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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

Centro de Estudos e Investigação Científica

COMPÊNDIO
DE ÉTICA
Função Pública,
Empresas e Negócios
Arne Wiig • Inge Amundsen • Ivar Kolstad
Luís de França • Vicente Pinto de Andrade
TÍTULO
Compêndio de Ética – Função Pública, Empresas e Negócios
AUTORES
Arne Wiig
Inge Amundsen
Ivar Kolstad
Luís de França
Vicente Pinto de Andrade
EDITOR
Universidade Católica de Angola
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem, 24,
Bairro Palanca, C.P. 2064 Luanda
Web site: www.ucan.edu
Email: info@ucan.edu
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LeYa, S.A.
CAPA
LeYa, S.A.
IMPRESSÃO E ACABAMENTOS
Multitipo
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offset, fotografia, etc.) sem o consentimento escrito da Editora, abrangendo esta proibição o texto,
a ilustração e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial.

LUANDA, ABRIL DE 2016 • 1.a EDIÇÃO


1.a TIRAGEM (3000 exemplares)
Registado na Biblioteca Nacional de Angola sob o n.o 7438/2016

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 7

PARTE I – ÉTICA NO SECTOR PÚBLICO


Artigo 1 – Introdução à ética no sector público
Ética no sector público . ................................................................................ 11
Normas internacionais e legislação internacional......................................... 23
Normas democráticas ................................................................................... 29
Reformas administrativas ............................................................................. 38
Conflitos de interesses .................................................................................. 48
Corrupção .................................................................................................... 56
Observações finais ........................................................................................ 65

Artigo 2 – A ética da governação empresarial em organizações


do sector público. Teoria e auditoria
Introdução .................................................................................................... 68
Ética e governação empresarial .................................................................... 69
Conclusão .................................................................................................... 75
Bibliografia .................................................................................................... 76

Artigo 3 – Avaliação da infra­‑estrutura para a gestão de ética no serviço


público na Etiópia: desafios e exemplos para os reformadores
Introdução .................................................................................................... 79
Por que motivo a ética integra a agenda da reforma? .................................. 80
O contexto para reformas na Etiópia . .......................................................... 82
Quadro para avaliação da infra­‑estrutura de ética . ..................................... 83
Quadro legal – o desafio da aplicação .......................................................... 86
Mecanismos de responsabilização – desempenho misto . ........................... 87
Instituições emergentes da sociedade civil .................................................. 89
Códigos de ética . .......................................................................................... 90
Condições do serviço público ....................................................................... 91
Mecanismos para coordenação e cooperação ............................................. 92
Conclusões e ilações ..................................................................................... 93
Bibliografia . .................................................................................................. 94

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Artigo 4 – Mais do que um mau presságio: avaliar o papel que os códigos
de ética desempenham para garantir a responsabilização dos decisores
do sector público
Imparcialidade .............................................................................................. 97
Transparência ............................................................................................... 99
Responsabilidade . ........................................................................................ 102
Eficiência e eficácia ....................................................................................... 104
Conflito de interesses ................................................................................... 106
Conclusão .................................................................................................... 107
Bibliografia . .................................................................................................. 109

PARTE II – ÉTICA NAS EMPRESAS

Capítulo I – Introdução geral à ética empresarial ......................................... 111

Capítulo II – Mercados e empresas na Encíclica Caridade na Verdade ........ 120

Capítulo III – Doutrinas éticas como suporte da ética empresarial .............. 134

Capítulo IV – Os fundamentos da sociedade liberal – o utilitarismo . .......... 139

Capítulo V – Immanuel Kant, uma revolução Copernicana na filosofia


e na ética . ................................................................................ 143

Capítulo VI – John Rawls e o nascimento da ética empresarial . .................. 148

Capítulo VII – Empresas éticas e empresas de responsabilidade social ....... 155

Capítulo VIII – Crescimento económico e desenvolvimento humano . ........ 161

Capítulo IX – A ética empresarial como factor de integração


na globalização em curso ........................................................ 167

Capítulo X – Finança ética. Uma visão e um conceito novo ......................... 174

Capítulo XI – Muhammad Yunus, o criador do microcrédito ....................... 181

Capítulo XII – “O capitalismo é uma estrutura meio desenvolvida”,


Muhammad Yunus ................................................................ 187

Bibliografia ................................................................................................... 195

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PARTE III – ÉTICA NOS NEGÓCIOS

Introdução .................................................................................................... 197

Texto 1 – Avaliando a ética de negócio: teorias éticas normativas . ............. 200

Texto 2 – A responsabilidade social do negócio é aumentar os seus lucros .... 252

Texto 3 – Por que as empresas não deviam sempre maximizar os lucros ..... 260

Texto 4 – Quanto custa uma posição de superioridade ética?


(Dilemas éticos em ambientes competitivos) . .............................. 275

Texto 5 – Teoria das finanças empresariais . ................................................. 286

Texto 6 – Transformando os nossos estudantes: o ensino da ética


comercial pós­‑Enron ...................................................................... 302

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APRESENTAÇÃO

Todo o Homem é confrontado na sua vida em sociedade com dilemas de


ordem ética, umas vezes, de maior, outras, de menor complexidade. A escolha
entre o “certo” e o “errado” é uma constante na vida das pessoas. Mesmo para
aquelas que se decidem entre o “permitido” e o “interdito”. Os comportamentos
são pois determinados por uma ideia ética subjacente. A ética é de grande impor-
tância para a vida das pessoas e das sociedades, sendo um traço característico
daquelas sociedades que são mais fortes, coesas e solidárias. A crise financeira
global que continua a afectar a economia mundial veio mostrar que a questão
ética é de actualidade e que é um pressuposto importante para o bom funciona-
mento das sociedades, da estabilidade das Nações e das Relações Internacionais.
A ética é pois um tema que vincula toda a sociedade e todas as sociedades.
E, apesar de uma incidência particular, em relação à função pública, ao mundo
empresarial e dos negócios, parece evidente que diz respeito a todos e é um
assunto de interesse dos cidadãos, em geral, que se manifestam constantemente
contra a corrupção e por transparência na gestão das relações públicas e das
empresas. Também no meio académico esse interesse se revela importante, quer
na relação professores/estudantes, quer como meio de combate à fraude.
No âmbito da cooperação do Centro de Estudos e Investigação Científica
(CEIC) da Universidade Católica de Angola (UCAN) e do Chr. Michelsen Institute
(CMI), a Statoil, companhia petrolífera norueguesa, a operar em Angola há 25
anos, financiou, no quadro da sua Responsabilidade Social Corporativa, a elabo-
ração e impressão de três compêndios sobre “Ética no sector público”, “Ética nos
negócios” e “Gestão de Recursos Naturais”, respectivamente, com a finalidade
de os distribuir entre os estudantes da Universidade Católica de Angola (UCAN) e
de contribuir, deste modo, para a transmissão de valores de transparência e boa­
‑governação, assumindo também o compromisso de introduzir nos seus planos
curriculares uma disciplina sobre ética.
Mais tarde, a Statoil, reconhecendo a acção reiterada da UCAN na divulgação
dos valores da ética e boa­‑governação, através de vários eventos públicos, soli-
citou o seu apoio para a disseminação desses valores e dos manuais por outras
Universidades e para um público mais vasto, e manifestou a sua disponibilidade
para financiar um programa nesse sentido. Discutido o desenho do programa por

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uma equipa constituída por elementos das duas instituições, o CEIC e a Statoil
mantiveram desde então uma frutuosa cooperação que se materializou na rea-
lização de um conjunto de palestras e disseminação desses manuais em várias
Universidades Angolanas.
A experiência acumulada, nesse período, proporcionou contactos com outras
instituições universitárias, procurando estimular o seu envolvimento, com vista a
suscitar um maior interesse da massa estudantil e dos docentes destas institui-
ções e revelou necessário a reelaboração do programa, tornando­‑o mais longo,
duradoiro e alargado a outros públicos, nomeadamente quadros e decisores
públicos, responsáveis de associações corporativas e até do grande público. As
linhas de força desse novo programa passavam por um novo plano de conferên-
cias, um plano de lobbing a favor da introdução da disciplina de Ética nas Uni-
versidades do país, a produção de um programa radiofónico e pela reelaboração
de um novo livro que resumisse e concentrasse os grandes temas dos três livros
supramencionados.
Este novo compêndio foi organizado a partir do conjunto de textos que foram
anteriormente agrupados em dois outros compêndios, um sobre a “Ética no sec-
tor público”1 e o outro sobre a “Ética nos negócios”2, que juntamente com o com-
pêndio sobre Natural Resource Management (Gestão de Recursos Naturais) eram
os materiais de suporte do projecto de disseminação dos valores da ética junto
dos estudantes universitários e organizações corporativas do tecido empresarial
nacional. Estes três compêndios eram distribuídos gratuitamente a todos os que
assistiam às conferências sobre ética, tendo servido assim de material de estudo
e consulta para estudantes, empresários e demais interessados ao longo dos últi-
mos anos.
No sentido de tornar estas matérias mais atractivas e de mais fácil consulta,
decidiu­‑se agrupar todos os textos de ética num mesmo compêndio que serviria
de livro para três domínios particulares da ética: os serviços públicos, as empre-
sas e os negócios3. Neste sentido, como estes textos abordavam sobretudo a
Ética na Função Pública e a Ética nos Negócios, juntamos­‑lhes a sebenta de “Éti-
ca Empresarial”, utilizada como material de apoio do curso de Ética na UCAN4.
Também, para lhe dar uma maior utilidade, eficácia e atractividade, tornando-o

1 Este compêndio tinha como editores Inge Amundsen, investigador sénior do CMI (Noruega)

e Vicente Pinto de Andrade da UCAN.


2 Este compêndio tinha como editores Ivar Kolstad e Arne Wiig, investigadores seniores do

CMI (Noruega) e Vicente Pinto de Andrade da UCAN.


3 Pretendeu­‑se harmonizar a organização interna do compêndio com os três domínios da ética

que o actual projecto de disseminação (2016­‑2017) alberga: o sector público, as empresas


e os negócios.
4 Esta sebenta foi elaborada por Frei Luís de França, professor dessa disciplina na UCAN.

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de mais fácil leitura, todos os textos que não eram em Português (originais ou
traduzidos) foram excluídos do novo compêndio para que este também não tives-
se muito mais do que 300 páginas e pudesse ter uma impressão mais cuidada.
Sabendo que o público­‑alvo deste compêndio seria um público heterogéneo e, a
maior parte das vezes, neófito em matéria de ética em geral, foram também pre-
teridos textos mais complexos sobre a relação entre natureza e empresa ou sobre
diversos impactos no desempenho empresarial, a partir de análises mais comple-
xas com recurso nomeadamente a cálculos econométricos, bem como estudos de
caso acerca da política de Responsabilidade Social das Empresas (RSE), nomeada-
mente petrolíferas5.
O presente compêndio que adopta, umas vezes, uma perspectiva descritiva,
outras, analítica e, até, crítica, procura dar uma visão alargada e diversificada
das teorias e questões éticas, buscando dotar os leitores de ferramentas para a
disseminação de valores e de boas práticas. Sendo as teorias éticas diversifica-
das, diferindo de ponto de vista sobre o que torna uma acção ética ou não­‑ética,
o compêndio aborda as teorias éticas padrão e traça as implicações destas no
domínio da função pública, das empresas e dos negócios.
Estes domínios compõem as três partes em que o compêndio está organizado.
A primeira sobre a ética nos serviços públicos está dividida em três momen-
tos: num primeiro, aborda, em linhas gerais, “os fundamentos e as noções bási-
cas da ética”, numa perspectiva normativa e dando relevo ao papel da Lei como
impulsionador do comportamento ético. Num segundo, descreve “aquilo que
molda a ética dos indivíduos”, ou seja, a “infra­‑estrutura” de ética e, num terceiro,
“o debate sobre o conflito de interesses e a corrupção”.
A segunda sobre a ética nas empresas ilustra os dilemas das empresas e dos
seus gestores entre o lucro fácil e a responsabilidade social destas, sendo certo
que esse seu comportamento ético depende igualmente da sua estrutura e da
existência de incentivos internos, quando não é fomentado através de regula-
mentação pública. O percurso sobre a ética das empresas vai de uma abordagem
geral à Teoria da Justiça de John B. Rwals, à abordagem do desenvolvimento
humano nos trilhos de Amartya Sen, passando pela Encíclica Caridade na Verdade,
pela Teoria do Utilitarismo e por Kant.
A terceira parte do compêndio trata da ética nos negócios a partir de diferen-
tes ângulos interligados, abordando as responsabilidades éticas das empresas
nos negócios, numa perspectiva normativa, contraposta à ideia da maximização

5 Nos anteriores compêndios havia uma parte completa dedicada à RSE nos sectores ligados

ao petróleo, gás e minas e um estudo sobre as empresas petrolíferas de serviços a operar em


Angola que sugeria que, na prática, a política de RSE das companhias petrolíferas é principal‑
mente conduzida por incentivos económicos (é bom para o negócio), mais do que por consi‑
derações éticas (é a coisa certa a fazer) e que estas companhias petrolíferas têm sido bastante
relutantes em tratar da questão da transparência.

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do lucro. No final, o compêndio fornece algumas ideias sobre como ensinar ética
dos negócios de uma forma transformadora, já que ensinar ética dos negócios
não tem como única finalidade a de aumentar a compreensão dos estudantes
de argumentos éticos, mas também a de produzir um impacto positivo no seu
comportamento através da integração do pensamento ético nas suas tomadas de
decisão como futuros líderes da sociedade angolana.
Este compêndio visa oferecer aos estudantes, aos professores e a todos os
interessados uma introdução relativamente abrangente e pormenorizada sobre a
ética no sector público, nas empresas, nos negócios (com destaque dos debates
mais candentes sobre o tema).
Desejamos que este compêndio seja uma ferramenta útil para todos.

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PARTE I
ÉTICA NO SECTOR PÚBLICO

ARTIGO 1
INTRODUÇÃO À ÉTICA NO SECTOR PÚBLICO

Inge Amundsen
Investigador Sénior do CMI

ÉTICA NO SECTOR PÚBLICO

Tem havido um debate científico considerável acerca do modo de fazer com


que o sector público funcione da melhor forma e, em particular, tem havido um
debate acerca do papel do Governo, das instituições reguladoras e de uma boa
governação nos países em vias de desenvolvimento. Com (muito) poder advém
(muita) responsabilidade, mas qual a dimensão e a forma de intervenção estatal
(regulação governamental) necessárias para o desenvolvimento económico, res-
ponsabilidade política, erradicação da pobreza e outros objectivos?
Este debate proporcionou uma melhor compreensão das responsabilidades
do sector público e do modo como deverá interagir e inter­‑relacionar­‑se com
Governos (eleitos), com cidadãos, com a sociedade civil, com empresas estran-
geiras, assim como nacionais e com instituições privadas. Além disso, a ética e
os princípios éticos podem ajudar as pessoas a tomarem melhores decisões, e
ajudá­‑las a avaliarem as decisões dos outros (como os funcionários públicos).
Grande parte deste debate tem­‑se centrado na “boa governação”, de modo
geral. A ética também tem integrado este debate, particularmente, o debate
sobre a ética profissional dos funcionários públicos e, em menor grau, a ética
profissional e pessoal dos políticos e dos detentores de cargos eleitos. Apesar de
a ética na função pública ser o enfoque principal deste compêndio, também abor-
damos a ética da esfera política.
A ética tem sido há muito tempo uma área de estudo controversa nos sec-
tores profissionais ligados ao Direito, Política, Filosofia, Teologia, Administração
Pública e em outras áreas de estudo. Alguns profissionais, no entanto, irão
rejeitar qualquer estudo ou teoria de ética como não pertinente para os seus

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

trabalhos, preferindo, em vez disso, confiar em leis, manuais para o pessoal e


descrições das funções para definir os limites das responsabilidades do sector
público. Essa perspectiva parece estar agora a perder terreno para o ponto de
vista que defende que os administradores públicos já não são, caso alguma vez
tivessem sido, técnicos especialistas, implementando simplesmente as decisões
políticas dos políticos. Em vez disso, os administradores públicos fazem exercício
de poder discricionário substancial (poder de tomar decisões) por si próprios, o
que afecta as vidas das pessoas directamente, de modo duradouro e por vezes
profundo. Adicionalmente podem existir razões para questionar a legitimidade
das regras e das decisões de política que os administradores públicos estão a
implementar.
Os administradores e os burocratas não podem evitar tomar decisões e, ao
fazê­‑lo, deverão tentar tomar decisões éticas. Os administradores têm poderes
discricionários que vão além dos manuais, ordens, descrições das funções e
enquadramento legal dos seus cargos e deveres, a ética profissional terá de ser
utilizada enquanto linhas de orientação, para além dos regulamentos formais. Os
administradores deverão, portanto, procurar uma compreensão sólida e abran-
gente das teorias e tradições éticas e procurar métodos de pensamento acerca
das dimensões éticas das suas tomadas de decisão.
Pode dizer­‑se o mesmo da política. A política é ainda menos regulada do
que a administração pública (as constituições e “o povo” são os reguladores dos
políticos, com menor influência quanto mais autocrático for o sistema político).
Ao mesmo tempo, os poderes formais e discricionários dos políticos são pratica-
mente ilimitados. O debate científico tem­‑se debruçado, em grande parte, sobre
como (ou se é possível) fazer com que os políticos e governantes governem para
benefício do povo (a Nação como um todo, benefícios económicos e sociais para
todos) ou apenas para eles próprios ou para satisfazer interesses especiais. Karl
Marx, por exemplo, defendeu que o Governo não era mais do que o comité exe-
cutivo da burguesia (a elite economicamente governante, a classe proprietária),
já as teorias liberais preocuparam­‑se com a restrição dos poderes do Estado
(como se pode ver na Constituição Americana).
Deste modo, durante determinado período de tempo existiu uma escola
“realista” no seio da ciência política que rejeitou qualquer componente moral
da tomada de decisões como ingenuidade, como uma imposição religiosa ou
por ser uma simples hipocrisia. Do mesmo modo, na economia, a perspectiva
padrão sobre os seres humanos tem sido a de homo oeconomicus, um homem
racional a tentar seguir os seus próprios interesses, com pouca consideração
pela ética.
Muitas pessoas ainda acreditam que a ética é demasiado fraca e demasiado
“simpática” para assumir uma real importância naquele que é visto como o

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PARTE I

mundo difícil, sujo e sem princípios da política. A ética é por vezes considerada
como ineficaz e como um embaraço para aqueles que pretendem obter uma
compreensão apropriada dos acontecimentos. A ética é também, por vezes,
considerada como negativa (dizendo às outras pessoas o que não deverão fazer),
não praticável (porque é suportada apenas pela consciência) e com maiores
probabilidades de apanhar o inocente que nela acredita do que os infractores
deliberados.
O realismo político ou “política do poder” engloba uma variedade de teorias e
abordagens, em que todas elas partilham uma crença em que os Estados (Gover-
nos ou elites governantes) são principalmente motivados pelo desejo de poder
económico, privilégios e domínio contínuo (incluindo segurança militar e territo-
rial) e não em ideais ou ética.
A era da política do poder está a desvanecer­‑se ou está a ser, pelo menos,
vigorosamente contestada. Stoker defende que “ver os cidadãos como actores
éticos não é a perspectiva de um idealista inveterado” (Stoker, 1992:376). A ética
voltou a integrar a ciência política e a economia, ainda que tal não tenha ocorrido
sem resistências. Parece ser óbvio afirmar que a reforma da governação através
da ética por si só será ineficaz, o panorama ético padrão necessita de ser acompa-
nhado por regulamentação e por reformas institucionais.
As questões éticas na ciência política tendem a ser complexas, desde questões
de micro nível pessoais a questões nacionais, comparativas e a relações interna-
cionais. Na política, as questões como os interesses públicos versus interesses
privados, os conflitos de interesses, o abuso do poder e a corrupção têm uma
relevância especial. No entanto, prevenir a má conduta é algo de tão complexo
como o fenómeno da má conduta por si só.
A presente introdução irá apresentar três tópicos principais. Em primeiro
lugar, irá descrever, em linhas gerais, os fundamentos e as noções básicas da ética;
em segundo lugar, irá descrever a “infra­‑estrutura” de ética (aquilo que molda a
ética dos indivíduos) e, em terceiro lugar, irá descrever dois temas em particular:
o debate sobre o conflito de interesses e a corrupção.

O que é a ética?

A ética é referente a princípios pelos quais se avalia o comportamento como


certo ou errado, bom ou mau. A ética é referente a normas bem fundamen-
tadas (de certo e de errado) e indica o que os seres humanos deveriam fazer.
A ética é um esforço contínuo de luta para garantir que as pessoas, e as institui-
ções às quais dão forma, correspondem a normas com fundamentos sólidos e
razoáveis.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

É proveitoso distinguir entre ética normativa e descritiva: a ética normativa


descreve as normas para qualificar actos como certos ou errados, já a ética des-
critiva é uma investigação empírica das crenças morais das pessoas6. Esta introdu-
ção refere­‑se, em grande parte, à ética normativa.
A legislação é um promotor básico do comportamento ético. A legislação, no
entanto, apenas estabelece um padrão mínimo de conduta ética. Simplesmente
por um determinado acto ser legal, tal não implica automaticamente que seja
ético (pense­‑se nas Leis do Apartheid, por exemplo). Do mesmo modo, um acto
ilegal também não é necessariamente imoral (por vezes, violar a Lei pode ser jus-
tificado).
Hausman e McPherson defendem que existem, pelo menos, quatro razões
específicas pelas quais os economistas se deveriam preocupar com questões
morais. Em primeiro lugar, a moralidade dos agentes económicos influencia os
seus comportamentos e, consequentemente, influencia os resultados económi-
cos (assim como as próprias perspectivas morais do economista podem influen-
ciar a moralidade e o comportamento de outrem). Em segundo lugar, de modo a
avaliar e a desenvolver a economia do bem­‑estar (que assenta em pressupostos
morais fortes e discutíveis) os economistas necessitam de dirigir a sua atenção
para a moralidade. Em terceiro lugar, para compreender o modo como a eco-
nomia influencia a política, é necessário compreender os compromissos morais.
Em quarto lugar, a economia positiva e a normativa encontram­‑se frequente-
mente interligadas e para compreender a relevância moral da economia positiva
é necessária uma compreensão dos princípios morais que determinam esta rele-
vância (Hausman e McPherson, 1993).

Filosofia moral

Tradicionalmente, a filosofia moral (também conhecida como ética normativa


e teoria moral) é o estudo do que faz com que as acções sejam certas ou erradas.
Estas teorias oferecem um princípio moral superior ao qual é possível apelar na
resolução de decisões morais difíceis.
Existem várias correntes de ética que diferem nos fundamentos (ou base
racional) para as suas várias considerações éticas. As três teorias normativas
mais conhecidas são a ética da virtude, o consequencialismo (em particular, o
utilitarismo) e a ética deontológica (em particular, o Kantianismo).

6 Por outras palavras, a ética descritiva tentaria determinar que percentagem de pessoas

acredita que matar está sempre errado, enquanto a ética normativa diz respeito a determi‑
nar se é correcto ou não manter esta crença.

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PARTE I

Ética da virtude

A ética da virtude centra­‑se no carácter do agente e não nas regras formais ou


nas consequências das acções. Os elementos-chave do pensamento ético da virtu-
de baseiam­‑se nas abordagens ao pensamento ético da antiguidade e do período
medieval. As raízes da tradição ocidental assentam nos trabalhos de Platão e de
Aristóteles, mas as virtudes também são importantes na tradição da filosofia
moral chinesa. A teoria da virtude recuperou a sua proeminência no pensamento
filosófico ocidental no século XX e é hoje uma das três abordagens dominantes às
teorias normativas.
A ética da virtude inclui um relato do objectivo da vida humana ou o senti-
do da vida. Para Platão e Aristóteles, o objectivo era viver em harmonia com os
outros e as quatro virtudes cardeais foram definidas como a prudência, a justiça,
a fortaleza e a temperança. A noção grega das virtudes foi posteriormente incor-
porada na teologia moral cristã. Os proponentes da teoria da virtude defendem,
por vezes, que uma característica central de uma virtude é ser universalmente
aplicável.

Consequencialismo

O consequencialismo é referente às teorias morais que defendem que as


consequências de uma acção, em particular, formam a base para qualquer juízo
moral válido acerca da mesma. Deste modo, de um ponto de vista consequencia-
lista, uma acção eticamente correcta é aquela que origina um bom resultado ou
consequência.

Utilitarismo

O utilitarismo é uma corrente específica da ética consequencialista. O utilita-


rismo é a noção de que o valor moral de uma acção é unicamente determinado
pelo seu contributo para uma utilidade global, ou seja, o seu contributo para a
felicidade ou para o prazer somado entre todas as pessoas. Quanto maior for a
felicidade ou o prazer para o maior número de pessoas, melhor. É consequencia-
lista porque o valor moral de uma acção é determinado pelo seu resultado, o que
implica que os fins justificam os meios. O utilitarismo também pode ser caracteri-
zado como uma abordagem quantitativa e reducionista da ética.
Utilidade – o bem a maximizar – tem sido definida por vários pensadores
como a felicidade ou o prazer (por oposição a tristeza ou dor). Também tem
sido definida como a satisfação de preferências. Poderá ser descrita como uma
forma de encarar a vida em que a felicidade e o prazer assumem uma impor-
tância fundamental. Na generalidade, a utilização do termo utilitário refere­‑se

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

frequentemente a um ponto de vista económico ou pragmático, algo limitado.


No entanto, o utilitarismo filosófico é muito mais amplo do que isto, por exem-
plo, algumas abordagens ao utilitarismo também tomam em consideração os
animais e as plantas para além das pessoas.

Ética deontológica

A ética deontológica também tem sido denominada de ética com base no


“dever” ou na “obrigação”. Os deontologistas acreditam que as regras éticas “obri­
gam as pessoas aos seus deveres” e observam se as próprias acções estão certas
ou erradas, por oposição a se as consequências dessas acções são certas ou erra-
das. A ética deontológica observa a nossa fidelidade ao princípio e rejeita as con-
sequências de um acto em particular quando determina o seu valor moral.
O Kantianismo (ou teoria ética Kantiana) é deontológico, girando por completo
em torno do dever e não dos sentimentos emocionais ou dos objectivos finais.
O conceito nuclear é o de “dever” ou aquilo que se deve fazer em determinadas
situações. O Kantianismo afirma que os actos verdadeiramente morais ou éticos
não se baseiam no interesse próprio ou na maior utilidade, mas num sentido
do “dever” e num sentido daquilo que é certo e justo a um nível mais amplo
(não obstante as consequências possíveis para o indivíduo e a sua utilidade para
outrem).
As Teorias Kantianas baseiam­‑se no trabalho do filósofo alemão Immanuel
Kant (1724­‑1804), para quem o “imperativo categórico” é um elemento nuclear.
Kant era da opinião que o ser humano ocupa um lugar especial no mundo e que
a moralidade pode ser resumida a um mandamento fundamental da razão, ou
imperativo, do qual todos os deveres e obrigações derivam. Um imperativo cate-
górico denota uma exigência absoluta e incondicional que exerce a sua autoridade
em todas as circunstâncias, tanto necessário como justificado enquanto fim por si
só.
Kant argumentou contra o utilitarismo e contra outras filosofias morais do
seu tempo, porque, por exemplo, um utilitarista diria que o assassínio é aceitável
se maximizar o bem para o maior número de pessoas; e aquele que se preocupa
com a maximização do resultado positivo para si próprio, encararia o assassínio
como aceitável ou como irrelevante. Portanto, Kant defendeu que estes sistemas
morais não podem induzir uma acção moral ou ser vistos como a base para os
juízos morais, pois baseiam­‑se em considerações subjectivas. Um sistema moral
deontológico foi a sua alternativa, um sistema que se baseia nas exigências do
imperativo categórico.
Como um exemplo destes imperativos categóricos ou deveres, o filósofo W.
D. Ross baseou­‑se na Teoria de Kant e indicou alguns deveres básicos. Dever­‑se­
‑á: dizer a verdade; corrigir os males que se causaram a outrem; agir com justiça;

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PARTE I

ajudar os outros, respeitando a virtude, a inteligência e a felicidade; dar graças; e


evitar prejudicar outrem. Nas palavras de Kant: “Agir de modo a tratar os outros
como fins e não apenas como meios”7.

Filosofia moral moderna

No século XX, as teorias morais tornaram­‑se mais complexas e já não se preo-


cupam unicamente com o que é certo ou errado, mas interessam­‑se por vários
tipos de status moral. W. D. Ross, por exemplo, defende que as teorias morais
não podem afirmar, em geral, se uma acção está certa ou errada, mas apenas se
tende a ser certa ou errada de acordo com um determinado tipo de dever moral
como a beneficência, fidelidade ou justiça. Outros filósofos questionaram se estes
princípios ou deveres podem ser articulados, de todo, a nível teórico, alguns
afastaram­‑se das teorias e dos princípios da ética normativa para a moralidade
descritiva e a meta­‑ética. Outros filósofos ainda defendem a teoria moral, argu-
mentando que não necessita de ser perfeita para capturar uma perspectiva moral
importante.
A filosofia moral moderna gira cada vez mais em torno de uma ética baseada
em reivindicações ou direitos, que são teorias éticas que se baseiam no Princípio
Fundamental dos Direitos Humanos e outros direitos ou reivindicações do indi-
víduo. As teorias baseadas em direitos defendem que as pessoas têm direito a
determinadas liberdades e direitos, como as teorias liberais que se centram nos
direitos das pessoas a certas liberdades, como a liberdade de expressão, de asso-
ciação religiosa, etc.
Estas teorias modernas estão a centrar­‑se nas reivindicações das pessoas
a certos direitos, como os Direitos Humanos, Direitos Civis, Direitos Políticos e
Direitos Sociais/Económicos. Como exemplo temos a Declaração Universal dos
Direitos Humanos das Nações Unidas. Outro exemplo de teorias baseadas em

7 Tome­‑se a corrupção como exemplo. A ética da virtude considera a corrupção como uma
quebra de vários imperativos categóricos, incluindo evitar prejudicar e agir com justiça, uma
vez que a corrupção consiste em favorecer algumas pessoas. Do mesmo modo, a ética deon‑
tológica (Kantianismo) irá observar o compromisso para com o princípio (e ignorar as con‑
sequências de um acto em particular) e irá defender que a corrupção envolve o logro e pre‑
judica a capacidade racional e moral dos envolvidos e, consequentemente, considerará a
corrupção como contrária à ética. As teorias consequencialistas como o utilitarismo, no en‑
tanto, poderão encarar a corrupção como ética. Alguns observadores defenderam que a cor‑
rupção é o equivalente a “dar graxa” e pode levar a que as burocracias funcionem de um
modo mais eficiente (o que é proveitoso para a maior parte das pessoas). Apesar de este ar‑
gumento ser raramente utilizado hoje em dia (o ganho de eficiência imediato é destruído pe‑
los danos a longo prazo causados ao sistema administrativo), o argumento pode exemplificar
uma perspectiva a partir da qual a corrupção pode ser vista como ética.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

direitos é a do “bem­‑estar”, que defende que as pessoas têm direito a um Estado


Providência que lhes possa fornecer segurança, serviços básicos de saúde, edu-
cação, emprego, habitação, etc. Uma característica importante de uma ética
baseada em reivindicações consiste no facto de implicar que as pessoas têm rei-
vindicações contra alguém e que este alguém tem, consequentemente, algumas
obrigações. Por outras palavras, só se pode dizer que uma pessoa tem um direito
significativo a alguma coisa (um serviço, liberdade ou direito) se os outros tive-
rem uma obrigação de não agir de forma a prejudicar o bem­‑estar, a liberdade ou
os direitos de ninguém (a obrigação negativa de não prejudicar outrem), e se os
outros tiverem a obrigação de agir positivamente para assegurar que os direitos
legítimos de determinadas pessoas são satisfeitos (a obrigação positiva de for-
necer aquilo a que os outros legitimamente têm direito, por exemplo, direitos de
bem­‑estar que impõem ao Estado o dever de auxiliar aqueles que não se conse-
guem sustentar a si próprios).
Deste modo, para uma pessoa ter um direito legítimo e significativo a alguma
coisa, os outros têm de se deparar com uma obrigação correspondente. Os direi-
tos éticos ou direitos legítimos de alguém atribuem, consequentemente, obriga-
ções ou deveres legítimos e responsabilidades a outras pessoas. Os direitos são,
fundamentalmente, reivindicações contra outrem, e os direitos­‑reivindicações
geram deveres correlativos por parte dos outros. Estes outros podem ser indi-
víduos, outros membros da sociedade, vários grupos e, geralmente, e cada vez
mais, o Estado.
Existem quatro divisões básicas de direitos. Direitos naturais que são próprios
de todas as pessoas por virtude de serem seres humanos. Os direitos naturais
aplicam­‑se a todas as pessoas, tal como o direito à vida. As outras pessoas, as
organizações, os Governos e a Comunidade Internacional, todos têm o dever de
assegurar os direitos naturais de toda a gente. Direitos convencionais (ou direitos
legais) geralmente aplicam­‑se no contexto de organizações sociais e políticas. Os
direitos convencionais aplicam­‑se a todos os membros de um grupo, como todos
os cidadãos de um Estado que dispõe de direitos constitucionalmente concedidos
aos cidadãos, como, por exemplo, o direito à livre associação.

Porquê ética no sector público?

Por “outros”, os detentores dos deveres e das obrigações de nos fornecer os


nossos direitos morais e legais, liberdades e bem­‑estar, entende­‑se geralmente
como sendo o Estado ou o sector público. Na teoria ética dos direitos positivos e
convencionais, o Estado não é apenas o principal fornecedor de direitos e de bem­
‑estar, mas é também o principal fornecedor de direitos conforme considerados

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PARTE I

pela maior parte das pessoas e na maior parte das circunstâncias. Por outras
palavras, os deveres negativos são uma obrigação de todos, já as obrigações
positivas são o dever de algum grupo ou instituição em particular, geralmente o
Estado.
O sector público ou o Estado é o Governo com todos os seus Ministé-
rios, departamentos, serviços, administrações central/regional/local, empresas
paraestatais e outras instituições. O sector público é composto por dois elemen-
tos nucleares, a nível político existem as instituições políticas onde as políticas
são formuladas e onde são tomadas as decisões (principais), e a nível adminis-
trativo existe a administração do sector público, que se encontra encarregada de
implementar estas políticas e decisões. Este nível da implementação também é
denominado por função pública ou por administração estatal ou de burocracia.
Contudo, a distinção entre a política e a administração não é completamente
clara, pois a administração também dispõe de bastantes poderes discricionários.
As actividades do sector público vão desde proporcionar segurança social,
administração do planeamento urbano e da organização da defesa nacional à
provisão de cuidados de saúde, de escolas e de estradas. Em princípio, não existe
limite para aquilo que o Estado pode fazer. Existe, no entanto, grande debate
relativamente a até que ponto deverá o Estado intervir, tanto nos sectores eco-
nómicos como na vida privada dos seus cidadãos. Esta é uma questão política e
o debate relativamente ao papel e à dimensão do Estado e do sector público (por
oposição ao sector privado) é provavelmente a linha divisória mais importante na
filosofia política, onde os socialistas preferem um envolvimento maior do Estado, os
libertários favorecem um envolvimento mínimo do Estado (segurança e defesa da
propriedade), já os conservadores e liberais favorecem um envolvimento do Esta-
do em alguns aspectos da sociedade, mas não em outros.
A ética é raramente objecto de preocupação no debate ideológico relativa-
mente ao papel do Estado, mas a ética é uma preocupação natural no debate
acerca do papel efectivo dos políticos e da administração estatal. Independen-
temente da dimensão e de que papel o Estado está a desempenhar (e se espera
que esteja a desempenhar), tanto os políticos como os funcionários públicos
detêm poderes discricionários, eles tomam decisões que afectam muitas pessoas.
Portanto, estas decisões dever­‑se­‑ão basear em algum tipo de ética. Por exemplo,
o público em geral (os cidadãos de um país) espera normalmente que os políti-
cos e funcionários públicos do país sirvam o interesse público, e que o sirvam de
forma racional e eficiente. Não se pretende que eles sigam interesses privados,
pessoais ou de grupos limitados.
A ética do sector público profissional dos funcionários públicos e dos políticos
é algo diferente da ética pessoal dos indivíduos. Para além dos valores e princí-
pios éticos pessoais dos indivíduos (como o respeito pelos outro, a honestidade, a

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

igualdade, a justiça, etc.), o funcionário público profissional depara­‑se com outro


contexto e com um conjunto adicional de valores e princípios. Apesar de o sector
público ser um labirinto de entidades com funções, estrutura hierárquica, níveis
de responsabilidade e culturas éticas diferentes, nós estamos à procura destes
princípios “universais” ou básicos do serviço público.
Existem algumas diferenças entre a ética no sector público e a ética no sec-
tor privado (empresas). O objectivo de uma empresa privada é, geralmente, ter
lucro, já o sector público destina­‑se a desempenhar funções para a sociedade
como um todo, de acordo com as prioridades gerais e políticas. Por exemplo, uma
empresa privada pode optar por doar uma parte dos seus lucros para caridade, já
uma entidade pública pode encontrar­‑se proibida de realizar tal acto de generosi-
dade com os fundos públicos (sem que disponha de um mandato específico para
o efeito). O contexto é diferente e os princípios de operação entre os sectores
público e empresarial diferem.
Segundo Kinchin (2007), a ética do serviço público baseia­‑se (deverá basear­
‑se) em cinco virtudes básicas: justiça, transparência, responsabilidade, eficiência
e ausência de conflito de interesses. Existem, no entanto, outros princípios de
funcionamento e os funcionários públicos deparam­‑se com vários dilemas, por
exemplo, quando a ética privada dos burocratas colide com a ética do seu traba-
lho profissional público ou com a cultura organizacional.

Os “mundos diferentes” dos princípios éticos

O debate sobre a ética no sector público tem apresentado tendência a


debruçar­‑se, por um lado, sobre os princípios do comportamento ético nas enti-
dades públicas e sobre o carácter ético das pessoas na administração pública (se
as pessoas e se os seus actos são bons ou maus). Por outro lado, o debate está
a mudar lentamente a sua atenção para as dimensões contextual ou situacional
que fazem com que as pessoas se comportem de modo mais ou menos ético,
particularmente, num meio profissional como o serviço público. As variáveis (con-
textual e situacional) são dimensões essenciais e produtivas no estudo da ética
governamental.
No debate acerca da dimensão contextual, podemos distinguir entre o con-
texto geral (como a ideologia prevalente, a estrutura da hierarquia, mecanismos
de controlo existentes e cultura política), e o contexto particular ou específico de
cada situação (como ordens específicas, tarefas atribuídas, relações interpessoais,
questões políticas e decisões particulares). O contexto é constituído pela constela-
ção de influências que exercem pressão sobre o processo de reconhecimento (ou
de não reconhecimento) dos princípios éticos em qualquer tomada de decisões

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PARTE I

específicas; por outras palavras, o contexto são as forças que condicionam as prio-
ridades morais no serviço público.
O carácter ético de um indivíduo pode ser imprevisível e ténue, mas a base
ética débil de um indivíduo pode ser ultrapassada e a sua ética tornar­‑se significa-
tiva e direccional, quando convergem as pressões estruturais e de um meio par-
ticular. Pode, no entanto, existir um conflito entre o sistema de crenças (carácter
ético) do indivíduo e as acções que o indivíduo foi ordenado a executar (a pressão
do contexto). Para alguns, tal pode levar a frustração profunda e a dissonância
cognitiva. Consideremos o exemplo de um funcionário público que acredita nas
normas de abertura, justiça e responsabilidade da governação, e é pressionado
para tomar decisões que sirvam pessoas em desrespeito notório para com estes
princípios. Outros poderão encarar a ambiguidade contextual de um modo opor-
tunista, como possibilidades de se furtarem ao cumprimento de normas e de ser-
virem os seus próprios interesses.
As normas e princípios contextuais também podem ser ambíguos e contra­
dizerem­‑se a si próprios. Princípios grandiosos podem colidir com expectativas
mundanas, assim como elevados objectivos podem colidir com limitações de imple-
mentação. A ambiguidade da ética no sector público é particularmente aparente
quando as obrigações e os valores incluídos em convenções internacionais colidem
com a soberania nacional e com as prioridades políticas nacionais, e quando a
política nacional colide com as normas socioculturais da sociedade local.
Vários exemplos podem ilustrar este conflito. Tomemos, por exemplo, um
funcionário do Ministério da Educação Superior do Bangladesh cujas funções con-
sistiam na distribuição de subsídios e bolsas de estudo de fontes estrangeiras aos
melhores candidatos entre os estudantes locais. Estes subsídios eram um “bem”
muito escasso pelos quais os estudantes e as suas respectivas famílias estavam
dispostos a pagar muito dinheiro. O funcionário público do Ministério, no entanto,
era absolutamente “honesto” e distribuiu os subsídios de acordo com o mérito
através da análise dos exames e de outras credenciais dos estudantes e não
aceitou subornos para satisfação de quem ofereceu os subsídios e das Universi-
dades estrangeiras. Isto teve um custo pessoal, uma vez que o seu salário era tão
reduzido, ele só tinha capacidade económica para alugar um quarto apenas e não
tinha dinheiro para se casar. Mais importante, ainda, aos olhos da sua família, ele
comportou­‑se de um modo contrário à ética, e vergonhoso, a sua família alargada
tinha reunido o dinheiro necessário para a sua educação ao longo dos anos, mas
ele era agora um “investimento perdido”, pois não deu nada de retorno à família.
Por fim, a família cortou os laços com ele e olhava­‑o com despeito.
Vários investigadores têm observado o stress moral com que se deparam os
funcionários públicos que vivem em dois “mundos diferentes”. Particularmente,
as teorias de regime neo­‑patrimonial realçam o conflito entre a lógica moral e as

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

expectativas de um regime clientelista, o sistema de mecenato das relações polí-


ticas mecenas­‑cliente, os procedimentos informais incorporados nas instituições
estatais, e a ética profissional de políticos e funcionários públicos individuais. Um
dos estudos mais conhecidos é o livro de Chabal & Daloz (1999)8, que retrata as
administrações estatais nos Estados neo­‑patrimoniais africanos como servindo
uma lógica completamente diferente do modelo de Estado Ocidental. Retrata o
neo­‑patrimonialismo como um sistema que funciona de modo a manter o poder e
os benefícios da elite, apesar de ser um sistema antiético para o interesse público.
Uma interpretação muito básica do diferente modus operandi do sector público
é o seu conteúdo democrático, o sistema neo­‑patrimonial e outros sistemas polí-
ticos não liberais servem os interesses da elite governante e não os interesses do
público em geral. Em simultâneo, os regimes democratizantes e democráticos
também podem apresentar inconsistências intrínsecas; alguns princípios são
mais básicos (globais) que outros, e alguns princípios podem ser mais conheci-
dos, declarados e realçados do que outros. Por muito variadas que possam ser as
políticas do momento e por muito fluidas que possam ser as alterações políticas,
pode dizer­‑se que as normas éticas do sector público se situam a níveis diferentes
de princípio e praticabilidade. No topo da hierarquia de princípios encontram­‑se
alguns imperativos éticos, com fundamento na religião ou nos Direitos Humanos.
Em segundo lugar, para o sector público, existem princípios aceites internacio-
nalmente para uma governação democrática e responsável. Em terceiro lugar, no
meio particular da administração pública, existem regras contextuais e situacio-
nais, princípios e regulamentos para o comportamento dos funcionários públicos
assim como normas internas das entidades.

A “infra­‑estrutura” de ética no sector público

A combinação da definição de normas éticas, da regulamentação legal e da


reforma institucional é denominada “infra­‑estrutura de ética”, “regime de ética”
ou “sistema de integridade”. Cada parte constitui uma fonte de ética no sector
público; por outras palavras, a ética do sector público emana de várias fontes
diferentes. Estas fontes variam desde o carácter ético do funcionário público indi-
vidual, pelas regulamentações internas da entidade, pela cultura da entidade e
pela legislação nacional, às convenções internacionais com Normas e Códigos de
Conduta escritos. O regime de ética mais eficiente ocorre quando estas três fon-
tes se desenvolvem na mesma direcção, em paralelo. Iremos abordar cada uma
destas fontes de conduta ética por ordem inversa.

8 Patrick Chabal and Jean­‑Pascal Deloz (1999), Africa Works. Disorder as Political Instrument.
James Currey, Oxford.

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PARTE I

NORMAS INTERNACIONAIS E LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL

Um elevado número de entidades internacionais desenvolveram Códigos de


Ética ou Códigos de Conduta para os seus funcionários e para os funcionários
públicos em geral. Alguns também elaboraram Códigos de Conduta para políticos
e detentores do poder eleitos. Estas normas éticas podem ser fontes importantes
de legislação e regulamentação nacional quando adequadamente implemen-
tadas no regime de ética nacional. A maior parte das normas internacionais
baseiam­‑se nos princípios burocráticos Weberianos de legitimidade, racionalidade
e meritocracia.

