fruto do mesmo compromisso que presidira à constituição do
Governo Provisório (“um governo que - nas palavras de Lamartine - suspende
esse mal entendido terrível que existe entre as classes”), a Comissão do Luxembur­
go, no seio da qual havia representantes patronais, ia tentando criar sociedades de
produção de tipo cooperativo e resolver pela arbitragem os conflitos entre patrões e
trabalhadores. A influência das ideias de Louis Blanc é patente no principal pro­
jecto de lei saído da Comissão: a proposta de aquisição pelo estado dos caminhos
de ferro e das minas, de transformação do Banco de França em Banco do Estado,
de centralização dos seguros nas mãos do estado, etc.. Com o o próprio Louis
Blanc escreveu, “o estado chegaria à realização desse plano através de medidas
sucessivas. Não se trata de violentar ninguém”. Dentro deste espírito, os trabalha­
dores concedem ao Governo três meses, na esperança de verem realizados os seus
anseios (“trois mois de misère au Service de la République”).
Neste entretanto, difundiam-se os clubes e os jornais de feição socialista, anima­
dos pela acção de Dézamy, Blanqui, Cabet, Lamennais, Proudhon. Em Abril reali­
zaram-se as eleições para a Assembleia Constituinte, abertas, pelo sufrágio universal,
a mais de nove milhões de eleitores (em vez dos 250.000 do regime censitário).
Blanqui bem avisara que “a eleição imediata da Assembleia Nacional seria um
perigo para a República”. Com efeito, os resultados da eleição vieram mostrar que
os socialistas eram largamente minoritários na França de meados do séc. XIX.
M esmo em Paris, apesar da eleição de Louis Blanc, a chamada lista do Luxem­
burgo foi derrotada. Em Maio, Louis Blanc c Albert abandonaram a presidência
da Comissão do Luxemburgo (suprimida pouco depois) e foram afastados da C o­
missão Executiva, que sucedeu ao Governo Provisório e que em breve começaria
a tomar medidas de reacção às conquistas populares que se seguiram a Fevereiro.
A v elà s N u n es - 1 6 7

Pouco depois, Blanqui, Raspail e Albert (talvez os mais avançados e os mais lúci­
dos dos representantes dos trabalhadores) são presos e os clubes socialistas são
encerrados. “Trata-se apenas de reconduzir o trabalho às suas antigas condições” -
proclamava na Assembleia o ministro Trelat. Desfaziam-se as ilusões de Feverei­
ro: a República que os operários de Paris obrigaram a proclamar, na esperança de
alcançarem uma república democrática e social, não passara de uma república burguesa.
Agora, ficava definitivamente claro que a República proclamada pela nova As­
sembleia Nacional não veio pôr em causa a ordem burguesa, antes se afirmou
como república burguesa, apostada na consolidação do poder da burguesia, de acor­
do com o lema de que “a burguesia não tem rei, a verdadeira forma da sua domi­
nação é a república”.175
Os ateliers nationaux, desviados dos objectivos que Louis Blanc lhes assinalara,
em breve se transformaram numa nova edição dos ateliers de charitédo Ancien Régime.
Como nas workhouses inglesas, neles eram acolhidos os trabalhadores lançados no
desemprego em virtude da crise económica e da revolução, os quais iam removendo
a terra no Champ de Mars, num trabalho fastidioso e improdutivo, a troco de um
salário de subsistência. Os meios da burguesia não deixavam de identificar essa
criação do Governo Provisório com as ideias socialistas de Louis Blanc, para depois
poderem concluir: “Uma pensão do Estado para uma aparência de trabalho, eis o
socialismo”. Assim se preparava o caminho para futuras medidas que levaram prati­
camente à dissolução dos ateliers nationaux, com os quais se foram as últimas espe­
ranças de um socialismo realizado pela organização do trabalho.
De 22 a 26 de Junho desse ano de 1848, lutou-se duramente nas ruas de Paris:
assim se iniciava “a primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a
sociedade moderna”. Os operários revoltados, cujo lema era du pain ou du plomb
receberam o chumbo disparado pelas armas dos homens do general Cavaignac,
que assumira poderes ditatoriais após a dissolução da Comissão Executiva. Vários
milhares de mortos e mais de 25 mil presos dizem bem de quanto tinha sido
utópica a revolução de Fevereiro, “a revolução da simpatia geral”: “a fraternidade -
escreveu Marx - durou justamente o tempo durante o qual o interesse da burguesia
era irmão do interesse do proletariado.(...) A fraternidade das classes antagónicas,
uma das quais explora a outra, essa fraternidade proclamada em Fevereiro, inscrita
em grandes letras por toda a Paris, em todas as prisões, em todos os quartéis - a sua
expressão verdadeira, autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil na sua
forma mais horrenda, a guerra entre o trabalho e o capital.”176

175 Cfr. K. M ARX, A slu ta sd e cla sse s... cit., 239.


176 Cfr. K. M ARX, n®de 29.6.1848 da Neue Rheinische Zeitung.
1 6 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

O significado histórico das lutas de 1848 residirá exactamente em que, como


alguém escreveu, “até então as classes não se conheciam. A partir dessa altura,
tomaram-se inimigas”.177
h) Os anos que se seguiram à derrota dos revolucionários de 1848
Mas regressemos à França após 26 de Junho de 1848. Em Julho, Proudhon - eleito
para a Assembleia Nacional em eleições parciais de 4 de Junho - propõe um plano de
reforma financeira e social em que aparece a sua ideia dos banques d'échange.
Tal plano obteve apenas dois votos na Assembleia, que pouco depois decretava
o regresso à jornada de doze horas, restabelecia a prisão por dívidas, afastava um
projecto de imposto progressivo e transformava o direito ao trabalho (reivindicação
que esteve por detrás dos movimentos de Junho) em pouco mais que um simples
dever de assistência.
Em Novembro, foi proclamada a Constituição da Segunda República e em
Dezembro de 1848 Luís Napoleão (apoiado pelo Partido da Ordem, de Thiers)
seria eleito, por sufrágio universal, Presidente da República.
Entretanto, em 10 de Março de 1850 foram eleitos três deputados socialistas
em Paris, propostos por um comité eleitoral controlado por membros do operari­
ado. E logo os jornais do Partido da Ordem clamaram ser necessário “que os defen­
sores da ordem tomem a ofensiva contra o partido vermelho”, acrescentando-se
que “entre o socialismo e a sociedade [sociedade = (grande) burguesia] existe um
duelo de morte, uma guerra impiedosa, sem quartel; neste duelo desesperado, é
necessário que um ou outro desapareça; se a sociedade não liquida o socialismo,
será o socialismo a liquidar a sociedade”.
O sufrágio universal, de onde tinha nascido a Segunda República, era posto em
causa: “é preciso romper o círculo de ferro de uma legalidade asfixiante”. Os homens
do Partido da Ordem viam a questão com clareza: “a nossa vitória manteve-se até
aqui pela vontade do povo; é preciso afirmá-la agora contra a vontade do povo”.
Em 1851, um golpe de estado pôs termo à Segunda República. Em 1852, Luís
Napoleão (Napoleão III) iniciou o Segundo Império, que duraria até 1870.
No decurso destes anos, o capitalismo francês não deixou de se desenvolver,
apesar das crises, principalmente as de 1857 e 1867. A indústria francesa começou
a adoptar em larga escala as máquinas a vapor (pouco mais de 5 mil, desenvolven­
do 16 mil cavalos, cm 1850; mais de 43 mil máquinas, totalizando 544 mil cava­
los, em 1880). As novas necessidades tecnológicas favorecem a concentração,
especialmente na siderurgia e na metalurgia pesada. Os caminhos de ferro conhe­

177 Cfr. A . DANSETTE, ob. cit., 32.


A v elã s N u n es - 1 6 9

ceram um incremento espectacular (1.900 Km em 1849; 24.450 Km em 1875).


Particularmente activo neste período foi o sector da banca, tendo-se desenvolvido
os bancos de depósitos e os bancos de investimento, centros de mobilização do
aforro e da sua canalização para as actividades económicas.
Uma lei de 24-7-1867 vem propiciar ao capitalismo esse “maravilhoso instru­
mento” que são as sociedades por acções. Inicialmente, a sua criação exigia carta
régia de autorização, caso por caso. Mesmo o Codede Commerce (1808) só permi­
tia a sua constituição mediante autorização prévia do governo. A lei de 1867 veio
dar um passo em frente muito importante na afirmação da liberdade de empresa.
Partindo do princípio (expresso no relatório) de que “a autoridade não deve de
modo nenhum intrometer-se nas transacções privadas”, a lei de 24-7-1867 deter­
mina que, “de futuro, as sociedades anónimas poderão constituir-se sem autoriza­
ção do Governo”.178 Esta nova liberdade não tardaria a fazer sentir os seus efeitos,
pois, de 1880 a 1895, constituíram-se na França mais de 500 sociedades anónimas
por ano (cerca de mil em 1907; à roda de dois mil em 1911).179
O incremento da industrialização trouxe consigo, naturalmente, o aumento
numérico da classe operária. Embora com dados algo imprecisos, o recenseamen­
to efectuado em 1866 indica 4.700.000 empregados na indústria, no comércio e
nos transportes (em Paris, com 1.799.980 habitantes, mais de 900 mil pessoas
integram famílias de operários e empregados). Os sectores tradicionais (têxteis e
vestuário, indústrias alimentares) ocupam a maior parte das pessoas, que se distri­
buem, na grande maioria, por pequenos estabelecimentos de comércio ou peque­
nas unidades industriais de tipo artesanal, apesar do desenvolvimento das indústrias
modernas (no Creusot, v.g., as fábricas Schneider empregam mais de 12.000 ope­
rários, mas não chega a 10% a percentagem de patrões que emprega mais de 10
trabalhadores).
Embora progressivamente concentrados em centros industriais de certa im­
portância, os operários da indústria, muitas vezes recém-chegados dos campos,
incultos e sem experiência política, mostravam-se pouco atraídos para a luta soci­
al. Os elementos mais combativos eram os operários-artesanos das indústrias tra­
dicionais, ciosos da sua independência e adeptos do socialismo associacionista.

178No Estado de Nova York, uma lei de 1811 autorizava já a constituição de sociedades anónimas sem necessi­
dade de prévia autorização do estado. Na Inglaterra, até 1844, a constituição de sociedades anónimas depen­
dia de lei expressa do parlamento para cada caso. E, até 1862, a emissão de acçóes ao portador e o regime de
responsabilidade limitada continuaram sujeitos a autorização individual do parlamento. Cfr. C FURTADO.
Prefácio. .., cit., 31 e V. M OREIRA, A Ordem Jurídico..., cit., 82.
179 Cfr. C . RIPERT, Aspects..., cit., 59ss.
170 - Um a In tro d u ç ã o à Eco nom ia P o lític a

Em 1852, uma lei vem permitir as associações de socorros mútuos, que ficam,
porém, sujeitas a apertada vigilância e às quais é proibido conceder subsídios de
desemprego. Pelo menos até 1860, a subida dos salários nominais é insuficiente
para acompanhar o ritmo de subida dos preços. Nas grandes cidades, os bairros
operários começam a distinguir-se nitidamente da cidade burguesa.
Com excepção de Proudhon c Blanqui, deixaram de dar sinais de vida quase
todos aqueles que tinham animado as várias correntes do pensamento socialista na
França de antes de 1848. Em 1854, um autor pode escrever: “O socialismo mor­
reu, falar dele é fazer a sua oração fúnebre”. Com efeito, apesar de algumas greves
e da conversão das associações de socorros mútuos em autênticos organismos de
resistência, o movimento operário francês foi bastante débil até 1860. Não obstan­
te, o procurador-geral de Lyon descrevia assim, em 1854, o qu^ parecia estar por
detrás da aparente acalmia: “o operário é hoje comunista e igualitário como o
burguês era filósofo antes de 1789”, observação que condiz com o ponto de vista
expresso no M anifesto Comunista (1848), segundo o qual “o comunismo já é
reconhecido por todas as potências europeias como uma potência”.
t) A Associação Internacional dos Trabalhadores e as lutas operárias
A partir de 1860, pode observar-se uma certa mudança na situação política e
social. Napoleão III, a braços com certas dificuldades internas, provocadas pela
crise económica de 1857, pela Campanha da Crimeia e pela guerra com a Itália,
foi levado a procurar certo apoio junto das camadas populares. Por alturas da
Exposição Industrial de Londres, em 1862, o Imperador patrocinou a visita à
Exposição de uma delegação de 183 trabalhadores franceses, todos eles perten­
centes às indústrias tradicionais. Durante três meses, os delegados puderam tomar
contacto com o bem organizado movimento operário inglês. Nos relatórios desses
delegados, um ponto comum: a reivindicação do direito à greve e do direito de
organização sindical.
Ao longo dos anos de 1862,1863 e 1864, as greves sucedem-se, em Paris e na
província, com tal força que os poderes públicos se sentiram incapazes de aplicar as
leis que as proibiam para reprimir os grevistas. Em Fevereiro de 1864, cm apoio a
candidaturas de representantes dos trabalhadores nas eleições legislativas parciais
então realizadas, aparece o chamado Manifeste des Soixante, entre cujos subscritores
figuram alguns nomes que viriam a destacar-se entre os revolucionários da Comuna.
Os resultados eleitorais foram um fracasso, mas o conteúdo do Manifeste des Soixante
é significativo. Aí se reivindica, além do mais, a revogação da legislação que proíbe
as greves, a liberdade de criação de sindicatos, o alargamento da competência das
associações de socorros mútuos, a regulamentação do trabalho das mulheres, a ins­
A v e lA s N u n e s - 171

tituição da instrução primária gratuita... Não é por acaso que o direito à greve vem
a ser reconhecido por uma lei de 25 de Maio desse ano de 1864.
Em 1867, por ocasião da Exposição Universal de Paris, volta a ser reposta a
reivindicação da liberdade de criação de sindicatos. O Governo pronuncia-se, a
instâncias de uma comissão operária, no sentido de tolerar a existência de sindica­
tos.180 Tanto bastou para que, de 1868 a 1870, se constituíssem algumas dezenas
de sindicatos, se criassem as primeiras federações nacionais e se constituísse em
Paris o esboço de uma confederação de todas as associações operárias, que entabu­
lou os primeiros contactos com a Associação Internacional dos Trabalhadores, funda­
da em Londres, no Saint M artins Hall, em 28.9.1864.
Entre 1867 e 1870, ganha força a acção grevista,181 reprimida por vezes com
violência, ao mesmo tempo que se instauram processos contra a A.I.T., a pretexto de
complots que a própria polícia organizava para justificar os ataques a uma instituição
que vinha ganhando ascendente entre os meios operários. Num dos processos ins­
taurados contra a Internacional, o procurador imperial acusava: “as greves surgem em
diversos pontos, suscitadas ou pelo menos encorajadas ou apoiadas pela Associação
Internacional”. A verdade é que, em finais de 1870, os adeptos da secção francesa da
Internacional representam a principal força do movimento operário francês. Signifi­
cativamente, é em finais do Segundo Império que a actuação dos trabalhadores
ganha mais acentuadamente um carácter político, a par da actuação sindical. Por essa
altura começa a andar no ar a ideia de constituir um partido operário. Em 1870,
aparece, aliás, um livro de Vermorel intitulado Le Parti Socialiste.
Em 1872, no Congresso da Haia, a Internacional aprova uma proposta de Marx
e Engels no sentido da criação de partidos políticos operários em cada país. Os
delegados portugueses votaram a favor, e em 1875 fundou-se em Portugal um Parti­
do Socialista (no mesmo ano da fundação do Partido Social-Democrata Alemão).
j ) A Comuna de Paris
A derrota das forças imperiais francesas na guerra franco-prussiana dita a que­
da do Segundo Império e gera amplo e profundo descontentamento popular, pe­
rante a humilhação que significou para o patriotismo francês a assinatura do
Armistício de Versalhes (28-1-1871), após as capitulações de Sédan, Estrasburgo,
Metz e Paris, onde o cerco das tropas de Bismark fez reinar a fome.

>80 Só mais tarde, como acima se diz, a lei Waldeck-Rousseau, de 21/3/1884, virá a reconhecer plenamente o
direito de associação dos trabalhadores.
181 Em 1867, verificou-se ainda, em Roubaix, por parte dos operários da fiação e da tecelagem, uma das últimas
manifestações do recurso ao método primitivo de luta, a destruição das máquinas, atitude que os adeptos
franceses da A . I. T. condenaram, embora simultaneamente organizassem o movimento de solidariedade com
os grevistas.
1 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

Numa comunicação do Conselho Geral da A.I.T. (Setembro/l870), Marx acon­


selhava os operários franceses a evitar qualquer tentativa de levantamento e a “apro­
veitar da liberdade republicana para proceder metodicamente à sua própria
organização de classe”. Simplesmente, as dificuldades económicas, o patriotismo
ferido, o carácter impopular de certas medidas adoptadas pela Assembleia Nacio­
nal eleita em Fevereiro de 1871 e dominada pelos adeptos da realeza, tudo contri­
buiu, para que, em 18 de Março, estalasse em Paris uma insurreição que levou os
operários e o povo da capital a proclamar a Comuna de Paris, a qual haveria de
manter-se durante 72 dias (até 28 de Maio de 1871).
Dos 65 membros do Conselho Geral da Comuna, 25 eram operários, a maior
parte artesanos das indústrias tradicionais, embora o peso dos operários dos novos
ramos industriais fosse maior que em 1848. No seio da Comuna não havia separação
de poderes, pois a Comuna não foi concebida como um organismo de tipo parla­
mentar, mas antes como um corpo actuante, simultaneamente legislativo e executivo.
De entre os objectivos proclamados e as medidas adoptadas na sua curta vigência,
alguns relevam do simples ideário democrático (separação do Estado e da Igreja;
instituição da instrução laica, obrigatória e gratuita; carácter electivo, responsável e
revogável dos servidores públicos, incluídos os juizes); outros apresentam-se com
intenções socialistas. Estas intenções transparecem claramente em várias proclama­
ções da Comuna: “Trabalhadores, não vos enganeis, é a grande luta, é a luta entre o
parasitismo e o trabalho, entre a exploração e a produção (...)” - afirma-se num
manifesto do Comité Central da Guarda Nacional, de 5 de Abril de 1871.
Este diagnóstico explica algumas das medidas tomadas pela Comuna: dissolução
do exército permanente, substituído por uma Guarda Nacional cuja base era consti­
tuída por operários; entrega aos Sindicatos da tarefa de elaborar uma estatística dos
ateliers abandonados pelos antigos donos, com o objectivo de entregar a sua adminis­
tração aos trabalhadores neles empregados, associados em cooperativas.
Em Abril, numa Déclaration au Peuple França is, a Comuna propõe-se “o fim do
velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionalismo, da ex­
ploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios aos quais o proletariado
deve a sua servidão, a pátria as suas desgraças e os seus desastres”; em Maio, é
apresentada a proposta de expropriar, mediante indemnização, “todos os grandes
ateliers dos monopolistas”.
Acerca do significado e importância da Comuna de Paris muito se tem escrito.
Bakunine exaltou-a como “uma negação audaciosa e inequívoca do Estado”, como
manifestação da “acção espontânea e contínua das massas”, espírito de que iriam
alimentar-se as correntes de tipo anarquista. Marx, pelo contrário, considera a
Comuna “essencialmente um governo da classe operária”, “a primeira revolução
A v elãs N u n es - 17 3

em que a classe operária era abertamente reconhecida como a única capaz de


iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média de Paris (...), exceptu­
ados apenas os ricos capitalistas”. E o facto é que as teses marxistas conheceram,
depois da Comuna, uma audiência crescente.
No entanto, como alguém escreveu, “a grande medida social da Comuna foi a
sua própria existência”: “o movimento operário e o socialismo não podem conti­
nuar a ser o que eram na manhã de 18 de Março”.182
Em 28 de M aio de 1871, os communards acabaram por ser vencidos pelas
tropas de M ac-M ahon, seguindo-se uma repressão que afectou sobretudo os ele­
mentos operários e se traduziu em cerca de 25 mil fuzilados, umas 40 mil prisões
e à volta de 14 mil condenações a pesadas penas de prisão e deportação.
Decretado o estado de sítio em 28 de M aio de 1871, a situação manter-se-ia
até Abril de 1876. Em M arço de 1873, a lei Dufaure veio prescrever que “consti­
tuirá um atentado contra a paz pública, pelo simples facto da sua existência e da
sua ramificação em território francês, toda a associação internacional que, sob
qualquer designação, nomeadamente sob a de Associação Internacional dosTra-
balhadores, tiver por fim incitar à suspensão do trabalho, à abolição do direito de
propriedade, da família, da pátria ou dos cultos reconhecidos pelo Estado”.
Com esta breve referência à Comuna de Paris, terminamos a análise que nos
propusemos dos aspectos mais importantes da Revolução Francesa, ao longo de
um processo cuja evolução, a partir de 1789, ilustra a consolidação da burguesia
(e, cada vez mais claramente, da grande burguesia) no poder.
E com este apontamento sobre o significado da Revolução Francesa na história
do capitalismo damos por concluída a análise que vínhamos fazendo dos factores
que conduziram o capitalismo à posição de sistema dominante à escala mundial.

182Cfr. J. BRUHAT, l e s socialist«.. c it, 533.


-------------------- _
C apítulo II

Do C a p ita lis m o d e
C o n c o rrê n c ia

ao

C a p it a l is m o M o n o p o l is t a d e
E st a d o
1 7 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o íít ic a

Vimos que o capitalismo só se afirmou verdadeiramente como modo de pro­


dução autónomo quando as relações de produção capitalistas penetraram na in­
dústria, o que aconteceu quando esta atingiu a fase da maquinofactura, período a
partir do qual o capitalismo se instalou como sistema económico dominante.
Referimos acima o processo da industrialização da Inglaterra, país pioneiro da
indústria capitalista. Só mais tarde os outros países foram conhecendo a sua ‘revo­
lução industrial’. Poderemos escalonar deste modo o início da industrialização nos
vários países capitalistas: 1760 - Inglaterra; 1800 - Bélgica, França, EUA, Suíça,
Escócia; 1860 - Alemanha, Itália, Suécia, Áustria, Checoslováquia; a partir de
1900, os restantes países industrializados.
E será importante observar-se que a industrialização foi em geral acompanha­
da (precedida ou logo seguida) pelo desmantelamento das fronteiras aduaneiras
internas, última reminiscência do feudalismo: em 1776, com a constituição dos
Estados Unidos da América; em 1795, na França; em 1800, no Reino Unido; em
1816, na Prússia; em 1824, na Suécia-Noruega; em 1834, constituía-se entre os
estados alemães a união aduaneira conhecida por Zollverein (a unificação política
só se verificaria em 1871); em 1835, na Suíça; nos anos 1850, na Rússia e na
Austria-Hungria; em 1861, teve lugar a unificação italiana. Foi nos espaços eco­
nómicos assim criados que, mercê da adopção de medidas proteccionistas, se fo­
ram instalando os capitalismos nacionais do séc. XIX.
É fora de dúvida que o capitalismo dos dias de hoje se distingue, sob certos
aspectos, do capitalismo que o mundo conheceu durante quase todo o séc. XIX; e
também não há dúvida de que, na segunda metade do séc. XX, vários factores
novos vieram alterar a fisionomia típica do capitalismo dos primeiros anos do
século e dos últimos anos do séc. XIX.
Na verdade, desde a afirmação do capitalismo como modo de produção domi­
nante até aos nossos dias, operaram-se, no seio do capitalismo, certas transformações
que importa caracterizar e explicar, de modo a que fique claro o significado e o
alcance das mudanças verificadas, para se poder compreender porque é que, apesar
dessas mudanças, a essência do sistema não foi afectada.
Será pacífica a afirmação de que a história do capitalismo se pode considerar
dividida em três fases distintas: uma I a fase, de capitalismo de concorrência; uma 2a
fase, de capitalismo monopolista; uma 3a fase de capitalismo monopolista de estado.
Não iremos tratar aqui dos problemas teóricos que esta divisão do capitalismo
em diversas fases ou estádios de desenvolvimento pode levantar e efectivamente
tem levantado.183 Tentaremos apenas delimitar historicamente cada uma delas (na

183 Sobre esses problemas, cfr. V. T. M OREIRA, em A. CASTRO e outros. Sobre o capitalismo. .., cit-, 5-68 e Ch.
PALLCMX, A economia m undial..., cit.
A v elàs N u n es - 1 7 7

certeza de que o desenvolvimento do capitalismo não se processou ao mesmo


ritmo em todos os países), definir-lhes as características essenciais e encontrar um
sentido, uma explicação para a evolução verificada.
1 7 8 - U m a I n t r o o u ç á o à E c o n o m ia P o i í t k a

O C a p it a l is m o d e C o n c o r r ê n c ia

A designação em epígrafe (a par de outras também utilizadas com o mesmo


sentido: capitalismo liberal, atomístico, individual, etc.) costuma utilizar-se para
referir a realidade económica característica dos países onde, nos fins do séc. XVIII
ou durante o séc. XIX, se verificou a revolução industrial.
Com o características desse período do capitalismo, podemos referir:
a) A existência de um grande número de pequenas empresas - muitas vezes
empresas individuais ou familiares - , gozando os empresários de absoluta liberda­
de de iniciativa com vista à obtenção do máximo lucro tendo em conta o preço
formado no mercado;
b) livre concorrência entre as empresas, pois, sendo pequenas, nenhuma delas
poderia exercer influência sensível sobre a oferta e, sendo muito numerosas em
cada indústria, não tinham possibilidade de estabelecer acordos entre elas com
vista ao controlo dos preços e do mercado; por outro lado, nenhuma das empresas
estava em condições de conquistar e conservar uma clientela (procura) própria e
mais ou menos segura, porque os bens produzidos e vendidos no mercado são
homogéneos e porque se considera existir plena transparência no mercado (em
cada momento, todos os agentes económicos - tanto os vendedores como os com­
pradores/consumidores - dispõem de todas as informações possíveis acerca das
condições do mercado);
c) as condições em que essa concorrência se desenrolava faziam que o mercado se
apresentasse como um mecanismo por meio do qual os consumidores orientam a
produção, de modo que se produzem precisamente aqueles bens, daquela qualidade
e naquela quantidade que corresponde à procura que eles efectivamente fazem.
O consumidor era, pois, considerado o último detentor do poder económico: esta
a essência da chamada soberania do consumidor. O mercado era tido como o instru­
mento automático de controlo e direcção da economia. Como as empresas eram
pequenas, os capitais necessários para abrir uma nova fábrica não eram muito avul­
tados184 e como o mercado era aberto (nenhuma empresa podia controlar a cliente-

184 Considerando a Inglaterra (1810), a França (1850), a Bélgica (1850), os EUA (1880) e o Japáo (1905), P. BAIROCH
(te Tiers-Monde..., ciL, 57) conclui que, salvo o caso dos EUA, em que eram muitas as terras disponíveis, nestes
países, à volta das datas apontadas, a venda de uma empresa agrícola média que ocupasse um activo propor­
cionava os capitais suíucientes para pôr de pé uma empresa industrial capaz de ocupar oito operários.
A v elãs N u n es - 17 9

la), sempre apareceriam novas empresas no mercado enquanto a indústria fosse atractiva
para os investidores em busca de lucro. O aumento do número de empresas provo­
cava aumento da oferta c este conduzia à diminuição dos preços do mercado, elimi­
nando os ineficientes e obrigando as empresas que quisessem manter-se e aumentar
os seus lucros a um permanente esforço de inovação técnica (só deste modo, baixan­
do os custos, poderia uma qualquer empresa aumentar os seus lucros, perante um
preço que não podia controlar, antes tinha de aceitar como um dado).
Assim, nas condições da concorrência perfeita, o mercado e o mecanismo dos
preços eram tidos como os garantes da eficiência social do sistema. O mecanismo
dos preços forneceria aos agentes económicos a informação necessária para que
eles pudessem decidir racionalmente, e o respeito pelos princípios do cálculo económi­
co garantiria que as empresas que permanecem no mercado produziriam a maior
quantidade de bens possível, ao mais baixo custo possível, vendendo-as ao mais
baixo preço possível, proporcionando o grau máximo de satisfação das necessida­
des dos consumidores. Se se produzem mercadorias inúteis ou extravagantes, tal só
pode acontecer em resposta a uma procura extravagante do consumidor. Só o
comportamento errado ou o desequilíbrio das pessoas (ou as políticas erradas do
estado), não as deficiências do sistema económico, podem explicar os desequilí­
brios, os desvarios ou as crises do capitalismo.
d) A economia funcionaria por si, segundo as suas próprias leis, à margem da
política. A economia é a esfera de acção dos particulares, uma esfera da vida
inteiramente separada da política, do estado.
Cada indivíduo actua com vista à realização do seu próprio interesse; mas, se
assim fizer, “cada indivíduo é guiado por uma mão invisível, a aingir um objectivo
que ele não tinha de modo algum visado. Prosseguindo o seu interesse particular,
cada indivíduo serve o interesse social mais eficazmente do que se tivesse real­
mente o objectivo de o servir” (Adam Smith). As ‘leis naturais’ da economia, o
livre jogo das forças do mercado encarregar-se-iam de fazer convergir espontane­
amente e automaticaamente a actuação de todos na realização da racionalidade
económica, da eficiência e do equilíbrio económico. Qualquer intervenção estra­
nha só poderia ser fonte de perturbação e de desperdício.
Assim se justifica a concepção liberal de rigorosa separação entre o estado e a
economia, entre a economia e a esfera política. Só esta última diria respeito ao
estado, cabendo aos cidadãos, cm último termo, o poder político. A esfera econó­
mica diria respeito apenas à esfera privada dos indivíduos, enquanto produtores/
vendedores e consumidores/compradores.
1 8 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

Assim se justifica a ideia de que o estado não devia intervir na economia, a


ideia de que o direito (o estado)parava àporta dasfábricas.
O estado (o estado capitalista liberal do séc. XIX) foi, por isso, remetido para
a posição de simples estado guarda-nocturno, apenas lhe cabendo intervir para ga­
rantir a defesa da ordem social, para assegurar a cada um o pleno exercício da
liberdade individual e para criar e manter certos serviços c instituições públicas
necessários à vida em sociedade e que o simples jogo dos interesses individuais não
realizaria. O estado devia, pois, actuar o mínimo possível (estado mínimo), reduzir
ao essencial o seu aparelho administrativo, para assim reduzir ao máximo as suas
despesas e poder cobrar a título de imposto aos seus cidadãos o mínimo indispen­
sável, na proporção dos haveres de cada um .185
Sabe-se hoje que não é ‘neutro’este sistema proporcional adoptado como critério
de tributação e sabe-se que à burguesia aproveitava a ‘igualdade’ tributária através
dele realizada. E é claro também que o papel relativamente ‘passivo’ atribuído ao
estado liberal não o impediu de desempenhar a sua função de estado capitalista.
Internamenté, o estado não deixou de legislar no sentido de ‘disciplinar’ os
trabalhadores (adaptando-os às exigências da indústria capitalista), de ampliar a
jornada de trabalho, de fixar o salário máximo, de proibir os sindicatos operários.
E não deixou de actuar também, no âmbito das suas funções de polícia, no sentido
de reprimir todos os movimentos colectivos das classes trabalhadoras. Com o Ga-
raudy põe em evidência, “a liberdade burguesa, que foi, no séc. XVIII, uma arma
contra as tiranias feudais, transformou-se, no séc. XIX, numa arma contra as rei­
vindicações operárias. Foi em nome da liberdade que em 1841 a burguesia se opôs
à lei contra o trabalho das crianças nas minas - seria uma ingerência inadmissível
do estado contra a liberdade dos industriais”.186
Externamente, o estado não deixou de levar por diante a política colonial exigida
pelo desenvolvimento da indústria, nem deixou de aplicar medidas proteccionistas
(de defesa da indústria nacional perante as indústrias estrangeiras, como aconteceu
na Alemanha, nos EUA, etc.) ou de impor às colónias o livrecambismo favorável às
indústrias da metrópole (caso da Inglaterra relativamente à índia, v.g.).

185 Conhecem-se as ideias de Adam Smith cm matéria de impostos: estes devem ser certos, a sua cobrança deve
ser cómoda e não dispendiosa, todos os cidadãos devem pagar impostos (havendo grupos privilegiados, isentos
do seu pagamento, os outros cidadãos seriam obrigados a pagar também por aqueles), todos devem ser tribu­
tados na proporção dos respectivos haveres (cfr. A . SMITH, Riqueza das Nações, cit., II, 485ss).
E a concepção das chamadas finanças clássicas ou finanças neutras transparece com clareza na conhecida
síntese de Gaston Jèze: 'II y a des dépenses publiques, il íaut les couvrir". Quer dizer: só porque o estado tem que
fazer certas despesas se admite que ataque, com a cobrança de impostos, a riqueza privada de cada um, mas
- por isso mesmo - só se admite que o faça nos limites do indispensável para cobrir aquelas despesas.
186 Cfr. R. C A R A U D Y, 06. cit., 76.
A v elã s N u n es - 1 8 1

O que se passava nesses primeiros tempos do capitalismo era que a estrutura


social apresentava, do lado da burguesia, uma multidão de pequenos empresários,
com fraca e igual capacidade de pressão (quer perante os concorrentes, quer pe­
rante os poderes públicos). Por isso não havia necessidade de o estado intervir a
regular os conflitos de interesse entre o empresariado, que assegurava por si só um
certo equilíbrio de forças. O estado-policia-sinaleiro não tinha que intervir de forma
sistemática a regular o trânsito (dos interesses); bastava que interviesse esporadica­
mente quando algum acidente mais grave o justificasse. O estado podia manter-se
neutro, limitando-se a defender a ordem capitalista (em linguagem marxista, o
domínio de classe da burguesia), os interesses de classe da burguesia como um todo,
dos ataques do ‘inimigo interno’. A confiança nas virtudes do livre jogo das forças
do mercado justificava a separação estado/economia (ou estado/sociedade civil) e a
afirmação da neutralidade do estado no quadro da democracia liberal burguesa.
1 8 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

O C a p it a l is m o M o n o p o l is t a

N o último quartel do séc. XIX, começa a ser notório um fenómeno que Marx
considerara em O Capital como inerente à lógica da acumulação do capital. Refe­
rimo-nos à concentração capitalista e à consequente ‘monopolização’ da economia,
que marca uma nova fase da história do capitalismo, o capitalismo monopolista, que
se prolongará até à Primeira Guerra Mundial.
A expressão capitalismo monopolista e o significado que em geral se lhe associa
são originários da teoria económica marxista, nomeadamente com os trabalhos de
Rudolf Hilferding (1910), Rosa Luxemburgo (1913), Nicolai Bukarine (1915) e
Lenine (1916).187 Esta nova fase do capitalismo assinala uma alteração nas estru­
turas económicas do sistema, agora caracterizadas pelo domínio de um pequeno
número de grandes empresas, à volta das quais, em posição de subordinação, vai
crescendo um grande número de pequenas empresas sem qualquer capacidade de
influenciar o mercado, substituído pela ‘mão visível’ das ‘empresas monopolistas’.
Ao falarmos aqui de monopólio ou de concentração monopolista não queremos
significar que os sectores onde a concentração se verifica venham necessariamente
a ficar confiados a uma única empresa (monopólio no sentido rigoroso da palavra).
Com aquelas expressões pretendemos qualificar as situações em que uma indústria
passa a ser controlada por um número muito reduzido de grandes empresas que
estão em condições de impor os seus preços aos consumidores, em termos tais que
o mercado deixa de ser o instrumento de orientação e de controlo das empresas
para passar a ser dirigido por elas. As ‘empresas monopolistas’, exactamente por
serem muito grandes, nem sequer terão que recear que a sua situação se altere em
virtude do aparecimento de eventuais novas concorrentes: a existência de situações
monopolistas significa, desde logo, que os de fora não têm liberdade de (ou têm
muita dificuldade em) entrar na indústria.
Estas grandes empresas, além de virem acentuar o carácter social do processo
produtivo (que a maquinofactura apontou definitivamente - como vimos - como
uma característica do modo de produção capitalista), vêm também conferir carácter
social ãpropriedade dos meios deprodução.

187 Mais recentemcnte, foi importanie o livro de Paul BARAN e Paul SWEEZY, M onopoly C a pital-A n Essayon
the American Economie and Social Order, Monthly Review Press, N. York, 1966 (hé uma ediçâo brasileira,
Zahar Editores, 1966).
A v u à s N u n es - 18 3

Com efeito, as novas técnicas implicam a utilização de máquinas muito caras e as


grandes empresas exigem investimentos que envolvem somas elevadíssimas, fora do
alcance de um único indivíduo, o que obriga à reunião de capitais de várias pessoas
(dezenas, centenas ou até milhares). Esta exigência está na base da enorme expansão
que de então para cá têm conhecido as sociedadespor acções, especialmente aptas para
mobilizar capitais tanto de grandes como de pequenos aforradores.188 As empresas
individuais dão lugar à sociedade. E a sociedade por acções - essa “maravilhosa
invenção do capitalismo”, como lhe chamou George Ripert - é a sociedade comer­
cial capitalista por excelência. O capital deixa de estar individualmente apropriado
para passar a ser objecto de propriedade social, corporativa (do conjunto dos sócios da
sociedade). Como Marx observa, estas “empresas sociais” representam, por oposição
às “empresas privadas”, “a abolição do capital enquanto propriedade privada dentro
dos limites do próprio modo de produção capitalista”.189
Analisaremos, em traços gerais, as características deste período do capitalismo,
chamando a atenção para três pontos fundamentais: 1) concentração monopolista
ao nível das empresas privadas em vários dos mais importantes sectores da econo­
mia; 2) exportação de capitais privados e recrudescimento do colonialismo; 3)
afirmação da importância extraordinária do capital financeiro, que marca posição
de relevo, como veremos, tanto no processo de concentração, como no movimento
de exportação de capitais e na exploração das colónias.

1 . A C O N C EN T R A Ç Ã O CAPITALISTA. S E U S FACTORES

Que factores poderão explicar o processo de concentração190 que se verificou a


partir dos anos 70 do séc. XIX?

188 A constituição das sociedades por acções, que inicialmente exigia carta régia e depois autorização do gover­
no, começou a poder realizar-se livremente a partir de 1867, desde que observados os requisitos estabelecidos
em lei geral: na França (Lei de 24-7-1867), em Portugal (Lei de 22-6-1867), na Espanha (1869), na Alemanha
(1870), na Bélgica (1873), na Itália (1882).
•89 Cfr. Le Capital, Livro lll„ L II, Cap. XXVII (ÉditionsSociales).
190 Estamos a referir-nos ao processo de concentração ao nível das empresas, mas a verdade é que a própria
concentração da produçáo cm grandes unidades originou a concentração dos operários e facilitou a tomada
de consciência dos seus interesses de classe. Náo admira, por isso, que a maior força dos operários organizados
tenha provocado, nas últimas décadas do séc. XIX ou até á 14Grande Guerra, o reconhecimento legal dos seus
sindicatos (o direito dos trabalhadores à livre constituição de sindicatos foi consagrado pela primeira vez, em
texto constitucional, na Constituição de Weimar, de 1919). Neste período surgiu, pois, um elemento novo nas
economias capitalistas: o sindicalismo (a que se seguiria a constituição de partidos políticos ligados à classe
operária). E com a expansão do sindicalismo tendeu também a mitigar-se, em alguma medida, a concorrência
no mercado da força de trabalho. Perante as grandes concentrações monopolistas, aparece agora o sindicato
representativo dos trabalhadores. Assim se dizia numa resolução sobre os sindicatos, tomada no 1. Congresso
da Associação Internacional dos Trabalhadores (Genebra, 1866): "A dispersão dos operários é provocada e
1 8 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

a) A concentração é, pode dizer-se, a consequência directa da concorrência. Esta


centrava-se na busca incessante de novas condições de produção, capazes de per­
mitir custos de produção mais baixos, única maneira de poderem aumentar os seus
lucros as pequenas empresas impossibilitadas de exercer qualquer acção relevante
sobre as condições globais do mercado ou directamente sobre os preços. Exacta­
mente por isso, a concorrência era incompatível com a ineficiência, e as empresas
que não acompanhassem os progressos técnicos estavam condenadas a desapare­
cer, fechando as portas ou sendo absorvidas por outras, que iam engrandecendo
progressivamente, assim ganhando, por força do seu próprio crescimento, mais
amplas possibilidades de desenvolvimento da sua capacidade de produção e do seu
poderio, num processo de efeitos cumulativos. As leis próprias do modo de produ­
ção capitalista conduzem, pois, à concentração do capital.
b) O progresso técnico aparece como pano de fundo no qual se enquadra o fenó­
meno da concentração capitalista. Não é por acaso que este fenómeno se afirma
decisivamente num período (último quartel do séc. XIX) em que importantes
conquistas da técnica vêm alterar toda a actividade industrial.
Foi o período da chamada segunda revolução industrial, em que o petróleo e a
electricidade surgem como novas fontes de energia que, a par do carvão e do vapor
de água, vão aplicar-se à indústria e aos transportes, permitindo a substituição do
motor a vapor pelo motor de explosão e pelo motor eléctrico;191 em que se utili­
zam novas técnicas no tratamento do aço; em que aparece o alumínio como im­
portante matéria prima industrial; em que a indústria química se desenvolve a
partir dos subprodutos do carvão e do petróleo, etc.
A utilização da energia eléctrica veio permitir a sincronização do trabalho, a pro­
dução em cadeia, favorecendo as grandes empresas. As novas técnicas siderúrgicas
vieram condenar definitivamente os pequenos altos fomos que utilizavam a madeira

mantida pela sua inevitável concorrência. O s sindicatos nasceram acima de tudo para suprimir ou pelo menos
restringir esta concorrência". Reconhecer a mudança resultante da contratação colectiva (um golpe impor­
tante no 'contratual ismo' liberal) náo significa concordar com os autores que falam de monopólio bilateral para
traduzir a ideia de que também a mercadoria força de trabalho passa a ser negociada num mercado onde se
verifica monopólio do lado da procura e do lado da oferta. Alguns pretenderam mesmo aplicar aos sindicatos
(monopolistas) a legislação anti-monopolista...
191 A invenção da bateria eléctrica por Volta data de 1800; mas só em 1831 Henry inventa o motor eléctrico; a
primeira locomotiva eléctrica é de 1851; em 1875 surge o motor a gasolina para automóvel (o 1®motor diesol foi
construído em 1898). No que se refere à situação em Portugal, eis o testemunho de José A CÜ RC IO DAS NEVES,
em 1 820: “É lastimoso o estado em que nos achamos a respeito de máquinas. Fazemos tudo à força de braços e
de animais, enquanto nos outros países a força dos elementos quase dispensa a mão do homem nos trabalhos
manuais pesados e aumenta prodigiosamente os frutosda indústria. Numa parte da Europa e nos Estados Unidos
da América, já os rios e até os mares se navegam pelo agente do fogo, sem mastros, sem velas e sem remos; e, entre
nós, ainda se náo acha estabelecida uma só máqui na de vapor nas nossas fábricas* (ob. d t., 111/ 112 ).
A vel A s N u n es - 1 8 5

como combustível e obrigar à constituição de grandes empresas capazes de suportar os


enormes encargos financeiros impostos pela adopção da tecnologia moderna.
A indústria do aço, a indústria de construção mecânica e a indústria automóvel
tomam-se, em substituição dos têxteis e do carvão, nos principais ramos de activi­
dade económica, alicerçados em empresas de grande dimensão. Na Inglaterra, o
centro da actividade industrial desloca-se de Manchester (algodão) para Birmin­
gham (aço). Ao mesmo tempo, chega ao fim o período de hegemonia da Inglater­
ra como potência industrial, pois os EUA, já lançados na industrialização, foram
os principais beneficiários da nova revolução energética (petróleo).
As indústrias novas (química, alumínio, aparelhos eléctricos) surgem também
a partir de grandes empresas, aquelas que melhor respondem às exigências da
amortização de enormes somas de capitais fixos, em período de acelerado desen­
volvimento tecnológico.
O progresso técnico favoreceu ainda a concentração na medida em que se
traduziu em alargamento do mercado: quer porque favoreceu o crescimento de­
mográfico (sobretudo por diminuição das taxas de mortalidade), quer porque os
novos meios de comunicação (o primeiro cabo lançado no Atlântico data de 1858
e é de 1896 a invenção do sistema Marconi de T.S.E) e de transporte (caminho de
ferro, automóvel, avião) possibilitaram o seu alargamento geográfico, consagran­
do definitivamente o capitalismo como um sistema mundial (o Canal do Suez,
iniciado em 1859, ficou concluído em 1869).
c) As crises cíclicas, que começaram a verificar-se nas economias capitalistas a
partir do primeiro quartel do séc. XIX, provocam o desaparecimento de muitas
empresas e estimulam a cartelização das empresas maiores, constituindo assim
outro factor importante da concentração (embora esta não seja um fenómeno que
ocorra apenas em períodos de depressão).
d) O capital bancário desempenhou neste processo um papel importante (lem­
brem-se os irmãos Pereire, os Rothschild, John P. M organ, etc.). Dada a sua
natureza de instituições de centralização de capitais, os grandes bancos de investi­
mento puderam fornecer à indústria os capitais de que esta carecia. A esta união
entre o capital bancário e o capital industrial chamou Hilferding capitalfinanceiro,
ao qual atribuiu - exageradamente - tanta importância, que chegou a defender, em
1913, que o confisco de meia dúzia dos mais importantes bancos berlinenses equi­
valeria ao confisco da quase totalidade da indústria alemã.192

192 Esta perspectiva - algo utópica, que a realidade posterior viria a desmentir - chegou a ser defendida por Lenine,
em escritos de 1917 (A Catástrofe Iminente e outros): "O s grandes bancos são o 'aparelho de estado' que é
necessário para a realização do socialismo, que nós tomamos pronto a usar ao capitalismo".
1 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Neste contexto, o capital bancário desempenhou um papel decisivo. Ele actuou


como instrumento de ‘extermínio’ das pequenas e médias empresas, ‘asfixiadas’ nos
mecanismos do crédito; ele promoveu a constituição de poderosos grupos finan­
ceiros, associando a actividade bancária à actividade industrial e comercial; ele
permitiu a concentração e centralização dos meios financeiros indispensáveis à
definição e execução da estratégia imperialista do capitalismo.
Em muitos casos, deve-se aos bancos a iniciativa de acordos, fusões e associa­
ções de vária natureza entre empresas industriais, e mesmo a iniciativa da consti­
tuição dos primeiros monopólios internacionais, que então começaram a repartir
entre si o mercado mundial, criando zonas reservadas ou esferas de influência.193
A acção do capital bancário foi particularmente importante na criação e na
expansão das grandes empresas ferroviárias, que conheceram, no período a que
estamos a reportar-nos, uma expansão extraordinária.194 A presença do capital
bancário foi também de muito destaque na constituição de empresas coloniais
(lembrem-se os casos da Société Générale, na Bélgica; o Banque de Paris et des Pays-
Bas e o Banque d'Indochine, na França).
Ficou claro e acelerou-se neste período o processo de ‘expropriação’ de grande
número de pequenos empresários pelo pequeno número das grandes empresas que
foram chamando a si a parte de leão do excedente social, fenómeno que constitui
“a primeira negação da propiedade privada” e confirmaria, na leitura de Marx, que
o capitalismo “gera a sua própria negação, com a fatalidade que preside às meta­
morfoses da natureza”.195
e) O facto de vários países se terem industrializado na segunda metade do séc.
XIX, quando outros (principalmente a Inglaterra, a Bélgica e a França) conheciam

Saliente-se, porém, que Hilferding evoluiria para concepções que nunca foram as de Lenine. Começando por
admitir que o socialismo só poderia alcançar-se através da luta revolucionária do proletariado contra o capi­
talismo e o imperialismo, o autor de Finanzkapitalviria a defender, a partir de 1919, que a “tendência histórica
do capital financeiro” para se tornar um cartel geral permitiria uma passagem pacifica ao socialismo: o
capitalismo financeiro deixava de ser a última fase d o capitalismo para se tornar no inicio d o capitalismo
organizado. Cfr. D . GRISONI, ob. cit., vol. 2,11 -47.
193 E.M A N D EL, 7ra/(é...,cit.,lll, 159, indica a existência de 40 cartéis internacionais em 1897.
194 A primeira linha de caminho de ferro construiu-se em 1825 na Inglaterra, entre Stockton e Darlington. Pois a
rede ferroviária construída por empresas britânicas passa de 800 Kms cm 1876 para 24 000 Kms em 1910; de
1850 a 1900, os investimentos na construção de caminhos de ferro excederam os investimentos no conjunto
das indústrias transformadoras; calcula-se que no último quartel do séc. XIX cerca de 40% a 50% da formaçáo
de capital privado se tenha verificado no sector ferroviário, o que representa uma concentração de capital
numa só indústria sem paralelo na história económica. Igualmente de salientar é o facto de cerca de 80% da
rede ferroviária existente em 1913 se concentrar nas cinco potências de então: EUA, Império britânico, Rússia,
Alemanha e França (cfr. LENINE, Imperialismo, cit., 130/131; H. DENIS, História..., c i l , 600; BARAN/SWEEZY,
Capitalismo monopolista, cit., 220/221).
195 Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, Livro 1,566^567.
A v e lA s N u n e s - 1 8 7

já algumas décadas de industrialização, não deixou de ter importância no alastrar


da concentração a todo o mundo capitalista.
Nos países que primeiro conheceram a revolução industrial, o grande número
de pequenas empresas que entretanto se desenvolveram constituiu a base de uma
pequena e média burguesia que procurou resistir e que entravou enquanto pôde a
marcha da concentração, ao mesmo tempo que a existência de um grande número
de pequenos proprietários rurais (principalmente na França, onde foi mais longe a
liquidação da aristocracia fundiária como força política e como força económica)
não favorecia a centralização do capital.
Diversamente, os países que só mais tarde se industrializaram (Alemanha, EUA,
Rússia e Japão) não conheciam uma classe burguesa antiga, numerosa e mais ou
menos organizada como existia nos outros países da Europa ocidental. Ni o havia,
pois, uma classe de pequenos proprietários que remassem contra a constituição de
grandes unidades capazes de criar situações de tipo monopolista. Por outro lado, os
países recém-chegados à industrialização, para poderem competir com as indústrias
dos países mais avançados, foram naturalmente levados a lançar mão das técnicas
mais modernas e a alicerçar a sua industrialização em unidades de grande dimensão,
para poderem colher as vantagens inerentes à produção em grande escala.
A estas considerações de ordem geral acrescem razões específicas, sobretudo
em relação aos EUA, à Alemanha e ao Japão, países onde a indústria nasceu já
fortemente concentrada. No caso dos EUA, não existia uma aristocracia fundiária
e a vitória na Guerra da Secessão (1861-1865) consolidou muito cedo o poder da
burguesia comerciante e industrial do norte. Depois, tratava-se de explorar terri­
tórios imensos (foi o período da conquista do Oeste, em busca da “nova fronteira”,
uma espécie de ‘colonialismo interno’) e riquezas enormes, num país onde a escas­
sez de mão-de-obra tornava os salários altos e a amplitude dos empreendimentos
exigia vultuosos capitais. A necessidade de economizar mão-de-obra e a dimensão
das explorações impulsionavam, pois, no sentido da mecanização. O afluxo de
grande quantidade de capitais europeus completa o quadro que explica o apareci­
mento de empresas gigantes nos EUA, logo no início da industrialização.196
Na Alemanha, a indústria capitalista quase não conheceu a fase de livre concor­
rência. A pequena burguesia liberal nunca aí gozou da prosperidade e do poder

1% Tâo importante como o afluxo de capitais foi, sem dúvida, a entrada de imigrantes, em grande maioria origi­
nários da Europa. Entre 1821 e 1915 emigraram para os territórios apetecíveis para a colonização da América,
Oceânia e Áírica do Sul cerca de 45 milhões de europeus, com particular intensidade nas três décadas ante­
riores 5 1* Guerra Mundial, durante as quaiso número de imigrantes europeus nestas regiões rondou um milháo
por ano (dados apresentados por Aldo FERRER, em El Trimestre Económ ico, 1975,1 01 6). Especificamente
para os EU A , ver L. NEAL e P. USELD IN G , "Immigration, a neglecled source o í american economic
development", em O xford Economic Papers, Março/l 9 7 2 , 68-88.
1 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

político que conquistou na França e na Inglaterra. Pelo contrário, a sua derrota em


1848 permitiu à nobreza prussiana cimentar a sua posição de classe dominante. A
industrialização operou-se, pois, num ambiente de estreita aliança entre os empresá­
rios da indústria e a alta nobreza senhora da máquina estadual. Assim surgiu, logo de
início, a ligação entre os grandes Konzem alemães e o militarismo prussiano das
esferas governamentais, aliança que a história dos grandes grupos alemães bem do­
cumenta e que haveria de marcar uma característica mais ou menos constante no
capitalismo alemão (emblematicamente, a Krupp armou os exércitos alemães na
Guerra Franco-Prussiana de 1870, na I a Grande Guerra e na 2a Guerra Mundial).
Finalmente, o Japão, o único país, para além dos países europeus e dos EUA,
que conseguiu iniciar o seu processo de industrialização no séc. XIX.
Em 1858, por pressão dos EUA, os portos japoneses abriram-se ao comércio
externo, conseguindo a Inglaterra, em 1864, que o Japão reduzisse a 5% os direitos
alfandegários sobre as mercadorias europeias.
No reinado do jovem imperador Matsu Hito, o Japão iria encaminhar-se para
novos rumos. Com o primeiro passo para a liquidação do feudalismo, em 1869 são
confiscados os domínios senhoriais e todos os bens das ordens religiosas; em 1871,
são suprimidos os senhorios; em 1872, é conferida aos camponeses a propriedade da
terra que cultivam, embora os antigos senhores feudais sejam indemnizados pelo
estado, recaindo sobre os camponeses, em vez das prestações feudais, um imposto
que terá absorvido cerca de 34% do produto das colheitas e que representou, entre
1893 e 1897, cerca de 80% da carga fiscal total (mantendo-se à roda de 50% ainda
entre 1913-1917); em 1889, é instituída uma monarquia constitucional.
Paralelamente, inicia-se a industrialização em moldes capitalistas, com a par­
ticipação de capitais ingleses e com acentuada intervenção do estado, alimentada
pelas receitas dos impostos pagos pelos agricultores, que financiaram mais de 50%
do investimento total entre 1895 e 1910. O estado japonês fez elevados investi­
mentos estruturais na educação, na investigação e em infraestruturas físicas, como
os caminhos de ferro, além de promover a criação de ‘fábricas modelo* e de apoiar
a criação da indústria naval e da marinha mercante.
Em 1870 começou a funcionar a primeira fiação mecânica; em 1890, são proi­
bidas por lei as coligações operárias; em 1893, a indústria ocupa já cerca de 380
mil operários. E logo em 1894 o capitalismo japonês lança-se numa política im­
perialista, submetendo a Coreia ao regime de protectorado e obrigando a China,
em 1895, a ceder-lhe a Formosa e outras ilhas pequenas, bem como o direito de
estabelecer feitorias comerciais e manufacturas em vários portos.197

197 Cfr. H . DENIS, História.. cit., 603/604 e, sobre o significado da restauração Meiji, H . K. TAKAHASHI, em P.
A v elã s N u n es - 1 8 9

Aqui, como se vê, a industrialização iniciou-se logo a seguir à liquidação do


feudalismo. Na ausência de uma classe burguesa digna desse nome, foi o próprio
estado, dominado pela grande burguesia de ricos comerciantes e privilegiados, que
tomou a iniciativa da implantação dos enormes estabelecimentos industriais (prin­
cipalmente na siderurgia e na indústria de armamento), que mais tarde passariam
para as mãos do pequeno número de famílias que continuam a controlar os gran­
des grupos industriais e financeiros japoneses (Zaibatsus).

2. A EXPO RTAÇÃO DE CAPITAIS PRIVADOS E O


RECRU D ESCIM EN TO D O IM PERIALISM O

A concentração torna possível o entendimento entre as grandes empresas no


sentido de não baixarem os preços, o que muitas vezes implica a limitação da
produção. Os lucros monopolistas constituem, assim, um capital em busca de cam­
pos de investimento. Com efeito, os capitais acumulados não podem ser aplicados
em investimentos nos sectores monopolizados, pois investir significa exactamente
aumentar a capacidade produtiva, tornar possível o aumento da produção e, por­
tanto, a baixa dos preços.
Embora os monopolistas aufiram elevados lucros globais, podem não ter inte­
resse em investir mais na sua própria indústria: é que a taxa global de lucro pode ser
alta, mas ser baixa (ou até negativa) a taxa marginal de lucro. Daí o interesse em
investir em sectores ainda não monopolizados (nos quais se espera obter uma taxa
de lucro superior à taxa marginal de lucro do sector monopolizado) ou então a
estender-se, por meio da exportação de capitais, para territórios onde não se verifi­
quem ainda situações monopolistas.
A sobreacumulação do capital origina um excedente de capitais à procura de
novos campos de investimento, situação que não se verificara nos primeiros tem ­
pos da revolução industrial, marcada por um grande apetite de capital novo. E n ­
tão, como ensina M aurice Dobb, “acumulava-se o capital que proporcionava os
meios de modernizar; e, ao mesmo tempo, as inovações da técnica permitiam uma
aplicação e um escoamento do capital, mesmo quando este se acumulava com
maior rapidez do que aumentava a oferta de trabalho assalariado (tendência que se
começava a manifestar)”.198

SW EEZY e outros, D o Feudalism o..., cit., 74-85. Cfr. também JO H N STO N /M EllO R ,o 6. c/f., 566-593.
198 Cfr. M. D O BB, Capitalismo..., cit., 38.
1 9 0 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a

É esta nova situação que explica o movimento de exportação de capitais privados


que se iniciou no final do séc. XIX, fenómeno paralelo à retracção dos investimen­
tos nos países europeus industrializados.199
A exportação de capitaisprivados (a par da forte concentração no sector da produ­
ção industrial e da emergência do capitalfinanceiro) e a partilha dos territórios colo­
niais entre as grandes potências, num processo em que os estados nacionais
desempenharam um papel central, são as características do imperialismo neste final
do século XIX.
Durante os primeiros tempos da revolução industrial, a burguesia liberal dos
países já industrializados, forte do seu monopólio tecnológico, era em regra parti­
dária do livrecambismo extremo (de 1793 é o célebre panfleto de Bentham “Eman­
cipai as vossas colónias”!). Sem terem de enfrentar concorrentes sérios dos restantes
países, os homens da indústria (principalmente na Inglaterra) procuravam por
todos os meios novos capitais para aplicar na produção, considerando desperdício
as despesas públicas efectuadas com as colónias.
Com o acentuar da concentração e a estabilização das situações monopolistas, em
vez da antiga fome de capitais passou a haver excesso de capitais e carência de campos
de investimento. Daí o novo período colonialista iniciado nas décadas de 70-80 do séc.
XIX, intimamente ligado às novas exigências do capitalismo monopolista.
Com o sublinha Ernest Mandei, “a época do capitalismo dos monopólios tor­
na-se rapidamente uma época de revalorização do colonialismo. Dom inar territó­
rios estrangeiros e fechá-los à concorrência estrangeira como mercados de produtos
acabados, fontes de matérias-primas e de mão-de-obra barata ou campos de inves­
timento de capitais a exportar - isto é, como fonte de super-lucros: eis o que se
converteu no motivo central da política externa dos países capitalistas a partir dos
anos 80 do século passado” [séc. XIX].200
Assim se iniciou um período caracterizado por uma forte exportação de capi­
tais para as regiões pouco povoadas do Império Britânico (Canadá, África do Sul,
Austrália, Nova-Zelândia), para os territórios coloniais da África e da Ásia e para
os países semi-colonizados da América Latina e da Europa Oriental.201

199 Alguns autores (Marshall e W icksell, v.g.) explicam em função deste fenómeno a depressão que afectou o
capitalismo europeu de 1873 a 1896. Alguns, à maneira de Bentham, reclamavam porque " foram dedicados
recursos ao investimento no exterior, ao invés de aplicá-los na reconstrução das cidades imundas da Grã-
Bretanha, simplesmente porque aquela actividade parecia mais remuneradora" (Assim, Clapham, citado por
M. D O BB, A Evolução..., cit, 386).
200 Cfr. E. M ANDEL, Traité..., ciL. III, 137.
201 Maurice D O BB (A Evolução.. c iL , 362) chama a atenção para o facto de a exportação de capitais ter desem­
penhado um papel importante logo a partir de meados do séc. XIX, não tanto sob a forma de investimento
privado directo, mas sob a forma de empréstimos a governos estrangeiros, muitas vezes destinados a finan­
A v e l à s N u n e s - 191

A expansão colonial foi, por sua vez, mais um factor a favorecer a concentração
e a centralização do capital, na medida em que abriu novos mercados e propiciou
vastos campos de acção, permitindo a constituição de grandes empresas para ex­
plorar os transportes entre as metrópoles e as colónias, para explorar as riquezas
agrícolas e mineiras dos territórios coloniais, para rasgar as redes ferroviárias que
facilitassem o acesso daqueles bens aos portos de embarque.
Neste negócio especializaram-se os banqueiros ingleses (Rothschild, v.g.) e só
os investimentos britânicos no estrangeiro passaram de 800 milhões de libras em
1871 para cerca de 3500 milhões em 1913.202 Com o observa G . Hobson, “parece
que os obstáculos ao investimento vitorioso no exterior nos sectores industriais
estão a ser removidos”; e muitos passaram a acreditar que “as raízes da prosperida­
de estavam no ultramar” (Clapham).203 Na França, o Presidente do Governo, Jules
Ferry, afirmava na Câmara dos Deputados (28.7.1885): “Para os países ricos, as
colónias constituem uma das formas mais vantajosas de colocação de capitais. (...)
A questão colonial é, para os países impulsionados pela própria natureza da sua
indústria a uma grande exportação, a própria questão dos mercados”.204
O extraordinário incremento que então conheceram os meios de transporte
(navegação a vapor, caminhos de ferro, abertura de novos portos) e de comunica­
ção (telégrafo) veio unificar definitivamente o mercado mundial (em 1896, o Ca­
nal do Suez ligara o Mediterrâneo ao Indico; em 1915, o Canal do Panamá ligou
o Atlântico ao Pacífico), facilitando o que Nicolai Bukarine designou por interna­
cionalização do ca p ita is
Mas esta mesma unificação do mercado mundial veio colocar novos problemas às
potências capitalistas, agora concorrentes umas das outras, quer nos mercados de
venda dos produtos industriais, quer nos mercados de abastecimento de matérias-
primas ou de mão-de-obra barata, quer na busca de campos de investimento. Por
isso, a exportação de capitais não fez esquecer a necessidade de exportar mercado­
rias. Antes pelo contrário, aquela é muitas vezes um meio de impulsionar esta.206

ciar a construção de vias férreas, o que permitiu encontrar um campo de aplicação muito lucrativo para os
capitais ingleses, mas também a exportação de bens de capital produzidos pela indústria inglesa.
202 Cfr. E.M AN DEL, Traité....ciL, III, 132.
203 A p ud M . D O B B, /\ EvoluçSo.. ., cit, 384-386.
204 A p u d H . PÉREZ, ob.cit., 61.
205 Nunca é demais sublinhar a importância dos caminhos de ferro neste processo. Na Europa, o obstáculo dos
Alpes foi vencido: o túnel de Brenncr foi acabado em 1867, o de Mont-Cenis em 1870 e o de S. Gotardo em
1880. Na Rússia, começou em 1883 a construção do transcaspiano e em 1891 a do transsiberiano, que chegou
a Vladivostoque em 1902. Nos EUA, em 1869 encontraram-se em Ogden dois comboios, um vindo do Pacifico,
outro do Atlântico. Cfr. J. M A RC H A I, Cours..., cit., 155.
206 Basta recordar o exemplo das relações comerciais entre a Inglaterra e a India. Em 1814, a índia exportava para
a Inglaterra cerca de um milhão e trezentas mil peças de pano de algodão, enquanto a Inglaterra exportava
1 9 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Umas vezes, condicionam-se os empréstimos a conceder a governos ou a em­


presas privadas estrangeiras à compra dos produtos necessários (bens de produção
ou outros) no país exportador de capitais; outras vezes, a exportação efectua-se
através do expediente da constituição de filiais que, naturalmente, comprarão à
empresa-mãe ou a outras empresas da metrópole a tecnologia e a maquinaria de
que careçam e até os bens de consumo para o seu pessoal.
A concorrência entre as várias ‘indústrias nacionais’, mais ou menos monopo­
lizadas, obriga, porém, a ir mais longe. A salvaguarda das posições monopolistas
das empresas nacionais leva os vários países, por um lado, a adoptar medidas
proteccionistas para impedir (ou pelo menos dificultar) a entrada de mercadorias
estrangeiras no mercado interno e, por outro lado, a defender as empresas nacio­
nais da invasão de capitais e mercadorias estrangeiras nos territórios coloniais.
Mais uma vez, o papel dos estados nacionais é determinante. Como sublinha François
Perroux, “a concorrência dos grandes capitalismos nacionais no mercado mundial
deve entender-se essencialmente como a concorrência de poderosos monopólios
privados apoiados pelas armas e pela diplomacia dos seus Estados”, o que mostra
que “a nação é muito mais que o quadro no qual operam as empresas e as famílias;
ela é um centro de poder”.207
Adiantemos uma data: a Conferência de Berlim, da qual viria a resultar a parti­
lha da África entre as potências capitalistas da Europa, realizou-se em 1884-1885.
A Inglaterra lançara-se decisivamente numa política imperialista desde a subida
ao poder do governo conservador de Benjamin Disraèli (1874). Em 1876, a rai­
nha Vitória adopta o título de Imperatriz das índias; no mesmo ano, a Inglaterra
obriga a China a abrir seis novos portos ao comércio inglês e a aceitar a constru­
ção da primeira via férrea em território chinês.
A Inglaterra estabelece depois o seu domínio, de uma forma ou de outra, em
várias regiões da África, de Port-Said ao Cabo (o projecto de Cecil Rhodes): no
Egipto (1862); no Sudão (1882); na Somália (1884); no Uganda e em Zanzibar

para a índia pouco mais de oitocenias mil peças; em 1835, a situação inverte-se: a índia exporta para a Ingla­
terra pouco mais de trezentas mil peças de algodão, enquanto a Inglaterra exportava para a índia cerca de
cinquentaeoito milhões de peças. Cfr. P. IÉO N , ob.cil., vol. III, 1.1,225.
Ainda r»oque respeita ã Inglaterra, o valor das exportações de produtos industriais entre 1870 e 1913 foi superior
ao valor do investimento interno total, correspondendo a cerca de 1/5 do rendimento nacional e a cerca de 1/
3 do valor da produção industrial inglesa. Em meados do séc. XIX as exportações têxteis representavam à roda
de 80% do valor total das exportações britânicas. Os têxteis de algodão exportaram em média 57% da produ-
çàocntre 1841 e 1845 e 74% entre 1871 e 1875; a indústria de lanifícios exportou 17%daproduç3onosanos
1840 e cerca de 50% na década de 1870. Mas outras indústrias dependiam fortemente dos mercados ultrama­
rinos: as exportações de ferro e aço representaram 27% da produção entre 1841 e 1845 e 45% da produção
entre 1871 e 1875.
207 Cfr. F. PERRO UX, L e capitalhme. c i t , 43/44.
A v elà s N u n es - 19 3

(1890). Em 1899, é a Guerra dos Boers, movida pela Inglaterra aos Boers (colonos
de origem holandesa que anos antes os ingleses tinham expulso da África do Sul e
que se tinham estabelecido nos estados deTransval e de Orange), depois da desco­
berta das minas de ouro doTransval em 1884. A guerra terminou com a transfor­
mação dos dois estados Boers em domínios do Império Britânico.
A Inglaterra estabeleceu-se ainda na Birmânia, no Boméu, na Nova-Guiné e na
Malásia, além de penetrar economicamente em vários países da América Latina, ao
mesmo tempo que mantinha as suas posições na América do Norte, na Austrália e na
Nova Zelândia. A parte de leão na partilha do mundo coube, portanto, à Inglaterra.
Mas a França, sob o impulso de Jules Ferry, fixou-se na Tunísia, no Tchad, no
Congo, em Madagáscar e na Indochina. A Bélgica constituiu o seu ‘Estado inde­
pendente do Congo’, por iniciativa do próprio rei Leopoldo. A Holanda consolida a
sua posição na Indonésia e nas índias Ocidentais. A Itália fixa-se na região dos
Somalis. Na Alemanha, a pressão das cidades industriais do norte empurrará tam­
bém Bismark para a expansão colonial, cabendo-lhe, na África, o Togo, os Cama­
rões, a África Oriental alemã e territórios no Sudoeste Africano. Os EUA, ocupado
todo o território do Oeste (por volta de 1870), lançam-se em busca de ‘novas fron­
teiras’, passando do colonialismo interno ao colonialismo externo', em 1896, declaram
guerra à Espanha e tomam Cuba, Porto Rico e as Ilhas Filipinas; depois, anexam as
ilhas Hawai, estabelecem-se no Panamá e na República Dominicana e intervém
militarmente na Nicarágua (1912), nas Honduras (1911) e no México (1914). Em
páginas anteriores, apontámos já o rumo tomado pelo imperialismo japonês.
Esta corrida às colónias a partir do último quartel do séc. XIX constitui, sem
dúvida, um dos acontecimentos que mais fundo havia de marcar a história con­
temporânea. Em primeiro lugar, pelos conflitos que gerou entre as potências capi­
talistas (em último termo, os dois grandes conflitos mundiais deste século tiveram
origem em conflitos inter-imperialistas na luta por “espaço vital”). Em segundo
lugar, pela situação que criou aos territórios dominados, sejam ou não formalmen­
te independentes no plano político.
Com efeito, o regime colonial e a exploração económica das colónias trouxe­
ram consigo uma divisão do trabalho à escala mundial que fez dos países dominados
produtores e exportadores de bens primários (produtos minerais, alimentos ou
matérias-primas de origem agrícola), muitas vezes em regime de monocultura. E
esta degrada os solos, reduz a produção de géneros alimentares e torna os países
produtores inteiramente dependentes do mercado de um único produto, às vezes
monopsonizado pelo país dominante.
Por outro lado, os países primário-exportadores ficam reduzidos à posição de
consumidores de produtos manufacturados produzidos pelas empresas das metró­
1 9 4 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

poles, objectivo que acarretou a liquidação das indústrias existentes em algumas


das regiões colonizadas (o exemplo da indústria têxtil na índia é o mais flagrante).
Acresce que a exportação de capitais trouxe consigo uma nova faceta do impe­
rialismo, que se traduz no investimento directo nas minas e plantações, nas obras
públicas e, mais tarde, em empresas industriais. Só que esta penetração de capitais
significou que a direcção da economia dos países dominados passou a ser feita a
partir de centros de decisão estrangeiros, que actuam em consonância com os
interesses económicos das metrópoles e não com as exigências de um desenvolvi­
mento equilibrado dos territórios coloniais. Estes perdem a independência econó­
mica, sem a qual não é possível autêntica independência política, mesmo quando
formalmente aqueles territórios sejam independentes. Os investimentos orientam-
se em regra para sectores que produzem para exportação; e é por demais conheci­
da a anemia provocada pela exportação dos lucros nos países dominados, bem
como a dependência em que os coloca e as dificuldades que lhes levanta a sua
posição de devedores de capitais.
Em suma: a internacionalização do capital e a unificação do mercado mundial a que
se assistiu no período do capitalismo monopolista vieram lançar as bases da hie­
rarquia que hoje caracteriza o sistema mundial do capitalismo. Um pequeno grupo
de países (inicialmente apenas a Inglaterra, depois acompanhada ou mesmo ultra­
passada por outros países da Europa Ocidental e pelos EUA, e, actualmente, in­
cluindo também o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia) ocupa o vértice da pirâmide,
dominando todo o resto do globo. Em posição intermédia, os países que são a um
tempo dominados e dominantes. Na parte inferior da escala hierárquica, vêm os
chamados países subdesenvolvidos (países dominados, países dependentes, países
de desenvolvimento impedido).
A colonização do séc. XVI (na sequência das viagens atlânticas de portugueses e
espanhóis, que operaram a primeira onda de mundialização dos mercados) teve conse­
quências desastrosas para as populações de várias regiões colonizadas, em particular
da América Central e do Sul: a população passou de 80-100 milhões de habitantes
por volta de 1500 para 10 milhões apenas por alturas de 1650, com o caso limite do
México Central (25 milhões em 1500, um milhão por volta de 1605).
M uitos autores defendem, porém, que só com o desencadear da nova ofensiva
do capitalismo em meados do séc. XIX e a segunda onda de mundialização que a
caracterizou se começou a cavar o fosso que hoje separa os países ditos desenvol­
vidos dos países ditos subdesenvolvidos. De acordo com os cálculos de Paul Bai-
roch, nos finais do séc. XVII “o nível dos países hoje desenvolvidos era idêntico,
ou mesmo, em certos casos e em certos domínios, inferior ao da maioria dos países
hoje subdesenvolvidos”. Exceptuadas as sociedades primitivas (que por volta de
A v elã s N u n es - 195

1700 representariam entre 15% e 20% da população mundial), não haveria entre
os vários países diferenças que fossem além de 50% a 70% acima ou abaixo da
média. O mesmo autor, num artigo publicado em 1982, aponta as seguintes con­
clusões dos seus trabalhos sobre este assunto. O PNB per capita dos actuais ‘países
desenvolvidos’ era (em dólares e a preços de 1960): 1750-180 dólares; 1930-790
dólares; 1980-3000 dólares. Para os actuais ‘países subdesenvolvidos’, a evolução
foi esta: 1750-180/190 dólares; 1930-190 dólares; 1980-410 dólares.208
Vimos que o capitalismo surgiu como a “civilização das desigualdades”. E não
é fácil fugir à conclusão de que a desigualdade, também no confronto entre países,
surgiu igualmente com o capitalismo e tem-se vindo a acentuar com a evolução do
capitalismo. Estes dados obrigam, por outro lado, a equacionar a relação entre o
‘subdesenvolvimento’ e a colonização, processo indissociável do próprio processo
de desenvolvimento do capitalismo.

208 Cfr. P. BA IR O CH , obs. cits.


1 9 6 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

c
O C a p it a l is m o M o n o p o l is t a d e Estad o

A Primeira Guerra M undial é considerada, em regra, o marco que assinala o


início de uma nova fase no desenvolvimento do capitalismo, a qual vem até aos
nossos dias. Os autores utilizam para a designar expressões várias: economia mista,
economia concertada, neo-capitalismo, capitalismo organizado, capitalismo popular, ca­
pitalismo de estado, entre outras. Preferimos a designação de capitalismo monopolista
de estado, por nos parecer aquela que melhor traduz a mudança que se verificou a
partir da Primeira Grande Guerra e que melhor caracteriza a realidade do capita­
lismo actual.209
Vimos que a passagem do capitalismo de concorrência ao capitalismo mono­
polista significou uma transformação na estrutura económica do capitalismo, traduzida
na substituição da multidão de pequenas empresas por um número reduzido de
grandes empresas que ocupam posições monopolistas ou quase monopolistas; na
substituição do pequeno capitalista individual pela grande sociedade anónima; na
substituição do operário isolado pelo sindicato, etc. Pois no capitalismo actual
estes elementos continuam presentes: por isso será ainda capitalismo monopolista.
Mas há um elemento novo, que traduz uma transformação no modo de articulação da
estrutura económica com a estruturapolítica.
É que o estado saiu da sua tradicional esfera política de actuação, despiu o
manto que procurava apresentá-lo como instituição que nada tinha a ver com a
economia e com os negócios dos homens e invadiu às claras a esfera económica.
Fala-se de estado económico, para tornar claro que o estado é hoje um operador
económico de primacial importância nas economias capitalistas: ele é muitas ve­
zes o maior produtor, o maior investidor, o maior consumidor, o agente que movi­
menta a parte mais importante do rendimento nacional.

209 É uma expressão que parece dever-se a Lenine (Prefácio à 14ed. de O Estado e a Revolução, 1917) e lem sido
adoptada por alguns autores marxistas (também por alguns não-marxistas). Esta designação e o seu significado
não têm sido pacíficos, mesmo no campo marxista. Não é o momento para análise desta problemática. Utili­
zamos aqui esta formulação pelas razões e com o sentido que explicamos no texto. Sobre este ponto, ver:
BARAN/SWEEZY, Capitalismo Monopolista, cit., 73ss.; C. PALLOIX, A Economia Mundial, 11 Sss.; V. T. MOREIRA,
em A . CASTRO e outros, Sobre o capitalism o..., cit., 5-68; S. TSURU e outros. Aonde vai o capitalism o....
c\l.;TENDENZE dei Capitalismo Europeo, cit.; Economte et Politique, n% 143-144 e 145-146 (Julho-Setembro/
1966), onde se publicam os textos apresentados numa conferência internacional realizada em Choisy-Le-Roy,
20-29 de Maio de 1966); LE CAPITAUSME Monopoliste d ttat, cit.
A vel A s N u n es - 1 9 7

Por outro lado, a própria política é hoje - e cada vez mais - política económica.
E o próprio direito vem-se ocupando cada vez mais com a regulação da economia
(em vez de ‘parar à porta das fábricas’), sendo a ordem económica um elemento
relevante da ordemjurídica. É este novo estatuto do estado no seio do capitalismo
que aqui se pretende relevar com a expressão capitalismo monopolista de estado.2,°

1 . E n q u ad ram en to H is t ó r i c o

O desenvolvimento da indústria em vários países e a constituição, em alguns


deles, de grandes empresas nos sectores mais importantes são características do
capitalismo dos primeiros anos do século XX, como vimos. Conquistados os mer­
cados internos dos respectivos países e partilhado o mundo colonial, o aumento da
produção que as novas técnicas permitiam e o alargamento do mercado exigido
pelas grandes empresas impuseram às potências capitalistas a necessidade de alar­
gar a sua esfera de acção (o seu “espaço vital”), o que, num mundo mais ou menos
ocupado’, não poderia deixar de provocar conflitos.
a) A Primeira Guerra Mundial
O conflito tornou-se particularmente vigoroso entre a Alemanha e a Inglater­
ra, esta habituada a dominar a cena do capitalismo mundial, aquela - com um
desenvolvimento industrial aceleradíssimo a partir de 1870 211 - carecida de novos
mercados externos para a sua poderosa indústria pesada.
A Alemanha iria concorrer com a Inglaterra na tomada de posições dentro do
império turco, conseguindo que fosse adjudicada à indústria alemã a construção do
caminho de ferro de Bagdad. Em 1905, a Alemanha fixou-se em Tânger, entrando
cm competição com a França, que então já dominava Marrocos. E foi a tentativa
da Alemanha de penetrar na região dos Balcãs, com o apoio do imperador da
Áustria, que havia de levar à I a Grande Guerra entre potências capitalistas. De um
lado, a Alemanha e a Áustria (que naquela zona estava em conflito com a Rússia);
do outro lado, aqueles a quem a Alemanha fazia concorrência (a Inglaterra e a

Esta é, a nosso ver, a alteração mais significativa operada neste período nas estruturas do capitalismo. Mas cabe
assinalar também que é por esta altura que costuma assinalar-se o nascimento da chamada sociedade de
consum o, com o início da produção em série do íamoso Ford Model T, nas fábricas de Detroit da empresa
dirigida por Henri Ford.
Estes números são elucidativos: no período de 1880 a 1884, as exportações anuais da indústria alemã do ferro
e do aço representavam cerca de 40% das exportações das indústrias inglesas correlativas; no período de 1909
a 1913, o volume das exportações alemãs tomou-se sensivelmente igual ao das inglesas, nas indústrias referidas.
E não admira que assim tenha acontecido, se soubermos que a produção alemã de ferro fundido, que em 1870
era apenas 1/5 da inglesa, igualou esta cm 1905, tendo-a ultrapassado em 1910; em 1912aAlemanha produzia
17,6 milhões de toneladas, contra apenas 9 milhões produzidos na Inglaterra (cfr. LENINE, O imperialismo, ed.
c i l, 131; H . DENIS, História.. ciL, 604).
1 9 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

França) e o adversário da Áustria (a Rússia, onde, aliás, havia grandes interesses de


capitais franceses).
Assim surgiu a guerra, que viria destruir as estruturas económicas e sociais que
poderiam dar algum sentido às teses defendidas pelo liberalismo económico. E
com ela muita coisa mudou.
As exigências da guerra, não só em armamento e em outros equipamentos desti­
nados à guerra mas também em vestuário, calçado e alimentação para a tropa, con­
dicionaram a orientação da produção e conduziram ao controlo integral da economia
por parte do estado. A necessidade de disciplina pública da economia ampliou as
funções do estado e conduziu ao desenvolvimento de estruturas administrativas, de
formas organizativas e de modelos de direcção coerciva da economia privada.
N o final da Guerra, as estruturas produtivas apresentavam distorções acentua­
das, com sobredimensionamento dos sectores e actividades mais directamente ori­
entados para a produção com fins militares e défice nas actividades destinadas a
produzir para objectivos civis. A generalidade dos sectores sobredimensionados
carecia de profunda reestruturação para se adaptar à nova realidade, o que obrigou
à intervenção do estado e de capitais públicos para evitar a falência das empresas e
o desemprego dos que nela trabalhavam.
Em consequência da Guerra, surgem novos estados na cena internacional e os
EUA viram reforçado o seu poder relativo no concerto das nações (que se acentuaria
com o colapso do padrão-ouro como sistema monetário internacional, com as con­
sequências da Grande Depressão e com as sequelas da Segunda Guerra Mundial);
perante o fraccionamento do mercado internacional, desenvolveu-se uma atitude
generalizada de nacionalismo económico, de proteccionismo e de luta por mercados
externos, o que veio acentuar ainda mais o papel do estado no domínio da economia.
Quando, de um lado e de outro, se preparava a guerra, as centrais sindicais da
França e da Alemanha reuniram-se e proclamaram que os trabalhadores estavam
contra a guerra, denunciando as suas motivações e os seus objectivos, que não eram
motivações nem objectivos com quais os trabalhadores se identificassem. Termi­
nadas as hostilidades, os horrores dessa “guerra que pôs fim às guerras” (como
então se acreditava) deram razão às estruturas representativas dos trabalhadores,
que tinham morrido na guerra e sofrido as suas misérias. Esta ‘autoridade moral’
(e a consciência de classe que ela representa) veio reforçar o poder resultante do
aumento numérico da classe operária e do desenvolvimento das suas estruturas
organizativas, o que se traduziu em aumento do seu peso político e da sua capaci­
dade para influenciar o sentido da intervenção do estado.
A v elà s N u n es - 1 9 9

A Guerra veio tornar claro, fundamentalmente, que o estado não podia conti­
nuar na posição do sinaleiro que, do seu pedestal, se limitava a regular o trânsito
dos interesses particulares, apenas intervindo em caso de colisão mais ou menos
grave. Na grande corrida económica que conduziu à Guerra (e que esta exigiu
depois aos beligerantes), era necessária a presença do estado, enquanto força indis­
pensável para se evitarem ‘acidentes’ e se poder prosseguir no caminho com a
máquina capitalista. Ao contrário do que antes se admitia, ao estado era agora
atribuída a posição de primeiro responsávelpela economia.212
Até então, o estado só esporadicamente intervinha na economia e em relação a
certos aspectos ou questões restritas. A um nível global, a mais importante tomada de
posição do estado talvez tenha sido a legislação anti-truste que se iniciou nos EUA
com o ShermanAct (1890). Perante o perigo em que a concentração monopolista vinha
colocando a ‘livre concorrência’ (com cujas virtudes se identificavam as virtudes do
capitalismo), hesitou-se acerca da atitude que o estado devia tomar. Devia não se
intrometer, cumprindo assim a sua função? O u deveria intervir por só assim poder
cumprir essa função? Entendia-se que salvar a concorrência era salvar o próprio capi­
talismo. Por isso, o estado interveio, proibindo todas as formas susceptíveis de prejudi­
car a livre concorrência, para assegurar as condições que se consideravam indispensáveis
ao bom funcionamento do sistema. E claro que o capitalismo continuou a sua evolução
e as leis não foram suficientes para impedir a concentração.
Em 1924 Keynes proferiu na Universidade de Oxford a célebre conferência su­
bordinada ao título (significativo) The end o f laissez-faire, na qual afirma, logo no
terceiro período: “We do not dance even yet a new tune. But a change is in the air”.
b) As décadas de 1920e 1930
Entretanto, novos acontecimentos vieram marcar as condições que enquadra­
ram a evolução do capitalismo, com um após-guerra difícil, particularmente na
Europa, agora a ter de contar com mais um importante concorrente no mercado
mundial (os EUA, enriquecidos e fortalecidos com a guerra). O desemprego é
mais ou menos geral, principalmente nas indústrias voltadas para a exportação.
Ainda em plena guerra e em grande medida na sequência dela, eclodiu na
Rússia, cm O utubro de 1917, a revolução bolchevista, que se consolidou como
revolução socialista ao cabo de três anos de guerra civil. E o exemplo da Revolu­
ção de Outubro, no ambiente escaldante do fim da guerra, não deixou de se fazer
sentir em outras paragens, confirmando os receios de muitos responsáveis políti­
cos. Numa carta que dirigiu a Clemenceau e a W oodrow W ilson, Lloyd George

212 O próprio lenine escreveu que a 1* Guerra Mundial tinha "acelerado extraordinariamente a transformação
do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de estado" tipu d Ph. ZARIFIAN, Inflação.... c it , 110).
2 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

advertia (25.3.1919): “Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução.


Existe um sentimento profundo não só de insatisfação mas também de raiva e
indignação entre os operários em relação às condições existentes antes da guerra.
Toda a ordem vigente, nos seus aspectos políticos, sociais e económicos, está a ser
posta cm causa pela massa da população de um extremo ao outro da Europa”.213
Na Alemanha, à volta de Rosa Luxemburgo e de Karl Liebknecht - que se
opuseram à política de suspensão da luta de classes e de defesa nacional, adoptada
pela direcção do Partido Social-Democrata -, surgiu, logo nos princípios da guer­
ra, o Spartakusbund, expressão organizada da ala esquerda do Partido Social-De­
mocrata Alemão. Sob a influência da revolução russa, o Grupo Spartakus defende a
instauração da ditadura do proletariado e a implantação do socialismo na Alema­
nha. Transformando-se em 1918 no Partido Comunista Alemão, o grupo spar-
takista envolveu-se, logo cm 1919, num conflito armado com as forças no poder
em Berlim. Dominada a tentativa revolucionária e assassinados R. Luxemburgo e
K. Liebknecht, o movimento revolucionário sofreu, na Alemanha, um rude golpe.
Igualmente na Hungria se verificou, no imediato após-guerra, uma tentativa de
implantação do socialismo. A República foi aqui proclamada em Novembro de
1918. Em Março de 1919, perante a amputação do território imposta pelos Alia­
dos, o governo demitiu-se. Num período em que as dificuldades económicas ti­
nham favorecido a propaganda comunista, a multidão conduz ao poder Bela Kun.
A República Soviética Húngara duraria apenas 133 dias, após os quais os contra-
revolucionários confiaram a regência ao Arquiduque José, que inicia um período
de terror branco.
Na Itália, os operários das indústrias metalúrgicas, culminando o período de reivin­
dicações que se arrastou pelos anos 1919-1920 (o famoso biennio rosso), ocupam as
fábricas e começam a eleger conselhos operários, à semelhança dos sovietes russos.
Só que os operários falharam a sua tentativa e as classes médias, descontentes
com a inflação e adversárias da solução pretendida pelos operários, deram força ao
partido de Mussolini, que em Outubro de 1922, após a Marcha sobre Roma dos
camisas negras’, foi convidado a formar governo, transformado em ditadura em
1925. Um dos primeiros actos da ditadura foi a dissolução dos sindicatos operári­
os. O corporativismo representou a intervenção organizada do estado fascista na
economia e a tentativa de resolução das contradições do capitalismo, ‘matando’,
por definição, a luta de classes. A par do recurso a soluções políticas fascistas, o
corporativismo visou resolver o problema do governo da economia e a questão social,
com o objectivo de evitar a derrocada do capitalismo (que parecia iminente).

213 Cfr. Vértice, n°51, Nov-Dez/92,46.


A v elã s N u n e s - 2 0 1

Falhadas as tentativas revolucionárias de 1918 e 1919 em vários países da


Europa e implantados, a seguir, regimes de tipo fascista em vários deles (Itália -
1922; Bulgária - 1923; Espanha (Gen. Primo de Rivera) - 1923; Albânia - 1925;
Polónia (Pilsudski) - 1926), o Comité Executivo da Internacional Comunista re­
conhece a “relativa estabilidade do capitalismo”, proclamando o objectivo de cons­
truir o “socialismo em um só país”.214
Em 1928, Estaline decide colectivizar a agricultura e acelerar a industrializa­
ção, com prioridade à indústria pesada, lançando os planos quinquenais, para mo­
bilizar e organizar, em favor do investimento na indústria, a poupança interna
gerada na agricultura.
Com o crash na bolsa de Nova York, na célebre quinta-feira negra (29.X.1929),
instala-se a Grande Depressão, que depois se propagaria à Europa capitalista e a todo
o mundo capitalista. Os preços baixam, as falências sucedem-se, a produção diminui
enormemente215, o desemprego alastra. Mais de 30 milhões de desempregados no
conjunto dos países capitalistas, dos quais cerca de 6 milhões cabiam à Alemanha.
No início de 1929 (quando o volume da produção era cerca de 65% superior
ao de 1913), um relatório oficial apresentado nos EU A embandeirava em arco:
“economicamente, temos um terreno sem limites à nossa frente; há necessidades
novas que abrirão incessantemente caminho para outras mais novas ainda, à
medida que forem satisfeitas.(...) Parece termos apenas tocado na orla das nos­
sas potencialidades”.216
A crise veio confirmar que a dinâmica das economias capitalistas não é assegu­
rada pelo objectivo da satisfação das necessidades. A lógica do processo de acumu­
lação do capital é a maximização dos lucros. Quando este objectivo não é alcançado,
interrompe-se a acumulação, baixa a produção, destrói-se capital existente, dei­
xam de se utilizar os recursos disponíveis, com sacrifício do consumo das grandes
massas e da satisfação das necessidades. Em poucos anos, o clima de euforia,
mesmo no plano teórico, deu lugar às teses estagnacionistas de Alvin Hansen (1941)
e, mais tarde, de Joseph Steindl (1952), mais condizentes com o espectro da estag­
nação permanente que marcou a década de trinta (nos EUA, em plena época do
NeviDeal, a produção baixou em 1937 mais acentuadamente do que em 1930).217

214 Cír. A . V. MARTINS, ob. cit., 144/145 e j. ELLEINSTEIN, 06. cit., 1,183.
215 Tomando como base a produção de 1929 (= 100), são estes os índices da produção de 1932:E U A - 53,8;
Alemanha - 53,5; França - 71,6; Grã-Bretanha - 83,5 (cfr. H . DENIS, História..., cit., 606). O comércio no mundo
capitalista reduziu-se enormemente e a produção global diminuiu cerca de 1/3.
216 Cfr. M. D O B B, /\ Evolução..., cit., 393 e 404.
217 Este 'pessimismo teórico' assumiu uma outra face, a dos autores que defendem que a depressão não foi ultra­
passada graças a medidas de política económica que tenham sido adoptadas com esse objectivo, mas como
consequência do rearmamento e da economia de guerra que marcaram o mundo capitalista (com a Alema-
A Administração americana de Franldin Roosevelt tenta uma solução reformista
(que ficaria conhecida por New Deat), através de uma política de fomento financeiro,
ao mesmo tempo que, com a promulgação do National Industrial RecoveryAct (1933),
o estado concede às associações profissionais (ao jeito das soluções corporativas na
Europa) o poder de elaborar e fazer aplicar coercivamente regulamentos que deter­
minam os limites e as formas de concorrência nos vários sectores.
Ainda em 1933, foi criada a National RecoveryAdministration, entidade a que foram
atribuídos, entre outros, poderes para obrigar a indústria a reorganizar-se, para fixar os
preços, distribuir quotas de produção. A N.R.A. foi uma estrutura de planificação
económica centralizada de tipo moderno, significando a rejeição do capitalismo do
velho estilo, que marcou os primeiros tempos da política rooseveltiana.
Na síntese de A rthur Schlesinger, seriam estes os dogmas da primeira fase do
New-Deal: “Que a revolução tecnológica tornara inevitável o gigantismo; que não
era possível continuar a confiar na concorrência para proteger os interesses soci­
ais; que as grandes unidades eram uma oportunidade a aproveitar e não um perigo
a combater; e que a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deve ser com­
binação e cooperação sob uma autoridade federal ampliada”.218
Com a declaração de inconstitucionalidade da National RecoveryAdministrati­
on pelo Supremo Tribunal Federal em 1935 e sua consequente dissolução, desapa­
receu o organismo de cúpula da intervenção do estado na economia, organizada
corporativamente, com base nas associações profissionais autónomas, às quais era
confiada a ‘administração’ do respectivo sector de actividade económica. Cortadas
assim as ambições mais radicais do New-Deal, nem por isso este deixaria de ser
um dos momentos mais importantes na evolução do estado capitalista para a sua
fase actual de estado económico.
Na Alemanha, porém, os resultados políticos da crise foram muito diferentes.
Em Março de 1933, Hitler é nomeado chanceler. Em 1934, a pretexto do incên-

nha à frente) até ao final da 2* Guerra Mundial e que se prolongou após o fim da Guerra com a corrida aos
armamentos alimentada pela 'guerra fria'. É este, v.g., o ponto de vista de BARAN/SWEEZY, Capitalismo
Monopolista, cit.. Cfr também GAMBLE AVALTON, ob. cit., 119ss.
218 Há quem entenda, aliás, que "o N ew Deal nâo significou uma brusca ruptura com a tradição americana, mas,
simplesmente, uma continuação, num ritmo bastante mais acelerado, de um processo que se iniciara nos
alvores do século XIX e afectou tanto os governos republicanos como os democráticos". Cfr. A. SHONFIELD,
Capitalismo M oderno..., cit., 306,311 e 447/448, onde podem colher-se mais indicações acerca do significado
e alcance do N ew Deal. Andrew Shonfield ilustra abundantemente a ampla e continuada tradição
intervencionista do estado na economia americana, com particular realce na primeira metade do séc. XIX,
mas ainda suficientemente importante até finais do séc. XIX, apesar da reacçáo verificada no terceiro quartel
do século, que forçou os governos estaduais a abrir mão da sua participação no capital e na gestão de nume­
rosas empresas, especialmente de serviços de utilidade pública. Esta intervenção pública na economia é mesmo
apontada como um dos mais importantes factores da concentração operada nas décadas de 1880 e 1890.
A v elãs N un es - 2 0 3

dio do Reichstag (provocado pelos nazis, para o imputarem aos comunistas), ini­
cia uma violenta perseguição contra as organizações e os partidos operários. Uma
lei de 25 de Julho de 1933 vem generalizar a cartelização obrigatória anteriormente
aplicada apenas em alguns sectores. Em Novembro de 1934, determina-se a cria­
ção, nos vários sectores da produção, de associações profissionais (Reichsgruppen),
às quais se atribuem amplos poderes de regulamentação e direcção do respectivo
sector, podendo ir até ao encerramento das empresas que não cumprissem os regu­
lamentos promulgados pelo Reichsgruppe ou julgadas excedentes. Em regra, eram
as grandes empresas monopolistas que dirigiam as associações profissionais, atra­
vés das quais passou a ser controlada, em estreita ligação com o estado nazi, toda
a economia alemã. “Os grandes industriais - escreve um autor - tinham-se tomado
em muitos casos os verdadeiros dirigentes da nação, e não é muito certo que
tenham actuado sempre no interesse geral”. E o mesmo autor dá conta do que lhe
declarara, cm 1937, um pequeno industrial alemão: “Agora tudo está regulamen­
tado, dizem-me o que devo produzir e a que preço; fornecem-me matérias-primas
cujo valor é fixado pelo governo. Não tenho qualquer possibilidade de intervir seja
no que for, na marcha da economia geral ou do meu negócio. Tornei-me um
funcionário inútil”.219
c)A Segunda Guerra Mundial
Depois de um período de preparação, a Alemanha lança-se à conquista de
“espaço vital” (lebensraum). Em 1937, anexa a Áustria; em 1938, foi a vez da região
dos Sudetas, na Checoslováquia, por cedência das democracias europeias no Pacto
de Munique (conhecido por pacto da vergonha). A invasão da Polónia, em 1 de
Setembro de 1939, marca o início formal da Segunda Guerra Mundial, em que a
Alemanha teve como aliados dois países igualmente empenhados na anexação de
novos territórios (a Itália, que em 1935 fizera guerra à Etiópia, e o Japão, que em
1931 conquistara a Manchúria e em 1937 invadira a China).
Nesta Guerra, os equipamentos económicos tornaram-se alvos militares prio­
ritários para cada um dos beligerantes e o esforço de guerra exigiu de todos um
enorme esforço no terreno da economia. Neste contexto, o estado teve de ocupar-
se directamente não só da distribuição dos alimentos e do controlo da utilização da
mão-de-obra e dos recursos disponíveis, mas também da produção, ao menos nos
sectores mais directamente ligados às necessidades bélicas. Os autores falam de
planificação económica deguerra (comunismo deguerra, não apenas na URSS, mas na
generalidade dos países beligerantes).

219 Cfr. |. ROMEUF, ob. d l., 64/65.


2 0 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

Dos adversários capitalistas da Alemanha, a Inglaterra foi talvez o país onde


se foi mais longe neste caminho: para um rendimento nacional que não ia além
de 7.384 milhões de libras, as despesas do estado inglês atingiram, no exercício
de 1942-1943, 5.740 milhões de libras.
Nos EUA, a guerra obrigou também o estado a tomar a iniciativa da produção. O
receio de que, perante as contingências do conflito, não fosse possível amortizar os
capitais que investissem - apesar de serem em geral muito lucrativos os negócios e
apesar de haver capitais disponíveis -, levava as empresas privadas a não investir em
determinados sectores. O governo americano foi, assim, obrigado a construir, com
fundos públicos, fábricas (de automóveis, por exemplo) que depois viriam a ser
exploradas por aqueles que tinham recusado construí-las, embora as fábricas priva­
das já existentes não estivessem a utilizar toda a capacidade instalada.220
Desta Guerra de 1939-1945 resultaria profunda alteração na geografia política
do mundo: os EUA emergem como potência hegemónica do mundo capitalista,
nos planos económico e militar; em vários países do centro e do leste da Europa e
na China instauram-se regimes socialistas; organizaram-se os movimentos que
conduziriam à Conferência de Bandoeng (1955) e à independência dos territórios
coloniais; a URSS afirmou-se como grande potência política, económica e militar
(a partir de 1949 tomou-se potência nuclear, quebrando o monopólio dos EUA);
iniciou-se a guerrafria e a corrida aos armamentos.
Q uer por exigência das forças de esquerda fortalecidas pela sua participação
nos movimentos da Resistência, quer como represália sobre os colaboracionistas,
verificou-se na Europa, no imediato após-guerra e em consequência dela, um
importante surto de nacionalizações, base de um sector empresarial do estado rela­
tivamente importante.221
No mesmo sentido de chamar o estado a uma posição importante no seio da
economia actuou também a revolução tecnológica que se operou a partir desta 2a
Guerra M undial, aquela em toda a história em que mais se apostou na supremacia
científica e tecnológica como arma para derrotar militarmente o inimigo. Já se
tem falado de Terceira Revolução Industrial222 para traduzir a importância do

220 O s industriais americanos, com efeito, procuraram confinar a sua produção para fins bélicos às fábricas
construfdas pelo governo, produzindo nas suas próprias fábricas bens nâo especificamente desti nados à nação
em guerra, mas 'utilizáveis em tempo de guerra e previstos para o tempo de paz", como salienta Jean Romeuf,
que conclui deste modo: "De facto o Estado dirige bem a economia, mas nas condiçóes mais onerosas e menos
rentáveis possíveis. Encontra-se sensivelmente na situação do indivíduo que, tendo necessidade absoluta de um
objecto, dá 'cana branca' a um fornecedor para lho conseguir num prazo determinado. Não poderá, portanto,
falar-se de planificação relativamente à indústria* (Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 59/60).
221 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura..., cit.
222 Num relatório do Research Institute o f America (Junho de 1964), afirmava-se: 'Está em curso uma terceira
A v e i As N u n e s - 2 0 5

aparecimento da energia nuclear, da automação, da electrónica e da indústria espa­


cial, ‘revolução’ que, de algum modo, pode considerar-se como sequela do conflito
e do esforço de investigação e de produção a que ele obrigou. Abriu-se então um
período de intensa inovação científica e de rápida aplicação das novas conquistas
da ciência, tornada esta uma força produtiva de primeira importância, elemento
fundamental do desenvolvimento económico (mais do que a posse de matérias-
primas, que a redução no custo dos transportes colocou ao alcance dos vários
países). Em última instância, é a valorização do homem como elemento produti­
vo, enquanto gerador e depositário de conhecimento e de informação.

2. C a r a c t e r iz a ç ã o G era l

Assim delineado o quadro dentro do qual se tem circunscrito, desde a Guerra


de 1914-18, o capitalismo contemporâneo, vamos agora apontar, a traços largos,
os elementos caracterizadores fundamentais da última fase do desenvolvimento
do capitalismo.

a) Novos aspectos da concentração capitalista


Começaremos por acentuar que a concentração tem continuado presente como
um dos aspectos importantes da dinâmica do capitalismo, acerca do qual deixare­
mos aqui simplesmente apontados alguns dos traços que mais o têm marcado nas
últimas décadas.
a) Sobretudo a partir de 1930, as grandes empresas aparecem com frequência
comprometidas num processo de diversificação, i. é, a produção pela mesma empresa
de bens com diferentes utilidades, dificilmente substituíveis uns pelos outros.
Nuns casos (sobretudo quando os bens participam das mesmas técnicas de pro­
dução ou são elaborados na sequência do mesmo processo produtivo), a diversifica­
ção é o resultado da integração dasfasesprodutivas (vertical ou horizontal), praticada
pelas empresas de grande dimensão e imposta por exigências de ordem técnica.
Noutros casos, a diversificação aparece como o caminho lógico a seguir pelas
empresas que, a partir de certa dimensão, vêem dificultado o seu crescimento hori­
zontal (aumento da quantidade produzida do mesmo produto), pois este é limitado

revolução industrial tão espectacular como as que resultaram da utilização da máquina a vapor e da expansão
da electricidade. Tem na origem a libertação da energia nuclear e termo-nuclear, a transformação electrónica
da energia cm trabalho e a utilização da cibernética e das calculadoras para libertar a energia humana das
decisóes rotineiras. Por volta de 1980 - concluía o relatório o mundo industrial será tão diferente do mundo
actual como este édiferente do mundo doséc. XIX'(apue/A. BERLE, "Propriété...,cit., 231).
2 0 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a

pela extensão do mercado, no qual cada uma delas tem, porventura, de competir com
outras empresas igualmente grandes que não serão facilmente elimináveis.
Por outro lado, atingido que seja um grau elevado de concentração numa dada
indústria, a(s) empresa(s) que goze(m) de uma posição monopolista não terão interes­
se em aumentar os investimentos no sector, para não se sujeitarem, com o aumento da
produção, a uma baixa de preços (que poderá significar redução dos lucros). Nestas
condições, se a empresa tem fundos para investir, a diversificação da produção para
novos sectores é uma das soluções possíveis (a par da exportação de capitais).
Acresce que a diversificação - como o provou a Grande Depressão - torna as
empresas menos vulneráveis às crises cíclicas (e sazonais). A diversificação apre­
senta-se também como a melhor saída para a expansão de uma empresa que dis­
põe de capacidade de produção não utilizada. Em outras circunstâncias, a
diversificação constitui uma autêntica reconversão da actividade das empresas, por
forma a assegurar a sua subsistência, quando a respectiva empresa (ou mesmo o
sector de actividade em que se integra) se encontra em declínio.
b) A partir da década de 1950, assistiu-se ao desenvolvimento e à predominân­
cia das grandes empresas (que à guerra total - que todas temem - preferem uma
política de entendimento com as rivais, ainda que em campos suficientemente
delimitados) e ao domínio dos sectores mais importantes por um reduzido número
de empresas, interessadas em se defenderem, no seu conjunto, da concorrência
eventual de novos produtores.
Esta situação permitirá explicar a prática frequente da celebração de acordos
de vária ordem entre grandes empresas, acordos que, para além dos objectivos
tradicionais dos cartéis, visam organizar a colaboração das empresas associadas no
que respeita a problemas de ordem técnica (investigação; normalização de produ­
tos; serviços de vendas; trocas de licenças, patentes, modelos industriais, etc.).
E, à luz das características actuais do capitalismo, não espantará que tais acor­
dos se tenham realizado também, em certa época, sobretudo nos países mais de­
senvolvidos, entre empresas públicas e empresas privadas (nomeadamente como
forma de contornar os obstáculos políticos e jurídicos à fusão entre elas).
c) A concentração ganha hoje relevância especial na perspectiva dos grupos de
sociedades. Ora, ao nível das empresas, para além das formas de integração (concen­
tração vertical), a concentração horizontal, tal como em regra se apresenta, aparece
fundamentalmente como concentração homogénea (i.é, respeitante a empresas que
produzem bens homogéneos ou sucedâneos próximos, que fabricam o mesmopro­
duto). Ao nível dos grupos, porém, a concentração horizontal apresenta-se já como
concentração heterogénea (reunião, no mesmo grupo, de empresas que fabricam pro-
A v ela s N u n es - 2 0 7

dutos diferentes), modalidade que já não pode justificar-se por motivos de ordem
técnica, i.é, fazendo apelo ao princípio das economias de escala.
Esta prática da concentração heterogénea visa reunir, sob o controlo de um mes­
mo grupo, o maior número possível de empresas especializadas e dominantes em
diferentes ramos de actividade económica, integrando-se perfeitamente na lógica da
concorrência entre grandes colossos, tal como ela se apresenta na actual fase do
capitalismo, procurando enfrentar as exigências dessa mesma concorrência.
A lógica da concorrência impõe a especialização; mas a especialização torna as
empresas mais vulneráveis, colocando-as na dependência do mercado de um único
produto, situação arriscada numa época em que as inovações tecnológicas se suce­
dem a um ritmo particularmente acelerado. A via acima indicada - cuja meta é a
criação de condições de multimonopôlio - tem em vista, portanto, eliminar o aspec­
to negativo da especialização, pela especialização em vários sectores diferentes.
d) Só que, no âmbito deste processo de concentração horizontal heterogénea, podem
ainda distinguir-se duas situações diferentes: a concentraçãofuncionale o conglomerado.
No primeiro caso, trata-se de associação entre empresas que fabricam produtos
diferentes, mas que são susceptíveis de preencher a mesma função (de satisfazer a
mesma necessidade) ou são complementares do ponto de vista de uma mesma
função. A concentração funcional pode, portanto, entender-se como semi-heterogé-
nea ou complementar.
O conglomerado, porém, é uma forma de concentração totalmente heterogénea.
O conglomerado caracteriza-se, na verdade, pela existência de uma única direcção
económica (que não é incompatível com uma relativa autonomia de gestão dos
váriosprofit centers, desde que estes se mantenham dentro dos objectivos e assegu­
rem as taxas de lucro planificadas pelos órgãos de topo), a par de uma diversificação
multilateral (produção e venda de bens que, na perspectiva do produtor, não têm
que apresentar entre si qualquer relação de ordem técnica e que, na perspectiva do
consumidor, não são directamente substituíveis nem complementares). Este pro­
cesso de concentração opera essencialmente através de sucessivas aquisições de em­
presasjá existentes nos vários sectores de actividade económica.
Trata-se de um tipo de concentração que se iniciou na economia americana e
que, a partir de 1945, conheceu, nos EUA, na Europa e no m undo capitalista em
geral, um acentuado ritmo de desenvolvimento, a ponto de poder considerar-se o
conglomerado como a forma de concentração mais corrente hoje em dia nos paí­
ses industrializados.
e) A par desta diversificaçãofuncional daprodução, representada pelos conglome­
rados, tem-se acentuado aquilo a que por vezes se chama diversificação geográfica da
produção, como consequência da expansão das empresas multinacionais.
2 0 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Adoptando a designação mais divulgada, chamaremos empresa multinacional


àquela empresa a cuja direcção e controlo estão sujeitas várias outras empresas
filiais, que entre si cooperam na planificação das suas actividades e no intercâmbio
comercial, de informações e de serviços técnicos, sem prejuízo da conveniente e
necessária descentralização. O controlo pode ser assegurado pela empresa-mãe a
partir da propriedade directa de empresas no estrangeiro, de simples tomadas de
participação minoritárias, da concessão de licenças de fabrico, etc.
Já em 1915 Bukarine falava da internacionalização do capital, de que o “truste
internacional” seria o mais elevado grau de organização. O que agora é novo,
portanto, não é a exportação de capitais privados, nem a existência de empresas
que estendem a sua actividade produtiva a vários países. O que é novo é a interna­
cionalização dopróprio processoprodutivo, traduzida na realidade das empresas mul­
tinacionais com a sua rede de produção e de comercialização e com os canais de
mobilização e de centralização dos meios de financiamento espalhados por diver­
sas partes do mundo, estabelecendo uma divisão internacional do trabalho à medida
dos seus interesses, fraccionando o processo produtivo e localizando em regiões ou
países diversos cada uma das fases do processo produtivo. E isto não apenas no que
se refere às indústrias tradicionais trabalho-intensivas, mas também quanto a in­
dústrias que exigem simultaneamente uma razoável intensidade de mão-de-obra
(v.g. quando a montagem assume importância especial) e uma tecnologia relativa­
mente avançada (exportada pela empresa-mãe para as suas várias filiais).
Os efeitos do fenómeno a que nos vimos referindo não deixam de se fazer sentir
no campo económico, político e social dos países de origem das empresas multi­
nacionais e (sobretudo) dos países onde elas se instalam, bem como nas relações
económicas e políticas internacionais.
f ) Ao nível europeu, foi tomando forma o processo de integração económica.
Em 1948 foi constituído o Benelux (união aduaneira entre a Bélgica, a Holan­
da c o Luxemburgo).
Em 1950, no 5o aniversário da rendição da Alemanha nazi, foi constituída a
primeira das comunidades europeias, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(CEC A ). As lições da história mostram que à volta destes dois produtos e das
indústrias a eles associadas (entre as quais as indústrias de armamento) se desen­
volveram os conflitos de intereses antagónicos inter-imperialistas que estiveram
na base das duas guerras mundias que o século XX conheceu. Já na Guerra Fran-
co-Prussiana (1870/1871) os canhões fabricados pela Krupp tinham bombardea­
do Paris, episódio que se repetiu na I a Guerra M undial e depois na 2a Guerra
Mundial. O objectivo da C E C A era, pois, o de colocar o carvão e do aço sob a
A v elã s N u n es - 2 0 9

gestão de uma autoridade comum, de modo a não deixar de novo a Alemanha


entregue a si própria.
Pouco depois, à margem das preocupações de paz dos projectos pan-europeís-
tas surgidos entre as duas Guerras, os EUA conseguiram que fosse assinado em
Paris (15.2.1951) oTratado que pretendia criar a Comunidade Europeia de Defesa,
projecto que viria a falhar porque o voto de gauiistas e comunistas impediu a sua
ratificação pela Assembleia Nacional francesa.
Em 25.3.1957 foi assinado o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Eco­
nômica Europeia (vulgarmente conhecida por Mercado Comum), simultaneamente
com a criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom), a terceira
das comunidades europeias.
A C E E não se limitou a uma zona de comércio livre, embora definisse como
objectivo a criação de um mercado comum, com a abolição de todas as restrições
à livre circulação de bens e serviços dentro do espaço comunitário. O T ratado de
Roma instituiu também uma união aduaneira entre os países signatários (inicial­
mente apenas seis: Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo),
i.é, um espaço com uma fronteira alfandegária comum, cobrando os mesmos di­
reitos sobre produtos provenientes de terceiros países.223
Num tempo em que o conjunto das multinacionais americanas na Europa era
por muitos considerado a segunda (ou terceira) potência económica à escala mun­
dial, parece óbvio o interesse dos EUA na constituição do então vulgarmente cha­
mado Mercado Comum (a CEE). Mas uma certa corrente de pensamento considerou
(ou propangandeou) a C E E como “la réponse européenne au défi américan” (títu­
lo de um livro de J.- J. Servan-Schreiber). Esta uma ideia que até hoje vem
alimentando o ‘mito europeu’.
Aos seis países fundadores da C E E foram-se juntando novos países. Em 1973,
foi a adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca. Em 1986, foi a vez de
Portugal e da Espanha. Em 1995, entraram para a C E E a Áustria, a Finlândia e a
Suécia. Em 2004, a União Europeia passou a integrar 25 membros, com a entrada
de Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta,
Polónia e República Checa. No início de 2007 entraram a Bulgária e a Roménia.
A Turquia é também candidata à entrada para a UE.

223 Em 1959 viria a constituir-se a EFTA (íuropean Free Trade Associalion). Liderada pelo RU (e integrando
também a Áustria, a Dinamarca, a Noruega, Portugal, a Suécia e a Suíça), era uma organização que pretendia
constituir tão só uma zona d e com ércio livre para produtos industriais, afastando, ao contrário da CEE,
qualquer projecto de integração política, que nào agradava ao R U , à Dinamarca e à Noruega e que era
incompatível com o estatuto de neutralidade da Áustria, da Suécia e da Suíça e com o regime de tipo fascista
que permanecia em Portugal como subproduto da guerra fria.
2 1 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

Entretanto, o Tratado de Roma foi sendo alterado: em 1986, pelo Acto Único
Europeu (que veio promover a implantação efectiva, até 31.12.1992, do mercado
interno único de mercadorias, capitais, serviços e pessoas); em 1992, pelo Tratado de
Maastricht (que criou a União Europeia e decidiu instituir a União Económica eMone­
tária, assente na criação do Banco Central Europeu, na adopção de uma política mone­
tária e cambial únicas e na adopção do euro como moeda única dos já treze países que
aderiram ao Eurosistema); em 1997, pelo Tratado deAmesterdão (que tentou a defi­
nição de uma estratégia não vinculativa no domínio do emprego); ainda em 1997, os
estados da zona euro estabeleceram o Pacto de Estabilidade e Crescimento (que veio
enfeudar a política monetária e a política orçamental a rigorosos critérios moneta-
ristas, sacrificando todos os outros objectivos económicos e sociais das políticas
públicas ao objectivo primordial da estabilidade monetária); em 2000, pelo Tratado
de Nice (que reorganizou os poderes políticos no seio da UE, tendo em vista o futuro
alargamento); à margem deste Tratado foi aprovada a Carta dos Direitos Fundamen­
tais, objecto de mera declaração política, porque o RU se opôs a que ela fosse incor­
porada no Tratado e dotada de força jurídica vinculativa.
O processo de integração económica dos países da Comunidade Económica
Europeia, ao criar condições favoráveis à actuação das empresas no seio de merca­
dos mais vastos, tem constituído, por isso mesmo, um poderoso factor de concentra­
ção, em especial após a instituição do mercado interno único (1986) e a adopção do
curo como moeda única (1999). Num primeiro momento, aproveitaram-se dele,
talvez em maior medida, as grandes empresas americanas, com posições dominantes
em vários sectores estratégicos da chamada ‘sociedade da informação’ (electrónica,
informática, telecomunicações). Mas também entre as empresas dos países membros
da União Europeia o movimento de concentração tem sido enorme.
As normas do Tratado de Roma não contrariam a concentração, pretendendo
apenas evitar os abusos da posição dominante por parte das grandes empresas, com o
objectivo de garantir uma “concorrência livre e não falseada”. E não falta quem
entenda, desde o início, que “o fim a atingir é fazer da C E E um mercado de oligo­
pólios”, de modo a “estreitar a solidariedade entre as economias em presença, subs­
tituindo uma concorrência cega e desordenada por uma concorrência organizada,
(...) suscitando assim a eclosão de um ‘espírito comunitário’.”224 O pensamento
oficial e a acção dos estados tem-se igualmente manifestado no sentido de facilitar e
estimular as operações de concentração entre empresas de diferentes países que inte­
gram o mercado único e agora utilizam a mesma moeda (união monetária).

224 Assim, A. M ARCHAL, ob. cit., 5.


A v elà s N u n es -2 1 1

Dentro dos vários países, aliás, o ritmo de concentração tem sido notável, ale-
gando-se que esse é o único caminho para que as empresas de cada país possam
adaptar-se a um mercado mais vasto, de modo a enfrentarem com êxito a concor­
rência das empresas estrangeiras, e para que a integração económica fique facilita­
da, permitindo uma ulterior unificação política, de modo a evitar a ‘colonização’
por parte dos EUA (esta seria, para alguns, desde o início, a resposta necessária do
capital europeu ao “défi américain”...).
g) Em outras partes do mundo registaram-se também experiências de integra­
ção económica regional. Segue uma nota breve sobre as mais relevantes.

NaÁírica:
União Árabe do Magrebe: O Tratado que instituiu a UAM foi assinado em M ar-
raquexe em Fevereiro de 1989 e entrou em vigor em Julho do mesmo ano. São
Estados-membros a Líbia, Marrocos, Mauritânia, Tunísia e Argélia. Tem como
propósito a constituição de uma união aduaneira e de um mercado comum.
Comunidade Económica da África Ocidental (West African Economic Community):
OTratado que instituiu a C EA O foi assinado em Abril de 1973, tendo entrado em
vigor em Janeiro de 1974. São Estados-membros o Benin, Burkina-Faso, Costa
do Marfim, Mali, Mauritânia, Níger e Senegal. Anteriormente, alguns destes Es­
tados tinham constituído a União Aduaneira dos Estados da África Ocidental. Os
objectivos são os de promover a circulação preferencial ou mesmo livre dos bens
originários de cada um dos Estados nos demais e a instituição de uma pauta adu­
aneira comum face ao exterior.
Comun idade Económica dos Estados da África Ocidental (Economic Community o f
WestAfrican States - ECOWAS): OTratado que instituiu esta Comunidade foi assi­
nado em Lagos cm M aio de 1975 e foi revisto em Julho de 1993. São Estados-
membros o Benin, Burkina-Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Ghana,
Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.
Tem como objectivo o estabelecimento de uma união económica e conta com um
quadro institucional de algum relevo (uma Autoridade, um Parlamento e várias
comissões técnicas especializadas).
Comunidade Económica dos Estados da África Central (Economic Community o f
CentralAfrican States - ECCAS): Instituída em Dezembro de 1981. Conta com a
participação dos seguintes países: Angola, Burundi, Camarões, República Centro
Africana, Chade, Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Ruanda, S.Tomé e Príncipe e
Zaire. A intenção é a de constituir uma união aduaneira.
2 1 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

União Aduaneira e Económica da África Central (Union Douanière et Économique


deVAfrique Centrale - UDEAC): Entrou em vigor em 1966, com revisões em 1974
e em 1991. Os seus membros iniciais foram os Camarões, República Centro Afri­
cana, Chade, Congo, Guiné Equatorial e Gabão. Os objectivos são o da constitui­
ção de uma união aduaneira (com uma circulação interna de mercadorias baseada
em preferências alfandegárias) e o estabelecimento gradual de um mercado co­
mum.
Zona de Comércio Preferencial da África Oriental e da África Austral (Preferential
TradeArea - PTA): O Tratado constitutivo é de 1981. Engloba cerca de metade
dos países do continente africano (incluindo Angola e Moçambique). A partir de
Dezembro de 1994 esta zona de comércio preferencial foi substituída pelo Merca­
do Comum dos Estados da África Oriental e da África Austral (CO M ESA ),
tendo-se previsto uma consolidação gradual deste último.
Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (Southern African Develo-
pment Community - SADC): O Tratado constitutivo foi assinado em Agosto de
1992. São membros Angola, Botswana, Lesoto, Madagáscar, Malawi, M oçambi­
que, Namíbia, África do Sul, República Democrática do Congo, Suazilândia,Tan­
zânia, Zâmbia, Zimbabué e Maurício. A África do Sul tem um papel preponderante.
Entre outros objectivos, procura-se estimular o comércio intra-regional.
União Aduaneira da África Austral (Southern African Customs Union -SACU):
Compreende a África do Sul, Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia. O acordo
original data de 1969 e foi revisto várias vezes.

Na América:
Mercado Comum da América Central. Entrou em vigor em Junho de 1961, abran­
gendo inicialmente a Costa Rica, São Salvador, Guatemala, Honduras e Nicará­
gua. Procurava-se a instituição de uma união aduaneira. Em 1975 determinou-se
a criação da Comunidade Económica e Social da América Central, prevendo-se a adop­
ção progressiva de medidas configuradoras de um mercado comum.
Mercado Comum das Caraíbas (Caribbean Community and Common Market -
CARICOM): Reúnem-se neste mercado países da área das Caraíbas, desde 1973
(antes vigorava um acordo de comércio livre). Determinou-se a instituição de uma
união aduaneira, entre outras medidas de coordenação e de cooperação.
Comunidade Andina'. Esta Comunidade tem actualmente como membros a
Bolívia, Colômbia, Equador e Peru e entrou em vigor (como Pacto Andino) em
Outubro de 1969. A partir de 1988 iniciou-se um programa de liberalização co­
mercial regional e de adopção de uma pauta aduaneira comum, que se consolidou
nos anos 1990.
A v el As N u n e s - 2 1 3

Associação Latino-Americana de Livre-Comércio eAssociação Latino-Americana de


Integração (LA F TA e LAIA/ALAD I): A primeira associação foi estabelecida em
1960, sendo substituída pela segunda em Março de 1981. Assumem-se actual­
mente como membros a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador,
México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Contemplou-se a instituição de
tratamento pautai preferencial e a celebração de acordos sectoriais de cooperação.
Mercosul: Acordo de integração regional de 1991, que reúne o Brasil, a Argen­
tina, o Paraguai e o Uruguai. Procura actualmente aperfeiçoar-se como união
aduaneira. São membros associados a Bolívia, o Chile e o Peru (o México já
manifestou a intenção de solicitar este estatuto). O Mercosul negociou um acordo
que visa, a prazo, o livre comércio com a Colômbia, o Equador e a Venezuela.
Associação de Livre-Comércio da América do Norte (North American Free TradeAsso­
ciation - NAFTA): Zona de comércio livre antecedida pelo C U SFTA (Canada and
United States Free Trade Agreement). Engloba os Estados Unidos, o Canadá e o
México. Contempla, para além do livre comércio de mercadorias, uma liberalização
muito substancial das transacções de serviços, alguma liberalização dos mercados
públicos, a mobilidade de capitais e standards comuns para certos produtos.

NaÁsia-Pacífico:
Conselho de Cooperação dos Estados Arabes do Golfo: Acordo assinado em 1981,
abrangendo o Bahrain, o Kuwait, Oman, Qatar, Arábia Saudita e Emiratos Árabes
Unidos. Em 1992 foi enunciado o objectivo de estabelecer até 2000 um mercado
comum, tendo-se no ano seguinte unificado o sistema pautai da região.
Associação de Cooperação Regional da Asia do Sul: O tratado de associação foi
assinado em Dezembro de 1985, para efeitos de cooperação económica (com estí­
mulo ao comércio intra-regional) e social, pelos seguintes países: Bangladesh,
Butão, India, Maldivas, Nepal, Paquistão e Sri Lanka.
Acordo Comercial de Aproximação Económica entre a Austrália e a Nova Zelândia
(Australia-Nev) Zealand Closer Econom ic Relations Trade Agreement -A N Z C E R T A
ou CER): Criado em 1983 e revisto em 1988, é um dos espaços de integração
regional mais avançados.Trata-se de uma zona de comércio livre, com liberaliza­
ção adicional nos domínios do comércio de serviços e dos mercados públicos.
Existe também alguma convergência em políticas sectoriais (‘z/.gda concorrência).
Associação das Nações do SudesteAsiático (Association ofSouth-East Asian Nations -
ASEAN): Esta associação foi constituída em 1967, tendo actualmente como mem­
bros a Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura,Tailândia, C am ­
2 1 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

boja, Brunei e Vietname. Em 1992 enunciou-se a intenção de criar progressiva­


mente uma “zona de comércio livre asiática”.

b) O \estado económ icoaspectosprincipais da intervenção do estado.


No plano interno de cada país, poderemos dizer que o capitalismo contempo­
râneo se caracteriza por um alargamento das funções do estado, na sequência das
propostas keynesianas, apresentadas com base no pressuposto de que a definição
de novos agenda do estado capitalista constituía uma condição indispensável para
tentar evitar a destruição das estruturas económicas e sociais do capitalismo. O
estado, o estado económico, passou a estar presente de vários modos na engrenagem
capitalista, como melhor será esclarecido, no que respeita aos aspectos principais,
quando abordarmos a problemática atinente à tese da convergência dos sistemas.
Para já, adiantaremos apenas as grandes linhas da ‘presença’ do estado:
1 ) 0 estado 'ntervém no financiamento da acumulação e da produção privadas.
Concede subvenções e vantagens fiscais. Promove e fomenta a conquista de mer­
cados externos, organizando e fornecendo informações, concedendo apoio técnico,
político e financeiro à exportação (v.g. concedendo prémios e vantagens fiscais e
facilitando o crédito à exportação).
O estado tem-se ocupado, com frequência, de sectores deficitários, ou que
interessa sejam deficitários, pois só assim eles poderão subsistir sem a atribuição
de lucros aos vultuosos capitais fixos que representam, lucros que irão reverter
para os principais clientes dos bens e serviços produzidos nesses sectores, clientes
que serão, naturalmente, as grandes empresas privadas, beneficiárias dos preços
baixos a que são vendidos aqueles bens e serviços (dentro de um esquema a que já
se chamou “socialização do défice”).
O estado facilita a instalação de indústrias novas, do mesmo modo que concede
vantagens de vária ordem (designadamente pela via fiscal ou da concessão de cré­
dito em boas condições) à reestruturação e à concentração das actividades econó­
micas. O estado cobre as despesas das infraestruturas necessárias ao desenvolvimento
económico (abertura de estradas, pontes, portos e aeroportos, planos de urbaniza­
ção, etc.). O estado financia a investigação científica e a sua aplicação industrial,
mediante contratos de investigação celebrados com as grandes empresas privadas c
mediante contratos de fornecimento, em geral para fins militares (aspecto particu­
larmente relevante nos EUA, mas presente também nos países de tecnologia mais
avançada). O estado intervém no sentido de prevenir as crises (ou de lhes reduzir
os efeitos e a duração), através das políticas anti-cíclicas.
A v elã s N u n e s - 2 1 5

2) A intervenção do estado transparece também no financiamento público dos


chamados consumos sociais. Com efeito, além de assegurar as despesas com o apare­
lho político-militar destinado à defesa da ordem estabelecida (polícias, exército,
armamento, etc.), o estado financia as despesas necessárias ao conveniente desenvol­
vimento das forças produtivas sociais: despesas com a educação, a saúde e a seguran­
ça social, a habitação, etc. Trata-se de despesas que se enquadram na chamada política de
redistribuição do rendimento,225 as quais, mesmo quando cobertas com receitas prove­
nientes de impostos cobrados em maior medida às camadas sociais de rendimentos
elevados (que em geral coincidem com os rendimentos do capital), acabam por
repercutir-se favoravelmente sobre o aparelho produtivo privado.
Não há dúvida de que estas despesas irão aproveitar individualmente, em mai­
or ou menor medida, àquelas pessoas que consomem gratuitamente os respectivos
bens ou serviços, e, entre elas, a maioria pertencerá, porventura, a camadas de
baixos rendimentos (em geral, trabalhadores assalariados). Esses consumos irão,
porém, beneficiar, por outro lado, os donos das empresas (cm regra pertencentes
ao escalão dos rendimentos elevados).
Desde logo, porque o facto de esses consumos serem pagos com as receitas do
estado permite que as classes trabalhadoras vão satisfazendo as exigências históri­
cas da sua subsistência, variáveis de país para país e de época para época, sem ter
que aumentar correspondentemente o ‘salário directo’: parte do que os ricos de­
sembolsam a título de imposto poupá-lo-ão nos salários que pagam aos que traba­
lham nas suas empresas, que, assim, podem ser mais baixos.
Depois, o facto de esses consumos serem gratuitos liberta um m ontante equi­
valente de rendimentos, que podem ser utilizados na compra dos bens que as
empresas produzem para vender no mercado, aumentando, portanto, a procura
solvável, o poder de compra efectivo das populações e, consequentemente, o volu­
me de vendas e os lucros globais das empresas.
Finalmente, as referidas despesas do estado, realizadas no âmbito da política de
redistribuição, aproveitam ainda, por outra via, aos proprietários dos meios de pro­
dução. Na verdade, essas despesas - apesar de os bens e serviços que elas propiciam
serem, para quem os utiliza pessoalmente, autênticos bens de consumo - são corrente­
mente designadas como investimentos em homens (investimentos em capital humano),
pretendendo significar-se que tais despesas vão propiciar trabalhadores mais sãos,
mais fortes, mais cultos, mais sabedores, numa palavra mão-de-obra mais qualifica­
da, capaz de produzir mais, de dar maior ‘rendimento’ aos empregadores.

225Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, ver A .). AVELÃS NUNES, D o capitalismo. .., ciL, 30-42 e 64-74.
2 1 6 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Sabe-se como o avanço das técnicas exige mão-de-obra cada vez mais instruída
e com melhor preparação científica, profisional e cultural. Por isso se proclama que
os estados, para promoverem o desenvolvimento das respectivas populações, não
podem descurar os sectores do ensino, da saúde, da segurança social, da habitação.
Por isso se compreende que tais despesas propiciem vantagens aos donos do capital,
que assim acabam por ‘amortizar uma parte do que pagam a título de impostos.
E de tal modo essas despesas são rentáveis que, quando a actuação do estado
não satisfaz, muitas são as empresas que, embora a custos mais elevados, suportam
directamente o encargo de centros próprios de formação profissional, cantinas,
centros de saúde e de recreio, bairros para o pessoal, etc.
3) Como cúpula de toda a intervenção do estado, aparece a planificaçãopública,
cuja origem e significado serão esclarecidos mais à frente.

c) O signifcado actual do mercado nas economias capitalistas


Tendo em conta o acentuado grau da concentração capitalista e da intervenção
multiforme do estado, poderá perguntar-se qual o significado actual do mecanis­
mo dos preços e do mercado nas economias capitalistas.
O ra a verdade é que os preços fogem hoje, em muitos casos, às ‘regras’ normais
do mercado.
As unidades de produção da indústria moderna tendem a aumentar cada vez
mais a sua dimensão, dada a acentuada concentração capitalista, a par da evolução
das técnicas de produção e de distribuição, evolução que, por sua vez, implica a
existência de uma planificação (“a planificação é inerente ao sistema industrial,
como sublinha J. K. Galbraith). Estaplanificação levada a cabopelas grandes empresas
{The Visible Hand, de que fala Alfred Chandler) e não já o mercado é que determi­
na o volume da produção e a estrutura dos preços. Por isso se fala de decadência do
mercado. Por isso Galbraith sustenta que a soberania do consumidor só existe nos
livros de texto da mainstream economics.
O mercado perde, assim, a sua feição tradicional, o papel dos consumidores é
puramente passivo e o lucro perde a capacidade de servir como símbolo de efici­
ência que os economistas lhe atribuíram tendo em mente os cânones do capitalis­
mo de concorrência.
Hoje, as grandes empresas ‘monopolistas’, em vez de estarem dependentes dos
preços do mercado (price takers), controlam elas próprias o ‘mercado’ (price makers),
subordinando os seus planos de investimento a uma determinada taxa de lucropré-
estabelecida (mark up).
A v elã s N u n e s -2 1 7

Este facto anda, de resto, associado à relativa liberdade das grandes empresas
relativamente à taxa de juro do mercado. Na verdade, tais empresas estão normal­
mente em condições de determinar os seus preços de modo a constituir os fundos
necessários para o reinvestimento, e a possibilidade de autofmanciamento coloca-as
fora da dependência de fundos alheios agravados pelo juro. M uitas vezes, o aforro
interno excede as necessidades de capitais para investimento próprio, sendo trans­
ferido para sociedades subsidiárias cujo escopo é conceder crédito para financiar o
consumo dos bens que as empresas principais têm para vender.
Invoca-se por vezes que esta situação de domínio das grandes empresas tem o
significado positivo de uma superação do ‘carácter anárquico’ do mercado. Em
contrapartida, poderá dizer-se que este fenómeno, como inerência do grau cres­
cente de ‘monopólio’ e do declínio da eficácia do mecanismo dos preços, não é
motivo de orgulho para o capitalismo.226 Na verdade, o reverso da medalha con­
siste em se admitir que deixou de funcionar eficazmente o mecanismo de auto-
adaptação vulgarmente citado como o maior mérito do capitalismo: assegurar a
maior eficiência das empresas, o maior volume de produção, a produção orientada
no sentido dos gostos dos consumidores, com base no mecanismo dos preços, que
forneceria a informação indispensável à tomada das decisões de investimento e de
produção das empresas e das decisões de consumo e de aforro dos particulares,
assegurando, assim, a realização automática da racionalidade económica para a soci­
edade no seu conjunto.
Quer dizer que o mecanismo dos preços deixou de realizar a função que se
entendia ser por ele desempenhada dentro dos pressupostos teóricos do capitalis­
mo de concorrência. A monopolização crescente da economia permite às grandes
empresas, que por si só ou juntamente com um pequeno número de outras, domi­
nam os mercados das indústrias mais importantes, impor os preços ao consumidor.
Além de que as próprias características dos mercados concentrados num pequeno
número de grandes empresas asseguram a estas a vantagem de não correrem o
risco de ver a sua situação posta em perigo por eventuais concorrentes, dada a
dificuldade (se não mesmo impossibilidade) de novas empresas entrarem no mer­
cado - o que propicia às empresas existentes autênticas situações de tipo monopo­
lista, estabelecendo acordos entre si (expressa ou tacitamente), no que toca à fixação
dos preços, à distribuição do mercado, etc., e podendo efectuar com segurança os
seus planos a longo prazo.
Por outro lado, a produção em série de grandes quantidades de bens de consu­
mo implica a existência de um consumo de massa, pois as empresas capitalistas

226 Cfr. S. TSU R U , Aonde vai o capitalismo, cit., 14-16.


2 1 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

produzem para realizar lucros e só alcançam o seu objectivo se venderem os bens


que produzem. As várias técnicas ao serviço da sociedade de consumo - i.é, ao servi­
ço do aparelho produtivo privado, já que, como escreveu um autor,227 o mito da
sociedade de consumo não passa de um alibi da sociedade de produção com mira no
lucro - permitem às grandes empresas não só fixar os preços como também ‘fabri­
car’ os consumidores que lhes interessam, ‘produzir’ a procura de que carecem
para esgotar as quantidades que lhes convém produzir e oferecer, aquelas em que
podem realizar maiores margens de lucro (sacrificando, tantas vezes, por não se­
rem rentáveis ou por serem pouco rentáveis, muitas necessidades fundamentais).
Criar necessidades e estimular o desejo de consumir são as missões que cabem à
publicidade, à moda, às modernas ‘técnicas de venda’, ao expediente das vendas a
prestações e outras técnicas de crédito ao consumo, etc.228 Tudo isto para ‘viciar’ os
indivíduos a consumir determinados bens que às empresas interessa vender, para
envelhecer periódica, rápida e programadamente os bens (“contrived obsolescen-
ce”- obsolescênciaprogramada), para que os bens ultrapassados, fora de moda, sejam
substituídos por outros, para criar condições favoráveis ao consumo de certos bens
mediante facilidades de crédito para a sua aquisição.
Paralelamente, a actuação do estado apresenta-çe, para as grandes empresas,
“como um meio de reduzir as incertezas do investimento e de realizar o desenvol­
vimento ordenado dos seus mercados.”229 Este - como melhor veremos à frente -
o significado coerente e ‘razoável’ da planificação pública em economias que as­
sentam a sua lógica interna na propriedade privada dos meios de produção. Estes
os objectivos que as empresas esperam e exigem da planificação estadual.
Por outros meios, aliás, o estado assegura muitas vezes de antemão um certo
volume de vendas e cobre os riscos do investimento. Recorde-se que os dinheiros
públicos pagam boa parte da investigação de base e aplicada, mesmo quando esta
é efectuada em centros privados. Lembre-se a importância das encomendas do
estado, particularmente as que se destinam a fins militares. Atente-se no significa­
do das sociedades de economia mista e de outras explorações públicas. Salientem-
se as possibilidades oferecidas pela política fiscal, pela intervenção do estado no
mercado do trabalho, pela actuação da política de rendimentos (da política de
salários...), pela prática de incentivos de vária ordem à exportação, etc. Mais re­
centemente, pelas parceriaspúblico-privadas, tantas vezes apontadas como um ins­
trumento adequado para transferir os lucros para os privados e deixar os encargos

227 Cfr. H . BRO CHIER, 6b. cit., 870ss.


228 Repare-se neste sugestivo anúncio, colocado - segundo Josué de CASTRO, A estratégia. . ., c iL , 22 - na fachada
de um grande armazém: 'S e ainda nào sabe o que deseja, pouco importa. Entre! Nós temos*.
229 Cfr. A . SHO N FIELD, ob.cit., 139.
A v elã s N u n e s - 2 1 9

para o estado. Recordem-se também os chamados contratos de investimento, cele­


brados entre o estado (ou agências do estado) e grandes empresas (nacionais ou
multinacionais) para atrair investimentos privados ‘pagos’ com subsídios, isenções
fiscais c outros incentivos e vantagens.
Acresce ainda que a presença do estado se tem vindo a traduzir no estabeleci­
mento de uma zona progressivamente alargada de preços fixados à margem do
mercado (preços administrados), i.é, fruto de outros factores que não a simples actu­
ação dos empresários e dos consumidores. Com efeito, o estado intervém de for­
mas várias na fixação dos preços dos produtos agrícolas, já para proteger os
proprietários, já para evitar a subida dos preços de bens de primeira necessidade. E
vasta a gama de bens e serviços originários de explorações do sector público, cujos
preços obedecem a uma lógica diferente da lógica privada inerente ao jogo da
oferta e da procura. O estado intervém ainda, por meios jurídicos e políticos, na
fixação do salário, preço da força de trabalho, uma mercadoria essencial em eco­
nomia capitalista. O estado (ou instâncias públicas) continua a influenciar, sob
várias formas, a fixação das taxas de juro. O estado - especialmente depois da crise
de 1929 e da Segunda Guerra M undial - intervém no processo de fixação dos
preços de uma variedade crescente de produtos, quer directamente (tabelamento),
quer indirectamente, actuando sobre a oferta (realização de campanhas de publici­
dade, concessão de prémios, facilidades fiscais, etc.) e sobre a procura (raciona­
mento, medidas fiscais e outras tendentes à expansão ou limitação do poder de
compra, etc.).
Que sentido poderá ter, então, falar-se de economias de mercado a respeito das
economias que se orientam por este modelo capitalista?
As economias capitalistas sempre poderão definir-se como economias de merca­
do, porque a lógica do capitalismo, assente na propriedade privada dos meios de
produção, é a de a iniciativa da produção pertencer às empresas capitalistas, que
produzem com vista à obtenção de lucros, à valorização do capital, e não com vista
à satisfação das necessidades individuais ou colectivas.
Economias de mercado porque, na mira do lucro, as empresas produzem para o
mercado, produzem para vender e tudo fazem para vender, ainda que se trate de bens
socialmente supérfluos, sumptuários ou inúteis e ainda que tal implique um pesa­
do encargo para o consumidor, na medida em que os enormes custos de venda
despendidos se vão transferir para os preços dos produtos.
Economias de mercado porque não conseguiram ultrapassar as contradições
inerentes ao seu carácter ‘anárquico’, patente na abundância e na facilidade de
obtenção de certos bens e serviços que não ocupam os primeiros postos numa
escala racional de prioridades (v.g., automóveis, televisões,‘espectáculos desporti­
2 2 0 - U m a I n t r o o u ç Ao ã E c o n o m ia P o l ít ic a

vos’, viagens de turismo, armamentos, etc.), em comparação com a penúria de


outros bens de primeira necessidade à luz de uma escala de prioridades inspirada
por uma outra racionalidade (habitação, higiene e saúde pública, educação e cul­
tura, vestuário e até bens de alimentação) e patente também na permanência das
crises cíclicas, do desemprego, da inflação. De tudo isto nos dão exemplos eluci­
dativos os mais avançados de entre os países de economia de mercado.

d) O estado e a regulação econômica


A problemática abordada na alínea anterior continua a ser relevante nos dias de
hoje, embora o peso do mercado seja actualmente muito mais forte do que durante
o período áureo das políticas keynesianas.
A partir da década de 70 do século XX o keynesianismo entrou em crise. O
fenómeno da estagflação veio pôr em causa alguns dos quadros teóricos do keyne­
sianismo e veio perturbar a solução até aí relativamente fácil (traduzida na famosa
Curva de Phillips) do /ra^-^inflação/desem prego: as políticas financeiras ex-
pansionistas ‘aqueciam’a economia, resolvendo o problema do desemprego à custa
de um pouco mais de inflação; as políticas restricionistas ‘arrefeciam’ a economia,
resolvendo o problema da inflação à custa de um pouco mais de desemprego.
O ‘paradoxo’ da coexistência da inflação e do desemprego (ambos a níveis rela­
tivamente elevados e crescentes) veio lançar o pânico nas hostes keynesianas. E os
monetaristas aproveitaram a ocasião para lançar um ataque feroz ao estado intervenci­
onista (também estado-empresário e estado-providênda), acusando Keynes e o keyne­
sianismo de todos os males do mundo, nomeadamente a inflação e o desemprego.
Foi o início da contra-revolução monetarista, que poderemos sinalizar simbolica­
mente, do ponto de vista político-econômico (no plano teórico o trabalho dos libe­
rais c monetaristas tinha começado antes), com a decisão unilateral da Administração
Nixon (Agosto de 1971) de romper os Acordos de Bretton Woods ao anunciar que
os EUA deixariam de respeitar a obrigação de converter o dólar em ouro à paridade
de $35 por onça troy de ouro. Foi o início do sistema de câmbios flutuantes, entre­
gando às ‘leis do mercado’ (e, sobretudo, à acção dos especuladores) um preço tão
importante como o das divisas utilizadas nos pagamentos internacionais. A “irman­
dade dos bancos centrais” (expressão de James Tobin) apoiou abertamente as teses
monetaristas, começando o ‘combate’pelo reconhecimento da independência dos bancos
centrais enquanto entidades reguladoras do mercado do crédito, reivindicando-se
para eles a titularidade da política monetária e a capacidade de decisão nesta área
sem qualquer interferência dos órgãos políticos legitimados democraticamente e
sem qualquer controlo por parte das instâncias do estado.
A v el As N u n e s - 2 2 1

A ideologia neoliberal (que sustenta o esvaziamento das funções do estado


keynesiano e aponta mesmo, nas versões mais radicais, para a neutralidade à a po­
lítica económica e, coerentemente, para a morte da política económica) consoli-
dou-se como ideologia dominante (alguns falam <\zpensamento único) com a subida
ao poder dos governos da SraTatcher no RU e de Ronald Reagan nos EUA.
Entre outros aspectos desta nova ‘contra-reforma’, ganhou força a rejeição da
presença do estado como operador da vida económica e anulou-se a capacidade de
direcção e de planificação da economia do estado-empresário e do estado-presta-
dor-de-serviços. Assistiu-se a uma onda de privatizações de empresas públicas,
mesmo na área dos serviços públicos, em que, de longa data, o estado detinha, em
toda a Europa, um papel decisivo.
A ideia de que os sectores assim privatizados deveriam ser objecto de regulação
passou a ser defendida por várias das correntes políticas que apoiavam as privati­
zações e o esvaziamento do papel económico do estado. Uns, por puro oportunis­
mo: a defesa da regulação ajudava a passar mais facilmente junto da opinião
pública a política de privatizações (são os que, agora, alcançados os objectivos que
pretendiam, clamam contra a regulação, acusando-a de constituir um impecilho
ao domínio absoluto do mercado, das suas ‘leis naturais’ e da sua ‘racionalidade’
superior). Outros, porque admitiam que o mercado, deixado a si próprio, não
garante os objectivos públicos indispensáveis a um funcionamento ‘organizado’ do
capitalismo e à ‘paz social’ capaz de viabilizar o funcionamento do sistema no
respeito pelas regras da vida democrática.
Assim surgiu, a partir dos anos 80 do século XX, esta nova feição do estado
capitalista: o estado regulador. Que parece não querer abandonar inteiramente a sua
veste de estado intervencionista, propondo-se condicionar ou balizar a actuação dos
agentes económicos, em nome da necessidade de salvaguardar o interesse público.
Mas que quer, fundamentalmente, comportar-se como estado liberal, visando, em
última instância, assegurar o funcionamento de uma economia de mercado em que
a concorrência seja livre e não falseada (expressão recorrente nos Tratados da
União Europeia).
Poderemos sintetizar a noção de regulação económica invocando a definição
que consta do Glossário de economia industriale de direito da concorrência duvulgado
pela OCDE em 1993:
“E m sentido lato, a regulação económica consiste na imposição de regras em iti­
das pelos poderes públicos, incluindo sanções, com a finalidade específica de
modificar o com portam ento dos agentes económicos no sector privado. A
regulação é utilizada em domínios m uito diversos e recorre a numerosos instru­
mentos, entre os quais o controlo dos preços, da produção ou da taxa de rentabi-
2 2 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

lidade (lucros, margens ou comissões), a publicação de informações, as normas,


os limiares de tomada de participação. Diferentes razões têm sido avançadas a
favor da regulação económica. Uma delas é limitar o poder de mercado e aumen­
tar a eficiência ou evitar a duplicação de infra-estruturas de produção cm caso de
monopólio natural. O utra razão é proteger os consumidores e assegurar um
certo nível de qualidade assim como o respeito de certas normas de com porta­
m ento (...). A regulação pode também ser adoptada para impedir a concorrência
excessiva c proteger os fornecedores de bens e serviços".230

O interessepúblico que se pretende acautelar através da regulação pode consistir


na defesa do ambiente, na defesa dos consumidores em geral e, no que toca aos
serviços públicos, na garantia da sua qualidade, universalidade, segurança, conti­
nuidade e acessibilidade ao conjunto da população (evitando a exclusão por razões
económicas, com base num ‘preço razoável’).
M as desde muito cedo o pensamento liberal impôs a ideia de que esta função
de regulação, embora justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse pú­
blico, deveria ser prosseguida, não pelo estado qua tale, mas por agências (ou auto­
ridades) reguladoras independentes. Estas são uma invenção norte-americana (que
remonta ao tempo do NewDeal) e que chegou à Europa há cerca de um quarto dc
século, através do RU.231
Ao substituirem o estado no exercício desta função reguladora (que alguns pensa­
riam constituir o ‘conteúdo mínimo’do ‘estado mínimo’), estas agências concretizam
uma solução que respeita o dogma liberal da separação entre o estado e a economia (o
estado deve manter-se afastado da economia, não deve intervir na economia, deve estar
separado dela, porque a economia é a esfera privativa dos privados).232
A entrega das tarefas de regulação económica às autoridades reguladoras inde­
pendentes representa, claramente, uma cedência às teses neoliberais do esvazia­
mento do estado e da morte da política. O estado não só não é bom empresário como
é mesmo incapaz de assegurar, por si próprio, a prossecução e a protecção do
interesse público. Mesmo em áreas tradicionalmente consideradas fora do merca­
do, como é o caso da saúde e da educação.233

230 Versão colhida em J. VASCONCELOS, "O estado regulador*, cit.


231 Cfr. MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 17-22.
232 Se se mantiverem algumas empresas públicas, estas só sáo toleradas se se comportarem como se fossem
empresas privadas.
233 Em Portugal já há uma entidade reguladora da saúde e anunciada para breve a criaçào de uma Agência de
Avaliação eAcreditaçãopara a Qualidade do Ensino Superior. Curiosamente, dois sectores em que o grande
capital privado tem vindo a mostrar interesse crescente (o Banco Mundial vem publicando muita literatura sobre
a indústria do ensino superior). Um dia destes, alguém se lembrará de defender que o financiamento pelo estado
A v elà s N u n e s - 2 2 3

Dentro desta lógica, as autoridades reguladoras independentes vêm chamando


a si parcelas importantes da soberania do estado, pondo em causa, no limite, a
sobrevivência do próprio estado de direito democrático, substituído por uma espécie
de estado oligárquico-tecnocrático, que, em nome dos méritos dos ‘técnicos especia­
listas independentes’que ‘governam’este tipo de estado, não é politicamente res­
ponsável perante ninguém, embora tome decisões que afectam a vida, o bem-estar
e os interesses de milhões de pessoas. A verdade é que as autoridades reguladoras
independentes não prestam contas perante nenhuma entidade legitimada demo­
craticamente nem perante o povo soberano. Ora a prestação de contas é a pedra de
toque da democracia. Sem ela, temos a morte da política. E temos uma ameaça à
democracia, tal como a entendemos.
As personalidades que integram as autoridades reguladoras independentes são
escolhidas pelos méritos que lhes são reconhecidos pelos políticos que as esco­
lhem (o que não é garantia de que tais ‘méritos’ sejam reais).
E quem garante a independência dessas personalidades? Serão elas independen­
tes dos políticos que as escolhem? Diz-se que a sua independência decorre do
respectivo estatuto, que não permite a sua destituição pelo poder político antes do
termo do mandato e que não permite ao Executivo dar-lhes ordens ou instruções
sobre matérias inerentes à sua esfera de competências. M as a política é um com­
plicado jogo de influências que se jogam muitas vezes para lá das aparências e dos
estatutos formais. Por isso o juízo político não se confunde com o juízo jurídico,
nem a responsabilidade política se confunde com a responsabilidade jurídica (civil
ou criminal). Por isso os órgãos que detêm ‘poder político’ e exercem ‘funções
políticas’ (com o é o caso das autoridades reguladoras independentes, por mais
‘técnicas’ e ‘politicamente neutras’ que as queiram apresentar) devem estar sujeitas
ao controlo político democrático e à prestação de contas pelas suas decisões.
É claro, por outro lado, que as pessoas ‘competentes’em certo sector trabalham
normalmente nas empresas do sector. Não surpreende, por isso, que as personali­
dades escolhidas pela sua experiência e competência na matéria saiam muitas ve­
zes das empresas reguladas para integrar as entidades reguladoras. Bem sabemos
que não vão para lá como ‘embaixadores’ (ou representantes) dos seus antigos
‘patrões’ (seria o regresso do corporativismo sem disfarce), mas como especialistas
independentes e de elevados méritos. Parece difícil, porém, negar que se correm sérios
riscos de os interesses regulados, as poderosas empresas do sector e as suas associ­
ações representativas exercerem uma influência sensível (dominante?) sobre os

dos sistemas públicos de saúde e de ensino é uma forma nào tolerável de concorrência desleal com as empresas
privadas 'produtoras' de serviços de saúde e de ensino.
2 2 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

reguladores. Até porque estes, terminado o mandato e passado algum eventual


período de ‘impedimento’, têm ambições de regressar aos seus antigos postos de
trabalho ou mesmo a lugares mais destacados e melhor remunerados do que aque­
les que ocupavam antes de se transferirem para as entidades reguladoras.
Vários argumentos têm sido invocados para justificar esta regulação “amiga do
mercado” e a sua entrega a entidades independentes.234 Mas tem sido também
muito agitada a questão do défice democrático desta solução e dos perigos para o
estado democrático que ela encerra. Particularmente acesa tem sido, a este propó­
sito, a discussão à volta da problemática da independência dos bancos centrais,
enquanto titulares da política monetária (subtraída à soberania do estado) e auto­
ridades reguladoras independentes do mercado do crédito.235 A discussão acen­
tuou-se na Europa, especialmente a partir da entrada em vigor da União Económica
e Monetária (consagrada no Tratado de Maastricht, assinado em 1992), com a
criação do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (o mais
independente dos bancos centrais em todo o mundo) e a entrada em circulação do
euro como moeda única de vários países da U E (treze, actualmente).236

e) Aspectos do capitalismo à escala mundial.