Weberianismo: racionalidade e meritocracia

Max Weber foi um dos primeiros filósofos e cientistas políticos a descrever os


princípios da autoridade governamental e da burocracia. Weber foi o primeiro
a explicar as três formas de autoridade governamental: autoridade carismática,
tradicional ou legítima (legal­‑racional), nos quais se podem basear a liderança,
domínio e autoridade políticos. A autoridade carismática provém do idealismo e
de fontes religiosas (autoridade na qual as pessoas acreditam e aceitam por esta-
rem convencidas da “mensagem”); a autoridade tradicional provém do patriar-
cado, patrimonialismo, feudalismo e de outras autoridades tradicionais que as
pessoas aceitam devido à tradição; e a autoridade racional­‑legal provém dos prin-
cípios modernos legais, que as pessoas aceitam por serem universais, racionais e
democráticos. Também é importante reconhecer estas três formas de autoridade
enquanto fontes de normas éticas. Além disso, foi Weber quem iniciou os estudos
da burocracia e foram os seus trabalhos que levaram à popularização do termo.
Segundo Weber, a função pública clássica hierarquicamente organizada do tipo
europeu constitui apenas um tipo ideal de Administração Pública e Governo, mas
é de longe o mais eficiente e bem­‑sucedido. Apesar de nem ele próprio gostar
particularmente deste tipo, Weber traça o perfil da descrição do desenvolvimento
desta burocracia que envolve racionalização (uma mudança de uma organização
orientada para os valores, tradicional e carismática para uma organização buro-
crática orientada para os objectivos e baseada em regras, estruturada numa auto-
ridade legal­‑racional).
Segundo Weber, os atributos da burocracia moderna incluem a sua impes-
soalidade, a concentração dos meios de administração e a implementação de um
sistema de autoridade que é praticamente indestrutível. A análise de Weber da
burocracia aponta os sete princípios seguintes da organização burocrática:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

1. As actividades oficiais são realizadas continuamente.


2. As actividades oficiais são conduzidas em estrita conformidade com as
seguintes regras:
A. O dever de cada funcionário realizar determinado tipo de trabalho é
delimitado em termos de critérios impessoais.
B. É concedido ao funcionário a autoridade necessária para desempenhar
as funções que lhe foram atribuídas.
C. Os meios de coerção à sua disposição encontram­‑se estritamente limita-
dos e com condições de utilização estritamente definidas.
3. As responsabilidades e a autoridade de cada funcionário fazem parte de
uma hierarquia vertical de autoridade, com os respectivos direitos de
supervisão e de recurso.
4. Os funcionários não são proprietários dos recursos necessários para o
desempenho das suas funções atribuídas, mas são responsáveis pela utiliza-
ção dos mesmos.
5. As empresas e receitas oficiais e privadas encontram­‑se estritamente sepa-
radas.
6. Os mandatários não se podem apropriar dos cargos (por herança, venda,
etc.).
7. A actividade oficial é conduzida com base em documentos escritos. Assim,
segundo Weber, um funcionário burocrático é nomeado para o seu cargo
com base no mérito e na conduta, ele exerce a autoridade delegada em si
em conformidade com regras impessoais e a sua lealdade encontra­‑se asse-
gurada em nome da fiel execução dos seus deveres oficiais. Além disso, a
sua nomeação e colocação dependem das suas qualificações técnicas, o seu
trabalho administrativo é uma ocupação a tempo inteiro e como compensa-
ção pelo seu trabalho recebe um salário regular e perspectivas de progres-
são numa carreira para toda a vida.

Um funcionário tem obrigatoriamente de utilizar o seu discernimento e as


suas competências, mas o seu dever é o de as colocar ao serviço de uma auto-
ridade superior e, portanto, é responsável apenas pela execução imparcial das
tarefas atribuídas. Além disso, ele deverá sacrificar o seu discernimento pessoal
caso seja contrário aos seus deveres oficiais.
A meritocracia encontra­‑se no centro do sistema burocrático moderno. A
meritocracia é o princípio pelo qual as nomeações são realizadas e as respon-
sabilidades atribuídas com base no talento e nas capacidades demonstradas
(mérito, geralmente formação e competências adquiridas), e não com base na
riqueza (plutocracia), ligações familiares (nepotismo), privilégio de classe (nobreza e

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PARTE I

oligarquia), amizades (conluio) ou outros determinantes históricos de posição


social e de poder político. Apesar de a abordagem Weberiana à burocracia ter sido
muito criticada e modernizada, muitos aspectos da administração pública moderna
derivam do seu contributo, e os princípios principais de uma burocracia eficiente
continuam a ser validados. A burocracia ideal caracterizada pela impessoalidade,
eficiência e racionalidade; regras e códigos de boas práticas publicadas; decisões e
acções com base em regulamentos e registadas por escrito; e ainda os elementos
da meritocracia e uma estrita separação entre o interesse privado e o cargo público.

Direitos Humanos

Segundo o artigo 1.o da Declaração Universal dos Direitos Humanos das


Nações Unidas, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade
e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os
outros em espírito de fraternidade”9. Os Direitos Humanos referem­‑se aos direi-
tos e liberdades básicos aos quais todos os seres humanos têm direito. Exemplos
de direitos e liberdades que vieram a ser comummente encarados como Direitos
Humanos incluem os direitos civis e políticos, como o direito à vida e à liberdade,
liberdade de expressão e igualdade perante a Lei; os direitos sociais, culturais e
económicos, incluindo o direito a participar na cultura, o direito à alimentação, o
direito a trabalhar e o direito à educação.
Por “Direitos Humanos” pode compreender­‑se um conjunto de princípios
reconhecidos de Direito Internacional (como a proibição do genocídio), assim
como um conjunto mais alargado de valores aprovados cujas implicações perma-
necem contestadas ou ambíguas (o direito à autodeterminação, o direito à cultura,
os direitos dos povos indígenas, o direito ao desenvolvimento). O campo dos
Direitos Humanos envolve um projecto transnacional para definir uma linha de
base ética para o governo da sociedade humana.
A categorização mais comum de Direitos Humanos consiste em dividi­‑los em
direitos civis e políticos e em direitos económicos, sociais e culturais. Os direitos
civis e políticos encontram­‑se protegidos nos artigos 3.o a 21.o da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos, e inclui direitos como a integridade física (direito à vida) e direitos como
a justiça processual (como a protecção da detenção arbitrária e da tortura), pro-
tecção contra a discriminação (com base no sexo, religião, raça, orientação sexual,
etc.), assim como liberdades individuais de crença, expressão, associação e de
participação política.

9 Declaração de 1948, ver http://www.un.org/events/humanrights/2007/udhr.shtml.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Os direitos económicos, sociais e culturais encontram­‑se protegidos nos arti-


gos 22.o a 28.o da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Interna-
cional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Os direitos económicos,
sociais e culturais incluem direitos como o direito ao Ensino Público, a cuidados
de saúde, segurança social e a um padrão de vida mínimo.
Os direitos civis e políticos são geralmente referidos como “direitos nega-
tivos”, pois permitem ou compelem à inacção (“liberdade de”), já os direitos
económicos, sociais e culturais são referidos como direitos positivos, pois com-
pelem à acção (“direito à”). Geralmente, os direitos positivos compelem à acção
positiva do Estado ou do Governo. À medida que a filosofia moderna moral
gira cada vez mais em torno de ética baseada em reivindicações e baseada em
direitos, os Direitos Humanos surgem como um princípio muito fundamental.
Quando estas teorias com base em direitos defendem que as pessoas têm direito
a determinadas liberdades e direitos e que as pessoas podem ter reivindicações
contra alguém, é importante identificar quais os direitos que as pessoas têm e
quem tem uma obrigação de assegurar esses direitos. Como vimos, só se pode
dizer que uma pessoa tem um direito significativo a alguma coisa (a um serviço,
liberdade, ou direito) se todos os outros tiverem uma obrigação de não agirem de
forma a prejudicar este direito, e se alguns outros tiverem uma obrigação de agir
positivamente para assegurar que os direitos legítimos de determinadas pessoas
são satisfeitos. Os direitos são, fundamentalmente, reivindicações contra outrem,
e os direitos/reivindicações geram deveres correlativos por parte de outrem.
Os direitos naturais aplicam­‑se a todas as pessoas, como o nosso direito à vida,
e todos os outros (outros indivíduos, organizações, Governos e a Comunidade
Internacional) têm o dever de assegurar esses direitos naturais. Os direitos políti-
cos e sociais aplicam­‑se a todos os cidadãos de um Estado, e o Estado tem, conse-
quentemente, o dever primário de disponibilizar esses direitos10.

Códigos de Conduta e Códigos de Ética

Um Código de Conduta é um conjunto de regras que descrevem as responsa-


bilidades, ou as práticas adequadas, de um indivíduo ou organização. Conceitos
relacionados incluem Códigos de Ética e Códigos de Honra. Uma definição de
um “Código de Conduta” consiste nos “princípios, valores, normas ou regras de

10 Se o Governo do país do qual é cidadão não puder assegurar os seus direitos políticos, por

exemplo, o direito de liberdade contra a perseguição por opiniões políticas ou crenças reli‑
giosas, discriminação ou tortura, os outros Governos (países estrangeiros) têm, consequen‑
temente, o dever de lhe proporcionar asilo político (segundo a Convenção Relativa ao Es‑
tatuto dos Refugiados de 1951 das Nações Unidas e o Protocolo Relativo ao Estatuto dos
Refugiados de 1967).

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PARTE I

comportamento que orientam as decisões, procedimentos e sistemas de uma


organização de modo a que (a) contribua para o bem­‑estar dos principais inte-
ressados e (b) respeite os direitos de todos os constituintes afectados pelo seu
funcionamento”11.
Várias entidades internacionais e nacionais desenvolveram Códigos de Conduta
ou Códigos de Ética para os seus funcionários. Esta definição de normas éticas
baseia­‑se, em grande parte, nos princípios Weberianos. Pode ser um guia impor-
tante para tomar decisões sobre questões éticas complicadas, as quais podem
oferecer a base para um meio em que os cidadãos estão cientes das normas de
comportamento básicas cujo cumprimento por parte dos funcionários públicos
é esperado. Os Códigos de Conduta ou Códigos de Ética Internacionais podem
suportar os estatutos do sector público nacional e as leis criminais e podem
acrescentar­‑se ao enquadramento nacional legal.
Uma das normas internacionais é o Código Internacional de Conduta de
Funcionários Públicos adoptado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em
199612. No entanto, o código mais reconhecido é o Código Modelo de Conduta
para Funcionários Públicos desenvolvido pelo Conselho da Europa e adoptado
pelos Estados­‑Membros em 200013. Estes códigos servem como um ponto de
referência e como um ideal para muitas administrações estatais; tenciona­‑se que
estabeleçam um precedente para países que se encontrem a elaborar os seus
próprios Códigos de Conduta obrigatórios. Muitas das normas são similares às do
Código de Conduta das Nações Unidas, mas o texto do Conselho da Europa apro-
funda mais aspectos de conduta de serviço público ligados a medidas e políticas
anticorrupção.
O Código Modelo do Conselho da Europa aplica­‑se a todos os funcionários
públicos (ou seja, todas as pessoas empregadas por uma autoridade pública)
e todos os funcionários públicos têm o dever de empreender todas as acções
necessárias para cumprirem com as disposições do código. O objectivo do código
consiste em especificar as normas de integridade e de conduta a observar pelos
funcionários públicos, auxiliá­‑los a cumprir essas normas e informar o público da
conduta cujo cumprimento por parte dos funcionários públicos podem esperar.
Os princípios gerais do código indicam (entre outras disposições) que o fun-
cionário público deverá cumprir os seus deveres em conformidade com a Lei e
com as instruções e normas éticas legais que se relacionam com o desempenho

11 Federação Internacional de Contabilistas (2007), Orientação para Boas Práticas Interna‑

cionais, Definição e Desenvolvimento de um Código de Conduta Eficaz para as Organizações.


12 Ver www.un.org/documents/ga/res/51/a51r059.htm. Ver também o relatório Implementa‑

tion of the International Code of Conduct for Public Officials do Conselho Social e Económico
da ONU, em https://www.unodc.org/pdf/crime/commissions/11comm/6add1e.pdf.
13 Ver www.coe.int/t/dg1/greco/documents/Rec(2000)10_EN.pdf.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

das suas funções, e que o funcionário público deverá agir de forma politicamente
neutra e que não deverá tentar frustrar as políticas, decisões ou acções legítimas
das autoridades públicas (artigo 4.o). Além disso, o funcionário público tem o
dever de servir com lealdade a autoridade nacional, local ou regional legitima-
mente constituída e espera­‑se que seja honesto, imparcial e eficiente, e que
cumpra os seus deveres até ao máximo das suas capacidades com competência,
justiça e compreensão, no respeito exclusivo pelo interesse público e pelas cir-
cunstâncias relevantes do caso (artigo 5.o).
O código também indica que, no cumprimento dos seus deveres, o funcioná-
rio público não deverá agir arbitrariamente em detrimento de qualquer pessoa,
grupo ou organismo e deverá apresentar o respeito devido pelos direitos, deveres
e interesses próprios de todos os outros (artigo 6.o). Na tomada de decisões, o
funcionário público deverá agir legitimamente e exercer os seus poderes dis-
cricionários de forma imparcial, tendo em conta apenas as questões relevantes
(artigo 7.o).
O artigo 8.o é também importante pois indica que o funcionário público não
deverá permitir que o seu interesse privado entre em conflito com o seu cargo
público. É da sua responsabilidade evitar tais conflitos de interesses, quer sejam
reais, potenciais ou aparentes. O funcionário público nunca deverá tirar partido
indevido do seu cargo para satisfação de interesses privados. Deve ser evitado
qualquer conflito de interesses (artigo 13.o)14. O funcionário público que ocupa
um cargo em que o cumprimento dos seus deveres oficiais venha provavelmente
a afectar os seus interesses pessoais ou privados deverá, como requerido por
Lei, declarar aquando da nomeação e, posteriormente, a intervalos regulares,
a natureza e a extensão desses interesses (artigo 14.o)15. O código menciona,
além disso, o dever de se comportar em todas as circunstâncias de modo a que a
confiança do público na integridade, imparcialidade e eficácia do serviço público
seja preservada e aumentada, que o funcionário público responde perante o seu
superior hierárquico imediato a menos que de outro modo seja indicado na Lei,
e que o funcionário público tem o dever de tratar apropriadamente, com toda a
confidencialidade necessária, todas as informações e documentos que adquirir
no curso ou como resultado do seu emprego.

14 O conflito de interesses é uma situação em que o funcionário público tem um interesse pri‑

vado que possa influenciar, ou aparentemente influenciar, o cumprimento imparcial e objec‑


tivo dos seus deveres oficiais. Inclui qualquer proveito para si próprio, a sua família e familia‑
res próximos, amigos e pessoas ou organizações com as quais tenha tido relações comerciais
ou políticas. Para mais informações sobre conflito de interesses e sobre como os evitar, ver
Managing Conflict of Interest in the Public Sector – A Toolkit da OCDE (2003), que está dispo‑
nível em http://www.olis.oecd.org/olis/2003doc.nsf/0/ 0fc741f6009c94b6c1256ddd005b2ef‑
f/$FILE/JT00153650.PDF.
15 Ver a secção sobre Conflito de Interesses.

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PARTE I

Outro dever consiste em que o funcionário público que acreditar que lhe esteja
a ser solicitada uma actuação que seja ilegal, imprópria ou contrária à ética, que
envolva má administração, ou que de outro modo seja inconsistente com o pre-
sente código, deverá relatar a questão às autoridades competentes (artigo 12.o).
O artigo 16.o indica que o funcionário público deverá tomar precauções
para que nenhuma das suas actividades políticas ou envolvimento em debates
políticos ou públicos prejudiquem a confiança do público na sua capacidade de
cumprir os seus deveres de forma imparcial e leal. No exercício dos seus deve-
res, o funcionário público não deverá permitir que o utilizem para fins político­
‑partidários.
O artigo 18.o afirma que o funcionário público não deverá exigir ou aceitar
ofertas, favores, hospitalidade ou qualquer outro benefício para si mesmo ou
para a sua família, familiares e amigos próximos, pessoas ou organizações com as
quais tenha tido relações comerciais ou políticas (o que não inclui a hospitalidade
convencional ou ofertas menores). Se for oferecida ao funcionário público uma
vantagem indevida, ele deverá dar os passos apropriados para se proteger (arti-
go 19.o), e o funcionário público não deverá oferecer ou dar qualquer vantagem
de modo algum ligada ao seu cargo enquanto funcionário público, a menos que
legalmente autorizado a fazê­‑lo (artigo 21.o).
Finalmente, o artigo 23.o afirma que, no exercício dos seus poderes discricio-
nários, o funcionário público deverá garantir que, por um lado, o pessoal, e, pelo
outro, a propriedade pública, as instalações, serviços e recursos financeiros dos
quais está encarregado são geridos e utilizados de um modo eficaz, eficiente e
económico. Não deverão ser utilizados para fins privados a menos que seja dada
permissão legal.

NORMAS DEMOCRÁTICAS

Para além das normas internacionais que emanam do modelo de burocracia


Weberiano, dos Direitos Humanos Internacionais, da Legislação e dos Princípios
Internacionais, e ainda do Modelo Internacional de Código de Conduta, uma
segunda fonte de ética no sector público são as normas e princípios democráti-
cos. Fleming e McNamee defendem que para compreender a conduta dos indiví-
duos num contexto social é necessário ter em consideração a dimensão política
das políticas e das práticas (Fleming e McNamee, 2005:140).
Os princípios democráticos encontram­‑se parcialmente codificados nos Direi-
tos Humanos Políticos e parcialmente expressos enquanto uma forma ideal de
Governo. Deste modo, as normas democráticas são muito relevantes enquanto

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

base ética para políticos e representantes eleitos, mas também podem servir
de ponto de referência para burocratas e administradores públicos. Além disso,
existem dilemas na implementação administrativa de políticas não determinadas
pelas qualidades democráticas do Governo.

Regime democrático

A democracia é uma forma de Governo na qual as pessoas detêm o poder


sob um sistema eleitoral livre. Em teoria política, assim como na filosofia política,
a democracia é vista como um ideal utópico – nenhum país é completamente
democrático, mas vale a pena lutar pelos princípios democráticos.
Apesar de não existir uma definição de democracia universalmente aceite,
existem dois princípios que qualquer definição de democracia inclui. O primeiro
princípio consiste em que todos os membros da sociedade têm uma possibili-
dade de acesso ao poder igual e o segundo consiste em que todos os membros
usufruem de liberdades reconhecidas universalmente. Estas liberdades e direitos
incluem a liberdade de reunião, de associação, de pensamento e religião, o estado
de direito e igualdade perante a Lei, assim como o sufrágio universal (o direito ao
voto).
Apesar de o “Governo da maioria” ser uma característica frequentemente
descrita da democracia, a democracia não é possível sem a protecção dos direitos
das minorias (Direitos Humanos básicos e liberdade contra abusos perpetrados
pela “tirania da maioria”)16.
Um mecanismo essencial da democracia liberal e representativa é a de elei-
ções concorrenciais, ou seja, eleições regulares livres e justas tanto a nível de
procedimento (as eleições têm lugar de forma a garantir eleições livres e justas)
como a nível de substância (as eleições têm um impacto decisivo em quem gover-
na). Além disso, a liberdade de expressão política, a liberdade de expressão e de
imprensa são essenciais para que os cidadãos estejam informados e sejam capa-
zes de votar nos seus interesses pessoais.

Responsabilização política

A responsabilização é um conceito da ciência política e da ética com vários


significados. É frequentemente utilizada sinonimicamente com conceitos de

16 Como exemplo, a maioria não tem o direito de privar a minoria de direitos civis (através de

uma maioria simples de votos).

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PARTE I

responsabilidade, prestação de esclarecimentos, aplicação da Lei, culpabilidade,


compromisso e outros termos associados à expectativa de prestar contas. Na
qualidade de aspecto da governação, tem sido central na discussão de problemas
relacionados com os sectores público e privado (empresarial). A responsabilidade
é definida como “A é responsável perante B quando A é obrigado a informar B
acerca das acções e decisões (passadas ou futuras) de A, a justificá­‑las e a ser
punido na eventualidade de má conduta”17. A responsabilidade política é a res-
ponsabilidade do Governo, funcionários públicos e políticos perante o público
e perante os organismos legislativos como a Assembleia Nacional, Parlamento,
Organismo de Auditoria Nacional e outras entidades de controlo e supervisão. A
responsabilidade política é geralmente dividida em “responsabilidade horizontal”
e “responsabilidade vertical”. As instituições de responsabilidade “horizontal”
(de “controlos e equilíbrios” ou “separação de poderes”) são o poder legislativo
(Parlamento/Assembleia Nacional) e o poder judicial (um Tribunal sem pos-
sibilidade de recurso como o Supremo Tribunal ou o Tribunal Constitucional),
principalmente, mas também as várias instituições estatais de supervisão e con-
trolo como entidades estatais especiais, provedores, auditores e comissões. As
instituições de “responsabilização vertical” são as instituições de participação,
influência, voz e controlo popular, das quais os partidos políticos e as eleições
são principais intervenientes, seguindo­‑se organizações da sociedade civil e os
meios de comunicação e informação. Relativamente aos representantes eleitos
(políticos), as eleições regulares são o mecanismo fundamental de responsabi-
lidade. As eleições podem ser utilizadas para retirar um mandatário eleito do
cargo. Entre eleições, no entanto, o controlo popular é mais limitado. Os cidadãos
podem organizar­‑se e protestar, utilizar organizações da sociedade civil, os meios
de comunicação e informação social e os mecanismos para reclamações, mas o
Governo ou as individualidades políticas não têm necessariamente de escutar ou
de abandonar o cargo.
Portanto, os controlos e equilíbrios instituídos nos mecanismos de respon-
sabilização horizontal tornam­‑se muito importantes entre eleições. Quando os
votantes não têm uma forma directa de responsabilizar os representantes eleitos
durante o mandato para o qual foram eleitos, os controlos e equilíbrios estabe-
lecidos na Constituição a nível da separação dos poderes entre os três ramos do
Governo são essenciais. Esta responsabilidade horizontal inclui a autoridade legis-
lativa de promulgar as leis e o Orçamento de Estado, de solicitar informações e
investigar qualquer assunto e inclui o direito do Supremo Tribunal de interpretar
e verificar a legalidade de qualquer Lei (revisão judicial).

17 Schedler, Andreas (1999), Conceptualizing Accountability in Schedler, A., Larry Diamond


and Marc F. Plattner: The Self­‑Restraining State: Power and Accountability in New Democra‑
cies. Londres: Lynne Rienner Publishers, pp. 13­‑28.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A responsabilização horizontal também é a capacidade destas instituições res-


ponsabilizarem os seus próprios membros e outros organismos governamentais.
O poder legislativo pode, por exemplo, realizar um inquérito interno ou indepen-
dente e pode revogar o mandato de um indivíduo (como um Ministro ou Juiz),
retirá­‑lo do cargo ou suspendê­‑lo das suas funções durante um determinado
período de tempo. Os poderes, procedimentos e sanções de responsabilização
variam de país para país. Em sistemas parlamentares, o Governo depende do
apoio do Parlamento, o que dá poder ao Parlamento para responsabilizar o
Governo. Por exemplo, alguns Parlamentos podem solicitar a votação de uma
moção de censura ao Governo. Nos sistemas presidenciais, o Presidente é geral-
mente eleito numa votação separada, o seu Conselho (Gabinete Ministerial ou
Governo) não depende de aprovação do Parlamento, e pode ainda dissolver o
Parlamento e convocar novas eleições.
Além disso, o Presidente e o Parlamento podem estabelecer outras institui-
ções de vigilância e supervisão e atribuir a estas uma independência, capacidade
e poderes consideráveis. Existem, por exemplo, as Instituições de Auditoria
Suprema, os Provedores, o Banco Central, Comissões Anticorrupção e uma
série de outras instituições especializadas, de acordo com a vontade política do
momento.
Relativamente aos funcionários governamentais não eleitos (burocratas e
administradores), as regras e normas internas, estruturas de autoridade e algu-
mas comissões independentes são os mecanismos principais de responsabili-
zação dos funcionários públicos. Dentro de um departamento ou Ministério, o
comportamento encontra­‑se, em primeiro lugar, sujeito a regras e regulamenta-
ções; em segundo lugar, os funcionários públicos são subordinados numa hierar-
quia e são responsáveis perante os superiores. Mesmo assim, também existem
unidades independentes de “vigilância” para escrutínio e responsabilização de
departamentos; a legitimidade destas comissões baseia­‑se na sua independência,
na medida em que evita quaisquer conflitos de interesses. Para além dos contro-
los internos, algumas unidades de “vigilância” aceitam reclamações de cidadãos,
servindo de ponte entre o Governo e a sociedade para responsabilizar os funcio-
nários públicos perante os seus cidadãos.
Sob as pressões da descentralização e da privatização do Governo, os servi-
ços são, hoje em dia, disponibilizados de forma mais “orientada para o cliente”
e deverá ter por objectivo a conveniência e a oferta de várias escolhas aos cida-
dãos. Nesta perspectiva, pode existir “concorrência” entre os fornecedores de
serviços públicos e privados e, idealmente, tal poderá melhorar a qualidade dos
serviços. O outsourcing (a contratação fora de serviços) é um meio de adaptar os
serviços públicos aos mecanismos do mercado, o Governo pode assim escolher
entre uma lista de empresas para fornecimento de serviços. Dentro do período

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PARTE I

contratual, o Governo pode responsabilizar a empresa através da redefinição dos


contratos ou da selecção de outra empresa. A norma de avaliação para responsa-
bilização é, mesmo assim, a mesma, é a capacidade de resposta dos fornecedores
de serviços aos clientes “soberanos”.
Adicionalmente, uma entidade governamental particular ou o Governo
podem ser responsabilizados se as opiniões das pessoas (utilizadores, clientes),
grupos de interesse ou instituições forem ouvidas. Estes grupos situam­‑se fora
do sector público, mas representam os interesses dos cidadãos de uma área ou
círculo eleitoral particular. Stroker defende que se a política articula normas inter-
pessoais de valor e justificação e se a expressão política requer a justificação das
opiniões pessoais enquanto boas ou más, então devemos reconhecer estes juízos
como significativos para a investigação do comportamento político (Stoker, 1992).

Transparência

A transparência consiste na pureza da informação. O conceito de transpa-


rência pode ser definido como um princípio que permite aos afectados pelas
decisões políticas e administrativas tomarem conhecimento não só dos factos e
dos números, mas também dos princípios, mecanismos e processos que levaram
a uma decisão. Adicionalmente constitui dever dos políticos, funcionários públi-
cos e administradores actuarem de modo visível, previsível e compreensível. A
transparência é o princípio de acesso do público à informação, acessível a todos
os interessados, de modo atempado e fiável. Uma utilização eficaz das receitas
públicas está fortemente ligada à responsabilização, que, por sua vez, requer
transparência na informação. Os cidadãos de um país necessitam de ter conheci-
mento acerca das receitas e das despesas do Governo, pois esta informação pode
auxiliá­‑los a exercerem pressão sobre os Governos para uma melhor utilização
dos serviços básicos­‑chave, como a saúde e a educação, por exemplo. Assim, a
transparência está intimamente ligada à responsabilização, já que a transparência
é um pré­‑requisito para um Governo responsabilizável.
Enquanto princípio de Governo e Administração, a transparência também
pode ser vista como um imperativo ético ou como um dever. É um princípio pelo
qual os políticos e burocratas deverão lutar. Um maior acesso à informação é um
ideal democrático e uma virtude democrática (apesar de a transparência poder
ter alguns custos e desvantagens)18. Aumentar a transparência abre o processo

18 Por exemplo, os custos financeiros e o tempo despendido a disponibilizar uma transparên‑

cia completa (acesso a informação para todos) pode ser superior à utilidade prática da in‑
formação (sobrecarga de informação); adicionalmente, alguma transparência num meio cor‑
rupto pode revelar quem está “à venda”.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de tomada de decisões ao debate público e move o processo no sentido de uma


gestão mais prudente e equitativa dos recursos públicos. Por exemplo, a divulga-
ção pública de informação básica relativa às receitas e despesas do Governo (um
processo de elaboração de orçamento adequado) pode auxiliar os cidadãos a
responsabilizarem os seus Governos pela gestão e, em última análise, pela distri-
buição das receitas.
A nível nacional, alguns países decretaram regulamentações específicas para
transparência fiscal e muitos países em vias de desenvolvimento e transicionais
proporcionaram (até certo ponto) uma maior disponibilidade da informação orça-
mental nos últimos anos.
Também tem sido demonstrado que a transparência no sector da educação
pode contribuir para limitar as práticas corruptas e os desperdícios no sector. Ao
fornecer informações sobre fundos educacionais atribuídos ao sector e a cada
escola, os pais, alunos e professores (assim como organizações da sociedade civil)
têm, deste modo, sido capazes de “seguir o dinheiro” e de solicitar melhores ser-
viços educacionais. “Cartões de Relatório” no Bangladesh e a publicação dos sub-
sídios mensais para as escolas distritais no Uganda são alguns exemplos.
A transparência é também uma preocupação internacional. Existem regula-
mentações para a transparência orçamental a nível internacional, regulamen-
tações e princípios que deverão, idealmente, aplicar­‑se a todos os sectores dos
serviços públicos. Por exemplo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) desenvol-
veu um Código de Boas Práticas em Transparência Fiscal19 que disponibiliza um
enquadramento coerente para avaliar a transparência das Finanças Públicas, para
identificar as prioridades de reforma e para monitorizar o progresso. O Código
define como aspectos importantes: dispor de clareza das funções e responsabili-
dades nas Finanças Públicas; disponibilização pública da informação; preparação,
execução e notificação orçamental transparente; e garantias independentes de
integridade (auditoria externa). A Organização para a Cooperação e Desenvolvi-
mento Económico (OCDE) desenvolveu as Melhores Práticas para Transparência
Orçamental (2001) que também disponibiliza um marco de referência para o
desempenho do Governo.
Além disso, existe uma focalização crescente internacional na transparência. A
coligação Publish What You Pay (Pagar o Que se Paga) foi fundada em 2002 para
promover a transparência nas indústrias extractivas. Já conta com mais de 200
membros em mais de 33 países. Os Governos do G8 comprometeram­‑se com um

19Ver o capítulo de Shaxson sobre a Global Witness e sobre o estabelecimento de pressão in‑
ternacional para a transparência nas indústrias de extracção de petróleo e diamantes. Para
factos acerca das iniciativas, ver os respectivos websites (Global Witness: www.globalwit‑
ness.org; EITI: www.eitransparency.org; Publish What You Pay: www.publishwhatyoupay.org;
Transparency International: www.transparency.org).

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PARTE I

plano de acção, Lutar contra a Corrupção e Aumentar a Transparência, em 2002.


A União Europeia (UE) encoraja uma maior divulgação voluntária no seu Plano de
Acção para os Serviços Financeiros (2004). O Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional também estão a apoiar formas de aumentar a transparência nas
indústrias extractivas. Em 2002, Tony Blair lançou a Iniciativa de Transparência
para as Indústrias Extractivas (EITI), envolvendo Governos, empresas, investi-
dores e organizações da sociedade civil. A abordagem assenta no facto de os
Governos dos países “anfitriões” (países onde a extracção tem lugar) liderarem
a iniciativa e publicarem todas as receitas que recebem das empresas. Nos locais
onde estes Governos anfitriões estiverem dispostos a agir, a EITI pode aportar
progressos importantes. No entanto, será necessário muito tempo até abranger
todos os países anfitriões deste modo. E o mais importante é que não irá funcio-
nar em países em que o Governo não se comprometa, apesar de ser provavel-
mente nestes países onde as reformas são mais necessárias.

Equidade

A equidade é outro dever ou obrigação ética de um regime democrático e do


sector público.
A equidade é justiça tanto a nível de igualdade perante a Lei como a nível da
justiça distributiva. No entanto, Kinchin defende que a “equidade” é talvez o prin-
cípio mais central e, no entanto, mais frustrantemente vago de um Código de Ética
eficaz do sector público e que é um conceito difícil de definir (Kinchin, 2007).
A imparcialidade é um conceito fundamental da equidade, a imparcialidade
é um princípio de justiça que defende que as decisões devem basear­‑se em cri-
térios objectivos e não em predisposições, preconceitos ou favoritismo (atribuir
preferencialmente um benefício a uma pessoa ou grupo e não a outra pessoa ou
grupo por razões impróprias como ganância, apoio político ou familiaridade).
A justiça é outra qualidade fundamental da equidade tanto a nível de igual-
dade perante a Lei como a nível da justiça distributiva. A equidade é um conceito
que se baseia essencialmente na ideia de justiça social e de imparcialidade, a
equidade é a noção de que todas as pessoas têm os mesmos direitos e o mesmo
acesso a recursos. Refere­‑se à justa distribuição de bens, serviços ou outro tra-
tamento (Fleming e McNamee, 2005). As estratégias e políticas de equidade são
normalmente criadas em torno de determinados extractos populacionais (ou
seja, grupos por classe etária, classe, incapacidade, etnicidade, sexo) e são vistas
como social e eticamente desejáveis.
Algumas pessoas iriam mais além e colocariam a igualdade como um ideal,
igualdade em termos de igualdade de resultado. Esta é uma forma de igualitarismo,

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

que procura reduzir ou eliminar as diferenças nas condições materiais entre indi-
víduos ou agregados familiares numa sociedade. O que geralmente significa igua-
lizar o rendimento e/ou a riqueza total até determinado ponto.
Muitas democracias liberais do século XXI são caracterizadas pela diversidade
sociocultural, reconhecendo que esta diversidade é não só um ideal democrático,
mas também um objectivo social fundamental de qualquer organização. Sob o
pretexto da equidade ou igualdade, uma organização não deverá simplesmente
seguir políticas para atingir os seus objectivos, mas deverá fazê­‑lo num enqua-
dramento que trate os indivíduos com imparcialidade. Parte do que constitui um
tratamento justo será o reconhecimento dos contributos e das necessidades de
diferentes indivíduos. Até que ponto existe uma indulgência construtiva almejan-
do a diversidade (de todos os tipos) é espelhada na noção de tolerância.
Hausman e McPherson (1993) defendem que a justiça ou a imparcialidade
deverão ser compreendidas a nível do tratamento apropriado dos interesses de
diferentes pessoas e agir de modo correcto irá frequentemente evitar prejudicar
outros indivíduos. As noções de prejuízo e de interesse estão claramente ligadas a
noções de bem­‑estar humano.

Integridade pública

A integridade pública refere­‑se à consistência das acções, valores, métodos,


medidas e princípios de uma entidade pública. A integridade pode ser vista como
a qualidade de possuir um sentido de honestidade e de verdade relativamente às
motivações das acções de alguém. O termo corrupção é frequentemente utilizado
como antónimo de integridade. O termo hipocrisia é utilizado para descrever a
situação em que partes de um sistema de valores conflituam com outras ou em
que o sistema de valores proclamado (ou as preferências explícitas) não conduz
a acções congruentes. A hipocrisia é o acto de pregar uma determinada crença,
mas não possuir ou implementar estas mesmas virtudes no seu próprio caso.
A integridade é um dos termos, que expressam virtudes, mais importan-
tes e mais frequentemente citado, é também, provavelmente, o mais confuso.
Por exemplo, enquanto por vezes é utilizado praticamente como sinónimo de
“moral”, por vezes também distinguimos agir de forma moral e de forma ínte-
gra. As pessoas íntegras podem, na verdade, agir de forma imoral, apesar de,
normalmente, não saberem que estão a agir imoralmente. Deste modo, pode
reconhecer­‑se a integridade de uma pessoa apesar de essa pessoa poder ter
perspectivas morais importantes erradas.
Quando utilizada enquanto termo expressivo de uma virtude, a “integridade”
refere­‑se a uma qualidade do carácter de uma pessoa, no entanto, existem

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PARTE I

outras utilizações do termo. Pode falar­‑se da integridade de um ecossistema, de


uma base de dados informática, de um sistema de defesas ou de uma entidade
pública. Quando é aplicada a objectos, a integridade refere­‑se às características
de determinado objecto enquanto inteiro, intacto ou puro, significados que, por
vezes, advêm da sua aplicação às pessoas.
A integridade também é atribuída a várias partes ou aspectos da vida de
alguém. Falamos de atributos como profissionalismo, intelectualidade e integri-
dade artística. Os filósofos têm­‑se preocupado particularmente em compreender
o que significa para uma pessoa demonstrar integridade ao longo da vida. O que
constitui uma pessoa íntegra? O discurso usual sobre a integridade envolve duas
intuições fundamentais: em primeiro lugar, a integridade é, sobretudo, uma rela-
ção de alguém consigo próprio ou entre partes ou aspectos de si próprio; e, em
segundo lugar, a integridade está ligada a uma forma importante de agir moral-
mente, por outras palavras, existem algumas restrições substantivas ou normati-
vas sobre o que constitui agir com integridade.
A maior parte dos relatos sobre a integridade tende a centrar­‑se na integri-
dade enquanto integração do eu e a manutenção da identidade, integridade
enquanto representadora de algo, integridade enquanto objectivo moral e
integridade enquanto virtude. Mesmo quando as dimensões sociais e políticas
da integridade são debatidas, a integridade é frequentemente vista como uma
questão principalmente privada ou pessoal, apesar de ser uma questão com
implicações importantes para a esfera política. Foi dada menor atenção às formas
pelas quais as estruturas e processos políticos e administrativos podem afectar a
integridade pessoal. Podem fazê­‑lo promovendo ou prejudicando características
essenciais para ter ou exercer a integridade, ou o contrário. Idealmente, as insti-
tuições, incluindo formas de Governo e acordos económicos, deverão ser estru-
turadas de forma a promover a integridade. É controverso dizer­‑se que tal não se
verifica e a razão pela qual tal não sucede, incluindo o modo de alterar esta situa-
ção, é um problema tanto da filosofia social e política, e da ética em geral, como
da psicologia filosófica. Algumas estruturas sociais são de tipo completamente
errado para que alguns indivíduos sejam capazes de tentar alcançar a integridade
e, portanto, é necessário colocar em primeiro lugar questões acerca da natureza
moral da política e da administração antes de colocar questões acerca da inte-
gridade e moralidade pessoais. Tal sugere que o próprio sentido de integridade
pessoal depende de considerações gerais acerca da natureza da sociedade e da
política, dependendo ainda do que uma sociedade é e do que deveria ser.
Alguns investigadores ligaram explicitamente a integridade pessoal às estru-
turas políticas e sociais de tal modo que alarga o conceito de integridade. Então,
quais os tipos de sociedade e quais os tipos de sistemas políticos e administrativos
mais conducentes à integridade pessoal? Se a sociedade se encontra estruturada

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de forma que prejudica a tentativa de alguém conhecer ou actuar de acordo com


os seus compromissos, valores e decisões, então tal estrutura é contrária à inte-
gridade.
Serão as condições sociais e políticas nas democracias liberais contemporâ-
neas conducentes à aquisição da auto compreensão necessária da integridade
e, de um modo mais geral, à actuação com integridade? Historicamente, um dos
ideais orientadores das sociedades democráticas liberais consiste em fornecer
aos seus cidadãos determinados bens principais, e não os bens que eles desejam,
como a liberdade e as estruturas políticas/sociais/culturais (legislação, códigos,
instituições, práticas, etc.) que facilitam a sua capacidade de obter os bens que
desejam por si sós.
Qualquer tentativa de lutar pela integridade tem de ter em conta o efeito do
contexto social e político. O tipo de sociedade que é provavelmente mais con-
ducente à integridade é uma sociedade que permite às pessoas desenvolver e
fazer uso das suas capacidades de reflexão crítica, uma sociedade que não força
as pessoas a assumir determinadas funções devido ao seu sexo, raça ou a outra
razão qualquer, uma sociedade que não encoraja os indivíduos a traírem­‑se uns
aos outros, quer para não serem condenados a pena de cadeia, quer para pro-
gredirem na carreira. As estruturas políticas e administrativas tanto podem ser
contrárias como favoráveis ao desenvolvimento da integridade, por vezes as duas
ao mesmo tempo.

REFORMAS ADMINISTRATIVAS

As tradições administrativas podem variar de acordo com a cultura do país,


mas existem perspectivas partilhadas sobre o modo como os funcionários públi-
cos deverão cumprir os seus deveres – de modo democrático e com possibili-
dade de responsabilização; de modo transparente e com integridade; de modo
justo, honesto e eficaz. No entanto, estes valores podem entrar em conflito
com outras expectativas. Por exemplo, familiares e outros podem acreditar que
deveriam ter acesso a emprego, contratos ou tão simplesmente propriedades
governamentais (como assinalado, por exemplo, no exemplo do Bangladesh
supracitado). Pode ser aplicada uma pressão intensa a um familiar com emprego
público pela expectativa que irá sustentar vários membros da família alargada
– mesmo quando os níveis de remuneração são praticamente insuficientes para
satisfazer as necessidades pessoais imediatas do funcionário público. Além destas
pressões, surgem situações em que a decisão correcta não é uma decisão fácil de
tomar ou quando é difícil identificar até mesmo em que consiste o dilema ético.

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PARTE I

Este aspecto torna essencial que os funcionários públicos cumpram normas que
conhecem e compreendem e que podem utilizar como base para tomar decisões
éticas. Deverão poder usufruir de aconselhamento confidencial quando sentirem
necessidade.
A maior parte das pessoas preferiria ser – e aparentar ser – honesta e res-
peitada pela sua integridade pessoal. Esta asserção está correcta e proporciona
um ponto inicial para um sistema de gestão da ética que disponha de potencial
para fazer incursões sérias no terreno da má conduta ética. Frequentemente, a
má conduta pode ser tanto o resultado de equívocos e más interpretações como
de ilegalidade evidente. Em tal meio, descobrir o que está certo e errado é geral-
mente muito simples.
Nos dias de hoje, tanto em países desenvolvidos como em países em transi-
ção, as exigências colocadas no serviço público advêm de diversos quadrantes,
incluindo: aumentar a privatização e a contratualização externa de funções
tradicionalmente governamentais; delegação da responsabilidade, incluindo a
responsabilidade financeira, dentro de organizações de serviço público; maiores
pressões para abertura e para um escrutínio dos meios de comunicação mais
intensivo do sector público; uma intensidade continuamente maior da actividade
de grupos de pressão interessados em conseguir negócios com o Governo; e
uma maior disponibilidade por parte do público para apresentar queixas quando
a qualidade do serviço público é fraca. Todos contribuíram para um aumento da
consciencialização acerca da necessidade de dar passos para melhorar a base
ética com a qual o serviço público funciona. Além de tudo isto, muitos países em
transição têm­‑se deparado com a herança de quadros do sector público desmo-
ralizados e disfuncionais, frequentemente mal pagos e mesmo sem receberem
a sua remuneração, forçando­‑os a sobreviverem com o que quer que consigam
obter do público pelos serviços que têm prestado.
Na gestão de instituições da função pública, as áreas de responsabilidade
e discrição alargaram­‑se em muitas áreas. Além disso, as sondagens realizadas
em vários países revelaram que a hostilidade do público para com as estruturas
governamentais pode ser elevada. Nos países em vias de desenvolvimento e
em transição, as entidades públicas podem sofrer de uma série de deficiências,
encontrando­‑se o nepotismo, o clientelismo e o favoritismo entre os obstáculos
mais graves a uma administração racional. Os familiares e outros podem acreditar
que lhes deverão ser oferecidos empregos, contratos ou tão simplesmente pro-
priedade governamental, e podem aplicar uma pressão intensa sobre um familiar
com emprego público pela expectativa de que proporcionem o sustento a vários
membros da família alargada – particularmente quando os níveis de remuneração
são praticamente insuficientes para satisfazer as necessidades pessoais imediatas
do funcionário público.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Um grupo de estudo da OCDE sugeriu os seguintes Princípios Gerais para


a conduta ética nas administrações públicas. Segundo a organização, os países
podem usar estes princípios como uma ferramenta a adaptar às condições nacio-
nais e para encontrarem os seus próprios meios para chegarem a um enquadra-
mento eficaz que se adeqúe às suas próprias circunstâncias. Os princípios são,
obviamente, insuficientes por si sós, mas constituem um método para integrar a
gestão da ética num meio de gestão pública alargado20.

1. As normas éticas para o serviço público deverão ser claras.


Os funcionários públicos necessitam de conhecer os princípios e normas
básicas que se espera que apliquem no decorrer das suas actividades
laborais e onde se situam os limites de um comportamento aceitável. Uma
declaração concisa e bem publicitada, como um Código de Conduta, de
normas e princípios éticos fundamentais, que orientem o serviço público,
por exemplo, sob a forma de um Código de Conduta, pode alcançar este
objectivo criando uma compreensão partilhada por todo o Governo e pela
comunidade em geral.

2. As normas éticas deverão encontrar­‑se reflectidas no enquadramento legal.


O enquadramento legal é a base para comunicação das normas e princípios
obrigatórios mínimos de comportamento para todos os funcionários públi-
cos. As leis e regulamentações poderão afirmar os valores fundamentais do
serviço público e deverão disponibilizar o enquadramento para orientação,
investigação, acção disciplinar e acção judicial.

3. Os funcionários públicos deverão ter à disposição orientação ética.


A socialização profissional deverá contribuir para o desenvolvimento das
competências e discernimento necessários que permitam aos funcionários
públicos aplicar os princípios éticos em circunstâncias concretas. A forma-
ção facilita a existência de consciência ética e pode desenvolver competên-
cias essenciais para análise ética e para raciocínio moral. Uma progressão
imparcial pode ajudar a criar um ambiente no qual os funcionários públicos
estão mais dispostos a enfrentar e a resolver tensões e problemas éticos.
Deverão ser disponibilizados mecanismos de consulta interna e orientação
para auxiliar os funcionários públicos a aplicarem as normas éticas básicas
no local de trabalho.

20 Os princípios para reforma do sector público que se seguem são tirados do documento Best

Practices in Combating Corruption da OSCE, 2004 (disponível em www.osce.org/item/13568.


html).

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PARTE I

4. Os funcionários públicos deverão conhecer os seus direitos e obrigações ao


expor algum acto doloso.
Os funcionários públicos necessitam de conhecer os seus direitos e obriga-
ções a nível da exposição de suspeitas de actos dolosos ou de actos dolosos
efectivos dentro do serviço público. Estes deverão incluir regras e procedi-
mentos claros para os funcionários seguirem e uma cadeia de responsabi-
lidade formal. Os funcionários públicos também necessitam de conhecer
que tipo de protecção estará ao seu dispor em casos de denúncia de actos
dolosos.

5. O compromisso político para com a ética deverá reforçar a conduta ética


dos funcionários públicos.
Os líderes políticos são responsáveis por manter um padrão elevado de
probidade no cumprimento dos seus deveres oficiais. O seu compromisso é
demonstrado dando o exemplo e realizando acções apenas disponíveis ao
nível político; por exemplo, criando acordos legislativos e institucionais que
reforcem o comportamento ético e criem sanções contra actos dolosos;
fornecendo apoio e recursos adequados para actividades relacionadas com
a ética por todo o Governo; e evitando a exploração de regras e leis éticas
por motivos políticos.