Finalmente, encarando o capitalismo à escala mundial, deixaremos breves apon­
tamentos sobre alguns aspectos que têm marcado o capitalismo a partir da Segun­
da Grande Guerra.
1) Em primeiro lugar, a exportação de capitais públicos, sobretudo com destino aos
países subdesenvolvidos, no quadro do que os autores chamam neo-colonialismo.Trata-
se de empréstimos e financiamentos de vária ordem concedidos em regra no âmbito de
programas de auxílio aos países subdesenvolvidos (ajuda ao desenvolvimento).
Foi o Plano Marshall o primeiro programa de auxílio a países estrangeiros
organizado por um país capitalista (neste caso, auxílio dos EUA à Europa). Nas­
ceu ele sob o signo de preocupações político-estratégicas do país que saíra da
Guerra mais forte que todos os outros, os EUA.
O Plano Marshall foi, em primeiro lugar, um programa de auxílio à indústria
americana, que o esforço de guerra dotara de uma capacidade de produção sobre-
dimensionada e, por isso mesmo, carecida de mercados alternativos ao da guerra,

234 Ver MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 10-12.


235 Cfr. A . J.AVELÀS N U N ES,'N o ta ..., cit.
236 Cfr. A . J. AVELÀS NU N ES, “A institucionalização..., cit.; 'Algum as in cid ên cias..., cit., e A Constituição
Europeia...,c iL
A v e ià s N u n es - 2 2 5

condição indispensável para evitar a falência de muitas empresas e para fugir à


séria ameaça de depressão que se fez sentir no imediato após-guerra.
Mas o Plano Marshall foi também concebido como um instrumento da ‘guerra
fria’, procurando assegurar a manutenção do capitalismo na Europa Ocidental sob
a hegemonia económica e política dos EUA.
As características do Plano Marshall acabaram por marcar todos os programas
de auxílio aos países subdesenvolvidos que mais tarde se seguiriam: assegurar a
manutenção das condições de domínio económico-político dos países exportado­
res de capitais sobre os países ‘beneficiários’ desse auxílio. Na origem destes pro­
gramas de auxílio, está uma doutrina formulada em 1957 por um grupo de
especialistas americanos sob a orientação de W alter W hitm an Rostow, “segundo
o qual os objectivos da política exterior dos Estados Unidos poderiam ser melhor
alcançados mediante uma bem orientada ‘ajuda externa’ aos países subdesenvolvi­
dos”. Analisando esta doutrina, Celso Furtado salienta “que o objectivo da política
dos Estados Unidos é conservar integrada a sua esfera de influência e que o desen­
volvimento deste ou daquele país deve ser considerado como um meio para alcan­
çar esse fim.”237
O que se diz a respeito dos EUA poderá dizer-se a respeito dos outros países
empenhados em programas de auxílio público aos países subdesenvolvidos, pro­
gramas cujo objectivo não é, em regra, o desenvolvimento dos países ‘beneficiári­
os’, mas, segundo muitos especialistas, “a manutenção e o reforço do poderio dos
países dom inantes”238 , sendo certo que “é essencialmente o aspecto ‘subvenção à
sua própria indústria’ que orienta a maioria dos países doadores.”239
Este é um aspecto que se torna patente se atentarmos na prática corrente da
ajuda ligada (ou ajuda vinculada), que obriga o país beneficiário a aceitar certas
condições impostas pelo país que concede o auxílio, ou, muitas vezes, pelo FM I e
pelo Banco M undial (v.g., a obrigação de gastar as verbas na aquisição de bens
produzidos no país dominante, para além de ‘obrigações’ de ordem política: priva­
tizações, ‘facilidades’ ao investimento estrangeiro, não tributação dos rendimentos
do capital, liberalização do comércio e dos movimentos de capitais, ‘flexibilização’
da legislação laborai, domesticação dos sindicatos, etc.).
2) Em segundo lugar, referiremos a acção dos estados dos países desenvolvi­
dos, a partir do fim da Segunda Grande Guerra, no sentido de instaurar um clima
de liberdade nas trocas internacionais, já que as economias modernas, assentes em

237 Cfr. C. FURTADO , “A hegemonia.. ., cit., 592.


238 J. M. A lB ER TlN I,o ò . cit., 123.
239 M. C U ERN IER, ob. cit., 122.
2 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o ü t ic a

empresas de grande dimensão, não podem hoje confinar-se nos limites exíguos
dos espaços nacionais.
Com o sempre aconteceu desde Ricardo, o livrecambismo tem sido utilizado
como um instrumento ao serviço dos países dominantes e dos interesses dominan­
tes, aspecto que se acentuou com a passagem do sistema de negociação permanen­
te que caracterizava o GeneralAgreement on Trade and Tariffs (GATT) para o modelo
de agência reguladora do livre comércio internacional, que é a O M C (Organiza­
ção M undial do Comércio), muito mais facilmente dominável pelos EUA, à seme­
lhança do que vem acontecendo com outras agências da ON U , como o FM I e o
Banco Mundial.
Ao contrário da ‘filosofia’ inspiradora da O M C , que vê na liberdade absoluta das
trocas, na plena abertura dos mercados e no simples desenvolvimento do comércio a
solução para todos os problemas dos países de desenvolvimento impedido ou marca­
dos por um desenvolvimento dependente ou desenvovlimento maligno, muitos autores
aparecem hoje a defender que as relações comerciais internacionais devem inspirar-
se, por parte dos países dominantes, nos princípios da solidariedade e do desenvolvimento
sustentável e no reconhecimento do direito dos povos à auto-suficência alimentar.
Entretanto, os valores do comércio mundial aumentam sem cessar, mas as desigual­
dades e a exclusão social aumentam a um ritmo ainda maior.

3. A FIN ALIZA R, UMA NOTA SOBRE A G LO B A LIZ A Ç Ã O 240

Em entrevista a um periódico português, o então Presidente do Brasil, Fernando


Henrique Cardoso, dizia que foram os portugueses os pais da globalização. E a
verdade é que faz sentido defender que as viagens oceânicas dos portugueses, a partir
do séc. XV, deram origem àprimeira onda de mundialização e deglobalização, marcada
pela colonização e pela pilhagem de vários povos e pelo tráfico de escravos.
A segunda onda de globalização teve lugar por força e por ocasião da corrida às
colónias que, como vimos, acompanhou a ‘segunda revolução industrial’ no último
quartel do séc. XIX e que teve como ponto alto a célebre Conferência de Berlim
(1884/1885), que abriu o processo de partilha dos territórios colonizados entre as
grandes potências capitalistas.
Esta luta entre os estados capitalistas nacionais, muitas vezes apoiada pelas armas
e pela diplomacia, acabou por conduzir o mundo às duas guerras mundiais inter-
imperialistas, que marcaram dramaticamente o séc. XX.

240 Sobre este ponto, cfr. A . J. AVELÃS NUNES, Neoliberalismo, Globalização.. cit., onde podem ver-se outras
indicações bibliográficas.
A v elãs N u n e s - 2 2 7

Entretanto, ela traduziu-se no recrudescimento do colonialismo e na explora­


ção económica sistemática das colónias, integradas, como economias dominadas,
nas teias do mercado mundial unificado, subordinadas à lógica da acumulação do
capitalà escala mundial\ no quadro do processo que Bukarine designou por “inter­
nacionalização do capital” (ou do imperialismo, na construção de Lenine).
Os povos colonizados foram as grandes vítimas destas duas ondas de mundializa-
ção e globalização. Eles estão a ser igualmente as vítimas da actual onda de globa­
lização c do neo-liberalismo que a orienta e condimenta. Eles pagam, com a sua
dependência, com o seu desenvolvimento impedido, uma parte importante dos custos
do desenvolvimento das potências capitalistas e da sua ‘sociedade da abundância’.
Neste nosso tempo marcado pela terceira onda de globalização, a produtividade
do trabalho humano e a produção efectiva de riqueza têm aumentado como em
nenhum outro período da história, incluindo o período da primeira revolução
industrial, período durante o qual, quiçá pela primeira vez na sua história, os
homens tomaram consciência de que podiam transformar o mundo, tal o ritmo do
crescimento económico (era como se a economia levantasse voo, escreveu um autor da
época). Hoje, a economia levantou mesmo voo. E, no entanto, a miséria alastra e a
desigualdade cresce.
3.1. - Como caracterizar a globalização de que todos os dias ouvimos falar, con-
siderando-a uns como uma maldição e outros como uma oportunidade a não perder?
Poderíamos dizer, parafraseando Amartya Sen, que é um mundo em que “o sol
nunca se põe no império da Coca-Cola”. E todos entenderiam do que se trata.
Mas valerá a pena tentar ir um pouco mais fundo na compreensão desta nossa
circunstância.
a) Uma primeira nota para adiantar que a globalização é um fenómeno com ­
plexo, que se apresenta sob múltiplos aspectos (incluindo os de ordem filosófica,
ideológica e cultural), mas que tem no terreno da economia a chave da sua com­
preensão e a área estratégica da sua projecção.
b) Uma segunda nota para sublinhar que a globalização é um fenómeno cultu­
ral e ideológico, marcado pela afirmação decisiva dos ‘aparelhos ideológicos’ como
instrumento de domínio por parte dos produtores da ideologia dominante, a ideo­
logia do pensamento único, a ideologia da massificação dos padrões de consumo,
dos padrões de felicidade, a ideologia que impõe a ‘sociedade de consumo’ como
paradigma de desenvolvimento, a ideologia que pretende anular as culturas e as
identidades nacionais.
c) Uma terceira nota para subscrever a tese daqueles autores para quem *globa­
lização neo-liberal em curso é muito mais uma política de globalização do que um
processo natural. Uma política que visa essencialmente a implantação de um mer­
2 2 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o i It ic a

cado mundial unificado, controlado pelo capital funanceiro e orientado para go­
vernar a economia mundial e impor um determinado modelo de sociedade.
d) Uma quarta nota para salientar que esta “política de globalização” se tornou
possível graças aos desenvolvimentos operados nos sistemas de transporte (que
tornaram quase negligenciável o custo do transporte por unidade de produto, re­
duzindo a pouco a resistência ao transporte) e nas tecnologias da informação, que
permitem controlar a partir do ‘centro’ uma estrutura produtiva dispersa por várias
regiões do mundo e permitem obter informação e actuar com base nela, em tempo
real, em qualquer parte do planeta, a partir de qualquer ponto do planeta.
Neste mundo de comércio livre de barreiras físicas ou legais pretende-se que
circulem livremente todo o tipo de bens (matérias-primas, semi-produtos e pro­
dutos acabados da indústria e da agricultura), serviços (incluindo os chamados
“produtos financeiros”), capitais e tecnologia. Mas esta liberdade já não se aplica
aos trabalhadores. Quanto a estes, os grandes centros imperiais procuram barri­
car-se nas suas fortalezas armadas, para evitar esta nova ‘invasão dos bárbaros’.
Parafraseando Galileu, diremos que, no entanto, as pessoas movem-se: estudos da
O N U estimam que cerca de 160 milhões de pessoas se desloquem do Sul para o
Norte até 2025.
e) Uma outra nota para recordar que uma das características da “política de
globalização” em curso é a que se relaciona com o esbatimento do papel do estado
na economia e com a anulação do estado nacional.
Este está em risco de perder os tradicionais atributos da soberania e já perdeu
- diz-se - a capacidade de controlar a vida económica e o poder económico. Os
capitalismos nacionais, que constituiram o quadro de desenvolvimento do primeiro
capitalismo, teriam sido submersos pela onda globalizadora.
Alguns procuram dar a entender que, à semelhança do capitalismo liberal,
também o actual capitalismo quer ignorar o estado, fazendo da economia um
assunto regulado pelas leis naturais do mercado. Assim se regressaria à separação
entre o estado e a economia, cabendo ao estado as funções atinentes à organização
política e administrativa, e cabendo aos agentes económicos privados (à sociedade
civil) a organização das tarefas produtivas reguladas pelo mercado.
f ) Uma nota mais para sublinhar, porém, que não pode correr-se o risco de
interpretar a globalização como um regresso aos tempos do ‘capitalismo de con­
corrência’, agora projectado à escala mundial. Neste nosso tempo, os protagonistas
quase exclusivos são os grandes conglomerados transnacionais, orientados por uma
estratégia planetária, apoiados num poder económico (e político) que anula em
absoluto os mercados tal como os entendia a teoria da concorrência, e apostados
em controlar o processo de desenvolvimento económico à escala mundial.
A v elã s N u n es - 2 2 9

g) Uma última nota para pôr em relevo que a globalização se caracteriza tam ­
bém - segundo alguns essencialmente - pelo domínio do capital financeiro, justi­
ficando perfeitamente o epíteto de capitalismo de casino, que S. Strange inventou
para caracterizar o estádio actual do capitalismo.
Com efeito, o processo deglobalizaçãofinanceira assume uma importância funda­
mental no quadro da globalização, traduzindo-se, grosso modo, na criação de um
mercado único de capitais à escala mundial, que permite aos grandes conglomerados
transnacionais colocar o seu dinheiro e pedir dinheiro emprestado em qualquer
parte do mundo.
A desintermediação, a descompartimentação e a desregulamentação são as três
características essenciais deste processo.
- A desintermediação traduz-se na perda de importância da tradicional interme­
diação da banca nos mecanismos do crédito. Os grandes investidores institucionais
(empresas multinacionais, empresas seguradoras, bancos, fundos de pensões e mesmo
os Tesouros nacionais de alguns países) têm acesso directo e em tempo real aos
mercados financeiros de todo o mundo para a colocação dos fundos disponíveis e
para a obtenção de crédito, dispensando o recurso aos intermediários financeiros e
os respectivos custos de intermediação (o financiamento directo e autofmancia-
mento substituem o financiamento indirecto).
- A descompartimentação significa a perda de autonomia de (a abolição das ‘fron­
teiras’entre) vários mercados até há pouco separados (mercado monetário, mercado
financeiro, mercado de câmbio, mercados a prazo) e agora transformados em um
mercadofinanceiro único, não só à escala de cada país mas também à escala mundial.
- A desregulamentação consiste na plena liberalização dos movimentos de capi­
tais, processo que teve início nos anos 70 do século passado nos EUA, a que se
seguiu a abertura do sistema financeiro japonês em 1983/84 (em grande parte por
imposição dos EUA), o desmantelamento dos sistemas nacionais de controlo de
câmbios na Europa (nomeadamente com a criação do Mecanismo de Taxas de Câm­
bio do Sistema Monetário Europeu e a liberalização completa dos movimentos de capitais,
no início da década de 1990) e a liberalização ‘imposta’ aos países da Europa
Central, da América Latina e da Ásia do Sudoeste.
Os membros do chamado G 7 desempenharam neste processo um papel deci­
sivo, ao imporem a todo o mundo a lógica ‘libertária’ que adoptaram para si pró­
prios no que toca aos movimentos de capitais. O FM I (controlado, de facto, desde
há muito, pelas grandes potências capitalistas, e, cm particular, pelos EUA) foi o
instrumento escolhido para, em nome da ‘comunidade internacional’, executar esta
cruzada*. A partir da década de 70 do séc. XX, sempre que um país recorre aos
serviços do FM I, este tem condicionado o apoio pretendido à aceitação, pelo país
2 3 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

em dificulades, dos princípios da livre convertibilidade da moeda e da livre circulação


internacional de capitais.
3.2. - Esta ‘liberdade’ tem permitido uma enorme aceleração da mobilidade
geográfica dos capitais, facilitando a acção predadora dos grandes operadores finan­
ceiros que jogam na especulação e colocando muitos países situados na ‘reserva de
caça’ dos especuladores à mercê da chantagem da retirada dos capitais para países
mais atractivos. Vários destes países já nem ousam tributar os rendimentos do capi­
tal, o que é um bom contributo para os escandalosos super-lucros dos especuladores.
Segundo os cânones do liberalismo, esta liberdade de circulação dos capitais,
este mercado livre dos capitais deveria ter como consequência a melhoria da eficá­
cia do sistema financeiro, com a consequente redução dos custos do financiamento
e a distribuição mais equilibrada e mais racional (mais eficiente) do capital entre
os vários países e os vários sectores de actividade, promovendo um crescimento
mais igual e mais harmónico da economia mundial. Como era de esperar, porém,
a realidade não corresponde ao modelo.241
A liberdade concedida aos especuladores deu origem à economia de casino, di­
vorciada da economia real e da vida das pessoas comuns: o montante das transac­
ções financeiras internacionais é hoje 50 vezes superior ao valor do comércio
mundial; cerca de dois biliões de dólares circulam diariamente no ‘mercado cam­
bial único’ em busca de lucro fácil e imediato, sem qualquer relação com a activi­
dade produtiva ou o comércio. O resultado está à vista: grande instabilidade das
taxas de juro e das taxas de câmbio, turbulência nas bolsas de valores e nos merca­
dos de câmbios, crises recorrentes nas economias de vários países.
A especulação acentuou a instabilidade e a incerteza, o que significa um agra­
vamento dos custos de funcionamento da economia. Em contrapartida, os grandes
especuladores acumulam enormes ganhos de capital. Basta recordar que, segundo
as melhores estimativas, a tributação das transacções especulativas nos mercados
de divisas à taxa de 0,1% ( a chamada taxa Tobirí) permitiria mobilizar mais de mil
milhões de dólares por ano. Por outro lado, só os grandes conglomerados transna-
cionais têm beneficiado com a baixa dos custos do financiamento directo, porque
só eles têm acesso à utilização plena dos novos instrumentos financeiros. À mar­
gem dos ganhos do ‘mercado livre’ têm ficado as pequenas e médias empresas (que
constituem, na generalidade dos países, a base da estrutura produtiva e do empre­

241 Por volta de 2001, os dados disponíveis apontavam no sentido de que os EUA absorviam cerca de 80% da
poupança mundial Kle Monde Diplomatique, Maio/2001), estimando-se que, nos dez anos anteriores, os 11
países mais ricos do mundo teriam acolhido 78% do investimento estrangeiro global, cabendo aos cem países
mais pobres apenas 1% (Folha de S. Paulo, 1.7.2001).
A v elã s N u n e s - 2 3 1

go) e têm ficado também os países mais fracos e menos desenvolvidos, muitos
deles enleados na teia infernal da dívida externa, uma espécie de ‘prisão perpétua
por dívidas*.
3.3. - O s factos dão razão ao velho Keynes, que, há mais de 50 anos, advertia
para os perigos de paralisação da actividade produtiva em consequência do au­
mento da importância dos mercados financeiros e da finança especulativa.
A aceleração do processo de inovação financeira, nomeadamente o desenvolvi­
mento dos mercados de produtos derivados, tem acentuado estes perigos. Criados
como instrumentos de gestão dos riscos inerentes à instabilidade das taxas de juro
e das taxas de câmbio, estes novos ‘produtos financeiros’ tornaram-se rapidamente
o objecto preferido da actividade especulativa (dada a pequena percentagem do
capital investido em relação aos ganhos possíveis) e um novo e poderoso factor de
instabilidade dos mercados financeiros.
Os especialistas falam de risco sistémico para caracterizar este novo risco global
resultante da liberalização dos movimentos de capitais no quadro de um mercado
financeiro único de dimensões planetárias. A semelhança do que a teoria refere
para os mercados de oligopólio, também neste mercado financeiro global os ope­
radores tendem a actuar em função daquilo que eles pensam irá ser o comporta­
mento dos demais operadores. A turbulência causada pela especulação em um
dado país ou região (agravada pela manipulação dos novos ‘produtos financeiros’)
tende a propagar-se a todo o sistema financeiro mundial graças ao comportamento
mimético dos grandes especuladores.
Noutro plano, vale a pena chamar a atenção para o facto de estas poderosas
‘forças do mercado’ terem vindo a sobrepor-se às políticas nacionais de regulação
das taxas de câmbio, uma vez que as autoridades competentes de muitos países não
têm meios para se defender eficazmente da acção dos especuladores. Basta recor­
dar que o montante das reservas detidas pelos bancos centrais de todo o mundo
(principal meio de defesa das moedas nacionais) é sensivelmente igual ao montan­
te das transacções diárias no mercado cambial.
As crises recorrentes dos últimos anos aí estão para ilustrar o que acabamos de
dizer: a crise do Sistema Monetário Europeu em 1992/93; a crise do peso mexicano
em 1994 (“a primeira grande crise dos mercados globalizados”, segundo o Director
do FM I, Michel Camdessus, crise que fez tremer o sistema financeiro dos EUA e,
por reflexo, o sistema financeiro de todo o mundo capitalista); a crise das moedas
asiáticas em 1997/98; a crise do rublo em 1998/99; a crise do real brasileiro em
1999; a grave crise financeira, económica, política e social da Argentina, por muitos
2 3 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

considerada o maior desastre das receitas neoiiberais impostas pelo FM I enquanto


‘gestor de negócios’ do grande capital financeiro internacional.242
3.4. - As contradições da globalização financeira ficam a claro se lembrarmos
o esforço sistemático dos defensores do mercado livre, da liberalização e da desre-
gulamentação no sentido de criar novos espaços protegidos por fronteiras artifici­
ais, muito mais invioláveis e intransponíveis do que as fronteiras dos estados nacionais
soberanos que se dizem coisa do passado. Referimo-nos, é claro, aos chamados
paraísosfiscais ou paraísos bancários, que são também (e cada vez mais) sobretudo
paraísosjudiciários, espaços sem lei, sem impostos, sem polícia, sem tribunais.
A literatura especializada fala de verdadeiros “estados mafiosos” ou “estados ban­
didos”. Trata-se de ‘reservas’ criadas por medida para garantir refugio seguro, em
nome da liberdade e do mercado, a capitais especulativos de todo o tipo, muitas
vezes oriundos de (e promotores de) negócios escuros e criminosos. Neste mundo à
margem da lei os ganhadores são precisamente os que não respeitam qualquer lei,
nomeadamente as estruturas do crime organizado (por isso, há quem defenda que os
traficantes de droga foram os verdadeiros pioneiros da moderna globalização).243
Em quase todos estes ‘paraísos’ há mais sociedades fictícias registadas do que
habitantes. Por eles passam grandes operações de lavagem de ‘dinheiro sujo’, com
a (inevitável) cumplicidade dos grandes bancos e dos grandes conglomerados trans-
nacionais. E, naturalmente, das grandes potências, que, em nome da liberdade do
capital e em honra ao ‘deus mercado’, não querem pôr em causa a ‘soberania’
destes “estados bandidos”, mesmo neste nosso tempo em que tanto se fala e se
pratica o direito de ingerência em certos países, em nome de valores que integram
o “estado de direito”. A ‘soberania’ destes estados mafiosos é a única respeitada por

242 Após a crise que teve o México como protagonista, M. Camdessus escreveu que o mundo é dominado por um
poder polftico sem controlo, à mercê de uma "classe composta por agentes globais que manipulam divisas e
acções e dirigem um fluxo de capital de investimento livre, fluxo esse que todos os dias se torna mais importante,
praticamente ao abrigo de todos os controlos estaduais”. Referindo-se a estes especuladores profissionais, Camdessus
não hesitou em afirmar que "o mundo está nas màos destes tipos". E John Major, então Primeiro- Ministro britânico,
observava que o jogo dos especuladores assume "dimensões que o colocam fora de qualquer controlo dos
governos e das instituições internacionais". O Primeiro-Ministro italiano, lamberto Dini, proclamava que "não se
pode permitir aos mercados minarem a política económica de todo um país". Mais radical foi o Presidente francês
Jacques Chirac (Outubro/l 955); os especuladores são a "a sida da economia mundial".
Apesar deste alarme dos criadores perante o comportamento das suas próprias criaturas, a verdade é que os
poderosos do mundo nada fizeram para pôr cobro a esta vertigem libertária, nem sequer com o pretexto de
salvar a economia mundial desta espécie de sida que vai diminuindo as suas resistências.
Sobre o objecto desta nota, cfr. MARTI N/5CHUMANN, A Armadilha..., d L , e A. J. AVELÀS NUNES, NeoUxrabmo,
G lobalização.. cit.
243 Segundo os especialistas, por estes e outros canais passa diariamente o branqueamento de mil milhões de
dólares provenientes do crime organizado, de cujos lucros globais - calculados em cerca de 500 mil milhões
de dólares anuais - sobra muito dinheiro para corromper dirigentes e comprar partidos políticos.
A v e l As N u n e s - 2 3 3

todos os ‘globalizadores’, apesar de eles utilizarem a sua ‘soberania’ como objecto


de comércio, permitindo, em nome dela, regras de vida para o grande capital e
para o crime organizado que subvertem normas elementares de qualquer estado de
direito e impedem a aplicação destas normas por parte de muitos outros países.
Nenhum argumento sério pode invocar-se para justificar os paraísosfiscais, que
a generalidade dos especialistas associa à evasão e à fraude fiscais, ao crime orga­
nizado e à lavagem de dinheiro. Com o alguém escreveu, no contexto da luta con­
tra o crime global e contra o terrorismo global anunciada após os ataques às torres
gémeas de Nova York, se a(s) potência(s) hegemónica(s) não acabar(em) com
estes “estados bandidos”, não pode levar-se a sério a vontade proclamada de acabar
com o crime organizado e com o terrorismo global.244
Contra os interesses dominantes, de muitos lados se vem proclamando a ne­
cessidade de lutar contra os perigos desta “ditadura dos mercados”, denunciando “a
natureza liberticida das ‘liberdades’ do capital”, desmascarando essa verdadeira
Declaração Universal dos Direitos do Capital (levada a cabo pelo FM I, BMundial,
O C D E , Comissão Europeia, O M C , G7, Comissão Trilatéral, Forum de Davos e
outras ‘instituições dominantes’), muito mais eficaz do que a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da ONU. O
esquema é conhecido e poderia ser desmantelado. Em nome da liberdade do capi­
tal, não o querem os poderosos do mundo.
3.5. - A substituição do G A T T pela O M C representou como que a instituci­
onalização do liberalismo mais extremo e constituiu um passo importante ao ser­
viço dos agentes da globalização. Desde logo, porque alargou o seu âmbito à
agricultura, aos têxteis, aos serviços e à área da propriedade intelectual e científica.
Depois, porque os países mais fracos deixaram de beneficiar das vantagens de um
processo de negociação multilatéral permanente (que era a essência do G A TT)
para ficarem sujeitos às deliberações de uma instituição reguladora do comércio
mundial na qual os países dominantes (principalmente os EUA, mas também a
União Europeia e o Japão) tenderão a ganhar um peso decisivo, à semelhança do
que se passa com o FM I e o Banco Mundial.
A O M C coloca acima de tudo a liberdade das trocas comerciais e considera o
‘comércio livre’ quase como uma panaceia capaz de resolver todos os problemas.
Mas a verdade é que, apesar do considerável crescimento do comércio mundial, a
desigualdade entre cs ‘países ricos’ e os ‘países pobres’ não cessa de aumentar.

244 S3o palavras de um jornalista português (Francisco Sarsfield Cabral, jornal Público, 6.10.01): "Será na determi­
nação de pôr fim aos off-shores que teremos a prova real quanto à vontade política de combater o terrorismo
eos seus aliados. Por aí, maisdo que por acções militares, se verá se a campanha antiterrorista é mesmo a sério".
Pelo que se vé, parece que náo é a sério...
2 3 4 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o ü t ic a

Alguns especialistas temem que a situação venha a piorar, para os países menos
desenvolvidos, com a generalização do regime de plena liberdade das trocas inter­
nacionais aos produtos agrícolas, como pretende a O M C . Este é o regime já pre­
visto na Convenção de Cotonou (Junho de 2000) para as relações entre a
Comunidade Europeia e 40 países ACP (africanos, na sua maioria), com início
marcado para 2008.
Neste quadro, as exportações dos países subdesenvolvidos terão de ser feitas
aos ‘preços internacionais’, controlados pelas grandes multinacionais do agro-busi-
ness, preços que são, em regra, (muito) mais baixos que os custos de produção
praticados pelas pequenas e médias explorações agrícolas, que asseguram emprego
à maior parte da população rural e respondem pela maior parte da produção agrí­
cola daqueles países.
Este regime de liberdade significa que as grandes multinacionais do sector
tomarão conta (ainda mais rigidamente do que hoje) do comércio agrícola (e,
consequentemente, da produção agrícola) à escala mundial. Os recursos agrícolas
dos países subdesenvolvidos ficarão ainda mais sujeitos à sobre-exploração com
vista ao lucro rápido da agricultura voltada para a exportação, acentuando os riscos
da monocultura (dependência das receitas de um só produto, degradação dos so­
los, desertificação). Isto pode significar, em último termo, o agravamento da de­
pendência alimentar destes países, com a diminuição da produção de alimentos
para as populações locais, em favor da chamada agricultura de sobremesa, voltada
para a exportação. Não falta quem recorde que o acordo NA FTA (North American
Free Trade Agreement - Acordo de Comércio Livre Norte-Americano, entre os
EUA, o Canadá e o México) já arruinou a agricultura mexicana, do mesmo modo
que a integração de Portugal na C E E destruiu a agricultura portuguesa.
Uma visão alternativa será precisamente aquela que assenta na defesa do direito
de todos os países à soberania alimentar, i.é, à auto-suficiência alimentar no que
toca aos produtos básicos. Alguns autores recordam que o princípio da auto-sufici­
ência alimentar foi - e continua a ser - um dos princípios orientadores da PAC
(Política Agrícola Comum) desde a constituição da C EE.
À luz deste princípio, muitos defendem que a melhor forma de proteger os
agricultores dos países menos desenvolvidos é o recurso a medidas proteccionistas,
talvez a única política acessível a estes países. Sobretudo no domínio dos produtos
agrícolas, ganha sentido a posição dos que defendem que as soluções livrecambis-
tas entre países ou regiões com níveis de desenvolvimento muito diferentes só
podem traduzir-se na acentuação da hegemonia dos mais fortes e da dependência
dos mais fracos, impedindo estes de adoptar as medidas mais adequadas para ga­
rantir prioritariamente a satisfação das necessidades alimentares dos seus povos.
A v e i As N u n e s - 2 3 5

3.6. - Perante dados como estes, não falta quem anuncie uma outra panaceia, a
nova economia áa sociedade da informação e da internet. Estas maravilhas da técnica
são apontadas como um novo mito redentor do capitalismo, com promessas de
paraíso ao alcance de qualquer computador ou de um qualquer telefone móvel da
última geração (basta navegar na internet, o resto vem por si...)- A nova economia
surge, assim, como a última versão da velha tese de que os avanços da ciência e da
tecnologia bastam para salvar o mundo. Sem dúvida que as conquistas da ciência
são um elemento fundamental na caminhada dos homens para a sua libertação.
Mas o mais importante é saber como e em proveito de quem são efectivamente
utilizados os conhecimentos científicos, que estão longe de ser considerados como
um património comum da humanidade, que beneficia sempre, em cada geração, dos
conhecimentos acumulados pelas gerações anteriores.
Nas condições actuais, parece difícil não concordar com os autores que defen­
dem que o controlo da produção científica e tecnológica tem vindo a revelar-se
como o principal factor do domínio neo-colonialista do nosso tempo, sendo do­
minantes os países que produzem tecnologia e dominados os países que a não
produzem. E as chamadas novas tecnologias só têm vindo a acentuar este último
tipo de colonialismo.
Bem vistas as coisas, a nova economia é apenas um novo disfarce do velho
capitalismo, agora globalizado, instalado no mundo do pensamento único, talvez não
inteiramente convencido de que ele seja ofim da história, mas vivamente interessa­
do cm que o comum das pessoas acredite nisso e fortemente empenhado em fazer,
por sua parte, o necessário para tentar atrasar o curso da história.
3.7. - à luz do panorama que acabamos de traçar, faz sentido perguntar que
expectativas se abrem aos povos injustiçados de todo o mundo. Ninguém terá uma
resposta infalível, mas temos de ter a coragem de evitar que a ‘censura’ totalitária
do pensamento único nos impeça de dizer e de escrever aquilo que pensamos e nos
impeça de pensar aquilo que dizemos e escrevemos.
Apesar da ‘ditadura global’ que caracteriza este tempo de hegemonia unipolar
e de pensamento único, começam a divisar-se algumas brechas na fortaleza do
capitalismo globalizado. “Os que protestam contra a globalização - escrevia The
Economist, de 23.9.2000 - têm razão quando dizem que a questão moral, política e
económica mais urgente do nosso tempo é a pobreza do Terceiro M undo. E têm
razão quando dizem que a onda de globalização, por muito potentes que sejam os
seus motores, pode ser travada. E o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que
toma os que protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos”.
Em Maio de 1997 reuniu em Belo Horizonte a Aliança Social Continental (que
inclui estruturas várias e organizações sindicais, incluindo a americana AFL-CIO ,
2 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

contra a Zona de Comércio Livre das Américas e o livrecambismo fundamentalis-


ta da ordem mundial globalizada). Com o objectivo de construir alternativas viá­
veis e concretas à ALCA, foi aprovado um programa chamado “Alternativa para as
Américas. Para um acordo entre os povos do continente”, cujo princípio basilar é
o de que “o comércio e o investimento não devem constituir fins em si mesmos,
mas sim meios susceptíveis de nos conduzir a um desenvolvimento justo e dura­
douro”. Neste sentido, “ é essencial que os cidadãos e as cidadãs exerçam o seu
direito de participação na formulação, na aplicação e na avaliação das políticas
sociais e económicas do continente”, (...), cujos objectivos centrais “devem ser a
promoção da soberania económica, o bem-estar colectivo e a redução das desi­
gualdades a todos os níveis”.
E importante a observação de que o comércio não deve constituir um fim em si
mesmo, como se o comércio fosse a estrada real para o desenvolvimento. O comér­
cio mundial e a liberdade de comércio devem ser um instrumento ao serviço do
desenvolvimento. Era esta a orientação da Conferência das Nações Unidaspara o Co­
mércio e o Desenvolvimento (CN U CED ), criada em meados dos anos 60 do século
XX na sequência de uma proposta da URSS, apoiada pelo Grupo dos Não-Alinha-
dos. Ao invés, o objectivo da O M C (talvez não por acaso só viabilizada após o
colapso da URSS e da comunidade socialista europeia) é o de afirmar a liberdade de
comércio como valor absoluto (ou lei suprema), transformando tudo em mercadorias
transaccionáveis segundo as leis do ‘mercado livre’. Uma liberdade que aproveita
sobretudo aos países capitalistas dominantes, que representam mais de 70% do co­
mércio mundial, e, sobretudo, aos grandes conglomerados transnacionais, que res­
pondem por 60% das exportações de bens e serviços que são objecto desse comércio.
Esta luta contra a ‘inevitável’e ‘irreversível’“mundialização feliz” (Alain Mine)
liderada pelo grande capital financeiro internacional tem prosseguido de várias
formas, incluindo grandes manifestações públicas. Basta recordar Seattle, Praga,
Nice, Santiago do Chile, Otava. Outro ponto alto aconteceu em Porto Alegre (25-
30 de Janeiro de 2001), onde reuniu o Forum Social Mundial, em contraponto a
mais um dos famosos encontros de Davos.
Com base em elementos elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PN U D ), o Forum analisou esta onda de globalização que tem
acentuado dramaticamente a desigualdade, a miséria e a exclusão social e tem
transformado a própria vida numa mercadoria como qualquer outra. E apontou
alternativas às receitas liberais e globalizadoras.
O Forum afirmou o direito dos povos a organizarem-se livremente em vastas
comunidades de nações solidárias, com o objectivo de evitar o domínio dos mais
poderosos sobre os mais fracos, o direito de se protegerem por meio de barreiras
A v elã s N u n es - 2 3 7

de preferências comunitárias, o direito de controlarem os movimentos de capitais


especulativos, que arruinam as actividades produtivas e mergulham as populações
na incerteza, na crise e na miséria.
O Forum defendeu o direito dos povos à protecção das suas actividades vitais, o
direito à livre escolha do modo de valorizar o seu território e os seus recursos, o
direito a promover e a preservar a sua auto-suficiência alimentar.
O Forum rejeitou a lógica globalizadora que reduz à dimensão de simples
mercadorias os valores sociais, as culturas e todos os valores que constituem a
essência da identidade dos povos.
3.8. - A nosso ver, por aqui hão-de passar os caminhos do futuro. Todos con­
cordaremos com Amartya Sen quando defende que o facto de haver pessoas que
passam fome - e que morrem de fome... - só pode explicar-se pela falta de direitos
e não pelafalta de bens. O problema fundamental que se nos coloca não é, pois, o da
escassez (dado fundamental e incontomável da vida para a teoria marginalista), mas
o da organização da sociedade.
Comentando este ponto de vista de Sen, pergunta Ralf Dahrendorf: “Porque é
que os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmen­
te para si aquilo em que supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcan­
ce? Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes que o ser ou não ser}”
Socorrendo-nos de Amartya Sen, poderemos dizer que a resposta está nafalta de
direitos. O u nafalta de poder. Talvez seja este o problema decisivo, não o problema
da escassez.
Ao equacionar esta problemática, é natural a pergunta de Dahrendorf: “o que
seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém
tivesse fome?” Esta é uma pergunta que a ciência económica dominante não faz,
porque não se consente analisar as consequências de uma mudança de ordem social.
Mas a própria pergunta parece encerrar a ideia de que é necessário modificar as
estruturas de direitos (i.é, as estruturas do poder), sendo certo que também o poder, as
relações depoder o. as estruturas dopoder estão fora da análise da mainstream economics.
Neste nosso tempo de profundas contradições (tempo de grande esperança e de
grande desespero), o desenvolvimento da produtividade resultante do progresso
científico e tecnológico permite que a humanidade produza mais do que o neces­
sário para satisfazer condignamente as necessidades de todos e que haja mais tem­
po para as actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada
vez mais bens para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens. Por
isso, a ciência económica não pode continuar a adiar a busca de um outro padrão de
racionalidade. A ciência económica tem de assumir-se de novo como economia
2 3 8 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

política, como um ramo dafilosofia social, porque “a economia contemporânea tem


mais necessidade de filósofos do que de econometristas” (Ch. Stoffaès).
E verdade que neste nosso mundo antropofágico morrem por ano, de fome ou
de doenças derivadas da fome, quase tantas pessoas como as que morreram durante
a Segunda Guerra M undial, o que representa uma violentíssima ‘guerra civil’ no
seio da nossa ‘aldeia global’.
E verdade que, no conjunto dos países da O C D E , cerca de cem milhões de
pessoas vivem abaixo do limiar da pobeza; que as desigualdades entre pobres e
ricos à escala mundial têm vindo a aumentar acentuadamente; que, no próprio
‘paraíso americano’, o american way ofilife significa que os 20% mais ricos arreca­
dam 50,4% do rendimento, cabendo aos 20% mais pobres apenas 3,4%; que 300
milhões de crianças sofrem diariamente a mais brutal violência física e moral; que
aumenta sem cessar o número dos excluídos.
Tudo isto é certo. Tão certo como o facto de o capitalismo ter surgido e se ter
desenvolvido como a “civilização das desigualdades”, tão certo como o facto de
que a globalização neoliberal tem vindo a acentuar explosivamente as desigualda­
des entre as pessoas e entre os povos.
É certo também que a ‘mão invisível’ do mercado - ou seja, a mão visível e
omnipresente dos grandes conglomerados transnacionais - vem transformando a
própria vida em objecto de negócio. Como é certo que a aniquilação do estado-
nação, a paralisia da política, a morte da política económica (tão cara ao neolibe-
ralismo) constituem um perigo para a democracia. Sem entidades nacionais
responsáveis, a quem podem pedir contas os eleitores e os cidadãos em geral? A
prestação de contas - que é a pedra de toque da democracia - só é exigível a quem
tem meios para governar responsavelmente.
M as há uma outra face da história que importa ter em conta. A verdade tam ­
bém é que, após o advento do capitalismo, o trabalho dos homens provocou um
enorme desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, um extraordiná­
rio desenvolvimento do próprio homem, enquanto produtor e titular de ciência, de
tecnologia, de informação. Este desenvolvimento das capacidades produtivas tem
libertado o homem trabalhador do seu fardo milenar de besta de carga; tem propor­
cionado ao homem trabalhador condições de trabalho mais dignas; tem aumenta­
do a produtividade do trabalho para níveis até há pouco insuspeitados; tem permitido
significativa redução da jornada de trabalho.
Hoje sabemos que o conhecido aumento do número de famintos não apaga a
consciência que temos de que a capacidade de produzir alimentos - e mesmo a
produção efectiva de alimentos - é superior às necessidades da humanidade. A
vida mostra que o homem não deixou de ser o lobo do homem, mas temos razões
A v elã s N u n e s - 2 3 9

para acreditar que podemos viver num mundo de cooperação e de solidariedade,


num mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de
todos os habitantes do planeta. Um dia destes, talvez saibamos construir uma al­
ternativa ao caos suicidário a que nos querem condenar.
Talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e
tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento me­
teórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que
toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre
as quais avulta o próprio homem e o seu saber) só carece de novas relações sociais
de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humani­
dade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.
A crítica da globalização não pode, pois, confundir-se com a defesa do regres­
so a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. Os operá­
rios que viveram a primeira revolução industrial começaram por considerar as
máquinas como as suas inimigas, destruindo-as ou sabotando-as. Mas cedo com­
preenderam que não eram as máquinas que os exploravam. Seria inadmissível que
repetíssemos hoje o mesmo erro, considerando consequência inevitável da revolu­
ção científica e tecnológica aquilo que são os frutos da política de globalização.
A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confian­
ça no homem e nas suas capacidades.Tem que partir da rejeição da lógica de uma
qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a po­
lítica neoliberal dominante, uma das marcas incontomáveis desta civilizaçãofim da
história. A luta contra esta política passa por uma outrapolítica, que prevaleça sobre
as pretensas ‘leis naturais’ do mercado, inspirada em valores e empenhada em
objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.
As mudanças necessárias não acontecem, porém, só porque nós acreditamos
que é possível um mundo melhor: o voluntarismo e as boas intenções nunca foram
o motor da história. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis
de movimento das sociedades humanas. Mas a acção dos interessados na mudança
é indispensável. E a boa compreensão destas leis pode ajudar os homens a actuar
no tempo e no modo correctos, com o objectivo de acelerar e de facilitar o proces­
so de transformar o mundo.
C apítulo III

C a p it a l is m o e S o c ia l is m o
2 4 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a

1. A TESE DA CO N V ER G ÊN CIA D O S SISTEMAS

Certos aspectos do capitalismo contemporâneo têm justificado a tese - muito


em voga a partir de meados do séc. XX, até ao desaparecimento da comunidade
socialista europeia - de que o novo capitalismo é um capitalismo diferente ou nem já
será verdadeiro capitalismo, assistindo-se a um movimento de convergência dos dois
sistemas em que se divide o mundo, convergência num sistema misto (entre o capi­
talismo e o socialismo) ou num sistema superador do capitalismo e do socialismo.
Esta tese procurou, por outro lado, argumentos em certos aspectos das reformas
económicas efectuadas nos países socialistas da Europa a partir de 1965.
“Em minha opinião - escreve Jan Tinbergen 245, um dos defensores da tese da
‘convergência’ - o sistema ocidental actual não é capitalista como o era em 1850”.
Ora, a verdade é que entre o capitalismo de concorrência de 1850 e o capitalismo
monopolista de estado dos nossos dias se notam sensíveis diferenças em vários
domínios. Mas cremos que as alterações verificadas não configuram mudanças
qualitativas suficientemente relevantes para, com base nelas, se dizer que o sistema
que hoje enquadra as relações económicas, sociais e políticas no mundo ocidental
- o “sistema ocidental actual” de que falaTinbergen - já não pode definir-se como
capitalista. Se a nossa análise está correcta, essas alterações não afectaram a essên­
cia definidora do capitalismo, e não oferecem suporte à afirmação deTinbergen,
segundo o qual, “pela minha [dele,Tinbergen] parte, já não chamo capitalista ao
sistema existente nos países do Ocidente.”246
As afirmações de que o sistema dominante nestes países é um sistema misto
podem ir filiar-se na corrente de pensamento iniciada com Bernstein, cujo sentido
é o de negar a alternativa socialista para o capitalismo, uma vez que este entrou
numa nova fase, qualitativamente diferente, em que as contradições se atenuam a
tal ponto que este novo ‘capitalismo’já não é algo de oposto ou de diferente em
relação ao socialismo.
E esta é, bem entendida, a filosofia inerente à tese da convergência dos sistemas,
cujas raízes directas poderão ir buscar-se a Comte (o primeiro ideólogo da tecnocra­
cia e da sociedade industrial), a Rudolf Hilferding (com a sua teoria do “capitalismo
organizado”), a Max Weber e a Werner Sombart 247, passando por toda a teoria

245 Cfr. J. TINBERGEN, 'O essen cial...,ciL, 48.


246 Cfr. J. TINBERGEN, Entrevista..., cit., 11.
247 Na 3* pane de D er Moderne Kapitalismus escreve W . SOMBART (Uapogé... , cit., II, 526): “Devemos, entre­
tanto, habituar-nos à ideia de que, entre um capitalismo estabilizado e regularizado e um socialismo racio­
nalizado que utilize todos os recursos da técnica, a diferença não é muito grande (...F [sublinhado nosso]. Mais
tarde {IIsocialismo..., cit., 83ss.), viria a defender uma noção de socialismo na qual caberia inclusive o regime
nazi. O socialismo seria, efectivamente, para Sombart, "um estado de vida social em que o comportamento dos
A v elã s N u n es - 2 4 3

sociológica da sociedade industrial (Raymond Aron, George Friedmann, Herbert


Marcuse, Ralph Dahrendorf, entre outros), ao mesmo tempo que a sua filosofia
inspira economistas de mentalidade liberal, como Galbraith, ou adeptos de um soci­
alismo reformista, comoTinbergen ou John Strachey, além de muitos outros.
O ponto fraco essencial da teoria da convergência (ao sustentar a ideia de
convergência num sistema misto... de capitalismo e socialismo, a meio caminho entre
estes dois) consiste na falta de perspectiva do processo histórico de evolução dos
modos de produção, encarando o problema dos sistemas como se se tratasse de
uma questão dependente da escolha, da opção que se faça entre um leque de pos­
sibilidades.
E esta atitude perante a dinâmica do processo histórico é que explicará que, à
luz das mutações verificadas nos países em que o capitalismo é o sistema dom i­
nante e nos países onde foi tentada a via socialista, se tenha incorrido no vício de
análise de abstrair das características essenciais dos dois sistemas, para concluir
que o capitalismo já não existe ou superou as suas contradições próprias e que o
socialismo evidencia(va) tendência para regressar a fórmulas capitalistas, vindo a
encontrar-se os dois sistemas num ponto intermédio, numa fórmula híbrica capi-
talismo-socialismo.
O ra a verdade é que, como salienta P. Pitta e Cunha248, “a menos que se gene­
ralize a privatização no domínio das economias socialistas ou se acentue a estati-
zação no âmbito das economias ocidentais, para além do que é razoavelmente
previsível, persistirá a diferença de raiz quanto à propriedade dos meios de produção,
não obstante o paralelismo formal na consagração de soluções mistas de mercado
e de plano.” [sublinhado nosso]
Esse propósito de ‘matar o socialismo como alternativa ao capitalismo trans­
parece claramente nos escritos dos defensores da tese da convergência. Num artigo
de 1965249, escrevia Tinbcrgen que “os dois sistemas estão em evolução” e que “as
alterações revelam uma tendência para a aproximação. H á mesmo provas indica­
tivas - acrescenta - de que os dois sistemas evoluem no sentido de um optimum, de
uma ordem que é melhor, ao mesmo tempo, que o capitalismo puro e o socialismo

indivíduos 6 determinado em princípio por normas obrigatórias que radicam numa razâo universal, intima­
mente ligada à comunidade política, e que encontram a sua expressão na lei (pomos).“ Trata-se, como o próprio
Sombart reconhece, de definir o socialismo como um puro 'normativismo social"’, de “libertá-lo de qualquer
determinação de conteúdo c de concebê-lo de modo puramente formal", em termos tais que, identificando o
nomos com o socialismo, considera socialismo as simples prescrições de "náo-fumar", 'circular pela direita",
"é proibido colher flores", etc.
248 Cfr. P. PITTAeCUN H A, “As reformas.... cit., 30.
249 cfr. j. TINBERGEN, 'Face à l'a ve n ir, c it , 11-12.
2 4 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

puro”. Daí que, em outro texto publicado pela mesma altura250, concluísse, coe­
rentemente, que apresentar o litígio ideológico entre os EU A e a URSS “de m a­
neira simplista, como o litígio entre o ‘capitalismo’e o ‘socialismo’” era uma forma
ultrapassada de ver a questão, pois, em seu entender, “tudo mostra como a contro­
vérsia sobre o sistema social e económico óptimo se tornou, de controvérsia abso­
lutamente qualitativa, em problema de natureza relativa e quantitativa
Alguns autores levaram esta lógica bastante mais longe. A dolf Berle, v.g., como
conclusão da sua análise das grandes corporations americanas, sustentou que “o
aparecimento e o desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a
propriedade como instituição quase tão profundamente como o fazem a doutrina e
a prática comunistas” e não hesitou em afirmar “que o sistema económico ameri­
cano baseado na propriedade privada se tornou, no fim de contas, tão socialista
como muitos sistemas socialistas”.251
Finalmente, esta amostra das conclusões a que pode levar (e tem levado) a
lógica que subjaz e os elementos em que se apoia a teoria da convergência dos
sistemas: “O conceito de comunismo de Marx - escreve um professor americano,
Robert Tucker252 - seria aplicável hoje, com rigor, à América; o seu conceito de
capitalismo está absolutamente antiquado e ultrapassado”.

2. C a p i t a l is m o e S o c ia l is m o - e l e m e n t o s e s s e n c ia is

Equacionada em termos gerais a tese da convergência dos sistemas, importará


esclarecer agora quais os elementos essenciais na caracterização do capitalismo e
do socialismo para depois se averiguar em que medida eles de ajustam à realidade
dos países capitalistas e dos países que apostaram na construção do socialismo.
Vimos atrás quais os elementos que verdadeiramente imprimem carácter a um
sistema económico. Dentro do esquema enunciado, não será difícil distinguir o ca­
pitalismo do socialismo. Seguindo a lição de Teixeira Ribeiro253 e de A. C. Pigou254,
parece poder afirmar-se que as características essenciais do capitalismo se traduzem
na propriedadeprivada dos meios deprodução e no recurso ao trabalho assalariado (o que
permite aos donos do capital a obtenção de rendimentos sem trabalho), cabendo a
iniciativa da produção a empresas que se propõem a obtenção de lucros.

250 Cfr. J. TlNBERGEN/Idéologies..., c it, 6.


251 Cfr. A. A. BERLE, "Les grandes unités", cit.
252 Cfr. R. TUCKER, Philosophic..., cit., 200.
253 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura..., cit., 15/16 e Capitalism oesocialism o..., cit., 2.
254 Cfr. A. C. P IC O U , Socialism. .., cit., cap. I.
A v elã s N u n es - 2 4 5

Com o elemento fundamental, aparece um certo tipo de relações sociais de


produção, cuja expressão no plano jurídico é a apropriação dos meios de produção
por uma classe (os capitalistas), com a consequente não-apropriação por parte de
outra (os trabalhadores assalariados, separados dos meios de produção). Este tipo
de relações sociais de produção é que permite aos detentores do capital a organi­
zação da produção com base na contratação de trabalhadores assalariados e a
apropriação do sobreproduto social. “Porque os capitalistas ganham a título de
propriedade - escreve Teixeira Ribeiro 255 -, enquanto os trabalhadores recebem
em paga do esforço, cria-se uma diferenciação social entre os que, por serem
proprietários, podem viver sem trabalhar e os que, por não o serem, têm de traba­
lhar para viver.” A essência do capitalismo reside precisamente nesta diferenciação
social, diferenciação que arranca directamente da posição social que cada uma das
classes ocupa nas relações sociais de produção.
Quanto ao socialismo, poderá dizer-se, com Teixeira Ribeiro 256, que são os
seguintes os seus traços fundamentais: 1) que os meios de produção pertençam à
colectividade ou ao estado {propriedade social dos meios de produção); 2) que só se
distribuam rendimentos a título de trabalho; 3) que as explorações laborem em obe­
diência a um plano, organizado com vista à satisfação das necessidades (individuais ou
colectivas) objectivamente avaliadas pelos poderes públicos.
Uma concepção de socialismo muito próxima da que fica enunciada é a exposta
no ensaio citado de Pigou. Para o professor inglês, o socialismo implica: 1) a
propriedade colectiva ou pública dos meios de produção; 2) a eliminação da ob­
tenção privada de lucros, no sentido da existência de homens ou grupos de homens
que contratam outros homens e vendem depois o produto do trabalho destes, com
o objectivo de obter lucros; 3) planificação com vista ao bem comum, i.é, com o
objectivo de beneficiar não a uma classe determinada, mas sim a “comunidade
como um todo.”
Adm itindo que uma das características essenciais do socialismo é a distribui­
ção de rendimentos apenas como remuneração do trabalho,Teixeira Ribeiro sus­
tenta que o único processo admissível de realizar esta finalidade “é a apropriação
social dos meios de produção”. Antecipa o professor de Coimbra o argumento de
parecer estranha esta sua conclusão tendo em conta o facto de que “muitos dos
partidos que se reclamam do socialismo (...) têm nos últimos decénios renuncia­
do, expressa ou tacitamente, à apropriação social da maior parte dos meios de

Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política..., ciL, 168.


Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura..., d l ; Capitalismo esocialism o..., cit., e Sobre o socialismo, c it.
2 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

produção”. A sua resposta é incisiva: “isso apenas significa que tais partidos desis­
tiram de implantar um sistema económico socialista”.257
Relativamente à satisfação das necessidades enquanto móbil específico do socia­
lismo, o mesmo professor comenta: “claro que a economia capitalista também
satisfaz necessidades, e nenhuma economia atingiu até hoje tanto êxito como ela
em tal domínio”. N o entanto, Teixeira Ribeiro põe em relevo esta diferença, que
considera essencial: “na economia capitalista a satisfação de necessidades é um
meio, e não um fim; é o meio de a empresa, vendendo os seus artigos, ganhar nessa
venda, obter lucros; enquanto na economia socialista a satisfação de necessidades é
ela própria o fim da actividade económica”. E porque “a satisfação de necessidades
é um meio e não um fim”, no quadro do capitalismo, conclui o autor, “sempre que
seja conveniente sacrifica-se o meio à realização do fim, procurando alcançar-se
mais lucro mesmo à custa de satisfazer menos necessidades”.258
E poderia alargar-se a indicação de autores e obras que apontam a propriedade
social dos meios de produção como um elemento essencial para se poder falar de
socialismo, incluindo, portanto, na caracterização do socialismo, aquela que foi a
principal reivindicação dos autores do Manifesto Comunista: a “abolição da propri­
edade privada” dos meios de produção: “o que caracteriza o comunismo não é a
abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. O ra a
propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa, é a última e a mais perfeita
expressão do modo de produção e de apropriação baseado em antagonismos de
classes, na exploração de uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem
resumir a sua teoria nesta fórmula única: ‘abolição da propriedade privada’”.

3. Um s is t e m a m is t o ?

Ora, a respeito do sistema dominante no ‘mundo ocidental’, fala-se de sistema


misto “com numerosos elementos socialistas.”
Que elementos socialistas serão estes?
Em primeiro lugar, são as chamadas regalias sociais dos trabalhadores, obtidas
mediante a actuação do estado no domínio da segurança social, assistência, educa­
ção, lazer, campos que fundamentalmente integram a base do estado social (ou
estadoprovidência).
Trata-se, em regra, de elementos que representam o resultado de um longo
processo de luta das classes trabalhadoras, são conquistas suas, como outrora o

257 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 56/57.


258 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 48/49.
A v e l As N u n e s - 2 4 7

tinham sido a liberdade sindical e a limitação da jornada de trabalho a oito horas.


E trata-se, também, como os autores salientam, da assunção, por parte do capita­
lismo, de certas metas dos programas socialistas, mas ‘integrando-as’ na lógica do
sistema, transformando em meio o que deveria considerar-se um fim em si mes­
mo. Como observa Henri Janne, “a significação do neocapitalismo é clara sobre
este ponto: transformar os fins maiores do socialismo em meios de realizar outros
fins, isto é, a manutenção do lucro, da iniciativa privada, dos grupos privilegiados.
Reduzidos a meios de fins bem determinados, os objectivos alteram-se inevitavel­
mente. Crescimento económico, sim, mas para e pelo lucro. M aior poder de com­
pra das massas, mas para criar o lugar ao mecanismo de realização do lucro. Pleno
emprego, mas para assegurar a manutenção do poder de compra global. Segurança
social, mas para tornar psicologicamente possível a despesa total dos salários indi­
viduais.”259
Em segundo lugar, integrarão o núcleo dos elementos específicos do capitalismo
contemporâneo v.g. o financiamento pelo estado de certas actividades, a propriedade
pública de certos sectores ou empresas, a planificação pública da economia etc.
A estes elementos e às implicações que deles se têm extraído nos referiremos
a seguir.

3.1. A PERDA DE SIGNIFICADO DA PROPRIEDADE PRIVADA

Diz-se que “a propriedade privada de hoje só representa uma fracção da liber­


dade de acção característica de 1850”. Eis uma afirmação a que não poderá negar-
se alguma verdade, embora desta verdade não possa concluir-se que a natureza da
propriedade sobre os meios de produção não é já elemento relevante para a carac­
terização do sistema capitalista (ou socialista).
E claro que não vivemos hoje no regime de pequena empresa que caracterizou
os primeiros tempos do industrialismo, em que o capitalista era também o empre­
sário, o dirigente da sua empresa. As coisas mudaram de então para cá: o progresso
técnico foi enorme e por vezes a um ritmo vertiginoso. Daí que as empresas, para
poderem acompanhar a evolução das forças produtivas, carecessem de grande vo­
lume de capitais. Compreende-se, por isso, que as sociedades por acções fossem
ganhando importância crescente, pois elas constituem um instrumento jurídico-
económico que facilita a centralização de capitais e a concentração do poder eco­
nómico nos grandes accionistas, além de que, sendo grandes empresas, vêem
acrescidas as possibilidades de concentração de capitais, em resultado da sua pró­
pria acumulação.

259 Cfr. H . JANNE, ob. ciL, 2 18.


2 4 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Daí que o conhecimento e o controlo dos mercados actuais e potenciais, o


conhecimento e o controlo das inovações tecnológicas tenham adquirido impor­
tância decisiva na gestão da empresa capitalista. Daí, naturalmente, as transforma­
ções espectaculares nas técnicas de gestão, a importância dos gabinetes de estudo,
de concepção, de marketing, a necessidade de organização e de programação a
longo prazo. Daí que o capitalista-proprietário-dirigente de outrora não pudesse
sobreviver. Daí, a importância crescente do organizador industrial, ficando a gestão
cada vez mais separada da propriedade, como Marx previra já em O Capital. Referin-
do-se às consequências da expansão das sociedades por acções, Marx fala da “trans­
formação do capitalista que exerce realmente as suas funções num simples manager
(de capital de outrem), e dos proprietários de capital em simples proprietários, em
simples financeiros”, acrescentando que a propriedade do capital “se encontra en­
tão completamente separada da sua função no processo real da reprodução, do
mesmo modo que esta função, na pessoa do director, está separada da propriedade
do capital.”260
As alterações que ficam sumariamente apontadas contribuíram, na verdade, por
um lado, para substituir a propriedade individual por uma nova forma de proprieda­
de, 2.propriedade social (a propriedade da sociedade, como pessoa colectiva cujo subs-
tracto pessoal é constituído por um grupo maior ou menor de sócios), e, por outro
lado, para separar, institucionalmente, as funções de directors de proprietário.
Daqui até à conclusão de que a propriedade dos meios de produção perdeu
todo o significado, de que a propriedade privada dos meios de produção deixou de
poder considerar-se elemento essencial do sistema dominante nos países industri­
alizados do ocidente e de que este sistema sofreu, por isso, uma mutação qualita­
tiva fundamental, uma mudança na sua natureza e na sua lógica interna - até esta
conclusão, vai um grande passo, importando averiguar da legitimidade para o dar.

a) O \capitalismo popular
Defendem alguns que o capitalismo sofreu uma mudança essencial pela via da
difusão da propriedade accionista, da democratização do capital resultante da emis­
são de acções adquiridas por milhares ou mesmo milhões de pessoas. Assim se
criaria uma situação de capitalismo popular, fenómeno que arrastaria consigo um
nivelamento das classes e um clima de ‘harmonia social’ e de ‘paz social’.261

260 Cfr. K. M ARX, Le Capital, em Oeuvres (ed. de M. RUBEL, c it), II, 1175.
261 Nesta lógica se inserem, aliás, as tentativas de fazer participar os operários no capital e nos lucros das empresas
(accionariado operário e outras técnicas de participação, que, em regra, nâo têm colhido o favor dos sindicatos).
Mas a verdade é que nâo é por isso que tais empresas deixam de ser capitalistas: os operários-accionistas
A v el A s N u n e s - 2 4 9

O ra a verdade é que o capitalismo popular resultante da difusão das sociedades


anónimas e da dispersão das acções não deixa de ser capitalismo e nem sequer será
‘popular. Assim como a concentração ao nível das empresas - enquanto fenómeno
que traduz a polarização crescente dos capitais e do poder económico - em nada é
afectada pela sobrevivência e até pelo aumento do número das pequenas empresas,
assim também o grande número de pequenos accionistas não é decisivo para pôr
em causa o poder dos grandes, que decidem da vida da empresa com o mesmo à
vontade com que as grandes empresas decidem das condições da indústria.
Tal como a existência de pequenas empresas (mesmo em grande número) não
afecta o ‘monopólio’ das grandes, do mesmo modo a ‘democratização do capital’
accionista não afecta o ‘monopólio’, a ‘soberania’, a ‘ditadura’ da grande burguesia.
Antes pelo contrário: a difusão das sociedades por acções e, mais recentemente, da
vária gama dos investidores institucionais e das sociedades holding (sociedades
gestoras de participações sociais), tem sido o meio mais eficaz de ‘radicalização’
do sistema, de proletarização de largas camadas da pequena e média burguesia, de
centralização de capitais e de concentração do poder económico (e, portanto, do
poder político) nas mãos da grande burguesia, muito para além da sua própria
capacidade de acumulação.
De resto, o ‘capitalismo popular’ nunca deixaria de ser capitalismo (pois sem­
pre subsistiriam os rendimentos sem trabalho), a menos que se identificasse o
socialismo com a ‘generalização da condição burguesa’ e se admitisse a hipótese
absurda de todas as pessoas a ela ascenderem... (absurda, porque a subsistência da
condição burguesa implica a existência de pessoas na condição proletária).
E a verdade é que, como mostram vários estudos, não tem qualquer fundamento a
ideia de uma distribuição realmente ampla da propriedade accionista (menos de 1% da
população adulta possui um número de acções significativo em termos de estatuto de
vida). É assim mesmo nos EUA e nos países capitalistas mais industrializados.
A ideia da democratização do capital fica assim reduzida a uma miragem engana­
dora. Além disso, é evidente que não passará de pura ficção considerarem-se (co)
proprietários todos os que são donos de uma ou duas (ou de dez, ou cem ...) acções
das sociedades que enquadram juridicamente as grandes empresas ‘monopolistas’, e

limitam-se, em regra, a receber tftulosde participação que lhes dâo direito a receber uma certa percentagem
do lucro da empresa (como recompensa da sua antiguidade ou dos seus bons serviços), mas sem direito a voto
e muito menos a ser eleito para a administração. Estes 'accionistas' nâo passam a decidir dos fins da produção
nem do destino do sobreproduto, decisões que continuam a caber quase por inteiro aos grandes accionistas que
controlam a sociedade e controlam a aplicação do sobreproduto, com a vantagem de que, interessando os
trabalhadores na empresa (fazendo-os crer que a empresa também é deles), asseguram maior estabilidade da
mâo-de-obra e maior rendimento do trabalho.
2 5 0 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l ít ic a

considerarem-se como ‘capitalistas’ todos os accionistas. Como tal só devem consi­


derar-se os que recebem rendimentos do seu capital que sejam pelo menos suficien­
tes para lhes permitir viver sem ter que vender a sua força de trabalho.
O que fica dito parece ser o bastante para que não possam tomar-se a sério afirma­
ções como as de Berle, segundo o qual a difusão das acções “constitui, por um curioso
paradoxo, uma forma imprevista de socialização da indústria, desenvolvendo-se rapi­
damente, mas sem a intervenção do estado”, pelo que “o aparecimento e o desenvolvi­
mento da grande sociedade por acções modifica a propriedade enquanto instituição
quase tão profundamente como o fazem a doutrina e a prática comunista”.262

b) A 'revolução dos gerentes1


Um o ■.•.no caminho que tem sido percorrido para concluir pela irrelevância do
problema da propriedade dos meios de produção é o que anda à volta da chamada
revolução dos managers (ou revolução dosgerentes), ‘revolução silenciosa’ que se tra­
duziria na expropriação dos antigos expropriadores pelos seus gerentes assalaria­
dos e pela substituição do poder que deriva da propriedade por um poder sem
propriedade (“the power w ithout property”, nas palavras de A dolf Berle 263).
Este ponto de vista, que transparece já no Keynes de The E n d o/Laissez-Faire
(1926)264, apareceu pela primeira vez equacionado e desenvolvido, em 1932, num
livro de A dolf Berle e Gardiner Means (Modem Corporation andPrivate Property),
sendo definitivamente lançado como ‘revolução’ por James Bumham (TheMana-
gerialRevolution, 1941), reaparecendo mais tarde, sob uma nova capa (a tecnostru-
tura), nos trabalhos de J. K. Galbraith (particularmente em The New Industrial
State, 1968).
Poderá dizer-se que os defensores desta tese arrancam do desenvolvimento
tecnológico e das exigências crescentes ao nível da organização e da gestão das
empresas para tentar mostrar a impossibilidade de o proprietário individual con­
trolar as informações necessárias à direcção das empresas e, a partir daí, explicar a
crescente importância dos managers e o seccionamento da (antiga) propriedade
absoluta em propriedade (uma propriedade limitada, uma propriedade sem poder,
que caberia aos accionistas) e em poder de direcção sem propriedade (que caberia aos
directores). Estes é que dirigiriam as empresas e a vida económica, actuando de

262 Cir. R. TUCKER, o b .cit., 9.10.2.


263 Cir. A. BERLE, The Twentieth Century Capitalist Revolution, cit.
264 "One of the most interesting and unnoticed developments of recent decades has been the tendency of big
enterprise to socialise itself. A point arrives in the growth of a big institution (...) at which the owners of the capital,
i.e. the shareholders, are almost entirely dissociated from the management, with the result that the direct personal
interest of the latter in the making of great profit becomes quite secondary" (The E n d ..., cil., 42-43).
A v elã s N u n e s -2 5 1

acordo com uma lógica diferente da que era típica do proprietário-capitalista-


director do séc. XIX.
A lógica dos managers, da tecnostrutura, não seria já a da valorização do capital,
a da maximização dos lucros, mas uma lógica própria, com fins próprios, indepen­
dentes dos interesses e da posição de proprietário. Uma lógica que se traduziria em
promover o crescimento da empresa, o aumento da sua dimensão e do seu poder,
num compromisso que procuraria ir ao encontro não só dos interesses dos accio­
nistas e dos gerentes, mas também dos interesses dos trabalhadores, do estado e do
público em geral e até dos interesses da “própria empresa como instituição”... A
lógica derivada da propriedade privada dos meios de produção estaria ultrapassa­
da, sendo esta ‘revolução’ a consequência inevitável (automática) da revolução
tecnológica, sem tocar em nada o fundamental (a natureza das relações de produ­
ção e do sobreproduto e a classe a quem cabe o controlo deste, e, portanto, a
iniciativa da produção, a direcção da produção e a definição dos seus objectivos).
A antiga classe dominante (proprietários dos meios de produção) teria sido
substituída nos EUA (e tendencialmente sê-lo-ia nos outros países capitalistas)
por uma tecnocraciapuramente neutral (“a purely neutral technocracy”), que “equili­
bra exigências diversas de diferentes grupos na comunidade, atribuindo a cada
qual uma parte do fluxo de rendimento, à base da política pública e não da cupidez
privada”.265 Daí resultaria uma nova lógica do sistema, pois essa tecnocracia iria
adoptar um “comportamento que pode ser considerado ‘responsável’: não há de­
monstração de cobiça ou ganância; não há tentativa de transferir para os trabalha­
dores ou para a comunidade grande parte dos custos sociais da empresa”. A grande
empresa moderna - conclui Cari Kaysen 266 - é uma empresa dotada de alma (“a
soulful Corporation”).
Segundo esta tese (a tese da empresa dotada de alma), as grandes sociedades anó­
nimas e os seus administradores “não podem ignorar a sua responsabilidade deter­
minante para com o público” (A. Berle). Esta ideia de afirmar a grande empresa
como instituição responsável não apenas perante os accionistas, mas também perante
os seus trabalhadores, os consumidores e o público em geral faria dela uma espécie
de‘serviço público’, superando, de algum modo, a principal contradição apontada ao
capitalismo (a que resulta do confronto entre a propriedade privada dos meios de
produção e a apropriação privada dos lucros e o carácter social da produção).
As modernas sociedades anónimas seriam administradas por um corpo de di­
rectores que tendiam a perpetuar-se no poder, sem dependerem da vontade dos

Cfr. A. BERLE e C . MEANS, Modem Corporation..., c it , 356.


Cfr. C. KAYSEN, ob. c i l , 313/314.
2 5 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o l It ic a

accionistas, afastados da direcção efectiva das empresas. Estas poderiam prosse­


guir e prosseguiriam efectivamente fins e interesses diferentes dos que derivariam
da lógica da propriedade privada dos meios de produção. Os managers sentir-se-
iam responsáveis perante a opinião pública e o peso da opinião pública faria nascer
nesse corpo todo-poderoso de directores profissionais uma noção de responsabili­
dade que os levaria a não abusar dos seus poderes e a conformar-se com os ideais
da colectividade.
Este efeito compensador (foi Galbraith quem introduziu o conceito de counter­
vailing power) da opinião pública faria equilibrar o poder dos directores das gran­
des empresas com uma espécie de conscience du roi que os colocaria, não ao serviço
da valorização do capital, mas ao serviço dos interesses da colectividade. Sob o
impulso dessa ‘consciência’, as próprias empresas deixariam de ‘comportar-se’em
obediência ao espírito de maximização do lucro, para ganharem elas próprias uma
‘alma’que as levaria a prosseguir o interesse público: “A grande empresa - escreve
A dolf Berle267 - não pode fazer da acumulação um fim em si, nem tem qualquer
razão para o fazer. Não pode ser Crésus nem Harpagon. Tem de continuar a
engrandecer-se à medida que a população e os níveis de vida se elevam. A sua
função é, assim, a de estar do serviço de uma comunidade mais extensa”.
Toda a questão está, porém, em saber se aquele poder compensador, que se afir­
ma derivar da existência de uma opinião pública vigilante, será capaz de produzir
a referida conscience du roi, se será capaz de limitar a liberdade de decisão das
grandes empresas.268
Na esfera da actividade económica dominada pelas sociedades por acções, o
sentido da presença da propriedade privada seria muito diferente do que lhe seria
próprio no seio do modo de produção capitalista. No mundo das grandes socieda­
des por acções (o sub-sistema industrial de que fala Galbraith, por contraposição ao

267 Cfr. A BERLE, “le s grandes unilés", cit., 9.08.16.


268 É interessante, por outro lado, atentar-se em que este apelo à função social da grande empresa, considerada
como uma espécie de unidade económ ica ao serviço da Pátria - apelo que constitui ponto importante das
teses de quantos proclamam a sociedade dos gerentes ou a sociedade industrial como sistema superador do
capitalismo e (também) do socialismo - foi também um ponto-chave dos teóricos do sistema corporativo, igual­
mente apontado como sfntese superadora do liberalismo capitalista (tese) e do socialismo (antítese). Vale a
pena recordar, a este respeito, o que dizia o art. 2. do Estatuto do Trabalho Nacional (diploma estruturanie do
corporativismo salazarista): às empresas, como pilares da organização económica da Nação, cabia "realizar
o máximo de produção e de riqueza socialmente útil c estabelecer uma vida colectiva de que resultem poderio
para o Estado e justiça entre todos os cidadãos". Aliás, como salienta V. MOREIRA ("Sobre o poder.. ., cit., 780,
nota 7), a própria "concepção da 'consciência social' dos managers não deixa de manter um curioso paren­
tesco com as proclamações nazis e fascistas que viram no empresário o 'funcionário do bem comum', o
'curador dos interesses económicos nacionais', etc.. A responsabilidade social do empresário faz parte também
do ideário do ‘estado social', outro dos grandes títulos da teoria política contemporânea."
A v e ià s N u n e s - 2 5 3

sub-sistema do mercado), “a propriedade privada - defende A dolf Berle - é em gran­


de medida motivada pelo desejo de evitar que a totalidade dos poderes seja con­
centrada nas mãos do estado, assegurando assim um grau de liberdade individual
que seria reduzido se houvesse confusão da função económica e da função políti­
ca”. Para explicar (justificar) a realidade neste tempo de ‘monopólios’, recorre-se à
velha tese liberal da separação da política (a esfera do estado) e da economia (a
esfera dos particulares), separação que seria a garantia da liberdade dos indivíduos
perante o estado.
Quer dizer: a propriedade privada dos meios de produção não teria hoje o
significado ‘económico’ e social da propriedade capitalista. Berle fala de “erosão
do conceito clássico de propriedade privada”. E Schumpeter vai mais longe ainda:
em seu entender, a evolução do capitalismo “desvitaliza a noção de propriedade”,
opera a “evaporação do que podemos chamar a substância material da proprieda­
de”, “afrouxa o domínio, outrora tão forte, do proprietário sobre o seu bem”, tudo
isto de tal forma que, dentro da estrutura das sociedades anónimas gigantes (diri­
gentes assalariados, grandes e pequenos accionistas), “ninguém adopta sem reserva
a atitude que caracteriza o curioso fenómeno, tão pleno de sentido, mas em vias de
desaparecimento tão rápido, que a palavra Propriedade exprime” - “a figura do
proprietário e, com ela, o olho do patrão desapareceram de cena”.269 No mesmo
sentido é a opinião sustentada porTinbergen: “(...) toda uma série de componen­
tes da propriedade foram já nacionalizados. Com o dizem outros economistas, a
propriedade privada já foi creusée”.210
Tudo isto para concluir, afinal, que, se é o poder que conta e não a proprieda­
de, capitalismo e socialismo se encontram superados por um novo modo de
produção (a sociedade dos gerentes, a sociedade de tecnostrutura), para o qual con­
vergiriam aqueles dois.271
Como consequência do progresso tecnológico - concluem paralelamente os
ideólogos da sociedade industrial -, acontece que o verdadeiro salto qualitativo não
é o que distingue o socialismo do capitalismo, mas o que distingue e contrapõe a
sociedade industrial a todas as outras formas de organização económico-social.

269 Cfr.J. SCHUM PETER, Capitalism...,ci\., 141/142.


270 Cfr. J. TINBERGEN, Entrevista, cit.
271 A tese de que perdeu significado e importânciaa propriedade (privada) dosmeios de produção aparece
também claramente formulada num livro de G . ADLER-KARISSO N iob. cit., 7 ), onde o autor sustenta que,
"actualmente, a propriedade formal dos meios de produção é uma questão secundária, tal como tem sido
amplamente provado pela experiência socialista sueca. O que é de primeira importância - defende Karisson
- é a distribuição na sociedade das funções políticas e económicas que se ocultam debaixo da propriedade
formal". Fica de pé a questão de saber se poderá classificar-se como socialista a economia e a sociedade
visadas pela governação social-democrata na Suécia.
2 5 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Augusto Com te afirmara já que “pouco importa aos interesses populares em


que mãos se encontram habitualmente os capitais.” E Sombart, no seu livro sobre
o Deutscher Sozialismus, põe o problema desta forma claríssima: “O problema da
propriedade para o socialismo alemão não é um problema em si mesmo. O dilema
propriedade privada ou propriedade colectiva, à volta do qual se vem batalhando
há tantos séculos e se batalha ainda aqui e ali, para o socialismo alemão não existe.
(...) Propriedade privada e propriedade colectiva conviverão uma ao lado da outra,
com a condição, naturalmente, de que a propriedade privada não tenha um alcance
ilimitado, mas tenha, ao menos no que se refere aos meios de produção e à terra, o
carácter de uma investidura feudal. Posso associar-me plenamente a O thm ar Spann
- continua Sombart - quando escreve ‘formalmente há propriedade privada, subs­
tancialmente só propriedade social’. O direito de propriedade - conclui o econo­
mista alemão - já não determina as directrizes da economia; mas são estas que
determinam a amplitude e a espécie do direito de propriedade: eis o ponto funda­
mental”.272
Também Keynes sustentou que “o estado não tem interesse em chamar a si a
propriedade dos meios de produção. Se ele é capaz de determinar o volume global
dos recursos consagrados ao aumento desses meios e a taxa-base da remuneração
concedida aos seus detentores, terá realizado tudo o necessário. As medidas indis­
pensáveis de socialização podem, aliás, ser aplicadas de modo gradual e sem revo­
lucionar as tradições gerais da sociedade”.273 Q uer dizer: o estado não carece de
chamar a si a propriedade dos meios de produção para poder realizar a função que
lhe cabe. Só que Keynes não sustenta que as suas propostas conduzem ao socialis­
mo. Antes pelo contrário: deixa bem claro que o “alargamento das funções do
estado” que ele propõe, as tais “medidas indispensáveis de socialização”, são o
“único meio de evitar uma completa destruição das instituições [capitalistas] actu­
ais.” Para realizar um tal objectivo, o estado não precisará, evidentemente, de abo­
lir a propriedade privada dos meios de produção.
Poderá dizer-se, porém, que as grandes empresas prosseguem agora - como
resultado da gestão levada a cabo pelos directores profissionais - objectivos dife­
rentes daqueles que são próprios de uma acumulação fundada na propriedade pri­
vada dos meios de produção?
Esta é a tese de Berle, de Bumham, de Kaysen e de todos aqueles que tendem
a identificar a actuação dos managers das grandes empresas capitalistas com a que
caracterizava a dos directores das explorações públicas nos países da ex-comuni­

272 Cfr. W. SCXMBART, II socialism o..., cit., 374.


273 Cfr. J. M . KEYNES, General Th eory..., cit-, 378.
A v e ià s N u n e s - 2 5 5

dade socialista europeia, por exemplo (ou da URSS). Parece ser igualmente a tese
deTinbergen, que reconhece diferenças apenas quanto ao “grau de liberdade nas
decisões da produção. Os managers que dirigem as organizações industriais no
Ocidente - escreve ele - têm, sob este aspecto, uma liberdade bastante maior do
que aquela que têm os managers dos países comunistas, onde um número de pro­
blemas ainda assaz considerável vem planificado do centro”.274
Também Galbraith fala dos “fins próprios da tecnostrutura”, construindo a partir
deles um “sistema regido pela lei do crescimento”, por contraposição a um outro
“sistema regido pela lei do lucro” (capitalismo). Galbraith ainda concede que “o seu
[da tecnostrutura] primeiro fim é, na verdade, assegurar um mínimo de lucros para
garantir a sua independência. Mas, a partir daí - acrescenta -, o seu interesse é muito
mais o de assegurar o crescimento da empresa do que o de aumentar os lucros, pois
os lucros advêm aos accionistas, dos quais a tecnostrutura já não depende”.275
Contra tal tese poderá logo objectar-se que esta “lei do crescimento”, de que
fala Galbraith, quer se considere um crescimento pelo crescimento (inspirado por
uma qualquer misteriosa ideia de grandeza...), quer se trate de um crescimento
destinado a enfrentar o aumento da população ou a corresponder à elevação dos
níveis de vida, não encontra explicação possível nos quadros de um sistema cuja
finalidade é “a transformação de certa soma de dinheiro em uma soma de dinheiro
maior” (Teixeira Ribeiro276). D ito de outra maneira: num modo de produção em
que a iniciativa da actividade económica cabe aos detentores do capital, o cresci­
mento da empresa não poderá conceber-se como um fim em si mesmo, só ga­
nhando sentido como meio de valorização do capital.
E poderá acrescentar-se que a diferença entre a posição dos managers das gran­
des sociedades anónimas capitalistas e a dos directores das unidades de produção
da ex-comunidade socialista não residia fundamentalmente no maior ou menor
grau de liberdade de manobra de que gozavam uns e outros. O que importa saber
é a quem pertence a propriedade das empresas, a quem pertence o sobreproduto, a
quem cabe decidir do seu destino. E ninguém duvidará de que as respostas a estas
questões não poderiam ser as mesmas num caso e noutro.
A liberdade de decisão de que gozam os managers é a liberdade de actuarem
por forma a alcançar a máxima valorização do capital (próprio ou do ‘patrão’); a
liberdade de decisão dos directores das empresas públicas numa economia socia­
lista é a liberdade de adequarem a actuação destas à melhor realização das deter­

274 Cfr. |. TINBERGEN, 'U n a ipotesi.. ciL, 28.


275 Cfr. J. K. G A LBRAITH , Enlrevista, ciL
276 Cfr. |. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura... cit., 11.
2 5 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o Ut k a

minações planificadas fundamentais, pois a propriedade social dos meios de pro­


dução (e a consequente apropriação e controlo social do sobreproduto) torna pos­
sível fazer da satisfação das necessidades socialmente planificadas o móbil da
actividade económica, afastando a valorização do capital, a obtenção de lucros, da
posição de ‘m otor’ e fim primeiro da produção.
Se assim se não entender, então a coerência obriga a levar o discurso até onde
o levou Bumham, incluindo na sua “sociedade dos gerentes” a economia da União
Soviética, dos EUA e da Alemanha nazi.277 Levado o raciocínio a este ponto
extremo, talvez se conceda que, na verdade, se estão a misturar e a confundir
situações radicalmente diversas.

c) O estatuto dos \managers’


Nesta perspectiva é que interessará estudar qual o verdadeiro estatuto dos mana­
gers (da tecnostrutura) numa sociedade capitalista. Serão uma classe neutra? 278 Inte­
grarão a classe capitalista (monopolista) dominante e/ou estarão ao serviço dela?
Não pode negar-se que a realidade das sociedades por acções significa que a
sua administração não está sob o controlo efectivo de todos os accionistas. O poder
de controlo escapa, na prática, aos pequenos accionistas, o que, aliás, representa
uma vantagem para os grandes, que ficam a dispor do dinheiro dos pequenos e
beneficiam da concentração do poder económico nas suas mãos, em medida muito
superior à que derivaria apenas do seu próprio capital. Não se nega tal fenómeno,
mas cremos que não tem fundamento sério a tese de que o poder económico cabe
agora a indivíduos que não detêm a propriedade dos meios de produção, a tese que
afirma como dominante o poder sem propriedade (“the power without property”).
A verdade é que os administradores que controlam as sociedades por acções
(the managerialstratum) constituem “o grupo mais activo a influente da classe dos
proprietários”, como salientam Baran e Sweezy: “os managers estão entre os mai­
ores proprietários; e, em virtude das posições estratégicas que ocupam, eles funci­
onam como protectores e porta-vozes de toda a propriedade em grande escala.
Longe de serem uma classe à parte, constituem na realidade o escalão principal da
classe dos proprietários”.279 E a experiência mostra que, em regra, os administra­
dores de categoria mais elevada (top managers) pertencem ao mesmo grupo social

277 Para uma perspectiva critica das teses sustentadas por Burnham em The Managerial Revolution, cfr. P. SWEEZY,
£nsa/as...,cit.,40.
278 Tese que tem a sua expressão mais acabada em BERLE/MEANS, ob. cit.; J. BU RN H A M , ob. cit., e em obras
posteriores de A. BERLE {The Twentieth..., cit).
279 Cfr. BARAN/5WEEZY, Capitalismo Monopolista, c it , 34/35.
A v elà s N u n es - 2 5 7

dos proprietários, desenvolvendo estreitas relações uns com os outros, na socieda­


de e no m undo dos negócios.
E quando assim não for (i.é, quando os managers não são eles próprios accio­
nistas c até grandes accionistas) sempre acontecerá que os directores não passam
de instrumentos mais ou menos eficientes (mas sempre subordinados) dos deten­
tores do grande capital, em relação aos quais se comportam, pura e simplesmente,
como ‘guarda avançada’, ‘burgomestres’, feitores e porta-vozes.
A lógica do lucro continua, pois, a marcar o comportamento dos managers e
das grandes sociedades anónimas. O capital só aspira à sua máxima valorização,
aspiração que se concretizará não na obtenção de um optimum absoluto, mas na
obtenção do máximo lucro possível em função do futuro (numa lógica de médio-
longo prazo) e não apenas de cada momento considerado.
A necessidade de crescimento das empresas (imposta pelas exigências do pro­
gresso técnico e da concorrência) e a sua crescente autonomização relativamente
ao financiamento externo (pela via do autofinaciamento) levam as empresas a pro­
mover a acumulação em ritmo e volume cada vez mais acentuados. Parece correc­
ta, portanto, a conclusão de Baran e Sweezy no sentido de que “não pode haver
dúvida de que a obtenção e a acumulação dos lucros ocupam hoje uma posição
mais dominante do que nunca”, de que a actual “economia de grandes empresas é
mais, e não menos, dominada pela lógica do lucro do que alguma vez o foi a
economia de pequenos empresários”.280
Do que fica dito poderá concluir-se que a expansão das (grandes) sociedades por
acções não trouxe, como consequência, a ‘morte’ da propriedade privada dos meios
de produção nem a sua ‘destruição’ enquanto elemento caracterizador do modo de
produção capitalista. Antes pelo contrário: o desenvolvimento das sociedades por
acções significa o desenvolvimento de uma das leis fundamentais do capitalismo, a
lei da concentração capitalista. Tais sociedades têm-se revelado, efectivamente, um po­
deroso instrumento de centralização de capitais e um meio altamente potenciador da
concentração do poder económico em um número reduzido de grandes empresas e, no
seio destas, em um número reduzido de grandes accionistas.
O fenómeno da dissociação entre a propriedade e o poder tem, assim, o signifi­
cado de uma ‘expropriação’ do grande número de pequenos accionistas (afastados
do poder) por um número restrito de grandes accionistas, nos quais se concentra
todo o poder, acrescentando aos poderes que lhes advêm da sua propriedade aquilo
a que um autor chamou “o poder sobre a propriedade de outrem”.

280 Cfr. BARAN/SWEEZY, últ. ob. c i t , 28 e 43/44.


2 5 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Tal fenómeno não tem, portanto, nada de extravagante na lógica do capitalis­


mo, antes é perfeitamente paralelo ao movimento de ‘monopolização’ ao nível das
empresas, concretizado na ‘expropriação’ ou no ‘domínio’ das pequenas empresas
pelas grandes. Cumpre-se a lógica da acumulação capitalista, não se subverte nem
se anula a importância da propriedade privada dos meios de produção.
O comportamento dos managers é, pois, um comportamento enfeudado à lógica do
capital, não fazendo qualquer sentido falar-se de conflito entre os interesses dos mana­
gers e os interesses dos proprietários (accionistas), conflito em que prevaleceriam os
interesses específicos da tecnostrutura desligada da propriedade dos meios de produção.
A actuação dos gerentes profissionais tem, pois, de entender-se na dinâmica de
um processo de expropriação defacto dos pequenos accionistas em favor dos grandes,
processo que a actuação dos managers favorece objectivamente, abrindo um conflito
que não é, seguramente, entre managers e proprietários (accionistas), mas sim entre
os grandes accionistas (que os managers são ou representam) e os pequenos accionis­
tas, entre aqueles que Joan Robinson281 chama os insiders (grandes accionistas que
controlam a empresa) e os outsiders (pequenos accionistas passivos, proprietários de
acções que consideram apenas como títulos de rendimento).
Diz-se que o gerente (o organization man) pugna mais no sentido de aumentar
os fundos para autofinanciamento da empresa do que os lucros a distribuir pelos
accionistas e conclui-se que esta é uma prova de que os gerentes estão ao serviço
de outros interesses que não os dos proprietários dos meios de produção.
O ra o que acontece é que esse comportamento dos managers acaba por coinci­
dir com os interesses dos grandes accionistas que auferem grossos rendimentos
mesmo com a distribuição de uma pequena percentagem dos lucros e que são os
maiores beneficiários desse aforroforçado imposto aos pequenos accionistas. Dado
o elevado nível dos seus rendimentos, os grandes sempre destinariam a aforro um
montante pelo menos correspondente ao que a sociedade retém, e o aforro organi­
zado pela própria sociedade vai aumentar a cotação das acções (ganho de capital
em regra tributado com taxas mais baixas do que as que incidem sobre os rendi­
mentos recebidos a título de dividendos). Em princípio, só os pequenos accionis­
tas, interessados nas acções apenas como títulos de rendimento, pugnam por elevadas
taxas de dividendos.
Poderá, pois, concluir-se, com Sargant Florence 282 , que “(...) a direcção e a
decisão definitiva acerca das grandes linhas de acção (toppolicy) continuam a per­
tencer, em numerosas sociedades, aos maiores capitalistas detentores de acções’,

281 Cfr. J. ROBINSON, The Accum ulation..., cit., 8.


282 Cfr. S. FLO RENCE, The Lo g ic..., CÍL, 193.
A v ela s N un es - 2 5 9

havendo “razões para acreditar que a revolução dos gerentes não foi tão longe
como por vezes se pensa (ou se afirma sem pensar).”

3. 2. A EXISTÊNCIA DE UM SECTOR PÚBLICO

Vimos já que, mesmo nos países capitalistas, o estado tem sido também em ­
presário.
Em certas condições, o estado adquiriu a propriedade de indústrias ou ramos em
dificuldades financeiras, ou cuja exploração apresenta riscos excessivos ou baixas taxas
de lucro, ou que só dão lucro ao fim de vários anos, ramos pouco atractivos para o
sector privado, mas necessários para o desenvolvimento da produção em geral.
Outras vezes, o estado tornou-se proprietário de empresas fornecedoras de
matérias-primas (sector mineiro, v.g.) ou de serviços diversos (energia, transpor­
tes) de que as grandes empresas privadas são os principais clientes, beneficiando,
enquanto tais, de condições e tarifas particularmente favoráveis. O estado contro­
lou, em alguns países, uma parte importante do sector bancário, embora essa cir­
cunstância não lhe garantisse uma supremacia significativa sobre as grandes empresas
privadas, que recorrem cada vez mais intensamente ao autofinanciamento e se
integram em grupos que contam no seu seio pelo menos um banco e uma compa­
nhia de seguros.
A situação ficou de tal forma clara que os interesses privados - que inicialmente
reagiram contra a intervenção sistemática do estado na economia e contra todas as
formas de propriedade pública - acabaram por aceitar, serenamente, a propriedade
do estado na generalidade dos países capitalistas: “a empresa particular - escreve
Andrew Shonfíeld 283 - acabou por considerar o grandemente reforçado sector pú­
blico menos como um perigoso rival do que como um aliado útil, de facto, quase
como uma garantia - pois era agora tão vasto e maciço que não poderia mover-se na
direcção errada, por um instante sequer, sem fazer encalhar o barco todo.” Ainda
neste aspecto, portanto, a presença do estado na vida económica é considerada como
uma garantia para o sector privado, como um instrumento de racionalidade, não
como actuação orientada para fazer encalhar o barco capitalista.

Cfr. A. SHONFÍELD, Capitalismo Moderno, cit., 224. Em Portugal, durante o debate do Programa do IV Governo
Constitucional, M . jacinto Nunes exprimia esta ideia em discurso na Assembleia da República (dez71978): "As
nacionalizações, a menos que o seu fim seja o estabelecimento de uma direcção central total, destinam-se a
coordenar e dirigir, com o mínimo de burocracia, as actividades para as quais a iniciativa privada é inadequada
ou politicamente perigosa. Mas não devem ser uma sanção ou uma espoliação. É uma das técnicas de controlo
da economia e uma 'última ratio' em relação ao poder económico quando o poder politico não consegue
dominá-lo por outros meios'.
2 6 0 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

A propriedade estadual dos meios de produção será, pois, apenas uma nova (e a
mais recente) forma jurídica da propriedade capitalista, a par da propriedade indivi­
dual e da propriedade corporativa (sociedades por acções), deixando inalterada a
natureza capitalista da propriedade de um estado que, nas palavras de François
Perroux 284, “nunca é neutro”, antes é a “expressão das classes dominantes”, de um
estado “largamente dependente do capitalismo dos monopólios”, de um estado
que, “nas democracias ocidentais, não é certamente independente dos grandes inte­
resses: estes assediam-no e ocupam-no mesmo”.

3. 3. A PLANIFICAÇÃO NOS PAÍSES DE ECONOMIA CAPITALISTA

a) A planificação' ao nível das grandes empresasprivadas


A coerência e o significado da planificação estadual nas economias capitalistas
só se compreenderão inteiramente depois de se explicarem as razões que levaram
as grandes empresas a planificar a sua actividade antes mesmo de os estados capi­
talistas planificarem a sua intervenção na esfera económica.
A reacção contra a própria palavra ‘planificação’ perdeu força quando a utiliza­
ção de novas tecnologias altamente evoluídas e dispendiosas (só viáveis para eleva­
dos volumes de produção) e a consequente necessidade de tempo e de capital forçaram
a grande indústria a planificar a sua actividade. Só então a planificação adquiriu,
em determinados meios, um certo grau de respeitabilidade.
Enquanto o estado da técnica e a situação geral do capitalismo se revelaram
compatíveis com a existência de numerosas empresas relativamente pequenas em
cada ramo industrial, o mecanismo dos preços e a regulação ex post pelo mercado
entendiam-se suficientes para assegurar a conveniente satisfação das necessidades
dos consumidores, para prover as empresas da mão-de-obra, das matérias-primas
e dos equipamentos necessários à produção e para lhes permitir, sem grandes
riscos, a venda dos produtos fabricados. Quando esse processo deixou de ser segu­
ro, surgiu a planificação como necessidade imposta às empresas pelo próprio de­
senvolvimento do capitalismo.285
A evolução tecnológica passou a exigir investimentos cada vez mais vultuosos e a
obrigar as empresas a antecipar de meses ou de anos as previsões acerca do compor­
tamento da procura - o que, para além do risco maior, obriga a efectuar avultadas
despesas preparatórias dos próprios investimentos. Trata-se dos estudos de prospec­
ção de mercados (internos e externos), da elaboração de protótipos, da previsão

284 Cfr. F. PERRO UX, Léconom ie..., d t , 378 e 382.


285 Sobre a problemática da "planificação industrial", cfr. J. K. GALBRAITH, The N ew Industrial..., cit., especial­
mente o cap. Ill, 22ss.
A vel A s N u n es - 2 6 1

acerca da rentabilidade do investimento projectado, da localização das unidades de


produção, da análise da situação no que toca à existência das matérias-primas ne­
cessárias, da mão-de-obra especializada e das disponibilidades financeiras (a obter
por autofinanciamento ou mediante recurso ao crédito) requeridas para financiar o
empreendimento durante o período (longo, bastante longo, por vezes) que medeia
entre o início das despesas e a percepção dos lucros. Trata-se, depois de iniciado o
processo produtivo, de assegurar a sua execução e de organizar os circuitos de distri­
buição de modo a garantir o conveniente escoamento da produção.
Já se vê que estas exigências só podem ser satisfeitas por grandes empresas, o
que permite compreender como a evolução das técnicas de produção fez, a certa
altura, ‘rebentar’ os quadros do capitalismo atomístico assente numa multidão de
pequenas empresas, para abrir caminho à concentração do poder económico num
pequeno número de grandes empresas, características do capitalismo monopolista.
A evolução tecnológica foi, pois, a causa primeira da introdução da planificação
económica ao nível das grandes empresas. Com o salienta Galbraith 286, “the plan-
ning itself, is inherent in the industrial system”. E os planos das empresas visam,
sem dúvida, reduzir ao mínimo a incerteza e as suas consequências: “a planificação
- escreve o economista americano 287 - consiste na previsão das acções exigidas
entre o início e o termo da produção e na preparação para levar a cabo essas
acções. Consiste também na previsão e na organização de medidas para enfrentar
quaisquer ocorrências não programadas, favoráveis ou não, que possam acontecer
ao longo do processo”.
Mas a evolução tecnológica foi também um poderoso factor de concentração e
de centralização do capital. E a verdade é que a planificação económica das em ­
presas capitalistas só foi ‘exigida’ quando se chegou ao estádio do capitalismo
monopolista, como também é verdade que só poderosas empresas, que gozem de
um poder de monopólio mais ou menos acentuado, estão em condições de elabo­
rar planos que lhes ofereçam boas perspectivas de ser realizados.
Só as empresas ‘monopolistas’ (em razão do seu pequeno número e da sua
grande dimensão) podem aspirar, com efeito, a controlar o mercado, e o controlo
do mercado (até à destruição da sua lógica) é, no fundo, uma das faces da planifi­
cação levada a efeito por essas empresas. “Estas devem substituir o mercado pelo
plano”, escreve G albraith288 - no sentido de que o plano das empresas deve subs­
tituir o mecanismo dos preços (como mecanismo determinante dos bens e das

Cfr. J. K. G A LB R A ITH , Oil. ob. a t , 197.


Cfr. J. K. G A LBRATH , ult. ob. cit., 25.
Cfr. J. K. G A LB R A ITH , ult. ob. cit., 24-26.
2 6 2 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

quantidades a produzir e dos preços de venda) pela fixação prévia, por parte das
empresas, dos bens e das quantidades a produzir, c dos preços a pagar pelos
consumidores. Esta a explicação dada pelo próprio Galbraith: “uma empresa não
pode, utilmente, prever e programar a acção futura ou preparar-se para as contin­
gências se não souber quais serão os seus preços e as suas vendas, assim como os
seus custos, inclusive os custos do trabalho e do capital e se não souber o que
estará disponível a esses custos. Se o mercado é inseguro, não poderá conhecer
esses dados. E não poderá, por isso, estabelecer os seus planos (...), a menos que o
mercado também ceda ante a planificação. M uito daquilo que a empresa considera
como planificação consiste em tornar mínimas ou em fazer desaparecer as influên­
cias do mercado”.
Através de acordos (expressos ou tácitos, mas igualmente eficientes), as empre­
sas ‘monopolistas’ controlam os preços que impõem aos consumidores. Assim evi­
tam as flutuações derivadas de variações da oferta e da procura, sendo certo que a
estabilidade dos preços é um elemento importante para se poder planificar com
segurança. Através do controlo da utilização das patentes de invenção, através da
publicidade e das técnicas de vendas, as empresas monopolistas conseguem colo­
car no mercado a espécie de produtos que mais lhes interessa produzir e nas
quantidades mais convenientes.
Nos primeiros tempos do capitalismo industrial, o lucro das empresas derivava
do nível dos custos que cada uma delas conseguia, em confronto com o preço que
se fixava no mercado por força do jogo da oferta e da procura e da concorrência
que entre elas se estabelecia. Uma vez atingida a fase do capitalismo monopolista,
os consumidores (o ‘mercado’) passaram a ser comandados pelos planos das gran­
des empresas monopolistas e a planificação transformou-se em instrumento ne­
cessário da prossecução dos objectivos próprios das empresas capitalistas.
b) Osprimórdios da planificaçãopública
Se a planificação levada a efeito pelas grandes empresas que controlam os
sectores altamente concentrados da economia é uma característica fundamental do
capitalismo na sua fase monopolista, a planificação levada a efeito pelos estados
capitalistas é, sem dúvida, o ponto mais alto e mais acabado da intervenção do
estado tal como ela se processou (por força de exigências resultantes da própria
evolução do capitalismo e da sua salvaguarda), particularmente a partir da Primei­
ra Grande Guerra.
De início, porém, assim como a concentração foi combatida e negada durante
muitos anos, em razão da paternidade marxista da respectiva teoria e em homena­
gem às virtudes do capitalismo de concorrência (identificado com o próprio capi­
talismo), assim também a planificação foi proscrita nos países capitalistas, por se
A v elã s N un es - 2 6 3

entender que planificação significava socialismo, e por se julgar a sua prática in­
compatível com a liberdade de empresa, considerada esta como ponto fundamental
da ‘filosofia’ inspiradora do capitalismo.
Esta era, contudo, uma atitude ‘idealista’, que não resistiria à prova dos factos.
A partir da última década do séc. XIX, o movimento de concentração acelerou-se,
nos termos e por força dos factores que atrás referimos. Neste quadro, a expansão
colonial suscitou a primeira reflexão de conjunto acerca do apoio que o estado
podia prestar ao grande capital privado.
Com a Guerra de 1914-18, as múltiplas intervenções do estado na vida econó­
mica passam a tomar uma forma global, e a necessidade de ‘planificar’a interven­
ção do estado faz-se sentir, principalmente na Rússia e na Alemanha. N o contexto
de uma economia militarizada, a planificação consiste então, fundamentalmente,
em repartir concertadamente entre os principais ‘monopólios’ as matérias-primas
e os recursos disponíveis, bem como as encomendas do estado. A guerra ‘empur­
rou’ definitivamente o estado para o campo da economia, exigindo do estado novas
e múltiplas formas de presença e intervenção na ordem económica para poder
preencher a sua função nos quadros do sistema. As dificuldades que o capitalismo
vinha experimentando, bem como a complexidade e a importância das interven­
ções estaduais, impunham que o sector privado (altamente ‘monopolizado’) e o
estado concertassem as suas actuações e que o estado planificasse as suas políticas, em
articulação com grandes empresas, obrigadas a planificar a sua própria actividade,
à medida que progredia a tecnologia e a concentração do capital. Falam alguns de
administração concertada e de economia concertada.
E é claro que a situação real do capitalismo não escapava aos autores mais
lúcidos, empenhados em o salvar. Em 1926, escrevendo sobre as crises do capita­
lismo, Keynes defendia: que “a cura para estas questões deve ser procurada, em
parte, no controlo deliberado da moeda e do crédito por uma instituição centrale, em
parte, na compilação e divulgação, em larga escala, de dados relativos à situação
dos negócios (...). Estas medidas - continua Keynes - envolveriam a sociedade no
exercício de uma inteligência directiva, através de um apropriado órgão de acção
sobre muitas das complexidades intrínsecas dos negócios privados, mas que, entre­
tanto, deixaria a iniciativa e as empresasprivadas livres de obstáculos”
A crise económica que nos anos trinta quase prostrou o capitalismo levou os
vários governos a lançar mão de todos os meios de salvação, entre eles a planifica­
ção. Na França, surgem o Plano Tardieu (1929) e o Plano Marquet (1934). Na
Itália, foi apresentado o plano de secagem dos pântanos da planície aluvial do

289 cfr. J. M. KEYNES, The End. .., c it , 47/48 ISublinhados nossos).


2 6 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o lít ic a

Tibre. Nos EUA, o N ew Deallançaria, em 1933, o Tenessee ValleyAuthority, vasto


plano de desenvolvimento agrícola e industrial do vale do Tenessee. Na Alema­
nha, com a subida do nazismo ao poder, acelerou-se a cartelização obrigatória (tal
como na Itália de Mussolini) e a regulamentação da economia foi confiada ao
Ministério da Economia (1934) e, depois de 1936, a um gabinete chefiado por
Goering, encarregado da elaboração do Plano de Quatro Anos (o primeiro plano
público de alcance nacional concebido para uma economia capitalista).
Pode dizer-se, em geral, que todas as experiências corporativas posteriores aos
anos 1930, reunindo no seio de organismos profissionais de constituição obrigató­
ria representantes patronais e trabalhadores de cada profissão (muitas vezes na
companhia de um representante do estado) e atribuindo às profissões organizadas
um poder regulamentar, representam a ambição de coordenar uma economia es­
sencialmente concentrada e de harmonizar os interesses de grupos animados por
tendências monopolísticas. Aos organismos profissionais (corporações) era atribuí­
da não só a função de decidir da orientação da economia (e em alguns casos a
produção foi submetida a um regime rigoroso de disciplina e de organização), mas
ainda a de determinar o nível dos preços e dos rendimentos, assim se chegando a
uma espécie de planificação corporativa.™
Apesar de tudo isto, Jean Rom euf pôde escrever que “em 1939, os nossos ma­
nuais de economia política ignoravam ainda deliberadamente a existência de uma
ciência da planificação, e só alguns especialistas conheciam os nomes, e mais
raramente as obras, dos peritos soviéticos da planificação”.291
Nem por isso a evolução do capitalismo deixava de se verificar. A eclosão
da Segunda G uerra M undial haveria de marcar, tam bém neste aspecto, um
passo decisivo.
O progresso tecnológico e a concentração capitalista aceleraram-se.
Em vários países capitalistas o surto de nacionalizações, executadas por pres­
são das forças da Resistência, levou à constituição de sectores empresariais públi­
cos relativamente importantes, a justificar e a exigir que o estado planificasse a sua
actividade como produtor.
As necessidades de reconstrução levaram à elaboração de planos nacionais de
reconstrução e desenvolvimento (por exemplo, na França, na Itália, na Holanda).
A pressão do capitalismo americano, embalado pela produção de guerra, as neces­
sidades dos países capitalistas da Europa destruídos pelos bombardeamentos e as
exigências da guerra fria explicam a elaboração do Plano Marshall, administrado

290 Cfr. A. M ARCHAL, Sistemas.. d t , 221 -225.


291 Cfr. |. ROMEUF, ob. cH., 55.
A v elã s N u n es - 2 6 5

pela Organização Europeia de Cooperação Económica (O .E.C .E.) no quadro


europeu, mas exigindo dos países beneficiários a elaboração e a coordenação de
projectos de aplicação dos fundos (uma espécie de planificação).
Depois, o desenvolvimento do comércio internacional, a importância crescente
das exportações para assegurar o desenvolvimento económico, a internacionaliza­
ção da presença dos grandes monopólios - tudo obrigou à intervenção planificada
do estado, no sentido de efectuar previsões, de recolher e organizar informações,
de modo a complementar a programação privada, em correspondência com as
exigências da nova dimensão da economia. Por outro lado, a competição entre o
capitalismo e o socialismo activou-se e o êxito dos planos quinquenais soviéticos
não deixou de pesar no convencimento dos países capitalistas a adoptarem também
a sua planificação.
c) O significado daplanificação indicativa
A planificação levada a efeito pelos estados dos países capitalistas explica-se,
no fundo, pela mesma lógica, atrás exposta, que levou as grandes empresas a pla­
nificar as suas actividades, tentando reduzir as incertezas do mercado, destruindo-
o como mecanismo de direcção e comando da economia.
Com o progresso técnico, foi aumentando a dimensão das empresas dominantes,
aumentando do mesmo passo as exigências da produção em massa: maiores somas
de capitais, recursos técnicos mais sofisticados, matérias-primas mais diversificadas,
mão-de-obra mais qualificada, mercados mais vastos. O que significa maiores in­
certezas, que obrigam a uma planificação mais cuidada e a prazos mais longos.
O carácter social da produção e das forças produtivas foi-se acentuando. As empre­
sas e mesmo os sectores de actividade económica tomam-se cada vez mais interdepen­
dentes, a tal ponto que começa a ficar clara a necessidade de ‘organizar’, de ‘concertar’
a economia. Ao fim e ao cabo, tratava-se de ‘concertar’entre si os ‘planos’dos grandes
grupos ‘monopolistas’, até porque a ‘planificação’ ao nível das empresas exige uma
certa ‘coerência’ entre os vários sectores de actividade, isto é, exige uma certa ‘coorde­
nação’ou ‘planificação’ da economia nacional no seu conjunto.
Toda a intervenção do estado nas economias capitalistas adquire em regra um
sentido em larga medida coincidente com os objectivos da ‘planificação’ e do ‘con­
trolo’ do mercado pelas grandes empresas. Com efeito, certas medidas que os
estados adoptam vêm frequentemente contribuir (directamente ou através da acção
sobre os custos) para que as empresas ‘monopolistas’ possam praticar preços fixa­
dos à margem das condições que seriam ditadas pelo jogo da oferta e da procura.
Lembre-se, a título de exemplo, a actuação do estado na orientação da política de
salários; na fixação das taxas de juro; na concessão de subvenções e benefícios (ou
isenções) fiscais; na fixação de tarifas preferenciais por parte das empresas e servi­
2 6 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

ços públicos (de que beneficiam cm maior medida os principais clientes - as gran­
des empresas privadas); na organização de esquemas de crédito e de seguro de
crédito à exportação; na concessão de subsídios às empresas exportadoras e no
estabelecimento de direitos alfandegários protectores; no financiamento da inves­
tigação, quer seja realizada em centros públicos quer nas empresas privadas, etc.
O progresso técnico tem que ver com o processo da planificação económica. E,
como salienta François Perroux, o progresso técnico “já não é entendido como uma
variável que seria subtraída à decisão dos poderes públicos: estes estimulam a
investigação fundamental e aplicada; formam investigadores e trabalhadores qua­
lificados; dedicam-se a prever, por mais imperfeitamente que seja, as grandes va­
gas de transformações técnicas, a tornar mais curtos os períodos que separam a
invenção da aplicação experimental e do uso generalizado na indústria. Tendo em
conta a natureza de alguns grandes progressos do séc. XX, na exploração das novas
energias, por exemplo, a acção directa dos poderes públicos é insubstituível; ela
desdobra-se em subvenções, em participação nos riscos e no financiamento da
inovação das empresas privadas e dos seus grupos”.
O estado actua, por outro lado, no sentido de reduzir as dificuldades e incerte­
zas da própria planificação das empresas, reunindo e divulgando informações292;
actuando sobre as taxas de crescimento da população e sobre a percentagem da
população activa em relação à população total; promovendo a adequada prepara­
ção de mão-de-obra e intervindo para assegurar a sua conveniente distribuição
pelos vários ramos de actividade; procurando assegurar a necessária coerência no
desenvolvimento das chamadas infra-estruturas sociais (planos de urbanização,
parques industriais, estradas, portos, vias férreas, etc.).
Neste contexto, a intervenção do estado na ordem económica torna-se um
elemento essencial para que possa prosseguir-se a lógica do modo de produção
capitalista. Naqueles sectores do “sistema industrial” onde a tecnologia avançada,
com uma investigação e exploração demoradas, acarreta para as empresas a neces­
sidade de suportar um período de produção muito longo e um vultuoso investi­
mento de capitais, é necessária a intervenção do estado em larga escala para
estabelecer os preços e garantir a procura, ‘suspendendo’ assim o funcionamento
do mercado e eliminando a sua incerteza: “o estado - escreve Galbraith 293 -
garante um preço mínimo com uma margem conveniente para cobrir os custos. E

292 Acerca da importância económica da informação no mundo actual, ver F. PERROUX, "Le Q u a triè m e .c it.,
4* parte. L'information économique, 347ss.
293 Cfr. |. K. GAI BRAITH, The N ew Industrial. .., cit., 31.
A v e ià s N u n e s - 2 6 7

compromete-se a adquirir o que for produzido ou a compensar integralmente a


empresa em caso de cancelamento do contrato”.
E compreende-se que este complexo esquema de intervenção do estado careça
de ser ele próprio coordenado, ‘planificado’, até para que as empresas fiquem a
saber com mais segurança aquilo com que podem contar. Daí a planificação publica
da economia. Daí também que, continuando a citar G albraith,“a economia inteira­
mente planificada, longe de ser impopular, é carinhosamente encarada por aqueles
que melhor a conhecem”.294
Foram as pequenas empresas, mais ou menos condenadas pela lógica da con­
centração monopolista, as que mais protestaram contra os ‘abusos’da intervenção
do estado, porque esta não se desenvolve ao sabor dos seus interesses. É que o
estado intervém a ‘planificar’uma economia já de certo modo planificada ao nível
das grandes empresas (que controlam os sectores mais importantes da actividade
económica), e não admira, por isso, que a planificação pública se traduza numa
tentativa de tornar coerentes entre si os planos dos grandes grupos monopolistas,
limando as dificuldades que possam resultar da concorrência entre eles e conju­
gando-os, numa base ‘realista’, com as possibilidades de intervenção e de apoio do
estado. Fala-se, a este propósito, de economia contratual para significar a existência
de um sistema de compromissos colectivos entre os vários grupos monopolistas e
entre estes e o estado, assentes em princípios de boa fé idênticos aos que regulam
as relações contratuais privadas (do ponto da vista da administração pública, fala-
se de administração contratual), algo que vai além do mero diálogo entre o sector
privado e o estado, que caracterizaria a economia concertadaPs
No quadro da planificação levada a cabo pelo estado capitalista, “o plano é
antes de mais uma informação sobre o possível”, desempenhando, “no domínio
económico, o mesmo papel de um mapa de estradas no domínio dos transpor­
tes”.296 Os empresários recorrerão ou não a esse mapa, conforme o seu interesse. A
razão parece estar, pois, do lado dos que entenderam que “esta ingerência do esta­
do na vida económica conduz a subtrair, primeiro os indivíduos e depois as empre­

294 "Quando Sehvyn lloyd (ministro das Finanças conservador) entrou no Governo, já defendia que uma planifi­
cação das despesas a longo prazo era, como outras coisas em que ele acreditava, algo que relevava do senso
comum". Assim se exprime Samuel Briitan (apue/ E. MANDEL, Lc TroisiémeÂge..., cit., 3,207/208), que explica
ter sido na Conferência organizada em Brighton pela Federaçáo das Indústrias Britânicas (Novembro/l 960)
que se traçaram os planos para relançar a indústria britânica nos cinco anos seguintes. D aí saiu a ideia de que
"valia a pena reunir as previsões e os planos com base nos quais as empresas vinham já trabalhando, cada uma
por si, para ver se todos eram compatíveis".
295 Cfr. J.-P. CO U RTHÉO UX, "Problèmes..., cit., 795.
2% Cfr. FO URASTIÉ/CO URTH ÉO UX, ia phnification .. . , cit., 40.
2 6 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

sas, a certos riscos. Economicamente falando, esta atitude identifica-se com um


principio de segurança [sublinhado nosso].”297 Andrevv Shonfield sabe do que fala
quando afirma que “as grandes sociedades anónimas estão interessadas na planifi­
cação como um meio de reduzir as incertezas do investimento e de realizar o
desenvolvimento ordenado dos seus mercados.”298
Manuel Jacinto Nunes resume assim o essencial deste ponto299:
“o plano indica aos produtores as condições indispensáveis para que os seus
objectivos particulares sejam compatíveis entre si. A o m esmo tem po, procura
assegurar por meios indirectos a realização das finalidades desejáveis do ponto
de vista nacional. O plano não se apresenta portanto como rival d o lucro, mas
sim como instrum ento da sua realização, pelo esforço de eliminação dos riscos
da incoerência dos planos individuais c pelas ajudas, financeira e da outra natu­
reza, que os poderes públicos proporcionam às empresas cujos projectos se
integram nos objectivos do plano. O plano funciona, na expressão de Pierre
M assé, com o um redutor de incerteza [sublinhado nosso]".

Tem razão, a nosso ver, todos os que entendem que é esta a verdadeira natureza
da ‘planificação’ levada a cabo pelos estados capitalistas: em relação às grandes
empresas, funciona como uma garantia de segurança, serve-lhes como um largo
estudo do mercado, esforçando-se por evitar ‘engarrafamentos’da produção e duplos
empregos e procurando conciliar os antagonismos porventura existentes entre grupos
capitalistas rivais, ao mesmo tempo que salvaguarda a liberdade das empresas em
matéria de investimentos e de orientação da produção.
O poder dessas grandes empresas sobre os órgãos de planificação é de tal
ordem, que François Perroux pôde escrever que “nas estruturas actuais, a moeda e
o Plano são a favor das unidades de produção e dos grupos económicos e financei­
ros mais poderosos”.300 E Shonfield afirma sem rodeios que “o Plano (francês)
reflecte, em grande parte, as suas ideias [as ideias das grandes sociedades anóni­
mas] ou, pelo menos, um compromisso entre os seus desejos e os dos funcionários
responsáveis pela política económica do Governo”, acrescentando que os funcio­
nários “provenientes do ministério de tutela de um determinado ramo de comércio
ou indústria actuam, com bastante frequência, como se fossem, em certo sentido,
os representantes desses interesses sectoriais, em vez de funcionários nomeados
para exercer vigilância sobre os mesmos, em nome do interesse público.” E con­
clui: “não há dúvida de que a actividade da planificação, tal como se pratica na

297 Ugo Papi, citado por E. M A N D EI, Trailé. .., cit., III, 206.
298 Cfr. A. SHON FIELD, ob. cit., 139.
299 Cfr. M. JACINTO NUNES, "A lógica.. c i l, 26.
300 Cfr. F. PERROUX, "tequatrième P la n ...,c it., 8.
A v elã s N un es - 2 6 9

França, reforçou a influência sistemática exercida pelos grandes grupos de interes­


ses (“large-scale business”) sobre a política económica”.301
Referindo-se, em geral, à planificação tal como foi sendo praticada na Europa
Ocidental do após-guerra, Shonfíeld escreve que “os principais grupos de interes­
ses são reunidos e encorajados a concluírem uma série de negociações sobre o seu
futuro comportamento, o que terá como efeito a progressão dos eventos económi­
cos pelos rumos desejados. O plano - conclui o professor de Londres - indica a
direcção geral em que os grupos de interesses, incluindo o estado nas suas diversas
vestes económicas, concordaram que queriam seguir”.302
Pelo que toca a Portugal, é F. Pereira de Moura quem afirma que “a ‘audiência
dos interessados’ nos trabalhos do planeamento industrial português reduz-se, en­
tre nós, à prestação de informações pelas empresas e, em certos casos, ao aprovei­
tamento dos mecanismos do plano para a defesa de posições particulares”,
concluindo pela existência de uma “espécie de ‘conluio’ tácito entre políticos, em ­
presários e técnicos, que transforma o Plano e o planeamento quase que numa
frustração para a generalidade dos portugueses”.303

a) Planificação indicativa eplanificação imperativa


Do que não há dúvida é de que a planificação se tornou prática corrente nos países
capitalistas (consagrada mesmo em alguns textos constitucionais), tendo deixado de
questionar-se a sua necessidade, como cúpula da intervenção do estado, tal como ela
se processou no capitalismo posterior à Segunda Guerra Mundial.
A problemática da planificação ganhou relevo no conjunto dos temas da ideolo­
gia económica. Passou a ser ‘útil’ afirmar que o sistema é planificado e que o estado,
actuando como representante dos interesses da colectividade, organiza não apenas a
vida económica, mas toda a estrutura social. O mito da planificação transformou-se,
a certa altura, num dos pontos de apoio de um certo cientismo, típico da mentalidade
tecnocrática característica da filosofia política do capitalismo contemporâneo. A téc­
nica da planificação passou a andar associada à ideia de que a colectividade pode
organizar projectos razoáveis e realistas e promover o desenvolvimento, mediante a
actuação do estado, desde que nesse sentido se mobilizem bons técnicos, se disponha
de um bom governo c se organize uma boa administração. O desenvolvimento é assim
apresentado como um problema técnico, e a planificação apontada como um instru­
mento técnico indispensável ao serviço do desenvolvimento.

301 Cfr. A. SHO N FÍELD, Capitalismo Moderno, cit., 139.


302 Cfr. A. SH O N FÍELD , últ. ob. cit., 231.
303 Cft F. P. M OURA, 'A s indústrias.. d l , 62.
2 7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

De planificação indicativa falam os autores, para significar que ela não pode aspi­
rar a ser um instrumento imperativo de direcção do processo económico. Em siste­
ma capitalista, o estado não pode impor os seus planos, não pode pôr em causa os
direitos que derivam da propriedade privada, nomeadamente a liberdade de empresa.
Mas o estado dispõe de meios indirectos que lhe permitem influenciar (condicio­
nar) o comportamento das (grandes) empresas privadas de modo a conseguir al­
cançar os objectivos planificados. Não dispõe do chicote, mas dispõe da cenoura:
através da disciplina jurídica da economia o estado consegue que o sector privado
actue em conformidade com o previsto no plano (as empresas que o fizerem bene­
ficiarão de isenções fiscais, de crédito bonificado, de seguro de crédito à exporta­
ção, de subsídios a fundo perdido, de programas de construção de infra-estruturas
ou de formação de mão-de-obra, etc.).
Por outro lado, nos países de economia capitalista a planificação pública tem de
operar dentro dos limites e da lógica do próprio sistema, o que significa que ela só
terá viabilidade de execução se for ‘realista’e só será ‘realista’ se respeitar e favorecer
os interesses dos grandes grupos monopolistas304, se, de uma forma ou de outra, criar
condições mais favoráveis de lucro e de segurança naqueles sectores ou naquelas
regiões onde pretende incrementar os investimentos.
Mas a planificação, a existência de um plano imperativo é, por sua vez, conside­
rada pela generalidade dos autores como um elemento essencial do socialismo.305
Nesta qualidade, a planificação “expressa o facto de que a economia socialista não
se desenvolve de um modo elementar, antes é dirigida e orientada conscientemente
pela sociedade. A planificação - escreve Oskar Lange306 - é um meio para subme­
ter a actuação das leis económicas e o desenvolvimento económico da sociedade à
vontade humana”.

304 Alguns autores sustentam que, para o planeamento ser eficaz, a distribuição da produção na i ndústria deve ser de
tal ordem que cerca de 80% da produção provenham de 20% das empresas, considerando impossível a direcção
da economia quando 60% da produção couber a 40% das empresas (cfr. A. SHON FIELD, «í/t ob. c/f., 138). A
planificação (pública ou privada) não teria sido possível em economias capitalistas cuja estrutura econômica
assentasse em uma multidão de pequenas e médias empresas. A planificação nos países de economia capita­
lista não foi uma opção livre de polfticos ou de economistas, foi uma 'exigência' da concentração monopolista.
305 Marx, fiel à sua ideia de não fazer a cozinha do futuro, não aborda sistematicamente a problemática do plano,
embora surja na sua obra um ou outro afloramento. Em dado passo, caracteriza a sociedade socialista como
"uma reunião de homens livres, que trabalham com meios de produção comuns e despendem, segundo um
plano concertado, as suas numerosas forças individuais como uma única e a mesma força de trabalho social"
(cfr. Livro 1,1'Secção, Capítulo I de Le Capital, Ed. M. Rubel, cit., 1,613). Engels, talvez de forma mais explícita,
se refere que, na sociedade socialista, "a anarquia no interior da produção social é substituída pela organização
consciente e planificada", tornando-se possível "uma produção social de acordo com um plano pré-estabele-
cido". Cfr. “ Do socialismo utópico..., cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. c it , III, 165 e 167.
306 Cfr. O . LANCE, A economia. . ., c it , 37.
A v elã s N u n e s - 2 7 1

Para cumprir a sua função de direcção consciente da economia, o plano deve


ser imperativo para todas as actividades de produção e deve dispor dos meios
capazes de determinar o ritmo de crescimento e a orientação do desenvolvimento.
Todas as unidades de produção são obrigadas legalmente a cumprir o plano (ha­
vendo sanções para o não-cumprimento), e o plano deve estabelecer qual a parte
do rendimento da colectividade que irá ser destinada ao consumo e a parte a
aforrar, bem como o destino a dar ao aforro em investimentos nos vários sectores
da produção (v.g. na produção de bens de produção ou na produção de bens de
consumo), sectores cuja actividade o plano deve coordenar de modo a eliminar os
‘estrangulamentos’ e a fazer corresponder o poder de compra da colectividade à
produção de bens que hão-de ser destinados ao consumo privado (com vista a
afastar os riscos de inflação).
À luz destas características da planificação socialista, poderá afirmar-se que as
reformas económicas introduzidas nos países da Europa de Leste e na URSS a
partir de 1965 não vieram pô-las em causa e não alteraram - ao contrário do que
afirmam alguns autores307 - o significado da planificação em regime socialista.
Abandonaram-se as práticas da planificação quantitativa, julgada tecnicamente ina­
dequada perante a realidade, por dificultar a cabal mobilização de todos os recur­
sos, prejudicar o progresso técnico e provocar desperdícios e estrangulamentos na
produção. Organizou-se um novo sistema de indicadores de êxito, passando a
aferir-se o cumprimento do plano, fundamentalmente, pelos resultados úteis da
exploração, pelo ‘lucro’, hocsensu (para cumprir o plano, não bastava produzir, era
necessário vender a produção realizada de acordo com o plano). Concedeu-se
maior margem de liberdade às unidades de produção, para que pudessem criar
condições de custos mais baixos e produzir os bens correspondentes às necessida­
des efectivas da comunidade.
Estas alterações - muito esquematicamente apontadas - não puseram em causa,
a nosso ver, a essência dos planos socialistas. O carácter social da propriedade dos
meios de produção não foi posto em causa, nem o estado abandonou a sua vontade
de planificar a produção e o desenvolvimento económico. O princípio da planifi­
cação centralizada conservou toda a sua força, continuando o estado senhor da
política económica geral, cabendo-lhe determinar as proporções macroeconômi­
cas essenciais da economia (v.g. planificação dos investimentos e determinação
dos objectivos de produção fundamentais) e determinar ainda a política de desen­
volvimento científico e tecnológico, a política dos salários, a política dos preços.

307 Para maiores desenvolvimentos sobre a discussão deste ponto, cfr. A. J. AVELÃS NUNES, "Alguns aspectos...,
cit., 36ss.
2 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o iít ic a

A autonomia concedida às unidades de produção e a fuga à planificação dema­


siado pormenorizada não significou a restauração da propriedade privada dos meios
de produção, nem da apropriação privada do sobreproduto social, nem sequer a
atribuição a entidades privadas do poder de decidir acerca da utilização deste
sobreproduto. Todos estes atributos continuaram a caber ao estado socialista.
A adopção do lucro como índice de cumprimento do plano não equivaleu à res­
tauração do lucro, enquanto rendimento capitalista privado, sem relação com o
trabalho. O lucro não passou a ser o ‘motor’ da actividade económica, pois a
obrigação c o objectivo principal das unidades de produção continuou a ser a
realização das metas definidas no plano central.308
Do mesmo modo, a autonomia (relativa) concedida às empresas socialistas não
as subtraiu aos comandos imperativos do plano central, visando tão só criar-lhes
condições mais favoráveis à prossecução dos objectivos últimos da planificação soci­
alista: racionalização da produção e sua adequação às necessidades da comunidade.
Tanto bastará para se poder concluir que as reformas operadas nos países socia­
listas da Europa não poderiam legitimar a conclusão dos defensores da convergência
dos sistemas de que tanto o Ocidente como a União Soviética tinham superado o
estádio da economia de mercado, adoptando ambos os sistemas um tipo comum de
planificação, marcado por um poder crescente das empresas produtoras.
E é claro, finalmente, que a planificação pública levada a efeito nos países
capitalistas não poderá considerar-se como um elemento de socialismo. É bom não
se esquecer a prevenção de Pigou de que economia socialista e economia planificada
não são uma e a mesma coisa, acrescentando: “H á várias espécies possíveis de
economia planificada. Podemos, por exemplo, imaginar um pequeno grupo aristo­
crático que domine uma comunidade de escravos e planifique a indústria do país
exclusivamente no seu próprio interesse, sem em nada atender ao dos escravos.
Ninguém chamaria a isso socialismo.”309

308 "O uso do lucro - escreve M. KAYSER, em PRO BLEM I.. cit., 95 - é dirigido a melhorar a conformidade com
as determinações centrais essenciais, nâo a desviar-se delas, embora se possa observar uma certa flexibilidade
na escolha da direcção."
309 Cír. A. C. P IC O U , ob. cit., 8.
A v elã s N u n e s - 2 7 3

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PARTE II

H is t ó r ia

da C iê n c ia E c o n ó m ic a .

O P en sa m en to

E c o n ó m ic o
2 8 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l Itic a

N o ta P r é v ia

Breves considerações para apontar o sentido com que é aqui encarada esta
história sumária da ciência económica e do pensamento económico.
As ideias e as teorias têm uma história. Surgem em determinada época, reflec­
tindo, em certa medida, as históricas condições materiais da vida das comunidades
humanas e sofrendo a influência da Weltanschauung dos autores que lhes dão cor­
po. As ideias e as teorias económicas não fogem a este princípio. E parece-nos
importante mostrar isto mesmo aos alunos de uma disciplina com as característi­
cas desta nossa.
Sem dúvida que algumas das questões que se levantaram nos primeiros tempos
da ciência económica continuam actuais nos nossos dias: v.g. o aparecimento, a
natureza e a importância do excedente social; a origem da riqueza individual -
nomeadamente a origem, significado e justificação do lucro - e as causas da rique­
za das nações, i.é, os mecanismos do desenvolvimento económico; o problema das
crises; o problema dos preços das mercadorias; o problema da moeda; a questão
da justiça social e tantas outras. Cremos que é particularmente enriquecedora a
tentativa de explicar por que variam, de época para época, as respostas a estas (e a
outras) questões.
M as também é verdade que, ao longo dos dois séculos da ciência económica,
novos problemas foram surgindo, variando de geração para geração, ao mesmo
tempo que variam os temas nucleares dos grandes debates políticos e doutrinais
nos quais se insere a evolução da ciência económica e do pensamento económico.
“A economia de épocas diferentes - salienta Schumpeter - trata cm grande medida
conjuntos diferentes de factos e problemas”. Talvez porque, como M arx observou,
os homens só colocam, em cada período histórico, os problemas que estão em
condições de resolver. N o presente capítulo procuraremos igualmente deixar claro
este ponto de vista.
Considerando que o objecto de estudo da economia política é “um processo
histórico continuado” (Schumpeter), compreende-se que se atribua ao estudo da
sua própria história uma importância relevante, o que aproxima muito mais a
nossa disciplina da arte ou da filosofia do que das ciências da natureza. “A teoria
económica contemporânea - escreve M ark Blaug - (...) só pode ser compreendida
como uma herança do passado”. O progresso científico não significa, no que se
refere à economia política, que as ideias e as teorias do passado se convertam,
necessariamente, em meras peças ‘arqueológicas.
A v elã s N u n es - 2 8 3

Estudar a história da ciência económica e do pensamento económico não é


fazer arqueologia, é apenas lançar as bases indispensáveis para se poderem com­
preender as teorias e as concepções do presente. Seguimos, mais uma vez, a lição
de Schumpeter quando sustenta que se o ensino da ciência económica não contiver
“um mínimo de aspectos históricos” os estudantes experimentarão uma “sensação
de falta de orientação e de sentido”. Para além desta consideração de carácter
essencialmente pedagógico, Schumpeter salienta que a compreensão do estado
actual da ciência económica “implica a sua história passada e não pode expor-se
satisfatoriamente sem explicar essa história. (...) Os problemas, os métodos e os
resultados modernos não podem entender-se cabalmente sem algum conhecimen­
to de como chegaram os economistas a raciocinar como o fazem agora”.
Noutra perspectiva, o estudo da história da ciência económica é importante
porque ele constitui uma espécie de ‘laboratório’ cuja frequência permite apreen­
der os hábitos científicos, as regras do procedimento científico (que cada autor
revela nas suas obras), ao mesmo tempo que é fonte de inspiração de novas ideias
e campo para se adquirir o que M ark Blaug chama “a humildade metodológica
necessária acerca dos êxitos reais da economia”.
A história das ideias e das doutrinas económicas justificar-se-á ainda pela
influência que mesmo os ‘economistas mortos’ exercem na definição das políticas
e, por essa via, na vida das sociedades. Foi Keynes quem escreveu na General
Theory que mesmo “os homens de acção que se julgam em absoluto libertos das
influências das doutrinas são em regra escravos de um qualquer economista faleci­
do”. Ele mesmo se admira como é que “uma doutrina tão ilógica e tão grosseira”
como, a seu ver, é o marxismo, “pode ter exercido uma influência tão poderosa e
tão duradoura sobre os espíritos das pessoas e, por seu intermédio, sobre os even­
tos da história”. Mais uma razão, pois, para se estudar a história das ideias e das
doutrinas económicas, mesmo daquelas que nos parecem ‘ilógicas’ e ‘grosseiras’.
Tendo presente a conhecida distinção de Schumpeter entre história da análise
económica, história dopensamento económico e história dos sistemas de economiapolítica,
resta esclarecer qual a nossa opção neste capítulo. Tal como a H enri D enis,“o que
nos interessa acima de tudo é a história da economia política, ciência geral da vida
económica”. Daí que, ao longo deste capítulo, procuremos dar conta da contribui­
ção de cada autor ou de cada escola para o progresso dos aspectos analíticos ou
científicos do pensamento económico, mas sem ignorar os seus pontos de vista no
domínio da filosofia política e social e as suas concepções doutrinais, os seus
princípios (normativos) orientadores.
Cremos que uma introdução à história da ciência económica e do pensamento
económico assim entendida ajudará os alunos a compreender melhor os proble­
2 8 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

mas, os métodos de análise e os objectivos de uma disciplina como esta de Econo­


mia Política, cujas preocupações fundamentais se projectam em três planos (Robin-
son/Eatwell): “tentar compreender como funciona a economia, fazer propostas
para a melhorar e justificar o critério pelo qual a melhoria é julgada”.
C apítulo I

O P e n s a m e n t o E c o n ó m ic o n a
A n t ig u id a d e e n a

I d a d e M é d ia
2 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

1. O P e n s a m e n t o E c o n ó m ic o na A n t ig u id a d e

É corrente os autores relacionarem os primeiros passos do pensamento econó­


mico estruturado em moldes científicos com o arranque e o desenvolvimento do
modo de produção capitalista. Segundo este ponto de vista, a ciência económica
deu os primeiros passos em finais do séc. XVIII, com a Revolução Industrial e a
afirmação do capitalismo como modo de produção autónomo, inicialmente na
indústria e depois na agricultura.
Sabe-se que os escritores gregos falavam de economia. M as a palavra tinha
então um conteúdo condizente com o seu significado etimológico. A economia era
entendida, fundamentalmente, como a administração (nomos) da casa (oikos), numa
época histórica em que as estruturas sociais se apresentavam substancialmente
diferentes daquelas que caracterizam as sociedades humanas (nomeadamente as
europeias) a partir dos fins do séc. XVIII.
Na verdade, a actividade produtiva orientava-se no sentido da criação de um fundo
comum de bens cuja distribuição era assegurada de acordo com o critério de autorida­
de: o pater, o sacerdote ou o chefe é que determinavam a parte do produto social que
caberia a cada indivíduo. As relações comerciais eram incipientes, tal como a activida­
de industrial (assente em unidades de produção artesanais), e as relações de trabalho -
à semelhança do que se passava com as actividades relacionadas com a circulação de
bens - representavam prestações de tipo obrigatório, que dispensavam o mercado en­
quanto mecanismo de circulação e de distribuição dos bens.
Compreende-se, assim, que os problemas económicos fossem abordados pelos
escritores da Antiguidade no âmbito de considerações morais e filosóficas, ligadas à
problemática do destino e dos fins do homem, do sentido da presença do homem na
sociedade e das formas de organização política e social da comunidade. As análises
teóricas (científicas) no domínio do que hoje chamamos “economia” não apareciam
nas obras dos autores clássicos. A única excepção poderá ter sido, em certos termos,
Aristóteles: ele dedicou alguma atenção aos problemas da troca e do valor, fazendo
da sua teoria do valor a base de uma teoria da economia de mercado, a Crematísíica.

2. O P e n s a m e n to E c o n ó m ic o n a Id a d e M é d ia
Durante a Idade Média, os problemas económicos foram abordados numa pers­
pectiva ético-normativa, do mesmo modo que a vida económica, sobretudo a par­
tir de Carlos M agno, se apresenta fortemente subordinada a valores e normas de
natureza religiosa e moral. A discussão da problemática económica decorria nos
quadros da doutrina teológica, sobressaindo, entre as questões abordadas, o pro­
blema do justo preço {justampretium) e os problemas da legitimidade do comércio
A v e ià s N u n e s - 2 8 7

e do juro. Inteiramente à margem da preocupação dos autores ficava o estudo das


leis reguladoras do processo produtivo e dos mecanismos da distribuição.
A ideologia dominante considerava o homem essencialmente como um ser de
natureza transcendente, orientado para um destino extraterrestre. Dentro destes
parâmetros, o homem deveria preocupar-se fundamentalmente com a sua salva­
ção; os fins económicos consideravam-se sempre subordinados a fins transcenden­
tais: a riqueza material e a acumulação de fortunas eram condenadas em nome de
valores morais. Nem sempre a realidade se conformaria com tais concepções, mas
eram os cânones da ideologia dominante que inspiravam as leis e o costume e
formavam o espírito das pessoas.
O tomismo terá sido a última grande tentativa de harmonizar os sentimentos
da Igreja e as exigências da fé com as construções puramente racionais, relativa­
mente aos problemas económico-sociais acima referidos.
Com efeito, a partir do Renascimento foi abandonada esta tentativa de concili­
ação entre o conhecimento racional e a fé, passando a filosofia económica a desen-
volver-se à margem do cristianismo e por vezes contra os seus valores tradicionais.
O início da Idade M oderna coincide com a formação e a consolidação dos
estados nacionais na Europa e com o enorme incremento da actividade comercial
a partir das Repúblicas Italianas e - após as viagens oceânicas de portugueses e
espanhóis - a partir de Lisboa e Cádis, dos Países Baixos, da França e da Inglaterra.
Os sécs. XV e XVI marcam um período de profundas transformações no do­
mínio económico, social e cultural. O Renascimento e a Reforma constituem acon­
tecimentos fundamentais de um processo que, embora por diferentes caminhos,
aponta para novas concepções sobre a relação entre o homem e a divindade e para
a autonomização do poder do estado relativamente ao poder religioso.
No quadro de um amplo movimento de ideias novas acerca do mundo e da vida, a
ordem económica começou a ser encarada de modo autónomo, à margem da perspectiva
moral e teológica medieval. O contacto com novos mundos e a descoberta de novas
verdades vieram deslocar o centro das preocupações humanas do espiritual para o
temporal; a ciência laiciza-se; a observação do mundo e da vida ganha primazia sobre
a dedução pura como metodologia do conhecimento; as grandes construções de base
teológica dão lugar à análise ‘realista’dos problemas concretos dos homens concretos.
E nesta óptica que os autores começam a preocupar-se com o estudo dos fenómenos
económicos, tentando descobrir entre eles relações de causa a efeito, o que constitui a
base da atitude científica. Nos sécs. XVI e XVII surgirão as primeiras obras centradas
em questões de natureza económica, relacionadas com o desenvolvimento do capital
comercial, com as finanças da monarquia absoluta e com o conjunto de fenómenos que
integram o processo da “acumulação primitiva do capital”.
.
C a p ítu lo II

O M e r c a n t il is m o
2 9 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o lít ic a

1. O "S is t e m a M e r c a n t il " : o M e r c a n t il is m o

Em finais do séc. XV, o desenvolvimento do comércio - que se iniciara com as


Cruzadas, que se consolidou graças a um clima de maior segurança, à expansão da
rede de vias de comunicação, ao desenvolvimento das feiras e à diminuição das
barreiras à circulação das pessoas e das mercadorias, e que registou um enorme salto
com a mundialização dos mercados na sequência da abertura de novas rotas maríti­
mas por portugueses e espanhóis - trouxe consigo uma grande acumulação de ri­
queza por parte de comerciantes e banqueiros, cuja actuação passa a desenvolver-se
tendo em vista não a satisfação das necessidades mas a obtenção de um ganho, um
ganho por natureza indefinido, ilimitado (quem tem dinheiro, transforma-o em
mercadorias para obter, pela venda destas, uma quantidade de dinheiro maior).
Ficava para trás a lógica da actividade económica orientada para a satisfação
das necessidades de cada um (quem tem um bem troca-o por dinheiro, para obter,
em troca desse dinheiro, outro bem de que necessita) e o ideal medieval de mode­
ração e de desprendimento relativamente à riqueza. O enriquecimento individual
passa a ser aceite como finalidade normal (e até louvável) da actividade dos ho­
mens, atitude que a Reforma viria legitimar, no plano filosófico-religioso.310
Os novos estados nacionais centralizados constituídos na Europa viram-se muito
cedo confrontados com a necessidade de resolver os problemas de financiamento das
suas estruturas administrativas e de encontrar os meios indispensáveis à consolidação
do poder real, fora dos quadros da sociedade feudal e muitas vezes contra os antigos
senhores feudais. Os problemas económicos passam a ser encarados na óptica do
estado e os autores que agora escrevem sobre questões económicas já não são os teólo­
gos, mas os homens de negócios, os administradores, os conselheiros do soberano.
A compreensão dos fenómenos económicos é exigida pela (e posta ao serviço
da) necessidade de definir políticas económicas capazes de fornecer ao estado e
aos seus cidadãos a riqueza e o poderio indispensáveis à consolidação da sua sobe­
rania e independência. Os novos estados soberanos assumem-se como estados ac­
tivos, dispostos a organizar e a dirigir a vida económica, no meio das perturbações
económicas e sociais geradas pela “revolução dos preços”, que os autores da época,
com realce para o francês Jean Bodin, relacionaram com o afluxo à Europa de
grandes quantidades de ouro e de prata, provenientes do Novo M undo.311

310 Em 1629, um edito de Luís XIII permite aos nobres de França o exercício do comércio marftimo e da armação,
sem risco de perda de tAulos.
311 Sobre o papel e as características do estado neste período da transição do feudalismo para o capitalismo, cfr. |.
SC H U M PETER, Historia..., d t , 184-190 e também J. ALM EIDA GARRETT, o b . d l , 26 ss.
A v elã s N u n e s - 2 9 1

Pois bem. Foi neste tempo de profundas transformações, no quadro desta “re­
volução do séc. XVI” (Jean Marchai), que, entre finais do séc. XVI e meados do
séc. XVIII, se desenvolveu na Europa (especialmente na Espanha e em Portugal,
na França e na Inglaterra) uma corrente de ideias que ficou conhecida por mercan­
tilismo, na sequência da utilização deste termo por autores da Escola Histórica
Alemã (2a metade do séc. XIX). Num período em que o comércio esteve na base
do enriquecimento dos estados mais poderosos, não admira que os autores cen­
trassem as suas preocupações c a sua análise na actividade comercial. D e “sistema
do comércio” ou “sistema mercantil” falou Adam Smith, na esteira dos fisiocratas.
Entre os mais destacados representantes do pensamento e da política mercan-
tilistas, referiremos: na Espanha, Damian de Olivarez, Santis O rtiz e o jesuíta
Mariana; em Portugal, Luís Mendes de Vasconcelos, Duarte Gomes Solis, M anu­
el Severim de Faria, Alexandre de Gusmão, Duarte Ribeiro de M acedo, D. Luís
da Cunha, António Ribeiro Sanches, avultando o M arquês de Pombal como o
nosso grande político mercantilista; na Itália, Giovanni Botero e A ntonio Serra;
na França, Jean Bodin, Antoine de Montchrestien, Sully, Barthélémy de Laffemas,
salientando-se Colbert como o político mais representativo; na Inglaterra, John
Hales,Thomas M un, Josiah Child, destacando-se Olivier Cromwell como o grande
político do mercantilismo britânico.
Quando se fala de mercantilismo parece que se está a admitir a existência de um
‘sistema de ideias’, um corpo coerente dotado de certo grau de abstracção. A verdade,
porém, é que nenhum autor, do séc. XVI ao séc. XVIII, se designou a si mesmo
como mercantilista. Os especialistas nesta matéria destacam a grande dificuldade na
interpretação dos textos da época, dada a ausência de uma terminologia comum e de
um vocabulário técnico minimamente rigoroso e dado o carácter pré-analítico dessa
literatura. Por outro lado, não é observável, nos vários autores que costumam ser
apontados como mercantilistas, qualquer preocupação de dar o seu contributo (ou a
consciência de estar a contribuir) para uma determinada corrente do pensamento
económico. Antes pelo contrário: é difícil encontrar concordância entre eles, quer
quanto aos princípios quer quanto aos instrumentos analíticos utilizados, e é fre­
quente detectarem-se contradições entre os escritos dos ‘mercantilistas’.
E difícil, por isso mesmo, falar de ‘escola’ a respeito dos mercantilistas. E
Schumpeter entende que o “sistema mercantilista” de que por vezes se fala não
passa de uma “entidade imaginária”.
Alguns autores defendem mesmo que o mercantilismo não constitui uma teo­
ria social minimamente estruturada, não tendo existido nunca nem uma escola
nem uma doutrina mercantilista (P. Deyon: “Nunca existiu um a‘escola mercanti­
lista’ esclarecida e consciente de si mesma”). O utros, como Heckscher, negam
2 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a

mesmo que os autores geralmente considerados ‘mercantilistas’ revelassem nos


seus escritos quaisquer potencialidades para a análise teórica e para a compreensão
dos mecanismos económicos do seu tempo, vendo no mercantilismo apenas um
“sistema de poder” e uma política de unificação nacional.312
Se nos colocarmos numa perspectiva mais pragmática, cremos que continua a ter
algum sentido aceitar a designação de mercantilismo para referenciar um certo perí­
odo da história e da política económicas e para descrever a tendência marcante do
pensamento económico desde finais do séc. XVI até meados do séc. XVIII (Mark
Blaug). Na verdade, apesar da descoordenação dos esforços intelectuais dos ‘mer-
cantilistas’, apesar das divergências e das polémicas entre eles - muitas vezes reflec­
tindo uma grande diversidade de situações concretas é possível encontrar algumas
ideias comuns, susceptíveis de dar sentido à designação corrente de mercantilismo.
Por detrás das propostas doutrinais, das medidas legislativas e das acções polí­
ticas referidas na literatura mercantilista, encontra-se uma nova concepção da so­
ciedade e do estado, que se reflecte, por exemplo, na ideia da unificação do mercado
nacional c na laicização dos fins últimos da sociedade, aspectos que as revoluções
burguesas e o liberalismo subsequente viriam a concluir. Nos escritos e na acção
dos mercantilistas ressaltam também a apologia do trabalho; a defesa das activida­
des manufactureiras, do desenvolvimento do comércio e da expansão colonial; a
afirmação da vontade de enriquecimento individual e colectivo, como vias de con­
cretização do poderio nacional c do domínio do estado nacional.313

2. Os 'M e r c a n t ilis m o s N a c io n a is '


Com o vimos, os autores mercantilistas são, em regra, homens de negócios e
administradores públicos que discorrem sobre os problemas concretos que se le­

312 De acordo com a análise de Heckscher, as medidas preconizadas pelos autores que se preocuparam com os
negócios do estado entre o séc. XVI e meados do séc. XVIII têm de entender-se todas como instrumentos de uma
polftica de unificaçáo e de poder relativamente à qual o estado surge ao mesmo tempo como sujeito e como
objecto. Neste quadro de preocupações políticas devem considerar-se as medidas populacionistas; a orienta­
ção no sentido da constituição de um tesouro nacional e da auto-suficiência de cada nação no plano da
economia; a luta contra os particularismos e a pulverização no âmbito das alfândegas, do sistema de pesos e
medidas, da cunhagem e da circulação da moeda.
313 Émile James admite que se use o eprteto de mercantilistas - "altamente discutível", segundo ele - relativamente
"àqueles autores que, nos sécs. XVII c XVIII, procuraram saber como enriquecer a nação" (oò. dl, 62). Dadas
as condições da época, tudo conduzia à exigência de governos fortes. "E os governos fortes - observa
SCHUM PETER, ob. d t , 187/188 - , que sofrem cronicamente de ambições polfticas situadas fora do alcance
dos seus meios económicos, viram-se movidos (...) a conseguir cada vez mais força, mediante o desenvolvi­
mento dos recursos dos seus territórios e a submissão dos referidos recursos ao seu serviço. Isto explica, por sua
vez, entre outras coisas, que os impostos tenham tomado não apenas uma importância muito maior mas um
significado verdadeiramente novo".
A v elã s N u n es - 2 9 3

vantam no mundo dos negócios ou no domínio da administração estadual. O s seus


trabalhos, longe de serem grandes construções teóricas e especulativas, constituem
reflexões, conselhos, programas de acção inspirados pela diferente realidade con­
creta de cada país.
Compreende-se, por isso, que sejam detectáveis certos traços diferenciadores
do pensamento económico dos autores mais destacados em cada um dos países
onde os problemas económicos suscitaram uma atenção mais aturada, designada­
mente a Espanha, a França e a Inglaterra.

2 .1 . O B u l io n is m o E s p a n h o l

A preocupação dominante dos mercantilistas espanhóis foi a de conservar no


país a maior quantidade possível do ouro e da prata provenientes das colónias da
América, na convicção de que assim conseguiriam preservar a riqueza e o poderio
do estado espanhol.
Para tanto, defendiam a intervenção do estado no sentido de proibir a saída do
ouro e da prata (em moeda ou cm barras).314 Perante a ineficácia de tal proibição,
adiantou-se a ideia de que a saída do ouro resultava das compras feitas no estrangei­
ro e propôs-se uma outra solução intervencionista: o controlo autoritário dos câm­
bios e o lançamento de direitos alfandegários que desencorajassem as importações.
Esta política - defendida por O rtiz (1558) e por Olivarez (1621) - foi um
desastre, que acompanhou o desastre da economia espanhola. Contra ela (embora
considerando a abundância de ouro e prata um objectivo que devia ser perseguido)
manifestou-se, na própria Espanha, o jesuíta M ariana(1609) e, sensivelmente na
mesma altura, os italianos Botero e Serra. Para estes autores, o melhor caminho
para um país obter ouro e prata era o do desenvolvimento da agricultura e da
indústria. Esta é também a orientação de outros autores espanhóis. Em 1600,
González Cellorigo defende que os males da Espanha radicam, mais do que na
saída do ouro e da prata, no declínio da produção nacional. Em 1619, Moncada
aponta como causa principal da decadência espanhola a inferioridade da Espanha
nas suas relações comerciais com o estrangeiro; em 1726, Gerónim o de Uztariz
considerando ilusórias e ineficazes as regulamentações bulionistas e a proibição da
exportação das espécies monetárias, apresenta como política a seguir a industriali­
zação e a adopção de medidas aduaneiras com objectivos proteccionistas.

Em 1480, os Reis Católicos promulgaram uma pragmática que castigava, com penas que iam até à pena de
morte, os que fizessem sair o ouro e a prata do reino. Daqui resultou o aumento considerável do 'prémio'
cobrado pelos contrabandistas, e a saída do ouro e da prata aumentou a um ritmo de tal modo acelerado que
aquele regime acabou por ser abandonado em 1515. Cfr. J. VICENS V IVES, ob. cit., 283.
2 9 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

O que é certo é que, por razões de vária ordem, o estado espanhol não conse­
guiu evitar que o comércio externo viesse a ser dominado pelos estrangeiros, ao
mesmo tempo que o comércio interno continuava asfixiado (más estradas, porta­
gens e alfândegas internas, impostos indirectos gravosos).

2 .2 . O M e r c a n t il is m o I n d u s t r ia l ( F r a n ç a )

Não dispondo de minas de ouro ou de prata, o problema que se colocava à


França não era tanto o de conservar o ouro e a prata disponíveis, mas o de obter
esses metais preciosos. Por isso, desde Montchrcstien (1575-1621), as concepções
dos mercantilistas franceses partem da ideia central de nação e defendem uma
política que a conduza ao mais alto grau de propriedade e de grandeza: “De la
France il s’agit de faire à la fois un État et une usine” (apud R. Gonnard).
Embora considere como elemento favorável a abundância de metais preciosos
no país, Montchrestien defende a necessidade de uma economia nacional comple­
ta e autosuficiente, uma vez que não é a abundância de ouro e de prata, só por si,
que faz os estados ricos e opulentos, mas sim Taccommodement des choses néces­
saires à la vie”.
Neste entendimento radica a prioridade concedida pela generalidade dos mer­
cantilistas franceses à actuação do estado no sentido de regulamentar a produção e de
exigir um sistema eficaz de protecção alfandegária.
A regulamentação da produção levou o estado a invadir a esfera das organiza­
ções corporativas, impondo a todos os produtores a adopção de técnicas de produ­
ção mais eficientes e mais aperfeiçoadas. Esta mesma política levou os soberanos
a recrutar os serviços de mestres estrangeiros, sobretudo para dirigirem as manu­
facturas reais, criadas fora da alçada das corporações. A estas manufacturas (algu­
mas das quais privadas, como a Saint-Gobain) concederam-se privilégios especiais
(isenções fiscais, monopólio temporário de fabrico e de venda, concessão de em ­
préstimos, encomendas estatais, privilégios honoríficos), ao mesmo tempo que
foram sujeitas a apertada fiscalização quanto ao cumprimento dos regulamentos de
fabrico. Colbert apostou na alta qualidade dos produtos franceses, procurando
fazer dela o ponto forte da sua ofensiva comercial nos mercados externos.
A política proteccionista traduziu-se, por um lado, na proibição da exportação de
matérias-primas nacionais (“denrées crues”, na expressão de Jean Bodin) e na im­
portação livre de matérias-primas estrangeiras, sobretudo se destinadas à produção
com vista à exportação; e traduziu-se, por outro lado, na proibição ou na pesada
tributação das importações de produtos manufacturados e no incentivo à exportação
das “ouvrages de mains” (Jean Bodin). Com este último objectivo, promoveu-se a
criação de grandes companhias de comércio e de colonização, subvencionadas pelo
A v elã s N u n es - 2 9 5

estado: (“As companhias de Comércio são os exércitos do Rei e as Manufacturas de


França a sua reserva”, escreveu Colbert, ministro de Luís XIV).
Embora M ontchrestien insista especialmente na necessidade de reservar o co­
mércio aos nacionais e de impedir os comerciantes estrangeiros de fazerem sair o
ouro e a prata do país, poderá dizer-se que o colbertismo procurou promover a
prosperidade da nação francesa atraindo os metais preciosos através da venda ao
estrangeiro de mais bens do que os que lá se compravam. Este é, aliás, o programa
enunciado por Laffemas (1608), num livro cujo título é, precisamente, “Comment
l’on doibt pcrmettre la liberté du transport de 1’or et de 1'argent hors du royaume
et par tel moyen conserver le nostre et attirer celui des étrangers”.
Fortalecer as manufacturas, proteger o mercado nacional, desenvolver a mari­
nha e conquistar os mercados coloniais - e outros mercados externos - eis os
pilares em que o mercantilismo francês alicerçou a “guerra do dinheiro”. A preo­
cupação quase exclusiva com o fomento industrial explica que os mercantilistas
franceses tenham defendido uma série de medidas regulamentadoras da actividade
agrícola, tendentes a assegurar uma produção e uma oferta de alimentos em quan­
tidades suficientes para garantir preços baixos destes bens essenciais. Assim pode­
riam pagar-se salários baixos na indústria, o que era considerado importante para
permitir custos baixos dos produtos industriais e, daí, a sua exportação em boas
condições de competitividade.
Esta prática contrária aos interesses dos agricultores é patente sobretudo no âm­
bito da chamada política dos cereaisr. primeiro, o estado adopta medidas destinadas a
assegurar a produção; depois, proibe a estocagem, o açambarcamento e a especula­
ção com cereais, ao mesmo tempo que proibe certo tipo de consumos dissipadores;
finalmente, proibe a exportação de cereais e de outros produtos alimentares.
Só no séc. XVIII Boisguillebert, o Marquês de Mirabeau e, em geral, os fisio-
cratas viriam contrariar esta tendência para a marginalização da agricultura francesa,
criticando a regulamentação que a ‘abafara’e defendendo a liberdade económica.

2 .3 . O M e r c a n t il is m o C o m e r c ia l ( I n g l a t e r r a )
À semelhança da Holanda - que enriquecera graças ao comércio, sem dispor
de uma indústria forte - também a expansão económica da Inglaterra, no séc.
XVII , se operou basicamente a partir do comércio externo.
Daí que os mercantilistas ingleses do séc. XVII, embora considerassem que a
indústria podia contribuir para alimentar as exportações, entendiam que ela era
apenas um meio, entre outros, de os países enriquecerem. Ao contrário do que
vimos acontecer com os autores franceses, os mercantilistas ingleses atribuíam
pouca importância à regulamentação da actividade industrial. A sua preocupação
2 9 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a

fundamental residia na obtenção de uma balança comercialexcedentária, vendendo


ao estrangeiro mais do que o que lá se comprasse, o que se traduziria na entrada
líquida de ouro na Inglaterra.
Para tanto, não seria imprescindível reduzir as importações; poderia mesmo ter
de se importar muito, se tal fosse necessário para exportar ainda mais. Nesta perspec­
tiva, o importante era assegurar a supremacia naval e conquistar mercados, contro­
lar a navegação e o comércio, actividades nas quais deveria concentrar-se a acção
incentivadora e protectora do estado. Assim se compreendem as principais medi­
das propostas e adoptadas pelos mercantilistas ingleses no séc. XVII:
- Actos de Navegação, promulgados por Cromwell: em 1651, determinou-se que
as mercadorias europeias só podiam ser descarregadas na Inglaterra se transportadas
em barcos ingleses ou em barcos do país de origem desses produtos, reservando-se
aos barcos sob pavilhão britânico o transporte para Inglaterra de produtos coloniais;
em 1660, obrigaram-se a registo todos os barcos mandados construir no estrangeiro
por cidadãos ingleses, impondo-se aos navios ingleses um comandante inglês e a
nacionalidade britânica de 3/4 da tripulação; finalmente, em 1663 o StapleAct obri­
gou os colonos a comprar na Inglaterra os produtos europeus de que carecessem, os
quais deveriam ser transportados em barcos sob pavilhão britânico;
- Regime do pacto colonial, que proibia a transformação das matérias-primas
nas colónias inglesas, convertendo estas em fornecedores de matérias-primas à
metrópole e compradoras dos produtos manufacturados ingleses;3is
- Um regime aduaneiro que desagravava de impostos a exportação de produtos
nacionais e a importação de bens destinados à re-exportação, fazendo incidir taxas
elevadas sobre os produtos importados para consumo na Inglaterra;
- Política de baixa taxa dejuro, prosseguida directamente, através da fixação de
um limite máximo para a taxa de juro, e/ou indirectamente, promovendo o aumen­
to da quantidade de moeda em circulação. Visava-se com esta política proporcio­
nar aos produtores e aos comerciantes ingleses condições de custo que lhes dessem
vantagem na concorrência nos mercados internacionais.

315 Em termos gerais, o regime do pacto colonial visava estabelecer circuitos comerciais fechados, transformando
os territórios coloniais em 'reserva' da metrópole. Para tanto: a) proibiam-se as colónias de produzir os bens que
a metrópole podia fornecer; b ) obrigavam-se as colónias a vender os seus produtos exclusivamente à metró­
pole e a comprar só à metrópole os produtos de que careciam, os quais seriam transportados apenas em navio«
sob pavilhão da metrópole; c ) obrigava-se o comércio das colónias com o estrangeiro, quando existisse, a
passar por um porto metropolitano, tanto para as exportações como para as importações (era o que se passava,
v.g., com o comércio entre o Brasil e a Inglaterra antes do Tratado de Methwen, o que permitia à metrópole
portuguesa arrecadar uma certa percentagem por esta intermediação forçada); d ) reservava-se à metrópole
o poder de determinar os preços, a política monetária e os direitos alfandegários.
A v elã s N u n es - 2 9 7

Os mercantilistas ingleses foram, em geral, mercadores e homens de negócios,


alguns deles administradores da Companhia das índias Orientais (é o caso de
Thomas M un e de Josiah Child). Daí, talvez, o grande realismo das suas propos­
tas, bem recebidas num país onde não existiam os preconceitos contra o comércio
e a indústria que permaneciam em outros países (v.g. a Espanha e a França) e onde
um estado forte foi capaz de se impor às estruturas corporativas e aos particularis-
mos locais.
Eles souberam proteger a sua agricultura, cobrando elevadas taxas de importa­
ção sobre o trigo quando era baixo o preço do trigo inglês (em períodos de produ­
ções muito abundantes chegou-se mesmo a conceder prémios à exportação do
trigo, para evitar a queda drástica dos preços e a ruína dos agricultores), baixando
os direitos de importação à medida que iam ficando altos os preços do trigo inglês.
Assim se evitavam aos consumidores as situações de penúria acompanhadas de
fome e de preços muito elevados da alimentação, ao mesmo tempo que se garan­
tiam aos produtores preços compensadores e relativamente estáveis. Uns e outros
poderiam auferir, deste modo, de um poder de compra capaz de alimentar a procu­
ra dos produtos manufacturados.
Os mercantilistas ingleses procuraram igualmente diversificar a produção indus­
trial, concedendo privilégios e monopólios de vária ordem e recorrendo mesmo à
proibição das importações de produtos industriais ou à sua tributação com elevados
direitos alfandegários. No início do séc. XVIII o balanço desta política era clara­
mente favorável (exageradamente, há quem veja aí uma primeira revolução industri­
al...), ocupando as indústrias um papel crescente nas exportações britânicas.
Mas, desde Thom as M un, eles compreenderam que o im portante é o saldo da
balança dos pagamentos no seu todo, podendo ser enganador ou ilusório o saldo
positivo de uma balança particular ou da balança das relações entre dois países
apenas. Eles tiveram consciência da importância que deve atribuir-se às compen­
sações triangulares ou mesmo multilaterais e compreenderam a solidariedade que
existe entre todas as correntes de tráfego e entre todos os mercados. “Perdemos no
comércio com a França - escreve C. Davenant mas, se não fizermos comércio
com a França, ela comprará menos à Espanha e à Itália, que, por sua vez, deixarão
de nos oferecer as mesmas possibilidades de escoamento”.316

Alguns dos mais tardios mercantilistas ingleses aproximavam-se deste modo da noçâo de liberdade comercial,
antecipando as críticas de Oavid Hume à "inveja comercial". É o caso, v.g., de Dudley North e de Charles
Davenant, aos quais nos referiremos à frente (cfr. P. D EYO N , 06. cit., 79-81 ).
2 9 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o ü t ic a

3. AS GRANDES LINHAS DO PENSAMENTO MERCANTILISTA

3 .1 . U m a p o l ít ic a n a c io n a l is t a

Enquanto que Maquiavel defendera que “num governo bem organizado o esta­
do deve ser rico e os cidadãos pobres”, poderá dizer-se que os mercantilistas com­
preenderam que a melhor maneira de aumentar a riqueza e o poderio do estado
consiste em favorecer o enriquecimento dos cidadãos.
Num período em que na Europa se desenvolvia o chamado ‘capitalismo co­
mercial’, não admira que fosse comum entre os mercantilistas a ideia da suprema­
cia do comércio como meio de obter riqueza. “O comércio - escreveu o francês
M ontchrestien - é de certo modo o fim principal das diversas artes, das quais a
maior parte só através do comércio trabalham para outrem”. Daí a sua conclusão
de que “os comerciantes são mais que úteis no estado e que a sua busca do lucro faz
e causa uma boa parte do bem público”.
Por outro lado, os mercantilistas compreenderam que a prosperidade do co­
mércio de uma nação depende muito estreitamente da afirmação do poderio polí­
tico do soberano e do êxito das suas campanhas militares de expansão, em terra c
no mar, uma vez que destas depende a possibilidade de ampliar a dimensão dos
territórios coloniais (i.é, de aumentar a zona de comércio reservado e protegido,
em benefício da economia nacional).
Homens do seu tempo, os mercantilistas aceitaram a busca da riqueza indivi­
dual como fim da actividade humana, pondo em relevo que este fim individual não
colide com a ideia de que o alargamento do poderio do estado é o fim supremo das
sociedades humanas.
Assim, defendem que a riqueza consiste fundamentalmente nos lucros do comér­
cio e das manufacturas. Mas esses lucros dependem sobretudo das exportações e da
actividade das indústrias exportadoras. O desenvolvimento destas, porém, está alta­
mente condicionado, por um lado, pela abundância de homens no mercado do trabalho
e, por outro lado, pela abundância de dinheiro que permita crédito fácil e juro baixo.
Convém, por isso, aos particulares, para que possam obter lucros (e, portanto, rique­
za), que exista uma população abundante e que seja abundante a moeda em circulação.
Ora esses são precisamente os fins que o estado prossegue, pois que o seu
poderio depende da possibilidade de constituição de um exército (população abundan­
te) e da possibilidade de constituição de um tesouro de guerra (abundância de moeda).
Sendo assim, os fins prosseguidos pelo estado e pelos particulares (comerciantes)
ligam-se no interior do processo social. A sociedade orientada para a busca do
lucro não contém contradições fundamentais. Haveria antes uma harmonia econó­
mica, na medida cm que o desenvolvimento da indústria e das exportações em vista
A v e ià s N u n e s - 2 9 9

do lucro (que é para os comerciantes o fim a atingir), é o meio para o estado atingir
o seu próprio fim (abundância de homens e de dinheiro); reciprocamente, estefim
do estado é um meio que permite desenvolver a indústria e o comércio com vista à
obtenção de lucros (fim dos comerciantes).
Desfeito o sonho medieval de fazer da Cristandade um potência política, qual
novo Sacro-Império Romano-Gcrmânico, a política passou a ter como objectivo
assegurar a sobrevivência, a expansão, a riqueza e o poderio de cada um dos novos
estados. E era corrente a ideia de que este objectivo se poderia conseguir não só
pelo reforço do poderio económico de cada país mas também (e porventura mais
facilmente) pela via do enfraquecimento económico e político dos países vizi­
nhos.317 Considerando-se fixada a quantidade de recursos disponíveis à escala
mundial, concluía-se que um país só poderia enriquecer à custa de outro e admi-
tia-se que a própria sobrevivência de um estado dependia de este ser capaz de
assegurar o seu desenvolvimento económico e a sua riqueza mais rapidamente que
o seu vizinho (e rival). Daí a importância do poderio militar, eventualmente ne­
cessário para subjugar outros povos pela via da guerra. Daí a rapacidade com que
os próprios estados se comprometeram na conquista e na pilhagem dos territórios
coloniais e na prática da mais violenta pirataria nos mares.
No contexto desta aceitação do antagonismo entre os interesses económicos
das nações se insere também a guerra do dinheiro cm que os novos estados se
empenharam, com o objectivo de obterem mais ouro c prata que os outros países.
Se “apenas uma determinada quantidade de dinheiro circula em toda a Europa -
escreveu Colbert - , (...) não é possível aumentar o dinheiro em um reino sem o
retirar simultaneamente, em quantidade idêntica, dos estados vizinhos”.
O capitalismo anunciava-se, nos sées. XVI e XVII, sob o signo do antagonismo
entre estados e os autores mercantilistas parece terem-se apercebido desta realidade: “o
que convém a uma nação - sublinha Josiah Child - não convém a todas as outras”. No
terreno económico e ao nível das relações entre os estados, os mercantilistas justifica­
vam a velha máxima de Montaigne: “nul ne gagne qu’un autre ne perde”.
A nação afirmava-se, assim, como espaçodepoder (poder político e poder económico).

3 .2 . O POPULACIONISMO

Ao advogarem uma política populacionista, os escritores mercantilistas busca­


vam alcançar objectivos que se adequassem aos interesses da economia e aos inte­
resses do estado.

317 John Locke poria em relevo que a riqueza nâo consiste apenas em mais ouro e prata, mas mais relativamente
aos outros países (apud M. BLA U G , oò. d l , 14).
3 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

Compreendeu-se que uma população abundante significava a possibilidade de


encontrar mão-de-obra abundante e barata, o que convinha ao desenvolvimento
do comércio e da indústria, do qual resultariam lucros acrescidos para os particu­
lares. O desenvolvimento das actividades económicas trazia consigo, por sua vez,
emprego para um maior número de trabalhadores, factor que favorecia o aumento
da população.
Uma população abundante e crescente era importante para que o estado dispu­
sesse da possibilidade de constituir um exército poderoso. M as era igualmente
importante para as manufacturas: com uma população numerosa, os salários não
subiriam e os lucros seriam maiores; por outro lado, a prática de salários baixos
teria a virtude de obrigar o povo a trabalhar mais, mantendo a sua operosidade e

Em certo sentido, poderá dizer-se que os mercantilistas antecipam a concep­


ção, depois mais elaborada teoricamente por Malthus, segundo a qual a desigual­
dade social e a existência de um grande número de trabalhadores miseráveis
constituem uma condição de progresso.
No entanto, M althus, perante a nova situação resultante da revolução industri­
al, advogaria uma política anti-populacionista. Os escritores dos sécs. XVII e XVIII
- sobretudo na Inglaterra e na França - defenderam abertamente políticas popula-
cionistas (que foram efectivamente postas em prática), convencidos de que uma
população numerosa e crescente constituiria a causa principal da riqueza, se não
mesmo a própria riqueza, o activo mais sólido de uma nação. E Schumpeter sus­
tenta que, nas condições da época, era manifestamente verdadeiro o entendimento
de que o aumento da população aumentaria o rendimento real per capita.

3.3. As TESES DOS MERCANTILISTAS NO DOMÍNIO MONETÁRIO

“Facilmente se concordará - escreveu Colbert - que só a abundância de di­


nheiro num estado constituirá a diferença entre a sua grandeza e o seu poder”. E a
generalidade dos autores mercantilistas considerava a moeda um autêntico nervus
rerum, “o espírito vital das trocas”, “a vida do comércio”; ou, pelo menos, entendi­
am que “a moeda estimula o comércio”, que o desenvolvimento do comércio exigia
um aumento da quantidade de moeda cm circulação.
M as os mercantilistas sublinhavam não bastar que a moeda fosse abundante.
Consideravam que ela devia também ser boa, i. é, as moedas deviam manter um
peso constante de metal precioso para que pudessem representar um poder de
compra constante. De outro modo, a má moeda afasta a boa, de acordo com uma
teoria que já vinha de autores do séc. XIV e que hoje se conhece por lei de Gresham,
do nome do autor inglês que a retomou no séc. XVI.
A v e l As N u n e s - 3 0 1

Os autores mercantilistas consideravam que a abundância de moeda era im ­


portante, tanto na perspectiva dos interesses dos comerciantes como na do estado.
Grandes quantidades de moeda só poderiam obter-se mediante o desenvolvimento
do comércio e das manufacturas, o que significava o enriquecimento dos comerci­
antes. A abundância de moeda seria benéfica para os comerciantes porque ela
tornaria mais fácil a obtenção de empréstimos e os juros a pagar seriam mais
baixos. O s mercantilistas deram muita importância a este aspecto, que Keynes
relevaria, mais tarde, entre os mais assinaláveis contributos desses autores.318
Por outro lado, numa época de revolução depreços, os mercantilistas aceitavam,
em regra, a conclusão inscrita na lei enunciada por Jean Bodin em 1568, segundo
a qual o poder de compra das moedas de ouro e prata é inversamente proporcional
à quantidade de ouro e de prata existente num país. Reconheciam, pois, que o
aumento da quantidade de moeda em circulação provocava a subida dos preços.
Mas daqui extraíam uma conclusão positiva: o nível de vida dos trabalhadores
baixaria, o que os tomaria mais industriosos.

3 .4 . E c o n o m ia e p o l ít ic a s ã o in sep a r á v e is : o papel d o e s t a d o na

ECONOMIA

Os escritores mercantilistas são portadores de uma concepção da sociedade


que pela primeira vez se desenvolve no terreno da economia, pois é um fim económico
o que se aponta como meta da vida social e são também meios económicos os que se
propõem para alcançar tais objectivos.
Neles se encontra, de algum modo, a primeira manifestação consciente da ideia
de que os homens podem dominar a sua circunstância, podem comandar a sua vida
colectiva, podem organizar a sociedade e o estado de modo a proporcionar à co­
munidade o mais alto grau de bem-estar, através do desenvolvimento económico.
“A felicidade dos homens - escreveu Montchrestien - consiste principalmente na
riqueza, e a riqueza no trabalho”. O homem deixa de ser considerado como “pere­
grino a caminho do céu” (yiator mundí) para ser encarado como “criador e senhor
do mundo” ifaber mundí).319

318 Assim se exprimia (osiah Child: "o preço do juro do dinheiro é para o comércio o que a alma é para o corpo*.
Por isso, dizia ele, "para saber se um país é rico ou pobre, náo é preciso perguntar mais do que isto: qual é o preço
do juro do dinheiro?"
319 A generalidade dos autores considera, porém, que só no séc. XVIII se teria ganho a consciência generalizada
de que a ordem social pode ser uma causa relevante da felicidade ou infelicidade dos homens. "A ideia de
felicidade é nova na Europa", escreveu Saint-Just, um dos expoentes do jacobinismo, em cujo ideário se inscre­
v ia o p rin c fp io segundo o q ual a fe lic id a d e pode co n stru ir-se alte ra n d o a ordem s o c ia l.
Ficavam assim para trás as velhas concepções fatalistas e fixistas, que consideravam a ordem social, política e
económica algo que os homens nâo podiam (nem deviam) mudar. A sorte dos pobres e dos oprimidos - segundo
a ideologia que manteve durante séculos a rígida estratificação da sociedade medieval - seria o fruto de
3 0 2 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Por outro lado, os escritos dos mercantilistas sobre problemas económicos des­
dobram-se em estilo de comentário e propostas de solução de problemas da actu­
alidade, e não aparecem confundidos com questões de especulação filosófica e
teológica, como acontecera em períodos anteriores e mesmo ainda com o pensa­
mento renascentista e a Reforma. A Economia passa a ser encarada como arte
empírica, como conjunto de preceitos para uso dos governos, como “máximas de
sabedoria prática”, na expressão de Keyncs.
Na base das concepções fundamentais dos mercantilistas está, no entanto, uma
filosofia individualista de busca do máximo lucro a partir do aumento da produção
e do comércio. A actuação dos regimes mercantilistas caracterizou-se, de resto,
pela ajuda prestada às actividades privadas, incentivando-as e protegendo-as nos
primeiros passos do seu desenvolvimento em moldes capitalistas. A política mer­
cantilista esteve na origem das primeiras grandes companhias privadas e dos pri­
vilégios de que beneficiaram, propiciando condições favoráveis à acumulação
de capitais que viria a tornar possível o desenvolvimento da produção capitalista
na indústria. Historicamente, o mercantilismo contribuiu, no plano doutrinal e no
plano da acção política, para a acumulação de capitais necessária à implantação do
capitalismo como modo de produção dominante.
O “sistema mercantil”, escreveu Adam Smith, é, “por natureza e essência”, “um
sistema de restrições e regulamentações”. Na verdade, é pelo menos desde o Traité
d'Économie Politi que de Montchrestien (1616) que nos escritos dos mercantilistas se
reconhece a impossibilidade de separar a economia da política. Este autor defende que
é função do estado estimular a produção e as trocas para acrescentar as riquezas e os
lucros dos mercadores, dos manufactureiros e dos financeiros. Da acumulação e do
reinvestimento desses lucros é que resultariam novas riquezas e lucros suplementares.
Os mercantilistas foram, na verdade, os primeiros a dar-se conta da importância
da intervenção do estado na vida económica e a compreender a dinâmica do cresci­
mento económico. Os seus escritos reflectem em geral a preocupação de adequar a
intervenção do estado ao objectivo de alcançar o mais alto nível de riqueza para a
nação, na perspectiva de que o estado só pode ser rico se o forem os seus cidadãos.
Ao contrário do liberalismo do séc. XIX, os mercantilistas não conceberam a
ordem económica como algo separado da política; não defenderam que o estado
nada tinha a ver com a actividade económica. Antes acentuaram o papel decisivo

circunstâncias fortuitas ou inalteráveis (a má sorte, a falta de saúde, as maquinações dos inimigos, a malvadez
do senhor ou do patrão, a vontade de Deus...), que nada tinham que ver com a ordem social.
Talvez nào seja infundado pretender que com os mercantilistas esta concepção do mundo e da vida começou
a ser posta em causa.
AvoA5N^fS> 303
Vv ^ <

do estado no desenvolvimento da economia de cada nação. O económico estava,


neste sentido, na dependência do político: as questões económicas constituíam a
principal preocupação do estado. Por isso elas foram consideradas e estudadas,
pelos mercantilistas, no âmbito da problemática relativa à organização do estado.
Este é um dos aspectos de modernidade dos mercantilistas.
Desta intervenção do estado na economia resultou o nascimento da burocracia
moderna, “facto não menos importante - na opinião de Schumpeter320- do que o
próprio nascimento da classe dos comerciantes”. Ainda segundo Schumpeter, a eco­
nomia resultante de tal intervenção do estado foi uma “economia planificada (...),
planificada antes do mais tendo em conta as necessidades militares, a guerra”.321
Tendo em vista o objectivo de conseguir uma balança de comércio excedentá-
ria, na mira de assim alcançar o enriquecimento do estado e dos cidadãos, os
escritores mercantilistas definiram um conjunto de medidas que bem podem con­
siderar-se como uma política económica mercantilista, assente na acção regulamenta-
dora do estado, mas também na sua acção como organizador da actividade económica
e mesmo na sua acção diplomática e militar. Os mercantilistas concebiam o co­
mércio externo como actividade entre nações e não entre indivíduos. A economia
adquiria um carácter nacional, defendendo alguns que a função natural do soberano
devia ser a de actuar como “condutor supremo da máquina económica”.
Eis alguns pontos da política econômica mercantilista'.
- defesa da liberdade de exportação de produtos manufacturados e de uma
política de incentivos à exportação;
- proibição da exportação das matérias-primas e dos capitais necessários à
indústria nacional;
- limitação da importação dos produtos estrangeiros, com excepção de certos
bens úteis à indústria nacional;
- reserva do comércio aos nacionais, para impedir que os comerciantes estran­
geiros fizessem sair ouro e prata do país em causa;
- política de fomento das manufacturas, nomeadamente mediante a criação de
Manufacturas Reais, dentro do espírito de que “ce travail ne gâtera point le particulier,
car il supléera seulement à son défaut et sera introduit à la place de celui de letranger
qui ne peut être admis quau grand préjudice de tous le pays” (Montchrestien);

320 Cfr. SCHUMPETER, oò. o f., 188. Efectivamente, como muito bem salienta P. LÉON, "a seriedade das propos­
tas mercantilistas é função do grau de desenvolvimento do aparelho de estado e da sua autoridade. Náo há
política mercantilista eficaz a náo ser quando existe um poder forte capaz de impor aos particularismos locais
ou corporativos o respeito pelas suas decisões” (o b.cit ,193).
321 Cfr. |. SCHUMPETER, passim. René GO NN ARD {ob.cit., 49) considera que o mercantilismo é "estatista* e fala,
a respeito das economias mercantilistas (em especial a francesa), de "socialisme monarchique*.
3 0 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

- liberdade do comércio interno, com um abatimento de barreiras dentro do


espaço nacional, tornada possível pelo estabelecimento de governos centrais fortes
(a política de unificação dos mercados internos é mesmo considerada por alguns
autores como a acção mais importante dos regimes mercantilistas);322
- conquista de colónias em busca de novos mercados.
Dado o baixo nível de vida dos países europeus e a exiguidade dos respectivos
mercados internos, o desenvolvimento das manufacturas exigia a busca de merca­
dos externos. Para os primeiros países a entrar na senda do desenvolvimento in­
dustrial, o comércio externo desempenhou, de facto, um papel fundamental como
condição prévia do desenvolvimento no quadro do capitalismo nascente, quer no
âmbito da “acumulação primitiva do capital”, quer depois como mercado de colo­
cação de produtos (condição necessária para que prossiga a actividade produtiva
em moldes capitalistas). Os mercantilistas deram-se conta disto mesmo e defende­
ram a expansão colonial, sustentando que o empenhamento do estado era requisito
indispensável ao êxito da ‘empresa colonial’.323

4 . A CONTROVÉRSIA ACERCA DO MERCANTILISMO

Dissemos que com frequência transparecem contradições nos pontos de vista


defendidos por autores que hoje consideramos como mercantilistas. E vimos tam­
bém que muitas das teses dos escritores mercantilistas foram contestadas por outros
autores seus contemporâneos, embora alguns dos críticos aceitassem os pontos es­
senciais do ‘pensamento mercantilista’. Mas foram os fisiocratas, primeiro, e Adam
Smith e os liberais do séc. XIX, depois, os mais duros críticos dos mercantilistas.
Em 1516 Thom as M orus publicou a Utopia e em 1623 Tomaso Campanella
publicou a Civitas Soli (Cidade do Sol). São obras contemporâneas dos mercanti­
listas nas quais se apresentam modelos de sociedades ideais baseadas na igualdade
perante o dever de trabalhar e um padrão de vida modesto, na rejeição da riqueza
como objectivo da actividade humana, na hostilidade perante a propriedade indi­
vidual e a liberdade individual.
São geralmente consideradas obras de crítica à sociedade capitalista nascente,
nas quais se prefiguraria o pensamento socialista que viria a ser elaborado no séc.

322 Esta acção dos mercantilistas no sentido da unificação económica dos espaços nacionais foi particularmente
importante na Inglaterra e na França. Neste último país, foi um édito de Colbert que em 1664 criou uma uniâo
aduaneira constituída por um grupo de províncias do norte de França (as "cinq grosses fermes"). no seio da qual
o comércio passou a ser inteiramente livre e a agricultura se começou a desenvolver em moldes capitalistas.
323 Nas novas condições da actividade económica, “produção e venda autonomizam-se como poios de toda a
política: e daí que -escreve J. ALM EIDA GARRETT, oò. d t , 60 - à situação psicológica medieval, à fome de
bens, se suceda um pavor de bens, dos estoques excessivos de produtos, sentimento cuja compreensão não
pode desprender-se das condições sócio-cconómicas criadas pela revolução capitalista*.
A v elà s N u n es - 3 0 5

XIX e a sociedade comunista para que este aponta. Daí a oposição entre estes
autores e os mercantilistas, defensores dos valores próprios do ‘capitalismo comer­
cial’ de então.
Pensamos, porém, que não é por este caminho que deve tentar-se a leitura
crítica dos mercantilistas, à luz da realidade do seu tempo. C om o salienta Jean
Marchai, a condenação do capitalismo que resulta das obras referidas é muito
mais uma reminiscência do espírito medieval, uma espécie de “nostalgia do claus­
tro” do que a antecipação do ideário socialista do séc. XIX.

4 .1 . O S MERCANTILISTAS E A "MANIA DA REGULAMENTAÇÃO"

A orientação dos mercantilistas no sentido de fomentar o desenvolvimento das


actividades económicas levou-os a regulamentar o exercício do comércio e da
indústria, no sentido de lhes imprimir uma dinâmica que não era possível no
quadro institucional herdado da Idade M édia, e a salvaguardar que ficasse dentro
do país a maior parte dos ganhos resultantes da produção e da exportação.
De C olbert se disse que ele tinha a “mania da regulamentação”. Cremos, po­
rém, que não será inteiramente correcto considerar os mercantilistas em geral
(incluindo Colbert) como maníacos da regulamentação. Na verdade, embora vendo
o soberano como “o condutor supremo da máquina económica” (na expressão do
mercantilista inglês James Stweart), a generalidade dos escritores mercantilistas
não se cansa de sublinhar as vantagens da iniciativa privada, da liberdade de co­
mércio e da concorrência entre produtores e comerciantes.
É importante salientar, aliás, que muita da actividade regulamentadora dos
estados mercantilistas procurava justamente proporcionar às manufacturas priva­
das as condições mais favoráveis ao seu desenvolvimento, no período da “acumula­
ção primitiva do capital”. Bom exemplo disto mesmo é a regulamentação do trabalho
nas manufacturas. Tratava-se de garantir mão-de-obra abundante e de formar e
disciplinar os trabalhadores recém-expulsos dos campos, de acordo com as exi­
gências do trabalho nas indústrias novas.
Durante todo este período a força e a violência desempenharam um papel
decisivo nas relações entre os estados, mas também nas relações entre as classes
sociais, mediadas quase sempre pela actuação do estado. Este é um aspecto bem
visível no domínio a que agora nos referimos.
De acordo com a filosofia social então corrente (com forte penetração dos
valores religiosos saídos da Reforma), não se encontra na literatura mercantilista
qualquer preocupação pela sorte da maioria constituída pelos pobres, mendigos e
vagabundos gerados pelas vicissitudes económicas, sociais e políticas da época.
3 0 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a

Leis inglesas de Henrique VIII e de Isabel I prevêem a pena de morte para os


mendigos reincidentes. Várias leis visam organizar a assistência aos pobres: os
fundos resultantes da cobrança de impostos locais especiais são utilizados para
financiar a compra de cânhamo, linho e lã que permitam pôr os pobres a trabalhar.
Em alguns casos, as administrações paroquiais alugam directamente esses pobres
sem trabalho aos donos das manufacturas; noutros casos, os mendigos são interna­
dos nas Workhouses e obrigados a trabalhar nas manufacturas.
Na França a mendicidade foi considerada crime contra o estado. Em finais do
séc. XVII é promulgada legislação que obriga a trabalhos forçados os vagabundos
e os mendigos reincidentes; quanto às mulheres, prevê-se o ferrete, o degredo e o
chicote. Nas manufacturas da seda de Lyon, o regulamento do trabalho (1667)
obrigava a orações comunitárias de manhã e à tarde, trabalho das 4 às 20 horas ou
das 6 às 22, com duas horas e meia de folga para as refeições, e a proibição de
blasfemar, de fumar e de frequentar as tabernas. O regulamento das manufacturas
de lanifícios de Amiens (1666) estipula que “nenhum mestre poderá tomar um
operário que venha de outro mestre para trabalhar em sua casa sem saber se o
primeiro mestre está contente com o operário”.
M ontchrestien é bem o exemplo de um mercantilista que atribui ao soberano a
direcção geral da economia, defendendo que é a ele que cabe “ramener à l’ordre
tout ce qui s’en est détraqué”, “tenir l’oeil ouvert et l’oreille alerte, pour voir et
entendre tout ce qui peut apporter du bien et du soulagement au peuple”. M as o
mesmo M ontchrestien salienta que a actuação do soberano deve ter em conta a
iniciativa privada e o interesse pessoal, “ce grand aiguillon à bien faire”, e põe cm
relevo as vantagens da concorrência, “sans laquele l’action demeure toujours lâche
et molle”. O próprio Colbert sustenta que, “para desenvolver o comércio, há duas
coisas necessárias, a segurança e a liberdade” - “laissez agir l’envie naturelle qu’ont
les hommes de gagner quelque chose et de se mettre à leurs aises”, escreveu ele.
As exigências de intervenção regulamentadora do estado e de maior liberdade
para as actividades económicas não são contraditórias, na óptica dos mercantilis­
tas. O estado era chamado a intervir, em aliança com os comerciantes, contra os
poderosos corpos intermédios herdados da Idade Média. A tarefa do poder central
era a de romper barreiras arcaicas, de pôr fim à intervenção das províncias, das
comunas, das corporações. A missão do estado, para os mercantilistas, era, ao fim
e ao cabo, a de promover a unificação económica e política do espaço nacional.
Conseguir este objectivo, à custa da redução ou anulação dos poderes económicos
e políticos dos corpos intermédios, era considerado condição indispensável para o
desenvolvimento da liberdade económica dos indivíduos. A liberdade, para os
mercantilistas, não se definia negativamente (como o fariam os liberais dos sécs.
A v ela s N u n es - 3 0 7

XVIII e XIX), pela simples ausência de intervenção do estado. Para eles, nas
palavras de Gonnard, a liberdade é antes “um poder de acção que se desenvolve
com e pelo concurso do estado”.
Encarada nesta perspectiva e à luz do seu tempo, a política mercantilista foi,
sem dúvida, um factor de progresso: a acção do estado contribuiu para a generali­
zação de técnicas industriais mais aperfeiçoadas e eficientes e foi a base da criação
de verdadeiras economias nacionais. O que não significa que a manutenção roti­
neira dos regulamentos e até o excesso de intervencionismo não se tenham cons­
tituído, com o decurso do tempo, em obstáculos ao desenvolvimento económico.
Mas a defesa da liberdade de comércio só mais tarde se radicaria nos autores,
ganhando progressivamente a indispensável cobertura teórica.
No final do reinado de Luís XIV, os mais lúcidos de entre os comerciantes
franceses protestavam contra os monopólios concedidos a determinadas Com pa­
nhias e proclamavam que “a liberdade é a alma do comércio, excita o génio e a
aplicação dos mercadores e permite a abundância”.
Mas foi Pierre Boisguillebert (1646-1714) o autor que marcou a transição - neste
como em outros aspectos - entre os pontos de vista dos mercantilistas e o pensamento
liberal que começou a ser veiculado, no domínio da Economia, pelos fisiocratas.
Ao contrário dos mercantilistas, Boisguillebert considera o mercado interno mais
importante que os mercados externos como fonte do desenvolvimento das rique­
zas. E sustenta que a má situação económica da França se deve, precisamente, à
quebra do consumo. Considerando, por outro lado, que a produção agrícola é mais
importante que a produção industrial, defende que devem libertar-se os mercados
dos cereais (permitindo mesmo a sua exportação) para que aumente o consumo e
a produção agrícola e a prosperidade da agricultura se estenda, naturalmente, a
toda a nação. Na mesma linha, Boisguillebert defende a supressão dos impostos
indirectos, que se traduzem em aumento dos preços e provocam, por isso, redução
da procura por parte da maioria dos consumidores.
Dos escritos deste autor ressalta a ideia de que a criação da riqueza pressupõe
o (e baseia-se no) mecanismo da livre formação dos preços. Das relações de troca
aproveitariam as duas partes, harmonizando-se os objectivos egoístas de cada in­
divíduo para a melhor prossecução do interesse geral. Esta seria uma lei natural
aplicável a toda a actividade económica de produção e de troca. Bastaria, pois,
“laisser agir la nature”. “Não se trata de agir - escreve Boisguillebert; é necessário
deixar de agir com a violência que usamos para com a natureza. (...) Assim que for
posta em liberdade, a mesma natureza (...) restabelecerá o comércio e a proporção
de preços entre todas as mercadorias”. Por antecipação, eis o anúncio da tese da
mão invisível\ de Adam Smith.
3 0 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Boisguillebert defende também a ideia de que existe uma interdependência e


solidariedade natural entre todas as profissões e actividades económicas: os rendi­
mentos distribuídos como resultado da actividade de um sector alimentarão os
mercados dos outros sectores de actividade económica. Desde que se deixe agira
natureza, a circulação dos rendimentos traduzir-se-á na criação incessante e recí­
proca de mercados para toda a economia do país. Esta a base da prosperidade. Eis,
antecipando Say, a lei dos mercados dos produtos ou lei de Say.
Na Inglaterra é talvez cm Hobbes (1588-1667) que pela primeira vez aparece
defendida a liberdade de comércio como uma lei da natureza. M as foram William
Petty (1623-1687) e John Locke (1632-1704) os primeiros autores a procurar
demonstrar que a vida económica é governada por leis naturais que os legisladores
não podem alterar, constituindo a liberdade das trocas a condição necessária e
suficiente da ordem económica. Dudlcy North (1641-1691) escreveu muito clara­
mente que “não compete à lei fixar os preços do comércio, porque o seu montante
tem de fixar-se e fixa-se por si mesmo”. O mesmo D. North advoga que, “do ponto
de vista do comércio, o mundo inteiro não é mais do que uma nação ou um só
povo, no interior do qual as nações são como as pessoas; (...) nenhum povo se
tornou rico pelas intervenções do estado, mas é a paz, a indústria e a liberdade, e
nada mais do que elas, que trazem o comércio e a riqueza”. E C h. Davcnant
(1656-1714) é muito claro quando afirma: “o comércio é, por natureza, matéria de
liberdade, encontra os seus caminhos e dirige no melhor sentido os seus empreen­
dimentos; todas as leis que tentam limitá-lo, regulamentá-lo ou orientá-lo podem
ser úteis aos interesses particulares, mas raramente são vantajosas para o público”.

4 .2 . O OURO E A PRATA CONSTITUEM A VERDADEIRA RIQUEZA DE UM PAÍS?

Do entendimento do mercantilismo como M a teoria do enriquecimento das na­


ções pela acumulação de metais preciosos” (R. Gonnard), tem-se partido, por
vezes, para identificar o mercantilismo como a valorização fetichista do ouro e da
prata e com a ideia de que a verdadeira riqueza de um país consiste na quantidade
de ouro e de prata que ele detém.
Adam Smith é um dos autores que insinua que os mercantilistas confundem a
riqueza com o dinheiro, afirmando mesmo que “o essencial da sua argumentação
[dos mercantilistas] pressupõe frequentemente que toda a riqueza consiste em ouro
e prata”.324

324 Cfr. Adam SMITH, Rique/a das Nações, ed. cit., II, 719 ss.
A v e ià s N u n e s - 3 0 9

O próprio Marx acolhe uma interpretação idêntica acerca deste ponto do ‘pen­
samento mercantilista’. E parece mesmo justificá-la, embora classifique de “realis­
mo grosseiro” algumas teses daqueles autores, as quais exprimiriam, porém, na
leitura de Marx, os interesses dos comerciantes e dos fabricantes de então, em
correspondência com o nível de desenvolvimento do capitalismo na época: “o que
importa - diz Marx —, no âmbito da transformação das sociedades rurais da feuda-
lidade cm sociedades industriais, e no quadro dos conflitos entre as nações no
mercado mundial, é um crescimento acelerado do capital, que não poderia obter-
se pela via da actividade produtiva, mas apenas pelo emprego da força”.325
Os primeiros mercantilistas, na interpretação de Marx, consideravam o comér­
cio mundial e os ramos particulares do trabalho nacional que nele desembocavam
directamente como “as únicas fontes autênticas da riqueza ou do dinheiro”. Mas
importa considerar - diz Marx - que nessa época a maior parte da produção
nacional evoluía ainda segundo formas feudais, nas quais os produtores encontra­
vam as fontes da sua própria subsistência imediata. “Os produtos não se transfor­
mavam em mercadorias, nem, por isso mesmo, em moeda; não entravam no
metabolismo geral da sociedade; não apareciam, portanto, como a materialização
do trabalho geral abstracto; e, de facto - alega Marx - , não constituíam riqueza no
sentido burguês da palavra”.
No limiar da produção burguesa, quando “a esfera económica propriamente
burguesa era a da circulação das mercadorias”, todo o complexo sistema da produ­
ção em moldes capitalistas era apreciado na óptica da circulação, o que pode
explicar que os autores da época confundissem o dinheiro com o capital326 e con­
siderassem o ouro e a prata (i.é, a moeda) como a única riqueza, riqueza gerada na
esfera da circulação.
Enquanto fim da circulação, o dinheiro é o fim determinante, o princípio e o
móbil da produção. Nestas condições, Marx considera “perfeitamente natural” que
os autores “se agarrassem à forma tangível e brilhante do valor de troca, à sua
forma de mercadoria geral, por oposição a todas as mercadorias particulares”.
E ainda M arx quem escreve: “As primeiras análises teóricas do modo de pro­
dução moderno - devidas à escola mercantilista - partiram forçosamente dos fe­
nómenos superficiais do processo de circulação tal como eles se apresentam no
movimento do capital mercantil, primeira manifestação autónoma do capital, cuja

325 Cfr. Karl M ARX, “Critique de 1'économie politique", cm Oeuvres (ed. Maximilien Rubel), 1,419/420 e Le Capital,
em Oeuvres, cit., caps. XIII e XIV, II. 1104/1105 e 1393/1394.
326 Pierre DE YON (ob.cit., 99) parece ir no mesmo sentido quando faz a seguinte pergunta: “Numa economia em
que a maior parte das unidades de produção utilizavam muito capital circulante e muito pouco capital fixo,
seria assim tão pouco razoável considerar o dinheiro simultaneamente como capital e como moeda?'.
3 1 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

influência foi preponderante na época do primeiro abalo da produção feudal onde


se situa a origem da produção moderna. E a razão pela qual o mercantilismo
apenas pode apreender a aparência das coisas. A verdadeira ciência da economia
moderna - continua Marx - só aparece no momento em que a análise teórica passa
do processo de circulação ao processo de produção”.
N o clássico livro sobre o mercantilismo, Hecksher apresenta uma série consi­
derável de citações de autores mercantilistas (frequentemente de segundo plano)
onde se afirma que M a riqueza é dinheiro”. Mas tais afirmações (muitas vezes
“meras façons deparler”, como realça Schumpeter) não invalidam a conclusão da
generalidade dos especialistas no sentido de que nas obras dos mercantilistas mais
destacados nada se lê que possa fundamentar a tese de que eles pensavam que a
riqueza é moeda ou de que eles confundiam o dinheiro com aquilo que se pode
comprar com ele.327
M ontchrestien, por exemplo, procura mostrar que é necessário encontrar M os
meios de atrair os metais preciosos ao país”. O país precisa de dinheiro porque
“pode dizer-se que actualmente não se vive tanto pelo comércio dos elementos mas
antes pelo ouro e pela prata”. Estes são “dois grandes e fiéis amigos” que “dão
resposta às necessidades de todos os homens”. Assim sendo, defende M ontchres­
tien, “n en ayantpointde no trecru ,ilfau ten avoirdesétrangers”.
M as este mesmo autor afirma, com toda a clareza, que “não é de modo algum
a abundância de ouro e de prata, a quantidade de pérolas e diamantes, que faz os
estados ricos e o p u len to s”. O que constitui a riqueza de um estado é
Taccom m odem ent des choses nécessaires à la vie et propres au vêtem ent”. “Na
realidade - comentava M ontchrestien - nós temos maior abundância de ouro e de
prata que os nossos pais, mas não vivemos melhor, nem somos mais ricos”. “O
homem nasceu para viver em contínuo exercício de preocupação. (...) A felicidade
dos homens consiste principalmente na riqueza, e a riqueza no trabalho”.
Poderíamos citar abundantemente outros autores que expressamente evidenci­
am não confundir a riqueza com o dinheiro. ParaThom as M un, v.g., “a riqueza
consiste na posse das coisas necessárias para uma vida civilizada”. E Davenant: “a
riqueza de um país reside no produto da terra, no trabalho ou na indústria”. Schum­
peter vai mesmo ao ponto de afirmar que a riqueza era então definida mais ou
menos como a definimos nós hoje. H á um locus classicus - escreveu Schumpeter -
num estudo de Thom as Papillon: “E verdade que geralmente a medida do capital
ou da riqueza é dada pelo dinheiro, mas é mais coisa da imaginação do que da

327 Cfr. J. SCHUM PETER, ob. d t., 413-415. Nem sequer os bulionistas espanhóis, como Ortiz e Olivarez, podem
ser acusados de confundir riqueza e moeda (cfr. É. JAMES, ob. d t., 64).
A v elã s N u n es - 311

realidade: pode-se dizer que um homem possui dez mil libras quando acaso não
tenha em dinheiro de verdade nem sequer cem libras; mas as suas posses, se for
um agricultor, consistem em terras, cereais, gado ou alfaias agrícolas”.
Idêntica clareza de ideias pode ver-se em Dudley N orth (1691): “Nenhum
homem é mais rico por ter a sua riqueza toda em dinheiro, prata guardada a seu
lado, mas, pelo contrário, é mais pobre por essa razão. O homem mais rico é
aquele cuja riqueza cresce em terra lavrada, em dinheiro a juros ou em bens em
tráfego”. Poderemos dizer que desponta aqui a distinção entre capitalista passivo e
capitalista activo.
A separação nítida da noção de riqueza relativamente ao ouro e à prata (à
moeda) surge nos escritores de transição, como Boisguillebert ou W illiam Petty.
O primeiro admitia mesmo que a sociedade poderia até, “se os homens se enten­
dessem, dispensar o ouro” e utilizar apenas o papel-moeda.
O que vimos afirmando encontra confirmação ainda no empenho que os
mercantilistas puseram no fomento da produção nacional.328 Salientámos atrás como
os mercantilistas ingleses prosseguiram uma política agrícola que deu resultados
positivos. No que se refere à França, Colbert foi acusado pela oposição aristocrá­
tica do seu tempo de sacrificar os interesses da agricultura aos da “vil burguesia”.
Boisguillebert e os fisiocratas criticaram duramente Colbert por ter sacrificado os
interesses da agricultura aos das manufacturas. Ao serviço da exportação de pro­
dutos manufacturados, Colbert terá prosseguido uma política de salários baixos, o
que exigia preços baixos para os produtos agrícolas. Daí certas medidas que os
fisiocratas consideraram nocivas para a agricultura (a proibição de exportar, a
regulamentação do mercado interno, a proibição de estocar os cereais, etc.).
A generalidade dos autores reconhece que os mercantilistas franceses, com
excepção de Sully, foram abertamente ‘industrialistas’. M as alguns historiadores
negam que tenha havido uma política deliberada desfavorável à agricultura. A
parte algumas medidas de circunstância, reconhecem estes autores que o colber-
tismo não teve uma política agrícola (Colbert acreditava que o desenvolvimento
das manufacturas rurais resolveria o problema da pobreza nos campos). M as ne­
gam que a baixa acentuada dos preços agrícolas na França (designadamente entre

328 “Se os mercantilistas sublinham o carácter nacional do seu sistema - escreve M ARX, ú/f. ob. c / t, ed. cit., II,
1394 - , tal não é, na sua boca, uma simples frase. Sob o pretexto de terem em conta apenas a riqueza da nação
e os recursos do estado, eles defendem de facto os interesses da classe capitalista e o enriquecimento em geral
como o fim supremo do estado, e proclamam a sociedade burguesa relativamente ao velho estado do direito
divino. Mas, ao mesmo tempo - sublinha Marx - eles têm consciência de que, na sociedade moderna, o
desenvolvimento dos interesses do capital e da classe capitalista, da produção capitalista, constitui o próprio
fundamento do poderio nacional e da supremacia nacional".
3 1 2 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o U t ic a

1662 e 1687) tenha sido consequência da política de Colbert, uma vez que tal
fenómeno se verificou por toda a Europa ocidental.329
E incontestável, porém, o apoio que os mercantilistas concederam às manufacturas,
tanto na Inglaterra como na França, o que ilustra bem a importância que lhes concedi­
am no que toca à sua contribuição para o enriquecimento e o poderio do estado.
Na Inglaterra, promulgou-se legislação que obrigava os pobres (e não apenas
os internados nas Workhouses) a trabalhar nas manufacturas; institui-se um sistema
público de fixação dos salários e toda uma legislação variada que procurou disci­
plinar a mão-de-obra recém-chegada dos campos e fornecer aos industriais mão-
de-obra abundante.
O mercantilismo francês procurou pôr a funcionar um serviço nacional e obri­
gatório de emprego em benefício das manufacturas, às quais concedeu monopólios
e subsídios vários. Para estimular os empresários modernos, que pretendiam fugir
à rotina e à estagnação das corporações de artes e ofícios, Colbert dá edifícios e
instalações às manufacturas privadas; concede-lhes crédito a juro baixo, isenções e
reduções de impostos; garante o aprovisionamento de matérias-primas a bom pre­
ço, através da isenção de direitos de importação e da autorização para a utilização
gratuita das matas reais, quando necessário; assegura, por vários modos, o escoa­
mento dos produtos manufacturados; desenvolve uma política populacionista, para
que não falte a mão-de-obra (isenção temporária de impostos para os que se ca­
sem com menos de 20 anos; isenção de impostos para as famílias numerosas;
proibição da emigração dos operários e apoio à imigração de operários estrangei­
ros qualificados; obrigação de as raparigas solteiras, os padres e as religiosas tra­
balharem na indústria, etc.).

4.3. A IMPORTÂNCIA DO OURO E DA PRATA


O que fica dito no número anterior não significa que os mercantilistas não
atribuissem muita importância à moeda - autêntico nervus rerum, para eles, como
referimos atrás - e não considerassem como objectivo da sua política económica a
abundância de ouro e prata à disposição do país (ideia que é ainda claramente
defendida por John Locke, segundo o qual o interesse de um país consiste em
deter um estoque de moeda superior à de qualquer outro país).
Os estados modernos da Europa tiveram de enfrentar as exigências decorrentes
do seu aparelho central (administração, justiça, forças armadas, representação no
estrangeiro, etc.) e tiveram de realizar os recursos financeiros indispensáveis sem

329 Cfr. P. DEYON, 06. d l , 36/37.


A v elà s N u n e s - 3 1 3

poderem contar com as antigas ajudas feudais. Para tanto, era necessário ouro,
sobretudo em períodos de guerra, tão frequentes naquela época.330
Compreende-se, por isso, que os políticos mercantilistas atribuissem especial
importância à detenção de grandes quantidades de ouro e de prata, tanto mais que
não existiam então instituições capazes de permitir a obtenção de recursos finan­
ceiros através do crédito.
Por outro lado, apesar de já se verificar a circulação de letras de câmbio como
meio de pagamentos nas relações internacionais, a verdade é que não existia, ao
menos até finais do séc. XVII, um sistema internacional de crédito que facilitasse
os pagamentos internacionais. As condições da época dificilmente dispensavam,
por isso mesmo, a existência de consideráveis estoques de metais preciosos, que
constituíam os meios de pagamento indispensáveis para satisfazer as exigências de
um comércio em desenvolvimento crescente.331
Dificuldades semelhantes sentiam-se igualmente no plano interno. Na generali­
dade dos países europeus, a inexistência de um sistema bancário minimamente es­
truturado e o desenvolvimento deficiente dos mecanismos do crédito obrigavam à
utilização das moedas para regular as relações comerciais. Só nos finais do séc. XVII
começou a ser frequente, mesmo na França, a circulação de letras de câmbio, mas
continuava a ser inviável a utilização das transferências de conta a conta como meio
de pagamentos. As trocas directas e as compensações por encontro dos livros comer­
ciais não permitiam dispensar o ouro e a prata para a regularização periódica dos
saldos. O s próprios impostos tinham de pagar-se em “boas espécies”, recusando em
regra os cobradores quaisquer moedas que não fossem de ouro ou de prata.
No período a que nos reportamos, as crises resultantes de más colheitas provo­
cavam frequentemente não só a penúria de alimentos, o seu encarecimento e a
fome, mas também a crise nas manufacturas (por falta de matérias-primas e/ou
por falta de mercados) e ainda dificuldades enormes na obtenção de crédito. Com
efeito, o dinheiro necessário para a importação de cereais e matérias-primas fazia
falta aos negócios e as taxas de juro subiam em plena crise. Perante a inexistência

O estado de guerra era uma situação normal nas relações entre estados, quase sempre tendo como causa
conflitos comerciais (ataque à posição monopolista de um país, disputa sobre a posse de territórios coloniais, etc.).
Basta dizer que de 1494 a 1559 houve guerras na Europa quase todos os anos; ao longo do séc. XVIII, houve
apenas sete anos de paz completa; de 1656 a 1815, a Inglaterra esteve em guerra 84 anos (cír. H . DENIS, ob.
c/t., 93). Compreende-se, deste modo, a conclusão de Schumpeter: 'Naquele mundo cm fermentação (...), a
paz não passava de um armistício, a guerra era o remédio normal para o desequilíbrio político, o estrangeiro
transformava-se ipso facto em inimigo, como nos tempos primitivos' (Cfr. J. SCHUM PETER, ob. cit., 187).
Sobre o processo corrente de efectuar os pagamentos internacionais naquela época, cfr. J. ALM EIDA GARRETT,
ob. cit., 45/46.
3 1 4 - U m a I n t r o o u ç A o A E c o n o m ia P o Ut ic a

de moeda fiduciária e de moeda escriturai, as quantidades de ouro e prata em


circulação revelavam-se insuficientes para ocorrer às necessidades das trocas.
Estas crises de origem agrícola ou comercial, tão frequentes, lembravam, pois,
insistentemente, a importância de deter abundantes estoques dos metais que funci­
onavam como moeda. Nesse mundo perturbado e permanentemente à beira da
penúria, será correcto reconhecer que os mercantilistas se revelaram bons obser­
vadores da realidade do seu tempo ao acentuarem a função da moeda (de ouro e de
prata) como instrumento de reserva de valores.
Já vimos, aliás, que os mercantilistas atribuiram particular importância à relação
entre a abundância de moeda em circulação e a manutenção de baixas taxas de juro.
Isto mesmo levou Keynes a apontar como mérito dos mercantilistas o terem com­
preendido que a abundância de metais preciosos (conseguida através de uma balança
comercial favorável) era o único meio (indirecto) de estimular a realização de inves­
timentos internos, por virtude da baixa da taxa de juro, numa época em que os
investimentos públicos pesavam muito pouco na dinâmica do investimento nacional
e em que as autoridades não dispunham de instrumentos eficientes de política mo­
netária capazes de permitir uma actuação directa sobre a taxa de juro interna.332
Os mercantilistas não desconheceram a influência da abundância (ou do exces­
so) de moeda em circulação sobre o nível dos preços. M as talvez Jean Marchai
esteja certo quando observa que a abundância de moeda não trazia consigo, nas
condições da época, um perigo muito grande de inflações galopantes, uma vez que,
não se conhecendo ainda - como dissemos há pouco - a moeda escriturai e sendo
o papel-moeda uma invenção recente e pouco utilizada, a moeda em circulação
era moeda metálica de ouro e de prata. Sendo assim, o aumento da quantidade de
ouro (moeda) em circulação depende da exploração das minas, c esta não pode ser
directamente influenciada pela política dos governos (nomeadamente no caso da
grande maioria dos países que não produzem ouro).333
O enorme afluxo de metais preciosos vindos das Américas no séc. XVI foi
fenómeno que não se repetiu. No que se refere ao papel-moeda, o primeiro banco
europeu a emitir papel-moeda foi um banco sueco, em 1661. M as a primeira
grande experiência de emissão de papel-moeda sem contrapartida em ouro ou na
produção de mercadorias foi levada a efeito na França por John Law (por vezes
chamado o “mercantilista do papel-moeda”). Surgiu então, pela primeira vez, o
risco efectivo de o excesso de moeda em circulação, por força das opções da polí­
tica governamental, poder conduzir a uma inflação capaz de desorganizar toda a

332Cfr. J. M. KEYNES, The General Theory, cap. XXIII.


333 Cfr. J. M ARCHAL, ob. ctL. 83.
A velàs N u n e s - 3 1 5

economia. M as o banco de Law foi fundado em 1716 e abriu falência em 1720.


Nesta altura já a influência dos mercantilistas era diminuta.
De qualquer modo, a experiência falhada de Law evidenciou ao mesmo tempo
a força do crédito e os perigos do papel-moeda. O fetichismo do ouro perdeu
muito da sua força e as preocupações dos economistas’ deslocaram-se decidida­
mente das questões monetárias para o desenvolvimento da produção e do comér­
cio. “A ciência financeira - escreveu Boisguillebert - não é mais do que o
conhecimento profundo dos interesses da agricultura e do comércio”. William
Petty afirmaria que “o trabalho é o pai e o princípio activo da riqueza e a terra é a
sua mãe”. J. Child defenderia que a evolução e o nível de emprego revelam com
mais segurança a saúde de uma economia do que os cálculos acerca dos saldos da
balança de pagamentos.
4 .4 . T e o r ia d a b a la n ç a c o m e r c ia l e t e o r ia q u a n t it a t iv a d a m o e d a .

O " d il e m a m e r c a n t il is t a "

Segundo um entendimento corrente, a essência do mercantilismo radica na


doutrina segundo a qual uma balança comercial favorável é o objectivo fundamen­
tal da política económica, porque ela gera, de certo modo, a prosperidade nacio­
nal, no pressuposto de que é correcta a opinião popular segundo a qual a riqueza
consiste em espécies monetárias. Com o um qualquer indivíduo, um país, para
enriquecer, deve gastar menos do que o seu rendimento. Este excedente apresen­
tar-se-ia sob a forma de ouro e prata. Esta era, sinteticamente, a interpretação de
Adam Smith acerca do mercantilismo.
Se, como vimos, não colhe hoje o apoio da generalidade dos especialistas a
tese de que os mercantilistas (ao menos os mais representativos) confundiram
todos, grosseiramente, a riqueza com o dinheiro, M ark Blaug considera, no
entanto, que “a ideia de que o excedente das exportações é o índice do bem-estar
económico pode ser considerada como o erro básico em que incorre toda a
literatura mercantilista”.334
Ao serviço de uma balança comercial favorável propunham os mercantilistas
medidas de vária ordem: aumentar e melhorar a mão-de-obra; desenvolver a pro­
dução das manufacturas, sem descurar a agricultura para evitar as situações de
penúria alimentar, particularmente graves em caso de guerra; exportar apenas as
matérias-primas não necessárias à produção nacional e importar o menos possível
de bens para consumo no país; desenvolver o capital comercial, reservando aos
nacionais do país o comércio com as colónias e certo número de outras actividades

334 Cfr. M . B LA U G , ob. c it , 12.


3 1 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

comerciais; tornar o comércio mais fácil e mais livre; praticar uma política de taxa
de juro baixa (Child propõe 4%); assegurar a supremacia militar no mar e pô-la
ao serviço da conquista do ‘respeito’pelas outras nações do domínio dos transpor­
tes marítimos, dos entrepostos comerciais e da pesca do alto.
Estas preocupações e estas medidas ganham sentido, à luz do seu tempo, se se
compreender que elas pressupõem determinadas hipóteses acerca da realidade, por­
ventura tão indiscutíveis para os autores dos sécs. XVI e XVII que nem sempre
consideravam necessário explicitá-las. E o caso da concepção segundo a qual, nas
relações económicas, o que um ganha o outro perde; é o caso da aceitação de que as
necessidades são limitadas, de que a procura é praticamente inelástica; de que é fraca
a acção dos estímulos pecuniários sobre a produção e a oferta, etc. Por outro lado,
numa época em que o comércio interno se desenvolvia irregularmente e se confinava
a áreas determinadas e em que o comércio internacional, graças à pirataria e a outros
factores, era uma actividade acentuadamente aleatória, era natural pensar-se que
uma balança comercial superavitária constituía um suplemento indispensável aos
ganhos de um comércio interno de reduzidas dimensões e que uma nação só pode
enriquecer através de políticas que empobreçam os outros países.335
Estas são ideias que podem compreender-se no quadro de sociedades pré-
industriais, nas quais as taxas de crescimento da produção e da população eram tão
lentas que cada geração mal se apercebia de qualquer crescimento. Daí a tese
segundo a qual, sendo limitados os recursos disponíveis, só pela violência cada
nação podia chamar a si um quinhão maior que os outros. O comércio externo,
com o seu cortejo de conquistas, de pilhagens, de pirataria, de guerras, de violên­
cias de toda a espécie, desempenhou então um papel fundamental como instru­
mento da acumulação capitalista e como estímulo eficaz do ‘espírito de empresa’.
Num mercado constituído por estados ecomómica e politicamente opostos uns
aos outros de forma violenta, seria deslocada a concepção liberal que desconhecia
as nações e via as relações de comércio internacional como relações entre indiví­
duos pertencentes a nações diferentes, de natureza idêntica às relações de comércio
interno, entre indivíduos do mesmo país. Parece mais realista a concepção mer­
cantilista, que parte da ideia de nação enquanto a entidade economicamente autó-

335 Dada a importância que então se atribuía à detenção de um estoque de metais preciosos, compreende-se a
relevância atribuída pelos mercantilistas ao comércio externo; para os países que não produziam aqueles
metais, o comércio externo aparecia como o único expediente para reunir o desejado estoque de ouro e prata.
Compreende-se, também, nesta lógica, a importância atribuída à obtenção de um saldo positivo da balança
comercial: "a posição dominante da contratação internacional - escreve J. ALM EIDA GARRfc 1 1, oò. c/f., 30
- ( ...) representa o sucedâneo, na paz, do domínio do vencedor na guerra*.
A v e i As N u n e s - 3 1 7

noma e considera que as relações de comércio internacional são relações entre


nações (com o seu poder económico, político e militar) e não entre indivíduos.
O mesmo poderá dizer-se dos mecanismos de regulação automática das trocas
comerciais internacionais, cuja ignorância os liberais do séc. XIX não perdoaram
aos mercantilistas. Resta saber se não foi o pensamento liberal e os seus arautos
que esqueceram (ou não compreenderam) que “as dificuldades de comunicação, a
inelasticidade da oferta e da procura, a frequência desordenada das mutações mo­
netárias tornavam aleatórios os automatismos que celebravam com a ingenuidade
de verdadeiros neófitos”.336
Durante o séc. XIX e mesmo actualmente, foram também os mercantilistas
acusados de reduzir a balança de pagamentos à balança do comércio e de conside­
rar nesta apenas a importação e a exportação de bens materiais, a primeira origi­
nando dívidas e a segunda originando créditos.
Não é correcta esta acusação, como não é correcta a ideia de que os mercanti­
listas não foram além do nível das relações bilaterais, propondo-se sempre alcan­
çar um saldo positivo da sua balança bilateral com qualquer outro país.
Relativamente a este último aspecto, aceita-se que a observação poderá ter
cabimento no que respeita a Colbert, que parece não ter compreendido bem o
carácter multilatcral das trocas internacionais e dos equilíbrios monetários. Por
isso mesmo os seis grandes corpos dos mercados de Paris o criticaram e pugnaram
pela liberdade do comércio internacional.337
Quanto aos mercantilistas ingleses, porém, desde Thom as M un - como vimos
- que eles revelaram uma clara compreensão da solidariedade entre todas as cor­
rentes de tráfego e entre todos os mercados, considerando que o que importa é o
saldo global do comércio multilateral e não o saldo de uma balança particular ou
da balança bilateral referente às relações entre o país considerado e outro qualquer.
Passava-se assim da noção estreita de balança bilateral para a noção de balançageral
do come'rcio.m Era um passo importante para se ir abandonando a concepção de

336 cfr. P. LÉO N , o b .c it, \ 86.


337 Lia-se num panfleto de 1668: "o Senhor Colbert nâo repara que, ao pretender colocar os Franceses em situação
de poderem dispensar todos os outros povos, leva estes a, por seu lado, fazerem o mesmo'. Também a Com­
panhia das Indias Orientais reclama, por volta de 1686, “total liberdade de comércio e mútua correspondência
com os países estrangeiros", invocando os exemplos da Inglaterra e da Holanda, onde "os portos estâo perma­
nentemente abertos à entrada e à saída dos metais preciosos (...) e mesmo na Holanda igual liberdade é con­
cedida às saídas das moedas nacionais com o cunho dos Estados Gerais; é esta grande liberdade - concluía-
se - que provoca a abundância que existe nas Províncias Unidas e as torna senhoras de todo o tráfico". Do
mesmo modo, os representantes dos portos comerciais de Rouen, Saint-Malo e Nantes (entâodos mais impor­
tantes de França) defendiam os princípios da divisáo internacional do trabalho e exigiam o livre desenvolvi­
mento das trocas multi laterais.
338 Um caso que ajudou os mercantilistas ingleses a compreender que o mais importante sáo as compensações
3 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

um comércio internacional de volume limitado e estável (por isso mesmo disputa­


do à força por cada um dos estados) e o princípio da guerra do dinheiro, muito
presente na política mercantilista.
Thom as M un vai mais longe na análise da problemática da balança de paga­
mentos, sendo correntemente apontado como o primeiro autor a dar corpo à noção
de balança dospagamentos correntes™ No activo desta balança contabilizava não só
o custo de produção das mercadorias exportadas mas também o lucro dos comer­
ciantes e o preço do frete e do seguro, quando o transporte se efectuava em navios
britânicos. No activo contabilizava ainda as despesas feitas no país pelos estrangei­
ros, os ganhos dos cidadãos nacionais em países estrangeiros, as despesas com
espionagem feitas na Inglaterra por potências estrangeiras. No passivo, M un ins­
crevia os preços de venda na Inglaterra dos produtos importados (deduzidos os
direitos alfandegários), bem como os ganhos realizados no país por cidadãos es­
trangeiros, as despesas dos britânicos e do seu governo no estrangeiro (quer no
âmbito das representações diplomáticas quer no quadro do esforço de guerra).
Perante estes dados, M ark Blaug defende que, quando os mercantilistas falam
de excedente da balança comercial, eles visam, em regra, o excedente das exporta­
ções materiais ou imateriais sobre as importações, excedente que se traduzirá ou
na entrada de ouro ou na abertura de um crédito sobre o estrangeiro (i.é, na
exportação de capitais). Poderá, pois, admitir-se que os mercantilistas distinguiam
já, ainda que de forma grosseira e expressa numa linguagem desprovida de rigor
científico, aquilo que hoje se designa por balança dospagamentos correntes e balança
dos capitais (movimento de capitais).340

multilaterais foi o do comércio do Báltico. Era um comércio deficitário para os ingleses; mas era indispensável
para aprovisionar de matérias-primas os estaleiros navais britânicos, o que fazia dele uma actividade económica
essencial para a expansão do poderio britânico nos mares e para o êxito dos Actos de Navegação.
339 J. SCHUM PETER (ob.cil., 404-406) atribui esse mérito ao italiano Antonio Serra (1613), que apresentou uma
concepção clara da balança comercial e da sua utilização como instrumento analftico. Além de ter em conta
os movimentos de invisíveis, Serra explicou o comportamento da balança comercial e os movimentos do ouro
e da prata pelas condições económicas do país, considerando os fenómenos monetários como consequências
e não como causas, como meros sintomas, não importantes em si mesmos.
340 Cfr. M . B LA U G , oh. c/t., 12.
A balança com ercial ou a balança dos pagamentos correntes podem apresentar saldo positivo ou negativo.
Mas a balança dos pagamentos, no seu conjunto, tem de estar, necessariamente, equilibrada. Com efeito, um
país constrói o seu activo através da exportação de bens e serviços, da exportação de ouro e da importação de
capitais (investimentos directos estrangeiros realizados no país, entradas de lucros de investimentos do país no
estrangeiro; empréstimos obtidos no estrangeiro). No passivo inscrevem-se as importações de bens e serviços,
a importação de ouro c as exportações de capital (investimentos feitos no estrangeiro, pagamento de lucros no
estrangeiro, abertura de créditos em favor do estrangeiro). Pois bem. Os desequilíbrios porventura registados em
sede das exportações e importações de bens e serviços e de ouro são compensados contabilisticamenie através
da inscrição de movimentos de sinal contrário no âmbito dos movimentos de capital (o défice é 'coberto' com
entrada de capitais; o saldo positivo é 'coberto' com saída de capitais).
A v elã s N u n e s - 3 1 9

Esclarecidas estas questões acerca da teoria da balança comercial dos mais


representativos dos escritores mercantilistas, fica de pé a questão de saber como é
que os autores dos sécs. XVI e XVII não se deram conta de que a teoria quantita­
tiva da moeda (que vem de Jean Bodin e que os mercantilistas em regra aceitaram)
entrava em conflito com as suas concepções acerca da natureza e dos resultados
das trocas internacionais. Se o saldo positivo da balança comercial provoca a en­
trada de metais preciosos num país, como impedir que a subida dos preços inter­
nos que daí resulta torne não competitiva a produção nacional com a consequente
redução das exportações e aumento das importações?
Vejamos melhor.
Jean Bodin enunciara em 1568 a ideia de que o poder de compra da moeda (de
ouro ou de prata) varia em sentido inverso ao da quantidade de ouro e prata em
circulação no país.341 E John Locke apresentou, na última década do séc. XVII, a
sua versão da teoria quantitativa, segundo a qual os preços variam no mesmo sen­
tido e na mesma proporção da quantidade de moeda em circulação.
Por outro lado,Thomas M un escreveu, por volta de 1630, que “todos estão de
acordo acerca do facto de que a abundância de moeda num reino eleva o preço das
mercadorias”, acrescentando logo que “a abundância de moeda, tornando os bens
mais caros, provoca a diminuição da procura e do consumo desses bens”. O mes­
mo autor compreendeu igualmente que o volume das exportações e das importa­
ções depende do nível relativo dos preços nos diferentes países e que todo o défice
ou excedente da balança comercial (abrangendo os movimentos de bens e servi­
ços) tem de ser compensado por um fluxo correspondente de metais preciosos
(importação, no caso de défice; exportação, na hipótese de excedente).
Pergunta-se: confrontando estas aquisições teóricas dos sécs. XVI e XVII, como
se explica que tenha sido levado a sério, ao longo dos tempos, o objectivo da
política mercantilista de obtenção de um excedente crónico da balança comercial?
Dadas aquelas permissas, tal objectivo só poderá ter sentido como objectivo de
curto prazo. M as os mercantilistas apontam para a sua concretização com carácter
permanente (o próprio Locke defendia ainda que era do interesse de cada país
deter um estoque de moeda superior ao dos outros países), visando a acumulação
indefinida de metais preciosos, com base no esperado afluxo ininterrupto de ouro

341 Jean Bodin considerava que a alta de preços podia resultar de cinco causas possíveis, de importância desigual:
o aumento da oferta de ouro e de prata; a existência de monopólios; a adopção de medidas ou a ocorrência
de circunstâncias susceptíveis de reduzir os fluxos comerciais das mercadorias disponíveis; as despesas exces­
sivas dos monarcas; a depreciação do teor metálico das moedas. A primeira causa era, segundo Bodin, a causa
decisiva da subida dos preços e da consequente perda de poder de compra da moeda. Cfr. J. SCHUM PETER,
Historia..., cit., 360-367.
3 2 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

e prata aos países que consigam saldos positivos da balança comercial. Eis o “di­
lema mercantilista”, de que fala M ark Blaug.342
A resolução deste dilema deve procurar-se, segundo Blaug, na concepção dos
escritores mercantilistas - que terá tido em John Law o seu intérprete mais acaba­
do - segundo a qual a moeda estimula o comércio e a actividade económica em
geral, na medida em que a sua abundância aumenta a velocidade de circulação das
mercadorias. Na verdade, embora na versão inicial de Locke a teoria quantitativa
apontasse no sentido de que o nível geral dos preços é sempre proporcional à
quantidade de moeda (na qual se tinha em conta a velocidade de circulação da moe­
da), a teoria quantitativa aparece intrinsecamente ligada, ao longo dos sécs. XVII
e XVIII, ao princípio segundo o qual “a moeda estimula a actividade económica”.
De acordo com este princípio, qualquer aumento da oferta de moeda deveria ser
sempre seguido por um aumento da procura de moeda, o que significaria que é o
volume dos negócios e não o nível dos preços que vem afectado por um afluxo de
metais preciosos e inerente aumento da quantidade de moeda em circulação.343
A partir de David Hum e (1711-1776), a chamada equação das trocas costuma
apresentar-se como uma identidade (M V = PT ), em que o produto da quantidade
de moeda (M ) pela sua velocidade de circulação ( V = número de vezes que cada
unidade monetária muda de mãos durante um período dado) é igual ao produto do
volume das trocas (T) pelo preço médio das mercadorias transaccionadas (P).
Admitindo q u e T e V são insensíveis às variações da quantidade de moeda (sendo
T determinado pelas forças ‘reais’ da economia e V pelos hábitos das pessoas e
pelo comportamento das instituições financeiras do país), a teoria quantitativa da
moeda é apresentada como uma relação causal entre M e P: P varia em função de
M (e na mesma proporção de M ).
Na interpretação dos mercantilistas, porém, a teoria quantitativa era entendida,
essencialmente, como uma relação entre M e T .

342 Cfr. M . B LA U G , 6b. c/f., 18-21.


343 Refira-se, em primeiro lugar, que os mercantilistas salientaram que o aumento da quantidade de ouro e prata
existente num país nâo significava necessariamente um aumento igual da quantidade de moeda em circula­
ção: uma parte considerável do ouro e da prata náo era monetarizada, sendo desviada para entesouramento
e para consumos sumptuários.
Por outro lado, a influência favorável da abundância de moeda sobre o nfvel da estabilidade económica
(aumento da produção e incremento do comércio) ligava-se ao entendimento da moeda mais como interme­
diário geral das trocas do que como reserva de valor, entendimento presente nos autores mercantilistas desde
o séc. XVI (Davanzati), desenvolvido com maior clareza por autores da segunda metade do séc. XVII (Thomas
Mun, v.g.) e abertamente assumido por Potter, Law e Farbonnais. Assim sendo, o aumento da quantidade de
moeda nâo tem que provocar, necessariamente, um aumento proporcional do nível geral dos preços. Cfr. J.
SCH UM PETER, últ. b c . c/f., e J. ALM EIDA GARRETT, ob. C/f., 57-58.
A v elã s N u n e s - 3 2 1

Esta concepção de que a vantagem verdadeiramente significativa da abundân­


cia de moeda reside em que ela acelera o comércio e multiplica as transacções
(que foi a de muitos mercantilistas, incluindo Colbert) talvez não fosse tão desca­
bida como alguns pensaram, se nos colocarmos no quadro de economias em que
permanentemente existiam grandes reservas de mão-de-obra e de recursos natu­
rais inactivos. Nestas condições, o aumento da quantidade de moeda poderia esti­
mular o aumento da produção, sem provocar a subida dos preços.344
Assim se justificava, no séc. XVIII, a lógica da prossecução do objectivo de
manter permanentemente uma balança comercial favorável. Tal seria possível por­
que os preços não têm que aumentar necessariamente na sequência de um aumento
da quantidade de metais preciosos no país. Basta que as quantidades suplementares
de moeda sejam utilizadas para financiar o aumento da produção: “Um aumento
da quantidade de moeda dará trabalho aos que actualmente se encontram ociosos”
- escrevia John Law no início do séc. XVIII.
Segundo esta perspectiva, o aumento dos preços que pudesse resultar do au­
mento da quantidade de moeda ampliava as oportunidades de lucro para os manu-
factureiros e para os comerciantes, que absorveriam rapidamente a quantidade de
moeda suplementar para promoverem o aumento da produção e das vendas; os
salários pagos a quem estava desempregado até então alimentariam o aumento da
procura de bens de consumo; como o preço do dinheiro seria baixo, os lucros
seriam elevados, a produção e as vendas continuariam a aumentar sem o risco de
uma acentuada subida dos preços.
À medida que as condições económicas e sociais se foram modificando, as
concepções liberais começaram a apresentar o “dilema mercantilista” como uma
contradição insanável e o objectivo de alcançar um fluxo perm anente de metais
preciosos como um absurdo impossível de concretizar. Os passos decisivos neste
sentido foram dados por Richard Cantillon (1680-1734) e por David Hume (1711-
1776), que - com base no entendimento da teoria quantitativa da moeda como a
relação causal entre a variação de M e a variação de P, de tal modo que P varia no
mesmo sentido e na mesma proporção que M - concluiram pela existência de
mecanismos automáticos de rcequilíbrio da balança de pagamentos, que coman­
dariam a distribuição dos metais preciosos pelos vários países, independentemente
dos esforços de cada um destes para reter a moeda. Pois bem: os mercantilistas não
podiam ter-se dado conta de tais mecanismos autoreguladores porque era outra,
como vimos, a sua interpretação da teoria quantitativa da moeda.

344 Cfr. P. DEYON, ob. cit., 98-99.


3 2 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

4.5. O MERCANTILISMO E O SEU TEMPO. A TRANSIÇÃO PARA O


LIBERALISMO

Por volta de 1630,Thom as M un já se dera conta de que “vender caro e com­


prar barato” acaba por conduzir à inversão do saldo da balança comercial. Tam ­
bém William Petty contestava já em 1662 a pretensão de se conseguir uma balança
de pagamentos permanentemente excedentária e uma acumulação indefinida de
metais preciosos. Fê-lo em nome de uma espécie de doutrina das necessidades do
comércio de acordo com a qual “uma certa medida e uma proporção adequada de
moeda são necessárias para animar o comércio de uma nação, do mesmo modo
que uma quantidade superior ou menor poderia ser-lhe prejudicial”.
Mas foram Cantillon e Hum e que trouxeram novas perspectivas à problemáti­
ca em análise.
Irlandês de origem, Richard Cantillon foi banqueiro na França e escreveu em
francês, durante a década de 1720, o seu Essai sur la Nature du Commerce> que
circulou sob a forma de manuscrito até que foi impresso em 1755.
Cantillon é ainda mercantilista, advogando uma política proteccionista e de­
fendendo que a moeda é “o verdadeiro corpo de reserva do estado” e que a “a
abundância de moeda” é um elemento fundamental na configuração da “riqueza e
do poder relativos dos estados”. N o domínio da análise monetária, Cantillon pro­
curou explicar como é que o aumento da produção das minas de ouro de um país
afecta, em primeiro lugar, os rendimentos neste sector, estendendo depois os seus
efeitos aos sectores dos bens de consumo e dos bens alimentares, aumentando os
lucros da agricultura e baixando os salários reais. Daqui resultaria uma pressão no
sentido do aumento dos salários nominais, seguindo-se novos ciclos de aumento
das despesas e dos preços.
Debruçando-se sobre as consequências do afluxo de metais preciosos a um
país, Cantillon critica a tese de Law de que “a moeda estimula os negócios”. Este
efeito - defende Cantillon - é mais susceptível de se verificar quando o aumento
da quantidade de moeda resulta de um excedente das exportações sobre as impor­
tações do que quando resulta de um aumento da produção das minas de ouro
nacionais. Neste último caso, o mais provável seria um aumento directo dos preços
sem aumentar a produção. De todo o modo, o aumento da quantidade de moeda
em circulação (ainda que em consequência de uma balança comercial favorável)
incrementaria o luxo e provocaria o aumento do nível dos preços internos, o que
desencorajaria as exportações e estimularia as importações, invertendo-se os fluxos
de circulação do metal.
A v ela s N u n e s - 3 2 3

Só assim não é na hipótese - admitida por Cantillon - de serem inelásticas a


procura por parte do estrangeiro de produtos nacionais e a procura nacional de
produtos estrangeiros. Nestas condições, tornar-se-iam mais favoráveis os termos
de troca (relação entre o preço das exportações e o preço das importações de um
país) e o saldo positivo da balança de pagamentos aumentaria.
Mas já não seria assim se aquelas procuras fossem elásticas. Nesta hipótese,
porém, Cantillon, preconizava - como W . Petty - que se impedisse o livre curso
do processo inflacionista, não permitindo a circulação de todo o ouro que entrasse
no país (quer fundindo-o e entesourando-o, quer emprestando-o ao estrangeiro ou
exportando-o sob outras formas).
Alguns anos mais tarde David Hume (1752) sustentaria que as procuras acima
referidas são relativamente elásticas, o que significaria que nenhum país pode
acumular ouro ilimitadamente, ao contrário do que pretendiam os mercantilistas.
Nos seus escritos, Hum e apresenta uma justificação histórica do mercantilis­
mo, ao mesmo tempo que refuta as teses mercantilistas sobre a balança comercial
e enuncia alguns dos pontos centrais da filosofia dos economistas liberais do séc.
XIX.345 Q uanto à questão que agora nos interessa mais de perto, David Hum e
lançou as bases da teoria do reequdíbrio automático da balança dos pagamentos em
regime de padrão-ouro.
Partindo da ideia de que o poder de compra da moeda é inversamente propor­
cional à quantidade de moeda em circulação, Hum e sustenta que é absolutamente
falacioso o raciocínio da nação que pretende enriquecer acumulando ouro, pois
dessa acumulação há-dc resultar uma elevação dos preços; contudo, se os preços
sobem em determinado país, isso quer dizer que, a certa altura, hão-de passar a
ficar mais baratas as mercadorias estrangeiras, razão por que se passa a comprá-las
em maior quantidade, preferindo-as às nacionais; mas se os preços do país em
questão sobem, isso também quer dizer que os produtos internos, cm dado mo­
mento, estarão tão caros que o mercado externo deixará de os comprar. Em suma:
à medida que o metal precioso aumenta, os preços sobem e, pelas razões explica­
das, diminuem as exportações e aumentam as importações, o que há-de ter como
necessária consequência a saída do ouro até ao ponto de reequilíbrio da balança.

345 Repare-se neste texto, tâo elucidativo da confiança de D . Hume nos mecanismos naturais e na livre iniciativa
de cada um: "Deve concordar-se que, quando nos afastamos desta igualdade, privamos o pobre de maior
satisfação do que aquela que proporcionamos ao rico; é muitas vezes à custa de um grande número de famílias
e mesmo de províncias inteiras que um só homem satisfaz a sua vaidade frívola...
Entretanto (...) se anulais tais virtudes [as qualidades activas dos indivíduos, destruídas pela adopçáo de esquemas
de igual repartição da propriedadel nas suas operações, em breve reduzireis a sociedade à extrema indigência
e, para impedir um pequeno número de homens de cair na miséria, lançareis nela toda a sociedade".
3 2 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Por outro lado, se um país perde ouro, daí resulta uma baixa de preços, a qual,
na linha dos raciocínios anteriores, há-de conduzir ao aumento das exportações e
à diminuição das importações, desaparecendo o défice da balança de pagamentos e
regressando o ouro ao país de onde saíra. Segundo a lógica deste mecanismo
automático, a própria saída do ouro de um país desencadearia uma série de conse­
quências que conduziriam o ouro ao país de onde tinha saído.
Resumindo: os metais preciosos distribuir-se-ão automaticamente pelos vários
países que participam no comércio internacional em função do volume do comér­
cio de cada um. Cada país disporá, em princípio, da quantidade de ouro e de prata
de que necessita para o seu comércio, e apenas dessa quantidade.
Aparece nesta construção, tal como se disse antes, todo o optimismo e confian­
ça das teses liberais num mecanismo natural, ao mesmo tempo que se põe de parte
a filosofia mercantilista tendente a justificar a necessidade de o estado intervir a
incentivar as exportações e a assegurar um excedente da balança comercial.
As críticas dos liberais visavam negar o fundamento à política económica dos
mercantilistas. A par de alguns fracassos, permaneciam, porém, certos êxitos in­
discutíveis, particularmente na França c na Inglaterra, a comprovar a “necessidade
histórica do mercantilismo” (P. Deyon) e a indicar que as pretensas obsessões dos
mercantilistas foram muitas vezes opções sensatas e racionais, adequadas às reali­
dades do seu tempo. M esmo Adam Smith, tão cáustico para com os mercantilis­
tas, não deixou de ‘compreender’ os Actos de Navegação.
A partir de finais do séc. XIX tem-se assistido ao ressurgir de algumas das
teses ou de alguns dos temas caros aos mercantilistas. Os primeiros defensores da
reabilitação dos mercantilistas foram os autores alemães ligados à Escola Históri­
ca e empenhados na defesa dos princípios do nacionalismo e de políticas protecci­
onistas, que consideravam indispensáveis à industrialização da Alemanha.
O mercantilismo está ligado historicamente ao processo de afirmação dos esta­
dos modernos na Europa, do seu desenvolvimento económico e da sua emancipação
económica no quadro nacional. Não admira, por isso, que as suas teses tenham
conhecido algum favor no âmbito da Alemanha empenhada na sua unificação naci­
onal, na constituição de um estado e de uma economia ao serviço da nação. Numa
Alemanha que protegia as suas fronteiras económicas no quadro do Zolverein, Fri-
edrich List denunciava (1841) o livrecambismo como a expressão teórica dos inte­
resses ingleses e defendia a intervenção do estado para que a Alemanha pudesse
exercer o seu direito à industrialização e ao desenvolvimento.346 Compreende-se,

346 Razões do mesmo tipo ajudam-nos a compreender que, actualmente, nos países do chamado Terceiro Mundo,
desejosos de promover o seu desenvolvimento económico, se aceite uma forte e insubstituível participação do
A v elà s N u n es - 3 2 5

por isso, que René Gonnard, mostrando a defesa, por Montchrestien, da necessidade
de afirmação política e económica das nações, na base de uma economia nacional
completa que se baste a si própria e se expanda para o exterior, comente deste modo:
“C est dèjà tous List, ou presque que nous trouvouns chez lui”.347
Mesmo na Inglaterra, o interesse pelos mercantilistas renasceu em pleno período
da corrida às colónias nos finais do séc. XIX (recorde-se que os mercantilistas atri­
buíram um papel de primeiro plano aos mercados externos, à pilhagem das colónias
e ao regime do pacto colonial) e as práticas de proteccionismo alfandegário recupera­
ram posições no âmbito da depressão económica se registou entre 1873 e 1896.
Após a Primeira Guerra M undial, a experiência pôs em causa as concepções
liberais e os seus mecanismos automáticos no que se refere à divisão internacional
do trabalho, ao comércio internacional e à balança de pagamentos. O padrão-ouro
chegou ao fim como sistema monetário internacional, e, com ele, os mecanismos
de auto-regulação que lhe eram próprios no âmbito das relações económicas in­
ternacionais e da balança de pagamentos. Perante situações continuadas de défice
da balança, muitos países intervieram nos mercados de câmbios. Ressurgiram as
práticas proteccionistas e as aspirações de autarcia económica. Com a Grande
Depressão, foi o descrédito do laissez-faire e a comprovação da necessidade de
intervenção do estado na economia.
Neste ambiente, compreende-se o despertar do interesse pelas obras e pela
política dos mercantilistas, que foram objecto de vários estudos, dos quais o mais
importante é o de E.F. Heckscher, O Mercantilismo (1932). O próprio Keynes
dedicou um capítulo da GeneralTbeory (1936) ao mercantilismo, pondo em relevo
a importância atribuída à política de taxa de juro baixa, que Keynes igualmente
advogou. N o entanto, assim como não é correcto - como M . Blaug mostrou -
considerar os mercantilistas como precursores de Keynes, também não terá senti­
do falar-se de neo-mercantilismo, como alguns pretenderam, a respeito destes mo­
mentos de interesse renovado pelos temas mercantilistas.
O mercantilismo tem de entender-se no contexto histórico em que surgiu. Ele
foi a doutrina e a prática económicas dos estados nacionais no período que decorre
entre o séc. XVI e meados do séc. XVIII, o período histórico do desenvolvimento
dos capitalismos nacionais, em pleno florescimento do chamado capitalismo co­
mercial. Nesse período de transição, o mercantilismo enquadrou-se nas exigências

estado na condução da acumulação do capital e no lançamento das infraestruturas indispensáveis ao desen­


volvimento, do mesmo modo que de muitos lados se proclama que, ao menos nestes países subdesenvolvidos,
uma industrialização adequada às exigências nacionais exige uma boa dose de proteccionismo e a salvaguar­
da da soberania sobre os recursos naturais desses países, limitando a influência estrangeira.
Cfr. R. G O N N A R D , ob. cit., 111.
3 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

e nos valores do processo que preparou as condições para o desenvolvimento do


capitalismo industrial.
As obras dos mercantilistas não constituem ainda um sistema científico no
domínio da economia política, mas constituem reflexões autónomas relativamente
aos valores religiosos, analisando as questões económicas no seu terreno próprio,
ignorando as considerações morais ou teológicas na escolha dos objectivos e dos
meios que integram a sua política económica, e lançando as bases de uma ciência
das sociedades.
As novas condições económicas e sociais explicam o envelhecimento rápido do
mercantilismo, ao ritmo do séc. XVIII europeu, num momento em que a filosofia
das luzes anunciava o fim da primazia da razão de estado.
C apítulo I II

O s F isiocratas
3 2 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l Itjca

1. A f is io c r a c ia : o s " e c o n o m is t a s "

A França de meados do séc. XVIII era um país com uma economia predominan­
temente agrícola, assente, em boa parte, na propriedade senhorial da terra. Nas provin­
das do norte, uma classe de rendeiros capitalistas desenvolviajá uma agricultura baseada
no recurso ao trabalho assalariado, caracterizada por uma produtividade bastante su­
perior à que se registava no sul do país. Esta “grande cultura” correspondia apenas a
cerca de 1/6 da área cultivada (produzindo 1/4 do total de cereais), permanecendo no
resto do país uma agricultura pré-capitalista, organizada em explorações camponesas
onde predominavam formas de trabalho e de gestão de tipo feudal.
No que toca à actividade industrial, ela assentava basicamente em unidades de
produção de tipo artesanal, começando então a ensaiar os primeiros passos as
manufacturas de tipo capitalista.
A actividade comercial era igualmente de pequeno alcance e estava sujeita a entra­
ves e regulamentos de vária ordem, especialmente no tocante ao comércio de produtos
agrícolas, quer no plano interno quer no plano das trocas internacionais. No artigo
sobre “grains” da Enciclopédia (1757), o próprio Quesnay criticava, a este propósito, os
mercantilistas, por terem descurado a agricultura em beneficio das manufacturas e
ainda porque, “através da excessiva procura de um comércio concorrencial, pretende­
mos prejudicar os nossos vizinhos (...), mas, devido a semelhante política, extingui­
mos, entre eles e nós, um comércio recíproco que nos beneficiava largamente”.
Pois bem. Foi nesta época, correspondente à penetração das relações capitalis­
tas de produção na agricultura - uma “época em que a feudalidade se aburguesa e
a burguesia adopta ares feudais”, no dizer de Marx - , que se desenvolveu, numa
atitude crítica relativamente à política mercantilista de Colbert, uma nova corrente
de ideias, que ficaria conhecida pelo nome defisiocracia.
A designação de fisiocracia terá sido utilizada pela primeira vez por D upont de
Nemours, intitulando deste modo uma antologia de escritos de Quesnay, editada
em 1767. Etimologicamente, a palavra significa governo da natureza (a palavra
gregaphysis significa natureza), ideia que se adapta bastante bem ao núcleo essen­
cial do pensamento dos autores que integram esta corrente.
De seita fala Adam Smith (“seita considerável, conhecida na república das letras
francesas pelo nome de Os Economistas”). E esta definição traduz bem a relação
especial que se estabeleceu entre o mestre (Quesnay) e os seus discípulos, marcada
pelo fervor quase religioso com que os restantes fisiocratas adoravam Quesnay. Atente-
se neste trecho do Marquês de Mirabeau, transcrito por Adam Smith:348

348 Cfr. Adam SMITH, Riqueza das Nações, cit., II, 272-273.0 mesmo Mirabeau defendia, aliás, que o Tableau
A v elAs N u n es - 3 2 9

“H ouve, desde o começo do m undo, três grandes invenções que conferiam,


essencialmente, estabilidade às sociedades políticas, independentem ente de
m uitas outras invenções que as vieram enriquecer e embelezar. A prim eira é a
invenção da escrita que, só por si, dá à natureza hum ana o poder de transmitir,
sem alterações, as suas leis, contratos, anais e as suas descobertas. A segunda é
a invenção da m oeda, que une todas as relações entre as sociedades civilizadas.
A terceira é o Quadro Económico, resultado das outras duas, que as completa,
aperfeiçoando o seu objecto, a grande descoberta da nossa era, da qual a nossa
posteridade colherá o benefício”.

O mais importante dosfisiocratasé, sem dúvida, François Quesnay (1694-1774),


médico de Luís XV, acerca do qual Schumpeter escreveu que nele “todos os eco­
nomistas vêem uma das maiores figuras da sua ciência”.349 Entre os ‘discípulos’
salientam-se: M ercier de La Rivière (1720-1793), Le Trosne (1728-1780), o
Marquês de M irabeau (1720-1792), o abade Baudeau (1730-1792), D upont de
Nemours (1739-1817) eT urgot (1727-1781), embora este contestasse algumas
das teses do mestre.
Não é muito favorável a opinião de Adam Smith acerca dos fisiocratas. “Este
sistema - escreve Smith350 —que apresenta o produto da terra como a única fonte
de crédito e riqueza de qualquer país nunca foi, tanto quanto sei, adoptado por
nenhuma nação e, actualmente, só existe nas especulações de alguns homens de
grandes conhecimentos e capacidades na França. Certam ente que não valeria a
pena analisar em profundidade os erros de um sistema que nunca prejudicou e,
provavelmente, nunca virá a prejudicar nenhuma parte do mundo”.
Esta sobranceria deve-se, segundo Schumpeter, ao facto de ser quase seguro
que Smith não compreendeu plenamente a importância do Tableau Économique. É
bem provável que Schumpeter tenha razão, o que não impediu Smith de escrever
que o sistema fisiocrático, “apesar de todas as imperfeições”, é “talvez a melhor
aproximação da verdade já publicada no domínio da Economia Política”.
Marx foi o primeiro economista de grande projecção a reconhecer a importância
de Quesnay e dos fisiocratas, considerando-os os verdadeiros fundadores da Econo­
mia moderna: “O doutor Quesnay - escreveu Marx - fez da economia política uma
ciência, que resumiu no seu famoso Tableau Économique' (.Miséria da Filosofia).
E por certo discutível e continua a discutir-se a importância e o significado da
contribuição dos fisiocratas para a ciência económica. M as o interesse que os seus

Économique deveria ser "afixado nas escolas, nas sacristias e nas câmaras municipais" (apudA. VACHET, ob.
cif.. 321).
349 Cfr. I. SCHUM PETER, Historia..., c it . 167.
350 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c iL , II, 249.
3 3 0 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

trabalhos têm suscitado prolonga-se até aos nossos dias, o que, só por si, justifica
a atenção que vamos dedicar ao seu estudo.
Começaremos por enquadrar os fisiocratas no contexto do pensamento liberal
e da ideologia liberal. Com este objectivo, tentaremos esclarecer o seu conceito de
ordem natural (no seio da qual a “lei física” determina a “lei moral”) e o papel que
nela desempenham a propriedade, a liberdade e a igualdade. É ainda no quadro desta
ordem natural (igual a ordem económica, i.é, a uma sociedade que só existe na
medida em que os homens estabelecem entre si relações de troca) que destacaremos
o individualismo social dos fisiocratas, a sua antropologia optimista, a sua crença na
harmonia universal dos interesses, as suas ideias acerca das funções do estado (no­
meadamente no que concerne às relações entre o estado e a economia) e a sua
concepção metodológica acerca da ciência económica.351

2. A "O rdem N a tu ra l"

Concebendo o homem como um ser que busca o prazer e a felicidade - um ser


cujos móbeis são “o apetite do prazer e a aversão da dor” (Le Trosne) - , e acentu­
ando a natureza económica das condições de felicidade humana, os fisiocratas recu­
sam a ideia do homem isolado que Le Trosne qualifica de “pura imaginação e
suposição absolutamente gratuita”.
O homem é necessariamente um ser social, inserido em uma qualquer forma de
sociedade, uma vez que “o único meio de aumentar as fruições úteis e agradáveis, que
são o bem-estar da humanidade sobre a terra, é seguramente a ligação dos homens
entre si, a comunicação das inteligências, das forças, dos trabalhos reunidos por esta
multiplicação”. (Baudeau) Como salienta Mercier de La Rivière, “a nossa reunião
em sociedade é uma consequência natural e necessária do apetite dos prazeres”. Por
isso, “a origem da sociedade remonta à origem do mundo” e “o estado de sociedade
não é de modo nenhum para o homem um estado de escolha e de convenção que a
reflexão e as circunstâncias tenham introduzido, mas um estado necessário, primiti­
vo e instituído pela natureza”. (Le Trosne) Porque “a necessidade física das subsis-
tências estabelece a necessidade da sociedade”, porque a sociedade resulta da necessidadefísica
de “reprodução permanente dos bens necessários à subsistência, à conservação e à
comodidade dos homens” (Quesnay), “a ordem social assenta naturalmente na pró­
pria ordem física”. (Mercier de La Rivière).
“Desde que vários homens vivem em conjunto eles são submetidos, em virtude
do seu próprio interesse, a uma ordem natural social”. (D upont de Nemours) E o
mesmo autor escreve em outro trabalho: “H á uma ordem natural, essencial e ge-

351 Sobre esta problemática cfr. A. VACHET, oò. c/f., 255-413.


A v elã s N un es - 331

ral, que encerra as leis constitutivas e fundamentais de todas as sociedades; uma


ordem da qual as sociedades não podem afastar-se sem ser menos sociedades, sem
que o estado político tenha menos consistência, sem que os seus membros se
encontrem mais ou menos desunidos e numa situação violenta; uma ordem que
não poderá abandonar-se inteiramente sem operar a dissolução da sociedade e, a
breve prazo, a destruição absoluta da espécie humana”.
Por sua vez, Quesnay põe em relevo que as leis constitutivas das sociedades
humanas, as leis da ordem natural, são “leis estabelecidas para todo o sempre pelo
Autor da Natureza, para a reprodução e a distribuição contínua dos bens que são
necessários às necessidades dos homens reunidos cm sociedade, e submetidos à or­
dem que essas leis lhes prescrevem. Essas leis irrefragáveis constituem o corpo mo­
ral e político da sociedade, pelo concurso regular dos trabalhos e dos interesses
particulares dos homens instruídos por essas mesmas leis a cooperar com o maior
sucesso possível no bem comum c a assegurar a sua distribuição mais vantajosa
possível a todas as diferentes classes de homens da sociedade”. Esta sociedade natural
é uma sociedade inteiramente subordinada aofim económico da actividade humana: a
subsistência do homem e a abundância dos bens, de modo a satisfazer 1'appétit des
plaisirs. Este “totalitarismo físico” (André Vachet) transforma a sociedade em um
simples meio para a obtenção daquele fim económico. “A necessidade é a alma do
nosso trabalho; a sociedade - escreve Mirabeau - não passa de um meio (...) para
que a comunidade dos trabalhos proveja à multiplicidade das necessidades”.
A ordem social, assim concebida como ordemfísica, é, para os fisiocratas, a ordem
económica, o espaço social onde se processa a divisão do trabalho, da qual resulta a
multiplicação dos meios de subsistência e a abundância. Num a sociedade assim
caracterizada, “ninguém (...) satisfaz todas as necessidades com o seu trabalho,
mas - salienta Quesnay - obtém o que lhe falta com a venda do que o seu trabalho
produz”. As trocas de bens são, por isso, “a primeira relação física da sociedade”
(Mirabeau), e esta é considerada como um espaço de troca de mercadorias. “É esta
troca que chamamos Comércio: de onde se conclui que o comércio é o objecto e
o cimento da sociedade; que ele é tão antigo como a sociedade; que quanto mais
ele se intensifica e se vivifica mais ele reúne e condensa a sociedade; que, ao
contrário, quanto mais ele se relaxa e se rarifica mais a sociedade se enfraquece e
se perde”.
Como salienta Cláudio Napoleoni352, a natureza económica da ordem natural
radica em um processo de transformação geral dos produtos em mercadorias, po­
dendo dizer-se que o conjunto dos homens só é uma sociedade (i. é, um organismo

352 cfr. c. NAPOLEONI. Fiskxracia.... cit., 17/18.


3 3 2 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

regido por leis naturais e necessárias) na medida em que as actividades económicas


dos homens se reduzem a um processo único que só a troca pode realizar. “Num
lugar onde os produtos e os serviços não fossem pagos e onde não houvesse preços
de compensação - escreve Q uesnay-, não haveria comércio, nem compromissos,
nem patrões, nem criados, nem força militar, nem governo civil. Um tal estado de
sociedade seria forçosamente passageiro, pois a nação seria imediatamente invadi­
da pelos seus vizinhos, ou tornar-se-ia num país de selvagens ou de pastores,
abandonado à dispersão dos seus habitantes”. Determinada por causas físicas, cm
função do fim físico de seres físicos, a sociedade não pode deixar de ser entendida
como um elemento integrante da ordem física, da “ordem geral da formação do
universo”. (Quesnay)
“Existe uma ordem natural e essencial à qual estão sujeitas as convenções soci­
ais - escreve M ercier de La Rivière - , e é esta ordem que assegura aos homens
reunidos em sociedade o gozo de todos os seus direitos, mediante a observância de
todos os seus deveres. A submissão exacta e geral a esta ordem é a condição única
que permite a todos esperar e merecer a participação em todas as vantagens que a
sociedade pode proporcionar a si mesma”. Esta ordem natural escreve Quesnay, “é
a mais vantajosa para os homens reunidos em sociedade”; ela só pode manter-se se
for respeitado “o jogo regular das leis físicas e morais estabelecidas pela Providên­
cia para garantir a conservação, a multiplicação, a felicidade e o aperfeiçoamento
da nossa espécie”. Por isso mesmo Quesnay defende que “todos os homens e todas
as potências humanas devem ser submetidos às leis soberanas instituídas pelo Ser
Supremo; elas são imutáveis, irrefragáveis e as melhores leis possíveis”.
2 .1 . L ei n a t u r a l , lei f ís ic a e lei m o r a l

Concebendo a ordem natural como a ordem resultante das leis constitutivas das
sociedades, enquanto leis instituídas de uma vez por todas pelo Criador com vista
à reprodução e distribuição contínua dos bens necessários às necessidades dos
homens reunidos em sociedade, compreende-se que os fisiocratas considerem que
os homens estão inevitavelmante sujeitos a essas leis (“a ordem imutável das leis
físicas e morais que asseguram a prosperidade dos Impérios”, no dizer de M ira-
beau), as quais constituem “o corpo moral e político da sociedade” (Quesnay).
Dupont de Nemours afirma-o claramente quando escreve que o homem está “sub­
metido pela sua essência às leis físicas da ordem natural e geral do universo”.
Os homens e a sociedade em que se inserem regem-se, pois, por leis naturais
que são leisfísicas em tudo idênticas às que asseguram o equilíbrio do mundo
físico. São “leis que existem eternamente de uma maneira implícita num código
natural, geral e absoluto, que não sofre nunca excepções nem vicissitudes” (Bau-
A v ela s N u n es - 3 3 3

deau). São leis absolutas, às quais a acção humana só pode acrescentar a desordem.
São leis de origem divina, leis “cuja instituição é obra de uma sabedoria que gover­
na o universo através de regras invariáveis”, leis que são “menos um presente da
Divindade do que a própria Divindade”, de tal modo que “pecar contra a lei é
pecar contra a Divindade” (Mercier de La Rivière).
Tendo em conta este “totalitarismo da lei física sobre o homem e a sociedade”
de que fala Vachet353, é natural que no pensamento fisiocrático não tenha lugar
nenhum sistema de valores autónomos relativamente aos valores que estão inscri­
tos nas leisfísicas que governam a Natureza, a ordemfísica providencial, a ordem
económica, aquela ordem em que os homens “podem encontrar a maior quantidade
posssível de prazeres e de felicidade”(Mercier de La Rivière). A moral não pode
ter outro sentido que não seja o de mero instrumento de realização física da ordem
que resulta da lei natural. A lei física e a lei moral confundem-se em favor da
primeira na unidade da lei natural. Assim se exprime Quesnay: “As leis naturais ou
são leis físicas ou leis morais. Entendemos por lei física o curso regulado de todos
os acontecimentos físicos da ordem natural evidentemente mais vantajosa para o
género humano. Entendemos aqui por lei moral a regra de todas as acções hum a­
nas da ordem moral conforme à ordem física evidentemente mais vantajosa para o
género humano. Estas leis formam em conjunto o que chamamos a lei natural”.
“Chez-nous, pour nous, tout est physiquc et le moral en dérive”, escreveu Ques­
nay. E o Marquês de Mirabeau: “A ordem moral é traçada pela ordem física. O
bem e o mal moral consistem em fazer o bem ou o mal físico na organização da
sociedade. As leis morais não são mais do que injunções à nossa liberdade no
sentido de obedecer às leis físicas”. E estas são as leis físicas da produção de
riquezas, com vista a “estabelecer o bem-estar de cada mortal, a conservação e a
felicidade do género hum ano”. (Baudeau)
Enquanto princípio regulador do comportamento humano, o juízo moral só
pode ser o juízo económico. Na síntese feliz de Mirabeau, “o dever natural do
homem é viver e ser feliz (...), a nossa moral deve ser inteiramente económica”.
De tal modo esta ideia é importante na filosofia dos fisiocratas que D upont de
Nemour defende que é Économiste “todo aquele que pense encontrar-se nas leis da
ordem física a base das leis da ordem moral”.

353 cfr. A. VACHET, ob. c it, 271.


3 3 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o iít ic a

2 .2 . A PROPRIEDADE, "BASE DE TODAS AS SOCIEDADES". PROPRIEDADE,


LIBERDADE E IGUALDADE

Segundo os fisiocratas, é a terra que alimenta os homens. M as só a cultura (o


cultivo da terra) permite multiplicar as subsistências, multiplicar a espécie, desen­
volver a sociedade. “Aqueles que para assegurar e para aumentar os meios de
subsistência - escreve Le Trosne - puseram, pelos seus trabalhos, campos em
estado de serem cultivados para sempre foram os primeiros fundadores das socie­
dades civis. (...) A cultura foi o berço da sociedade”. A sociedade resulta, na sua
essência, de uma necessidade física, a “reprodução permanente dos bens necessári­
os à subsistência, à conservação e à comodidade dos homens”. (Quesnay)
Mas a cultura pressupõe a propriedade, “le tien et le mien établis sur le fonds”
(Mirabeau). “Uma vez que a cultura - escreve Le Trosne - , que é o único meio de
multiplicar as subsistências, exige como condição indispensável a propriedade do
fundo e dos frutos, é evidente que a propriedade é uma instituição necessária, deriva­
da da ordem física”. A propriedade é, por isso mesmo, na concepção dos fisiocratas,
“a base de todas as sociedades”. O direito depropriedade é, em consequência, a primei­
ra das “leis gerais da ordem natural que constituem indiscutivelmente a forma de
governo mais perfeita” (Quesnay). Ela será mesmo mais do que uma instituição
social; ela será uma instituição divina, sagrada, inviolável, “porque - é Mirabeau a
justificá-lo - a necessidade da propriedade fundiária liga-se à necessidade da cultura
e porque a necessidade da cultura se liga à lei imperiosa das nossas sociedades, que
são de instituição divina, como o são as nossas forças, a nossa inteligência e todos os
nossos talentos físicos e morais”.
“As leis da liberdade e da propriedade mobiliária e fundiária - escreve Le
Trosne - são leis primitivas, essenciais, fundamentais da sociedade humana; leis
perfeitamente conformes à natureza do homem, às suas necessidades e às leis da
reprodução. (...) Elas governam as relações que os homens tinham entre eles
anteriormente ao estabelecimento das sociedades civis; elas devem governá-los da
mesma maneira no novo estado, pois elas não derivam nem de uma convenção
livre e revogável, nem de uma concepção particular, nem de nenhuma autoridade
humana; elas encerram a justiça por essência, foram dadas pelo soberano legisla­
dor à obra mais perfeita saída das suas mãos”.
Para os fisiocratas, por outro lado, a propriedade é o fundamento da liberdade. A
liberdade como que se dissolve na propriedade. Citando Mirabeau, “a propriedade é
o direito exclusivo de possuir uma coisa qualquer, ela arrasta consigo a liberdade”.
“Quem diz liberdade - escreve o abade Baudeau - diz uso razoável e legítimo de
uma propriedade; ou, para ser mais exacto e mais preciso, faculdade não impedida
A v elã s N u n es - 3 3 5

de fazer este uso ou de não o fazer. (...) Ser livre é não ser impedido, de nenhum
modo, de adquirir propriedades nem de fruir daquelas que se adquiram”.
A mesma tese de que a propriedade é o verdadeiro conteúdo da liberdade é
lapidarmente exposta por Mercier de La Rivière no trecho que segue: “A liberdade
social encontra-se naturalmente contida no direito de propriedade. A propriedade é
precisamente o direito de fruir, ora é evidentemente impossível conceber o direito de
fruir separadamente da liberdade de fruir, impossível também que esta liberdade
possa existir sem este direito, porque ela deixaria de ter objecto, tendo em conta que
só temos necessidade dela relativamente ao direito que queremos exercer”.
No sistema fisiocrático parece observar-se, pois, uma espécie de metamorfose
da liberdade universal do homem na liberdade do proprietário: toda a liberdade
efectiva e real é a liberdade do proprietário. A liberdade em sentido filosófico é, no
sistema fisiocrático, uma pura abstracção enquanto não é concretizada por inter­
médio da propriedade. Para os fisiocratas a propriedade é, afinal, a lei fundamental
da sociedade, M a base sobre a qual assenta todo o edifício das sociedades”. (Turgot)
Mas a propriedade, entendida como “a liberdade geral de fruir em toda a ex­
tensão os direitos de propriedade”, pressupõe necessariamente que a todos seja
garantida a plena segurança desta fruição. “Propriedade - escreve D upont de N e­
mours - é o direito exclusivo de possuir uma coisa qualquer, ela exige a liberdade
e a segurança”. E Mirabeau: “A liberdade c a segurança são anexos inseparáveis da
propriedade”. “É evidente - observa M . de La Rivière - que ninguém cultivaria as
terras se ninguém tivesse a certeza moral de gozar a colheita, e só na sociedade
esta certeza moral pode estabelecer-se”. Nas suas Maximes générales du gouverne­
ment économique d'un royaume agricole (1760), Quesnay define claramente o ponto
de vista dos fisiocratas a este respeito: “Que a propriedade dos bens de raiz e das
riquezas mobiliárias seja assegurada aos seus legítimos possuidores; porque a se­
gurança da propriedade éofundamento essencial da ordem económica da sociedade.; sem
a garantia da propriedade, o território ficaria inculto. Não haveria proprietários
nem rendeiros dispostos a fazer as despesas necessárias para o valorizar e cultivar,
se a posse dos fundos nele empregados e dos seus produtos não fosse assegurada
àqueles que fazem os adiantamentos para essas despesas. E a garantia da posse
continuada que incentiva o emprego do trabalho e das riquezas na beneficiação e
no cultivo das terras, e nos empreendimentos comerciais e industriais. Somente o
poder soberano, que garante a propriedade aos seus súbditos, tem o direito origi­
nário a partilhar os frutos da terra, única fonte de riquezas”.354

354 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 143.


3 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

Os fisiocratas consideram que “a lei da propriedade é a mesma para todos os


homens, (que) os direitos que ela confere são todos de uma igual justiça” (Mercier
de La Rivière). M as este mesmo autor reconhece que “a propriedade exclui neces­
sariamente a igualdade. (...) Aqueles que se queixam da desigualdade - sublinha
de La Rivière - não vêem que ela está na ordem da justiça por essência: uma vez
que eu adquiri a propriedade exclusiva de uma coisa, ninguém pode ser o propri­
etário dela como eu e ao mesmo tempo. A lei da propriedade é a mesma para todos
os homens; os direitos que ela confere são todos de uma igual justiça, mas não são
todos de igual valor, porque o seu valor é totalmente independente da lei. Cada um
adquire em razão das faculdades que lhe dão os meios de adquirir, mas a medida
dessas faculdades não é a mesma para todos os homens”.
Também D upont de Nemours sublinha que “o aumento das riquezas da soci­
edade traz necessariamente com ele o aumento da desigualdade das fortunas; desi­
gualdade natural que, mesmo no estado de associação primitiva, existe em função
da diversidade das faculdades dos indivíduos; que a aquisição das propriedades
fundiárias aumenta pela razão, e que aumenta ainda pela partilha natural e legíti­
ma das sucessões. (...) A diferença entre os ricos e os pobres torna-se dia a dia
mais marcada”, conclui o autor.
De todo o modo, os fisiocratas entendem que uma política tendente a realizar a
igualdade real, em nome do princípio de que as necessidades físicas são as mesmas para
todos, “conduziria apenas à pilhagem, à dissolução da sociedade, à cessação dos traba­
lhos humanos de todos os géneros e à extinção da espécie humana”. (Mirabeau)
Mas os fisiocratas vão ainda mais longe, defendendo, pela autoridade de Ques­
nay, que “a desigualdade do direito natural não admite justo nem injusto no seu
princípio: ela resulta da combinação das leis da natureza”, i.é, a desigualdade
corresponde à ordem concreta do Criador e da Natureza. Por outras palavras, a
justiça reside no reconhecimento da liberdade de apropriação e não na igualdade
real. Assim o explica Le Trosne: “O homem tem direito às coisas próprias à sua
fruição e recebeu este direito de Deus, que, ao criá-lo, lhe impôs o dever de se
conservar. Mas este direito indefinido não constitui ainda de modo nenhum uma
propriedade: porque ele é comum a todos e abrange tudo; só se determina para
cada homem como direito a tal ou a tal coisa no momento em que ele se apropria
dela pelo seu trabalho. Ele retira-a então da propriedade comum (...) e ninguém
tem o direito de o privar do que ele adquiriu por um título tão legítimo. Neste
mesmo estado, a condição dos homens, igual quanto ao direito, é desigual de facto,
porque os indivíduos não têm todos as mesmas faculdades físicas e as mesmas
faculdades intelectuais”.
A v elã s N u n es - 3 3 7

Só a igualdade de direito tem sentido, enquanto expressão da natureza abstracta


do homem. “A justiça não tem por objecto tomar as fortunas iguais - escreve ainda
Le Trosne —, mas assegurar a cada um o que lhe pertence: ela garante a todos a
liberdade e a propriedade absoluta e indefinida da sua pessoa, dos seus trabalhos,
da sua indústria, das suas riquezas mobiliárias, e a faculdade de adquirir. Ela ga­
rante também a propriedade fundiária àquele que a possui: ela torna-o depositário
dos frutos renascentes e árbitro da sua distribuição”.
Mas a desigualdade defacto é algo inerente ao “direito natural dos homens”
(Quesnay), os quais “não podem ser iguais de facto, uma vez que são naturalmente
desiguais em talentos, em força, em faculdade do corpo e do espírito” (Mercier de
La Rivière). Por isso Quesnay chama a atenção para “a futilidade desta ideia abs­
tracta de direito natural de todos a tudo. (...) O direito natural de cada homem
reduz-se na realidade à porção que ele pode obter pelo seu trabalho. Pois o seu
direito a tudo é semelhante ao direito de cada andorinha a todos os mosquitos que
volteiam no ar, mas que, na realidade, se limita àqueles que ela pode apanhar pelo
seu trabalho ou as suas buscas ordenadas pela sua necessidade”.355 Nesta mesma
lógica, é Le Trosne quem enfatiza: “Que a desigualdade (...) não seja para nós uma
razão que nos leve a acusar de injustiça a lei da propriedade: uma vez que a terra
não pode ser fecundada sem ela, ela é necessariamente conforme à ordem”. E o
Marquês de Mirabeau acrescenta: “Não é a desigualdade das fortunas que é mons­
truosa; pois o monstruoso está fora da Natureza, é a sua própria definição; e a
desigualdade das fortunas está na Natureza”.
Segundo os fisiocratas a justiça traduz-se tão só na imposição da ordem da N a­
tureza, na qual radica a “justiça absoluta”. “O justo absoluto - escreve Mercier de La
Rivière - é uma justiça por essência, uma justiça que assenta de tal modo na natureza
das coisas que seria necessário que elas deixassem de ser o que são para que esta
justiça deixasse de ser o que ela é. O justo absoluto pode ser definido como uma
ordem de direitos e de deveres que são de uma necessidade física e, por conseguinte,
absoluta. Assim, o injusto absoluto é tudo o que se revela contrário a esta ordem (...).
O que é de uma necessidade absoluta é também de uma justiça absoluta”.
2.3. O INDIVIDUALISMO E A HARMONIA DOS INTERESSES. O " LAISSER-
FAIRE, LAISSER-PASSER "

O proprietarismo’ dos fisiocratas reflecte, ao fim e ao cabo, as suas concepções


individualistas, que os levam a considerar a sociedade como um mero instrumento

35S Ao considerarem o trabalho como único titulo natural e legítimo da propriedade, nomeadamento no estado primitivo
de natureza, os fisiocratas enfileiram na tradição puritana que Locke consagra. Cfr. A . VACHET, o b .cii, 294-300.
3 3 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o í It ic a

de realização do fim económico da actividade de cada indivíduo, em último termo,


a satisfação do appétit des plaisirs. “A ordem social - escreve Le Trosne - só se
mantém pelo interesse pessoal entregue a si mesmo e limitado apenas pelo interes­
se de outrem”.
O individualismo dos fisiocratas assume a forma de um atomismo social muito
claramente afirmado pelos autores. Instrumento essencial da realização da neces­
sidade de cada um dos seus membros (“La société est faite pour les particuliers”,
na expressão deTourgot), a sociedade é concebida como um conjunto de indivídu­
os independentes. “Le premier lien de la société c’est l’intérêt particulier”, escreve
Mirabeau, o mesmo autor para quem “o interesse comum é o interesse de nin­
guém”, porque “é o interesse particular que é o interesse de todos”.
Na busca do seu “interesse próprio e directo”, na busca da felicidade, os ho­
mens actuarão de tal modo que a “maior população possível adquire o melhor
estado possível”. Assim o exprime Mercier de La Rivière: “Se cada um conservar
a sua liberdade e, por conseguinte, os seus direitos de propriedade, em toda a sua
extensão natural e prim itiva, cada um, sem outro interesse que não seja variar e
mutiplicar as suas fruições, constitui um meio de que a ordem se serve para au­
mentar a soma das fruições, para comum proveito de toda a sociedade: assim
vemos nascer a maior abundância possível de produções; ao mesmo tempo, nessa
base, a indústria atinge o mais elevado grau possível e, com o concurso destas duas
vantagens, a maior população possível adquire o melhor estado possível”.
Espreita aqui com toda a clareza a antropologia optimista mais tarde consa­
grada na teoria da mão invisívelde Adam Smith: “Cada um é levado, pela conside­
ração do seu próprio bem, a concorrer para o bem universal”, de tal modo que
“cada um trabalha para outrem na convicção de que trabalha para si próprio”,
escreveu Mirabeau. O interesse geral baseia-se no interesse particular, pois, ainda
que inconscientemente, “cada homem acaba por ser o instrumento da felicidade
dos outros homens” e o interesse geral de uma comunidade não é outra coisa que
não seja “o que convém melhor aos diversos interesses particulares dos membros
que a compõem”. “Com o pode acontecer - interroga-se Mercier de La Rivière -
que uma comunidade ganhe quando os seus membros perdem?”
O optimismo dos fisiocratas assenta, pois, na sua convicção da perfeita harmo­
nia dos interesses e do equilíbrio social realizados na “ordem natural social, fundada
na ordem natural física”, ordem na qual “os direitos e os deveres recíprocos dos
homens, as leis naturais que regulam soberanamente esses direitos e deveres, que
decidem da reprodução e da abundância das coisas adequadas às nossas necessida­
des (...) conciliam no grau mais elevado possível os interesses dos soberanos, dos
súbditos e das nações” (D upont de Nemours).
A v el A s N u n e s - 3 3 9

Nem mesmo o reconhecimento da existência de classes sociais poderia pertur­


bar a harmonia e ajustiça que os fisiocratas consideram inerente à ordem natural.
“Tal é a vantagem inestimável da ordem - escreve M ercier de La Rivière que
não há na sociedade nenhuma classe de homens cujo interesse particular, quando
bem entendido, não faça parte do interesse geral; ou antes, cujo interesse particu­
lar, para ser bem entendido, não deva estar perfeitamente de acordo com o interes­
se comum de todas as outras classes. Quanto mais se aprofundar esta reflexão mais
se chegará à conclusão de que a ordem da Natureza conduz à unidade todas as
sociedades particulares e mesmo todas as classes particulares de cada sociedade;
de que estas podem diferenciar-se pelas suas funções mas nunca pelos seus interes­
ses; de que, neste plano, os homens estão todos associados por uma necessidade
natural e imperiosa à qual não podem subtrair-se; de que é nesta ordem imutável
que eles são úteis uns aos outros, que eles fruem uns para os outros, de que eles se
servem todos mutuamente para o aumento comum das suas fruições”.
Acabamos de ver que, para os fisiocratas, “a ordem social mantém-se apenas
pelo interesse pessoal deixado a si próprio e contido pelo interesse de outrem” (Le
Trosne). E a afirmação do princípio segundo o qual, na formulação de Mirabeau,
“o meu interesse particular, contribuindo para o interesse geral da sociedade, é
para mim a base de toda a justiça e de toda a virtude e assim também para todos os
cidadãos”. O mesmo autor sintetiza a tese fisiocrática quando defende que “a liber­
dade e a imunidade são os melhores administradores”. E o abade Baudeau salienta
que “a injustiça é a intervenção intempestiva que favorece certos interesses à custa
de outros, em nome de um arbitrário e ilusório bem comum”.
Os conflitos de interesses resolvem-se pela concorrência, “árbitro natural e
soberano” (de La Rivière), que asseguraria a harmonia dos interesses e o equilí­
brio social. Para os fisiocratas, “o princípio da concorrência e da liberdade do
comércio são consequência imediata do direito de propriedade e da faculdade
exclusiva que cada indivíduo tem de conhecer os seus interesses melhor do que
qualquer outro” (Turgot). Pois bem. Na formulação de Le Trosne, “é a concorrên­
cia que concilia todos os interesses: ela só é perfeita quando reinar em absoluto a
liberdade das trocas, que é a primeira consequência do direito de propriedade e
por conseguinte uma das leis mais essenciais da ordem social”.
A liberdade de comércio aparece como o elemento fundamental da livre con­
corrência e integra a liberdade de transporte, a liberdade de passagem, o abati­
mento das fronteiras internas, a liberdade do direito de sucessão e em geral todas
as liberdades que favorecem a circulação dos bens e a vida económica cm geral. É
o laissezpasser do pensamento liberal: “Que se assegure inteira liberdade ao co­
mércio, recomenda Quesnay; porque a política de comércio interno e externo mais
3 4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o U t ic a

segura, mais certa e mais proveitosa para a nação e para o estado consiste na plena
liberdade de concorrência”.
Para os fisiocratas, o comércio interno está na origem das sociedades (“ele é tão
antigo como a sociedade”, escreveu Mirabeau) e constitui a própria essência da vida
das sociedades: “as trocas de bens são a primeira relação física das sociedades”, “o
comércio é o objecto e o cimento da sociedade” (são ainda expressões de Mirabeau).
Também o comércio internacional, desde que decorra livremente, é encarado
como um meio de unir as nações pelo seu interesse recíproco. É o que defende Le
Trosne ao considerar o comércio internacional como “o agente da comunicação
universal, o instrumento de satisfação das necessidades, o traço de união entre os
povos.” Mais claro é ainda Quesnay na afirmação das vantagens do livre comércio
internacional como fundamento da ordem internacional e como factor de harmo­
nia universal. Assim se exprime Quesnay: “Se a Religião é o primeiro elo desta
cadeia política que mantém em conjunto as nações da Europa, o comércio é o
segundo. O seu efeito é tanto mais certo quanto ele se funda no interesse mútuo; é
bastante mais sensível que todas as ideias políticas e todas as atenções parecem
estar voltadas para ele. Ele mantém todas as nações em correspondência contínua;
torna-as reciprocamente credoras e devedoras; liga uns aos outros os negócios, os
bens, os interesses”.
Toda a concepção liberal dos fisiocratas assenta, pois, nos interesses da ordem
económica, ligados às “leis físicas naturais e essenciais da sociedade”. Este mesmo
fundamento é invocado pelos fisiocratas quando procuram justificar a liberdade in­
dividual (ou, noutra óptica, o fim das corporações, maîtrises,jurandes eoutros direi­
tos banais): “o interesse dos proprietários - escreve Dupont de Nemours - exige a
liberdade, a felicidade e a imunidade de todos os outros habitantes do país e de todos
os trabalhos”. E é invocado também quando, contraditando os mercantilistas, os
fisiocratas defendiam o fim da escravatura e da servidão (Quesnay: “a terra só pode
frutificar sob a mão de homens livres”) ou reclamavam a libertação das colónias
(Mirabeau: “o espírito de conquista é incompatível com o espírito de governo”).