6. O processo de tomada de decisões deverá ser transparente e aberto a


escrutínio.
O público tem o direito de saber o modo como as instituições públicas
aplicam o poder e os recursos a elas confiados. O escrutínio deverá ser faci-
litado por processos transparentes e democráticos, supervisão pelo poder
legislativo e pelo acesso a informação pública. A transparência deverá ser
ainda mais aumentada através de medidas como sistemas de divulgação e
reconhecimento do papel da existência de meios de comunicação indepen-
dentes e activos.

7. Deverão existir directrizes claras para a interacção entre os sectores público


e privado.
Regras claras que definam as normas éticas deverão orientar o compor-
tamento dos funcionários públicos ao lidarem com o sector privado; por
exemplo, relativamente a aquisições públicas, à externalização ou às condi-
ções de emprego público. Aumentar a interacção entre os sectores público
e privado exige que seja prestada maior atenção aos valores do serviço
público e que se exija aos parceiros externos que respeitem esses mesmos
valores.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

18. As condições do serviço público e a gestão de recursos humanos deverão


promover uma conduta ética.
As condições de emprego no serviço público, como, por exemplo, as pers-
pectivas de carreira, desenvolvimento pessoal, remuneração adequada
e políticas de gestão de recursos humanos, deverão criar um ambiente
conducente ao comportamento ético. A utilização de princípios básicos,
como o mérito, de forma consistente no processo diário de recrutamento
e promoção, ajuda a operacionalizar a integridade no serviço público.

19. Deverão existir mecanismos de responsabilização adequados no serviço


público.
Os funcionários públicos deverão ser responsáveis pelas suas acções
perante os seus superiores e, de um modo mais lato, perante o público. A
responsabilidade deverá centrar­‑se tanto no respeito de regras e de prin-
cípios éticos como na obtenção de resultados. Os mecanismos de respon-
sabilização podem ser internos a uma entidade assim como de amplitude
governamental ou podem ser fornecidos pela sociedade civil. Os mecanis-
mos que promovem a responsabilidade podem ser concebidos de modo a
proporcionarem os controlos adequados, ao mesmo tempo que permitem
uma gestão apropriadamente flexível.

10. Deverão existir sanções e procedimentos apropriados para lidar com a má


conduta.
Os mecanismos de detecção e investigação independente de actos dolo-
sos como, por exemplo, a corrupção, são uma parte necessária de uma
infra­‑estrutura de ética. É necessário dispor de procedimentos e recursos
fiáveis de monitorização, participação e investigação de violações a regras
do serviço público, assim como sanções administrativas ou disciplinares
proporcionais para desencorajar a má conduta. Os administradores deve-
rão adoptar o bom senso apropriado na utilização destes mecanismos
quando for necessário actuar.

Três reformas destacam­‑se como particularmente importantes na maior parte


das situações, nomeadamente a liderança, a reforma salarial, o recrutamento e a
promoção (meritocracia). Também adicionámos as denúncias como um exemplo
de outra ferramenta útil (ver capítulo sobre a corrupção mais à frente). Nenhuma
destas vale por si só, mas são todas elementos essenciais para qualquer reforma
séria da função pública.

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PARTE I

Liderar pelo exemplo

Um dos princípios consiste em que os administradores deverão demonstrar


e promover uma conduta ética. Larbi defende que o compromisso político para
com a reforma ética é um requisito fundamental para a eficácia de outros ele-
mentos da infra­‑estrutura de ética (Larbi, 2001). Num meio laboral em que são
fornecidos os incentivos apropriados, o comportamento ético tem um impacto
directo na prática diária dos valores e normas éticas do serviço público. Tais
incentivos podem incluir condições de trabalho adequadas e uma avaliação do
desempenho eficaz. Os administradores têm um papel importante a este respeito
ao fornecerem uma liderança consistente e servindo de modelos a nível de ética
e conduta na sua relação profissional com líderes políticos, cidadãos e com outros
funcionários públicos.
Além disso, as políticas e práticas de administração deverão demonstrar o
compromisso de uma organização para com as normas éticas. Não é suficiente
que os Governos tenham apenas estruturas baseadas em regras ou em confor-
midade. Os sistemas baseados apenas em conformidade podem encorajar inad-
vertidamente a que alguns funcionários públicos funcionem, simplesmente, nos
limiares da má conduta, defendendo que, se não estão a violar a Lei, estão a
agir eticamente. A política governamental deve não só delinear as normas míni-
mas, cujo não cumprimento por parte do funcionário governamental não será
tolerado, mas também facilitar a consciencialização ética e articular claramente
um conjunto de valores de serviço público aos quais os funcionários deverão
aspirar.
A liderança por parte dos funcionários públicos seniores deverá inspirar res-
peito. Sem a liderança dos quadros superiores, qualquer tentativa de alcançar
grandes reformas num ambiente de corrupção sistémica estará destinada a falhar.
A liderança pessoal é vital e um líder não deve ser visto como alguém que se
limita a falar muito. No entanto, tal como a legislação por si só não é suficiente
para alcançar uma reforma em situações em que a corrupção seja sistémica, do
mesmo modo, a liderança também não é suficiente. Podem ser criadas coligações
de apoio à liderança, mas existem perigos quando adoptam interesses cujos pas-
sados são questionáveis. No entanto, se só forem admitidos para uma coligação
grupos imaculados por suspeitas ou por problemas passados de corrupção, serão
em número bastante reduzido. O que é importante é que os parceiros de coliga-
ção se comprometam a construir um novo futuro e, tendo estabelecido esse com-
promisso, que sejam responsabilizados pelo seu cumprimento.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Reforma salarial

Os níveis salariais são importantes enquanto incentivo aos funcionários públi-


cos para que não sejam corruptos ou desonestos. As reformas salariais são essen-
ciais para oferecer incentivos adequados. A reforma da estrutura remuneratória
para proporcionar aos funcionários públicos um salário adequado e outros bene-
fícios pode ser uma ferramenta importante para alterar a estrutura de incentivos
para os funcionários públicos, e ainda para tornar a remuneração mais transpa-
rente, para eliminar os casos de remuneração insuficiente e para conseguir con-
tratar pessoal mais qualificado para o sector público. Os incentivos para que os
funcionários públicos rejeitem a corrupção e trabalhem de um modo eficaz são
muito superiores se o sistema de remuneração se basear no princípio da meri-
tocracia. Quando os salários e as promoções dependem claramente do respeito
dos funcionários públicos pelas regras de conduta e pelo bom desempenho, eles
serão menos corruptos e mais eficientes nas suas funções e darão maior valor ao
emprego em si. Consequentemente, a demissão ou a despromoção tornam­‑se
num assunto muito mais sério. O que por sua vez, no entanto, significa que têm
de existir mecanismos disciplinares adequados e eficazes. A reforma salarial é
portanto apenas uma de uma série de incentivos que necessita de ser tratada e
que não pode ser implementada isoladamente. Se os funcionários públicos não
receberem um salário que permita a sua subsistência, os incentivos para exigirem
subornos são consideráveis. Reformas salariais que criem salários que garantam a
subsistência dos funcionários públicos podem, portanto, limitar potencialmente
a corrupção de baixo nível e garantir uma maior integridade na função pública.
Entre as medidas para criar incentivos para um comportamento isento de corrup-
ção também se deverão incluir os denominados “benefícios sociais”. Por exemplo,
funcionários públicos reformados deverão receber pensões mensais. De igual
modo, os funcionários públicos apanhados em flagrante delito – a receberem
subornos ou outros benefícios de corrupção – deverão perder automaticamente
os seus benefícios sociais.
As reformas salariais também podem tornar os salários do sector público
competitivos com os oferecidos no sector privado de modo a atrair mais funcio-
nários altamente competentes. Um melhor capital humano aumenta a eficiência
do sector público e pode induzir um maior respeito pelos Códigos de Conduta.

Recrutamento e promoção

Não se pode esperar que instituição alguma actue com profissionalismo na


ausência de pessoal qualificado e motivado. Uma das características mais destrutivas

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PARTE I

da corrupção ocorre quando as pessoas são nomeadas para cargos públicos com
base nas suas ligações e não nas suas capacidades.
As disposições institucionais relativas à selecção, recrutamento, promoção e
demissão de funcionários públicos são centrais para o funcionamento apropriado
do sector público e podem ser melhor disponibilizadas através da legislação. As
pessoas adequadas têm de ser atraídas para os cargos adequados. O que, por sua
vez, significa que os cargos por si só necessitam de ser suficientemente atractivos
para cidadãos qualificados e de ser uma alternativa viável ao sector privado.
Um serviço público em que os seus membros são nomeados e promovidos
com base no mérito serão muito menos susceptíveis à corrupção do que os que se
baseiam predominantemente em ligações políticas e pessoais. Numa meritocracia,
os funcionários são promovidos com base no seu desempenho e devem os seus
cargos, pelo menos em parte, ao público que servem. Em situações em que os car-
gos são obtidos através de ligações ao poder, a lealdade é devida à ligação e não à
instituição para a qual a pessoa foi nomeada. Frequentemente, o beneficiário de
tal nomeação procurará que o seu “padrinho” o proteja se encontrar quaisquer
dificuldades. Os nomeados de partidos políticos podem colocar problemas parti-
cularmente difíceis aos administradores que não disponham das mesmas ligações.
Um serviço público baseado no mérito apresenta numerosas vantagens. Em
primeiro lugar, os candidatos são julgados em relação a critérios que podem ser
verificados, caso se suspeite de infracções. Em segundo lugar, os detentores de
cargos têm um incentivo para um bom desempenho. A politização da função
pública leva a desempenhos medíocres. Quando os políticos têm um impacto
directo no recrutamento, promoção, demissão ou transferência de funcionários
públicos por motivos que não os que se baseiam no mérito, a disciplina profis-
sional poderá ser difícil de aplicar e os incentivos ao desempenho poderão ser
difíceis de utilizar uma vez que a sua nomeação é de curto prazo. Em terceiro
lugar, os funcionários públicos nomeados politicamente podem sentir­‑se mais
inclinados a quebrar as regras de modo a maximizarem os seus ganhos pessoais
no curto espaço­‑tempo que esperam permanecer no cargo. Em quarto lugar, os
funcionários públicos que devam os seus cargos às suas próprias capacidades
assim como a critérios claros e verificáveis, sentir­‑se­‑ão responsáveis perante o
Estado que lhes dá o emprego em vez de perante o Governo no poder. Em quinto
lugar, um serviço público baseado no mérito evita a natureza relativamente de
curto prazo das nomeações políticas e a consequente perda de experiência a cada
mudança de Governo. No entanto, uma função pública puramente baseada nos
méritos poderá ter de ser diversa de modo a acomodar programas de acção afir-
mativa em consonância com as práticas democráticas.
Por exemplo, esses programas podem garantir que as minorias são equitati-
vamente representadas no serviço público e corrigir desequilíbrios geográficos e

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de sexo. Além disso, uma função pública baseada no mérito não é uma garantia
contra a corrupção. Os pré­‑requisitos para um recrutamento isento de corrupção
para cargos do sector público incluem um recrutamento predominantemente
baseado no mérito e um programa de promoções com critérios objectivos e con-
testáveis e com um percurso de carreira claro, uma minimização da interferência
política tanto na acção como na contratação do sector público, uma limitação
estrita das nomeações políticas a determinados cargos de alto nível, um salário
adequado e outros benefícios para oferecer incentivos adequados, e protecção
dos funcionários públicos através de mecanismos internos de estado de direito.

Denúncias

Por denúncias entende­‑se chamar a atenção para actos dolosos que estejam
a ocorrer dentro de uma organização. Podem existir disposições especiais como
“linhas de apoio” dentro da organização ou gabinete ou uma linha interministe-
rial especialmente criada para questões como o contrabando ou a corrupção, de
modo a facilitar as denúncias. Um delator é por vezes chamado de “informante”
ou “bufo”. Existem quatro formas de efectuar denúncias:

• Relatar qualquer acto doloso ou violação da Lei às autoridades apropriadas


(como a um supervisor, linha de apoio ou a um inspector­‑geral).
• Recusar participar em actos dolosos no local de trabalho.
• Testemunhar em processo judicial.
• Fuga de informações dos actos dolosos para os meios de comunicação social.

É evidente que as denúncias também ocorrem no sector privado, mas visto


esperar­‑se que o Governo seja franco e transparente, a divulgação completa de
comportamentos contrários à ética ou ilegais na esfera pública é particularmente
importante. Nem todos os problemas na esfera pública são, no entanto, gerados
dentro das organizações governamentais; fornecedores, adjudicatários e indiví-
duos externos podem participar e mesmo gerar, por exemplo, corrupção, frau-
des e desvios de fundos. As denúncias estão ligadas à ética pois representam a
compreensão de uma pessoa, a um nível aprofundado, de que uma determinada
acção que a sua organização está a realizar é prejudicial, que interfere com os
direitos das pessoas, que é injusta ou diminui o bem comum. Efectuar denúncias
também apela às virtudes, especialmente à coragem, uma vez que defender os
seus princípios pode ser uma experiência extenuante. Apesar de se supor que as
leis protegem os delatores de retaliações, as pessoas que se sentem ameaçadas

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PARTE I

pelas revelações podem ostracizar o delator, marginalizando­‑o ou mesmo


forçando­‑o a abandonar o seu cargo público. Por outro lado, ocasionalmente, o
papel desempenhado pelos delatores tornou­‑os mais respeitados e catapultou­‑os
para cargos superiores.
Existe uma proveitosa distinção entre denúncias externas e internas. Defende­
‑se que as entidades e gabinetes deverão encorajar as denúncias internas de
modo a que os problemas sejam resolvidos dentro da organização antes de os
funcionários sentirem que necessitam de apelar para fora da mesma para que
alguém actue.
Existem ainda sugestões sobre o modo de encorajar as denúncias internas nas
empresas. Algumas destas medidas incluem o estabelecimento de uma política
interna sobre a participação de práticas ilegais ou contrárias à ética (uma polí-
tica que deverá ser franca, transparente, bem publicada e incluir mecanismos
formais de participação de violações), como linhas de apoio e caixas de correio,
comunicações claras acerca do processo para verbalizar preocupações, como, por
exemplo, a cadeia de comando ou a identificação de uma pessoa em específico
para lidar com as reclamações. Então, deverão existir comunicações claras sobre a
proibição das retaliações.
Além disso, as denúncias deverão ser apoiadas desde o topo (detentores de
cargos superiores como o Presidente da Câmara, o Administrador, Membros do
Conselho, Direcção), que deverão afirmar o seu compromisso para com o processo.
Os líderes eleitos e administrativos devem encorajar o comportamento ético e
incentivar todas as pessoas dentro da organização ao cumprimento de normas
mais rigorosas, incluindo a divulgação de actividades que possam ter um impacto
negativo na actividade pública.
Por último, deverão existir investigações e deve ser dado seguimento imediato
a todas as alegações de má conduta. Deverão também ser apresentados relató-
rios destas investigações ao Conselho ou Direcção.
No entanto, os delatores no sector público enfrentam frequentemente um pro-
blema único em que as suas divulgações podem constituir crime. Tal pode criar um
dilema ético quando a má conduta continuada é grave e não existe qualquer pers-
pectiva razoável de que o abuso acabe sem que seja feita uma denúncia.
Se este processo não apresentar resultados, se o acto doloso não for resolvido
dentro da organização, poderá ser a altura adequada para denúncias externas,
denúncias a alguém com autoridade sobre a entidade, ao sistema judicial ou à
imprensa.
No entanto, o delator potencial tem de avaliar os benefícios e os danos que a
delação poderá provocar. Quando estão em jogo vidas ou quando alguém se está a
apropriar indevidamente de milhões de fundos públicos, as preocupações para com o
bem­‑público superam os danos à privacidade pessoal ou ao segredo governamental.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Por outro lado, um delator tem de determinar se a conduta que está a expor repre-
senta um caso de efectivo acto doloso ou se representa apenas um desacordo de
política. É claro que grande parte da actividade pública deverá ser debatida em
público e a abordagem de desacordos sobre a maior parte das questões não só é
aceitável como desejável. As sessões à porta fechada, no entanto, são secretas por
um motivo. Revelar o interesse que uma cidade tem numa propriedade em particu-
lar poderá aumentar o preço dessa parcela. A exposição de informações sensíveis
sobre uma decisão de contratação ou demissão podem ser desnecessariamente
prejudiciais para um indivíduo. Por mais que as opiniões dos membros da Direcção
ou do Conselho sejam divergentes acerca destas questões, elas deverão permane-
cer secretas, caso um problema não ascenda ao nível da má conduta.

CONFLITOS DE INTERESSES

Um conflito de interesses é uma situação em que alguém num cargo de con-


fiança e responsabilidade como, por exemplo, um político, um funcionário público,
um executivo, um director de uma empresa, um cientista de investigação, um
médico, um advogado, tem interesses profissionais e pessoais concorrentes. Por
outras palavras, um conflito de interesses coloca­‑se quando um funcionário públi-
co ou um detentor de cargo público é influenciado por considerações pessoais
na realização do seu trabalho. Tais interesses concorrentes podem tornar difícil o
cumprimento dos seus deveres de forma imparcial.
Algumas das formas mais comuns de conflitos de interesses incluem o auto
suprimento, em que os interesses públicos e privados colidem, por exemplo,
quando um funcionário público detém interesses empresariais privados. Inclui­
‑se o segundo emprego, em que os interesses do emprego “privado” possam
contradizer as funções de funcionário público. Trata­‑se do caso da acumulação de
cargos, em que os funcionários governamentais ou os detentores de cargos elei-
tos trabalham para as empresas que deveriam regular. Também inclui interesses
familiares, quando, por exemplo, um cônjuge, um filho ou outro familiar próximo
é contratado (ou se candidata a um emprego) ou quando bens ou serviços são
adquiridos a um tal familiar ou a uma empresa controlada por um familiar. Além
disso, inclui ofertas de amigos que também se relacionam com o funcionário
público que recebe as ofertas.
Existe um conflito de interesses mesmo se não resultar daí qualquer acto con-
trário à ética ou impróprio. Um conflito de interesses pode criar uma aparência
de improbidade que pode prejudicar a confiança na pessoa, profissão ou sistema
judicial.

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PARTE I

Os conflitos de interesses aplicam­‑se a uma série de profissionais e detento-


res de cargos públicos. Um conflito de interesses surge quando alguém tem dois
deveres que entram em conflito. Por exemplo, um funcionário pode ter o dever
de desempenhar bem e lealmente o seu trabalho como gestor de aquisições, e
pode também ter um dever familiar para com um irmão que, por coincidência,
está a fazer uma proposta de venda de aparelhos ao empregador do gestor. Neste
caso, o funcionário tem um conflito de interesses apesar de não ser um advogado,
médico, político, etc.

Identificar conflitos de interesses

A maior parte dos conflitos de interesses são óbvios: os funcionários públicos


que adjudicam contratos a si próprios, a membros das suas famílias, a amigos ou
a “padrinhos” políticos, funcionários públicos que possuem – ou cujas relações
próximas possuem – acções em empresas sujeitas à sua regulação, com as quais
estão a contratualizar ou às quais estão a atribuir licenças, etc. Estes conflitos não
requerem qualquer explicação. Apresentam circunstâncias que ameaçam o inte-
resse público, independentemente de o funcionário reivindicar a sua honestidade.
As situações de conflitos de interesses não podem ser evitadas. É inevitável
que, de tempos a tempos, os interesses pessoais entrem em conflito com as deci-
sões ou acções decorrentes do cargo. Para evitar confusões e mal­‑entendidos,
é importante identificá­‑los desde o início. A lista que se segue pode ajudar os
funcionários públicos individuais a identificarem situações em que é provável que
surjam conflitos de interesses21.
• O que faria se as posições estivessem invertidas? Se eu estivesse a candidatar­
‑me a um emprego ou a uma promoção e um dos decisores estivesse na
posição em que me encontro? Será que pensaria que o processo foi justo?
• Será que um familiar, um amigo, um associado ou mesmo eu próprio estare-
mos em posição de ganhar ou perder financeiramente devido a uma decisão
ou acção da organização sobre este assunto?
• Será que um familiar, um amigo, um associado ou mesmo eu próprio estare-
mos em posição de ganhar ou perder a minha/nossa reputação devido a uma
decisão ou acção da organização?
• Contribuí a título individual de algum modo para a decisão ou acção relativa
ao assunto?

21A lista foi retirada do documento Best Practices in Combating Corruption da OSCE, 2004
(disponível em www.osce.org/item/13568.html).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• Recebi qualquer benefício ou hospitalidade de alguém que se encontra em


posição de ganhar ou perder com a decisão ou acção da organização?
• Sou membro de alguma associação, clube ou organização profissional, ou
tenho ligações e afiliações particulares a organizações ou indivíduos que se
encontram em posição de ganhar ou perder devido à consideração da orga-
nização sobre o assunto?
• Será que poderão existir quaisquer benefícios pessoais para mim no futuro
que possam ensombrar a minha objectividade?
• Se participasse na avaliação ou na tomada de decisão, ficaria preocupado se
alguns dos colegas ou o público em geral viessem a tomar conhecimento da
minha associação ou ligação com esta organização?
• Será que uma pessoa justa e razoável entenderia que fui influenciado pelos
meus interesses pessoais no cumprimento dos meus deveres públicos?
• Estou confiante na minha capacidade para actuar imparcialmente e segundo
o interesse público?

Gerir e evitar situações de conflitos de interesses

Quando alguém considerar que poderá ter um conflito de interesses, o que


deverá fazer? O primeiro passo deveria ser colocar em registo o potencial conflito
e procurar obter orientação de um superior ou de um conselheiro de ética, caso
esteja um disponível. Obviamente, alguns conflitos serão tão menores que não
exijam mais do que o registo da situação e que seja dado conhecimento do mesmo
aos outros participantes no processo de tomada de decisões.
Por exemplo, um funcionário poderá ser detentor de um número de acções
numa empresa tão pequeno que o seu valor não poderá ser significativamente
afectado pelo resultado da análise do assunto em particular. Nesse caso, os res-
tantes envolvidos no processo poderão sentir­‑se confortáveis com a participação
continuada do mesmo no processo de tomada de decisão. Porém, quando tal não
acontecer, a pessoa em questão deverá escusar­‑se de qualquer envolvimento
adicional.
A lista que se segue pode ser utilizada para avaliar se um conflito de interes-
ses declarado poderá exigir que os restantes funcionários públicos solicitem à
pessoa em questão que se afaste22:

22A lista foi retirada do documento Best Practices in Combating Corruption da OSCE, 2004
(disponível em www.osce.org/item/13568.html).

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PARTE I

• Foi disponibilizada toda a informação relevante para garantir uma avaliação


apropriada?
• Qual é a natureza da relação ou associação que poderia suscitar o conflito?
• É necessário aconselhamento jurídico?
• O assunto é de grande interesse público? É controverso?
• O envolvimento do indivíduo neste assunto poderia ensombrar a sua inte-
gridade?
• O envolvimento do indivíduo poderia ensombrar a integridade da organização?
• De que modo seria vista a participação deste indivíduo na decisão em ques-
tão por um membro do público ou pelos adjudicatários ou fornecedores
potenciais da organização?
• Qual é a melhor forma de garantir a imparcialidade, a justiça e de proteger
o interesse público?

Outras estratégias que uma organização ou Governo podem adoptar para evi-
tar comprometer, ou aparentar comprometer, a sua integridade incluem a manu-
tenção de registos completos e precisos dos processos de tomada de decisões;
garantir a abertura tornando pública informação precisa acerca dos processos,
decisões e acções da organização; e garantindo que a decisão final pode ser subs-
tanciada (especialmente quando existir um risco de conflito de interesses ou a
percepção da existência de um conflito de interesses).

Clientelismo, favoritismo, nepotismo

O clientelismo, de um modo geral, inclui várias formas de favoritismo (das


quais o nepotismo é um tipo particular), representa uma forma particular de con-
flito de interesses. O clientelismo representa uma situação em que uma pessoa
(um detentor de cargo público eleito ou um funcionário público) usa o seu poder
público para obter um favor para um familiar, para o seu grupo étnico ou religioso,
partido político, amigos ou outros interesses aos quais tenha aderido.
O clientelismo é a tendência bastante comum de favorecer laços de consan-
guinidade/afinidade (família, clã, tribo, grupo étnico, religioso ou regional). Na
maior parte dos sistemas não democráticos, o Presidente tem, por exemplo, o
Direito Constitucional de nomear pessoas para todos os cargos superiores. Estas
nomeações atingem facilmente as várias centenas de cargos nos Ministérios,
nos aparelhos militar e de segurança, em empresas e entidades para­‑estatais e

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públicas, no corpo diplomático e no partido que se encontra no poder. Este direito


legal ou consuetudinário, obviamente, alarga a possibilidade de (e intensifica)
todos os tipos de favoritismo.
O favoritismo ou conluio é um mecanismo de abuso do poder que deixa
transparecer “privatização” e uma distribuição dos recursos estatais sem impar-
cialidade. O favoritismo consiste na atribuição de cargos ou benefícios a amigos
e familiares, independentemente do mérito. O favoritismo é tão simplesmente a
tendência humana normal para favorecer amigos, família e qualquer pessoa pró-
xima e de confiança.
Na esfera política, o favoritismo consiste na inclinação dos detentores de
cargos estatais e dos políticos, que têm acesso a recursos estatais e ao poder de
decidir sobre a distribuição dos mesmos, para darem tratamento preferencial a
determinadas pessoas ao distribuírem recursos. O objectivo é sustentar e prolon-
gar o poder, o cargo e a riqueza pessoais.
O nepotismo é a forma especial de favorecer familiares (esposa, irmãos
e irmãs, filhos, sobrinhos, primos, cunhados, etc.). É uma forma especial de
favoritismo em que um detentor de cargo público (governante) que dispõe
do direito de realizar nomeações prefere nomear para cargos proeminentes
membros da sua própria família. Muitos Presidentes não limitados tentaram
assegurar a sua posição de poder (precária) nomeando familiares para cargos
políticos, económicos e militares/de segurança vitais no aparelho de Estado.
Quando “bem­‑sucedidos”, os sistemas profundamente nepotistas aproximam­‑se
continuamente de uma “máfia” devido aos “valores” e lealdades da família parti-
lhados.
Outros tipos de favoritismo acontecem quando, por exemplo, determina-
das pessoas são incumbidas de adquirir propriedade pública privatizada (por
preço reduzido), ou lhes é dado direito de preferência, empréstimos garantidos
ou subsidiados pelo Estado, ou são seleccionadas como empresárias para obras
públicas, nomeadas para representar interesses da empresa em várias comissões
e comités públicos, ou são­‑lhes oferecidos outros privilégios através de várias
políticas económicas. Através de tais mecanismos, muitos políticos e burocratas
foram capazes de passarem de um cargo público para uma actividade privada e
de transferirem o poder político para riqueza privada. O(s) tipo(s) de favoritismo
que será preferido em cada situação depende das necessidades políticas e estra-
tégicas do momento e dos padrões culturais e sociais.
O favoritismo não é apenas um problema legal e procedimental, mas é tam-
bém um problema de qualificações deficientes, de falta de competências e de
ineficiência. Além disso, em situações em que os cargos políticos estão fortemente
correlacionados com as possibilidades de práticas corruptas e extractivas, o favo-
ritismo pode assegurar prerrogativas substanciais e lucros para determinadas

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PARTE I

famílias, clãs e subgrupos sociais. O nepotismo pode causar conflitos de lealdades


dentro de qualquer organização, em particular quando um familiar é colocado
sob a supervisão directa de outro. Tais situações deverão ser evitadas.
Talvez não seja de surpreender que nem todos os países tenham leis anti
nepotismo, por muito desejáveis que possam ser. Quando estas são insuficien-
tes, o favoritismo revelado para com um familiar tende a ser resolvido através de
proibições legais. Estas incluem proibições contra privilégios injustificados, inte-
resses financeiros pessoais directos ou indirectos que se espere razoavelmente
poderem limitar a objectividade e a independência de discernimento, ou dar
lugar a uma aparência de improbidade.
Os princípios básicos para lidar com o favoritismo e o nepotismo no sector
público consistem em salvaguardar e encorajar a meritocracia (imparcialidade
em todos os processos de recrutamento e selecção); concorrência (garantindo
que, por exemplo, as vagas são abertamente publicitadas e que os anúncios são
enquadrados de modo a reflectir adequadamente os requisitos para o emprego e
a maximizar o número de candidatos possível, e que os candidatos são seleccio-
nados de acordo com estes critérios); abertura (especialmente no que respeita
a decisões de recrutamento e selecção); integridade (incluindo sanções clara-
mente indicadas para a não conformidade com políticas e práticas estabelecidas
e pessoas independentes envolvidas nos processos de tomada de decisões) e a
possibilidade de recorrer (de modo a que candidatos não seleccionados, mas qua-
lificados que considerem que não houve um seguimento adequado dos procedi-
mentos possam ser capazes de recorrer para uma autoridade adequada visando
uma análise independente do processo e do seu resultado).

Ofertas e gratificações

É essencial a existência de regras e regulamentações claras acerca do que os


funcionários têm direito a receber no decorrer das suas funções e sobre o modo
como estas ofertas deverão ser registadas. Num contexto privado, as ofertas não
são geralmente solicitadas e destinam­‑se a transmitir um sentimento, como a
gratidão, por parte de quem realiza a oferta. Não existe a expectativa de retribui-
ção. As ofertas realizadas em contexto puramente privado não são o cerne desta
discussão.
No entanto, as ofertas também são oferecidas a indivíduos no decorrer de
relações comerciais. Tais ofertas são geralmente feitas com a finalidade de criar
um sentimento de obrigação em quem as recebe.
A recepção de modo corrupto de uma oferta ou benefício por parte de um
funcionário público constitui um crime em todos os países.

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De que modo poderá então um funcionário distinguir entre uma oferta e


um suborno? Uma oferta pode ser feita inocentemente e de boa­‑fé ou pode ser
uma tentativa de influenciar o funcionário. Quem a faz pode ter inúmeros moti-
vos desde a amizade, a hospitalidade e a gratidão até ao suborno e à extorsão.
Em contexto comercial, as ofertas a um indivíduo são raramente realizadas por
motivos puramente de hospitalidade ou caridade. Pode ser este o caso se a ofer-
ta ou o benefício tiver um valor comercial reduzido ou nulo, como uma recor-
dação ou uma bugiganga. No entanto, nos casos em que a oferta ou o benefício
tenham mais do que um valor nominal, é possível que sejam oferecidos para
criar uma noção de obrigação e mesmo uma expectativa de que algo lhe será
retribuído.
Os sentimentos de obrigação podem surgir com a aceitação de uma refeição
gratuita, de bilhetes para um evento desportivo ou de descontos em compras.
Assim que tal oferta seja aceite, um funcionário público pode encontrar­‑se com-
prometido. Se, posteriormente, a pessoa que fez a oferta solicitar tratamento
favorável, pode ser difícil para o funcionário recusar. Quem realizou a oferta
poderá mesmo ameaçar alegar que foi o funcionário que solicitou a oferta em
primeiro lugar.
Os indivíduos que tentam corromper funcionários públicos começam frequen-
temente por pequenos estímulos que não aparentam ter qualquer motivação
imprópria inerente. Uma forma pela qual os funcionários públicos podem ficar
envolvidos em corrupção é através da racionalização da sua aceitação de uma
oferta ou benefício.
As racionalizações frequentemente utilizadas incluem pensar que toda a gente
o faz, que a motivação de quem faz as ofertas é puramente a generosidade, bon-
dade ou amizade; que a troca de ofertas e benefícios não prejudica ninguém; que
as ofertas e benefícios encorajam ao desenvolvimento de relações comerciais
benéficas (incentivando a eficiência administrativa ao permitir eliminar a buro-
cracia); que as ofertas e os benefícios são meramente parte de rituais ou práticas
culturais (e, consequentemente, a sua recusa poderá ofender); e que os funcioná-
rios públicos não recebem uma remuneração suficiente.
Estes argumentos ignoram o conceito de dever público. Na qualidade de
funcionários públicos, os funcionários têm o dever de garantir que a actividade
governamental é realizada com imparcialidade e integridade. Se aceitarem ofer-
tas e benefícios que lhes sejam oferecidos no decorrer das suas funções, eles
poderão sentir um sentimento de obrigação para com a pessoa que ofereceu
o benefício ou fez a oferta. Os sentimentos de obrigação irão prejudicar a sua
imparcialidade e, de modo geral, ajudarão a minar a confiança no serviço público.
A maior parte dos Códigos de Conduta afirma que os funcionários não
deverão aceitar uma oferta ou benefício cujo objectivo seja, ou provavelmente

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PARTE I

seja, levar a que actuem parcialmente a favor de quem os ofereceu no decorrer


dos seus deveres. Se a oferta ou benefício tiver mais do que um valor nomi-
nal, espera­‑se que os funcionários apresentem ao seu supervisor uma nota
descrevendo o incidente. A responsabilidade de aceitar ou não uma oferta ou
benefício não deverá recair sobre um funcionário individual. Em vez disso, é da
responsabilidade das entidades estabelecer limites e oferecer orientação sobre
os tipos de ofertas e benefícios que os funcionários podem receber. Para tal,
pode recorrer­‑se ao desenvolvimento de directrizes e políticas sobre ofertas e
benefícios.

Divulgação dos bens e dos rendimentos

Em vários lugares do planeta defendeu­‑se que um dos instrumentos principais


para a manutenção da integridade no serviço público é a declaração de rendi-
mentos, ou seja, declarações que indicam os activos e os passivos de todos os
que se encontram em cargos influentes, assim como dos seus familiares imedia-
tos. A finalidade da obtenção das declarações dos funcionários públicos é identi-
ficar que parte da sua riqueza não é justamente atribuível aos seus rendimentos,
a ofertas ou empréstimos. É uma tese que está a ganhar o apoio de entidades
internacionais. No mínimo, tais declarações dão a ilusão de ser “uma solução
rápida para a corrupção”.
Alguns países exigem que os detentores de cargos públicos superiores se pri-
vem de grandes investimentos, já outros requerem a declaração de rendimentos,
investimentos e propriedades antes de aceitar um cargo público e regularmente
daí em diante. Apesar de os que estiverem a aceitar subornos não realizarem
uma divulgação rigorosa dos bens e dos rendimentos, pensa­‑se que a exigência
de que registem formalmente as suas situações financeiras constitua um alicerce
para qualquer controlo subsequente, quer pelos meios de comunicação social,
quer pelo sistema judicial. Impossibilitaria, por exemplo, os detentores de cargos
públicos de sugerirem que qualquer riqueza posterior que não tenha sido revelada
tenha, de facto, sido adquirida legitimamente.
Os activistas anticorrupção, os meios de comunicação e a polícia podem
seguir de perto o desenvolvimento de regimes eficazes e justos para a monitori-
zação de rendimentos, activos e passivos dos funcionários públicos superiores. Se
for possível colocá­‑los em funcionamento – e existem dificuldades óbvias – então
servirão como uma ferramenta valiosa na limitação dos abusos dos cargos.

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CORRUPÇÃO

“A corrupção é um dos maiores desafios do mundo contemporâneo. A cor-


rupção prejudica o bom Governo, distorce fundamentalmente a política públi-
ca, leva a uma má atribuição de recursos, prejudica o sector privado e o seu
desenvolvimento e prejudica em particular os mais necessitados.”
Banco Mundial (1997), World Development Report, Washington, World Bank Press

A corrupção encontra­‑se praticamente em todo o lado, mas encontra­‑se tei-


mosamente entrincheirada nos países pobres da África Subsariana, está ampla-
mente difundida na América Latina, está profundamente enraizada nos países
recentemente industrializados e está a alcançar proporções alarmantes em vários
países ex­‑comunistas. A corrupção tem sido tema de uma quantidade substancial
de teorização e de investigação empírica ao longo dos últimos 30 anos, o que
resultou numa desconcertante quantidade de explicações, tipologias e soluções
alternativas. No entanto, enquanto noção extensivamente aplicada tanto nas
ciências políticas como nas sociais, a corrupção está a ser utilizada de uma forma
bastante aleatória. A corrupção é compreendida como tudo aquilo que inclui
desde subornos pagos a funcionários públicos em troca de algum favor e do des-
vio de fundos públicos, a uma larga variedade de práticas económicas e políticas
dúbias em que políticos e burocratas enriquecem e a qualquer utilização abusiva
do poder público para fins pessoais. Além disso, a corrupção é por si só um fenó-
meno multifacetado e o conceito de corrupção contém demasiadas conotações
para ser analiticamente funcional sem uma definição mais aproximada. As formas
de corrupção são diversas a nível de quem são os actores, os iniciadores e de
quem lucra, do modo como é feita, e da extensão até à qual é praticada. Adicio-
nalmente, as causas e as consequências da corrupção são complexas e diversas
e têm sido investigadas na ética individual e nas culturas cívicas, na história e na
tradição, no sistema económico, nos acordos institucionais e no sistema político.
O problema da corrupção entrou de algum modo nas ciências políticas e
económicas devido ao novo interesse no papel do Estado nos países em vias de
desenvolvimento e, em particular, devido à noção de que o Estado é um instru-
mento indispensável para o desenvolvimento económico. Em contraste com os
modelos largamente rejeitados “dominados pelo Estado” e “sem Estado”, existe
agora bastante consenso acerca da relevância de um Estado de dimensão média
no desenvolvimento económico. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial
de 1997 afirmava que “um Estado eficaz é vital para o fornecimento de bens e
serviços – assim como as regras e instituições – que permitem que os mercados se

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PARTE I

desenvolvam e que as pessoas tenham vidas mais saudáveis e felizes. Sem o Estado,
o desenvolvimento sustentável, tanto económico como social, é impossível”.
A corrupção tem surgido como um constituinte temático deste paradigma
renovado, no qual o desenvolvimento necessita de reformas económicas, depen-
dentes por sua vez de reformas políticas e administrativas, como a boa gover-
nação e as reformas da função pública, responsabilidade, Direitos Humanos,
multipartidarismo e democratização. Além disso, têm sido observados níveis muito
elevados de corrupção em situações em que o Governo é visto como ilegítimo
pela população (implicando desrespeito amplamente difundido pelos procedi-
mentos judiciais) e em países em que o Estado desempenha um papel interven-
cionista na economia. O papel do Estado e da política é, portanto, essencial para
compreender a corrupção.
O papel decisivo do Estado é também reflectido na maior parte das defini-
ções de corrupção. A corrupção é convencionalmente entendida como, e refe-
rida como, um comportamento de tentar obter riqueza privada por parte de
alguém que representa o Estado e a autoridade pública, ou uma má utilização
de bens públicos por funcionários públicos para fins privados. A definição opera-
cional do Banco Mundial é que a corrupção consiste ‘‘no abuso do poder público
para benefício privado’’. Na definição clássica e mais amplamente utilizada de
J. S. Nye, a corrupção é o “comportamento que se desvia dos deveres formais
do desempenho de um papel público devido a ganhos pecuniários ou de status
privados (pessoais, família próxima, conventículo privado); ou que viola as regras
contra o exercício de determinados tipos de influência no âmbito privado”23.
Uma versão algo actualizada com os mesmos elementos pode ser encontrada na
definição de Mushtaq Khan, que a define como o “comportamento que se desvia
das regras formais de conduta que orientam as acções de alguém num cargo de
autoridade pública devido a motivos do âmbito privado como a riqueza, poder
ou status”24.
Por outras palavras, a corrupção é uma relação particular (que se poderá
caracterizar como pervertida) entre o Estado e a sociedade. De um lado temos
o Estado, isto é, funcionários públicos, burocratas e políticos, ou seja, qualquer
pessoa que detenha um cargo de autoridade para atribuir direitos sobre recur-
sos públicos (escassos) em nome do Estado ou do Governo. A corrupção dá­‑se
quando estes indivíduos estão a utilizar inadequadamente o poder público em
si outorgado para benefício privado. Um acto corrupto dá­‑se quando a pessoa
responsável aceita dinheiro ou outro tipo de recompensa e, em seguida, trata de

23 Nye, J. S. (1967), Corruption and Political Development, in American Political Science Re‑

view, vol. 61, n.o 2, p. 417.


24 Khan, Mushtaq H., A Typology of Corrupt Transactions in Developing Countries, in IDS Bul‑
letin, vol. 27, n.o 2, p. 12.

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utilizar indevidamente os seus poderes oficiais para pagar favores indevidos. Por
exemplo, constitui um acto de corrupção quando um detentor de cargo estatal
aceita um suborno para prestar algum serviço público que é supostamente gratuito
ou exige mais do que o seu preço oficial pela sua prestação.
No outro lado de um acto corrupto está, contudo, “o lado da oferta” e existem
algumas teorias e conceptualizações que colocam a ênfase nos “corruptores”,
aqueles que oferecem subornos, e nas vantagens que ganham. Estes fornecedo-
res são o público ou, por outras palavras, a sociedade não­‑estatal. O parceiro do
funcionário público corrupto é qualquer indivíduo, empresa, organização nacional
ou estrangeira não pertencente ao Governo nem ao sector público25.
O enfoque no lado da oferta foi ainda mais aprofundado. Por exemplo, a
influência de empresas (empresas privadas, por exemplo grandes empresas
estrangeiras e multinacionais) no Estado, e especialmente no modo como exer-
cem influência sobre e estabelecem conluios com funcionários públicos para
extrair vantagens, tem sido denominada de “captura de Estado”. Algumas empre-
sas em economias de transição tiveram capacidade para dar forma a regras de
regulação para sua própria vantagem, com um custo social considerável. Em tal
“economia de captura”, os funcionários públicos e os políticos vendem de modo
privado uma série de vantagens geradoras de rendimentos “a la carte” para
empresas individuais. Em casos extremos, as empresas poderosas dão forma às
regras jurídicas e às políticas fornecendo ganhos privados ilícitos, não transpa-
rentes, a funcionários públicos e a políticos, por exemplo, através da “compra”
de decisões presidenciais e parlamentares através de dinheiro ou financiamento
do partido. O que adquirem são benefícios como assegurar direitos de proprie-
dade, acesso a recursos (concessões), monopólios e preferências, assim como a
eliminação de obstáculos, tais como impostos e regulamentações ambientais, de
saúde e de segurança.
Argumentou­‑se que, de modo a avaliar se a corrupção é eticamente aceitável
ou não, necessitamos de utilizar argumentos éticos ou teoria ética que forneçam
abordagens racionais a questões de certo ou errado. Existe uma série de teorias
éticas ou perspectivas que propõem critérios diferentes para a avaliação se um
acto ou prática é aceitável ou não26.

25 A corrupção também existe dentro e entre empresas privadas, nas Organizações Não­

‑Governamentais e entre indivíduos nos seus negócios pessoais, sem existir envolvimento de
qualquer instituição estatal ou funcionário estatal. Também existe corrupção sob a forma de
subornos, burlas e métodos mafiosos dentro de, e entre, empresas privadas, também existem
indivíduos traidores e desleais em empresas privadas. Este tipo de corrupção pode ter reper‑
cussões no sistema político, uma vez que destrói a confiança do público e pode ser sintomá‑
tico para o desenvolvimento económico e moral gerais de uma sociedade.
26Ivar Kolstad (2008), Corruption as Violation of Distributed Ethical Obligations, Mimeo,
Outu­bro 2008, Bergen, Chr. Michelsen Institute.

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PARTE I

Dois dos conjuntos de teorias éticas mais conhecidos são as teorias conse-
quencialistas, que avaliam actos ou práticas com base nas suas consequências, e
as teorias deontológicas, que avaliam actos ou práticas com base nas suas carac-
terísticas (ver anteriormente). Um exemplo de uma teoria consequencialista é o
utilitarismo que afirma que se deverá escolher as acções que maximizam a soma
de utilidade ou felicidade para todos os indivíduos. Um exemplo de uma teoria
deontológica é a perspectiva Kantiana que considera como contrárias à ética as
acções que violam um conjunto de princípios denominados como imperativos
categóricos.
A prática de corrupção tem sido avaliada tanto sob perspectivas consequen-
cialistas como deontológicas. Alguns investigadores têm utilizado argumenta-
ções consequencialistas para mostrar que a corrupção é contrária à ética. Por
exemplo, defendeu­‑se que a corrupção leva à adjudicação de contratos públicos
à empresa que pagar os subornos mais elevados e não à empresa que oferece
a melhor relação entre qualidade e preço (uma vez que os funcionários públicos
irão seleccionar projectos que geram os maiores rendimentos privados e não os
que apresentam melhores resultados sociais). Defendeu­‑se que a corrupção atrai
mão­‑de­‑obra qualificada para fora de actividades produtivas para a procura de
rendimentos, exacerbando ainda mais as ineficiências da atribuição de recursos.
Também tem sido defendido que a corrupção afecta desproporcionalmente os
mais desfavorecidos (em linha com a declaração da Transparency International
supracitada). Em suma, a corrupção tem consequências prejudiciais e é, por isso,
considerada como contrária à ética sob uma perspectiva consequencialista.
Outros investigadores forneceram argumentos contra a corrupção sob uma
perspectiva Kantiana. Por exemplo, tem­‑se argumentado que a corrupção viola
o imperativo categórico de “actuar apenas de acordo com máximas que se pode
desejar que sejam Leis Universais da Natureza”, visto que a corrupção é uma
tentativa de obter tratamento especial. Também se tem argumentado que a cor-
rupção viola o imperativo categórico de “tratar sempre a humanidade de uma
pessoa como um fim e nunca como um meio apenas”, visto a corrupção envolver
enganos e prejudicar a capacidade racional e moral dos envolvidos. Tal demons-
tra o forte consenso sobre a corrupção, que a corrupção é eticamente indefensá-
vel do ponto de vista das teorias consequencialistas e das deontológicas.
No entanto, os argumentos supracitados não nos permitem concluir que a
corrupção é sempre contrária à ética. O problema reside no facto de as definições
supracitadas não definirem explicitamente “cargo público” nem “poder outorga-
do”. A corrupção é vista como um abuso de qualquer tipo de cargo público ou do
poder outorgado, no entanto, este poder não é necessariamente democrático,
legítimo ou responsabilizável. O seguimento de políticas que beneficiam apenas
um pequeno grupo (os detentores do poder ou os seus apoiantes, por exemplo)

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ou obedecer a ordens (para não se desviar do mandato do seu cargo administra-


tivo) de uma autoridade que siga políticas que beneficiam apenas um grupo mais
restrito não seria ético27.
Além disso, em cada acto corrupto existe benefício para ambas as partes
(apesar de ambas as partes não ganharem igualmente). O benefício conseguido
por ser corrupto pode ser visto como ético pelos “patrocinadores”, especialmente
quando o Governo é visto como ilegítimo. Esta é a explicação comum (ou des-
culpa) de actos corruptos: “Se eu não aceitar este suborno, alguém o aceitará
(alguém com menos direito a ele)”.