2 .4 . N a t u r e z a e f u n ç õ e s d o es t a d o

Identificando a propriedade com o “droit de jouir” e considerando este direito


inseparável da “liberté de jouir”, Mercier de La Rivière defende que “atacar a
propriedade é atacar a liberdade”; (...) perturbar a liberdade é perturbar a propri­
edade; assim, propriedade, segurança, liberdade, eis o que nós buscamos e o que
devemos encontrar evidentemente nas leis positivas que nos propomos instituir;
eis o que devemos considerar a razão essencial destas mesmas leis”.
A v el As N u n e s - 3 4 1

Le Trosne observa, de resto, a este respeito, que “são as leis físicas da reprodu­
ção que devem governar os homens, como são elas que os alimentam. O poder de
fazer leis não pode, pois, pertencer aos homens, já que estes só poderiam abusar
dele para sua perda e sua infelicidade. Deus reservou esse direito só para ele: a
autoridade que ele confere aos homens não contém mais que um poder de execu­
ção, de aplicação e de administração”. E esta ideia casa-se perfeitamente com esta
outra de D upont de Nemours: “as leis são todas feitas pela mão daquele que criou
os direitos e os deveres. As leis sociais, estabelecidas pelo Ser Supremo, prescre­
vem unicamente a conservação do direito de propriedade e da liberdade que é
inseperável dele. As leis dos soberanos, que chamamos leis positivas, devem ser
meros actos declaratórios daquelas leis essenciais da ordem social”.
O domínio do proprietário sobre os seus bens é considerado “absoluto e sem
limites (...); ele pode usar e abusar deles livremente, consumi-los, dá-los ou per­
dê-los. Este direito - refere Mercier de La Rivière - é inerente à sua plena propri­
edade”. Este direito de propriedade, enquanto “direito natural e essencial” - afirma
ainda este autor - , “é o primeiro princípio de todos os direitos e de todos os
deveres recíprocos que os homens devem ter entre eles”, pelo que “não pode haver
direito onde não existe a propriedade”, uma vez que é “impossível imaginar um
direito que não seja um desenvolvimento, uma consequência, uma aplicação do
direito de propriedade. Eliminem o direito de propriedade e não ficam quaisquer
direitos”, conclui de La Rivière.
Nas palavras deTurgot, dirigindo-se ao soberano, “há uma lei, Senhor, anteri­
or às leis civis, cuja manutenção deve ser o único fim das instituições sociais; uma
lei pela qual e para a qual vós reinais: é a lei sagrada da propriedade”. E ainda
Turgot: “Creio, Senhor, que o interesse principal ao qual todos os outros estão
subordinados é o interesse dos proprietários; é quando as suas propriedades forem
tão protegidas quanto possível que eles extrairão a maior vantagem que puderem,
que eles estarão interessados em valorizar quanto possível as suas terras, que as
produções de todos os géneros se multiplicarão”. A mesma tese de Mirabeau: “o
monarca acumula na sua pessoa dois direitos divinos, o da autoridade e o da pro­
priedade; mas é o segundo que faz o primeiro. (...) O estado não tem, portanto, e
não poderia ter interesses que não sejam também o interesse dos proprietários. Os
direitos do estado são portanto os direitos dos proprietários”.
Para este autor, é, aliás, “impossível que o governo tenha em algum local pre­
cedido a propriedade, uma vez que a propriedade é necessária para m anter os
homens juntos e formar a sociedade, e o governo não pode ter sido anterior à
sociedade. O governo deriva portanto da propriedade e não a propriedade do go­
verno”. A esta ideia de que o governo (i.é, o estado) só apareceu depois de (e por
3 4 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

causa de) ter aparecido a propriedade acrescentam os fisiocratas a ideia de que o


estado existe para defesa da propriedade. E o que resulta desta afirmação de Bau-
deau: “Garantir a propriedade, defendê-la contra os usurpadores, assegurar a li­
berdade, isto é, o livre uso do direito de adquirir pelo seu trabalho ou de fruir
depois de ter adquirido, é o objecto do poder protector, é o que ele deve operar
pela justiça distributiva e pelo poder político ou militar”.
No plano interno, a tarefa fundamental do estado é, sem dúvida, para os fisio-
cratas, a de “assegurar entre os homens a propriedade e a liberdade, em conformi­
dade com as leis naturais c essenciais da sociedade” (Mercier de La Rivière),
encarregando-se de “punir, pelo magistério dos magistrados o pequeno número de
pessoas que atentam contra a propriedade de outrem”. (D upont de Nemours) No
plano externo, cabe ao estado “colocar toda a sociedade em condições de não
recear nada da parte dos seus vizinhos”. (Mercier de La Rivière)
N o que toca às relações entre o estado e a economia, os fisiocratas confiam ao
estado o encargo de pôr de pé as infraestruturas indispensáveis ao bom funciona­
mento da economia, como a construção e a manutenção das grandes vias de circu­
lação, a uniformização do sistema de pesos e medidas, a organização de um aparelho
judiciário que assegure o reconhecimento dos contratos, etc.
Mas não vão além disto. Os fisiocratas são adeptos do Iaissez-faire, laissez-passer,
porque, a seu ver, a sociedade e a economia estão sujeitas - nas palavras de Mercier
de La Rivière - àquelas “leis naturais e essenciais inerentes à ordem física, que
nenhum poder é capaz de alterar”.356 Dupont de Nemours lembra ao soberano que
as suas funções “consistem principalmente em não impedir o bem, que se realiza por
si próprio”. E escreve em um outro trabalho: “O respeito pela liberdade e pela
propriedade exige que os homens e os capitalistas permaneçam completamente se­
nhores do uso dos seus capitais (“avances”) e do seu tempo, desde que daí não resulte
prejuízo para a liberdade nem dano para a propriedade de ninguém. Paz tropgouver-
ner(...) laisser-lesfaire, eis a síntese da concepção de Dupont de Nemours. O mesmo
conselho ao soberano é dado por Mirabeau: o governo não tem quase nada a fazer a

356 Confiados em que esla ordem física e natural é a melhor forma de governo para as sociedades humanas, os
fisiocratas sustentam que a ignorância das suas leis é 'o princípio necessário de todos os males* e que 'o conhe­
cimento evidente da ordem é a fonte natural de todos os bens que nos estâo destinados na terra* (Mercier de La
Rivière). Por isso mesmo Mirabeau defende: "Bani a ignorância e a impostura (...) e tudo se aproximará da ordem*.
O aba<le Baudeau salienta, a este propósito, que combater a ignorância é ensinar "a moral económica que trata
das relações, dos deveres e dos direitos respectivos das três classes da sociedade, segundo a ordem natural*. E o
Marquês de Mi rabeau manifesta-se no sentido de que o Tabieau íconomique seja *afixado nas escolas, nas sacristias,
nas câmaras municipais* e defende que "deve ensinar-se a todos que há só um Deus e que há um único imposto,
que tudo se resume a um só direito e a um só dever; (...) o que é o capital (“avances"), o que é a propriedade*.
A v elã s N un es - 3 4 3

não ser “se dispenser d’agir”. E também Mercier de La Rivière: o governo “ría rien
à faire; il lui sufFit de ne rien empêcher”.
Le Trosne sustenta igualmente que a função do soberano, a maior parte das
vezes, é a de “laisser jouir les citoyens sans y intervenir”, acreditando que “o que
eles farão tendo em vista apenas o seu próprio interesse é o que eles podem fazer
de mais vantajoso para a sociedade” e que o soberano “não pode fazer nada de mais
injusto e ao mesmo tempo mais deplorável do que pretender restringir a sua [dos
cidadãos] liberdade, regular o comércio, etc.”. Também Turgot sustenta que, pe­
rante os homens de negócios, o homem de estado deve dizer-lhes apenas: “enri-
chessez-vous par le travail et par 1’épargne”, “faites ce que vous voudrez”.
Liberais no terreno da economia, os fisiocratas não foram liberais no que toca
às liberdades políticas, domínio em que criticaram Montesquieu e outros defenso­
res do ideário democrático e republicano. Para os fisiocratas, a autoridade do
soberano funda-se na propriedade. Pela sua acção ao serviço da propriedade de
todos, a autoridade do soberano torna-se proprietária de toda a superfície do esta­
do, situação que se traduz no direito à cobrança do imposto. A prosperidade de
cada um dos proprietários é, assim, a condição da prosperidade do monarca. Eis
como Mercier de La Rivière expõe a tese fisiocrática da autoridade política (a
“monarquia económica” ou o “despotismo legal”, de que falava o abade Baudeau):
“Qual é a melhor forma de governo? Qual é aquela que se apresenta tão conforme
à ordem natural e essencial da sociedade que dela não possa resultar nenhum
abuso? Esta melhor forma de governo é aquela que não permite que se possa
ganhar governando mal e que, pelo contrário, obrigue aquele que governa a não
ter outro interesse maior que o de bem governar”.
“Que a autoridade soberana seja única e superior a todos os indivíduos da
sociedade e a todos os empreendimentos injustos dos interesses particulares - es­
creve Q uesnay-, porque o objectivo da autoridade e da obediência é a segurança e
o interesse lícito dc todos”. E ainda Quesnay: “é preciso que a autoridade sobera­
na, sempre esclarecida pela evidência, institua as melhores leis e as faça observar
rigorosamente, para segurança de todos e para atingir a maior prosperidade possí­
vel da sociedade”.
Turgot, embora admitisse uma assembleia representativa dos proprietários,
confiava-lhe poderes meramente consultivos, reservando para o rei-déspota a ac­
tividade soberana, enquanto participante da propriedade universal. E defende as­
sim as vantagens do despotismo esclarecido sobre a democracia: “(...) um déspota é
limitado pelo seu próprio interesse; ele tem o freio do remorso ou da opinião
pública; mas uma multidão não calcula nada; nunca tem remorsos, e atribui a
glória a si própria, quando merece a maior vergonha”.
3 4 4 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a

Um bon despote, segundo os fisiocratas, deveria informar-se acerca das leis natu­
rais e impor a sua observância, deixando-as actuar sem quaisquer entraves. Sujeito
ele próprio às leis da natureza instituídas pelo Criador, não pode transgredi-las, sob
pena de lesar os interesses dos súbditos e os interesses da sociedade. “L’Etat -
escreve D upont de Nemours - est un législateur et non un légisfacteur, cest un
porteur de lois et non un faiseur de lois”.

2 .5 . A CIÊNCIA ECONÓMICA COMO "CIÊNCIA FÍSICA", COMO "FÍSICA


e c o n ó m ic a "

A tese da primazia da lei económica sobre a lei moral (“chez nous, pour nous,
tout est physique, et le moral en derive”) permitiu aos fisiocratas desenvolver os
estudos económicos numa base científica. Este ‘imperialismo’ dos valores da or­
dem económica explicará mesmo um certo “carácter imperialista” (A. Vachet) dos
estudos económicos dos fisiocratas, que tendem a abranger no seu campo de pre­
ocupações o conjunto das leis naturais que dizem respeito ao homem enquanto ser
cujo fim último é a busca da felicidade, através da multiplicação dos bens necessá­
rios à sua subsistência e perpetuação.
Os fisiocratas sofreram a influência das concepções do seu tempo, o séc. XVIII
do pensamento newtoniano. As concepções de Newton conduzem ao enunciado
de leis absolutas, imutáveis e universais. Os métodos da nova física matemática
tomam-se a metodologia dominante da época, não só nas ciências da natureza mas
também nas ciências humanas. Estas aspiram igualmente à descoberta de leis ab­
solutas e universais, susceptíveis de formulação matemática, único meio de se atin­
gir, também neste domínio, a inteligibilidade newtoniana.
Rendidos ao método da física newtoniana, que “subjuga imperiosamente toda a
inteligência e toda a razão humana com uma precisão que se demonstra até ao
pormenor, geometricamente e aritmeticamente” (Quesnay), os fisiocratas conce­
bem a ciência económica como a ciência que se ocupa do “cálculo dos objectos
físicos relativos aos nossos interesses recíprocos” (D upont de Nemours), uma “ci­
ência física, muito nobre, muito clara e muito ampla” (Dupont de Nemours), uma
“física económica” (Mirabeau), cujas leis atingiriam o mesmo grau de certeza que
as leis das ciências físicas.
E é razoável que assim seja, no quadro do sistema de ideias dos fisiocratas. Se­
gundo eles, a lei natural que governa a ordem física da Natureza é a mesma que
regula a ordem humana e social: o homem, escreveu Dupont de Nemours, “está
submetido, pela sua essência, às leis físicas da ordem natural e geral do universo”.
A v e l As N u n e s - 3 4 5

O sistema fisiocrático poderá talvez sintetizar-se nestes pontos, realçados por


André Vachet357 : “leis estáveis, universais e necessárias asseguram a coesão do
real. São leis naturais físicas. Ora o homem é, pelo seu fim, um ser físico subme­
tido à física tanto no seu ser moral como no social. A economia desvenda o huma­
no coerente e autêntico, a ciência económica apreende as suas leis verdadeiras e
permite assegurar-lhes o livre jogo na prática da vida”.

3 . O CONCEITO DE RIQUEZA

Admite-se tradicionalmente que os mercantilistas valorizavam na moeda o seu


papel de reserva de valor, sendo corrente a ideia de que eles identificavam a moeda
com a verdadeira riqueza de um país. Pois bem. É fora de dúvida que os fisiocratas
consideraram na moeda, fundamentalmente, a sua função de intermediário geral nas
trocas e tiveram o cuidado de contrapor, àquela que consideravam ser a noção de
riqueza para os mercantilistas, a sua própria noção de riqueza. Ei-la, num texto de
Mercier de La Rivière (De Vordre naturelet essentieldes societéspolitiques, 1767):
“E m geral tem -se um a ideia m uito falsa de riqueza e, consequentem ente, do
m elhor estado possível de um a nação. Pelo term o riqueza não entendem m ui­
tas pessoas outra coisa que não seja dinheiro; convencem -se de que o dinheiro
é o princípio c a m edida da prosperidade de um a nação. É no en tan to verdade
que com mais dinheiro pode ser-se mais pobre. D e m odo algum se consom e o
dinheiro cm espécie: um a riqueza em dinheiro só se realiza pela troca desse
dinheiro por coisas susceptíveis de ser utilizadas; esta riqueza não é, pois, de
m odo n enhum um a riqueza absoluta, um a riqueza cm si mesma; pelo contrá­
rio, ela é sim plesm ente um a riqueza relativa, um a riqueza cujo valor depende
cm absoluto da quantidade de coisas úteis que cada um pode adquirir cm troca
do seu dinheiro.

U m a o utra prova de que o dinheiro não é nem o princípio nem a m edida da


prosperidade de um a nação é que o dinheiro não multiplica as coisas úteis, mas
as coisas úteis multiplicam o dinheiro, ou pelo m enos im prim em -lhe um movi­
m ento que equivale a multiplicação: um único escudo que m uda de m ão cem
vezes equivale a cem escudos c presta os mesmos serviços, pois ele acaba por
representar, sucessivamente, um valor de cem escudos em mercadorias ...

É portanto evidente que aqueles que, para apreciar a riqueza de um a nação, só


prestam atenção à quantidade de dinheiro que ela possui tom am o efeito pela
causa; porque uma riqueza em dinheiro não é mais do que o efeito de uma riqueza
em produção, convertida em dinheiro por meio das trocas. E n tre estas duas espé­

Cfr. A . VACHET, ob. cit., 366.


3 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

cies de riquezas há um a grande diferença: a riqueza em dinheiro, separada da


origem que a reproduz para vós, dissipa-se pelas vossas despesas, de sorte que
vós não podeis gozar delas sem empobrecer; ela é passageira, enquanto que a
riqueza cm produção alim cnta-sc e perpetua-se pelo próprio consum o, desde
que a natureza deste consum o não altere as causas naturais da reprodução".

4 . A NOÇÃO d e t r a b a l h o p r o d u t iv o

Um outro ponto fundamental na caracterização do pensamento dos fisiocratas


traduz-se no entendimento de que essa riqueza que sepode consumir sem se empobre­
cer, que se alimenta eperpetua pelo próprio consumo, só a terra a pode produzir, pelo
que só a agricultura é actividade produtiva.
E isto porque só na produção agrícola pode obter-se um excedente em termos
físicos (não em termos de valor), um produto líquido (“produit net”), dado que só o
produto agrícola excede a soma dos bens intermédios ‘consumidos’ na produção e
do autoconsumo dos produtores (os bens que eles guardam para si, para prover à
sua subsistência).
O comércio e a indústria são considerados actividades estéreis. Em bora possa
produzir coisas úteis, a indústria limita-se a transformar os bens utilizados na
actividade produtiva para obter um produto novo, não acrescentando, porém, mais
bens aos bens existentes antes de iniciada a produção.
M arx cita, a este propósito, o seguinte trecho de Ferdinando Paoletti (1772),
um escritor italiano defensor das ideias fisiocráticas:
“D ai ao cozinheiro um a m edida de ervilhas, para que vo-las prepare para o
jantar; ele m andá-las-á para a mesa bem cozinhadas e tem peradas, mas a
quantidade não terá mudado. Pelo contrário, dai esta m esm a m edida de ervi­
lhas ao hortelão, para que as confie à terra; ele vos devolverá, em devido tem po,
pelo m enos o quádruplo da m edida recebida. Eis a verdadeira e única p rodu­
ção". C om efeito, a indústria é incapaz de produzir “um semelhante crescimen­
to da m atéria (...), a indústria não cria nada; dá formas, modifica (...), mas não
cria riqueza, pelo contrário, gasta-a”.

Podemos citar também um trecho do próprio Quesnay em que é exposto, com


muita clareza, o seu entendimento da natureza estéril da actividade industrial:
“U m sapateiro que vende um par de sapatos vende a m atéria-prim a com que
fabricou o par de sapatos e o seu trabalho, cujo valor é determ inado pelos seus
dispêndios cm produtos ou mercadorias necessários ã subsistência e à m anu­
tenção da sua família e dele m esmo durante o tem po que durou o trabalho
necessário para fabricar o par de sapatos: vê-se que só há aqui consum o, sem
qualquer produção. N ão há, dir-se-á, a produção de um par de sapatos? N ão,
A v elà s N u n es - 3 4 7

porque, se se distinguir entre a m atéria-prim a do par de sapatos e a própria


obra, a única diferença que se encontrará será a da forma que lhe foi dada pelo
trabalho d o sapateiro, cujo valor é inteiram ente constituído pela despesa cm
encargos com a sua subsistência (...)”.

“Poderiam ainda dizer-nos - continua Q uesnay - que este trabalho produz, pelo
menos, a subsistência do trabalhador e da suafam ília. M as não nos parece que se
queira abusar das palavras a ponto de querer fazer ver que um simples consumo
constitui um a produção. Porque um a produção tal como a entendem os aqui é
um a riqueza rcnascente, e difícil reunir num m esm o conceito duas coisas tão
opostas; cm qualquer caso, seria um conceito bem complicado que teria de ser
desenvolvido para evitar a confusão. O operário fala com mais propriedade: diz
que ganha a sua subsistência e não que a prodirz

Esta estranha tese dos fisiocratas de considerar a agricultura como a única


actividade produtiva gerou, ao longo dos tempos, alguma desconfiança relativa­
mente à validade da sua interpretação da realidade económica e social e tem leva­
do muitos autores a desvalorizar a importância da contribuição de Quesnay e dos
seus seguidores para a teoria económica.
Adam Smith, v.g., refere-se aos fisiocratas como “os filósofos franceses que
propuseram o sistema que representa a agricultura como a única fonte de crédito e
riqueza de um país” e sustenta que as teses fisiocráticas surgiram como reacção aos
excessos ‘industrialistas’ do mercantilista Colbert, cuja política em favor da “indús­
tria urbana” (as manufacturas e o comércio) o obrigou a “diminuir e estagnar a
[indústria] rural”, conduzindo esta a um “estado de desencorajamento e depres­
são”.359 Mais. Adam Smith critica Quesnay, porque as suas teses equivaleriam a
“degradar os artesanos, os industriais e os comerciantes, qualificando-os com a
designação humilhante de classe improdutiva ou estéril”.
Pois bem. Não nos parece que haja qualquer sentido depreciativo da indústria
ou do comércio na afirmação dos fisiocratas de que só a agricultura é produtiva e
de que só o trabalho agrícola é, em certo sentido, trabalho produtivo.
Aos fisiocratas fica a dever-se, na verdade, a elaboração deste conceito, que
viria a constituir uma categoria teórica importante nas obras dos clássicos ingleses
(Smith, Ricardo) e de Karl Marx, que o projectaram na ciência económica até aos
nossos dias.
Mas, para os fisiocratas, a agricultura é a única actividade produtiva no sentido
de que só a actividade produtiva agrícola se apresenta como um processo que,

358 Cfr. Quadro Económico, ed. ciL, 227/228.


359 Cfr. Riqueza das Nações, ed.cit., 250/251.
3 4 8 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

partindo de determinada quantidade de bens, se traduz na criação de um excedente,


de um produto liquido, de uma quantidade maior de bens da mesma espécie. Quais­
quer outras actividades económicas aparecem como simples transformação de cer­
tos objectos em outros, pelo que só a agricultura é capaz de produzir um excedente
no sentido acima referido.
De resto, os fisiocratas atribuem à própria Natureza, à fertilidade natural da
terra, o poder de gerar um produto liquido (só a Natureza fecunda a matéria, i.é, as
sementes lançadas à terra). Trabalho produtivo é aquele que produz um excedente,
característica que só se verifica no trabalho desenvolvido na agricultura. Não por
força de qualquer característica específica que distinga o trabalho agrícola do
trabalho desenvolvido em outras actividades, mas em virtude de só ele poder apro­
veitar esse “dom da Natureza” que é a fertilidade natural da terra (Le Trosne fala
de “faculté productive de la terre”).
Para os fisiocratas, portanto, os que trabalham a terra limitam-se a colher os
frutos que constituem um dom da Natureza, uma dádiva do “Autor de todas as coisas”.
A criação do produto líquido na agricultura é, pois, bem vistas as coisas, uma das
características da ordem ratara/instituída por Deus. Verdadeiramente, nenhuma es­
pécie de trabalho é, em si mesma, origem de riqueza. A Natureza fecunda a matéria e
o trabalho agrícola é a única actividade do homem que pode colher os frutos dessa
fecundação. Só neste sentido o trabalho agrícola é trabalho produtivo (ou, nas pala­
vras de Marx, “a mais-valia surge como uma dávida da natureza”).
Esta explicação ‘providencial’, este apelo à criação divina, revela, claramente, a
permanência de uma mentalidade pré-científica.

5 . O c o n c e i t o f i s i o c r á t i c o de e x ced en te ( P R O D U IT n et)

A clara compreensão do que temos vindo a expor implica que se conheça o


conteúdo do conceito de excedente, que os fisiocratas introduziram na análise eco­
nómica. Cabe-lhes, sem dúvida, o mérito de localizar a origem do excedente no
processoprodutivo e não na esfera das trocas (i.é, na esfera da circulação), enterran­
do definitivamente a crença - tão marcada nos textos dos autores mercantilistas -
de que a riqueza resulta do comércio.
O que é então o excedente para os fisiocratas? O excedente (= produit net) é
aquela parte da riqueza produzida que excede a riqueza ‘consumida’ no decurso do
processo produtivo, ou, dito de outra forma, é a parte da produção social que fica
depois de se reconstituírem as condições de reprodução da actividade produtiva,
quer os meios de produção quer os meios de subsistência daqueles que se empregam
em actividades produtivas.
A v elã s N u n es - 3 4 9

O excedente é, pois, uma diferença. Mas uma diferença entre duas grandezas
físicas, não uma diferença entre duas grandezas em valor, o produit net é entendido
pelos fisiocratas como um excedente físico de riqueza material, medida em termos
quantitativos, não como um excedente de riqueza social em abstracto, medida pelo
seu valor de troca. Os fisiocratas não determinam o excedente em termos da qua­
lidade social dos bens (o valor), mas em termos da sua materialidade concreta, em
termos de grandezas físicas. Não comparam o valor dos outputs com o valor dos
inputs, mas comparam directamente a quantidade de bens materiais obtidos no fim
do processo produtivo com a quantidade de bens materiais existentes no início do
processo produtivo e ‘consumidos’ na produção.
Ora - observam alguns autores - esta comparação só é possível se os bens
produzidos forem da mesma natureza dos bens utilizados na produção, e só na
agricultura se verifica esta perfeita homogeneidade (física) entre o produto final e
os bens consumidos no processo produtivo.
A observação da realidade mostra que, tanto na agricultura como na pecuária,
os processos naturais de crescimento e de procriação produzem mais bens do que os
utilizados na produção (i.é, do que aquilo que se adianta, que se investe sob a forma
de alimentos para os trabalhadores, de sementes, de animais para criação). “Este
acréscimo m aterial- comenta Cláudio Napoleoni - é precisamente a origem, se­
gundo os fisiocratas, do produto líquido”.360
Compreende-se agora melhor o que queriam dizer os fisiocratas quando afir­
mavam que só a agricultura é actividade produtiva, que só a agricultura cria um
produto líquido, um excdente, i.é, riqueza que se pode consumir sem se empobre­
cer. Só a agricultura produz excedente porque só no domínio da actividade agríco­
la é materialmente visível que os bens lançados à terra geram uma quantidade maior
de bens da mesma espécie.
Já vimos, quando nos referimos à “revolução neolítica”, que o excedente agrícola
foi a primeira forma histórica de excedente social, tendo surgido como resultado do
aumento da produtividade do trabalho agrícola. A existência de um excedente
agrícola e a capacidade de produzir esse excedente de forma regular e permanente
permitiram ao homem do neolítico iniciar a prática da agricultura, da domestica­
ção e da criação de animais, potenciando deste modo a capacidade de produção de
alimentos e, por isso mesmo, lançando as bases da civilização.
Se as comunidades humanas fossem obrigadas a consagrar todo o seu tempo à
obtenção dos meios de subsistência dos seus elementos, seria impossível o desenvol­
vimento de qualquer outra actividade (comercial, industrial, científica ou artística),

Cfr. C. NAPOLEONI, O valor..., cit., 12.


3 5 0 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

uma vez que todo o tempo de todas as pessoas tinha de ser dedicado à obtenção dos
alimentos necessários à subsistência. Sem a possibilidade de dispor regularmente de
um excedente agrícola não é possível a nenhuma sociedade garantir a subsistência
das pessoas que não produzam elas próprias os seus alimentos (i.é, que se dediquem
a quaisquer outras actividades que não a de obtenção dos próprios alimentos). Assim
se explica que se sustente que “o sobreproduto agrícola é a base de todo o sobrepro-
duto e, portanto, de toda a civilização”. (Ernest Mandei)
A consciência disto mesmo transparece nos escritos de Quesnay e poderá aju­
dar a compreender o relevo concedido ao excedente agrícola e à agricultura em todo
o sistema fisiocrático:
“Todos os hom ens se veriam obrigados a trabalhar a terra se os produtos desta
apenas lhes proporcionassem a alimentação" - escreve Q uesnay.361 ( ...) O
agricultor, por si mesmo, apenas necessitaria da simples reprodução para viver.
M as a nação precisa que a terra produza o mais possível e que os p rodutos se
transform em cm riquezas. (...) Por m uito fraca, dura e reduzida que fosse a
subsistência que os Ilotas forneciam aos Espartanos, é certo que, se as terras de
Esparta só produzissem o necessário para sustentar aqueles que as cultivavam,
os Espartanos teriam perecido ou teriam sido obrigados a expulsar os seus
escravos e a cultivar eles próprios as suas terras; e, assim, ter-se-iam tornado
eles próprios em Ilotas, abandonando os exercícios de ginástica, as mesas co­
m uns e a defesa da Pátria”.

Definida a natureza do excedente (o produto liquido oferecido aos homens pela


Natureza) e explicada a sua origem, a preocupação teórica fundamental dos fisio-
cratas (e, especialmente, de Quesnay) consistiu em compreender o processo de
circulação da produção social - e sobretudo do excedente - nas sociedades huma­
nas, o que equivale a explicar como é que, através da circulação do excedente, se
realizam as condições que asseguram a reprodução permanente do processo pro­
dutivo, numa situação de equilíbrio económico e social.
Esta é a questão essencial equacionada no famoso Tableau Économique, que é, basi­
camente, “um modelo em que se configura a circulação do excedente de tal modo que
acaba por se obter uma situação de equilíbrio da reprodução do sistema”.362

6. AS CLASSES SOCIAIS NA ANÁLISE DO TA B LEA U

O Tableau é a primeira tentativa de representação numérica dos mecanismos da


vida económica com base numa ideia de circuito económico, de interdependência

361 Cfr. Quadro Económico, 15(V I51.


362 Cfr. C . LARANJEIRO, ob. c it , 31.
A v elã s N u n e s - 3 5 1

entre as várias actividades económicas (dependência intersectorial). Nele analisa-


se o processo de produção/distribuição dos bens e dos rendimentos no quadro do
sistema económico tomado como um todo, através da teia de relações de troca entre as
classes sociais (deixando de lado as relações de troca entre os indivíduos no seio de
cada classe).
As classes sociais surgem no Tableau como os verdadeiros sujeitos das relações
económicas, pretendendo Quesnay que esta representação se limita a copiar a
Natureza: “A marcha deste comércio entre as diferentes classes e as suas condições
essenciais não são, de modo algum, hipotéticas. Quem quer que se disponha a
reflectir verá que elas são fielmente copiadas da Natureza”.363
Antes de iniciarmos a análise do Tableau, é conveniente, portanto, dizer algo
acerca das classes sociais tal como Quesnay as considera.
Quesnay distingue três classes sociais.
1) A classeprodutiva é constituída pelos agricultores ifermiers) que cultivam a terra.364
Perante a superioridade manifesta, em termos de produtividade, òa. grande cul­
tura praticada nas explorações agrícolas capitalistas do norte de França, Quesnay
considerava mera sobrevivência de um período histórico ultrapassado (e em vias
de encerrar) a agricultura não capitalista ainda predominante no sul (petiteculture).
A capacidade empresarial já evidenciada pelos rendeiros capitalistas apontava como
desejável a generalização das relações de produção e dos processos de gestão capi­
talistas da agricultura, pois eles garantem o máximo de produto líquido.
Por isso Quesnay parte sempre do princípio de que a agricultura é agricultura
capitalista, o que o leva a considerar todos os trabalhadores agrícolas como traba­
lhadores assalariados. Deve salientar-se, no entanto, que Quesnay coloca o rendeiro
(capitalista) em posição equiparada à dos trabalhadores assalariados: o rendeiro é
considerado como um trabalhador que exerce um trabalho de direcção da activi­
dade produtiva, cabendo-lhe por isso um salário, embora mais elevado que o dos
restantes trabalhadores.
Em vez de considerar uma classe de capitalistas rendeiros (que contratam trabalha­
dores assalariados para fazerem cultivar as terras que tomam de renda ao respectivo
proprietário), aos quais caberia um lucro em caso de êxito da sua empresa, Quesnay

363 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 243.


364 Levando a lógica de Quesnay até às últimas consequências, dir-se-ia que a classe dos agricultores é tâo estéril
como a dos que trabalham na indústria. Com efeito, para os fisiocratas a agricultura é uma actividade produtiva
porque a terra é capaz (e só ela é capaz) de produzir o produit net. Isto dever-se-ia a um dom da Natureza, a
produtividade natural da terra. Cfr. P. SAM UELSON, "Q u esn a/s Tableau Économique as Theorist Would
Formulate it Today", em Ian BRADLEY and Michael HOW ARD (eds.). Classical and Marxian Political Economy
- Essays in H onour o f Ronald L. M eek, M acM illan, Londres, 1982,5 0.
3 5 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

reserva, no fundo, o papel de capitalistas aos proprietários, os quais chamam a si, sob
a forma de renda, todo o produto líquido resultante da actividade agrícola.
2) A c/asse dos proprietários (também designada por classe distributiva ou classe
soberana) é constituída por aqueles que, não desenvolvendo qualquer actividade
económica, gozam do direito de receber a renda (que absorve todo o produto
líquido, como veremos à frente).
Nela se integram não só os proprietários de terras, mas também o soberano
(com a corte e o conjunto dos funcionários da administração estadual) e a Igreja,
uma vez que a todos eles cabe uma parcela da renda (i.é, do excedente agrícola),
quer porque são proprietários (e entre os proprietários contam-se o soberano e a
Igreja) quer porque gozam do direito de cobrar impostos (o soberano) ou dízimos
(a Igreja).
3) A classe estérilé constituída pelos que se dedicam à indústria, ao comércio e
às profissões liberais, actividades que podem produzir bens úteis, mas que não
criam produto líquido (também aqui não se distinguem os trabalhadores assalari­
ados dos empregadores capitalistas).
Schumpeter defende que o esquema utilizado por Quesnay no Tableau “não é
primordialmente um esquema de classes entendidas como entidades sociais, mas
de classes como grupos económicos do tipo que encontramos nas estatísticas cor­
rentes dos indivíduos ‘afectados’, por exemplo, à agricultura, ou às minas, ou às
indústrias transformadoras”.365 A equiparação dos rendeiros (capitalistas) aos tra­
balhadores assalariados no âmbito da classe produtiva, bem como a indiferencia-
ção com que é apresentada a classe estéril apontam no sentido de legitimar a
análise de Schumpeter.
Outros autores, porém, sustentam que, na análise macroeconômica apresentada
no Tableau, Quesnay opera com o conceito de classes sociais entendidas como
“agregados sociais definidos pela função que desempenham no processo produti­
vo”.366 Em abono desta tese poderá invocar-se, se bem vemos, o facto de resultar
claramente do Tableau que a classe dos proprietários se apropria do excedente pelo
facto de ser a proprietária da terra, daí resultando o seu direito à renda e não de
qualquer contribuição sua para o processo produtivo e, nomeadamente, para a
criação do produto líquido (Quesnay não reconhece qualquer produtividade ao
capital que pudesse fundamentar o direito à renda).
M as outras considerações dão consistência a esta última tese. Com o já vimos,
os fisiocratas consideram a propriedade como a base essencial da sociedade e

365 Cfr. J. SC H U M PTER,H i s t ó r i a .c it.,p. 283.


366 Cfr. R. tÓ PEZ-SU EV O S, ob. cit., p. 14.
A v e iA s N u n es - 3 5 3

sustentam que é na propriedade que se fundamenta a autoridade do soberano: que


o estado não pode ter outro interesse que não seja o interesse dos proprietários, que
os direitos do estado são, por isso, os direitos dos proprietários.
A esta concepção do direito de propriedade (da propriedade fundiária, i.é, da pro­
priedade produtiva) associam os fisiocratas o sistema de relações jurídicas, sociais e
políticas entre as várias classes sociais no seio do estado e relativamente ao estado.
Turgot chama a atenção para a “grande distinção, a única fundada na natureza,
entre duas classes, a dos proprietários das terras e a dos não-proprietários” e subli­
nha a distinção entre elas no que se refere “aos seus interesses e por conseguinte
aos seus direitos diferentes relativamente à legislação, à administração da justiça e
da política, à contribuição para as despesas públicas e ao emprego”.
Trata-se, sem dúvida, de uma distinção que tem por base a propriedade dos meios
de produção (a terra e os avances feitos pelos proprietários) e a função que cada grupo
social desempenha no processo económico de produção. E esta divisão da sociedade
em proprietários de terras e não proprietários tem incidências imediatas na esfera dos
direitos económicos, sociais e políticos dos membros de cada uma das classes.
Para os fisiocratas, com efeito, os proprietários de terras são “os membros
essenciais de uma nação” (Mercier de La Rivière). Este mesmo autor escreve: “O
estado reside essencialmente no soberano, que é o chefe, nos proprietários do
produto líquido e nos empreendedores de cultura”. E M irabeau é igualmente cla­
ro na afirmação de que só os proprietários gozam de direitos políticos e de que só
eles são membros de pleno direito do estado: “O soberano e os proprietários do
produto líquido e disponível eis o que compõe o estado”.
Esta identificação da titularidade do poder social e político com o direito de
propriedade explicam-na os fisiocratas invocando que a própria sociedade assenta
na propriedade; que o estado existe para a protecção da propriedade e dos interes­
ses dos proprietários; que são estes que pagam o impôt unique e que, por isso
mesmo, “suportam o fardo das despesas públicas” (Turgot); que, acima de tudo, só
os proprietários estão verdadeiramente ‘enraizados’ na sociedade e verdadeiramen­
te interessados na prossecução dos objectivos da ‘ordem natural’. Repare-se neste
texto de Baudeau: “Um homem que incorpora os seus bens na terra, para a tom ar
mais frutificante, incorpora-se ele próprio nesse terreno, toma raiz no estado, se é
permitido falar assim: a sua existência, as suas fruições estão intimamente ligadas
ao território. Os proprietários fundiários pertencem portanto mais especialmente e
mais intimamente a cada um dos Impérios”.367

367 Cfr. A. VACHET, 06. c/f., 387-390.


3 5 4 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

7. O T a b l e a u É c o n o m iq u e , o p r o c e s s o de p r o d u ç ã o e o
PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DAS MERCADORIAS

Para os fisiocratas, a troca é o ponto de partida da análise económica, conce­


bendo eles a vida económica como um sistema de relações de troca entre as classes
sociais. Relações de troca que, renovando-se periodicamente, preenchem o espaço
entre a produção e o consumo.
É esta concepção que aparece representada no Tableau Économique. Schumpe­
ter considera a representação do Tableau feita por ShigetoTsuru como “a melhor
maneira de captar a ideia essencial [do Tableau] com o menor esforço”.368 É, com
certeza, mais simples do que o esquema de zig-zag utilizado por Quesnay. Vamos,
pois, seguir o conselho de Schumpeter, reproduzindo os dois diagramas utilizados
porTsuru.369
Tentemos então uma síntese das relações de troca que se desenvolvem entre as
classes sociais que integram o sistema, tais como o Tableau as configura.
Ao fim de cada ciclo produtivo, a classeprodutiva detém toda a produção agrí­
cola realizada (3.000 de alimentos + 2.000 de matérias-primas = 5.000). A classe
produtiva detém também - vamos supô-lo - uma quantidade de moeda igual a
2.000. A classe estéril, por sua vez, detém toda a produção de produtos manufactu­
rados (2.000) [Diagrama I].
A produção daqueles 5.000 pela classe produtiva implicou um determinado
custo (3.000), que consistiu no ‘consumo produtivo’ (1.000 de matérias-primas
agrícolas; 2.000 de bens destinados a assegurar a subsistência dos trabalhadores:
1.000 de alimentos e 1.000 de produtos manufacturados). A diferença entre o
valor da produção (5.000) e o respectivo custo (3.000) é o produto líquido (2.000).
A produção de manufacturas pela classe estéril acarretou, necessariamente (uma
vez que a indústria não cria qualquer produto líquido), um custo de produção de
valor idêntico ao dos bens produzidos (1.000 de alimentos para os trabalhadores
da indústria + 1.000 de matérias-primas de origem agrícola = 2.000).
A classe dos proprietários - já o sabemos - não participa no processo produti­
vo, mas tem direito a receber uma renda da classe produtiva.

368 Cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 284.


369 O s diagramas de Tsuru sâo apresentados em "Sobre os esquemas de reprodução", Apôndice A do livro de Paul
SW EEZY, Theory o f Capitalist Development.
A v elã s N u n es - 3 5 5

DIAGRAMA I
SITUAÇÃO ANTES DA TROCA. NO FIM DO CICLO PRODUTIVO

M OEDA
AU M ENTO S A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S

A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S

Classe Produtiva

DIAGRAMA II
SITUAÇÃO DEPOIS DE FEITAS TODAS A S COM PRAS E TODAS A S VENDAS

M OEDA 4 — I M O EDA
A R T IG O S
M A N U FA C T U R A D O S

A LIM EN T O S M A T É R IA S -P R IM A S

Classe Produtiva
3 5 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o i It ic a

Veremos a seguir como se desenrola o processo de circulação do produto social


entre as três classes sociais em presença, de tal modo que a classe dos proprietários
receba a renda a que tem direito e que, ao fim desse processo de circulação, quer a
classe produtiva quer a classe estéril estejam em condições de reiniciar o processo
produtivo em termos idênticos aos do período anterior (este processo está repre­
sentado pelas setas do Diagrama I).
O primeiro acto deste processo circular é o pagamento da renda à classe dos
proprietários por parte dos agricultores: com este objectivo, a classe produtiva vai
transferir para a classe dos proprietários os 2.000 que detinha em dinheiro (a
renda é, pois, de 2.000, igual ao produto líquido).
Na posse destes 2.000, a classe dos proprietários vai gastá-los na compra de
1.000 de alimentos à classe produtiva e de 1.000 de produtos manufacturados à
classe estéril.
M etade do dinheiro inicialmente na posse da classe produtiva fica, assim, de
novo à sua disposição. E estas 1.000 unidades monetárias vão ser utilizadas pela
classe produtiva na compra à classe estéril de produtos manufacturados, repondo,
deste modo, os 1.000 de produtos manufacturados que adiantara no início do ciclo
produtivo e que foram ‘consumidos’ no decurso dele e por causa dele.
A classe estéril vendeu já 1.000 de produtos manufacturados à classe dos pro­
prietários e 1.000 desses mesmos produtos à classe produtiva, dispondo agora de
2.000 em moeda. Pois bem. Ela vai utilizar estes 2.000 para comprar à classe
produtiva 1.000 de alimentos e 1.000 de matérias-primas. A classe estéril recons­
titui assim aquilo que adiantara no início do ciclo produtivo e que ‘consumira’ no
decurso dele e por causa dele.
À classe produtiva regressam, deste modo, as 2.000 unidades monetárias que
ela detinha antes de iniciado o processo de circulação e que funcionaram apenas,
se bem repararmos, como intermediário geral nas trocas, i.é, como instrumento des­
tinado a facilitar as transacções entre os sujeitos económicos (o produto social
poderia circular através da troca em espécie, de bens por bens, iniciando-se o
processo com a entrega de 2.000 de produtos agrícolas pela classe produtiva à
classe dos proprietários).
Dos 5.000 correspondentes à produção agrícola, a classe produtiva vendeu,
pois, 1.000 de alimentos à classe dos proprietários e 2.000 à classe estéril (1.000
de alimentos + 1.000 de matérias-primas). Restam-lhe 2.000, que ela conserva
para si, de modo a reconstituir o que adiantara no início do ciclo produtivo em
sementes (1.000) e em alimentos para si própria (1.000). Estes, juntam ente com
os 1.000 de produtos manufacturados já adquiridos à classe estéril, constituem o
A v e ià s N u n e s - 3 5 7

consumo produtivo (o custo de produção, os adiantamentos que tornam possível o


processo produtivo - o investimento).
Ficam assim satisfeitas as condições da circulação. Os proprietários apropria­
ram-se do produto líquido sob a forma de renda e consumiram-na integralmente
(todo o processo de circulação inicia-se com o pagamento da renda c o gasto da
renda, o que releva a importância da circulação do excedente). Tanto a classe produ­
tiva como a classe estéril têm de novo à sua disposição os bens de que necessitam
para renovar o processo produtivo, nas mesmas condições do período anterior.

8 . A lg u m a s q u e stõ e s te ó r ic a s s u s c ita d a s p elo T a b l e a u


*

É c o n o m iq u e

Enunciada a teia de relações de troca representadas no Tableau, que fazem dele


a primeira análise das condições do equilíbrio geral do sistema económico, tenta­
remos a seguir destacar algumas das questões teóricas mais importantes suscitadas
pela sua leitura.

8.1. A ACTIVIDADE e co n ó m ica c o m o p ro ce sso a u to - re n o v á v e l

A actividade económica é analisada pela primeira vez como um processo auto-


renovável, em que a produção e a circulação de mercadorias constituem um Jluxo
que continuamente se renova, porque no fim de cada ciclo de produção/circulação
de mercadorias se reconstituem as condições que permitem aos sujeitos económi­
cos renovar o processo produtivo.

8.2. A CONEXÃO ENTRE A PRODUÇÃO E A CIRCULAÇÃO NUMA ECONOMIA


MERCANTIL

A análise do Tableau estuda as relações económicas de produção e de distribui­


ção do produto. A origem do produto líquido é encontrada sem sair da esfera da
produção e as relações de distribuição aparecem claramente condicionadas pelas
condições sociais em que decorre a produção, nomeadamente pela estrutura de
classes da sociedade.
M as um dos méritos do Tableau reside sem dúvida na sua capacidade para
tornar transparente a conexão entre a produção e a circulação numa economia
mercantil. Sem a produção, é claro que o processo de circulação não teria sentido,
por falta de objecto. Por outro lado, o processo de circulação é um elemento essen­
cial da continuidade do processo produtivo: sem a circulação não seria possível
reconstituir as condições materiais indispensáveis à renovação do processo produ­
tivo (“O consumo é a medida da reprodução”, escreveu M ercier de La Rivière).
3 5 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

8.3. A M O E D A C O M O S IM P L E S I N T E R M E D I Á R I O N A S T R O C A S

Na representação do Tableau que utilizámos aparece um circuito de circulação


da moeda c um circuito de circulação dos bens. Mas o primeiro seria perfeitamen­
te dispensável; a moeda apareceu apenas para facilitar as trocas, não desempe­
nhando qualquer função activa no sistema. O que importa para a dinâmica do
modelo são as transacções reais: as trocas de mercadorias entre as várias classes sociais,
que no Tableau simplificadamente se admite realizarem-se de uma só vez, no fim
de cada ciclo produtivo.
Apesar de algumas reminiscências de uma sociedade de tipo feudal, e apesar de
Quesnay não ter elaborado uma teoria do valor (i.é, uma teoria que lhe permitisse
estabelecer o(s) factor(es) de que dependem os valores de troca das mercadorias),
não há dúvida de que o Tableau reflecte com nitidez uma das características funda­
mentais da sociedade que vinha nascendo dos escombros da sociedade feudal.
Com efeito, as relações entre os sujeitos económicos são, no Tableau, predomi­
nantemente relações mercantis, i.é, relações de troca de mercadorias entre sujeitos eco­
nómicos que se apresentam impessoalmente como compradores e vendedores. wNo
Tableau, precisamente, as relações de troca entre as três classes sociais são relações
mercantis, mediadas pela moeda, isto é, por uma mercadoria particular, que é
aceite por todos na troca e pela qual são medidos os valores, ou preços, das merca­
dorias”.370

9. A IMPORTÂNCIA DO EXCEDENTE NO MODELO DE REPRODUÇÃO


do Ta blea u E c o n o m iq u e

A reprodução, nos exactos termos verificados no início do processo, das condi­


ções de funcionamento do sistema produtivo (bem como a sua ampliação ou a sua
restrição) dependem da dimensão do excedente (i.é, do m ontante da renda paga à
classe dos proprietários) e do destino do excedente.
Com o pagamento da renda à classe dos proprietários inicia-se o processo de
circulação do produto social entre as várias classes. E do Tableau resulta que a
amplitude das trocas que têm lugar entre as classes, i.é, a amplitude do próprio
ciclo produtivo, ou, de modo mais directo, a taxa máxima de crescimento da eco­
nomia, depende da dimensão do produto líquido.
N o esquema do Tableau, o excedente é integralmente consumido de modo im­
produtivo pela classe dos proprietários, dando lugar a uma economia estacionária,
incapaz de progresso. M as isto mesmo chama a atenção para a importância que

370 CU. C. NAPOLEONI, O valor...,ctL, p. 14.


A v elã s N un es - 3 5 9

assume o destino que é dado, de facto, ao excedente, destino de que dependerá a


taxa efectiva de crescimento do produto social real.
De acordo com o modelo utilizado no Tableau, a ‘reprodução simples’do siste­
ma produtivo exigia necessariamente que todo o produto líquido fosse gasto em
bens de consumo. Na verdade, só em consequência destes primeiros actos de troca
(que se seguem ao pagamento da renda pela classe produtiva à classe dos propri­
etários, pagamento que não implica qualquer contrapartida da parte desta) é que
são possíveis as relações de troca subsequentes, que permitem, tanto à classe pro­
dutiva como á classe estéril, restabelecer as condições indispensáveis à renovação
do processo produtivo.371
Esta ideia - que, de certo modo, antecipa um dos pressupostos da lei de Say -
segundo a qual os rendimentos provenientes da produção são em regra gastos
integralmente (em consumo) está presente nos escritos dos fisiocratas. O próprio
Quesnay escreveu que “tudo o que é comprado é vendido, e tudo o que é vendido
é comprado”, e Mercier de La Rivière escreveu também que “ninguém é compra­
dor sem ser ao mesmo tempo vendedor”. M ark Blaug defende mesmo que “a lição
central do Tableau, é, sem dúvida, a de que a moeda é um simples intermediário
nas trocas, de que o comércio se reduz essencialmente às relações de troca, e que a
actividade produtiva gera automaticamente o rendimento cujo gasto torna possível
iniciar um novo ciclo produtivo”.372
Se tal não acontecesse, i.é, se algumas pessoas aforrassem para aumentar a sua
reserva individual de dinheiro, Quesnay concluía que todas as classes aufeririam
menor rendimento e a produção total reduzir-se-ia: se alguém deixasse de gastar
todo o seu rendimento, isso significaria necessariamente a diminuição do rendi­
mento de outrem.373

1 0 . 0 AUMENTO DO EXCEDENTE AGRÍCOLA E O CRESCIMENTO


ECONÓM ICO (O B O N P R IX PARA OS CEREAIS, O IM P Ô T U N IQ U E E
O LA IS S E Z -FA IR E , LA ISSEZ -P A SSER )

O modelo do Tableau é um modelo de economia estacionária. M as - como mos­


trou Ronald M e e k - o problema que preocupou acima de tudo os fisiocratas foi o
do crescimento económico. Gunnar Myrdal diz deles, aliás, que, “como verdadei-

371 No sistema fisiocrático tem, pois, acolhimento a tese - mais tarde desenvolvida por Malthus - segundo a qual
os consumos de luxo dos grandes proprietários de terras constituem uma condição de equilíbrio da circulação
e, por isso mesmo, da estabilidade e da prosperidade da economia.
372 Cfr. M. B LA U G , ob.cit.. p. 29.
373 Cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 279.
3 6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

ros representantes do seu tempo, estavam mais interessados em reformar o mundo


do que em descrevê-lo e explicá-lo”.
E é nesta veste de ‘reformadores’ empenhados em acelerar o crescimento da
economia francesa e, por isso mesmo, em generalizar a toda a agricultura francesa
a gestão capitalista (por eles considerada a forma mais acabada de gestão do pro­
cesso produtivo), que os fisiocratas criticaram alguns aspectos da política colber-
tista e do mercantilismo em geral, bem como certas instituições de cariz feudal
que consideravam arcaicas e prejudiciais ao desenvolvimento da agricultura.
Como resulta do Tableau, a amplitude do crescimento económico depende essenci­
almente da dimensão doproduit net. Ora o aumento doproduit net exige que se verifi­
quem determinadas condições. A extensão da agricultura capitalista a todo o território
era, para os fisiocratas, a condição básica para alcançar o máximo de produtividade da
economia. Mas era indispensável que se verificassem outras condições:
a) os agricultores deveriam ser estimulados a desenvolver as suas actividades.
Para isso, era preciso obter um “bon prix” para os cereais e criar as condições para
que estes pudessem vender-se nos mercados que propiciassem os mais altos rendi­
mentos aos agricultores.
Neste sentido, os fisiocratas defenderam que devia ser abolido o direito de caça
dos senhores feudais e que as terras comunais deviam ser desvinculadas e entre­
gues para exploração - como as terras dos proprietários feudais - a rendeiros
capitalistas, os quais deveriam poder arrendar grandes extensões de terra e por
prazos dilatados, de modo a que a agricultura se desenvolvesse, sem interferência
dos terratenentes, em grandes explorações agrícolas capitalistas.
Defenderam também a supressão de todos os regulamentos, alfândegas inter­
nas e entraves de toda a ordem tradicionalmente adoptados com o objectivo
político de reduzir os riscos de penúria dos alimentos e de evitar os períodos de
fome generalizada.
E defenderam igualmente a abolição das restrições à exportação de cereais, das
quais resultava, tendo em conta a capacidade de produção do país, a baixa do
respectivo preço no mercado interno.
b) A maximização do montante da renda (= excedente) apontava, por sua vez, no
sentido de que os preços dos produtos manufacturados deveriam fixar-se ao mais baixo
nível compatível com os custos de produção. Por isso mesmo os fisiocratas condena­
ram as situações de monopólio de que gozavam muitas “manufacturas”, preconizando
o abatimento de todas as barreiras à circulação dos produtos no mercado interno, com
o objectivo de incrementar a livre concorrência entre os manufactureiros.
c) Uma outra condição preconizada pelos fisiocratas foi a substituição dos im­
postos indirectos (então pagos quase só pelas classes pobres) por um impòt unique
A v elã s N u n es - 3 6 1

sobre a renda. Se a renda absorvia todo o produto líquido, ela deveria ser a base da
tributação e deveria ser a classe dos proprietários a pagar os impostos. Uma das
‘máximas gerais’ de Quesnay para o governo económico de um reino agrícola
consistia exactamente em
“que o im posto não seja destrutivo ou desproporcionado à massa dos rendi­
m entos da nação; que o seu aum ento siga o aum ento dos rendim entos; que seja
estabelecido im ediatam ente sobre o produto líquido dos bens de raiz e não
sobre o salário dos hom ens, nem sobre os géneros agrícolas, pois multiplicaria
os encargos de cobrança, prejudicaria o comércio c destruiria anualm ente uma
parte das riquezas da nação”.

E num escrito de análise da fórmula numérica do Quadro Económico (1766)


Quesnay escreve:
“N ão há nenhum a outra fórmula de lançar o im posto que possa originar um
tão grande rendim ento público, sem causar qualquer declínio da reprodução
anual da nação. O s proprietários, o soberano e toda a nação tem grande interes­
se em que o total do im posto seja lançado directam ente sobre o rendim ento das
terras; porque qualquer outra forma de tributação seria contrária à ordem
natural, seria prejudicial à reprodução e ao im posto e faria com que o im posto
recaísse sobre si m esm o”.

Com esta reforma tão contrária à tradicional isenção de impostos de que bene­
ficiavam as classes feudais, Quesnay visava sobretudo facilitar a utilização de uma
parte do excedente na acumulação de capitais, potenciando deste modo o aumento
do investimento na agricultura (“avances au sol”) e, consequentemente, o aumento
do produit net e o progresso de toda a sociedade. M arx ( Teorias da mais-valia) pôs
em relevo o significado desta proposta dos fisiocratas enquanto ataque aos privilé­
gios tributários dos proprietários feudais, sublinhando que o imposto sobre a ren­
da da terra conduz a “um confisco parcial da propriedade rural, que a legislação
revolucionária francesa procurou realizar”.
As duas primeiras condições acima referidas alimentam e justificam a orienta­
ção dos fisiocratas em favor do liberalismo económico, condensado na fórmula do
laissez-faire, laissez-passer.
Dentro da sua concepção de que a produção decorre menos da actividade do ho­
mem do que de uma qualidade da Natureza, Quesnay defende a liberdade económica
porque ela lhe aparece como o caminho conforme à lei natural e a intervenção como
contrária a ela. A liberdade realiza “a ordem natural evidentemente mais vantajosa para
o género humano” - escreveu Quesnay, que apresenta, entre as ‘máximas gerais’já
referidas, também esta: “Que se garanta a liberdade total do comércio; porque a poli-
3 6 2 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l ít ic a

tica de comércio interno e externo mais segura, mais exacta e mais proveitosa para a
nação e para o estado consiste na plena liberdade de concorrência”.374
Mas alguns especialistas - com destaque para Jean Marchai e Ronald M eek -
põem em relevo que os fisiocratas defenderam o laissez-faire menos por considerar
o liberalismo económico como o melhor sistema do que por entenderem que a
liberdade de circulação (incluindo a liberdade de exportação) dos produtos agrí­
colas era um factor essencial para o desenvolvimento da agricultura francesa.375
E, na verdade, Quesnay defendeu veementemente a necessidade de o estado
intervir com firmeza no sentido de criar as condições para que as leis naturais
pudessem impor-se. Por outro lado, Quesnay não hesitou em defender a continu­
ação de certas formas de regulamentação da actividade económica, sempre que
elas fossem favoráveis à agricultura (defendeu, v.g., que continuasse condicionada
a liberdade em matéria de empréstimo de dinheiro a juros, para garantir boas
condições de financiamento da agricultura).376

11. A NOÇÃO DE CAPITAL E A IMPORTÂNCIA DO INVESTIMENTO

Já vimos que a condição essencial do equilíbrio global do sistema económico,


de acordo com o modelo do Tableau é a reconstituição - no fim de cada ciclo de
produção/circulação do produto social - dos adiantamentos feitos no início do
ciclo produtivo. E vimos também que a política de desenvolvimento da agricultura
proposta pelos fisiocratas visava o aumento do produit net, condição indispensável
para que uma parte dele pudesse ser destinada à formação de novo capital na
agricultura, sob a forma de “avances du propriétaire foncier” (melhoria das infra-
estruturas: edifícios, obras de arroteamento, de drenagem e de irrigação de terras,
abertura de canais e de estradas, etc.), que contribuissem para aumentar a capaci­
dade produtiva, a produtividade e, portanto, o produto social.
Fica assim patente a importância que assume, na teoria económica dos fisio-
cratas, o conceito de capital. Com os fisiocratas inicia-se, aliás, a tradição de con­

374 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 144.


375 No final do séc. XVIII, a supressão das alfândegas internas e a liberdade de exportação eram medidas que
favoreciam claramente a agricultura francesa, através da subida dos preços dos cereais.
Mas em finais do séc. XIX, em consequência da baixa dos custos dos transportes marítimos, a supressão das
alfândegas (protectoras) nas relações com países estrangeiros favoreceu os trigos americanos e canadianos na
concorrência com os trigos franceses, produzidos a custos mais elevados. Os autores interrogam-se sobre se,
nestas condições, Quesnay não se teria declarado defensor do proteccionismo. Alguns admitem que sim (cfr.
J. M ARCHAL, ob. cit., 115).
376 Saliente-se, no entanto, que a defesa da liberdade do empréstimo a juros é feita por alguns dos fisiocratas. O
abade Baudeau proclama que “todo o lucro é justo quando há plena liberdade". Mas é sobretudo Turgot que
defende a liberdade do comércio do capital monetário, considerando este direito como "direito inseparável da
propriedade". Mas o empréstimo a juros "é lícito - salienta Turgot - por um princípio ainda mais geral e mais
A v elã s N u n es - 3 6 3

siderar o capital como um estoque de bens (“as riquezas pré-existentes, cujo dispên­
dio faz renascer anualmente igual volume de riquezas”), constituído pelo conjunto
dos meios de produção e de subsistência que, tendo sido previamente acumulados,
são adiantados para permitir o início do processo produtivo. O capital é, pois,
entendido como o conjunto dos adiantamentos (“avances”) feitos sobre a futura
produção e que têm de ser reconstituídos (“reprises”) no fim do processo de circu­
lação do produto social.
A importância dos adiantamentos (i.é, do investimento, ou do capital) é posta em
relevo pelo próprio Quesnay:377
“É da m anutenção ou do crescimento dos adiantamentos que fazem renascer as
riquezas anualmente, que depende a prosperidade das nações agrícolas. Porque,
se os adiantam entos não forem suficientes para originar um a reprodução tão
superabundante que dê o maior rendim ento possível, a nação perde sobre o
produto que ela poderia retirar do seu território. M as, se eles forem tão redu­
zidos que apenas se possam reproduzir a si próprios, então faltará o rendim en­
to, os adiantam entos da classe estéril desaparecerão, toda a produção se lim ita­
rá rigorosam ente à subsistência do agricultor e dos seus trabalhadores".

Quesnay considerou vários tipos de capital: “avances dupropriétairefoncier”ou “avances


foncières”; “avances originelles ou “avancesprimitives; “avances annuellesn.m
11.1. Os A v a n c e s F o n c iè r e s

Os “avancesfoncières” são os investimentos feitos pelos proprietários das terras -


enquanto “encarregados, de direito natural, da administração e das despesas em repa­
ração do seu património” - “para conservação e melhoramento dos seus bens e para
expansão do seu cultivo”. São, essencialmente, investimentos em infraestruturas.
A importância atribuída por Quesnay a estes investimentos (ou, se se quiser, à
acumulação do capital) é tal que ele próprio escreve que “é a necessidade destas
despesas, que só os proprietários podem fazer com vista ao acréscimo das suas
riquezas e ao bem geral da sociedade, que faz com que a segurança da propriedade
da terra seja uma condição essencial da ordem natural do governo dos impérios”.
Numa visão capitalista da propriedade fundiária, Quesnay acrescenta que a “segu­
rança da propriedade” deve abranger “a propriedade das riquezas mobiliárias ne­

respeitável, uma vez que ele é a base sobre a qual assenta todo o edifício das sociedades; quero dizer com isto
o direito inviolável, ligado à propriedade, de ser senhor absoluto dos seus bens, de n5o poder ser privado dela
sem seu consentimento, e de náo poder associar o seu consentimento a uma condiçáo que se julga apropriada".
Cfr. A . VACHET, o b .d L, 318-319.
377 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 150.
378 Deixamos de lado os “avances souveraines", constituídos por despesas públicas em caminhos, abertura de
canais fluviais, etc.
3 6 4 - U m I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a

cessárias para o cultivo, único meio de valorizar os bens de raiz”. É um passo em


frente relativamente à concepção feudal da propriedade fundiária e à atitude feudal
relativamente ao processo produtivo.
Estas considerações de Quesnay mostram também que o facto de ele sustentar
que a produtividade da terra (origem de toda a riqueza) é um dom da Natureza não
o impede de compreender a importância dos investimentos (nomeadamente dos
“avances foncières”) como factor de incremento dessa produtividade. Só que esta
produtividade acrescentada pelo homem à produtividade natural da terra é vista como
incorporada na própria terra e só por isso relevante. Os proprietários poderão vir
a beneficiar de um aumento da renda porque aumentou a produtividade da terra\
mas os seus investimentos não são considerados como capital, no sentido de ele­
mento produtivo que crie riqueza e justifique, por isso, um rendimento autónomo.379

379 Outra parece ser a conclusão de A. VACHET (06. d l , 298-303). Eiso essencial da sua argumentação. Segundo
os fisiocratas, nas sociedades evoluídas, de economia organizada e complexa, os avances foncières são "a
origem necessária de toda a fertilidade*. (Baudeau) Quer dizer: nestas sociedades (i.é, fora do estado de natu­
reza) todo o trabalho pressupõe a existência de capital, uma vez que só o capital permite ao trabalho produzir.
'O trabalho daquele que não possui nada náo lhe pertence: pertence àquele que pode empregá-lo a troco de
um salário', escreve um adepto da fisiocracia. E Turgot é muito claro quando escreve que "todo o trabalho
pressupõe adiantamentos ('avances*), um capital; para trabalhar livremente - acrescenta - é preciso, portanto,
dispor livremente do capital necessário para a produção, isto é, ser seu proprietário*.
Dentro desta lógica, dir-se-á que, para os fisiocratas, o capital é a causa primeira da produtividade do trabalho.
Uma vez instituída a propriedade (sobre a terra) e reunido um certo capital (a partir de economias feitas no
consumo), o seu investimento faz que a propriedade não só se reproduza mas crie tembém um excedente, que
peitencerá ao titular da propriedade e do capital. Vachet cita, a propósito, este texto de Le Trosne: 'Se a cultura
se limitasse a restituir os seus adiantamentos, ela exigiria o trabalho pessoal de todos os proprietários: ela poderia
apenas alimentar duas classes de homens; os seus agentes e aqueles que se empregassem a servi-los de dife­
rentes modos. Mas, desde que ela é apoiada por despesas mais fortes e encorajada pelos êxitos, ela proporciona
um excedente para além dos seus custos. (...) Foi então que a faculdade produtiva da terra em condições de ser
cultivada pôde ser licitada por pessoas que se encarregaram de a explorar a seu risco e de pagar um rendimen­
to certo ao possuidor. Foi então que este possuidor pôde dispensar-se de cultivar ele próprio a terra, que ele
partilhou os frutos sem contribuir com o seu trabalho para a reprodução (...), e que ele pôde fazer viver com a
sua despesa uma quantidade de homens que se empregaram em servi-lo na razão da porção de frutos que ele
pôde ceder-lhes em troca dos seus trabalhos. Foi então que a sociedade ficou completamente formada, que ela
pôde manter uma autoridade tutelar e ter um património destinado a pagar a despesa pública e a garantir a
segurança interna e externa".
Este papel do capital (esta 'auto-fecundidade necessária da propriedade*) não seria posta em causa pelo facto
de, segundo os fisiocratas, o produit net ser um *dom da natureza*. Ê que o capital, para os fisiocratas, é, antes
de mais, uma porção da natureza, apropriada inicialmente com base no trabalho. Só que a natureza, sem
'adiantamentos', abandonada a si própria, produziria apenas o necessário para a sobrevivência, mas não
proporcionaria um excedente. Só o investimento, ao permitir a "grande culture* que multiplica os rendimentos
para além dos custos, toma possível este excedente.
Nesta perspectiva, André Vachet conclui que os fisiocratas terão 'erigido em princípio um processo de cresci­
mento essencialmente capitalista: aforro-investimento-excedente-aforro, etc.*
A v elAs N u n e s - 3 6 5

Acerca dos “avances foncières”, dir-se-á, finalmente, que eles não são conside­
rados no Tableau, que ignora o processo de acumulação. Este facto é explicado pelos
autores com base na interpretação segundo a qual o modelo utilizado no Tableau
pressupõe um estádio em que toda a actividade agrícola se desenvolve já em mol­
des capitalistas, tendo-se alcançado, por isso mesmo, o mais elevado grau de pro­
dutividade e o maior volume de excedente, de tal modo que “o benefício dos
proprietários não pode aumentar mais” (pressupondo a tecnologia constante, evi­
dentemente). Só nestas condições - i.é, nas palavras de Quesnay, “no estado de
prosperidade dum reino cujo território fosse integralmente cultivado pelos melho­
res métodos possíveis, onde o comércio fosse tão livre e tão fácil quanto possível e
onde, por consequência, o rendimento dos proprietários não pudesse ser maior”
se justificará o modelo de economia estacionária adoptado no Tableau, no qual não
tem lugar a ideia de acumulação e a própria dinâmica de formação do capital.380
11.2. O s A v a n c e s P r im itiv e s

Os “avancesprimitives' constituem o capital adiantado pelos rendeiros capitalis­


tas, indispensáveis ao funcionamento da exploração agrícola: edifícios, ferramen­
tas, gado, etc.
Estes “avances primitives” aparecem contabilizados na descrição simplificada
que fizemos do Tabeau através das 1.000 unidades monetárias de produtos manu­
facturados que a classe produtiva adquire à classe estéril, o que permite àquela
reconstituir anualmente os produtos manufacturados por ela adiantados (e que
Quesnay inclui nos adiantamentos agrícolas). A esta parcela do rendimento que
advém aos agricultores (verdadeiras quotas de amortização) chama Quesnay “juros”.
Porque os adiantamentosprimitivos exigem “grandes despesas de manutenção e re­
novação” e “porque os produtos da agricultura estão expostos a acidentes ruinosos que,
em dez anos, causam a perda de, pelo menos, o valor da colheita de um ano”, Quesnay
defende que “o juro destes adiantamentos deve render pelo menos dez por cento”.381
Este “juro” não é, porém, uma remuneração deste tipo de capital. É antes um
elemento dos custos de exploração anuais, correspondente ao desgaste efectivo sofrido
por esse capital durante o processo produtivo (reconstituído através de um expediente
contabilístico idêntico à amortização) e à contabilização dos riscos de exploração (uma
parte desse “juro” destina-se à constituição de um fundo contra riscos deste tipo):
“Sc os agricultores não tivessem nenhum fundo de reserva [para enfrentar o
risco de “vários acidentes graves que, por vezes, destroem quase inteiram ente a

380Cfr. C . N A PO LEO N I, Fisiocracia...,cit.. 27 e C . LARANJEIRO, o b d t , 35/36.


381 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 96/97.
3 6 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

colhcita: tais são a geada, o granizo, a nigcla, as cheias, a m ortalidade do gado,


etc.”), seguir-se-ia daí que, depois de tais acidentes, eles não poderiam pagar
aos proprietários e ao soberano, ou que não poderiam ocorrer às despesas do
cultivo no ano seguinte. Este últim o caso - escreve Q uesnay - seria o que
sempre se verificaria, dado que o soberano c os proprietários têm autoridade
para se fazer pagar. E vê-se facilmente quais seriam as consequências funestas
de sem elhante aniquilam ento do cultivo, que em breve recairiam, sem apelo,
sobre os proprietários, sobre o soberano, sobre os dizimeiros, sobre todo o resto
da nação. O s juros dos adiantamentos para a instalação dos agricultores devem,
pois - concluiu Q u esn ay -, estar compreendidos nas suas receitas anuais”.

11.3. Os A v a n c e s A n n u e lle s

Finalmente, os “avances annuelles ’ correspondem aos adiantamentos correntes


feitos no início de cada ciclo produtivo: alimentos para os trabalhadores agrícolas
(salários), sementes e outros custos anuais regulares. Vimos atrás como se proces­
sa a sua reconstituição no final de cada ciclo de produção/distribuição.

1 2 . JUÍZO ACERCA DO SIGNIFICADO E DA IMPORTÂNCIA DAS TESES


FISIOCRÁTICAS

Não é unívoco o juízo dos especialistas acerca do significado e da importância


das teses fisiocráticas.

1 2 .1 . U m a per spec tiv a g l o b a l : a im p o r t â n c ia d a s t e o r ia s

FISIOCRÁTICAS NA HISTÓRIA DA ANÁLISE ECONÓMICA

Os fisiocratas são por vezes acusados de conservadorismo, por se apegarem a


uma economia centrada na agricultura, em oposição à política ‘industrializante’
levada a cabo pelos mercantilistas. E a verdade é que o próprio Quesnay escreveu
que “tudo o que é desvantajoso para a agricultura é prejudicial à nação e ao estado,
e tudo o que favorece a agricultura é proveitoso para o estado e para a nação”.382
Já vimos atrás as posições de Adam Smith relativamente a este aspecto do
pensamento fisiocrático.
Perante a tese fisiocrática segundo a qual o excedente só tem lugar na agricul­
tura, Cláudio Napoleoni sustenta que ela conduz os fisiocratas à conclusão de que
o capitalismo, enquanto instrumento de ampliação do excedente, é uma ordem
económica específica da agricultura, admitindo a estrutura artesanal como a forma
natural de gestão da indústria, e não compreendendo, por isso mesmo, que eram as

382 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 254.


A v elà s N u n es - 3 6 7

actividades industriais as que ofereciam maiores possibilidades de implantação e


de expansão da ordem capitalista.383
As concepções dos fisiocratas relativamente à agricultura - “conclusões que
pareceram algo absurdas, mesmo aos observadores da época”, como refere M ark
Blaug - poderão explicar-se, segundo este autor, como uma consequência do es­
forço de Quesnay e seus seguidores para apresentarem uma justificação teórica
sólida para a reforma agrícola por eles preconizada, como grandes admiradores
que eram da ‘revolução agrícola’ inglesa.384
Outros autores, porém, consideram ‘realista’ a perspectiva apresentada pelos
fisiocratas, tendo em vista a sociedade francesa do seu tempo. É o caso, entre
outros, de Maurice Dobb:
“o que o comércio e as manufacturas consum iam - escreve D obb - era o que
necessitavam para alimentar as suas actividades. A indústria trocava os p rodu­
tos que não utilizava pela produção agrícola que satisfazia a sua procura de
m atérias-prim as e a subsistência dos seus operários. A indústria, por este acto
de intercâm bio, não fazia mais do que dar um equivalente por um equivalente
recebido, e não produzia, portanto, nenhum excedente. M irabcau dizia: ‘dou
um pedaço de pano a um alfaiate; não será capaz de aum entá-lo de m odo a
talhar um a casaca para ele e outra para m im ’. A agricultura, por sua vez, troca
parte dos seus produtos pelas manufacturas de que necessita, para a m anuten­
ção da agricultura e da população agrícola, com o sejam os vestuários. Mas,
aquilo que troca pelas manufacturas mais o que usa para a subsistência e sem en­
tes, não esgota o total do produzido pela terra: um a terceira parte vai para a
classe proprietária cm forma de renda, sem obter, em troca, nenhum equiva­
lente. Esta parte era o excedente social ou produto liquido do sistema económico,
c a agricultura era a única a produzir tal excedente. O progresso consistia no
aum ento contínuo deste produto liquido.

São concepções que D obb justifica, historicamente, do seguinte modo: “trata­


va-se de um conceito que nasceu da sociedade económica anterior à Revolução
Francesa e apropriada a ela, pois as manufacturas de carácter capitalista esta­
vam então na sua infância, e a renda da terra era a base essencial das receitas da
classe dom inante”.

“N a história das ideias esse conceito [o conceito de cxccdcntc] representa uma


interessante filosofia de transição entre a antiga c a nova era - escreve D obb.

383 Cír. C. N APOLEONI, Fisiocracia..., d l , 19. Alguns sustentam que o sistema fisiocrático se apresenta como um
sistema de capitalismo integral, ainda que provisoriamente limitado ao capitalismo agrícola (Cfr. A VACHET, ob.
c il, 365/366).
384 Cfr. M . B LA U G , ob. c iL , 25.
3 6 8 - U m a I n t r o o u ç à o A E c o n o m ia P o l It ic a

Q uanto à sua form a, parecc assentar num a sociedade aristocrática do passado


pela insistência na importância da agricultura e da renda da terra. O certo é que
não contém profecias a respeito do industrialismo do século X IX nem relativa­
m ente às necessidades c funções de uma nova classe burguesa.

E que fundam ento havia para tais ideias na França do séc. XVIII? - pergunta
M aurice D obb. M as o seu em penho tácito em favor da abolição das restrições
feudais ao desenvolvimento agrícola e ao investimento de capitais nas actividades
agrícolas, a sua insistência na liberdade do comércio e na renda da terra como base
apropriada para a tributação, o seu conceito de um a ordem económica ‘natural’
que ‘funcionaria por si’, sem o auxílio da fiscalização da autoridade, têm um
significado revolucionário. No campo das ideias económicas - conclui M . D obb
- foram como que o João Baptista da próxima revolução burguesa, assim como
Voltaire c Rousseau representam igual papel no campo das ideias políticas".385

Alguns autores defendem, aliás, que ainda hoje as concepções dos fisiocratas
são particularmente interessantes para a compreensão de vários aspectos da estru­
tura económica e social dos países subdesenvolvidos, nos quais o sector industrial
c reduzido e atrasado (o sector capitalista, quase sempre protegido por elevadas
barreiras alfandegárias, produz bens de luxo para a minoria rica ou para a expor­
tação) e a maior parte da população activa trabalha na agricultura. Dado o grau
elevado de autosuficiência das explorações camponesas, as despesas de exploração
consistem, basicamente, nos produtos intermédios e no autoconsumo. Para a gene­
ralidade dos trabalhadores, a alimentação constitui uma percentagem elevadíssima
dos seus custos de manutenção e reprodução. Embora menor do que a parte da
população activa agrícola na população activa total, é em regra muito elevada a
participação da agricultura no produto nacional. Daí a importância muito particu­
lar do excedente agrícola, especialmente de um excedente agrícola exportável (ele­
mento que, em muitos países subdesenvolvidos, ocupa o lugar do sector de produção
de bens de produção, sendo o factor determinante principal da capacidade de im­
portar, sem a qual o desenvolvimento económico pode ser muito difícil). “Nestas
condições - sustenta R. López-Suevos - mobilizar o excedente económico para o
desenvolvimento é, em grande medida, mobilizar o excedente agrícola”.386
Como quer que seja, não há dúvida de que os estudos económicos dos fisiocratas
têm suscitado a atenção de sucessivas gerações de economistas, pelo menos desde
que Marx os reconheceu como “os verdadeiros fundadores da economia moderna”.

385 Cfr. M. D O B B. ob. c it . 18-20.


386 Cfr. R. LÔPEZ-SUEVO S, ob. cit., 22-24.
A v elã s N un es - 3 6 9

Aos fisiocratas cabe, sem dúvida, o mérito de terem introduzido na análise eco­
nómica certos conceitos que viriam a revelar-se bastante fecundos (v.g., os conceitos
de excedente, de trabalho produtivo, a ideia do processo económico como um fluxo
que se renova permanentemente, o conceito de capital como um estoque de bens
previamente acumulados que se adiantam para que a produção seja possível).
Quesnay e os fisiocratas podem considerar-se precursores do utilitarismo en­
quanto filosofia social. N a verdade, eles definem como princípio económico aquele
que se traduz na obtenção do máximo de satisfação com a menor despesa (ou com
o menor esforço em trabalho), configurando o problema fundamental da teoria
económica como um problema de máximos. Nesta perspectiva é que os fisiocratas
defendem que a satisfação máxima das necessidades de todos os membros da soci­
edade globalmente considerados só se alcançará se cada um puder actuar livre­
mente de acordo com o seu interesse individual, funcionando a concorrência como
“árbitro natural e absoluto” capaz de harmonizar os interesses em presença.387
M as a projecção teórica das concepções dos fisiocratas não se fica por aqui.
Quesnay terá, segundo alguns, antecipado a lei de Say; o conceito d eproduit neté
por muitos considerado como um dos antecedentes da teoria marxista da mais-
valia; o modelo de produção/circulação do Tableau terá influenciado M arx na
elaboração dos esquemas de reprodução; é frequente os especialistas aproximarem
a análise feita ao Tableau com a teoria do equilíbrio económico geral, de Walras;
a representação numérica do sistema económico e a análise da interdependência
entre os vários sectores de actividade económica reflectidas no Tableau vieram a
projectar-se modernamente na análise de input-output desenvolvida por Wassily
Leontief, autor que reconhece Quesnay como seu precursor, pondo em relevo a
preocupação de ambos em atribuir a cada grandeza mencionada um valor concre­
to, tão próximo da realidade quanto possível388; outros autores reclamam para o
Tableau de Quesnay o papel de pioneiro das modernas técnicas da contabilidade

387 Cfr. J. SCHUMPETER, Historia..., d l , 277/278. As qucstôes referidas no texto sào pontos basilares do pensamento
de Adam Smith. Segundo este, não devemos o pào à benevolência do padeiro, mas ao seu interesse egofsta.
Quer dizer que nem todas as actuaçâes inspiradas pelo objectivo de obter lucros sào, por esse facto, acções anti­
sociais. Este ponto de vista de Adam Smith nâo afectava, porém, a sua clara percepçào do antagonismo exis­
tente entre as classes sociais. Quesnay, ao contrário, parte da compatibilidade ou da complementaridade dos
interesses individuais na sociedade concorrencial para a tese da harmonia universal dos interesses das várias
classes sociais, o que faz dele -co m o bem salienta Schumpeter - um precursor do "harmonismo" do séc. XIX
(Say, Carey, Bastiat)-
388 Alguns autores têm mesmo tentado interpretações do Tableau à luz dos modelos de input-output. Cfr. v.g. A.
PHILLIPS, "The Tableau Economique as a simple Leontief model", em Quartely journal o f Econom ics, Vol.
LXIX, 1955,137-144 e S. M AITAL, "The Tableau tconom ique as a Leontief model", em Quarterly Journal o f
Economics, Vol. LXXXIV, 1972,504-507.
3 7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

nacional; a utilização por Quesnay de grandezas agregadas tem levado alguns


autores a comparar a análise do Tableau com a análise macroeconômica keynesia-
na389; Piero Sraffa confessa, também ele, a sua dívida intelectual para com o Ta­
bleau Economique de Quesnay.
Tudo isto diz bem da riqueza do trabalho do famoso médico da corte francesa,
o qual poderá muito bem ser considerado como o primeiro cientista no domínio
da economia política.
Com o salienta Schumpeter, “nenhuma proposição económica de Quesnay se
baseia em premissas teológicas nem ficaria afectada pelo facto de se deixar de lado
o que sabemos acerca das suas crenças religiosas. Isto prova sem mais a natureza
puramente analítica ou ‘científica’ da sua obra económica, e não deixa lugar para
suspeita de influências extra-empíricas”.390
O seu entendim ento da actividade económica como um processo permanente­
mente auto-renovável facilitou a tarefa dos fisiocratas de detectar as leis que regem
a actividade económica: só numa actividade que se repete constantemente podem
manifestar-se leis.
No Tableau está pressuposta, como vimos já, a ideia (nova e muito importante) de
que o processo de circulação dos bens e o processo de circulação da moeda (que é contra­
partida daquele) estão sujeitos a leis naturais (semelhantes às leis da Física), que po­
dem ser descobertas e analisadas e que, por isso mesmo, são cientificamente relevantes:
“T udo neste m undo está sujeito às leis da natureza - escreve Quesnay. O s
hom ens são dotados da inteligência necessária para as conhecer e observar, mas
a multiplicidade dos objectos exige que eles sejam agrupados em grandes clas­
ses que constituem o fundam ento dum a ciência evidente e m uito vasta cujo
estudo e indispensável para evitar erros na prática”.

O Tableau, como todos os modelos, apresenta algumas limitações, mais ou


menos assumidas:391
a) Não tem em conta os “avances primitives” feitos pela classe estéril, o que indica
que Quesnay não ‘copiou’ tão fielmente a realidade como ele próprio diz ter feito.

389 "Q uesnay-escreve J. SCHUMPETER, Historia..., cit., 287-288-identificou o equilíbrio geral, i. é, o equilíbrio
da economia como um todo, diferentemente do equilíbrio de qualquer sector isolado da mesma economia,
com o equilíbrio de agregados sociais, exactamente como os modernos keynesianos". Harry Johnson ensaiou
uma interpretação do Tableau na óptica da teoria keynesiana do multiplicador (cír. H . JOHNSON, "Quelques
réflexions sur le Tableau Economique de Quesnay", em Revue d'Économie Politique, Vol. 1975,397-407).
390 Cfr. J. SCHUMPETER, Historia..., c i l, 277.
391 Ronald MEEK sustenta, no entanto, que o Tableau "é um dos mais impressionantes exemplos, em toda a história
do pensamento económico, de harmoniosa unidade entre teoria abstracta e investigação concreta" (cfr. The
Economics o f Physiocracy, c iL , 259/260).
A v elã s N u n e s - 3 7 1

b) O modelo do Tableau é um modelo estático, i.é, o excedente obtido em cada


período produtivo (= produto líquido = renda paga à classe dos proprietários) é
apenas suficiente para permitir, após o processo de circulação, que da sua utiliza­
ção produtiva resulte um volume de produção igual ao conseguido no final do
período anterior. Na terminologia de Marx, dir-se-ia que se trata de um modelo de
reprodução simples e não de um modelo de reprodução alargada. Nele não há acumula­
ção de capital (os proprietários consomem todo o excedente; não há avancesfoncières,
o investimento capaz de aumentar a capacidade de produção instalada; o investi­
mento feito pela classe produtiva limita-se a assegurar a manutenção da capacida­
de produtiva).
c) É também um modelo que pressupõe preços constantes, não tem em conta o
comércio externo nem as trocas no seio de cada uma das classes consideradas, admitin­
do ainda que as mercadorias são trocadas de uma só vez no fim do ciclo produtivo.

1 2.2. OS LIMITES TEÓRICOS DA ABORDAGEM DO . A AUSÊNCIA DE


TA B LEA U 9
UMA TEORIA DO VALOR

As limitações mais relevantes do Tableau de Quesnay c de toda a construção


fisiocrática consistem, porém, na ausência de uma teoria do valor e na consequente
impossibilidade de elaborar todas as categorias económicas indispensáveis à com­
preensão da realidade das sociedades capitalistas.
A análise do produto líquido em termos físicos (i.é, como a diferença entre
inputs e outputs) permite aos fisiocratas ‘ver’ (ou ‘mostrar’) o aparecimento do
excedente sem terem de elaborar previamente uma teoria do valor com a qual arti­
culassem a teoria do excedente. Noutra perspectiva, a noção de excedente como
uma quantidade de bens materiais que traduz a diferença entre a quantidade de bens
existentes no início do processo produtivo e consumidos durante ele, e a quantida­
de (maior) de bens existentes no fim do ciclo produtivo só é compatível com “um
conceito coisificado de valor”, indicador do “estado de infantilismo teórico” que
caracteriza o pensamento fisiocrático.392
Por outro lado, só a ausência de uma teoria do valor (ou a adopção do referido
“conceito coisificado de valor”) torna aceitável a tese fisiocrática de que só a agri­
cultura é uma actividade produtiva. Na verdade, só a terra é capaz de gerar, no fim
do ciclo produtivo, uma quantidade de bens superior à quantidade de bens existen-

Cfr. C . LARANJEIRO, ob. c/f., 27. "A noção nâo mercantil de valor - escreve este autor - representa ainda a
perspectiva feudal de produção em que o mercado nâo tem significado especial e os proventos dos terratenentes
sâo ainda proporcionais è quantidade de produtos recebidos dos cultivadores. A abstractizaçào da forma de
valor - para usar a expressão de Marx -supóe a produção anónima para o mercado, a única em que o valor
se autonomiza dos bens concretos que o suportam".
3 7 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o i It ic a

tes no início do processo de produção; a indústria limita-se a transformar os bens


utilizados na produção, mas não aumenta a quantidade deles.
Identificando o valor da produção industrial com o valor dos bens gastos no
processo produtivo, os fisiocratas tiveram de concluir pela inexistência de um pro­
duto líquido na actividade industrial, incluindo na classe estéril todos os que se
ocupavam nas manufacturas.
O entendimento do produto líquido como um dom da Natureza, como fruto
exclusivo da ‘produtividade natural’ da terra, faz dele, no modelo do Tableau, o
único rendimento possível - arrecadado pela classe dos proprietários sob a forma
de renda paga pela classe produtiva - , reduzindo-se a sua função a assegurar a
‘reprodução simples’ do sistema, em consequência do complexo de relações de
troca que se verificam durante o processo de circulação que se inicia com o paga­
mento da renda (ou com o seu dispêndio pela classe dos proprietários).
Não reconhecendo a existência de um excedente na indústria, compreende-se
que os fisiocratas não se apercebessem do lucro industrial como uma das expressões
do excedente social. De resto, na França do tempo de Quesnay (meados do séc.
XVIII) as manufacturas capitalistas davam ainda os primeiros passos e a activida­
de industrial apresentava-se essencialmente sob a forma de indústria artesana ou,
em casos raros, sob a forma de empresas de reduzida dimensão em que não se
destacava ainda a figura do empresário capitalista. Nestas condições, não era fácil
(ou talvez nem sequer tivesse sentido) detectar a existência do lucro industrial
como rendimento específico dos titulares do capital (da empresa capitalista). No
quadro da indústria artesana então dominante, a diferença entre o rendimento do
mestre artesano e o que cabia aos simples trabalhadores era em regra muito pe­
quena, podendo explicar-se pela diferente natureza do trabalho efectuado e pela
maior responsabilidade assumida pelo mestre no processo produtivo.
No que toca à agricultura, porém, o Tableau considera-a como agricultura capi­
talista. M as também aqui os rendeiros capitalistas não são considerados como
membros de uma classe de empresários capitalistas que arrecada uma parte do
excedente concretizada em um lucro relacionado com o capital por eles investido.
Os rendeiros são, cm princípio, considerados como trabalhadores assalariados,
cabendo-lhes um salário como aos demais trabalhadores agrícolas, embora se
trate de um salário mais elevado, adequado às funções de direcção por eles exerci­
das (“salário de organização” na expressão de Quesnay).
Apesar da importância que atribui aos investimentos feitos pelos rendeiros
capitalistas (os “avances primitives”), Quesnay não escapa à lógica do princípio
segundo o qual só a terra é produtiva. O capital, seja qual for a forma que revista,
A v elAs N u n e s - 3 7 3

não é susceptível de gerar qualquer produto líquido (de criar riqueza).393 Só a sua
incorporação na terra permite o aumento da produtividade desta: aos proprietários
da terra cabe, por isso, a título de renda, a totalidade do produto líquido por ela
criado (mesmo naquela parte em que a produtividade da terra vem acrescentada
pelos investimentos, quer os feitos pelos proprietários quer os feitos pelos rendeiros).
É certo que em algumas passagens de escritos seus Quesnay fala de “um lucro
assegurado para o empresário”, ou de “um juro líquido anual” que os adiantamen­
tos devem assegurar aos rendeiros,394 parecendo revelar “o implícito reconheci­
mento da autonomia do capital enquanto gerador de excedente”.395
No entanto, esse ‘lucro’dos rendeiros revela-se, de acordo com a análise de Ques­
nay, uma “vantagem” meramente temporária. Vejamos o que ele próprio escreveu:
“O s rendeiros de bens de raiz tiram vantagens do aum ento constante de preços
que se verificou no decurso dos seus arrendam entos, até à renovação destes. E
este ganho é o mais frutuoso, o mais vantajoso c o mais necessário a um a nação
cuja agricultura tem necessidade de ser desenvolvida e m elhorada. Porque os
rendeiros, se não forem oprim idos, não abandonam a sua ocupação; os lucros
que eles obtèm acrescem as suas riquezas de exploração, com grande vantagem
para*a agricultura. E estes lucros fazem aum entar o núm ero de rendeiros ricos,
provocam, aquando da renovação dos arrendamentos, um a concorrência maior
entre eles, o que assegura então aos proprietários e ao soberano a percepção
integral do produto líquido e não som ente daquele que, para além desse, o
m aior desafogo dos rendeiros faz nascer”.

393 Tal como mais tarde Marx, Quesnay não reconhece qualquer aptidão ao capital (no sentido de instalações,
equipamento, etc.) para produzir um excedente. Considerado como mera cristalização de um excedente
(mais-valia) já produzido pela terra (ou pelo trabalho), os dois autores entendem que o capital não acrescenta,
por si mesmo, qualquer produto líquido (ou valor).
Mas há diferenças essenciais entre as duas concepções.
Por um lado, Marx defende que a 'produtividade' (i.é, a capacidade de produzir um excedente, a mais-valia)
é uma qualidade da força de trabalho. Ao invés, os fisiocratas não atribuem ao trabalho o estatuto de agente
produtor do produit n e t O trabalho agrícola não é considerado estéril apenas porque a terra em que ele se
aplica é produtiva por natureza (o trabalho é um mero instrumento de valorização da terra). Mas já no caso da
indústria e do comércio o trabalho não acrescenta qualquer produit net (a matéria sobre que ele incide é
apenas modificada ou deslocada). Vendo na produção mais a consequência de uma qualidade da Natureza
do que uma forma de actividade humana, os fisiocratas não puderam compreender o significado do trabalho
(do trabalho produtivo) como a causa da riqueza, como a origem d o valor.
Por outro lado, a capacidade da força de trabalho para criar mais-valia traduz-se, segundo Marx, na criação
de valor (com base na teoria do valor-trabalho é que Marx desenvolve a sua explicação sobre a origem e o
significado da mais-valia), enquanto que, para os fisiocratas, a produtividade da terra é produtividade física.
traduz-se na criação de bens materiais concretos (de mais bens do que os 'consumidos' na produção) e não
na criação de valor. "Quesnay admitiu que a produtividade física implica produtividade de valor (...), erro nítido
que Marx não cometeu* (cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 282).
394 Cfr. Quadro Económico, ed. cit., 155 e 247.
395 Cfr. C . LARANJEIRO, oò. cit., 42.
3 7 4 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

Sendo assim, podemos concluir, com Cláudio Napoleoni, que “deste modo o
produto líquido acaba por identificar-se com a renda do proprietário fundiário, e a
relação entre a renda e a massa dos gastos na agricultura acaba por representar a
medida da produtividade do sistema global. Isto significa que os fisiocratas dão da
produção capitalista uma imagem não liberta ainda de um invólucro de tipo feu­
dal. Esta confusão só viria a ter fim com a economia política clássica inglesa”.
Os limites do modelo do Tableau relativamente à compreensão das sociedades
capitalistas estão bem patentes no entendimento da classe produtiva e da classe
estéril (sobretudo desta) como blocos homogéneos, sem qualquer diferenciação
no seio de cada uma delas. Se esta perspectiva pode ter bastado no período cm que
as relações de produção capitalistas davam os primeiros passos, ela revelou-se
claramente incapaz logo que a implantação do capitalismo na indústria (e depois
também na agricultura) como modo de produção dominante trouxe para o primei­
ro plano dos conflitos sociais o que colocou frente a frente a nova burguesia indus­
trial e o proletariado das indústrias novas.
Nestas novas condições, emergiu naturalmente a necessidade de explicar a ori­
gem do lucro industriale de justificar a sua apropriação pelos empresários capita­
listas. Ficaram então às claras os limites da abordagem do Tableau. Os fisiocratas
só reconheciam a existência de um excedente na agricultura e, mesmo aqui, o
excedente era considerado como um dom da Natureza. Ora, se apenas a Natureza
fecunda a matéria, só a terra (a Natureza) é produtiva. Está, pois, excluída em
absoluto a possibilidade de se verificar a existência de um excedente industrial. E
mesmo quanto ao excedente agrícola, resultante da produtividade natural da terra,
já vimos que os fisiocratas o concebem em termos físicos (como uma quantidade
adicional de bens obtidos no fim do processo produtivo, em comparação com a
quantidade de bens existentes no início dele). Quer dizer, confundindo a “produti­
vidade física” com a “produtividade em valor” (como salienta Schumpeter), os
fisiocratas não foram capazes de explicar o produto líquido em termos de valor.
M as - já o vimos - a identificação do produitnet com uma quantidade adicional
de bens pressupunha a sua medida cm termos quantitativos, o que implicava a
possibilidade de comparação física entre os bens existentes no início do ciclo pro­
dutivo e os bens existentes no fim dele, possibilidade que só é viável se houver
homogeneidade entre os bens adiantados e o produtoftnal.
O ra - como também já vimos - Quesnay incluiu no Tableau, entre os “avances
primitives” feitos pela classe produtiva, elementos provenientes do sector manu-
factureiro. Assim sendo, desfeita a homogeneidade acima referida, seria impossível
comparar inputs e outputs, sendo impossível medir o excedente.
A v elAs N u n es - 3 7 5

Quesnay deu-se conta disto mesmo. No Tableau todas as grandezas (inputs,


outputs, produto líquido) vêm expressas em termos de valor monetário.396 M as isto
significará o reconhecimento - ao menos implícito - de que inputs e ouputs só
podem comparar-se em termos de valor. E se, nestas condições, surge um exce­
dente - e então ele poderá surgir também na indústria —, é necessário explicá-lo.
“Não é por acaso - escreve Napoleoni - que no Tableau o produto líquido é con­
siderado em termos de valor. Deste modo ficava expressa a necessidade de uma
teoria de valor, isto é, de uma teoria orientada para explicar a formação do valor de
troca das mercadorias”.397
Tentar responder a esta necessidade foi o objectivo fundamental dos clássicos in­
gleses (Adam Smith e David Ricardo) e de Karl Marx ao elaborarem a teoria do
valor-trabalho. No quadro desta teoria é que Marx veio a identificar o excedente (agrí­
cola ou industrial) com a mais-valia, considerando esta como trabalho não pago.

3% é por isso mesmo, aliás -co m o bem nota C. LARANJEIRO, ob. c it , 29 - , que Quesnay considera fundamental
manter a estabilidade monetária, para que nâo seja "subvertida a ordem económica da naçào e a ordem das
suas riquezas relativamente às outras nações".
397 Cfr. C. NAPOLEONI, O valor..., cit., 17.
C apítulo IV

A E s c o l a C l á s s ic a
3 7 8 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

É vulgarmente designada por Escola Clássica (ou Escola Clássica Inglesa) a cor­
rente de pensamento económico que se desenvolveu na Inglaterra entre fins do séc.
XVIII e meados do séc. XIX.
Como autores e obra mais representativos, indicaremos: ADAM SM ITH (1723-
1790) - A n inquiry in/o the nature and causes o fthe wealth o fnations (1776); DAVID
RICARDO (1772-1823) - Principies ofpoliticaleconomyandtaxation (1817);THO-
MAS ROB ERT M ALTHUS (1776-1836) - Essay on theprincipie o f population as it
affects thefuture improvement o f society (1798);JONH STUART M IL L (1806-1873)
- Principies o f politicaleconomy (1848), todos ingleses. Na França, o nome mais im­
portante é o de JEA N -BA PTISTE SAY (1767-1832), autor de um Traitéd'Économie
Politique ou simple exposition de la manière dont seforment, se consomment les richesses
(1803) e de um Cours complet d'économiepolitique pratique (6 vols., 1828-1829).
A Escola Clássica é considerada em regra o primeiro grande movimento científico
no domínio da economia política, apontando-se como ponto de partida a já referida
obra de Adam Smith, Riqueza das Nações. Neste sentido, invoca-se o facto de terem
sido os autores ligados à Escola Clássica Inglesa que lançaram as bases da teoria do
valor, verdadeiro “princípio quantitativo unificador da Economia Política”.
A Escola Clássica assentou basicamente na defesa da existência de um mecanis­
mo natural que asseguraria sempre o equilíbrio da vida económica e que, automa­
ticamente, restabeleceria a ordem económica porventura alterada. E é com base
nessa concepção que os clássicos consideram que a tarefa da ciência económica é
a investigação e a descoberta das leis naturais que regulam todo aquele mecanis­
mo, leis válidas em qualquer tempo e lugar, leis universais que o homem, através
da observação e do estudo, pode apreender, devendo, aliás, fazê-lo para poder
assegurar-se o progresso da sociedade.
Daí que se entenda, por um lado, que as leis científicas têm validade universal
precisamente porque derivam da própria natureza humana e, por outro lado, que é
a ordem natural que harmoniza todos os interesses a partir da natural actuação de
cada um no sentido de obter o máximo de satisfação com o mínimo de esforço.
Nas palavras de Adam Smith,
“O esforço uniform e, constante c ininterrupto de cada hom em para m elhorar
a sua condição - princípio de que originariamente deriva tanto a opulência
nacional e pública como a opulência privada - é frequentem ente bastante
poderoso para m anter o progresso natural das coisas para melhor, mau grado as
extravagâncias dos governos e os maiores erros de administração. Assim como
um desconhecido princípio da vida anim al, que restabelece m uitas vezes a
saúde e o vigor não só contra a doença, mas tam bém a despeito das absurdas
prescrições do médico”.
A v elã s N u n es - 3 7 9

É a ideia da ordem natural a traduzir-se mais concretamente na espontaneidade


natural &as instituições económicas. Deste “fetichismo naturalístico” (Oskar Lan­
ge) derivam duas atitudes características do pensamento dos clássicos:
a) Por um lado, uma atitude conformista perante as ocorrências da vida econó­
mica: elas decorrem das leis da natureza e o que é natural é justo (a lei moral
identifica-se com a lei natural).
b) Por outro lado, uma atitude de condenação de toda e qualquer intervenção
do estado na vida económica. Em 1° lugar, porque a vida económica e a ordem
social são vistas como ordem natural, regulada por leis que exprimem princípios
eternos e universais da natureza humana, leis tão rigorosas e inalteráveis como as
leis da física (concepção mecanicista ou fisicista, de raiz newtoniana); em 2° lugar,
porque defendem que o estado, como máquina essencialmente política, é, pelas
suas próprias funções, incompetente para a actuação económica. De acordo ainda
com as palavras de Smith, “não há dois caracteres que pareçam mais contrários do
que os do comerciante e do governo”. Daí que os clássicos preconizem a total
liberdade económica.
Como peça actuante e essencial da referida ordem natural aponta-se o mecanis­
mo dos preços, mecanismo que, num mercado livre, adaptaria automaticamente a
oferta à procura, assim se realizando permanentemente o equilíbrio na economia.
Relativamente a este problema do equilíbrio, surpreende-se nos clássicos uma
atitude de optimismo claramente derivada daquela ideia de existência de um meca­
nismo natural. Para os clássicos, o problema do equilíbrio deixa de se pôr; admitem
a existência de crises, mas atribuem-lhes um carácter transitório e sectorial (con­
sideram-nas limitadas a certos sectores ou indústrias); essas ‘crises’ têm origem
nos erros técnicos dos governantes, dos empresários e dos intermediários, razão
pela qual, se imperar a livre iniciativa, hão-de sempre verificar-se sucessivos rea­
justamentos parcelares, através do mecanismo dospreços, que equilibrarão de novo o
sistema, readaptando a oferta à procura.
Com efeito, no caso de uma crise de subprodução, uma vez que, perante o mesmo
número de consumidores, há uma diminuição das quantidades oferecidas (produ­
zidas), isso há-de automaticamente implicar uma subida dos preços. Essa subida
de preços vai funcionar como factor selectivo dos consumidores: perante preços
mais altos, certos indivíduos não podem efectuar as suas compras e os que conti­
nuam a comprar adquirirão menores quantidades. Temos, pois, que, por este pro­
cesso, a procura se restringe. Por outro lado, os comerciantes que mantêm bens em
estoque, perante preços tão altos, são tentados a esgotar anormalmente esses bens
estocados, com mira em lucros substanciais. Daqui resulta, desde logo, um au­
mento da oferta. A oferta aumentará também porque os agricultores e os empresá-
3 8 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

rios sentir-se-ão encorajados a aumentar a sua produção, para aproveitar da subida


dos preços.
N o caso de sobreprodução, o processo seria idêntico: perante um aumento da
produção, verificar-se-ia automaticamente uma descida dospreços, e isso em virtude
de, perante o mesmo número de consumidores, ser oferecida uma quantidade mai­
or de produtos. Se o preço é mais baixo, naturalmente que se irão comprar mais
quantidades (surgirão novos consumidores e os que já o eram passarão a comprar
mais). Temos assim que a procura aumenta. Por outro lado, a própria oferta vai
reduzir-se, pois os empresários e os agricultores, verificando que um preço tão
baixo não é suficientemente compensador, vão diminuir a produção.
Por este mecanismo dos preços se asseguraria sempre o equilíbrio; o próprio
preço funcionaria como árbitro das vendas e das compras, o preço conduziria a
produção ao nível de equilíbrio.
O problema haveria de dar-se como inteiramente resolvido, no pensamento
dos clássicos, com o enunciado da chamada lei de Say ou lei dos mercados dosprodu­
tos, segundo a qual os produtos se trocam por produtos, criando a oferta de bens a
sua própria procura, de modo que nunca seriam possíveis situações de desequilí­
brio entre a produção e o consumo, nomeadamente crises gerais de sobreprodu­
ção. Só M althus reagiu contra esta ideia de Say, que colheu, na Inglaterra, o apoio
de Ricardo.
No seguimento daquilo que os clássicos consideravam ser a tarefa da teoria
económica - descobrir as leis de validade universal que regulavam a actividade
económica e que existiam na natureza - a eles se deve a formulação de algumas
dessas leis consideradas fundamentais para a compreensão do funcionamento da
ordem económica. Enunciamo-las de seguida:
Lei do interessepessoal (princípio hedonístico) - Cada indivíduo procura atingir
o seu próprio bem-estar e a sua própria riqueza, assim como procura afastar o mal,
a miséria e o esforço; o interesse pessoal seria o melhor motor da sociedade.
De acordo com esta ideia, os clássicos preconizavam a liberdade de cada indi­
víduo realizar os seus fins económicos e obter os seus lucros: cada indivíduo seria
conduzido nessa actividade por uma mão invisível, de tal modo que, enriquecendo-
se a si próprio, provocaria o enriquecimento da sociedade.
Lei da livre concorrência - é uma resultante da lei do interesse pessoal e tem na
sua base a ideia de que é a livre concorrência que harmoniza da melhor maneira os
interesses individuais: daí a crítica dos clássicos a qualquer intervenção do estado
na vida económica (por isso se fala de Escola Liberal).
Lei dapopulação -T ese que tem a sua expressão mais acabada (e mais extremis­
ta) na obra do pastor M althus. De acordo com esta lei, verificar-se-ia que, en-
A v ela s N u n es - 3 8 1

quanto a população aumenta em progressão geométrica, o aumento dos meios de


subsistência processa-se em progressão aritmética. Em função de tão desiguais
andamentos, mais tarde ou mais cedo, chegar-se-ia, segundo M althus, a um ponto
de desencontro que tomaria proporções assustadoras de fome e de miséria. Daí a
necessidade de se restringir o aumento da população.
Lei da Oferta e da Procura - explica o modo como se formam os preços quer dos
produtos, quer da natureza, do capital e do trabalho. Exprime a ideia de que os
preços variam em sentido inverso ao da variação das quantidades oferecidas e no
mesmo sentido da variação das quantidades procuradas.
Lei do Salário - É uma aplicação da lei anterior da oferta e da procura ao
mercado de trabalho. O preço do trabalho é o salário e este há-de variar em
função das quantidades de trabalho (mão-de-obra) oferecidas pelos trabalhadores
e procuradas pelas empresas. Dentro de certos limites (como adiante se verá melhor),
o salário variaria no mesmo sentido da variação da quantidade de mão-de-obra
procurada e em sentido contrário ao da variação da quantidade oferecida. D istin­
gue-se, contudo, entre um salário corrente (ou de mercado) e um salário natural (ou
necessário), tendendo este último a coincidir com o custo da manutenção do tra­
balhador; e afirma-se a ideia de que o salário corrente tenderia a manter-se ao
nível do salário natural (ideia que seria mais tarde retomada por Ferdinand Lassal-
le que a chamou lei de bronze dos salários).
Lei da Renda - Baseia-se no facto de todos os produtos de uma mesma classe se
venderem a um preço igual ao custo de produção do produto produzido a custo
mais elevado, verificando-se um ganho de tipo diferencial (renda) para aqueles
que produzem a um custo inferior ao custo marginal. Enunciada por M althus e
por Ricardo para os produtos agrícolas, J. Stuart M ill alargou-a, depois, a todos os
ramos da actividade económica.
Lei do comércio internacional - todas as nações obtêm um ganho a partir do
comércio externo, contrariando as concepções mercantilistas, de acordo com as
quais um país só podia ganhar o que o outro perdia. Daí que a escola clássica
preconizasse a liberdade total do comércio externo, para que os povos pudessem be­
neficiar dos ganhos da divisão internacional do trabalho.
Ao conjunto destas leis deve acrescentar-se, como princípio importante dos
clássicos, a defesa da propriedadeprivada, a qual é por eles considerada um instru­
mento do máximo bem-estar.
C apítulo V

A d a m S m it h
3 8 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

1. A dam S m it h e o seu tem po

Viveu entre 1723 e 1790 este filósofo e economista escocês que Engels cha­
mou o “Lutero da economia política” e que um outro autor considerou “o mais
poderoso soberano da Europa, a par de Napoleão”.
Em 1776 publicou a sua obra mais importante, An Inquiry Into the Nature and
Causes o f the Wealth ofNations,398 Desta obra fizeram-se, até ao fim do séc. XVIII,
nove edições inglesas, várias edições na Irlanda e nos EUA, várias edições também
das traduções em francês e alemão, além de traduções em italiano e espanhol,
dinamarquês e holandês. Com a possível excepção de Origin ofSpecies, de Darwin,
Riqueza das Nações foi, até hoje, o livro científico que maior êxito conheceu. G ra­
ças a ela, Adam Smith tornou-se, a partir de 1790, e durante muito tempo, o
mestre incontestado de todos os professores de Economia. Como salienta Schum-
peter, Riqueza das Nações “foi o canal pelo qual as ideias do séc. XVIII acerca da
natureza humana chegaram aos economistas”.
Da obra de Adam Smith disse David Hume: “ela possui profundidade, solidez
e agudeza, e é tão ilustrada com factos curiosos que tem de atrair por fim a atenção
do público”. M as há quem faça do trabalho do professor de Glasgow um severo
juízo: “A Wealth ofNations não contém uma só ideia, um só princípio ou um só
método analíticos que fosse completamente novo em 1776”. No entanto, Schumpe-
ter - a quem pertence a afirmação anterior399 - defende que “ Wealth ofNations é, de
qualquer modo, um grande empreendimento e merece perfeitamente o seu êxito,
apesar de não conter ideias realmente novas e de não se poder comparar, como
produto intelectual, com os Principia de Newton nem com a Origin de Darwin”.
Tinha chegado, porém, o momento de se fazer uma síntese compreensiva, e a
obra de Smith é essa síntese, “resultado de um trabalho perseverantemente realizado,
sem um gemido, durante mais de vinte e cinco anos, com concentração exclusiva
nele durante cerca de dez”. “As suas próprias limitações - considera Schumpeter -
contribuíram para o êxito. Se tivesse sido mais brilhante não o teriam levado tão a
sério. Se tivesse aprofundado mais a análise, se tivesse revelado mais verdades recôn­
ditas, se tivesse utilizado métodos difíceis e subtis, não teria sido compreendido”.
Em 1776, ano da I a edição de a Riqueza das Nações, as vinte ou trinta unidades
industriais mais importantes das Ilhas Britânicas utilizavam a força da água cor­
rente como energia (roda hidráulica) e ocupavam 300 a 400 operários. Na esteira
de Toynbee, costuma aceitar-se o ano de 1760 - em que foram utilizados pela

398 Todas as transcrições feitas referem-se à trad. portuguesa, ed. F. Calouste Gulbenkian (2 vols.), cit.
399 Cfr. Historia ... c i t , 223-236.
A v elã s N u n es - 3 8 5

primeira vez os altos fornos de Carron - como o início da Revolução Industrial


Inglesa. Por essa altura, é verdade, encontravam-se registadas as principais inven­
ções sobre as quais assentou a verdadeira revolução da economia britânica. Mas só
nos finais da década que começou em 1780 se verifica um aumento decisivo do
volume e do ritmo da produção industrial. A ‘revolução’ começou, pois, pelo m e­
nos uma década após a I a edição do livro de Adam Smith.
No entanto, desde os fins da década de 1770 que a máquina a vapor de James
Watt era aplicada nas minas de carvão. Por esta altura, a navette de Kay, a spinning
jen n yà t Hargreaves, a muleác Crom pton e a Water-Framede Arkwright revolu­
cionam a indústria têxtil. Em Riqueza das Nações Smith não faz qualquer referên­
cia a estes inventos, nem mesmo na última edição revista (1784). Com o a maior
parte dos seus conterrâneos, Adam Smith não terá tido plena consciência do que
se passava à sua volta. M ark Blaug põe em relevo que “não há nada, de facto, no
livro [Riqueza das Nações] que permita pensar que Adam Smith estava consciente
de viver numa época de transformação económica radical”.400
De todo o modo - como veremos -, poderá dizer-se que a questão do desenvol­
vimento económico (as causas da riqueza das nações) é a preocupação central do
livro de Adam Smith, para quem a riqueza de um país deixou de ser o estoque
acumulado em um certo momento para ser apresentada como ofluxo do rendi­
mento nacional produzido ao longo de períodos sucessivos.
Por outro lado, se ele não foi ainda “o profeta da Revolução Industrial” (M.
Blaug), não há dúvida - como veremos também - de que muitas das suas constru­
ções teóricas constituem uma crítica das categorias próprias do ancien regime, sim­
bolizado nos grandes proprietários terratenentes, acerca dos quais Smith escreveu
que “gostam de colher o que nunca semearam”.401
E poderá dizer-se também que o ‘sistema smithiano’- baseado na ideia de que
qualquer indivíduo, desde que respeite as regras da justiça, é livre de lutar pelo seu
próprio interesse, aplicando a sua ‘indústria’ e o seu capital na concorrência com os
outros - foi durante longo período considerado adequado às realidades, porque
capaz de “fornecer a melhor solução para qualquer questão relacionada com a
história do comércio e com o sistema da economia política”.402

400 Cfr M. B LA U G , ob. d l , 36 ss.


401 Em certas passagens de Riqueza das Nações (v.g., Vol. 1,631 e 634) assoma, por vezes, uma perspectiva em
que a agricultura é colocada em primeiro plano, numa visão em certa medida contraditória com as ideias de
quem vê na divisão do trabalho o factor primordial do aumento da produtividade e reconhece que a divisão
do trabalho é mais difícil de realizar na agricultura do que na indústria.
402 S5o palavras do Primeiro-Ministro inglês William Pitt (1792), citadas por |. K. G A LBRAITH , Escritos de Econo­
mia, c it., 1 20.
3 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

No que se refere à ciência económica, Adam Smith faz assentar a sua análise
na teoria do valor-trabalho, o que lhe permitiu explicar o lucro (não só o lucro
enquanto rendimento auferido pelos rendeiros capitalistas na agricultura, mas tam­
bém o lucro industrial), ultrapassando assim a limitação fundamental do pensa­
mento fisiocrático. A economia inglesa em vias de industrialização reflecte-se,
assim, na obra teórica de Smith: o capital e o lucro não se confinam agora à
agricultura; é na indústria nascente que o capital encontra o seu mais amplo e
dinâmico campo de aplicação.
A elaboração da teoria do valor vai também permitir a Adam Smith explicar
todo o sistema de trocas que caracteriza a vida económica e pôr de pé uma teoria da
distribuição do rendimento que tem em conta a divisão da sociedade (capitalista) em
classes sociais agora claramente caracterizadas pelo modo de participação de cada
uma delas na actividade produtiva. A análise teórica de Riqueza das Nações incide
sobre um modelo de sociedade em que o produto global criado pelo trabalho
produtivo vai ser distribuído em salários, rendas e lucros. O salário assegura a ma­
nutenção e a reprodução dos trabalhadores produtivos. Da parte restante (o ‘pro­
duto líquido’ou ‘excedente’) vão sair a renda d os proprietários e o lucro dos capitalistas,
categorias que Smith considera “deduções ao produto do trabalho”.
Na sociedade do seu tempo Adam Smith aceita a ocorrência de situações em
que “um produtor independente disponha do capital necessário para adquirir as
matérias-primas da sua obra c para se manter até ao momento de levar os seus
produtos ao mercado”. Nestas situações - que ele considera situações marginais,
pouco representativas —, aquele produtor independente “é patrão e operário ao mes­
mo tempo, desfrutando de todo o produto do seu trabalho”.
M as relações de produção normais implicam a participação dos proprietários
fundiários, dos capitalistas e dos trabalhadores assalariados. Partindo desta reali­
dade, Adam Smith elaborou as categorias teóricas que lhe permitiram responder à
questão de saber como se explica o “poder produtivo do trabalho” (i.é, a produtivi­
dade do trabalho, a causa principal da riqueza das nações, que ele associa à divisão do
trabalho, à especialização interna, que se iniciou exactamente com o advento da
indústria capitalista) e à questão de saber como se distribui o produto pelas três
classes sociais referidas. O Livro I de Riqueza das Nações tem como título, precisa­
mente, “Das causas de melhoria da capacidade produtiva do trabalho, e da ordem
segundo a qual o seu produto é naturalmente distribuído entre as diferentes classes
de cidadãos”.
Poderá dizer-se que este é, para Adam Smith, o objecto da Economia Política
enquanto disciplina científica. De forma mais sintética, isto mesmo é dito no título
A v elà s N u n es - 3 8 7

da sua obra maior: a Economia Política c um “inquérito sobre a natureza e as


causas da riqueza das nações”.
Esta perspectiva da ciência económica marcou um ponto de viragem. Galbrai-
th não hesita em afirmar que, “quanto ao método, Smith deu à economia política
(...) a estrutura básica que iria sobreviver quase intacta pelo menos durante os
cento c cinquenta anos seguintes. Esta estrutura começa com o problema do valor
- como se fixam os preços. Vem depois a questão de como é distribuído o rendi­
mento (...) pela grande trindade do trabalho, capital e terra. Vai aparecendo entre­
tanto o papel do dinheiro. Vem depois a banca, o comércio internacional, os
impostos, as obras públicas, a defesa e as outras funções do estado”.403
No final da Introdução a Riqueza das Nações, o próprio Smith resume assim o
plano do livro:
“Explicar em que têm consistido os rendimentos da generalidade da população,
ou qual tem sido a natureza dos fundos que, cm diferentes épocas c nações, têm
suprido ao seu consum o anual, é o objectivo destes quatro primeiros Livros. O
Q uinto e últim o Livro trata das receitas do soberano, ou riqueza pública. Neste
Livro procurei mostrar: prim eiro, quais dessas despesas devem ser custeadas
por contribuição geral de toda a sociedade, c quais pela contribuição de som en­
te parte desta, ou de som ente alguns dos seus mem bros; segundo, quais são os
diferentes m étodos por que a sociedade no seu conjunto pode ser com pelida a
contribuir para o custcam ento das despesas que lhe incum bem , e quais são as
principais vantagens e os principais inconvenientes de cada um desses métodos;
terceiro e últim o, quais são as razões que induziram quase todos os governos
modernos a em penhar um a parte das suas receitas, ou a contrair dívidas, c quais
foram os efeitos dessas dívidas sobre a riqueza real, a produção anual da terra e
o trabalho da sociedade”.

Na Introdução ao Livro IV Smith atribuiu à economia política, considerada


como “um ramo da ciência de um estadista ou legislador”, dois objectivos distin­
tos: “em primeiro lugar, proporcionar um crédito ou uma subsistência abundante
às pessoas, ou, mais propriamente, habilitá-las a obter esse crédito ou subsistência
para si próprias; e, em segundo lugar, fornecer o Estado ou comunidade de um
crédito suficiente para os serviços públicos. Propõe-se, assim, enriquecer tanto os
indivíduos como o soberano”.
Em síntese, parece-nos correcta esta apreciação de M aurice Dobb:4^ “Antes
da publicação de Riqueza das Nações o estudo dos problemas económicos não tinha
superado a sua fase descritiva e classificatória: a fase da generalização primitiva e

403 Cif. J. K. G A LBRAITH , ú/f. 06. c/f., 124.


404 Cfr. M . D O B B, Economia Política e Capitalismo, cit., 11.
3 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

da investigação concreta”. Ultrapassar esta fase primitiva no domínio dos estudos


económicos foi o mérito de Adam Smith.
“Se reflectirmos sobre o pensamento smithiano no seu conjunto - escreve Na-
poleoni405 - não é fácil libertarmo-nos da impressão de que, substancialmente, ele
não resolveu, de modo satisfatório, nenhum problema” [nem o do valor, nem o da
noção de rendimento nacional, nem o do mecanismo do desenvolvimento capita­
lista, nem o da queda da taxa de lucro, nem o da natureza da renda, nem o do
fundamento do liberalismo económico]. (...) Mas, em boa verdade, o que real­
mente interessa deste grande pensador é o facto de ter orientado, num único corpo
orgânico, quase todos os problemas que viriam a ser objecto da reflexão científica
posterior e, sobretudo, o facto de se ter aproximado de modo impressionante da
plena compreensão da própria natureza da nova economia nascida com o advento
da burguesia, i.é, da classe que na obra de Smith se encontra, pela primeira vez,
representada como aquela que, ‘cidadã do mundo’, unifica as diversas nações na
prossecução sistemática da ampliação do processo produtivo. Neste sentido, quan­
do a tradição aponta Smith como o pai da ciência económica, recolhe uma verda­
de indubitável: de Smith partem todas as linhas da investigação posterior; os
economistas posteriores terão de medir-se com as questões propostas por ele”.
O que não é dizer pouco. O que é dizer muitíssimo acerca da importância deste
professor de Filosofia Moral na história da Economia Política. Nas palavras de
Alfred Marshall: “I t ’s ali in Adam Smith”.

2. A TEORIA DO VALOR

Não será abusivo afirmar-se que o pensamento de Adam Smith no domínio da


Economia se desenvolve a partir da crítica às teses fisiocráticas segundo as quais a
produtividade natural da terra era um dom da natureza, pelo que só o trabalho
desenvolvido na agricultura poderia aproveitar este dom, só o trabalho agrícola se
configurando, por isso mesmo, como trabalhoprodutivo (i.é, capaz de produzir um
produto líquido).
Tendo perante si uma realidade económica diferente da que a França ofereceu
aos fisiocratas, Smith conseguiu aperceber-se de que os rendeiros (capitalistas)
arrecadavam um rendimento que não era um salário. E conseguiu aperceber-se
também de que este lucro capitalista não se confinava à agricultura: o lucro surgia
agora de forma clara na indústria, actividade em que o capital vinha encontrando
o seu mais amplo campo de aplicação.

405 Cfr. C. NAPOIEONI, Fisiocrada... d l . 65/66.


A v elã s N un es - 3 8 9

A produtividade deixava de estar ligada às características estruturais da terra,


deixava de ser exclusiva da agricultura. Por isso, a explicação do excedente (i.é, do
produto líquido, do qual sai não só a renda mas também o lucro, tanto o lucro
agrícola como o lucro industrial) não pode continuar a assentar nas condições
específicas de que beneficia um determinado tipo de trabalho concreto (o trabalho
agrícola). Ultrapassando as várias formas de trabalho concreto que se encontram na
vida real, Adam Smith elabora uma nova categoria, a de trabalho abstracto, a qual -
como ele próprio reconhece - , “embora possa tornar-se suficientemente inteligí­
vel, não é de modo algum tão natural e óbvia”.406
Na nova visão smithiana, a produtividade depende, não já das características de
um determinado sector de actividade, mas das características do trabalho abstracto-
o trabalho em geral, o trabalho tout court (Marx), o trabalho enquanto /^/(Napoleoni)
-, do dispêndio de energia física e psíquica exigido no processo de produção (qual­
quer que seja o objecto sobre que este incide), daquilo que é comum a todas as
formas de trabalho, independentemente da sua forma concreta ou do sector de
actividade produtiva em que se exerce.
Assim se equacionava a necessidade de uma teoria do valor e assim se configu­
rava esta como uma teoria do valor-trabalho, ligando a teoria do valor ao trabalho
em geral, entendido como a origem e a medida do valor. Assim se abria a possibi­
lidade de conceber e explicar o excedente em termos de valor e não já em termos
físicos (como os fisiocratas). “Quando, em Smith, o produto líquido é identificado
fora da agricultura - escreve Napoleoni407 —, a caracterização em termos de valor
torna-se a única conceptualmente possível; consequentemente, é com Smith que,
pela primeira vez, o problema capital da análise da economia capitalista consiste
em saber o que é que determina o valor das mercadorias”.
As condições históricas que permitiram a elaboração da noção de trabalho
abstracto têm que ver com o desenvolvimento da divisão do trabalho, a qual trouxe
consigo uma tal proliferação dos tipos de trabalho concreto que possibilitou (e
exigiu’) a passagem à noção de trabalho abstracto (abstraindo das particularidades
de cada forma de trabalho concreto).

406 C ir. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,122.


407 Cfr. C. NAPO LEO NI, O valor..., cit., 24. Isto mesmo é posto em relevo por Carlos Laranjeiro: "ao detectar em
outros ramos da actividade, para além da agricultura, a possibilidade de criação de um excedente, Smith passa
da produção concreta à produção em geral. Com isso a matriz do acto produtivo desloca-se do objecto - no
caso a terra - para o agente transformador - o trabalho. Nesta medida, o conceito de trabalho abstractiza-se
porque se desliga de uma actividade concreta, o acto de trabalho é em si mesmo gerador de valor, indepen­
dentemente do objecto sobre que incide' (cfr. C. LARANJEIRO, ob. cit., 73).
3 9 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Da divisão do trabalho ocupa-se exactamente o Cap. I do Livro I de Riqueza das


Nações. Na divisão do trabalho radica, segundo Smith, a explicação de “o maior
acréscimo dos poderes produtivos do trabalho”, o qual se venhcan*,proporcional­
mente à divisão do trabalho, “em todas as artes, na medida em que é possível
introduzi-la”. Da divisão do trabalho depende, pois, a produtividade do trabalho,
i.é, a capacidade do trabalho para produzir um excedente.
E qual a origem (a explicação) da divisão do trabalho? Eis a resposta de
Adam Smith:
“A divisão do trabalho de que derivam tantas vantagens não procede originari­
am ente da sabedoria hum ana, na sua tentativa de prever e procurar atingir a
opulência geral que ela ocasiona. E antes a consequência necessária, em bora
m uito lenta e gradual, de um a certa propensão para cambiar, perm utar ou
trocar um a coisa por outra” (...), propensão que “é com um a todos os hom ens
e não se encontra cm quaisquer outros animais, que parecem desconhecer esta
e todas as outras espécies de contratos", propensão que “é um daqueles princí­
pios originários da natureza humana", c que é, como parece mais provável, “a
consequência necessária das faculdades do raciocínio e da fala. (...)T al com o é
por acordo, por tratado, ou por compra que obtem os uns dos outros a maior
parte do que necessitamos - conclui Sm ith é essa mesma disposição para a
troca que originariam ente leva à divisão do trabalho”.

De acordo com esta propensão para a troca, entendida como tendência inerente à
natureza humana, anterior à própria circulação dos bens, as sociedades humanas
acabam por organizar-se de tal forma que as relações de produção, baseadas na
especialização de cada trabalhador, permitem levar ao mais alto grau de realização
aquela propensão para a troca.
“U m a vez que a divisão do trabalho se tenha estabelecido com pletam ente, só
um a parte m uito pequena das necessidades de cada pessoa será suprida pelo
produto do seu próprio trabalho. D e longe a maior parte dessas necessidades
terá de ser satisfeita graças à troca da parte do produto do trabalho de cada um
que excede o seu próprio consumo, por aquelas parcelas do produto do trabalho
dos outros hom ens de que ele necessita. Assim, todos os hom ens vivem da
troca, tornando-se, até certo ponto, mercadores, e a própria sociedade se vai
transform ando num a verdadeira sociedade mercantil”.

Nesta sociedade mercantil na qual a moeda se tomou no “instrumento universal


do comércio, por intermédio do qual se compram e vendem ou trocam bens de
todas as espécies”, as trocas de bens desempenham uma função essencial. Por isso
Adam Smith propõe-se examinar “as regras que os homens naturalmente obser­
vam ao trocar esses bens, quer uns pelos outros, quer por dinheiro”. São estas
A v elã s N un es - 3 9 1

regras que determinam o valor relativo ou valor de troca dos bens, noção que Smith
distingue claramente da de valor de uso. Esta a distinção, tal como é feita no Cap.
IV do Livro I de Riqueza das Nações'.
“Deve observar-se que a palavra VALOR tem dois significados diferentes; umas
vezes exprime a utilidade de um determinado objecto; outras, o poder de compra
de outros objectos que a posse desse representa. O primeiro pode designar-se por
valor de uso\ o segundo por valor de troca. As coisas que têm o maior valor de uso,
têm , em geral, pouco ou nenhum valor de troca; e, pelo contrário, as que têm o
maior valor de troca têm , geralmente, pouco ou nenhum valor de uso. Nada é
mais útil do que a água: mas com ela praticamente nada pode comprar-se;
praticam ente nada pode obter-se cm troca dela. Pelo contrário, um diam ante
não tem praticamente qualquer valor de uso; no entanto, pode norm alm ente
obter-se grande quantidade de outros bens cm troca dele”.

A concluir este Cap. IV, aponta Adam Smith as questões que se propõe estudar
nos capítulos seguintes. No Cap. V investigará “qual é a verdadeira medida do valor
de trocan ou “em que consiste o preço real de todos os bens” (sublinhados nossos).
No Cap. VI ocupar-se-á das “diferentes parcelas de que esse preço se compõe ou
é formado”.

2.1. O PADRÃO DE MEDIDA DO VALOR

No Cap. V Smith analisa, pois, não o problema da causa, origem ou principio ào


valor, mas o problema da medida (i.é, do padrão de medida) do valor dos bens,
problema que adquiriu importância fundamental a partir do reconhecimento da
existência do excedente nas várias actividades económicas e não já apenas na agri­
cultura. Esse reconhecimento, na verdade, tornou inadequado o critério fisiocráti-
co de comparação directa entre as quantidades de bens agrícolas existentes no
início e no fim do processo produtivo.
O trabalho, enquanto trabalho abstracto, está presente em todas as formas de activi­
dade produtiva. Mas, para cada homem (trabalhador) em concreto, o trabalho signi­
fica sempre o sacrifício de uma certa “parcela de bem-estar, liberdade e felicidade”.
Sc cada homem consumisse (utilizasse) apenas os bens por si próprio produzi­
dos, o valor dos bens utilizados corresponderia ao “esforço do nosso próprio cor­
po” para os produzir: “o verdadeiro preço de todas as coisas - escreve Smith - ,
aquilo que elas, na realidade, custam ao homem que deseja adquiri-las, é o esforço
e a fadiga que é necessário despender para as obter”.
Se se admitir uma sociedade de produtores que trocam (vendem) uma parte
dos bens que produzem para obterem por troca (compra) bens produzidos por
outros, então, segundo Adam Smith,
3 9 2 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

“aquilo que cias, na realidade, custam ao hom em que deseja adquiri-las é o


esforço e a fadiga em que é necessário incorrer para as obter. A quilo que uma
coisa realmente vale para o hom em que a adquiriu e que deseja desfazer-se dela
ou trocá-la por outra coisa, é o esforço e a fadiga que ela lhe pode poupar,
im pondo-os a outras pessoas. Aquilo que compramos, com dinheiro ou em
troca de outros bens, é adquirido pelo trabalho, exactamente como aquilo que
obtem os à custa do esforço do nosso próprio corpo. Aquele dinheiro ou aqueles
outros bens poupam -nos, na verdade, esse esforço. C ontém o valor de um a
certa quantidade de trabalho, que nós trocamos por algo que, no m om ento, se
supõe conter o valor de idêntica quantidade”. (A relação de troca é aqui conce­
bida com o troca de equivalentes, como troca de idênticas quantidades de traba­
lho). N estes termos, A dam Sm ith pode concluir que “o trabalho foi o primeiro
preço, a m oeda originária, com que se pagaram todas as coisas. N ão foi com
ouro ou com prata, mas com wabalho, que toda a riqueza do m undo foi
originariam ente adquirida; e o seu valor, para aqueles que a possuem c desejam
trocá-la por novos produtos, é exactamente igual à quantidade de trabalho que
ela lhes perm itir com prar ou dominar".

Nas sociedades assentes na divisão do trabalho e na produção com vista à troca


(ao mercado), a riqueza de cada indivíduo - i.é, o conjunto dos valores de uso que
em cada período são colocados à sua disposição - depende, fundamentalmente, do
trabalho realizado pelos outros (do trabalho contido nas mercadorias produzidas
pelos outros indivíduos). O acesso de cada um à riqueza produzida pelos outros
depende do valor de troca das mercadorias por ele próprio produzidas e que está
disposto a trocar por aquelas que não produz. O valor de troca consiste, neste
sentido, na capacidade de adquirir riqueza (= valor de uso). O valor de troca de
uma mercadoria mede-se, pois, nesta acepção, pela quantidade de trabalho (inclu­
ída nas mercadorias produzidas por outrem) que essa mercadoria permite adquirir
a quem a possui e não tenciona usá-la para consumo próprio. É a teoria do valor
de troca entendido como labour commanded.
Adam Smith exprime esta concepção logo no parágrafo inicial do Cap. V:
“C ada hom em é rico ou pobre consoante o grau em que lhe é dado fruir dos
bens necessários à vida c ao conforto c das diversões próprias dos seres hum a­
nos. M as, após a divisão do trabalho se ter estabelecido com pletam ente, o
trabalho de cada hom em só poderá provê-lo de uma pequeníssima parte desses
bens. A grande maioria deles terá de ser suprida pelo trabalho de outros h o ­
mens e, assim, ele será rico ou pobre consoante a quantidade desse trabalho sobre
que ele pode adquirir dom ínio, ou que lhe é possível comprar. Portanto, o valor
de qualquer m ercadoria para a pessoa que a possui e não tenciona usá-la ou
consum i-la, mas sim trocá-la por outras mercadorias, é igual à quantidade de
A v elAs N u n e s - 3 9 3

trabalho que ela lhe permite comprar ou dominar. O trabalho constitui, pois, a
verdadeira medida do valor de troca de todos os bens". [Sublinhado nosso]

E mais à frente, comentando a afirmação de Hobbes de que riqueza époder,


Adam Smith esclarece que este poder époder de compra (“um certo domínio sobre
todo o trabalho, ou sobre todo o produto do trabalho que, nesse momento, se
encontra no mercado)”:
“A fortuna é m aior ou m enor precisamente na razão directa da dim ensão desse
poder; ou da quantidade de trabalho de outros hom ens, ou, o que é o mesmo,
do produto do trabalho de outros hom ens que ela lhe perm ite com prar ou
dominar. O valor de troca de qualquer coisa é sempre precisam ente igual ã
dim ensão desse poder que ela confere ao seu possuidor”.

Em síntese: nas sociedades baseadas na troca, o valor de qualquer mercadoria


mede-se pela “quantidade de trabalho que ela permite comprar ou dominar”. O
trabalho (the labour commanded) constitui a única, “a verdadeira medida do valor
de troca de todos os bens”.
M as continuemos a acompanhar o raciocínio de Adam Smith. Embora reafir­
mando que o trabalho é “a verdadeira medida do valor de troca de todos os bens”,
o nosso autor sublinha que “não é em termos de trabalho que esse valor é normal­
mente calculado”.408
“É mais frequente - escreve Smith - que cada mercadoria seja trocada por outras
mercadorias do que por trabalho; sendo, por consequência comparada por aquelas.

É, pois, mais natural calcular o seu valor de troca cm term os da quantidade de


alguma o utra mercadoria, do que em termos do trabalho que com ela se pode
adquirir. A lém disso, a m aior parte das pessoas compreende m elhor o que se
entende por um a certa quantidade de um determ inado bem , que por um a
quantidade de trabalho. O prim eiro é um vulgar objecto palpável; o segundo,
um a noção abstracta que, em bora possa tornar-se suficientem ente inteligível,
não é de m odo algum tão natural e óbvia.

408 Em jeito de explicação, escreve Smith:


'É muitas vezes difícil determinar a relação que existe entre duas quantidades de trabalho diferentes. O tempo
gasto em dois tipos de trabalho diferentes nâo basta, por si só, em todos os casos, para definir essa relação. Os
diversos graus de dificuldade que as tarefas implicam e os vários graus de perícia nelas aplicados têm igualmen­
te de ser tomados em conta. Pode haver mais trabalho numa hora de duro esforço, que em duas horas de
actividade descuidada; ou numa hora de aplicação a uma arte que custou dez anos de trabalho a aprender,
que num mês de actividade aplicada a uma tarefa vulgar e óbvia. Mas nôo é difícil achar uma medida exacta,
quer para a dificuldade, quer para a perícia. É certo que, ao trocarem-se uns pelos outros os produtos de
diferentes espécies de trabalho, elas são habitualmente, e em ceita medida, tomadas em conta. Isso consegue-
se, todavia, não pela utilização de uma medida exacta, mas através dos processos de ajuste do mercado, de
acordo com aquela espécie de igualdade, que, embora não seja exacta, é suficiente para permitir levar a cabo
as actividades da vida corrente*.
3 9 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o íít ic a

(..) Q uando cessa a troca directa e a moeda se torna no instrum ento generali­
zado do comércio - continua Sm ith cada mercadoria passa a ser mais fre­
quentem ente trocada por moeda do que por qualquer o utra mercadoria. (...)
D aí que o valor de troca de cada mercadoria seja mais frequentem ente calcu­
lado cm termos da quantidade de moeda por que é possível trocá-la, do que em
term os de trabalho ou de qualquer outro bem”.

Mas é o próprio Adam Smith que logo adverte para o facto de que:
“o ouro e a prata, como todos os outros bens, têm valor variável, sendo um a
vezes mais baratos, outras vezes mais caros, umas vezes mais fáceis de adquirir,
outras mais difíceis. A quantidade de trabalho que uma certa quantidade desses
metais perm ite adquirir ou dominar, ou a quantidade de outros bens por que é
possível trocá-los, depende, cm qualquer mom ento, da abundância ou escassez
das minas conhecidas por essa altura”.

Daí a sua conclusão no sentido de rejeitar a moeda como medida do valor dos
outros bens e de defender que o trabalho “é a única medida universal e também a
única medida justa do valor”, ou seja, “o único padrão em relação ao qual se podem
referir os valores de todos os bens, em todos os tempos e lugares”:
“Tal com o um a m edida de quantidade cujo valor se altera constantem ente,
com o acontece com o pé, a braça ou a mão-cheia propriam ente ditos, nunca
pode constituir um a boa medida das outras coisas, tam bém um bem cujo valor
constantem ente varia nunca pode proporcionar um a m edida precisa do valor
dos outros bens. (...) E m todos os tem pos e lugares é caro aquilo que é difícil de
conseguir, aquilo cuja aquisição exige m uito trabalho; c e barato aquilo que se
obtém facilm ente ou com m uito pouco tra b alh a Portanto, só o trabalho, cujo
valor nunca varia, é o genuíno c verdadeiro padrão em termos do qual o valor de
todos os outros bens pode, em qualquer m om ento e lugar, ser estim ado e
com parado. É esse o seu preço real, a moeda é som ente o preço nom inal”.

2.2. A ORIGEM DO VALOR


No Cap. VI do Livro I de Riqueza das Nações Adam Smith estuda a questão de
saber qual é o elemento que determina o valor, qual é a origem do valor.
2.2.1. O PROBLEMA NO "RUDE ESTADO DA SOCIEDADE"

Smith começa por conceber uma situação hipotética em que as relações entre os
homens decorreriam em conformidade com o direito natural. Designa esta situação
como “o rude estado da sociedade, que precede tanto a acumulação do capital como
a apropriação da terra”. Nesta situação a “relação entre a quantidade de trabalho
necessário para se obterem diferentes objectos parece ser o único elemento com base
no qual se determina a razão de troca”. E Adam Smith exemplifica:
A v el A s N u n e s - 3 9 5

“Se, por exemplo, num país de caçadores, custa habitualm ente o dobro do
trabalho m atar um castor que m atar um veado, um castor valerá ou trocar-se-
á naturalm ente por dois veados. É natural que aquilo que constitui norm al­
m ente o p roduto de dois dias ou de duas horas de trabalho, valha o dobro do
que é habitualm ente produzido num dia ou num a hora de trabalho”.

Surge aqui um novo conceito, o de trabalho necessário, i. é, a quantidade de


trabalho necessária para se produzir qualquer bem. E não há dúvida de que, neste
rude estado da sociedade, o tempo de trabalho necessário para se produzir qualquer
bem é o único elemento determinante do valor desse bem.409
“N um tal estado de coisas - explica A. Sm ith a totalidade d o produto
pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho habitualm ente empregada
na obtenção ou produção de qualquer bem é o único factor que pode d eterm i­
nar a quantidade de trabalho por que ele poderia norm alm ente trocar-se, que
poderia, por seu interm édio, ser adquirida ou dom inada”.

Na situação hipotética que vimos referindo, o trabalho necessário, i.é, o tempo de


trabalho necessário para se produzir uma mercadoria (o trabalho incorporado ou
trabalho contido, como por vezes se diz também), indica qual é a quantidade de
trabalho que essa mercadoria can command. Por outras palavras: o labour comman-
ded é o padrão de medida do valor de troca de qualquer mercadoria; mas é o
trabalho necessário que regula a quantidade concreta de trabalho que uma qualquer
mercadoria permite adquirir.410
2.2.2. O PROBLEMA NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Adam Smith considera em seguida o problema tendo em conta a sociedade


capitalista, a sociedade em que se verifica a “acumulação do capital” e a “apropri­
ação da terra”, na qual - separados os trabalhadores das condições objectivas da
produção - o trabalho é, para Smith, uma mercadoria que se troca directamente
por outra mercadoria.

409 Mas Adam Smith chama a atençáo para a necessidade de ter em conta determinados aspectos:
“Se um tipo de trabalho for mais árduo do que outro, terá, naturalmente, de tomar-se em conta essa maior
dificuldade; e o produto de uma hora de trabalho desse tipo, podo, muitas vezes, trocar-se pelo de duas horas
de trabalho doutro género.
O u , se uma espécie de trabalho exigir um grau excepcional de destreza e engenho, o apreço em que os
homens lém esses talentos levará naturalmente a atribuir ao seu produto um valor superior ao que lhe adviria
somente do tempo de trabalho nele gasto. Tais talentos só conseguem normalmente adquirir-se à custa de longa
aplicação, e o maior valor atribuído aos seus produtos náo será normalmente mais que uma compensação
razoável pelo tempo e trabalho gastos em adquiri-los. No estádio avançado da sociedade, a maior dificuldade
e a maior perícia sào normalmente tomadas em conta nos salários do trabalho, e, provavelmente, na sua fase
mais rude e primitiva fazia-se algo de semelhante".
410 Cfr. C . NAPO LEONI, Fistocracia..., ciL, 46/47 e C. LARANJEIRO, ob. c it , 78-80.
3 9 6 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

Neste tipo de sociedade, qual a solução encontrada pelo nosso autor? Vejamos:
“N este estado de coisas, o produto total do trabalho deixa de pertencer sempre
aos trabalhadores. (...) E deixa tam bém de ser a quantidade de trabalho habitu­
alm ente empregada na obtenção ou na produção de um bem o único factor que
pode determ inar a quantidade por que ele poderia, norm alm ente, trocar-se,
que poderia, por seu interm édio, ser adquirida ou dom inada”.

A quantidade de trabalho que se pode obter por troca com uma determinada
mercadoria (labour commanded) continua a ser o padrão de medida do valor de troca
dessa mercadoria. M as o trabalho necessário (o tempo de trabalho normalmente
despendido para produzir ou obter essa mercadoria) deixa de ser “o único factor
que pode determinar a quantidade por que ele poderia, normalmente, trocar-se”.
Vejamos o raciocínio de Smith:411
“Logo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos de determ inadas
pessoas, algum as delas utilizá-la-ão naturalm ente para assalariar indivíduos
industriosos a quem fornecerão m atérias-primas e a subsistência, a fim de
obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse trabalho
acrescenta ao valor das matérias-primas. A o trocar-se o produto acabado por
dinheiro, por trabalho ou por outros bens, num a quantidade superior à que
seria necessária para pagar o preço das m atérias-primas e os salários dos traba­
lhadores, parte dela tem de constituir os lucros do empresário do trabalho, que
arrisca o seu capital nesta aventura. O valor que os trabalhadores acrescentam às
matérias-primas consistirá, portanto, neste caso, em duas partes, um a das quais
constituída pelos respectivos salários, a outra pelos lucros dopatrão, relativos ao
volume de matérias-primas e salários por ele adiantados. Ele não teria qualquer
interesse em em pregá-los se não esperasse obter, com a venda do seu trabalho,
um pouco mais do que o necessário para reconstituir a sua riqueza inicial; e não
teria qualquer interesse cm em pregar um maior núm ero de bens, de preferên­
cia a um volume menor, se os lucros que aufere não fossem proporcionais ao
volume do capital em pregado”. [Sublinhado nosso]

Q uer dizer: “Neste estado de coisas, o produto total do trabalho deixa de per­
tencer sempre ao trabalhador. Na maioria dos casos, ele é obrigado a partilhá-lo
com o proprietário do capital, que o emprega”.
M as no preço dos bens, diz Smith, para além do salário e do lucro, conta-se
também a renda da terra:412
“Logo que toda a terra de um país se torna propriedade privada, os seus propri­
etários, que, como todos os homens, gostam de colher o que nunca semearam,

411 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c it , 1,148/149.


412 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,151/152.
A v ela s N u n es - 3 9 7

exigem um a renda, mesmo pelas suas produções naturais. A madeira da floresta,


a erva do prado, c todos os frutos naturais da terra que, quando era comum,
custavam ao trabalhador somente o incómodo de os colher, passam, mesmo para
ele, a ter um preço adicional. Passa a ter de pagar a autorização de colhê-los; e terá
de entregar ao proprietário uma parte daquilo que o seu trabalho colheu ou produziu.
Esta parte, ou, o que é o mesmo, o valor desta parte é a renda da terra, que
constitui um a terceira com ponente do preço da maior parte dos bens”.

“E m todas as sociedades - conclui Sm ith - , o preço de cada bem corresponde


sem pre a alguma dessas partes, ou a todas três; e, em todas as sociedades
avançadas, todas três entram , em maior ou m enor grau, com o partes com po­
nentes do preço da grande m aioria dos bens”. [Sublinhado nosso]

Nas condições do capitalismo a configuração do trabalho como mercadoria


significa, para Adam Smith, que nem todo o produto do trabalho pertence ao
trabalhador: o valor criado pelo trabalho (acrescentado pelo trabalho às matérias-
primas) tem que pagar não só o salário mas também a renda e o lucro. Sendo
assim (i. é, não sendo o preço natural das mercadorias igual ao montante dos salá­
rios pagos para as obter), o facto de uma mercadoria ser paga pelo dobro de outra
não significa que a primeira tenha exigido o dobro do tempo de trabalho despen­
dido para a obter, em comparação com o trabalho necessário para obter a segunda.
O trabalho necessário corresponde apenas à parte do salário, o que significa que o
labour commanded é superior ao trabalho necessário. Este já não pode regular a
quantidade concreta de trabalho que uma qualquer mercadoria permite adquirir.

2.2.2.1. O LUCRO E A RENDA COMO "DEDUÇÕES AO PRODUTO DO


TRABALHO" ( TEORIA DEDUTIVA ) . A NOÇÃO DE TRABALHO PRO D UTIVO

Até aqui, a análise de Smith acerca das partes que compõem o preço dos bens
pressupõe a aceitação do princípio segundo o qual o trabalho é a única origem do
valor. É isto mesmo que Smith afirma quando defende que o lucro e a renda são,
a par dos salários, parte do “valor que os trabalhadores acrescentam às matérias-
primas”. Todo o valor é criado pelo trabalho vivo, a esse valor se deduzindo o
montante do lucro e da renda, que não vão pertencer aos trabalhadores.
É isto mesmo que Smith torna claro ao expor, no Cap. VIII de Riqueza das
Nações, a sua concepção da renda e do lucro como deduções aoproduto do trabalho:413
“Assim que a terra se torna propriedade privada o proprietário passa a exigir um a
parte de quase todos os produtos que o trabalhador nela pode criar ou colher. A
renda toma-se na primeira dedução ao produto do trabalho que se emprega na terra.

413 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,175.


3 9 8 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o emprega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, c que não teria qualquer interesse em
em pregá-lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se
o respectivo capital lhe não fosse restituído com um lucro. Este lucro corresponde
a uma segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra.

O produto de quase todo o restante trabalho está sujeito a um a dedução


sem elhante, devida ao lucro. E m todas as artes e ofícios, a m aior parte dos
trabalhadores necessita que um patrão lhe adiante as m atérias-prim as para o
seu trabalho, bem como os respectivos salários c m anutenção até que ele se
ache term inado. O patrão comparticipa do produto do trabalho, ou do valor
que ele acrescenta às m atérias-prim as sobre as quais se aplica; e nessa
comparticipação consiste o lucro”. [Sublinhado nosso]

Neste sentido, o trabalho necessário para produzir uma mercadoria cria um


valor que é superior ao montante dos salários pagos aos trabalhadores. Esta dife­
rença é o excedente, que vai ser distribuído em rendas e lucros. Alguns autores,
incluindo o próprio Marx, têm visto nesta tese de Smith o embrião do conceito
marxista de mais-valia e da teoria marxista da exploração.414
A ideia de que o trabalho é a origem de todo o valor está presente também na
noção smithiana de trabalhoprodutivo, à qual contrapõe a de trabalho improdutivo.
Na Introdução de Riqueza das Nações Smith refere-se ao trabalho produtivo
como sinónimo de trabalho útil (fala mesmo de “trabalhadores úteis e produti­
vos”), parecendo que considera o trabalho improdutivo como trabalho inútil. Mais
à frente, no entanto, considera que os serviços prestados pelos trabalhadores im­
produtivos podem ser úteis e até necessários.
Mas é no Cap. Ill do Livro II que Adam Smith define trabalhoprodutivo como
aquele “que eleva o valor do objecto a que é aplicado”, que “origina valor”, que
acrescenta “ao valor das matérias-primas a que se aplica o valor da sua própria
manutenção e o lucro do patrão”. O trabalho produtivo “fixa-se e corporiza-se em
qualquer objecto particular ou mercadoria vendável que dura, pelo menos, durante
algum tempo após a conclusão do trabalho”, “como se se armazenasse uma certa
quantidade de trabalho para ser utilizada, se necessário, em qualquer outra oca­
sião”. Da noção de trabalho produtivo ficam, assim, excluídos os serviços, que, no
tempo em que Smith escreveu, consistiam, fundamentalmente, em serviços pesso­
ais (serviços domésticos), que eram, em regra, consumos de luxo.

414 Cfr. M. D O B B, Teorias..., cit., 64; C. NAPOLEONI, Fiskxracia..., cit., 48 e C. LARANJEIRO, ob. cit., 82. Ver, no
entanto, as reflexões de C. NAPOLEONI, Discorso..., c it , 37/38.
A v e ià s N u n e s - 3 9 9

A ideia que emerge com mais força da elaboração de Adam Smith parece ser
a que idenfica o trabalhoprodutivo com o trabalho que origina valor.415 O trabalho
(o trabalho abstracto) aparece, assim, como a única fonte de valor.
Trabalho improdutivo é o que “não produz qualquer valor, não se fixando nem
corporizando em qualquer objecto durável ou mercadoria vendável que continue a
existir uma vez terminado o trabalho e que permita adquirir, mais tarde, igual
quantidade de trabalho”.
Um operário é tipicamente um trabalhador produtivo, do mesmo modo que
um criado é um típico trabalhador improdutivo (tal como é improdutivo - salienta
Smith - Mo trabalho de muitas das mais respeitáveis classes sociais”).
“O trabalho dos últimos [dos criados] tem, contudo, o seu valor e merece um a
recompensa tal como o primeiro. M as o trabalho do operário fixa-se c corporiza-
se em qualquer objecto particular ou mercadoria vendável, que dura, pelo menos,
durante algum tem po após a conclusão do trabalho. É como se se armazenasse
uma certa quantidade de trabalho para ser utilizada, se necessário, em qualquer
outra ocasião. Esse objecto ou, o que é o mesmo, o preço respectivo, pode mais
tarde, se necessário, pôr em movimento um a quantidade de trabalho igual à que
lhe deu origem. O trabalho de um criado, pelo contrário, não se fixa nem se
corporiza em qualquer objecto particular ou numa mercadoria vendável. O s seus
serviços deixam, cm geral, de existir no próprio instante em que são prestados e
raramente deixam atrás de si qualquer resíduo ou valor com o qual se torne
possível obter, mais tarde, igual quantidade desse serviço”.416

Por isso Adam Smith defende que “um homem enriquece empregando grande
número de operários e empobrece se mantiver uma multidão de criados”. Exacta­
mente porque M o trabalho de um criado nada acrescenta a qualquer valor”, o que
significa que “a manutenção de um criado nunca é recuperada”. Pelo contrário,
“embora o patrão adiante ao operário os seus salários, ele, na realidade, não impli­
ca qualquer dispêndio para o patrão, uma vez que o valor desses salários lhe é, em
regra, restituído, com um lucro, por meio do valor acrescido do objecto sobre o

415 É esta a noçáo que mais se aproxima da noção fisiocrática de trabalho produtivo. É esta a noção que Marx
chamou "a definição correcta*. O valor criado pelo trabalho produtivo e incorporado nos bens produzidos
paga o trabalho necessário para produzir estes bens (salário) e deixa ainda um excedente (renda e lucro). Neste
sentido, pode dizer-se que o trabalho produtivo é o que produz um excedente: *o valor criado pelos trabalha­
dores produtivos - escreve Smith - inclui o valor da sua própria manutenção e o lucro do patrão". Esta parece
ser também a interpretação de Cláudio Napoleoni quando define a noção smithiana de trabalho produtivo
como "aquele trabalho que não só reproduz o valor dos próprios meios de subsistência, mas reproduz também
um valor adicional (que é apropriado como renda ou como lucro); podemos agora precisar - acentua C.
NAPOLEONI, Fisiocracia..., cit., 49 -dizendo que é produtivo aquele trabalho que dá lugar a um produto pelo
qual o labour com mandedé maior que o trabalho incorporado".
416 C f r. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,582.
4 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

qual o operário trabalhou”. “O trabalho de um operário acrescenta geralmente, ao


valor das matérias-primas a que se aplica, o valor da sua própria manutenção e o
lucro do patrão”.417
Em consonância com esta concepção, Smith sustenta que os trabalhadores im­
produtivos são consumidores puros (tal como os proprietários de terras), uma vez
que se mantêm consumindo “uma parte do produto anual da actividade dos outros
indivíduos”. Dentro desta mesma lógica, advoga a ideia segundo a qual os salários
dos trabalhadores produtivos desempenham umafunção de capital, enquanto a parte
da riqueza utilizada na manutenção de trabalhadores improdutivos é retirada do
capital, passando a fazer parte da riqueza destinada a consumo imediato.

2.2.2.2. O VALOR ENQUANTO SOMA DE SALÁRIOS, RENDAS E LUCROS


(TEO RIA A D IT IV A ). A NOÇÃO DE " p re ço n a t u r a l"

Vimos atrás como, no quadro de uma sociedade capitalista, Smith considera


que o labour commanded não pode ser determinado pela quantidade de trabalho
incorporado na mercadoria. Perante esta impossibilidade, Smith ensaia uma outra
resposta para a questão de saber qual é o valor de troca de uma mercadoria, i.é,
qual a quantidade de trabalho que essa mercadoria permite adquirir.
E essa resposta consiste na afirmação de que o valor se encontra através da soma
de salários, rendas e lucros, determinando-se cada um destes tipos de rendimento
independentemente dos outros. Na sequência de Sraffa, fala-se de teoria aditiva
(“adding up theory”) para referenciar esta concepção de Adam Smith, que Schum-
peter identifica com o que mais tarde se chamou teoria do custo deprodução,418
Atentemos nestes parágrafos do Cap. VI de Riqueza das Nações:™
“O preço de qualquer bem tem sempre, em últim a análise, de corresponder a
um a ou outra destas partes, ou a todas três; um a vez que, seja o que for que
sobeje, depois de paga a renda da terra e o preço de todo o trabalho em pregado
em criá-lo, transform á-lo c conduzi-lo ao mercado, tem necessariamente de
constituir o lucro de alguém. D ado que o preço ou valor de troca de cada bem
específico, tom ado em separado, corresponde a um a ou outra daquelas partes,
ou a todas três, tam bém o preço da totalidade dos bens que com põem o
produto -anual total do trabalho de cada nação, tom ados em conjunto, há-de
corresponder às mesmas três partes c ser distribuído entre os vários habitantes
do país, quer a título de salários do seu trabalho, quer de lucros do seu capital,
quer ainda de renda das suas terras. A totalidade daquilo que é anualm ente

417 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,581.


418 Cfr. J. SCHUM PETER, Historia..., cit., 359 e C . LARANJEIRO, ob. cit., 82-86.
419 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,154/155.
A v elas N u n es - 4 0 1

colhido ou produzido pelo trabalho dc cada sociedade ou, o que é o mesm o, o


total dos seus preços é, deste m odo, originariamente distribuído entre alguns
dos seus membros. O s salários, o lucro e a renda são as três fontes originárias dc
todos os rendim entos, como de todo o valor dc troca".

Ao contrário do que resultava do entendimento da renda e do lucro como


deduções ao produto do trabalho, agora parece que o valor só pode conhecer-se
depois de se apurar qual o nível do salário, da renda e do lucro. No Cap. VII Adam
Smith explica como é que em todas as sociedades tendem a verificar-se taxas
correntes ou médias (taxas naturais) do salário, do lucro e da renda. Chega assim à
noção de preço natural, que define como o preço “para o qual tendem continuada-
mente os preços de todos os bens”, o qual é igual à soma das taxas naturais do
salário, do lucro e da renda, taxas que dependem, em último termo, das condições
gerais da oferta e da procura de trabalho, de capital e de terra.
Adam Smith parece cair num círculo vicioso: o valor de troca (o preço) de
uma mercadoria acabaria por determinar-se pelo “preço natural” da própria mer­
cadoria. Smith observa, é certo, que “o valor real das diferentes partes componen­
tes do preço é medido pela quantidade de trabalho que pode obter-se em troca de
cada uma delas, ou sobre a qual eles permitem adquirir domínio. O trabalho mede
não só o valor daquela parte do preço que corresponde a trabalho, como o da que
corresponde à renda e o da que corresponde ao lucro”.
De todo o modo, poder-se-á dizer que, na perspectiva que agora estamos ana­
lisando, cada mercadoria tem um preço natural que corresponde à soma do salário,
do lucro e da renda; o valor de cada uma destas partes componentes do preço
mede-se pela quantidade de trabalho que se pode obter em troca de cada uma
delas (labour commanded); mas, nas condições do capitalismo, o labour commanded
depende do salário, e este depende, por sua vez, dos preços naturais dos bens de
subsistência, os quais são compostos por salários, lucros e rendas. “Deste modo -
comenta Napoleoni420 - , chega-se à proposição, desprovida de conteúdo, de que
os preços dependem dos preços”. É ainda este autor a concluir: “as taxas naturais
do salário, do lucro e da renda são também valores relativamente aos quais seria
necessário precisar como são determinados. Smith não consegue, pois, formular
uma teoria do valor de troca que satisfaça aquele requisito formal essencial que
consiste em determinar os valores a partir de elementos que não dependem eles
próprios dos valores. Neste sentido, a teoria do valor de troca de Smith é, sem
dúvida, um fracasso; o problema da determinação dos valores relativos, de cuja

420 Cfr. C. NAPOLEONI, O vaJor..., ciL, 28.


4 0 2 - U m a I n t r o o u ç â o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

solução depende a possibilidade de determinar o excedente ou produto líquido


como um valor, continua sem resolver”.421
Mas, do ponto de vista do problema da origem do valor, esta teoria aditiva
obriga Smith a deixar cair a concepção - que parece ser, se bem vemos, a que
surge com maior peso na obra do autor - segundo a qual o trabalho é a fonte
originária de todo o valor. É o próprio Smith quem escreve: “O s salários, o lucro
e a renda são as trêsfontes originárias de todo o rendimento, como de todo o valor de
troca”. [Sublinhado nosso]
Esta “ambiguidade radical” (Napoleoni 422) acerca da origem do valor marca
toda a teoria do valor smithiana e projectou-se até hoje na teoria económica: a
perspectiva aditiva veio a ser acolhida por Say e, por via deste, influenciou toda a
teoria neo-clássica.423

3. A TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DO RENDIMENTO

Estudar “a ordem segundo a qual o produto do trabalho é naturalmente distri­


buído entre as diferentes classes de cidadãos” é um dos propósitos do Livro I de
Riqueza das Nações.
A riqueza de uma nação é, para Smith, o fluxo anual de bens resultante da
actividade dos trabalhadores produtivos.
“O trabalho anual de um a nação - escreve Smith 424 - é o fundo de que provêm
originariam ente todos os bens necessários à vida e ao conforto que a nação
anualm ente consome, e que consistem sempre ou em produtos imediatos desse
trabalho, ou em bens adquiridos às outras nações em troca deles”.

E Adam Smith continua:425


“A totalidade d o produto anual da terra c do trabalho de qualquer país, ou, o
que é o mesm o, o preço total desse produto, divide-se naturalm ente em três
partes: a renda da terra, os salários do trabalho, e os lucros do capital; e constitui
o rendim ento de três diferentes classes de pessoas: os que vivem da renda, os
que vivem dos salários e os que vivem dos lucros. Estas são as três grandes

421 Cír. C. N APOLEONI, Fiskxracia..., cit., 47/48.


422 Cfr. C. NAPOLEONI, Discorso..., cit., 38.
423 Cfr. C. LARANIEIRO, oò. c/f., 86. A primeira perspectiva desenvolve o conceito fisiocrático de excedente e liga-
se a uma teoria da distribuição do rendimento equacionada com base no conflito social entre os titulares de
salários, lucros e rendas, cada um deles buscando o maior quinháo do valor criado pelo trabalho. A segunda
perspectiva abandona a noção de excedente e reduz o valor á soma dos custos de produção (i.é, dos preços
dos 'factores de produção'), os quais dependem das condições do mercado do trabalho, da terra e do capitai,
sem relação com um qualquer valor global criado previamente pelo trabalho vivo produtivo.
424 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,69.
425 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,474 e 155.
A v e l As N u n e s - 4 0 3

classcs originárias constituintes de toda a actividade civilizada c é do seu rendi­


m ento que, cm últim a análise, deriva o de todas as outras classes”.

Como ressalta já destes trechos, a compreensão da teoria da distribuição do


rendimento de A. Smith pressupõe o conhecimento da estrutura de classes da
sociedade capitalista, tal como ela se configura em Riqueza das Nações, onde as
classes sociais são definidas com base na posição de cada uma delas relativamente
à actividade produtiva.
O próprio Smith observa que, “por vezes, acontece que algum operário inde­
pendente possui o capital suficiente, tanto para comprar as matérias-primas neces­
sárias ao seu trabalho, como para se manter até ele se achar terminado”. Este
produtor independente “é simultaneamente patrão e operário e usufrui da totalidade
do produto do seu trabalho, ou da totalidade do valor que ele acrescenta às maté­
rias-primas sobre as quais se aplica”.426
No entanto, em regra, a actividade económica pressupõe - se deixarmos de
lado os trabalhadores improdutivos - o concurso das “três grandes classes originári­
as constituintes de toda a sociedade civilizada”:
1) os trabalhadores produtivos, os que criam riqueza, (“aqueles que alimentam,
vestem e proporcionam habitação a todo o conjunto de pessoas”, escreve Smith),
não só o necessário para a sua manutenção (os salários), mas ainda um excedente,
que vai ser distribuído em rendas e lucros;
2) os proprietários de terras, que “constituem a única das três classes a quem o
rendimento não custa trabalho nem cuidados”e que “gostam dc colher o que
nunca semearam”;
3) os capitalistas, que Smith designa geralmente por patrões ou empresários, a
classe “dos que vivem do lucro”.
Entre estas três classes vai distribuir-se o rendimento, em salários, rendas e lucros.
Como veremos, Smith ligou a formação dos salários aos mecanismos do mer­
cado e à acção de certas leis naturais (as leis de variação da população, v.g.) e, na
epígrafe do Livro I de Riqueza das Nações, refere que o produto se distribui natu­
ralmente entre as diferentes classes de cidadãos. Mas não deixou de assumir, no
plano da teoria da repartição do rendimento, o carácter conflituante dos interesses
dos titulares das várias categorias de rendimento, na medida que cada uma dessas
categorias de rendimento (salários, lucros e rendas) só pode aumentar à custa da
diminuição de outra (ou de outras).

426 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,176.


IA P d lT IC A

Neste capítulo em que Smith se propõe estudar “os salários do trabalho”, a


renda e o lucro aparecem como deduções ao produto do trabalho. Quer dizer: é o
trabalho produtivo que cria o valor, ao qual vão ser deduzidos os montantes arreca­
dados pelos capitalistas e pelos proprietários de terras. O lucro e a renda não se
justificam, portanto, como os rendimentos criados pelo capital e pela terra, nem
representam qualquer remuneração devida a estes “factores de produção” (como
defenderá Say). Os capitalistas (ospatrões ou empresários, na terminologia de Smi­
th), uma vez pagos os salários aos trabalhadores produtivos, apropriam-se do
excedente que estes criaram para além do correspondente ao salário: se os patrões
ou empresários (capitalistas) forem rendeiros agrícolas, então terão de entregar
aos proprietários fundiários, a título de renda da terra, uma parte do excedente que
em primeira mão chamaram a si.
3.1. A T E O R I A D O S A L Á R IO

3.1.1. OS F A C T O R E S P O L ÍT IC O S E IN S T IT U C IO N A IS

Em princípio, Adam Smith considera que “o produto do trabalho constitui a


recompensa natural ou o salário desse trabalho”.
Simplesmente, um tal princípio só se verificaria naquela “situação inicial”, que
precede tanto “a apropriação da terra como a acumulação de capital”. Só nesta
situação “o produto do trabalho pertence, na sua totalidade, ao trabalhador”, uma
vez que “este não tem proprietário nem patrão com quem partilhá-lo”.
Mas esta não é a situação que caracteriza as economias capitalistas, como bem
nota Adam Smith. E a sua preocupação reside, fundamentalmente, em explicar
como e porquê, nas condições do capitalismo, o rendimento percebido pelos tra­
balhadores assalariados não absorve todo o produto do trabalho, ao qual vão ser
deduzidos o lucro e a renda.
Segundo Smith, aquele estado de coisas, “no qual o trabalhador usufruía da
totalidade do produto do seu trabalho, não podia perdurar para além da introdu­
ção da apropriação da terra e da acumulação do capital”. A dedução do lucro e da
renda ao produto do trabalho aparece, no Cap. VIII do Livro I de Riqueza das
Nações, como a consequência da propriedade capitalista da terra e dos outros meios
de produção:427
“Assim que a terra se tom a propriedade privada, o proprietário passa a exigir uma
parte de quase todos os produtos que o trabalhador nela pode criar ou colher. A
renda torna-se na primeira dedução aoproduto do trabalho que se emprega na terra.

427 Cfr. Rfquezã das Nações, ed. cit., 1,175.


A v ela s N u n es - 4 0 5

É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o em prega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, e que não teria qualquer interesse em
em pregá-lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se
o respectivo capital lhe não fosse restituído com um lucro. Esse lucro corresponde
a uma segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra.

O produto dc quase todo o restante trabalho está sujeito a um a dedução


sem elhante, devido ao luro. E m todas as artes e ofícios a m aior parte dos
trabalhadores necessita que um patrão lhe adiante as m atérias-prim as para o
seu trabalho, bem como os respectivos salários e m anutenção até que ele se
ache term inado. O patrão comparticipa do produto do trabalho, ou d o valor que
ele acrescenta às matérias-primas sobre as quais se aplica; c nessa comparticipação
consiste o lucro”. (Sublinhados nossos. A .N .)

E com base na análise dos mecanismos de actuação da oferta e da procura que


Adam Smith explica a formação dos salários.
“Por toda a parte se entende por salários do trabalho - escreve Smith - aquilo
que eles são habitualmente, isto é, quando o trabalhador é uma pessoa e o propri­
etário do capital, que o emprega, é outra”.
“Os salários correntes do trabalho - acrescenta o autor - dependem, por toda a
parte, de contrato habitualmente celebrado entre duas partes, cujos interesses não
são de modo algum idênticos. Os operários pretendem obter o máximo possível,
os patrões procuram pagar-lhes o mínimo possível”.
Adam Smith revela, nesse trecho, uma clara compreensão da natureza do salá­
rio nas relações de produção de tipo capitalista e do enquadramento jurídico do
‘contrato de trabalho’, expressamente apontado como um contrato entre duas par­
tes cujos interesses não são idênticos e cuja posição relativa não é de igualdade,
mas de acentuada desigualdade. Esta resulta da seguinte consideração:428
“U m proprietário, um rendeiro, um dono de um a fábrica, ou um comerciante,
poderiam norm alm ente subsistir um ou dois anos sem em pregar um único
trabalhador, com base no pecúlio previamente acumulado. M uitos trabalhado­
res não conseguiriam subsistir um a semana, poucos subsistiriam um mês, e
praticam ente nenhum sobreviveria um ano sem em prego. A longo prazo, o
operário pode ser tão necessário ao patrão como o patrão lhe é necessário a ele,
mas a necessidade não é tão im ediata”.

Mas Adam Smith leva mais longe as suas reflexões:429

428 Cfr. Riqueza das Nações, e d . cit., 1,177.


429 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,176-178.
4 0 6 - U m a I n t r o d u ç ã o â E c o n o m ia P o lít ic a

“N ão é difícil prever qual das partes, cm circunstâncias norm ais, levará sempre
a m elhor nesta disputa [a disputa entre os operários que “pretendem obter o
máximo possível” e os patrões que “procuram pagar-lhes o mínim o possível”] c
obrigará a outra a aceitar os seus próprios termos. O s patrões, sendo cm menor
núm ero, têm m uito m aior facilidade cm associar-se; além disso, a lei autoriza,
ou pelo m enos não proibe, as suas coligações, enquanto proibe as dos trabalha­
dores. N ão tem os qualquer lei do parlam ento contra as coligações destinadas a
baixar o preço do trabalho, mas tem os muitas contra aquelas que pretendam
elevá-lo. E m todas as disputas desse género, os patrões podem resistir por
m uito m ais tem po. U m proprietário, um rendeiro, um dono de um a fábrica,
ou um com erciante, poderiam norm alm ente subsistir um ou dois anos sem
empregar um único trabalhador, com base no pecúlio previamente acumulado.
M uitos trabalhadores não conseguiriam subsistir um a semana, poucos subsis­
tiriam um mês, c praticam ente nenhum sobreviveria um ano sem em prego. A
longo prazo, o operário pode ser tão necessário ao patrão como o patrão é
necessário a ele, mas a necessidade não é tão imediata.

Tem -se d ito que é raro ouvir-se falar de coligações de patrões, enquanto se
ouve com frequência falar nas dos operários. M as quem quer que, com base
nesse facto, im agine que os patrões raram ente se coligam é tão ignorante do
m undo com o deste assunto. O s patrões m antêm sempre e por toda a parte
um a espécie dc acordo tácito, mas constante e uniform e, tendente a que os
salários do trabalho se não elevem para além da taxa que vigora no m om ento.
A violação dc tal acordo é, em toda a parte, considerada como o mais im popu­
lar dos actos e constitui um a espécie dc motivo dc censura a qualquer patrão
entre os seus próximos c iguais. É raro, na verdade, ouvirmos falar desse acordo
porque ele corresponde à situação habitual, pode m esmo dizer-se natural, que
jam ais é com entada. Às vezes, os patrões entram tam bém em coligações espe­
cíficas para fazer dcsccr os salários do trabalho ainda abaixo dessa taxa. Estas
são sempre organizadas debaixo do maior silêncio e segredo, até serem postas
em prática e, quando os trabalhadores cedem , como p or vezes acontece, sem
opor resistência, as outras pessoas nunca chegam a ouvir falar delas, por m uito
gravem ente que pesem sobre os trabalhadores”.

Perante a desigualdade e a injustiça, é natural a reacção dos trabalhadores.


Adam Smith refere-se-lhe nestes termos:430
“muitas vezes os trabalhadores organizam um a coligação defensiva para se lhes
oporem ; e tam bém , às vezes, se organizam de m oto-próprio, sem que se tivesse
verificado qualquer provocação desse género, para elevarem o preço do seu
trabalho. A s suas pretensões habituais incidem, umas vezes sobre o alto preço

430 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,178.


A v e l As N u n e s - 4 0 7

das provisões, outras vezes sobre o elevado lucro que os patrões auferem à custa
do seu trabalho. M as, quer estas coligações tenham carácter ofensivo, quer
defensivo, ouve-se sempre falar delas em abundância. Para conseguirem um a
decisão rápida, os trabalhadores recorrem sempre ao mais alto clam or e, em
certos casos, à mais chocante violência c desacato. Sentem -se desesperados, e
actuam com o delírio e im oderação dc hom ens desesperados, a quem só resta
m orrer de fom e ou, pelo medo, obrigar os patrões a aceitar im ediatam ente as
suas reivindicações. E m tais circunstâncias, os patrões erguem , pelo seu lado,
idêntico clamor, reivindicando incessantemente o auxílio das autoridades civis
e o rigoroso cum prim ento das leis destinadas a, com tanta severidade, se o p o ­
rem às coligações de criados, trabalhadores e jornaleiros”.

Mas a relação de forças é claramente favorável aos empregadores capitalistas,


que acabam sempre por obrigar a outra parte a “aceitar os seus próprios termos”,
conseguindo os patrões o seu objectivo de pagar aos operários “o mínimo possível”.

“Desse m odo, os trabalhadores raramente tiram qualquer vantagem da violên­


cia dessas coligações tum ultuosas que, em parte por força da intervenção das
autoridades civis, cm parte devido à maior resistência dos patrões, e ainda em
parte devido à necessidade em que a m aior parte dos trabalhadores se vê de se
subm eter para garantir a sua subsistência imediata, geralm ente ficam cm nada,
salvo pelo que respeita à punição ou ruína dos chefes do m ovim ento”.431

Como se vê, Adam Smith atribui um papel importante aosfactores sociais, polí­
ticos e institucionais na conformação dos mecanismos de formação dos salários.

3.1.2. O ESTADO DA EC O N O M IA

Adiantadas estas observações, podemos agora analisar como e que Adam Smi­
th procura explicar a formação do salário em função do comportamento da procu­
ra e da oferta de mão-de-obra.432
“Q uando, em qualquer país, a procura daqueles que vivem dos salários, traba­
lhadores, jornaleiros, servidores de qualquer espécie, está em constante aum en­
to, quando cada ano proporciona em prego a um m aior núm ero do que o ano
que o precedeu, os trabalhadores não terão oportunidade dc se coligar para
fazerem subir os salários. A escassez dc braços provocará a concorrência entre
os patrões, que licitarão uns contra os outros a fim de conseguirem trabalhado­
res, quebrando assim voluntariamente o acordo natural entre eles existente para
não subirem os salários”.

431 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,178/179.


432 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,180.
4 0 8 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o lít ic a

A o contrário, num país estacionário, onde a procura de mão-de-obra é cons­


tante, “dificilmente poderá haver escassez de braços, ou poderão os patrões ver-se
obrigados a licitar uns contra os outros para os obterem”.
“Pelo contrário - escreve Sm ith 433- os trabalhadores tenderão, neste caso, a
multiplicar-se mais que o emprego. Haverá um a constante escassez de em pre­
go, e os trabalhadores serão obrigados a licitar uns contra os outros para o obter.
Se, num tal país, os salários do trabalho tivessem alguma vez sido superiores ao
suficiente para m anter o trabalhador c para lhe perm itir criar um a família, a
concorrência entre os trabalhadores e o interesse dos patrões em breve os
reduziriam à taxa mais baixa compatível com um m ínim o de hum anidade”.

A procura daqueles que vivem dos salários varia, na opinião de Smith, em


função da variação da riqueza nacional: “aumenta naturalmente com o aumento da
riqueza nacional e não pode, de maneira alguma, aumentar sem ela”. Isto porque
só o aumento da riqueza permite o “acréscimo dos fundos destinados ao pagamen­
to dos salários”, pelo facto de os rendimentos dos proprietários, dos homens de di­
nheiro, dos empresários e dojprodutores independentes aumentarem em maior medida
do que o respectivo consumo: o restante é por eles utilizado para contratar traba­
lhadores assalariados e desenvolver a produção.
M as Adam Smith não se esquece de salientar que
“N ão é o volume da riqueza nacional num certo m om ento, mas o seu contínuo
acréscimo, que dá ocasião à subida dos salários do trabalho. Por conseguinte,
não é nos países mais ricos, mas nos mais florescentes, ou naqueles cuja riqueza
cresce mais rapidam ente que os salários do trabalho são mais elevados”.434

Mais à frente, Smith insiste neste ponto:


“Deve tam bém notar-sc que é no Estado em progresso, quando a sociedade
avança no sentido da aquisição dc maiores riquezas, mais do que no que corresponde
ao pleno desenvolvimento da sua riqueza, que a situação dos trabalhadores p o ­
bres, a maior parte da população, se apresenta mais feliz e mais agradável. É dura
no estado estacionário, e miserável no dc declínio. O estado em progresso é,
realmente, o que maior felicidade e alegria traz a todas as classes da sociedade. O
estado estacionário é insípido; o de declínio, melancólico”.435

Só noprogressive state s t reúnem, pois, aquelas “circunstâncias que, por vezes,


concedem vantagens aos trabalhadores, permitindo-lhes elevar os respectivos sa­
lários consideravelmente acima dessa taxa, evidentemente a mais baixa compatível
com um mínimo de humanidade”.

433 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c i l , 1,184/185.


434 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1 ,182.
435 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,200.
A v e lA s N u n e s - 4 0 9

3.1.3. OS F A C T O R E S D E M O G R Á FIC O S

Para concluirmos esta síntese da teoria smithiana da formação do salário, im­


porta agora chamar a atenção para a relação que Smith estabelece entre as varia­
ções da ‘procura de trabalho’, as variações do nível do salário e as variações da
‘oferta de trabalho’ de acordo com as leis naturais que regulariam a evolução da
população. Tomemos o seguinte trecho de Riqueza das Nações\AV>
“Sc esta procura [a procura de trabalho] estiver cm contínuo aum ento - escreve
ele - a rem uneração do trabalho incentivará necessariamente o casam ento e a
multiplicação dos trabalhadores, de m odo a tornar-lhes possível corresponder
ao contínuo aum ento da procura por um contínuo aum ento da população. Se
a rem uneração fosse, em qualquer m om ento, inferior à necessária para perm i­
tir atingir esse objectivo, a falta de braços depressa a elevaria; e se, cm qualquer
m om ento, lhe fosse superior, a sua excessiva multiplicação cm breve a reduziria
a essa taxa necessária. O mercado achar-se-ia tão subabastecido de trabalho, no
prim eiro caso, ou tão sobreabastecido, no segundo, que depressa forçaria o
preço a coincidir com a taxa apropriada à situação da sociedade. A ssim , é a
procura de trabalhadores, tal como a de qualquer outro bem , que necessaria­
m ente regula a produção de trabalhadores; estim ula-a quando ela se mostra
insuficiente, redu-la quando se processa com demasiada rapidez”.

Q uer dizer: sempre que o nível do salário é superior ao preço natural do traba­
lho, daí deriva um estímulo ao aumento da população; este aumento da oferta de
trabalho vai, por sua vez, reconduzir o salário ao seu nível natural. Se o nível do
salário for inferior ao preço natural’ dar-se-á um fenómeno inverso, de tal modo
que o salário acabará por elevar-se até ao seu nível natural.
Mas a chave da compreensão do pensamento simithiano acerca da formação
dos salários talvez esteja na afirmação de que “é a procura de trabalhadores que
necessariamente regula a produção de trabalhadores”. E como a procura de tra­
balhadores depende do estado da economia (estado estacionário, progressivo ou
regressivo), este será o factor decisivo na determinação do nível dos salários.437
Nos trechos de Smith que acima se transcrevem poderá ler-se, nos seus traços
essenciais, a teoria dos salários que mais tarde Ferdinand Lassale designaria por lei
de bronze dos salários: actuando em conjugação com a oferta e a procura de mão-
de-obra, leis naturais de evolução da população explicariam que o salário corrente

436 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1 ,198.


437Cfr. Riqueza das A/ações, ed. c it , 1,176-179. Smith afirma, aliás, que a voz dos trabalhadores *é pouco ouvida
e menos considerada nas deliberações públicas, excepto em casos particulares, quando o seu clamor é anima­
do, incitado e apoiado pelos patrões, nâo com o fim de servir os interesses dos trabalhadores, mas os seus"
Ubidem, 1,476).
4 1 0 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

venha a coincidir com o mínimo necessário à manutenção dos trabalhadores e à


sua reprodução, i.é, à manutenção e educação das suas famílias.
Assim se exprime Adam Smith:438
“E m bora os patrões levem geralmente a m elhor nas disputas com os seus
trabalhadores, há um a certa taxa abaixo da qual se afigura impossível reduzir,
por qualquer prazo considerável, os salários correntes m esmo da mais ínfima
espécie de trabalho.

U m hom em tem sempre que viver do seu trabalho, c o salário que recebe tem, pelo
menos, de ser suficiente para o manter.Tem mesmo, na maior parte dos casos, de
ir um pouco além disso, dc outro modo scr-lhe-ia impossível manter um a família,
c a raça dc tais trabalhadores não perduraria para além da primeira geração”.

3.1.4. P r e ç o real e p r e ç o n o m in a l d o t r a b a l h o . O s a l á r io real

DEVE M A N TE R -SE B A IX O ?

Adam Smith distingue entre preço real do trabalho (“quantidade de bens neces­
sários à vida e ao conforto que são dados em troca dele”) e preço nom inal do trabalho
(“quantidade de dinheiro que o trabalhador recebe), sustentando que “o trabalha­
dor é rico ou pobre, bem ou mal remunerado, consoante o preço real, e não o
nominal, pago pelo seu trabalho”.
Pois bem. Adam Sm ith defende que “a recompensa real do trabalho, a quanti­
dade real de bens necessários à vida e ao conforto que ela pode proporcionar ao
trabalhador, aumentaram no decurso deste século [a I a edição de Riqueza das
Nações é de 1776] talvez ainda em maior proporção que o seu preço monetário”.
Ele próprio pergunta: “devemos considerar esta melhoria das condições de
vida das classes mais baixas do povo como uma vantagem ou um inconveniente
para a sociedade?”
“A resposta parccc, à prim eira vista, absolutam ente óbvia - escreve S m ith 439.
O s criados, os trabalhadores agrícolas e os operários de diferentes tipos consti­
tuem dc longe a maioria em qualquer grande sociedade política. E o que
m elhora as condições dc vida da m aior parte nunca pode ser considerado p re­
judicial ao todo. N enhum a sociedade pode certamente ser florescente e feliz, se
a maior parte dos seus m em bros for pobre e desgraçada. A lem disso, não é mais
do que simples equidade que aqueles que alim entam , vestem c proporcionam
habitação a todo o conjunto dc pessoas, desfrutem de um a parcela do produto
do seu próprio trabalho que lhes baste para que andem eles próprios sofrivel­
mente bem alim entados, vestidos e abrigados".

438 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1 ,179.


439 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,196.
A v elã s N u n es - 4 1 1

Q uer dizer: quem cria a riqueza deve receber, pelo menos, uma parte dela para
prover sofrivelmente às suas necessidades básicas (em termos compatíveis Mcom
um mínimo de humanidade”, nas palavras de Smith).
Outras razões justificam ainda o favor com que Adam Smith vê o aumento dos
salários reais:440
“A pobreza, em bora constitua um entrave ao casam ento, nem sem pre o im pe­
de. E parece m esmo ser favorável à procriação. U m a mulher das Terras Altas,
meia m orta de fome, dá frequentem ente à luz mais de vinte filhos, enquanto
um a senhora fina regalada de mimos e muitas vezes incapaz de conceber um só,
c dois ou três deixam -na em geral exausta. A esterilidade, tão frequente entre
as mulheres elegantes, é muito rara entre as de posição inferior. O luxo, embora
talvez inflame a paixão do prazer, parece sempre enfraquecer c frequentem ente
destruir com pletam ente no belo sexo os poderes de procriação. M as a pobreza,
em bora não impeça a procriação, é extrem am ente desfavorável à criação dos
filhos. A tenra planta é produzida, mas, num solo tão frio, num clima tão
rigoroso, depressa murcha c morre. T em -se dito com frequência que não é
invulgar, nas Terras A ltas da Escócia, que um a mãe que tenha concebido vinte
filhos não chegue a ter dois vivos”.

Se a pobreza não permite aos trabalhadores a criação dos filhos, uma “remune­
ração liberal do trabalho”, ao contrário, incentiva a multiplicação dos trabalhadores:
“Todas as espécies animais se multiplicam naturalm ente em proporção dos seus
meios de subsistência e não podem , em caso algum , m ultiplicar-se para além
deles. M as, num a sociedade civilizada, é som ente entre as classes inferiores do
povo que a escassez dos meios de subsistência pode im por limites à multiplica­
ção da espécie hum ana, e só pode consegui-lo pela destruição de um a grande
parte das crianças a que os seus casamentos fecundos dão origem.

A rem uneração liberal do trabalho, perm itindo-lhes tratar m elhor os filhos e,


consequentemente, criar um maior núm ero deles, tende naturalm ente a alargar
c estender esses limites. Deve também notar-se que isto se verifica tão aproxima­
dam ente quanto possível na proporção requerida pela procura de trabalho".441

Contrariando o pensamento corrente, a este respeito, nos sécs. XVII e XVIII,


Smith defendia também que os salários elevados constituem um estímulo à acti­
vidade dos trabalhadores, tomando-os mais produtivos:442

440 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,196/197.


441 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,197/198.
442 Como salienta Carlos Laranjeiro, a fixação do salário natural depende, por esta ordem, de três factores: "Em
primeiro lugar, está suposta uma situação polrtico-institucional que tendencialmente reduz os salários ao nível
de subsistência; depois, introduz-se o segundo elemento que é o estado económico da sociedade; finalmente,
e só então, as flutuações demográficas funcionam como condicionantes equilibradoras relativamente a uma
4 1 2 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

“Tal como incentiva a propagação dos trabalhadores, a remuneração liberal do


trabalho faz aum entar tam bém a actividade da arraia-miúda. O s salários do
trabalho são o incentivo para a actividade que, como todas as restantes qualidades
humanas, aum enta em proporção ao estímulo que recebe. U m a subsistência
farta aumenta a força fisica do trabalhador, e a afável esperança de melhorar a sua
situação e de, talvez, acabar os seus dias na prosperidade e na abastança anim a-o
a utilizar o máximo dessa força. Assim, onde quer que os salários sejam altos,
acharemos sempre os trabalhadores mais activos, diligentes e expeditos do que
nos lugares onde eles são baixos; mais na Inglaterra, por exemplo, do que na
Escócia; nos arredores das grandes cidades do que nas zonas remotas dos campos.
É certo que alguns trabalhadores, quando conseguem ganhar em quatro dias o
bastante para sc manterem durante toda a semana, ficarão ociosos nos restantes
três dias. Isto não é, contudo, de forma alguma, o que acontccc com a maioria.
Pelo contrário, quando são pagos liberalmente à tarefa, os trabalhadores tendem
a trabalhar em excesso e a arruinar a saúde em poucos anos”.

“Tem -se afirmado - continua A dam Sm ith - que, nos anos fartos, os trabalha­
dores tendem geralmente mais para a ociosidade c, nos anos de carestia, se
revelam mais industriosos que habitualmente. Conclui-se, assim, que um a sub­
sistência farta reduza sua actividade, enquanto uma subsistência parca a aum en­
ta. Q ue um pouco mais dc abundância do que lhes é habitual pode tornar ociosos
alguns trabalhadores, é facto que não pode pôr-se em dúvida; mas que esse efeito
atinja a maioria, ou que os homens em geral trabalhem melhor quando estão mal
alimentados do que quando comem o suficiente, quando estão desanimados do
que quando estão dc boa disposição, quando estão doentes com frequência do
que quando estão habitualm ente dc boa saúde, não parccc m uito provável. O b ­
serva-se que os anos de fome são, cm geral, para a arraia-miúda, anos de doença
c m orte, que não podem deixar de dim inuir o produto do seu trabalho”.

Em síntese: “tal como é a consequência do aumento da riqueza, a remuneração


liberal do trabalho é também a causa do aumento da população. Lamentá-la é
lamentar o efeito e a causa necessários da máxima prosperidade da nação”. 443

3 .1 .5 . AS D IFE R E N Ç A S DE S A L Á R IO . SüA E X PLIC A Ç Ã O

No Cap. X do Livro I de Riqueza das Nações Smith defende o princípio segun­


do o qual, “no seu conjunto, as vantagens e as desvantagens das diferentes utiliza­
ções do trabalho (...), numa certa zona, devem, ou igualar-se perfeitamente, ou
tender constantemente para a igualdade”.

situação previamente despoletada por um outro factor (...). A lei da população não tende por si só a deslocar o
salário para o nível mínimo de subsistência."(cfr. C. LARANJEIRO, 90/91)
443 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,200-203.
A v elã s N u n e s - 4 1 3

Eis a explicação de Adam Smith:444


“N o seu conjunto, as vantagens e as desvantagens das diferentes utilizações do
trabalho c do capital, num a certa zona, devem, ou igualar-se perfeitam ente, ou
tender constantem ente para a igualdade. Se, num a determ inada região, h o u ­
vesse um a forma qualquer de utilização, visivelmente mais ou m enos vantajosa
que as restantes, tanta gente a procuraria, no primeiro caso, ou tanta gente dela
fugiria, no segundo, que as respectivas vantagens depressa viriam a igualar as
das outras utilizações. Isso verificar-se-ia, pelo menos, numa sociedade onde se
permitissse que as coisas seguissem o seu curso natural, onde houvesse liberda­
de perfeita e onde cada hom em fosse totalm ente livre de escolher a ocupação
que quisesse e de a m udar sempre que lhe aprouvesse. O seu próprio interesse
o levaria a procurar os empregos vantajosos e a evitar os desfavoráveis”.

Mas a verdade é que, por toda a Europa, os salários diferem profundamente, em


função das diferentes utilizações do trabalho. E isto por duas ordens de razões, observa
Adam Smith: 1) razões que derivam das circunstâncias diferentes que são inerentes às
várias utilizações do trabalho; 2) razões que derivam das políticas adoptadas.
No primeiro tipo de razões inclui Smith estas cinco: a) o carácter agradável ou
desagradável dos empregos em si mesmos; b) a facilidade e o pequeno dispêndio,
exigidos pela sua aprendizagem; c) o seu carácter de segurança ou insegurança; d)
a pequena ou grande confiança que será necessário depositar naqueles que os exer­
cem; e) a probabilidade ou improbabilidade de êxito por eles proporcionado.
No segundo tipo de razões analisa Adam Smith as que resultam de políticas
que: a) restringem a concorrência em alguns empregos; b) aumentam a concor­
rência em algumas actividades; c) impedem a livre circulação dos trabalhadores.

3 .2 . A T E O R IA DA R EN D A

A renda é, para Adam Smith, “o preço pago pela utilização da terra”. Este
preço (a renda da terra), a renda absoluta - explica Sm ith - “não varia só com a
respectiva fertilidade, sejam quais forem os produtos nela cultivados, mas também
com a sua localização, seja qual for a respectiva fertilidade”. Esta renda é exigida
pelos proprietários da terra - “mesmo pelas suas produções naturais”, observa
Smith - “logo que toda a terra de um país se torna propriedade privada.
A análise da renda em Riqueza das Nações parte, pois, de um determinado esta­
tuto de propriedade da terra, pressupõe um certo tipo de relações sociais de produ­
ção. A possibilidade de exigência de uma renda pela utilização da terra decorre de
uma situação de escassez natural de terra (a terra existe em quantidade limitada)

444 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,231/132.


4 1 4 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

na qual assenta o poder de monopólio dos seus titulares, o qual “se manifesta - como
nota Napoleoni 445 - pela manutenção dos preços dos produtos agrícolas a um
nível mais elevado do que o justificado pelo nível da produção agrícola”. Em
circunstâncias normais, estes receberão dos rendeiros tudo o que resta do valor do
produto da terra depois de pagos os salários e de retirados os “lucros médios
auferidos pelos capitais empregados nas explorações agrícolas vizinhas”.
Assim o exprime Adam Smith:
“A renda da terra, considerada como o preço pago pelo uso da terra, constitui
naturalm ente um preço de monopólio. N ão é por qualquer forma proporcional
àquilo que o proprietário possa ter despendido na respectiva beneficiação, ou ao
valor que se lhe torna possível exigir; é-o, sim, àquilo que o rendeiro tem
possibilidade dc pagar”. [Sublinhado nosso]

Com mais vagar ainda, Smith explica:


“A renda, considerada como o preço pago pela utilização da terra, atingirá
naturalm ente o valor mais alto que o rendeiro possa pagar, tendo em conta as
características específicas da terra em questão. A o ajustar os term os do arren­
dam ento, o proprietário faz o possível por não deixar ao rendeiro um a quota-
parte do produto superior à necessária para m anter o capital que perm ita a este
últim o fornecer as sementes, pagar aos trabalhadores e adquirir c m anter o
gado e os outros instrum entos do cultivo, juntando-lhe unicam ente os lucros
m édios do capital em pregado nas explorações agrícolas vizinhas. E sta é, evi­
dentem ente, a participação mínim a com que o rendeiro pode contentar-sc sem
que sofra prejuízos, c o proprietário raram ente fará tenção dc conccder-lhe
algo mais. O proprietário procurará reservar para si próprio a parte do produto
ou, o que é o mesmo, toda a parcela do seu preço que exceda tal quota-parte,
como renda da terra, a qual será, por conseguinte, a mais elevada que o rendeiro
pode pagar, dadas as particulares características da terra cm questão”.446

A renda da terra - esclarece ainda Smith - não é um juro ou um lucro. O que


bem se compreende, pois os proprietários exigem uma renda mesmo pelas produ­
ções naturais (i.é, os frutos naturais da terra que não exigem qualquer investimento).
“Logo que toda a terra dc um país se torna propriedade privada, (...) a madeira
da floresta, a erva do prado, e todos os frutos naturais da terra que, quando cra
com um , custavam ao trabalhador somente o incóm odo de os colher, passam,
m esmo para ele, a ter um preço adicional. Passa a ter de pagar a autorização dc
colhê-los; c terá de entregar ao proprietário um a parte daquilo que o seu
trabalho colhcu ou produziu”.447

445 Cír. C . N A PO LEO N I, O Valor..., c it , 2 1.


446 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,305-307.
447 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,151.
A v elã s N u n e s - 4 1 5

No Cap. XI do Livro I Adam Smith enuncia abertamente o problema e dá-lhe


a resposta nos termos seguintes:
“Pode pensar-se que, em m uitos casos, a renda da terra não é mais d o que um
ju ro ou lucro razoável, correspondente ao capital em pregado pelo proprietário
nas respectivas benfeitorias. N ão há dúvida de que, em parte, é esse, por vezes,
o caso; mas não poderá facilmente sê-lo mais do que cm parte. O proprietário
exige um a renda m esmo por terras sem quaisquer benfeitorias, e o suposto juro
ou lucro sobre o capital nelas despendido constitui, em geral, um acréscimo
àquela renda originária. A lém disso, tais benfeitorias nem sem pre são pagas
pelo capital do proprietário, sendo-o, às vezes, pelo do rendeiro. Q u an d o é
renovado o arrendam ento, porém, o proprietário exige norm alm ente o m esmo
aum ento de renda que exigiria caso todas elas lhe fossem devidas.

Exige, por vezes, renda por terras em que o hom em não tem qualquer possibi­
lidade de introduzir melhorias”.*4®

Como já vimos, no Cap. VI do Livro I da Riqueza das Nações a renda da terra é


considerada, na perspectiva da chamada teoria aditiva, como “uma terceira compo­
nente do preço da maior parte dos bens”.
Mas no Cap. XI Smith entra em contradição com o que se acaba de dizer, ao
realçar que a renda entra na composição do preço dos bens de uma forma diferente
da que se verifica com os salários e os lucros. “Tão diferente, de facto - comenta
Maurice Dobb 449 que faz duvidar da sua capacidade para desempenhar o papel
que lhe é atribuído como explicação parcial ou determinante do preço”.
Acompanhemos o que escreve Adam Smith:
“Deve observar-se que a renda entra na composição d o preço dos bens de uma
forma diferente daquela por que nele entram os salários e os lucros. Elevados
salários e lucros são causas de elevado preço; baixos salários e lucros são causas
de baixo preço; um a renda elevada ou baixa é sua consequência. É pelo facto de
terem de pagar-se altos ou baixos salários e lucros a fim de levar um d eterm i­
nado bem até ao mercado, que o respectivo preço é alto ou baixo. M as é devido
ao facto de esse preço ser alto ou baixo - bastante superior, só um pouco
superior, ou apenas o suficiente para pagar tais salários e lucros - que se torna
possível suprir um a elevada renda ou um a renda baixa, ou nenhum a renda”.450

Não ficam por aqui, porém, as hesitações e as contradições de Adam Smith.


Vale a pena anaüsar o trecho seguinte no qual introduzimos os sublinhados:451

448 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,306.


449 cfr. M. D O BB, Teorias..., c it , 73.
450 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,308.
451 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,630/631.
4 1 6 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

“A capitais iguais, corresponde sempre para o agricultor m aior quantidade de


trabalho produtivo d o que em qualquer outro sector dc actividade. N ão só os
trabalhadores seus assalariados, mas tam bém o respectivo gado de trabalho, são
trabalhadores produtivos. A lém disso, na agricultura, a natureza trabalha ju n ­
tamente com os homens e, em bora o seu trabalho não im plique qualquer dispên­
dio, o seu produto tem um valor, tal como o do mais bem pago dos operários. As
mais im portantes actividades agrícolas parecem dirigidas não tanto para au­
m entar (em bora tam bém o façam) como para orientar a fertilidade natural para
a produção das plantas mais vantajosas para o homem . U m cam po coberto de
urzes e silvas pode, muitas vezes, produzir tanto como a vinha mais bem
cultivada ou o m elhor cam po cerealífero. Frequentem ente, a sem enteira c o
cultivo contribuem mais para regular do que para activar a fertilidade natural e,
depois dc realizadas as tarefas agrícolas, grande parte do trabalho aindafica para
ser levada a cabopela natureza. Assim, os trabalhadores e o gado empregados na
agricultura não se lim itam a originar, como os operários da indústria, um valor
igual ao do seu consum o, ou do capital que os emprega, juntam ente com os
respectivos lucros, originando, neste caso, um valor muito superior. Além do
capital do rendeiro e dos seus lucros, originam regularmente a reprodução da renda
do proprietário. Essa renda pode ser considerada como o produto dospoderes da
natureza, cujo uso o proprietário cede ao rendeiro. É maior ou m enor consoan­
te a suposta extensão desses poderes da natureza, ou, por outras palavras, con­
soante a supostafertilidade, natural ou adquirida, da terra. É produto da natureza
aquilo que resta depois de deduzidas ou recompensadas todas as coisas que
podem considerar-se como produto do trabalho hum ano. R aram ente atinge
m enos de um quarto e muitas vezes eleva-se a mais de um terço do produto
total. E m caso algum , igual quantidade dc trabalho produtivo em pregado na
indústria é capaz dc originar tam anha reprodução dc valor. Nela a natureza
nada produz, todo o trabalho é do homem, e a reprodução há-dc sem pre ser
proporcional à força dos agentes que estão na sua origem. Deste m odo, o
capital em pregado na agricultura não só põe cm movim ento um a quantidade
dc trabalho produtivo superior à que idêntico m ontante dc capital poderia
atingir em pregado em qualquer indústria, mas tam bém , em proporção ã quan­
tidade dc trabalho produtivo que emprega, acrescenta um valor m uito mais
elevado ao produto anual da terra e do trabalho do país, à riqueza real e ao
rendim ento anual da terra c do trabalho do país, à riqueza real c ao rendim ento
dos habitantes deste. D c todas as formas como o capital pode ser empregado,
esta é, dc longe, a mais vantajosa para a sociedade”.

Embora Smith tenha contraditado expressamente a tese fisiocrática dc que só


a agricultura pode gerar um produto líquido (o que, cm certo sentido, faria do
trabalho agrícola o único trabalho produtivo), parece regressar aqui aos pontos de
vista dos fisiocratas, ao admitir a Natureza como um dos elementos da produtivi-
A v el A s N u n e s - 4 1 7

dadc do trabalho. A verdade, no entanto, é que Riqueza das Nações começa pela
demonstração de que a produtividade do trabalho depende da divisão do trabalho e
não de qualquer dom da natureza. Por outro lado, a teoria do valor smithiana
implica o abandono da noção fisiocrática de produtividadefísica, para se tomar em
consideração a produtividade em termos de valor.
No trecho acima transcrito Smith fala da fertilidade natural da terra, fala dos
poderes da natureza e do produto que resulta destes poderes, produto que tem um
valor, o qual se explica pela circunstância de que, “na agricultura, a natureza traba-
Ihajuntamente com os homens”, (sublinhado nosso) Ao contrário do que se veri­
fica na indústria (“nela a natureza nada produz, todo o trabalho é do homem”),
parece que Smith admite aqui que a maior produtividade do trabalho empregado
na agricultura se deve aos tais poderes da natureza (que fazem lembrar o dom da
natureza dos fisiocratas), que fariam com que a natureza também ‘trabalhasse’,
com que a natureza produzisse um produto que tem um valor.
O que, em última instância, Smith parece esquecer aqui é a defesa que ele
próprio faz - como vimos - de que o trabalho é a única origem do valor, de que só
o trabalho produtivo cria um excedente, de que o que conta - como causa do valor
- é o trabalho enquanto tal, o trabalho abstracto, e não qualquer tipo de trabalho
concreto, cujas características dependeriam do objecto sobre que ele incide.
Este ponto fundamental da teoria do valor-trabalho está necessariamente pressu­
posto, porém, no entendimento da renda como “dedução ao produto do trabalho
que se emprega na terra”, i.é, como “uma parte de quase todos os produtos que o
trabalhador nela pode criar ou colher”. Segundo este entendim ento (cfr. a teoria
dedutiva a que nos referimos anteriormente), todo o valor é criado pelo trabalho;
o trabalho (o trabalhoprodutivo) não só é capaz de reproduzir o seu próprio salário
como gera ainda um excedente que vai ser distribuído em rendas e lucros (as duas
deduções ao produto do trabalho referidas por Adam Smith).
Esta ideia transparece igualmente na referência de Adam Smith aos proprietá­
rios de terras como aqueles que “gostam de colher o que nunca semearam” e que
podem fazê-lo - i.é, que podem receber um “rendimento que não custa trabalho”,
que podem exigir, a título de renda, “uma parte daquilo que o seu trabalho [do
trabalhador que se ocupa da terra] colheu ou produziu” - porque disfrutam do
poder de monopólio acima caracterizado.452

452 Cfr. Riqueza das Nações, 1 ,151 e 475. Não é, de resto, lisonjeira a apreciação que Smith faz dos proprietários
de terras (ú/f. loc. c/f.):
"Eles constituem a única das três classes a quem o rendimento não custa trabalho nem cuidados, chegando até
eles como que de moto-próprio, independentemente de qualquer plano ou projecto da sua responsabilidade.
A indolência, que é a consequência natural da despreocupação da situação de que disfrutam, torna-os, dcma-
4 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

3.3. A T E O R I A D O LUCRO

Até Adam Smith, pode dizer-se que as condições históricas não permitiram
separar claramente o lucro de outras espécies de rendimento (salários, rendas e
juros), e muito menos tornaram possível a definição rigorosa do novo conceito de
lucro do capital e sua distinção das outras categorias de rendimento.453
É precisamente em Riqueza das Nações que o lucro do capital aparece identifica­
do como uma nova categoria geral de rendimento de que beneficiam todos os que
utilizam a riqueza acumulada para contratar, como assalariados, trabalhadores pro­
dutivos. Esta nova categoria distingue-se da renda da terra, dos salários dos traba­
lhadores e do juro cobrado pelo empréstimo de dinheiro.
“O produto de quase todo o restante trabalho está sujeito a um a dedução
[sem elhante à representada pela renda da terra], devida ao lucro. E m todas as
artes c ofícios, a m aior parte dos trabalhadores necessita dc um patrão que lhe
adiante as m atérias-prim as para o seu trabalho, bem como os respectivos salá­
rios e m anutenção até que ele se ache terminado. O patrão com participa do
produto do trabalho, ou do valor que ele acrescenta às matérias-primas sobre as
quais se aplica; e nessa comparticipação consiste o lucro”.

Vimos atrás em que consiste, segundo Adam Smith, a renda da terra. Mas o
lucro do rendeiro capitalista (patrão que emprega trabalhadores produtivos assalari­
ados) não se confunde com a renda da terra:4S4
“É raro acontecer que a pessoa que cultiva a terra tenha com que m anter-se até
fazer as colheitas. É geralmente um patrão, o rendeiro que o emprega, que, do
seu capital, lhe adianta o sustento, e que não teria qualquer interesse cm empregá-
lo se lhe não coubesse um a parcela do produto do trabalho, ou seja, se o respectivo
capital lhe não fosse restituído com um lucro. Este lucro corresponde a um a
segunda dedução ao produto do trabalho empregado na terra”.

M as Adam Smith distingue também com clareza o lucro do capital do salário


correspondente ao trabalho de direcção e inspecção que, muitas vezes, pelo menos nas
pequenas e médias empresas, é exercido pelo próprio empresário capitalista.
“Pode talvez pensar-se - escreve S m ith (Riqueza das Nações, 1 , 149) - que os
lucros do capital mais não são que um outro nome dado ao salário atribuído a
um tipo de trabalho especial, o trabalho dc inspecção c direcção. São, todavia,
com pletam ente diferentes, regulados por princípios absolutamente distintos, c
sem qualquer relação com a quantidade, a dificuldade ou o engenho deste

siadas vezes, nào só ignorantes, mas incapazes daquela aplicação do espírito necessária para prever e com­
preender as consequências de qualquer regulamento público”.
453 Cfr. R. M EEK, Economia e ideologia, cit.,33 ss.
454 Cír. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,175.
A v el A s N u n e s - 4 1 9

suposto trabalho dc inspecção e direcção. São unicam ente determ inados pelo
valor do capital empregado, e são maiores ou m enores consoante o volume
desse capital.

(...) N as grandes fábricas - continua o nosso autor - quase todo o trabalho


desse género [o trabalho de inspecção e direcção] é, muitas vezes, entregue a
um em pregado superior. O salário deste é que, na verdade, exprim e o valor
desse trabalho de inspecção e direcção. Em bora, ao fixá-lo, se tom e norm al­
m ente em consideração, não só o seu trabalho e perícia, mas tam bém a confi­
ança que nele se deposita, esse salário não apresenta um a relação fixa com o
capital cuja administração ele tem a seu cargo; e o proprietário d o capital,
embora fique assim livre dc quase todo o trabalho, não deixa, por isso, dc contar
com um lucro proporcional ao respectivo capital. O s lucros constituem , p o r­
tanto, um a com ponente do preço dos bens completam ente distinta dos salários
do trabalho e regulada por princípios absolutam ente diferentes”.455

Entre estes princípios diferentes deve referir-se que os “lucros do patrão” (“os
lucros do empresário do trabalho, que arrisca o seu capital nesta aventura”) se
relacionam com “o volume de matérias-primas e salários por ele adiantados”. Isto
é: a taxa de lucro mede-se em função do montante do capital adiantado para o
desenvolvimento da actividade produtiva (para o pagamento dos salários, das ma­
térias-primas e dos restantes meios de produção).
Finalmente, Smith distingue o lucro do capital do juro que auferem os que
emprestam dinheiro.456
Diferentemente do lucro (“rendimento obtido do capital por aquele que o ad­
ministra ou emprega”), o juro (ou “usura do dinheiro”) é caracterizado como o
rendimento “que deriva do capital que a própria pessoa não emprega, mas empres­
ta a outros”. O juro - continua Adam S m ith -
“é a compensação que o mutuário paga ao m utuante pelo lucro que ele lhe dá
possibilidade dc obter pela utilização do seu dinheiro. Parte do lucro pertence
naturalm ente ao mutuário, que corre o risco e tem o trabalho de o empregar, c
parte ao m utuante, que lhe proporciona a oportunidade dc obter esse lucro. O
juro do dinheiro é sempre um rendim ento derivado que, se não for pago a partir
do lucro obtido pela utilização desse dinheiro, terá de sé-lo com base em qualquer
outra fonte de receita, a menos que, p or acaso, o mutuário seja um esbanjador
que contraia um a segunda dívida a fim dc pagar os juros da primeira”.457

455 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,149/150.


456 Para maiores desenvolvimentos, cfr. C. LARANJEIRO, 98ss.
457 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,156.
4 2 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

Os capitalistas (ospatrões ou empresários, na terminologia smithiana) que organi­


zam a actividade produtiva (contratando trabalhadores, adiantando-lhes a sua sub­
sistência e fomecendo-lhes todos os elementos indispensáveis à produção), uma vez
pagos os salários dos trabalhadores produtivos, apropriam-se directa e imediata­
mente do excedente produzido por estes (“aquilo que esse trabalho acrescenta ao
valor das matérias-primas”, para além dos respectivos salários). Este excedente tor­
nar-se-ia integralmente lucro do patrão se este não tivesse que pagar uma parte a
título de renda da terra. Se o patrão for um rendeiro agrícola, uma parte do excedente
tem de ser entregue ao proprietário da terra, ficando o restante como lucro do patrão
(lucro do capital): “toda a parcela do preço que não corresponda a renda ou a salário
- escreve Adam Smith - vai necessariamente constituir o lucro de alguém”.
Se o capitalista auferir um lucro, uma parte dele vai ser paga ao mutuante que
lhe emprestou o dinheiro “que lhe proporcionou a oportunidade de obter esse
lucro”. Neste sentido é que o lucro é uma das “fontes originárias” de rendimento,
enquanto “o juro do dinheiro é sempre um rendimento derivado”.
A natureza do lucro como parte do “valor que os operários acrescentam às maté­
rias-primas” - da qual se apropriam os titulares do capital que, pelo facto de o serem,
podem “assalariar indivíduos industriosos” - ressalta com toda a clareza deste trecho:
“Logo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos de determinadas pesso­
as, algumas delas utilizá-la-ão naturalmente para assalariar indivíduos industrio­
sos a quem fornecerão matérias-primas e a subsistência, a fim dc obterem um
lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao
valor das matérias-primas. A o trocar-se o produto acabado por dinheiro, por
trabalho ou por outros bens, numa quantidade superior à que seria necessária para
pagar o preço das matérias-primas e os salários dos trabalhadores, parte dela tem
dc constituir os lucros do empresário do trabalho, que arrisca o seu capital nesta
aventura. O valor que os trabalhadores acrescentam às matérias-primas consisti­
rá, portanto, neste caso, cm duas partes, uma das quais constituída pelos respec­
tivos salários, a outra pelos lucros do patrão, relativos ao volume dc matérias-
primas e salários por ele adiantados. Ele não teria qualquer interesse cm empregá-
los se não esperasse obter, com a venda do seu trabalho, um pouco mais do que o
necessário para reconstituir a sua riqueza inicial; e não teria qualquer interesse em
empregar um maior volume dc bens, dc preferência a um volume m enor se os
lucros que aufere não fossem proporcionais ao volume de capital empregado”.458

Aqui surge expressa a concepção do lucro como dedução ao produto do trabalho


(ao “produto do trabalho empregado na terra, como ao produto de quase todo o

458 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1 ,148/149.


A v e l As N u n e s - 4 2 1

restante trabalho”, salienta Adam Smith): wO patrão comparticipa do produto do


trabalho, ou do valor que ele acrescenta às matérias-primas sobre as quais se
aplica; e nessa comparticipação consiste o lucro”.
Este entendim ento do lucro significa que o capital que proporciona um lucro
ao seu titular (i.é, àquele “que o administra ou emprega”, nas palavras de Smith) é
um capital que pressupõe uma relação social entre aqueles que têm riqueza acumulada
em suas mãos e aqueles indivíduos industriosos cujo único património consiste na sua
força e habilidade de mãos. Os primeiros (os capitalistas) podem, assim, dispor dos
meios de produção que vão adiantar aos segundos, contratados por eles como
trabalhadores assalariados, “a fim de obterem um lucro com a venda do seu traba­
lho, ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor das matérias-primas”.
Este entendimento do lucro permite também a Adam Smith uma outra con­
clusão importante: as variações dos lucros do capital dependem dos mesmos facto­
res que influenciam as variações dos salários, embora as variações dc lucros e
salários sejam em sentido inverso. Nas palavras de Sm ith:459
“A s subidas e descidas dos lucros do capital dependem das m esmas causas que
determ inam os aumentos e as diminuições dos salários do trabalho: o estado de
prosperidade ou decadência da riqueza da sociedade; mas essas causas afectam
uns e outros de m aneira m uito diferente.

O aum ento dc volume de capital acumulado, que faz subir os salários, tende a
fazer baixar os lucros. Q uando os capitais de m uitos ricos mercadores são
investidos na m esm a actividade, a concorrência que m utuam ente se fazem
tende naturalm ente a reduzir os lucros de cada um; e, quando se verifica um tal
aum ento de capital em todas as actividades levadas a cabo num a sociedade, essa
m esm a concorrência deverá produzir idêntico efeito em todas elas”.

Esta mesma ideia surge em outros passos de Riqueza das Nações. Neste, por
exemplo (1,215/216):
“N um a sociedade próspera, as pessoas que têm grandes volumes dc capital para
empregar não podem muitas vezes obter o número dc trabalhadores de que
necessitam, o que as leva a concorrer umas com as outras, procurando conseguir
tantos quanto possível, e elevando assim os salários do trabalho, ao mesmo
tem po que reduzem os lucros do capital. N as partes distantes do país, não há
muitas vezes capital suficiente para empregar toda a gente, o que leva os trabalha­
dores a competirem uns com os outros no sentido de obter emprego, baixando
assim os salários do trabalho e fazendo com que se elevem os lucros d o capital”.

459 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 211.


4 2 2 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

E neste outro: 460


“A redução do volume dc capital da sociedade, ou seja, dos fundos destinados à
m anutenção da sua actividade, tal como leva a que baixem os salários do
trabalho, assim faz com que subam os lucros do capital. (...) A redução dos
salários do trabalho perm ite que os proprietários do capital que se m antém na
sociedade possam colocar os seus bens no mercado com u m custo inferior ao
anterior; c, como o capital em pregado no aprovisionam ento do m ercado é
m enor do que antes, eles podem vender os seus produtos a um preço superior.
O s bens custam -lhe m enos e são vendidos mais caros”.

D o que fica dito poderá concluir-se também a compreensão (que Marx desen­
volveria e esclareceria) de que a dinâmica do processo de produção capitalista
assenta na obtenção de lucros. Como salienta Ronald Meek, “em Riqueza das Nações
a tendência para maximizar o lucro e para acumular capital apresenta-se como o
requisito essencial e a causa básica do crescimento da riqueza”.461
Nas economias pré-capitalistas, a produção destinava-se à satisfação de neces­
sidades: ou pelo consumo dos próprios bens que cada um produz, ou por troca de
uma parte destes bens por outros que esse indivíduo não produz, mas de que
igualmente carece. A troca (directa ou monetária - servindo a moeda como simples
intermediário nas trocas) visa apenas proporcionar a cada interveniente uma satisfa­
ção mais adequada das necessidades, mediante a obtenção de um valor de uso
maior do que aquele que se dá.
Na economia capitalista, o processo assenta na iniciativa do capitalista: quem
dispõe de dinheiro acumulado vai utilizá-lo na compra de força de trabalho e de
meios de produção, com vista à produção de mercadorias que destina à venda no
mercado, para obter mais dinheiro do que aquele que utilizara. Já não se pretende
obter, por troca com os bens produzidos, outros bens diferentes com valor de uso
diferente, mas sim a expansão quantitativa do valor de troca. A obtenção de mais
dinheiro (Marx falará de Mehrwert: mais valor ou mais-valia), é, pois, o objectivo
directo e o incentivo determinante da produção nos quadros do capitalismo.

4. As C A U SA S D A R IQ U E Z A D AS N A Ç Õ E S

O objectivo último de The Wealth ofNations é, precisamente, o de averiguar


quais as causas da riqueza das nações. Na esteira dos fisiocratas, Smith considera
riqueza o “suprimento anual” de bens materiais (de produção ou de consumo) que
uma nação pode produzir (“todos os bens necessários à vida e ao conforto”).

460 Cír. Riqueza das Naçòes, ed. cit., 1,215-222.


461 Cfr. R. M EEK, Economia e Ideologia, cit., 35.
A v el A s N u n e s - 4 2 3

A seu ver, a causa principal da riqueza das nações reside no trabalho produtivo.
Assim começa a introdução do famoso livro de Smith:
“O trabalho anual de um a nação é o fundo de que provém originariam ente
todos os bens necessários à vida c ao conforto que a nação anualm ente conso­
me, e que consistem sem pre ou em produtos im ediatos desse trabalho, ou em
bens adquiridos às outras nações em troca deles".

Noutro passo, Smith escreve que, “se exceptuarmos alguns produtos espontâ­
neos da terra, a produção anual total é, com efeito, devida ao trabalho produtivo”.
O bem-estar de uma nação (“a maior ou menor proporção” em que se apresente
a produção “relativamente ao número daqueles que vão consumi-la”) é regulado -
escreve Adam Smith - por duas circunstâncias diferentes:
“em prim eiro lugar, pela perícia, destreza e bom senso com que o seu trabalho
é geralm ente executado; e, em segundo lugar, pela proporção entre o núm ero
dos que estão empregados em trabalho útil e o daqueles que o não estão. Sejam
quais forem o solo, o clima c a extensão do território de um a nação, a abundân­
cia ou a escassez do seu suprim ento anual dependerão sempre, cm cada caso
particular, dessas duas condições.” (Riqueza das Nações, 1 ,69/70)

O autor logo acrescenta, porém, que “a abundância ou escassez desse supri­


mento parece depender mais da primeira destas circunstâncias que da segunda”:
“N as nações selvagens dc caçadores e pescadores, todos os indivíduos capazes
de trabalhar estão m ais ou m enos em pregados cm trabalho útil c procuram
suprir o m elhor que podem às suas necessidades, ou às daqueles m em bros da
sua fam ília ou tribo que são dem asiado velhos, ou dem asiado novos, ou se
encontram d oentes dem ais para ir caçar ou pescar.Tais nações são, contudo,
tão m iseravelm ente pobres que, por m era carência, se vêem frequentem ente
reduzidas, ou, pelo menos, se julgam reduzidas, à necessidade dc, p o r vezes,
elim inar directam ente c, noutros casos, de abandonar as crianças, os velhos c
os que sofrem dc doenças prolongadas, para m orrerem de fome ou serem
devorados pelos animais ferozes. Pelo contrário, nas nações civilizadas e prós­
peras, em bora um grande núm ero dc pessoas não exerça qualquer actividade
e m uitas delas consum a o p roduto dc dez vezes, frequentem ente de cem
vezes, mais trabalho do que aquelas que as exercem, ainda assim o produto dc
todo o trabalho da sociedade é tão grande que, em geral, todas se encontram
abundantem ente providas, c um trabalhador, ainda que da classe mais baixa e
m ais pobre, se for frugal e industrioso, poderá usufruir dc um a q uota-parte
m aior dc bens necessários à vida e ao conforto do que qualquer selvagem .”
(R iqueza das Nações, I, 70/71)
4 2 4 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

4.1. A D IV ISÃ O D O TRA BA LH O

Adam Smith interroga-se em seguida sobre os factores de que dependem a


“perícia, destreza e bom senso”, bem como “as capacidades produtivas do trabalho”
(a produtividade do trabalho).
Eis a resposta: “O maior acréscimo dos poderes produtivos do trabalho e gran­
de parte da perícia, destreza c bom senso com que ele é em grande parte dirigido,
ou aplicado, parecem ter sido os efeitos da divisão do trabalho”, uma vez que “a
divisão do trabalho ocasiona em todas as artes, na medida em que é possível intro­
duzi-la, um acréscimo proporcional dos poderes produtivos do trabalho”.462
E Smith explica porquê:463
“O grande aum ento da quantidade de trabalho que, cm consequência da divi­
são do trabalho, o m esmo número dc pessoas é capaz de executar, deve-se a três
circunstâncias: primeira, o aum ento de destreza de cada um dos trabalhadores;
segunda, a possibilidade de poupar o tem po que habitualm ente se perdia ao
passar dc um a tarefa a outra; c,finalmente, a invenção de um grande núm ero dc
máquinas que facilitam e reduzem o trabalho, e tornam um só hom em capaz
de realizar o trabalho dc m uitos”.

M as a divisão do trabalho é, para Smith, fruto de um dos “princípios originais


da natureza humana”, a propensãopara a troca, comum a todos os homens. E, sendo
assim, i.é,
“sendo a capacidade de troca que dá origem à divisão do trabalho, a extensão
desta deve ser sempre lim itada pela extensão daquela capacidade ou, por outras
palavras, pela dim ensão do mercado. Q uando o mercado é m uito reduzido -
conclui A . S m ith - ninguém encontra incentivo para se dedicar inteiram ente a
um a única actividade, um a vez que não terá possibilidade dc trocar toda aquela
parte da produção do seu próprio trabalho que cxccde o seu consum o, pelas
parcelas da produção do trabalho dc outros hom ens de que ele necessita”.

A extensão do mercado constitui, portanto, para Smith, um limite à especializa-


ção, e, por isso mesmo, um limite ao progresso económico, de que a produtividade do
trabalho é uma das condições.

462 É muito conhecido o exemplo do fabrico de alfi netes relatado na Riqueza das Nações. É um exemplo extraído
da actividade industrial. Smith observa, aliás, que, "por natureza, a agricultura nào admite tantas subdivisfies do
trabalho como a indústria, nem uma completa separaçáo entre as diferentes tarefas." (Cfr. Riqueza das Nações,
cd. c it, 1,77-81).
Antes de Smith, já os enciclopedistas franceses se tinham apercebido da importância da divisáo do trabalho
como factor dc elevação da produtividade nas manufacturas. Cfr. C. FURTADO, cit., 40.
463 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,83.
A v elà s N u n es - 4 2 5

Neste contexto é que podemos inserir o relevo que ganha, na obra de Adam
Smith, o papel atribuído ao comércio externo e à especialização à escala internacional,
antecipando o optimismo que Ricardo associará, em moldes teóricos mais elabora­
dos, à prática do livre comércio internacional.
Sigamos de novo Adam Smith:464
“Sejam quais forem os locais entre os quais o comércio externo se exerça, todos
retiram dele duas vantagens distintas. Faz sair a parte exccdentária da produção da
terra c trabalho, para a qual não existe procura, e, em troca, traz ao país algo para o
qual existe procura. Confere um valor ao que é supérfluo, trocando-o por qualquer
outra coisa, que pode vir a satisfazer parte das suas necessidades e aumentar a sua
satisfação. Devido a ele, a insuficiência do mercado interno não impede que a
divisão do trabalho atinja em qualquer ramo particular da actividade ou manufactura
a maior perfeição. A brindo um mercado mais amplo para toda e qualquer produ­
ção de trabalho que exceda o consumo interno, vai encorajá-las a melhorar as suas
forças produtivas e a aumentar a sua produção anual até ao máximo e, assim, a
aumentar o crédito real e a riqueza da sociedade. Estes são os grandes e importantes
serviços que o comércio externo vem prestando a todos os países onde se efectua”.

Mais à frente, pode ler-se ainda:


“É um a máxima de qualquer chefe de família prudente nunca ten tar fazer cm
casa o que lhe sairá assim mais caro do que com prando.

(...) O que se considera prudente na conduta de um a família, dificilm ente se


poderá considerar como insensato na conduta de um grande reino. Se um país
estrangeiro nos pode fornecer um a mercadoria mais barata do que se fosse feita
por nós, é m elhor comprá-la a esse país com parte da produção da nossa própria
indústria, que assim é utilizada de maneira a obter um a vantagem”.

O comércio externo pode considerar-se, pois, como um outro factor do crescimen­


to económico, na medida em que, ampliando o mercado, permite que se leve mais
longe a divisão do trabalho (a especialização de cada país deveria basear-se na vanta­
gem absoluta na produção de determinado produto) e que se colham vantagens acres­
cidas de produtividade resultantes do aumento do capital e do progresso técnico.
4.2. A A C U M U L A Ç Ã O D O CA PIT AL

O utro factor do progresso económico é, na análise smithiana, a acumulação do


capital.465 O capital surge como o principal elemento de que depende o aumento

464 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,9 9 ,745 e 759.
465 Ronald Meek põe em destaque a ideia de que "a intensa acentuação da função económica do lucro do capital
e da acum ulação do capital é o que mais decisivamente dá unidade e força á estrutura da Riqueza das
Nações". (Cfr. R. M EEK, Economia e Ideologia, cit., 36).
4 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a

da população e o aumento do número de trabalhadores produtivos utilizados, bem


como o incremento da produtividade do trabalho (equipamentos mais evoluídos e
mais ampla divisão do trabalho).
Nas sociedades primitivas em que não existe a divisão do trabalho, a acumula­
ção do capital não é necessária. Mas nestas sociedades não pode haver crescimento
económico. Este pressupõe a acumulação do capital, a qual torna possível a divi­
são do trabalho, que, por sua vez, só pode progredir na medida em que aumente a
acumulação do capital.
Assim se exprime Adam Smith:466
“Naquele estádio primitivo da sociedade em que não existe divisão d o trabalho,
em que raram ente se efectuam trocas, e em que cada hom em fornece a si
m esmo tudo aquilo dc que precisa, não se torna necessário acumular ou arm a­
zenar previam ente quaisquer bens com o fim de perm itir a realização da
actividade da sociedade. T odo o hom em procura suprir pelo seu próprio traba­
lho as suas necessidades ocasionais, à m edida que elas ocorrem. Q uan d o tem
fome, vai caçar para a floresta; quando o vestuário que usa está gasto, veste-se
com a pele do prim eiro animal de grande porte que consiga m atar; e quando a
cabana que habita começa a dar sinais dc ruína, trata dc concertá-la o m elhor
que pode com as árvores e as ervas mais próximas.

M as, um a vez que tenha sido profundamente introduzida a divisão do trabalho,


o produto do trabalho de um homem apenas poderá suprir um a parte muito
reduzida das suas economias ocasionais. Dc longe a maior parte destas terá de ser
suprida pelo produto do trabalho de outros homens, que o primeiro irá adquirir
cm troca do produto ou, o que é o mesmo, do preço do produto do seu próprio
trabalho. M as tal aquisição apenas poderá ser feita a partir do m om ento em que
o produto do seu próprio trabalho esteja, não só terminado, mas tam bém vendi­
do. Haverá, por conseguinte, que armazenar cm qualquer parte um conjunto de
diferentes espécies de bens, suficiente para o m anter c lhe fornecer as matérias-
primas e os instrum entos necessários ao seu próprio trabalho, pelo menos até ao
m om ento cm que aquelas duas circunstâncias se verifiquem.

(...)Tal com o a acumulação dc capital deve, pela própria natureza das coisas, ser
anterior à divisão do trabalho, assim tam bém o trabalho só poderá subdividir-
se cada vez mais na m edida cm que se tenha previamente acum ulado mais e
mais capital”.

466 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,493-495.


A v elAs N u n e s - 4 2 7

Em conclusão: “Sendo a acumulação de capital uma condição prévia necessá­


ria para a consecução desse grande progresso da capacidade produtiva do trabalho,
tal acumulação tende naturalmente a conduzir a esse progresso”.
Em que consiste a acumulação do capital? D i-lo Smith:467
“O capital de todos os indivíduos que constituem um a nação aum enta, tal
com o o de um indivíduo, pela sua contínua acumulação, conseguida ao acres­
centar ao capital existente toda a parte do rendim ento que é poupada. Deverá,
portanto, crcsccr tan to mais rapidam ente quanto m aior for o rendim ento
proporcionado pelo seu em prego a todos os habitantes do país, que, assim,
ficarão habilitados a realizar a máxima poupança”.

Mas isto significa que Adam Smith considera que o crescimento é um proces­
so self-reinforcing. como o aumento da riqueza produzida favorece os lucros, dele
resulta o aumento da parte do rendimento que é poupada e que vai ser acrescenta­
da ao capital existente; o aumento da acumulação do capital vai, por sua vez,
aumentar a procura de trabalhadores produtivos, cuja actividade vai traduzir-se
em novo aumento de riqueza. E assim por diante. Esta confiança no processo de
crescimento auto-sustentado é um dos afloramentos do optimismo que ressalta de
toda a obra de Adam Smith.
É precisamente esta capacidade de acumulação que distingue a sociedade capi­
talista da sociedade feudal. Nesta, o fim da produção é, em larga medida, o de
satisfazer o consumo senhorial, o que significa que o excedente se destina quase
exclusivamente à manutenção de trabalhadores improdutivos. As economias fica­
vam, assim, condenadas a uma situação estacionária. Na sociedade capitalista, os
capitalistas, enquanto classe social, não são considerados por Sm ith como consu­
midores puros. Uma parte do excedente que eles recebem a título de lucro vai ser
convertida em capital adicional, isto é, vai ser utilizada para empregar um maior
número de trabalhadores produtivos:
“L ogo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos dc determ inadas
pessoas, algum as delas utilizá-la-ão naturalm ente para assalariar indivíduos
industriosos a quem fornecerão m atérias-prim as c a subsistência, a fim dc
obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse
trabalho acrescenta ao valor das m atérias-primas”.468

467 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,635.


468 Cfr. Riqueza das Nações, cd. cit., 1,148. Cfr. também o que Smith escreve nas págs. 584/585 do Vol. I. A maior
parte dos trabalhadores necessita que alguém 'lh e adiante as matérias-primas para o seu trabalho, bem como
os respectivos salários e manutenção até que ele se ache termi nado* (Cir.lbidem, 175). É esta, segundo Smith,
a funçào do patrão ("masier"), do empresário ("entrepreneur"), i.é, do capitalista.
4 2 8 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l It ic a

M as como explica Sm ith a importância da acumulação do capital - que ele


estuda no Cap. III do Livro II de Riqueza das Nações —como factor do cresci­
mento económico?
Vejamos.
A - O que é necessário para aum entar o núm ero de trabalhadores produti­
vos utilizados?
“É o capital, empregado com vista à obtenção do lucro, que põe em movi­
mento a maior parte do trabalho útil em todas as sociedades” - esta a resposta de
Adam Sm ith.469
“Não há qualquer outra forma de aumentar o produto anual da terra e do
trabalho de uma nação - escreve ele - que não seja pelo aumento do número dos
trabalhadores produtivos ou da capacidade produtiva dos trabalhadores já antes
empregados. É evidente que o número dos trabalhadores produtivos só pode au­
mentar significativamente em consequência de um aumento do capital, ou seja, de
fundos destinados à sua manutenção”.470
B- O que é necessário para que aumente a produtividade?
“Quanto à capacidade produtiva do mesmo número de trabalhadores - observa
Smith ela só poderá aumentar em consequência ou de um acréscimo do número
e melhoria das máquinas e instrumentos que facilitam e reduzem o respectivo
trabalho, ou de uma divisão e distribuição do emprego mais adequada”.
Daí a sua conclusão: “em qualquer dos casos torna-se quase sempre necessário
um capital adicional. E somente graças a esse capital adicional que o empresário
de qualquer oficina pode fornecer aos seus operários maquinaria mais aperfeiçoa­
da, ou pode distribuir o trabalho entre eles de forma mais adequada”.
Mais detidamente, Adam Smith explica:471
“A quantidade de matérias-primas que pode ser trabalhada pelo mesmo núm e­
ro de pessoas aum enta num a grande proporção, à m edida que o trabalho se
subdivide cada vez mais; e, porque as tarefas executadas por cada operário se
reduzem gradualm ente a um maior grau de simplicidade, torna-se possível a

469 Cfr. Riqueza das Nações, ed. ciL, 1,476. Noutro ponto da Riqueza das Nações (1,634), Adam Smith observa que
'quando o capital de um país nâo for suficiente para atender àquelas três finalidades (manter o cultivo, as
manufacturas e os transportes!, quanto maior for a parte dele empregada na agricultura, tanto maior será a
quantidade de trabalho produtivo que ele movimentará dentro do país, e o mesmo acontecerá com o valor
acrescentado pdo emprego desse capital ao produto da terra e do trabalho da sociedade em cada ano. A seguir
à agricultura, é o capital empregado nas indústrias que movimenta a maior quantidade de trabalho produtivo
e acrescenta o maior valor ao produto anual. O que é empregado no comércio de exportação é o que, dos trés,
produz o menor efeito'. Perpassa aqui um certo apego à valorização fisiocrática da agricultura.
470 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,600.
471 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,494/49S e 600.
A v elAs N u n e s - 4 2 9

invenção dc um a variedade dc novas máquinas, capazes de facilitar c encurtar


tais tarefas. Por conseguinte, é necessário, à m edida que progride a divisão do
trabalho, e a fim dc proporcionar emprego constante a igual núm ero dc traba­
lhadores, arm azenar um conjunto de provisões igual ao que é utilizado numa
situação de maior atraso, mas um conjunto de m atérias-prim as e ferram entas
superior ao então necessário. C ontudo, o núm ero de trabalhadores cm cada
ram o dc actividade aum enta geralmente com a divisão do trabalho nesse ramo,
ou antes, é o aum ento do núm ero de trabalhadores que lhes perm ite classifica-
rem -se e subdividirem-se dessa forma.

(...) A pessoa que emprega o seu capital na m anutenção da força dc trabalho


com certeza deseja em pregá-lo por forma a produzir a m aior quantidade pos­
sível de trabalho. Procura, portanto, conseguir a mais adequada distribuição de
trabalho entre os seus operários c fornecer-lhes as m elhores máquinas que
tenha possibilidade de inventar ou de adquirir. As suas possibilidades em qual­
quer destes campos vão geralm ente tan to mais longe quanto m aior for o
capital de que dispuser, ou o núm ero de pessoas que puder empregar. Deste
m odo, não só o volume dc actividade desenvolvida num país cresce com o
acréscimo d o capital que a emprega, como, cm consequência desse m esmo
aum ento, idêntico volume de actividade passa a produzir um a quantidade dc
trabalho m uito superior”.

C - E quais os factores de que depende a acumulação de capitais?


“Os capitais são aumentados pela parcimónia e são reduzidos pela prodigalida­
de e mau emprego”, diz Smith. Por isso ele entende que “todo o pródigo surge
como um inimigo público e todo o homem frugal como um benfeitor público”.
Acompanhemos, porém, mais de perto, o raciocínio de Smith:472
“T oda a parte do rendim ento que um a pessoa poupa acrcscenta-a ao seu capi­
tal, em pregando-a, em seguida, na m anutenção dc um núm ero adicional dc
trabalhadores produtivos, ou perm itindo que um a outra pessoa o faça, empres-
tando-lhe essa parte do seu capital contra um juro, ou seja, um a parcela dos
lucros. Tal com o o capital dc um indivíduo apenas pode ser aum entado pelo
que ele poupar do seu rendim ento ou ganho anual, assim tam bém o capital dc
um a sociedade, que não é mais do que o conjunto do de todos os indivíduos que
a com põcm , apenas dessa forma pode scr acrescido.

É a parcimónia, e não o nível de actividade, que é a causa im ediata do aum ento


dc capital. M as é a actividade que fornece aquilo que a parcim ónia acumula.
N o entanto, por mais que a actividade fornecesse capital, se a parcimónia o não
poupasse e acumulasse, ele nunca cresceria.

472 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,592.


4 3 0 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a

A parcim ónia, fazendo aum entar o fundo destinado à m anutenção de traba­


lhadores produtivos, tende a aum entar o núm ero de indivíduos cujo trabalho
acrescenta valor ao objecto a que é aplicado. Tende, por consequência, a au­
m entar o valor de troca do produto anual da terra e do trabalho do país.
A um enta o nível de actividade capaz de fazer aum entar o valor desse produto”.

Já se vê como Adam Smith compreendeu a importância da poupança e da acu­


mulação do capital. E compreende-se o seu optimismo acerca da dinâmica das soci­
edades capitalistas no sentido do progressive state se recordarmos que, para ele, o
princípio que conduz à prodigalidade M é a paixão pela fruição presente que, por
vezes, embora violenta e difícil de dominar, é, em geral, apenas momentânea e
ocasional”, enquanto que “o princípio que leva o indivíduo a poupar é o desejo de
melhorar a sua situação, desejo que, embora normalmente calmo e controlado, nos
acompanha desde o berço e não nos abandona até ao túmulo”. O quadro fica
completo se acrescentarmos que, segundo Smith, “o esforço natural de cada indi­
víduo para melhorar a sua própria condição, quando lhe é permitido exercê-lo
com liberdade e segurança, é um princípio tão poderoso que só por si e sem
qualquer outro contributo é não só capaz de criar a riqueza e prosperidade de uma
sociedade como ainda de vencer um grande número de obstáculos com que a
insensatez das leis humanas tantas vezes cumula as suas acções”.
Adam Smith deixa claro, no entanto, que confia na parcimónia e na prudência
dos indivíduos privados, mas atribui ao estado os defeitos da prodigalidade e do
mau emprego dos capitais. Rejeita, pois, qualquer papel activo do estado no proces­
so de acumulação do capital, designadamente cobrando receitas através de impos­
tos sobre os rendimentos privados, com o objectivo de fazer despesas que se
substituam às despesas dos particulares.
Assim se exprime Adam Smith:473
“As grandes nações não são jam ais arruinadas pela prodigalidade c o mau
em prego dos capitais privados, embora às vezes o sejam pelos públicos. N a
m aior parte dos países, a totalidade ou a quase totalidade das receitas públicas
é empregada na manutenção de indivíduos não produtivos. É o caso de todos os
que com põem um a corte numerosa e esplêndida, um a grande instituição ecle­
siástica, arm adas e exércitos numerosos que em tem pos de paz nada produzem
c cm tem pos de guerra nada adquirem que possa compensar o dispêndio incor­
rido com a sua m anutenção, ainda que só durante o período de duração da
guerra. T oda essa gente, dado que nada produz, tem de ser m antida pelo
produto do trabalho de outros homens. Deste m odo, quando se multiplicam
para alem do necessário, podem , num ano, consum ir um a parcela tão elevada

473 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c iL , 1,68 e 599/600.


A v e i As N u n e s - 4 3 1

daquele produto que a parte restante n io baste para m anter os trabalhadores


produtivos, necessários à reprodução do ano seguinte. Assim, a produção do
ano seguinte será inferior à desse ano e, se se mantiver o m esmo desconcerto, a
do ano a seguir reduzir-se-á ainda mais. Pode acontecer que esses indivíduos
im produtivos, que deviam ser m antidos apenas por um a parte do rendim ento
disponível do conjunto das pessoas, cheguem a consum ir um a parcela tão
grande da totalidade de rendim ento, obrigando tão elevado núm ero dc indiví­
duos a consum ir o respectivo capital, ou seja, os fundos destinados à m anuten­
ção do trabalho produtivo, que a frugalidade c adequado em prego dos capitais
por parte dos indivíduos não seja suficiente para compensar a perda e degrada­
ção do p roduto originadas por esse violento e forçado abuso.

Todavia, na m aior parte das ocasiões, esta frugalidade c adequado em prego de


capitais são, ao que a experiência mostra, suficientes para com pensar não só a
prodigalidade e mau emprego dc capitais privados, mas tam bém a extravagân­
cia pública dos governos. O esforço uniform e, constante e ininterrupto de
todos os hom ens para melhorar a sua situação, princípio de que deriva origina­
riam ente a opulência pública e nacional, tal como a privada, é m uitas vezes
suficientemente poderoso para m anter o progresso natural das coisas no senti­
do da sua melhoria, a despeito tanto da extravagância do governo com o dos
erros da administração. Tal como o princípio desconhecido da vida animal
consegue muitas vezes restituir a saúde c o vigor à constituição, apesar não só da
doença, mas tam bém dos absurdos tratam entos prescritos pelo m édico”.

M as Adam Smith acrescenta ainda outra exigência: as virtudes privadas da


frugalidade e da prudência só produzirão os seus efeitos benéficos se o estado não
limitar a liberdade individual, nem sequer para limitar os consumos de luxo através
de leis sumptuárias ou da proibição da importação de bens de luxo.
Vejamos o que diz o próprio Sm ith:474
“A inda que a prodigalidade do governo tenha, sem dúvida, retardado o pro­
gresso natural da Inglaterra no sentido da riqueza c d o desenvolvim ento, não
lhe foi possível impedi-lo.

(...) O produto anual da terra e do trabalho do país é agora, sem dúvida, muito
superior ao registado ao tem po quer da restauração, quer da revolução. Deve,
por conseguinte, ser tam bém m uito elevado o capital anualm ente em pregado
no cultivo das suas terras e na m anutenção do seu trabalho. N o m eio dc todas
as exigências do governo, esse capital foi silenciosa c gradualm ente acumulado
pela frugalidade c bom em prego dos capitais por parte dos particulares, pelo
seu universal, contínuo e ininterrupto esforço para m elhorar a situação de cada

474 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c iL , 1,604/605.


4 3 2 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o í It ic a

um. Foi cstc esforço, protegido pela lei e acompanhado da liberdade de exer­
cer-se da form a mais proveitosa, que manteve a Inglaterra no cam inho da
riqueza c do progresso, em todos os tem pos passados, e esperamos bem que o
continue a conseguir em todos os tem pos vindouros. C ontudo, assim com o a
Inglaterra nunca beneficiou de um governo frugal, tam bém jam ais contou a
parcimónia entre as virtudes características dos seus habitantes. Por consequência,
constitui a m aior im pertinência c presunção por parte dos reis e m inistros o
pretenderem fiscalizar a economia dos cidadãos e restringir os seus gastos, seja
através de leis sum ptuárias, seja pela proibição da importação de bens de luxo.
Eles são sem pre, e sem excepção, os maiores perdulários que existem na soci­
edade. C uidem bem dos seus próprios gastos c poderão confiadam ente deixar
aos particulares o cuidado dos deles. Se a extravagância dos governantes não
arruinar o estado, poderem os estar certos de que a dos súbditos jam ais o fará”.

O optimismo do sistema smithiano fica completo se tivermos em conta que


Smith (tal como Say e Ricardo) entendia que a poupança é sempre totalmente
investida. Estariam assim criadas as condições para que o progresso económico se
verificasse sem riscos de situações permanentes de desequilíbrio global.
Assim se exprimiu Adam Smith:475
“Aquilo que anualm ente é poupado é tão regularmente consumido com o o que
é anualmente despendido, e praticamente também no mesmo período; simples­
mente é consum ido por um diferente conjunto de pessoas. A parte do seu
rendim ento anualmente despendida por um indivíduo rico é, na maior parte dos
casos, consum ida por convidados ociosos e por criados que nada deixam atrás de
si em troca do que consomem. Q uanto à parte que anualmente poupa, dado que,
com vista à obtenção de um lucro, é imediatamente aplicada como capital, é de
igual m odo consumida, c praticamente durante o mesmo período, mas por um
conjunto diferente de pessoas, trabalhadores do campo, operários c artífices, que
reproduzem, com um lucro, o valor do respectivo consumo anual”.

5 . A FILOSOFIA SOCIAL DE ADAM SMITH

“Todo o homem - escreve Smith -, desde que não viole as leis da justiça, tem direito
a lutar pelos seus interesses como melhor entender e a entrar em concorrência, com a sua
indústria e capital, com os de qualquer outro homem, ou ordem de homens”.
“Um homem só aplica capital numa indústria com vista ao lucro”. E, actuando
desta forma, cada homem “só está a pensar na sua própria segurança”; “na realida­
de, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que

475 Cír. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,593.


A v e ià s N u n e s - 4 3 3

ponto o está a fazer”. Não obstante, Adam Smith sustenta que, dessa forma, “cada
um trabalha, necessariamente, para que o rédito anual da sociedade seja o maior
possível, (...) guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte
das suas intenções”.476
Seria assim, pelo menos, numa sociedade ideal que Adam Smith configura
como “uma sociedade onde se permitisse que as coisas seguissem o seu curso
natural, onde houvesse liberdade perfeita e onde cada homem fosse totalmente
livre de escolher a ocupação que quisesse e de a mudar sempre que lhe aprouvesse.
O seu próprio interesse - observa o autor - o levaria a procurar os empregos
vantajosos e a evitar os desfavoráveis”. Cada indivíduo - conclui Adam Smith -,
“ao tentar satisfazer o seu próprio interesse, promove, frequentemente, de um modo
mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer”.
“Na verdade, aquilo que [cada indivíduo] tem em vista é o seu próprio benefício e
não o da sociedade. Mas o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente- ou
melhor, necessariamente - , a preferir o emprego mais vantajoso para a socieda­
de”.477 (o sublinhado é nosso)
Esta confiança no individualismo e nas virtudes do “sistema de liberdade natu­
ral” radica numa antropologia optimista que representa a ultrapassagem do pessimis­
mo característico da filosofia social de Hobbes.
Segundo Hobbes, a natureza humana é essencialmente egoísta. E o egoísmo
transformaria o homem no inimigo do homem (homohomini lupus), caracterizan­
do-se o estado dc natureza como um estado de guerra permanente (bellum om-
mium contra omnes). A antropologia pessimista que informa o seljish system
hobbesiano arrasta a conclusão de que a sociedade civil não pode constituir-se
sem a intervenção coerciva do estado, a qual implica que os homens renunciem à
sua própria liberdade.
Ao irracionalismo deste estado natural de guerra vem Locke contrapor uma lei
racional, eventualmente inspirada pela natureza divina, que o leva a uma visão antro­
pológica optimista. No estado de natureza, o homem é essencialmente bom, só não
se realizando a harmonia porque a natureza física é avara, o que implica a afirmação
da desigualdade natural como a outra característica do estado de natureza.
Porque se trata de desigualdade natural, o estado não pode pretender superá-la.
Em Locke o estado já não é configurado como a fonte da sociedade civil, mas
também não se lhe reconhecem condições para resolver o conflito social inerente
a uma sociedade que assenta na liberdade de cada indivíduo. Liberdade que con­

476 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,284 e 757/758. Sublinhado nosso.
477 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,231/232 e 757/758.
4 3 4 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

siste essencialmente na liberdade de adquirir uma propriedade com base no seu


trabalho, propriedade que o estado (o estado liberal) deve garantir.
Foi David Hum e o primeiro autor que conseguiu escapar à ideia de que a confli-
tualidade social é inerente a uma sociedade que se rege pelo princípio do egoísmo.
Colocando-se no plano da filosofia moral, Hume renunciou a uma crítica raciona-
lista do pessimismo de Hobbes, preferindo caracterizar os homens por um sentimento,
oposto ao egoísmo, que leva cada um a desejar o que é útil ou agradável para os outros.
David Hume designa-o por simpatia, benevolência ou sentido de humanidade.
A simpatia surge, deste modo, como a fonte dosjuízos morais (juízos de aprova­
ção para a virtude, para tudo o que é útil do ponto de vista individual e social), e
também como a origem de um comportamento virtuoso, na medida em que a simpa­
tia conduz cada indivíduo a agir para o bem dos outros como a melhor forma de
conseguir um sistema de relações sociais que seja mais vantajoso para si próprio.
Na síntese de Napoleoni, “enquanto a filosofia do egoísmo não permite ao indiví­
duo reconhecer qualquer outra utilidade imediata, Hum e avança até chegar a
reconhecer nos homens um sentimento de humanidade suficiente para que cada um
seja capaz de reconhecer não apenas a sua própria utilidade, mas também a utili­
dade dos outros”.478
Assim autonomizada a dimensão moral, a simpatia permite harmonizar, nesta
esfera da vida humana, o interesse individual e o interesse colectivo. Mas ficam de
fora outras dimensões da vida humana em que o egoísmo pode continuar como
fonte de conflitos. Permanecia, ao menos implicitamente, o reconhecimento do
dualismo psicológico como característica dos homens.
A ultrapassagem deste dualismo foi sugerida pela primeira vez na famosa Fá­
bula das Abelhas, de Bernard Mandeville {The Fable o f the Bees: or Private Vices,
Public BenefttSy 1714). Nas palavras do próprio, é esta a tese de Mandeville:479
“O rgulho-m c dc ter dem onstrado que não são nem as qualidades de bondade
ou as afeições delicadas naturais ao hom em , nem as reais virtudes que ele é
capaz de adquirir pela razão e pela abnegação, que constituem o fundam ento
da sociedade; mas que aquilo a que no m undo cham am os mal, tan to moral
com c natural, é o grande princípio que faz dc nós criaturas sociáveis, a base
sólida, a vida e o apoio de todas as actividades e de todos os empregos, sem
excepção; que é nele que devemos procurar a verdadeira origem de todas as
artes e dc todas as ciências, e que, no m om ento cm que o mal desapareça, a
sociedade se deteriora, se não se dissolver inteiram ente”.

478 Cfr. C NAPO LEO NI, Fisiocracia... c iL , 34.


479 Cfr. Riqueza das Nações (Introdução do Editor), ed. cit., 1,61/62.
A v e l As N u n e s - 4 3 5

Adam Smith critica Mandeville por considerar como vícios certas qualidades
(ou paixões) que, cm seu juízo, o não são. Em termos tais - enfatiza Smith - que
“até uma camisa lavada ou uma habitação confortável são um vício. (...) É graças
a este sofisma que chega à sua conclusão predilecta de que os vícios privados
constituem virtudes públicas”. No entanto, Smith não deixou de reconhecer que o
sistema do Dr. Mandeville estava, “em alguns casos, muito próximo da verda­
de”.480 Compreende-se, por isso, a sintonia de certas passagens de Riqueza das
Nações com a tese de Mandeville.
Dois trechos para o comprovar:481
“O esforço natural de cada indivíduo para melhorar a sua própria condição cons­
titui, quando lhe é permitido cxerccr-se com liberdade c segurança, um princípio
tão poderoso que, sozinho e sem ajuda, c não só capaz de levar a sociedade à
riqueza e prosperidade, mas tam bém de ultrapassar centenas dc obstáculos ino­
portunos que a insensatez das leis humanas demasiadas vezes opõe à sua actividade”.

“N um a sociedade civilizada o hom em necessita constantem ente da ajuda c


cooperação dc um a imensidade de pessoas, e a sua vida mal chega para lhe
perm itir conquistar a amizade de um pequeno núm ero. E m quase todas as
outras espécies animais, cada indivíduo, ao atingir a m aturidade, é inteiramente
independente, c, no seu estado norm al, não necessita da ajuda de qualquer
outro scr vivente. M as o homem necessita quase constantem ente do auxílio dos
seus congéneres e seria vão esperar obtê-lo somente da sua bondade.Terá maior
probabilidade de alcançar o que deseja se conseguir interessar o egoísm o deles
a seu favor c convcncê-los dc que terão vantagem cm fazer aquilo que ele deles
pretende. Q uem quer que propõe a outro um acordo de qualquer cspécic,
propõc-sc conseguir isso. D á-m e isso, que eu quero, c terás isto, que tu queres,
é o significado de todas as propostas desse género; e é por esta form a que
obtem os uns dos outros a grande maioria dos favores c serviços de que necessi­
tamos. Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro que
podemos esperar o nossojantar, mas da consideração em que eles têm o seu próprio
interesse. Apelamos, não para a sua human idade, mas para o egoísmo, e nunca lhes
falamos das nossas necessidades, mas das vantagens deles. N ingucm , a não ser um
mendigo, se permite depender essencialmente da bondade dos seus concidadãos.
A té m esm o um m endigo não depende inteiram ente dela”.

480 Cfr. Riqueza das Nações (Introdução do Editor), ed. cit., 1,58/59.
481 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., II, 68 e 1,94/95 [sublinhados nossosl.
4 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Verdadeiramente, a tese contida no sistema de Mandeville pode reconduzir-se


à ideia de que é impossível prescindir cm absoluto da presença e das consequênci­
as do móbil egoísta no comportamento dos homens em sociedade. Nestes termos,
a ultrapassagem do dualismo psicológico acima referido só poderia conseguir-se
atribuindo ao egoísmo um papel socialmente positivo. É este o sentido da constru­
ção smithiana da mão invisível, ao arrepio do preconceito largamente difundido
no séc. XVIII, de que toda a acção motivada pelo interesse privado é, por isso
mesmo, anti-social.482
Aceitando a concepção de Hum e que faz assentar o fundamento da moral (da
virtude) na utilidade simultaneamente individual e social da acção dos homens e
que, assim sendo, faz da simpatia a origem do juízo moral e do comportamento
moral, Adam Smith autonomiza a esfera da actividade económica (como Hume
autonomizara a esfera moral) e sustenta que, nesta dimensão do comportamento
humano - em que se verifica a formação e o desenvolvimento da riqueza - , o
móbil egoísta justifica-se nos mesmos termos que a simpatia na esfera moral. Na
esfera económica, a utilidade dos particulares concilia-se com a utilidade da soci­
edade na medida em que cada um, “desde que não viole as leis da justiça”, prossiga
o seu próprio objectivo de obter o máximo lucro e o máximo dc segurança “em
concorrência, com a sua indústria e capital, com os de qualquer outro homem, ou
ordem de homens”.
Na esfera da actividade económica, os vícios privados de que falava Mandeville
não são, afinal, vícios. O egoísmo surge, aqui, como um elemento positivo, desde que
a prossecução do interesse de cada um não impeça os outros de prosseguir igual­
mente o seu próprio interesse. Na síntese de Carlos Laranjeiro, Riqueza das Nações
representa, neste plano, “a tentativa de prova de que o self-interest está para a econo­
mia como a simpatia está para a moral. O conjunto social torna-se harmonioso, já
que ambos permitem obter a maximização individual e colectiva”.483
Vale a pena atentar de novo nestes dois trechos muito conhecidos de Riqueza
das Nações:484
“C ada indivíduo esforça-sc continuadam ente por encontrar o em prego mais
vantajoso para qualquer que seja o capital que detém . N a verdade, aquilo que
tem em vista é o seu próprio beneficio e não o da sociedade. M as o juízo da sua
própria vantagem leva-o, naturalm ente - , melhor, necessariamente a prefe­
rir o em prego mais vantajoso para a sociedade".

482 Cfr. M. D O BB, Teorias..., cit., 55; C. NAPOLEONI, últ.ob. c/f., 36/37 e M . B L A U G ,H istó ria ...,cit.,59-65.
483 Cfr. C . LARANJEIRO, ob. cit., 68.
484 Cfr. Riqueza das Nações, ed. c it , 1,755-758.
A v elã s N u n es - 4 3 7

“C ada um trabalha, necessariamente, para que o rédito da sociedade seja o


maior possível. N a realidade, ele não pretende, norm alm ente, prom over o bem
público, nem sabe até que ponto o está a fazer. (...) Ao dirigir essa indústria, dc
m odo que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu
próprio ganho, e, neste como cm m uitos outros casos, está a ser guiado por
um a mão invisívela atingir um fim que não fazia parte das suas intenções nem
nunca será m uito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas
intenções. A o ten tar satisfazer o seu próprio interesse, prom ove, frequente­
m ente, de m odo mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realm en­
te o pretende fazer. N unca vi nada de bom feito por aqueles que se dedicaram
ao comércio pelo bem público. N a verdade, não é um tipo de dedicação m uito
com um entre os mercadores, c não são necessárias m uitas palavras para os
dissuadir disso”. [Sublinhado nosso]

Fiel à sua filosofia individualista (porventura algo contraditória com a impor­


tância de que atribui à divisão do trabalho), Adam Smith sustenta que a vida
económica decorrerá harmoniosamente desde que se deixem as coisas seguir o seu
curso natural.
O professor de Glasgow não ignora o carácter conflituante da sociedade em
que se insere e revela mesmo a percepção de que o conflito essencial presente nesta
sociedade é o que opõe os trabalhadores assalariados e os proprietários do capital,
classes “cujos interesses não são dc modo algum idênticos”. E Smith sabe bem que
do livre jogo dos interesses individuais resulta que “a renda e os lucros aumentam
à custa dos salários e reduzem-nos a quase nada, de forma que as duas classes
superiores esmagam a última”.
Esta diferença de posições (e consequente antagonismo de interesses) explica-a
Smith como consequência dos diferentes poderes de que dispõem, na sociedade (ca­
pitalista) do seu tempo, os patrões (por serem “proprietários do capital”) e os operá­
rios (por possuirem apenas “a sua força e habilidade de mãos”, por não possuirem “o
capital suficiente, tanto para comprar as matérias-primas necessárias ao seu traba­
lho , como para se manter até ele se achar terminado”). A causa última da desigual­
dade reside, pois, no facto de uma classe de pessoas deter a propriedade do capital e
outra(s) classe(s) estar(em) privada(s) dela: “Sempre que há muita propriedade, há
grande desigualdade. Por cada homem rico haverá, pelo menos, quinhentos homens
pobres, e a propriedade de uns poucos pressupõe a indigência de muitos”.485
As relações sociais não aparecem, pois, na obra de Smith, como relações entre
indivíduos iguais. Nestas condições, sabendo que nas “nações civilizadas e próspe­

*85 Cfr. Riqueza das Nações, e d .c it, II, 316.


4 3 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o iít ic a

ras” - como o próprio Smith põe em relevo - “um grande número de pessoas não
exerce qualquer actividade e muitas delas consomem o produto de dez vezes, fre­
quentemente de cem vezes, mais trabalho do que aqueles que as exercem”, admiti­
rá Adam Smith uma qualquer intervenção do estado com fins correctivos?
De modo nenhum:
“Ferir os interesses de um a dasse dc cidadãos, por mais ligeiramente que possa
ser, sem outro objectivo que não seja o de favorecer os dc qualquer outra classe, é
uma coisa evidentemente contrária àquela justiça, àquela igualdade dc protecção
que o soberano deve, indistintam ente, aos seus súbditos dc todas as classes”.486

Com o bom liberal, Adam Smith defende que o máximo de utilidade social se
consegue quando a vida económica decorre naturalmente, prosseguindo cada um o
seu próprio interesse. A vida económica, assim entendida, é o fundamento da soci­
edade civil, o princípio da própria existência do estado, cujas funções devem res­
tringir-se ao mínimo compatível com a sua capacidade para garantir a cada um e a
todos, em condições dc plena liberdade, o direito de lutar pelos seus interesses
como melhor entender.
“O soberano - escreve Smith 487 - fica totalm ente liberto (...) do dever de
superintender o trabalho das pessoas privadas e dc o dirigir para as actividades
mais necessárias à sociedade. Segundo o sistema de liberdade natural, o soberano
tem apenas três deveres a cumprir.Três deveres de grande importância, na verda­
de, mas simples e perceptíveis para o senso comum: cm primeiro lugar, o dever de
proteger a sociedade da violência e das invasões dc outras sociedades independen­
tes; em segundo lugar, o dever dc proteger, tanto quanto possível, todos os
membros da sociedade da injustiça ou opressão dc qualquer outro m em bro, ou o
dever de estabelecer uma administração da justiça; c, em terceiro lugar, o dever de
criar c preservar certos serviços públicos c certas instituições públicas que nunca
poderão ser criadas ou preservadas no interesse de um indivíduo ou de um peque­
no núm ero de indivíduos, já que o lucro jamais reembolsaria a despesa dc qual­
quer indivíduo ou pequeno número dc indivíduos, embora possa, muitas vezes,
fazer mais do que reembolsar esse lucro a uma grande sociedade”.

Com o “a avareza e a ambição nos ricos e o ódio ao trabalho e a tendência para


a preguiça nos pobres constituem as paixões que predispõem ao ataque à proprie­
dade”, como “a propriedade dos ricos provoca a indignação dos pobres que muitas
vezes são levados pela necessidade e influenciados pela inveja a apropriar-se dos
seus bens”, compreende-se a necessidade do “estabelecimento de um governo ci-

486 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,70.


487 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit-, 1,284/285.
A v e ià s N u n e s - 4 3 9

vil” e compreende-se que uma das funções do estado seja a da administração exacta
da justiça, uma vez que ué só com a protecção do magistrado civil que o dono dessa
valiosa propriedade, adquirida com o trabalho de muitos anos ou, talvez, de muitas
gerações, poderá dormir em segurança”. “A aquisição de propriedades valiosas e
vastas - conclui Adam Smith - exige, necessariamente, o estabelecimento de um
governo civil. Quando não há propriedades ou, pelo menos, propriedades que
excedam os dois ou três dias de trabalho, o governo civil não será tão necessário”.
Eis o que o próprio Smith escreve acerca do aparecimento e evolução do estado:488
“C om o, entre caçadores, raram ente existe a propriedade ou, pelo m enos, p ro ­
priedades superiores a dois ou três dias de trabalho, raram ente existe qualquer
magistrado, ou qualquer adm inistração regular da justiça”.

“É na era dos pastores, no segundo período da sociedade - escreve mais à frente


A dam Sm ith que surge pela primeira vez a desigualdade dc fortuna, introdu­
zindo no seio dos hom ens um grau de autoridade e subordinação anteriorm ente
impossível de existir. Introduz, assim, em ccrta medida, esse governo civil indis­
pensável ã sua própria m anutenção e parece tê-lo feito naturalm ente, indepen­
dentem ente, mesmo, da verificação dessa necessidade. Esta verificação vai aca­
bar, sem dúvida, por contribuir muito para a manutenção c consolidação dessa
autoridade e subordinação. O s ricos especialmente estão necessariamente inte­
ressados cm manter esse estado dc coisas, único capaz de lhes assegurar os seus
próprios benefícios. O s menos ricos unem-se na defesa dos mais ricos no que se
refere à sua propriedade para que, por sua vez, estes se unam na defesa da propri­
edade daqueles. Todos os pastores c criadores menores sentem que a segurança
dos seus próprios rebanhos depende da segurança dos rebanhos dos pastores e
criadores mais prósperos, que a manutenção da sua menor autoridade depende da
manutenção da autoridade superior e que da sua subordinação depende o poder
de, por seu turno, subordinar outros que lhe são inferiores. C onstituem uma
espécie de aristocracia que tem todo o interesse em defender a propriedade e cm
apoiar a autoridade do seu pequeno soberano a fim de este poder defender a sua
própria propriedade e apoiar a sua autoridade”.

Logo a seguir, Adam Smith torna bem clara a sua concepção do estado en­
quanto instrumento de defesa dos proprietários contra aqueles que não dispõem da
propriedade do capital. Na esteira de Locke (Civil Government, § 94: “o governo

488 cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,316 e II, 315-322.
4 4 0 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o l ít ic a

não tem qualquer outro objectivo que não seja a preservação da propriedade”),
Smith defende que Mo governo civil, na medida em que é instituído com vista à
segurança da propriedade, é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos
em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detri­
mento daqueles que nada possuem”.
São afirmações como esta que levam, por certo, M ark Blaug a sustentar que,
nesta Parte II do Cap. I do Livro V de Riqueza das Nações, Smith “apresenta uma
teoria ‘marxista do estado”.489
Fica agora mais claro porque é que, em plena coerência consigo próprio, Adam
Smith rejeita a intervenção do estado com vista à correcção das injustiças: exacta­
mente porque sabe qual é o verdadeiro papel do estado e aceita que ele deve
cumprir a sua função, que é “a defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles
que têm alguma propriedade em detrimento daqueles que nada possuem”.
Por outro lado, resulta dos escritos de Adam Smith a ideia (comum aos autores
da escola clássica) de que a propriedade (a acumulação do capital) é o fruto da
“frugalidade” e da “prudência” de alguns, é “adquirida com o trabalho de muitos
anos ou, talvez, de muitas gerações”.
Adam Sm ith pensa, além disso, que todos podem ser proprietários, mesmo o
mais pobre dos homens, “se for frugal e industrioso”. D ir-se-ia que “o ódio ao
trabalho e a tendência para a preguiça e para o ócio nos pobres” é que explicam as
diferenças sociais.
Estas não seriam, aliás, tão gritantes como poderiam sugerir certas passagens
de Riqueza das Nações que atrás transcrevemos.
Acompanhemos Smith:490
“Nas nações civilizadas c prósperas, embora um grande número de pessoas não
exerça qualquer actividade e muitas delas consumam o produto dc dez vezes,
frequentemente de cem vezes, mais trabalho do que aquelas que as exercem, ainda
assim o produto dc todo o trabalho da sociedade é tão grande que, em geral, se
encontram abundantemente providas, c um trabalhador, ainda que da classe mais
baixa c mais pobre, se for frugal e industrioso, poderá usufruir de uma quota-parte
maior de bens necessários à vida c ao conforto do que qualquer selvagem”.

489 Cfr. M. BLA U G , últ. ob. cit, 61. É também de Mark Blaug este comentário: 'Quando lemos as suas análises sobre
a evolução do governo civil, da justiça, das forças armadas e da família, torna-se evidente que ele tinha ideias
claras sobre a natureza do processo histórico. Como outros autores escoceses da época, v.g. Adam Ferguson,
John M illar, W illam Robertson e mesmo Oavid Hume, ele expõe uma filosofia da história que atribui uma
importância fundamental à natureza e à distribuição da propriedade. Não é exagerado descrever estes ho­
mens como os precursores da 'concepção materialista da história'".
490 Cfr. Riqueza das Nações, ed. cit., 1,70/71.
A v elã s N u n es - 441

É ainda Smith quem escreve:491


“O estôm ago do rico está em proporção com os seus desejos e não com porta
mais que o do aldeão grosseiro. (...)

U m a mão invisível parece forçá-los [aos ricos] a concorrer para a mesma


distribuição das coisas necessárias à vida que se teria verificado se a terra tivesse
sido dada em igual porção a cada um dos seus habitantes; e assim, sem ter essa
intenção, sem m esmo o saber, o rico serve o interesse social e a multiplicação da
espécie hum ana. A Providência, distribuindo, por assim dizer, a terra entre um
pequeno núm ero dc hom ens ricos, não abandonou aqueles a quem parece ter-
se esquecido de atribuir um lote, e eles têm a sua parte em tudo o que ela
produz. (...) Q u an to ao que constitui a verdadeira felicidade, não são inferiores
em nada àqueles que parecem colocados acima deles. T odos os escalões da
sociedade estão ao m esm o nível pelo que respeita ao bem -estar d o corpo e à
serenidade da alm a, e o m endigo que se aquece ao sol ao longo dc um a sebe
possui ordinariam ente aquela tranquilidade que os reis sem pre perseguem".

A confiança no sistema de liberdade naturale a aceitação da justiça realizada pela


mão invisível são os dois valores que prevalecem na filosofia social de Adam Smith.
Dominado pela visão fisiocrática de uma sociedade que funciona perfeitamente
por si, como um organismo natural - na qual não deve tocar-se para a não descon­
trolar - , Sm ith defende o liberalismo, que será o mal menor, explicando que a
distribuição dos rendimentos é regulada por leis intangíveis com as quais nenhum
poder deverá (ou poderá) interferir.

Trecho da Theory o f M oral Sentiments, apud H . DENIS, H istoire..., c iL , 191.


_____ _
C apítulo V I

J ean-B aptiste Say


4 4 4 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a

Jean-Baptistc Say (1767-1832) foi o mais destacado representante da escola


clássica na França e a sua obra teve assinalável repercussão, não só no seu país, mas
também entre os economistas ingleses. Influenciado pelos valores culturais do séc.
XVIII, concebia a economia política como uma fisiologia do corpo social, como
ciência independente da política, pois entendia que “as riquezas são essencialmente
independentes da organização política.”. Procurando conciliar o racionalismo car­
tesiano e o naturalismo (com a sua aceitação da “ordem natural”), Say defende que
as leis, em Economia, “derivam da natureza das coisas, tão seguramente como as
leis do mundo físico; não as imaginamos, encontramo-las; elas governam os indi­
víduos que governam os outros e não são nunca impunemente violadas”.492

1. A U T IL ID A D E E A T E O R IA D O VALOR

Embora se apresente a si mesmo como continuador de Adam Smith, a cons­


trução de Say contraria abertamente a teoria do Professor de Glasgow.
Rejeitando a teoria do valor de Smith e de Ricardo, Say sustenta que
“O valor de um a coisa é o resultado da avaliação contraditória feita entre o que
dela tem necessidade, ou que a procura, e o que a produz, ou a oferece. O s dois
fundam entos são, portanto: I o- a utilidade, que determ ina a procura que dela se
faz; 2°- os custos de produção, que lim itam a extensão dessa procura, visto que
se deixa dc procurar aquilo que requer demais em gastos dc produção”.

Salientando que, por efeito da concorrência, “o preço dos produtos se estabele­


ce à taxa determinada pelos custos dc produção”, o autor francês conclui, porém,
que “não são os gastos que se fazem para produzir que determinam o preço que o
consumidor consente em pagar, é unicamente a sua utilidade \ Estes trechos mos­
tram que Say fala indistintamente de preço e de valor e que assenta na utilidade a
sua teoria do valor: “A qualidade que faz com que uma coisa tenha valor é, eviden­
temente, a sua utilidade. Os homens só atribuem preço às coisas que lhes podem
ser úteis (...)”.
A utilidade é o elemento determinante da fixação do valor (preço), embora este
se venha a fixar ao nível do custo de produção:
“O preço dos produtos - escreveu Say - estabelece-se à taxa determ inada pelos
custos da produção, mas desde que a utilidade que lhes é atribuída faça nasccr
o desejo de os adquirir (...) ao preço a que se podem adquirir”.

492 Como comenta A. SEDAS NUNES (História..., cit., 262), "a Ciência revelaria, com efeito, sendo uma fisiologia,
porquê e como seria racional, por que significaria precisamente o respeito da fisiologia do corpo social, o
respeito das leis por que se exprime a ordem fisiológica das sociedades - ou, noutros termos ainda: o respeito
da própria natureza da sociedade, apreendida no dado de observação científica e n5o através de dedução
lógica, a partir de conceitos a priori
A v e ià s N u n e s - 4 4 5

Nesta lógica, afirma, ao contrário de Quesnay, que a produção, em economia


política, significa criação de utilidades e não criação de objectos materiais:
“N ão se criam objectos; a massa das m atérias de que o m undo se com põe não
poderia aum entar nem dim inuir. T udo o que podem os fazer é reproduzir essas
matérias sob outra forma que as torna aptas para um uso determ inado para que
não serviam, ou apenas aum entar a utilidade que já tinham . Portanto, a criação
que existe não é de m atéria, mas de utilidade; e com o essa utilidade lhes dá
valor, há produção dc riquezas. É assim que se deve entender a palavra produção
cm economia política. A produção não é uma criação de m atéria mas uma
criação de utilidade. N ão se mede segundo a extensão, o volum e ou o peso do
produto, mas segundo a utilidade que se lhe conferiu".

Esta concepção permitiu a Say contraditar a tese fisiocrática da produtividade


exclusiva da agricultura, pois também nas manufacturas e no comércio se criam
utilidades. Assim se exprimiu o próprio Say:
“A produção agrícola é uma criação de valor que se obtém por meio da cultura das
terras ou por meio de trabalhos análogos, como a pesca e a exploração dc minas. A
produção manufactureira é um a criação dc valor obtida pela modificação dc pro­
dutos já existentes. A produção comercial é um a criação dc valor obtida pelo
transporte ou a distribuição aos consumidores de produtos já existentes”.

J.-B. Say contraria, porém, em certa medida, não só os fisiocratas, mas também
a própria escola clássica inglesa, particularmente a distinção smithiana entre tra­
balho produtivo e trabalho improdutivo. Com efeito, Say considera trabalhadores
produtivos todos os que “fornecem uma utilidade verdadeira, em troca dos seus
salários”, desde o médico ao militar e ao administrador da coisa pública. Em
correspondência polémica com D upont de Nemours, escreve Say:
“Segundo o nosso respeitável Q uesnay e os seus respeitáveis discípulos, só a
matéria é um a mercadoria, quando é vendável. Segundo S m ith c a sua escola,
o trabalho é tam bém um a mercadoria quando é vendável; e segundo o hum ilde
discípulo que vos escreve, o trabalho do barbeiro é um a mercadoria igualmente
vendável, em bora m e tenha cortado a barba c não m e ten h a deixado nenhum
objecto em seu lugar. D eu-m e os seus serviços e eu consum i-os; mas, em bora
destruídos, são produto, pois satisfizeram um a das m inhas necessidades, do
m esm o m odo que a maçã que o senhor comeu à sobremesa, quefoi destruída
também, mas que era um a riqueza, pois podia fazer algum bem”.

2. A T E O R I A D O S TRÊS FA CTO RES D E P R O D U Ç Ã O

Na sequência da rejeição da teoria clássica do valor-trabalho, Say formula a


conhecida teoria dos trêsfactores deprodução. A produção efectua-se graças ao con­
4 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o lít ic a

curso de três factores de produção: a natureza, o trabalho e o capital. Cada um deles


é portador dos seus “serviços produtivos”, serviços pelos quais os seus titulares
recebem um preço, um rendimento determinado (renda, salário, juro). Say iden­
tifica a teoria da distribuição do rendimento com a teoria daformação dospreços dos
factores de produção, baseada no jogo da respectiva oferta e procura.
Eis como Say introduz a ideia de que o capital é um factor de produção:
“C ontinuando a observar os produtos destinados ao nosso uso, não tardaremos
a aperceber-nos dc que a indústria [i.é, o trabalho nas suas várias formas], por
si só, entregue a si própria, nunca teria conseguido produzi-los. Foi necessário
que o hom em industrioso possuísse, além disso, produtos já existentes, sem os
quais a sua indústria, por mais hábil que a im aginem os, teria perm anecido
sempre na inacção”.

A par do trabalho (a que Say chama indústria), intervêm, pois, como factores
de produção, produtosjá existentes, i.é, o capital. Fazendo entrar na sua análise a
figura do empresário que reúne os factores de produção, Say como que coloca na
mesma posição os capitalistas e os trabalhadores: uns e outros dependem dos
empresários que lhes compram os seus serviços. Enquanto em A. Smith as relações
de produção se estabeleciam entre o detentor de capitais e os trabalhadores que ele
contratava, agora as relações de produção são desencadeadas pelo empresário, que
vai comprar os serviços produtivos aos capitalistas, aos trabalhadores e aos donos
da terra.
Enquanto Adam Smith apontara as injustiças a que conduz o jogo dos meca­
nismos naturais, embora aceitando que nada poderia fazer-se em contrário, Say
pretende mostrar, por este caminho, que, numa sociedade liberal, cada um recebe,
pela sua contribuiçãoprodutiva, a remuneração adequada, não havendo discrepân­
cia entre a distribuição natural dos rendimentos e a justiça social.
Segundo a concepção de Say, quer a terra, quer o trabalho, quer o capital,
trazem uma contribuição natural para a produção. E a renda, o salário e o lucro
fixar-se-iam independentemente uns dos outros, formando-se o valor dos bens (o
preço, igual ao custo de produção, por que se venderiam os bens em virtude da
concorrência entre os produtores) pela soma das despesas efectuadas com os três
factores de produção.
Já se vê como Say se afasta, também neste ponto, da teoria da distribuição do
rendimento de Smith, agora por forma a evitar certos conflitos de interesses que
este apontara. Ao contrário do que Smith defendia, Say entende que os proprietá­
rios de terras, os capitalistas e os trabalhadores não têm que dividir entre si o
produto total. O rendimento de cada uma destas classes determina-se autonoma­
mente,, não limitando cada um deles o montante dos outros. Assim constrói Say
A v elà s N u n es - 4 4 7

uma visão harmoniosa da ordem social existente: “Cada um dos três grandes mei­
os de produção - escreve Say - é tanto mais recompensado, isto é, retira tanto
maior parte da produção, quanto menos oferecido e mais procurado for, relativa­
mente aos outros dois”.

3. A F IG U R A D O "E M P R E S Á R IO "

Na lógica da teoria dos trêsfactores, Say elaborou a noção de empresário e pôs em


destaque o papel do empresário nas economias capitalistas. No seu Traitéd*Économie
Politique escreve Say:
“O s que dispõem de um a das três fontes dc produção [terra, capital, trabalho]
são vendedores dessa mercadoria que chamamos serviços produtivos; os consu­
m idores são os seus compradores. O s empresários da indústria são apenas, por
assim dizer, interm ediários que reclamam os serviços produtivos necessários
para tal produto em proporção da procura que se faz desse produto. O cultivador,
o industrial (manufacturier) c o comerciante com param perm anentem ente o
preço que o consum idor quer e pode pagar por esta ou aquela mercadoria, com
as despesas que serão necessárias para que ela seja produzida; se decidem produ-
zi-la, eles procuram todos os serviços produtivos que deverão concorrer para a
sua produção, e fornecem assim um a das bases do valor desses serviços.

Por outro lado, os agentes da produção, hom ens e coisas, terras, capitais e
trabalhadores, oferecem-se em maior ou m enor quantidade, de acordo com
diversos motivos (...), e form am assim a outra base d o valor que se estabelece
para esses mesmos serviços".

E no Cours Complet d'Écotiomie Politique Say esclarece:


“Salientarei que o empresário de indústria é o agente principal da produção. As
outras operações são por certo indispensáveis para a criação dos produtos; mas
6 o em presário que as põe em execução, que lhes dá um im pulso útil, que delas
extrai valores. É ele que julga das necessidades e, sobretudo, dos m eios de as
satisfazer, e que compara o fim com os meios; assim, a sua principal qualidade
é o julgam ento".

O empresário, enquanto “agente principal da produção”, que efectua a “aplica­


ção da ciência às necessidades do homem”, caracteriza-se essencialmente, segundo
a lição de Say, pelo facto de que ele “produz por sua conta” e “suporta todos os
riscos de produção”, ao contrário do que se passa com “os agentes secundários que
o empresário emprega”.
“U m em pregado, um operário - escreve Say - recebe o seu ordenado ou o seu
salário, quer a empresa ganhe, quer esteja a perder. O próprio capitalista que fez
adiantam entos ao empresário recebe os correspondentes juros em todos os
4 4 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o lít ic a

casos; m as se o produto não cobre os seus encargos de produção, o empresário


c obrigado a tirar d o seu bolso o défice; e esse défice expõe-o a perdas tanto
mais graves quanto m aiores fossem os lucros em caso de sucesso”.

Say distingue as operações industriais de três modos: as investigações do sábio,


as aplicações do empresário, a execução do trabalhador. E, vendo no empresário
industrial o principal obreiro da aplicação dos progressos da ciência à produção,
considerou que a indústria era a principal actividade económica, assentando o
optimismo do seu industrialismo na ideia de que o progresso científico, aplicado à
indústria pelos empresários, havia de proporcionar aos povos elevados padrões de
progresso técnico e económico. Este optimismo cimentou-o o autor ainda mais,
ao enunciar a sua célebre loi des débouchés (lei dos mercados dos produtos), que
haveria de ser aceite pela generalidade dos economistas clássicos e que ficaria
conhecida por lei de Say.

4. A LEI D O S M E R C A D O S D O S PRODUTOS (L E I D E S a y )

Escreve Say:
“o hom em cuja indústria sc aplica a dar valor às coisas, tornando-as úteis para
qualquer fim , só pode esperar que esse valor seja apreciado c pago quando os
outros hom ens disponham de meios para fazer a aquisição. O ra, em que co n ­
sistem estes meios? E m outros valores, outros produtos, frutos da sua indústria,
dos seus capitais, das suas terras; donde resulta, apesar de em prim eira análise
tal parecer um paradoxo, que é a produção que abre mercados aos produtos”.

Noutro passo do Traité, continua Say:


“é conveniente salientar que um produto acabado oferece, desde esse instante,
um m ercado a outros produtos, por todo o m ontante do seu valor. C om efeito,
quando o últim o produtor term inou o produto, o seu m aior desejo é vendê-lo,
para que o valor desse produto não fique por utilizar nas suas mãos. M as ele não
tem m enos pressa cm dcsfazcr-sc do dinheiro que essa venda lhe proporciona,
para que o valor do dinheiro não fique por utilizar nas suas mãos. O ra, só
podem os desfazer-nos do nosso dinheiro tentando com prar um produto qual­
quer. V ê-se, portanto, que o simples facto da formação de um p roduto abre,
nesse m esm o m om ento, um mercado a outros produtos”.

E Say conclui: “E, pois, com o valor dos produtos, transformado momentane­
amente numa soma de dinheiro, que se compram, que todas as pessoas compram
as coisas de que cada um tem necessidade”.
“Lcs produits s’échangent contre les produits”. A moeda não passaria de simples
intermediário nas trocas.
A v e lã s N u n e s - 4 4 9

Como Adam Smith, Say parte do princípio de que todo o aforro éinvestido, afastan­
do assim, dentro do entendimento da loides débouchés, a possibilidade da ocorrência de
crises de sobreproduçãogeral nas economias capitalistas. “O equilíbrio não deixaria de se
verificar, se os meios de produção estivessem entregues à sua liberdade”. O liberalismo
asseguraria, pois, uma plena harmonia de interesses. Say admite apenas a sobreprodução
parcialde certas mercadorias, “quer porque foram produzidas em quantidades demasi­
ado grandes, quer mais propriamente porque outras produções são insuficientes. Cer­
tos produtos superabundam porque outros faltam”. Simplesmente, tais situações de
desequilíbrio parcial seriam sempre transitórias, pois a subida dos preços das produ­
ções insuficientes incentivaria o aumento da sua produção, criando-se assim os meios
de compra das mercadorias até aí existentes em excesso.
Eis a síntese de Say:
“L im itar-m e-ei a fazer notar, aqui, que um a deficiência no escoam ento de um
produto não é mais do que o resultado de um a obstrução cm um ou em vários
dos canais da indústria; que nesses canais se encontram , então, quantidades
m aiores de produtos do que as necessidades gerais reclam am e que é sempre
porque outros canais, longe dc estarem obstruídos, se encontram pelo contrá­
rio desprovidos de vários produtos que, cm vista da sua raridade, são tão procu­
rados com o os prim eiros o são pouco. É porque a produção dos produtos
escassos é reduzida que os produtos superabundantes não se vendem e o seu valor
se altera. E m term os mais vulgares, m uita gente com pra menos porque menos
ganha; c ganham m enos porque encontram dificuldades no em prego dos seus
m eios dc produção, ou porque lhes faltam esses meios.

Assim, verifica-se que as épocas em que certos géneros não se vendem bem são
precisam ente aquelas em que outros géneros alcançam preços excessivos; c
como os preços elevados servem de motivo para favorecer a produção, é preciso
que haja causas maiores ou meios violentos, como desastres naturais ou políti­
cos, a avidez ou a incom petência dos governos, para que se m antenha forçosa­
m ente esta penúria num lado, que causa um a obstrução no outro. D esapareci­
da essa causa de moléstia política, os meios dc produção dirigem -se para os
canais vagos e o produto destes absorve o excesso dos outros; o equilíbrio
restabelece-se, e raram ente deixaria de existir se se deixassem os meios dc
produção entregues à sua inteira liberdade”.
C a p ítu lo VII

TH O M A S R o b e r t M althus
4 5 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

M althus (1766-1834) é outro dos economistas clássicos em cujo estudo nos


deteremos, pois foi importante a influência que o seu pensamento exerceu. O seu
princípio da população informou toda a teoria clássica da repartição do rendimento
e do desenvolvimento económico.493 A sua teoria da renda exerceu influência na
elaboração teórica de Ricardo. Mais tarde, Keynes haveria de retomar certas idei­
as de M althus acerca do problema da procura efectiva. A estes três pontos da obra
de Malthus dedicaremos, por isso, a nossa atenção.

1 . O " p r in c íp io d a p o p u l a ç ã o "

Os fisiocratas e Adam Smith sustentaram que o laissez-faire e o livre desenvol­


vimento da ordem económica natural produziriam o aumento do bem-estar de
todas as camadas da sociedade. A verdade, porém, é que os primeiros tempos da
revolução industrial inglesa vieram desmentir gravemente tal fdosofia. O advento
do maquinismo e o consequente desenvolvimento da indústria capitalista foram
acompanhados pela aglomeração, nos centros urbanos, de grandes massas de tra­
balhadores miseráveis, atraídos pelos salários industriais (inicialmente mais eleva­
dos que na agricultura) e vítimas da falta de condições das cidades para albergarem
toda essa gente. A breve trecho, com o excesso da mão-de-obra disponível, viria a
baixa dos salários, o desemprego nas épocas de sobreprodução, a degradação da
miséria c a revolta, que algumas vezes assumiu a forma desesperada da destruição
das máquinas, julgadas responsáveis pelo desemprego.
Perante tal situação, projectaram-se na Inglaterra (que desde o séc. XVI pos­
suía um sistema de assistência aos pobres, desempregados e incapazes de traba­
lhar) novas Leis dos Pobres, ampliando o esquema de assistência, projecto que
M althus, de início, apoiou publicamente.
Tais Leis contrariavam, porém, as teses de A. Smith, que as considerava desas­
trosas, uma vez que elas impediam a circulação da mão-de-obra e provocavam,
por isso, desigualdades de salários, o que ia contra o interesse dos trabalhadores.
Ao combater, mais tarde, as Leis dos Pobres, Malthus havia de basear-se, porém,
como veremos, em raciocínio diferente do de Smith.
Neste contexto, foi publicado na Inglaterra, em 1793, o livro de William Godvvin,
Ensaio sobre ajustiça política e a sua influência sobre a moralidade e afelicidade, no qual o
autor sustenta que a miséria e a injustiça reinantes são males inerentes à organização
sócio-económica vigente, que reduzia a grande massa da humanidade à situação de
“escravos e de gado ao serviço de um pequeno número”. Os males derivariam, funda­

493 Do Ensaio sobre o princípio da população, de Malthus (1798), existe uma edição em português, Europa-
América, Lisboa, s/d.
A v e ià s N u n e s - 4 5 3

mentalmente, da propriedade privada e do direito de herança, cuja abolição Godwin


propunha, como meio de obter uma igual distribuição da riqueza - o que o autor
esperava acontecesse sem violência, mas apenas à custa de uma alteração de costumes,
que levasse os ricos a desfazer-se voluntariamente das suas fortunas.
E, perante a dúvida sobre se a supressão da propriedade não provocaria uma
proliferação enorme da espécie humana, capaz de reduzir a sociedade à miséria,
Godwin adopta uma atitude optimista baseado nas largas possibilidades existentes
de aumentar as subsistências e na superioridade da razão sobre os sentidos (o que
levaria os homens a não aumentar desmedidamente o seu número).
Foi esta obra que levou M althus a rever a sua posição inicial de apoio à política
de assistência aos pobres; e a contestação destas conclusões de Godwin conduziu-
o ao enunciado do princípio da população.
Já vimos que Adam Smith defendia o liberalismo porque considerava a liberdade
económica como o melhor caminho para aumentar a riqueza das nações, ao mesmo
tempo que se assegurava que cada um dos indivíduos beneficiaria de tal riqueza.
M althus procura agora demonstrar que a riqueza das nações pode aumentar,
sem que dela beneficiem todos os indivíduos, bastando, para tanto, que a população
aumente em maior medida do que a quantidade de bens disponíveis. Simplesmen­
te, M althus justifica a ordem liberal e a desigualdade social que ela gerava com o
argumento de que assim era possível a melhoria das condições de uma parte dos
indivíduos - uma vez que existem pressões no sentido de limitar o crescimento
demográfico - enquanto que um regime igualitarista ou de comunidade reduziria
necessariamente à miséria todos os indivíduos.
Vejamos o raciocínio de M althus.
Interrogando-se sobre as causas que tinham impedido até então a marcha dos
povos para a felicidade, o autor deteve-se no estudo de uma delas, “uma grande
causa intimamente ligada à própria natureza do homem, (...) a tendência constan­
te, que se manifesta em todos os seres vivos, para se multiplicarem para além da
alimentação existente para eles”.
Na verdade, segundo M althus,
“a natureza, no reino anim al e vegetal, espalhou com a mão mais pródiga e
liberal os germ ens da vida, mas, cm comparação, m ostrou-se avara quanto ao
espaço c ã alim entação necessários ao seu desenvolvimento.