Corrupção política

Na definição partilhada pela maior parte dos cientistas políticos, a corrupção


política é qualquer transacção entre os actores do sector privado e do sector
público através da qual os bens colectivos são ilegitimamente convertidos em
recompensas privadas. Esta definição, no entanto, não distingue claramente
entre corrupção política e corrupção burocrática. Estabelece o necessário envolvi-
mento do Estado e dos agentes estatais na corrupção, sem qualquer noção acerca
do nível de autoridade na qual a corrupção acontece.
Numa definição mais estrita, a corrupção política envolve decisores políticos.
A grande corrupção, ou corrupção política, acontece nos mais altos níveis do
sistema político. Acontece quando os políticos e agentes estatais, que estão man-
datados para criar e aplicar leis em nome do povo, são eles próprios corruptos. A
corrupção política existe quando os decisores políticos utilizam o poder político
do qual dispõem para sustentar o seu poder, status e riqueza. Deste modo, a cor-
rupção política pode ser distinguida da corrupção burocrática, ou de baixo nível,
que consiste na corrupção na administração pública, na extremidade ligada à
implementação das políticas.
Mesmo quando a distinção entre corrupção política e burocrática é bastante
ambígua, uma vez que depende da separação da política da administração (que
não é clara na maior parte dos sistemas políticos), a distinção é importante a
nível analítico e prático.
A corrupção política ocorre no nível superior do Estado e tem repercussões
políticas. A corrupção política, para além de conduzir a uma atribuição indevida
de recursos, também afecta o modo como as decisões são tomadas. A corrupção
política é a manipulação das instituições políticas e das regras de procedimento
e, portanto, influencia as instituições governamentais e o sistema político, e leva

27Heidenheimer, Arnold J., Michael Johnston e Victor T. LeVine (eds.), Political Corruption.
A Handbook. New Brunswick/NJ, 1989 (3.a Edição, 1993), Transaction Pub.

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PARTE I

frequentemente à deterioração institucional. A corrupção política é, portanto,


algo mais do que um desvio das normas legais formais e escritas dos Códigos de
Ética Profissional e Acórdãos de Tribunais. A corrupção política existe quando as
leis e as regulamentações são mais ou menos sistematicamente abusadas, con-
tornadas, ignoradas ou mesmo ajustadas pelos governantes para se adequarem
aos seus interesses.
Existem dois processos básicos de corrupção política: extracção e preservação
do poder. A corrupção política extractiva consiste nos métodos utilizados por
elites governantes para abusarem do poder que detêm para extrair e acumular
recursos. Acontece quando os detentores de poder político se enriquecem a si
próprios, individualmente e colectivamente. Os líderes políticos podem utilizar o
seu poder para capturar e acumular recursos de uma forma ilegal e imoral através
de subornos, desvios e fraudes. O mesmo processo de acumulação pode também
ser conseguido em processos de privatização, concessão de terrenos, contratuali-
zação pública, empréstimos e através de preferências que beneficiam os interes-
ses comerciais dos detentores de cargos públicos, mesmo quando são legais ou
foram tornados relativamente legais.
A corrupção utilizada para fins de preservação do poder consiste na utilização
corrupta de recursos (públicos) com a finalidade de preservar e expandir o poder.
Ocorre quando os detentores de poder político utilizam recursos extraídos ou
outros meios corruptos para manter ou fortalecer o seu controlo do poder. Os
mandatários podem utilizar muitas técnicas para se manterem no poder, muitas
das quais são perfeitamente legais, já outras são ilegais e corruptas. A utilização
corrupta de poder político para preservação e extensão do poder pode tomar a
forma de compra de apoio político através de favoritismo, clientelismo, coopta-
ção, “apadrinhamento” político e compra de votos. Os meios incluem a distribui-
ção de benefícios financeiros e materiais (dinheiro, ofertas e rendimentos), mas
também valores simbólicos como status e “inclusão”. A utilização corrupta de
poder político para preservação e extensão do poder também inclui a manipula-
ção de várias instituições de supervisão e controlo, criando vários “síndromas de
impunidade”.
Os dois processos políticos de corrupção – extracção para benefício privado
e enriquecimento, e a utilização de meios corruptos para preservação do poder
– constituem categorias analíticas importantes, especialmente quando se trata
de formular contramedidas. É importante notar que os dois processos estão
frequentemente ligados. Muitos dos maiores escândalos de corrupção política
incluem ambos os aspectos: esquemas de suborno em larga escala são concluídos
quando o dinheiro extraído é utilizado para comprar apoio político e o círculo
completa­‑se quando a finalidade do poder é a riqueza e a finalidade da riqueza é
o poder.

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Controlar a corrupção política

Pode argumentar­‑se com segurança que a democratização é a única estratégia


sustentável a longo prazo disponível para erradicar a corrupção política sistémica.
A democratização inclui dois processos básicos: aumento da responsabilidade
horizontal (controlos e equilíbrios institucionais credíveis e eficientes) e aumento
da responsabilidade vertical (controlo popular aprofundado através da voz popu-
lar e da participação).
A responsabilidade horizontal é de particular importância no combate à cor-
rupção política. Tal refere­‑se ao sistema de verificações e equilíbrios institucio-
nais, de controlos constitucionais e institucionais entre eleições. Estes incluem,
entre outros, o poder executivo (Governo e entidades administrativas do Estado),
o judicial e o legislativo e as várias instituições de supervisão como os provedo-
res, investigadores, procuradores e auditores. A maior parte dos sistemas políti-
cos inclui regras e procedimentos formais que se destinam a restringir o exercício
do poder político e a salvaguardar os Direitos Humanos e políticos, mas o esta-
belecimento e a existência formal de instituições de responsabilidade horizontal
não significa por si só que sejam eficientes. Nos países em vias de desenvolvi-
mento com corrupção política incorporada, estas instituições são particularmente
débeis.
Existem duas instituições básicas de verificações e equilíbrios: o Parlamento
e o poder judicial. Ambos são essenciais para qualquer controlo significativo e
democrático da corrupção política, mas, ao mesmo tempo, constituem em muitos
países uma parte importante do problema da corrupção. A abordagem básica
para fortalecer os Parlamentos consiste em pugnar por reformas constitucionais
que ajudem a garantir a respectiva autonomia. A autonomia parlamentar refere­
‑se à sua independência do ramo executivo. Constitui a sua capacidade de levar a
cabo o seu mandato, de interagir e de não estar sujeito à pressão da Presidência
e de desempenhar um papel democrático vital de verificações e equilíbrios. Em
termos práticos, relaciona­‑se com garantias constitucionais e com autonomia a
nível pessoal e a nível financeiro. Trata­‑se de um processo longo e complicado,
mas que deverá, mesmo assim, ser o objectivo final de qualquer compromisso
com sistemas parlamentares.
A abordagem básica para fortalecer o poder judicial consiste em pugnar por
reformas constitucionais que ajudem a garantir a respectiva autonomia. Um
aspecto principal desta autonomia seria a liberdade de escolher pessoal (isto é,
em muitos países, os Juízes são nomeados pelo Presidente) e a segurança finan-
ceira. Também se deverá exigir transparência e justificação de decisões e acções
judiciais (prestação de esclarecimentos). Mesmo nos sistemas presidenciais com
pouca autonomia, a função de responsabilização dos Tribunais pode ser reforçada

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PARTE I

através de melhorias nas infra­‑estruturas (biblioteca, computadores e registos


judiciais), administração dos Tribunais, formação do pessoal judicial e do pessoal
de apoio, assistência jurídica, literacia e auxílio à investigação, para além da reforma
dos procedimentos de nomeação e da autonomia orçamental.
Para além de fortalecer os poderes parlamentar e judicial (salvaguardando a
separação dos poderes), a corrupção política pode ser controlada através de uma
série de outras medidas institucionais e procedimentais. A lista de medidas possí-
veis é extensa. Apresentamos aqui alguns exemplos da literatura anticorrupção28:
• Desenvolvimento institucional
– Reforma parlamentar
– Fortalecimento das instituições judiciais
– Reforma judicial
– Entidades anticorrupção especializadas
– Provedores
– Auditores e instituições de auditoria
– Fortalecimento dos Governos locais
– Eleições livres e justas
– Regulamentação sobre o financiamento dos partidos políticos

• Medidas preventivas
– Abertura e transparência política
– Divulgação de bens
– Monitorização dos contratos do sector público
– Regulamentações de conflitos de interesses
– Monitorização de activos e interesses financeiros
– Reforma das regulamentações de aprovisionamento
– Regulação de licenças e concessões
– Formulação de uma estratégia nacional anticorrupção
– Livre acesso à informação
– Regulação dos grupos de pressão
– Aumento da consciencialização e poder do público
– Regulamentação das campanhas eleitorais incluindo monitorização da
cobertura dos meios de comunicação social e das contribuições e despe-
sas das campanhas
– Formação dos meios de comunicação social e jornalismo de investigação
– Organismos reguladores conjuntos entre o Governo e a sociedade civil

28 Esta lista é adaptada do Corruption Fighter’s Toolkit, do UNODC (Gabinete Anticorrupção

da ONU), 2002 (http://www.unodc.org//pdf/crime/toolkit/f1tof7.pdf), do Corruption Figh‑


ter’s Toolkit, da TI, 2001 (http://www.transparency.org/tools/e_toolkit) e do Best Practices in
Combating Corruption, da OSCE, 2004 (http://www.osce.org/item/13568.html).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• Aplicação da Lei
– Investigação financeira e monitorização de activos
– Amnistia, imunidade e mitigação de punições
– Normas para evitar e controlar a lavagem dos lucros da corrupção
– Extradição
– Recuperação de activos

Corrupção burocrática

A corrupção política envolve os decisores políticos e acontece aos mais altos


níveis do sistema político, a corrupção burocrática (ou corrupção administrativa)
acontece ao nível de implementação das políticas. A corrupção burocrática não
envolve políticos eleitos (ou nomeados), mas envolve os funcionários da admi-
nistração estatal: a função pública, os Ministérios e os fornecedores de serviços
(incluindo a saúde e a educação, a polícia e os serviços alfandegários, os transpor-
tes e uma série de outras entidades e serviços estatais)29.

Controlar a corrupção burocrática

Uma vez que a corrupção burocrática se baseia, na maior parte dos casos,
num acordo ou entendimento particular entre dois indivíduos, uma relação
pessoal de base negocial de conhecimento através da família, clã, origem ou
semelhante, um dos acordos institucionais que pode ser estabelecido para redu-
zir a corrupção é tornar impessoal a relação entre os funcionários estatais e o
público. Todos os mecanismos do ideal Weberiano são aplicáveis, portanto, como
a especialização, linhas hierárquicas de autoridade, recrutamento, promoção e
remuneração de acordo com a experiência e o mérito. O controlo da corrupção
(burocrática e política) pode ser correctamente vista como uma parte da constru-
ção de normas éticas, da regulamentação legal e das reformas institucionais que
criam a “infra­‑estrutura de ética” ou o “sistema de integridade”.
A lista de medidas e ferramentas possíveis para limitar ou restringir a corrup-
ção burocrática é extensa. Apresentamos aqui alguns exemplos (não exaustivos)
da literatura anticorrupção30:

29 Estas pessoas geralmente mantêm os seus postos de trabalho quando existe uma mudança

de Governo.
30 É de notar que algumas das medidas sob “controlar a corrupção política” também pode‑

rão ser relevantes para controlar a corrupção burocrática, as duas listas não são mutuamente
exclusivas.

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PARTE I

• Desenvolvimento institucional
– Reforma da função pública
– Códigos e normas de conduta

• Medidas preventivas
– Abertura e transparência
– Gestão orientada para os resultados
– Utilização de incentivos positivos para melhorar a cultura e a motivação
dos funcionários
– Mecanismos para reclamações públicas
– Formulação de uma estratégia nacional anticorrupção
– Carta dos cidadãos e pactos de integridade
– Desenvolvimento da consciencialização através de anúncios televisivos e
de rádio, campanhas de consciencialização
– Programa de ética abrangente para pequenas e médias empresas

• Aplicação da Lei
– Directrizes para as investigações
– Operações de vigilância electrónica
– Protecção a delatores
– Assistência legal mútua

• Monitorização e avaliação
– Sondagens sobre a prestação de serviços
– Estudos sobre a integridade nacional/avaliações do país
– Estatísticas­‑espelho enquanto ferramenta de investigação e prevenção
– Indicadores de desempenho mensuráveis no sector judicial

OBSERVAÇÕES FINAIS

As listas acima (de formas possíveis de limitar a corrupção política e admi-


nistrativa), e ainda a descrição geral das reformas administrativas e do modo de
gerir conflitos de interesses, demonstram que existem muitas formas possíveis de
estabelecer normas éticas e de criar uma “infra­‑estrutura de ética” ou “regime de
ética”. As reformas efectivamente necessárias dependerão do tipo de problema
de corrupção existente em cada país e do tipo de deficiências que existam no sis-
tema de integridade de cada país. Não existe medida alguma que o possa resol-
ver facilmente. O estabelecimento de uma infra­‑estrutura eficiente e operacional
leva tempo.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Além disso, cada elemento depende dos outros. Larbi defende relativamente
à Etiópia que “é aparente que a debilidade em uma parte da infra­‑estrutura de
ética como o Parlamento tem repercussões nas outras partes, como nas audito-
rias. Assim, os reformadores necessitam de estar cientes das dependências funcio-
nais e das ligações organizacionais entre vários componentes da infra­‑estrutura
de ética. Tal apela a uma abordagem integrada e coordenada das reformas”
(Larbi, 2001:261).
Central ao raciocínio de grande parte das discussões mais recentes sobre ética
no sector público é o facto de ter de ser vista sobretudo em termos institucionais
e organizacionais. A ética individual e o comportamento ético é amplamente uma
construção que depende do meio político e do espírito cultural da administração
pública.

Por que é que os economistas devem interessar­‑se por questões morais?


Os economistas devem interessar­‑se por questões morais, no mínimo
pelos quatro motivos seguintes:
1. A
 moralidade dos agentes económicos influencia os seus comportamen-
tos e, portanto, influencia os resultados económicos. Além disso, os pró-
prios pontos de vista do economista podem influenciar a moralidade e
os comportamentos dos outros de formas planeadas e não planeadas.
Uma vez que os economistas se interessam pelos resultados, eles neces-
sitam de se interessar pela moralidade.
2. A
 economia do bem­‑estar padrão assenta em pressupostos morais for-
tes e contestáveis. Para avaliar e desenvolver a economia do bem­‑estar
deste modo é necessário dedicar atenção à moralidade.
3. A
 s conclusões da economia devem estar ligadas aos compromissos
morais que orientam a política pública. Para compreender o modo como
a economia tem uma influência na política é necessário compreender
estes compromissos morais, que, por sua vez, requer dedicação de aten-
ção à moralidade.
4. A economia positiva e a normativa estão frequentemente interligadas.
Para compreender a relevância moral da economia positiva é necessária
uma compreensão dos princípios morais que determinam esta relevância.

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PARTE I

ARTIGO 2
A ÉTICA DA GOVERNAÇÃO EMPRESARIAL EM ORGANIZAÇÕES
DO SECTOR PÚBLICO. TEORIA E AUDITORIA31

ABSTRACT

The current climate of increased accountability in public sector organizations


has brought attention to the ethical dimension of corporate governance. This
article presents a conceptually informed method for undertaking of an ethically
focused audit corporate governance. The conceptual­‑theoretical terrain as set out
in three dimensions: ethics as applied moral philosophy, equity as social justice
and corporate governance as the moral health of an organization. At an opera-
tional level, the conceptual model proposed provides a framework to evaluate the
overall integrity of an organization and embraces the inter­‑related themes of indi-
vidual responsibility, social equity and political responsibility. A method for ethical
audits is also set out. It emphasizes the significance of key personnel in (re)pro-
ducing and challenging the organizational ethos, while recognizing the necessary
limitations placed on researcher’s commitment to anonymity and confidentiality
in the collection, interpretation and analysis of data, and in the eventual sharing
of such data.

SUMÁRIO

O clima actual de responsabilidade crescente nas organizações do sector


público atraiu a atenção para a dimensão ética da governação empresarial. O
presente artigo apresenta um método conceptualmente informado para reali-
zar uma auditoria eticamente centrada da governação empresarial. O terreno
teórico­‑conceptual encontra­‑se estabelecido em três dimensões: ética enquanto
filosofia moral aplicada, equidade enquanto justiça social e governo empresarial

31 Título original: The Ethics of Corporate Governance in Public Sector Organizations. Theory

and Audit, Scott Fleming and Mike McNamee, Public Management Review, vol. 7, n.o 1, 2005,
pp. 135­‑144.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

enquanto saúde moral de uma organização. A um nível operacional, o modelo


conceptual proposto oferece um quadro para avaliar a integridade global de uma
organização e abrange os temas interrelacionados da responsabilidade indivi-
dual, da equidade social e da responsabilidade política. Também é estabelecido
um método para auditorias éticas que coloca ênfase na significância de pessoas
chave na (re)produção e na contestação do espírito das organizações, ao mesmo
tempo que se reconhece as limitações necessárias colocadas sobre os investiga-
dores devido ao compromisso dos mesmos para com o anonimato e a confiden-
cialidade na recolha, interpretação e análise de dados e na eventual partilha dos
mesmos.

INTRODUÇÃO

Durante os últimos anos, a integridade ética das organizações do sector


público tornou­‑se um aspecto fundamental sujeito a uma crescente observação
institucional no Reino Unido (Comissão de Direito para Inglaterra e País de Gales,
1998; Comité de Normas Mínimas na Vida Pública, 2003). Fazem­‑se sentir preo-
cupações semelhantes noutros domínios. A Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico (OCDE) tem desempenhado um papel fundamental
no combate às práticas de suborno e corrupção, bem como (mais proactivamente)
desenvolvido orientações e recomendações para os países membros relativos à
gestão de boas práticas de ética no sector público (OCDE, 2000).
Alguns comentadores académicos começaram a debruçar­‑se sobre a saúde
moral das organizações de fundos públicos através de uma auditoria sistemática
às práticas existentes (Brennan e Douglas, 2002). Também se desdobraram tenta-
tivas que visaram desenvolver um quadro para a interpretação de questões éticas
em organizações do sector público (Taylor, 2000). As questões relacionadas com
a responsabilização e a responsabilidade assumiram uma grande importância no
âmbito das organizações do sector público (Clark et al., 1998), transparência ou
“visibilidade” (Alford, 2001) e princípios que podem informar tomadas de decisão
(financeiras) (McKay, 2000). Esta área emergente da investigação é frustrada pela
diversidade de nomenclatura e pelas “filosofias” ou “ideologias” subjacentes. Ter-
mos como “governação empresarial”, “responsabilidade empresarial”, “auditoria
de ética”, “auditoria de governação ética”, “responsabilização social” e “responsa-
bilidade social” são abundantes. Actualmente, parece não haver qualquer debate
ou plano evidente do terreno conceptual. Por exemplo, considerando uma audi-
toria de governação ética, a Agência para o Melhoramento e o Desenvolvimento
(2001) identifica os aspectos fundamentais de integridade, responsabilização e

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PARTE I

gestão de normas, mas é ineficaz ao abordar uma perspectiva totalmente infor-


mada da ética no que diz respeito a lidar com a problemática mais vasta da ope-
ração global de uma organização. As diferenças que estão inerentes a este grupo
de termos têm os seus próprios potenciadores: por vezes, as necessidades da
própria instituição, outras, as necessidades daqueles a quem reportam. Além disso,
diferentes disciplinas académicas enquadram o tema em questão de formas dife-
rentes de acordo com as normas relevantes, quer sejam Contabilidade, Econo-
mia, Psicologia Social, Filosofia, Política ou Sociologia.
Muitos relatórios e artigos eruditos incluem a expressão “auditoria de éti-
ca”, mas não conseguem considerar suficientemente a componente da ética. O
mesmo será dizer que são consistentes em termos de auditoria, mas frágeis em
termos de ética. Para dar resposta a esta deficiência, como uma alternativa ou
como uma prática complementar, defendemos que os gestores e académicos
devem ponderar com seriedade as abordagens filosóficas à ética, informados teo-
ricamente por, e metodologicamente subscrito por, os métodos da ciência social
que podem propor perspectivas éticas potencialmente sofisticadas com as quais
realizar auditorias de ética organizacional.
Um relevante ponto de partida consiste em definir um leque de distinções
conceptuais, de acordo com Johnson e Scholes (1999), individual (o comporta-
mento e atitude de indivíduos na organização), empresarial (responsabilidade
social da organização) e macro (isto é, o contexto nacional e internacional). Neste
sentido, no presente artigo, determina­‑se um quadro analítico no qual é possível
avaliar­‑se a saúde moral das organizações do sector público. Ao fazê­‑lo, existem
dois conceitos fundamentais que exigem clarificação e (breve) elaboração: ética
e governação empresarial. É então apresentado um modelo de acordo com três
níveis de operação: individual, social e político. Por fim, define­‑se uma aborda-
gem metodológica através da qual as auditorias de ética à governação das organi-
zações do sector público podem ser operacionalizadas.

ÉTICA E GOVERNAÇÃO EMPRESARIAL

Ética

A ética pode ser considerada como uma forma de filosofia moral – o estudo
sistemático das regras, princípios, obrigações, acordos, valores e normas morais.
A um nível social, existem outros aspectos que estruturam a cultura ou atmosfera
moral das organizações. Então, para se compreender uma organização do sector

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

público, em particular, é necessário compreender­‑se e desenvolver imagens crí-


ticas dos valores32 das organizações – os conjuntos de valores e normas relativa-
mente partilhados que são expressos e negociados pelos próprios participantes
(consultar, por exemplo, Wallace et al., 1999).

Governação empresarial

No preâmbulo de um conjunto de princípios essenciais recentemente publi-


cados, a OCDE (2004:11) definiu as características fundamentais da governação
empresarial como: envolve[endo] um conjunto de relacionamentos entre a ges-
tão de uma empresa, o respectivo Conselho de Administração, os accionistas
e outros intervenientes... [e] disponibiliza[ndo] a estrutura através da qual os
objectivos da empresa são definidos, bem como os meios para se atingir esses
objectivos e se determinar o desempenho da monitorização.
Para fins de auditoria ética, a governação empresarial refere­‑se, essen-
cialmente, à ideia de que uma organização tem um leque de objectivos ou
finalidades que deve cumprir para que sejam eticamente defensáveis. Conse-
quentemente é necessário avaliar­‑se a cultura organizacional completa para se
compreender a saúde moral da organização.

Um Modelo Conceptual

Para se realizar a auditoria da governação empresarial de forma completa e


eficaz, desenvolveu­‑se um Modelo Conceptual (ver Tabela 1). O seu objectivo tem
duas vertentes: primeiro, representar em diagrama os espaços conceptuais e ins-
titucionais da ética e das questões relacionadas com a equidade numa organiza-
ção do sector público, e, segundo, disponibilizar um quadro e uma estrutura para
operacionalização da teoria na fase da auditoria.

32Não existe consenso relativamente ao facto de o conceito de “valores” ser pluralizado (em
inglês).

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PARTE I

Tabela 1 – Abordagem ética à governação das organizações do sector público.

Integridade

Respeito Equidade Responsabilidade

– Beneficência – Diversidade – Responsabilização


– Cortesia – Justiça – Eficácia
– Confidencialidade – Reconhecimento – Eficiência – Lealdade
– Honestidade – Tolerância
– Fidelidade – Transparência
– Anti abuso
– Anti discriminação
– Anti exploração
– Anti assédio
– Privacidade

Individual Social Política

O Modelo define uma representação analítica do leque de questões éticas sob


a forma de valores fundamentais (indicados por ordem alfabética e não indica-
dores de prioridade). O Modelo funciona como um paradigma com base no qual
se pode avaliar as operações de uma organização numa perspectiva globalizante,
não tentando descrever relações reais nem detalhar a respectiva cultura. Na rea-
lidade, os três níveis ou dimensões do Modelo Conceptual interrelacionam­‑se e
sobrepõem­‑se. Nenhum resulta isoladamente e um reconhecimento da respec-
tiva inter­‑relação assevera­‑se fundamental e inevitável. No entanto, a não indivi-
dualização dos componentes constituintes pode tornar a avaliação das políticas e
pessoas meramente subjectiva e/ou informe, e tentar representar todas as liga-
ções e interligações entre os próprios valores (que não resultarão uniformemente
em todas as organizações) pode tornar o Modelo cognitivamente impossível de
gerir. A divisão tripartida “individual/social/política” é utilizada sobretudo para
dar resposta ao clássico problema agência/estrutura na ciência social, reconhe-
cendo em simultâneo as posições e as críticas do liberalismo e do comunitarismo.
Em suma, individualizar acções e responsabilizar exclusivamente os funcionários
pelas respectivas acções é ignorar os incentivos culturais e as dificuldades que
actuam a um nível supraindividual. É importante reconhecer a crítica liberal do
comunitarismo (pelo menos a este respeito) de que as pessoas não são global-
mente determinadas pelas suas acções devido a circunstâncias sociais, tais como
quadros e ideologias institucionais. A simples definição de um modelo bifurcado
(social individual) não permitiria reconhecer a importância das dimensões políti-
cas da organização do sector público. Precisamente a forma como os indivíduos

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

realizam as suas tarefas, como interpretam e estabelecem prioridades para os


procedimentos, será sempre uma função da cultura da organização.

Respeito – Ao “Nível Individual”

O primeiro nível do Modelo Conceptual identifica valores que afectam directa-


mente o tratamento dos indivíduos na qualidade de funcionários da organização
sujeita a auditoria. Os valores que são centrais relacionam­‑se com o “respeito”
com que os indivíduos são tratados. Estes são essencialmente negativos na sua
orientação, bem como em coerência com as teorias éticas baseadas na natureza
dos direitos e deveres. O respeito, seguindo o imperativo categórico de Kant33, é
geralmente capturado no vocabulário dos direitos e deveres. Respeitar os indiví-
duos é, em primeira instância, assumir o compromisso de não os prejudicar.
Além disso, os valores positivos reflectem­‑se nas acções do beneficiário. Uma
preocupação altruísta para os outros no local de trabalho é frequentemente
capturada como a cortesia com que se tratam os colegas. Da mesma forma,
considera­‑se que os direitos morais preservam certos aspectos das vidas dos indi-
víduos em relação ao que é deles por direito próprio; este aspecto é capturado nos
valores da confidencialidade e da privacidade. Por sua vez, é frequente as orga-
nizações beneficiarem da fidelidade dos elementos que constituem a respectiva
equipa (individual e colectivamente) em termos de zelo e dedicação.

Equidade – Ao “Nível Social”

A equidade é um importante elemento da ética e baseia­‑se, essencialmente,


na ideia de justiça social e “imparcialidade”. Refere­‑se à distribuição justa de
mercadorias, serviços e outras formas de tratamento, é geralmente considerada
como compensatória. As estratégias e políticas de equidade são geralmente
formuladas em torno de determinadas populações (exemplo: grupos associados
por idade, classe, deficiência, etnia, sexo) e são consideradas como desejáveis
social e eticamente (por exemplo, como resposta a exclusividade, homofobia,
racismo).

33 É de salientar que o “imperativo categórico” exige alguma elaboração, visto que existem

duas interpretações. Na primeira, ao associar a moralidade à racionalidade, Kant define aquilo


que deve ser considerado como uma regra moral. Na sua opinião, todas as regras morais de‑
vem ser tais que todas as pessoas devem agir de acordo com as mesmas. Na linguagem cor‑
rente tal poderia resumir­‑se como “faz aos outros aquilo que gostarias que fizessem a ti”. A se‑
gunda interpretação incentiva­‑nos a nunca tratar os outros como um meio para atingirmos
os nossos objectivos, mas antes como objectivos em si mesmos, uma vez que todos os agen‑
tes humanos merecem o nosso respeito incondicional, visto tratarem­‑se de agentes morais
(consultar: Gert, 1988).

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PARTE I

Muitas democracias liberais ocidentais do século XXI caracterizam­‑se pela


diversidade sociocultural. O reconhecimento dessas diferenças e a sua exaltação
será um objectivo social essencial em qualquer organização, tal como a trans-
parência dos relacionamentos com e entre indivíduos e grupos no seio da orga-
nização (Wilson e Iles, 1999). De facto, as pessoas situam­‑se diferenciadamente
na organização no que diz respeito a várias características demográficas (Wexler,
2000), mas todas têm direito a serem tratadas com imparcialidade.
Sob a insígnia da equidade, a organização não deve limitar­‑se a adoptar as polí-
ticas mais eficientes para atingir os seus objectivos, mas deve fazê­‑lo num âmbito
que permita tratar os indivíduos com justiça. Parte do que engloba o tratamento
justo será o reconhecimento do contributo que esses indivíduos podem dar para a
organização como um todo, e que não se limite simplesmente aos indivíduos e res-
pectivos esforços. A medida em que existe uma abstenção construtiva e objectiva
para com a diversidade (de todos os tipos) é capturada na noção de tolerância.

Responsabilidade – Ao “Nível Político”

O terceiro nível do Modelo Conceptual, relacionado com “responsabilidade”,


baseia­‑se na ideia de que uma exploração dos indivíduos no contexto social está
incompleta sem um reconhecimento adequado da dimensão política do respec-
tivo papel na organização e da respectiva conduta individual e colectivamente,
como uma organização (Rorty, 1988). Por conseguinte, a desvalorização da
dimensão política das políticas e práticas transpareceria uma ingenuidade con-
ceptual e teórica.

Respeito, Equidade e Responsabilidade: os pontos comuns

A sobreposição entre níveis é considerável e há dois pontos em particular que


necessitam de realce. Primeiro, os economistas defendem frequentemente que as
preocupações relacionadas com equidade e eficiência encaminham as organiza-
ções do sector público em direcções incompatíveis34. Segundo, as preocupações
relacionadas com equidade e responsabilidade são sujeitas a uma constante tensão
(Elster, 1992). É evidente que um sistema explícito de alianças políticas é funda-
mental para a confiança que determinada organização exige, desenvolve e retém
com várias agências, bem como com o público (consultar: Henry, 2001). De facto, os
diferentes elementos da operação no seio de uma organização bem podem ter os

34 É importante salientar que, para além das tensões entre a equidade e outros valores, a sim‑

ples noção de equidade é, em si mesma, contestada. Para um exemplo de cuidados de saúde


no sector público, consultar Mooney (1993), que determina sete interpretações diferentes
de economistas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

seus valores subculturais. Além disso, estes relacionamentos não são fixos e imutá-
veis, são frequentemente transitórios e num constante estado de fluidez.

Aplicação do Modelo Conceptual

A auditoria consiste num “instantâneo” da organização num momento em


particular no tempo. Pode ser realizada por um ou mais membros da organiza-
ção em questão. Tem a vantagem da familiaridade com os sistemas e processos
internos, bem como uma intimidade com os valores da organização, mas também
corre o risco de ser afectada (contaminada) por preconceitos internos. Em alter-
nativa, pode ser realizada por pessoal externo à organização, acarretando uma
inevitável falta de sensibilidade ao contexto em particular, e talvez até ignorância
da cultura dos intervenientes. No entanto, um cariz fundamental dos aspectos
positivos da investigação externa, é a eliminação da tendência através da promo-
ção dos interesses empossados em determinado sector do quadro organizacional.
Por este motivo, em particular, a auditoria será melhor realizada por “elementos
externos ao contexto”. Além disso, também se pode constituir um caso para com-
binação dos conhecimentos e competências de filósofos e cientistas sociais infor-
mados empiricamente – capturando assim a sofisticação teórica relativa a ética
per se associado à experiência na criação da investigação, recolha e análise de
dados. Essencialmente, a auditoria consiste numa investigação de: (a) concepção
e prestação de serviços disponibilizados (informada por competências no mer-
cado externo e nos recursos humanos internos); (b) uma avaliação dos serviços
prestados; (c) uma avaliação da eficácia dos resultados (produtos e serviços); (d)
considerações relativas a recursos – financeiros e humanos; (e) experiências dos
clientes, parceiros e outros intervenientes; (f) garantia de qualidade dos serviços
ou produtos disponibilizados.
Geralmente, são necessários dois focos. Primeiro, uma investigação à docu-
mentação existente que define a posição da organização relativamente a ética e
a equidade. Segundo, realiza­‑se um conjunto de entrevistas a diferentes interve-
nientes da organização.
O objectivo é procurar: (a) clarificação e/ou elaboração de políticas documen-
tadas e práticas, quando necessário; (b) avaliação da eficácia das interfaces entre
a “missão” da organização, políticas e práticas.
Por conseguinte, o âmbito da auditoria é suficientemente vasto para dar res-
posta às opiniões de todos os intervenientes relevantes. Entre estas, a cultura,
valores e operação da organização são influenciadas numa relação directa com a
antiguidade hierárquica na instituição (DeSensi e Rosenberg, 1996). Por conseguinte,
um modelo operacional para a auditoria consiste em entrevistar individualmen-
te quadros superiores da organização, realizar reuniões de grupos de discussão

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PARTE I

separadas com os quadros intermédios e prestadores de serviço/produto, e ence-


tar um debate mais vasto no seio do grupo com outro pessoal. Geralmente, as
entrevistas serão semiestruturadas (no máximo), e relacionar­‑se­‑ão com a recolha
preliminar de informações disponíveis em papel e/ou em formato electrónico.
Desde o princípio, é fundamental desenvolverem­‑se relações de apoio e
colaboração mútua com a organização. Primeiro, para se estabelecer um relacio-
namento profissional para a auditoria; segundo, para contextualizar os proble-
mas, políticas e práticas a investigar; terceiro, para garantir a oportunidade para
realização de várias entrevistas (se pretendido)35; e quarto, para se ter confiança
na validade ecológica dos dados. Neste momento, também é fundamental con-
siderar os parâmetros éticos da concepção e implementação da investigação. Os
protocolos relativos a anonimato e confidencialidade dos dados reunidos, e dos
dados a serem vistos pelos investigadores, devem ser acordados não apenas em
relação a indivíduos, mas também em conformidade (na medida do possível) com
códigos institucionais e profissionais que por vezes entram em conflito. Os partici-
pantes devem ter a garantia de anonimato (na medida do possível, considerando
a dimensão da organização a ser sujeita a auditoria), sobretudo quando tiverem
de comentar aspectos relacionados com os respectivos superiores hierárquicos.
Para grupos de discussão e debate mais alargado, é necessário determinarem­‑se
as “regras de participação”, que devem incluir um compromisso entre todos os
presentes em respeitarem a confidencialidade das opiniões expressas.
Por fim, através de uma auditoria de ética, é necessário tentar encontrar um
equilíbrio para os elementos individuais e culturais. Os auditores devem procurar
garantir que a avaliação se baseia inequivocamente em evidências e que demons-
tra objectividade. A consistência entre várias fontes de dados serve para reforçar
ou verificar uma avaliação relativamente a um tema em particular. Também é
importante referir que, nos casos em que existam motivos de preocupação, estas
sejam comprovadas com base em duas ou mais fontes independentes.

CONCLUSÃO

É evidente que um reconhecimento da ética e da equidade se aproxima mais


do âmago das organizações do sector público no século XXI. Se as organizações
reivindicam “integridade”, esta deverá ser comprovada se não se pretende que

35 O motivo inerente prende­‑se com a oportunidade para explorar itens não previstos que
ocorrem de alguma forma na auditoria e que podem ser uma profícua fonte de recolha de
informações genuinamente inovadoras. Sem essa oportunidade, algumas questões interes‑
santes e importantes podem permanecer sem ser identificadas, subdesenvolvidas e/ou não
corroboradas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

sejam consideradas como afirmações fátuas. Da mesma forma, se se pretende


que uma auditoria de ética à governação empresarial seja eficaz, deve proceder­
‑se numa base o mais racional e relativamente objectiva possível, considerando
os métodos das ciências sociais e a complexidade inerente das questões éticas.
O quadro conceptual que potencia o modelo para uma auditoria apresentada
aqui capta os níveis e dimensões, frequentemente em conflito, das operações
no seio das organizações, desde o nível individual aos níveis sociais e políticos.
Tentam reconciliar cada um destes níveis e tornar explícitos os valores definidos
no quadro, ao nível de políticas e de práticas. As preocupações relacionadas com
ética e equidade não são e não devem ser consideradas como questões que são
importantes apenas para certos departamentos ou pessoas em determinada
organização. Também não devem ser, ou considerar­‑se que sejam, resultado de
algum grupo de pressão em particular. Pelo contrário, é da responsabilidade de
todos estar activamente empenhados na promoção de uma boa governação
empresarial, deve haver uma liderança ao “nível executivo” e sentido de proprie-
dade a todos os níveis da agenda para a ética. Adicionalmente, o empenho que
determinada organização revela em termos de abertura a uma auditoria de ética
representará, por si só, algumas evidências de governação empresarial. No entan-
to, tal não deve ser considerado como um compromisso “isolado”. Será necessá-
rio iniciar um programa contínuo que monitorize e avalie a agenda de ética em
termos de governação empresarial.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

ARTIGO 3
AVALIAÇÃO DA INFRA­‑ESTRUTURA PARA A GESTÃO DE ÉTICA
NO SERVIÇO PÚBLICO NA ETIÓPIA: DESAFIOS E EXEMPLOS
PARA OS REFORMADORES36

ABSTRACT

Can an ethics infrastructure be introduced as a reform? Ethics and anti­


‑corruption reforms have become an integral part of civil service reform in
Ethiopia. This is based on recognition by the government that reforms in the civil
service may be undermined unless there are complementary investigative and
preventive measures against corruption and other unethical practices.
The assessment of the existing ethics infrastructure has been a useful exercise
to inform both the content and process of reforms. It has provided information
on institutional constraints and capacity gaps on which reformers need to focus.
These include broadening and sustaining support and commitment beyond the
political leadership; strengthening the capacity of law enforcement agencies;
improving accountability mechanisms; improving human resource management
and performance; putting in place workable codes of ethics; improving public ser-
vice conditions within affordable limits; and creating an enabling environment for
civil society organizations to operate as countervailing forces for accountability by
public officials.
It is apparent that weaknesses in one part of the ethics infrastructure such
as the parliament resonate in other parts such as the audit. Thus reformers need
to be aware of the functional dependencies and organizational linkages among
the various components of the ethics infrastructure. This calls for an integrated
and coordinated approach to reforms. The key challenge in the years ahead is
ensuring effective management and implementation of the reforms. Informing
and soliciting the views of key stakeholders is helping to build understanding and
ownership for reform implementation, but continued political will and commit-
ment, and external financial support and cooperation will be crucial for success.
Implementation has to be managed; it should not be taken for granted.

36 Título original: Assessing Infrastructure for Managing Ethics in the Public Sector in Ethio‑

pia: Challenges and Lessons for Reformers, George Larbi, International Review of Administra‑
tive Sciences, vol. 67, vol. 2, 2001, pp. 251­‑262.

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PARTE I

SUMÁRIO

Poderá ser introduzida uma infra­‑estrutura de ética como reforma? As refor-


mas éticas e anticorrupção tornaram­‑se uma parte integrante na reforma da
função pública na Etiópia. Tal baseia­‑se no reconhecimento pelo Governo de que
as reformas na função pública podem encontrar­‑se minadas a menos que existam
medidas preventivas e de investigação complementares contra a corrupção e
outras práticas contrárias à ética.
A avaliação da infra­‑estrutura de ética existente tem sido um exercício provei-
toso para adquirir informações acerca do conteúdo e do processo de reformas.
Forneceu informações sobre constrangimentos institucionais e falhas de capa-
cidade nas quais os reformadores necessitam de se centrar. Estas incluíram o
alargamento e a manutenção do apoio e do compromisso para além da liderança
política; reforço das capacidades das entidades de aplicação da Lei, melhorando
os mecanismos de responsabilidade, melhorando a gestão e o desempenho dos
recursos humanos, instituindo Códigos de Ética operacionais, melhorando as con-
dições de serviço público dentro de limites economicamente acessíveis e criação
de um ambiente que permita às organizações da sociedade civil operar como for-
ças de contrabalanço relativamente à responsabilidade dos funcionários públicos.
É aparente que a debilidade em uma parte da infra­‑estrutura de ética, como
o Parlamento, tem repercussões nas outras partes, como nas auditorias. Assim,
os reformadores necessitam de estar cientes das dependências funcionais e das
ligações organizacionais entre vários componentes da infra­‑estrutura de ética. Tal
apela a uma abordagem integrada e coordenada das reformas. O desafio chave
para os próximos anos é garantir uma gestão e implementação eficazes das refor-
mas. Fornecer informações e solicitar as opiniões dos principais interessados
equivale a ajudar a edificar a compreensão e o domínio da implementação da
reforma, mas a vontade e o compromisso políticos continuados, assim como o
apoio financeiro e a cooperação externas, serão fundamentais para o sucesso. A
implementação tem de ser gerida, não pode ser tida como um dado adquirido.

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento e a manutenção de elevados padrões de valores, ética e


conduta nos serviços públicos e o combate à corrupção têm sido alvo de atenção
dos Governos e Agências Internacionais nos últimos anos. No entanto, a infra­
‑estrutura para a gestão da ética e verificação da corrupção no sector público é
frequentemente insuficiente, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Independentemente do contexto, seria útil se os países que estão a encetar refor-


mas de ética (definida neste documento como incluindo reformas anticorrupção)
avaliassem primeiro o “estado da saúde” da infra­‑estrutura existente para a ges-
tão da ética e controlo da corrupção. A lógica, entre outras coisas, consistiria em
identificar as lacunas e os problemas de capacidade institucional como a base
para a concepção de estratégias realistas e exequíveis visando o reforço da capa-
cidade da infra­‑estrutura de ética.
O presente artigo reporta os resultados de uma avaliação ao estado da infra­
‑estrutura de ética na Etiópia37. A primeira parte identifica os motivos por que
a ética integra a agenda da reforma de diversos Governos. A segunda parte
abordará o contexto particular das reformas na Etiópia. A terceira parte resume
o quadro de avaliação utilizado e a quarta parte passa a abordar os resultados.
A última parte identifica problemas e exemplos que podem ser relevantes para
outros países em vias de desenvolvimento que estejam a implementar reformas
semelhantes.

POR QUE MOTIVO A ÉTICA INTEGRA A AGENDA DA REFORMA?

A ética no serviço público, definida como um conjunto de princípios para


orientação da conduta (Lawton, 1998) ou padrões morais no serviço público
(Chapman, 1993:1) tem vindo a representar cada vez mais preocupações na
Administração e Gestão Pública nas últimas décadas, com alguma intensificação
nas décadas de 1980 e 1990 (Kernaghan, 1993:15; OCDE 1996). A lógica especí-
fica inerente à integração da ética na agenda da reforma pode variar com base
no contexto de um país para outro, mas pode incluir uma combinação de alguns
dos motivos descritos neste documento. Primeiro, os Governos, sobretudo do
Sul, deparam­‑se com défices democráticos e de “boa governação”, bem como
com um “défice de confiança” relativamente às expectativas dos cidadãos e
investidores internacionais (World Bank, 1997; Rose­‑Ackerman, 1999). Existem
preocupações relativas à erosão dos valores e dos padrões na vida pública, esta
erosão manifesta­‑se por vezes sob a forma de corrupção institucionalizada e
escândalos com grande visibilidade pública, envolvendo políticos e dirigentes de
topo. A reforma da ética, incluindo o controlo da corrupção, faz parte dos esfor-
ços encetados pelos Governos para dar resposta aos défices de governação e de
confiança.

37 O trabalho no qual esta comunicação se baseia foi financiado pelo Programa das Nações

Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) e pelo Governo da Etiópia. No entanto, as opiniões


apresentadas são da responsabilidade do autor.

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PARTE I

Em segundo lugar, o público, em particular os utentes dos serviços, tem vindo


a reforçar as suas críticas aos serviços públicos. Os utentes dos serviços esperam
poder beneficiar de uma melhor prestação dos serviços sem terem de pagar
subornos. O aumento das críticas e da desilusão do público não deixa de estar
relacionado com o aumento dos custos dos serviços públicos, mediante o aumento
das taxas ou a introdução de encargos para o utente, bastante comuns em África,
sem que se verifique um aumento correspondente na qualidade do serviço. Além
disso, as expectativas dos utentes do serviço aumentaram, sobretudo nos países
industrializados, como o Reino Unido, graças à publicação de normas e direitos
potenciados por uma cultura baseada no desempenho (Lawton, 1998). Neste
sentido, globalmente, as expectativas do público e a respectiva consciencialização
para os seus direitos parecem ser maiores num ambiente de crescente liberaliza-
ção e democratização.
O terceiro motivo para o ênfase que recai sobre a ética baseia­‑se no facto de,
na maioria dos países em vias de desenvolvimento, a agenda para a “boa gover-
nação” do início da década de 1990 ter desempenhado um papel fundamental
para desafiar os Governos a lidarem com problemas de corrupção e outras prá-
ticas pouco éticas nos serviços públicos. Éticas e estratégias para o controlo da
corrupção são fundamentais para o funcionamento, evolução e qualidade da
governação. Qualquer comportamento que deteriore a integridade e desgaste
a confiança e a esperança do público pode ser uma ameaça para as instituições
democráticas e para a estabilidade política (World Bank, 1997:99; OCDE 1999:11).
Em quarto lugar, recentemente, Agências Internacionais, como as Nações
Unidas (e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Banco Mun-
dial e a União Europeia ajudaram a colocar a ética e a necessidade de combate
à corrupção em destaque na agenda da reforma. Por exemplo, a Convention on
Combating Bribery of Foreign Public Officials in International Business Transac-
tions (Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estran-
geiros em Transacções Comerciais Internacionais) da OCDE e outras resoluções ou
Declarações Internacionais elevaram o perfil da ética e das reformas anticorrup-
ção. A maioria destas Agências Internacionais, associadas a doadores bilaterais,
estão a apoiar reformas no sector público com componentes de ética e anticor-
rupção (Doig, 1995).
Em quinto lugar, as reformas da nova gestão pública transformaram signi-
ficativamente (e continuam a transformar) a cultura, condições e contexto no
qual os funcionários públicos desenvolvem as suas tarefas e como os serviços
públicos são organizados e geridos. Estas novas abordagens incluem a adopção
de mecanismos de mercado e quasi­‑mercado (por exemplo, contratação compe-
titiva, privatização e cobrança de serviços); a reestruturação do sector público em
agências, downsizing governamental e descentralização da responsabilidade pela

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

gestão; aumento dos contratos de trabalho a termo limitado e reforço da ênfase


sobre resultados e orientação para o cliente/cidadão (Hood, 1991, 1995; OCDE
1993; Minogue et al., 1998; Larbi,1999a). Existem crescentes preocupações de
que as reformas da nova gestão pública estejam a ter impacto sobre os valores do
serviço público, respectiva ética e normas de conduta dos funcionários (Lawton,
1998:2­‑3; Frederickson, 1999; Kernaghan, 2000; Wolf, 2000).
Por exemplo, a redução das regras e dos controlos detalhados pode ter
aumentado o risco de erros e criado mais oportunidades para condutas impró-
prias (OCDE, 1995). Kernaghan (2000:98) salienta as “consequências éticas do
aumento do envolvimento comercial na realização das actividades do Governo”,
enquanto Romzek (2000:37) aconselha os reformadores a “conhecerem a dinâ­
mica da responsabilização que acompanha logicamente as reformas e a adop-
tarem regulações adequadas”. Para os países em vias de desenvolvimento, os
imperativos éticos da reforma da nova gestão pública são ainda maiores devido
às fragilidades da infra­‑estrutura para a gestão da ética e o combate à corrupção.
É neste contexto que as reformas de ética e anticorrupção têm, nos últimos
anos, vindo a formar parte integrante de esforços mais amplos de reforma do
sector público em alguns países da África Subsariana, incluindo Etiópia, Gana,
Malawi, Tanzânia e Uganda. Conforme indicado na introdução ao presente arti-
go, uma reforma de ética eficaz exige a avaliação da infra­‑estrutura existente
para gestão da ética no serviço público. Nos seguintes parágrafos, utilizaremos
o caso da Etiópia para realçar alguns dos desafios que os reformadores terão de
abordar.