(...) M as, com o - continua M althus - , em virtude dessa lei da nossa natureza
que torna o alim ento necessário à vida do homem , a população não pode nunca
aum entar, efectivam ente, para além da mais fraca quantidade de alim ento
capaz de m anter a vida, um freio enérgico da população, resultante da dificul-
4 5 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o í It ic a

dadc dc obter subsistência, está constantem ente em acção. Essa dificuldade


tem de aparecer algures, e necessariamente será experimentada com dureza sob
um a ou outra das diversas formas de infelicidade ou de receio da infelicidade,
por um a grande parte da hum anidade”.

O princípio da população poderá, pois, resumir-se como uma pressão da popula­


ção (com tendência para crescer) sobre as subsistências, cuja limitação constitui,
por sua vez, um travão da expansão demográfica.
Se não houvesse quaisquer obstáculos, a população duplicaria todos os 25 anos,
aumentando segundo uma progressãogeométrica, enquanto as subsistências aumen­
tariam apenas segundo uma progressão aritmética. Daí que os alimentos não che­
guem para todos os que nascem, sucumbindo à miséria os que não podem ser
alimentados:
“U m hom em que nasce num m undo já ocupado - escreveu M althus - , se a sua
família não pode alim entá-lo ou se a sociedade não pode utilizar o seu trabalho,
não tem o direito dc reclamar um a porção qualquer de alimentos. Ele está
realmente a mais sobre a terra. N o grande banquete da natureza, não há talher
posto para ele. A natureza ordena-lhe que se vá em bora e não tarda a pôr ela
mesma essa ordem em execução”.

A questão que se pôs então a Malthus foi a de saber se, para além desta implacável
lei da natureza, não haveria outros meios de limitar o desenvolvimento da população.
Pondo de lado os meios que se traduziam em aumento da mortalidade (antro­
pofagia, infanticídio, imolação dos velhos, fome, epidemias, guerras), restavam os
meios de redução da natalidade. De entre estes, M althus negou eficácia à regula­
mentação legislativa da idade dos casamentos e rejeitou, por contrárias à natureza e
portadoras de vícios, todas as formas artificiais de controlo da natalidade. E às
razões de ordem moral acrescentou M althus outro tipo de considerações:
“Sempre reprovei todos os meios artificiais e não naturais de lim itar a popula­
ção, sim ultaneam ente cm razão da sua imoralidade e da sua tendência para
suprim ir um estim ulante necessário à actividade económica (industry). Se fos­
se possível cada casal lim itar à vontade o núm ero dos seus filhos, seria certa­
mente dc tem er que a indolência da raça humana aumentasse fortem ente (...)”.

Aqui transparece o postulado individualista que informa a construção malthusi-


ana: o indivíduo deve ser livre de agir; mas deve ser também estimulado à acção
pela ameaça que sobre ele fazem pesar forças que não domina. O mesmo espírito
está presente na defesa que Malthus faz da necessidade de suprimir quaisquer medi­
das de assistência aospobres (supressão que considerava indispensável para limitar o
aumento da população). Com efeito, as Leis dos Pobres, em vez de atenuarem a
A v elã s N u n es - 4 5 5

miséria, agravá-la-iam, pois permitiriam que se casassem, tivessem filhos e os


mantivessem vivos, mesmo aqueles que não tinham meios para isso:
“Por mais duro que tal possa parecer, a pobreza dependente deve considerar-se
desonrosa. U m tal estím ulo parece absolutam ente necessário para prom over a
felicidade da grande massa da hum anidade; c qualquer tentativa geral para
enfraquecer esse estím ulo, por mais benevolente que seja a sua intenção apa­
rente, irá sem pre contra o seu próprio fim”.

A par da supressão da assistênciapública aospobres, Malthus só aceita um meio de


limitar a natalidade: o moral restraint (o constrangimento moral, “a abstenção do
casamento juntamente com a castidade”, como ele próprio explica). M as acrescen­
ta que o moral restraint só é aplicável numa sociedade em que se admita a proprie­
dade hereditária e a desigualdade dasfortunas. Numa sociedade igualitária, com
efeito, “sendo todos iguais e colocados em circunstâncias semelhantes, não se veria
por que razão um indivíduo se julgaria obrigado à prática de um dever que outros
desdenhariam observar”. Pelo contrário, se se verificar desigualdade na distribui­
ção da riqueza, os pobres serão obrigados, por falta de meios, a casar em idade
mais avançada ou a não se casarem.

2. A T E O R I A DA RENDA

Preocupado em explicar os preços elevados do trigo que então se praticavam na


Inglaterra, Malthus publicou, em 1815, dois opúsculos nos quais enunciou alguns
princípios que mais tarde haveriam de ficar conhecidos por lei da renda diferencial.
Escreveu ele:
“D o estudo anterior do progresso da renda resulta que o estado existente da
renda natural da terra é ncccssário para a produção actual e que o preço do
produto, num país que progrida, deve ser quase exactam ente igual ao custo de
produção na terra de pior qualidade, ou à despesa necessária para obter um a
produção suplem entar numa terra antiga, que dá apenas o rendim ento habitual
do capital agrícola com pouca ou nenhum a renda.

É evidente que o preço não pode ser m enor, pois, se o fosse, a terra não seria
cultivada e o capital não seria empregado. E não se poderá, tão-pouco, exceder
sensivelm ente esse preço, pois a terra pobre sucessivamente cultivada dá um a
renda apenas dim inuta ou nula c o rendeiro que dispõe de capital terá sempre
interesse em investi-lo na sua terra se o produto suplem entar resultante da
operação assegurar plenam ente a rentabilidade desse capital, embora não renda
nada ao proprietário fundiário.

D este facto resulta que o preço do produto bruto, válido para a totalidade da
quantidade obtida, é o preço natural ou necessário, quer dizer, o preço necessá-
4 5 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

rio para obter o m ontante actual do produto, em bora de longe a m aior parte
seja vendida a um preço muito superior ao que é necessário para a sua produção,
considerada a fracção que é produzida a m enor custo, enquanto o seu valor de
troca não aparecer dim inuído.

A diferença entre o preço do trigo e o preço dos artigos manufacturados, em


relação ao preço natural ou necessário, é a seguinte: se o preço de um artigo
m anufacturado baixa consideravelmente, a respectiva indústria fica com pleta­
m ente arruinada, enquanto perante um a redução considerável do preço do
trigo apenas se verifica um a diminuição da sua quantidade. H á sempre maneira
de enviar a m ercadoria ao mercado a preço reduzido”.

E já se vê como esta teoria permitia a M althus justificar os preços elevados do


trigo, ponto cm que estava interessado: Mo preço em dinheiro do trigo é mais
elevado nos países ricos” (como era o caso da Inglaterra), pois o desenvolvimento
desses países obrigaria a aumentar a produção e a cultivar, portanto, terras sucessi­
vamente menos férteis, com cujos custos de produção (mais elevados) se parifica-
riam os preços.
À importação de trigo como meio de travar a alta do respectivo preço, Malthus
julgou preferível a diminuição dos impostos que incidiam sobre a agricultura (o
que o classifica como representante dos interesses da aristocracia fundiária, ao
contrário de Ricardo, paladino dos interesses da nova burguesia industrial, e por
isso inimigo acérrimo das Com Laws e defensor do livrecambismo).

3. O PROBLEM A DA "P R O C U R A E F E C T IV A "

Depois de ter publicado o Ensaio sobre oprincipio dapopulação, Malthus publicou,


em 1820, um outro livro: Principies ofPoliticalEconomy. Nesta obra é que o autor se
debruça sobre as crises de sobreprodução desemprego que o capitalismo inglês vi­
nha apresentando, criticando, na sua análise, o optimismo inerente à lei de Say, que a
autoridade de Ricardo tinha acreditado no pensamento económico britânico.
M althus, porém, considerava-a errada, aceitando que eram perfeitamente pos­
síveis as crises de sobreprodução. E não por insuficiência do capital, mas sim em
virtude do excesso do capital relativamente aos mercados existentes, antecipando, em
certa medida, os termos em que Keynes retomará o tema, na General Theory, em
1936. Escreve Malthus:
“Q uando os lucros são fracos e incertos, quando os capitalistas não sabem como
empregar com segurança os seus capitais c quando, por esse motivo, os fundos
passam para o estrangeiro; numa palavra, quando todas as circunstâncias dem ons­
tram que não existe uma procura efectiva de capitais no país, não será infringir cm
vão e cm pura perda o primeiro, o mais importante e universal de todos os p rin d -
A v ela s N u n es - 4 5 7

pios da economia política, o da procura c o da oferta, isso de aconselhar a poupança


e a conversão em capital de uma soma maior dc rendimentos?”

O desemprego explicou-o Malthus, em primeiro lugar, pelo principio dapopula­


ção, pois o superpovoamento (situação em que, segundo ele, se encontrava a Ingla­
terra) impedia não só que a sociedade alimentasse parte dos indivíduos, mas também
que pudesse dar-lhes emprego, utilizando o seu trabalho. Tais situações de desem­
prego, provenientes de uma causa natural (o excesso de mão-de-obra em relação ao
número de empregos) só poderiam ser evitadas limitando a expansão demográfica.
Malthus analisou, porém, o desemprego enquanto fenómeno derivado da insu­
ficiência da procura e da poupança global excessiva, partindo do princípio - contrário
à lei de Say, segundo a qual a oferta cria a sua própria procura - de que a oferta
depende da intensidade da procura.
Pensava-se geralmente, depois de Smith e de Ricardo, que, para o desenvolvi­
mento económico de um país, bastava que esse país dispusesse de terras e de mão-
de-obra com abundância e que as margens de lucro fossem suficientes para permitir
um aforro capaz de alimentar uma acumulação rápida de capital. A M althus cabe
o mérito de pôr cm relevo a necessidade de um aumento prévio da procura para
que, em economia capitalista, se assegure o aumento da produção: M A primeira
coisa de que se necessita (...), antes mesmo de qualquer aumento de capital e de
população, é uma procura efectiva de produtos, isto é, uma procura feita por quem
pode e quer pagar por esses produtos um preço suficiente”.
Partindo da noção de procura efectiva (procura “suficiente para encorajar cons­
tantemente a produção”), Malthus compreende, como se vê, que não basta haver
necessidades, é necessária uma procura solvável\ não basta querer comprar, é preciso
que se possa pagar os produtos, para que a produção se desenvolva, nos quadros de
uma economia capitalista.
Perante as situações de crise, procurou M althus indagar quais as razões que
explicam a insuficiência da procura efectiva. E seguiu, neste sentido, duas pistas.
A - Por um lado observou que
“(...) o consum o e a procura ocasionados pelas pessoas empregadas no trabalho
produtivo nunca podem ser um encorajamento suficiente para a acumulação e
o em prego dc capital.

(...) N enhum a mão-de-obra suplementar - continua M althus - pode ser empre­


gada numa indústria qualquer como simples consequência da procura do produ­
to dessa indústria, ocasionada pelas pessoas empregadas. N enhum rendeiro to­
mará o encargo de dirigir o trabalho dc dez homens suplementares simplesmente
porque o seu produto global se venderá então no mercado a um preço aumentado
4 5 8 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

de um m ontante justam ente igual ao que pagou aos seus trabalhadores adicio­
nais. Deve haver qualquer coisa na situação anterior da procura e da oferta da
mercadoria cm questão ou no seu preço, previamente à procura ocasionada pelos
novos trabalhadores e independentemente dessa procura, para que o emprego de
um núm ero adicional dc pessoas na produção seja garantido”.

Para se compreender esta tese de M althus - de que o poder de consumo dos


trabalhadores é insuficiente para assegurar a manutenção do nível de produção
alcançado - é conveniente resumir o seu conceito de valor de troca: “O valor de
uma mercadoria, num dado momento e num certo lugar, tem sempre por medida
a quantidade de trabalho que ela pode retribuir, ou pela qual pode ser trocada no
lugar e momento considerados”.
Malthus acrescentava, porém, que a quantidade de trabalhopela qual uma merca­
doriapode ser trocada (o seu valor de troca) há-de ser sempre superior à quantidade de
trabalho necessáriapara produzira mercadoria, pois o preço recebido pelo empresá-
rio-vendedor há-de ser tal que lhe permita não só pagar os salários (com os quais
identifica o trabalho incorporado na mercadoria), mas também as rendas da terra,
além do lucro do capital. Daqui se concluirá que as mercadorias valem mais que o
trabalho nelas incorporado (salários). E por isso se compreende que o montante
global dos salários distribuídos (sempre inferior ao valor da produção total) não
seja suficiente para absorver toda a oferta, a um preço que permita aos produtores
pagar as rendas e ainda ficar com lucro para si.
Nesta lógica se insere a condenação da política de salários altos, que, além disso,
acarretaria a redução dos lucros e a quebra de incentivo para que os capitalistas
aumentem a produção; sem que, aliás, viesse melhorar a situação dos trabalhado­
res, pois, de acordo com o princípio da população, esta aumentaria em consequên­
cia da subida dos salários e estes viriam a baixar como resultado do aumento da
oferta de mão-de-obra.

B - M althus não ignora, por outro lado, que, além do consumo dos assalaria­
dos, há ainda o consumo das outras classes. M as entende que o comportamento
destas é marcado por uma tendência para o subconsumo: elas não gastam todos os
seus rendimentos, aforrando uma parte, porventura excessiva. Escreve Malthus:
“Q uanto aos capitalistas reunidos cm proprietários e outras pessoas ricas, supo­
mos que resolveram ser parcimoniosos e, privando-se dos seus prazeres, do seu
luxo ordinário, poupar dos seus rendim entos para aum entar o seu capital. (...)
O objectivo principal dc toda a sua vida é conseguir acumular um a fortuna à
força de econom ia”.
A v e ià S N u n es - 4 5 9

Malthus parte da ideia de que toda a produção é produção de bens de consumo


e de que todas as despesas são despesas em bens de consumo para concluir que o
aforro dos capitalistas cria necessariamente uma situação de subconsumo, poden­
do, em caso dc excesso, fazer baixar a procura aquém do limite exigido para que o
nível da produção se mantenha. E, diminuindo a procura efectiva, verificar-se-ia
um declínio permanente da produção e da riqueza, com o consequente decréscimo
do emprego e a posterior diminuição da população.
Reconhecendo ser “incontestável que nenhum aumento permanente e firme de
riqueza pode verificar-se sem um acréscimo constante do capital”, M althus acres­
centa que, não havendo suficiente procura efectiva dos produtos, “onde quer que a
procura dos produtos não fosse suficiente para dar lucros razoáveis aos produtores,
e onde os capitalistas não soubessem nem em quê, nem como empregar os seus
capitais com vantagem, a acção de economizar sobre os rendimentos para acres­
centar ao capital não teria outro efeito senão enfraquecer antes do tempo a tendên­
cia para acumular, e prejudicar os capitalistas, sem aumentar utilmente o capital
real c regular”.
Este raciocínio poderia ter alguma lógica se se pudesse aceitar a tese segundo
a qual a produção nacional de um país consiste apenas em bens de consumo.
Com o assim não é, então tem de reconhecer-se que só o entesouramento sig­
nifica rendimento não gasto, pois a parte do aforro que é investida traduz-se numa
procura de bens de equipamento (de bens capitais), que pode assegurar que a procura
se apresente a um nível de equilíbrio, eventualmente correspondente, em certo
momento, ao nível de produção atingido. Perante um certo volume de investimen­
to é que terá, então, de averiguar-se se o desenvolvimento do consumo será sufici­
ente para justificar essa produção de bens capitais.
Não há dúvida de que M althus - menos optimista do que Say e Ricardo em
relação ao desenvolvimento do capitalismo industrial - reconheceu e afirmou a
tendência das economias capitalistas para o subconsumo (ou sobreequipamento),
embora sem ter conseguido uma demonstração satisfatória. Vejamos os remédios
que propôs para obviar os seus inconvenientes:
1 - Antecipando uma ideia que mais tarde haveria de colher o favor dos teóri­
cos e dos governantes, M althus propôs a realização de obras públicas, justificando
assim a sua proposta:
“É im portante, d entro dos esforços que fazemos actualm ente para socorrer as
elasses operárias, convencerm o-nos dc que seria desejável que elas fossem em ­
pregadas em actividades cujos produtos não sejam postos à venda nos merca­
dos, como a reparação das estradas e as obras públicas.
4 6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

N ão sc poderia objectar a esta maneira dc empregar um a forte soma, levantada


por m eio do im posto, que ela iria dim inuir o capital afectado ao trabalho
produtivo; porque, até certo ponto, está aí precisamente aquilo de que tem os
necessidade”.

2 - Não considerando este expediente decisivo, Malthus julga mais importante,


como fonte de novos mercados, o desenvolvimento do comércio interno e do comércio
externo.
3 - M althus defende, finalmente, a necessidade de aumentar o “consumo im­
produtivo”, pois a “utilidade dos consumidores improdutivos resulta de que eles
mantêm um equilíbrio entre o produto e o consumo”. Por isso, escreve M althus, “é
preciso que haja uma classe numerosa de indivíduos que tenham, ao mesmo tem­
po, a vontade e afaculdade de consumir mais do queproduzem”.
Entre os indivíduos improdutivos, entendia Malthus que uosproprietáriospredi­
ais ocupam, sem contestação, a primeira fila”, acrescentando-lhes o “corpo de
indivíduos que se dedicam a diferentes espécies de serviços pessoais” (homens de
estado, militares, juizes, advogados, médicos, padres, etc.).
Já se vê como o autor não põe nunca a hipótese de transformação da sociedade
cujas contradições de algum modo surpreendeu. Preconizou, sim, na síntese de
Sedas Nunes, “o incremento dos réditos dos proprietários, o favorecimento do
luxo, a acentuação das desigualdades de fortuna. Mas, ao mesmo tempo, opunha-
se à elevação dos salários - que eram baixos por uma causa natural- , à protecção
aos pobres e indigentes, à amplificação do regime da assistência pública”.
C apítulo V III

D a v id R ic a r d o
4 6 2 - U m a I n t r o o u ç â o A E c o n o m ia P o í It ic a

1 . R ic a r d o , f u n d a d o r d a e c o n o m ia p o l ít ic a a b s t r a c t a
Nasceu em 1772 e morreu em 1823 o mais importante teórico da Escola Clás­
sica inglesa (“o economista mais distinto do nosso século”, como lhe chamou
Marx), que começou a interessar-se pelo estudo da Economia Política após a
leitura de Riqueza das Nações, em 1799.
Maurice Dobb considera que “Ricardo foi, por excelência, o profeta económico
da burguesia industrial”. E Keynes escreveu que “Ricardo conquistou a Inglaterra
tão completamente como a Santa Inquisição tinha conquistado a Espanha”, expli­
cando este êxito de Ricardo “por um conjunto de simpatias entre a sua doutrina e o
meio em que foi lançada. O facto de (...) ela apresentar muitas injustiças sociais e
crueldades aparentes como incidentes inevitáveis na marcha do progresso, e os es­
forços destinados a modificar este estado de coisas como susceptíveis de fazer, em
última análise, mais mal que bem, recomendava-a à autoridade. O facto de ela for­
necer certas justificações às livres actividades do capitalista individual valia-lhe o
apoio das forças sociais dominantes agrupadas por detrás da autoridade”.
Alguns autores são talvez mais afirmativos. J. K. Ingram escreveu em 1907 que
a elevada reputação de que Ricardo gozou no seu tempo se ficou a dever, em boa
parte, a “um sentido dc apoio que o seu sistema deu aos industriais e outros capi­
talistas no seu crescente antagonismo em relação à antiga aristocracia dos senho­
res da terra”.494
Poderá talvez dizer-se que, antes de Ricardo, a economia política ignora o seu
objecto. A produção da riqueza era rodeada de uma certa dose de mistério e o
próprio conceito de riqueza estava longe de ser unívoco.
Antes de Ricardo, muitas das obras teóricas sobre problemas de economia
política incluíam no título palavras como inquiry, origin, recherche, ou outras de
sentido idêntico. Ricardo foi mais afirmativo e intitulou a sua obra maior On the
Principies ofPolitical Economy and Taxation.A9S
O objecto da economia política estava definitivamente encontrado, dispensan­
do-se qualquer inquérito ou investigação para o descobrir. Sobre o valor é o título do
Capítulo I dos Princípios, podendo ler-se, como epígrafe da Secção I: “O valor de
um bem, ou seja, a quantidade de qualquer outro bem com o qual se possa trocar,
depende da quantidade relativa de trabalho necessária para o produzir e não da
maior ou menor remuneração auferida por esse trabalho”.

494 A p u d M . DO B B, Teorias d o valor.. cit.,3 7.


495 Existe tradução em português. Princípios de Economia Política e de Tributação, Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1975. Reportam-se a esta edição (utilizaremos, abreviadamente, Princípios1todas as re­
ferências expressas que fizermos a seguir a esta obra.
A v elã s N u n es - 4 6 3

Fazendo do valor de troca o objecto da economia política, Ricardo utiliza um


método de análise que rompe radicalmente com o empirismo. Para Ricardo, a
compreensão da realidade não reside (ou não se esgota) na sua contemplação: a
inteligência dos fenómenos económicos supõe uma rotura com o sensível, de modo
e chegar-se à essência deles pela abstracção. Neste sentido, tem razão Bagehot ao
considerar Ricardo “o verdadeiro fundador da economia política abstracta”.

2. A TEORIA DO VALOR

A análise de Quesnay dava por suposta a equivalência real que se estabelecia no


mercado, ao trocar uma mercadoria por outra. Mas como tal equivalência não se
revelava estável, alterando-se com frequência o valor dos bens uns em relação aos
outros, surgia a questão dc saber qual a explicação dessas mudanças, a questão de
saber se não haveria qualquer base de equivalência fundamental, ‘natural’, que o
valor do mercado não pudesse exprimir sempre de modo adequado. Tais questões
levaram à elaboração de uma teoria do valor que constitui uma das mais importantes
construções teóricas da Economia Política Clássica. “Assim como a ciência natural -
escreve Maurice Dobb - tratava de propriedades como a ‘longitude* e o ‘peso’, pare­
cia que a ciência económica deveria assentar sobre o facto básico do ‘valor’”.496
E é com Ricardo que a teoria do valor aparece claramente como o núcleo da
teoria económica. Os Princípios começam, como já vimos, com a afirmação de que
o valor de uma mercadoria “depende da quantidade relativa de trabalho que é neces­
sária para a sua produção”.
A teoria do valor de Ricardo é, pois, a teoria do valor-trabalho, a respeito da
qual não haverá lugar para as dúvidas de interpretação que apontámos relativa­
mente ao pensamento de Smith, pois Ricardo sustenta claramente que o valor das
mercadorias se explica pela quantidade de trabalho necessária para a sua produ­
ção, teoria que considera válida não apenas para formas remotas de organização
económica, mas também no contexto do sistema capitalista que tinha perante si.
Assim como defende que o valor “não depende da abundância mas antes da difi­
culdade ou da facilidade da produção”, Ricardo esclarece igualmente que “a utili­
dade não serve de medida de valor de troca, embora lhe seja absolutamente essencial”.
“Se um bem fosse destituído de utilidade - por outras palavras, se não pudesse,
de m odo algum, contribuir para o nosso bem -estar - não possuiria valor dc
troca independentem ente da sua escassez ou da quantidade de trabalho neces­
sária para o produzir.

4% Cfr. M . D O BB, Introdução à Economia, cit., 24.


4 6 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o iít ic a

O s bens que possuem utilidade vão buscar o valor de troca a duas fontes: à sua
escassez c à quantidade dc trabalho necessária para a sua obtenção.

H á alguns bens cujo valor c determ inado unicam ente pela sua escassez. A
quantidade de tais bens não pode ser aumentada pelo trabalho e, portanto, não
se pode reduzir o seu valor aum entando a oferta. Pertencem a esta classe
estátuas e pinturas célebres, moedas e livros raros e vinhos de qualidade que só
se podem fazer com uvas produzidas em terreno especial e disponível em
pequena quantidade. O seu valor é absolutamente independente da quantidade
de trabalho necessária para os produzir, mas, em contrapartida, varia com as
alterações na situação económica e nos gostos dos que os desejam possuir.

Porém , estes produtos representam um a parcela dim inuta da massa dos bens
diariam ente trocada no mercado. D e longe, a maior parte dos bens procurados
são obtidos por m eio do trabalho e podem ser multiplicados quase ilim itada­
m ente não só num país mas cm muitos, se estivermos dispostos a utilizar o
trabalho necessário para os obter.

Por isso ao escrever sobre os bens, o seu valor de troca e as leis que regulam os
seus preços relativos, referim o-nos sempre aos bens cuja quantidade pode ser
aum entada pela actividade hum ana e em cuja produção a concorrência actua
sem restrições”.497

Como à Economia Política só interessam, verdadeiramente, os problemas respei­


tantes à produção e distribuição dos bens susceptíveis de ser ‘reproduzidos’em grandes
quantidades pela actividade dos homens, poderá dizer-se que, para Ricardo, a teoria do
valor que interessa à Economia Política é aquela que faz assentar o valor de troca das
mercadorias na “quantidade de trabalho necessária para a sua reprodução”.
Relativamente à diferente qualidade do trabalho, Ricardo logo especifica que,
“embora o trabalho seja remunerado segundo a sua qualidade, esse facto não pode
causar alterações no valor relativo dos bens”.
“A o falar do trabalho como fundam ento de todo o valor e da sua quantidade
relativa como determ inante quase exclusiva do valor relativo dos bens - escreve
Ricardo - , não deve supor-se que não considero as diferentes categorias de
trabalho e a dificuldade em comparar o trabalho de um a hora ou dc um dia
em pregados num a tarefa com o mesmo lapso de tem po aplicado noutra. O
valor conferido às diferentes catcgorias de trabalho é rapidam ente acertado no
mercado com suficiente precisão para quaisquer fins práticos c depende m uito
da relativa destreza do trabalhador e da quantidade de trabalho executado. A
escala, um a vez estabelecida, é susceptível de m uito pequenas variações. Se o
trabalho diário de um relojoeiro vale mais do que o trabalho de um trabalhador

497 Cfr. Princípios, ed. cit., 31/32.


A v elAs N u n e s - 4 6 5

vulgar é porque foi há m uito tem po calculado e colocado na devida posição na


escala de valores”.

Avançando em relação ao entendimento mais simplista de Adam Smith, Ri­


cardo põe em relevo que “o valor dos bens não tem somente origem no trabalho
directamente neles aplicado mas também no trabalho que foi aplicado nos utensí­
lios, ferramentas, e edifícios que com eles colaboram”.
“M esm o no estado primitivo da sociedade a que Adam Sm ith se refere - escreve
Ricardo - seria necessário algum capital para o caçador m atar os animais, embora
seja possível que esse capital fosse feito e acumulado por ele. Sem uma arm a não
se poderia matar nem o castor nem o veado; portanto, o valor desses animais seria
calculado não só cm consideração ao tem po c trabalho necessários para a sua
captura mas tam bém ao tem po e trabalho necessários para obter o capital do
caçador, a arma, por meio da qual se efectuava a sua captura.

Suponhamos que a arm a necessária para matar o castor era fabricada com muito
mais trabalho do que a necessária para matar o veado, em razão da maior dificul­
dade em chegar perto do primeiro animal c da consequente necessidade de ela ser
mais aperfeiçoada: um castor teria naturalm ente mais valor do que dois veados,
precisamente por esta razão, isto é, no total era necessário mais trabalho para o
caçar. O u supunham os que era necessária a mesma quantidade dc trabalho para
produzir as duas armas, mas que a sua duração era m uito dcs-igual; só uma
pequena parte do valor da mais resistente seria transferida para o produto, ao
passo que sc incorporaria uma parte m uito maior do valor da arm a menos
duradoura no outro produto”.498

Ricardo acrescenta logo a seguir que o valor relativo dos bens há-de ser “pro­
porcional ao trabalho empregado tanto na formação do capital como na caça dos
animais”, mesmo numa sociedade dividida em classes, em que “todas as armas
necessárias para caçar o castor e o veado possam pertencer a uma classe de homens
e o trabalho empregado na sua caça possa ser oferecido por outra classe”. O prin­
cípio de que o valor de troca dos bens depende da quantidade de trabalho necessá­
ria para os produzir é válido, segundo Ricardo (ao contrário do que pensava Smith),
mesmo nas situações em que se verifica, na expressão de Adam Sm ith, “a acumu­
lação de capital (...) nas mãos das pessoas privadas” e “a apropriação da terra”.
E Ricardo sustenta que os bens variam de valor segundo este mesmo princípio,
mesmo em “uma sociedade mais desenvolvida, onde a arte e o comércio florescem”.
“Ao calcular-se o valor de troca das meias, por exemplo, - escreve Ricardo -
concluirem os que o seu valor, relativamente às outras coisas, depende da quan-

498 Cfr. Princípios, ed. d L , 4-44.


4 6 6 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o ü t ic a

tidadc total dc trabalho ncccssário para as fazer e as colocar no mercado. E m


prim eiro lugar, há o trabalho necessário para cultivar a terra que produz o
algodão; em segundo lugar, o trabalho dc transportar o algodão para o país
onde as meias são manufacturadas, o qual inclui um a parte do trabalho em pre­
gado na construção do barco que o transportar e que é pago no frete; cm
terceiro lugar, o trabalho da fiandeira e do tecelão; em quarto lugar, um a parte
do trabalho do engenheiro, do ferreiro e do carpinteiro que construíram os
edifícios e as máquinas que contribuem para a sua fabricação; em quinto lugar,
o trabalho do com erciante a retalho c de m uitos autores que é desnecessário
pormenorizar. A soma destas várias espécies dc trabalho determ ina a quantida­
de de outros bens com os quais as meias são susceptíveis de serem trocadas e o
mesmo cálculo das quantidades dc trabalho utilizadas nos outros bens determ i­
nará a quantidade delas que se poderá trocar pelas meias.

Para nos convencerm os dc que este é o verdadeiro fundam ento do valor de


troca, suponham os que se deu um aperfeiçoam ento qualquer que reduziu o
trabalho num a das várias fases por que passa o algodão em bruto antes de as
meias m anufacturadas serem trocadas por outros bens no mercado, e vamos
observar os seus efeitos. Se forem necessários m enos hom ens para cultivar o
algodão ou se forem utilizados menos m arinheiros na navegação ou menos
carpinteiros na construção do navio que o transporta, se forem necessários
m enos hom ens para construir os edifícios e as máquinas ou se estas, um a vez
construídas, forem mais eficientes, as meias dim inuirão inevitavelmente dc
valor e, em consequência, obtêm -se m enos bens cm troca. D im inuiriam dc
valor porque era ncccssário menos trabalho para a sua produção e, portanto,
trocar-sc-iam por um a quantidade menor daqueles bens nos quais não se tives­
se verificado um a tal redução dc trabalho”.499

Em conclusão: “Qualquer economia na utilização do trabalho reduz o valor


relativo de um bem, quer essa poupança se dê directamente no trabalho necessário
para a fabricação do produto quer no trabalho necessário para a formação do
capital com o qual é produzido”.
A teoria do valor-trabalho de Ricardo pressupõe que em todas as actividades
produtivas se utilize capital fixo e capital circulante na mesma proporção e que o
capital fixo seja de idêntica duração em todas elas. Só nestas condições se poderá
defender que o valor de um bem depende da “quantidade relativa de trabalho
necessária para o produzir” e não da “maior ou menor remuneração auferida por
esse trabalho.”

499 Cfr. Princípios, ed ciL, 45/46.


A v e iAs N u n es - 4 6 7

No entanto, Ricardo chama a atenção para o facto de nem sempre tais pressu­
postos se verificarem:
“Duas actividades podem utilizar o mesmo montante dc capital mas este pode ser
dividido dc modo muito diferente cm relação à parte que c fixa e à que é circulante.

H á actividades cm que se em prega m uito pouco capital circulante, quer dizer,


capital que apoia o trabalho; o capital pode ser investido principalm ente em
m áquinas, utensílios, edifícios, etc., ou seja, um capital dc carácter relativa­
m ente fixo c duradouro. N outras actividades pode até em pregar-se o mesmo
m ontante dc capital, mas scr utilizado principalmente para apoiar o trabalho e
só um a pequena parte ser investida cm utensílios, máquinas e edifícios.

(...) D a mesma maneira, dois industriais podem utilizar igual m ontante de


capital fixo e de capital circulante, mas a duração do capital fixo de cada um
pode ser m uito desidual”.500

Assim sendo, variando as circunstâncias em que são produzidos os bens, o


valor relativo dos bens produzidos em idênticas circunstâncias, em comparação
com o dc outros bens que não são produzidos com a mesma quantidade relativa de
capital fixo (ou com capital da mesma duração que retorne à posse do capitalista
com igual rapidez), varia “com uma subida nos salários, embora não se altere a
quantidade de trabalho empregado na sua produção”.
Ricardo trata estes casos, no entanto, como simples modificações (é o termo por
ele utilizado) ao “princípio de que a quantidade de trabalho empregada na produ­
ção dos bens determina o seu valor relativo” ou “princípio dc que o valor não se
altera com a subida ou descida dos salários.”501
Daí a sua conclusão:
“Ao avaliar as causas das alterações do valor dos bens, em bora seja incorrecto
om itir pura e simplesmente a consideração do efeito produzido por um a subida
ou descida dos salários, seria igualmente incorrecto dar-lhe m uita importância;
consequentem ente, no resto deste trabalho, embora ocasionalm ente me possa
referir a esta causa de variação, considerarei que todas as grandes alterações que
se verificam no valor relativo dos bens são causadas pela m aior ou m enor
quantidade dc trabalho ncccssária para os produzir cm períodos diferentes”.

3. A TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO DO RENDIMENTO

Em 1820, Ricardo dizia numa carta para Malthus:

500 Cfr. Princípios, ed. cit., 52/53.


501 Cfr. os resumos das secções IV e V de Princípios, ed. cit., 50-59.
4 6 8 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o lít ic a

“A economia política é, a seu ver, um inquérito sobre a natureza e as causas da


riqueza. Eu entendo, pelo contrário, que ela deve ser definida como um inquérito
a respeito da distribuição do produto da indústria entre as classes que concorrem
para a sua formação. N ão pode ligar-se a nenhum a lei a quantidade de riquezas
produzidas, mas pode enunciar-se uma lei bastante satisfatória para a sua distri­
buição. Cada dia me convenço mais - conclui Ricardo - de que o primeiro estudo
é vão e decepcionante e dc que o segundo constitui o objecto próprio da cicncia”.

É esta uma convicção que Ricardo anunciara já em 1817 quando escreveu, no


prefácio dos Princípios, que “o principal problema da Economia Política consiste
cm determinar as leis que regem a distribuição”.
Assim começa o referido Prefácio:
“O produto da terra - tudo o que se extrai da sua superfície pela aplicação
conjunta do trabalho, equipam ento c capital - é dividido pelas três dasses da
comunidade, quer dizer, o proprietário da terra, o possuidor do capital necessá­
rio para o seu cultivo c os trabalhadores que a amanham.

Porém , cada um a destas classes terá, segundo o avanço da civilização, um a


participação m uito diferente no produto total da terra, participação esta den o ­
m inada respectivamente renda, lucros e salários; esta situação dependerá prin­
cipalm ente da fertilidade da terra, da acumulação do capital e da densidade da
população e da habilidade, inteligência e alfaias aplicadas na agricultura.

O principal problema da Economia Política consiste cm determinar as leis que


regem esta distribuição; e embora esta d ê n d a tenha feito grandes avanços com os
escritos deTurgot, Stuart, Smith, Say, Sismondi e outros, eles não proporcionam
muitos dados satisfatórios sobre a evolução natural da renda, lucros c salários”.

Procurando entender a essência de uma sociedade em que eram já claramente


dominantes as relações produção capitalistas, Ricardo explicitou a estrutura de
classes de uma tal sociedade e compreendeu a importância da burguesia (e, por­
tanto, da taxa de lucro) para a acumulação do capital e, por isso mesmo, para a
determinação das condições de desenvolvimento continuado das economias capi­
talistas. O estudo das leis que regulam a distribuição do rendimento surge, assim,
na teoria ricardiana, como um elemento fundamental para a compreensão da dinâ­
mica do sistema.
E neste sentido orienta Ricardo a sua análise, a partir da elaboração da teoria do
valor, assentando a sua teoria da distribuição do rendimento em três grandes princí­
pios: a) a renda da terra apresenta tendência para se elevar, b) o salário manter-se-á
a um nível de subsistência; c) a taxa de lucro tende a baixar continuamente.
A v e lã s N u n e s - 4 6 9

3.1. A TEORIA DA RENDA DIFERENCIAL


Partindo da ideia de M althus de que a população tende a crescer constante­
mente, Ricardo acrescenta que este aumento da população obriga a cultivar terras
menos férteis ou a praticar a cultura intensiva nas terras já cultivadas, o que signi­
ficará que os custos de produção das unidades adicionais virão aumentados (quer
numa hipótese, quer noutra, como se verá).
A este respeito, escreve Ricardo:
“O valor dc troca dc um a mercadoria qualquer (...) não é nunca regulado pela
mais pequena soma de trabalho necessário para a sua produção cm circunstân­
cias extremam ente favoráveis, c que constituem um a espécie de privilégio. Este
valor depende, pelo contrário, da maior quantidade de trabalho que são força­
dos a em pregar os que não têm sem elhantes facilidades c aqueles que, para
produzir, têm que lutar contra as circunstâncias mais desfavoráveis”.

E, no Ensaio sobre a influência de um preço baixo do trigo nos lucros do capital


(1815), Ricardo torna mais claro o seu ponto de vista:
“O valor dc troca dc todos os bens sobe à medida que aum enta a dificuldade da
sua produção. Logicam ente, se surgirem novas dificuldades na produção de
trigo devido ao facto de se tornar necessária maior quantidade de trabalho,
enquanto o m esm o não sucede para produzir ouro, prata, tecidos, etc., o valor
dc troca do trigo aum entará forçosamente, em relação àqueles bens... Neste
caso, o único efeito sobre os preços do aum ento da riqueza, independentem en­
te de todos os m elhoram entos, na agricultura ou nas manufacturas, é provocar
a subida dos preços das m atérias-prim as e do trabalho, deixando todos os
outros bens aos seus preços correntes, c a descida dos lucros gerais cm
consequência do aum ento geral dos salários”.

Quer dizer: o valor de troca do trigo, por exemplo, afere-se pela quantidade de
trabalho necessária para a sua produção na terra menos fértil de entre as que são
cultivadas. O valor de troca de um produto será igual ao seu custo marginal, ao
custo suportado para a sua produção na terra menos fértil, que será, por isso, uma
no rentland. Se assim não fosse, ninguém cultivaria tais terras, pois ninguém esta­
ria disposto a cultivar nelas o trigo se tivesse de o trocar (vender) por um valor
inferior ao seu custo, ou mesmo por um valor igual ao custo, se tivesse de pagar
ainda uma renda ao proprietário.
Terras que propiciam uma renda ao seu proprietário serão, portanto, todas
aquelas cuja fertilidade é superior à da terra cultivada em que os produtos se obtêm
a um custo mais elevado. Como o preço das quantidades globais do produto acaba
por coincidir com o custo em trabalho mais elevado, a situação dos proprietários
das terras em que os custos são menos elevados e a concorrência entre os rendeiros
4 7 0 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l ít ic a

interessados em arrendá-las tomam possível àqueles exigirem destes uma remune­


ração pela cedência das terras correspondente à diferença entre o custo de produção
efectivo da respectiva terra e o custo marginal.
Como em M althus, a renda é, na construção de Ricardo, um rendimento dife­
rencial. M as Ricardo sustenta ainda que a concorrência entre os rendeiros obriga
estes a terem que aceitar o pagamento de uma renda que lhes deixa apenas, como
ganho seu, a importância correspondente à remuneração dos seus capitais à taxa
normal. A renda aparece, pois, em Ricardo, como uma parte do valor anterior­
mente criado.
Já se compreenderá agora que as rendas tendam a subir em virtude de o au­
mento da população impor o cultivo de terras menos férteis, cujo custo de produ­
ção vai aumentando, tom ando assim maior a diferença entre o custo marginal e o
custo efectivo de produção das terras mais férteis, cujos proprietários vêem au­
mentar as suas rendas.
À mesma conclusão chegou Ricardo perante a hipótese dc se fazer cultura
intensiva nas terras mais férteis (empregando no seu cultivo mais trabalho e mais
capitais), em vez de se passarem a cultivar terras menos férteis. E isto em virtude
da lei dos rendimentos não-proporcionais ou lei dos rendimentos decrescentes, já anteri­
ormente formulada porTurgot, embora só com Ricardo tenha adquirido relevo na
teoria económica.
Essa lei significa que a quantidade de trabalho adicional despendido no cultivo
de determinada terra não produzirá (pressupondo constante a técnica) um aumen­
to da quantidade de produto correspondente ao aumento da quantidade de traba­
lho utilizado. Se, v.g., uma terra permite obter 100 alqueires de trigo, incorporando
cada alqueire 3 dias de trabalho, a mesma terra passará a exigir, por cada alqueire
de trigo produzido, na hipótese de cultura intensiva, não já 3 dias de trabalho, mas
5 ou 6, por exemplo. Obter-se-ão custos marginais crescentes, portanto; e, por um
raciocínio semelhante ao da primeira hipótese, a renda aumentará.
O pessimismo, que na obra de M althus andava ligado ao principio da população,
acentua-se nas teses de Ricardo. Cada homem a mais, embora seja não apenas um
consumidor, mas também um produtor, é - por força da lei dos rendimentos decres­
centes - um produtor que obterá um rendimento mais fraco que os anteriores, o
que provoca (e explica) o abaixamento do nível de vida, em consequência do au­
mento da população.

3 .2 . A TEORIA DO SALÁRIO
O mesmo ‘pessimismo’ aparece na sua teoria do salário.
A v e iAs N u n e s - 4 7 1

Ricardo procura explicar o salário considerando o trabalho como uma mercado­


ria, à qual se pode aplicar a distinção de Smith entre preço naturalc preço de mercado.
“O trabalho, como as outras coisas que se com pram e se vendem c cuja qu an ­
tidade pode aum entar ou dim inuir, tem o seu preço natural e o seu preço de
mercado. O preço natural do trabalho é aquele preço que é necessário para
perm itir que os trabalhadores, cm geral, sobrevivam c se reproduzam sem o seu
núm ero aum entar ou dim inuir.

Aquilo que torna possível a sobrevivência do trabalhador c dos m em bros da sua


família necessários para conservar o mesmo número de trabalhadores não depen­
de da quantidade de dinheiro que ele possa receber sob a forma de salários mas da
quantidade de produtos alimentares, bens de primeira necessidade e outros arti­
gos que se lhe tenham tornado indispensáveis devido ao hábito da sua utilização
e que ele possa adquirir com o seu salário. Portanto, o preço natural do trabalho
depende do preço dos produtos alimentares, bens de primeira necessidade e
outros artigos para o sustento dos trabalhadores e da sua família. C o m a subida
dos preços dos produtos alimentares e dos bens de primeira necessidade, o preço
natural do trabalho aum entará e descerá com a dim inuição dos primeiros”.

Por outro lado, o preço de mercado do trabalho define-o Ricardo como “o preço
realmente pago por ele com base na relação natural entre a oferta e a procura; é
caro quando escasseia e barato quando abunda”.502
Ricardo esclarece a seguir que o preço natural do trabalho não se confunde com
o necessário para assegurar a mera subsistência biológica dos trabalhadores:
“Isto não quer dizer que o preço natural do trabalho, m esm o calculado em
term os dc produtos alimentares e bens de primeira necessidade, seja absoluta­
m ente fixo e constante. N um m esmo país ele varia no tem po e difere acentu-
adam ente de um país para outro. D epende essencialmente dos usos e costumes
do povo. U m trabalhador inglês consideraria o seu salário abaixo do seu preço
natural c insuficiente para sustentar um a família se com cie não pudesse com ­
prar senão batatas para a sua alim entação nem viver num a habitação que não
passasse dum a choça dc lama; porém , estas m odestas exigências naturais são
frequentem ente consideradas suficientes cm países onde ‘a vida hum ana é ba­
rata’ e as suas necessidades facilmente satisfeitas. M uitas das com odidades que
sc desfrutam hoje num a casa inglesa seriam consideradas com o luxos num
período mais recuado da nossa história.

C om o progresso da sociedade, a constantc dim inuição no preço dos produtos


m anufacturados e a igualm ente constante subida de preços das m atérias-pri-
mas cria um a tal desproporção a longo prazo no seu valor relativo que nos

502 Cfr. Princípios, ed. cit., 103/104.


4 7 2 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia PotlTtcA

países ricos um trabalhador, sacrificando som ente um a quantidade m uito pe­


quena dos seus produtos alimentares, pode satisfazer am plam ente todas as
outras necessidades”.503

Adm itindo que o valor da moeda se mantém, Ricardo mostra que os salários
variam em função de duas causas: a oferta e a procura de trabalhadores; o preço
dos produtos em que os trabalhadores despendem os salários.
M as defende que, “com o progresso natural da sociedade, os salários terão
tendência a descer enquanto forem regulados pela oferta e pela procura, pois a
oferta de trabalhadores continuará a aumentar à mesma taxa enquanto a procura
aumentará a uma taxa lenta”.
Ao fim e ao cabo, “por muito que o preço de mercado do trabalho se desvie do
seu preço natural, tem tendência, como os outros produtos, a ajustar-se-lhe”.
A lei da população de M althus está na base da explicação dada por Ricardo
para esta tendência:504
“Q uando o preço de m ercado do trabalho excede o seu preço natural o traba­
lhador é próspero e feliz visto ter à sua disposição um a proporção m aior de bens
de prim eira necessidade c dc satisfações e assim poder sustentar um a família
sadia e numerosa. Porém , quando aum enta o número de trabalhadores devido
ao facto de os salários elevados estim ularem o crescim ento da população, os
salários descem novamente até ao seu preço natural c, na realidade, algumas
vezes até descem abaixo dele com o reacção.

Q uando o preço de mcrcado do trabalho sc situa abaixo do seu preço natural,


a condição dos trabalhadores é miserável: a pobreza priva-os, então, do confor­
to que os hábitos antigos tornaram necessários. Só depois destas privações
terem reduzido o seu núm ero ou de a procura de trabalho ter aum entado de
m odo a que o preço de mercado do trabalho se eleve até ao seu preço natural é
que o trabalhador gozará o moderado conforto que lhe proporcionará a taxa
natural de salários”.

Assim a teoria se ajustava à realidade do tempo, caracterizada por salários de


miséria, que Ricardo explicava com base na lei natural da população e nos meca­
nismos automáticos do comportamento da oferta c da procura.
“E stas são, pois, as leis que regulam os salários e que regem a prosperidade da
maioria dos indivíduos duma comunidade. C om o todos os outros contratos, os
salários deviam ser deixados à mcrcc da concorrência livre e leal do m ercado c
nunca deviam ser controlados pela legislatura - escreve Ricardo.

503 Cfr. Princípios, ed. ciL, 1107/108.


504 Cfr. Princípios, ed. ciL, 104/105.
A v e l As N u n e s - 4 7 3

A tendência clara c directa das leis dos pobres está em com pleta oposição a
estes princípios evidentes: não se destinam , com o o legislador benevolente­
m ente desejava, a m elhorar a condição dos pobres, mas sim a piorar a situação
tanto dos pobres como dos ricos; cm vez de enriquecerem os pobres destinam -
se a em pobrecer os ricos. E nquanto vigorarem as presentes leis parece absolu­
tam ente natural que aumente progressivamente o fundo destinado à m anuten­
ção dos pobres até que absorva todo o rendim ento líquido do país, ou, pelo
menos, tudo o que o estado nos deixar depois de satisfazer a sua perpétua
procura dc fundos para fazer frente às despesas públicas.

(...) As leis da gravidade não são mais verdadeiras do que a tendência de tais leis
para transform ar a riqueza e o poder em miséria e fraqueza; para fazerem o
hom em renunciar a todo o trabalho que não tenha por objectivo a obtenção de
meios de subsistência; para abolirem todas as distinções quanto às faculdades
intelectuais, para ocuparem continuam ente o espírito com a satisfação das
necessidades do corpo até que, form alm ente, todas as classes sociais sejam
atacadas pela moléstia da indigência universal”.505

Ricardo, como se vê, aceita integralmente as teses saídas da “pena competente


de M althus” acerca das Leis dos Pobres. Para além da revogação destas leis, Ricardo
partilha com M althus a atitude de resignação perante o status quo.
“É um a verdade indiscutível - cscrcvc ele - que o conforto c o b em -estar dos
pobres não pode ser assegurado dc m odo perm anente sem que estes se preocu­
pem , ou a legislatura em seu lugar, com o controlo do seu crescim ento num é­
rico e com a ncccssidade de tornar menos frequentes entre eles os casamentos
dc indivíduos m uito jovens c inexperientes. O funcionam ento do sistem a das
leis dos pobres tem actuado dc maneira com pletam ente oposta. Tornou toda a
moderação supérflua c convidou à im prudência ao oferecer-lhes uma parte dos
salários que deviam cabcr à diligência e à prudência”.

Nestes termos, considerando que a formação e a fixação dos salários são o


resultado de certas leis naturais, fica resolvido o problema da distribuição do ren­
dimento, pois o lucro há-de entender-se como a parte que cabe aos capitalistas
depois de pagas as rendas e os salários, sem necessidade de se procurar uma lei que
explique a determinação dos lucros.
Ricardo limita-se a pôr em relevo que os lucros serão tanto mais elevados
quanto mais baixos forem os salários:
“O valor total da sua produção [da produção dos agricultores e dos industriais]
é dividido só em duas partes: um a constitui os lucros do capital, a outra os
salários do trabalho.

505 Cfr. Princípios, ed. cit., 116-120.


4 7 4 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o i It ic a

Supondo que o trigo e os produtos manufacturados se vendem sempre ao


m esmo preço, os lucros serão elevados ou baixos na medida em que os salários
sejam baixos ou elevados. M as suponham os que o preço do trigo aum enta
porque é necessário mais trabalho para o produzir: esta causa não fará aumentar
o preço dos produtos manufacturados cuja produção não exija um a quantidade
adicional dc trabalho. Nesse caso, se os salários se mantiverem, os lucros dos
industriais não sofrem alteração; mas se, como é absolutam ente certo, os salá­
rios aum entarem com a subida do trigo, então os seus lucros devem necessari­
amente dim inuir”.506

3.3. A TENDÊNCIA PARA A BAIXA DA TAXA DE LUCRO


Analisando a dinâmica do sistema, na sequência da sua teoria da distribuição,
Ricardo sustenta a tendência para a baixa da taxa de lucro.
“O bserva-se que a mesma causa que faz aum entar a renda, isto é, a crescente
dificuldade na obtenção de um a quantidade adicional dc produtos alimentares
com a m esm a quantidade proporcional de trabalho, tam bém faz aum entar os
salários c, portanto, se a moeda for estável, tanto a renda como os salários terão
tendência para subir com o aum ento da riqueza e da população.

M as há um a diferença essencial entre o aum ento da renda e o aum ento dos


salários. O aum ento do valor m onetário da renda é acom panhado dc um a
m aior participação na produção; não só a renda monetária do proprietário da
terra é m aior com o tam bém a sua renda em term os de trigo; rcccberá mais
trigo c cada m edida deste será trocada por um a quantidade m aior dc todos os
outros bens que não subiram de preço. O trabalhador terá menos sorte: auferirá
de salários monetários mais elevados, é verdade, mas os seus salários em termos
de trigo dim inuirão; c não só disporá de menos trigo como piorará a sua
situação geral por lhe ser mais difícil conservar a taxa dos salários de mercado
acima da taxa natural”.

Em resumo:
“Apesar de o trabalhador ser na realidade menos bem pago, este aumento dos
salários diminuiria necessariamente os lucros do industrial, pois os seus produtos
não seriam vendidos mais caros embora as despesas de produção aumentassem”.507

Vejamos o seu raciocínio.


O aumento da população obriga a cultivar terras cada vez menos férteis; deste
facto resultaria a subida das rendas e a elevação do preço do trigo (produtos alimen­
tares); perante o aumento do preço do trigo, os salários nominais teriam de subir,

506 Cfr. Princípios, ed. c it , 121/122.


507 Cfr. Princípios, ed. cit., 112/113.
A v elà s N u n es - 4 7 5

para que os salários reais continuassem a assegurar o mínimo de subsistência; sim­


plesmente, o valor dos produtos industriais não aumentaria, pois o valor depende
apenas da quantidade de trabalho necessária para produzir a mercadoria e não do
nível dos salários pagos; quer dizer: perante a subida dos custos (salários e rendas),
não subiria o produto das vendas e a taxa de lucro baixaria.
E assim remata a visão pessimista de Ricardo, que se extrai da aceitação do
princípio da população e suas consequências, da defesa da lei dos rendimentos
decrescentes, da teoria do salário, e, por último, da tendência para a baixa da taxa
de lucro. Segundo esta perspectiva, a economia (capitalista) inglesa corria o risco
de se transformar de progressiva em estacionária, uma vez que a estagnação resul­
taria necessariamente da quebra do nível dos investimentos provocada pela dimi­
nuição das taxas de lucro. Desta situação aproveitaria apenas a ‘classe ociosa’ dos
proprietários de terras, cujas rendas subiriam.
A análise que fez da Inglaterra do seu tempo levou Ricardo à conclusão de que
ela se caracterizava pela tendência da população para crescer mais aceleradamente
que a acumulação do capital. O ra - escreve Ricardo - M à medida que a população
aumenta, os preços dos bens de primeira necessidade subirão constantemente, por­
que será preciso mais trabalho para os produzir”. Perante este aumento dos preços
dos bens essenciais, é natural que os salários monetários - que tendem a corres­
ponder ao mínimo de subsistência - subam o necessário para compensar os traba­
lhadores (a mão-de-obra não poderia reproduzir-se normalmente se, durante muito
tempo, os salários fossem inferiores ao mínimo de subsistência). Sendo assim, é
claro que “os lucros dos industriais diminuiriam necessariamente”, o que desin­
centivaria a acumulação do capital.508
Assim se criariam as condições para o estado estacionário. Ricardo fala dele de
modo explícito apenas quando estuda os efeitos das Leis dos Pobres. Embora decla­
re a sua convicção de “estarmos bastante distantes ainda” de tal estado estacionário,
ele parece surgir, no contexto da sua obra, como o ponto de chegada da “tendência
natural dos lucros para descer”, tendência que considera uma “espécie de submis­
são às leis da gravidade” e que explica porque, “com o desenvolvimento da socie­
dade e da riqueza, a quantidade de produtos alimentares necessários exige cada vez
mais trabalho”.
Esta tendência é “felizmente contrariada com frequência pelos aperfeiçoamen­
tos nas máquinas utilizadas na produção dos bens de primeira necessidade, assim
como pelos melhoramentos nos processos agrícolas, os quais permitem dispensar

508 cfr. Princípios, ed. c it , 122.


4 7 6 - U m a I n t r o o u ç â o â E c o n o m ia P o l It ic a

uma parte do trabalho antes necessário, e, portanto, baixar o preço dos bens de
primeira necessidade para os trabalhadores”.
M as Ricardo considera-a uma ameaça permanente ao “estado progressivo”,
porque, no limite, se os lucros baixarem muito, “deixará de haver acumulação pois
então nenhum capital poderá dar lucros; não será então necessário mais trabalho
adicional e a população terá atingido o seu máximo”. Concluindo o seu raciocínio,
Ricardo adverte, aliás, para o facto de, “muito tempo antes desta situação, a taxa de
lucro mais baixa terá acabado com a acumulação e a quase totalidade da produção
do país, depois de se ter pago aos trabalhadores, pertencerá aos proprietários da
terra e aos cobradores de dízimos e de outros impostos”.509
A tendência para a baixa da taxa de lucro há-de ser mais tarde considerada por
Marx como uma das contradições do modo de produção capitalista, contradições que
hão-de levar à substituição do capitalismo pelo socialismo. Ricardo, porém, nunca põe
em dúvida a perenidade do sistema, apoiado nos elementos optimistas da sua teoria: 1)
a impossibilidade de crises de sobreprodução, nos termos da lei de Say; 2) as vantagens
inerentes ao livrecambismo. Referiremos a seguir estes dois aspectos.

4 . R ic a r d o e a l ei d e Say
Se é certo que os resultados da análise de Ricardo parecem comprometer a
visão de Adam Sm ith e a sua confiança num progresso sem limites desde que se
deixasse actuar livremente a mão invisível, também é verdade que este optimismo
ressurge em Ricardo graças à sua aceitação entusiástica da lei de Say.S10
“O s produtos com pram -sc com outros produtos ou com serviços; a m oeda é só
um meio através do qual se efectua a troca. Pode produzir-se cm excesso um
determ inado bem e pode haver um a tal superabundância dele no mercado que
não chcguc para rem unerar o capital nele aplicado. M as isto não se verifica cm
relação a todos os bens. A procura de trigo é limitada pelo núm ero dc bocas que
o devem comcr, a de sapatos c dc casacos pelo núm ero dc pessoas que os usam;
mas, em bora a sociedade, ou um a parte da sociedade, tenha tanto trigo c tantos
chapéus c sapatos quantos os que possa ou queira consumir, já não se pode dizer
o mesmo a respeito dos bens produzidos pela natureza ou pelo trabalho. M uita
gente desejaria consum ir mais vinho se tivesse meios para isso. O utros, que
dispõem de vinho suficiente para o seu consum o, desejariam ter mais móveis
ou possuir outros dc m elhor qualidade. O utros desejariam em belezar os seus
jardins ou aum entar as suas casas. O desejo dc fazer tudo isto, integralmente ou
cm parte, é próprio de todos os indivíduos. M as é necessário dispor de m eios c

509 Cfr. Princípios, ed. ciL,1 20,133 e 183.


510 Cfr. Princípios, ed. cit., 334-337.
A v e l As N u n e s - 4 7 7

só o aum ento da produção os pode fornecer. Se tivesse ao meu dispor produtos


alimentares c bens dc prim eira necessidade, não me faltariam trabalhadores
que m e forneceriam alguns dos bens mais úteis ou m ais desejáveis para mim”.

Ao contrário do que defendia M althus, Ricardo acreditava que não haveria


qualquer limitação ao desenvolvimento económico da Inglaterra decorrente da
insuficiência da procura efectiva.
“Say dem onstrou do m odo mais satisfatório que não há nenhum m ontante de
capital que não possa ser investido num país, porque a procura só pode ser
limitada pela produção. Ninguém produz se não tiver a intenção dc consumir ou
dc vender c ninguém vende se não tiver a intenção de com prar outros bens que
possam ter utilidade im ediatamente ou que possam contribuir para a produção
futura. Deste modo, um indivíduo, pelo facto dc produzir, torna-se ou consum i­
dor dos seus próprios produtos ou produtor e consumidor dos produtos dc outro
indivíduo qualquer. N ão se deve supor que ele permaneça indefinidamente mal
inform ado sobre os bens que pode produzir, com lucro para alcançar o fim que
tem em vista, ou seja, para adquirir outros bens c, portanto, não é provável que ele
continue a produzir um bem para o qual não há procura”.

As limitações à acumulação do capital só poderiam resultar, pois, da baixa da


taxa de lucro:
“Deste m odo, num país só se pode acumular um a quantidade qualquer de
capital desde que este possa ser utilizado produtivam ente até que se verifique
um a subida tão grande nos salários, em consequência do aum ento dos preços
dos bens de prim eira necessidade, que, por conseguinte, fique tão pouco para
lucros do capital que deixe de haver motivos para acumular. E nquanto os lucros
dos capitais são elevados, os indivíduos têm um m otivo para acumular. E n ­
quanto um indivíduo tiver um desejo por satisfazer, terá necessidade dc mais
bens c a sua procura será efectiva sempre que tiver ao seu dispor um novo valor
qualquer para trocar esses bens.

(...) O facto dc este crescimento da produção e da consequente procura que ela


determina fazer ou não diminuir os lucros - conclui Ricardo - depende unicamente
da subida dos salários, e esta subida, excepto por um período limitado, depende da
facilidade em se produzir os produtos alimentares e os bens de primeira necessidade
para os trabalhadores. E u disse durante um período limitado porque nada é menos
indiscutível do que o princípio dc que a oferta dc trabalhadores é sempre, em última
análise, proporcional aos meios para os sustentar”.

5 . O LIVRECAMBISMO E A TEORIA DO COM ÉRCIO INTERNACIONAL

Embora aceite a teoria da renda de Malthus, Ricardo defende a necessidade de


impedir a subida das rendas.
4 7 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

É aqui que se insere a defesa que fez da revogação imediata das Corn Laws
(promulgadas em 1815 para proteger o mercado interno do trigo, proibindo a
sua importação).
Ricardo foi, sem dúvida, “o apóstolo dosfree-traders ingleses”, fazendo da sua
teoria da distribuição a base teórica do ataque contra as Leis dos Cereais. Comba­
tendo os interesses dos landlords, as teorias de Ricardo estavam em perfeita sinto­
nia com os interesses da burguesia industrial (a classe mais dinâmica naquela
época), à qual convinha a liberdade do comércio.
A revogação das Leis dos Cereais em 1846 constitui, sem dúvida, “o maior
triunfo que o livrecambismo alcançou no séc. XIX” (como salientaria Marx em
1848, no Discurso sobre o livrecàmbio), e marcou a vitória definitiva da burguesia
industrial sobre a aristocracia rural inglesa.
Na Inglaterra, a pressão resultante do aumento da população obrigara ao cul­
tivo de terras sáfaras e à cultura intensiva das terras férteis, o que - já o vimos -
conduzia ao aumento dos preços do trigo, ao aumento da renda diferencial e ao
aumento dos salários nominais, com a consequente baixa da taxa de lucro.
Ora, a possibilidade de a Inglaterra importar livremente trigo (alimentos) a
preços mais baixos que os praticados no país aparecia a Ricardo como a compen­
sação necessária para os rendimentos decrescentes e indispensável para afastar o fan­
tasma do estado estacionário.
Num texto de 1819, Ricardo refere-se à “escassez e consequente subida do
custo dos alimentos e outros produtos fundamentais” como o único obstáculo ao
desenvolvimento económico “por tempo indefinido”. E sustenta que se os alimen­
tos e outros bens essenciais forem “fornecidos do estrangeiro em troca de bens
manufacturados, será difícil determinar o limite em que se deixará de acumular
riqueza e obter lucro com a sua aplicação”.511
Compreende-se, assim, que a questão relacionada com as pautas de importação
de produtos essencias fosse considerada como “uma questão da máxima importância
para a economia política”. Relativamente a ela, é inequívoca a posição de Ricardo:
“Preconizo o comércio livre dos cereais fundam entando-me no facto de que,
sendo o com ércio livre e os cereais baratos, os lucros não descerão, por m uito
im portante que possa ser a acumulação dc capital. Se nos lim itarm os aos
recursos do nosso próprio solo, penso eu - continua Ricardo a renda acabará
por absorver a m aior parte do produto que resta depois de pagos os salários, c,
consequentem ente, os lucros serão baixos”.

511 Perante a facilidade com que Ricardo se desembaraça do fantasma do estado estacionário, ganha sentido a
tese dos autores para quem a noçâo de estado estacionário e a invocação da possibilidade da sua concretização
poderão ter sido, na obra de Ricardo, um expediente destinado a assustar os defensores do proteccionismo.
A v ela s N u n es - 4 7 9

Sem dúvida, pois, que, para Ricardo, a liberdade do comércio externo pode
constituir para um dado país um factor importante de desenvolvimento económi­
co, na medida em que permita o aumento da taxa de lucro. E Ricardo explica quais
os requisitos indispensáveis para que tal se verifique.
“N o dccurso dcstc trabalho - cscrcvc clc no Cap. VII dos Princípios - tentei provar
que a taxa de lucro nunca pode aumentar senão pela diminuição dos salários e que
esta descida não pode ser permanente se não diminuir o preço dos bens nos quais são
despendidos os salários. Se, com o alargamento do comércio externo ou os aperfei­
çoamentos nas máquinas, se puder fornecer o trabalhador com os produtos ali­
mentares c os bens dc primeira necessidade a um preço mais acessível, os lucros
devem aumentar. Se, em vez de produzirmos o trigo ou confeccionarmos o vestu­
ário e outros bens de primeira necessidade para o trabalhador, descobrirmos um
novo mercado que nos pode abastecer a preços mais baixos, os salários diminuem
e aumentam os lucros. M as se os produtos obtidos mais baratos, quer pelo alarga­
m ento do comércio externo, quer pelo aperfeiçoamento das máquinas, forem
cxdusivamcntc consumidos pelos ricos, a taxa de lucro não sofrerá alteração. O s
salários não seriam afectados mesmo que o vinho, o veludo, a seda e outros bens dc
luxo diminuissem 50% e, consequentemente, os lucros manter-se-iam inalterados.

É por isso que o comércio externo, em bora extrem am ente benéfico para um
país, visto aum entar o volume e a variedade dos produtos em que se pode
aplicar o rendim ento c incentivar a poupança e a acumulação de capital, devido
à abundância e baixo preço dos produtos, não tem ten d ên d a para fazer aum en­
tar os lucros d o capital, salvo se os produtos im portados forem aqueles que os
trabalhadores consomem”.

Mas Ricardo procurou demonstrar, com a sua teoria do comércio internacional,


que a liberdade de comércio assegura ganhos para todos os países que dele parti­
cipem, realizando uma perfeita harmonia de interesses.
“N um sistem a dc comércio perfeitam ente livre - cscrcvc Ricardo cada país
consagra o seu capital c trabalho às actividades que lhe são mais rendosas. Esta
procura de vantagem individual coaduna-se admiravelmente com o bem -estar
universal. Deste m odo, estim ulando-se a indústria, prem iando-se os eventos e
em pregando-sc o mais eficazmente possível as possibilidades especiais conce­
didas pela natureza, o trabalho é m elhor distribuído e com m aior economia,
enquanto que, aum entando a produção total, se espalha o bem -estar por toda
a parte e se ligam a todas as nações do m undo civilizado com os elos do
interesse e d o intercâm bio. É este princípio que faz com que o vinho seja
produzido na França c em Portugal, que se cultivc o trigo na A m érica c na
Polónia e que se fabriquem ferram entas e outros produtos na Inglaterra”.512

512 Cfr. Princípios, ed. c it , 148/149.


480 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia PoitncA

M uito sinteticamente, diremos que a teoria do comércio internacional de David


Ricardo assenta na teoria dos custos comparativos ou da diferença relativa de custos,
segundo a qual cada país produzirá e venderá aos outros aqueles bens que pode
produzir em condições relativamente mais favoráveis, isto é, aqueles bens cujos
custos relativos são, no país considerado, mais baixos que no estrangeiro. Tomemos
o exemplo, dado pelo próprio Ricardo, do vinho de Portugal e dos tecidos de
Inglaterra; e admitamos que um destes países - a Inglaterra, na hipótese posta por
Ricardo - produz os dois bens a custos mais elevados do que o outro. Nem por
isso, como vamos ver, Portugal deixará de ter vantagem em se especializar na
produção do vinho e a Inglaterra na produção de tecidos.
Sejam estes os custos de produção dos dois bens em cada um dos países:

C ustos de produção (H oras de trabalho)

V inho (« unidades) tecidos (w unidades)


Portugal 80 90

Inglaterra 120 100

Comparando-se os custos em Portugal e na Inglaterra, vê-se que Portugal tem


vantagem relativa na produção de vinho (80/90 <120/100), enquanto que a Ingla­
terra goza de vantagem relativa na produção dos tecidos (100/120 < 90/80), embo­
ra Portugal tenha vantagem absoluta na produção dos dois bens.
Mas, sendo assim, Portugal terá interesse em produzir apenas vinho, compran­
do os tecidos à Inglaterra. Pois com uma unidade de vinho obtém-se em Portugal
0,88 unidades de tecido, ao passo que, na Inglaterra, uma unidade de vinho troca-
se por 1,2 unidades de tecido. A exportação do vinho para Inglaterra interessa,
portanto, a Portugal enquanto os portugueses puderem comprar na Inglaterra, com
uma unidade do vinho exportado, mais do que 0,88 unidades de tecido.
A Inglaterra, por sua vez, vai produzir tecidos e exportá-los para Portugal, pois
uma unidade de vinho obtém-se lá em troca de 1,2 unidades de tecido, enquanto
que, exportando os tecidos para Portugal, poderão os ingleses obter uma unidade
de vinho apenas com 0,88 unidades de tecido. O interesse da Inglaterra em impor­
tar o vinho e exportar os tecidos mantém-se enquanto em Portugal for possível
obter uma unidade de vinho por menos de 1,2 unidades de tecido.
Os benefícios do comércio internacional são, pois, os benefícios da especializa­
ção; e a especialização justifica-se pelo princípio da vantagem relativa.
Assim se consolidou, no primeiro país de indústria capitalista, a ideologia li-
vrecambista, assente na tese de que a liberdade do comércio internacional trazia
A v e lA s N u n e s - 4 8 1

vantagens para todos os países, independentemente do estado e do desenvolvimento


relativo em que se encontrassem, e mesmo que se tratasse de relações entre as
metrópoles e respectivas colónias.
Que a política livrecambista era a que mais convinha então à Inglaterra indus­
trial ninguém duvidará. Por isso a Inglaterra a adoptou a partir de 1846, impondo-
a, nomeadamente, às suas colónias, que assim sofreram a degradação progressiva
da situação económica que tinham alcançado e a impossibilidade de elas próprias
se industrializarem. Os outros países - particularmente os EUA e a Alemanha -
compreenderam que, se não protegessem as suas indústrias nascentes, estas não
poderiam competir com as congéneres britânicas, que, lançadas em meados do séc.
XVIII, tinham entretanto adquirido vantagens que apenas o decurso do tempo e a
protecção alfandegária poderiam proporcionar aos países que só no séc. XIX ini­
ciaram o seu processo de industrialização.
C apítulo IX

As R e a c ç õ e s contra a E scola
C l á ssic a
4 8 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o lít ic a

As críticas à Escola Clássica e aos seus principais autores fizeram-se sentir em


vários planos: 1) no plano metodológico; 2) no plano da contestação da teoria do
comércio internacional e do livrecambismo; 3) no plano da contestação do próprio
sistema capitalista, cujas injustiças deixaram indiferentes os economistas clássicos.

1. A CRÍTICA METODOLÓGICA

Neste aspecto, a crítica da Escola Clássica foi feita a partir de diferentes perspectivas.
a) Augusto Comte (1798-1857) sustentou que a Economia Política clássica
não passara ainda da idade metafísica (a fase intermédia de evolução do espírito
humano, de acordo com a sua lei dos três estados: idade teológica, idade metafísica
e idade positiva).
Para o positivista francês, só esta última corresponderia ao conhecimento cientí­
fico, o qual deve limitar-se ao estabelecimento da existência de certas relações inva­
riáveis entre factos observáveis. Para quem não admitia a possibilidade de o homem
aceder ao conhecimento da verdadeira essência das coisas, compreende-se a negação
da natureza científica à nova Economia Política, que fazia da noção de valoro núcleo
da sua pesquisa, procurando atingir a essência do sistema económico.
b) A Escola Histórica Alemã, como vimos atrás, criticou aos autores da Escola
Clássica o facto dc muitas das suas construções serem obtidas pelo método dedu­
tivo a partir dos pressupostos que se inscrevem na racionalidade atribuída à figura
abstracta do homo oeconomicus ou em princípios decorrentes de leis naturais.
Mas é sobretudo o carácter a-histórico do método de análise dos autores clássi­
cos, a validade absoluta e universal que estes atribuem às leis económicas (enquanto leis
naturais, imutáveis e insubstituíveis como as leis da Física), que constituem o ponto
essencial da crítica da Escola Clássica feita pelos adeptos da Escola Histórica.
O grande mérito destes autores residiu em ter chamado a atenção para a neces­
sidade de os estudos económicos serem encarados numa perspectiva histórica,
considerando todas as instituições económicas e sociais como categorias históricas.
M as - já o sabemos - a ausência de uma perspectiva teórica, de uma teoria da
História, acabaria por converter a Escola Histórica numa história dosfactos econó­
micos, numa ciência morta.
c) Também o marxismo contém uma crítica ao carácter a-histórico da teoria
económica dos clássicos, procurando mostrar, na síntese de Schumpeter, “corno a
teoria económica pode ser convertida em análise histórica e como a exposição
histórica pode ser convertida em histoire raisonée.”
Ao contrário dos autores da Escola Histórica, porém, Marx afirmou a necessi­
dade de uma teoria da História. Como à frente veremos melhor, M arx prosseguiu
A v elã s N u n es - 4 8 5

o esforço teórico dos clássicos ingleses (nomeadamente de David Ricardo, ao qual


foi buscar a sua teoria do valor-trabalho), embora tenha chegado muitas vezes a
conclusões de sentido contrário às dos clássicos, desde logo porque considerou
que as leis naturais (de validade universal e intemporal) por estes enunciados não
passavam de leis próprias de um dado modo de produção, historicamente determi­
nado. Na expressão de Rosa Luxemburgo, “a teoria de Marx é filha da teoria
económica burguesa, mas o seu nascimento matou a mãe”.

2. A CRÍTICA DO LIVRECAMBISMO

Neste domínio, destaca-se ainda um autor ligado à Escola Histórica, Friedrich


List, cuja obra principal é National System der Politischen Oekonomie( 1841).
List critica aos clássicos o pressuposto individualista de que partiam ao consi­
derarem o mundo como que constituído apenas por indivíduos que actuariam num
espaço económico ilimitado, desconhecendo portanto a realidade nacional, a na­
ção, enquanto centro de determinados interesses colectivos. List, pelo contrário,
tem em consideração essa realidade nacional no processo histórico evolutivo.
Para este alemão, só a industrialização pode libertar um país da pobreza. E por
isso combateu a tese ricardiana da especialização ditada pelo jogo dos custos com­
parados, sustentando que o livrecambismo, quando praticado entre países de desi­
gual desenvolvimento, leva a uma especialização que condena o mais fraco à
impossibilidade de se desenvolver, remetendo-o para a posição de exportador de
matérias-primas e de géneros agrícolas.
O livrecambismo foi apontado como a doutrina que convinha à Inglaterra,
detentora de um monopólio tecnológico que a colocava em vantagem relativamente a
quaisquer concorrentes potenciais.
A Inglaterra impôs o livrecambismo nas relações comerciais com as suas coló­
nias. M as a Alemanha, empenhada na sua industrialização, tratou de proteger-se
da concorrência dos produtos ingleses, constituindo os estados alemães (em 1833)
a união aduaneira que ficou conhecida por Zollverein (tarefa em que participou F.
List). Também os Estados Unidos da América lançaram medidas de protecção
aduaneira, aí se desenvolvendo, desde finais do séc. XV III, uma corrente adversa
ao livrecambismo (salientam-se os nomes de T. Cooper e Carey).

3. A CRÍTICA ' s o c i a l i s t a '

A aceitação pelos economistas clássicos das injustiças apontadas ao capitalismo


como fenómenos naturais, inevitáveis e inalteráveis, foi objecto das mais diversas
reacções críticas por parte de autores que condenavam aquelas injustiças e sustenta­
4 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o lít ic a

vam a necessidade de lhes pôr cobro, transformando o sistema capitalista ou subs­


tituindo-o por outro sistema mais justo.
Entre as correntes que alimentaram esta crítica à Escola Clássica podem refe­
rir-se: os socialistas ricardianos; o socialismo tecnocrático\ o socialismo associacionista; o
socialismo burguês.
O mais conhecido e o mais importante dos socialistas ricardianos é sem dúvida
Sismondi (1773-1842), destacando-se também Thomas Hodgskin (1783-1869),
W illiam Thom pson (1783-1833) e John Gray (1799-1850), na Inglaterra; John
Francis Bray (1809-1895), nos Estados Unidos da América; Karl Rodbertus (1805-
1875) e Karl M ario (1810-1865), na Alemanha. De um modo geral, são autores
que aceitam as teses fundamentais da economia política clássica, mas criticam a
doutrina liberal.
Defensor do garantismo social, Sismondi é muitas vezes considerado como o
precursor da moderna legislação sociale das teses que advogam, como factor dtp a z
social, a participação dos trabalhadores no capital e nos lucros das empresas. H od­
gskin mostrou-se contrário à intervenção estadual, considerando missão dos sin­
dicatos a supressão da exploração do trabalho pelo capital. Thom pson advogou
uma espécie dc política de redistribuição dos rendimentos. J. F. Bray terá sido o
primeiro autor a falar da mais-valia e muitos relevam a sua influência sobre Marx.
A expressão “socialismo tecnocrático” refere-se a Saint-Simon (1770-1825),
cujas concepções se inserem na linha do jacobinismo francês. Confiante nas virtu­
des da industrialização, ele próprio designou como industrialismo a sua filosofia
social. Considerando os proprietários rurais uma classe ociosa, Saint-Simon de­
fende que todos os membros da sociedade devem trabalhar; e, reconhecendo as
vantagens da organização empresarial na indústria, advoga a organização e plani­
ficação de toda a economia, com vista à “melhoria da existência moral e física da
classe mais fraca”. Considerando a classe empresarial como a verdadeira classe
trabalhadora, acredita que o exercício do poder pelos técnicos e empresários da
indústria (hoje diríamos, talvez, tecnocratas) permitiria resolver os problemas soci­
ais, pois a direcção planificada da economia adequar-se-ia aos interesses da mai­
oria, garantindo a todos o direito ao trabalho.
Os socialistas associacionistas poderão caracterizar-se, genericamente, pelo facto
de não preconizarem nenhuma intervenção estadual para resolver os problemas
sociais. Tão pouco atribuem qualquer importância ao estado no âmbito da proble­
mática social. O estado é pura e simplesmente ignorado. Defendem, sim, a forma­
ção, à margem do estado, de grupos ou instituições de indivíduos que se administram
a si próprios. A justiça será assim realizada porque cada indivíduo alcança a liber­
dade através do direito que detém de gerir os negócios comuns dentro do grupo.
A v e ià s N u n e s - 4 8 7

De entre outros (Cabet, Leroux, Louis Blanc, v.g.), destacam-se o inglês Ro-
bert Ovven (1771-1858) e o francês Charles Fourier (1772-1837).
Owen foi sobretudo um homem de acção. Procurou - e em grande parte con­
seguiu - fazer da sua fábrica em New Lanark uma sociedade-modelo, erradicando
completamente o alcoolismo, a polícia, a caridade pública. Em 1824 fundou na
América uma colónia segundo o modelo das aldeias cooperativas por ele idealizadas
(a New Harmony, que viria a fracassar após o regresso de Owen à Europa). Robert
Owen foi um dos pioneiros do cooperativismo.
Fourier foi um visionário, considerando-se “possuidor do livro dos Destinos”,
capaz, só por si, de “demolir vinte séculos de imbecibilidade política”, de “rasgar
as trevas políticas e morais e, sobre as ruínas das ciências incertas, erguer a teoria
da harmonia universal”.
O estado de harmonia que preconizava baseava-se na generalização dos falansté-
rios. Estes seriam associações de vida e de trabalho formadas por um número fixo
de homens e de mulheres. Nelas predominaria o trabalho agrícola, de preferência
até a jardinagem. Todos os membros dafalange teriam direito ao trabalho, poden­
do escolhê-lo de acordo com as suas preferências. Assim deixará de existir a espe­
cialização excessiva, derivada da divisão forçada do trabalho, com a consequente
mutilação do homem. O trabalho perderia o seu carácter penoso para se tornar
uma necessidade e fonte de prazer. Deste trabalho criador resultaria a abundância
dos bens materiais e com ela a harmonia social.
É acerca de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) que alguns autores falam de
socialismo burguês, porventura por influência de Marx, que disse de Proudhon: “não
passa de um pequeno burguês, balançando constantemente entre o Capital e o
Trabalho, entre a economia política e o comunismo”.
As concepções de Proudhon reflectem e exprimem as aspirações utópicas das
classes médias, inexoravelmente proletarizadas à medida que o capitalismo se de­
senvolvia, vendo o seu capital ‘expropriado’ pelo grande capital.
Por isso se compreende que ele tenha escrito que “a propriedade é o roubo” e
que tenha fundado um Banco do Povo, onde se emprestaria dinheiro sem juro (as
dificuldades de crédito e a tirania dos bancos eram dos problemas mais sentidos
pelas camadas pequeno-burguesas). Por isso mesmo Proudhon define o socialis­
mo como “a constituição de fortunas moderadas, a universalização da classe mé­
dia”, uma concepção onde espreita o velho ideal jacobino de uma sociedade composta
por pequenos proprietários, em que a propriedade é o fundamento da liberdade e
da igualdade.
4 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Dizendo-sc anarquista, acaba por defender a aplicação de um direito económico


ou direito social, que teria como objectivo realizar a equidade nas relações sociais e
eliminar os ganhos ilegítimos (como era o caso dos rendimentos dos capitalistas e
dos proprietários rurais, em tudo o que fosse além da remuneração do seu trabalho).
T

C apítulo X

Do ‘S o c ia l is m o U t ó p i c o ’ a o
‘S o c ia l is m o C i e n t í f i c o ’
4 9 0 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

O socialismo, entendido como reacção contra a injustiça social - o “grito de


dor”, de que falava Dürkheim - , tem as suas origens na mais remota antiguidade
(desde Platão ao Antigo Testamento), é “tão antigo como a injustiça e a opressão
do pobre pelo rico, do desvalido pelo poderoso”. (Antero de Quental)
Os autores costumam, porém, ir buscar as fontes inspiradoras do pensamento
socialista (tal como se desenvolveu na Europa capitalista em fins do séc. XVIII e
início do séc. XIX) àsJacqueries francesas (1375), à insurreição dos camponeses na
Inglaterra (1381) e à Guerra dos Camponeses na Alemanha (1525), movimento este
a cuja fracção mais revolucionária (chefiada por Thom as M ünzer) aderiu a seita
religiosa anabaptista.
Em 1516 publicou Thom as Morus a sua famosa Utopia, livro em que apresen­
ta a propriedade comum como a base de todo o sistema de produção e distribuição
no seio da comunidade.
N o séc. XVII, eclodiu a Guerra Civil Inglesa (1642-1652). Neste contexto,
surgiu o movimento dos diggers (cavadores), pouco relevante no quadro das quere­
las da guerra civil, mas cujo teórico e animador principal (W instanley) constitui
um ponto de viragem do misticismo religioso medieval para o racionalismo infor­
mador das correntes socialistas posteriores.
Ainda no séc. XVII, Campanella (1568-1639) p u b lic a i Cidade do Sol (1623),
obra que escrevera na prisão, em 1602, e na qual o frade dominicano descreve a sua
sociedade comunista do futuro, advogando a supressão da família e a organização
pelo estado das relações entre os sexos.
No séc. XVIII, as teorias comunistas aparecem reflectidas nas obras de Meslier
(1664-1729), de Morelly e de Mably (1709-1785).
Ainda no séc. XVIII, e no âmbito da Revolução Francesa, destacou-se Babeuf
e a Conspiração dos Iguais (já nos referimos a eles na Parte I).
Antes de 1800, pode dizer-se que o pensamento socialista andou ligado a pen­
sadores isolados ou a movimentos fugazes. A partir de 1800, as condições do
desenvolvimento do capitalismo, particularmente a expansão da classe operária,
explicam o aparecimento - na Inglaterra e na França, onde o capitalismo mais se
desenvolvera - de escolas ou correntes de pensamento, por vezes ligadas a movi­
mentos mais ou menos estáveis. A estas correntes do pensamento socialista [no
seio das quais Engels destaca “os três grandes utópicos” - Saint-Simon, Fourier e
Owen] é que correntemente se liga a designação de socialismo utópico, que Marx e
Engels adoptaram para estabelecer o confronto com o socialismo cientifico (marxista).
Em 1800, Owen começou a dirigir uma fábrica de fiação de algodão em New-
Lanark (na qual aplicou alguns pontos do seu programa de reforma social); em
A v elã s N u n e s - 4 9 1

1802, Saint-Simon publicou as Lettresde Genèvr, em 1808, Fouricr publicou a sua


primeira obra, delineada já desde 1799.
Ora, por esta altura, a grande indústria acabava de se instalar na Inglaterra,
sendo ainda incipiente a sua entrada na França. Os trabalhadores apresentavam-se
então como um grupo miserável, oprimido, mas sem coesão e sem consciência dos
seus interesses de classe. Os conflitos que mais tarde haveriam de agudizar-se
apresentavam-se ainda em estado latente.
Não admira, por isso, que, perante o reconhecimento de anomalias e injustiças da
ordem social, a razão ditasse a necessidade de implantar uma nova ordem, mais justa
que a vigente. Como se escreve no Manifesto Comunista, “a pintura imaginária da
sociedade futura, numa época em que o proletariado, ainda pouco desenvolvido,
encara a sua própria situação de um modo imaginário, corresponde às primeiras
aspirações instintivas dos operários no sentido de uma transformação completa da
sociedade”. Assim justificam Marx e Engels o carácter utópico das manifestações do
pensamento socialista nos primeiros anos do séc. XIX. Tratava-se, como escreveu
Engels, de inventar um novo sistema mais perfeito e “outorgá-lo do exterior à soci­
edade, pela propaganda e, se possível, pelo exemplo de experiências-modelo”.513
Na ausência de soluções inerentes à própria evolução económica, os socialistas
utópicos ‘fabricam’eles próprios, em função do que se lhes afigura mais racional e
mais justo, o sistema que se destinaria a substituir o existente. Ignorando as leis da
história, consideram as transformações sociais como o resultado do espírito de
justiça dos homens, para todos apelando com vista a obter adesões aos seus projec­
tos de reforma da sociedade. Não vêem as classes, mas os homens, buscando o
apoio de todos: patrões e trabalhadores, governantes e governados, ricos e pobres.
Considerando o socialismo como a expressão da verdade, da razão e da justiça
absolutas, os socialistas utópicos - e com eles a generalidade dos socialistas do séc.
XIX - pensavam que bastava que o socialismo fosse ‘descoberto’ para que a força
da razão o impusesse ao mundo. E como a verdade absoluta, fruto da razão, é
independente do tempo e do estádio de evolução histórica, o socialismo, uma vez
‘descoberto’, poderia ser implantado em qualquer comunidade.
Os utópicos - escreveu Engels - “não se apresentam como os representantes
dos interesses do proletariado que entretanto tinha surgido. Com o os filósofos da
era das luzes, pretendem libertar não uma classe determinada, mas a humanidade
inteira. Com o eles, pretendem instaurar o reino da razão e da justiça eterna (...).
Se, até agora, a razão e a justiça efectivas não reinaram no mundo, foi porque não

513 Cfr. F. EN GELS, Socialismo Utópico e Socialismo Científíco, em M ARX/EN GElS, Obras Escolhidas, ed. cit.,
56/57; ou Anti-EXihríng, ed. cit., 316-317.
4 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

se tinham ainda reconhecido exactamante. Faltava precisamente o indivíduo geni­


al que agora chegou e reconheceu a verdade; (...). O indivíduo de génio poderia
muito bem ter nascido 500 anos mais cedo, e teria poupado à humanidade 500
anos de erros, de lutas e de sofrimentos”.
Pondo de parte a conquista do poder político para realizar o socialismo, des­
crentes da autoridade, confiavam apenas no poder da razão para salvar a humani­
dade do ‘inferno da ordem burguesa’ e tomaram-se adeptos da propaganda pacífica
orientada no sentido de persuadirem os que já possuíam poder e riqueza a apoiar
os seus projectos, as suas invenções, aptas a transformar o mundo.
Com o escreveu Paul Sweezy, “eles tentavam, por assim dizer, impor uma nova
forma de sociedade da mesma maneira por que um fabricante procura impor uma
nova máquina. Em ambos os casos é necessário apresentar pormenorizadas espe­
cificações sobre o produto, descrever os seus méritos nos termos mais atraentes,
fazer grande propaganda e, se possível, fornecer modelos para inspecção e aprova­
ção pelos possíveis compradores. (...) Foi, portanto, perfeitamente característico
desses homens que eles fugissem à política - não acidentalmente, mas como ques­
tão de princípio”.514
Acompanhemos a análise do Manifesto Comunista'.
“O s inventores destes sistemas [de socialismo utópico] apcrccbem -sc do anta­
gonism o das classes e da acção de elementos dissolventes na própria sociedade
dom inante. M as não vêem, do lado do proletariado, nenhum a espontaneidade,
nenhum m ovim ento político que lhe seja próprio.

(...) À actividade social eles substituem a sua própria engenhosidade; às condi­


ções históricas da emancipação, condições fantasistas; à organização gradual c
espontânea do proletariado em classe, um a organização da sociedade integral­
mente fabricada por eles. Para eles, o futuro do m undo resolve-se na propagan­
da c na realização dos seus planos sociais. (...) para eles, o proletariado só existe
sob o aspccto da elasse mais sofredora.

(...) Eles desejam m elhorar as condições materiais da vida para todos os m em ­


bros da sociedade, m esm o os mais privilegiados. Por conseguinte, não deixam
de fazer apelo a toda a sociedade sem distinção, dirigindo-se mesmo, de prefe­
rência, à classe dom inante. Porque, na verdade, basta com preender o seu siste­
ma para reconhecer que é o melhor de todos os planos possíveis na m elhor das
sociedades possíveis ....

Eles afastam , portanto, qualquer acção política e sobretudo qualquer acção


revolucionária; procuram atingir o seu fim por meios pacíficos e tentam abrir

514 Cfr. P. SWEEZY, Socialismo, ed. d L , 110.


A v elã s N u n es - 4 9 3

caminho ao novo evangelho pela força do exemplo, por micro-experiéncias que


naturalm ente falham sem pre”.

Marx e Engels, ao contrário dos utópicos, consideram o socialismo como uma


forma histórica da sociedade, que se torna necessária (o que não é o mesmo que
fatal, pois a acção consciente das classes trabalhadores é considerada como um dos
elementos que contribuem para que essa necessidade se verifique) em resultado da
agudização progressiva das contradições no seio do modo de produção capitalista,
contradições que se reflectiriam na luta de classes entre os capitalistas (beneficiários
da exploração inerente ao sistema) e os trabalhadores assalariados (objecto dessa
mesma exploração). Partindo da análise da evolução do capitalismo, o socialismo
científico visa enunciar as leis que explicam essa evolução, por forma a dar ao
proletariado a consciência da sua missão histórica, missão que Marx define como
“a participação consciente no processo histórico que revoluciona a sociedade”.
O socialismo científico não faz apelos aos homens em geral para que abandonem
a ordem capitalista. O marxismo arranca da demonstração de que a transformação
da sociedade se verifica em consequência da contradição que no seu seio se desen­
volve entre o desenvolvimento das forças produtivas e a forma jurídica da sua
utilização (que define a natureza das relações de produção). A luta de classes é o
espelho dessa contradição e o proletariado aparece como a única força social ca­
paz de realizar a transformação da sociedade capitalista, não através de uma luta
puramente sindical, mas de uma luta cujo objectivo último é a tomada do poder
político, com o fim de, a partir dele, destruir a propriedade privada (capitalista)
dos meios de produção, na qual assenta a exploração capitalista, tal como Marx a
entendeu e explicou.
Vimos como os fundadores do socialismo científico justificaram o caracter utópico
do pensamento socialista por volta de 1800, num período em que o próprio prole­
tariado apresentava as suas primeiras aspirações instintivas no sentido de uma
transformação da sociedade.
Entretanto, porém, surgiam as primeiras manifestações de luta por parte da
nova classe operária: as revoltas dos cannuts em Lyon e dos tecelões na Silésia e o
movimento cartista na Inglaterra.
Marx - que em A Ideologia Alemã afirmara que “a existência de ideias revolucio­
nárias em determinada época pressupõe já a existência de uma classe revolucionária”
- viu nestes movimentos operários o sinal de que a classe operária se transformara
em força histórica autónoma, considerando-os não como acontecimentos fortuitos
mas como formas mais ou menos desenvolvidas da luta historica-mente necessária do
proletariado contra a classe dominante. Um pensamento revolucionário não poderia,
4 9 4 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

portanto, ligar-se - na perspectiva de Marx - à realização de um qualquer sistema


utópico, mas deveria antes traduzir-se na participação consciente no processo histó­
rico de revolução social que se desenrolava.
A revolução do proletariado de Paris e o seu esmagamento pela burguesia
francesa, em Julho de 1848, constituem um marco importante na história do pensa­
mento socialista, como salienta Rosa Luxemburgo: M no próprio momento em que
o socialismo dos antigos parecia enterrado para sempre sob as barricadas da insur­
reição de Junho, Marx e Engels fundamentavam a ideia socialista numa base in­
teiramente nova”. Para os autores que, em 1848, publicaram o Manifesto Comunista, o
socialismo deixava de serum simples projecto, “um maravilhoso fantasma”, verda­
de prégada, em nome da razão e da justiça, a partir da condenação moral da ordem
capitalista, para aparecer como a conquista necessária (necessária, não em sentido
mecanicista, mas à luz das leis da dinâmica estrutural do capitalismo e como decor­
rência da luta de classes) do proletariado internacional, que o desenvolvimento da
grande indústria tinha feito aparecer, e que, no quadro da luta de classes, assume o
papel de força revolucionária.
Enquanto a crítica dos socialistas utópicos se dirige ao capitalismo comercial e
às últimas sobrevivências da ordem feudal, sem focar ainda o capitalismo industri­
al (é típico o exemplo de Saint-Simon), “a Marx vem a caber - como salienta V.
Magalhães Godinho - a elaboração do socialismo da era do capitalismo industri­
al, de quando a revolução industrial já está a afeiçoar o mundo e a burguesia instala
a sua civilização”.515
Em face da tese defendida no Manifesto de que foi o desenvolvimento da gran­
de indústria que veio tornar claro o sentido e a necessidade da luta de classes (“a
burguesia produziu antes de mais os seus próprios coveiros”), não admira que os
teóricos do socialismo científico considerem encerrada, então, a fase ‘progressista’do
socialismo utópico, passando a considerá-lo como ‘reaccionário’ no seu idealismo,
no seu desconhecimento da luta de classes e na sua negação da necessidade de uma
revolução social, a partir da classe operária, como via para a instauração do socialis­
mo. Daí, estas conclusões do Manifesto Comunista'.
“A im portância do socialismo c do comunism o crítico-utópicos é função in ­
versa do desenvolvimento histórico. À medida que a luta das dasses se acentua
e ganha forma, esta m aneira [do socialismo utópico] de se elevar acima dela
pela imaginação, esta oposição imaginária que se lhe faz, perdem qualquer
valor prático, qualquer justificação tcórica. Por isso é que, se, cm m uitos aspec­
tos, os autores desses sistemas eram rcvoludonários, as seitas que os seus discí­

515C ft. O socialismo. .., cit.,52.


A v elà s N u n es - 4 9 5

pulos form am são sempre reaccionárias, (...) continuam a sonhar com a reali­
zação experim ental das suas utopias sociais (...), e, para a construção de todos
esses castelos em Espanha, vêem-se forçados a fazer apelo ao coração e à bolsa
dos filantropos burgueses. (...) O põem -se, portanto, com veemência, a toda a
acção política da elasse operária, pois, em sua opinião, tal acção só poderia
provir de um a falta de fé cega no novo evangelho."

Ao contrário dos economistas clássicos, os socialistas da primeira metade do


séc. XIX vieram sustentar que o homem é um ser moral e que a sociedade deve ser
governada por princípios morais; desprezando a elaboração teórica dos clássicos,
afastaram-se da análise científica da realidade social e acabaram em propagandis­
tas de projectos quiméricos, mais ou menos engenhosos.
Ao invés, os fundadores do socialismo científico pretendem que “as concepções
teóricas dos comunistas - como se lê no Manifesto - não assentam de modo algum
em ideias ou princípios inventados ou descobertos por um qualquer reformador do
mundo. Não são mais do que a expressão geral das condições reais de uma luta de
classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos olhos”.
Marx critica aos economistas clássicos a sua concepção mecanicista, que tendia
a assemelhar a sociedade humana a uma máquina e que equiparava as leis econó­
micas às leis da Física. Simplesmente, convencido de que da dinâmica do processo
histórico do capitalismo haveria de resultar a vitória da classe operária e com ela
um novo modo de produção - o modo de produção socialista, superador das con­
tradições da ordem burguesa —, Marx não se dedica a construir ‘castelos cm Espa­
nha’. Nem se instalou numa atitude de condenação moral do modo de produção
capitalista, cuja extraordinária importância histórica para o progresso da humani­
dade o Manifesto aponta em termos expressivos:
“A burguesia desem penhou um papel extrem am ente revolucionário no palco
da história ... foi a prim eira a m ostrar o que a actividade hum ana é capaz dc
realizar. C onseguiu maravilhas bem superiores às pirâm ides egípcias, aquedu­
tos rom anos e catedrais góticas (...) N o dccurso dc um dom ínio de classe de um
século apenas, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que
o conjunto de todas as gerações passadas”.

Os trabalhos de Marx centraram-se na preocupação de tornar claro que a


característica essencial do capitalismo consiste em ser um sistema de exploração
necessária de uma classe por outra classe, para fazer derivar dessa relação de ex­
ploração a luta de classes, da qual haverá de sair vitoriosa a classe operária.
Perante as miseráveis condições de vida do proletariado industrial, M arx não
reagiu como os socialistas utópicos, que ele próprio censurou por se limitarem a
“ver na miséria apenas a miséria (em vez de verem nela o lado revolucionário,
4 9 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o lIt ic a

subversivo, que derrubará a sociedade antiga)”. “Os proletários só têm a perder as


suas cadeias.Têm um mundo a ganhar” - afirma o Manifesto Comunista, que ter­
mina com o célebre apelo à classe operária para que ganhe consciência e cumpra
a sua missão histórica: “Proletários de todos os países, uni-vos”.
Vale a pena concluir esta breve análise comparativa do socialismo utópico e do
socialismo científico com este trecho de Schumpeter:516
“M arx não vertia lágrimas sentim entais sobre a bondade da ideia socialista, e é
este, aliás, um dos títulos que invoca para estabelecer a sua superioridade em
relação àqueles que ele chamava socialistas utópicos. Tam bém não glorificava
os operários arvorando-os em heróis do labor quotidiano, como se comprazem
em fazer os burgueses quando trem em pelos seus dividendos.

(...) O socialismo, para M arx, não era uma obsessão que oblitera todas as outras
nuances da vida c que provoca um ódio c um desprezo doentios e estúpidos para
com as outras civilizações. E justifica-se em mais de um sentido o título que
M arx reivindicava para as categorias dc pensamento socialista e de vontade soci­
alista ligadas pelo cimento da sua posição fundamental: o Socialismo Científico”.

516 |. SCHUM PETER, Capitalism, Socialism and Democracy, cit., 718.


C apítulo X I

K a r l M a rx
4 9 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

1. M a r x : a c r í t i c a d a e c o n o m ia p o l í t i c a

“Karl Marx (1818-1883) foi o maior socialista e o maior economista do século


XIX” - assim inicia Émile James o capítulo dedicado a Marx da sua História
Sumária do Pensamento Económico.
Marx foi contemporâneo de alguns dos socialistas utópicos. Foi, portanto im­
pressionado pela mesma realidade; mas a sua concepção de socialismo afasta-se
substancialmente, como vimos, do socialismo utópico.
Ao contrário dos utópicos - que pouco ou nada contribuiram para o progresso da
teoria económica - Marx insere-se no caminho de análise iniciado pelos clássicos,
embora, como veremos, sejam diferentes os seus pressupostos filosóficos, os seus
métodos de análise, as conclusões a que chegou acerca do modo de produção capi­
talista e do sentido da sua evolução. Não vendo na sociedade mais que o somatório
dos indivíduos que a compõem, encarando o homem como individualidade que se
mantém inalterável, sempre igual a si própria, os clássicos entendem a vida econó­
mica como um mecanismo composto pela teia das relações entre os agentes económi­
cos privados, mecanismo regido por leis (mecânicas) invariáveis, negando a
transformação, ao longo do processo histórico, das formas basilares da vida social.
Marx, pelo contrário, afirma o carácter eminentemente social do homem, re­
jeitando a concepção da sociedade como mecanismo (para considerar o ‘homem
total’ e o ‘fenómeno social total’) e defendendo a sua concepção da história como
sucessão de sistemas económicos e sociais, cada um deles com o seu significado
específico no processo histórico e apontando às categorias económicas e às leis da
Economia Política clássica o seu carácter de categorias históricas e de leis que só
ganham significado em relação a um determinado sistema económico e social,
historicamente localizado.
Nas palavras do próprio Marx, “o que caracteriza a economia política burguesa é
que ela vê na ordem capitalista não uma fase transitória do processo histórico, mas a
forma absoluta e definitiva da produção social”. Ora, para Marx, “as categorias da
economia burguesa são formas do intelecto que têm uma verdade objectiva enquanto
reflectem relações sociais reais, mas estas relações são próprias daquela época histó­
rica determinada em que a produção de mercadorias é o modo de produção social.
Se, por conseguinte, considerarmos outras formas de produção, veremos desaparecer
todo este misticismo que obscurece os produtos do trabalho no período actual”.

2. A CONCEPÇÃO m a t e r ia l is t a d a h is t ó r ia 517

O próprio Marx distingue o seu método do de Hegel:

517 Na Parte I já expusemos o essencial sobre este ponto, a propósito da teoria marxista dos modos de produçáo.
A v e lã s N u n e s - 4 9 9

“O m eu m étodo dialéctico não só difere na base do m étodo hegeliano, mas é-


lhe m esmo exactam ente oposto. Para H egel o m ovim ento do pensam ento,
que ele personifica sob o nome de Ideia, é o dem iurgo da realidade, a qual não
é mais que a forma fenom enal da Ideia. Para m im , ao contrário, o m ovim ento
do pensam ento não é senão o reflexo do movimento real, transportado c trans­
posto para o cérebro do hom em ”.

E no prefácio de 1859 à sua Crítica da Economia Política Marx escreveu estas


palavras tantas vezes citadas para ilustrar a sua concepção da história e da economia:
“O resultado geral a que cheguei c que, um a vez adquirido, serviu de fio
condutor aos meus estudos, pode resum idam ente form ular-se assim: na p ro ­
dução social da sua existência, os hom ens entram em relações determ inadas,
necessárias, in d ep e n d e n te s da sua vo n tad e, relações de p ro d u ção que
correspondem a um grau dc desenvolvimento determ inado das suas forças
produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estru­
tura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual assenta um a superes­
trutura jurídica e política c à qual correspondem formas dc consciência social
determ inadas. O m odo dc produção da vida material condiciona o processo de
vida social, política c intelectual em geral. N ão é a consciência dos hom ens que
determ ina o seu ser, é, ao invés, o seu ser social que determ ina a sua consciência.
E m ccrto estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas m ateriais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou,
o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio
das quais se tinham movido até então. De formas dc desenvolvim ento das
forças produtivas que eram, essas relações transform am -se em entraves desse
desenvolvimento. Abre-se então um a época de revolução social. A m udança na
base económ ica altera mais ou m enos rapidam ente toda a enorm e superestru­
tura. Q uando se consideram tais alterações, é preciso distinguir sempre entre a
alteração m aterial - que se pode verificar de m aneira cientificam ente rigorosa
- das condições dc produção económicas e as formas jurídicas, políticas ou
filosóficas, cm resum o, as formas ideológicas sob as quais os hom ens tom am
consciência desse conflito e o conduzem até ao fim. D o m esm o m odo que não
pode julgar-se um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, tam bém não
poderá julgar-se um a tal época dc alterações revolucionárias pela consciência
dc si própria; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradi­
ções da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais
c as relações dc produção”.

Agora, recordamos apenas o necessário para dar sentido à visão global das concepções específicas da teoria
económica de Marx.
5 0 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Visão económica da história, como se vê, o marxismo é também uma visão


histórica da economia, visão que faz da luta de classes o motor do processo históri­
co, do processo de evolução das várias formações económicas e sociais que a hu­
manidade tem conhecido: “A história de todas as sociedades até aos nossos dias é
a história da luta de classes” - assim começa o Manifesto Comunista.
E, no prefácio à 2a edição inglesa do Manifesto, Engels explica qual o princípio
fundamental do documento, devido à elaboração teórica de Marx:
“E m cada época histórica, os modos de produção e de troca - e a estrutura
social que daí deriva necessariamente - são os fundam entos sobre os quais se
constrói a história política e intelectual da época, que encontra neles a chave da
sua explicação; conscqucntcm cnte, toda a história da hum anidade (desde o
desaparecim ento da organização primitiva com a propriedade com um do solo
e da terra) é a história da luta de classes, luta entre os exploradores e os explo­
rados, as classes dom inantes e as classes oprimidas; a história desta luta de
classes constitui um processo no decurso do qual se atingiu actualm ente o
m om ento em que a classe explorada e oprim ida (o proletariado) não pode
libertar-se do jugo da classe exploradora e dom inante (a burguesia) sem libertar
ao m esm o tem po c definitivam ente toda a sociedade de toda a exploração, de
toda a opressão, de todas as diferenças de classes e de todas as lutas de classes”.

3. As LEIS DA ECONOMIA POLÍTICA MARXISTA

A ciência económica marxista visa enunciar leis que poderemos considerar de


dois tipos: a) leis gerais, válidas para qualquer estádio de evolução da sociedade; b)
leis próprias de cada um dos vários modos de produção.
a) Na primeira categoria, inclui-se a lei fundamental da teoria económica de
Marx e que afirma a correspondência necessária entre a natureza das relações deprodução
e o carácter dasforçasprodutivas:, para que um determinado modo de produção assegu­
re o livre desenvolvimento e o pleno aproveitamento da técnica e dos meios de
produção, é necessário que as relações de produção estejam em correspondência
com as forças produtivas. Se esta correspondência não se verificar, isso quer dizer
que as contradições que se instalam no seio da respectiva formação social se vão
progressivamente aprofundando, abrindo o caminho ao desenvolvimento de novas
relações sociais de produção (correspondentes ao estádio de desenvolvimento e ao
carácter das forças produtivas), as quais darão corpo a um novo modo de produção.
O significado intrínseco desta lei será o de mostrar que é o factor económico
que está na base das revoluções sociais. As forças produtivas são consideradas o
elemento mais dinâmico e revolucionário da produção, embora os autores marxis­
tas reconheçam que, por outro lado, as relações de produção entre os homens,
A v elà s N u n e s - 5 0 1

desenvolvendo-se em resultado do progresso das forças produtivas, influem acti­


vamente sobre estas. Assim sendo, perante o progresso e o desenvolvimento das
forças produtivas, se as relações de produção se mantêm estacionárias ou não acom­
panham o desenvolvimento daquelas, elas passam a constituir um entrave ao de­
senvolvimento das forças produtivas. Por isso terão de ser substituídas por novas
relações de produção, correspondentes a um estádio mais avançado de desen­
volvimento das forças produtivas.
Marx fala, a este propósito, de revolução social, pois esse processo de transfor­
mação necessária da organização social da produção e da correspondente superes­
trutura jurídica e política não se fará sem a oposição da(s) classe(s) dominante(s)
e sem a participação consciente da(s) classe(s) dominada(s). Assim se exprime o
próprio Marx (Prefácio de Para a Critica da Economia Política):
“E m certo estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas m ateriais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou,
o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no seio
das quais se tinham movido até então. D c formas dc desenvolvim ento das
forças produtivas que eram , essas relações transform am -se cm entraves a esse
desenvolvimento. A bre-se então um a época de revolução social”.

b) Do estudo do modo de produção capitalista extraiu M arx a sua lei funda­


mental: a produção faz-se com vista à valorização do capital, através da apropria­
ção, por parte dos titulares dos meios de produção, da mais-valia resultante da
exploração dos trabalhadores assalariados.
E, pela análise do processo evolutivo do capitalismo, chegou Marx ao enunciado
da sua contradição fundamental: a contradição entre o carácter social da produção e a
propriedadeprivada (capitalista) dos meios deprodução e, portanto, a apropriação priva­
da do sobreproduto por parte dos capitalistas detentores dos meios de produção.
E, deixando de comportar-se o modo de produção capitalista em termos de
satisfazer à lei fundamental que traduz a necessidade de correspondência entre a
natureza das relações de produção e a natureza das forças produtivas, ficaria a claro
a ‘necessidade’da sua substituição por um novo modo de produção, que, em consonân­
cia com o carácter social dasforçasprodutivas, assentasse na propriedade socialdos meios
deprodução. Assim se explicaria a passagem ao modo deprodução socialista.
No seio deste, deixam de existir as classes, definidas com base na apropriação
ou não-apropriação dos meios de produção, e os resultados da actividade produti­
va passam a ser objecto de apropriação colectiva.
Este modo de produção, conjugando agora o carácter social das forças produ­
tivas com o carácter social das relações de produção, tornaria possível que a soci­
edade desenvolvesse a produção, já não com vista à obtenção privada de lucros,
5 0 2 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o l ít ic a

mas com vista à satisfação das necessidades materiais e culturais da colectividade.


Essa é, aliás, a leifundamental do socialismo, também enunciada por Marx - no
sistema socialista a produção tem como únicofim a satisfação das necessidades de todos os
membros da colectividade.
Vimos já que o marxismo entende o processo económico como o processo social
de produção e distribuição dos meios materiais susceptíveis de satisfazer as necessi­
dades dos homens em sociedade. A economia política marxista - também o vimos -
ocupa-se das relações sociais de produção e distribuição e também da “dependência
de tais relações da influência recíproca homem-natureza, como acontece no proces­
so social do trabalho (desenvolvimento das forças produtivas)”.(Oskar Lange)
Com base neste entendimento, a economia política marxista enuncia leis eco­
nómicas que resultam da actividade humana consciente e intencional, mas que se
apresentam como leis objectivamente necessárias, independentemente da vontade
e da consciência dos homens. Isto porque estes actuam no quadro de determinadas
relações sociais e de determinadas características das forças produtivas. Mas a
economia política marxista põe em evidência - como salienta Oskar L ange518 - a
possibilidade de as relações económicas evoluírem até um estádio em que “pressu­
põem leis económicas cada vez mais correpondcntes à vontade do homem”.

4. A TEORIA DO VALOR E A MAIS-VALIA

Dissemos que Marx iniciou a sua análise a partir dos princípios teóricos enunci­
ados pelos clássicos ingleses, especialmente por Ricardo. E o que, desde logo, se
poderá concluir da análise da teoria do valor, pedra angular da teoria ricardiana,
com base na qual Marx vai tentar explicar que a essência do capitalismo é a explo­
ração dos trabalhadores asalariados. Para tanto, como escreveu M aurice Dobb,
Marx “tomou o sistema de Ricardo, despojou-o da sua armação de ‘lei natural’ e
revolucionou o seu significado qualitativo”.
As mercadorias apresentam um valor de uso (uma utilidade para quem as pos­
sui) e um valor de troca, valores que se ligam um ao outro, pois nenhuma mercado­
ria se trocará (venderá) se não for útil a alguém. Só que não pode reconduzir-se o
valor de troca de uma mercadoria à sua utilidade, uma vez que o valor (de troca)
das mercadorias não é tanto maior quanto maior for a sua utilidade.
Marx sublinha que o valor de uso (laço particular entre o objecto e o indivíduo)
não poderá de maneira nenhuma erigir-se em um elemento objectivo, em medida
comum utilizável simultaneamente pelos compradores e pelos vendedores, uma
vez que, por definição, a mercadoria vendida não tem utilidade para o vendedor no

518 C ír. O . LA N CE, Economia Política, trad. it., ed. cit., 1,225/226.
A v elã s N u n es - 5 0 3

momento em que a vende. O valor de troca deve medir-se por uma qualidade que
seja comum para todos os produtores que aparecem a vender as suas (várias) mer­
cadorias, uma qualidade social que permita as relações entre os vários produtores. A
estas exigências satisfaz a teoria do valor de Ricardo: o valor de troca de uma
mercadoria representa a quantidade de trabalho necessária para a sua produção.
Com o Ricardo, também Marx adverte que esta noção de valor de troca só se
aplica aos objectos produzidos regularmente com vista à sua venda no mercado (as
mercadorias). O preço das obras de arte, v.g., terá de explicar-se por considerações
inteiramente diferentes.
Como Ricardo, Marx esclarece também que o trabalho utilizado na produção
dos materiais e dos instrumentos de produção faz parte do valor dos bens acabados.
M arx acrescenta que o trabalho que importa, do ponto de vista da lei do valor,
não é o trabalho concretamente gasto por um determinado trabalhador ou por
uma dada empresa, mas antes o trabalho socialmente necessário à produção. E acres­
centa ainda que o que importa é o trabalho abstracto, ao qual se reconduzem os
diferentes tipos de trabalho fornecidos pelos indivíduos que pertencem a profis­
sões diferentes, o que não significa aceitar-se que todos os trabalhadores forne­
cem, no mesmo tempo, a mesma quantidade de trabalho abstracto. Tanto assim
não é, que a sociedade atende à qualificação e à intensidade do trabalho fornecido,
pagando salários diferentes para remunerar trabalhadores de diferente qualifica­
ção ou com intensidade de trabalho diferente.
Q uer dizer, em resumo: o que determina o valor de uma mercadoria é o tempo de
trabalho socialmente necessáriopara a produzir, o trabalho despendidopor um operário de
habilidade média, trabalhando com uma intensidade média e utilizando os instrumentos
deprodução normalmente utilizados em determinada época.
Marx retoma também a distinção de Adam Smith entre trabalho produtivo e
trabalho improdutivo. Nesta última categoria inclui, como Smith, os funcionários e
as domésticas e - ao contrário do autor de Riqueza das Nações - a actividade pura­
mente comercial (por entender que o tempo gasto pelo vendedor para obter um
preço mais elevado não pode aumentar o valor da mercadoria). Considera, porém,
como trabalho produtivo- além do trabalho utilizado na produção de bens materi­
ais - o trabalho dos que se ocupam em empresas produtoras de serviços (v.g.
empresas de transporte).
Ao contrário de Ricardo, Marx não identificou o valor do mercado com o valor
em trabalho, o que explica a sua tese (que para Ricardo era apenas uma excepção)
segundo a qual, nas condições do capitalismo, as mercadorias se não trocavam
pelo seu valor, mas antes por aquilo que Marx chamou preço de produção (igual ao
montante dos salários mais um tanto sobre o capital adiantado).
5 0 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o íít i c a

O objectivo de Marx era determinar o significado social do lucro capitalista: se se


trata de excedente (no sentido fisiocrático, de valores pagos a alguém sem contraparti­
da), como aparecia este excedente e de que condições dependia o seu aparecimento?
Ricardo - como Smith - verificou, sem a conseguir explicar, a não-coincidência
entre a quantidade de trabalho fornecida pelos trabalhadores e o salário que lhes é
pago. Os dois clássicos ingleses, anotando que os capitalistas e os proprietários de
terras recebem rendimentos sem trabalhar, aceitam que eles auferem uma parte do
valor criado pelo trabalho. E os socialistas pré-marxistas defendem que os capitalis­
tas ‘roubam’os operários, comprando o trabalho abaixo do seu real valor.
Marx - como já vimos - veio colocar o problema à margem das implicações
morais do socialismo utópico e procurou, com a sua construção, mostrar, teorica­
mente,, que o lucro é um elemento essencial do capitalismo e não um elemento
acidental (como poderia ser o roubo), apresentando o capitalismo como um siste­
ma de exploração necessária, desligando a exploração de qualquer atitude voluntarís-
tica, por parte dos capitalistas, e apresentando-a como um corolário lógico das
próprias leis de funcionamento do capitalismo.
Ricardo, não conseguiu resolver a dúvida fundamental que consiste em saber
que motivo explica o facto de o trabalho assalariado - sendo uma mercadoria
como qualquer outra - não ser pago pelo seu valor, como as outras mercadorias.
Porque não vale para esta mercadoria (trabalho assalariado) a lei do valor?
Neste ponto é que M arx retoma a teoria ricardiana, para tentar ultrapassar o
impasse contido na questão enunciada. “Posta deste modo - escreve M arx - , a
questão é insolúvel, pois se opõe o trabalho como tal à mercadoria, uma certa
quantidade de trabalho vivo a uma certa quantidade de trabalho realizado”, não
havendo qualquer medida comum entre o trabalho vivo, criador de valor, e o
trabalho realizado sob a forma de produto, de objecto.
Desfazendo a confiisão que aponta a Ricardo, Marx defende que o capitalista
compra aforça de trabalho do operário (i.é, a capacidade física e psíquica de traba­
lho do operário) e não o trabalho. E logo acrescenta que esta mercadoria-força de
trabalho é paga pelo seu valor, segundo a lei geral da economia capitalista enunci­
ada por Ricardo - a lei do valor.
Qual é então o valor da força de trabalho?
Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho dos operários tem um
valor que é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua
produção. O operário despende todos os dias uma certa quantidade de energia. Para
a reconstituir, tem de se alimentar, vestir, dispor de habitação, etc.; para que a mer­
cadoria que se gasta se reconstitua e a oferta se mantenha é necessário que o operário
A va A s N unes - 505

se possa reproduzir e gaste dinheiro no sustento da família; para que o trabalhador


adquira preparação escolar adequada ou aprenda o seu ofício é preciso tempo e
despesas - e quanto mais qualificado for o trabalhador maior será o tempo de traba­
lho socialmente necessário para assegurar a sua aprendizagem. O ra o salário tende a
corresponder ao valor da força de trabalho, apresentando-se como a expressão mo­
netária do seu custo em trabalho, i. é, da quantidade de trabalho que a sociedade
deve consagrar à manutenção e à reprodução da força de trabalho.
Acompanhemos o caminho seguido por Marx.
^ -C o m e ç a por admitir um modelo de produção simples de mercadorias em que
as mercadorias se trocam pelos seus valores, visto se tratar de economias de peque­
nos produtores autónomos, proprietários dos seus meios de produção, trabalhando
eles próprios (sem recorrer ao trabalho alheio) na produção de mercadorias que
não se destinam a consumo próprio mas a serem vendidas no mercado.
Com o não há trabalho assalariado, as mercadorias trocam-se pelos seus valo­
res, as trocas são trocas de equivalentes. Nestas condições, M arx defende que o
excedente não pode aparecer durante a troca e acrescenta que o excedente resulta
da particularidade da força de trabalho, a única mercadoria que ‘pode trabalhar, a
única que pode, portanto, ser criadora de valor, “uma mercadoria - diz M arx -
cujo valor de uso (utilidade) consiste em ser fonte de valor de troca”, uma merca­
doria capaz de produzir mais mercadorias do que as necessárias para assegurar a
sua subsistência e a sua reprodução, uma mercadoria susceptível de produzir mais
valor do que o seu próprio valor.
B - Nos quadros do capitalismo, o empregador capitalista compra a força de
trabalho pelo seu valor (determinado nos termos expostos).
“C om prando a força de trabalho do operário e pagando-a pelo seu valor -
escreve M arx —, o capitalista, como qualquer outro com prador, adquiriu o
direito de consum ir ou de usar a mercadoria que comprou. C onsom e-se ou
utiliza-se a força de trabalho dc um hom em fazendo-o trabalhar, assim como
se consom e ou se utiliza um a máquina fazendo-a funcionar. Pela com pra do
valor diário ou semanal da força de trabalho do operário, o capitalista adquiriu,
portanto, o direito dc se servir desta força, dc a fazer trabalhar, durante todo o
dia ou toda a semana”.

Ao desenvolver a actividade produtiva, o capitalista vâi utilizar, portanto, a


força de trabalho assalariada. Esta mercadoria tem a propriedade de fornecer tra­
balho, de produzir valor em quantidade variável, independente do seu próprio
valor e em princípio superior a este valor. O capitalista pode, assim, apropriar-se
da diferença entre este valor (i. é, o salário, como sua expressão monetária) e o
valor total criado pelo exercício do trabalho.
5 0 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

Os salários seriam o pagamento do equivalente pelo equivalente. O ganho do


empregador (mais-valia) é, portanto, a diferença entre o valor daforça de trabalho
(que o capitalista leva à conta dos custos de produção sob a forma de salários) e o
valor que aforça de trabalho cria (que o capitalista realiza pela venda das mercadorias
no mercado, mesmo quando estas são vendidas pelo seu valor). D ito de outro
modo: a mais-valia traduz-se na diferença entre o valor da força de trabalho (quan­
tidade de trabalho necessário para a produção do que é pago a título de salário) e o
seu produto (quantidade de trabalho fornecido). Essa diferença é trabalho não
pago, trabalho excedente, uma vez que o salário só paga o trabalho necessário.
Se admitirmos que, em condições normais, um trabalhador precisa de cinco
horas para produzir o necessário, em dado momento histórico, para reproduzir a sua
força de trabalho, e se admitirmos que o contrato de trabalho obriga o trabalhador
a oito horas de actividade, é claro que a mais-valia consiste no produto de três horas
de trabalho. À relação entre o trabalho suplementar, trabalho excedente, trabalho não
pago (3 horas) e o trabalho necessário, a que corresponde o salário (5 horas) chamou
Marx taxa de mais-valia ou taxa de exploração, que é “a expressão exacta do grau de
exploração do trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista.”
Marx distinguiu ainda entre mais-valia absoluta (obtida pelo prolongamento da
jornada de trabalho ou pelo aumento da intensidade do trabalho) e mais-valia
relativa (a que resulta do progresso técnico, pois este, aumentando a produtividade
do trabalho, diminui o tempo de trabalho socialmente necessário à produção da
força de trabalho, aumentando correlativamente - para o mesmo horário de traba­
lho - a parte do trabalho excedente, não pago)519.
Na apropriação, pelos empregadores capitalistas, da mais-valia produzida pelo
trabalho desenvolvido pelos trabalhadores assalariados reside a exploração inerente
ao sistema capitalista, enquanto sistema que assenta na propriedade privada (capi­
talista) dos meios de produção e no recurso ao trabalho assalariado, ao trabalho
livre, i.é, ao trabalho de indivíduos que são legalmente livres, mas que são, por
razões económicas (de pura sobrevivência), compelidos a vender no respectivo
mercado a sua força de trabalho.

5. A TEORIA DA EXPLORAÇÃO

Desta relação exploradores-explorados (resultante da posição diferente de uns e


de outros no que toca à propriedade dos meios de produção) arranca Marx a sua
classificação do capitalismo como sistema que se desenvolve numa sociedade de

519 Sobre a noçâo de mais-valia, ver O Capital, Livro I, secção V, caps. XVI e XVIII.
A v elã s N u n es - 5 0 7

classes e assenta na exploração de uma classe por outra classe, o que explica que,
neste contexto, as classes sociais se apresentem como classes antagónicas, portadoras
de interesses inconciliáveis. Por um lado, os que recebem a mais-valia (os capitalis­
tas); por outro lado, os que produzem a mais-valia e não podem apropriar-se dela
por não serem proprietários dos meios de produção, “os operários modernos, que só
vivem - diz o Manifesto - se encontrarem trabalho e que só encontram trabalho se o
trabalho aumentar o capital - os operários obrigados a vender-se dia a dia, que são
uma mercadoria, um artigo de comércio como outro qualquer”.
Este antagonismo entre capitalistas e assalariados (entre o capital e o trabalho)
aparecia assim como elemento essencial do capitalismo industrial, ultrapassando o
antagonismo que Ricardo apontara (num período em que a burguesia industrial
lutava ainda pela sua afirmação) entre a classe dos proprietários rurais e a burgue­
sia industrial.
Dos trabalhos de Marx resulta que a força de trabalho só se transformou em
mercadoria em determinadas condições históricas (as condições históricas do ca­
pitalismo), quando a evolução histórica criou, por um lado, um proletariado sem
bens e sem outros meios de vida além da sua capacidade de trabalho, e por outro
lado, um classe proprietária dos meios de produção, que, tendo capital acumulado,
precisa de (e tem condições para) adquirir a força de trabalho indispensável para
levar por diante a actividade produtiva.
Num regime csclavagista, por exemplo, a força de trabalho não pode considerar-
se, em si, uma mercadoria, pois, em rigor, a capacidade de trabalho é o próprio traba­
lhador, simplesmente, como escravo, está ele mesmo sujeito ao direito dc propriedade
do senhor, não podendo, portanto, negociar no mercado a sua força de trabalho.
Também o pequeno agricultor que cultiva a sua terra ou o artesano que traba­
lha na sua oficina não tem que vender a sua força de trabalho, pois, como produ­
tores autónomos, utilizam-na ao seu próprio serviço.
Tal não significa que, para Marx, a exploração dc uma classe por outra só
tenha surgido com o capitalismo. O que acontece é que com o advento das rela­
ções de produção capitalistas, a exploração ganhou características específicas.
A exploração do trabalho de outrem só não tinha razão de ser nas sociedades
primitivas, em que cada homem não era capaz de produzir mais que os meios neces­
sários para assegurar a própria subsistência, em que o produto resultante do trabalho
produtivo era sensivelmente igual ao que era necessário para assegurar a subsistência
e a reprodução do homem-trabalhador, em que não havia propriedade privada, nem
classes sociais (nem exploração de uma classe por outra ...), nem estado.
Só quando intervieram os primeiros grandes progressos técnicos (no momento
em que as comunidades humanas abandonam o nomadismo e a actividade mera­
5 0 8 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

mente colectora para passarem a praticar uma agricultura sedentária), quando a


produtividade do trabalho aumentou, tomando possível que o homem produzisse
pelo seu trabalho mais que o necessário para a sua manutenção e reprodução, só
então começou a luta pela apropriação desse excedente, do sobreproduto do trabalho.
O esclavagismo constitui a primeira forma de exploração do trabalho alheio:
descontada uma pequena parte afecta ao sustento dos escravos (para assegurar a
sua subsistência e reprodução - trabalho pago), o senhor apropria-se de todo o
restante produto do trabalho dos seus escravos, que é trabalho não pago.
No período do feudalismo, a exploração muda de face e apresenta-se, funda­
mentalmente, como apropriação, pelos senhores feudais terratenentes, do produto
do trabalho gratuito que os servos estavam obrigados a fornecer-lhes, trabalho
prestado em certos dias da semana nas terras que o senhor reservava para si (tra­
balho não pago)] nos restantes dias, e nas terras que o senhor afectava aos servos,
estes trabalhavam para obter o seu sustento e o dos filhos, garantindo assim a sua
reprodução e a continuidade do sistema servil (trabalhopago).
No capitalismo, a exploração torna-se ainda mais velada, mais complexa. A
apropriação do excedente pela classe proprietária dos meios de produção, com
exclusão dos produtores desse excedente, acontece não só no capitalismo mas tam­
bém nos modos de produção anteriores. Como Marx escreveu, “o capital não
inventou o sobretrabalho. Sempre que uma parte da sociedade possui o monopólio
dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, é forçado a acrescentar ao
trabalho necessário à sua manutenção um surplus (trabalho excedente) destinado a
produzir a subsistência do titular dos meios de produção”.
Os vários modos de produção, segundo Marx “só se distinguem pela maneira
como este sobretrabalho é imposto e extorquido ao produtor imediato, ao traba­
lhador”. Na síntese de Engels (Anti-Dühring)y
“só quando o produto dcssc sobretrabalho reveste a forma de mais-valia; só
quando o proprietário dos meios de produção encontra perante ele, como objecto
de exploração, o trabalhador livre (livre de todos os vínculos sociais c livre de toda
a propriedade), que explora para a produção de mercadorias, só então, segundo
M arx, o instrum ento de produção tom a a forma específica de capital”.

Em Salário, Preço e Lucro Marx comparou assim a exploração própria do capita­


lismo com as formas que ela revestiu nos modos de produção anteriores:
“é essa falsa aparência [de que todo o trabalho é trabalho pago] que distingue o
trabalho assalariado das outras formas históricas do trabalho. N a base do sistema
do trabalho assalariado, mesmo o trabalho nãopago parccc ser trabalho pago. No
trabalho do escravo, é completamente ao contrário: mesmo a parte do seu traba­
lho que c paga aparccc como trabalho não pago. N aturalmente, para poder
A v elã s N u n es - 5 0 9

trabalhar é necessário que o escravo viva, e um a parte da sua jornada dc trabalho


serve para compensar o valor do seu próprio sustento. M as como não há contrato
estabelecido entre ele e o seu senhor, como não existe compra nem venda entre as
duas partes, todo o seu trabalho tem o aspecto de ser cedido por nada.

Suponham os, por outro lado, o servo camponês tal com o existia, podem os
dizer, ainda ontem , em toda a Europa oriental. Este cam ponês trabalhava, por
exemplo, 3 dias para si mesmo no seu próprio cam po ou no que lhe ten h a sido
cedido, e, nos 3 dias seguintes, fazia trabalho forçado e gratuito nos dom ínios
do seu senhor. Aqui, por conseguinte, trabalho pago e o trabalho não pago
estavam visivelmente separados, no tem po e no espaço. (...)

C ontudo, na realidade, que um hom em trabalhe 3 dias dc sem ana para si


m esm o no seu próprio cam po e 3 dias no dom ínio do seu senhor, ou que
trabalhe na fábrica ou na oficina 6 horas por dia para si próprio c 6 para o seu
patrão, isso vem a dar no m esmo, em bora, neste últim o caso, as partes pagas e
não pagas do trabalho estejam inseparavelmente m isturadas, e a natureza de
toda esta operação esteja totalm ente dissim ulada pela intervenção do contrato e
pelo pagam ento efectuado ao fim da semana. N um caso, o trabalho não pago
parece ser dado voluntariam ente e, no outro, extorquido pelo constrangim en­
to. Aí reside toda a diferença”.

E, em outro passo de O Capital, Marx pôs cm destaque a importância da nova


feição que apontava à exploração nos quadros do capitalismo:
“C om preende-se agora a enorm e im portância que possui na prática esta m u­
dança dc forma que faz aparecer a retribuição da força dc trabalho como salário
do trabalho, o preço da força de trabalho com o preço da sua função. Esta
forma, que exprime apenas as falsas aparências do trabalho assalariado, torna
invisível a relação real entre capital e trabalho e m ostra precisam ente o contrá­
rio; c dela que derivam todas as noções jurídicas do assalariado e do capitalista,
todas as mistificações da produção capitalista, todas as ilusões liberais e todas as
falsas perspectivas apologéticas da economia vulgar”.

Os clássicos ingleses, embora admitindo que o lucro e a renda são uma parte dos
frutos criados pelo trabalho, consideram natural que essa parte do valor criado pelo
trabalho reverta para os capitalistas e os proprietários de terras, porque aceitam que
a própria natureza das coisas é que impõe que os trabalhadores recebam apenas o
necessário para a sua subsistência (lei de bronze dos salários) e aceitam como natural
que o proprietário de uma terra mais fértil receba uma renda mais elevada.
Marx, pelo contrário, vem defender que o lucro não é uma categoria ‘natural’,
inerente à ordem natural das coisas, mas antes uma categoria própria de um perí­
odo histórico determinado e caracterizado pela existência de uma sociedade de
classes, no seio da qual a força de trabalho se transformou em mercadoria.
5 1 0 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o ü t ic a

Na construção teórica de Marx - como salienta Henri D enis520 ““a lei do valor,
longe de confirmar o carácter ‘natural’ dos rendimentos capitalistas, revela o seu
carácter histórico. Sob a aparência de rendimentos naturais, a análise põe a desco­
berto a realidade essencial da exploração”. Por sua vez, Emest Mandei resume assim
a importância das conclusões de Marx a partir da teoria do valor ricardiana:
“O progresso decisivo que o pensam ento sócio-económico em preende com
M arx é precisam ente a redução das categorias separadas de ‘lucro’, de ‘renda’ e
de ‘ju ro ’ a um a única categoria fundam ental, tratada com o tal, a categoria de
mais-valia ou de sobretrabalho. Graças a esta redução que A dam S m ith tinha
apenas entrevisto, e que Ricardo tinha com preendido mas perante a qual se
quedara, M arx pode por sua vez descobrir a natureza real desta mais-valia que
é apenas um a form a particular, m onetária, da categoria histórica geral do
sobreproduto social, d o sobretrabalho. A partir daí, o proletariado m oderno apa­
rece com o herdeiro do servo medieval e do escravo da A ntiguidade, a sua
exploração pela classe capitalista deixa de constituir um mistério”.521

Na construção de Marx, a noção de mais-valia vem tornar claro que uma parte
do valor criado pela força de trabalho não vai pertencer aos trabalhadores. A
mais-valia é apropriada pelos empregadores capitalistas, sem qualquer justificação
moral baseada na quantidade de trabalho por eles despendida. Os capitalistas ex­
propriam, deste modo, uma parte do valor criado pelos trabalhadores assalariados;
estes são, nessa medida, explorados.
Em vez da distribuição natural do produto do trabalho entre as diferentes classes,
Marx defende que a distribuição do produto do trabalho é uma consequência lógica
da natureza das relações sociais de produção características do capitalismo, marcadas
pela diferente posição dos empregadores-capitalistas e dos trabalhadores assalaria­
dos relativamente à propriedade dos meios de produção e consequente antagonismo
de interesses entre estas duas classes sociais. Os primeiros, por serem proprietários
dos meios de produção, estão em condições de adquirir, através de contrato, aforça de
trabalho dos trabalhadores e de se apropriarem, nos termos desse mesmo contrato,
de tudo o que resultar da utilização da mercadoria-força-de-trabalho depois de
pagos os salários; os segundos, por não disporem dos meios de produção, vêem-se
‘obrigados’ a trabalhar para os patrões capitalistas a troco do pagamento do salário
(que é apenas uma parte do valor que a força de trabalho cria), bem conscientes de
que - como já sublinhara Adam Smith - “o patrão não teria qualquer interesse em
empregá-los se não esperasse obter, com a venda do seu trabalho, um pouco mais do
que o necessário para reconstruir a sua riqueza inicial”.

520 Cfr. H . DENIS, H isloire..., cit.,416/417.


521 Cfr. E. M A N D EI, rrj/íé ...,cil,vo l.4 ,2 1 9 /2 2 0 .
A v elã s N u n es - 5 1 1

Perante o que fica dito, não admira que Marx - ao contrário dos fisiocratas e
dos clássicos ingleses - não tenha atribuído importância à questão de saber como
se distribui a mais-valia entre os proprietários de terras (renda), os que emprestam
dinheiro (juro) e os rendeiros industriais ou comerciantes capitalistas (lucro). Ele
próprio explica claramente o seu ponto de vista:
“Renda, taxa de juro e lucro industrial são apenas nomes das diferentes partes da
mais-valia da mercadoria, quer dizer, do trabalho não pago que aquela encerra
e têm todos a m esmo origem e apenas esta origem. N ão provêm nem da terra
nem do capital, com o tais, mas a terra e o capital perm item aos seus proprie­
tários apropriarem -se cada um da sua parte da mais-valia extraída do operário
pelo patrão capitalista. Para o próprio operário é de im portância secundária que
esta mais-valia, resultado do seu sobretrabalho, do seu trabalho não pago, seja
embolsada exclusivamente pelo em pregador capitalista, ou que este seja obri­
gado a ceder partes, sob o nome de renda e de juro, a terceiros. Supunham os
que o em pregador utiliza unicam ente o seu próprio capital e que seja o proprie­
tário da terra: toda a mais-valia seria agora embolsada por ele.

É o empregador capitalista que extrai directamente do operário esta mais-valia,


qualquer que seja a parte que finalmente possa guardar para si. É por conseguinte
desta relação entre o empregador capitalista e o operário assalariado que depende
todo o sistema do salariato e todo o sistema dc produção actual”.

6. A TEORIA DO SALÁRIO

Vimos atrás que os clássicos conceberam a teoria do salário sob a influência do


princípio dapopulação de Malthus. Os salários formar-se-iam em resultado do jogo da
oferta e da procura de mão-de-obra. Simplesmente, as variações da oferta eram consi­
deradas o factor mais importante na determinação do salário e as variações da oferta de
mão-de-obra eram ditadas por factores de ordem demográfica - aumento ou diminui­
ção da população - explicados por leis naturais, de validade absoluta e universal.
Vimos também que os clássicos entendiam o salário como o preço do trabalhos.
que é radicalmente diferente o entendimento de Marx, que considera o salário
como o preço da força de trabalho. Na Crítica do Programa de GothayMarx resume
assim a sua noção de salário, intimamente ligada à teoria da mais-valia:
“(...) o salário do trabalho não é o que parece ser, isto é, o valor (ou o preço) do
trabalho, mas apenas um a forma disfarçada do valor (ou do preço) da força de
trabalho. Assim, dc um a vez para sempre, estavam postas de lado [pelo Partido
O perário A lem ão] a velha concepção burguesa do salário, assim como toda a
crítica dirigida até aqui contra ela, e estava claram ente estabelecido que o
operário assalariado só consegue trabalhar para assegurar a sua própria existên­
cia, isto é, existir, na m edida cm que trabalha g ratuitam ente um certo tem po
5 1 2 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

para os capitalistas (e por conseguinte para os que, com estes últimos, vivem da
mais-valia); que todo o sistema da produção capitalista visa prolongar este
trabalho gratuito pela extensão da jornada dc trabalho ou pelo desenvolvimen­
to da produtividade, quer dizer, por um a tensão maior da força de trabalho,
ctc.; que o sistema de trabalho assalariado é, por conseguinte, um sistem a de
escravatura, a bem dizer, um a escravatura tanto mais dura quanto mais se
desenvolvem as forças sociais produtivas do trabalho, qualquer que seja o salá­
rio, bom ou m au, que o operário recebe”.

Marx apelidou de “dogma dos economistas” a teoria da população malthusiana e


acusou o Essay on Population, de Malthus, de ser um “libelo contra a raça humana”,
rejeitando também a teoria clássica na medida em que esta fazia depender o nível dos
salários (e a sua correspondência ao mínimo de subsistência) das variações da popu­
lação, explicadas estas por motivos derivados da própria natureza do homem.
Atente-se nestes trechos de Marx (o primeiro de O Capital, o segundo de
Salário, preço e lucro):
“E ntre 1849 e 1859, um a subida dc salários insignificante teve lugar nos distri­
tos agrícolas ingleses, apesar da baixa simultânea do preço dos cercais (...) M as
que fizeram os agricultores? Esperaram que um a rem uneração tão brilhante
fizesse pulular os operários agrícolas c preparasse deste m odo futuros braços,
necessários para encharcar o mercado e baixar os salários futuros? C o m efeito,
é assim que as coisas se passam nos cérebros doutrinais. Ao contrário, os nossos
bravos agricultores recorreram às máquinas, e o exército de reserva cedo foi
com pletam ente refeito. U m surplus de capital adiantado sob a form a de m á­
quinas poderosas passou a utilizar-se a partir dc então na agricultura inglesa,
mas o núm ero de operários agrícolas sofreu um a dim inuição absoluta”.

“(...) por estes meios [introdução dc máquinas de todas as espécies, aplicação de


novos m étodos científicos, conversão dc parte das terras aráveis cm pastagens,
aumento da extensão das explorações e, portanto, aumento do volume de produ­
ção] c por outros ainda - acentua M arx tendo diminuído a procura de trabalho
pelo aum ento da sua força produtiva, eles criaram novamente um excedente
relativo da população de operários agrícolas. Tal é o método geral segundo o qual
se efectivam mais ou menos rapidamente, nos países velhos, há longo tem po
habitados, as reacções do capital contra o aumento dc salários. Ricardo fez notar
muito justam ente que a máquina está em concorrência contínua com o trabalho,
c que muitas vezes só pode ser introduzida quando o preço do trabalho atingiu
um certo nível; mas o emprego da máquina é apenas um dos numerosos métodos
de aum entar a força produtiva do trabalho. Este m esmo desenvolvimento, que
cria um a sobreabundância relativa de trabalho ordinário, simplifica, por outro
lado, o trabalho qualificado, assim o depreciando”.
A v e ià s N u n e s - 5 1 3

O caminho seguido por Marx foi o de ligar as flutuações da procura de mão-


de-obra e a manutenção dos salários a um nível correspondente ao valor da força
de trabalho a factores inerentes à própria essência do processo de acumulação
capitalista (cfr. O Capital, I, cap. XXV).
Por outro lado, a oferta da força de trabalho depende da mão-de-obra disponí­
vel e do seu volume relativamente à procura, e a procura da força de trabalho
depende da quantidade de capital investido na economia e das técnicas de produ­
ção utilizadas.
Ora, Marx começa por admitir que, se as técnicas de produção não se alteras­
sem, o aumento da procura de força de trabalho seria superior ao aumento da
oferta e os salários tenderiam a subir:
“A s necessidades do capital em acumulação - escreve ele - podem exceder o
crescim ento da força de trabalho ou do número de trabalhadores; a procura de
trabalhadores pode cxccdcr a oferta, e por isso os salários podem clcvar-se. Isso
ocorrerá, finalmente, se na realidade as condições acima supostas continuarem.
Sc todos os anos encontra em prego um núm ero de trabalhadores superior ao
do ano anterior, mais cedo ou mais tarde será atingido o ponto em que as
necessidades de acumulação começam a ultrapassar a oferta habitual de traba­
lho, e portanto ocorre uma elevação de salários”.

A lógica do capital é a valorização do próprio capital. Por isso, quando os


salários sobem além de certo limite, os detentores do capital têm interesse em
substituir a mão-de-obra por máquinas. Este entendimento é que dá sentido à
afirmação do Manifesto Comunista de que M a burguesia não pode existir sem revo­
lucionar constantemente os instrumentos de produção”.
Ora, quando o aumento dos salários ameaça pôr em causa as margens de lucro
do capital, o ‘sistema’ reage introduzindo novas técnicas que possibilitem ‘econo­
mizar’ mão-de-obra. Enquanto na teoria clássica as alterações nos processos pro­
dutivos eram consideradas como resultado de invenções acidentais, fortuitas, em
Marx o progresso técnico é entendido como elemento necessário à manutenção da
produção em moldes capitalistas. Com efeito, é o progresso técnico que torna
possível a constituição daquilo que Marx chamou “exército industrial de reserva”
(reserva de mão-de-obra que significa a manutenção da oferta da força de traba­
lho a um nível superior ao da procura, assegurando a existência de uma “sobre-
população relativa”). E a existência desta reserva de mão-de-obra é que, em virtude
da concorrência entre os trabalhadores, permite a manutenção dos salários ao nível
do valor da força de trabalho, garantindo assim a mais-valia à classe capitalista.
“O exército industrial de reserva - cscrcveu M arx em O C apital - , durante os
períodos de estagnação e de prosperidade média, restringe o exército do trabalho
5 1 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o íít ic a

activo; durante os períodos de sobreprodução c euforia, impede que as suas preten­


sões se elevem. A populaçào excedente relativa iportanto o eixo sobre o qualgira a lei
da procura e da oferta deforça de trabalho. Ela limita o campo de acção dessa lei à
conveniência absoluta da actividade da exploração e ao domínio do capital”.