O CONTEXTO PARA REFORMAS NA ETIÓPIA

Nos últimos anos, a Etiópia foi sujeita a significativas mudanças de processos


e estruturas de governação, após anos de conflito. Estas mudanças incluem a
introdução de estruturas e processos democráticos no Governo, sucessão política
em conformidade com linhas federais e gradual afastamento de uma economia
planeada centralmente e de comando para uma economia de mercado liberal.
O reforço e a sustentação destas mudanças implicam e exigem melhoramentos
fundamentais nas instituições da Administração e Gestão Pública, cujo eixo é a
função pública.
Ao perceber isto, o Governo da Etiópia lançou um Programa de Reforma da
Função Pública (CSRP) em 1994. Um grupo de trabalho criado para examinar as
disposições e operações de gestão globais da função pública identificou a ética
como uma das áreas que exige atenção. O Governo percebeu, logo desde o

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PARTE I

início, que a ética tem de fazer parte integrante do CSRP, não se tratou de um
aspecto identificado posteriormente, associado à reforma. Os resultados iden-
tificados pelo grupo de trabalho sugeriam que, embora a corrupção e outras
práticas pouco éticas não estivessem institucionalizadas na máquina governa-
mental, havia preocupações que sugeriam que a corrupção estivesse a ganhar
terreno e que poderia aumentar, caso não fosse combatida. O Governo encetou
um importante programa de desenvolvimento capital, especialmente em termos
de infra­‑estrutura e nos sectores da saúde e da educação, envolvendo o apoio
de doadores e contratos de larga escala. A economia também está a ser sujeita
a liberalização. O Governo da Etiópia receia que, se não forem devidamente geri-
dos, estes contratos possam representar um incentivo para a corrupção e outras
práticas pouco éticas em larga escala.
Não obstante estas preocupações, as disposições institucionais e organi-
zacionais para verificação da corrupção e aplicação da ética nas instituições
governamentais são frágeis. Neste sentido, a reforma de ética tornou­‑se uma das
prioridades do CSRP38. O subprograma para a ética integra cinco projectos prin-
cipais: (1) criação de um organismo coordenador central para a ética; (2) desen-
volvimento de Códigos de Ética; (3) educação em ética; (4) reforço da capacidade
dos meios; (5) reforço da capacidade das forças policiais, delegados do Ministério
Público e Administração Judicial. No âmbito da componente de ética do CSRP,
realizou­‑se em 1999 uma avaliação da infra­‑estrutura de ética existente na Etiópia
no intuito de se gerarem resultados e recomendações que possibilitem informa-
ções para as reformas (Larbi, 1999b).

QUADRO PARA AVALIAÇÃO DA INFRA­‑ESTRUTURA DE ÉTICA

A expressão infra­‑estrutura de ética, conforme definido pela Organização para


a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), refere­‑se a um leque de
ferramentas e processos que visam a regulamentação contra comportamentos
indesejados e/ou a disponibilização de incentivos para fomentar boas condutas
por parte dos funcionários públicos (OCDE, 1996: 8, 27). A OCDE (1996) identi-
fica oito componentes fundamentais de uma infra­‑estrutura de ética, conforme
se segue: (1) compromisso político; (2) quadro legal eficaz; (3) mecanismos de
responsabilização eficientes; (4) Códigos de Conduta exequíveis; (5) mecanis-
mos de socialização profissional (incluindo formação); (6) condições de serviço

38O CSRP integra cinco subprogramas: Gestão e controlo de despesas; Gestão de recursos
humanos; Prestação de serviços; Gestão de topo; Ética.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

público sustentáveis; (7) existência de um organismo coordenador de ética


central; (8) sociedade civil activa com capacidade para actuar como mecanismo
de vigilância das acções dos funcionários. Estes elementos foram adaptados no
desenvolvimento de um quadro de avaliação para a Etiópia (ver Tabela 2). Cada
um dos componentes da infra­‑estrutura de ética desempenha uma ou mais das
três funções, que se sobrepõem no controlo de comportamentos, disponibili-
zando orientações para o comportamento ou gerindo outros elementos da infra­
‑estrutura. A importância de cada um destes elementos e a sinergia relativa entre
os mesmos dependerá das condições e tradições institucionais e de governação
de cada país (OCDE, 1996). Conforme se sugere na Tabela 2, o âmago do quadro
de avaliação utilizado na Etiópia consistiu num conjunto de questionários e listas
de verificação que abrangeram cada um dos elementos da infra­‑estrutura de
ética. Realizaram­‑se entrevistas aprofundadas e semiestruturadas a funcionários
de 18 instituições intervenientes fundamentais aos níveis federal e regional. As
entrevistas foram complementadas por uma análise de conteúdos de diversos
relatórios e documentos oficiais. Resumem­‑se os resultados de seguida.

Resultados

A necessidade de ampliar o compromisso dos dirigentes

O compromisso político para com a reforma de ética é um requisito crucial


para a eficácia de outros elementos da infra­‑estrutura de ética. Os entrevistados
não tiveram dúvidas em afirmar que o Governo da Etiópia assumiu o compromisso
da reforma de ética. Vários entrevistados fizeram referência ao afastamento
e julgamento do anterior Vice­‑Primeiro­‑Ministro por alegada corrupção como
prova de compromisso político e prontidão dos dirigentes para actuar contra
infractores, independentemente do cargo que ocupem. Trata­‑se de um exemplo
de “apanhar o peixe graúdo”, ou seja, desmascarar publicamente e punir nomes
corruptos de monta no intuito de transmitir uma mensagem inequívoca ao público
mais céptico e aos funcionários, deixando bem claro que a luta contra a corrup-
ção não se fica pelas palavras (Klitgaard et al., 1996:28).
Também urge salientar que o CSRP foi iniciado internamente e desenvolvido
com o apoio de agências externas.

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PARTE I

Tabela 2 – Resumo do quadro para avaliação da infra­‑estrutura


de ética (Larbi, 1999b).

Elemento
da infra­‑estrutura Resumo dos principais problemas/questões
de ética

Em que medida existe um compromisso genuíno com as reformas de ética? Qual


o papel desempenhado pelo Gabinete do Primeiro­‑Ministro e outros políticos?
Liderança política Como é que o Primeiro­‑Ministro e o seu Governo demonstraram compromisso e
e compromisso liderança (por exemplo, comunicados à imprensa, discursos, anúncios públicos,
atribuição de recursos, dando o exemplo, vontade de aplicar sanções? O Gabinete
do Primeiro­‑Ministro tem capacidade para coordenar e gerir as reformas?

Existem Códigos de Conduta/Ética para os funcionários públicos? As violações


das leis e códigos criminais da função pública são devidamente mencionadas com
Quadro legal as sanções adequadas? Existem mecanismos de aplicação credíveis e eficazes?
Existem fragilidades/falhas no sistema das leis e códigos existentes e em que
medida é que prejudicam a ética?

Quais são as vantagens e desvantagens das disposições e procedimentos organi-


zacionais existentes para detecção e punição da corrupção e de outras práticas
pouco éticas? (Por exemplo, eficácia dos sistemas de auditoria externos). Em que
medida é que as instituições de auditoria são independentes? Existem comissões
parlamentares relevantes e são eficazes na imposição de requisitos de notifica-
Mecanismos
ção aos funcionários públicos e instituições e em termos de relatórios de acom-
de responsabilização
panhamento? Os procedimentos administrativos são evidentes e transparentes?
Os limites de discrição e responsabilidade são devidamente especificados? Como
é que a estrutura de tomada de decisões na função pública incentiva/desenco-
raja a responsabilização? Capacidade das forças policiais, Administração Judicial,
Delegados do Ministério Público e outras instituições de aplicação da Lei?

Em que medida é que as organizações da sociedade civil são eficazes na vigilância


das actividades do Governo? Em que medida é que os meios de comunicação
Sociedade civil social gozam de liberdade e são eficazes? As críticas do público ao Governo são
toleradas? Quais são os principais problemas e dificuldades ao confrontar as ins-
tituições da sociedade civil?

Existem Códigos de Conduta ou Códigos de Ética para os funcionários públicos


e outros funcionários públicos? Que instituições e categoria de funcionários são
Códigos de
abrangidos pelo código? Se existir um código, trata­‑se de um documento legal ou
Conduta/Ética
de um instrumento administrativo? Qual o grau de acessibilidade do código? O
código é respeitado e aplicável?

Em que medida é que as condições do serviço público existentes (salário, segu-


Condições do serviço rança, recrutamento, sistemas de avaliação, formação e desenvolvimento pro-
público fissional, etc.) potenciam uma conduta ética por parte dos funcionários públicos
aos níveis federal e regional?

Existe um organismo identificável mandatado para supervisionar ou coordenar


a ética no serviço público ou para investigar casos de corrupção? Que outros
Organismo organismos estão envolvidos na gestão da ética? Se esses organismos existem,
coordenador de ética em que medida são independentes e credíveis? Dispõem dos recursos financei-
ros, humanos e de outras capacidades para desempenharem eficazmente o seu
papel?

Os programas de educação e formação para os funcionários públicos incluem


ética, valores e normas na função pública? A ética e os valores do serviço público
Socialização
são uma parte importante da indução e formação contínua para funcionários
profissional
públicos? Existe alguma evidência de que os directores/quadros superiores dispo-
nibilizem liderança e inspiração dando o exemplo?

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

O subprograma de ética é gerido por um Ministro do Governo para lhe conce-


der mais influência política. Ao nível da retórica, o Primeiro­‑Ministro proferiu por
diversas ocasiões discursos e declarações públicas, a nível nacional e internacio-
nal, nas quais reiterou o empenho do seu Governo no combate à corrupção e a
outras práticas pouco éticas.
No entanto, o que está por apurar é o nível de empenho da liderança burocrá-
tica para com a reforma. Para uma implementação bem­‑sucedida das reformas é
fundamental que o Governo garanta a compreensão e o compromisso dos diri-
gentes de topo. Este aspecto já foi iniciado através de uma série de workshops e
seminários para sensibilização dos funcionários públicos para as reformas.

QUADRO LEGAL – O DESAFIO DA APLICAÇÃO

A Etiópia integra um sistema judicial codificado. Existem dois códigos princi-


pais, o Código Penal de 1957 e o Código Penal Especial de 1981, com disposições
para abranger várias práticas pouco éticas e corruptas, tais como desrespeito pela
confiança oficial e obrigações, abuso de poder, apropriação indevida, extorsão,
práticas corruptas, aceitação de vantagens indevidas e abuso de influência oficial.
A Proclamação da Administração Financeira de 1996 também reforça significati-
vamente as disposições legais e penas por conduta inadequada e corrupção.
O problema fundamental é, por conseguinte, não a inexistência de leis, regras
e regulamentações para incentivar os comportamentos éticos ou dissuadir a
corrupção, mas uma frágil aplicação. Sem mecanismos de aplicação eficazes,
as disposições legais e administrativas para a ética e a corrupção são, por si só,
ineficazes. Uma frágil capacidade de aplicação pode dever­‑se parcialmente ao
facto de as disposições legais e administrativas para a ética e a corrupção estarem
espalhadas por vários documentos, o que dificulta o acesso às mesmas, sobretudo
nos casos em que os agentes de aplicação são inexperientes.
Outra fragilidade do quadro legal relacionada com a aplicação da ética é a falta
de regras de evidência, que dificultam e prolongam a provisão e admissão de
evidências para acção judicial. Estas regras são necessárias para garantir a impar-
cialidade na aplicação da justiça, eliminação de despesas injustificáveis e atrasos
para se clarificar a definição de evidências relevantes e irrelevantes. Além disso,
a fragilidade das capacidades de investigação, acção judicial e das instituições
judiciais representam importantes preocupações. Tal como na maioria dos servi-
ços públicos em África, o principal problema é a incapacidade para atrair e reter
pessoal qualificado e experiente o suficiente nestes serviços públicos devido em
grande parte à falta de um grupo fundamental de profissionais e a salários não

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PARTE I

competitivos, e outros sistemas de incentivo. Estes resultados confirmam par-


cialmente a observação de Rose­‑Ackerman (1999:15) que refere “[Muitos] países
dispõem de estatutos anticorrupção exemplares que são irrelevantes no mundo
real”, devido à fragilidade dos mecanismos judicial, do Ministério Público e outros
de aplicação da Lei.

MECANISMOS DE RESPONSABILIZAÇÃO – DESEMPENHO MISTO

A Etiópia dispõe de diversos mecanismos de vigilância e responsabilização,


alguns dos quais são bastante recentes e pecam por falta de experiência. O Par-
lamento consiste num fundamental organismo de vigilância que se considera a si
mesmo como um instrumento através do qual a transparência pode ser garantida
e aplicada. Tanto ao nível federal como regional, os superiores hierárquicos de
todas as instituições de linha e organismos executivos, bem como outros diri-
gentes de topo são obrigados por Lei a reportar periodicamente aos respectivos
legisladores. No entanto, as funções de vigilância dos corpos legislativos são
limitadas pela falta de mecanismos de acompanhamento eficazes. Os comités
de contas públicas são recentes ou nem existem. Ao nível federal, o Finance
Committee of the House of People’s Representatives (Comité Financeiro da Casa
dos Representantes do Povo) tem a responsabilidade de receber relatórios de
auditoria, mas peca por falta de experiência, capacidade e tempo para investigar
e acompanhar os relatórios. Costuma ficar sobrecarregado com relatórios de
inúmeras agências, tal como os relatórios de auditoria costumam acumular­‑se
ou não receber a atenção devida na corrida ao tempo do Parlamento. A eficácia
da instituição de auditoria na qualidade de mecanismo de vigilância das Finan-
ças Públicas depende parcialmente da vontade e da capacidade dos políticos e
do Governo eleito para agir com base nos relatórios. O valor da auditoria pode
eclipsar­‑se caso não se actue com base nos relatórios.
Conforme já foi referido, o Gabinete do Auditor Geral consiste num organis-
mo de vigilância fundamental. A Etiópia tem provavelmente uma das instituições
de auditoria mais experientes da África Subsariana (Olowu, 1996), embora esta
esteja limitada ao nível federal, a maioria dos gabinetes de auditoria regionais
é relativamente recente e inexperiente. Nos últimos anos, a instituição de audi-
toria adicionou às respectivas funções a auditoria ao desempenho, para verificar
se as instituições estão a ser adequadamente competitivas e se estão a atingir
os objectivos orçamentais. No entanto, esta função ainda tem de ser consoli-
dada sobretudo nas regiões. Ao abrigo do CSRP e do projecto de Auditoria
Externa, espera­‑se que a prática de auditoria ao desempenho seja amplamente

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

aplicada em todas as instituições e outros organismos públicos. A auditoria inter-


na consiste num elemento essencial dos mecanismos de controlo interno e de
responsabilização nas organizações. No entanto, exceptuando algumas poucas
organizações públicas (sobretudo empresas do Estado), este aspecto da audito-
ria geralmente não está devidamente desenvolvido nem é utilizado nas organiza-
ções da Etiópia.
Não obstante o posicionamento relativamente vigoroso da instituição de audi-
toria máxima da Etiópia, este é frustrado devido a inúmeros problemas. Para além
dos frágeis mecanismos de acompanhamento já mencionados, o número de audi-
tores com formação não é adequado devido sobretudo à incapacidade para atrair
e reter profissionais qualificados e experientes. Por conseguinte, a capacidade dos
que estão disponíveis é sujeita a um esforço extremo. Uma importante queixa foi
o apoio logístico inadequado, como, por exemplo, veículos, computadores e outro
equipamento que permitiria aos auditores poupar tempo de auditoria.
A Federal Civil Service Commission (FCSC – Comissão da Função Pública Fede-
ral) desempenha um importante papel de vigilância relativamente à administra-
ção de pessoal em instituições de linha e outros organismos sob a alçada da Lei
do serviço público. Na qualidade de guardiã da Lei do serviço público, a comissão
tem de garantir que as instituições sob a sua alçada aplicam a Lei. Dispõe de um
Tribunal que trata de recursos apresentados por funcionários públicos relativa-
mente a decisões relacionadas com nomeações, despedimentos, promoções e
assuntos de pessoal. O respectivo Departamento de Inspecção recebe e investiga
as queixas relacionadas com irregularidades de assuntos de pessoal, que não
são tratados pelo Tribunal. No entanto, a FCSC não goza de qualquer autoridade
para aplicar as respectivas decisões, a aplicação fica à discrição da boa vontade
das instituições de linha e, por vezes, exige a intervenção de uma autoridade
superior, como, por exemplo, o Gabinete do Primeiro­‑Ministro, para conseguir o
cumprimento.
Outras fragilidades do sistema administrativo com implicação na ética são as
altas hierarquias, procedimentos pouco práticos e fraco controlo sobre a acção
administrativa. Os quadros superiores individuais parecem deter demasiado
poder e arbítrio sem uma responsabilização eficaz. Os procedimentos administra-
tivos denotam tais características que as decisões de rotina tomadas pelo pessoal
de primeira linha têm de ser frequentemente aprovadas pelos superiores hierár-
quicos.
As consequências são atrasos e frustrações na obtenção de decisões e servi-
ços atempadamente, o que incentiva parcialmente o suborno e a corrupção no
momento da prestação do serviço. É necessário simplificar sistemas e procedi-
mentos para se eliminarem as barreiras desnecessárias nos sistemas organizacio-
nais que criam oportunidades de suborno ao público. As reformas de ética e as

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PARTE I

estratégias anticorrupção não seriam úteis se permitissem a coexistência de leis


restritivas e processos pouco práticos que, em primeira instância, incentivam o
suborno e outras práticas pouco éticas (Rose­‑Ackerman, 1999:162).
Um mecanismo de vigilância inovador, com que a equipa se deparou, foi um
fórum comum para a avaliação colectiva de líderes por parte de cidadãos e fun-
cionários, designado por “gimgema”. Trata­‑se de um fórum mensal que decorre
nas comunidades locais e em organizações públicas. Disponibiliza a oportunidade
para os cidadãos interrogarem os líderes directamente e para os trabalhadores
colocarem questões relacionadas com a gestão. Foi promulgada uma Lei que visa
a criação do Gabinete do Provedor, que receberá e investigará casos de adminis-
tração danosa e procurará solucionar os casos de vítimas de injustiça administra-
tiva, embora este serviço ainda não esteja em vigor.

INSTITUIÇÕES EMERGENTES DA SOCIEDADE CIVIL

O estudo revelou que as instituições da sociedade civil estão a emergir, mas


que ainda não são eficazes na qualidade de mecanismos de vigilância do compor-
tamento dos funcionários públicos. Embora o público esteja consciente e sinta a
corrupção e outras práticas pouco éticas no momento da prestação dos serviços,
tem tendência para ser submisso e incapaz de lidar com o problema. Verifica­‑se
uma tendência para se protegerem em vez de se exporem aqueles que praticam
a corrupção.
Os meios de comunicação social, uma instituição crucial da sociedade civil,
emergiram de um passado de censura, regras autoritárias e extremo sectarismo
do Governo no Regime do Derg. Na melhor das hipóteses, o seu papel na quali-
dade de mecanismo de vigilância tem sido bastante modesto. No Governo actual,
os meios de comunicação em acção encontram­‑se em fase bastante precoce, em
conjunto com os meios estabelecidos do Governo. A nova Lei de Imprensa não
permite a censura e é provável que isso possa melhorar o papel da comunicação
social na qualidade de mecanismo de vigilância. No entanto, os meios de comu-
nicação social não aproveitaram totalmente esta nova liberdade por causa da
herança do passado. O seu papel para expor a corrupção e outras infracções de
cariz ético tem sido limitado e irregular. É evidente uma falta de confiança para
criticar o Governo. Outros motivos por que os meios de comunicação não têm
sido eficazes incluem a falta de profissionalismo das reportagens em alguns sec-
tores da imprensa privada e reduzida capacidade do jornalismo de investigação.
Também se verifica uma falta de acesso a informações no Governo e burocra-
cia. Nas palavras de um agente: “parece haver uma cultura de secretismo que

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

impregna os serviços públicos”. Neste contexto, é adequado que o subprograma


de ética inclua um projecto que vise o reforço dos meios de comunicação. Tam-
bém seria útil clarificar e definir directrizes relativamente ao que são informa-
ções públicas e o que são informações confidenciais, eventualmente como um
preâmbulo a uma Lei da liberdade de informação. Os mecanismos de vigilância
do Governo e externos para responsabilização não são adequados para o com-
bate à corrupção e a outros comportamentos pouco éticos, a menos que sejam
complementados por sólidas Instituições Públicas, que sejam capazes de questio-
nar as decisões do Governo e as acções de representantes no intuito de garantir
que cumprem a Lei e os padrões de ética do serviço público. Apesar de existirem
Organizações Não­‑Governamentais e comunitárias, estas não são activas na quali-
dade de defensoras do povo.

CÓDIGOS DE ÉTICA

Os Códigos de Ética desempenham um papel fundamental na infra­‑estrutura


de ética, mas também assumem uma função de controlo já que estabelecem
e divulgam limites de comportamento e definem normas para os funcionários
públicos (OCDE, 1996). No caso da Etiópia, o estudo revelou que existem alguns
códigos em várias regulamentações do serviço público. No entanto, esses códi-
gos não são isentos de lacunas, que também estão patentes em vários documen-
tos, dificultando o acesso aos mesmos. O subprograma de ética do CSRP integra
um projecto de Código de Ética. Já foram elaborados quatro conjuntos de códi-
gos para os membros do Parlamento, elementos nomeados a nível político, fun-
cionários públicos e administração judicial com base em valores éticos comuns
acordados, tais como integridade, responsabilização, transparência e honesti-
dade. Diversos organismos profissionais estão também a desenvolver os seus
próprios Códigos de Ética. Independentemente do nível a que forem aplicáveis,
o desenvolvimento e a implementação de códigos exequíveis requer uma sólida
estratégia de gestão que garanta uma autêntica aceitação por parte dos funcio-
nários dos valores subjacentes e da ética objecto de promoção (OCDE, 1996). A
este respeito, o projecto dos Códigos de Ética encetou diversos workshops parti-
cipativos que disponibilizaram fóruns para debate dos códigos propostos, e tam-
bém para pedir as opiniões de várias categorias de agentes que serão afectados
pelos códigos.

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PARTE I

CONDIÇÕES DO SERVIÇO PÚBLICO

As condições do serviço público, particularmente as políticas sobre recursos


humanos, influenciam directamente a conduta. As condições podem ser mais
ou menos fomentadoras de comportamentos éticos por parte dos funcionários
públicos. Por exemplo, os salários baixos justificam parcialmente a prevalência
de corrupção, trabalho clandestino, absentismo e outras práticas pouco éticas
nos países de baixos rendimentos. Na medida em que estas condições podem
afectar a moral e a produtividade dos serviços públicos e influenciar o compor-
tamento ético, não podem ser deixadas à margem de qualquer reforma de ética.
As condições dos serviços públicos também estão directamente relacionadas com
a capacidade para atrair e reter quadros qualificados e experientes. Tal como
na maioria dos países em vias de desenvolvimento, os níveis de remuneração e
os sistemas de incentivos dos serviços públicos da Etiópia não são competitivos
em comparação com as empresas públicas e os sectores privados. Estes sectores
pagam cerca de 100 a 200 porcento mais do que os serviços públicos a funcioná-
rios com as mesmas competências. Trata­‑se de uma questão fundamental que
exige uma atenção séria no âmbito das reformas actuais, já que a remuneração
injusta desincentiva o cumprimento de um comportamento ético face à existên-
cia de uma alternativa lucrativa. Nas palavras de Rose­‑Ackerman (1999:151): “Se
os salários no sector público forem demasiado baixos, a tendência é a corrupção
transformar­‑se numa estratégia de sobrevivência”.
A capacidade de gestão dos recursos humanos nas várias instituições de linha
também demonstra fragilidades. Na prática, os sistemas e procedimentos de
recrutamento, promoção e transferência não se baseiam rigorosamente no méri-
to. A formação no início de actividade para os novos recrutados não é a norma,
sobretudo nas regiões. As oportunidades de formação também são bastante
reduzidas no serviço público. O novo sistema de avaliação do desempenho do
pessoal introduz alguma objectividade no processo de avaliação recorrendo a
medidas quantificáveis, mas na prática estas não são rigorosamente aplicadas. É
de salientar que medidas e esforços recentes encetados pelo FCSC tiveram por
objectivo optimizar os procedimentos e melhorar os sistemas de gestão de recur-
sos humanos. No entanto, as fragilidades supracitadas levantam preocupações
relativamente ao tratamento imparcial e equitativo dos funcionários e outras
questões de ordem ética. Um sistema de pessoal baseado em mecenato e fideli-
dade política tem tendência a prejudicar a eficiente prestação dos serviços. Além
disso, a tolerância da incompetência dilui o empenho na qualidade do serviço e a
responsabilização nas organizações. O CSRP contínuo está a dar resposta a estes
problemas. Em particular, urge aprovar controlos de gestão de recursos huma-
nos, tais como procedimentos de recrutamento normalizados e sistemas para

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

detectar e prevenir conflitos de interesses que se destinam a impedir infracções


de cariz ético. As dificuldades para atrair e reter profissionais qualificados e expe-
rientes são problemas comuns nas organizações públicas que constituem a infra­
‑estrutura de ética. Trata­‑se de questões relacionadas com a capacidade que têm
de ser solucionadas em todo o sector público, em termos gerais, mas mais parti-
cularmente nas organizações que desempenham papéis fundamentais na gestão
da ética e na verificação da corrupção no sector público. Para melhorar o desem-
penho e incentivar o comportamento ético nos serviços públicos, as promoções
e os aumentos de salários têm de estar mais estritamente relacionados com o
desempenho, num esforço para criar a consciencialização entre os funcionários
públicos relativamente à forma como serão avaliados e promovidos.

MECANISMOS PARA COORDENAÇÃO E COOPERAÇÃO

O estudo não detectou mecanismos formais para cooperação e coordenação,


interagências para a aplicação de ética e verificação da corrupção. Verifica­‑se uma
confiança em mecanismos informais, mas estes nem sempre resultam conforme
esperado. O nível de cooperação e coordenação entre as várias organizações que
constituem a infra­‑estrutura de ética apresenta fragilidades em diversos aspectos.
Por exemplo, algumas instituições de linha mostram­‑se relutantes em aceitar e
implementar as recomendações e decisões do Auditor Geral e do FCSC. Além
disso, as agências regionais resistem, por vezes, a notificar os diferentes níveis de
autoridade, sobretudo em aspectos de auditoria e financeiros. Parte da explica-
ção para a fragilidade em termos de coordenação e cooperação, no que diz res-
peito à corrupção e a outras actividades pouco éticas, é a falta de um organismo
coordenador central. O papel do FCSC é limitado ao de uma agência de gestão
de pessoal central e não de gestão de ética. No âmbito do subprograma de ética
estão a ser criados planos que visam a criação de uma Comissão de Ética e Anti-
corrupção. O organismo proposto será responsável por:
• receber e investigar queixas de alegada corrupção e violações dos Códigos
de Ética;
• estabelecer a ligação com outros elementos da infra­‑estrutura de ética;
• prevenir a corrupção;
• educar o público relativamente aos efeitos nefastos da corrupção (Larbi,
2000).

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PARTE I

Será dado um maior ênfase à prevenção e à educação, em vez de uma simples


dedicação às investigações pós­‑evento, que costumam ser mais dispendiosas. Os
poderes e responsabilidades da comissão são definidos numa legislação prática,
que consistia na etapa final no momento da redacção.

CONCLUSÕES E ILAÇÕES

As reformas de ética e anticorrupção tornaram­‑se uma parte integrante da


Reforma da Função Pública na Etiópia. Tal baseia­‑se no reconhecimento por parte
do Governo de que as reformas da função pública poderão ser prejudicadas a
menos que se adoptem medidas complementares de investigação e prevenção
contra a corrupção e outras práticas pouco éticas. A avaliação da infra­‑estrutura
de ética existente revelou­‑se um exercício útil para informar o conteúdo e o pro-
cesso das reformas. Disponibilizou informações sobre restrições institucionais e
lacunas de capacidade nas quais os reformadores têm de concentrar esforços.
Inclui­‑se a ampliação e a sustentabilidade de apoio e empenho para lá da lide-
rança política; reforço da capacidade das agências de aplicação da Lei; melho-
ramento dos mecanismos de responsabilização; melhoramento da gestão e do
desempenho dos recursos humanos; implementação de Códigos de Ética exequí-
veis; melhoramento das condições dos serviços públicos dentro de limites razoá-
veis e criação de um ambiente potenciador para as organizações da sociedade
civil actuarem como forças de vigilância visando a responsabilização dos funcio-
nários públicos.
Parece evidente que fragilidades numa parte da infra­‑estrutura de ética,
como, por exemplo, o Parlamento, far­‑se­‑ão repercutir noutras partes, como, por
exemplo, a auditoria. Neste sentido, os reformadores têm de estar alerta para as
dependências funcionais e ligações organizacionais entre os vários componen-
tes da infra­‑estrutura de ética. Para tal, é necessária uma abordagem integrada
e coordenada às reformas. O principal desafio para os próximos anos é garantir
uma eficaz gestão e implementação das reformas. Informar e solicitar as opiniões
de intervenientes principais é sinónimo de ajudar a reforçar a compreensão e o
sentimento de pertença para a implementação da reforma, mas uma vontade
política contínua e empenho, bem como apoio financeiro e cooperação, serão
fundamentais para o sucesso. A implementação tem de ser gerida, não deve ser
assumida como algo adquirido.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

ARTIGO 4
MAIS DO QUE UM MAU PRESSÁGIO: AVALIAR O PAPEL
QUE OS CÓDIGOS DE ÉTICA DESEMPENHAM PARA
GARANTIR A RESPONSABILIZAÇÃO DOS DECISORES
DO SECTOR PÚBLICO39

ABSTRACT

This article argues that the essential factors of a public service code of ethics
can be divided into five categories. These categories or principles are fairness,
transparency, responsibility, efficiency and conflict of interest. These principles
are identified in this article as being the basic elements of democratic accounta-
bility in relation to public sector decision­‑making. The issues explored are not only
the obstacles that the public service decision­‑maker faces in internalizing these
principles but, also, the challenges for a pro­‑active management in fostering such
internalization.

SUMÁRIO

O presente artigo defende que os factores essenciais de um Código de Ética


do serviço público podem dividir­‑se em cinco categorias. Estas categorias ou
princípios são a imparcialidade, a transparência, a responsabilidade, a eficiência
e o conflito de interesses. Estes princípios são identificados no presente artigo
como os elementos básicos da responsabilização democrática em relação à
tomada de decisões no sector público. Os temas abordados não são meros
obstáculos com que o decisor do serviço público se depara ao internalizar estes
princípios, mas, também, os desafios de uma gestão pró­‑activa na promoção
dessa internalização.

39Título original: More than Writing on a Wall: Evaluating the Role that Code of Ethics Play in
Securing Accountability of Public Sector Decision­‑Makers, Niamh Kinchin, The Australian Jour‑
nal of Public Administration, vol. 66, n.o 1, 2007, pp. 112­‑120.

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PARTE I

IMPARCIALIDADE

A imparcialidade é talvez o princípio mais central, mas também o mais vago,


de um Código de Ética do sector público eficaz, o que não deixa de ser frustrante.
Enquanto o conceito de imparcialidade, ou pelo menos de procura pela imparcia-
lidade, é fundamental para a teoria de ética mais clássica e moderna, uma defi-
nição de “imparcialidade” está na origem de muita polémica. Não é de admirar
que, no mundo da ética no serviço público, seja um conceito de difícil definição.
A Teoria do Utilitarianismo de Mill (1869) está incompleta sem um elemento
de controlo de imparcialidade. Embora Mill e outros teóricos do utilitarismo
afirmassem que o que é eticamente correcto é aquilo que gera o máximo de
bons resultados (exemplo, um benefício para o indivíduo) em detrimento de um
mínimo de maus resultados (Mill, 1869), este resultado ou “utilidade” tem de ser
imparcial e universal. Os benefícios devem ser maximizados ao nível social, não
apenas ao nível individual, sendo que a utilidade só se justifica se for imparcial.
As Teorias Éticas de Kant, tal como as teorias utilitárias, desenvolvem­‑se em
torno de uma interpretação de imparcialidade ou, mais correctamente, do conceito
de “dever”. Com base na obra de Immanuel Kant (1781), as Teorias de Ética de
Kant defendem que as acções verdadeiramente morais ou éticas não se baseiam
no interesse pessoal, mas antes no sentido de dever, um sentido de que algo é cor-
recto e justo a um nível mais lato, não obstante as consequências para o indivíduo.
É isto que Kant descreve como sendo a “Regra da Lei Universal”, regras de compor-
tamento moral correcto que são determinadas pela respectiva universalidade ou
pelo facto de se aplicarem a todas as pessoas de igual modo (Kant, 1781).
Embora as teorias de ética sejam demasiado complexas para que seja possível
efectuar aqui uma análise proveitosa, uma comparação entre duas teorias de ética
clássica divergentes revela que, não obstante as respectivas diferenças quanto à
utilidade do indivíduo, ambas dizem respeito à consideração central daquilo que
é imparcial. De igual modo, o desafio para o serviço público consiste em conver-
ter este princípio obviamente controverso num objectivo de ética exequível.
Neste sentido, qual o significado da imparcialidade em relação ao serviço
público? São vários os significados. É um sentido de justiça que considera os
direitos individuais. É uma tomada de decisões consistente, imparcial e neutra. É
honrada (Uhr, 1991). É o pilar social da ética pública – privacidade, garantias pro-
cessuais, dignidade humana e uma preocupação com o bem comum (Denhardt,
1991)40. Resulta em algo que é conhecido no sector privado como “equidade” –
um sentimento de justiça individual (Allars, 1991).

40 Segundo Denhardt, “Embora precisemos de alguns controlos externos em termos do com‑

portamento, é fundamental que nos dediquemos a capturar os corações e as mentes do funcio‑


nário público”.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A ambiguidade da imparcialidade é um desafio para o serviço público. Como


é que um princípio aparentemente subjectivo pode ser transformado numa ética
do sector público concreta e convertido em formato redigido e codificado? Uma
dificuldade óbvia baseia­‑se no facto de que a percepção de um indivíduo daquilo
que é justo ser violada no seu próprio paradigma de valor. Este facto por si só
ameaça o sistema de ética do serviço público com uma grande quantidade de
instabilidade. Segundo John Uhr (1991), “o paradoxo da teoria liberal é que a
integridade do serviço público é mantida por verificações e balanços institucionais
que são activados, não por moralidades cívicas estabelecidas formalmente, mas
por valores incultos e, por conseguinte, não fidedignos”. Um exemplo das dificul-
dades intrínsecas levantadas pelo conceito de imparcialidade baseia­‑se no prin-
cípio inerente da equidade. A equidade exige que o decisor abandone as ideias
pré­‑concebidas, predisposições e opiniões quando se dedicar à tomada de deci-
sões. No entanto, tal como a imparcialidade não pode ser forçada a determinado
indivíduo, os preconceitos não podem ser eliminados à força.
O desafio para o sector público consiste em disponibilizar ao decisor a estru-
tura ética inspiradora que incentive a sua internalização e que, em simultâneo,
disponibilize um sistema que garanta a responsabilização. Esta estrutura já existe.
Designa­‑se por imparcialidade de procedimentos.
A imparcialidade de procedimentos consiste num princípio vasto e bem docu-
mentado que emergiu da Lei Comum e que assume um papel fulcral para a Lei
Administrativa Moderna. Relativamente à tomada de decisões no sector público,
a imparcialidade de procedimentos significa que o decisor deve encetar inúme-
ras acções para garantir que os direitos individuais do indivíduo são considera-
dos. Primeiro, um funcionário público responsável por tomar uma decisão deve
examinar os factos minuciosamente, aplicar a legislação correctamente e, mais
importante, fazê­‑lo com equidade. Para que a imparcialidade de procedimentos
seja concedida, é fundamental que todas as decisões sejam abordadas de uma
forma consistente e objectiva. Por fim, mas talvez o mais importante, há o direito
de resposta. Um indivíduo deve ter acesso a todo o material que o decisor esteja
a levar em consideração na tomada da decisão em causa, devendo ser­‑lhe conce-
dida a oportunidade de responder ao mesmo.
Há já algum tempo que a Legislação Australiana dá importância à imparcia-
lidade de procedimentos41 e a sua adopção e promoção concederá estrutura e
conteúdo a um Código de Ética. No entanto, não garantirá automaticamente que

41 Em particular, a secção 5 (1) (a) da Administrative Decisions (Judicial Review) Act, 1977

(ADJR Act) refere relativamente à análise judicial: “Um indivíduo que seja lesado por uma de‑
cisão à qual a presente Lei seja aplicável, e que seja tomada após a vigência da presente Lei, po‑
derá apelar ao Tribunal Federal ou ao Tribunal Federal de Magistratura para obter uma or‑
dem de análise relativamente à decisão com base num ou mais dos seguintes fundamentos: (a)
que a violação das regras de justiça natural tenha ocorrido em relação à tomada da decisão”.

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PARTE I

um indivíduo internalize os princípios da imparcialidade – também existem bar-


reiras extrínsecas a derrubar. Por exemplo, a imparcialidade tem mais hipóteses
de êxito nas situações em que não existam valores organizacionais que se opo-
nham. No entanto, nos últimos anos, a influência do “managerialismo” (abordado
mais detalhadamente de seguida) e a ascensão dos valores do sector privado no
sector público criou, em certa medida, precisamente os mesmos limites. Kathe-
rine Denhardt (1991) identifica um conflito entre conseguir­‑se a equidade, bem
como a consistência, e conseguir­‑se uma melhor produtividade através da flexibi-
lidade de gestão, que é fundamental para o “managerialismo”. Considerando­‑se
tais obstáculos, extrínsecos e intrínsecos, como é que um indivíduo consegue
internalizar a ética da imparcialidade?
Deve conceber­‑se um Código de Conduta numa linguagem na qual o indiví-
duo possa rever­‑se e, mais importante, possa aplicar à tomada de decisões do
quotidiano. Este objectivo pode conseguir­‑se de duas formas. Primeiro, através
da utilização de uma linguagem de imparcialidade de procedimentos. A impar-
cialidade de procedimentos disponibiliza valores de inspiração, tais como regras
processuais, equidade, consistência e direito à resposta, para além de um quadro
legal no âmbito do qual o decisor deve movimentar­‑se.
Segundo, a gestão deve ser pró­‑activa ao incentivar o pessoal a adoptar a ética
de imparcialidade como algo que lhes pertence, garantindo que a linguagem e o
contexto do código são estruturados de forma que sejam relevantes e espelhem
o local de trabalho ou departamento, organização ou agência em particular, bem
como manutenção de uma formação contínua e inclusiva para os funcionários
sobre o conceito de imparcialidade de procedimentos.

TRANSPARÊNCIA

A responsabilização assume o mínimo valor quando aqueles perante os quais


o serviço público é responsável não a conseguem observar. A transparência cons-
titui uma obrigação inabalável que o sector público e o Governo devem explicar,
devendo igualmente disponibilizar processos, políticas e materiais de confiança
para a tomada de decisões. A transparência também significa que um indivíduo
tem o direito de acesso a certas informações do serviço público e do Governo,
sobretudo no que respeita a decisões que lhes dizem respeito.
Dois desenvolvimentos verificados na recente história da Lei Administrativa
tiveram um efeito significativo no melhoramento do princípio da transparência
na ética do serviço público, bem como no procedimento e na gestão. O primeiro
desenvolvimento é o requisito relativamente moderno que exige que o decisor do

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

sector público revele os motivos para determinada decisão e, bastante importante,


divulgue esses motivos ao indivíduo afectado e, na maioria dos casos, os divulgue
publicamente. Os motivos podem ser revelados sob a forma oral ou escrita, mas
a legislação mais relevante incluirá alguma disposição para a produção de moti-
vos escritos, caso também sejam solicitados42. O requisito para a divulgação dos
motivos tem duas consequências imediatas. Primeiro, a parte afectada pode cons-
tatar com os próprios olhos o raciocínio inerente à decisão e que materiais foram
considerados. Em segundo lugar, o potencial para investigação pública da decisão
obrigou o decisor a ponderar atentamente a respectiva decisão, a aplicar a Lei
correctamente e a justificar essa decisão com base nos factos e evidências dispo-
níveis. Na realidade, isto incentiva a uma melhor tomada de decisão. Para além de
aumentar a responsabilização do sector público perante o público, na opinião de
Allars (1991), ajuda a promover a imparcialidade no sentimento de “justiça indivi-
dual”, já que incentiva os decisores a terem mais cuidado no intuito de garantirem
que as suas decisões podem ser justificadas perante o público.
O segundo maior desenvolvimento foi a introdução da reforma legislativa e
reguladora. A reforma legislativa ganhou forma como legislação da liberdade de
informação ao nível do Commonwealth e Estatal. Em termos gerais, e não sem
qualificação, os indivíduos podem agora ter acesso a material governamental
relacionado com eles próprios enquanto indivíduos ou com as políticas governa-
mentais a um nível mais lato. Consequentemente, a introdução da legislação da
liberdade de informação fez com que os decisores ministeriais ficassem legalmente
obrigados a serem “francos” e, em conformidade, a estabelecerem procedimen-
tos transparentes nos respectivos processos de tomada de decisão.
A introdução de organismos de regulação e anticorrupção, tais como a
Independent Commission Against Corruption (ICAC – Comissão Independente
contra a Corrupção, New South Wales) e os vários Provedores Estatais e do Com-
monwealth também tiveram uma substancial influência sobre a forma como a
transparência passou a integrar a metodologia do sector público. Apesar de estes
organismos apresentarem uma tendência para avaliarem as circunstâncias depois
de estas ocorrerem, o respectivo âmbito foi eficaz em consciencializar os Ministé-
rios e as organizações para as respectivas obrigações no que diz respeito à trans-
parência e à imparcialidade.

42 A secção 13 da ADJR Act obriga a um direito mais abrangente relativo ao fundamento ex‑

presso e concernente às decisões tomadas ao abrigo da Lei citada: “Podem conhecer­‑se os mo‑
tivos para a decisão se (1) o indivíduo tomar uma decisão à qual a referida secção seja aplicá‑
vel, qualquer indivíduo que tenha direito a fazer um pedido ao Tribunal Federal ou ao Tribunal
Federal de Magistratura ao abrigo da secção 5 em relação à decisão pode, mediante notifica‑
ção por escrito ao indivíduo responsável pela decisão, solicitar uma declaração por escrito que
inclua os resultados referentes a questões de facto material, referentes a evidências ou outro
material nos quais se baseiem esses resultados e indicando os motivos subjacentes à decisão”.

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PARTE I

Não obstante estes desenvolvimentos, continua a haver obstáculos à interna-


lização da ética. Ao ser transparente, o decisor revela legislação operativa e polí-
ticas ministeriais, mas também revela inevitavelmente algo muito pessoal. Um
decisor pode mostrar­‑se relutante em adoptar a transparência caso receie que a
franqueza e a honestidade o torne vulnerável à incriminação por parte do público
e, num sentido mais imediato, pela entidade patronal, o próprio Governo. A auto
preservação é um aspecto que influencia bastante as atitudes de todos.
Os obstáculos que se apresentam à internalização da transparência como uma
ética também estão patentes na própria legislação da liberdade de informação.
Embora a legislação da liberdade de informação tenha sido introduzida no intuito
de implementar a responsabilização e a transparência, existe o risco de poder
potenciar um clima de secretismo e confidencialidade. A legislação da liberdade
de informação inclui várias restrições ao acesso à informação. Embora algumas
isenções ao acesso sejam bastante rigorosas (isto é, documentos que afectam a
privacidade dos indivíduos de forma não razoável)43, outras são suficientemente
latas para permitirem potenciais abusos. Por exemplo, caso se considere que o
processo envolvido na produção de materiais gasta demasiado tempo e recursos
ministeriais, existe uma isenção ao abrigo da legislação sobre a liberdade de infor-
mação de 1982 que não permite a produção dessas informações44. Outra secção
restringe a produção de um documento de trabalho interno que é considerado
como não sendo do interesse público45. A ambiguidade da expressão “interesse
público” é evidente e a sua definição foi alvo de intenso debate46. Neste caso, a
preocupação não é o facto de a própria legislação não se justificar, mas antes o
facto de a ambiguidade de algumas das cláusulas incluídas poder conduzir a uma
cultura ministerial que, na realidade, seja anti transparência.
Embora o Código de Ética deva expressar a ética da transparência numa lin-
guagem que incentive uma tomada de decisões honesta e imparcial, será uma
tarefa fútil se a direcção não deixar bem claro que apoiará o decisor do sector
público na promoção de um comportamento transparente, bem como na reso-
lução das consequências que possam daí advir. Este apoio deve ser expresso no
próprio código como um tipo de garantia da direcção para com os funcionários, e
a direcção deve ser considerada como cumpridora da sua palavra e do código nas
acções encetadas.

43 Secção 41, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
44 Secção 24, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
45 Secção 36, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
46 Por exemplo, consultar Ken Myers (1990): What is in the ‘‘Public Interest?’’ Asks one Conser‑

vative Group, in The National Law Journal, vol. 13, n.o 9, p 4; Barbara Hocking (1993): What
Lies in the Public Interest? A Legal History of Official Secrets in Britain, in QUTLJ, vol. 9, pp. 31
‑60; Trish Keeper (2004): In the Public Interest, in NZLJ, Junho, pp. 231­‑234.

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RESPONSABILIDADE

A responsabilidade ou a capacidade de resposta é a “fundação democrática


da ética do serviço público” (Denhardt, 1991). Não obstante a responsabilidade e
a responsabilização possam ser termos que se confundem, no contexto do sector
público, a responsabilidade refere­‑se especificamente à instituição democrática
de um Governo responsável. No entanto, para o funcionário público, a respon-
sabilidade é um conceito fragmentado que se refere a duas responsabilizações
distintas. Esta fragmentação conduz inevitavelmente ao conflito, que é um poten-
cial embaraço para a internalização da responsabilidade como um valor ético por
parte do decisor do sector público. O primeiro elemento da responsabilização é
a responsabilidade perante o público. Na qualidade de funcionário do Governo,
o decisor do sector público é responsável pelos melhores interesses do público e
deve tomar as decisões em conformidade. Afinal de contas, o público é o supremo
cliente do sector público.
O segundo elemento da responsabilização é a responsabilidade do decisor
do serviço público perante o Governo e, particularmente, perante o Ministro
relevante. O potencial de conflito é evidente. O funcionário público deve ser
responsável perante os interesses de duas diferentes entidades supremas e
seria ingenuidade presumir que os interesses de ambos são os mesmos. Perante
quem é que, na realidade, o decisor é responsável quando as prioridades do
Governo e do público entram em conflito? A dificuldade do equilíbrio entre estas
responsabilidades é ampliada pelo facto de que, para o decisor individual, é o
Governo ou o Ministro quem pode influenciar a sua própria vida. O Governo é a
entidade patronal do decisor e, consequentemente, urge prestar­‑lhe vassalagem
diariamente (Jackson, 1995)47. Poderá ser mais fácil agradar ao patrão do que
considerar os interesses do público, que poderá parecer um conceito abstracto e
longínquo. É muito difícil resistir à pressão política e pode representar um desafio
para o decisor aconselhar o Governo de forma honesta e imparcial sabendo que
a recomendação não seria bem­‑vinda ou não se coadunaria com a política minis-
terial.
Fizeram­‑se alguns avanços ao nível legislativo numa tentativa de solucionar
este conflito de responsabilidade patente. Por exemplo, a introdução de legis-
lação que incentiva a “denúncia” em toda a Austrália para incentivar e proteger
os funcionários do sector público que façam a participação de condutas na sua
organização que considerem ser corruptas, que desrespeitem a Lei ou que sejam

47 Michael Jackson refere também que, na realidade, os funcionários públicos foram limita‑

dos a simples funcionários do Ministro. Consequentemente, a responsabilização faz­‑se pe‑


rante o Ministro e, na realidade, o Ministro não é muito responsável perante o público.

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PARTE I

pouco éticas48. No entanto, na realidade, a legislação que incentiva a denúncia só


poderá ser marginalmente bem­‑sucedida se os denunciantes forem ostracizados
pelos colegas como “traidores” por terem agido.
Há uma percepção de que a capacidade de resposta aplicada à responsabili-
dade no Governo é sinónimo de subserviência (Sherman, 1998). Caso se aceite
esta percepção, é verdade que não há espaço para tomadas de decisão honestas
e imparciais no seio dessa subserviência. Embora esta percepção possa ser bas-
tante discutível, será prudente considerar as questões que emanam em relação
às nomeações de alto nível no sector público, sobretudo no Serviço Executivo
Sénior (SES) e nomeações para Tribunais. De uma forma geral, os funcionários
dos Tribunais são nomeados para determinado período de tempo (geralmente
entre três a cinco anos) e o Ministro relevante analisa as referidas nomeações
findo esse período.
Os factores considerados para a renomeação de um funcionário são esotéri-
cos e podem variar bastante dependendo do Tribunal e do Ministro em particular.
Será muito rebuscado pensar se as decisões do funcionário e a forma como estas
se enquadram na agenda política do Governo actual poderiam ter influência
nessa decisão? Conforme Niland e Satkunandan (1999) bastante correctamente
observam, a ameaça da perda do cargo torna difícil fazer uma recomendação
imparcial.
As nomeações do SES também foram criticadas por promoverem a subser-
viência aos Ministros. A Public Service Bill (Lei Relativa ao Serviço Público) de
1997 foi alvo de grande atenção no momento da respectiva introdução devido ao
poder que era concedido ao Primeiro­‑Ministro, que lhe permitia cessar os servi-
ços dos dirigentes do Ministério e Repartições de Serviço Público sem que tivesse
de apontar um motivo. Os dirigentes das Repartições têm um poder semelhante
de cessarem os serviços dos responsáveis SES em circunstâncias semelhantes.
Estas disposições foram alvo de críticas por impossibilitarem a realização de
“recomendações francas, sem receios e honestas ao Governo” (Sherman, 1998).
Embora a Lei tenha sido posteriormente alterada, o debate levantou preocupa-
ções sobre a capacidade dos funcionários públicos seniores e funcionários de
Tribunais para manterem a respectiva capacidade de resposta ao público, e se o
Governo é vulnerável a influência substancial.
Mesmo sem o conflito de responsabilidades, a manutenção da capacidade de
resposta para o público não é isenta de problemas. O busílis da responsabilidade
incide sobre o “interesse público”. Mas trata­‑se de uma expressão ambígua que
sugere que o público é homogéneo. O público pode partilhar o interesse comum

48 Whistleblowers Protection Act, 1993 (South Australia) (Lei de Protecção de Denunciantes);

Whistleblowers Protection Act, 1994 (Queensland); Whistleblowers Protection Act, 2001 (Vic‑
toria); Protected Disclosures Act, 1994 (New South Wales).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de que os princípios democráticos são sustentados, mas diferentes intervenien-


tes podem influenciar a percepção de interesse público e isso pode não reflectir
aquilo que é realmente do interesse do público. Na opinião de John Uhr (1991),
muitas organizações públicas não conseguem proteger e promover o interesse
público ao tornarem­‑se reféns de grupos subdivididos ou serem influenciados
pela sua própria ideologia política. Para integrar eficazmente a terminologia de
capacidade de resposta e responsabilidade num Código de Ética e para que os
decisores a internalizem com sucesso como valores próprios, devem reconhecer
o conflito que pode emergir na sua dualidade. No entanto, este aspecto reflecte
apenas metade da batalha. A direcção deve garantir que todos os decisores do
sector público compreendem os preceitos de um Governo responsável e que se
esforçam por promover um ambiente onde o decisor não teme questionar a qua-
lidade ética da recomendação ou das instruções dos directores para os colabora-
dores (Sherman, 1998).

EFICIÊNCIA E EFICÁCIA

Eficiência e eficácia, termos que representam a responsabilização para gestão


de recursos, gastos de fundos públicos e qualidade de serviço, são provavelmente
os valores éticos mais fáceis de quantificar. Os relatórios orçamentais irão revelar
se os fundos estão a ser gastos de forma insensata. Se os serviços não estiverem
a dar resposta às necessidades do público, os meios de comunicação e os grupos
de interesse revelá­‑lo­‑ão. No entanto, estas características tangíveis e identificá-
veis da eficiência e da eficácia não se traduzem necessariamente numa ética de
serviço público que pode ser internalizada mais facilmente.
Com a proliferação dos princípios do “managerialismo” em todo o sector do
serviço público durante a década de 1980, emergiu uma crescente focalização na
eficiência e eficácia do sector público. Embora desde então se tenha verificado
uma diminuição da filosofia do “managerialismo” (Uhr, 1991), as respectivas pro-
blemáticas e influências continuam a ser extremamente relevantes para o debate
da ética. O “managerialismo” é um termo lato que descreve a filosofia empresa-
rial do sector privado. Na busca de uma melhor produtividade, rentabilidade e
melhor qualidade do serviço, os directores do sector público começaram a con-
templar os princípios do sector privado, afastando­‑se da ênfase dada pelo sector
público tradicional ao procedimento e ao processo.
As políticas “managerialistas” também tiveram uma substancial influência
sobre os níveis executivo e legislativo do Governo. Por exemplo, a Lei relativa à
Gestão Financeira e Responsabilização de 1997 (Cth) define directrizes para a

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PARTE I

utilização correcta de dinheiros públicos e prescreve violações para a utilização


indevida. Em particular, a secção 4449 estabelece a obrigação do Director Executivo
em garantir que a utilização dos recursos do Commonwealth é eficiente, eficaz e
ética.
Não restam dúvidas de que o “managerialismo” tem muito para oferecer ao
sector público. O público tem o direito de saber que o Governo, para além de estar
a gastar os fundos públicos de forma sensata, também é competitivo e procura a
excelência. No entanto, não é sensato acreditar­‑se cegamente que o sector público
é exemplar em termos de eficiência e boa gestão comercial. Afinal de contas, o
sector público tem um longo passado de descomunal falha financeira, bem como
de incapacidade para dar conta das suas acções e resultados (Elliott, 1997).
Numa era de contenção fiscal (Allars, 1991), os princípios “managerialistas”
foram considerados como os mais eficazes para se atingir a eficiência. No entanto,
esta solução aparentemente simples para os problemas relacionados com a efi-
ciência, tende a ignorar as diferentes estruturas dos sectores público e privado
e, mais importante ainda, as diferentes responsabilizações. As organizações do
sector privado podem ser responsabilizadas perante os respectivos clientes
e accionistas, a sua responsabilização, nem de longe, se equipara à do sector
público. Embora o sector privado tenha maior flexibilidade para ser orientado
para objectivos e orientado para os resultados por as suas responsabilizações
raramente serem a força motriz na respectiva tomada de decisões, a escolha de
mercado é pouco comum no sector público, pelo que a responsabilização é uma
consideração essencial (Mulgan, 2000).
Como é que o decisor do sector público toma decisões eficientes e eficazes
que não ignoram a responsabilização, isto é, a imparcialidade, a transparência, a
responsabilidade e a possibilidade de conflito de interesses? O director do sector
público que corre riscos ao adoptar os ideais do sector privado (por exemplo,
reduzir os processos burocráticos) terá de prever tais riscos como sendo para o
benefício do contribuinte (Elliott, 1997). O “managerialismo” pode ter retirado
a ênfase do processo, fazendo­‑a recair sobre os resultados, mas então onde se
enquadram as regras processuais (Podger, 2003)?
Um Código de Ética deve reconhecer que o sector público é o local incompa-
rável que efectivamente é. Se procurar a eficiência e a eficácia, deverá fazê­‑lo por

49 Secção 44: “Promover uma utilização eficaz e ética dos recursos da Commonwealth. (1) Um

Presidente do Conselho de Administração deve gerir os assuntos da Agência de forma a promo‑


ver uma utilização adequada dos recursos da Commonwealth pelos quais é responsável. (2) Se
o cumprimento dos requisitos das regulamentações, Ordens do Ministro das Finanças, Instru‑
ções Especiais ou qualquer outra Lei impedir ou impossibilitar a utilização adequada desses re‑
cursos, o Director Executivo deve gerir de forma a promover a utilização adequada dos refe‑
ridos recursos, na medida do possível, cumprindo simultaneamente esses requisitos. (3) Nesta
secção: ‘utilização adequada’ significa utilização eficiente, eficaz e ética”.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

sua conta e risco. O “managerialismo” e os valores comerciais do sector privado


têm muito a revelar ao sector público, mas isso não significa que esses valores
devam ser aplicados cegamente.
O perigo da simples transferência dos valores do sector privado para o sector
público é que o decisor terá de pugnar com a impraticabilidade de lutar pela efi-
ciência e pela eficácia enquanto tenta manter a integridade de outras éticas do
sector público. Neste contexto, o objectivo da internalização da busca pela efi-
ciência e pela eficácia será tudo menos fútil.

CONFLITO DE INTERESSES

Resumindo, um conflito de interesses ocorre quando há dois interesses em


rivalidade. No contexto do serviço público, um conflito de interesses ocorre geral-
mente quando um funcionário público tem um interesse em algo, quer seja finan-
ceiro ou pessoal, que, de alguma forma, entra em conflito com o seu cargo, ou
desvia a sua capacidade para realizar as suas tarefas cumprindo em simultâneo
a ética e os valores do serviço público. Um conflito de interesses pode assumir
variadas formas. Embora a lista não seja exaustiva, Joseph Zimmerman (1994)
identifica os conflitos de interesses enquadrando­‑os nas seguintes categorias:
• Interesses pecuniários (directos e indirectos).
• Detenção de dois cargos.
• Contrato (celebração de contratos com o Governo).
• Subornos, empréstimos e ofertas.
• Divulgação de informações confidenciais.
• Emprego no exterior.
• Restrições pós­‑laborais.

A identificação do próprio conflito de interesses sem a ajuda de fontes exter-


nas nem sempre é uma tarefa fácil. A perspectiva pessoal, os valores culturais e
morais, e as preocupações familiares e pessoais são factores que actuam como
potenciais inibidores.
O cenário onde um decisor do sector público ganha um interesse pecuniário
com base numa transacção entre um interesse privado e o seu próprio departa-
mento é um exemplo de um clamoroso conflito de interesses. No entanto, outros
podem ser mais difíceis de identificar. A representação privada de um organismo

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PARTE I

ou associação cujas opiniões possam entrar em conflito com as do Ministério é


um exemplo de um conflito menos óbvio.
Os obstáculos sistémicos tais como o “conflito baseado no emprego” tam-
bém devem ser considerados (Whitton, 1998). Whitton defende que quando o
sector público procura uma maior eficiência, competitividade e “conseguir mais
com menos” ocorre um conflito contra os seus próprios valores. Neste ambiente,
com prémios profissionais e contratos que são concedidos pelo melhor desem-
penho, refere que o interesse pessoal é incentivado e que os funcionários estão
mais sujeitos a comportamentos pouco éticos. Consequentemente, os indivíduos
entram em concorrência com as entidades patronais e uns com os outros para
protegerem os seus interesses pessoais. Assim, verifica­‑se a possibilidade de os
indivíduos se depararem com um conflito entre protegerem os seus próprios
interesses e sacrificarem os da organização e, num âmbito mais abrangente, do
próprio serviço público.
Se um decisor do serviço público já tiver internalizado os valores de um Códi-
go de Ética, sobretudo em relação à transparência, imparcialidade e responsa-
bilidade, aspectos que desencorajam os conflitos de interesses no seu próprio
contexto, a consequência será identificar e evitar um conflito de interesses. Não
quer isto dizer que a consciencialização do conceito de conflito de interesses
não seja identificada num Código de Ética. A consciencialização dos conflitos de
interesses, quando ocorrem, e como os identificar, bem como às potenciais con-
sequências, é vital para a eficácia de um Código de Ética.

CONCLUSÃO

Um Código de Ética tem potencial para ser uma ferramenta extremamente


eficaz para garantir a responsabilização na tomada de decisões no sector público.
No entanto, esta eficácia será corrompida se os factores operantes da ética do
sector público adjacente (traços e valores individuais) não forem levados em
consideração. Trata­‑se do elemento humano do código (a internalização da ética
por parte do decisor individual) que irá garantir a responsabilização. A respon-
sabilização só será eficaz a um nível superficial na melhor das hipóteses se o
decisor não assimilar esses valores de ética como seus próprios. Um Código de
Ética que é eficaz em termos de internalização dessa ética por parte do indivíduo
e, consequentemente, a responsabilização, deverá conseguir realizar e demons-
trar diversos aspectos. Conforme referido no presente artigo, um Código de Ética
deve:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• espelhar os preceitos da responsabilização democrática e de um Governo


responsável. O presente artigo identificou esses elementos como a impar-
cialidade, a transparência, a responsabilidade/capacidade de resposta, a
eficiência e a eficácia, e o conflito de interesses;
• deve enquadrar­‑se numa linguagem com que o decisor se reveja e que seja
ajustada num contexto familiar. Não obstante uma declaração de valor de
serviço público ser algo admirável, os Códigos de Ética devem ser desenvol-
vidos para cada agência, organização ou organismo de tomada de decisões. É
fundamental que o decisor consiga interpretar a ética do código no seu pró-
prio ambiente de trabalho e, mais importante, que consiga aplicá­‑la aos seus
próprios processos de tomada de decisão;
• deve reconhecer os obstáculos que podem surgir em relação a cada ética
para a internalização bem­‑sucedida dessa ética por parte do indivíduo.

Por fim, é fundamental que os directores do sector público sejam pró­‑activos


em garantir que os decisores individuais estão conscientes do código e que
fomentam um ambiente onde essa ética assuma os valores da organização, bem
como dos indivíduos que a constituem.
Redigir um Código de Ética, emoldurá­‑lo e pendurá­‑lo na parede é só metade
da tarefa. Os directores devem garantir que os colaboradores são sujeitos a for-
mação regular no que diz respeito ao Código de Ética. Além disso, um director
deve incentivar activamente o tipo de comportamento ético que o código abraça,
deixando antever a terceiros que ele próprio toma decisões éticas.
Só quando todos estes aspectos forem levados em consideração, e o papel
que o indivíduo desempenha for reconhecido, é que a responsabilização será ver-
dadeiramente conseguida.

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PARTE I

BIBLIOGRAFIA

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PARTE II
ÉTICA NAS EMPRESAS

Luís de França
Professor da UCAN

CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO GERAL À ÉTICA EMPRESARIAL

“A Ética Empresarial nasce nas últimas décadas do século XX. Contudo, a crise
financeira global que afecta a Economia Mundial, desde há vários anos, veio dar
a esta temática uma actualidade de primeira grandeza. Desde então não há dia
em que Chefes de Estado, analistas económicos, Prémios Nobel, investigadores,
autoridades de todas as latitudes não se pronunciem sobre a necessidade da ética
para um bom funcionamento da Finança Internacional e, consequentemente, a
estabilização do crescimento económico das Nações.
Todos, ou quase todos, concordam que a vida financeira do mundo será diferente
daqui para a frente. A ideia de que tudo vale desde que haja lucro está a ser posta
em causa por numerosas intervenções ao mais alto nível da liderança mundial.
Convém portanto ao iniciar este estudo sobre a ética nas empresas reflectir
sobre as origens desta crise que, para muitos, é a maior desde há pelos menos 70
anos. Uma descrição necessariamente incompleta desta crise é o assunto que vai
constituir o primeiro capítulo deste curso. É caso para dizer: Ética precisa­‑se!”

O FIM DA HISTÓRIA?

Foi no contexto da queda do muro de Berlim, em 1989, que F. Fukuyama


publicou, em 1992, a obra famosa, O Fim da História, segundo a qual, depois
do colapso da União Soviética e da libertação dos países satélites, por causa da
falência do comunismo, a democracia liberal e a economia de mercado livre capi-
talista se imporiam por si ao mundo inteiro.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Mas em 2008, outro politólogo americano, R. Kagan, escreveu também um


livro, mas com o título, O Regresso da História e o Fim dos Sonhos.
Fukuyama enganou­‑se. O fim da história não se impôs com a democracia e a
economia de mercado. Com a globalização, as novas possibilidades de troca de
informações e de capitais, de bens e serviços, criaram uma sociedade na qual o
antigo conflito entre o trabalho e o capital passou indiscutivelmente a favorecer
o capital, tanto mais quanto, como disse Manuel Castells, na actual sociedade em
rede, está em vigor a fórmula: “O capital é essencialmente global, o trabalho é
em geral local”.
Aumentaram assim as possibilidades dos investidores e dos especuladores.
Seguiram o lema fixado no consenso de Washington: “Demolição do Estado Social
e desregulação”. Este consenso foi estabelecido em 1982 como projecto das gran-
des Instituições Financeiras Mundiais com o fim de impor o modelo neoliberal a
todo o mundo.

A DESREGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS

O economista e prémio Nobel da Economia, Stiglitz, tem procurado encontrar


explicação para a actual crise financeira mundial. De uma conferência pronunciada
em 2009 no Estoril (Portugal) retiramos as seguintes conclusões.
Para Stiglitz a crise teve origem na progressiva desregulamentação do sistema
financeiro norte­‑americano. Este processo de desregulamentação teve a sua base,
desde logo, no lobbie das instituições financeiras em Washington e a sua influência
nas decisões do Governo Americano. Muitos dos grandes grupos financeiros são
contribuintes fiéis das campanhas eleitorais, quer para o Senado, quer para a Pre-
sidência. Foi através da ideia – dir­‑se­‑ia quase ideologia – da capaci­dade de auto­
‑regulação dos mercados e da falta de fiscalização sobre os mesmos, permitida e
incentivada reiteradamente pelo Presidente da Reserva Federal e pelo Secretário
do Tesouro norte­‑americanos, que a “bolha” económica foi crescendo.

BANCOS COMERCIAIS E BANCOS DE INVESTIMENTO

Este processo sofre um desenvolvimento determinante em Novembro de


1999 com a revogação do Glass­‑Seagall Act, leis criadas no pós­‑crash de 1929,
que originou a Grande Depressão e que visavam um maior controlo sobre a
emissão e distribuição do dólar, mas também a reforma do sistema bancário
então colapsado, passando a haver distinção entre bancos comerciais e bancos de

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PARTE II

investimento. Desde finais dos anos 80 que o Governo norte­‑americano era pres-
sionado a revogar esse conjunto de leis. Stiglitz foi opositor da fusão entre bancos
comerciais e bancos de investimento e a actual crise só lhe veio dar razão.
Por um lado eram evidentes os conflitos de interesses decorrentes da sobre-
posição da cultura dos bancos comerciais (que emprestam dinheiro e gerem
depósitos de forma segura) com a dos bancos de investimento (que geram a
venda de títulos e aplicam grandes quantias em produtos de risco elevado na
perspectiva de rendimentos muito elevados). A mesma instituição que emite títu-
los de uma empresa e que os recomenda, sentir­‑se­‑á pressionada, por exemplo, a
emprestar dinheiro a essa empresa mesmo que tenha dúvidas sobre a sua saúde
financeira. Da mesma forma, a instituição que empresta dinheiro para a compra
de casas, por exemplo, vai depois vender títulos correspondentes às hipotecas
dessas casas – um exemplo de derivado financeiro onde a necessidade de vender
e valorizar esses títulos leva a esconder ou a disfarçar o risco de algumas dessas
hipotecas.

LEHMAN BROTHERS OU GOLDMAN SACHS? “TOO BIG TO FAIL”

Por outro lado a fusão de entidades, com a justificação de supostos benefícios


retirados da criação de “economias de escala”, levaria à criação de gigantes finan-
ceiros que se tornariam os bancos chamados “too big to fail” – a sua influência
económica tornou­‑se tão elevada que o Governo Americano teve de salvar esses
bancos. O Governo, resgatando as dívidas desses bancos, criou um precedente
perverso, encorajando­‑os a tomar ainda mais riscos. Goldman Sachs salvou­‑se,
mas Lehman Brothers faliu – Agosto 2008!
A isso se opõe agora o novo Presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke. Em
Setembro de 2009, o actual Presidente do FED afirmou: “A grande lição do ‘caos’
registado nos mercados financeiros em 2008 deverá ser resolver urgentemente o
problema das instituições financeiras demasiado grandes para falirem”.

OS LOUCOS ANOS 90

Na sua obra mais recente – Os Loucos Anos 90 – o economista Stiglitz lembra


como desde 2001 alguns gigantes financeiros tais como a Enron e a WorldCom
actuaram com práticas contabilísticas fraudulentas. Os seus directores enrique-
ceram, escondendo e manipulando informações vitais sobre a contabilidade das
suas empresas, inflacionando o preço das acções e prejudicando os accionistas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Também cita o caso do Citigroup que investia fortemente os depósitos dos seus
clientes, sem o seu conhecimento, em produtos financeiros de risco.
Com todos estes incentivos perversos decorrentes da desregulamentação,
o sector financeiro tem­‑se distanciado cada vez mais do seu propósito. Stiglitz
afirma que o sector financeiro deve ser um meio para alcançar algo, e não um
objectivo em si, um bem final. Deve ser antes de mais um intermediário e se está
a ser bem­‑sucedido na sua função deve levar a uma produção mais eficiente, não
gerar grandes receitas por si próprio. Seria suposto o sector financeiro gerir o
risco e distribuir capital a baixos custos. No entanto, o sistema financeiro norte­
‑americano contrariou todas estas funções, exponenciou o risco, fez uma má dis-
tribuição de capital, e tudo isto a custos muito elevados. Nos últimos anos, este
sector lucrava 30% de todos os ganhos empresariais.

A BOLHA DO IMOBILIÁRIO

A miopia sobre os efeitos destes modos de proceder e a depravação moral do


sistema financeiro conseguiu piorar. Através do recurso ao crédito barato, as ins-
tituições empenharam­‑se em conseguir o capital que existia na base da pirâmide
social, ou seja, nas classes menos favorecidas, que literalmente pediram emprestada
a sua ascensão social por intermédio da compra de casa. Os bancos concederam
hipotecas, mesmo em situações de risco limite, às pessoas habitualmente chama-
das NINJA (no income, no job, no assets) – pessoas sem rendimentos, sem emprego
e sem património, criando produtos financeiros de elevado risco, mas escondido
risco, que durou apenas enquanto o preço das casas continuava a subir, embora
o rendimento médio americano se mantivesse igual. Com a actual crise, a queda
dos preços no sector imobiliário e a exposição ao risco destes produtos, milhões
de americanos perderam as suas casas e as suas poupanças. Isto representa mais
do que um problema financeiro, é uma verdadeira crise social nos EUA. Além do
empobrecimento de milhões de americanos das classes menos privilegiadas, qua-
renta mil banqueiros ficaram desempregados nas bolsas de Nova Iorque e Londres.
É evidente que esta categoria de desempregados, graças às indemnizações milioná-
rias que receberam, não está na mesma situação do comum dos americanos…
Para além das consequências nos Estados Unidos da América temos de ter em
conta as repercussões desta crise iniciada nos EUA e que se espalhou por todo o
mundo.
O abismo entre ricos e pobres é cada vez maior, quer entre os vários países do
mundo, quer dentro de cada país. Hoje no nosso mundo, mais de 2,5 mil milhões
de pessoas têm de viver com menos de dois dólares por dia, mas há mil milhões

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PARTE II

em pobreza extrema. Desde o início da actual crise, em Agosto de 2008, o número


de pobres aumentou em mais de 400 milhões. Entretanto, os mesmos relatórios
das Nações Unidas (PNUD) informam que mais de metade da riqueza mundial
está na mão de dois por cento da Humanidade.

OS LUCROS SÃO PRIVATIZADOS E AS PERDAS SOCIALIZADAS

De facto, de ano para ano sobe o número de super­‑ricos. E a crise financeira


internacional veio mostrar a força que o capital anónimo detém para determinar
o nosso destino. “Os bancos e os fundos com as suas especulações deitaram a
perder milhares de milhões. E agora, depois de se ter propagandeado a neces-
sidade de o Estado se não intrometer no mercado, tem de ser o contribuinte a
responder pelas perdas especulativas. Os lucros são privatizados e as perdas
socializadas” (Lula da Silva, 2008).
Face à crise financeira e económica actual a “mão invisível” deixou mesmo de
se ver. Quem tinha dúvidas esbarrou agora com a evidência. Uma só citação já dá
muito que pensar: “Cometi um erro ao confiar que o mercado livre pode regular­
‑se a si próprio sem a supervisão da Administração”, Alan Greenspan, antigo Pre-
sidente da Reserva Federal Americana, fez esta afirmação no fim de 2008.
No início desse ano, Alan Greenspan foi aposentado após ter estado 20 anos à
frente da instituição financeira mais poderosa do mundo actual e substituído por
Ben Bernanke.

ÉTICA E REGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS

A crise está aí, imensa, imprevisível. Começou com o sistema financeiro e


alargou­‑se hoje a toda a economia mundial tal um tsunami imparável. A Cimeira
do G20, em Londres, realizada em Abril de 2009, procurou estabelecer as primei-
ras regras de controlo financeiro internacional.
Em Junho de 2009, Obama anunciou a maior reforma financeira desde 1930
com as seguintes medidas-chave: “promover supervisão e regulação robusta da
banca; estabelecer uma regulação compreensiva dos mercados; proteger os con-
sumidores e os investidores de abusos; dotar o Governo de ferramentas para gerir
crises e melhorar a regulação e a cooperação internacionais”.
Em Outubro de 2010, os Ministros das Finanças Europeus concluíram um
acordo quanto à regulação dos fundos especulativos de alto risco – hedge funds
–, os chamados activos tóxicos, que contribuíram para a crise financeira.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

LIÇÕES A TIRAR DESTA CRISE

Quando se reflecte sobre as questões actuais, percebe­‑se que afinal não há


alternativa à economia de mercado. Mas esse mercado tem de ter em conta uma
economia social e ecológica. Economia, como se sabe, quer dizer etimologica-
mente lei da casa, ora a casa tem de ser a casa de todos e para todos e a casa é o
planeta Terra, que é obrigatório preservar.
Quando se pensa, vê­‑se claramente a urgência de apelar à necessidade da
regulação e da ética no universo da Finança e da Economia. Ética, mais uma vez,
e segundo o significado grego, tem a ver com o comportamento que se deve ter
para habitar a casa comum.
O que a crise financeira internacional de 2008 nos veio mostrar de modo
absolutamente claro é que nos precipitamos para o abismo, quando se “excluem
do mercado a moral e a ética e se pensa que se pode renunciar a uma ordem polí-
tica do Estado que mantenha os movimentos do mercado dentro de regras ao ser-
viço do bem comum”. O Estado Social não pode ser algo remanescente, após bons
negócios. O Estado Social é uma condição necessária, não só moral, mas também
política e económica, para a manutenção da economia de mercado.

“Há um confronto de ideias entre os que defendem um papel minimalista


para o Estado e aqueles que vêem o Estado a desempenhar um papel impor-
tante, embora limitado, não só na correcção das falhas e limitações do mer-
cado, mas também no trabalho por uma maior justiça social. Eu estou neste
último campo, e este livro pretende explicar a razão pela qual acredito que,
embora podendo ser o fulcro do êxito da nossa economia, os mercados nem
sempre funcionam bem por si mesmos, a razão pela qual não resolvem todos
os problemas e a razão pela qual o Estado será sempre um parceiro importante
para eles.”
Cfr. Joseph Stiglitz, Os Loucos Anos 90 – A Década mais Próspera do Mundo, página 51

Após o desmoronamento da economia soviética, ou seja, da economia mar-


xista, simbolizada na queda do muro de Berlim – 1989 – não há alternativa ao
capitalismo actual. Mas é necessário distinguir entre capitalismo sem limites e
uma economia social de mercado. Um “capitalismo selvagem” é injusto, contra a
pessoa, e, por isso, não aceitável. Mas um capitalismo enquadrado politicamente,
no sentido de uma economia social de mercado, é de momento o único caminho
correcto e até agora sem alternativa razoável.

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PARTE II

A democracia precisa de virtudes, e isso significa, por exemplo, limite para os


rendimentos dos executivos e que os políticos têm de decidir em função do bem
comum e não dos interesses de determinadas empresas a eles ligadas. É neces-
sária uma nova ordem política mundial, tendo­‑se imposto o conceito de Global
Governance (Governança) para criar um novo sistema de instituições e regras no
contexto dos desafios globais.
“A confiança é um capital tão importante para a economia como o dinheiro.
Por isso, é preciso que os empresários estabeleçam um equilíbrio entre a eficiên-
cia económica e as consequências sociais do negócio empresarial.” (Bispo W.
Huber, na Alemanha).
Em Junho de 2009, António Lopes, economista e professor de Matemática nos
Estados Unidos da América (Harvard), publicou uma análise sobre a crise num
artigo intitulado, Economia Internacional: Uma Lição Mal Estudada. Essa análise
mantém toda a sua actualidade pelo que se transcreve aqui integralmente:

“A crise económica e financeira que recentemente deflagrou no mundo


inteiro, particularmente em países como os Estados Unidos da América, a Rús-
sia e o Japão e na União Europeia, não é fruto do acaso ou do infortúnio, e vem
finalmente ao encontro daquilo que, mais tarde ou mais cedo, já se esperava.
Tanto eu, como alguns dos mais ilustres economistas alertamos para a real
possibilidade de, a curto prazo, o mundo se vir a confrontar com uma hecatombe
financeira de proporções ainda desconhecidas. Que o digam os círculos aca-
démicos, familiares e de amizade que, ao longo destes largos anos, têm sido
testemunhas de tão acertadas e atempadas previsões. Quais as verdadeiras
raízes desta crise e por que razão os políticos, líderes das principais organiza-
ções mundiais, dirigentes empresariais e financeiros não aprenderam com as
lições de um passado ainda não muito distante?

A Grande Depressão de 1929


Sempre entendi que as políticas económicas, fiscais e monetárias insus-
tentáveis e levianas, empreendidas, entre outros, pelos países acima referidos
iriam conduzir inevitavelmente a uma recessão cujas causas são equiparáveis
às que originaram a Grande Depressão nos Estados Unidos e no resto do mundo
nos anos trinta.
Se nos dermos ao cuidado de consultar as publicações da época, facilmente
concluímos que os vírus que contaminavam as economias dos anos vinte são
essencialmente os mesmos que a partir dos anos oitenta passaram a infestar
as economias dos países mais influentes do mundo.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Aqui estão algumas das causas que minaram as economias desse nefasto
período: I. Ausência de regulação dos mercados; II. Gritantes assimetrias na
distribuição da riqueza; III. Insuportáveis níveis de endividamento dos sectores
público e privado, incluindo as famílias; IV. Políticas salariais assentes em bai-
xos salários para a maior parte dos empregados por conta de outrem; V. Frené-
tica especulação nos mercados bolsistas e imobiliário. Mais uma vez a história
se repete sem que os principais responsáveis pela condução dos destinos das
principais instâncias supranacionais e Nações do mundo fizessem alguma coi-
sa para a evitar. A acrescentar às causas de então, tão actuais e semelhantes
às do presente, existem outras que passo a referir: 1. Manifesta incompetência
política e governativa dos principais líderes do mundo civilizado a partir da
década de oitenta; 2. Ameaças à estabilidade económica, financeira e social do
mundo moderno decorrentes da globalização; 3. Políticas fiscais irresponsáveis
e levianas; 4. Políticas monetárias laxistas e negligentes; 5. Idolatria do mate-
rialismo, da fama e do dinheiro em prejuízo do ideal, da justiça e dos valores.

As ilusões da “mão invisível”


Decorrente desta conjuntura tão complexa, perniciosa e explosiva como
a que acabei de descrever, facilmente se percebem os reais motivos porque
o mundo da economia e das finanças entrou em iminente histeria, colapso e
incerteza. Os dogmas económicos do neoliberalismo, assentes na mão invisível
e no laisser faire, formulados pelo escocês Adam Smith (1723­‑1790) e adop-
tados a rigor, mais tarde, pelo prémio Nobel Milton Friedman (1912­‑2006) e
outros discípulos, sucumbiram finalmente perante a penosa e dura realidade.
Esta constatação não devia causar espanto a ninguém, já que outras teorias
económicas e sociais tão radicais, como o feudalismo e o comunismo, conhe-
ceram o mesmo trágico e inglório fim.
Contudo, atribuir ao sector privado todos os males de que padece o mundo
actual, da economia e das finanças, como muito boa gente pretende, não é
correcto, justo e factual. Os Governos de algumas das principais potências eco-
nómicas do mundo, paralisados pelo abuso, corrupção e desperdício, foram
incapazes de adoptar políticas fiscais e monetárias destinadas a promover o
crescimento, a estabilidade do emprego e dos preços e a justiça social.
Como é possível, em tempos de vacas gordas, as contas públicas apre-
sentarem défices crónicos sucessivos tão negativos? Porquê os Governos não
aproveitam as grandes receitas, que deviam ser acumuladas em reservas, fun-
dos de emergência, durante os ciclos económicos favoráveis, para depois as
poderem disponibilizar em alturas conturbadas e difíceis como a que estamos
a viver? As respostas a estas interrogações evitavam muitas das turbulências

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PARTE II

económicas, financeiras e sociais do passado e do presente. Afinal, o antigo


Egipto e a Mesopotâmia, entre outros, e presentemente a China conseguiram
acumular, os primeiros, enormes reservas de cereais em tempos de abundância
para as disponibilizarem em tempos de manifesta escassez, e o último suces-
sivas receitas fiscais excedentárias que lhes permitem enfrentar a actual crise
com massivos meios financeiros que outros países não têm, a não ser que recor-
ram ao agravamento acelerado das suas já incomportáveis dívidas públicas.

As lições da crise
A presente crise ensina­‑nos a repensar os modelos dogmáticos preconce-
bidos e a adaptá­‑los às novas circunstâncias e realidades do mundo actual. O
neoliberalismo económico ou economia pura de mercado, baseado no lucro
fácil e a qualquer preço, na competição predominantemente especulativa dos
mercados imobiliário e de capitais, na anarquia e indiferença dos mercados e
na ausência de princípios legais, éticos e de justiça está a ser definitivamente
enterrado, como aconteceu a outras teorias económicas do passado, de tão
má memória. A resposta científica e pragmática à actual crise do modelo eco-
nómico e social passam por aproveitar as contribuições positivas, as sinergias
e a vitalidade do capitalismo e do socialismo. Estes sistemas económicos não
são incompatíveis, bem pelo contrário, podem ser fundidos numa economia
social de mercado, compósita e mista, onde a inovação, o lucro justo e funda-
mentado, a ética e a solidariedade social possam coexistir em plena harmonia,
reciprocidade e complementaridade.
Aguardo, com esperança, que os ensinamentos de um dos maiores econo-
mistas de todos os tempos, John Maynard Keynes (1883­‑1946), incorporados
no seu mais importante trabalho publicado em 1936, Teoria Geral do Emprego,
Juros e Dinheiro, assim como das políticas macroeconómicas superiormente
definidas pelo irreverente John Galbraith (1908­‑2006) contribuam para a cons-
trução dum novo modelo económico e duma nova ordem económica interna-
cional. Convém adoptar políticas tributárias bem mais progressivas a fim de
penalizar, controlar e evitar as remunerações sumptuosas e exorbitantes como
as de muitos gestores de cargos públicos e privados e de alguns dos protago-
nistas do mundo do espectáculo por forma a atenuar as gritantes assimetrias
sociais e, desta forma, contribuir para o aumento do poder de compra das
classes mais desfavorecidas e estimular o crescimento económico. Como, com
enorme sabedoria, pregava sua Santidade o Papa Paulo VI, sem justiça nunca
haverá paz e estabilidade.”

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CAPÍTULO II
MERCADOS E EMPRESAS NA ENCÍCLICA CARIDADE NA VERDADE

“Uma das autoridades cuja intervenção foi marcante a nível internacional e


no âmago desta crise foi o Papa Bento XVI. Através de um texto que fará história,
Bento XVI evoca não só a referida crise, assim como não poupa palavras para
denunciar a gravidade dos comportamentos gananciosos e irresponsáveis que
estão na sua origem. A publicação da Encíclica, como se verá à frente, foi retarda-
da por causa da magnitude deste colapso financeiro. Trata­‑se de um documento
eclesial que não pretende de modo nenhum ombrear com as análises dos econo-
mistas ou dos financeiros.
Contudo, sabendo que o estudo da Ética Empresarial vem na continuação do
ciclo base de éticas que os estudantes das Universidades cursam nos primeiros
três anos da sua leccionação, é oportuno aproveitar aqui este texto singular.
Trata­‑se de mais uma contribuição, a última, do magistério da Igreja Católica na
área da Doutrina Social da Igreja.
Seguidamente se indicam aquelas partes do texto Papal que mais directamente
dizem respeito às temáticas à volta das quais se constrói a ética das empresas.”

OPÇÕES DE UM TÍTULO

Esta é a maior Encíclica Social de toda a História da Igreja. O Papa trata de


todos os assuntos que se relacionam com a vida económica e financeira das socie-
dades actuais e dos Estados. Defende o mercado e a liberdade individual, mas
denuncia o capitalismo selvagem apelando para os valores éticos que devem guiar
a economia e a política. Pronuncia­‑se pela necessidade de o Estado recuperar um
papel activo, sobretudo por causa da necessidade de regulação dos mercados.
Caridade na Verdade é uma profunda reflexão ou, se quisermos, uma medita-
ção sobre os Princípios do Evangelho aplicados à Economia.
O Evangelho diz­‑nos que o fundamental nesta vida é “Amarmos uns aos outros
como Deus nos amou”. Como viver isto na Economia, no mundo dos negócios,

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PARTE II

e no mundo do mercado livre? Bento XVI veio lembrar que no mundo real em
que vivemos não podem existir dois mundos. Ou seja, haveria o mundo da reli-
gião e o mundo da economia. O Papa diz­‑nos que a Economia não é neutra e que
ao viver as questões económicas temos de pôr aí o Evangelho, por isso a Encíclica
se chama Caridade na Verdade.

A CRISE FINANCEIRA MUNDIAL E OS ATRASOS


DE UMA ENCÍCLICA

O Papa Bento XVI nunca escondeu que o atraso na publicação desta Encíclica
se ficou a dever à enorme crise que se abateu sobre o mundo da Finança e da
Economia a partir de 2007.
Inscrevendo­‑se nas práticas habituais das chancelarias do Vaticano, o novel
Papa fez saber, quase a partir do momento da sua eleição, em 2005, que desejava
publicar, em 2007, uma Encíclica comemorativa dos 40 anos da publicação da
Encíclica Populorum Progressio. Mas isso não aconteceu em 2007, e no avião que
em Março de 2009 o conduziu ao continente africano, e nomeadamente a Angola,
o Papa foi questionado sobre esse atraso. A sua resposta não podia ser mais cla-
ra: “Bento XVI admitiu que o atraso na publicação da sua tão esperada Encíclica
Social tem que ver com a dificuldade em encontrar uma resposta credível para a
crise financeira global”50.
Por outro lado, em 26 de Fevereiro, ainda em Roma, o Papa também fez
saber que não estava a escrever a Encíclica sozinho e acrescentou: “durante este
longo tempo de espera verifiquei como é difícil falar com competência sobre estes
assuntos, já que a realidade económica senão for abordada com competência não
será credível (…)”.
Mas desde logo afirmou que a Encíclica denunciaria – o pecado humano da
ganância – já que esse foi o erro fundamental que causou o colapso de alguns
grandes bancos americanos e por efeito de ricochete provocou uma crise global.

“(…) Temos de fazer uma denúncia razoável e racional dos erros, sem moralis-
mos, mas com raciocínios concretos que tornem compreensíveis os mecanismos
da economia actual… grandes moralismos nada ajudam se não estiverem apoia-
dos em conhecimentos substantivos da realidade.”51

50 The Tablet, 7 March 2009, p. 22.


51 Idem, 18 July 2009, p. 10.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Com tantas ressalvas sobre as consequências da crise financeira não admira


que o Papa Bento XVI, ao publicar finalmente a sua Encíclica, tenha fustigado os
responsáveis da crise com palavras nada doces.