Por isso se compreende que “a burguesia não pode existir sem revolucionar
constantemente os instrumentos de produção”; por isso - como Marx escreveu
noutro local - “é da essência da produção capitalista limitar a parte do produtor ao
que é necessário para a manutenção da sua força de trabalho”. O progresso técni­
co, a introdução de novas máquinas traduz-se num aumento do capital constante em
relação aos salários (capitalvariável). Ora, escreve Marx,
“A lei do decrescim ento proporcional do capital variável tem (...) por com ple­
m ento a produção dc um a sobrepopulação relativa. C ham am o-la ‘relativa,
porque provém não dc um aum ento positivo da população operária que ultra­
passaria os limites da riqueza em vias de acumulação, mas, ao contrário, dc um
crescim ento acelerado do capital social que lhe perm ite passar sem um a parte
mais ou menos considerável dos seus operários. (...) Produzindo acumulação de
capital e à m edida que esta se realiza, a dasse assalariada produz ela própria os
instrum entos da sua substituição ou da sua metamorfose cm sobrepopulação
relativa. Eis a lei da população que distingue a época capitalista e corresponde ao
seu m odo de reprodução particular. C om efeito, cada um dos modos históricos
da produção social tem tam bém a sua lei dc população própria, lei que apenas
a ele se aplica, que passa com cie e que, por consequência, apenas tem valor
histórico. U m a lei dc população abstracta e imutável existe apenas para as
plantas e os animais, c apenas enquanto não sofrerem a influência do hom em ”.

Com o se vê, M arx considera o salário e o trabalho assalariado como categorias


históricas. Os princípios, as leis que explicam o modo de formação do salário no
quadro do capitalismo são entendidas por Marx como leis históricas e não como leis
naturais, do mesmo modo que o mínimo de subsistência, o valor da força de trabalho,
não equivale ao que a natureza exige para satisfação das necessidades fisiológicas
básicas, mas apresenta também um carácter histórico (M a soma dos meios de sub­
sistência necessários ao operário - escreve Marx - depende (...), em grande parte,
do grau de civilização atingido”).
Marx repudia, portanto, o princípio explicativo enunciado pelos clássicos e que
Ferdinand Lassalle (1825-1864) designou por lei de bronze dos salários'.
“As variações da taxa geraldos salários- escreve em O C apital- não correspondem
às do núm ero absoluto da população; a proporção diferente segundo a qual a
dasse operária se decompõe em exército activo e exército dc reserva, o aumento
ou a dim inuição da sobrepopulação relativa, o grau em que ela se encontra umas
A v e l As N u n e s - 5 1 5

vezes ‘com prom etida’ outras vezes ‘livre’, numa palavra, os seus movimentos
alternados de expansão c de contracção, correspondentes, por sua vez, às vicissi­
tudes do ciclo industrial, eis o que determina exclusivamente essas variações”.

Na Crítica do Programa de Gotha (programa do partido social-democrata ale­


mão em que se propunha a abolição do “sistema do salariato com a lei de bronze
dos salários”), Marx acusa Lassalle de ignorar o que é o salário, tomando a apa­
rência pela realidade. “Se abulo o regime de trabalho assalariado - escreve Marx
- , abulo naturalmente, ao mesmo tempo, as suas leis, sejam elas de ‘bronze’ ou de
‘esponja’”. Propor a abolição da lei de bronze dos salários, nos termos em que o
fazia o Programa de G otha, era, para Marx, o mesmo que, “numa revolta de
escravos que tivessem finalmente penetrado o segredo da escravatura, um escravo
preso a concepções antiquadas inscrevesse no programa da revolta: a escravatura
deve ser abolida porque, no sistema de escravatura, o sustento dos escravos não
poderia ultrapassar um determinado máximo pouco elevado!”
Sendo o fundamento da lei de bronze dos salários a teoria malthusiana da população,
“se esta teoria é exacta - observa M arx - eu não posso abolir a lei, mesmo
abolindo cem vezes o regime de trabalho assalariado, pois então a lei não regula
apenas o sistema de salariato mas todo o sistema social. Foi precisam ente com
este fundam ento que os economistas, há mais de 50 anos, defenderam que o
socialismo não pode suprim ir a miséria que é fundada na natureza das coisas,
m as que ele só pode generalizá-la, estendê-la a toda a sociedade!”

Argumentando que - nos termos do princípio da população de Malthus e da lei


de bronze dos salários-o aumento da população que se sucederia necessariamente a
qualquer elevação de salários haveria de provocar uma subsequente baixa destes,
Lassalle negava qualquer sentido válido à acção sindical tendente a melhorar a situ­
ação das classes trabalhadoras. Defendendo a concepção hegeliana de um estado
árbitro dos interesses opostos na sociedade civil, Lassalle sustenta antes que o objecti­
vo da classe operária devia ser a obtenção do sufrágio universal por forma a impor ao
estado um comportamento que defenda os interesses da maioria trabalhadora.
Também neste ponto Marx discorda de Lassalle. O estudo intitulado Salário,preço
e lucro é, aliás, um relatório apresentado por Marx, em 1865, ao Conselho Geral da
Associação Internacional dos Trabalhadores. Com ele, Marx pretendeu mostrar que
não tinha razão o operário inglês John Weston, que, perante aquele Conselho, defen­
dera a tese de que o aumento do salário não podia melhorar a situação dos operários e
de que a actividade dos sindicatos deveria ser considerada prejudicial.
Marx entende que a organização sindical dos trabalhadores lhes permite lutar
por melhores condições de trabalho, por melhores salários e pela integração no
mínimo vital de certas necessidades, aumentando o valor da força de trabalho, na
5 1 6 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l It ic a

medida em que nas necessidades mínimas de manutenção e de reprodução da força


de trabalho se integram necessidades que vão sendo progressivamente conquista­
das pela classe operária organizada.
Embora defenda a acção sindical, Marx adverte, porém, que “os operários não
devem exagerar o resultado final da sua luta (sindical) quotidiana. Não devem
esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas desses efeitos, (...) que
aplicam apenas paleativos sem estirpar o mal”. “Um aumento de salário - escrevia
nos Manuscritos de 1844 - não é mais do que o pagamento de salários melhores a
escravos e não conquista para o operário o seu destino e a sua dignidade humana”.
Daí, a sua conclusão, em Salário, preço e lucro:
“é preciso que eles (os operários) compreendam que o regime actual, com todas
as misérias com que os oprim e, engendra ao mesmo tem po as condições m ate­
riais e asform as sociais necessárias para a transformação económica da socieda­
de. E m lugar da palavra dc ordem conservadora: *Um salário razoávelpara uma
jornada de trabalho r a z o á v e ldevem inscrever na sua bandeira a palavra dc
ordem revolucionária:

“Abolição do salariato!”

7. A T E O R IA M A R X IS T A D A S C L A S S E S . A LU TA D E CLA SSES

Dissemos da importância da luta de classes como elemento fundamental do mar­


xismo. Convirá, por isso, deixar um esclarecimento acerca da teoria marxista das
classes sociais.
Marx não formulou de forma sistemática a sua teoria das classes, embora -
como Lénine observou - tudo o que ele escreveu diga respeito, de algum modo, ao
problema das classes. O próprio Marx reconheceu, em carta a J. Weydemeyer,
“(...) não [lhe] caber o mérito de ter descoberto a existência de classes na socieda­
de moderna, nem mesmo da luta entre elas”.522
Antes de Marx o conceito de classe tinha sido elaborado pelos historiadores
franceses da Restauração (Guizot e Thierry, v.g.) e pelos economistas ingleses, e a
noção de proletariado foi apresentada pelos socialistas utópicos (que - como vi­
mos - distinguiram nele mais a sua miséria e o seu sofrimento do que a sua missão
histórica revolucionária e a sua força de luta).
O próprio Marx considera Ricardo o primeiro grande economista a incluir na
sua análise o antagonismo dos interesses de classe, embora aponte as suas limita­
ções (Posfácio da 2a ed. alemã de O Capital):

522 Em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. d l., 1,555.


A v e iAs N u n e s - 5 1 7

“Ricardo é o primeiro economista a fazer deliberadamente do antagonism o dos


interesses de classe, da oposição entre salário e lucro, lucro c renda, o ponto de
partida das suas investigações. Este antagonism o, com efeito inseparável da
própria existência das classes de que a sociedade burguesa se compõe, formula-
o ele ingenuam ente como a lei natutal, imutável, da sociedade hum ana. Estava
atingido o lim ite que a ciência burguesa nunca venceria. A C rítica ergueu-se
perante ela, ainda em vida de Ricardo, na pessoa de Sismondi".

A contribuição de Marx nesta matéria traduz-se, na verdade, em ter mostrado


que a existência das classes está ligada a determinadas fases históricas do desen­
volvimento da produção e que a luta de classes no seio da sociedade capitalista
conduzirá à vitória da classe operária, à ditadura do proletariado, e, finalmente, à
instauração de uma sociedade sem classes. O que distingue, a este respeito, a teoria
de Marx é a inserção das classes sociais no sistema social de produção e a tese
segundo a qual o desenvolvimento das sociedades assenta no conflito entre as
classes, cujas contradições levarão à sua superação por um novo tipo de sociedade
sem classes.
Como escrevem os autores do Manifesto Comunista, “a nossa época - a época da
burguesia - distingue-se pela simplificação dos antagonismos de classe. A socie­
dade divide-se vada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes
classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”. E, em nota à edição
inglesa de 1888, Engels esclarecia que “por burguesia entendemos a classe dos
capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção, que exploram o tra­
balho assalariado. Por proletariado, entendemos a classe dos trabalhadores moder­
nos que, não possuindo nenhum meio de produção, se vêem obrigados a vender a
sua força de trabalho para poder viver”.
Não quer isto dizer que Marx e Engels defendessem que só estas duas classes
existiam na sociedade capitalista. Simplesmente, é entre elas que se gera o conflito
historicamente relevante (em termos que justificam a afirmação de Lénine de que
“o essencial da doutrina de Marx é que ela pôs a claro a missão histórica do
proletariado, como construtor da sociedade socialista”):
“D e todas as classes que se opõem actualm ente à burguesia - escreve-se no
M anifesto - , só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As
outras classes declinam e perecem com a grande indústria; o proletariado é o
seu produto mais autêntico.

A s classes médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesano, o


camponês, todos com batem a burguesia para salvar do declínio a sua existência
de classe média. N ão são, pois, revolucionárias, mas conservadoras, mais ainda,
são reaccionárias, pretendem fazer girar para trás a roda da história. Se se
5 1 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

tornam revolucionárias, é porque está eminente a sua passagem para o proleta­


riado; defendem então os seus interesses futuros e não os seus interesses actuais.
A bandonam o seu próprio ponto dc vista para adoptar o do proletariado”.

À medida que se afirma como sistema dominante, o capitalismo tende a reali­


zar o seu esquema teórico, proletarizando as camadas da classe média e dos peque­
nos proprietários agrícolas, compreendendo-se assim que a evolução do capitalismo
signifique uma simplificação do esquema das classes sociais: de um lado, a classe
capitalista; de outro lado, o operariado da indústria ou da agricultura (uma vez
conquistada esta para o capitalismo). Por isso se justificará que, nos trabalhos de
índole teórica, Marx raciocine a partir da existência de duas classes apenas, embo­
ra nos textos dc análise histórica (do capitalismo ou dos modos de produção anteri­
ores) Marx considere a existência de um número variável de classes.
Lénine (em A grande iniciativa, 1919) apresenta pela primeira vez, nos quadros
da teoria marxista, uma noção geral de classes sociais:
“D á-se o nom e dc elasses a vastos grupos de hom ens que se distinguem pelo
lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção social,
pelas suas relações (quase sempre fixadas e consagradas pelas leis) com os meios
dc produção, pelo seu papel na organização social do trabalho, em suma, pelos
modos dc obtenção c pela im portância da parte das riquezas sociais de que
dispõem . As elasses são grupos dc hom ens cm que um se pode apropriar do
trabalho dos outros devido à diferente posição que ocupa num a estrutura de­
term inada da econom ia social".

De acordo com a tese fundamental do marxismo de que a essência da realidade


económica deve buscar-se ao nível da produção e de que a propriedade ou não-
propriedade dos meios de produção é que fundamenta a divisão da sociedade em
classes antagónicas, a definição de Lénine acentua, como critério de diferenciação
das classes sociais, a posição dc cada uma relativamente aos meios de produção.
Assim sendo, a burguesia capitalista há-de definir-se não tanto pela sua rique­
za, pela sua concepção do mundo ou por qualquer outro critério económico ligado
à repartição do rendimento e da riqueza, nem por qualquer critério de ordem psico­
lógica ou moral, mas sim pelo lugar que ocupa na produção, como proprietária
dos meios de produção, situação que lhe permite apropriar-se da mais-valia criada
pelos trabalhadores: “ser capitalista - diz-se do Manifesto - é ocupar não apenas
uma posição puramente pessoal, mas ainda uma posição social na produção”.
O proletariado, ao invés, definir-sc-á como a classe que não é proprietária dos
meios de produção; que, pela venda da sua força de trabalho, produz a mais-valia;
e que tem uma consciência mais ou menos clara do lugar que ocupa na sociedade
capitalista e da sua missão histórica.
A vel A s N u n e s - 5 1 9

Embora os autores marxistas acentuem que o pertencer a uma classe determi­


nada é um facto objectivo independente da consciência que cada homem tenha
desse facto, parece haver concordância quanto à aceitação de que certos elementos
subjectivos não são alheios à teoria marxista das classes: a classe social só ganharia
verdadeiro sentido quando, para além da posição idêntica no processo de produção
e dos interesses económicos comuns, intervém a solidariedade de classe e a consciên­
cia de classe que ela pressupõe.
O desenvolvimento do proletariado e a progressiva tomada de consciência da
sua própria força e da sua missão revolucionária apareceu, na teoria marxista,
como uma das primeiras consequências do desenvolvimento da indústria capitalis­
ta, que assim produz, dialecticamente, as condições que hão-dc levar à destruição
da ordem capitalista:
“O desenvolvimento da indústria - lê-se no M anifesto- não faz senão aumentar
o m undo dos proletários: concentram -se em massas mais im portantes, as suas
forças aum entam e tom am cada vez mais consciência disso.

(...) E sta união [a união dos trabalhadores] é facilitada pelo crescim ento dos
meios de comunicação criados pela grande indústria, que perm item aos operá­
rios de localidades diferentes contactarem entre si. Bastou esta tom ada de
contacto para centralizar num a luta nacional, numa luta de classes, as num ero­
sas lutas sociais que têm por todo o lado o m esmo carácter. M as toda a luta de
classes é política. E a união que os burgueses da idade média levaram séculos a
estabelecer, com os seus caminhos vicinais, é realizada pelos proletários m oder­
nos, com os cam inhos de ferro, cm alguns anos”.

E, mais à frente, escrevem os autores do Manifesto:


“A condição essencial da existência e do dom ínio da classe burguesa é a acumu­
lação da riqueza nas mãos dos particulares, a formação e o crescim ento do
capital; a condição da existência do capital é o salariato. O salariato assenta
exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indús­
tria, de que a burguesia é agente passivo e sem resistência, substitui ao isola­
m ento dos operários, que resulta da sua concorrência, a sua união revolucioná­
ria pela associação. À m edida que a grande indústria se desenvolve, a própria
base sobre a qual a burguesia assentou o seu sistema de produção e de apropri­
ação vai-se m inando sob os seus pés. O que ela produz, antes de mais, são os
seus próprios coveiros. A sua eliminação e o triunfo do proletariado são igual­
mente inevitáveis”.

M as o que é o capitaft Que sentido tem esta palavra, quando se diz que a
acumulação do capital é condição da existência e do domínio da burguesia, ou
quando se fala do antagonismo entre o capitale o trabalho?
5 2 0 - U m a I n t r o o u ç A o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Para Marx, os meios de produção, cm si mesmos, não são capital', nem uma
máquina, nem uma quantia de dinheiro, nem um estoque de mercadorias, são,
naturalmente, capital. A existência dos meios de produção é indispensável para o
progresso de qualquer sociedade, mesmo uma sociedade sem classes. O que é
capital são os equipamentos, o dinheiro, os estoques, os meios de produção, em
suma, quando se encontram apropriados em propriedade privada pelos membros
de uma classe (a classe capitalista), que os utiliza em termos de se verificar a
exploração necessária daqueles que não têm a propriedade dos meios de produção
(os trabalhadores) e se vêem, por isso, obrigados a vender a sua força de trabalho.
O capital é, portanto, um valor que proporciona ao seu titular uma mais-valia,
através da exploração de trabalho assalariado. O capital não tem, pois, existência
sem o trabalho: o trabalho morto, propriedade da classe que detém a titularidade
dos meios sociais de produção, explora, assim, o trabalho vivo. Neste sentido, o
capital é apenas um trabalho de outrem não pago que se vai renovando mediante a
exploração do trabalho alheio: “Na sociedade burguesa - escreve-se no Manifesto
-, o trabalho vivo é apenas um meio de acrescentar o trabalho acumulado. Na
sociedade comunista, o trabalho acumulado é apenas um meio de expandir, de
enriquecer, de favorecer a existência dos trabalhadores”.
O capital não é considerado como uma coisa nem como uma relação entre
coisas, mas sim uma relação entre homens na produção, isto é, uma relação entre
duas classes (antagónicas), a classe capitalista e a classe proletária: “o capital não é
uma coisa - escreveu Marx; é uma relação determinada de produção”.
“O modo de produção e de acumulação capitalista e, portanto, a propriedade
privada capitalista pressupõe a destruição da propriedade fundada sobre o trabalho
pessoal; a sua base - escreveu Marx - é a expropriação do trabalhador”. E Marx
acentua que “a propriedade privada, fundada no trabalho pessoal, essa propriedade
que liga por assim dizer o trabalhador isolado e autónomo às condições exteriores
do trabalho, vai ser suplantada pela propriedadeprivada capitalista,fundada na ex­
ploração do trabalho de outrem, no regime de salariato”\o sublinhado não é de Marx].
Quer dizer que a propriedade privada só se torna capital [propriedade privada ca­
pitalista] quando, historicamente, surgiram as condições que permitiram a uma
classe proprietária dos meios dc produção contratar trabalhadores assalariados, ex­
cluídos da propriedade dos ditos meios de produção.
O carácter conflitual das sociedades capitalistas reflecte-se tanto em Marx como
em Ricardo. Mas as contradições resultantes do conflito social ganham em Marx
contornos diferentes e assumem um significado diferente.
A contradição fundamental que ressalta da obra de Ricardo é a que opõe a nova
burguesia industrial à velha aristocracia fundiária. Dela resulta a ameaça do estado
A v elã s N u n es - 5 2 1

estacionário, que Ricardo considera facilmente ultrapassável, desde que se deixem


actuar as leis naturais', o livrecambismo assegurará as condições para um cresci­
mento sem limitações (de que todos beneficiarão) e sem crises gerais de sobrepro-
dução, nos termos que a lei de Say explicitou e que Ricardo aceitou. Ao defender
que a economia se rege por leis naturais (que são leis eternas, de validade absoluta e
universal), Ricardo admite que as relações com base nas quais se cria a riqueza e se
opera a sua distribuição entre as classes sociais são elas próprias naturais e eternas.
O conflito social dominante nas sociedades capitalistas surge polarizado na
obra teórica de Marx à volta da burguesia capitalista e dos trabalhadores assalari­
ados. E as contradições em que esta conflitualidade se traduz são o caminho que
há-de levar à superação do capitalismo: “a única via real pela qual o modo de
produção e a organização social que lhe corresponde caminham para a sua disso­
lução e a sua metamorfose - escreveu Marx - é o desenvolvimento histórico dos
seus antagonismos permanentes”.
Em Marx, as contradições inserem-se na lei de movimento de cada formação
social. Como ele próprio escreveu, em “certo estádio do seu desenvolvimento, as
forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes, ou, o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade, no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvol­
vimento das forças produtivas que eram, essas relações transformam-se em entraves
a esse desenvolvimento. Abre-se então uma época de revolução social”.
Ao contrário da perspectiva gradualista do marginalismo, tão bem ilustrada na
legenda que Alfred Marshall fez gravar no pórtico dos seus Principies (natura non
Jacitsaltum), bem poderá dizer-se que, segundo Marx, naturafacit salta. Porque,
sendo “a história da humanidade até aos nossos dias é a história da luta de classes”,
esta acontece ao longo de um processo em que a agudização das contradições de
cada modo de produção provoca períodos de “revolução social” superadores da
ordem estabelecida.

8. A TEORIA DA CONCENTRAÇÃO
Marx foi o primeiro economista a enquadrar teoricamente o fenómeno da con­
centração capitalista, ao atribuir-lhe em O Capital um papel importante, decisivo
mesmo, no seio da sua teoria da acumulação do capital. O seu fulgor teórico impres­
siona tanto mais quanto é certo que 0 Capitalé anterior ao movimento de concen­
tração desencadeado fundamentalmente na década 80-90 do século XIX (Marx
morreu em 1883).
No fenómeno global da concentração distingue ele dois aspectos. Por um lado,
a concentração propriamente dita, resultante da apropriação da mais-valia pelos
5 2 2 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

capitalistas, que leva à acumulação do capital nas empresas industriais. Estas, obe­
decendo ã lógica do capital, que é a sua valorização permanente, vão fazer investi­
mentos sob a forma de capital constante, aumentando assim a sua capacidade de
produção, o seu poderio, a riqueza relativa dos empresários privados: “Aumentan­
do os elementos de reprodução da riqueza - escreve Marx —, a acumulação opera
ao mesmo tempo a sua concentração crescente entre as mãos dos empresários
privados. Todavia, este género de concentração, que é o corolário da acumulação,
move-se dentro de limites mais ou menos estreitos”.
Simplesmente, a este nível, a concentração sofre limites que vêm a traduzir-se
na multiplicação dos centros de acumulação, “quer pela força de novos capitais
[v.g. criação de novas empresas], quer pela divisão de capitais antigos” [v.g. em
caso de partilha de herança no seio de famílias capitalistas].
Contudo, “num certo ponto do progresso económico - salienta M arx - esta
fragmentação do capital social numa multidão de capitais individuais, ou o movi­
mento de repulsão das suas partes integrantes, vem a ser contrariado pelo movi­
mento oposto da sua atracção mútua”, fenómeno que Mane designa por centralização (“a
atracção do capital pelo capital”):
“Já não é a concentração que se confunde com a acumulação, mas antes um
processo csscncialmcntc distinto, é a atracção que reúne vários centros de
acumulação e de concentração, a concentração de capitais já formados, a fusão
de um núm ero superior de capitais cm um núm ero menor, num a palavra, a
centralização propriam ente dita”.

Continuando a tarefa de distinguir correctamente os dois fenómenos (concen­


tração e centralização), Marx acrescenta:
“Em bora o alcance e a energia relativos do movimento centralizador sejam cm
ccrta m edida determ inados pela grandeza adquirida da riqueza capitalista c
pela superioridade do seu mecanismo económico, o progresso da centralização
não depende dc um crescim ento positivo do capital social. É o que, acima de
tudo, a distingue da concentração, que não é outra coisa senão o corolário da
reprodução num a escala progressiva. A centralização apenas exige um a m u­
dança de distribuição dos capitais existentes, um a modificação na repartição
quantitativa das partes integrantes do capital social”.

Teoricamente, como Marx anota,


“num ram o determ inado da produção, a centralização só atingiria o seu limite
máximo no m om ento em que todos os capitais que nele se encontram investi­
dos formassem um único capital individual. N um a determ inada sociedade, a
centralização só teria alcançado o seu últim o limite no m om ento em que todo
A v elà s N un es - 5 2 3

o capital nacional formasse um único capital nas mãos de um único capitalista


ou de um a única sociedade de capitalistas”.

Observando que “a centralização se limita a suprir a acção da acumulação,


colocando os industriais cm condições de alargar a dimensão das suas operações”,
Marx conclui que
“o m undo não disporia ainda da rede de vias férreas, por exemplo, se tivesse tido
que esperar o m om ento em que os capitais individuais crescessem o bastante
em virtude da acumulação, para estarem cm condições de sc lançar cm tal
em preendim ento. A centralização do capital, por meio das sociedades por
acções, conseguiu-o, por assim dizer, num abrir e fechar de olhos”.

Que factores explicam a centralização? Marx considera a concorrência e o crédito


como “os agentes mais poderosos da centralização”.
“A guerra da concorrência - diz Marx - faz-se a golpes de baixo preço. E os
preços baixos dos produtos dependem, coeterisparibus, da produtividade do trabalho,
e esta da dimensão das empresas. Os grandes capitais batem, portanto, os pequenos”.
Q uanto ao crédito - que foi, de início, uma ajuda modesta da acumulação - ,
em breve se tornou “uma arma adicional e terrível da guerra da concorrência, e
transformou-se, finalmente, num imenso mecanismo social destinado a centrali­
zar os capitais”.
Quanto aos efeitos do fenómeno global da concentração, Marx conclui:
“O s volumosos capitais improvisados pela centralização reproduzem-se como os
outros, mas mais depressa que os outros, e transformam-se assim, por sua vez,
cm poderosos agentes de acumulação social. É neste sentido que, quando se fala
do progresso desta, se está a subentender os efeitos produzidos pela centralização.

O s capitais suplementares, fornecidos pela acumulação, servem de preferência


com o veículos para as novas invenções, descobertas, etc., num a palavra, para os
aperfeiçoam entos industriais, mas o capital antigo, desde que atingiu o seu
período de renovação integral, moderniza-se e reproduz-se tam bém em forma
técnica aperfeiçoada, em que uma quantidade menor de força de trabalho basta
para pór cm actividade um a massa superior de instrum entos e de matérias. A
dim inuição absoluta na procura de trabalho, ocasionada por esta metamorfose
técnica, deve tornar-se tan to mais sensível quanto mais os capitais utilizados
tiverem sido engrandecidos pelo movimento centralizador”.

Por outro lado, a concorrência significa um processo de expropriação do capital


pelo capital\ a destruição da propriedade de um grande número de capitalistas em
proveito da propriedade de uma minoria cada vez mais restrita. Deste modo, a
própria dinâmica do sistema da propriedade capitalista conduz à expropriação da
5 2 4 - U m a I n t r o o u ç A o A E c o n o m ia P o l ít ic a

propriedade dos pequenos detentores de capitais, que se vêem transformados em


simples proprietários da sua força de trabalho.
No Discurso sobre o livre-càmbio afirmava Marx que
“quanto mais aum enta o capital produtivo, mais ele é forçado a produzir para
um m ercado cujas necessidades não conhece, mais a produção precede o con­
sumo, mais a oferta tenta forçar a procura e, em consequência, as crises aum en­
tam cm intensidade e rapidez. M as toda a crise, por seu turno, acelera a centra­
lização dos capitais e aum enta o proletariado”.

Aqui se aponta a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo (e o seu mo­


vimento no sentido de um capitalismo monopolista) acentua a sua característica de
sistema em que a satisfação das necessidades não é um fim em si mesmo, mas um
meio de realizar a valorização do capital (por isso “a oferta tenta forçar a procura”,
adaptando-a aos objectivos prosseguidos pelo capital).
Marx sublinha, por outro lado, o facto de, cada vez mais, a produção preceder o
consumo, o que cria condições mais favoráveis à ocorrência de crises, sendo certo
que as crises constituem, por sua vez, um factor de aceleração da centralização dos
capitais e de proletarização da pequena e média burguesia destruída pelas crises.
Inerente à redução do número de centros de acumulação, vem o reforço do
poderio destes, por um lado, mas vem também a proletarização de grandes massas
de pequenos proprietários, reduzindo-se assim o suporte social do sistema capita­
lista. Também por esta via a burguesia cria os seuspróprios coveiros. E M arx conclui
que Mos expropriadores serão por sua vez expropriados”, tarefa que se lhe afigura
mais fácil do que a expropriação que esteve na base da acumulação primitiva de
onde arrancou o modo de produção capitalista, pois na acumulação primitiva “tra­
tava-se da expropriação da massa por alguns usurpadores; agora, trata-se da ex­
propriação de alguns usurpadores pela massa”.
Assim termina Marx o capítulo XXXII no Livro I de O Capital, no qual apre­
senta uma súmula do que considera a tendência histórica da acumulação do capital'.
“Esta expropriação [do pequeno capitalista pelo grande] realiza-se pelo jogo
das leis im anentes da produção capitalista, as quais levam à concentração dos
capitais. Correlativam ente a esta centralização, à expropriação do grande n ú ­
mero dc capitalistas pelo pequeno, desenvolvem-se em escala sempre crescente
a aplicação da ciência à técnica (...), o entrelaçamento dc todos os povos na rede
do m ercado universal, dc onde o carácter universal im prim ido ao regim e capi­
talista. À m edida que dim inui o núm ero de potentados do capital, que usur­
pam c m onopolizam todas as vantagens deste período de evolução social,
desenvolve-se a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração,
mas tam bém a resistência da classe operária em perm anente crescim ento e
A v elã s N u n es - 5 2 5

cada vez mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanism o da


produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o
m odo de produção que se desenvolveu e tem prosperado com ele e sob os seus
auspícios. A socialização do trabalho e a centralização das suas energias m ate­
riais chegam a um ponto em que não podem continuar a m anter-se na sua
estrutura capitalista. Esta estrutura desintegra-se. Soou a hora da propriedade
capitalista. O s expropriadores são por seu turno expropriados.

A apropriação capitalista, adequada ao m odo de produção capitalista, constitui


a primeira negação daquela propriedade privada que é mero corolário d o traba­
lho independente e individual. M as a produção capitalista gera ela mesma a sua
própria negação com a fatalidade que preside às metamorfoses da natureza. É
a negação da negação. Ela estabelece não a propriedade privada do trabalhador
mas a sua propriedade individual fundada nos ganhos da era capitalista, na
cooperação c na posse com um de todos os meios de produção, incluída a terra.

Para transform ar a propriedade privada e dividida, objecto do trabalho indivi­


dual, cm propriedade capitalista, foi preciso naturalm ente mais tem po, esfor­
ços e sacrifícios do que exigirá a metamorfose em propriedade social da propri­
edade capitalista, que, de facto, assenta já num m odo de produção colectivo.
N o primeiro caso, tratava-se da expropriação da massa por alguns usurpadores;
agora, trata-se da expropriação de alguns usurpadores pela massa".

9 . T e n d ê n c ia p a r a a b a ix a d a t a x a m é d ia d e l u c r o

Trata-se de um problema que - como vimos - desde Adam Smith, Ricardo e


Stuart Mill preocupava os economistas ligados à Escola Clássica. A conclusão dos
clássicos ingleses era no sentido de que este fenómeno da baixa da taxa de lucro
faria cessar a acumulação do capital e o sistema cairia num estado de estagnação.
Marx veio retomar a questão:
“À medida que progride o modo de produção capitalista, o desenvolvimento da
produtividade do trabalho traduz-se, por um lado, na tendência para um a baixa
progressiva da taxa de lucro c, por outro lado, num aum ento constante da
massa absoluta da mais-valia e do lucro de que se apropriam os capitalistas".

Debruçando-se sobre a análise de Ricardo - a partir da qual, como aconteceu


com a teoria do valor, Marx vai tentar uma outra explicação e vai chegar a conclu­
sões muito diferentes - , escreve o autor de O Capital.
“O que preocupa Ricardo é que a taxa de lucro, estím ulo da produção e da
acumulação capitalistas, seja ameaçada pelo próprio desenvolvim ento da pro­
dução. (...) M esm o sob o ponto de vista puram ente económ ico e vulgarmente
burguês, lim itado pelo próprio horizonte dos detentores do capital, o regime
5 2 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

capitalista aparcce como um a forma, não absoluta e definitiva, mas relativa e


transitória da produção”.

Em vez de concluir pela possibilidade de a economia capitalista se instalar


numa situação estacionária, Marx afirma o carácter meramente transitório do modo
de produção capitalista e orienta a sua argumentação por forma a concluir que a
baixa da taxa de lucro criará no seio do sistema uma situação extremamente instá­
vel e explosiva de subemprego das forças produtivas, que conduzirá à derrocada do
modo de produção capitalista. Enquanto os economistas clássicos concluíam que a
baixa da taxa de lucro viria provocar a limitação progressiva do aforro e, daí, a
cessação do investimento, Marx sustenta que a baixa da taxa de lucro originará
uma situação de carência de condições satisfatórias para o investimento do aforro
disponível, que fica, portanto, por utilizar.
Vamos tentar expor resumidamente o seu raciocínio.523 Veremos como Marx faz
assentar a explicação da baixa da taxa de lucro na própria essência do capitalismo
enquanto sistema cuja dinâmica implica um crescimento do capital constante (instru­
mentos e máquinas) e uma diminuição relativa do capital variável (capital utilizado
na aquisição da força de trabalho, único, que pode produzir mais-valia). Ela não
resulta, pois, de factores naturais alheios às características específicas de determinado
modo de produção ou defactores aleatórios (como a vigência das Com Lavjs).
Ricardo, como se sabe, explica o fenómeno em estudo pelo aumento do valor dos
produtos agrícolas, aumento que, nos termos do princípio da população de Malthus,
seria consequência natural do progresso económico. O próprio Marx anotou esta
diferença de posições: “Os economistas que, como Ricardo, consideram a produção
capitalista como uma forma definitiva, verificam que ela cria os seus próprios limites
e atribuem esta consequência não à produção, mas à natureza, na teoria da renda”.
Vejamos então o caminho seguido por Marx.
A taxa média de lucro determina-se tomando a massa total da mais-valia produzi­
da por todos os operários, v.g. durante um ano em determinado país,e relacionando-
a com a massa total do capital investido nesse país. A taxa de lucro (L) vem, portanto:
l =m
K.
Ora, em Virtude do progresso técnico, a composição orgânica do capital Z =
c

tende a aumentar, o que, mantendo-se constante a taxa de mais-valia (M /V ), sig­


nificará baixa da taxa de lucro.

523 Usaremos na exposição alguns símbolos, com os seguintes significados: M - mais-valia; K - capital total: C -
capital constante; V - capital variável; L - taxa de lucro; Z - com posição orgânica d o capital, expressão
adoptada por Marx para traduzir a relação entre o capital constante e o capital variável (C/V).
A v elã s N u n es - 5 2 7

Efectivamente,
T_ M _ M
K C +V

Sendo Z = vem que: C = VZ.

L poderá então figurar-se deste modo:

T- M M M x 1
" VZ + V ’ V (1 + Z) " v " (1 + Z)

Sc, por hipótese, M /V não se altera e se, em virtude das próprias condições do
desenvolvimento capitalista, Z aumenta (o que significa que diminuirá a relação
___í___, é claro que L (igual a x ___ í _ ) diminuirá também.
(1 ♦ Z) V (1 + Z)

Assim extrai Marx a explicação da baixa da taxa de lucro a partir da elevação


da composição orgânica do capital.
Por outro lado, M arx observa que o progresso técnico virá traduzir-se em
diminuição do número de operários ocupados para um capital dado (ou em au­
mento do capital investido por trabalhador ocupado), facto que levaria à mesma
conclusão de que a taxa de lucro tem tendência para baixar:
“D ois operários trabalhando doze horas por dia não podem fornecer a mesma
quantidade de mais-valia que vinte e quatro operários que trabalhem apenas
duas horas, m esmo que eles pudessem viver do ar e não tivessem nenhum a
capacidade de trabalhar para si próprios. A este respeito, a compensação da
redução do núm ero de operários pelo crescimento do grau de exploração esbar­
ra com certos limites que não pode ultrapassar; portanto, se ela pode entravar
a baixa da taxa de lucro, não poderá fazê-la cessar”.

Q uer dizer, se o capital investido por trabalhador aumenta, para que a taxa de
lucro se mantenha é preciso que a mais-valia obtida de cada operário aumente tam ­
bém proporcionalmente.
E Marx aponta, na verdade, alguns factores que, traduzindo-se em aumento da
taxa de mais-valia ou taxa de exploração, podem retardar ou limitar a evolução
tendencial no sentido da baixa da taxa de lucro: o aumento da produtividade,
inerente à crescente utilização das máquinas, pode provocar a redução do valor do
capital constante por unidade de trabalho, embora tenha subido o volume material
do capital constante posto em movimento pela mesma quantidade de força de
5 2 8 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

trabalho; o aumento da jornada dc trabalho ou a intensificação do ritmo do traba­


lho; a baixa dos salários resultantes da criação de um exército industrial de reserva
em consequência da introdução das máquinas, etc.
Simplesmente, este aumento da mais-valia não pode verificar-se indefinidamen­
te, pois há que contar, desde logo, com o limite resultante da quantidade máxima de
trabalho que o trabalhador pode fornecer; para além de que uma parte das horas de
trabalho do operário sempre hão-de ser destinadas à produção do correspondente ao
salário recebido (e é claro que esse tempo de trabalho pago, por mais que aumente
a produtividade, nunca poderá reduzir-se a zero). Sendo assim, se a mais-valia, a
certa altura, não pode crescer mais, continuando a crescer o montante do capital
investido por operário, a taxa de lucro (expressa pela relação mais-valia/capital)
começará necessariamente a baixar, em determinado momento.
Quando tal se verifica, o aforro disponível só encontrará condições de investi­
mento “conquistando um lugar a expensas do capital antigo”. Esta luta, provocada
pela plétora de capitais, tornará mais aguda a concorrência entre os capitalistas e
virá aumentar a gravidade das crises de sobreprodução.
Com o a massa total da mais-valia, em determinado país, depende do número
total de horas de trabalho fornecidas pelo conjunto dos operários, o que acontece­
rá é que, se algumas empresas - por trabalharem abaixo do nível de produtividade,
desperdiçando, portanto, tempo de trabalho social - não realizam o conjunto da
mais-valia produzida pelos seus operários, fica disponível essa parte da mais-valia
social que irá beneficiar as empresas que laboram acima do nível médio de pro­
dutividade, recebendo a economia feita por elas de tempo de trabalho social.
A concorrência capitalista actua, assim, em favor das empresas com maior
índice de produtividade. Estas realizam lucros superiores à média, sendo certo que
a taxa média de lucro é uma noção abstracta (como o valor), uma média à volta da
qual oscilam as taxas de lucro real dos vários sectores e das várias empresas.
O ra os capitais, na sua lógica, deixam de ser investidos nos sectores onde a taxa
de lucro é inferior à média, para procurarem os sectores que asseguram lucros
superiores a essa média. E esse fluxo e refluxo de capitais de uns sectores para
outros é que explicaria a tendência para as taxas de lucro se aproximarem da taxa
média (fenómeno d aperequação da taxa de lucro), o que não quer dizer que com ela
venham a coincidir efectivamente.
A baixa da taxa média dc lucro viria, finalmente, a traduzir-se, segundo Marx,
na redução do investimento c na estagnação da produção. “Ela estagna - escreve
Marx - não quando a satisfação das necessidades o impõe, mas quando a realiza­
ção do lucro dita essa estagnação”.
A v ela s N u n es - 5 2 9

Assim ficaria clara a contradição de um sistema em que a produção visa a


obtenção de lucros e não a satisfação das necessidades humanas, contradição entre
o desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações de produção,
contradição que Marx expõe nestes termos:
“O verdadeiro lim ite da produção capitalista é o próprio capital: o capital e a
sua auto-valorização surgem como ponto dc partida c ponto final, m otor c fim
da produção: a produção não é mais que um a produção para o capital, e não o
inverso (...)

O meio - desenvolvimento incondicionado da produtividade social - entra


perm anentem ente em conflito com o fim lim itado: valorização d o capital
existente. Se, portanto, o m odo de produção capitalista c um meio histórico dc
desenvolver a força produtiva material c dc criar o m ercado m undial corres­
pondente, ele representa ao mesmo tem po uma contradição perm anente entre
essa missão histórica e as relações de produção sociais que lhe correspondem”.

E, mais à frente, Marx conclui:


“A contradição deste m odo de produção capitalista reside na sua tendência para
desenvolver absolutam ente asforças produtivas, que entram em conflito per­
m anente com as condições específicas dc produção d entro das quais se move o
capital, as únicas dentro das quais se pode mover”.

1 0. A TEORIA DAS CRISES


Antes de Marx, alguns autores (v.g. Malthus e Sismondi) tinham já estudado o
fenómeno das crises, ou tinham-se dado conta dele. Marx veio, porém, tentar a
explicação das crises como um dos pontos dc afloramento das contradições inter­
nas do sistema capitalista.
Embora Marx o não tivesse tratado de forma sistemática o problema das crises
aflora em vários dos seus escritos (v.g. no Manifesto, em O Capital e nas Teorias
sobre a mais-valia) e os autores salientam em geral a contribuição de Marx para o
estudo das crises de sobreprodução, que se iniciaram com carácter de periodicidade
por volta de 1825.
Ricardo, falecido em 1823, não conheceu, portanto, o fenómeno das crises cíclicas.
Já vimos, aliás, que o grande economista inglês partilhava, a este respeito, as ideias de
Say, sustentando a impossibilidade da ocorrência de crises de sobreprodução.
Na verdade, a sobreprodução só não tem sentido quando se admite que a pro­
dução é levada a efeito por pequenos produtores autónomos que produzem valores
de uso (i.é, produzem para satisfazer directamente as suas necessidades), pois, en­
tão, a apropriação directa dos valores de uso pelos consumidores torna impossível
que a sobreprodução e a miséria coexistam. Ao contrário, as crises de sobre-pro-
5 3 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

dução aparecem perfeitamente possíveis a partir do momento em que se genera­


liza a produção de valores de troca (mercadorias), dado que, agora, a apropriação
directa torna-se impossível: para se consumir uma mercadoria, é preciso comprá-
la (pagá-la); para se poder adquirir o seu valor de uso, é preciso dispor do equiva­
lente ao valor de troca da mercadoria. E que agora a produção não visa tornar
possível o consumo, visa a obtenção de lucros.
Ora, foi exactamente em crítica a Ricardo que Marx analisou as implicações da
Lei de Say> considerando o seu raciocínio uo linguajar infantil digno de um Say,
mas não de Ricardo”.
No quadro do capitalismo, a produção não se destina à satisfação das necessida­
des, mas à obtenção de lucro. A moeda não é um simples intermediário nas trocas, o
seu uso tem também como resultado a cisão da troca em duas operações que se
tomam autónomas, a venda e a compra, separadas no tempo e no espaço. Na verdade,
ninguém tem de comprar apenas porque vendeu, e a sobreprodução surge se alguém
vende e não compra outros produtos com a receita da venda. Por outro lado, se o
capitalista não esperar a obtenção de lucros, não investirá a sua poupança.
Qualquer interrupção no processo de circulação, qualquer retenção do poder
aquisitivo poderá provocar a sobreprodução e a crise. E M arx procurou mostrar,
precisamente, que as crises de sobreprodução são inerentes às contradições do
modo de produção capitalista:
“os trabalhadores, como compradores das mercadorias, são im portantes para o
mercado. M as, ao considerá-los como vendedores da sua m ercadoria, a força
de trabalho, a sociedade capitalista tem tendência para reduzi-los ao preço
mínim o. (...). O ra, a venda de mercadorias, a realização do capital-mercadoria,
c por consequência a mais-valia, é limitada, não pelas necessidades de consumo
da sociedade cm geral, mas pelas ncccssidadcs de consum o de um a sociedade
cuja m aior parte continuará sempre pobre”.

Na lei de Say assentou toda a teoria do equilíbrio económico geral. Com o a


oferta cria a sua própria procura, tudo o que é produzido é consumido. O salário
corresponde ao ajustamento da oferta e da procura de mão-de-obra no mercado de
trabalho, do mesmo modo que o juro corresponde ao ajustamento da oferta e da
procura de capital. E como se admitia que tudo o que não era consumido era
investido (não havendo lugar para o entesouramento), o equilíbrio geral realizar-
se-ia na economia ao nível do pleno emprego de todos os factores de produção.
Deixando de lado a crítica marxista, foi Keynes o autor que desferiu o golpe
decisivo na teoria do equilíbrio económico geral e na lei de Say.
Keynes veio colocar o problema noutra sede, apontando as razões que, em seu
entender, são susceptíveis de explicar que as pessoas preferiram conservar o seu
A v e l As N u n e s - 5 3 1

dinheiro em saldos líquidos em vez de o empregar de qualquer modo (os motivos


depreferência pela liquidez). Keynes mostra como o entesouramento pode explicar
que nem todo o aforro seja investido, resultando assim perturbada a lógica da
teoria clássica do equilíbrio. E o mesmo autor escreveria na General Theory, a
respeito do ‘optimismo’ dos clássicos:
“O famoso optimismo da teoria económica tradicional, optim ism o cm razão
do qual se acabou por considerar os economistas como C ândidos que, tendo
abandonado o m undo para cultivar o seu jardim , ensinam que tudo corre bem
no m elhor dos m undos possíveis, desde que se deixe o m undo entregue a si
mesmo. Tal optim ism o radica, a nosso ver, no facto de não se ter em conta o
obstáculo à prosperidade que pode derivar da insuficiência da procura efectiva”.

Mas o que são crises de sobreprodução}


Durante milénios, a noção de crise andava ligada à subprodução e à fome. As
crises pré-capitalistas (Ancien Régime) apresentavam-se como situações de acentu­
ada penúria, resultantes umas vezes de factores ligados à actividade produtiva (más
colheitas) e outras vezes de guerras ou de epidemias. As crises posteriores à revo­
lução industrial manifestam-se sempre, salvo durante a evolução das guerras, como
fenómenos de sobreprodução, de produção que não encontra compradores no
mercado a um preço que assegure o lucro dos produtores. Dado o seu carácter
frequentemente explosivo, elas conduzem também, como as crises de miséria pré-
capitalistas, a profundas perturbações económicas, sociais e políticas.
Na verdade, as crises do período pré-capitalista eram crises de subprodução de
valores de uso, resultantes de guerras, epidemias, pestes, inundações ou quaisquer
outros factores, num período histórico em que a produção pouco se desenvolvera
e os transportes e as trocas não eram fáceis. Por isso, a crise em dada região
poderia coincidir com condições normais de reprodução em outras regiões.
Sob o capitalismo, ao invés, as crises apresentam-se como crises de sobreprodu­
ção de valores de troca explicáveis não já por deficiência da produção, mas por defi­
ciência do consumo solvável. Quer dizer: para uma parte das mercadorias produzidas
não oferece o mercado possibilidades de realizar o seu valor de troca, arruinando
os seus proprietários, que não conseguem apropriar-se da mais-valia produzida. E
como o capitalismo realizou a universalização da produção, as crises são agora
gerais, afectando as várias regiões de um mesmo país e até os vários países do
mundo capitalista, como autêntica ‘epidemia’:
“Desde há dezenas dc anos - escreve-se no Manifesto - a história da indústria e
do comércio não é mais que a história da revolta das forças produtivas m oder­
nas contra as m odernas relações de produção, contra um regime de proprieda­
de que condiciona a existência da burguesia e o seu dom ínio. Basta m encionar
5 3 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

as crises comerciais que, pela sua periodicidade, ameaçam cada vez mais a
existência da sociedade burguesa. C ada crise destrói regularm ente não só uma
grande massa de produtos já fabricados, mas tam bém um a grande parte das
forças produtivas já existentes. N as crises, assiste-se ao alastrar de um a epide­
mia social que, em qualquer outra época, teria parecido absurda: a epidem ia da
sobreprodução".

Com o é que, na interpretação marxista, as crises de sobreprodução aparecem


como inerência do próprio processo de desenvolvimento capitalista?
A lógica do capital é a sua própria valorização. A produção como que se auto­
nomiza do consumo, tornando-se um fim de si própria. Por isso, a reprodução
normal e ininterrupta exige: a) que se verifique uma correspondência permanente
entre a produção e as possibilidades de consumo solvável da comunidade (de outro
modo, a mais-valia criada permanecerá cristalizada em mercadorias invendáveis,
rebentando a crise - crise de realização da mais-valia); b) que as compras de bens de
consumo se equilibrem com as compras de bens de produção; c) que se verifique
um desenvolvimento proporcional entre o sector dos bens de produção e o sector
dos bens de consumo.
Simplesmente, os bens de consumo produzidos só serão consumidos se pude­
rem ser pagos. Q uer dizer que o escoamento da produção de bens de grande
consumo sofre a limitação resultante do baixo poder de compra das massas, po­
dendo deixar de aumentar o consumo em pleno período de prosperidade, de eufo­
ria da produção e dos negócios, quando o fabrico de bens de produção se desenvolvera
enormemente e a sua venda prosseguia a bom ritmo (pois ela não está dependente
do poder de compra das massas mas das disponibilidades dos industriais e das suas
expectativas de lucros).
Assim se pode chegar a uma situação em que as forças produtivas se desenvolve­
ram a tal ponto que a capacidade de produção que elas representam, o seu carácter
social, não terá correspondência na capacidade de consumo, em virtude da apropri­
ação privada do sobreproduto social, em benefício exclusivo da classe capitalista. As
crises aparecem, portanto, como o reflexo deste desajustamento, desta contradição,
trazendo consigo, periodicamente, a desvalorização ou destruição do capital em ex­
cesso, dos meios de produção capazes de produzir bens de consumo em quantidades
tais que o mercado não as absorve, por não poderem pagá-las os consumidores.
Ilustremos com dois trechos de Marx. Um, de O Capital'.
“A razão últim a de todas as crises será sempre a pobreza e o consum o lim itado
das massas, cm face da tendência da produção capitalista para desenvolver as
forças produtivas com o se estas não conhecessem outros limites além da capa­
cidade absoluta de consum o da sociedade".
A v e i As N u n e s - 5 3 3

Outro, extraído do Manifesto:


“As forças produtivas de que dispõe [a sociedade] já não servem para fazer avançar
o regime da propriedade burguesa - pelo contrário, tornaram -se demasiado
poderosas para ela, que passou a ser um obstáculo para aquelas; e todas as vezes
que as forças produtivas sociais triunfam sobre este obstáculo lançam na desor­
dem toda a sociedade burguesa e ameaçam a sua própria existência. A s relações
burguesas tornaram -se demasiado estreitas para conter as riquezas que criaram”.

1 1 . A TEORIA DA REVOLUÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO


COMUNISMO
Da exposição que fizemos de alguns aspectos mais importantes da teoria de
Marx resultará a ideia segundo a qual, nos quadros do marxismo, no seio de cada
modo de produção historicamente determinado e, portanto, também, no seio do
capitalismo, se desenvolvem contradições que, em dado momento, ditarão a neces­
sidade de substituir o sistema existente por outro. Recordemos a lição de Marx: “a
única via real pela qual o modo de produção e a organização social que lhe corres­
ponde caminham para a sua dissolução e a sua metamorfose é o desenvolvimento
histórico dos seus antagonismos permanentes”.
Fiel ao seu princípio metodológico, a teoria de Marx apresenta-se como um
todo coerente. D a sua análise da teoria do valor-trabalho numa sociedade de classes
conclui que aquela teoria só se compreende fazendo apelo à teoria da mais-valia. A
mais-valia demonstra a exploração inerente a um sistema assente na propriedade
privada (capitalista) dos meios deprodução. A exploração explica a luta de classes, fruto
e expoente máximo de todas as contradições do sistema. M as o objetivo do capital
de se apropriar da mais-valia leva à concorrência que dá corpo à acumulação do
capital. O processo de concentração leva à expropriação do capitalpelo próprio capital’
à monopolização crescente das forças produtivas, à centralização do capital e àprole-
tarização de grandes massas, bem como à concentração destas e à sua progressiva
consciencialização, tornando assim mais aberta a luta de classes e mais clara a
vitória ‘necessária’ do proletariado.
O processo de desenvolvimento capitalista, através do progresso técnico (paralelo
à concentração), está na base da criação do exército industrial de reserva, que asse­
gura a manutenção dos salários ao nível de subsistência; mas está também na base
da baixa tendencialda taxa média de lucro. A par disto, o fraco poder de compra dos
trabalhadores, confrontado com o enorme desenvolvimento dasforças produtivas e
da capacidade de produção - consequência lógica da acumulação do capital - , o
carácter social que adquirem as forças produtivas em confronto com o carácterpriva­
do (capitalista) da apropriação da mais-valia, permitem explicar as crises cíclicas. Esta
5 3 4 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

sequência conduz à conclusão de que as contradições do sistema capitalista o en­


caminham para uma crisegeral revolucionária que ditará o seu fim, dando lugar a
uma sociedade que supere essas contradições, uma sociedade sem classes, em que não
existe propriedade capitalista dos meios de produção (abolição do salariato), em
que, a par do carácter social da produção e das forças produtivas, se verifique, ao
nível das relações de produção, a propriedade social dos meios de produção:
“o que caracteriza o com unism o - diz-se no Manifesto - não é abolição da
propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. O ra, a propri­
edade privada de hoje [o Manifesto data de 1847], a propriedade burguesa, é a
últim a e a mais perfeita expressão do m odo de produção e de apropriação
baseado cm antagonism os de elasses, na exploração dc uns pelos outros. Neste
sentido, os com unistas podem resumir a sua teoria nesta fórmula única: aboli­
ção da propriedade privada".

Com vista a alcançar estes objectivos, depois da “primeira etapa da revolução


operária, que é a constituição do proletariado em classe dom inante”,
“o proletariado - continua o Manifesto - servir-se-á da supremacia política para
arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os
instrum entos dc produção entre as mãos do estado, isto é, do proletariado
organizado em classe dom inante, e para aum entar o mais rapidam ente possível
a quantidade das forças produtivas. Isso, naturalm ente, só poderá efectuar-se,
no início, por um a violação despótica do direito dc propriedade e do regime
burguês dc produção, isto é, pela adopção de medidas que, cconom icam cntc,
parecem insuficientes e insustentáveis, mas que, no decurso do movimento, se
ultrapassam elas próprias e são indispensáveis como meio dc subverter comple­
tam ente todo o m odo dc produção”.

A tomada do poderpolítico, o domínio do aparelho de estado (que no Manifesto se


caracteriza como “o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”) é,
pois, para Marx, a primeira tarefa revolucionária do proletariado na sua luta para
destruir o modo de produção capitalista,524 cabendo ao poder político proletário, à
ditadura do proletariado, a função de eliminar as relações de produção capitalistas e
de organizar as relações de produção socialistas (tal como a ditadura da burguesia,
na sequência das revoluções burguesas, permitiu à classe burguesa concluir a liqui­
dação da ordem feudal e consolidar a nova ordem burguesa).
Na Crítica do Programa de Gotha, escreveu Marx:

524 Mais tarde, Lénine escreveria: "A questão do poder 6 certamente a questão mais importante de qualquer
revolução. Qual é a classe que detém o poder? Este é o fundo do problema (...) a questão do poder n5o pode
ser iludida nem relegada para último plano (...) é a questão fundamental'.
A v elã s N u n es - 5 3 5

“E ntre a sociedade capitalista e a sociedade com unista, coloca-se o período de


transform ação revolucionária daquela nesta, ao qual corresponde um período
de transição política cm que o estado não poderá ser outra coisa senão a ditadu­
ra revolucionária do proletariado”.

Entretanto, continuando a descrever o caminho que conduzirá a humanidade a


uma sociedade sem classes, Marx escreveu no Manifesto:
“Se, no decurso do desenvolvimento, os antagonism os de classe desaparecem c
se toda a produção se encontra concentrada nas mãos dos indivíduos associa­
dos, o poder público perderá o seu carácter político. O poder político, verda­
deiram ente, é o poder organizado dc um a classe para a opressão de outra. Se o
proletariado, na sua luta contra a burguesia, se constitui necessariam ente em
classe, se ele se erige por um a revolução em classe dom inante e, com o classe
dom inante, destrói pela violência o antigo regime de produção, ele destrói,
sim ultaneam ente com esse regime de produção, as condições d o antagonism o
das classes, destrói as classes em geral e, por isso mesmo, o seu próprio dom ínio
enquanto classe. N o lugar da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e
os seus antagonism os de classes, surge um a associação em que o livre desenvol­
vim ento dc cada um é a condição do livre desenvolvim ento de todos”.

Só nesta fase de evolução o poder público deixará de ter sentido como poder
político. Só então - como escreveu Engels525 o estado, “chegando, por fim, a ser
o representante de uma sociedade inteira, torna-se supérfluo”; só então “deixa de
ser necessário um poder especial de repressão, ou seja, o estado”:
“A intervenção do estado nos assuntos sociais - conclui Engels - torna-se
progressivamente supérflua e acaba por extinguir-se. A administração das coisas
c a direcção dos processos dc produção substitui o governo daspessoas. O estado
não é abolido’; morre", [só a palavra morrevem sublinhada por Engels].

Esta é a fase da sociedade comunista, assim definida por Marx na Crítica do


Programa de Gotba:
“N um a fase superior da sociedade comunista, quando tiverem desaparecido a
escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a
oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, quando o trabalho
não for som ente um meio dc viver, mas se tornar ele próprio a prim eira neces­
sidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças
progressivas se tiverem desenvolvido tam bém c todas as fontes de riqueza
colectiva brotarem com abundância, só então o horizonte lim itado do direito
burguês poderá ser definitivam ente ultrapassado e a sociedade poderá escrever

525 Cfr. Anti-Düring, ed. c it, 344/345.


5 3 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

nas suas bandeiras: 'D e cada um segundo as suas capacidades, a cada um segun­
do as suas necessidades!’”

Só neste estádio “a humanidade saltará do reino da necessidade para o reino da


liberdade” - nas palavras de Engels, que assim conclui o Cap. II da terceira parte
do Anti-Düring-.
“C um prir esse acto libertador do m undo constitui a missão histórica do prole­
tariado m oderno. Estudar as suas condições históricas, e, com elas, a sua n atu ­
reza, infundir à classe hoje oprim ida e chamada a essa acção a consciência das
condições e natureza da sua própria acção, é a obra do socialismo científico,
expressão teórica do m ovim ento proletário”.
C a p ítu lo XII

O M a r g in a l is m o e a R o t u r a
com a P e r s p e c t iv a
C l á s s ic a - M a r x ist a
5 3 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

1 . Say: a s c l a s s e s s o c i a is f o r a d a a n á l is e e c o n ó m i c a

Os primeiros sinais de rotura com a perspectiva clássica no que toca à teoria do


valor e à teoria da distribuição (afinal o núcleo fundamental do paradigma clássi-
co-marxista) surgem com Jean-Baptiste Say.
O autor francês vem considerar como fundamentos do valor a utilidade e os
custos de produção. N a sequência da rejeição da teoria do valor-trabalho, Say for­
mula a conhecida teoria dos trêsfactores deprodução, que o leva a identificar a teoria
da distribuição do rendimento como a teoria da formação dos preços dos factores
de produção, cm função do jogo da oferta e da procura nos respectivos mercados.
Enquanto em Smith, Ricardo e Marx as relações de produção se estabelecem
entre os titulares do capital e os trabalhadores, Say defende que as relações de
produção são desencadeadas pelo empresário, que vai comprar os serviçosprodutivos
fornecidos pela natureza, pelo trabalho e pelo capital, pagando aos seus titulares o
preço que se fixar no mercado de cada um deles.
Em vez de concorrerem entre si para dividirem a riqueza criada pelo trabalho
(o que gera uma situação de conflito social), trabalhadores, capitalistas e proprie­
tários de terras surgem, na construção de Say, em posição idêntica. Os titulares de
cada um dos factores dc produção recebem um rendimento que se forma autono­
mamente, sem qualquer relação com o rendimento que cabe aos titulares dos ou­
tros factores de produção.
É uma teoria que diverge, pois, radicalmente da concepção clássica-marxista,
que considerava o salário como o preço da força de trabalho, mas defendia que o
lucro não é o ‘preço’ de nenhuma mercadoria nem a ‘remuneração’ de qualquer
‘factor de produção’ (o capitalista aufere o lucro em virtude do poder que lhe advém
da sua condição de proprietário dos meios de produção). Com Say, o lucro deixa de
ser visto como um excedente e a distribuição do rendimento deixa de ser vista como
um processo inseparável do processo social de produção e por ele condicionado.
Por outro lado, a teoria de Say apresenta uma visão harmoniosa da sociedade,
afastando a ideia de conflitualidade social: os titulares de cada um dos factores de
produção recebem, pela sua contribuição produtiva, a remuneração adequada, não
havendo lugar para qualquer discrepância entre a distribuição natural do rendi­
mento e ajustiça social. Pela primeira vez desde os fisiocratas, as classes sociais desa­
parecem da análise económica (no mercado há apenas vendedores e compradores).

2. O s p r e c u r s o r e s d a t e o r i a SUBJECTIVA DO VALOR

Precursores da teoria subjectiva do valor e da perspectiva subjectivista da teoria


económica foram também McCulloch e Nassau Senior. O primeiro mede o valor
A v elã s N u n es - 5 3 9

dos bens pelo sacrifício dos que produzem e não pela quantidade de trabalho. O
segundo considera a abstinência, a renúncia ao consumo imediato, como elemento
(subjectivo) do valor, e defende que a abstinência dos detentores do capital justifica
uma compensação (o lucro), tal como o sacrifício representado pelo trabalho justi­
fica o salário.
Nestes termos, o valor (o custo real) de um bem é igual ao trabalho (.sacrifício)
necessário para o produzir mais a abstinência dos detentores do capital. No custo
monetário contabiliza-se tanto o salário como o lucro, deixando este de ser consi­
derado como um excedente no sentido fisiocrático, sentido que conserva nos clás­
sicos e em Marx.
Foi esta a orientação da generalidade dos economistas que contestaram a teoria
do valor ricardiana: limitaram-se, quase sempre, a aceitar o princípio dos trêsfacto­
res, enunciado por Say, e a afirmar que os capitalistas, os trabalhadores e os propri­
etários de terras recebem uma parte dos rendimentos, porque os seus serviçosprodutivos
são, todos eles, elementos raros e indispensáveis à produção.
Fora da análise ficava a questão de saber qual desses ‘factores’é, efectivamente,
criador dc valor. Adm itindo que o preço de mercado de cada um desses ‘factores’é
função da sua escassez, do seu grau de raridade, limitaram-se ao problema dos
preços. Fora da análise ficava, portanto, o problema teórico da criação do valor (da
natureza e das causas da riqueza das nações), tal como foi assumido pelos clássicos
e por Marx. Fora da análise também a preocupação com o facto de os preços dos
‘factores de produção’ se formarem num mercado caracterizado por uma desigual­
dade estrutural, expressa na circunstância de a propriedade dos meios de produção
pertencer, de modo excluente, a uma determinada classe social, o que coloca a
classe dos não-proprietários perante a necessidade de vender a sua força de traba­
lho para poder subsistir.
A solução enunciada resolvia algumas das dificuldades da teoria de Ricardo,
mas abandonava o conceito unitário do valor, sacrificando este como conceito de
equivalência entre mercadorias. Apareciam agora agora duas componentes do custo
real (trabalho e abstinência), qualitativamente diferentes, não se vendo como fun­
di-las para obter uma quantidade única, o custo real (valor).
Para além da dificuldade inerente a este dualismo dc base, há ainda a dificulda­
de - que o próprio Senior enunciou - de definir os limites relevantes do ‘sacrifí­
cio’: deve contar-se o ‘sacrifício’ dos que se abstêm de consumir uma riqueza
herdada ou o ‘sacrifício’ de poupar um rendimento de todo em todo inesperado?
É o velho problema da acumulação do capital. Será que a abstinência das pessoas
muito ricas que não consomem todo o seu rendimento (apesar de gastarem, e até
esbanjarem, rios de dinheiro) representa um verdadeiro sacrifício? Se a noção de sacri­
5 4 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

fício tem algum conteúdo útil, este sacrifício, o sacrifício que conta, não será o dos
pobres que recebem salários muito baixos, que sofrem o desemprego, que pagam os
custos da inflação, muitas vezes para alimentar o crescimento dos ganhos dos ricos?
Brecht coloca a questão em termos poéticos: quem construiu Tebas, o faraó ou os seus
escravos? Neste sentido vai o comentário de Maurice Dobb: “se o faraó emprestou os
seus escravos para se construírem as pirâmides, não foram só os escravos que fizeram
o sacrifício, no sentido que Marshall dá à expressão: o faraó participou também do
‘sacrifício’ na proporção dos gozos diversos que os seus escravos lhe teriam proporci­
onado se os tivesse utilizado para outro fim. O ponto de vista dos escribas da corte
egípcia pode ter sido o de que o ‘custo real’ que cabia ao faraó era da mesma natureza
e espécie que o dos escravos construtores das pirâmides. Mas é difícil pensar que
alguém que não seja um casuísta ou um adulterador poderia descobrir algum sentido
de utilidade em que este ‘sacrifício’ do faraó seja da mesma natureza do que teria
suportado se tivesse ele próprio trabalhado na construção das pirâmides”.

3. A " r e v o l u ç ã o m a r g in a li s t a "

Foi, porém, a partir de 1870 que a ciência económica tomou o rumo que ficaria
conhecido por marginalismo. A análise marginalista parte de novos conceitos sub­
jectivos de valor e centra-se na investigação das causas das variações dos preços de
mercado, com base no raciocínio na margem.
Entre os precursores, destacam-se Augustin Cournot (o iniciador da economia
matemática, que se preocupou fundamentalmente com a análise das condições da
troca e da formação dos preços), Heinrich Von Thünen (considerado o verdadeiro
fundador da análise marginal) e Herman Gossen (que enunciou várias leis - co­
nhecidas por leis de Gossen - sobre as necessidades e os bens económicos e foi o
imediato antecessor da Escola Austríaca).
Quase simultaneamente (1871 e 1874) e sem qualquer ligação entre si, o aus­
tríaco Cari Menger, o inglês William Stanley Jevons e o francês Léon Walras
(professor em Lausana) enunciaram o princípio da utilidade marginal decrescente e
começaram a utilizá-lo de forma consciente e consequente na sua elaboração teó­
rica. Estava lançada a “revolução marginalista”, a ‘revolução’ subjectivista, a ‘revo­
lução’ da utilidade marginal, a ‘revolução’ do equilíbrio económicogeral, que receberia
contributos e desenvolvimentos posteriores de autores como Eugen Von Bõhm-
Bavverk, Friedrich Von Wieser, Ludwig Von Mises, Friedrich Hayek, Vilfredo
Pareto, Alfred Marshall e A rthur Cecil Pigou, John-Bates Clark, Phillip W icks-
teed, entre outros.
A v elã s N u n e s - 5 4 1

4. A NOVA ECONOMIA SUBJECTIVISTA-MARGINALISTA

A nova Economia subjectivista-marginalista representa um corte radical com a


Economia Política clássica.
Destacaremos algumas diferenças mais significativas.
Na óptica dos clássicos, o valor não poderia entender-se como função da utili­
dade, porque alguns bens (a água, v.g.) têm reduzido valor apesar da sua grande
utilidade, enquanto que outros (o ouro, v.g.), apesar da sua reduzida utilidade, têm
um valor elevado. E Marx salientou que a utilidade não é uma quantidade, não
sendo, por isso, redutível a uma noção quantitativa de valor.
Os marginalistas vieram sustentar que, não podendo entender-se o preço como
função de uma soma de utilidades, ele é função de um aumento de utilidade, da
utilidade adicional oferecida ao consumidor pela unidade marginal de uma oferta
dada. Este aumento de utilidade (o graufinal de utilidade, de que fala Yevons, ou a
utilidade marginal, na designação de Marshall) é que determinaria o valor. Esta
ideia é expressa com clareza por Yevons: “O valor depende unicamente do grau
final de utilidade. Como poderemos variar este grau de utilidade? Tendo maior ou
menor quantidade de mercadorias para consumir. E como obteremos maior ou
menor quantidade de mercadorias? Despendendo mais ou menos trabalho para se
obter a sua oferta. Segundo este modo de ver, há dois intermediários entre o traba­
lho e o valor. O trabalho determina a oferta e a oferta determina o grau dc utilida­
de, que comanda o valor ou a relação de troca. (...) O trabalho determina o valor,
mas só de modo indirecto, ao variar o grau de utilidade das mercadorias por meio
de um aumento ou limitação da oferta”.
Perante a impossibilidade de exprimir quantitativamente o valor de uso, os mar­
ginalistas optaram por exprimir quantitativamente as necessidades que podem satis-
fazer-se com aquele valor de uso, estabelecendo, para tanto, escalas individuais de
necessidades. Faz sentido, por isso, falar-se de teoria subjectiva do valor.
Com efeito, as necessidades são algo de eminentemente subjectivo, variando de
indivíduo para indivíduo. Coerentemente, Menger definiu o valor como “o juízo que
os sujeitos económicos fazem da importância dos bens de que podem dispor para o
seu sustento e bem-estar, e não existe, portanto, fora da consciência dos indivíduos”.
Mas as necessidades não apresentam todas o mesmo grau de intensidade: umas
são mais prementes do que outras. E a intensidade não é constante, variando con­
forme a quantidade de bens que afectamos à sua satisfação. Quer dizer: as necessi­
dades são saciáveis, o que significa que a utilidade dos bens destinados à sua satisfação
decresce com o aumento da quantidade disponível desses bens, de tal modo que a
utilidade de cada uma das unidades é inferior à utilidade da unidade precedente. É
5 4 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o iít ic a

a lei da utilidade decrescente, ou lei do decréscimo da utilidade marginal\ porque o que


decresce não é a utilidade total (esta aumenta com o aumento da quantidade de
bens disponíveis), mas a utilidade marginal oufinal, a utilidade da última unidade
simultaneamente disponível do bem capaz de satisfazer uma certa necessidade.
Chega-se assim à lei da utilidade marginal', a utilidade de qualquer das unidades
simultaneamente disponíveis de um bem afere-se pela utilidade da última unidade
disponível. E dela deduzem os marginalistas que o valor (subjectivo) de um bem é
igual à utilidade marginal desse bem.
E um raciocínio que se desdobra sem ter em conta a actividade produtiva, sem
qualquer relação com a quantidade de trabalho gasto na produção dos bens e sem
qualquer dependência da oferta relativamente aos custos de produção. Os factores
que determinam o valor de um bem são a sua raridade e a intensidade da necesida-
de que ele satisfaz.
Assim se resolveria o dilema tantas vezes agitado: se os bens valem pela sua
utilidade, como se explica que, às vezes, os bens mais úteis valham menos do que os
outros? A água é muito útil no sentido de ter grande utilidade inicial; mas, como em
regra dispomos de muitas unidades deste bem, a sua utilidade marginal é quase nula.
O ouro tem uma utilidade inicial muito menor, mas, como dispomos de uma quan­
tidade muito pequena dc ouro, a sua utilidade marginal é muito elevada.
Ao afirmarem que a actividade económica tem cm vista a produção de utilida­
des com vista à satisfação das necessidades dos indivíduos, os marginalistas estão a
defender que é o consumo - e não a acumulação - o principal factor impulsionador
da economia, privilegiando a soberania do consumidor relativamente à ‘soberania do
capitalista-acumulador-investidor. Na óptica de Ricardo, ao invés, este último
aspecto era o mais importante: a actividade económica orienta-se para a obtenção
de lucros, sendo o lucro considerado a fonte da acumulação e, esta, a condição do
crescimento económico e do progresso.
Compreende-se, assim, que os escritores subjectivistas tenham deslocado a análise
da produção (da oferta) e do custo para a procura e para a utilidade.
A Economia Política clássica colocava-se numa perspectiva dinâmica e a sua
preocupação fundamental foi (desde os fisiocratas) o crescimento econômico, o estu­
do das causas da riqueza das nações, a compreensão da dinâmica que conduzia ao
“progressive State”, do qual se esperava a melhoria das condições de vida das pes­
soas. Jevons, ao contrário, comparou a Economia com a “ciência da mecânica
estática”, e a teoria económica marginalista adoptou uma perspectiva estática, tendo
abandonado por completo a preocupação com a produção e com o progresso en­
quanto processo dinâmico de desenvolvimento das comunidades humanas.
A v e l As N u n e s - 5 4 3

A preocupação central da nova teoria económica passou a ser a de definir os


requisitos da afectação eficiente de recursos existentes em quantidades limitadas aos
seus vários usos alternativos, durante um determinado período de tempo, adoptando-
se como critério de eficiência (como padrão de racionalidade, como indicador de ópti­
mo) a maximização da satisfação dos consumidores. “Pela primeira vez - como salienta
Mark Blaug a Economia tornou-se, verdadeiramente, a ciência que estuda a
relação entre objectivos dados e meios escassos dados que têm usos alternativos. A
teoria clássica do desenvolvimento foi substituída pelo conceito de equilíbrio geral
num quadro essencialmente estático”.
O esforço analítico, segundo a nova perspectiva da ciência económica, passou a
centrar-se no estudo do efeito das trocas na margem (a perda ou o ganho de
utilidade resultante de “um pouco mais” ou “um pouco menos” de determinado
bem), com base no conceito de utilidade marginal (a utilidade atribuída à unidade
marginal, à última das unidades simultaneamente disponíveis de um bem).
Empenhada em fazer assentar no raciocínio matemático o carácter científico
da disciplina, utilizou a técnica analítica do cálculo diferencial, que se ocupa de
pequenas variações (“um pouco mais” ou “um pouco menos” de algo). As catego­
rias económicas da ‘nova ciência económica’ passaram a exprimir-se em termos de
variações marginais deste tipo. O cálculo marginal, enquanto aplicação dos princí­
pios do cálculo diferencial, é a técnica, o instrumento metodológico utilizado pelos
teóricos subjectivistas. Esta foi, desde 1871, a opinião de Jevons: “Parece-me que
a nossa ciência tem de ser matemática, simplesmente porque trabalha com quan­
tidades”. Assim se procurava impor a nova Economia como economia matemática e,
portanto, cientifica.
Mas a ‘revolução marginalista’ não introduz apenas uma nova técnica de análi­
se económica. Ela introduz também - e fundamentalmente - uma nova orientação
quanto à estrutura e ao conteúdo da teoria económica.
Com o há pouco referimos, o raciocínio desdobra-se ignorando em absoluto a
esfera da produção c o contexto social em que decorrem as relações de produção, en­
quanto relações sociais que envolvem as várias classes sociais. A oferta surge sem
qualquer dependência relativamente aos custos de produção. O valor é apresenta­
do como uma categoria que não tem qualquer relação com a quantidade de traba­
lho gasta na produção dos bens. A raridade do bem e a intensidade da necessidade
que ele satisfaz é que determinam o seu valor. Na, já enunciada atrás, síntese de
Jevons “o valor depende unicamente do grau final de utilidade”.
Em vez de buscarem uma solução (eventualmente diferente da dos clássicos
ingleses e de Marx) para os problemas da origem c da medida do valor, os rnargi-
nalistas renunciaram à elaboração de uma teoria objectiva do valor, afirmaram a
5 4 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

utilidade (subjectiva) como origem e medida do valor, identificaram (confundiram)


o valor com o preço de mercado e transformaram a teoria da distribuição do
rendimento entre as classes sociais em teoria dos preços dc mercado dos factores
de produção.
Desaparece, assim, da teoria económica o conceito objectivo de valor, enquanto
valor absoluto, ligado ao custo real. O que passa a ser importante é a determinação
dos preços relativos, os quais funcionam como critério orientador das decisões (‘ra­
cionais’) dos agentes económicos.
Segundo a nova orientação, a ciência económica, em vez de buscar uma causa
única do valor que pudesse explicar a troca dos bens e a distribuição da riqueza, limita-
se agora a tentar explicar as variações dos preços de mercado (cm função do comporta­
mento de compradores e de vendedores, despidos, uns e outros, da sua caracterização
como trabalhadores assalariados, proprietários de terras, capitalistas ou empresários),
reduzindo a esta equação toda a problemática da ciência económica.
A vida económica reduz-se ao jogo do mercado, o ponto dc encontro das dis­
posições dos homens económicos que constituem a sociedade entendida atomistica-
mente como mero somatório de indivíduos isolados. A teoria económica marginalista
recusa a concepção clássica-marxista da ciência económica entendida como teoria
do sistema social, concepção segundo a qual a actividade económica decorre numa
sociedade com determinada estrutura de classes sociais, a qual envolve e condiciona
todo o processo de produção e de distribuição da riqueza. Na construção margina­
lista, os indivíduos, as famílias e as empresas surgem como agentes económicos iso­
lados que operam no mercado como compradores e vendedores, não como elementos
que integram um determinado grupo ou classe social que com outros grupos ou
classes sociais (com os quais mantém relações de cooperação ou de conflito) com­
põem uma determinada estrutura social, em que o poder e as relações depoder estão
necessariamente presentes como condicionante das relações económicas, tanto ao
nível da produção como ao nível da distribuição.
As relações económicas relevantes deixaram de ser as relações entre homens (en­
tre classes sociais) e passaram a ser as relações entre os homens e as coisas, entre cada
indivíduo e os bens que julga (subjectivamente) capazes de satisfazer as suas neces­
sidades (subjectivas).
Enquanto teoria dos mercados e da interdependência dos mercados (aplicável
tanto à produção como à distribuição), a teoria económica marginalista é uma
teoria do equilíbrio geral das trocas, equilíbrio que se alcança no quadro de um
sistema que se ajusta e regula automaticamente e que representa um conjunto de
soluções mutuamente compatíveis que realizam o objectivo maximizador de todos
A v ela s N u n es - 5 4 5

os agentes económicos e o equilíbrio da procura e da oferta em todos os mercados


(dos bens e dos ‘factores de produção’).
Afastando da análise os aspectos sociais da produção e da distribuição, a teoria
marginalista empenhou-se fundamentalmente em mostrar a superioridade do ca­
pitalismo no que toca à afectação dos recursos disponíveis, aspecto em que o socialis­
mo seria incapaz de ‘racionalidade’.
Desde cedo se percebeu que a teoria económica baseada na utilidade não se
adapta às situações correntes na vida moderna, em que o vendedor é o empresário
que produziu, para vender, grandes quantidades de mercadorias que não têm para
ele utilidade imediata.
No entanto, em vez de regressarem à análise da oferta e dos custos de produção, na
senda da Economia Política clássica, os novos economistas aplicaram a análise margi­
nalista aosfactores de produção, a partir da consideração de que o custo de qualquer
produto acabado é igual ao custo dos factores de produção utilizados na sua produção.
Tudo ficou reduzido ao problema da determinação do valor (preço) dos facto­
res de produção. Para tanto, tornou-se necessário que a ciência das relações de troca se
aplique àquela “troca que chamamos produção” (na expressão de Walras).
A saída encontrada para o problema que ficou enunciado conduziu à formula­
ção da teoria da produtividade marginal, que vem rematar - com grande aparato
matemático, ‘científico’, e enorme requinte técnico - o edifício teórico e o apare­
lho ideológico do marginalismo, fundamentalmente graças aos trabalhos de John
Bates Clark e de Phillip Wicksteed.
Em termos genéricos, podemos dizer que a teoria da produtividade marginal
procura demonstrar que, funcionando a economia de acordo com as regras da
concorrência perfeita, cada proprietário de qualquer um dos factores de produção
utilizados receberá uma parte do rendimento global exactamente proporcional à
sua contribuição para o produto social, o qual se esgotará na soma dos salários,
rendas e juros, sem possibilidade de subsistir qualquer excedente.
Tanto em Ricardo como em Marx a distribuição do rendimento aparece num
‘momento’ anterior ao da troca. Os factores determinantes da distribuição do rendi­
mento baseiam-se nas condições da produção e a teoria da distribuição dos clássicos
ingleses e de Marx tinha como pano de fundo as relações sociais deprodução (verifica­
das no contexto de uma sociedade com uma determinada estrutura de classes), por se
entender - desde os fisiocratas - que o modo de produção (o processo social de
produção) do que Engels chamou os “meios materiais de subsistência da sociedade
humana” condiciona a distribuição e o destino do ‘produto líquido*.
De acordo com o paradigma clássico-marxista, o salário remunera a força de
trabalho, enquanto o lucro não remunera nada, porque “o único ‘serviço’ que o
5 4 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l It ic a

proprietário de uma empresa tem de fornecer, enquanto proprietário, é o de per­


mitir que a empresa seja apropriada por ele.(...) É certo que ele suporta riscos -
comenta Edward Nell -, mas também os suportam os trabalhadores, que podem
ficar sem os seus postos de trabalho em caso de falência”.
Isto significa que, à luz do paradigma clássico-marxista, a atribuição de lucros
- quer se trate dos lucros normais (da concorrência perfeita), quer se trate dos lucros
de monopólio - não é uma troca, porque não há nenhum fluxo no circuito real que
justifique o fluxo dos lucros no circuito monetário.
M as isto significa também que o fluxo da força de trabalho é o único fluxo real
que alimenta a actividade produtiva e origina o produto social líquido (cujo valor
pode analisar-se em termos de trabalho). E como nem toda a receita resultante da
venda do produto total vai ser distribuída em salários, isto significa que também o
pagamento de salários não é uma troca (não é uma troca de equivalentes\ é, quando
muito, uma troca desigual).
Em conclusão: o problema da distribuição do rendimento não pode explicar-
se no âmbito das relações de troca; só pode entender-se no quadro definido pelas
relações sociais de produção e implica a consideração de relações de poder (sempre
presentes nas sociedades de classes).
Diferentemente, a problemática da distribuição esgota-se, na teoria margina­
lista, na esfera da troca: ela reduz-se à questão da formação dos preços de mercado
dos ‘serviços produtivos’ fornecidos pelos titulares dosfactores de produção, e esta é
apenas uma parte do processo mais vasto de formação dos preços das mercadorias
em mercados de concorrência. Tal como escrevera Edgworth: “A distribuição é a
espécie de troca pela qual o produto é dividido entre as partes que contribuíram
para a sua produção”. E como as trocas são sempre trocas de equivalentes, fica
afastada a hipótese de um qualquer excedente por ‘justificar’, fica excluída qual­
quer forma de exploração.
Chegamos assim a uma diferença fundamental entre os dois paradigmas da
ciência económica que vimos analisando: o marginalismo preocupa-se fundamen­
talmente com a explicação de como o mercado decide a afectação dos recursos
escassos de acordo com a sua eficiência relativa; a Economia Política clássica-
marxista atribui uma importância central à explicação de como os mercados dis­
tribuem o rendimento em função do poder relativo das várias classes sociais, fazendo
do conceito dc capital e da sua relação com as classes sociais e com o poder económico
o conceito-chave de toda a teoria económica.
Cremos que Paul Sweezy (entre outros autores que pensam o mesmo que ele a
este propósito) tem razão quando sublinha que a escola marginalista funcionou
como “arma intelectual que se opôs ao marxismo [e também a Ricardo, acrescen­
A v elã s N u n es - 5 4 7

tamos nós. AN] no quadro de uma acesa luta de classes”. Enquanto os marxistas se
propõem estudar as leis de movimento do capitalismo para melhor poderem ace­
lerar o processo da sua destruição, os marginalistas identificam-se com o capita­
lismo, defendem as suas virtudes e proclamam a sua aspiração à eternidade.
Há, no entanto, uma grande diferença, como observa Sweezy: o marxismo
assumiu abertamente que assim era; os marginalistas perfilaram-se para a luta a
coberto de uma auto-proclamada cientificidade da “economia pura” (uma “ciência
físico-matemática”, com “o mesmo grau de certeza que possui a mecânica racio­
nar), com o que isso significa de neutralidade científica para os seus postulados e
para as suas conclusões e de objectividade para as suas verdades.

5 . A SÍNTESE DE LiO N EL ROBBINS

Actualmente, a grande maioria dos autores que integram a mainstream econo-


mics adopta como definição da ciência económica enunciados que andam à volta
da síntese apresentada em 1932 por Lionel Robbins.“A Economia - escreve Ro-
bbins - é a ciência que estuda o comportamento hum ano enquanto relação entre
fins e meios escassos susceptíveis de usos alternativos”.

5.1. A LEI DA ESCASSEZ E A CONDUTA ECONÓMICA


Qual é então a lógica que está por detrás desta definição de Robbins?
Tentaremos sintetizá-la deste modo. Os homens sentem necessidades e procu­
ram satisfazê-las. A existência de necessidades pressupõe a existência de meios aptos
para satisfazê-las: a capacidade que as coisas têm de satisfazer as necessidades hu­
manas (i.é, a utilidade) é que lhes confere a natureza de bens (bens materiais ou
serviços susceptíveis de ser utilizados para satisfação das necessidades dos homens).
Mas as necessidades apresentam-se em número não definido e não fixo, segundo
diferentes graus de intensidade. E os bens não são todos bens económicos.
Na verdade, há alguns bens que existem livres na natureza; em quantidade
bastante para a satisfação completa e permanente de certas necessidades, todos
podendo utilizá-los nas quantidades desejadas, sem quaisquer limitações. São os
bens livres, como o ar que respiramos: nas situações normais da vida, ele não é
objecto de qualquer actividade de produção ou de troca, uma vez que todos o
podem utilizar à superfície da terra, livre e naturalmente, em qualquer momento e
nas quantidades que se queiram.526

526 Poderá já náo ser assim para os que têm que respirar oxigénio com certa frequência, em virtude de trabalharem
em locais fortemente polufdos; ou quando se trata de ar condicionado, ou do ar que se respira num aviáo, num
submarino ou numa nave cósmica.
5 4 8 - U m a I n t r o o u ç Ao à E c o n o m ia P o U t ic a

Diferentemente destes, bens económicos são aqueles que existem em quantidade


limitada relativamente às necessidades por eles satisfeitas. Os bens económicos são,
pois, bens escassos. M as esta escassez é uma escassez relativa: os bens são escassos
relativamente aos fins a prosseguir ou às necessidades a satisfazer.
Em regra, qualquer necessidade pode satisfazer-se utilizando mais que um
bem, do mesmo modo que um qualquer bem pode normalmente ser usado para
satisfazer mais que uma necessidade. Quer dizer: não existe apenas o problema da
escassez dos bens económicos relativamente às necessidades; há também o proble­
ma de destinar um qualquer bem a uma série determinada de usos alternativos con­
correntes entre si no que se refere à utilização do bem em causa.
E neste contexto que surge o problema económico, que é, na sua essência, o
problema da utilização dos bens escassos susceptíveis de usos alternativos na satis­
fação de necessidades (ou objectivos) de importância desigual e susceptíveis de ser
escalonadas (os) segundo uma escala depreferências.
O problema económico será sempre resolvido através de um acto de escolha (o
acto económico por excelência). A escolha é sempre efectuada com base num
critério de racionalidade económica que preside à conduta humana na luta contra
a escassez: o princípio económico. Este é o princípio de racionalidade económica que
orienta o homo oeconomicus na luta contra a escassez, e que se traduz na conduta
económica, i.é, “a conduta inteligente, preordenada a fins e logicamente adequada
ao seu melhor conscguimento” (Teixeira Ribeiro). Esta conduta traduz-se, por sua
vez, na observância de um princípio do máximo resultado (maximização do grau de
realização do fim a alcançar mediante a utilização dos meios escassos disponíveis)
e de um princípio de economia de meios (obtenção de um determinado grau de reali­
zação do fim proposto com o mínimo dispêndio dos meios disponíveis).
Neste sentido, o homo oeconomicus é um agente racionalmaximizador da utilida­
de, quer a utilidade seja entendida na acepção hedonística de prazer, satisfação,
felicidade ou bem-estar psicológicos, quer se associe à utilidade o sentido praxeo-
lógico de grau de realização do objectivo da actividade económica, qualquer que
seja a sua natureza e qualidade, desde que se trate de uma grandeza susceptível de
diversos graus de realização (fala-se, em regra, de preferência).
A lei da escassez é, pois, considerada a lei fundamental da vida dos homens e das
sociedades humanas. Mesmo nas sociedades mais ricas “a escassez permanece como
um facto real” (Samuelson/Nordhaus), o que leva à conclusão de que “a economia
deve tomar em conta a escassez como um dado fundamental da vida”. Assim se
legitima a concepção de Robbins, segundo o qual a ciência económica é o “estudo
das actividades e das instituições criadas pela escassez”, ou o estudo do “compor-
A v elã s N u n es - 5 4 9

tamento condicionado pela escassez”, do comportamento de “seres conscientes


capazes de escolher e de aprender”.527
“A s questões de o que produzir, como e para quem - escrevem Sam uelson/
N ordhaus - não levantariam problemas se os recursos fossem ilim itados. N o
caso de ser possível produzir-se um volume infinito de todos os bens ou de ser
possível satisfazer com pletam ente as necessidades hum anas, então não teria
im portância se se produzisse um a quantidade exagerada de qualquer bem.
Assim com o não teria im portância se se com binassem os materiais e a m ão-
de-obra de um m odo pouco eficaz. C om o todos poderiam ter tudo o que
quisessem, a m aneira como os bens e os rendim entos fossem distribuídos entre
os diversos indivíduos e classes deixariam tam bém de ter im portância.

Nessa situação, deixariam de existir bens económicos, isto é, bens que fossem
relativamente escassos. E, m uito provavelmente, já não haveria necessidade de
se realizarem estudos económicos ou de se econom izar’.Todos os bens seriam
bens livres, com o acontece com o ar ou com a areia do deserto.

M as, na realidade, os bens não são todos livres. N este nosso m undo, as crianças
aprendem que A m bos’ não é um a resposta admissível para um a escolha entre
‘Q ual deles queres?’. A s sociedades industriais m odernas parecem realm ente
m uito ricas quando comparadas com os países atrasados ou com os séculos
anteriores. N o entanto, os níveis de produção mais altos parecem arrastar
consigo níveis de consum o cada vez mais exigentes. A escassez perm anece
com o um facto real”.

Porque a escassez é um dado fundamental das sociedades humanas é que (cita­


mos de novo Samuelson /Nordhaus528)
“Qualquer sociedade, quer se trate de um país comunista totalmente colectivizado,
de um a tribo dos mares do Sul, de um a nação capitalista industrial, de um a
com una do Laos, ou mesmo de uma colmeia, deve resolver, de um m odo ou de
outro, três problemas económicos fundamentais e interdependentes.

• Q ue bens produzir c cm que quantidades? Isto é, quantos e que bens e serviços


alternativos serão produzidos? Deveremos produzir muitos produtos alimentares
e pouco vestuário ou vice-versa? Deve-se produzir pão e manteiga hoje ou pão e
novas plantações de vinha hoje, seguidos de pão e com pota no ano seguinte?

• C om o se devem produzir os bens, isto é, por quem , com que recursos e por
que processo tecnológico devem ser produzidos? Q uem caça, quem pesca?
Q ue fonte de energia escolher para produzir electricidade: petróleo e carvão,

527 Cfr. L. ROBBINS. ob. c/f. (1981), 2 e 9.


528 Cír. Economia, cd. cit., 29-31.
5 5 0 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o i It ic a

barragens e centrais nucleares, ou Sol c Vento? D eve-se produzir em grande


escala ou artesanalmente? De todas aquelas fontes de energia, em que q uanti­
dades se deve recorrer a cada uma?

• Para quem são os bens que se produzem? Isto 6, quem é que se vai aproveitar dos
bens e serviços produzidos no país? O u, por outras palavras, como é que é repar­
tida a totalidade do produto nacional entre os diversos indivíduos e famílias?
Deveremos aceitar um a sociedade onde existem alguns ricos e m uitos pobres?
O u um a sociedade onde todos partilham igualmente os frutos da produção?
Remuneração elevada para os músculos ou para o Q I? M erecerão os ambiciosos
c os egoístas herdar a terra? Terão os preguiçosos direito a comer bem?”.

5 .2 . U m a d e f in iç ã o a n a l ít ic a d a c iê n c ia e c o n ó m ic a

M as regressemos à definição de Robbins. Ele próprio esclarece que a sua


concepção:
“pode ser considerada analítica, uma vez que não procura escolher certos gêneros
de com portam ento, mas incide especialmente num aspecto particular do com ­
portam ento, a forma de que ele se reveste sob a influência da escassez. Daqui se
depreende que, na m edida cm que apresenta este aspecto, qualquer género de
com portam ento hum ano pode prestar-se às generalizações económicas. N ão
dizem os que a produção de batatas é uma actividade económica c que a da
filosofia não o é. D izemos, sim, que, enquanto qualquer uma destas actividades
implica um a renúncia a outras actividades desejadas, apresenta um aspecto
económico. N ão existe qualquer limitação ao objecto da ciência económica".

Lionel Robbins não busca uma definição de economia ou de facto económico


que assente na classificação dos factos ou dos tipos de conduta humana cm econó­
micos e não-económicos para incluir apenas os primeiros no (e excluir os segun­
dos do) objecto da ciência económica. É que uma tal concepção ‘classificatória’
sempre deixaria de pé “o problema económico de decidir entre o económico e o não
económico\ i.é, o problema de saber como dividir o tempo e os meios escassos
disponíveis entre as actividades ditas económicas e as ditas não-económicas.
E, na óptica de Robbins, este é, sem dúvida, um problema económico, uma vez
que os actos que implicam a afectação de tempo e meios escassos à prossecução de um
determinado objectivo representam sempre um custo de oportunidade (o sacrifício
da sua utilização para alcançar outro(s) objectivo(s) alternativo(s)), ou seja, apre­
senta-se sempre sob um aspecto económico'. “Quando o tempo e os meios para con­
seguir os objectivos são limitados e susceptíveis de aplicação alternativa, e os
objectivos podem ser diferenciados segundo uma ordem de importância - escreve
Robbins -, então a conduta assume necessariamente a forma de uma escolha.
A v e ià s N u n e s - 5 5 1

Todos os actos que envolvem tempo e meios escassos para alcançar um objectivo
implicam o sacrifício da sua utilização para conseguir outro(s) objectivo(s). Eles
têm um aspecto económico”.
A sua definição de ciência económica é, pois, perante uma definição analítica', a
ciência económica “não procura escolher certos géneros de comportamentos, mas
incide especialmente num aspecto particular do comportamento, a forma de que ele
se reveste sob a influência da escassez”.
Para que a actividade humana se apresente sob um aspecto económico, i.é, para
que assuma a forma de uma escolha, são necessários certos requisitos, que Rob­
bins explica assim:
“D o ponto de vista do economista, as condições da existência hum ana possuem
quatro características fundam entais. O s objectivos são m últiplos. O tem po e
os meios para os atingir são limitados e susceptíveis dc utilizações alternativas.
A o m esmo tem po, os objectivos têm im portâncias diversas. E is-nos criaturas
sensíveis, com múltiplos desejos e aspirações, com um a gam a enorm e dc ten ­
dências instintivas, todas estim ulando-nos à acção por diferentes vias. M as o
tem po em que estas tendências podem ser expressas é lim itado. O m undo
exterior não oferece plena oportunidade à sua com pleta realização. A vida é
breve. A natureza é avara.

O s nossos com panheiros têm outros objectivos. E todavia nós podem os u tili­
zar as nossas vidas para realizar coisas diferentes, podem os utilizar os nossos
m ateriais e os serviços dc outros para alcançar diversos objectivos. O ra a
m ultiplicidade dos objectivos não tem em si, necessariamente, interesse para o
economista. Sc eu tenho necessidade de fazer duas coisas e disponho de tem po
c dc meios suficientes para fazê-las a ambas, não me sendo necessários o tem po
e os meios para outras coisas, então a m inha conduta não assume nenhum a das
formas que constituem o objecto da ciência económica. O nirvana não é neces­
sariam ente um a simples beatitude. C onstitui nada mais nada m enos do que a
satisfação com pleta de todas as necessidades.

N em a simples lim itação dos meios é por si suficiente, para dar origem a
fenóm enos económicos. Se os meios de satisfação não tiverem um uso alterna­
tivo, podem ser escassos, mas não podem ser econom izados. O m aná que
chovia do céu podia ser escasso, mas, na m edida em que era impossível trocá-
lo por qualquer outra coisa ou adiar o seu uso 529, não era objecto dc nenhum a
actividade que revestisse um aspecto económico.

529 Em nota de rodapé (p. 13), Robbins escreve que 'vale talvez a pena pôr em relevo o significado desta qualifi­
cação. A aplicação de meios tecnicamente idênticos para a prossecução de objectivos qualitativamente idên­
ticos em tempos diferentes constitui uma forma de uso alternativo desses meios. Se isto não for claramente
5 5 2 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia PoihriCA

Tam bém a aplicabilidade alternativa dos meios escassos não é, por si só, condi­
ção suficiente para a existência do género de fenómenos que estamos a analisar.
Se o sujeito económ ico tiver dois objectivos e apenas um meio para os satisfa­
zer, e se os dois objectivos tiverem a mesma im portância, a sua posição será
igual à do asno da fábula, incapaz de se mover entre dois feixes dc feno igual­
mente apetecíveis.

M as quando o tem po c os meios para conseguir os objectivos são lim itados e


susceptíveis de aplicação alternativa, e os objectivos podem ser diferenciados
segundo um a ordem de importância, então a conduta assume necessariamente
a form a dc um a escolha.Todos os actos que envolvem tem po e meios escassos
para alcançar um objectivo implicam o sacrifício da sua utilização para conse­
guir outro(s) objectivo(s). Eles têm um aspecto económico”.530

5.3. A C IÊ N C IA E C O N Ó M I C A É N E U T R A EM R E L A Ç Ã O A O S F IN S

Ao afirmar que toda a actividade humana pode constituir objecto de análise


económica desde que se trate de actividade que se traduza numa escolha, i.é, numa
“renúncia a outras actividades desejadas” - o que acontece sempre que a actividade
humana decorre “sob a influência da escassez” Lionel Robbins está a rejeitar o
entendimento daqueles que, na esteira de John Stuart Mill, consideram que só
uma parcela da actividade humana é actividade económica e que só desta se ocuparia
a ciência económica, cujo objecto seria exactamente o estudo daquela parcela da
actividade humana que tem como fim directo e principal a obtenção de uma van­
tagem pecuniária.
Também deste ponto de vista Robbins integra a linha de pensamento que vem
da ‘revolução marginalista’, a qual concebe a actividade económica como aquela que
consiste em maximizar um resultado a obter com meios dados. Daí que, segundo
tal linha dc pensamento, toda a actividade humana - e não apenas uma parte dela
- é relevante para a ciência económica, uma vez que, na óptica da filosofia utilita-
rista, toda a actividade humana é actividade económica, na medida em que toda a
actividade prática se explica pela busca do (máximo) interesse individual, do (má­
ximo) prazer individual.
Ao rejeitar uma definição de tipo classificativo, Robbins estava a rejeitar a
concepção então corrente na Inglaterra, que identificava a ciência económica com

compreendido, será desprezado um dos mais importantes tipos de acção económ ica'.
É ainda Robbins quem esclarece (últ. ob. cit., 21 ) que “é verdade que a escassez de liens materiais é uma das
limitaçóes da conduta humana. Mas a escassez do nosso próprio tempo e dos serviços de outros é exactamente
tâo importante como aquela".
530 Cfr. L. ROBBINS, Essay..., ch., 12-17.
A v elà s N u n es - 5 5 3

o estudo das causas do bem-estar material. Na verdade, esta concepção classificatória


pressupõe a classificação comofactos económicos (por oposição aosfactos não-econó-
micos) daqueles que conduzem ao bem-estar material.
É que, segundo Robbins, não é possível definir (nem medir) rigorosamente o
bem-estar material. Por um lado, a comparabilidade interpessoal de sacrifícios e
satisfações é mera convenção: nas palavras de Jevons, “cada mente é imprescrutável
para todas as outras mentes e não parece possível nenhum denominador comum
do sentimento”. Por outro lado, a proposta de Parcto segundo a qual o bem-estar
material de uma comunidade melhora se, permanecendo constantes todos os gos­
tos, se verificar uma alteração que melhore a posição de um indivíduo ou grupo de
indivíduos sem piorar a posição de nenhum dos outros é considerada por Robbins
um clarojuízo de valor e, como tal, inteiramente à margem do campo científico da
economia.
Tanto Robbins como os autores que se reclamam do pensam ento utilitaris-
ta e hedonista sustentam que toda a conduta hum ana pode ser objecto de aná­
lise económica.
Mas há uma diferença substancial para lá desta uniformidade aparente de pon­
tos de vista.
Com efeito, para os hedonistas toda a actividade humana é actividade económi­
ca, porque, de acordo com a filosofia utilitarista, é pautada pelo critério do prazer
individual, da utilidade individual, isto é, pelo critério económico. Por isso mesmo o
juízo económico traduz-se em verificar em que medida uma dada acção consegue
realizar o objectivo de maximização do prazer ou da utilidade (este é o únicofim
admissível da actividade humana).
Diferentemente, Robbins sustenta que “a escassez de meios para satisfazer fins
de importância diferente é uma condição quase omnipresente do comportamento
humano” e defende que as acções humanas podem ser objecto de análise económi­
ca sempre que se trate de “formas assumidas pelo comportamento humano ao
dispor de meios escassos”, i.é, sempre que se apresentem como um problema de
escolha entre alternativas possíveis, com sacrifício de uma (ou algumas) delas. As­
sim se compreende que, para Robbins, o juízo económico consista em averiguar se
a acção em causa realiza a melhor escolha, na perspectiva do fim próprio daquela
acção, fim relativamente ao qual a ciência económica nada tem a dizer, porque a
ciência económica é neutra em relação aosfins.
“A ciência económ ica - escreve Robbins - ocupa-se daquele aspecto do com ­
portam ento que resulta da escassez dos meios para atingir fins dados. Daqui
resulta que a Econom ia é absolutamente neutra relativamente aos fins e que, na
m edida em que a obtenção de um qualquer fim depende da escassez dos meios,
5 5 4 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o l ít ic a

cia diz respeito às preocupações dos economistas. A Economia não se preocupa


com os fins enquanto tais.

(...) O s economistas preocupam -se com o m odo segundo o qual a obtenção de


fins é lim itada. O s fins podem ser nobres ou podem servis. Podem se r‘m ate­
riais ou ‘imateriais’ - se é lícito descrever os fins deste modo. M as se o alcançar
um conjunto de fins implica o sacrifício de outros, então tal circunstância
assume um aspecto económico.

(...) D e m odo nenhum a Econom ia se preocupa com quaisquer fins enquanto


tais - acentua Robbins. Ela preocupa-se com fins na exacta medida em que eles
afectam a disposição de meios. Ela tom a os fins como dados em escalas de
valorização relativa e investiga quais as consequências que se seguem tendo em
conta certos aspectos d o com portam ento.

(...) N ão há fins económicos - esclarece, Robbins, por outro lado. H á apenas


vias económicas e não-económicas de alcançar fins dados. N ão podem os dizer
que a prossecução de fins dados é não-económ ica porque os fins são não-
económicos; podem os apenas dizer que ela é não-económ ica se os fins são
prosseguidos com um dispêndio desnecessário de meios.

Assim - conclui Robbins - não é legitim o dizer que é não económico ir para a
guerra, se, tendo em conta todas as consequências e todos os sacrifícios neces­
sariam ente envolvidos, se decide que o resultado previsto justifica o sacrifício.
Só é legítim o descrever as coisas assim se se procurar alcançar esse fim com um
grau de sacrifício não-necessário”.s,J

N o artigo já referido de 1981, Robbins reafirma a sua posição, esclarecendo,


porém, que ela não compreende a ideia de que “os economistas não devem discutir
questões éticas ou políticas, assim como a posição de que a botânica não é parte da
estética não significa que os botânicos não devem ter opiniões sobre o arranjo dos
jardins”. O essencial é que se distingam os dois tipos de proposições, as que impli­
cam uma discussão científica de factos ou possibilidades e as que implicam uma
discussão política ou ética:
“as proposições da Econom ia - escreve Robbins -, tal como ela se tem desen­
volvido como ciência, são positivas e não normativas. O cupam -se, interalia, de
valores; mas abordain-nos como factos individuais ou sociais. A s generaliza­
ções que assim em ergem são declarações de existência ou de possibilidade.
Usam as palavras é ou pode ser e não deve ou deveria ser. Elas podem ser
eventos ou instituições que apresentam um aspecto económico que nós consi­
deram os eticam ente aceitáveis ou inaceitáveis. M as, na m edida em que as

531 Cfr. I . ROBBINS, Essay..., cit.,15 ,2 4 ,2 5 ,3 0 e 145.


A v elã s N u n es - 5 5 5

explicaçõcs das suas causas ou consequências são científicas, elas são neutras a
este respeito”.SJ2

5 . 4 . A E c o n o m ia com o " c iê n c ia d a e s c o l h a "

Ao considerar a ciência económica como o estudo do comportamento humano


enquanto comportamento que é condicionado pela escassez e que se traduz numa
escolha, a concepção de Robbins aproxima-se do entendimento da ciência económi­
ca como a teoria geral (= lógica formal) da escolha racional por parte dos agentes
económicos. A ciência económica identifica-se, de algum modo, com apraxeologia,
enquanto “teoria geral da acção eficaz”, indo ao encontro da tese de Von Mises,
segundo a qual “a ciência económica torna-se um ramo - o mais perfeito que hoje
temos ao nosso dispor - de uma ciência mais universal, a praxeologia”.533
Em conformidade com todas as teorias subjectivistas sobre a ciência económi­
ca, Robbins considera o sistema económico como “uma série de relações interde­
pendentes, mas conceitualmente distintas, entre homens e bens económicos”, fazendo
da ciência económica - ao contrário da perspectiva clássica-marxista - a ciência
que estuda as relações entre homens e bens económicos.
É, sem sombra de dúvida, a identificação da ciência económica com um ramo
da praxeologia, transformando-a numa ciênciaformal, a ciência da escolha, a teoria
geral da escolha racional, que se aplica tanto ao homem isolado como ao homem em
sociedade, qualquer que seja o tipo de sociedade (ou mesmo a uma colmeia, como
pretende Samuelson).

532 C f r. L. RO BBIN S, ob. cit. (1981), 4. A propósito destas considerações de Robbins, vale a pena recordar aqui a
conhecida distinção conceituai entre teoria, política e doutrina (cfr. 1.1. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política,
ciL, 17-19).
A teona 6 constituída pelas hipóteses (juízos de existência formulados com base em relações supostas entre
fenómenos, o que significa que ainda náo sáo ciência) e pelas leis científicas (aquelas que exprimem, sob a
forma de juízos de existência, relações reais entre fenómenos). Apresentando a teoria um carácter essencial­
mente dedutivo, a teoria económica é integrada apenas pelas leis lógicas ou leis tendenciais (enunciados de
conexões lógicas que se obtêm extraindo, das premissas inicialmente admitidas e colhidas da realidade por via
dedutiva, as suas consequências ou tendências), ficando de fora as leis impíricas ou leis estatísticas (que expri­
mem apenas uniformidades observadas no lugar e durante o período considerados, as quais náo passam de
meras hipóteses de leis, ou de 'leis' cuja validade se restringe necessariamente ao período em causa, nada
provando que as uniformidades durante ele verificadas se repetiráo sempre no futuro).
Sc as leis económicas forem aplicadas à prossecução de determinado fim, transformam-se em regras. E cha­
ma-se política económica ao conjunto de regras (principalmente formuladas para serem aplicadas pelo esta­
do) conducentes ao mesmo fim.
Finalmente, a doutrina é um conjunto de juízos de valor que qualificam actos ou factos em relação a um fim.
Em, resumo: 'a teoria diz o que é; a política, o que pode ser; a doutrina, o que deve ser*.
533 Sobre estas questões, cfr. O . LA N C E, Economia Política, ed. cit., 147-222 e UN ESCO, A Ciência Económica,
ed. cit-, 50ss.
5 5 6 - U m a I n t r o o u ç â o à E c o n o m ia P o ü t ic a

“U m a coisa é afirmar que a análise económica tem interesse e utilidade máximos


num a econom ia de troca. O u tra - escreve Robbins 534 - é afirm ar que o seu
objecto se lim ita a estes fenómenos. Q ue esta últim a asserção é injustificada
pode ser dem onstrado de um a forma concludente por duas considerações. E m
prim eiro lugar, é evidente que a conduta fora da economia de troca é condici­
onada pela m esm a lim itação dos meios relativam ente aos objectivos que
condiciona a conduta dentro daquela economia, podendo subsum ir-se nas
mesmas categorias fundam entais. As generalizações da teoria do valor são
aplicáveis tanto à conduta do hom em isolado como ao poder executivo de um a
sociedade comunista, como à do indivíduo numa economia de troca, ainda que
não sejam tão esclarecedoras nestes contextos. A relação de troca é um inciden­
te técnico, um incidente técnico, é certo, que dá origem a quase todas as
complicações interessantes, mas que nem por isso deixa de ser subsidiário do
facto principal da escassez.

E m segundo lugar, é evidente que os fenóm enos da própria econom ia de


mercado só podem ser explicados atendendo ao que está por detrás das relações
de troca e invocando a acção das leis da escolha, que se observam m elhor
quando se contem pla o com portam ento do indivíduo isolado”.

Robbins explica, aliás, o aspecto económico da conduta humana (isto é, a pers­


pectiva em que esta interessa à ciência económica) a partir do “caso do homem
isolado que divide o seu tempo entre a produção de rendimento real e o gozo do
ócio”. Em que consiste então o aspecto económico dessa divisão do tempo en­
quanto recurso escasso? Vejamo-lo, nas palavras de Robbins:
“A resposta tem que ser encontrada na formulação das condições exactas que
tornam tal divisão necessária. Elas são quatro. E m prim eiro lugar, o hom em
isolado tem necessidade tanto de rendim ento real como de lazer. E m segundo
lugar, ele não tem o suficiente de qualquer deles para satisfazer plenam ente a
sua necessidade de cada um . E m terceiro lugar, ele pode gastar o seu tem po a
aum entar o rendim ento real ou pode gastá-lo disfrutando de mais ócio. E m
quarto lugar, pode presum ir-se que, salvo em casos m uito excepcionais, a sua
necessidade de diferentes elem entos integrantes do rendim ento real e do ócio
será diferente. P or isso m esmo ele tem que escolher. Ele tem que economizar.
A disposição do seu tem po e dos seus recursos relaciona-se com o seu sistema
de necessidades. Ela apresenta um aspecto económico”.

A ciência económica aparece assim, claramente, como o estudo da conduta do


homem colocado perante situações de escassez, a qual é sempre orientada por um
princípio universal de racionalidade económica (ou de cálculo económico), que se traduz,

534 Cfr. L. ROBBINS, Essãy..., cil.,1 9120.


A v elà s N un es - 5 5 7

como vimos, na economia de meios. Nas suas próprias palavras, Robbins concebe “the
subject-matter o f Economics as the rationaldisposal ofgoods”, acrescentando que as
generalizações da Economia se baseiam no postulado fundamental das valorações relativas
(“relative valuations”) e no postulado psicológico mais geral de uma conduta inteira­
mente racional, não no sentido de conduta eticamente adequada, mas no sentido de acção
logicamente consistente. O próprio Robbins considera “perigoso equívoco” o entendi­
mento segundo o qual “as generalizações da Economia são essencialmente histórico-
relativas, sendo a sua validade limitada a certas condições históricas fora das quais elas
não têm qualquer relevância para a análise dos fenómenos sociais”.535
A ciência económica assim concebida assume uma perspectiva a-histórica, na
medida em que a conduta económica que constitui o objecto da análise científica
obedece sempre ao mesmo princípio de racionalidade, seja qual for o contexto
histórico e institucional em que se desenvolva.

5.5. A E c o n o m ia c o n f i g u r a d a c o m o c iê n c ia d e d u t iv a

Em conformidade com todas as teorias subjectivistas sobre a ciência económi­


ca, Robbins considera o sistema económico como “uma série de relações interde­
pendentes, mas conceitualmente distintas, entre homens e bens económicos”, fazendo
da ciência económica - ao contrário da perspectiva clássica-marxista - a ciência
que estuda as relações entre homens e bens económicos.
Pretendendo que a sua ‘ciência’ é uma “ciência pura” ou “ciência positiva”,
Lioncl Robbins assume-a também como “ciência dedutiva”, consistindo a nature­
za da análise económica “em deduções de uma série de postulados, dos quais os
principais são factos quase universais da experiência presente sempre que a activi­
dade humana assume um aspecto económico”.536 A análise económica reduz-se
ao “esclarecimento das implicações de escolher em circunstâncias várias assumi­
das inicialmente”. Assim como “na Mecânica pura exploramos a implicação da
existência de certas propriedades dadas os corpos”, assim também - escreve Rob­
bins 537 - “na Economia pura examinamos a implicação da existência de meios
escassos com usos alternativos”.
Com o escreve Cláudio Napoleoni 538, a economia pura “não é mais do que o
desenvolvimento de todas as deduções que é possível tirar da circunstância inicial­

535 Cfr. L. ROBBINS. Essay...,c\\., 8 0 e 90/91.


536 Cfr. L. ROBBINS, Essay..., cit., 99/100. Entre os postulados qualitativos fundamentais da teoria econômica refere
Robbins "a persistência do fenômeno da escassez, a multiplicidade de factores de produção, a ignorância do
futuro' (Ibidem, 115).
537 Cfr. L. ROBBINS, Essay, cit., 83.
538 Cfr. C. NAPOLEONI, A Teoria Económica. .., ed. cit., 41.
5 5 8 - U m a I n t r o o u ç á o à E c o n o m ia P o ü t ic a

mente admitida de que fins múltiplos e de importância diversa podem ser obtidos
com meios escassos, aplicáveis a usos alternativos”.
Outros autores põem em relevo que, na sequência das concepções de Lionel
Robbins, a ciência económica emerge não como “uma ciência social que estuda a
realidade objectiva”, mas como “um sistema de proposições dedutivas que não
podem ser empiricamente verificadas”, como uma “teoria com características de
conhecimento apriori, do mesmo modo que a matemática, que não pode originar
verificações empíricas (quer estatísticas, quer históricas)”.539
Esta é, porém, uma conclusão que parece não coincidir com os pontos de vista
expressamente defendidos pelo próprio Robbins. Para ele, “o objectivo do econo­
mista é a interpretação da realidade. (...) E verdade que nós [os economistas] dedu­
zimos muito de definições. Mas não é verdade que as definições sejam arbitrárias”.
Uma característica das generalizações científicas - continua Robbins - reside em
que “elas referem-se à realidade” e, por isso mesmo, quer se apresentem como hipó­
teses, quer se apresentem como categorias “elas são distintas das proposições da
lógica pura ou da matemática pelo facto de, em certo sentido, a sua referência ser ao
que existe, ou ao que pode existir, e não a relações puramente formais”. As proposi­
ções da Economia “são deduções de postulados simples que reflectem factos muito
elementares da experiência corrente. Se as premissas se referem à realidade, as dedu­
ções obtidas a partir delas têm que ter um ponto de referência semelhante”. Daí, em
conclusão, ser incorrecto dizer que a Economia “é um mero sistema de inferências
formais que não têm uma relação necessária com a realidade”.540

5 . 6 . A E c o n o m ia es tu d a r ela ç õ es en tr e h o m en s e ben s

E C O N Ó M IC O S

Uma última nota. De acordo com a concepção de Robbins, o sistema económi­


co é considerado como “uma série de relações interdependentes, mas conceitual-
mente distintas, entre homens c bens económicos”.541
O que interessa, pois, à Economia e aos economistas como objecto de estudo
não são relações entre homens, mas entre homens e bens económicos. Não admi­
ra, por isso, que as categorias de valor de uso e utilidade assumam uma posição
central entre os autores que aceitam os pressupostos das correntes subjectivistas
em que Robbins se integra.Tais concepções apartam-se claramente da posição de

539 Cfr. UN ESCO , Ciência económica, cit., 34 e 51.


540 Cfr. L. ROBBINS, Essay, ciL, 105/105.
541 Cfr. L. RO BBIN S, últ. ob. cit., 68.
A v elà s N u n es - 5 5 9

Marx, o qual, considerando que o valor de uso indicia uma relação entre o consu­
midor e o objecto consumido, defende que “o valor de uso como tal está fora da
esfera de investigação da Economia Política”542, já que, sendo esta uma ciência
social (uma ciência que se ocupa de relações entre homens), tal implica que as
categorias nela utilizadas sejam categorias sociais, i.é, categorias que se reportam a
relações entre pessoas.

6. A C R ÍT IC A D O M A R G IN A L IS M O

A escola marginalista suscitou, naturalmente, múltiplas críticas. Vamos consi­


derar aqui apenas quatro aspectos dessa crítica: 1) o âmbito da ciência económica
marginalista; 2) as limitações de uma ciência económica centrada na análise do
comportamento do horno oeconomicus; 3) a possibilidade de uma pura ciência dos
meios; 4) a (im)possibilidade de compreensão do capitalismo.

6 .1 . O â m b it o d a E c o n o m ia m a r g in a l is t a

Uma observação muito frequente é a de que a definição de Robbins atribui à


ciência económica um âmbito demasiado vasto, permitindo incluir na alçada da disci­
plina todos os domínios em que é aplicável o cálculo marginale o princípio da raciona­
lidade económica que lhe subjaz à gestão ou afectação de recursos escassos, domínios
que podem estar tão afastados da economia como a estratégia e a táctica militares, o
desporto de competição, ou a resolução de problemas de circulação automóvel.
Von Mises - que escreveu um livro a que chamou A acção humana. Tratado de
Economia - advertira já que “a esfera da actividade económica coincide com a esfera
da acção racional”. Mas, deste modo, a ciência económica transformou-se em “ciên­
cia universal da actividade humana”, em “teoria geral da acção eficaz”, noção que
toma difícil o correcto enquadramento da disciplina numa classificação das ciências
e que coloca os economistas perante problemas que eles não dominam.
Em Portugal, foi Teixeira Ribeiro quem levou mais longe o esforço no sentido
de tornar operativa a noção de Robbins, definindo a nossa disciplina como “a
ciência que estuda as escolhas que se traduzem em trocas de bens ou as afectam”.
Em seu entender, a ciência económica ocupar-se-ia apenas das escolhas que impli­
cam relações entre os homens ou as afectam; e, de entre estas, apenas das que se
traduzem na transmissão de bens, desde que se trate de transmissões voluntárias (as
transmissões coactivas constituiriam o objecto das Finanças Públicas), e - finalmente
- desde que se trate de transmissões de bens a título oneroso.

542 Cfr. C . M ARX, Critique de UÍconom ie Politique, em KarlM ARX-Oeuvres (ed. Maximilien RUBEL, c it), 1,278.
5 6 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

Creio que estamos perante um ponto de vista tributário da concepção liberal da


separação estado/economia e estado/sociedade civil, com o inerente entendimento
da actividade económica como assunto que diz respeito aos privados (à sociedade
civil). M as a limitação do objecto da Economia Política parece resultar também,
nesta proposta de Teixeira Ribeiro, do entendimento (comum aos marginalistas)
de que a análise económica deve deixar de fora o poder e as relações de poder.
Por outro lado, diz-se que à Economia Política pertence o estudo das transmis­
sões voluntárias de bens, enquanto transmissões efectuadas entre indivíduos livres
e iguais em direitos. É o próprio Teixeira Ribeiro quem dá este exemplo de trans­
missão voluntária'. ufoi por sua vontade que o operário transmitiu ao patrão a força
de trabalho e foi por sua vontade que o patrão lhe transmitiu o salário. Ambos,
pois, fizeram escolhas que se traduziram em transferências voluntárias de bens”.
A nosso ver, também neste aspecto a concepção de Teixeira Ribeiro merece
reparos, por deixar de lado um aspecto fundamental das economias capitalistas,
para o qual Teixeira Ribeiro chama, aliás, a atenção nas suas Lições de 1959: “a
diferenciação social entre os que, por serem proprietários, podem viver sem traba­
lhar e os que, por não o serem, têm de trabalhar para viver”.

6 .2 . O S IG N IF IC A D O D O H O M O O ECO NO M ICUS

A ciência económica marginalista centra-se no estudo do comportamento do


homo oeconomicusy entidade concebida c programada para actuar sempre de acordo
com princípios universais de racionalidade económica.
A - A partir destas premissas, é lógica - como salienta Cláudio Napoleoni - “a
intenção de produzir uma ciência económica de carácter universal, isto é, capaz de
apreender, na sua generalidade, um aspecto específico da conduta humana, um
aspecto que fosse próprio do homem enquanto tal e não meramente do homem
desta ou daquela sociedade particular e historicamente delimitada”.
As categorias económicas do capitalismo surgem, assim, como categorias uni­
versais, independentes das condições sociais próprias de cada período histórico,
aparecendo ‘justificadas’ enquanto corolários lógicos daqueles princípios univer­
sais de racionalidade económica. E será tanto mais assim quanto mais se aproxi­
mar a ciência económica dapraxeologia, vendo nela a ciência da actividade humana
racional. “A apologia das relações de produção capitalistas dissimula-se, então -
escreve Oskar Lange -, no modo de tratar as categorias económicas do capitalismo
como categorias praxeológicas universais (...), como categorias da actividade hu­
mana racional”.
A v e lã s N u n e s - 561

B - Sustentam outros que uma ciência económica centrada na análise do compor­


tamento do homo oeconomicus nega-se enquanto ciência social. Como Hilferding escre­
veu em 1904 criticando Bõhm-Bawerk, “esta teoria económica é a negação da economia;
em última análise (...) é a autoliquidação da economia política”. Com efeito, esta
ciênciapraxeológica não passa de um “raciocínio circular” (Joan Robinson), reduzida a
uma “ciência apriorística”, a um mero “sistema tautológico” (são expressões de Mauri-
ce Dobb), cujas proposições são verídicas (como na lógica e na matemática) desde que
não sejam contraditórias com as hipóteses de partida, sem necessidade de verificação
empírica. A ciência económica assim entendida “não é mais do que o desenvolvimento
de todas as deduções que é possível tirar da circunstância inicialmente admitida de que
fins múltiplos e de importância diversa podem ser obtidos com meios escassos, aplicá­
veis a usos alternativos”. (C. Napoleoni)
O que está em causa é a validade de um paradigma que reduz os homens de
carne e osso - que na vida se integram em grupos ou classes sociais interdepen­
dentes e interrelacionadas - aos tolos racionais (“rational fools”) de que fala Amar-
tya Sen, e concebe a sociedade como um somatório de indivíduos isolados,
identificando cada um deles com o homo oeconomicusperfeitamente racional, o “ser
abstracto sem paixões nem sentimentos” (Pareto), que actua num espaço vazio, à
margem da história, do ambiente cultural, social e institucional, do quadro legal,
político e económico.
C - O comportamento deste homo oeconomicus obedece sempre aos mesmos
princípios de racionalidade, independentemente da sua inserção na história e da
sua inserção social. O homo oeconomicus actua através de actos de escolha efectua­
dos de acordo com a mesma lógica operativa, informados por um critério univer­
sal e intemporal de racionalidade económica, quer se trate de Robinson na sua ilha,
de um produtor ou de um comprador, de um trabalhador assalariado ou do seu
empregador capitalista, de uma pequena mercearia de bairro pobre ou de um
poderoso conglomerado transnacional.
Com o salienta Maurice Godelier, uma limitação relevante da teoria económi­
ca assente em tais pressupostos consiste, precisamente, no facto de “o princípio de
racionalidade ser apresentado como um dado invariante da natureza humana, como
um facto quotidiano e banal da experiência, que remete para um apriori não his­
tórico ou trans-histórico”.
Ora, o comportamento segundo o princípio da racionalidade económica (ou do
cálculo económico), longe de ser um dado invariante da natureza humana, é o produto
de um longo processo de desenvolvimento histórico das relações de produção, que
culminou com o advento do capitalismo como modo de produção autónomo.
5 6 2 - U m a I n t r o o u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Nas épocas anteriores à civilização capitalista, “no centro de todo o esforço e


preocupação estava o homem, medida de todas as coisas” (W erner Sombart). Nes­
ta fase da ‘economia natural’ são múltiplos os fins da actividade económica, que se
desenvolve segundo critérios costumeiros, tradicionais.
Com o desenvolvimento da produção de mercadorias para vender no mercado
(que Marx sintetizou na fórmula ‘D -M -D ’), a actividade produtiva (distinta da
actividade para a economia doméstica) passa a prosseguir um objectivo homogé­
neo, quantificável e mensurável, o ganho monetário. Sendo uma grandeza monetá­
ria, este ganho é comparável com os custos de produção (D pode comparar-se
com D ’). Nasce, historicamente, a categoria do lucro capitalista. O homem natural
foi substituído (como diria Sombart) pelo homem capitalista, que “busca o lucro
racional e sistematicamente” (Max Weber). E, sobretudo, surgiu a empresa capita­
lista como realidade separada da economia doméstica do seu proprietário, o que
aconteceu, fundamentalmente, com o desenvolvimento das sociedades comerciais
e, acima de todas, das sociedades anónimas.
Só então se realizaram as condições indispensáveis para a aplicação plena do
principio da racionalidade económica, que corresponde a um certo estádio de desen­
volvimento das relações de produção. Para a empresa capitalista, a maximização
do lucro é o único objectivo a prosseguir e a adopção dos princípios do cálculo
económico é uma exigência vital para evitar o perigo último da concorrência entre
as empresas (a falência) e para conseguir aquele objectivo. Com o Marx observou,
o princípio da racionalidade económica surge como “uma força inerente ao capital
e como um método próprio e característico do modo de produção capitalista”.
D - O conceito de homo oeconomicus como agente racional maximizador traz con­
sigo, implícito, um certo entendimento normativo acerca da natureza humana, repre­
sentando, por isso mesmo, a afirmação de um ideal como se ele fosse uma realidade.
Este é um procedimento que utiliza a atitude ‘científica’ (a afirmação do que i) para
‘justificar’ o ideal que se proclamou como facto, a pretexto de que se está a explicara
realidade. E este é um procedimento que não é ‘inocente’, num ambiente cultural
caracterizado pela secundarização da filosofia e da teologia perante a ciência, que
assim emerge como a única fonte da verdade (cognitiva e normativa).
E é por isso que o conceito de homo oeconomicus pode ser entendido como um
conceito normativo, utilizado para ‘justificar’ e ‘legitimar’ as instituições económicas
existentes (o mercado livre e a propriedade privada), o que confirmaria a tese de
que a ciência económica não-marxista (e anti-marxista) sempre inseriu nas suas
construções pressupostosfilosóficos acerca da natureza humana, os quais, consciente ou
inconscientemente, forneceram a necessáriajustificação moral do sistema económi­
co e do comportamento que ele exige dos seus agentes.
A v elã s N u n es - 5 6 3

E - Os modelos e as teorias que se baseiam no comportamento do homo oecono­


micus enquanto agente racionalmaximizador têm provado bastante mal como ins­
trumentos analíticos e de predição. No entanto, a mainstream economics continua
fiel a esta premissa básica, apesar das críticas de que tem sido objecto.
Creio que Robert Heilbroner tem razão quando sustenta que esta atitude se
explica pelo facto de os economistas precisarem de um qualquer tipo de pressupos­
tos acerca do comportamento dos agentes económicos, para poderem dar corpo às
suas teorias. O nível da teoria só se atinge com base na adopção de uma qualquer
concepção filosófica acerca da natureza do homem e do seu comportamento.
A teoria económica marginalista parte de “behavioral assumptions” que não
reflectem a incertezafundamental que caracteriza o comportamento dos homens e
que dificulta o enunciado de leis absolutas e universais neste domínio. Mas esta visão
reducionista do homo oeconomicus como animal egoísta maximizador, embora fazen­
do dele “a bit o f a fool” (na expressão de Amartya Sen), oferece à teoria económica
marginalista a ‘vantagem’ de poder contar com sujeitos económicos que se com­
portam com a regularidade e a previsibilidade dos objectos do m undo físico (o que
ajuda a aproximar a Economics das ciências da natureza, como é pretensão dos
defensores da teoria económicapura).
Com base no seu ‘código genético de racionalidade’ (a escala depreferências com
que é dotado à partida o ‘homem racional’ do marginalismo), o homo oeconomicus
adopta (necessariamente) um comportamento perfeitamente previsível, que se de­
senvolve de acordo com uma lei universal (como as da física) aplicável a todos os
agentes económicos (consumidores, trabalhadores, empresários), e que se traduz
no facto de todos procurarem maximizar o resultado pretendido, em coerência
com o ‘código de racionalidade’ que se adopta como premissa (os consumidores
maximizam a sua utilidade; os trabalhadores maximizam o seu salário; os empre­
sários maximizam os seus lucros).
Este artifício do homo oeconomicus permite aos que sobre ele fundam a ‘ciência
económica’ aproximar o comportamento dos homens e das instituições por eles
criadas e nas quais se integram do comportamento das agulhas magnéticas (para utili­
zarmos o paralelismo feito por Heilbroner). Assim se prossegue o ideal de fazer da
Economics uma ciência tão rigorosa e tão objectiva como as ciências da natureza.

6.3. A C I Ê N C I A E C O N Ó M IC A P O D E SER U M A " C IÊ N C IA D O S M E IO S "?

Robbins é muito claro na afirmação de que a sua ciência económica é uma


ciênciapositiva, uma ciênciapura, neutra em relação aos fins. Mas será possível uma
pura “ciência os meios”?
5 6 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o iít ic a

Terá sido Nassau Sênior quem pela primeira vez distinguiu a economiapositiva
(“uma ciência pura e estritamente positiva”) da economia normativa (“uma arte da
economia impura e inerentemente normativa”).
Também David Hum e e, depois, John Stuart M ill apresentaram propostas
semelhantes. A afirmação de Hume, segundo a qual “não se pode deduzir o dever
ser do ser”, ficou conhecida por guilhotina de Hume, porque ela estabelece uma
separação radical entre positivo e normativo, entre ser e dever ser, entre factos e
valores, entre objectivo e subjectivo, entre ciência e arte, entre juízo de verdadeiro
ou falso e juízo de bom ou mau.
N o final do séc. XIX, a questão da Wertfreiheit (i.é, a possibilidade de uma
ciência económica isenta de valores, imune à interferência de juízos de valor)
esteve presente na famosa luta dos métodos (“M ethodenstreit”), uma controvérsia
entre os adeptos da Escola Histórica Alemã (representada por Gustav Schmõller)
e os representantes da Escola Subjectivista de Viena (encabeçada por Cari M en-
ger). Os primeiros valorizavam a perspectiva histórica e a compreensão da economia
e da sociedade, com a inerente valoração da evolução verificada, considerando-se
esta valoração como um elemento indispensável do estudo ‘objectivo’ da economia
e da sua ‘esssência’; os segundos defendiam uma teoria estritamente empírica,
analítica e dedutiva.
M as foi com a “revolução marginalista”, a partir do início da década de 70 do
século XIX, que a nova economia começou a defender sistematicamente, como
verdade indiscutível (‘científica’), o seu carácter científico, objectivo, neutro em rela­
ção a valores éticos ou políticos, com o objectivo de separar a sua ‘ciência’ das
‘doutrinas’ socialistas (em especial o marxismo) que tinham surgido a partir da
Economia Política clássica.
A própria afirmação da sua neutralidade e do seu carácter ‘científico’ e ‘apolíti-
co’ não é alheia a objectivos de natureza ideológica e política. A reivindicação para
a nova ciência económica subjectivista-marginalista (depois consagrada sob a desig­
nação de Economics) dos métodos e dos padrões de validade científica aplicados às
ciências físicas buscava para ela a ‘credibilidade’ que o cientismo da época outorga­
va às ciências da natureza. Ao mesmo tempo, a adopção de uma perspectiva a-
histórica orientada para a descoberta de princípios de comportamento, categorias
teóricas e leis de validade absoluta e universal foi um meio de subtrair ao estudo da
ciência económica os grandes temas da Economia Política clássica que, com Marx,
começaram a pôr em causa a aspiração da ‘ordem burguesa’ à eternidade.
Actualmente, muitos economistas - entre os quais dois prémios Nobel, Milton
Friedman e Georges Stigler - defendem a distinção entre Economia Positiva e
Economia Normativa, querendo significar que só pode falar-se de ciência (= ciência
A v elã s N u n es - 5 6 5

positiva) quando o cientista, enquanto cientista, se limita a analisar o queé, sem se


ocupar do que deve ser (a análise do dever servem apontada como necessariamente
tributária de valores e, portanto, não científica).
Milton Friedman defende que a Economia Positiva é “uma ciência objectiva’, preci­
samente no mesmo sentido de qualquer das ciências físicas”, uma ciência que “é, cm
princípio, independente de qualquer particular posição ética ou de juízos normativos”.
Poderá surpreender que este purismo cientista’a respeito da ciência económica
venha de um autor que assenta o fundamental dos seus trabalhos em postulados
como estes: as economias capitalistas são essencialmente estáveis; o melhor cami­
nho para assegurar o máximo de crescimento económico e o melhor nível de vida
para todos é o funcionamento, sem entraves, do mercado livre (tanto nos países
‘desenvolvidos’ como nos países ‘subdesenvolvidos’); a intervenção do estado na
economia e a regulação das relações económicas pelo estado e pelo direito é sem­
pre um mal (salvo quando propõe que seja a constituição a impor a sua “constant
growth rate rule” no que se refere à oferta de moeda); a inflação é um mal muito
pior que o desemprego, porque a inflação é uma ameaça à “economia de livre
mercado” (assumida como um valor a defender) e à liberdade individual no plano
político (esta equivalência entre economia de mercado e democracia política não é
propriamente umfacto).
Quem pode negar que o economistapositivo M ilton Friedman é um economista
profundamente tributário de juízos de valor e de concepções ideológicas? E não é de
admirar que assim seja, se tivermos presente a lição de autores tão importantes como
Gunnar Myrdal, Maurice Dobb e Joan Robinson. Escreveu o primeiro que, “do
ponto de vista das suas origens ideológicas, a Economia Política é uma grandiosa
tentativa de demonstrar, em termos científicos, o que deve ser”. Dobb sustenta que “a
Economia Política nasceu como uma apologética de certa ordem social e continua a
ser uma apologética”. E a Sr*. Robinson não quer significar coisa diferente quando
defende que a Economia “foi sempre em parte um veículo da ideologia dominante
em cada período e em parte um método de investigação científica”.
Com a sua defesa do principio da Wertfreiheit, M ax W eber pretendia evitar, no
fim de contas, que nos trabalhos científicos se misturassem opiniões de natureza
ética ou política com afirmações de carácter ‘técnico’ e, sobretudo, que se promo­
vesse a aceitação daquelas sob a capa de proposições de índole científica, avaliza­
das pelo ‘prestígio’ de quem as emite enquanto especialista.
Não se contesta o mérito desta preocupação. M as a verdade é que os cientistas
são também - e acima de tudo - seres humanos “cujo pensamento e cuja linguagem
são influenciados por elementos cognitivos e emocionais que não são facilmente
separáveis” (Kurt Rothschild).
5 6 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

E esta circunstância é que leva vários autores - com particular destaque para
G unnar M yrdal - a defender a impossibilidade de uma Wertfreiheit absoluta e a
admitir que elementos ético-valorativos entrem na análise económica (o que, em
certos casos, pode até ser desejável), imputando aos investigadores o dever (ético e
científico) de esclarecer aberta e explicitamente as premissas de que partem, no
plano dos valores, as quais, seja qual for o grau de consciência ou a intenção de
cada investigador, influenciam a escolha dos temas a investigar e levam à inserção
de elementos normativos nas teorias elaboradas. Só deste modo não se corre o
risco de se fazer passar as concepções filosóficas de que se parte por resultados
obtidos através da análise científica.
A este respeito, G unnar Myrdal (Prémio Nobel da Economia) não hesita em
afirmar que “nunca existiu uma ciência social ‘desinteressada e, por razões lógicas,
nunca poderá existir”. Na sua opinião, a “única forma de podermos atingir a ‘ob­
jectividade’ na actividade teórica consiste em expor claramente as valorações, tor-
ná-las consistentes, bem definidas e explícitas, permitindo que os seus efeitos
condicionem a nossa investigação, mas de uma forma clara”.
E o economista sueco explica: “A elucidação das nossas visões e a definição das
nossas específicas premissas de valor são mais obviamente imperativas e ao mesmo
tempo mais fáceis se não compreendermos que não devemos esperar ingenuamente
que as nossas ideias, mesmo no domínio da investigação científica, não são condicio­
nadas por nenhum outro elemento que não seja o nosso anseio de buscar a verdade”.
Um outro crítico do princípio de uma Wertfreiheit absoluta, Robert Heilbroner,
defendeu (num importante ensaio publicado na revista Social Research) que, dada a
especial relação do investigador com o objecto da investigação no âmbito da ciên­
cia económica, a interpretação da realidade será sempre impregnada de valores,
tornando-se a defesa de valores um elemento inseparável - na verdade, um elemento
desejável - da investigação científica, qualquer que seja o grau de consciência dos
investigadores relativamente a este ponto. Segundo Heilbroner, “a Economia não
é e não deve ser isenta de valores”. Por isso ele defende que os economistas não
devem definir como objectivo uma análise isenta de valores. A sua obrigação en­
quanto cientistas traduz-se no dever de esclarecer os seus leitores acerca dos pres­
supostosfilosóficos da sua análise, e no dever de explicitar os juízos de valor que os
inspiram, em vez de os fazerem passar por leis inerentes à natureza das coisas ou por
verdades cientificas inatacáveis.
Seria talvez redundante acompanhar aqui o raciocínio e os argumentos de
vários outros autores cujas conclusões não andam longe das que ficam enunciadas.
Recordaremos Schumpeter, Joan Robinson, Maurice Dobb, H om a Katouzian,
Kurt Rotschild, M ark Blaug, entre outros. A propósito desta questão de saber se é
A v elã s N u n es - 5 6 7

possível atingir uma ciência económica que seja uma pura ciência dos meios, neutra
em relação aos fin s y referiremos apenas François Perroux, o autor em que mais
frontalmente vimos defendido o ponto de vista de que “é impossível uma ciência
humana dos meios puros, separados dos objectivos e dos valores”, porque “uma
ciência dos meios não pode estudá-los com precisão e exactidão deixando de lado
as finalidades que eles revelam”.
A pretexto da distinção entre os dados e as variáveis, o que se pretende - escreve
Perroux num ensaio sobre Poder e Economia - é deixar de fora da análise do econo­
mista elementos como “o regime de propriedade e as regras do jogo social, as rela­
ções entre poderes sociais”. Deste modo, o economista elabora conceitos implicitamente
normativos, “sendo a norma, neste caso, a combinação das regras do jogo que servem
a ‘parte superior da sociedade, os seus interesses económicos e a duração do seu
poder”. A lógica moderna - conclui François Perroux - condena a distinção simplista
segundo a qual a economia é uma ciência dos meios e não uma ciência dosfinsr. “se os
fins estão de fora do alcance dos economistas, eles poderão ficar reduzidos à aceita­
ção da ordem social existente (...), confundida com a ordem social sem epítetos”.
Como corolário, espreita o risco - denunciado por Samuel Bowles - de os econo­
mistas se verem transformados nos “novos servidores do poder”.
A pretensa neutralidade da ciência (ou dos cientistas) é, aliás, contestada por
alguns autores no próprio plano da metodologia científica.
Hom a Katouzian admite que os investigadores podem ser indiferentes relati­
vamente a certos problemas. M as defende que a indiferença, a neutralidade (hoc
sensii) é ela própria uma posição moral, significa um juízo de valor, sendo certo que
a neutralidade (a indiferença, a imparcialidade) não é, em si mesma, sem ter em
conta o respectivo contexto, nem necessariamente correcta nem necessariamente
superior a um empenhamento consciente.
Robert Heilbroner e Hom a Katouzian mostram, por outro lado, que o pressu­
posto maximizador em que assenta a construção subjectivista-marginalista é a ne­
gação da neutralidade que se invoca.
Este pressuposto casa-se perfeitamente com o ponto de vista dominante de que
mais é melhor. Nestes termos, o pressuposto da maximização confere uma certa
autoridade ‘científica’ às afirmações correntes nos manuais da mainstream economics
segundo as quais o consumidor que atinge o cume da sua curva de indiferença fica
mais (melhor) satisfeito do que aquele que se queda num ponto mais abaixo, ou
segundo as quais uma economia com uma taxa de crescimento elevada oferece
necessariamente melhor nível de bem-estar do que outra com uma taxa de cresci­
mento mais baixa.
5 6 8 - U m a I n t r o o u ç A o à E c o n o m ia P o l ít ic a

Deste modo, o comportamento maximizador transforma-se numa norma de


conduta, num padrão de comportamento. E, para quem aceite que mais não significa
necessariamente melhor (ponto de vista que parece impor-se cada vez mais), este
tipo de comportamento não passa da última versão do benthamismo, segundo a
qual “alfinetes, poesia e poluição é tudo a mesma coisa, desde que sejam contabi­
lizados no PN B ”. (Heilbroner)
Em todo o caso, parece irrecusável a conclusão de R. Heilbroner de que a
adopção do pressuposto da maximização significa, inequivocamente, a penetração de
juízos de valor na teoria económica que o adopta como ponto de partida.
O facto de a “teoria económica ortodoxa” adoptar o pressuposto maximizador
como critério da eficiência na afectação dos recursos significa que aquele critério e este
objectivo são os únicos escolhidos por esta perspectiva da teoria económica. E a
escolha do objectivo da afectação racional (eficiente, maximizadora da utilidade)
de recursos dados como único objectivo social é o argumento utilizado por Homa
Katouzian para afirmar que a teoria económica ortodoxa, longe de ser neutra em
relação aos fins - como faz gala em se afirmar -, é selectiva, parcial e influenciada
por juízos éticos.
Ao eleger o objectivo da afectação eficiente dos recursos produtivos, a teoria
económica marginalista está a ignorar arbitrariamente outros objectivos sociais
(v.g., a garantia de um nível de vida mínimo decente; a estabilidade do emprego;
uma distribuição do rendimento justa; condições de trabalho agradáveis; um am­
biente saudávet) indiscutivelmente relevantes e, para certos grupos sociais, mais
importantes que quaisquer outros. Ao desvalorizá-los perante o único objectivo
tido em conta, a Economia marginalista está a adoptar (implicitamente) o juízo
ético segundo o qual a sociedade deve valorizar este objectivo mais que os outros,
ou deve considerá-lo preferível aos outros (subtraídos, em nome desse juízo ético,
à esfera da investigação ‘científica’ e relegados para o domínio sem dignidade das
‘opiniões pessoais’).