FINANÇAS E ESPECULADORES NA CARIDADE NA VERDADE

Nunca nenhum texto da Doutrina Social da Igreja tinha até então dado tanto
relevo às questões financeiras como acontecerá neste texto de 29 de Junho de
2009.
Ao longo do texto, e por mais de doze vezes, o Papa alerta, denuncia, corrige,
apela a uma outra visão do mundo financeiro ao serviço da economia global. Res-
piguemos algumas dessas referências:

“As forças técnicas em campo, as inter­‑relações a nível mundial, os efeitos


deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e
maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com fre-
quência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração des-
regrada dos recursos da terra, induzem­‑nos hoje a reflectir sobre as medidas
necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relati-
vamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com
impacto decisivo no bem presente e futuro da Humanidade.” (§21)
“É preciso que as finanças enquanto tais – com estruturas e modalidades
de funcionamento necessariamente renovadas depois da sua má utilização
que prejudicou a economia real – voltem a ser um instrumento que tenha em
vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento. Enquanto instrumen-
tos, a economia e as finanças em toda a respectiva extensão, e não apenas em
alguns dos seus sectores, devem ser utilizadas de modo ético a fim de criar as
condições adequadas para o desenvolvimento do homem e dos povos.
É certamente útil, se não mesmo indispensável em certas circunstâncias,
dar vida a iniciativas financeiras nas quais predomine a dimensão humanitá-
ria. Isto, porém, não deve fazer esquecer que o inteiro sistema financeiro deve
ser orientado para dar apoio a um verdadeiro desenvolvimento. Sobretudo,
é necessário que não se contraponha o intuito de fazer o bem ao da efectiva
capacidade de produzir bens. Os operadores das finanças devem redescobrir o
fundamento ético próprio da sua actividade para não abusarem de instrumen-
tos sofisticados que possam atraiçoar os investidores. (§65)

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PARTE II

O desenvolvimento da pessoa degrada­‑se se ela pretende ser a única pro-


dutora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos povos, se
a Humanidade pensa que se pode recriar valendo­‑se dos ‘prodígios’ da tecnolo-
gia. Analogamente, o progresso económico revela­‑se fictício e danoso quando
se abandona aos ‘prodígios’ das finanças para apoiar incrementos artificiais e
consumistas. Perante esta pretensão prometeica, devemos robustecer o amor
por uma liberdade não arbitrária, mas tornada verdadeiramente humana pelo
reconhecimento do bem que a precede.” (§67)

ÉTICA E SENTIDO DA ECONOMIA

A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje,


que as opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moral-
mente inaceitável, as diferenças de riqueza e que se continue a perseguir como
prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção.
Bem vistas as coisas, isto é, exigido também pela “razão económica”. O aumento
sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país
e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza
em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social – e, por este caminho,
põe em risco a democracia –, mas tem também um impacto negativo no plano
económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele conjunto
de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis
em qualquer convivência civil.
E é ainda a ciência económica a dizer­‑nos que uma situação estrutural de
insegurança gera comportamentos anti produtivos e de desperdício de recursos
humanos, já que o trabalhador tende a adaptar­‑se passivamente aos mecanismos
automáticos, em vez de dar largas à criatividade. Também neste ponto se verifica
uma convergência entre ciência económica e ponderação moral. Os custos huma-
nos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarre-
tam sempre também custos humanos.
Há ainda que recordar que o nivelamento das culturas à dimensão tecnológica,
se a curto prazo pode favorecer a obtenção de lucros, a longo prazo dificulta o
enriquecimento recíproco e as dinâmicas de cooperação. É importante distinguir
entre considerações económicas ou sociológicas a curto e a longo prazo. A diminui-
ção do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a mecanismos
de redistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maior competitividade
internacional, impede a afirmação de um desenvolvimento de longa duração.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre
as pessoas as tendências actuais para uma economia a curto, se não mesmo
curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da
economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do
modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios. Na
realidade, exige­‑o o estado de saúde ecológica da Terra; pede­‑o sobretudo a crise
cultural e moral do Homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte. (§32)

ÉTICA E RAZÃO ECONÓMICA

“O amor na verdade – Caritas in Veritate – é um grande desafio para a


Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo
é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a
interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar
um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da caridade, ilu-
minada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvi-
mento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos
bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada
pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo
potencial de amor que vence o mal com o bem (cfr. Rm 12, 21) e abre à recipro-
cidade das consciências e das liberdades. (§9)
A Igreja propõe, com vigor, esta ligação entre ética da vida e ética social,
ciente de que não pode ‘ter sólidas bases uma sociedade que afirma valores
como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas contradiz­‑se radicalmente
aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo e violação da vida
humana, sobretudo se débil e marginalizada’. (§15)
A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje,
que as opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moral-
mente inaceitável, as diferenças de riqueza e que se continue a perseguir como
prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos ou da sua manuten-
ção. Bem vistas as coisas, isto é exigido também pela ‘razão económica’. O
aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um
mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento
maciço da pobreza em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social –
e, por este caminho, põe em risco a democracia –, mas tem também um impacto
negativo no plano económico com a progressiva corrosão do ‘capital social’,
isto é, daquele conjunto de relações de confiança de credibilidade, de respeito
das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil.” (§32)

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PARTE II

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (DSI) A FAVOR DA ÉTICA


NA ECONOMIA E NA FINANÇA

“Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa tem também


importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, a eco-
nomia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de
uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa. Hoje fala­‑se muito de
ética em campo económico, financeiro, empresarial. Nascem centros de estudo
e percursos formativos de negócios éticos; difunde­‑se no mundo desenvolvido
o sistema das certificações éticas, na esteira do movimento de ideias nascido
à volta da responsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e
fundos de investimento chamados ‘éticos’. Desenvolvem­‑se as ‘finanças éticas’,
sobretudo através do microcrédito e, mais em geral, de micro­‑financiamentos.
Com efeito, muito depende do sistema moral em que se baseia. Sobre este
argumento, a Doutrina Social da Igreja tem um contributo próprio e específico
para dar que se funda na criação do Homem ‘à imagem de Deus’ (Gn 1, 27),
um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também
o valor transcendente das normas morais naturais. Uma ética económica que
prescinda destes dois pilares arrisca­‑se inevitavelmente a perder o seu cunho
específico e a prestar­‑se a instrumentalizações; mais concretamente, arrisca­‑se
a aparecer em função dos sistemas económicos­‑finaceiros existentes, em vez
de servir de correcção às disfunções dos mesmos.” (§45)

O LUCRO E O DESENVOLVIMENTO

Recordando a Encíclica, Populorum Progressio, publicada em 1967, o Papa


afirma que o lucro é importante. Sem lucro não há riqueza. Sem riqueza não há
desenvolvimento. Mas nem sempre é preciso procurar a maximização do lucro.
Bento XVI apela a outras formas de encarar a dinâmica económica como se
depreende do texto que se transcreve a seguir:

“Depois de tantos anos e enquanto contemplamos, preocupados, as


evoluções e as perspectivas das crises que foram sucedendo neste período,
interrogamo­‑nos até que ponto as expectativas de Paulo VI tenham sido satis-
feitas pelo modelo de desenvolvimento que foi adoptado nos últimos decénios.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

E reconhecemos que eram fundadas as preocupações da Igreja acerca das capa-


cidades do Homem meramente tecnológico conseguir impor objectivos realis-
tas e saber gerir, sempre adequadamente, os instrumentos à sua disposição.
O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique
o sentido e o modo como o produzir e utilizar. O objectivo exclusivo de lucro,
quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca­‑se a
destruir riqueza e criar pobreza. O desenvolvimento económico desejado por
Paulo VI devia ser capaz de produzir um crescimento real, extensivo a todos e
concretamente sustentável. É verdade que o desenvolvimento foi e continua a
ser um factor positivo, que tirou da miséria milhões de pessoas e, ultimamente,
deu a muitos países a possibilidade de se tornarem actores eficazes da política
internacional.
Todavia há que reconhecer que o próprio desenvolvimento económico foi e
continua a ser afectado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados
ainda mais pela actual situação de crise. Esta coloca­‑nos inevitavelmente diante
de opções que dizem respeito sempre mais ao próprio destino do Homem, o
qual aliás não pode prescindir da sua natureza.
As forças técnicas em campo, as inter­‑relações a nível mundial, os efeitos
deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e
maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com fre-
quência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração des-
regrada dos recursos da terra, induzem­‑nos hoje a reflectir sobre as medidas
necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relati-
vamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com
impacto decisivo no bem presente e futuro da Humanidade.
Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo
desenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam­‑se
reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramento global e uma
nova síntese humanista. A complexidade e gravidade da situação económica
actual preocupam­‑nos com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo,
confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de
um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redes-
coberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor. A
crise obriga­‑nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor­‑nos regras novas
e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências posi-
tivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna­‑se ocasião de discernimento e
elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que
resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora actual.” (§21)

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PARTE II

O MERCADO E OS SEUS LIMITES

Se João Paulo II – nomeadamente na Encíclica Centesimus Annus – já tinha


exposto longamente como é que a Doutrina Social da Igreja encara o mercado
enquanto instrumento global da economia, este Papa introduz leituras inovado-
ras ao apelar para a gratuitidade como um elemento que deve também ter lugar
nas lógicas do mercado. Alguns economistas criticaram este apelo do texto Papal
lembrando as análises de Adam Smith para quem a busca do interesse pessoal é
o único motor do agir económico.
Bento XVI desafia essa visão que segundo ele é limitada e avança com aquilo
que ele próprio chama a lógica do dom. Esta lógica seria como que o modo do
conceito cristão de fraternidade se tornar operatório na área económica. Deste
modo, Bento XVI recusa que a lógica mercantil possa ser a única dinâmica do
mercado. No termo do parágrafo 34, Bento XVI sintetiza o seu pensamento do
seguinte modo:

‘‘Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe, mas toma
forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito,
a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se
quem as gere tiver apenas princípios egoístas. Deste modo é possível conseguir
transformar instrumentos de per se bons em instrumentos danosos, mas é a razão
obscurecida do Homem que produz estas consequências, não o instrumento por
si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o
Homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.” (§36)
“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição
económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de ope-
radores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que
trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e
desejos.” (§36)
“O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que
regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a
doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a jus-
tiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só
porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas
também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado unicamente
ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não con-
segue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas
internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cum-
prir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta
confiança que veio a faltar, e a perda da confiança é uma perda grave.” (§35)

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

AS LÓGICAS E AS DINÂMICAS DO MERCADO

De acordo com muitos pensadores e economistas contemporâneos – Bento


XVI – aceita aquela afirmação segundo a qual hoje não há alternativa à economia
de mercado, mas adianta que o mercado tem de ser diversificado nas suas dinâ-
micas e nas suas lógicas de funcionamento:

“O mercado tem interesse em promover emancipação, mas, para o fazer


verdadeiramente, não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é
capaz de produzir por si aquilo que está para além das suas possibilidades;
tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as
gerar.” (§36)

A lógica mercantil

“A actividade económica não pode resolver todos os problemas sociais


através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há­‑de ter como finalidade
a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupar também e sobretudo a
comunidade política. Por isso, tenha­‑se presente que é causa de graves dese-
quilíbrios separar o agir económico – ao qual competiria apenas produzir
riqueza – do agir político, cuja função seria buscar a justiça através da redis-
tribuição.
Desde sempre a Igreja defende que não se há­‑de considerar o agir econó-
mico como anti­‑social. De per se o mercado não é, nem se deve tornar, o lugar
da prepotência do forte sobre o débil. A sociedade não tem que se proteger do
mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipso facto a morte das
relações autenticamente humanas. É verdade que o mercado pode ser orien-
tado de modo negativo, não porque isso esteja na sua natureza, mas porque
uma certa ideologia pode dirigi­‑lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o
mercado, em estado puro, não existe, mas toma forma a partir das configura-
ções culturais que o especificam e orientam.” (§36)

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PARTE II

A lógica do dom

“Enquanto dom recebido por todos, a Caridade na Verdade é uma força


que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não
conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser consti-
tuída por nós mesmos, mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser
uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer
fronteira, ou seja, não poderá tornar­‑se uma comunidade verdadeiramente
universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além
de qualquer divisão nasce da convocação da palavra de Deus­‑Amor. Ao enfren-
tar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do
dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora,
e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se qui-
ser ser autenticamente humano, dar espaço ao princípio da gratuidade como
expressão de fraternidade.” (§34)

Mas o mais notável nesta exposição é a confiança que Bento XVI coloca nestas
perspectivas enquanto propostas que podem efectivamente concorrer para a
democracia económica, assim como para a vitalidade do próprio mercado:

“O grande desafio que temos diante de nós – resultante das problemáticas


do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo­‑se de maior
exigência com a crise económico­‑financeira – é mostrar, a nível tanto de pensa-
mento como de comportamentos, que não só não podem ser abandonados ou
atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a
honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais,
o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade
podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal. Isto
é uma exigência do homem no tempo actual, mas também da própria razão
económica. Trata­‑se de uma exigência simultaneamente da caridade e da ver-
dade.” (§36)

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

AS DUAS LÓGICAS SÃO NECESSÁRIAS PARA A VITALIDADE


DO MERCADO

O Papa Bento XVI, continuando a expor a sua visão de uma economia que
respeite o Homem em todas as suas dimensões, vai agora defender que as duas
lógicas, que podem operar num mercado polivalente, são necessárias para a vita-
lidade económica do mercado enquanto instituição base da economia actual:

“A Doutrina Social da Igreja sempre defendeu que a justiça diz respeito a


todas as fases da actividade económica, porque esta sempre tem a ver com o
Homem e com as suas exigências. A angariação dos recursos, os financiamen-
tos, a produção, o consumo e todas as outras fases do ciclo económico têm
inevitavelmente implicações morais. Deste modo, cada decisão económica tem
consequências de carácter moral.
Tudo isto encontra confirmação também nas ciências sociais e nas tendên-
cias da economia actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em con-
fiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa
de a distribuir; hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque enquanto as
actividades económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites
territoriais, a autoridade dos Governos continua a ser sobretudo local.
Por isso, os cânones da justiça devem ser respeitados desde o início enquanto
se desenrola o processo económico e não depois ou marginalmente. Além disso,
é preciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicas rea-
lizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprio agir segundo
princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar a produzir valor econó-
mico. As numerosas expressões de economia que tiveram origem em iniciativas
religiosas e laicas demonstram que isto é concretamente possível.”

“Na época da globalização, a economia denota a influência de modelos


competitivos ligados a culturas muito diversas entre si. Os comportamentos
económico­‑empresariais daí resultantes possuem, na sua maioria, um ponto
de encontro no respeito da justiça comutativa. A vida económica tem, sem
dúvida, necessidade do contrato, para regular as relações de transacção entre
valores equivalentes, mas precisa igualmente de leis justas e de formas de
redistribuição guiadas pela política, para além de obras que tragam impresso
o espírito do dom. A economia globalizada parece privilegiar a primeira lógica,
ou seja, a da transacção contratual, mas directa ou indirectamente dá provas
de necessitar também das outras duas: a lógica política e a lógica do dom sem
contrapartida.” (§37)

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PARTE II

MERCADO E DIVERSIDADE EMPRESARIAL

Inovações empresariais e a civilização da economia

Como é de norma um Papa não deve referir num documento de carácter uni-
versal as situações e as realizações concretas, neste caso, na área da economia
e das empresas. Mas quando afirma como o faz no parágrafo 46 do seu texto:
“Nestas últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma
ampla área intermédia”, podemos admitir que Bento XVI está suficientemente
bem informado sobre todas as formas de organizações sociais e económicas hoje
largamente designadas como fazendo parte do “terceiro sector”.
Bento XVI quer evocar para além das empresas tradicionais, isto é, daquelas
exclusivamente voltadas para o lucro profit as que se designam como non­‑profit,
ou seja, as organizações não­‑lucrativas. É um universo bem conhecido e descrito
nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, como fez, por exemplo,
Peter Drucker relativamente à situação dessa área no seu país.
Mas Bento XVI vai mais longe ao referir as empresas de comunhão. Certamente
que aqui pensava nos “parques empresariais” criados pelo movimento católico
dos Focolaris. Hoje, mais de mil empresas em todo o mundo, incluindo algumas
em países africanos, regem­‑se pela lógica do dom sem se apartarem da regra
fundamental do mercado, isto é, trabalhar para obter lucro52. Conhecedor de
todo este universo empresarial, Bento XVI valoriza­‑o ao falar das novas tipologias
empresariais:

“Assim, temos necessidade de um mercado no qual possam operar, livre-


mente e em condições de igual oportunidade, empresas que persigam fins
institucionais diversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro
e dos vários tipos de empresa pública, devem poder­‑se radicar e exprimir as
organizações produtivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recí-
proco confronto no mercado, pode­‑se esperar uma espécie de hibridização dos
comportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível à
civilização da economia. Neste caso, Caridade na Verdade significa que é pre-
ciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que, embora sem
negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca de equivalentes e do
lucro como fim em si mesmo.” (§38)

52 Bruni, Luigini (coord.), Economia de Comunhão, Cidade Nova, 2000.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Espírito empresarial polivalente

“Dentro do mesmo tema, é útil observar que o espírito empresarial tem, e


deve assumir cada vez mais, um significado polivalente. A longa prevalência do
binómio mercado­‑Estado habituou­‑nos a pensar exclusivamente, por um lado,
no empresário privado de tipo capitalista e, por outro, no Director Estatal.
Na realidade, o espírito empresarial há­‑de ser entendido de modo articulado,
como se depreende duma série de motivações meta­‑económicas.

Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem tra-


balha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresas,
muito para além da simples distinção entre ‘privado’ e ‘público’. Cada uma
requer e exprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar uma eco-
nomia que, num futuro próximo, saiba colocar­‑se ao serviço do bem comum
nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito
empresarial. Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio e a formação
recíproca entre as diversas tipologias de empresariado, com transferência de
competências do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice­‑versa, do sec-
tor público para o âmbito próprio da sociedade civil, do mundo das economias
avançadas para aquele dos países em vias de desenvolvimento.” (§41)

E tudo leva a crer que Bento XVI, sem o querer referir, também conhece a
extraordinária inovação lançada há poucos anos pelo Prémio Nobel, Muhammad
Yunus, ao criar o chamado “negócio social”. A maior multinacional do mundo
fabricante de iogurtes associou­‑se ao empresário Yunus para criar uma empresa de
iogurtes que hoje fornece milhões desse produto às crianças das aldeias pobres
do Bangladesh. Legitimando todas essas iniciativas corporizadas hoje em verda-
deiras alternativas económicas ao sistema económico dominante, o Papa advoga
que as empresas de comunhão, e outras com a mesma dinâmica, concorrem para
um mercado mais competitivo e humano53.

53 Yunus, Muhammad, Criar um Mundo sem Pobreza, Difel, 2008.

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PARTE II

ECONOMIA CIVIL E DE COMUNHÃO PARA UM MUNDO MAIS


HUMANO E COMPETITIVO

Por fim, o autor de Caridade na Verdade, depois de ter afirmado que as duas
lógicas do mercado são necessárias à sua vitalidade, vai agora defender a ideia
segundo a qual a economia civil, ou seja, a economia corrente contratual precisa
de compor com as formas de economia de comunhão, com o fim de se alcançar
um mundo mais humano e competitivo:

“Considerando as temáticas referentes à relação entre empresa e ética e


também a evolução que o sistema produtivo está a fazer, parece que a dis-
tinção usada até agora entre empresas que têm por finalidade o lucro (pro-
fit) e organizações que não buscam o lucro (non-profit) já não é capaz de dar
cabalmente conta da realidade, nem de orientar eficazmente o futuro. Nestas
últimas décadas foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma ampla
área intermédia.

Esta é constituída por empresas tradicionais, mas que subscrevem pactos


de ajuda aos países atrasados por Fundações que são expressão de empre-
sas individuais, por grupos de empresas que propõem objectivos de utilidade
social, pelo mundo diversificado dos sujeitos da chamada economia civil e de
comunhão. Não se trata apenas de um ‘terceiro sector’, mas de uma nova e
ampla realidade complexa, que envolve o privado e o público e que não exclui
o lucro mas considera­‑o como instrumento para realizar finalidades humanas
e sociais.

O facto de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumi-


rem uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna­
‑se secundário relativamente à sua disponibilidade a conceber o lucro como
um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da
sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encon-
trem, em todos os países, adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada
tirar à importância e utilidade económica e social das formas tradicionais de
empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita dos
deveres por parte dos sujeitos económicos. E não só... A própria pluralidade
das formas institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simul-
taneamente mais competitivo.” (§46)

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

CAPÍTULO III
DOUTRINAS ÉTICAS COMO SUPORTE DA ÉTICA EMPRESARIAL

“A ética, tal qual a conhecemos hoje, é uma criação do mundo grego. E será
sempre difícil falar de ética nas empresas se não se perceber a origem deste uni-
verso cultural.
Foram várias as teorias forjadas nessa Grécia clássica. Umas vingaram e
marcaram durante séculos o pensamento ocidental. Assim, ninguém pode igno-
rar o lugar único de Aristóteles no nascimento da ética. Mas tem também de
reconhecer a influência que outras doutrinas, tais como a estóica ou a epicurista,
exerceram sobre alguns pensadores e economistas até aos dias de hoje. É pois
imprescindível conhecer os pressupostos doutrinais da ética e também a relação
entre a ética e a moral.
Para tanto deve começar­‑se pela questão básica. Porquê estudar Ética Empre-
sarial nos cursos de Economia, Gestão e nos diferentes cursos de Engenharia?”

PORQUÊ ESTUDAR ÉTICA EMPRESARIAL?

O Homem, definindo­‑se pela acção, procurará formas de agir que lhe sejam
favoráveis, por outro lado, o Homem vivendo em sociedade, convive com outros
homens e, logo, acabará por perguntar como devo agir perante os outros? Para
agir o Homem faz as suas escolhas, faz opções. Conflitos nas opções levam à
diversidade de modos de agir, que por sua vez criam novos conflitos.
Na História da Humanidade, pouco a pouco, passou­‑se da regra do mais forte
à regra do direito. A ética nasce da necessidade de racionalizar os comportamen-
tos humanos. Ou seja, sair do domínio dos instintos e da sobrevivência.
Concluindo, pode dizer­‑se que uma empresa enquanto lugar de convivência
humana também terá de dar lugar à ética. Assim se compreende que se possa e
deva falar de Ética Empresarial.
Filosofia ou Ciência, a ética é necessária para a convivência humana. A Ética
foi desde sempre considerada uma disciplina integrada na Filosofia. Contudo,
hoje, há correntes que tratam da ética, apenas, como ciência do agir, sem refe-
rência à Filosofia.

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PARTE II

DIFERENÇA ENTRE ÉTICA E MORAL

A ética como toda a filosofia ocidental nasce na Grécia. A palavra ética, etimo-
logicamente, vem da palavra grega ethos que pode significar modo de ser, modo
de agir. Mais tarde, a palavra ethos foi traduzida em latim pelo termo mos ou
mores no plural. Daqui nasce o vocábulo moral utilizado nas principais Línguas do
Ocidente (Inglês, Espanhol, Francês, Português, Italiano).
Ética e moral têm, portanto, uma etimologia comum, mas enquanto discipli-
nas que procuram teorizar o agir humano são diferentes. Ética e moral não se
devem confundir. A ética é teórica e procura por via da razão e do conhecimento
humano estabelecer princípios universais que possam reger a conduta humana.
A moral resulta de um conjunto de normas, de preceitos, de costumes e de regras
vividos e aceites numa dada cultura e numa dada sociedade. Logo, a moral é
a ética vivida por uma determinada sociedade e num determinado momento
da História. Assim se fala, por exemplo, de moral burguesa, moral cristã, moral
budista, etc.

DOUTRINAS ÉTICAS E SEUS SUPORTES FILOSÓFICOS


NA GRÉCIA ANTIGA

A ética nasce na Grécia e tem como precursores os filósofos Sócrates (470­‑399


a.C.) e Platão (427­‑347 a.C.), contudo o fundador da disciplina, se assim podemos
dizer, é Aristóteles (384­‑322 a.C.). Este filósofo escreveu a obra fundadora da ética e
que intitulou, Ética a Nicômaco: “A ética é a ciência prática do bem, e bem é ‘o que
todos desejam’, já que ninguém actua pretendendo fazer o mal, se escolhe algo que
é – para os outros ou objectivamente – mal, fá­‑lo porque o julga um bem”.
O bem de cada coisa está definido na natureza, esse bem tem para o agente
razão de objectivo, de algo a alcançar. Actua­‑se para atingir esse bem, que é a
perfeição a que é chamada a natureza humana concreta. Do bem depende por-
tanto a auto­‑realização do agente, o seu prazer, a sua felicidade.
A ética é para Aristóteles um ramo da política, definida como a ciência que
nos deve dizer qual é o bem soberano para o Homem e como o atingir.
Depois de muitas explicações e comparações com o mundo animal, Aristóte-
les conclui dizendo que o bem próprio do Homem é a inteligência e, portanto, o
Homem tem de viver segundo a razão. Seguindo a razão chega­‑se às virtudes, à
vida virtuosa e a virtude mais importante é a sabedoria.
Mas, Aristóteles é muito realista, passa logo ao que são as virtudes no âmbito
da prática imediata. A virtude, diz, é um hábito que torna bom quem o pratica.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A virtude dirá também é o termo médio entre dois extremos viciosos. A virtude
é o justo meio. Em “si mesmo a virtude é um cume, é o que há de mais oposto à
mediocridade”.
E para agir é preciso um conhecimento prático e a virtude fundamental para
o agir humano é a prudência. A prudência é uma disposição acompanhada da
regra verdadeira, capaz de agir dentro da esfera daquilo que é bom ou mau para
um ser humano. A felicidade perfeita só se pode atingir pela ética que indica ao
Homem a temperança para dominar as paixões54.
O estoicismo foi fundado por Zenão de Cicio. Para o estóico, a vida feliz é vida
virtuosa, isto é viver conforme a natureza, ou seja, conforme a razão. O essencial
é a rectidão, a adequação à ordem intrínseca do mundo, a Lei Natural, a Lei Divina
– num sentido quase panteísta – que mede o que é justo e o que é injusto. Para
viver rectamente é preciso lutar contra as paixões, contra as boas e as más.
“Nada te inquiete, nada te perturbe. Todas as coisas nos são alheias, somente
o tempo é nosso”. Esta é uma afirmação do romano Séneca, um dos principais
representantes desta corrente estóica. Séneca era um aristocrata, mas entre os
estóicos também se contam Epicteto, um antigo escravo transformado em filósofo,
e Marco Aurélio que foi imperador romano.
A Filosofia da Stoa – à porta da cidade –, já não é só para uma elite de cida-
dãos tendo em vista o domínio das questões públicas, mas a filosofia que se dirige a
todos os homens que se questionam como governar a cidade.
A felicidade não se deve procurar nos bens que não dependem de nós, tais
como: beleza, riqueza, honra, poder, mas na faculdade de querer bem, que se
chama virtude e que dá a verdadeira beatitude. O estoicismo é uma filosofia da
liberdade interior e absoluta e, é também, uma filosofia do destino. “Os destinos
guiam aquele que os aceitar, forçam a segui­‑lo aquele que lhes resistir” (Séneca),
ou seja, a liberdade do sábio consiste pois em querer as coisas tal como aconte-
cem, e não tal como se desejaria que acontecessem.
É uma filosofia dos tempos difíceis na qual o indivíduo tem de encontrar for-
ças em si mesmo. É também a primeira filosofia explicitamente universalista e
cosmopolita. Os estóicos já falam em ser cidadãos do mundo…
A corrente estóica, fundada cerca de 300 a.C., sobreviveu até aos nossos dias,
tendo sido dominante na passagem do mundo grego para o mundo romano e
deixando mesmo a sua influência no cristianismo dos primeiros séculos.
Esta cultura estóica, dominando os primeiros séculos da nossa Era, e através
da sua vertente universalista, favorecerá a expansão do cristianismo.
De modo semelhante ao estoicismo – o seu inimigo histórico – o epicurismo
é do século IV, pois foi fundado por Epicuro de Samos (341­‑270 a.C.), que fundou

54 Vide Aristóteles, Ética a Nicômaco, Quetzal, 2004.

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PARTE II

a sua escola em Atenas. Esta tendência dura até aos dias de hoje sob o nome de
hedonismo ou utilitarismo.
Tal como o estoicismo, insiste na sabedoria prática. A amizade é indispensá-
vel ao estado de espírito epicurista. O epicurista é um ser delicado e requintado,
que regula com precisão o seu regime de vida para nunca se afastar do estado de
equilíbrio.
Que deve fazer o Homem? O que gosta mais? Ora, o que gosta mais é o que
lhe é agradável: o que lhe dá prazer?
“Quando dizemos que o prazer é o soberano bem não falamos dos prazeres
dos pervertidos, como pretendem alguns ignorantes que nos atacam e desfigu-
ram o nosso pensamento. Falamos de ausência de sofrimento para o corpo e da
ausência de inquietação para a alma.” (Epicuro).
Deve observar­‑se que à volta da Filosofia de Epicuro se gerou um certo para-
doxo. Epicurismo ou hedonismo para estes filósofos não é o reino absoluto dos
prazeres. É o prazer equilibrado que quebra a tensão interior e permite cultivar a
amizade nas nossas vidas passageiras.

À ÉTICA DOS GREGOS SEGUE­‑SE A MORAL CRISTÃ

O mundo cristão quando nasce fala latim e adopta o vocábulo latino mos –
moral. O termo ética será eclipsado da linguagem dos pensadores cristãos e dos
teólogos. Durante séculos só se pensa e só se fala em termos de moral cristã.
É Santo Agostinho (354­‑430) que só fala latim, e já não conhece o grego como
acontecia com os pensadores cristãos anteriores, que irá impor o termo moral ao
pensamento ocidental.
Contudo, a reflexão ética ou moral não estagnou durante o longo período
medieval. O teólogo Tomás de Aquino, por exemplo, dará uma contribuição deci-
siva para a compreensão dos actos humanos, ou seja, para aquilo a que hoje se
chamam os princípios de uma filosofia do agir humano.
Com o advento do movimento Iluminista, no século XVIII, que faz da razão a
única referência e a única autoridade do pensar humano volta­‑se a falar de ética.
Isso acontecerá com o filósofo Baruch Spinoza (1632­‑1677), que publica uma
obra com esse título, o que não acontecia desde o tempo de Aristóteles, ou seja,
durante quase dois mil anos.
Mas, é o filósofo alemão Immanuel Kant que estará no início de uma verda-
deira revolução no modo de pensar a ética, como se verá mais adiante.
Apesar das contribuições destes pensadores – Spinoza, Kant – para o reapa-
recimento da reflexão ética a partir do Século das Luzes – século XVIII – a ética

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

só aparecerá na cultura geral em meados do século XX. Depois dos horrores vivi-
dos durante a Segunda Guerra Mundial (1939­‑1945), a Humanidade despertou
para a necessidade da reflexão ética. Também se deve ter presente que devido à
influência do Positivismo, primeiro, e depois do Marxismo, em todo o século XIX,
a ética esteve eclipsada.
Assim, a partir dos anos 50 do século passado, e depois de um longo inter-
regno, a ética voltou a estar na ordem do dia das ideias e dos debates. A Ética
Empresarial irá inscrever­‑se nesta redescoberta moderna da ética dos antigos.
Actualmente, não há dia em que não apareça um livro ou um artigo de revista
a falar dos mais variados aspectos da ética contemporânea.

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PARTE II

CAPÍTULO IV
OS FUNDAMENTOS DA SOCIEDADE LIBERAL – O UTILITARISMO

“A sociedade liberal na qual germinará a Ética Empresarial tem os seus fun-


damentos no economista, de todos conhecido, Adam Smith. Mas este economista
também era professor de Moral. Daí que o fundador da economia política tenha
deixado uma marca ética à sua maneira de fazer economia. Mais tarde e no
contexto anglo­‑saxónico determinante para a evolução das ideias no século XIX,
nasce o utilitarismo que influenciará uma parte da economia até aos dias de hoje.
Stuart Mill é um autor a ser conhecido no itinerário de todos aqueles que queiram
compreender o mundo de ontem, mas também muito do mundo inglês de hoje.”

ADAM SMITH (1723­‑1790), O FUNDADOR DA ECONOMIA


POLÍTICA E PAI DO LIBERALISMO, TAMBÉM FEZ A SUA MORAL

A primeira metade do século XVIII assistiu ao aparecimento, em Inglaterra,


de um conjunto de pensadores – Hutcheson, David Hume e Adam Smith – que
acham que existe um elo profundo entre a natureza sensível do ser humano, a
sua capacidade de identificação e de compaixão pelo outro, a sua sociabilidade e,
portanto, a sua moralidade.
Esses homens esforçam­‑se por conciliar o dever e o interesse por desculpabi-
lizar a busca da felicidade pessoal, chegando a ver nela – caso de Adam Smith – a
origem da felicidade pública.
Para Adam Smith a conduta humana é condicionada por seis determinantes:
amor­‑próprio, simpatia, ânsia de liberdade, instinto de propriedade, hábito de
trabalho, propensão para troca. Condicionado por estas determinantes, cada
Homem é o melhor juiz dos seus próprios interesses e deve ter a liberdade de
realizar os seus interesses segundo a sua livre vontade. Para Adam Smith, a socie-
dade e as instituições frustram a realização das inclinações naturais dos homens e
prejudicam o seu equilíbrio natural, espontâneo. A sua concepção de uma ordem
natural leva­‑o sempre a condenar a intervenção do Estado.
Depois acrescenta que a simpatia é a condição necessária e suficiente para
fundamentar a moral. O juízo moral explica­‑se pela simpatia, pois julgar é aprovar

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ou desaprovar, e isso nada mais é do que uma demonstração da presença ou da


ausência da simpatia. “Actue de tal modo que o observador imparcial possa sim-
patizar com a sua conduta.”
O Homem para Smith não actua com vista a obter uma utilidade, ainda que
isso não o impeça de reconhecer, a posteriori, que as acções virtuosas são úteis e
as viciosas não o são. Recorda­‑se aqui uma afirmação precursora de John Locke:
“A rectidão de uma acção não depende da utilidade, antes a utilidade é uma con-
sequência da rectidão”.
Segundo Adam Smith, o Homem não vive só de pão, e tão-pouco só de benevo-
lência. Se deseja alcançar um equilíbrio torna­‑se necessário perseguir simultanea-
mente todas as três virtudes de prudência, justiça rigorosa e correcta benevolência.
Determinar qual a origem da riqueza tinha sido, durante séculos, a principal
preocupação dos economistas. Para os mercantilistas a fonte estava no comércio.
Para os fisiocratas a riqueza estava na terra, ou seja, na agricultura, mas Adam
Smith defenderá uma ideia diferente: para ele o trabalho é o fundamento da
riqueza das Nações. Quem trabalha é o Homem, daí a análise profunda que ele
se propôs fazer ao discorrer “como é que os homens funcionam”. Como é que
os seus sentimentos e desejos influenciam a sua maneira de trabalhar e logo de
enriquecerem. A doutrina económica de Adam Smith tem uma base psicológica:
o interesse individual.
Concluindo, pode dizer­‑se que, embora seja verdade que na sua obra a Rique-
za das Nações (1776), A. Smith trata mais do pão e na Teoria dos Sentimentos
Morais (1759) mais da benevolência, não é correcto opor uma obra à outra: opor
a moral da simpatia à concorrência, e muito menos acusar o economista inglês de
ter defendido a “lei da selva” ou o “egoísmo”.
Na teoria exposta por este autor nas suas obras de referência é necessário
distinguir entre o puro egoísmo, interesse próprio e o puro altruísmo, e perceber
que a concorrência faz com que cada um de nós, no seu próprio interesse, se sinta
obrigado a ter em conta o interesse dos outros.
Contudo, não se vê como é que com este modo de pensar se pode fundamen-
tar objectivamente uma ética baseada na razão.

O UTILITARISMO DE STUART MILL

A visão optimista sobre o ser humano veiculada por aqueles pensadores esco-
ceses já referenciados gerará um dos maiores movimentos éticos e políticos do
século XIX, o utilitarismo que se pode definir como: um individualismo profunda-
mente humanista e laico.

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PARTE II

Dito de outra maneira, o utilitarismo é, precisamente, a doutrina segundo a


qual uma acção é moralmente boa ou má unicamente devido às suas consequên-
cias para a felicidade dos indivíduos implicados, valendo todos o mesmo.
O fundador do utilitarismo foi Jeremy Bentham (1748­‑1832) que afirmava: “É
da nossa constituição sensível e afectiva, e não da razão, que nasce a possibilidade
de um cálculo de prazeres e das dores, passível de orientar a decisão política”.
“A natureza colocou a Humanidade sob o domínio de dois amos. A dor e o pra-
zer. Só a eles compete indicar o que devemos fazer, bem como determinar o que
faremos.” (Bentham, 1789).
Mas será John Stuart Mill (1806­‑1873), cerca de trinta anos depois da morte
de Bentham, que dará à doutrina uma formulação doutrinal aceitável. Pode dizer­
‑se que o principal contributo de Stuart Mill consistiu em actualizar o epicurismo
assumindo a doutrina ética defendida pelo seu mentor intelectual Bentham, que
dizia: “O objectivo da ética é a maior felicidade para o maior número possível”.
Por outro lado, J. Bentham e J. S. Mill podem ser considerados inspiradores do
ideal aritmético e tecnológico de justiça social, isto é, de utilitarismo social, político
e ético.
Em 1826, Mill descobre que a vida humana, para ser boa, deve basear­‑se na
cultura do ego, no desenvolvimento das nossas potencialidades e inclinações,
bem como naquilo a que chama, na linha de Aristóteles, o carácter, indepen-
dentemente da busca imediata do prazer. Só assim se pode atingir a felicidade. E
afirma também que a pluralidade dos fins humanos é, portanto, compatível com
a unicidade do critério utilitarista.
Em 1861, Mill compõe a sua principal obra que se intitula exactamente – Uti-
litarismo – na qual toma distância relativamente ao seu mestre Bentham. Assim,
Mill não aceita as considerações exclusivamente quantitativas do prazer e da
felicidade propostas por Bentham, introduzindo no seu utilitarismo elementos
antropológicos novos, próximos do aristotelismo.
Ainda que continuando a defender a felicidade, isto é, o prazer como ausência
de sofrimento, aconselha o respeito pelo princípio da diversa qualidade dos pra-
zeres, entre os quais os intelectuais e morais são mais desejáveis e têm mais valor
do que os outros. Pode­‑se dizer, então, que para Mill, tal como para Epicuro, há
que aspirar aos prazeres superiores, que são os do espírito. Daí que ele não iden-
tifique felicidade com satisfação e possa, por isso, afirmar que é preferível um
Sócrates insatisfeito do que um imbecil satisfeito.
Se o utilitarismo de Bentham se pode considerar individualista, Stuart Mill
sucumbe ao pensamento romântico então dominante na Europa do século XIX.
Essa corrente exaltava o conceito de comunidade e a ideia do social e, por isso,
vai afirmar que a utilidade não se refere só à máxima felicidade do agente, mas à
maior soma total e geral de felicidade.

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O que estes autores anglo­‑saxónicos querem dizer é o seguinte: “Se a felicidade


de uma pessoa é um bem para essa pessoa, então a felicidade geral é um bem
para toda a colectividade”.
Depois Mill introduzirá um novo princípio a que chamará Princípio da Felicidade
Geral ou da Utilidade. Na base deste conceito o princípio utilitarista já não se
ocupa só da “máxima felicidade do indivíduo”, mas do modo como a sociedade
no seu conjunto pode alcançar a “máxima quantidade de felicidade”.
John Stuart Mill dominou a filosofia inglesa do século XIX tal como dominou o
movimento utilitarista, tanto pela envergadura de um génio que passa sem esforço
das ciências puras para a economia política e para a ética, sem contar com os
debates políticos e ao mesmo tempo guarda uma grande complexidade e riqueza
de um pensamento que nunca é sistemático, ao contrário dos outros grandes
espíritos da sua época.
A sua doutrina pretende ser uma doutrina da experiência, mas de uma expe-
riência que não pode ser compreendida com a ajuda de um princípio único, seja
ele o Princípio da Utilidade, o Princípio Indutivo ou o Princípio da Liberdade.
O movimento utilitarista, movimento político e social, bem como intelectual,
irá na segunda metade da época vitoriana (1863 a 1903) transformar­‑se numa
filosofia moral, cuja influência dominará a discussão filosófica, económica e política
durante todo o século XX.
Torna­‑se um instrumento indispensável da decisão política e social, daquilo a
que chamamos “escolha pública” e irá desempenhar um papel determinante no
século XX, quer na Teoria da Justiça de John Rawls, quer na Teoria da Democracia
e também na Ética Aplicada.

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PARTE II

CAPÍTULO V
IMMANUEL KANT, UMA REVOLUÇÃO COPERNICANA
NA FILOSOFIA E NA ÉTICA

“O filósofo Immanuel Kant, expoente máximo do Iluminismo europeu do


século XVIII, é um pensador incontornável para qualquer área da filosofia con-
temporânea. Tudo mudou depois de Kant. É talvez demasiado exigente num curso
de Engenharia ou de Economia apelar ao estudo do filósofo de Könisberg, mas
o esforço que um ou outro estudante queira fazer será largamente compensado
pelas aberturas intelectuais que o autor propõe. Ele provocou mesmo uma revolu-
ção na evolução do pensamento ocidental.”

Kant (1724­‑1804) vive fascinado pelos resultados apresentados pela Física


sobretudo representada, naquele tempo, por Isaac Newton, e pretende que a
Filosofia possa tornar­‑se tão rigorosa como a Matemática e a Física.
Kant quer explicar tudo pela razão, e sem o apoio e os conhecimentos que
Freud – entre outros – e as neurociências hoje nos dão sobre o funcionamento
da mente humana. Então Kant vai fazer um esforço inaudito para explicar como é
que a razão humana funciona, e só com recurso a conceitos filosóficos.
Ao contrário do empirismo, Kant recusa que o conhecimento venha da expe-
riência sensível, ou seja, que essa experiência seja a base do conhecimento. A
razão conceptualizaria o que encontrou no sensível. Para Kant a possibilidade de
perceber está na razão antes de mais. Esta contém os esquemas, as modalidades
e as categorias que essa razão irá, conforme as circunstâncias, aplicar ao que lhe
vier dos sentidos.
“A necessidade das leis científicas não vem da experiência. Tem origem no
próprio sujeito que aplica certas leis gerais do seu pensamento às coisas, como
modo de as apreender e compreender.”
Para Kant há dois princípios absolutamente certos porque vêm do interior. O
facto da ciência e o facto da moral. Para Kant isto não se discute assim.
Há conhecimentos verdadeiros e há obrigações morais, uns e outros impõem­
‑se por eles mesmos a qualquer consciência racional.

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Aliás, Kant parte do princípio que se as ciências e a moral existem, é preciso


compreendê­‑las e procurar­‑lhes um fundamento.
Daí as interrogações que Kant considera fundamentais e que vão orientar a
sua investigação filosófica:
• Como é que a ciência é possível?
• Como é que a moral é possível?
• Como conciliar a ciência e a moral, uma exigindo a necessidade de leis natu-
rais e a outra a liberdade dos actos humanos?

Outro dado para perceber a Filosofia de Kant é o de compreender que para ele
nunca poderemos conhecer as coisas em si mesmas. As coisas manifestam­‑se e nós
apreendemo­‑las como fenómenos. Isto é, contactamos com uma aparência das
coisas – nós não podemos conhecer as coisas – em si mesmas – só podemos conhe-
cer as suas representações. Wolf, contra o qual Kant escrevia, dizia que se podiam
conhecer as coisas em si mesmas. Kant dizia a razão não consegue lá chegar.
Kant também se opôs a Hume e ao seu empirismo, pois Kant dizia que não
basta a experiência que nada explica, sem as leis do espírito. Porque para Kant é
na mente, na razão, que estão as leis que nos permitem conhecer seja o que for. E
essas leis são a priori, isto é, elas existem ainda antes de eu fazer qualquer expe-
riência ou de receber o impacto de qualquer fenómeno.

CRÍTICA DA RAZÃO PURA (1781)

Não esquecer que o problema de Kant é sempre como fundamentar uma


Metafísica que tenha a mesma credibilidade científica que a Matemática e a Física.
O autor escreve na sua obra fundamental o seguinte: “A Matemática e a Física
existem como ciências porque as suas afirmações são universais, aceites por
todos os cientistas. Mas sobre a Metafísica existem teorias e opiniões diversas e
os seus autores não conseguem formular uma verdadeira Metafísica reconhecida
por todos e logo um conhecimento universal como acontece com a Matemática e
a Física”.
Contudo Kant ao olhar para a realidade que o rodeia constata que a Metafísica
existe como disposição, inclinação natural do espírito humano. Ora as ciências
não precisam da crítica da razão pura para se constituírem, pois já mostraram a
sua validade. Portanto, o único trabalho que resta é fazer passar a Metafísica pelo
crivo da razão. Toda a imensa obra denominada – Crítica da Razão Pura – só tem
esse objectivo. Já que tem de existir uma Metafísica, porque as pessoas andam à

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PARTE II

procura dela, vamos dar­‑lhe uma base racional, o que para Kant é o mesmo que
dar­‑lhe uma base científica.
Kant passou a vida inteira num imenso esforço de racionalização para des-
vendar o modo como a razão funciona e, a partir daí, saber se é possível a razão
fundamentar uma Metafísica.
Para tal, criou o seu método e, que segundo a sua intenção, devia resolver
esta questão fundamental. O método chamou­‑se Análise Transcendental. Só que
Kant utilizou as palavras correntes na Filosofia do seu tempo, mas dando­‑lhe con-
teúdo diferente. Se não tivermos cuidado ainda ficamos mais baralhados neste
universo de conceitos cruzados. Vejamos, então, o que é que Immanuel Kant
entendeu por transcendental ao expor o seu método na primeira parte da sua
obra magistral.
A noção de transcendental, como se sabe, vem da escolástica. Para Aristóteles
significava as propriedades do ser: unidade, verdade, bondade, por exemplo.
Mas para Kant, transcendental nada tinha a ver com o ser, mas com o conhe-
cimento e o conhecimento a priori. Para Kant, transcendental são os conceitos ou
as representações a priori, isto é, que estão no espírito ainda antes do contacto
com as coisas, com os objectos. Ou seja, Kant foi à escolástica buscar um termo e
deu­‑lhe o conteúdo que entendeu.
Concluindo, todo o conhecimento tem relação com um objecto e quando o
conhecimento é, a priori, a sua relação ao objecto é assegurada não pela expe-
riência, mas por princípios que Kant chamava transcendentais.
Pelo entendimento os objectos são pensados. O entendimento é activo –
espontaneidade dos conceitos – é o entendimento que constitui o conteúdo da
analítica transcendental. O conhecimento intelectual faz­‑se por conceitos.
O espírito, a razão só compreende na Natureza as coisas que lá pôs. Como e
por que é que essas categorias subjectivas estabelecidas por Kant podem ter valor
objectivo e fundamentar a ciência física, já que esse é o objectivo central da crítica
do entendimento? Kant precisou de dez anos para responder a esta questão.