6 .4 . A E c o n o m i a m a r g in a l is t a n ã o p o d e c o m p r e e n d e r o

C A PIT A L ISM O

Veremos, finalmente, se a economia marginalista será capaz de compreender o


capitalismo.
O marginalismo coloca-se na óptica da utilização dos recursos existentes, no
pressuposto de que todos serão utilizados o mais eficientemente possível. A subu-
tilização ou a não-utilização de recursos escassos perante necessidades e desejos
não satisfeitos não cabe na lógica da teoria marginalista: o equilíbrio é o equilíbrio
de pleno emprego.
A v elã s N u n es - 5 6 9

Acontece que o ensaio de Robbins, que associa a natureza e o significado da


ciência económica à lei da escassez, foi publicado em 1932, em plena crisegeral de
sobreprodução, num momento em que milhões de pessoas em todo o m undo capi­
talista não encontravam um posto de trabalho e em que milhares e milhares de
empresas faliam por não conseguirem escoar a sua produção. E esta circunstância
é por vezes apontada como sinal da incapacidade da ‘ciência económica’ assim
entendida de compreender a lógica de funcionamento do capitalismo e de diag­
nosticar, explicar e ajudar a resolver os problemas que ele coloca.
Compreende-se, por isso, a conclusão de um estudo editado pela Unesco sobre a
“ciência económica”: “As massas de desempregados e as capacidades de produção
não utilizadas durante a grande crise fizeram compreender a numerosos economistas
que a teoria ortodoxa excluirá do seu campo os mais importantes problemas econó­
micos, e que os microinstrumentos da ‘lógica da escolha’ eram totalmente inadapta-
dos para a análise dos problemas que então se punham à sociedade”.
6.4.1. - A Economia marginalista assume-se como a ciência das relações de troca,
reduzindo-se a esta classificação formal os actos de escolha relevantes para a ciên­
cia económica.
Este é um dos pontos sobre que tem incidido a crítica, sobretudo por parte dos
autores de inspiração marxista. Uma vez instalada como classe dominante, a bur­
guesia passou a considerar as relações de produção capitalistas como algo de defi­
nitivo, inalterável e indiscutível. As concepções burguesas da Economia voltaram
as costas à orientação da Economia Política clássica - que fazia do estudo das
relações de produção o objecto principal da sua análise - e ignoraram deliberada­
mente a Economia Política marxista, que faz das relações de produção o elemento
essencial de cada modo de produção.
M orto o interesse pelo estudo das relações de produção, a Economia Política
burguesa passou a concentrar a sua atenção no problema da formação dos preços
no mercado. A este respeito, é elucidativa a noção de Economia Pura (por oposição
à Economia Política clássica) defendida por Walras: “a economia pura é, na sua
essência, a teoria da determinação dos preços nas condições de um hipotético regi­
me de concorrência livre e perfeita”, [sublinhámos hipotético]
A cadeia de trocas em que intervêm os homens económicos racionais, “nas condi­
ções de um hipotético regime de concorrência perfeita”, desenvolve-se até que se
atinja a posição de equilíbrio das trocas, resolvendo-se, através da troca, todos os
problemas da produção, da distribuição e do consumo, com a maximização dos
resultados em todas as esferas.
5 7 0 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

A crítica põe em relevo que esta identificação da ciência económica como


ciência das relações de troca (ou catalaxia) encobre a apologia do capitalismo. Redu­
zindo o seu estudo à análise das relações de troca que se concretizam no mercado,
realça-se que as trocas são trocas de equivalentes (de outro modo não teriam lu­
gar...), o que significa que as trocas voluntárias permitem ultrapassar eventuais
conflitos entre interesses divergentes, proporcionando o máximo de utilidade a
todos os que delas participam.
“Esta apologia - escreve Oskar Lange - dissimula os interesses de classe con­
trapostos inerentes às relações de produção capitalistas, apresentando-as como um
conjunto harmonioso de relações de troca do qual todas as classes sociais tiram
vantagem”. Entre nós, Jacinto Nunes escrevia em 1988, num artigo de opinião
sobre “Hayek e o novo liberalismo”, que a catalaxia equivale à ressurreição da mão
invisível, com muito de ‘crença’ aceitável num acrescido volume de produção, mas
esquecendo que a sua distribuição passa muito a depender do jogo da ‘habilidade’
e ‘sorte’ dos agentes económicos.
6.4.2. - Uma outra crítica fundamental a esta ciência das trocas põe em relevo o
facto de não se enquadrar no conceito marginalista de acto de troca a ‘troca’ funda­
mental, no quadro das relações de produção capitalistas, que se verifica entre o
trabalhador assalariado e o seu empregador capitalista através do contrato de trabalho.
Na verdade, a perspectiva marginalista concebe a vida económica como uma
sucessão de múltiplos actos de troca isolados, realizados entre indivíduos ‘racionais’.
O ra a ‘troca’ que se realiza através dos contratos de trabalho (mesmo que se trate
de contratos individuais de trabalho) não é um acto de troca a que vão sucedendo
outros actos de troca\ os contratos de trabalho destinam-se, em regra, a produzir
efeitos ao longo de um determinado período de tempo, durante o qual o trabalha­
dor deve cumprir a sua obrigação de trabalhar sob a direcção do patrão-emprega-
dor e este deve cumprir a sua obrigação de pagar o salário ao trabalhador.
A concepção ‘atomística’ das relações económicas como uma sequência de actos
de troca isolados desvirtua, pois, desde logo, a natureza do regime do salariato.
6.4.3. - Para o marginalismo, por outro lado, as relações entre o empregador
capitalista e os trabalhadores assalariados são entendidas como meros actos de troca,
idênticos a quaisquer outros actos de troca, os quais concretizam escolhas feitas livre-
mente pelo empregador capitalista e pelo trabalhador assalariado, de acordo com o
mesmo princípio de racionalidade, escolhas que traduzem a livre vontade do traba­
lhador assalariado de transferir a sua força de trabalho para o seu empregador e a
livre vontade deste de transferir para o operário assalariado o respectivo salário.
A v elã s N u n e s - 5 7 1

Ao afastar a preocupação de apurar a verdadeira natureza da ‘troca’ efectuada


através do contrato de trabalho, admite-se que o trabalhador pode escolher ç.ntre
utilizar o seu tempo a trabalhar para um patrão ou pura e simplesmente não traba­
lhar. E admite-se que esta escolha é da mesma natureza da escolha do empregador
capitalista entre, v.g., contratar o operário ou não contratar, entre contratar mais
operários ou adquirir máquinas novas.
Fora da análise fica o facto fundamental que caracteriza as relações de produ­
ção nas sociedades capitalistas: o facto de os capitalistas serem os proprietários dos
meios de produção e de os trabalhadores assalariados estarem excluídos da propri­
edade dos meios de produção.
E daqui derivam os críticos a incapacidade desta teoriapura para compreender
os mecanismos de funcionamento e as categorias económicas próprias de socieda­
des caracterizadas pela “diferenciação social entre os que, por serem proprietários,
podem viver sem trabalhar e os que, por não o serem, têm de trabalhar para viver”
(Teixeira Ribeiro), e pela natureza conflituante das relações entre os grupos ou
classes sociais em que tais sociedades se estruturam.
Uma tal concepção - claramente reflectida no ensaio de Robbins - é herdeira
directa do individualismo dos séculos XVIII e XIX, que, a pretexto de se ocupar dos
indivíduos em abstracto, esquecia os homens em concreto e as estruturas sociais em que
eles se integram. Este é um entendimento que vai contra a lição de Adam Smith, que
pôs em relevo a diferenciação social acima referida e compreendeu perfeitamente que
o contrato de trabalho não resulta de escolhas livres de ambas as partes e não é um
contrato entre iguais, dando-se conta de que o regime do salariato é uma categoria
própria do capitalismo, inserido na sua lógica, na sua ‘racionalidade’ específica.
Mas a ciência das trocas marginalista, ao conceber as trocas como trocas de equi­
valentes (outra coisa não seria conforme à racionalidade dos agentes económicos),
e ao considerar que é igual a qualquer outra aquela ‘troca’ que os marginalistas
descobrem por detrás do contrato de trabalho, esconde o facto - posto em relevo
desde Sm ith e Marx - de esta ser uma troca desigual.
Em primeiro lugar, os trabalhadores não são livres para contratar ou não con­
tratar (o que chama a atenção para a especificidade deste ‘contrato’, tão específico
que, em regra, não é hoje celebrado entre o indivíduo-trabalhador e o indivíduo-
patrão, mas entre o sindicato representativo dos trabalhadores e a associação re­
presentativa dos patrões), pela simples mas decisiva razão de que, sendo
juridicamente livres de dispor contratualmente da sua força de trabalho, os traba­
lhadores são também “livres de tudo - como sublinha Marx -, completamente
desprovidos das coisas necessárias à realização da sua potência de trabalho”. E esta
5 7 2 - U m a I n t r o o u ç Ao A E c o n o m ia P o l ít ic a

última circunstância transforma aquela liberdade de contratar em necessidade de con­


tratar. os trabalhadores são economicamente obrigados a trabalhar para sobrevi­
ver, ao contrário dos patrões, que podem viver sem trabalhar. Não estão, pois, em
posição de igualdade os dois permutantes deste tipo de ‘trocas’ (sem dúvida as mais
importantes no seio das sociedades capitalistas, as que constituem a essência do
modo de produção capitalista). Adam Smith já tinha mostrado isto mesmo. E,
utilizando as suas palavras, poderemos dizer que quem não se dá conta deste as­
pecto “é tão ignorante do mundo como deste assunto”.
Em segundo lugar, sempre poderá dizer-se, com Adam Smith (não é necessá­
rio invocar Marx), que “o trabalho de um operário acrescenta geralmente, ao valor
das matérias-primas a que se aplica, o valor da sua própria manutenção e o lucro
do patrão”. Esta ‘troca’ cria, como se vê, um excedente (que os marginalistas elimi­
naram), o lucro do patrão (A. Smith) ou a mais-valia (K. Marx).
Em conclusão: esta ciência das trocas ‘encobre’, a nosso ver, aspectos essenciais
das relações sociais de produção que caracterizam as sociedades capitalistas.
6.4.4. - Os puristas da mainstream economics - entre os quais Lionel Robbins -
baseiam as suas propostas teóricas em pressupostos individualistas e atomicistas,
que concebem a realidade como se ela se conformasse com a arquitectura harmo­
niosa da concorrência perfeita.
No entanto, desde os anos 30 que a teoria económica vem dando conta da
existência de vários níveis de ‘liberdade de mercado’, reconhecendo a existência de
elementos geradores de verdadeiro poder de mercado. Joan Robinson e Edward
Chamberlin elaboraram a teoria da concorrência imperfeita e da concorrência mono­
polista. Hoje, não pode deixar de se reconhecer que, nos principais mercados do
“sistema industrial” (J.K.Galbraith), os grandes operadores que os dominam são
price-makers e não price-takers. A mão invisível do mercado foi substituída pela
mão(muito)visíveldas grandes empresas ‘monopolistas’, dos cartéis internacionais,
dos poderosos conglomerados transnacionais, das grandes empresas públicas, do
estado e suas agências.
Vários autores sublinham que, nas condições actuais, quem, verdadeiramente,
decide da utilização dos recursos disponíveis não é o mercado mas as grandes
empresas multinacionais.
Isto significa que os problemas que se perfilam a este respeito não podem
equacionar-se nem obter respostas à margem do sistema político e social que
envolve a vida económica. O que quer dizer que uma ciência que põe no centro de
tudo o homo oeconomicus inventado para o efeito não tem nada a ver com a realida­
de social e é incapaz de equacionar e de compreender os problemas que se levan-
A v elã s N u n es - 5 7 3

tam acerca da utilização dos recursos disponíveis (que não pode deixar de se con­
siderar um problema social).
6.4.5. - As concepções subjectivistas partem da existência de necessidades indi­
viduais e tomam como objecto da ciência económica a luta contra a escassez, com
vista à satisfação dessas necessidades.
O ra a verdade é que, nas economias capitalistas, a produção não visa a satisfa­
ção das necessidades. MA finalidade da economia capitalista - como escreve Teixei­
ra Ribeiro - resume-se à transformação de certa soma de dinheiro em uma soma
de dinheiro maior”. Como sublinha este mesmo autor, “na economia capitalista a
satisfação das necessidades é um meio, e não um fim”, o que significa que, “sempre
que seja conveniente, sacrifica-se o meio à realização do fim, procurando alcan-
çar-se mais lucro, mesmo à custa de satisfazer menos necessidades”.S43
Não admira, por isso, que os críticos do marginalismo considerem a ciência
económica subjectivista incapaz de enquadrar as questões fundamentais que se
colocam no quadro do capitalismo, nomeadamente a problemática da chamada
sociedade de consumo, no seio da qual as necessidades humanas se transformam em
“puro produto do sistema.”. A análise da sociedade de consumo - comenta H ubert
Brochier - “é um escândalo para os economistas, desde sempre habituados a raci­
ocinar em termos de funcionalidade, de utilidade. É um desafio às categorias mais
incontestadas do pensamento económico e em primeiro lugar à noção de utilidade
sobre a qual se encontra alicerçado todo o edifício do marginalismo e do equilí­
brio paretiano”.
A Economia entendida como ciência da escolha caracteriza o capitalismo como
economia de mercado livre, na qual a soberania do consumidor (a liberdadepara escolher
de que fala M ilton Friedman) determina todas as escolhas feitas livremente no
mercado por cada um dos indivíduos que nele actuam, os quais decidem, em último
termo, à escala da economia como um todo, o quê\ como epara quem se vai produzir.
No fundo, o mito da soberania do consumidor é um reflexo do mito liberal do
contratualismo, que reduz toda a vida em sociedade - nomeadamente a vida eco­
nómica - a relações contratuais livremente assumidas por indivíduos livres, indepen­
dentes e iguais em direitos, cada um dos quais dispõe de informação completa
sobre todas as alternativas possíveis e sabe perfeitamente o que quer.
A soberania do consumidor é invocada também para ‘legitimar’ os resultados do
funcionamento das economias de mercado livre no que toca à distribuição da riqueza
e do rendimento. A sua ‘legitimação’ deriva da ideia de que eles são livremente

543 Cfr. J.J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 49.


5 7 4 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l ít ic a

queridos e assumidos por todos e por cada um, através da livre escolha individual.
Von Mises defende expressamente que, “numa sociedade capitalista, a riqueza só
pode adquirir-se e conservar-se mediante uma atitude que corresponda às exi­
gências dos consumidores. Assim, a riqueza de prósperos comerciantes é sempre o
resultado de um plebiscito dos consumidores e, uma vez adquirida, a riqueza só
pode conservar-se se for utilizada da forma que os consumidores considerem mais
benéfica para eles”.
Em sentido contrário, invoca-se toda a lógica da sociedade de consumo, em que
as necessidades são um mero pretexto para vender aquilo que se produz (se não há
necessidades, inventam-se, e os desejos ‘produzem-se’ao mesmo tempo que os bens).
O peso crescente da moda e da publicidade na determinação do comportamento
dos consumidores dá razão aos que defendem (como Alvin Hansen) que “os dese­
jos dos consumidores deixaram de ser uma questão de escolha individual”, tendo-
se tornado ”uma produção de massa”. A realidade quotidiana mostra que, para
além de um certo grau de inter-actividade, as grandes empresas criam necessida­
des e desejos, fabricam as modas, modificam os hábitos de consumo, praticamente
à escala do planeta.
Os defensores das virtudes do mercado sustentam que, dando a todos iguais
possibilidades de participar na orientação da vida económica, o mercado é a base
de um autêntico governo democrático da economia, indo outros ao extremo de afir­
mar que “a economia de livre empresa é a outra face da democracia”: “nesta
grande e contínua eleição geral da economia livre - escreveu Enoch Powel -,
ninguém, nem mesmo o mais pobre, é privado do seu direito de voto: estamos
todos a votar a todo o momento”.
Contra a ‘leitura’ do significado da ‘votação’ efectuada no mercado parece
decisivo, porém, o argumento de M ark Blaug, segundo o qual um tal ponto de
vista ‘esquece’ o facto essencial de que no mercado se efectua “uma eleição em que
alguns eleitores podem votar mais do que uma vez”, porque, no mercado livre, o
peso (a influência) do voto de cada consumidor depende do que cada um gasta no
mercado, o que, por sua vez, depende da riqueza e do rendimento de cada um.
Os marginalistas dirão que os rendimentos de cada pessoa correspondem à
‘contribuição’ de cada uma para o rendimento da comunidade. Os críticos da teo­
ria da produtividade marginal negam que assim seja. E se não houver uma ‘justi­
ficação moral’ para as diferenças de rendimento e para a diferença de natureza dos
rendimentos dos trabalhadores e dos rendimentos dos capitalistas, é inevitável a
conclusão de que a ‘votação’ do mercado está viciada à partida e conduz a resulta­
dos injustos, que reflectem e ajudam a perpetuar as estruturas (de poder) que ge­
ram e mantêm as diferenças de rendimentos. Esta conclusão será ainda mais evidente
A v e iA s N u n e s - 5 7 5

quando se toma em consideração a riqueza herdada por alguns e o rendimento que


dela resulta para os seus titulares pelo simples facto de o serem.
É indesmentível que o volume e a estrutura da procura de bens de consumo são
fortemente influenciados pela distribuição do poder de compra entre as famílias
(unidades de consumo). M as as teorias subjectivistas-marginalistas do equilíbrio de
mercado afastam esta questão, pressupondo sempre, numa perspectiva estática, que as
escolhas dos ‘indivíduos racionais’acontecem sempre nas condições da concorrência
perfeita (“uma situação em que - esclarece Oskar Morgenstern - ninguém exerce
qualquer influência sobre nada, em que não há nem ganho nem perda, em que cada
um enfrenta condiçõesfixas, preços dados, tendo apenas que se adaptar a eles de modo
a obter o máximo individual”), traduzindo-se em saber como gastar, em dado mo­
mento, perante uma dada dotação de bens, um poder de compra dado.
Com boas razões, poderá mesmo dizer-se que, afinal, este rational cboosing
agent inventado pelo marginalismo é, nas condições do mercado livre, “um ho­
mem sem escolhas”. Se quer evitar a morte (falência), ele tem que produzir ao
custo mais baixo a que os outros produzem e tem que vender ao preço (dado) do
mercado e não pode permitir-se quaisquer motivações (ou fins) não-económicos
(a amizade, a compaixão, a responsabilidade social). A sua ‘conduta racional’ não
passa de uma conduta de adaptação às condições dadas pelo mercado, com vista ao
fim único da maximização do ganho (a utilidade ou o lucro). E um homem unidi­
mensional, que mais parece um robot do que um homem livre, capaz de assumir
escolhas morais.
Joan Robinson põe o dedo na ferida quando escreve que a mainstream economics,
“ao aclamar a ‘soberania do consumidor’, acaba por perder de vista o problema da
distribuição do poder de compra entre a população”. E, mais uma vez, a fuga à
realidade social e aos seus problemas, também neste aspecto ao arrepio da atitude
dos economistas que integram a linhagem Fisiocratas-Smith-Ricardo-M arx, to­
dos empenhados, a seu modo, em compreender a sociedade em que viveram.
J. K. Galbraith é um dos autores que, desde a década de 50, mais lucidamente
contribuiu para a crítica desta “economics as a system o f belief”, desta “sedative
economics” que persiste na defesa do dogma da soberania do consumidor.
Segundo Galbraith, o consumidor não é hoje ‘soberano’ em qualquer sentido
útil. A soberania do consumidor só existe no “mundo dos livros de texto” da mains­
tream economics. Nas sociedades que assentam no “sistema industrial” encontramos
economias planificadas, nas quais prevalece a soberania doprodutor. Por isso ele pro­
põe que a ciência económica substitua a perspectiva da soberania do consumidor
pela perspectiva da soberania do produtor, considerando que os produtores são, nas
sociedades modernas, grandes e poderosas organizaçõesprodutivas.
5 7 6 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l It ic a

A soberania do produtor significa, para Galbraith, a capacidade das grandes


organizações empresariais para ‘planificar a economia. E sustenta que “a planifi­
cação é inerente ao sistema industrial”, porque planificar significa 2 “exercício
sistemático da previsão” e a necessidade deste exercício (i.é, o exercício da sobera­
nia doprodutor) resulta de circunstâncias inerentes à moderna sociedade industrial.
J. K. Galbraith põe em relevo aspectos fundamentais em que a adopção da
lógica da soberania do produtor conduziria a leituras da realidade e a políticas
muito diferentes daquelas que resultam da ciência económica que, persistindo na
defesa do postulado da soberania do consumidor, não contribui para esclarecer os
fenómenos sociais, antes “oculta a realidade”, com “o propósito de suprimir con­
clusões e acções sociais inconvenientes” e de ajudar a reforçar a soberania do produ­
tor que faz por ignorar.
Nestes termos, é esta a alternativa que, segundo Galbraith, se coloca à ciência
económica: “A Economia pode permanecer fiel à soberania do consumidor e ser
confortável, não controversa, cada vez mais sofisticada nos seus modelos e cada vez
mais, e talvez mesmo dramaticamente, separada da vida. O u pode aceitar as impli­
cações do poder do produtor, da soberania das grandes organizações. Então ela
será controversa, politicamente perigosa e, durante longo tempo, talvez intelectu­
almente deselegante nos seus modelos. Mas, em compensação, será relevante para
as mais imediatas e importantes questões que se levantam na sociedade industrial”.
6.4.6. - Na medida em que pressupõe o funcionamento da economia nas con­
dições da concorrência perfeita, a mainstream economics ignora o poder de mercado.
M as fora da análise económica ficam igualmente todas as outras formas de poder
(nomeadamente o poder político), bem como as estruturas do poder e as relações de
poder que caracterizam a economia e a sociedade capitalistas.
Já os fisiocratas tinham afirmado que “o governo [o estado] deriva da proprie­
dade” e que o primeiro dever do estado é o de “garantir a propriedade, defendê-la
contra os usurpadores”, “punir, pelo magistério dos magistrados, o pequeno núme­
ro de pessoas que atentam contra a propriedade de outrem”.
A Economia Política clássica deixava transparecer as estruturas do poder im­
plícitas nas relações de produção capitalistas. A natureza e a função do estado
capitalista aparecem com nitidez na conhecida reflexão de Adam Smith acerca do
Civil Goverment. “N a medida em que é instituído com vasta à segurança da propri­
edade, ele é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos
pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detrimento daqueles
que nada possuem”.
Com Ricardo, a sociedade capitalista é caracterizada por uma dinâmica confli-
tual baseada na distinção entre as classes sociais. Mas é sobretudo com Marx que
A v e iAs N u n es - 5 7 7

fica claro que as relações sociais de produção são essencialmente relações depoder,
se entendermos a dimensão económica do poder como M a capacidade que tem um
grupo social de forçar a formação de um excedente e/ou de se apropriar dele” (na
formulação de Celso Furtado). Neste sentido, a apropriação do excedente s'urge,
em Marx, como expressão do poder de que disfruta a classe capitalista enquanto
detentora dos meios de produção.
O poder começou a ser ‘esquecido’ como objecto de análise económica com as
primeiras representações matemáticas da economia (Walras e Pareto), acabando
por ser banido de todas as concepções da ciência económica que a identificam
como uma ciência da escolha, uma teoria das trocas ou uma teoria da formação
dos preços em (supostos) mercados de concorrência.
Actualmente, as relações económicas, quer no quadro de cada economia naci­
onal quer no plano das relações económicas internacionais, tendem a configurar-
se cada vez mais como relações depoder. Nestas condições, ganha redobrada força a
posição de François Perroux ao condenar a tese dos que excluem da teoria econó­
mica a análise do poder. Tal tese “coloca-se numa posição objectivamente e cientifi­
camente insustentável relativamente às outras ciências sociais. O esquema de base
da relação social trata o poder como um factor omnipotente e ineliminável”.
6.4.7. - Um dos pressupostos da Economia marginalista é a consideração do
mercado como o mecanismo mais eficiente de afectação de recursos escassos a usos
alternativos, sendo o sistema de preços o critério de avaliação dessa eficiência.
Mais: na medida em que nele se realiza o princípio universal de racionalidade
inerente à natureza humana, o mercado é, para os marginaiistas, o único instru­
mento racional de afectação de recursos escassos a usos alternativos.
Mas a adopção deste critério implica, desde logo, que se afastem da análise todas
as motivações que não possam ser avaliadas através do padrão de medida da moeda.
Por outro lado, “a afectação eficiente de recursos escassos entre fins alternativos
não pode ser efectuada sem um padrão de avaliação. E o facto de o sistema de
preços ser um padrão de avaliação particular, nomeadamente aquele que avalia
cada dólar do mesmo modo, independentemente da forma que ele tem, não nos
deveria cegar - observa M . Blaug - quanto ao facto de a aceitação dos resultados
do sistema de preços concorrenciais ser um juízo de valor”. E isto porque “o
sistema de preços é uma eleição em que alguns eleitores podem votar mais do que
uma vez, e a única forma de votar é gastando dinheiro”.
Os críticos desta concepção sustentam, ao invés, que o mercado não é um puro
mecanismo natural de afectação eficiente e neutra de recursos escassos e de regulação
automática da economia. Para quem assim pensa, o mercado deve antes conside-
5 7 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o iít ic a

rar-se, como o estado, uma instituição social, um produto da história, uma criação
histórica da humanidade (correspondente a determinadas circunstâncias económi­
cas, sociais, políticas e ideológicas), que veio servir (e serve) os interesses de uns
(mas não os interesses de todos), uma instituição política destinada a regular e a
manter determinadas estruturas depoder que asseguram a prevalência dos interesses
de certos grupos sociais sobre os interesses de outros grupos sociais.
Segundo este outro ponto de vista, o mercado e o estado são ambos instituições
sociais (“longe de serem ‘naturais’, os mercados são políticos” - David Miliband),
que não só coexistem como são interdependentes, construindo-se e reformando-se
um ao outro no processo da sua inter-acção.
Nesta óptica, a questão fundamental não é a de saber se deve escolher-se o
mercado ou o estado, ou mesmo a de saber qual o peso do mercado e qual o peso
do estado (sendo certo que bom estado significa algo mais do que menos estado). A
questão fundamental é a de saber “que espécie de mercados desejamos criar e que
espécie de estado queremos desenvolver”. (D. Miliband).
À luz do que fica dito, resulta que a defesa do mercado como mecanismo de
regulação automática da economia, por oposição à intervenção do estado neste do­
mínio e com este objectivo, não representa apenas um ponto de vista técnico sobre
um problema técnico.
A defesa do mercado é a defesa de uma certa concepção do mundo, expressa na
doutrina liberal, que vê no mercado uma instituição natural, autónoma, soberana,
capaz de uma arbitragem neutral dos conflitos de interesses, uma instituição que -
nas palavras de Hayek - “não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não
são planeados nem previstos e dependem de uma multidão de circunstâncias que
não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja”544.
E é a defesa da concepção liberal do estado, entendendo este como instância
separada da economia e da sociedade civile considerando a não-intervenção do estado
na economia como corolário da natureza do estado enquanto pura instância política.
Uma concepção que - deixando de lado o entendimento dos fisiocratas, de
Locke e de Adam Smith - deliberadamente ignora a ‘compreensão’ da natureza de

544 Hayek entende que só faria sentido falar de justiça ou injustiça acerca da distribuição dos benefícios e dos ónus
operada pelos mecanismos do mercado se essa distribuição fosse o resultado da acção deliberada de alguma
pessoa ou grupo de pessoas, o que não é o caso. Por isso ele defende que a expressão justiça social deveria ser
abolida da nossa linguagem. "A expressão 'justiça social' não é, como a maioria das pessoas provavelmente
sente — escreve ele — , uma expressão inocente de boa vontade para com os menos afortunados, (...) tendo-
se transformado numa insinuação desonesta de que se deve concordar com as exigências de alguns interesses
específicos que não oferecem para tanto qualquer razão autêntica' (apud D. GREEN , ob. c/f., 127). No limite,
a confiança nas virtudes do mercado e da free society poderá levar mesmo à conclusão de que "a pobreza
é o fruto da preguiça' (W illiam Simon, citado por P. R O S A N V A llO N , ob. cit., 89).
A v e i As N u n e s - 5 7 9

classe do estado (para o dizermos em linguagem marxista), revelando-se incapaz


de compreender que a não-intervenção do estado na economia é apenas - como os
diversos tipos de intervenção - uma das formas de o estado capitalista cumprir a sua
função essencial de garantir as condições gerais indispensáveis ao funcionamento
do modo de produção capitalista e ã manutenção das estruturas sociais que o
viabilizam (no fundo, a manutenção e consolidação da autoridade e subordinação a que
se referia Adam Smith).
A esta luz, a defesa do mercado veicula uma concepção acerca da ordem social que
se considera desejávele configura uma atitude de defesa da ordem social que tem no
mercado um dos seus pilares. Tal como a crítica do mercado (por parte de marxistas,
keynesianos, radicais ou ecologistas) veicula um propósito de introduzir mudanças
na ordem social estabelecida ou de a substituir por uma outra ordem social.
Estamos, pois, no domínio da filosofa política e social. E, se bem virmos, tem
sido esta a matriz da discussão travada nas últimas décadas entre ‘keynesianos’ e
‘monetaristas’ (divididos quanto à questão de saber se as economias capitalistas são
estáveis ou não; quanto à capacidade do estado para pôr de pé adequadas políticas
de estabilização; quanto à conveniência ou funcionalidade destas políticas, à luz
de diferentes concepções do homem, da justiça social e da organização social e
política da sociedade).
6.4.8. - Para quem parte do pressuposto de que as economias capitalistas po­
dem compreender-se e explicar-se através da análise do comportamento dos ‘ho­
mens económicos’ que actuam sempre de acordo com princípios universais de
racionalidade económica, é lógica a conclusão de que o capitalismo éo único sistema
racional possível. E esta foi uma tese defendida nas décadas de 20 e 30 do nosso
século por autores como Von Mises, Friedrich Hayek e Lionel Robbins, entre
outros. Igualmente lógica é a conclusão de que substituir o capitalismo por um
outro sistema equivaleria a renunciar à racionalidade económica. O capitalismo
surge, por isso, como ofim da história.
De todo o modo, qualquer que seja a resposta que se dê ao problema da raciona­
lidade do socialismo e à validade do socialismo como alternativa ao capitalismo, a
verdade é que, dentro dos cânones da ortodoxia dominante, à ciência económica é
vedado qualquer juízo específico sobre o modo como a actividade económica decor­
re nos vários sistemas económicos historicamente realizados, em termos de se pode­
rem comparar uns com os outros, nem mesmo no que se refere à sua eficiência.
O facto de o capitalismo ter gerado um desenvolvimento das forças produtivas
muito superior ao registado durante o feudalismo (e que teria sido impossível nas
condições deste) não é susceptível, segundo a concepção de Robbins, de qualquer
juízo económico. À ciência económica só será lícito apreciar em que medida as
5 8 0 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

regras por que se pautava a vida económica no modo de produção feudal eram ou
não adaptadas aos fins que então se ligavam à actividade económica.
Só uma apreciação desta natureza é possível relativamente ao capitalismo. Não
há lugar, portanto, para qualquer juízo comparativo sobre a racionalidade (eficiência)
dos dois sistemas e sobre o significado económico da passagem de um a outro. Quer
dizer: a ciência económica nada pode dizer acerca do significado económico da
passagem do capitalismo ao socialismo. O único juízo económico admissível consis­
te tão só na definição dos meios mais adequados para conseguir certos fins que se
proponham no âmbito de um ou de outro dos sistemas considerados.
Esta é, se bem vemos, uma limitação importante imposta à ciência económica
pelas concepções que aceitam os princípios fundamentais da definição de Robbins.
E não faltam os autores que contrariam abertamente este tipo de limitações à
análise económica, mesmo autores não marxistas.
É o caso, v.g., de François Perroux, o qual sustenta que “ninguém tem o direito, a
pretexto de fazer ciência, de subtrair à análise científica o exame das consequências
económicas, favoráveis ou desfavoráveis, da mudança da ordem social”. E isto tanto
mais quanto é certo que (é ainda Perroux quem sublinha) “lutar contra a escassez não
é apenas aperfeiçoar o mercado (...), é também modificar o regime de mercado e,
mais latamente, rectificar as instituições de que o mercado é apenas um aspecto”.
A verdade é que a Economia Política surgiu e afirmou-se como disciplina cientí­
fica no contexto da passagem da velha ordem feudal para a nova ordem capitalista e -
como fica dito acima - a Economia Política de Adam Smith e de Ricardo foi uma
ciência empenhada em transformar o mundo, em acelerar a dissolução da sociedade feu­
dal, e os conceitos e categorias teóricas da Economia Política clássica não se furtaram
à comparação de formas económicas e sociais alternativas, antes evidenciaram a supe­
rioridade das relações de produção capitalistas em confronto com as relações de pro­
dução feudais e com a regulamentação e os monopólios do mercantilismo.
6.4.9. - Nos dias de hoje, com a entrada em cena dos problemas do ambiente,
parece irrecusável a consideração de modelos alternativos de organização econó­
mica e de crescimento económico.
A mainstream economics assume a escassez como um dadofundamental da vida,
faz da escassez a sua categoria identificadora como ciência cujo objecto é identifica­
do com o estudo do comportamento do homem condicionado pela escassez.
M as é incapaz de se aperceber de que o planeta é hoje oprimeiro bem escasso. O
que indicia que problemas como o da poluição não cabem na lógica da análise
marginalista, que compara custos e benefíciosprivados, mas não é sensível aos custos
sociais de um crescimento baseado na maximização dos lucros, nem é capaz de
comparar custos sociais e benefícios sociais.
A v e là s N u n e s - 5 8 1

É que estes não são ponderados no comportamento do homo oeconomicus nem


podem captar-se através do sistema de preços. Por isso mesmo é que não faz
sentido procurar resolver o problema da poluição através do sistema do poluidor-
pagador: há bens que não têm preço, bens cuja perda não é recuperável e não é, por
isso, em termos sociais, compensável ou indemnizável.
Os bens postos em causa pela poluição não são bens que possam deixar-se
entregues à lógica do mercado. A vida não pode transformar-se numa ‘mercadoria’
cuja sorte fique à mercê das leis ‘cegas’ do mercado. Creio que a preservação da
vida humana exige cada vez mais uma sociedade diferente da que hoje conhece­
mos, um tipo de desenvolvimento radicalmente diferente deste “senseless cance-
rous growth” (W . W eisskopf), um sistema económico que rejeite em absoluto a
“mercantilização da vida” (Heilbroner), e que assuma como meta um paradigma
de desenvolvimento que não identifique o mais com o melhor.
6.4.10. - Queremos com isto significar que a ciência económica capaz de equa­
cionar e de resolver os problemas colocados pela poluição não pode ser uma ‘ciên­
cia positiva’ que se limita à análise das leis do mercado e que reduz os problemas
económicos a problemas de escassez resolvidos pela lei da oferta e da procura
através do mecanismo dos preços. Perante problemas como os da poluição, a eco­
nomia não pode ser uma pura ciência dos meios. O desaparecimento da vida humana
não pode ser um fxm aceitável à luz de qualquer critério científico. A ciência não
pode ser a negação do homem, antes deve estar ao serviço do bem-estar e da
felicidade dos homens. A ciência económica tem que assumir-se como ciência
social, como economia política, como ciência queparte dos homens (e não de fantasmas
como o homo economicus) e se coloca ao serviço dos homens.
Cremos também que certos problemas relacionados com o desenvolvimento ci­
entífico e tecnológico não são equacionáveis nem resolúveis no quadro de uma teoria
económica que coloca no princípio e no fim das suas equações o homo oeconomicus
concebido como agente racional maximizador condicionadopela escassez e que adopta o
principio maximizador como critério único de racionalidade e de eficiência.
Já em 1960 Alvin Hansen escrevia que “a automação pode conduzir a produção
de bens materiais a um ponto em que a massa da nossa energia produtiva poderá
ser consagrada a satisfazer as necessidades do espírito”.
Mais recentemente, Ralf Dahrendorf veio falar da necessidade de “transferên­
cia de alguns ganhos de produtividade para tempo, em vez de dinheiro, para tem ­
po livre, em vez de mais rendimento”.
Esta é uma das questões nucleares que estão em aberto neste tempo de contradi­
ções. O desenvolvimento da produtividade resultante do progresso científico e tecno­
5 8 2 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

lógico permite que se disponha de mais tempo para as actividades do espírito, para as
actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada vez mais bens
para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens. O que está em
causa, nos países capitalistas industrializados, é a necessidade de encontrar outro modo
de organizar a economia e a sociedade, num quadro histórico em que o trabalho, se
ainda não é, “ele próprio, a primeira necessidade vital”, começa a não ser somente “um
meio de viver” (parafraseando o Marx da Critica do Programa de Gotha).
A ciência económica não pode adiar por muito mais tempo a necessidade de enca­
rar a busca de um outro padrão de racionalidade, que admita, por exemplo, resolver o
problema do desemprego a partir da redução do horário de trabalho e do aumento dos
tempos livres, em vez de pretender atrasar duzentos anos o relógio da história, agitan­
do o papão dos “tigres asiáticos” e sacrificando tudo no altar da sacrossanta competiti­
vidade. Esta é, porém, uma tarefa que a ciência económica marginalista não está em
condições de levar a cabo e para a qual não pode dar qualquer contributo.
6.4.11. - Já dissemos que a escassez é o centro de gravidade da mainstream
economics. Resta saber, então, se o problema da escassez será o problema central que
hoje se coloca à humanidade, apesar dos milhões de miseráveis que a ‘civilização
da abundância gerou e continua a gerar. Basta pensarmos nos gastos astronómicos
da União Europeia para retirar os excedentes agrícolas de circulação (e, se possível,
para os ‘destruir como bens aptos para a sua função normal de bens capazes de
satisfazer necessidades das pessoas) ou no famoso take aside da nova PAC: a U E
paga para que se deixem terras incultas e se reduza a produção, para evitar os
excedentes..., não para resolver problemas suscitadospela escassez.
Se a fome existe (e até vai aumentando), não é porque os meios naturais, hu­
manos e técnicos disponíveis não permitam a produção de alimentos suficientes
para alimentar todos os habitantes do nosso planeta. O problema é outro. E faz
todo o sentido a resposta de Amartya Sen quando defende que o facto de haver
pessoas que passam fome - e que morrem de fome -, apesar da abundância de bens
(ou pelo menos da existência de quantidades suficientes de bens), só pode expli­
car-se pela falta de direitos e não pelafalta de bens. O problema fundamental não é,
pois, a escassez, mas a organização da sociedade.
Com entando este ponto de vista de Sen, pergunta Dahrendorf: “Porque é que
os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmente
para si aquilo em que supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcance?
Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes que o ser ou não ser}n [subli­
nhados nossos. AN]
Para os que reduzem os homens ao fantasma do homo oeconomicus enquanto ser
capaz de escolhas racionais, dir-se-ia que os homens, mesmo quando está em causa a
A v elã s N u n es - 5 8 3

sua sobrevivência, quando está em causa ser ou não ser, escolhem, racionalmente, não
fazer nada, i.é, escolhem não tomar para si aquilo de que carecem em absoluto e
que está ao seu alcance.
Mas é claro que o absurdo desta resposta deixa antever que a questão é outra.
Não é uma questão defalta de bens, é uma questão defalta de direitos (ou defalta de
poder). A organização económica das sociedades capitalistas representa uma deter­
minada estrutura depoder (a autoridade e subordinação de que falava Smith), assente
na propriedade burguesa. Esta é uma propriedade perfeita e excluente, consagrada
pelo direito e garantida pelo estado, que exclui os não proprietários do acesso ao que
está ao seu alcance mas que não têm o direito (opoder...) de tocar. Porque o estado “não
tem qualquer outro objectivo que não seja a preservação da propriedade” (John
Locke), e é instituído “com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou
daqueles que possuem alguma coisa em detrimento daqueles que nada possuem”,
cabendo-lhe a missão fundamental de “manutenção e consolidação dessa autoridade
e subordinação” que surgiu nas sociedades humanas com o aparecimento da propri­
edade privada (de “propriedades valiosas e vastas”) e a “desigualdade de fortuna”.
São palavras de Adam Smith, estas últimas. E assim o liberal Adam Smith dá
a resposta à pergunta do liberal Dahrendorf: a fome não resulta da escassez de
bens, mas de uma organização sócio-económica garantida pelo poder político e
militar de um estado que existe para “defesa dos ricos em prejuízo dos pobres”. O
problema do poder - completamente afastado da análise económica pelos margina-
listas e por todos os que se integram na mainstream economics - parece ser o proble­
ma decisivo, não o problema da escassez.
A o equacionar esta problemática, é natural a pergunta de Dahrendorf: “o que
seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém
tivesse fome?” [sublinhado nosso] Esta é uma pergunta que a teoria económica de
raiz marginalista não faz, porque não se consente analisar as consequências de uma
mudança de ordem social. M as a própria pergunta parece encerrar a ideia de que
é necessário modificar as estruturas de direitos (i.é, as estruturas do poder económico
e do poder político).
Se assim é, poderemos concluir que a Economia marginalista não tem qualquer
resposta para este tipo de questões, por deixar de fora da análise o poder, as relações
de poder e as estruturas do poder. E, se assim é, têm igualmente de afastar-se, por
inadequadas, respostas como a de M ilton Friedman: tudo o que a humanidade
precisa é de um mercado livre, o resto vem por si. É que o mercado livre é precisa­
mente um dos mecanismos fundamentais da estrutura de direitos e poderes que se
admite ser necessário modificar.
,

_________
C a p ítu lo XIII

D a ‘R e v o l u ç ã o K e y n e s ia n a ’
C o n tr a - R evolução
M o n e t a r is t s
5 8 6 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o lít ic a

1 . A G r a n d e D e p r e s s ã o : o fim d o l a i s s e z - f a i r e
A Grande Depressão veio deitar por terra os mitos liberais e pôr a nú as limi­
tações da política monetária. Os mais optimistas passaram a defender que a polí­
tica monetária poderia talvez suster a inflação, mas não poderia parar a depressão.
E o que se costuma exprimir através do aforismo “you can lead a horse to water
but you can not make it to drink.”
Keynes mostrou que a Grande Depressão não poderia explicar-se em termos
monetários, defendendo que são asforças reais da economia (os planos do governo,
dos empresários e dos consumidores), e não a oferta de moeda, os factores determi­
nantes do comportamento do nível dos preços. A crise só podia entender-se como
o reflexo de um colapso no investimento privado e/ou de uma situação de escassez
de oportunidades de investimento e/ou de um excessivo espírito de economia por
parte do público, o que legitimava a sua conclusão de que a política monetária era
inadequada para contrariar a depressão.
A rejeição da lei de Say e do mito do pleno emprego constituem pontos fulcrais da
obra de Keynes e encerram o núcleo central da crítica keynesiana dos economistas
“clássicos”. Defendendo que nas economias capitalistas a circulação se faz segundo o
modelo marxista ‘D - M -D ’, Keynes sustenta que as situações de equilíbrio com
desemprego involuntário são situações inerentes às economias que funcionam segun­
do a lógica do lucro e não segundo a lógica da satisfação das necessidades.
Para explicar as situações de desemprego involuntário - que considera o proble­
ma mais grave das economias capitalistas - Keynes lança mão do conceito de
procura efectiva, o montante das despesas que se espera a comunidade fa ç a -por ter
capacidade para as p a g a r m consumo e em investimento novo. Se esta procura
efectiva não for suficiente para absorver toda a produção a um preço compensador,
haverá desemprego de recursos produtivos.
Este desemprego será desemprego involuntário, no sentido de que há pessoas
sem emprego desejosas de trabalhar por um salário real inferior ao praticado. Isto
significa que, ao contrário do que defendiam os “clássicos”, o nível de emprego
não depende do jogo da oferta e da procura no mercado de trabalho, antes é
determinado por um factor exterior ao mercado de trabalho, a procura efectiva. E
significa também que é o volume do emprego que determina, de modo exclusivo,
o nível dos salários reais, e não o contrário.

2 . K e y n e s : a o p ç ã o pela p o l ít ic a f in a n c e ir a
A necessidade de ultrapassar as situações de insuficiência da procura efectiva para
combater o desemprego exigia, na óptica de Keynes, uma intervenção mais ampla
A v elã s N un es - 5 8 7

e mais coordenada do estado. A fiscalpolicy (baseada no controlo das receitas e das


despesas do estado) foi considerada como o instrumento fundamental para estabi­
lizar as flutuações da economia, para promover o crescimento económico e para
prosseguir os objectivos do pleno emprego, da estabilidade dos preços e do equi­
líbrio da balança de pagamentos, a par da redistribuição do rendimento em bene­
fício dos mais pobres (i.é, em sentido favorável àpropensão ao consumo, e, portanto,
ao aumento da procura efectiva), objectivos que os governos passaram a assumir na
sequência da ‘revolução keynesiana’.
Defendendo que a compreensão das economias capitalistas não se confina ao
estudo do ‘comportamento racional’ de um imaginário homo oeconomicus, antes
exige a análise das instituições sociais e políticas enquanto expressão das forças
económicas em presença, Keynes sublinhou a importância do estado e a necessi­
dade do alargamento das suas funções para salvar da “completa destruição as ins­
tituições económicas actuais” [leia-se: capitalistas]. E como as crises e os seus
efeitos perniciosos se fazem sentir a curto prazo, Keynes veio defender que a polí­
tica económica tem que adoptar uma perspectiva de curto prazo: “in the long run
vve are ali dead”, como escrevia em 1923.
Desde a famosa conferência de 1924 sobre The E nd o f Laissex-faire 545 que
Keynes advogou a necessidade de uma certa coordenação pelo estado do aforro e
do investimento de toda a comunidade.
Por duas razões fundamentais: em I o lugar, porque as questões relacionadas
com a distribuição do aforro pelos canais nacionais mais produtivos “não devem
ser deixadas inteiramente à mercê de juízos privados e dos lucros privados”; em 2o
lugar, porque “não se pode sem inconvenientes abandonar à iniciativa privada o
cuidado de regular o fluxo corrente do investimento”.
Daí a necessidade de “uma acção inteligentemente coordenada” para assegurar
a utilização mais correcta do aforro nacional, a necessidade de “uma ampla expan­
são das funções tradicionais do estado”, a necessidade da “existência de órgãos
centrais de direcção” e de uma certa socialização do investimento, nota fundamental
do pensamento keynesiano tal como resulta da General Theory.546
Com base nos ensinamentos de Keynes, a Curva de Phillips funcionou, até final
da década de 1960, como um “menu for policy choice”: se se queria combater o
desemprego e promover o emprego, bastava aceitar um pouco mais de inflação,
‘aquecendo’ a economia através de políticas expansionistas; se se queria travar a

545 Cfr. J. KEYNES, The E n d ..., c it , 2991/292.


546 Cfr. Notas finais com que encerra a General Theory, e m ). KEYNES, The General T h eo ry ..., cit., 379. Cfr.
também A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianism o..., c iL , 81/82.
5 8 8 - U m a I n t r o d u ç ã o A E c o n o m ia P o l ít ic a

inflação, havia que aceitar um pouco mais de desemprego, ‘arrefecendo’ a econo­


mia através de políticas contraccionistas.
Sobretudo na Europa, esta política assegurou, durante os trinta anos gloriosos
(1945-1975), um bom ritmo de crescimento económico sem oscilações significa­
tivas da actividade económica, com baixas taxas de desemprego e taxas aceitáveis
de inflação. Alguns chegaram mesmo a falar de “obsolescência dos ciclos econó­
micos” (Arthur O k u n ).547

3. A FUNDAMENTAÇÃO ECONÓMICA DO ESTADO-PROVIDÊNCIA

Perante o descalabro da Grande Depressão e a consequente miséria de milhões


de pessoas em todo o mundo, Keynes veio defender que as situações de desequi­
líbrio e de crise são inerentes às economias capitalistas, nas quais as situações de
pleno emprego são “raras e efémeras”.548 Por isso estas economias precisam de ser
equilibradas e podem ser equilibradas, o que implica que o estado assuma funções
complexas no domínio da promoção do desenvolvimento económico, do combate
ao desemprego e da promoção do pleno emprego, da redistribuição do rendimento
e da segurança social.
No seu tempo, uma das medidas propostas por M althus para combater as
situações de depressão e de desemprego foi o aumento da procura efectiva, com base
no estímulo ao consumo dos ricos. Se o luxo dos ricos faz a felicidade dos pobres
(ideia largamente aceite nos séculos XVIII e XIX), deixem-se os ricos consumir
sem limitações (por exemplo, reduzindo os impostos sobre os rendimentos dos
proprietários rurais e revogando as leis sumptuárias).
Na era da ‘sociedade de consumo’, perante uma produção em massa, o consumo
dos ricos (mesmo que esbanjador) não consegue assegurar o escoamento de toda a
produção. O aumento do consumo dos pobres (entre eles os trabalhadores), o
consumo de massas é uma necessidade, resultante do próprio desenvolvimento tec­
nológico proporcionado pela ‘civilização burguesa’.
Parece que H enry Ford se terá apercebido disto mesmo ao afirmar que preci­
sava de que os seus operários pudessem comprar os automóveis saídos das linhas
de produção em série das suas fábricas. Um dos méritos de Keynes foi ter compreen­
dido e enquadrado teoricamente esta problemática. Para assegurar mais estabili­
dade às economias capitalistas, de modo a evitar sobressaltos como o da Grande
Depressão, é necessário que os desempregados não percam todo o seu poder de

547 Cfr. J. KEYNES, The General Theory. .., c it.,, 249/250.


548 A pod J. STEIN, Monetari$m, cit., 1.
A v ela s N u n es - 5 8 9

compra (daí o subsídio de desemprego), que os doentes e inválidos recebam algum


dinheiro para gastar (subsídios de doença e de invalidez), que os idosos não per­
cam o seu rendimento quando deixam de trabalhar (daí o regime de aposentação,
com a correspondente pensão de reforma).549
Na GeneralTheory Keynes identifica os dois “vícios” que considera mais mar­
cantes das economias capitalistas: a possibilidade da existência de desemprego invo­
luntário, e o facto de que a “repartição da riqueza e do rendimento é arbitrária e
carece de equidade.” E defende que a correcção destes ‘vícios’ constitui a principal
responsabilidade do estado.
Keynes reconhece que a propriedade privada e o aguilhão do lucro possam ser
factores estimulantes do progresso económico.
M as entende, por um lado, que “a sabedoria e a prudência exigirão sem dúvida
aos homens de estado autorizar a prática do jogo sob certas regras e dentro de
certos limites”.
E defende, por outro lado, que a acentuada desigualdade de rendimentos con­
traria mais do que favorece o desenvolvimento da riqueza, negando assim uma das
principais justificações sociais da grande desigualdade de riqueza e de rendimento:
“Podem justificar-se, por razões sociais e psicológicas, desigualdades significativas
de riqueza, mas não - sublinha o professor de Cambridge - desigualdades tão
marcadas como as que actualmente se verificam”.550
Ficava assim legitimada a intervenção do estado na busca de maior justiça
social, de maior igualdade entre as pessoas, os grupos e as classes sociais. A ‘equa­
ção keynesiana* foi uma tentativa de conciliar o progresso social e a eficácia eco­
nómica. E o discurso keynesiano tomou claro que a conciliação destes dois objectivos
(em vez da proclamação da sua natureza conflituante) é uma necessidade decor­
rente das estruturas económicas e sociais do capitalismo contemporâneo.
A esta necessidade respondeu, a partir dos anos trinta, e, mais acentuadamente, a
partir da Segunda Guerra Mundial, a criação do estado-providência, assente na inter­
venção do estado económico, na redistribuição da riqueza e do rendimento, na re­
gulamentação das relações sociais, no reconhecimento de direitos económicos e
sociais aos trabalhadores, na implantação de sistemas públicos de segurança social.

549 Sem querer minimizar a influência da teorização de Keynes, cremos que o estado-providência e os ganhos
que ele trouxe para os trabalhadores se devem sobretudo às lutas dos próprios trabalhadores, no plano sindical
e no plano político, e à emulação que exerceu, na generalidade dos países capitalistas (perante a falência da
'solução' nazi-fascista), o simples facto da existência da URSS e da comunidade socialista europeia e mundial
constituída no após-guerra.
550 Cfr. J. KEYNES, The General Th eory..., cit., 372-374.
5 9 0 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

As bases (keynesianas) do vuelfare state são, pois, essencialmente, de natureza eco­


nómica, ligadas à necessidade de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas
próprias do capitalismo, e motivadas pelo objectivo de salvar o próprio capitalismo.
Na verdade, estes novos agendado estado não pretendiam subverter (nem sub­
verteram) o sistema, nem visavam promover (nem promoveram) nenhuma revolu­
ção social (apesar de se falar de “revolução keynesiana”), antes se enquadram na
lógica do capitalismo e da sua racionalidade intrínseca.551
Daí que eles não tenham resolvido o problema do ‘subdesenvolvimento’; não
tenham impedido o alargamento do fosso entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países
subdesenvolvidos’; não tenham acabado com as crises cíclicas do capitalismo; não
tenham posto cobro à desigualdade na distribuição do rendimento, cujo agrava­
mento leva a que se fale já da necessidade de incluir no elenco dos direitos funda­
mentais o direito a uma igualdade razoável; não tenham acabado, evidentemente,
com o regime do salariato e com a relação de exploração que lhe é inerente.
Os neo-keynesianos, embora não escondendo alguma frustração acerca dos
resultados das políticas de redistribuição do rendimento e mesmo algumas críticas
ao desempenho do estado-providência, mantêm-se fiéis ao principio da responsabi­
lidade social colectiva, que inspira o estado de bem-estar, sobretudo na Europa.
Trinta e cinco anos depois de Keynes, James Tobin sustentava que “a vuelfare-
economics continua a ser um tema relevante e estimulante. Atrevo-me a acreditar -
acrescenta Tobin 552 - que ela tem um brilhante futuro”. Paul Samuelson e W ilü-
am Nordhaus reconhecem que “o humanitarismo tem os seus custos”, mas defen­
dem que o estado de bem-estar não permitirá que os trabalhadores regressem ao
século XIX: “são poucos aqueles que propõem que o relógio da história volte para
trás, de regresso ao regime sem compaixão do capitalismo puro”.553

4. A ESTAGNAÇÃO E A "ASCENSÃO DO MONETARISM O"

No início da década de 1970, porém, começaram a verificar-se situações caracteri­


zadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação crescente), a par de (e
apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e crescente e de taxas de­
crescentes (por vezes nulas) de crescimento do PNB. Começava a era da estagjlação.
Em Agosto de 1971, os EUA romperam unilateralmente o compromisso assu­
mido em Bretton W oods de garantir a conversão do dólar em ouro à paridade de

551 Ver A . J. AVELÃS NUNES, D o capitalismo..., cit.


552 Cfr. J. TOBIN, Inflation.., cit., 18.
553 Cfr. SAM UELSON/NORDHAUS, ob. Cit., 313.
A v elà s N u n e s - 5 9 1

35 dólares por onça troy de ouro. Daqui resultou a adopção do sistema de câmbios
flutuantes (uma velha reivindicação dos monetaristas), primeiro entre os EUA e os
seus parceiros comerciais, e logo de imediato aplicado em todo o mundo. Esta
circunstância marcou um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. Pode
dizer-se que começa então, na prática, a “ascensão do monetarismo”, a “contra-
revolução monetarista”.554
Os neoliberais souberam aproveitar o desnorte dos keynesianos, surpreendidos com
o “paradoxo da estagflação” (J. Stein), confusos perante o “dilema da estagflação”
(Samuelson). Hayek veio proclamar que a inflação é o caminho para o desemprego
(“The Path to Unemployment” é o título de um conhecido artigo de H ayek555) e,
parafraseando o título de um célebre opúsculo de Keynes, colocou o keynesianismo no
banco dos réus, sustentando que a inflação e o desemprego são “the economic conse-
quences of Lord Keynes”.556 O “ideological monetarism” começou a ser “sistematica­
mente difundido a partir do outro lado do Atlântico por um crescente grupo de entusiastas
que combinam o fervor dos primeiros cristãos com a delicadeza e a capacidade de um
executivo de Madison Avenue.” (Nicholas Kaldor)557
Abandonado há muito o padrão-ouro sem qualquer hipótese de recuperação e
esgotado o sistema monetário internacional saído dos Acordos de Bretton Woods
(1944), a “irmandade dos bancos centrais” (James Tobin)558 colou-se à ortodoxia mo­
netarista, na esperança de encontrar nas suas receitas instrumentos de defesa perante as
pressões políticas dos governos, o que ajudou ao êxito da “contra-revolução”.
A inflação surgiu como o inimigo público número um, inimigo perante o qual
se deveria actuar como perante o terrorismo: não ceder nem um milímetro. O
desemprego deixou de constar das preocupações dos responsáveis, até porque, se­
gundo a nova/velha teoria, as economias se encaminhariam espontaneamente para
a situação de pleno emprego, desde que se deixassem funcionar livremente os
mecanismos do mercado.

5 . A CONTRA-REVOLUÇÃO MONETARISTA: DO "ESTADO


M ÍN IM O " À "M O RTE DA POLÍTICA ECO N Ó M ICA"

As concepções dos monetaristas e dos neoliberais em geral diferem das pro­


postas de Keynes também no que concerne ao entendimento da economia e da

554 Cfr. M. FRIEDMAN, r/>e Rote..., cit. e H .G . JOHNSON, “The Keynesian..., cit. e Inflation...,c it.
555 Cfr. J. HAYEK, “Inflation..., oil.
556 Ver F. HAYEK, Studies. .., cit.
557 Cfr. N. KALD O R, ob. cit., 1.
558 C f t ). TOBIN, “The monetarist..., cit., 30/31.
5 9 2 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

sociedade e, de modo particular, no que tange ao papel do estado perante a econo­


mia e perante a sociedade.
Fiéis ao ideário liberal do laisser-faire, da mão invisívele da lei de Say> os neoli-
berais dos nossos dias defendem que as economias capitalistas tendem espontane­
amente para o equilíbrio de pleno emprego em todos os mercados, pelo que não
precisam de ser equilibradas, sendo desnecessárias as políticas anti-cíclicas e sen­
do desnecessárias e inconsequentes as políticas de combate ao desemprego, que
não conseguem eliminá-lo e geram inflação.
No plano da economia, o liberalismo de Milton Friedman assenta na confiança
absoluta no mercado livre e no mecanismo dos preços, justificando, também neste
aspecto, o retrato que dele fez Galbraith: “é um economista do século X V III”.
Pois este “economista do século XV IIT defende o seguinte: “O sistema de preços
permite que as pessoas cooperem pacificamente numa fase da sua vida enquanto
cada uma trata daquilo que lhe interessa. A ideia luminosa de Adam Smith foi
reconhecer que os preços que emergiam de transacções voluntárias entre comprado­
res e vendedores - em resumo, um mercado livre - podiam coordenar a actividade de
milhões de pessoas, cada uma à procura dos seus próprios interesses”.559
Em coerência com o seu projecto de sociedade, M ilton Friedman considera
que se deve impedir que o estado controle, sob qualquer forma, a actividade eco­
nómica, pois tal não é mais do que uma forma de impedir a concentração de mais
poder nas mãos do estado. Ao invés, deve assegurar-se a sua disseminação por
grande número de pessoas, que assim ficarão mais livres, compensando de algum
modo o poder político do estado.
O radicalismo de M ilton Friedman vai ao ponto de considerar demasiado per­
missivo o critério de Adam Smith para delimitar a esfera de acção do estado:
“Q uase não há nenhum a actividade - escreveu ele em 1976 - que não se tenha
considerado adequada à intervenção do estado de acordo com os argum entos
de Sm ith. É facil afirmar, como o faz Sm ith mais de um a vez, que há efeitos
externos’ que colocam um a actividade ou outra na esfera do ‘interesse público’,
e não na esfera do ‘interesse de algum indivíduo ou algum núm ero pequeno de
indivíduos’. N ão há critérios objectivos amplam ente aceites para avaliar tais
asserções, para m edir a grandeza dos efeitos externos, para identificar os efeitos
externos das acções governamentais e compará-los com os efeitos externos que
se produziriam se se deixassem as coisas em mãos privadas. A análise superfici­
alm ente científica de custo-benefício erigida com base em S m ith transfor­
m ou-se num a formidável Caixa de Pandora”.560

559 Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdadepara escolher, ciL, 42.


560 A p u d G . FEIWEL, "Equilibrium..., cit., 146.
A v elà s N un es - 5 9 3

Estamos longe da visão de Keynes, que, em “T he End o f Laissez-Faire”, doze


anos antes da publicação da GeneralTheory, escreveu este ‘discurso’contra os princí­
pios “metafísicos” em que se fundamenta o laissez-faire\
uNão é verdade que os indivíduos disponham de um a inquestionável ‘liberdade
natural’ nas suas actividades económicas. Não existe nenhum contrato’ que
confira direitos perpétuos aos que têm ou aos que adquirem . O m undo não é
governado a partir de cima de m odo que os interesses privados e os interesses
sociais sem pre coincidam .E não é gerido a partir de baixo de m odo que, na
prática, eles coincidam. Não é uma dedução correcta dos princípios da econo­
mia que o interesse próprio esclarecidamente entendido opere sem pre no inte­
resse p ú b lico . N em é verdade qu e o in teresse p ró p rio seja em regra
esclarecidamente entendido; a maior parte das vezes os indivíduos que actuam
isoladam ente para prosseguir os seus próprios objectivos são dem asiado igno­
rantes ou demasiado fracos, mesmo para atingir estes objectivos. A experiência
não m ostra que, quando os indivíduos form am um a unidade social, sejam
sem pre m enos esclarecidos do que quando actuam separadam ente”.561

Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração (“monetarists mark II”,
como lhes chama JamesTobin), defensores da chamada teoria das expectativas raci­
onais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma informa­
ção que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes
económicos racionais, antecipam plena e correctamente quaisquer políticas públi­
cas. As políticas económicas sistemáticas deixariam, pois, de ter qualquer efeito
sobre a economia, restando aos governos ‘enganar’ os agentes económicos através
de medidas de surpresa, incompatíveis com o cientismo e a programação de que se
reclama a política económica.562
Desta neutralidade da política econômica passa-se, quase sem solução de conti­
nuidade, à defesa da morte da política económica, porque esta seria desnecessária,
perniciosa e sem sentido. Assim estamos de regresso ao velho mito liberal da
separação estado/economia e estado/sociedade: a economia seria coisa exclusiva
dos privados (da sociedade civil, da sociedade económica), cabendo ao estado tão
somente garantir a liberdade individual (a liberdade económica, a liberdade de
adquirir e de possuir sem entraves), que proporcionaria igualdade de oportunida­
des para todos.

561 cfr. J. KEYNES, Theínd...,cit., 287/288.


562 Para maiores desenvolvimentos, cfr. A. |. AVELÀS NUNES, O Keynesianismo. .., cit., 125ss.
5 9 4 - U m a I n t r o o u ç à o â E c o n o m ia P o l ít ic a

6. A TESE d o " d e s e m p r e g o v o l u n t á r i o "

Os monetaristas vieram recuperar a velha lei de Say. E vieram relançar também a


tese de que o desemprego é sempre desemprego voluntário563: se o mercado de traba­
lho funcionar sem entraves, quando a oferta de mão-de-obra for superior à sua
procura o preço da mão-de-obra (salário) baixará até que os empregadores voltem a
considerar rentável contratar mais trabalhadores. As economias tenderiam para uma
determinada taxa natural de desemprego, que traduziria o equilíbrio entre a oferta e a
procura de força de trabalho, qualquer que fosse a taxa de inflação.
Os monetaristas sustentam que as variações conjunturais do nível de desempre­
go nas actuais economias capitalistas são explicáveis fundamentalmente através
das variações da procura voluntária de emprego (trabalho) e de lazer (não-traba-
lho) por parte dos trabalhadores e não através das variações da oferta de postos de
trabalho por parte das empresas.
Uma noção importante a este respeito é a noção de desemprego temporário (“se-
arch unemployment”), noção que pretende designar o conjunto de trabalhadores
que deixaram (ou perderam) um emprego e se encontram à procura de outro
emprego (“searching for a better job”).
Parte-se do princípio de que um trabalhador assalariado pode escolher livre­
mente entre aceitar uma redução do seu salário e deixar o seu actual posto de
trabalho. Colocado nesta situação, se ele pensar que a baixa do salário real não é
geral e que ele pode encontrar trabalho em outras empresas à anterior taxa de
salário, escolherá a segunda alternativa e lança-se numa actividade de procura de
emprego. Assim sendo, estas situações não representariam verdadeiro desemprego
(resultante da deficiente criação de postos de trabalho por parte da economia),
antes reflectiriam um maior grau de mobilidade dos trabalhadores.
Nesta óptica, o desemprego é desemprego voluntário mesmo nos casos em que
os trabalhadores estão desempregados por razões independentes da sua vontade,
uma vez que eles podem determinar livremente o tempo de procura de um novo
posto de trabalho, e que a eles cabe decidir entre procurar e não procurar um novo
posto de trabalho. Se o não procuram, isso significa, para os monetaristas, que
preferem o lazer ao rendimento real que poderiam receber se trabalhassem.
É o regresso às concepções pré-keynesianas, que identificavam a parte subs­
tancial do desemprego como desemprego voluntário, no sentido acima referido de
que a existência de trabalhadores não empregados significa que, perante uma situ­
ação de salários reais demasiado elevados, os trabalhadores não aceitam uma re­

563 Sobre esta problem ática ver, m ais desenvolvidam ente, A .). AVELÀS N U N ES, O Keynesianismo. .., c it., 109ss.
A v elã s N u n es - 5 9 5

dução do salário real suficiente para que a sua remuneração iguale a produtividade
marginal do seu trabalho e os empregadores tenham interesse em os contratar. Por
outras palavras: quem não tiver emprego poderá sempre encontrar um posto de
trabalho, se aceitar um salário mais baixo que o corrente. Se o não aceitar é porque
prefere continuar sem emprego, optando por procurar um novo posto de trabalho
(voluntary searchingfor a betterjob).
Um dos teóricos do desemprego voluntário vai mesmo ao ponto de afirmar que
os despedimentos são um ‘véu’ cuja aparência é enganadora: os trabalhadores que
são despedidos perdem o emprego por, implicitamente, rejeitarem a opção que
lhes seria oferecida de continuarem a trabalhar por um salário mais baixo. A nte­
cipando a objecção de que estas situações são muito raras na prática, A. L. Alchian
alega que tal acontece porque a experiência ensinou aos empregadores que não
teriam êxito quaisquer propostas e negociações com esse objectivo...564
Se fosse caso para fazer ironia, dir-se-ia que M ilton Friedman quase sugere
que só estarão empregados os trabalhadores que não se comportarem racional­
mente. Na verdade, ele defende que “muitas pessoas podem ter, estando desempre­
gadas, um rendimento em termos reais tão elevado como o que poderiam ter
estando empregadas”. Sendo assim, se “o desemprego é uma situação com muitos
atractivos”, como Friedman sustentava em 1976, comprccnder-se-á que os tra­
balhadores optem por estar desempregados... E compreender-se-á também que o
estado não se preocupe em remediar as situações de desemprego (consideradas,
nas palavras mordazes de Modigliani, uma espécie de epidemia de “preguiça conta­
giosa”), antes devendo deixar correr, como insinua o hum or azedo de S.-C. Kolm,
para “respeitar a livre escolha das pessoas” de entrar em período, mais ou menos
longo, de “férias voluntárias” (Robert Solow).565

7. O PROBLEMA DO EMPREGO VISTO COMO PROBLEMA DE


SALÁRIOS

Assim desvalorizado o problema do desemprego, compreende-se que as políticas


de inspiração monetarista concedam prioridade absoluta ao combate à inflação, se-
cundarizando o objectivo do pleno emprego (ou da redução do desemprego). Por

564 A. L. Alchian, a p udJ. R. SHACKLETO N, ob. cit., 7.


565 Cfr. F. M O DIGLIAN I, The Monetarist..., c it, 6; R. SO IO W , ob. cit., 7-10e S. KOLM , ob. d t., 106. À ideia de que,
se nâo optar por nâo procurar um novo emprego (ou por nâo trabalhar), o trabalhador que perde o seu emprego
sempre encontrará um posto de trabalho em um qualquer ponto da economia apetece mesmo reagir deste
modo: “ Na óptica de Lucas, uma pessoa despedida de um emprego pode, presumivelmente, engraxar sapatos
numa estação de caminho de ferro ou vender maçãs numa esquina" (A. BLIN DER, ob. e i l , 131).
5 9 6 - U m a I n t r o o u ç à o à E c o n o m ia P o l It ic a

entenderem que a inflação é sempre e em qualquer lugar um fenómeno exclusiva­


mente monetário (resultante de um aumento da quantidade de moeda em circulação
em maior medida que o aumento da produção), procuram combater a inflação es­
sencialmente com base na redução do crescimento da oferta de moeda.
Esta política and-inflacionista opera através da contracção da actividade económi­
ca e do aumento do desemprego, esperando os seus defensores que daqui resulte uma
redução dos salários reais capaz de assegurar às empresas uma taxa de lucro suficien­
temente elevada para estimular o aumento dos investimentos privados e o relança­
mento posterior da economia, com o consequente aumento do volume do emprego.
Essencial é que se entregue a economia ao livre jogo das ‘leis do mercado’, se reduza a
intervenção do estado na economia e se anulem os “monopólios sindicais.”
Em consonância com o seu conceito de inflação, o monetarismo teórico não
culpa directamente os sindicatos pela inflação.S66 Mas considera-os responsáveis
pelo desemprego, dada a resistência que oferecem à baixa dos salários nominais.
A verdade, no entanto, é que os monetaristas entendem que o aumento da taxa
média de desemprego se explica, não como consequência de quaisquer modifica­
ções tecnológicas ou estruturais da actividade económica que se traduzissem numa
insuficiente criação de postos de trabalho, mas, essencialmente, pelo aumento da
taxa natural de desemprego.™ E, ao menos no contexto da economia e da sociedade
americanas, este aumento da taxa natural de desemprego (uma taxa de desemprego
que não varia com as variações da taxa de inflação) explicar-se-ia em virtude de
factores inerentes à evolução demográfica e às condições do mercado de trabalho,
os quais teriam sido suficientemente influentes para se sobreporem à acção de
algumas circunstâncias que podem ter contribuído para a baixa daquela taxa (v. g.,
a melhoria da mobilidade dos postos de trabalho, a melhor informação acerca dos
empregos alternativos disponíveis, etc.).568
De entre aqueles factores, os monetaristas destacam, fundamentalmente, dois.
Em primeiro lugar, a modificação da estrutura da população activa, com maior
peso dos jovens, das mulheres e dos trabalhadores a tempo parcial.
H á, no entanto, quem invoque os estudos empíricos realizados para concluir
exactamente ao invés: as mulheres e os jovens são estratos menos dispostos a dei-

566 Cfr. F. HAYEK, “Unions.. d t , 281/282.


567 No plano político, a aceitação deste aumento 6 muito clara: os conselheiros económicos de Truman conside­
ravam natural(■ pleno emprego) uma taxa de desemprego entre 1,5 % e 2,5 % ; os de Eisenhower apontaram
como tal uma taxa de 2,5% a 3,5% ; os de Nixon referiram uma taxa entre 4,5 % e 5,5 % ; em 1982, a admi­
nistração Reagan considerou a taxa de 6,5 % como nível de pleno emprego; em 1986, tendia-se para aceitar
como tal uma taxa à volta dos 7% . Cfr. SHERMAN/EVANS, ob. c/t, 245 e A . BLIN DER, ob. cit., 123.
568 Cfr. M . FRIEDMAN, ‘ Inflationand Unemployment...,c it,1 5.
A v elã s N u n es - 5 9 7

xar o emprego do que os homens adultos, precisamente porque estão menos segu­
ros de encontrar outro emprego.569
Em segundo lugar, o fortalecimento do ‘poder monopolista dos sindicatos, a
legislação que impõe o salário mínimo, a instituição dos subsídios de desemprego
e outras contribuições da segurança social em benefício dos desempregados, e/ou
a sua aplicação a categorias mais amplas de trabalhadores, o aumento do seu
montante e da sua duração.
Mas há quem responda, com inteira razão, que a existência de subsídios de desem­
prego e de outras prestações da segurança social, bem como do salário mínimo garan­
tido e de outros factores do mesmo tipo, explicam apenas uma reduzida percentagem
do aumento da taxa natural de desemprego. E há quem lembre o que história ensina:
aquelas medidas constituem, historicamente, uma resposta expost ao aumento do de­
semprego para níveis económica, política e socialmente intoleráveis.570
Os neoliberais insistem, porém, nos malefícios resultantes da existência do
sistema público de segurança social.
Invocam, por um lado, que ele contribuiu para tornar mais atractiva a entrada
no mercado de trabalho, o que terá provocado um aumento da população traba­
lhadora enquanto percentagem da população total, e não será alheio também às
alterações da composição da população activa acima referidas.
Sustentam, por outro lado, que da existência desse sistema resulta uma dim i­
nuição do custo relativo do lazer perante o trabalho, exactamente porque as pesso­
as temporariamente sem emprego continuariam, durante um período de tempo
mais ou menos longo, a ver satisfeitas as suas necessidades básicas, o que lhes
permitiria aguardar mais tempo sem procurar novo posto de trabalho e ser mais
exigentes na aceitação de postos de trabalho alternativos.
De acordo com este raciocínio, a maior mobilidade e o grau crescente de
exigência dos que procuram emprego é que seriam responsáveis pelo aumento das
taxas de desemprego. Também por esta via chegam os monetaristas à conclusão de
que o desemprego seria, substancialmente, desemprego voluntário, sustentando que,
em mercados de trabalho concorrenciais, o emprego e o desemprego efectivos
revelariam as verdadeiras preferências dos trabalhadores entre trabalhar e dedicar
o seu tempo a usos alternativos.571

569 Cfr. SHERMÀN/EVANS, ob. cit., 244/245.


570 Cfr. J. TOBIN, "Stabilization.. ., cit., 26.
571 Às teses neoliberais pode bem aplicar-se o que Keynes observou acerca da teoria '’clássica“’: "muitas pessoas
tentam solucionar o problema do desemprego com uma teoria baseada no pressuposto de que nâo há desem­
prego." (cfr. J. KEYNES, "The Means to Prosperity", cit., 350).
5 9 8 - U m a I n t r o d u ç ã o à E c o n o m ia P o l ít ic a

A análise das propostas neoliberais leva-nos à conclusão de que elas significam o


regresso às concepções pré-keynesianas, segundo quais a diminuição dos salários reais
é a condição indispensável e decisiva para que possa reduzir-se o desemprego e
possa promover-se o (pleno) emprego. Fora desta condição, as políticas assentes na
expansão da procura global apenas gerariam inflação sem criarem postos de traba­
lho suplementares. Na síntese de Hayek, “o problema do emprego é um problema
de salários”, pelo que a sua solução exige Mo restabelecimento de um mercado do
trabalho que proporcione salários compatíveis com uma moeda estável”.572
O s monetaristas e os “novos economistas clássicos” vão mais longe, no seu
radicalismo, do que tinham ido os próprios “clássicos”: aqueles perderam o realis­
mo de que deram provas alguns destes últimos, entre os quais sobressai A. C.
Pigou, que nunca defendeu uma política de redução dos salários nem sequer a
anulação ou a redução do subsídio de desemprego.
No entanto, mesmo durante a Grande Depressão, os fiéis mais ortodoxos dos dog­
mas liberais c da capacidade de auto-regulação das economias capitalistas combate­
ram os subsídios de desemprego (existentes na Grã-Bretanha desde 1906), argumentando
que o simples facto da sua existência encorajava a resistência dos sindicatos à baixa dos
salários para o nível de equilíbrio. Ora, se as taxas dos salários pudessem baixar, argu­
mentavam os ortodoxos, o equilíbrio restabelecer-se-ia automaticamente. E, durante a
crise financeira de 1931, o Governador do Banco de Inglaterra, por instigação dos
meios financeiros dos EUA, ameaçou mesmo o governo trabalhista de que certos
créditos poderiam ser cancelados se o subsídio de desemprego não fosse abolido.573
Ao fim e ao cabo, o que os monetaristas pretendem é que, como nos primeiros
tempos do industrialismo, o rcequilíbrio (com o inerente pleno emprego, acredi­
tam eles) se faça à custa da diminuição dos salários reais.
A verdade, porém, é que o liberalismo económico funcionou nas condições
históricas dos séculos XVIII e XIX, consideravelmente diferentes das actuais. Ve­
jamos: a) a tecnologia industrial era relativamente rudimentar e adaptada a empre­
sas de pequena dimensão; b) a concentração capitalista era inexistente ou pouco
relevante; c) os trabalhadores não estavam organizados (ou dispunham de organi­
zações de classe de existência precária, débeis e inexperientes) e não gozavam da
totalidade dos direitos civis e políticos (o que lhes dificultava e reduzia o acesso ao
aparelho de estado e ao poder político e, consequentemente, a obtenção das rega­
lias económicas e sociais de que hoje desfrutam); d) os governos - imunes às
exigências e aos votos populares - podiam, por isso mesmo, ignorar impunemente

572 Cfr. F. HAYEK, 'Inflation..., ciL, 298.


573 Cfr. ROBINSON/EATW ELL, ob. eil., 47.
A v elã s N u n es - 5 9 9

os sacrifícios (e os sacrificados) das crises cíclicas da economia capitalista, qual­


quer que fosse a sua duração e intensidade.
E claro que a ‘solução’ de impor aos trabalhadores o ónus de ‘pagar a crise’ só
funcionou porque o capitalismo era então, sem disfarces, “um sistema em que os
que não podiam trabalhar também não podiam comer”.574
Resta saber se esta ‘solução’ - uma espécie de “solução final”, que, como se vê,
apesar de resultar das ‘leis sagradas’ do mercado, não é ‘natural’, nem ‘automática’,
nem ‘neutra’ - fará sentido em economias que usam tecnologias avançadas. A respos­
ta afirmativa não faz qualquer sentido. Com efeito, ninguém admitirá que uma uni­
dade de produção informatizada e utilizando robots e outras técnicas de automação
vai deitar fora os equipamentos (caríssimos) compatíveis com estas tecnologias ape­
nas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos. E ninguém admitirá que um
empresário responsável vá lançar um novo empreendimento com tecnologia trabalho-
intensiva ultrapassada, apenas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos.
Parece inegável, por outro lado, que, à medida que os trabalhadores foram con­
quistando o direito ao sufrágio universal e a generalidade dos direitos civis e políticos
(liberdade de expressão, direito de associação, liberdade sindical, etc.), o laissez-fatre
começou a experimentar dificuldades crescentes, que culminaram com a Grande D e­
pressão dos anos 1929-1933 e o risco de um colapso iminente do próprio capitalismo.
Resta saber, por isso mesmo, se aquela ‘solução final’ será compatível com a
realidade social e política dos actuais países capitalistas industrializados, em que
os trabalhadores assalariados - que por certo não se deixarão facilmente convencer
a votar numa política de desemprego em massa - constituem a grande maioria da
população e dominam (talvez só numericamente...) os ‘mercados políticos’. Se se
respeitarem as regras democráticas (entre as quais o reconhecimento das liberda­
des sindicais), os governos, dependentes do voto popular, não poderão continuar
alheios às vicissitudes do ciclo económico. Não falta quem defenda que uma das
marcas do génio de Keynes residiu, precisamente, no reconhecimento da necessi­
dade (e na tentativa) de conciliar a democracia política com a economia de merca­
do capitalista, função última do welfare state.

8. O s " m o n o p ó lio s s i n d ic a i s " e a s " im p e r f e iç õ e s " DO


MERCADO DE TRABALHO

Ignorando as lições da história, os neoliberais vêm sustentando a necessidade


de expurgar o mercado de trabalho das “imperfeições” que lhe foram sendo intro­

574 Cfr. SAM UELSON/NORDHAUS, ob. cit., 312/313.


6 0 0 - U m a In tro o u ç à o à E co n o m ia P o lít ic a

duzidas: o subsídio dc desemprego, a garantia do salário mínimo, os direitos de­


correntes da existência de um sistema público de segurança social.
Na perspectiva dos neoliberais, os sindicatos é que devem assumir toda a res­
ponsabilidade pela criação das condições para o pleno emprego da mão-de-obra.
Q uer dizer: enquanto houver trabalhadores desempregados, os sindicatos têm de
aceitar a redução dos salários nominais. Este seria o único meio de forçar a mobi­
lidade da mão-de-obra entre as indústrias e de elevar as margens de lucro, redis­
tribuindo os trabalhadores de modo a que a distribuição da oferta de mão-de-obra
acompanhe a distribuição da respectiva procura, favorecendo assim o aumento
desta por parte das empresas. Friedrich Hayek afirma abertamente: “é necessário
que a responsabilidade de estabelecer um nível de salários compatível com um
nível de emprego elevado e estável seja de novo firmemente colocada onde deve
estar: nos sindicatos”.575
Colocada assim a questão, um pequeno passo basta para concluir pela necessi­
dade de domesticar (desmantelar) os “agressivos monopólios sindicais”, que Frie­
dman acusa dc, ao exigirem salários elevados, contribuirem para restringir o número
de postos de trabalho. Por isso, não hesita em proclamar que “as vitórias que os
sindicatos fortes conseguem para os seus membros são obtidas acima de tudo à
custa dos outros trabalhadores”.576
O utra linha de ‘argumentação’ põe em relevo que “os sindicatos começam a
tornar-se incompatíveis com a economia de livre empresa” e que, “se se quer pre­
servar o sistema de livre empresa, será necessário (...) reduzir o poder monopolís-
tico dos sindicatos operários”.577 O fantasma da ‘ingovernabilidade’ (que sempre
justifica o apelo a um qualquer leviathan) vem sendo agitado contra os sindicatos.
As ideias de Hayek são elucidativas a este respeito.
Por um lado, condena a ideia de que é do interesse público que os sindicatos
sejam restringidos o menos possível na prossecução dos seus objectivos, porque foi
em nome dela que os ‘monopólios sindicais’acabaram por adquirir “privilégios úni­
cos, de que não goza qualquer outra associação ou indivíduo”, situação que equiva­
leria a aceitar que, no domínio das relações de trabalho, os fins justificam os meios.

575 Cfr. F. HAYEK, "Inflation..., cif., 298.


576 Cfr. M. e Rose FRIEDM AN, Uberdade para escolher, cit., 305-307. Os monetaristas nâo propõem, porém, a
eliminação dos monopólios económicos, dos grandes conglomerados transnacionais, que têm reforçado o seu
poder (poder de mercado, poder financeiro, poder político) e que 'governam' o capitalismo à escala mundial,
apesar de todas as legislações 'anti-monopolistas'. E nenhum deles acreditará que a simples força das suas ideias
faça regressar o mundo ao 'paraíso perdido' do capitalismo de concorrência (cuja existência, como a de todos
os 'paraísos', é pura matéria de fé...).
577 Cfr. C . H ABERLER,"lnflación..., cit., 90/91 e *P o litica...,ciL, 165-173.
A v elãs N u n es - 6 0 1

Por outro lado, ele considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos
sindicatos, poder que, a seu ver, se traduz na “coerção de homens sobre outros ho­
mens”, na “coerção de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só
porque se tem admitido que eles exerçam um tal poder de coerção “sobre aqueles
que querem trabalhar em condições não aprovadas pelos sindicatos” é que estes se
tomaram capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os emprega­
dores. “Pessoalmente - conclui H ayek-, estou convencido de que o poder dos mo­
nopólios sindicais é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal
factor de desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.”
A aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta
os aumentos da produtividade - hoje geralmente considerada socialmente justa e
economicamente vantajosa - significa, para Hayek, o reconhecimento do direito
de expropriar uma parte do capital das empresas. Vejamo-lo nas suas próprias
palavras: “O reconhecimento do direito do trabalhador de uma empresa de parti­
cipar, enquanto trabalhador, numa quota dos lucros, independentemente de qual­
quer contribuição que ele tenha feito para o seu capital, faz dele proprietário de
uma parte da empresa. Neste sentido, tal exigência é, sem dúvida, puramente soci­
alista e, o que é mais, não baseada em qualquer teoria socialista do tipo mais
sofisticado e racional, mas no mais grosseiro tipo de socialismo, vulgarmente co­
nhecido por sindicalismo.”
À luz do que fica dito, compreende-se que Hayek pergunte “até onde se permi­
tirá que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coer­
civo que adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições
fundamentais em que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma
tal subversão das instituições, compreende-se que responda: “H á um momento em
que todos os que desejam a preservação do sistema de mercado baseado na livre
empresa têm que desejar e apoiar sem ambiguidade uma recusa frontal daquelas
exigências [as exigências sindicais], sem vacilar perante as consequências que esta
atitude possa ter a curto prazo”.578
Igualmente claras são as reflexões de Gottfried Haberler num artigo muito
conhecido sobre política de salários, emprego e estabilidade económica.
Nele pode ler-se que muitas das dificuldades por ele consideradas das mais
relevantes das economias capitalistas actuais (“salários monetários rígidos à baixa”
e “pressão constante à alta das taxas de salário monetário”) devem ser imputadas à
“legislação do salário mínimo, aos planos de segurança social, aos subsídios de
desemprego mais liberais”. E estas são realidades apontadas como o fruto da acção

578Cfr. F. HAYEK. “Unions.. cit, 281 ss.


6 0 2 - U m a I n t r o d u ç ã o ã E c o n o m ia P o l ít ic a

do que em outro artigo o mesmo autor chama os “opressivos monopólios do tra­


balho”, um dos “vícios [sic] dos países mais desenvolvidos” que “muitos países
subdesenvolvidos foram mais rápidos a adoptar”.579
Não admira, por isso, que Haberler defenda que “o poder das organizações ope­
rárias cresceu até um ponto em que os sindicatos começam a ser incompatíveis com
a economia de livre empresa”. O que justificaria, em sua opinião - que abona com
posição idêntica de M ilton Friedman - , que, “se se quer preservar o sistema de livre
empresa, e se se quer evitar os controlos drásticos, será necessário mudar as actuais
políticas salariais e reduzir o poder monopolístico dos sindicatos operários”.580
Mesmo no Reino Unido, país onde o movimento sindical era tradicionalmente
considerado uma instituição quase tão intocável como a realeza, a Sra.Thatcher,
enquanto Primeira M inistra, não hesitou em acusar os sindicatos de quererem
“destruir o estado”, erigindo-os desse modo em inimigo interno sobre o qual toda a
repressão se pretende legitimada.Tal como nos primórdios da revolução industri­
al, quando os novos assalariados industriais eram apontados e tratados como “bár­
baros que ameaçam invadir a cidade”.581

9 . A CRÍTICA MONETARISTA AO "PR IN C ÍPIO DA


RESPONSABILIDADE SOCIAL CO LECTIVA"

O ideário liberal rejeita o objectivo de redução das desigualdades, em nome de um


qualquer ideal de equidade e de justiça: as políticas que buscam realizar a justiça social
distributiva são sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual.
M ilton Friedman é muito claro: “a este nível, a igualdade entra vivamente em
conflito com a liberdade”. E ele escolhe a liberdade, confiando em que esta asse­
gure o maior grau de igualdade possível. Por um lado, porque “uma sociedade que
põe a igualdade - no sentido de igualdade de resultados - à frente da liberdade
acabará por não ter nem igualdade nem liberdade”. Por outro lado, porque “uma
sociedade que põe a liberdade em primeiro lugar acabará por ter, como feliz sub­
produto, mais liberdade e mais igualdade”.582
E o regresso à tese smithiana de que o mecanismo do mercado realiza “a
concordância admirável do interesse e da justiça”, tornando indissociáveis a liber­
dade (económica), a eficiência económica e a equidade social.

579 Cfr. G . HABERLER, "Inflaciön..., ci«., 90/91.


580 Cfr. C . H A B ER LE R ,'P d itica ..., ciL, 165-173.
581 Ver M . DESAI, Tesling..., cit., 224.
582 Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdadepara escolher.. cit., 202.
A v elà s N u n es - 6 0 3

Neste domínio da filosofia social, o neoliberalismo exclui da esfera da res­


ponsabilidade do estado as questões atinentes à justiça social, negando, por isso,
toda a legitimidade das políticas de redistribuição do rendimento, orientadas para o
objectivo de reduzir as desigualdades de riqueza e de rendimento, na busca de mais
equidade, de mais justiça social, de mais igualdade efectiva entre as pessoas.
N o que toca à obrigatoriedade dos descontos para a segurança social, os neoli-
berais consideram-na, como se diz acima, um atentado contra a liberdade indivi­
dual, cometido em nome do objectivo de garantir as pessoas contra determinadas
situações (desemprego, doença, invalidez, velhice). E sustentam que esse atentado
é tanto mais grave e intolerável quanto é certo que, na sua perspectiva, este objec­
tivo ficará melhor acautelado (com menores custos financeiros e menores custos
sociais) se cada pessoa (ou cada família) o assumir, como responsabilidade pró­
pria, tomando, em conformidade, as medidas adequadas.
M ilton Friedman não hesita em classificar o princípio da responsabilidade social
colectiva como “uma doutrina essencialmente subversiva.” A seu ver, o deprimente
esbanjamento de recursos financeiros é ainda o menor de todos os males resultan­
tes dos programas paternalistas de segurança social. “O maior de todos os seus
males é o efeito maligno que exercem sobre a estrutura da nossa sociedade. Eles
enfraquecem os alicerces da família; reduzem o incentivo para o trabalho, a pou­
pança e a inovação; diminuem a acumulação do capital; e limitam a nossa liberda­
de. Estes são os principais factores que devem ser julgados”.583
Entre “os custos maiores da extensão das governmental welfare activities', Frie­
dman destaca ainda “o correspondente declínio das actividades privadas de cari­
dade”, que proliferaram no Reino Unido e nos EUA no período áureo do laissez-faire,
na segunda metade do século XIX. Esta é uma opinião só compreensível à luz do
entendimento, segundo o qual “a caridade privada dirigida para ajudar os menos
afortunados” é “o mais desejável” de todos os meios para aliviar a pobreza e é “um
exemplo do uso correcto da liberdade”.
O ilustre laureado com o Prémio Nobel da Economia está a pensar, evidente­
mente, na liberdade daqueles que ‘fazem’ a caridade. Mas menospreza a liberdade
dos que se vêem na necessidade de ‘estender a mão à caridade’. No entanto, estes
são, justamente, os que mais se vêem privados da sua dignidade e da sua liberdade
como pessoas, o mais elevado dos valores a proteger, segundo o ideário liberal. Ao

583 Cfr. M . e Rose FRIEDM AN , ú/f. ob. cit., 172-178. O s monetaristas sustentam que as transferências sociais,
reduzindo o custo do ócio (do nào-trabalho), s5o uma autêntica subvenção à preguiça. Utilizando o comen­
tário de Galbraith perante as opçóes da Administração Reagan neste domínio, talvez possamos sintetizar deste
modo a 'filosofia' dos neoliberais: "os ricos nâo trabalham o suficiente porque náo ganham o suficiente; os pobres
trabalham pouco porque ganham demasiado".
6 0 4 - U m a In tro o u ç à o A E co n o m ia P o lItic a

defender que a única igualdade a que os homens têm direito é “o seu igual direito
à liberdade”, o liberalismo friedmaniano não pode garantir a todos os homens a
liberdade e a dignidade a que cada um tem direito. A proposta friedmaniana de
regresso ao passado não contém a promessa de nenhum ‘paraíso’, mas contém a
ameaça de nos fazer regressar ao ‘inferno perdido’ do apogeu do laissez-faire.
Fiel à sua matriz ideológica, Friedman defende, com toda a clareza, a necessi­
dade de “derrubar definitivamente este estado-providência ao serviço dos ricos e
das classes m éd ia s”, advogando a ideia de q ue, em vez d ele, “é
altura de as democracias ocidentais retomarem os incentivos para produzir, em ­
preender, investir”.584 As vantagens da sua proposta seriam as vantagens do ‘estado
liberal’: “A extinção do actual sistema de Segurança Social eliminaria os efeitos
que presentemente se fazem sentir relativamente à falta de incentivo para a procura
de trabalho, o que representaria, igualmente, um maior rendimento nacional cor­
rente. Conduziria à poupança individual e, portanto, à formação de taxas de capital
mais elevadas e de uma taxa de crescimento do rendimento mais acelerada. Esti­
mularia o desenvolvimento e a expansão de planos de pensões privados, aumentan­
do deste modo a segurança de muitos trabalhadores”.585
Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da
época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e
política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os
indivíduos no plano económico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de
libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo que está
na base dos sistemas públicos de segurança social.

1 0 . S ín t e s e d a c o n t r o v é r s ia e n t r e k e y n e s ia n is m o e

NEOLIBERALISM O

O debate entre monetaristas e keynesianos, de que deixamos algumas notas nas


páginas anteriores, é um debate antigo, tão antigo como a economia política en­
quanto disciplina científica. Apresenta-se hoje, por força das circunstâncias - que
não são as mesmas de há dois séculos -, com novas personagens, novos temas,
(alguns) novos argumentos, um novo enquadramento institucional. M as ele não é
mais do que a continuação do debate entre, por um lado, os defensores da teoria
quantitativa-Aw^z faire-mão invisível-\c\ de Say (com destaque para A. Smith,
David Hum e, Ricardo e, mais tarde, Cassei, Irving Fisher e mesmo o primeiro

584 Entrevista ao N ouvel Observateur de Abril de 1981.


585 Cír. M. e Rose FRIEDMAN, (21,172-174.
A v elãs N u n es - 6 0 5

Keynes) e, por outro lado, a corrente constituída pelos críticos da teoria quantita­
tiva tradicional (Cantillon, Thornton, Wicksell, von Mises, o Hayek dos anos
trinta, Myrdal e o Keynes do Treatise on Money) e pelos críticos da lei de Say (na
tradição de Malthus, Marx, Hobson e o Keynes da General Theory).
A - Deixaremos a seguir algumas observações sobre questões teóricas aborda­
das na controvérsia entre os adeptos das duas correntes de pensamento económico
que marcaram o século XX, embora seja nossa convicção que só à luz de uma
perspectiva ideológica será possível entender o que verdadeiramente está em causa
neste debate que foi considerado o mais importante debate do século XX, ao me­
nos no que diz respeito à ciência económica.
Na sua nova veste, o debate reanimou-se, poderá dizer-se, em 1956, com a
publicação de “T he Quantity Theory o f M oney - A Restatement”, de M ilton
Friedman, a que se seguiu, logo em 1957, a publicação de “T he T heory of Con-
sumption Function”. Em 1963, Friedman publicaria outros dois trabalhos: um, em
colaboração com Anna Schwartz, em que procura mostrar empiricamente que a
procura de moeda é relativamente estável e quantitativamente insensível às varia­
ções da taxa de juro; outro, em colaboração com David Meiselman, em que desen­
volve análise empírica destinada a mostrar que a velocidade de circulação da moeda
é uma variável mais estável que o multiplicador keynesiano. Com a Presidential
Address de M ilton Friedman (1967), encerra-se esta primeira fase do monetaris-
mo. A segunda fase inicia-se com a publicação, em 1970, de “A Theoretical Fra-
mework for the M onetary Analysis”, a que se seguiram outros estudos em 1971 e
em 1972. Com a entrada em cena da teoria das expectativas racionais, começou - por
volta de 1972 - a terceira fase do monetarismo.586
Quando, em 1956, Friedman ‘redescobriu’ a teoria quantitativa, ela apareceu
como “uma loucura peculiar de Chicago, indulgentemente desdenhada por al­
guns, mas considerada como não perigosa” 587 (57). M as em 1970 M . Friedman
afirmava que o quadro teorético que informava a sua análise monetária era a teoria
quantitativa da moeda. E o certo é que, por razões que tentámos enunciar em outro
momento, o êxito do monetarismo foi fulgurante, especialmente junto dos respon­
sáveis pela política económica e junto da opinião pública não especializada. Para
este êxito terá contribuído a simplicidade atraente do que Modigliani chamou
“monetarism for the masses”: os principais problemas a nível macroeconômico
têm origem nas políticas de estabilização de inspiração keynesiana, geradoras de
grande instabilidade monetária; a solução para os nossos males reside na adopção

586 Cfr. M. B LA U G , La metodologia. .., cit., 244-248.


587 Cfr. M. DESAI, Testing. .. , ciL, 2.
606 - U ma Injr^ip ^ # o MEconomia Pcxítica
«V J)
r
de uma regra fixa, simples, que regule mecanicamente o crescimento da oferta de
moeda.588 Alguns terão pensado que o monetarismo, fortalecido com os êxitos
imediatos, viria tomar conta das novas gerações de economistas. M as logo em
1970 um autor de certo peso no campo monetarista (Karl Brunner) reconhecia
que, embora as ideias monetaristas se tivessem tomado “quase respeitáveis” e as
suas propostas fundamentais acerca do papel da moeda e da política monetária
tivessem vindo a ser progressivamente aceitas ou pelo menos seriamente pondera­
das, “a posição monetarista permanece como uma problemática não clarificada
nem consolidada quer no que toca ao seu grau de confirmação empírica quer no
que se refere à sua formulação analítica”.589 Ainda em 1970 Harry Johnson avan­
çava a ideia de que o monetarismo, “ao pôr de pé os seus contornos intelectuais,
para alcançar plena respeitabilidade científica, terá de comprometer-se irremedi­
avelmente com a sua oposição keynesiana”. E rematava: “I expect it to peter out”.590
E, como reacção à tentativa de M ilton Friedman de definir (com o importante
artigo de 1970) a base teórica susceptível de enquadrar as suas posições de raiz
empírica, alguns monetaristas (K. Brunner e A. M eltzer) não hesitaram em pro­
clamar (1972) que o monetarismo estava a descaracterizar-se, aproximando-se da
matriz analítica do keynesianismo. Segundo eles, as concepções apresentadas por
Friedman acerca do mecanismo de transmissão arrastavam-no para uma concor­
dância genérica com os neokeynesianos: tais concepções “ou são enganadoras ou
são uma inversão completa da tese por ele muitas vezes sustentada”. 591
Se os adeptos do monetarismo põem em causa a sua solidez no plano téorico,
não admira que o fizessem também os seus adversários. Ao comentar, em 1972, os
trabalhos de M ilton Friedman de 1970 e 1971, James Tobin conclui igualmente
que “os dois artigos não proporcionam ao monetarismo, quer nas suas teses de
curto prazo, quer nas de longo prazo, um sólido suporte teórico”.592 Em 1974,
Jerome Stein era igualmente peremptório: “não há uma teoria satisfatória do mo­
netarismo”.593 Em 1980, M ark Blaug insistia neste ponto de vista: “a crescente
debilidade das formulações iniciais da posição monetarista, bem como a crescente
disposição dos monetaristas para se adaptarem a formas keynesianas de análise dão
indícios da derrocada da contra-revolução monetarista”.594 Em 1981, o editor do

588 Cfr. F. M ODIGLIAN I, “Keynesianism..., cit., 4.


589 A p u d ). STEIN, “Unemployment..., ciL, 868.
590 Cfr. H . JOHNSON, -The Keynesian..., cit., 12.
591 Cfr. BRUNNER/MELTZER, “Friedman'sMonetary..., cit., 846.
592 Cfr. J. TOBIN , |9|, 863.
593 Cfr. |. STEIN, 111.
594 Cfr. M . B LA U G , | I I , 242.
A v elà s N u n es - 6 0 7

Times (17.7.81) afirmava que, tendo sido a década de setenta a década do moneta­
rismo, a década de oitenta se preparava para remeter as suas propostas para a
secção da história do pensamento económico dos manuais de economia.
É possível que o monetarismo esteja em perda de velocidade. M as a verdade
é que continua aí e não é possível ignorá-lo nem no plano teórico nem no terre­
no das políticas económicas. E, no entanto, cremos que podemos definir hoje
um monetarista como Friedman se vem definindo desde 1956 e como M ark
Blaug o definiria cm 1985: “M onetarista é alguém que acredita na teoria quan­
titativa da moeda”.595
B - O debate entre keynesianos e monetaristas - que foi particularmente vivo
no início dos anos setenta do séc. X X 596 - tem continuado até aos nossos dias.
Parece correcto afirmar-se que, até 1970, os trabalhos de M ilton Friedman
apontavam no sentido de que o cerne da divergência entre keynesianos e moneta­
ristas residia na diferença de pontos de vista acerca da elasticidade-juro da procura
de moeda. E assim o entendia a generalidade dos autores.597 As críticas à ‘de­
monstração empírica’ até aí apresentada por M ilton Friedman 598 levaram-no à
elaboração de um quadro teórico que desse sentido às regularidades estatísticas
por ele apuradas. Nesses trabalhos teóricos599 M ilton Friedman acaba, no entanto,
por afastar-se da sua tese inicial segundo a qual a procura de moeda é “interest
inelastic”, aproximando-se assim das posições keynesianas.
O “empirismo ingénuo de Milton Friedman’’600 foi desde o início alvo de muita
contestação, quer no plano metodológico quer no que se refere aos resultados a que
chegou e às conclusões que deles extraiu.601 No entanto, Friedman insistia, em 1970,
em que “as diferenças básicas entre economistas são empíricas, não teóricas”. Relati­
vamente a uma das questões centrais da problemática monetarista - o papel da mo­
eda na actividade económica -, a controvérsia travada entre keynesianos e monetaristas
diz respeito, em sua opinião, “a diferentes respostas implícitas ou explícitas a ques­

595 Cfr. M . BLA U G , História.. cit., II, 489.


5% A esse debate dedica largo espaço o vol. 80 (1972) do Journal o f Political Economy, inserindo (pp. 837-950)
artigos de K. Brunner e A. Meltzer, J.Tobin, P. Davidson, Don Patinkin e M. Friedman. A mesma problemática
constituiu o tema de uma conferência organizada pela Brown University (1975), cujas intervenções integram
um livro editado por )erome Stoin (cfr. J. STEIN, 121), do qual constam comunicações de F. Modigliani e A Ando,
de K. Brunner e A Meltzer, de |. Stein, d e ). Tobin e W. Buiter, com comentários de vários autores (Anna Schwartz,
Robert Gordon e Milton Friedman).
597 Cfr., por todos, E. SHAPIRO, ob. cit.. 448.
598 Cfr. J. TOBIN, ‘'The Monetary interpretation..., cit. e 'M oney and Income..., cit..
599 Cfr. M . FRIEDMAN, 'A Theoretical. . cit., 'A Monetary Theory..., cit. e 'Com ments.. cit..
600 A expressáoédeM . B LA U G , La m etodologia..., c i l , 243.
601 Esta problemática é analisada com grande profundidade em M. DESAI, Testing..., cit., 93-204.
6 0 8 - U m a In tro d u ç ão à E c o n o m ia P o lític a

tões empíricas”.602 Não admira, por isso, que a guerra das verificações empíricas das
teses de uma e de outra das correntes em presença tenha continuado até hoje, acu­
mulando “montanhas de evidência empírica” (M. Blaug). Depois de todo este esfor­
ço, há quem entenda que “o suporte empírico do monetarismo é muito mais fraco do
que parece”.603 Outros concluem que “uma observação mais atenta da literatura
revela uma tendência regular para o estreitamento da distância existente entre os
distintos pontos de vista, e em especial para o crescente reconhecimento das limita­
ções que apresentam todas as contrastações (confirmações) ao uso da eficiência rela­
tiva das políticas financeira e monetária”.604
C - Poderá dizer-se, aliás, que este longo debate ainda em curso tem permitido
a ambas as partes aprender algo com a outra, daí resultando maior rigor na formu­
lação teórica e na justaposição das respectivas propostas e alguma aproximação de
pontos de vista em determinados aspectos que vêm constituindo objecto de deba­
te.605 Tal não é mais do que o resultado natural de uma atitude de espírito que
Solow traduziu nestes termos coloquiais: “Toda a ortodoxia, incluindo a minha,
necessita com frequência de um pontapé no traseiro para evitar que se torne auto-
indulgente e aplique a si própria normas pouco exigentes”.606
Poucos aceitarão hoje, por exemplo, a tese de que a controvérsia possa equacio­
nar-se na oposição monetaristas/fiscalistas, pondo a ênfase nos diferentes pontos de
vista acerca de qual a política mais adequada para se conseguir a estabilização da
economia: a política monetária, segundo os monetaristas, que a consideram o instru­
mento mais eficaz para controlar a oferta de moeda, principal factor determinante do
nível de rendimento; apolíticafinanceira, segundo os keynesianos, que vêem na acção
sobre as receitas e as despesas públicas o caminho mais seguro para controlar a
procura global, da qual depende, essencialmente, a seu ver, o nível do rendimento.
Na verdade, nenhum não-monetarista afirmará hoje que “money does not mat-
ter”. Em 1973, Samuelson criticava o Radcliffe Committe porque, tendo mostrado
não ser verdade que money alone matters, daí concluiu que money does not matter, e

602 Cfr. M. FRIEDMAN, *A Theoretical..., cit., 234/235. A mesma ideia é retomada por Friedman em "Comments on
Tobin and Buiter", c it , 315. No prefácio que fez para a ediçáo das comunicações apresentadas à Conferência
organizada pela Brown University a que nos referimos atrás, Jerome Stein diz que "as propostas mais importantes
dos monetaristas sâo uma espécie de observaçáo empírica cuja validade é ainda objecto de controvérsia, em vez
de uma teoria cm oposição directa à análise neo-keynesiana" (cfr. J. STEIN, Monetarism. .., cit., 2).
603 Cfr. M. DESAI, Testing. .., cit., 12.
604 Cfr. M. B LA U G , ia metodologia.. . cit., 243.
605 Há quem admita que poderá chegar-se a uma síntese das duas correntes. Nesta hipótese, "na medida em que
se verifique esta síntese científica, o monetarismo perderá a magnética simplicidade essencial ao seu atractivo
ideológico' (cfr.). TOBIN, "Inflation and Unemployment..., c it, 42).
606 A p od G . FEIW EL, "Samuelson..., cit., 180.
A v e LAs N u n es - 6 0 9

criticava do mesmo modo os “fossil-keynesians” (fiscalpolicy only matters) por não


reconhecerem o papel da moeda na macroeconomia moderna.607 Ao contrário, o
reconhecimento generalizado entre os neokeynesianos de que a quantidade de
moeda em circulação desempenha um papel importante na determinação da pro­
dução, do rendimento e dos preços justifica a afirmação de Franco Modigliani,
parafraseando M ilton Friedman, de que “we are all monetarists now”. 608 Num
estudo publicado em 1976, Modigliani reconhece que, em geral, ambas as escolas
admitem que tanto a política monetária como a política financeira podem influen­
ciar o rendimento monetário e o rendimento real, ao menos durante algum tempo.
A velha questão de saber se only money matters ou se money does not matter é, pois,
segundo Modigliani, “na melhor das hipóteses, uma questão secundária, uma questão
mais de ênfase do que de princípio”. 609
O “keynesianismo de Neanderthal” (M. Blaug) perdeu credibilidade, registan­
do-se, também aqui, um ‘regresso a Keynes’, uma vez que não se vê fundamento
para atribuir a Keynes qualquer ideia de que money does not matter, ponto que não
sofrerá quaisquer dúvidas, especialmente após os trabalhos de A. Leijonhufvud.6,0
E muitos autores que se reclamam do keynesianismo defendem que ele só ganhou
com esta “redescoberta da moeda”, abandonando formulações reducionistas da
década de cinquenta em benefício de um grau mais elevado de sofisticação.611
Por outro lado, já em 1966 M ilton Friedman abandonava o “M onetarismo de
Neanderthal” (M. Blaug), admitindo expressamente que a política financeira pode
afectar, a curto prazo, a composição c o nível do rendimento e, a longo prazo, o
nível dos preços, ideia que retoma (em 1968) no célebre diálogo com Walter
Heller (“I don’t believe that money is all that m atter”) e que reafirma em 1970:
“Considero a afirmação de que ‘money is all that matters’como uma interpretação
fundamentalmente errada das nossas conclusões”.612
A partir dos anos setenta, é este o entendimento generalizado entre os monetaristas,
que reconhecem hoje à política financeira a vantagem de poder ser accionada com
maior rapidez que a política monetária. É legítimo, pois, concluir, com W . Baumol e
A. Blinder, que “só o machismo e o hábito animam hoje esta controvérsia”.613

607 Cfr. P. SAMUELSON, “Monetarism..., cit., 53-59.


608 Cfr. F. M O DIGLIAN I, "The Monetarist Controversy.. ciL, 1. Para evitar más interpretações acerca da coerência
dos neokeynesianos, James Tobin faz questão de que se diga "we are all monetarists now, and w e always were'
(cfr. J. TO BIN , "Comment on the Paper..., c it , 56).
609 Cfr. F. M O DIGLIANI, "Keynesianism..., cit., 6 .
610 Cfr. A. LEIJO NHUFVUD, On Keynesian..., cit., V I, n 2.
611 Cfr. SAM UELSON/NORDHAUS, ob. cit., 404/405. Cfr. também M . B LA U G , La metodologia..., c it , 247.
612 Cfr. M. FRIEDMAN, "Interest Rates..., ciL, 153; "R eply"..., cit., 335 e 'A Theoretical. . . , c i l . , 217.
613 Cfr. BAUM OL/BLINDER, ob c it , 257.
6 1 0 - Um a In tro o u ç à o A Econom ia P o lític a

D - Em outro aspecto fundamental - o da estabilidade ou instabilidade das


economias capitalistas - o debate provocou alguma aproximação entre keynesia­
nos e monetaristas, embora sem eliminar as diferenças entre ambos.
Keynes deixou bem clara a sua opinião de que uma das propriedades essenciais
do sistema capitalista, “embora sujeito a flutuações severas no que se refere à pro­
dução e ao emprego”, era a de “não ser violentamente instável”.614 Os primeiros
keynesianos, no entanto, talvez tenham exagerado a instabilidade das economias
capitalistas. Por um lado, com base na ideia de uma procura de moeda muito
elástica em relação à taxa de juro (com situações frequentes próximas da liquidity
trap); por outro lado, admitindo uma procura agregada de bens e serviços não
significativamente sensível às variações da taxa de juro, particularmente no respei­
tante ao investimento privado (mais influenciado pelos animal spirits do que pelos
cálculos baseados no custo do capital).
A experiência histórica e vários estudos econométricos (referentes sobretudo à
economia americana) parecem apontar no sentido de moderar este ponto de vista.
“Os valores estimados dos parâmetros - defende Modigliani 615 - implicam uma
economia bastante menos instável do que o assumido pelos primeiros keynesianos,
mas ainda não uma economia muito estável”.
Em favor dos pontos de vista de inspiração keynesiana, sempre poderá dizer-se
que as despesas privadas não deixarão de apresentar um grau considerável de ins­
tabilidade, mesmo que se aceitem as conclusões de certas teorias acerca da fiinção-
consumo diferentes das de Keynes (permanent income hypothesis, life cycle hypothesis).
Com efeito, um (por vezes forte) factor de instabilidade reside nas taxas altamente
instáveis da ‘acumulação de capital’, quer por parte dos empresários, quer por
parte dos consumidores, sob a forma de bens duradouros. Esta instabilidade afecta
directamente as indústrias produtoras deste tipo de bens, c, através delas, o conjun­
to da economia, traduzindo-se em forte desperdício de recursos humanos e de
equipamentos se, perante uma quebra do investimento privado, as autoridades com­
petentes não adoptarem as medidas adequadas para evitarem a persistência de

614 Vale a pena referir o trecho da General Theory: "Uma das propriedades essenciais do sistema económico em
que vivemos é a de nâo ser violentamente instável, embora esteja sujeito a flutuações severas no que se refere
à produção e ao emprego. Na verdade, este sistema parece apto a permanecer durante um lapso de tempo
considerável num estado de actividade inferior ao normal, sem que haja tendência marcada para o relançamento
da actividade económica ou para o afundamento completo. Além disso, resulta claramente que o pleno emprego
ou mesmo uma situação vizinha do pleno emprego é tào rara como efémera. As flutuações podem amortecer-
se bruscamente, mas parece que elas se amortecem antes de terem adquirido uma amplitude extrema; e a
nossa sorte normal consiste numa situação intermédia que nâo é nem desesperada nem satisfatória". Cfr. J.
KEYNES, The General Th eo ry..., cit., 249/250.
615 Cfr. F. M O DIGLIAN I, "Keynesianism..., cit., 12-19.
AveLÀs N unes - 611

baixos níveis de produção e de elevados índices de desemprego. Perante econormas


em que predominam os preços administrados, consideravelmente rígidos à baixa,
nada justifica o longo tempo de crise que seria necessário aguardar para que a
economia regressasse automaticamente ao nível de equilíbrio, tanto mais que os
resultados das políticas de estabilização nos países capitalistas industrializados e a
qualidade dos conhecimentos e meios técnicos ao dispor dos economistas abonam
hoje em favor dos defensores das políticas anti-cíclicas.
M as também é verdade que o debate contribuiu para que muitos keynesianos
admitam que as políticas estabilizadoras podem, na prática, revelar-se desestabili-
zadoras e susceptíveis de ser manobradas ao sabor do ‘ciclo político’. Por outro
lado, talvez os primeiros keynesianos tenham sobrestimado as capacidades do
multiplicador, concluindo da discussão travada com os seus adversários que era
necessário reforçar as exigências na elaboração teórica e na articulação prática das
políticas de gestão da procura. E concluindo também que era correcto relativizar
a confiança nas potencialidades dessas políticas, moderando as ambições e a eufo­
ria dos que, embalados com os êxitos do período posterior ao segundo conflito
mundial (êxitos por eles creditados por inteiro às políticas de gestão fina da
econom ia), enterravam prematuramente o ciclo económico como coisa do passa­
do e anunciavam o advento do capitalismopost-cíclico.iAk
Embora pondo em relevo que vários estudos relativos ao comportamento das
economias capitalistas no período entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1973
abonam fortemente em favor das políticas de estabilização levadas a cabo nos EUA
e em outros países capitalistas industrializados 617, alguns dos mais representativos
neokeynesianos vêm advogando há anos a conveniência de introduzir “algumas limi­
tações ao uso da discretion, particularmente em termos de se esclarecer mais pre­

616 Cfr. SAM UELSON/NORDHAUS, ob. cit.. 405.


617 Cfr. F. M O DIGLIAN I, "The Monetarist.. cit., 11 -17 e R. C O R D O N , ob. cit., 361/362. Analisando algumasdifi-
culdades sentidas a partir de 1973, Modigliani explica-as como resultado dos choques externos (nomeada­
mente os suppiy shocks ligados à subida do preço do petróleo), perante os quais "nem mesmo a melhor gestão
da procura agregada pode compensar tais choques sem uma certa dose de desemprego a par de uma certa
dose de inflação". A isto devem acrescentar-se os erros cometidos no domínio da polrtica económica, por falta
de experiência em lidar com este tipo de choques, por deficiente conhecimento teórico e por influência
negativa das teses monetaristas da constant rate rule o f money growth, influência que se fez sentir em 1974/
75, tanto nos EUA como na Europa (cfr. F. M O DIGLIAN I, "Keynesianism.. ., cit., 4).
A mesma defesa das políticas keynesianas perante as dificuldades do período posterior a 1973 ê feita por J.
TO BIN , "Keynesian Theory.. cit., 10: "As políticas de gestão da procura não produziram certamente as guer­
ras no Médio Oriente, a vitória de Komeiny no Irão, os 'choques' relativos à oferta e aos preços como resultado
de dedisões da OPEP ou de outras coaliçóes de produtores de matérias-primas. Abandonar definitivamente a
polrtica de controlo da procura à luz destes acontecimentos extraordinários significaria ampliar e prolongar os
custos económicos à escala mundial".
6 1 2 - U m a I n tr o o u ç à o à E c o n o m ia P o lític a

cisamente os objectivos a cuja prossecução deviam dirigir-se os poderes discricioná­


rios e os processos através dos quais esses objectivos serão alcançados”.618
Reconhecendo algumas das suas limitações no plano teórico e no plano da
definição e da execução das políticas, os keynesianos empenham-se hoje em co­
nhecer melhor Mhow the real world works” (W . Heller), muito conscientes de
que, sendo desejável que ele funcione ainda melhor, o sistema capitalista (a econo­
mia dos países capitalistas industrializados desenvolvidos) funciona melhor depois
dos anos trinta. E porquê ? A resposta é clara: “Quanto mais activas, informadas e
conscientes de si próprias se tomaram as políticas monetárias e financeiras, tanto
mais estáveis e próximas do pleno emprego se foram tornando, em geral, as econo­
mias a que elas se aplicaram”.619
Com o é clara a resposta marcadamente diferente dada por M ilton Friedman.
Em diálogo com Walter Heller, ele retoma, em 1968, a argumentação que já
invocara em 1953 em Estocolmo, numa conferência em que tentava mostrar as
razões que faziam da economia americana uma economia “depression proof ”. Diz
Friedman: “Creio que a razão por que o mundo tem funcionado bastante melhor,
a razão por que não temos tido depressão neste período, não se deve às virtudes
positivas do fine-tuning que temos seguido, mas ao facto de termos evitado os erros
mais graves do período inter-guerras. Esses erros mais salientes foram as severas
deflações ocasionais da quantidade de moeda”. Recordando a sua tese sobre as
causas da Grande Depressão (a diminuição de cerca de um terço da quantidade de
moeda em circulação nos três ou quatro anos posteriores a 1929), Friedman con­
clui que, “desde então, não permitimos - e não o permitiremos no futuro previsível
- que as autoridades monetárias cometam o tipo de erros que as nossas autoridades
monetárias cometeram nos anos trinta”.620
E - Os neokeynesianos continuam a pôr em causa a existência de uma conexão
estreita e estável entre as variações da taxa de crescimento da oferta de moeda e as
variações do nível da produção e do rendimento. Os monetaristas, por seu turno,
continuam fiéis à sua tese de que a moeda é o factor determinante das variações do
nível de rendimento. Embora considere fundamentalmente errada a identificação
das suas conclusões através da afirmação de que “money is ali that matters”, M ilton
Friedman afirma claramente: “Considero a descrição da nossa posição como‘money

618 Cfr. F. M O DIG LIAN I, 'Some em pirical..., cit., 244. É uma posição que decorre da aceitação do ponto de vista
segundo o qual a taxa de crescimento da oferta de moeda influencia, em alguma medida, o nível do rendimen­
to. Contra a sugestão de Modigliani têm-se invocado, porém, alguns argumentos dignos de atenção (cfr. E.
SHAPIRO, 06. d l , 457/458).
619 Cfr. W . HELLER, oò. cit., 332.
620 Cfr. M. FRIEDMAN, 'R e p ly*..., c it , 336.
A v elã s N u n es - 6 1 3

is all that matters for changes in nominal income and for short-run changes in real
income’ como um exagero, mas que dá o tom exacto das nossas considerações”.621
A maior ou menor relevância atribuída ao papel da moeda no sistema econó­
mico influencia também a diferente posição de monetaristas e keynesianos acerca
da explicação (das origens) da inflação e da prioridade que uns e outros lhe atri­
buem entre os objectivos da política económica. Os keynesianos, embora levem
hoje a inflação muito mais a sério do que há vinte anos, continuam a considerar
prioritária a luta contra o desemprego (desemprego involuntário) e a prossecução do
pleno emprego. O s monetaristas, pelo contrário, continuam a defender os seus
pontos de vista de que uma grande parte do desemprego / desemprego voluntário, de
que a taxa natural de desemprego só pode baixar através de medidas estruturais de
longo prazo que nada têm a ver com as políticas de pleno emprego; de que a
tentativa de alcançar taxas de desemprego inferiores à taxa natural de desemprego
implica o preço insustentável de taxas de inflação muito elevadas e crescentes; de
que, em conformidade, deve ser atribuída prioridade absoluta ao combate à infla­
ção e à prossecução da estabilidade monetária.
F - E claro que ninguém poderá hoje defender que a essência da controvérsia a
que nos vimos referindo radica no diferente entendimento acerca de quais os instru­
mentos mais adequados da política monetária (o controlo da oferta de moeda, defen­
dido pelos monetaristas, ou o controlo das condições de concessão do crédito -
nomeadamente as taxas de juro -, advogado pelos keynesianos). Nem sequer pode
reduzir-se esta controvérsia à Velha’distinção entre monetaristas efiscalistas.
M as cremos que continua a ser verdadeira a afirmação de que os monetaristas
favorecem a política monetária (identificada como o conjunto de instrumentos ao
dispor das autoridades para controlar a oferta de moeda) e de que os keynesianos
continuam a preferir a política financeira à política monetária, à qual insistem em
atribuir, basicamente, o controlo da taxa de juro e das condições do mercado de
crédito, especialmente pela via das operações de open market. Para os keynesianos,
é maior a eficácia da política financeira, uma vez que as variações do nível das
despesas públicas, dos impostos e das transferências garantem um controlo mais
directo sobre o volume da procura global do que as variações das taxas de juro, às
quais correspondem variações incertas e aleatórias da procura (o investimento
privado pode ser muito pouco sensível às variações da taxa de juro).
Os monetaristas continuam a defender, no essencial, que a política financeira,
se não provocar variações da quantidade de moeda, não exerce qualquer influência
sobre a procura real global, o rendimento nominal ou o nível dos preços: os efeitos

621 Cfr. M. FRIEDMAN, "A Theoretical..., cit., 216/217.


6 1 4 - Um a In tro o u ç à o à Econom ia P o lític a

da política financeira - defende M ilton Friedman 622 -são “sem dúvida temporá­
rios e provavelmente de menor importância”.
Enquanto os monetaristas desvalorizam a importância da procura (cujas varia­
ções associam basicamente às variações da quantidade de moeda em circulação),
os neokeynesianos continuam a privilegiar a importância da procura agregada na
determinação da produção, do rendimento e do emprego (e das suas flutuações,
i.é, dos ciclos económicos), ligando as variações da procura agregada aos fluxos de
entrada na economia (investimento privado, despesas públicas, receitas das expor­
tações) e aos fluxos de saída da economia (aforro, cobrança de impostos, despesas
em bens importados). Em conformidade, os neo-keynesianos mantêm a sua tese
de que o aumento das despesas públicas reais e o incremento da procura agregada
se traduz, em períodos de depressão, em aumento da produção, do emprego e do
rendimento nacional que se projectará ao longo de vários anos (mecanismo do
multiplicador), no pressuposto de que a elasticidade da oferta em períodos de
desemprego de recursos produtivos será suficientemente elevada para responder
ao aumento da procura agregada (os preços poderão subir a curto prazo, mas
baixarão a médio e a longo prazos, ao contrário do que pressupõe a long-run
quantity theory).623
G - Com o advento da teoria das expectativas racionais, assistiu-se a uma valo­
rização, no quadro da teoria económica, do problema da distinção entre curtoprazo
e longo prazo, do problema do tempo e do problema da perspectivação do futuro
(ou da formulação das expectativas acerca do futuro) por parte dos agentes econó­
micos. E estas foram questões que ganharam relevo também no âmbito da con­
trovérsia entre keynesianos e monetaristas.
Os keynesianos adoptam, desde Keynes, uma óptica de curto prazo. Segundo
Joan Robinson, Keynes costumava dizer que o estudo das “questões de longo prazo
eram coisa de estudantes”. 624 E ficou famosa a sua sentença de que “a longo prazo
estaremos todos mortos”.
M ilton Friedman, por sua vez, torna claro que “tende a adoptar uma perspecti­
va de longo prazo e a colocar maior ênfase nas consequências últimas e permanen­
tes das políticas do que nas consequências transitórias, imediatas e possíveis”. 625 E
dos seus trabalhos teóricos resulta que a dicotomia curto prazo/longo prazo marca

622 Cfr. M. FRIEDM AN , “Comments on the Critics", cit., 915-917. Cfr. também BRUNNER//M ELTZER, "An
aggregative..., cit..
623 Cfr. J. TREVITHICK, Como viver.. cit., 115-123; MODIGLIANI/ANDO, "Impacts.. ., cit.; TOBIN/BUITER, ob.
Cit., 302/303.
624 Cfr. J. ROBINSON, Filosofia..., cit., 88 .
625 Cfr. M. FRIEDMAN, "Why Economists Disagree".. ., c it, 8.
A v e lã s N unes - 61 5

de forma decisiva a ‘tensão’ do debate que vem travando com os keynesianos. Mas
se, para os monetaristas friedmanianos, “only long run matters”, para os defensores
das expectativas racionais, como vimos, não tem qualquer sentido a distinção curto
prazo/longo prazo. Todos os monetaristas, no entanto, desvalorizam os efeitos de
curto prazo da política económica (osfirst roundeffects) apostando nas mudanças
institucionais de longo prazo e valorizando os seus efeitos cumulativos (steady state
effects ou ultima te effects) .626
O s keynesianos assumem que a sua teoria económica e a sua política económica
assentam sobre problemas de curto prazo. Esclarecem alguns que o keynesianismo
se preocupa com o equilíbrio entre a oferta e a procura agregadas, década após
década, ano após ano, trimestre após trimestre, mas não diz grande coisa acerca dos
processos de longo prazo relativos ao desenvolvimento económico, os quais não
colocam, em regra, problemas do lado da procura, mas problemas do lado da oferta
(acumulação do capital, nível de educação e de preparação profissional da popula­
ção, espírito empresarial, investigação para o desenvolvimento, etc.).627 Outros, po­
rém, sustentam que o longo prazo não passa de uma sucessão de períodos de curto
prazo, não existindo de modo independente: a economia funciona com certos pro­
blemas e restrições e o modo como se resolvem os problemas de cada momento ou
de cada período curto é que condiciona a evolução futura da economia. O conceito
monetarista de longo prazo não passaria, para alguns, de “um mito teórico-utópico
no qual se resolveram todos os problemas do presente”.628
Entendem os monetaristas que o curto prazo não é relevante porque é de muito
curta duração. Para os keynesianos, trata-se de saber, exactamente, o que é o curto
prazo (semanas? meses? anos?). Isto porque é no curto prazo que se registam as
situações de desequilíbrio com os respectivos custos sociais.
Na óptica monetarista, ao abstrair-se do curto prazo para centrar a análise nas
condições do equilíbrio de longo prazo (segundo eles a única solução de equilí­
brio possível) abstrai-se também das variações de curto prazo das variáveis reais
(produção, desemprego), ignorando-se os custos sociais que lhes são inerentes.
Eles constituiriam como que o castigo necessário para a remissão dos ‘pecados’
dos períodos anteriores (‘pecados por obras’, porque concretizados nas políticas
activas anti-cíclicas de inspiração keynesiana).

626 Cfr. BRUNNER/MELTZER, 'A n aggregative...,cit., 97.


627 Neste sentido, na síntese de |. TOBIN , 'Keynesian Theory..., cit., 4, 'a economia keynesiana nâo pode remediar
a miséria do Blangladeshou da Tanzânia: o seu problema assenta claramente na baixa produtividade e não
certamente em uma procura insuficiente".
628 Cfr. P. M ELLER, 06 . c/f., 404-406, onde podem ver-se outras referências.
6 1 6 - U m a I n tr o o u ç à o à E c o n o m ia P o lític a

M as os keynesianos perguntam: como se compara a perda de bem-estar no


presente com o eventual bem-estar mais elevado no futuro? E quanto dura este
presente de penitência? E quando chega o futuro redentor? Os keynesianos enten­
dem que uma das tarefas da política económica consiste precisamente em reduzir
ao mínimo os custos de ajustamento de curto prazo, porque estes custos existem,
“mesmo quando os agentes económicos tenham expectativas racionais durante mil
anos seguidos”.629
/ / - Os melhores especialistas defendem actualmente - com a concordância do
próprio M ilton Friedman - que o que verdadeiramente separa os monetaristas dos
não-monetaristas 630 é o papel diferente que uns e outros atribuem às políticas de
estabilização.631
Defendem estes últimos o fundamental da mensagem keynesiana, segundo a
qual as economias capitalistas, dada a instabilidade das despesas privadas, são eco­
nomias (altamente) instáveis, pelo que carecem de ser estabilizadas, podem ser esta­
bilizadas e devem ser estabilizadas, mediante o recurso a adequadas políticas
monetárias e financeiras.
Sustentam os primeiros que a economia privada é intrinsecamente estável, o
que torna dispensável qualquer política de estabilização; que políticas deste tipo,
ainda que consideradas necessárias, não deverão ser levadas a cabo, já que delas só
poderão resultar factores adicionais de instabilidade; que deve desconfiar-se da
capacidade dos governos para escolher as medidas adequadas e para as pôr em
prática em tem po oportuno e até às últimas consequências, pelo que deverá afas­
tar-se a sua intervenção com objectivos anti-cíclicos, mesmo que se aceitassem
como globalmente positivos os resultados das políticas de estabilização.
Mas o que verdadeiramente está em causa nesta controvérsia são diferentes con­
cepções a priori acerca da natureza das economias capitalistas e acerca das funções que
devem caber ao estado capitalista no domínio da economia. Na síntese de Mark Blaug, a
persistência da controvérsia “só pode explicar-se em termos de um certo ‘núcleo’ muito
profundo de desacordo a respeito da capacidade de auto-ajustamento do sector privado
das economias mistas e, por conseguinte, a respeito da medida em que as políticas
financeira e monetária são, de facto, estabilizadoras ou desestabilizadoras”.632

629 Assim, F. Hahn, apud P. M ELLER, ob. cit., 405.


630 Utilizamos estas designações apesar dc reconhecermos que a distinção por elas insinuada pode conter ele­
mentos equívocos. Cfr. R. G O R D O N , ob. cit., 336.
631 Vejam-se, a este respeito, as sínteses de F. M O DIGIIANI, "Liquidity..., cit., e “Keynesianism.. ciL; R. GORDON,
ob. c it , 336ss; BAUM OUBLINDER, ob. cit., 255ss; D . lA ID IE R , 'Monetarism..., cit., 18ss; F. H A H N , ob. cit.,
7/8; VANE/THOMPSON, ob. cit., 190 ss; P. PITTAe C U N H A , ob. ciL, 431/432.
632 Cfr. M. BLA U G , L i metodologia... , cit., 243.
A v elãs N u n e s - 6 1 7

Os keynesianos entendem que os mecanismos automáticos actuam com (mui­


to) atraso, funcionam lentamente e não são de inteira confiança quanto aos resul­
tados. A defesa da possibilidade de existirem situações de equilíbrio abaixo do
pleno emprego não é mais do que a afirmação de que não existe nenhum mecanis­
mo nas economias capitalistas que garanta o pleno emprego de todos os recursos.
Os monetaristas, ao contrário, pressupõem a existência de um “frictionless Frie-
dmanesque world without price, wage and exchange rigidities” (W . Heller), que
representa o regresso às concepções pré-keynesianas da estabilidade do sistema (even­
tuais perturbações têm a sua origem nas políticas anti-cíclicas e passam sempre por
variações da quantidade de moeda) e da sua capacidade para regressar automa­
ticamente à única posição de equilíbrio admissível: o equilíbrio de pleno emprego.
Nestes termos, é razoável que os neokeynesianos continuem a entender ser
necessário que o estado capitalista se assuma como protagonista da vida económi­
ca, enquanto agente activo do crescimento e regularizador das flutuações cíclicas
da economia, empenhado na prossecução dos objectivos do pleno emprego e da
redistribuição do rendimento.
Diferentemente, a “Chicago-style market economics” (Samuelson) insiste na
afirmação da sua fé no laissezfaixee na sua desconfiança relativamente à interven­
ção do estado na economia, à margem de regras e de limites rigorosamente defini­
dos e no âmbito de soluções institucionais que garantam o cumprimento daquelas
regras e o respeito destes limites.
O que está em causa, em última instância, é um dos pontos fundamentais do
neoliberalismo reinante: a ideia de que o mercado é o único mecanismo racional de
afectação de recursos escassos a usos alternativos, nele se realizando o principio
universal de racionalidade inerente à natureza humana, que o marginalismo impri­
miu no código genético do homo oeconomicus (um agente racional maximizador).
Os monetaristas vão mais longe e sustentam que o mecanismo dos preços é o
único instrumento com base no qual se podem analisar e explicar todos os fenóme­
nos sociais, reduzindo toda a vida humana a um problema de preços que o mercado
resolve espontânea e naturalmente, da única forma racional (e justa). Karl Brunner
afirma-o de forma impressiva: “o princípio básico do monetarismo é a reafirmação
da relevância da teoria dos preços para compreender o que acontece na aggregate
economics. O nosso ponto fundamental reside em que a teoria dos preços é o paradig­
ma crucial - na realidade o único paradigma - que os economistas têm. Podemos
utilizar este paradigma para explicar toda a gama de fenómenos sociais. Não acredi­
to numa espécie de ‘shoe box approach’ segundo a qual os problemas se distribuem
por diferentes disciplinas, como a ciência política, a economia, a sociologia. Isto não
faz muito sentido. A classificação não se refere a disciplinas alternativas. Pode ser
6 1 8 - U m a I n tr o o u ç à o à E c o n o m ia P o lític a

entendida utilmente como referindo-se a diferentes espécies de problemas - diferen­


tes assuntos - susceptíveis de ser abordados com a mesma análise social básica de­
senvolvida no domínio da ciência económica.”633
/ - A oposição entre o keynesianismo e as correntes monetaristas radicalizou-
se, como já vimos, com o desenvolvimento das teses da nova economia clássica (NCE),
a ponto de os defensores desta corrente entenderem que não há lugar para Keynes
depois de Lucas. O “Lucasian world” assumido pelos adeptos da N C E é, já o disse­
mos, uma economia cujos pilares fundamentais são o “instantaneous and conti­
nuous market clearing” e a hipótese das expectativas racionais, perante a qual a
política económica não só é ineficaz como não faz qualquer sentido.
Alguns neokeynesianos reconhecem que se trata de “uma construção altamente
engenhosa, e isso talvez explique porque é que ela exerce um tão grande poder de
atracção sobre as jovens gerações de macroeconomistas”.634
Outros reconhecem que esta “contra-revolução” (Samuelson) veio obrigar os
neokeynesianos a encarar com mais cuidado o problema das expectativas e o pro­
blema da reacção das pessoas às políticas económicas. Compreendeu-se que as
pessoas ‘aprendem a lição’ rapidamente, pelo que a solução para os problemas dc
ontem pode não valer para problemas idênticos de hoje. H á que ter cuidado com
a aplicação mecânica de soluções pré-fabricadas e ‘prontas-a-usar’.63S
Os neokeynesianos admitem mesmo, em geral, que os pressupostos da perfeita
flexibilidade dos preços e das expectativas racionais podem ‘funcionar’ bem na
abordagem de auction markets altamente organizados, como certos mercados fi­
nanceiros (bolsas de valores, nomeadamente). Mas recusam a possibilidade da sua
aplicação à generalidade dos mercados de bens e serviços c ao mercado do traba­
lho, caracterizados por amplos e estruturais factores de rigidez, por imperfeições
de vária ordem e pela presença de grande número de contratos a longo prazo
(explícita ou implicitamente), que não se compadecem com a imediata flexibi­
lidade das condições neles fixadas.636 Os neokeynesianos recusam, pois, em abso­
luto, por “escandalosamente contrários à realidade”, os pressupostos em que assenta
esta “revolução de palácio dentro do campo monetarista” (Modigliani), rejeitando,
do mesmo modo, as suas conclusões sobre a “policy ineffectiveness” e a inutilidade
da política económica.

633 Depoimento em A . KLAM ER, ob. cit., 183/184.


634 Cír. F. M O DIGLIAN I, "Keynesianism..., cit., 26.
635 Cír. SAM UELSON/NORDHAUS, ob. cit., 420.
636 Cfr. F.M O D IGLIA N I, “Keynesianism ...,cit., 25 2 8 eSA M U ELSO N /N O RD H A U S,o b .cit., 420/421.
A v elãs N u n es - 6 1 9

Recusando qualquer fundamento à do nothing rule friedmaniana e à ideia da morte


da política económica (implícita nas teses dos adeptos da N EC), os neokeynesianos
permanecem fiéis à necessidade da política económica e acreditam na possibilidade de
aperfeiçoar a sua base teórica e as suas técnicas, a sua capacidade de previsão, de
diagnóstico e de acção correctiva. À pergunta de Samuelson “Was the keynesian revo-
lution ali a big mistake?”637, a resposta dos neokeynesianos é frontalmente negativa.
“Devemos rejeitar categoricamente - escreve Modigliani638 - o apelo monetarista para
atrasar o relógio quarenta anos abandonando a mensagem fundamental da General
Theory. Devemos antes concentrar os nossos esforços para tentar que as políticas de
estabilização sejam no futuro mais eficazes do que o têm sido no passado”.
Tendo em conta a realidade da economia dos EUA e da generalidade dos
países capitalistas desenvolvidos já durante o ‘reinado’ das dourinas neoliberais
(coexistência de taxas elevadas de desemprego com a estagnação económica), Ja­
mes Tobin sustentou, em 1989, que essa realidade “atribui renovada credibilidade
à teoria e à política keynesianas”.639 Dir-se ia, parafraseando o título de um livro
de G . K. Shaw, que a ‘revolução keynesiana tem que assumir, no quadro do capi­
talismo contemporâneo, a natureza de uma “revolução permanente”.640
J - Poderemos dizer que esta “furiosa controvérsia” foi um “debate inútil”? A
pergunta foi formulada por M ark Blaug em 1980. E a resposta deste autor não
andará longe da positiva. “Retrospectivamente - escreve ele 641 -, o debate das duas
últimas décadas entre keynesianos e monetaristas há-de considerar-se como uma
das controvérsias mais frustrantes e irritantes de toda a história do pensamento
económico, uma controvérsia que recorda com frequência as piores disputas me­
dievais. (...) Grande parte do debate consiste em falar entre linhas e por vezes é
difícil apurar o que realmente se está a discutir, dificuldade sentida inclusive pelos
mais directos protagonistas da discussão”.

637 Cfr. P. SAMUELSON, "Evaluation.. ., cit.,, S.


638 Cfr. F. M O DIGLIAN I, "The Monetarist Controversy..., c it , 18.
639 Cfr. J. TOBIN, "Keynesian Theory..., ciL, 10.
640 Cfr. G . SHAW, Keynesiàn Econom ics..., cit.. No contexto do processo de integração económica por que passa
a Europa comunitária, não faltam razões, no entanto, para se prever a necessidade de profundas alterações no
instrumental analítico e nas técnicas da política económica. Em um número da Rivista d i Politíca Economica
de Abril/l 989, dedicado a "Keynes and the Economic Policies in the 80's", escreve Mario ARCELLI, "Keynes
and..., cit., 71: "Amanhã, o processo de integração europeia, no sentido da união monetária, poderá privar os
países da sua autonomia do domínio da polrtica monetária e reduzir a capacidade para utilizar políticas finan­
ceiras na hipótese de a harmonização dos sistemas fiscais vir a concretizar-se. Haverá então lugar para outras
políticas económicas e para os problemas de coordenação das grandes áreas internacionais. E difícil antecipar
o futuro, mas é razoável esperar que novos tipos de análises e novos instrumentos conceptuais irão apoiar as
decisões, num mundo que será muito diferente do de Keynes*.
641 Cfr. M . BLA U G , La m etodologia...,cit., 242-248.
6 2 0 - U m a I n tr o o u ç à o à E c o n o m ia P o lític a

Por nossa parte, cremos que uma certa ‘violência, um certo ‘furor que tem
marcado, frequentemente, este debate é consequência de ele se travar, em boa
medida, no terreno dos pré-supostos, das concepções a priori, das convicções. O que está
em causa, ao fim e ao cabo, são diferentes concepções acerca da economia e da
sociedade e, de modo particular, acerca do papel do estado perante a economia e
perante a sociedade. Os monetaristas e os neoliberais em geral são fiéis ao ideário
liberal do laissezfaire, da mão invisívele da lei de Say; os keynesianos não confiam
nos mecanismos automáticos da economia e atribuem ao estado um papel impor­
tante no domínio da promoção do desenvolvimento económico, do combate ao
desemprego e da promoção do pleno emprego, no domínio da redistribuição do
rendimento e da segurança social.
Estamos, pois, perante um debate em que qualquer dos intervenientes dificil­
mente pode despir as suas vestes ideológicas. Cremos, por isso, que valerá a pena, a
concluir o nosso trabalho, tentar analisar sob este ângulo o debate de que nos ocupá­
mos. Não ignoramos os riscos inerentes a uma tal empresa. Mas acreditamos que
vale a pena enfrentá-los, abandonando, como propõe Meghnad Desai, “the aesthetic
and scientific satisfaction of conducting a debate objectively and at leisure”.642
Acreditamos que o esclarecimento da matriz ideológica das questões mais
marcantes da controvérsia entre as duas correntes do pensamento económico aju­
dará a esclarecer melhor o alcance do debate teórico que procurámos acompanhar.
Como James Tobin, pensamos que “as recomendações monetaristas em matéria de
política económica resultam menos de considerações teóricas ou de resultados
empíricos do que de óbvios juízos dc valor. As preferências consistentemente reve­
ladas nessas recomendações são no sentido de minimizar o sector público e de
pagar um preço elevado em termos de desemprego para estabilizar os preços”.643

642 Cfr. M. DESAI, TesUng..., c iL , 13. Ao fazê-lo, talvez estejamos, afinal, a seguir na esteira de Keynes, ao menos
para quem faça uma leitura da 'revolução keynesiana' como a que dela faz |oan Robinson, que merece o
nosso acordo: "Ao tomar impossfvd acreditar por mais tempo na conciliação automática de interesses conflituantes
num todo harmonioso, a General Theory pôs a claro o problema da escolha e do julgamento que os neoclássicos
tinham conseguido escamotear. A ideologia que pretende acabar com todas as ideologias esboroou-se. A
ciência económica tomou-se uma vez mais economia política* (Cfr. J. ROBINSON, Filosofia..., cit., 86).
643 Cfr. J. TOBIN, " R e p ly ...,c iL ,336.
A v e lã s N u n e s - 6 2 1

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s

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6 3 2 - U m a In tro d u ç ã o A E c o n o m ia P o lItic a

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de 1965), em J. TOBIN, Essays.., cit., 471-496;
- “Money and Income: Post Hoc Ergo Propter Hoc?”, em QuarterlyJournal o f Economics,
vol. LXXXIV,n° 2, Maio/1970,301-317 (resposta a M. Friedman e replica dej. Tobin na
mesma revista, pp. 318-327 e 328/329, respectivamente);
- “Inflation and Unemployment”, em The American Economic Review, vol. LXII, 1972,
1-18;
- “Reply - Is Friedman a Monetarist?”, em J. STEIN, Monetarism, cit., 332-336;
- “Comment on the Paper by Professor Laidler”, em The EconomicJournal, vol. 91, Março/
1981,29-42;
- “The Monetarist Counter-Revolution Today- An Appraisal”, em The EconomicJour­
nal, vol. 91, Março/1981,29-42;
- “Stabilization Policy Ten Years After”, cm Brooking Papers on Economic Actitity, n.° 1/
1980 [utiliza-se a versão publicada em Problèmes Économiques, n.° 1.762, 24.2.1982,
26-32];
- Essays in Economics (Vol. 1: Macroeconomics),The M IT Press, 1987;
- “Keynesian Theory: Is it still a useful Tool in the Economic Reality ofToday”, cm Rtvista
di Politico Economica, Ano LXX1X, n° IV, Abril/1989,3-10.
TOBIN, James and Willem BU1TER - “Long-run effects of fiscal and monetary policy
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TREVITHICK, James A. - Como viverem inflação, trad, port., Dom Quixote, Lisboa,
1981 (a partir da ed. inglesa de 1980).
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VACHET, André - L'idéologie libérale — L'individu et sa propriété, Anthropos, Paris,
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VANE, Howard R. and John L. THOM PSON - Monetarism - Theory, Evidence and
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U ma In t r o d u ç ã o à

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A n tó n io Jo sé A velãs N unes
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lhe Church o f the Salute
1730 U m a In t r o d u ç ã o à

Econom ia P o l ít ic a

“A ciência económica pressupõe sempre, a nosso ver, uma determinada


concepção do homem. O que acontece é que a nossa disciplina nunca elaborou
o enquadramento filosófico deste seu pressuposto implícito. Antes da
revolução científica e da revolução industrial - antes, portanto, do
desenvolvimento da Economia Política como ciência autónoma -, a filosofia e
a teologia ocupavam-se do homem na sua totalidade. Mas aquelas revoluções’
e o desenvolvimento da Economia Política relegaram para um plano
secundário a importância da reflexão teológico-filosófica, a única capaz de
abrangerem toda a dimensão a problemática da natureza humana.
Mais uma razão, se bem vemos, para que a ciência económica, enquanto
ciência social, se assuma como um ramo da filosofia social’, tomando o
homem na sua verdadeira e única dimensão, a de pessoa confrontada com
escolhas morais’. (...)
A Economia Política não deve confundir-se com uma técnica’ e muito
menos com uma técnica esotérica: os problemas da economia não são. na sua
base, problemas técnicos que possam ser resolvidos por uma qualquer
Economia técnica’; são problemas políticos, que têm de ser equacionados e
resolvidos na esfera da política. As realidades económicas, o processo
económico em toda a sua complexidade devem ser analisados no contexto
social, político e jurídico em que se inserem.”

A n tó n io Jo sé Avelãs N unes

Q u a r t ie r l a t in
U m a In t r o d u ç ã o à

E c o n o m ia P o l ít ic a

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