Kant
Entendimento é o poder de julgar (pensar é julgar). Kant propôs doze tipos
de juízos, ou seja, doze funções de síntese que são independentes da matéria.
A estas funções chamam­‑se conceitos puros ou categorias.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA (1788)

Aqui também operou uma reviravolta Copernicana ao considerar que não é o


bem que determina o dever, mas o dever que determina o bem. Logo a Metafísica
não fundamenta a moral.
As morais empiristas identificam o bem, o prazer ou o interesse. Ora para Kant
os empiristas são subjectivistas pois nunca podem daí concluir uma regra univer-
sal. A tendência para o bem é egoísta e o egoísmo leva­‑nos a desejar a felicidade.
Procurar a felicidade é uma necessidade natural, mas isso não chega para fazer
uma obrigação moral.
A ideia essencial de Kant é que a ética tem de ser racional e, consequentemente,
a mesma é igual para todos. Dado que as regras são impostas a todos, elas não
dependem do seu cumprimento efectivo, mas apenas da vontade de as cumprir.
Por outro lado, Kant afirmava que a boa vontade é em todo o mundo a única
coisa certa. Uma boa vontade pode deixar de ser boa se o dever for feito por
motivos de interesse próprio ou por motivos altruístas que, no entanto, nascem
da inclinação e não da vontade pura.
O dever apresenta­‑se pois como obediência a uma Lei que é Universal. A isso
o filósofo de Könisberg chamou o imperativo categórico.
O fundamento da moral está no dever – o dever é uma regra de acção que
deriva a priori da razão e que se impõe por si a todo o ser racional. No fundo é um
facto que se impõe como imperativo categórico, é um absoluto sem fundamento.
“Age sempre de acordo com uma máxima que possas erigir em Lei Universal.”
Isto introduz a ideia de autonomia, que é a chave da abóbada da moral Kan-
tiana. O dever não se impõe do exterior à vontade, mas pela razão que constitui
o Homem. A consciência moral é autónoma, pois atribui a si mesma as suas leis.
Ou seja, Kant:
“Declara a acção objectivamente necessária em si mesma, sem relação a
nenhuma finalidade.”
Submeter­‑se a leis estrangeiras é uma heteronomia degradante, incompatível
com a dignidade da pessoa humana. Ora até então, dizia Kant, todas as morais se
fundamentaram na heteronomia, submetendo a vontade a um objecto. Que seja
a felicidade, o bem eterno, a utilidade, a simpatia, a Lei do Magistrado, as leis da
religião, etc.
O dever é aquilo que torna possível que haja vida moral. Quando a vontade se
submete ao dever fica indeterminada relativamente ao objecto e dá­‑se a si mes-
ma a sua lei. Nisto consiste a liberdade. Ser livre é agir determinando a própria lei
da sua acção.
“Age sempre de tal maneira que trates o humano em ti, ou no outro, como
um fim e não como um meio.”

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PARTE II

“Age sempre como se fosses ao mesmo tempo legislador e súbdito na repú‑


blica das vontades livres e racionais.”
O dever sendo um absoluto que se impõe por si mesmo a qualquer ser racio-
nal pode servir de fundamento para recuperar certas teses metafísicas que a
razão é incapaz de demonstrar.
A Crítica da Razão Pura mostrou que o espírito humano nada pode saber das
realidades que transcendem os fenómenos, pois o espírito não dispõe de intuição
intelectual.
A Crítica da Razão Prática mostrou que a realidade dessas ideias deve ser afir-
mada. A estas teses Kant chamou Os Postulados da Razão Prática e a sua afirma-
ção foi um acto de fé prática.
Os Postulados da Razão Prática são os seguintes: a imortalidade, a liberdade
e a existência de Deus. Sendo que liberdade é o primeiro dos Postulados, pois é o
fundamento dos outros.
Que a liberdade seja uma condição da vida moral, isso já foi demonstrado,
pode mesmo dizer­‑se que é evidente, pois não tem sentido falar de obrigação se
não existirem seres livres. Para viver moralmente somos obrigados a acreditar
que somos seres livres.
Com Kant clarifica­‑se a tendência para determinar a racionalidade não tanto
como contemplação teorética da ordem existente, mas como impulso para a rea-
lização dos fins que a razão se coloca a si própria sob o signo da necessidade e da
universalidade.
Kant negará a existência de um sentido moral. Falará apenas de um senti-
mento. Não um fundamento explicativo, mas uma consequência de acção da Lei
Moral sobre a nossa faculdade de desejar.
A ética Kantiana é inteiramente formal. Ela não dá leis para as acções, tarefa
que cabe ao direito positivo. Uma vontade autónoma que se deixa apenas deter-
minar pela Lei da Liberdade é que pode ser considerada boa.
Quaisquer que sejam as críticas à Filosofia de Kant, temos de reconhecer que
num período histórico – século XIX – em que o eurocentrismo se transfigurava em
concepções do mundo cada vez mais justificativas do colonialismo e de racismos
agressivos, Kant manteve­‑se fiel à tese da unidade do género humano e da digni-
dade de todos os seres humanos, independentemente da cor da sua pele ou do
tipo e graus civilizacionais das suas sociedades. A sua herança é inestimável para
o pensamento actual.
Kant inspirou Rawls, K­‑O Apel, J. Habermas, Hans Jonas e esteve sempre pre-
sente como raiz e horizonte de referência para os filósofos que procuram apro-
fundar o papel da responsabilidade e da cidadania democráticas no quadro do
mundo presente.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

CAPÍTULO VI
JOHN RAWLS E O NASCIMENTO DA ÉTICA EMPRESARIAL

“John Rawls, para alguns o maior filósofo da ciência política do século XX, foi
um herdeiro de Kant, razão porque em parte é necessário conhecer o filósofo ale-
mão antes de se passar ao estudo do cientista americano, professor de Harvard.
Refuto que qualquer estudante universitário não pode deixar a Universidade
sem ter tomado contacto com este pensador que continua a inspirar numero-
sos estudos. Uma das áreas mais elaboradas no pensamento contemporâneo é
exactamente aquela que tem a ver com os estudos sobre as várias concepções da
justiça.
A obra recente de Amartya Sen – Uma ideia de Justiça – não faz mais do que
confirmar o lugar insubstituível de John Rawls na problemática da busca da socie-
dade justa.”

A SOCIEDADE LIBERAL E O APARECIMENTO DA ÉTICA


EMPRESARIAL

A sociedade liberal é aquela que privilegia a liberdade como valor fundamen-


tal na construção dessa mesma sociedade. Daí a possibilidade de cada cidadão
definir e escolher os princípios que entende devem orientar a sua vida.
Ou seja, a sociedade liberal é por excelência uma sociedade plural. Pluralis-
mo quanto aos bens que se procuram, pluralismo quanto aos fins que se elegem
como orientadores da acção de cada um, pluralismo quanto aos valores que se
assumem e se entende devem ser transmitidos às gerações seguintes, etc. Como
encontrar neste tipo de sociedade que recusa a proposta de bens da tradição, ou
lugar das autoridades, um princípio aglutinador capaz de assegurar a convivência,
a resolução de conflitos de interesses e uma base de desenvolvimento para toda
a sociedade?
A resposta a esta questão foi dada, entre outros pensadores, pelo filósofo
americano, John Rawls, em 1971 ao publicar – Uma Teoria da Justiça.

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PARTE II

Nesta obra chave, Rawls procurou lançar a base moral que melhor se ade-
qua a uma sociedade democrática, ao propor um contrato social entre os cida-
dãos, assente na igualdade de oportunidades. Colocando a tónica na ideia de
equidade ou de reciprocidade entre “os mais favorecidos”, Rawls ultrapassou o
tradicional dilema filosófico entre “liberdade” versus “igualdade”, introduzindo a
justiça como conceito central. Segundo a sua definição, justiça significa dar a cada
Homem o que lhe é devido.
John Rawls elaborou uma Teoria da Justiça que, embora não sendo política
nem metafísica, procurou com base na razão estabelecer regras para o convívio
plural e pacífico que, hoje, se pratica nas democracias das sociedades desenvolvi-
das. Para tal, distingue, e no seguimento de Kant, o que são concepções substan-
tivas do bem – que diferem de grupo para grupo, até de pessoa para pessoa – e o
que devem ser Princípios Processuais de Justiça que a todos se possam legitima-
mente aplicar, sem prejuízo das tais diferenças de concepção de vida e dos ideais
de cada um. Digamos que a justiça, e portanto o Estado, estaria necessariamente
numa posição de neutralidade perante as várias concepções do bem.

“O método proposto por Rawls é melhor apresentado e até justificado por


um paralelismo que se estabelece com o método da lógica e da linguística.
Desenvolver uma lógica, pelo menos no sentido em que se espera que ela expli-
que hábitos de raciocínio dedutíveis ou indutivos, é identificar princípios tais
que, ao conformarmo­‑nos com eles, sejamos conduzidos a inferências intui-
tivamente válidas: válidas, à primeira vista, numa consideração reflexiva. Do
mesmo modo aperfeiçoar uma teoria da gramática, como Noam Chomsky,
em particular, insistiu, é descobrir princípios que sirvam igualmente as nossas
intuições de gramaticalidade, ainda que distintas das de validade. Para Rawls
desenvolver uma teoria ética, em especial a componente ética de uma Teoria
Política – em suma, uma Teoria da Justiça – é identificar princípios cuja aplica-
ção conduza intuitivamente a julgar bem em casos concretos.”
Kukathas, Chandran; Pettit, Philip, Rawls Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos, página 19

Para determinar os princípios que deverão presidir a uma concepção pública da


justiça, Rawls propôs uma situação imaginária, a chamada “posição original” ou “a
teoria do véu da ignorância”, na qual todos os membros de uma sociedade iriam
deliberar sobre as regras a que teriam de obedecer. Nesse contrato fictício, mas
logicamente fundador da legitimidade de uma moral publicamente vigente, todas
as várias partes envolvidas na deliberação estariam numa situação de ignorância,

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

para assegurar a sua neutralidade ninguém saberia se, na sociedade real, é rico
ou pobre, homem ou mulher, culto ou ignorante, etc. Do acordo unânime que daí
saísse teríamos as regras de uma ética pública na sociedade pluralista.
Numa sociedade pluralista Rawls estava consciente das dificuldades que se
levantavam à estabilidade das estruturas sociopolíticas que se conformavam com
os princípios enunciados. Ele reconheceu mesmo que a exigência de estabilidade
colocava poderosas restrições a qualquer concepção de justiça:

“Assim, um sistema justo pode não estar em equilíbrio, porque agir de


modo equitativo não é, em geral, a melhor resposta que cada um dá à justa
conduta dos seus semelhantes. Para assegurarem a estabilidade, os homens
têm de ter um sentido da justiça ou uma preocupação com aqueles que seriam
prejudicados pela sua traição, ou, de preferência, ambos. Quando estes senti-
mentos são suficientemente fortes para dominarem as tentações de violação
das regras, os sistemas justos são estáveis. A satisfação dos nossos deveres e
obrigações é agora encarada por cada um como a resposta correcta às acções
dos outros. Regidos pelo sentido da justiça, os projectos racionais de vida con-
duzem a uma conclusão.”
Rawls, John, Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Editorial Presença, 1993, página 377

Como se disse são os pensadores liberais tais como John Rawls, Willy Kymli-
cka, Jeremy Waldron, Ronald Dworkin, entre outros, que prepararam o terreno
para o aparecimento nos finais dos anos 80 daquilo a que agora chamamos Ética
Empresarial. Contudo, e no que diz respeito ao autor referenciado acima, convém
registar as críticas principais que lhe são feitas. Antes de mais questiona­‑se a
proposta liberal que defende a neutralidade absoluta do Estado. Deverá o Estado
liberal ser neutro? Por outro lado é redutor o enfoque exclusivo no indivíduo
enquanto tal, sem a dimensão social e dialógica que também o constitui; tal enfo-
que não se revela capaz de captar uma série de realidades da vida. Falta portanto
à Teoria da Justiça de Rawls a dimensão colectiva ou comunitarista sem a qual
não é possível dar resposta às questões da diversidade étnica e cultural existente
em quase todas as sociedades contemporâneas.
Uma das críticas à obra chave de Rawls é aquilo a que poderíamos chamar o
seu carácter individualista. Logo no início da obra o autor mostra a sua propensão
para o individualismo ao escrever:

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PARTE II

“Admitamos, para assentar ideias, que uma sociedade é uma associação


de pessoas mais ou menos suficientes, as quais nas suas relações reconhecem
certas regras de conduta como sendo vinculativas e, na sua maioria, agem de
acordo com elas. Suponhamos ainda que essas regras especificam um sistema
de cooperação para fomentar o bem dos que nele participam.”
Rawls, John, Uma Teoria da Justiça, Lisboa, Editorial Presença, 1993, página 28

O individualismo liberal tradicionalmente ignora que há frequente contradição


entre os direitos individuais e os direitos colectivos designadamente de minorias
culturais e étnicas.
Esta tendência individualista liberal para dar prioridade à esfera privada con-
duz, naturalmente, a atitudes de incompreensão pelo fenómeno político que per-
tence à esfera pública. Daí uma atitude frequentemente negativa face ao poder
político, considerado um mal porventura necessário, mas um mal – em vez de ser
visto como uma condição de possibilidade da vida em sociedade e um instrumento
para melhorar a vida das pessoas.
Outra das consequências da Teoria de Rawls é a do empobrecimento do debate
público. Já que não nos podemos entender sobre as questões fundamentais, elas
devem ser relegadas para a esfera privada.

O APARECIMENTO DA ÉTICA EMPRESARIAL NOS ESTADOS


UNIDOS DA AMÉRICA

No início da década de 90, Norberto Bobbio constatou no seu livro que o


mundo começava a viver a “Era dos Direitos”, a qual se caracterizava por uma
consciencialização geral dos Direitos e pela busca do seu efectivo exercício.
A Era da Ética resulta, em parte, da Era dos Direitos. A Era da Ética é o resul­
tado, também, do grau de evolução moral da sociedade.
Assim, para lá do enquadramento teórico com John Rawls, e que irá susten-
tar o aparecimento da Ética Empresarial, existiram contingências históricas que
favoreceram, ou provocaram mesmo, esse desabrochar da ética nas empresas.
É o que veremos no texto a seguir que trata da situação nos Estados Unidos da
América, e depois de forma similar o que se passou no Brasil:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

“E, bem­‑feitas as contas a médio e a longo prazo, verificamos que, tal como
nada há tão gerador de riqueza e de rendimentos como uma boa ideia, nada
há, a médio e longo prazo, tão eficaz e eficiente para as empresas, ambientes
e sistemas empresariais como uma boa ética. A ideia de que o negócio é negó-
cio, a ideia de que há um mundo privado da ética e há um mundo do negócio,
que tem regras técnicas mas onde vale tudo, nunca terá sido uma ideia cor-
recta, mas hoje, além de ser uma ideia falsa, é uma ideia ineficiente. Cada vez
mais verificamos, e nas zonas onde na nossa cultura e civilização se produzem
ideias, que o futuro é marcado pela ética moralista, passadista, mas, no sentido
originário, marcado pelos homens e, acima de tudo, pelo seu carácter.
E não foi por acaso que a reflexão sobre Ética Empresarial, arrancado natu-
ralmente com os clássicos da filosofia e os clássicos da ética, foi uma reflexão
que nasceu da sociedade e da empresa. Esta que temos hoje nasceu da socieda-
de e da empresa, em primeiro lugar, da sociedade norte­‑americana, da grande
crise pós­‑Watergate e pós­‑guerra do Vietname, e do meio empresarial, que sen-
tiu não só uma necessidade de se confrontar com os seus próprios valores, mas
de se confrontar com a sociedade e de pensar a relação com essa sociedade.
Essa crise de civilização conduziu a uma reflexão sobre ética, que não é teoriza-
ção de filósofos, embora seja imprescindível o contributo dos filósofos, mas que
é sobretudo hoje procurado pela comunidade empresarial na sua dimensão de
formação nas escolas de Gestão e Administração, e na sua dimensão prática.
A problemática dos códigos, a problemática da deontologia, a problemática da
ética nas relações são a base de qualquer relação económica micro ou de negó-
cios e serão cada vez mais no futuro a boa­‑fé da confiança (…)
Se no passado pode ter bastado a ideia de que a empresa, o gestor e os
seus elementos cumprem a Lei, no futuro, no mercado que transcende fron-
teiras, na sociedade globalizada, aquilo que faz o prestígio, o nome, a eficácia
das empresas, de sociedades empresariais e de países, naturalmente, a sua
produtividade e competitividade, mas não menos o seu bom nome, que assenta
numa prática eticamente exigente.
Nesse sentido, sem estar a reduzir tudo à ética ou a absolutizar a ética, diria
que é importante que interiorizemos que o futuro empresarial passa por uma nova
cultura empresarial de que a responsabilidade social da empresa, os padrões de
comportamento perante aqueles com quem se relaciona (clientes, fornecedores
e consumidores), perante os mercados com uma relação de transparência e de
verdade, que não é só importante nos mercados financeiros mas é em todos),
perante os elementos que constituem a empresa (dos gestores perante os traba-
lhadores, perante os accionistas e perante o Estado) faz parte integrante.”
Prof. Doutor António Sousa Franco – Ministro das Finanças de Portugal –
1996, no 1.o Congresso Português de Ética Empresarial

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PARTE II

A ÉTICA EMPRESARIAL NO BRASIL

No ano de 1992, os brasileiros de todas as idades saíram à rua para defender


a ética. Naquele ano, a consciência ética geral materializou­‑se no desejo de afas-
tamento do Presidente da República.
Em todas as suas manifestações, a sociedade brasileira exigia que as pessoas e
as organizações seguissem os princípios éticos.
A consciência ética do povo brasileiro manifestou­‑se, inicialmente, em relação
à situação de políticos e dirigentes públicos.
Dois factos chamaram a atenção do mundo naquela oportunidade: a clara
demonstração de que o Brasil já não aceitava a corrupção como um mal necessá-
rio, a participação entusiástica e intransigente da juventude no episódio, demons-
trando que o país do futuro será ainda mais rígido em matéria de ética.
A partir de então, o Ministério Público tem sido impelido pelo mesmo clamor
popular e não tem decepcionado. É imenso o número de investigações, inquéri-
tos e denúncias formuladas por esse órgão envolvendo matéria éticas.
Mesmo com o risco da própria vida, cidadãos brasileiros têm auxiliado nas
investigações dos promotores públicos e das Comissões Parlamentares de Inqué-
rito.
Portanto, é uma consequência natural que essa mesma consciência ética se
volte agora para o sector privado e, especialmente, para o mundo dos negócios e
das empresas.
O Código de Defesa do Consumidor exerceu a função de alertar a consciência
ética popular, em relação às empresas, no Brasil.
Essa consciência ética cresce cada dia que passa, como se pode perceber pela
grande quantidade de causas submetidas à justiça. Essas causas revelam que em
todos os relacionamentos da empresa, a sociedade deseja a obediência à ética.
Tais processos revelam, também, que a sociedade está disposta a cobrar essa
conduta das empresas em juízo ou fora dela.
Finalmente, esses litígios provam que o povo está disposto a lutar pela ética
e em nome dela ir até às últimas consequências as quais podem englobar, até
mesmo, a permissão para sacrificar agentes económicos antiéticos, ainda que isso
custe empregos (Cfr. Joaquim Moreira, A Ética Empresarial no Brasil, 1999).
No Brasil, em 1992, o Ministério da Educação e Cultura sugeriu que todos os
cursos de Administração ao nível de graduação e pós­‑graduação incluíssem a dis-
ciplina de Ética Empresarial no seu currículo.
Nesse mesmo ano, em S. Paulo, a Fundação Getulio Vargas (FGV) criou o CENE
– Centro de Estudos de Ética nos Negócios.
Em 1998, com o apoio da mesma FGV, realiza­‑se o 1.o Congresso de Ética,
Negócios e Economia na América Latina.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

No ano 2000, após quatro anos, o 2.o Congresso Mundial da ISBEE realiza­‑se,
em S. Paulo, sob a experimentada orientação da FGV. Participaram cerca de qua-
trocentas pessoas oriundas de quarenta e um países. O tema central foi o seguinte:
Os Desafios Éticos da Globalização.

EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE ÉTICA EMPRESARIAL

Na década de 60 nos países de Língua Alemã iniciaram­‑se debates no âmbito da


Ética Empresarial, ainda que de forma muito restrita. Tratava­‑se de saber como
elevar o trabalhador à condição de participante dos Conselhos de Administração
das organizações.
O ensino da Ética nas Faculdades de Administração e Negócios, sobretudo nos
Estados Unidos, iniciou­‑se na década de 70.
O primeiro inquérito realizado nesse país junto dos empresários foi feito em
1968 pelo investigador Raymond Baumhart.
O desenvolvimento das primeiras multinacionais e a sua implementação em
países diversos trouxe para a ribalta outras formas de fazer negócio, que confli-
tuavam com as matrizes éticas dessas multinacionais norte­‑americanas ou euro-
peias. Estes factos promoveram a elaboração de Códigos de Ética Empresarial.
O desenvolvimento nos anos 80 dos MBA – Master of Business Administra-
tion – levou à autonomização da disciplina de Ética Empresarial que desde então
passou a fazer parte de qualquer currículo que procure qualidade nas áreas da
administração e dos negócios.
A década de 90 assistiu ao aparecimento das primeiras redes mundiais sobre
esta temática, assim como à proliferação de revistas nacionais e internacionais
sobre a Ética Empresarial: Society for Business Ethics (USA), European Business
Ethics Network (Europa) e Business Ethics: a European Review (1992), Internatio-
nal Society for Business, Economics and Ethics (ISBEE).
No Japão, em 1996, realizou­‑se o 1.o Congresso Mundial da ISBEE.
Em Luanda, Abril de 2008, realizou­‑se o 1.o Seminário para Gestores e Admi-
nistração de Alta Qualidade.
A Universidade de Harvard nos Estados Unidos da América continua a ser uma
referência nos estudos de Ética Empresarial, ainda que a fundamentação da sua
Ética Empresarial não seja exactamente a mesma seguida nas escolas europeias
ou japonesas55.

55 Vide Harvard Business Review on Corporate Ethics.

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PARTE II

CAPÍTULO VII
EMPRESAS ÉTICAS E EMPRESAS DE RESPONSABILIDADE SOCIAL

“É preciso ter presente que uma empresa é antes de mais uma organização
económica criada para fornecer bens ou serviços, e que deve ser rentável. Sem
lucro não há riqueza, não há desenvolvimento.
Não obstante esta constatação, temos de reconhecer que a evolução do mundo,
nas últimas décadas, particularmente em certos países, assistiu a uma deslocação
do primado exclusivo do económico para a consideração do social. Ao nível da
vida das empresas, isso levou à possibilidade de algumas empresas começarem a
assumir posições éticas no mundo dos negócios, assim como a assumirem respon-
sabilidades sociais fora do âmbito da empresa.
Daí terem florescido no mercado empresas éticas e empresas de responsabili-
dade social. Como é que ética se inscreve na vida de uma empresa é o que vere-
mos neste capítulo.”

A ÉTICA DAS VIRTUDES

Aristóteles foi o fundador da ética das virtudes, afirmando: “As virtudes não
são fins, mas meios para alcançar a excelência”. Todos os pensadores que escre-
vem sobre as virtudes são continuadores ou comentadores de Aristóteles. Foi ele
que forjou a noção de virtude enquanto “meio­‑termo” ou “justo meio” entre dois
extremos. Um por excesso e outro por defeito. Por exemplo, a virtude da cora-
gem seria o meio­‑termo entre a cobardia e a temeridade. A virtude da generosi-
dade ou magnanimidade seria o meio­‑termo entre a avareza e a prodigalidade.
Como o modo de agir é uma consequência do modo de ser, a pessoa que
se exercita nas virtudes e tem uma unidade de vida, deixa transparecer na sua
actuação profissional as virtudes que cultiva na sua vida pessoal.
Virtudes são qualidades que capacitam as pessoas a encontrar motivos para
bem agir. Sem coacção, exercitando a sua liberdade, a pessoa virtuosa procura
sempre escolher o que é bom, certo, correcto. As virtudes são essencialmente
hábitos bons que, para florescer, devem ser praticados.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A ética da virtude ensina que o exercício contínuo de bons hábitos conduz à


aquisição de virtude, mesmo que seja árduo o caminho para conquistá­‑lo. A virtude
é uma maneira de ser – mas adquirida e duradoura – daí a força dos hábitos. “A
virtude é o que nós somos porque nisso nos tornámos” (Cfr. Aristóteles, Ética a
Eudemo além da Ética a Nicômaco)
Na empresa, as pessoas conscientes desse esforço ético têm maior probabili-
dade de tomar decisões correctas, sendo certo que ao tomá­‑las estarão crescen-
do na virtude procurada.

VALORES DE UMA EMPRESA E CULTURA EMPRESARIAL

A noção de valor – os valores – são termos que nunca foram usados na Filoso-
fia antiga. Quem introduz a noção de valor na cultura moderna é o fundador da
Economia Política, Adam Smith.
Ao dissertar na sua obra, Riqueza das Nações, sobre o valor de uso e o valor
de troca, aquele autor forjou um conceito que se tornou muito importante na
vida económica. Mais tarde, e sempre na área da Economia, aparecerão as Bolsas
de Valor.
Passado um século sobre a publicação da obra de Adam Smith, na Alemanha,
o mundo da Filosofia começou a reflectir e a usar esse novo termo. É então que
se publicam as primeiras obras sobre A Filosofia dos Valores. Em 1950, um filósofo
francês, Louis Lavelle, publica um Tratado sobre os Valores. Desde então até hoje,
a reflexão sobre os valores no domínio filosófico nunca mais parou.
Uma das repercussões desse interesse pelos valores será na área empresarial.
As empresas durante muitos séculos foram, acima de tudo, e exclusivamente,
vistas como organizações económicas produzindo bens ou serviços. Mas a partir
dos finais do século XX, essas organizações passaram a ter a responsabilidade
de promover, incentivar e encorajar o comportamento ético através dos valores
escolhidos pela empresa.
Uma Empresa Ética é uma empresa que livremente adopta um conjunto de
valores na sua estrutura e nos seus objectivos. Normalmente, esses valores cons-
tituem o essencial de um Código de Conduta ou Código de Ética Empresarial.
A Empresa é Ética por causa dos valores adoptados na empresa e não por
causa das virtudes das pessoas que integram a organização ou pelos produtos e
serviços que ela oferece à sociedade.
Esses valores assumidos pelos executivos, gerentes e empregados devem ser
vividos, dentro das atribuições de cada um, e acabam por se tornar próprios des-
sas pessoas, como sua segunda natureza. O hábito de agir conscientemente, em

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PARTE II

conformidade com os valores da cultura da empresa, indica o modo como cada


membro da empresa assume essa cultura.
Cultura empresarial é o modo de uma empresa se situar no mercado.
A cultura empresarial faz apelo aos stakeholders. Este termo técnico da Ética
Empresarial quer significar o conjunto de pessoas que de um modo ou outro
tem interesse no modo como o negócio é conduzido, o que pode compreender
empregados, consumidores, vendedores, comunidade local, ou mesmo a sociedade
como um todo. Até à introdução deste termo nas empresas, normalmente só se
falava de shareholders ou stockholders, ou seja, os accionistas.
As virtudes das pessoas que fazem parte de uma organização definem o seu
clima ético, componente fundamental da cultura empresarial. É por isso que os
stakeholders acabam por solidificar a sua confiança na empresa, pela percepção
que têm da sua cultura. Eles esperam encontrar, por exemplo, muita dedicação
aos clientes, cooperação com a comunidade, respeito pelas pessoas, trabalho em
equipa, espírito empreendedor e integridade nos profissionais de todos os níveis
hierárquicos.
Mas numa empresa não basta a prática individual da virtude, é necessário
implementar no conjunto da empresa procedimentos laborais que façam res-
peitar a Lei, que promovam a consciência profissional de todos, ou seja, formas
assumidas de responsabilidade colectiva fora e dentro da empresa.
Assim, foram sendo criados os regulamentos internos do pessoal, os Códigos
Deontológicos, particularmente em certas profissões. Apareceram depois os
Códigos de Ética das Empresas, as formas de avaliação do desempenho. E mais
recentemente, a avaliação da sustentabilidade das empresas e os critérios de res-
ponsabilidade ecológica, nomeadamente a questão das emissões do CO2.

A ÉTICA EMPRESARIAL CONTESTADA

Certos filósofos e pensadores e, particularmente, alguns economistas, dis-


cordam dos fins e das perspectivas da Ética Empresarial. Alguns, por exemplo,
sugerem que o fim principal dos negócios é o de maximizar os rendimentos dos
seus proprietários ou no caso de empresas aumentar o valor das acções. Assim,
nessa perspectiva, só as actividades que aumentem os lucros e o valor das acções
devem ser encorajadas.
Outros pretendem mesmo que num mercado muito competitivo as únicas
empresas que podem subsistir serão aquelas que ponham a maximização do
lucro acima de tudo o mais. Contudo, outros sublinham que no próprio interesse
dos negócios é necessário que os negócios se submetam a leis e adiram a valores

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

éticos base, já que o não cumprimento dessas normas pode vir a custar muito em
multas, perdas de direitos ou afectar a reputação e o bom nome da empresa.
Posições mais recentes afirmam também que nos negócios há deveres morais
que estão muito para além dos interesses imediatos dos proprietários e dos
accionistas.
Há autores que defendem até que os stakeholders têm certos direitos sobre o
modo como o negócio funciona, e alguns vão até ao ponto de sugerir que esses
direitos implicariam a possibilidade de tomar parte na gestão da empresa.
A versão do contrato social aplicada à gestão das empresas foi popularizada
após a obra marcante de John Rawls sobre a Teoria da Justiça.
Empresa de Responsabilidade Social é uma empresa que decide actuar fora
da sua área de produção ou de serviços, a bem da colectividade. A Empresa de
Responsabilidade Social não é necessariamente uma empresa ética.

A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA: CUSTO OU


ESTRATÉGIA?

Numa perspectiva de governo empresarial, exclusivamente voltada para o êxito


financeiro, o exercício da responsabilidade social pode ser entendido, à primeira
vista, como um custo adicional para a empresa, seus sócios e accionistas, pois
são recursos que de outra maneira estariam a ser reinvestidos ou distribuídos
sobre a forma de lucros e dividendos. Durante muito tempo a responsabilidade
da empresa consistia somente na busca da maximização dos lucros e na mini-
mização de custos. A tomada de decisões pelos administradores não costumava
ser influenciada significativamente pelos aspectos sociais e políticos do ambiente
onde se desenvolviam esses negócios.
Hoje, a linha de divisão entre a empresa e o seu ambiente é mais vaga e ambí-
gua, o que torna o cenário mais complexo. Neste contexto, a sociedade exigiu uma
redefinição do papel social da empresa, levando em consideração não apenas os
interesses dos accionistas, mas também o de outros parceiros e os da comunidade.
A empresa deverá demonstrar a sua utilidade social e a contribuição que
traz para o bem comum. A ela cabe cada vez mais o ónus da prova. Ela terá que
definir as suas finalidades de maneira mais explícita e ultrapassar a concepção
segundo a qual o lucro e a geração de empregos são os únicos indicadores da sua
utilidade pública.
A empresa é hoje uma instituição sociopolítica que reflecte a mudança de
ênfase do económico para o social. E a sociedade, por sua vez, está mais atenta
ao comportamento ético das empresas.

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PARTE II

A adopção de uma postura pró­‑social tem transformado estas acções sociais


em vantagens e ganhos tangíveis para as empresas, sob a forma de factores que
agregam valor e trazem aumento de competitividade, tais como melhoria de ima-
gem institucional, criação de um ambiente interno e externo favorável, estímulos
adicionais para a melhoria e inovações nos processos de produção, incremento
na procura de produtos, serviços e marcas, ganhos de participação de mercado e
diminuição de instabilidade institucional e políticas locais, entre outros factores.
Em alguns países, como no Brasil, difundem­‑se cada vez mais no meio empre-
sarial conceitos tais como “empresa cidadã” e “cidadania empresarial”.
Para os académicos e para a sociedade, o conceito de Responsabilidade
Social Corporativa – RSC (Brasil), ou Responsabilidade Social da Empresa – SER
(Angola), está associado ao reconhecimento de que as decisões e os resultados
das actividades das empresas alcançam um espectro social muito mais amplo do
que o composto somente pelos seus sócios e accionistas.
Enfatiza o impacto das actividades das empresas no meio ambiente e com os
stakeholders (agentes que interagem com a empresa: empregados, fornecedores,
clientes, consumidores, colaboradores, investidores, competidores, Governo e
comunidades).
Tal postura manifesta compromissos que vão além daqueles que são obri-
gatórios para as empresas. Expressa a adopção e difusão de valores, condutas e
procedimentos que induzam e estimulem o contínuo aperfeiçoamento dos pro-
cedimentos empresarias, visando também a preservação e melhoria da qualidade
de vida da sociedade, do ponto de vista ético, social e ambiental.
Do ponto de vista estratégico, as empresas que praticam acções e condutas
sociais formam um diferencial que se transforma em componente de sucesso
para os negócios, criando condições favoráveis para a sua continuidade. Quando
a responsabilidade social é assumida de forma consistente e inteligente pela
empresa, tal atitude pode contribuir de forma decisiva para a sustentabilidade e
o desempenho empresarial. Segundo pesquisas, os clientes tornam­‑se orgulhosos
de comprar produtos e/ou contratar serviços de uma empresa com elevada res-
ponsabilidade social.
O grande diferencial é que todos ganham: a empresa atinge os seus objectivos
estratégicos e o consumidor sente­‑se participante de acções que fazem do mundo
um lugar melhor.
É importante destacar que, no mundo dos negócios, este novo paradigma
deve fazer parte da agenda de todos os empresários preocupados com o sucesso
dos seus negócios. Grandes empresas já adoptam a Responsabilidade Social Cor-
porativa (empresarial) como uma estratégia de longo prazo, colhendo bons frutos
de produtividade, respeitabilidade e de imagem junto dos seus públicos interno e
externo, em função da adopção desta postura.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Portanto, a responsabilidade social corporativa está relacionada com a gestão


eficiente e eficaz de empresas onde questões como as ambientais e sociais são
crescentemente importantes para assegurar o sucesso e a sustentabilidade dos
negócios.
Desta forma, as acções de responsabilidade social das empresas representam
muito mais que custos da sua implementação, podem transformar­‑se numa estra-
tégia de longo prazo capaz de assegurar a sustentabilidade das empresas.

VOCABULÁRIO

Business Ethics Ética dos Negócios

Corporate Ethics Ética Empresarial

Responsabilidade Social da Empresa (RSE)


Corporate Social Responsability (CSR)
Responsabilidade Social Corporativa (RSC)

Environmental Responsability Responsabilidade Ambiental

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PARTE II

CAPÍTULO VIII
CRESCIMENTO ECONÓMICO E DESENVOLVIMENTO HUMANO

“A expansão da Ética Empresarial é, ao nível da microeconomia, uma das


repercussões dos grandes acontecimentos que moldaram a macroeconomia após
a ‘queda do muro de Berlim’ em 1989. O confronto ideológico herdado da Guerra
Fria dos anos 50­‑70 e o afrontamento dos dois modelos económicos dominantes
na segunda metade do século XX ruíram simbolicamente naquela noite de 9 de
Novembro de 1989.
Alguns, tais como Francis Fukuyama, pensavam que o modelo neoliberal ame-
ricano poderia então trazer paz e prosperidade a todo o planeta. Hoje sabemos
que não foi assim.”

ÉTICA E CRESCIMENTO ECONÓMICO

O fim da Guerra Fria, simbolizado pela queda do muro de Berlim, criou con-
dições para que um grupo de economistas e pensadores liderados por Mahbub
ul Haq iniciassem a investigação e divulgação de uma nova perspectiva para a
economia mundial. Ao domínio quase exclusivo da visão economicista no mundo
ocidental veio opor­‑se a visão do desenvolvimento humano proposta a partir
de 1990 pelo grupo de economistas do PNUD – Plano das Nações Unidas para o
Desenvolvimento.
Com efeito, em 1990 foi lançado o primeiro Relatório do Desenvolvimento
Humano – RDH, seguido todos os anos de novos relatórios com novas perspecti-
vas. Os sete primeiros relatórios foram determinantes para o modo como muitos
actores da cena económica internacional passaram a ver a realidade mundial. Eis
as temáticas abordadas de 1990 até à actualidade:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Tabela 3 – Temáticas abordadas.

1990 Conceito e Medida do Desenvolvimento Humano

Financiamento do Desenvolvimento Humano – Conceito, Desenvolvimento e


1991
Liberdade

1992 Dimensões Mundiais do Desenvolvimento Humano – Desigualdade e Rendimentos

1993 Participação dos Povos – Crescimento e Emprego

Novas Dimensões da Segurança Humana – Despesas Militares e Dividendos da


1994
Paz (Primeira Edição em Língua Portuguesa)

1995 Igualdade Sexual e Desenvolvimento Humano

Crescimento Humano e Desenvolvimento Humano – Subvalorização Económica


1996
da Mulher

1997 Desenvolvimento Humano para Erradicar a Pobreza

1998 Consumo para o Desenvolvimento Humano

1999 Globalização com Rosto Humano – Dez Anos de Desenvolvimento Humano

2000 Direitos Humanos e Desenvolvimento Humano

2001 Novas Tecnologias e Desenvolvimento Humano

2002 Aprofundar a Democracia num Mundo Fragmentado

Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) – Um Pacto entre Nações


2003
para Eliminar a Pobreza Humana

2004 Liberdade Cultural num Mundo Diversificado

2005 Cooperação Internacional numa Encruzilhada

2006 A Água para Além da Escassez

2007/2008 Combater as Alterações Climáticas: Solidariedade Humana num Mundo Dividido

2009 Ultrapassar Barreiras – Mobilidade e Desenvolvimento Humano

2010 A Verdadeira Riqueza das Nações – Vias para o Desenvolvimento

2011 Sustentabilidade e Equidade – Um Futuro Melhor para Todos

2012 O Futuro Sustentável que Queremos

2013 A Ascensão do Su – Progresso Humano num Mundo Diversificado

2014 Sustentar o Progresso Humano

2015 Trabalho para o Desenvolvimento Humano

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PARTE II

CRESCIMENTO ECONÓMICO E DESENVOLVIMENTO HUMANO

O relatório de 1996 fazendo uma análise de correlações entre várias variáveis


podia concluir que, nos dez anos analisados, nenhum país, entre os que apresen-
taram crescimento rápido do rendimento nesse intervalo de dez anos, obteve
melhorias rápidas ou semelhantes no Desenvolvimento Humano.
Donde a conclusão do relatório de 1996: “Não há passagem automática do
crescimento para o desenvolvimento. O desenvolvimento humano deve ser o fim,
o crescimento económico o meio”.

“O sentido profundo do desenvolvimento humano é o de colocar as pessoas


no centro do desenvolvimento económico. Com isto quer dizer­‑se que os seres
humanos devem poder realizar as suas potencialidades, alargar as suas pos-
sibilidades de escolhas e tirarem partido da liberdade para fazerem da vida o
que entenderem.
Desde 1990, os Relatórios Anuais do PNUD examinaram desafios, tais como
a pobreza, as especificidades sexuais, a democracia, os direitos do Homem, a
liberdade cultural, a globalização, a escassez de água e as alterações climáticas.
Desde 1990, todos os anos, o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano
tem sido um instrumento fundamental na reflexão sobre o desenvolvimento,
não só porque contesta que o valor do rendimento por habitante seja suficiente
para medir os progressos de uma sociedade, mas porque ao mesmo tempo
procura demonstrar como é que uma investigação centrada sobre a população
condiciona o modo como devemos reflectir sobre as grandes questões mun-
diais.
Este modelo de investigação sobre o desenvolvimento humano tem influen-
ciado numerosas correntes de pensamento sobre o desenvolvimento, e o modo
como hoje a esmagadora maioria dos decisores e dos investigadores reflectem
sobre o progresso humano.”

A CRIAÇÃO DO IDH (INDICADOR DO DESENVOLVIMENTO


HUMANO), 1990

O Indicador do Desenvolvimento Humano (IDH) foi construído – na base de


quatro variáveis que se revelaram fundamentais – numa constelação de inúmeros
estudos realizados a nível mundial. Essas quatro variáveis são:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• Esperança de vida à nascença.


• Taxa de alfabetização de adultos.
• Taxa de escolarização bruta combinada dos vários níveis de ensino.
• PIB per capita.

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)


“Se o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) é indispensável para
atingir todos os objectivos humanos essenciais, é importante analisar como
é que esse crescimento se traduz – ou não se traduz – em desenvolvimento
humano nas diversas sociedades.”
Relatório do Desenvolvimento Humano, 1990

Índice de Desenvolvimento Humano (Definição)


O Desenvolvimento Humano é a ampliação das liberdades das pessoas
para que tenham vidas longas, saudáveis e criativas, para que antecipem
outras metas que tenham razões para valorizar e para que se envolvam activa-
mente na definição equitativa e sustentável do desenvolvimento num planeta
partilhado. As pessoas são ao mesmo tempo os beneficiários e os impulsores
do Desenvolvimento Humano, tanto individualmente como em grupos.

A VERDADEIRA RIQUEZA DAS NAÇÕES – VINTE ANOS DE


REFLEXÃO SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO (1990­‑2010)

“O pensamento sobre o desenvolvimento mudou consideravelmente ao longo


do tempo: começando pela ideia de que o investimento de capital equivale ao
crescimento e ao desenvolvimento, avançou sucessivamente para o papel do
capital humano, para o papel dos mercados e das políticas, para o papel das insti-
tuições e, mais recentemente, para o papel da capacitação individual e de grupos
e do domínio das Nações sobre si mesmas.”

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PARTE II

Actualmente não existe consenso acerca das políticas de desenvolvimento.


Mas estão a surgir novas tendências. Muitos interpretaram a crise financeira, sim-
bolizada pelo colapso do gigante financeiro americano, o Banco Lehman Brothers,
como um incisivo indicador dos perigos da liberalização absoluta. O impacto da
crise no pensamento sobre o desenvolvimento ainda não é claro, mas por formas
exploradas ao longo deste relatório (2010) o pêndulo balança claramente para
o regresso a um papel mais activo para as políticas públicas e a um objectivo de
desenvolvimento mais humanitário.
O pacote de desenvolvimento convencional – o consenso de Washington – é
cada vez mais indefensável como conjunto de prescrições universais, embora ainda
impere em muitos lugares. Existem tendências concorrentes no pensamento
actual acerca do desenvolvimento, nem todas novas, e algumas complementares.
A sua influência sobre a prática tem variado de país para país. Várias delas reflec-
tem a influência da abordagem do Desenvolvimento Humano:

• Reconhecendo a necessidade de acção pública na regulação da economia,


na protecção dos grupos vulneráveis e na produção de bens públicos – tanto
tradicionais (saúde, educação, infra­‑estruturas) como novos (superação das
ameaças levantadas pelas alterações climáticas).

• Tornando operacionais as muitas dimensões do bem­‑estar, indo para além


do rendimento médio e das medidas monetárias de pobreza – e incluindo a
vulnerabilidade ao risco e aos choques. Com dados e técnicas melhores para
capturar as dimensões em falta, fazer isto cada vez melhor.

• Novas medidas para uma realidade evolutiva dentro do IDH.

• Ajustamento do Índice de Desenvolvimento Humano à Desigualdade


(IDHAD).

• Uma nova medida da desigualdade do género.

• Uma medida multidimensional de pobreza IPM.

• Vendo a pobreza, o crescimento e a desigualdade como essencialmente


indivisíveis – com a redução da pobreza a depender não apenas da taxa de
crescimento, mas também dos níveis e das alterações da distribuição do
rendimento. O crescimento rápido não deve ser o único objectivo político
porque ignora a distribuição do rendimento e negligencia (e pode minar) a
sustentabilidade do crescimento.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Desenvolvimento Humano
“Há sempre escolhas políticas, embora as escolhas não deixem de ter limi-
tações. Algumas são melhores para a redução da pobreza, para os Direitos
Humanos e para a sustentabilidade – enquanto outras favorecem as elites,
desprezam a liberdade de associação e esgotam os recursos naturais. Os prin-
cípios da justiça têm de ser explicitados – para identificar compensações entre
eles, como entre a equidade e a sustentabilidade, de modo a que os debates e
as decisões a nível público sejam bem informados.
O desenvolvimento humano vê as pessoas como arquitectos do seu próprio
desenvolvimento, tanto pessoalmente, na famílias e nas comunidades, como
colectivamente, no debate público, na acção partilhada e na prática democrá-
tica.”
Relatório do Desenvolvimento Humano, 2010, páginas 20 a 24

O conceito de Desenvolvimento Humano é deliberadamente aberto – e sufi-


cientemente robusto e vibrante para proporcionar um paradigma para o novo
século.

Assim, pode afirmar-se que o Desenvolvimento Humano tem três componentes:


• Bem­‑estar: expansão das liberdades das pessoas – para que as pessoas pos-
sam prosperar.
• Capacitação e agência: habilitação das pessoas e dos grupos para que ajam
– para gerar resultados valiosos.
• Justiça: expansão da equidade, sustentação dos resultados ao longo do tempo
e respeito pelos Direitos Humanos e por outros objectivos da sociedade.

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PARTE II

CAPÍTULO IX
A ÉTICA EMPRESARIAL COMO FACTOR DE INTEGRAÇÃO
NA GLOBALIZAÇÃO EM CURSO

“Se a Ética Empresarial foi despoletada por acontecimentos bem datados nos
Estados Unidos da América, o contexto da globalização, e a necessidade de uma
vertente ética no interior do processo global em curso, faz perceber por que é que
das multinacionais até às PME, a Ética Empresarial será cada vez mais um factor
de integração na globalização em curso.
A Ética Empresarial, traduzida, por exemplo, em termos de Responsabilidade
Social das Empresas, contribui para a ‘cadeia de valor’, à qual uma empresa tem
de estar atenta quando desenha uma estratégia para o seu nicho, num mercado
cada vez mais globalizado.”

GLOBALIZAÇÃO – O MUNDO FEITO GLOBO

Nos anos setenta do século passado falava­‑se de planetarização, de cosmovi-


são, depois começou­‑se a falar de cooperação e de interdependência e finalmente
de relações Norte­‑Sul. E nos últimos anos do século XX começou a difundir­‑se a
expressão globalização.
O termo globalização criado pela cultura sociológica inglesa acabou por
impor­‑se como vocábulo global. O sociólogo inglês, Anthony Giddens, propôs a
seguinte definição: “A globalização é a intensificação de relações sociais mundiais
que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são
condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice­
‑versa”.
Com a proximidade do ano 2000, e as consequentes celebrações do tão
badalado milénio, convidando a todas as sínteses e a muitas previsões históricas,
vulgarizou­‑se a nível mundial a discussão sobre a globalização.
E uma das primeiras questões sobre a globalização tem que ver exactamente
com aquela interrogação que desde sempre persegue o pensamento humano.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A globalização irá unificar o mundo? E antes mesmo de se obter uma resposta, mais
ou menos metafísica, constata­‑se que esse movimento criou angústias e medos.
Por que é que a marcha para a globalização provoca em alguns espíritos angús-
tias metafísicas, inspirando até comportamentos radicais? Em muitos lugares do
planeta verifica­‑se que este novo projecto universal ou esta nova forma de olhar o
mundo suscita fascínios e repulsas. O imaginário humano como que fica perturbado.
Com efeito, o que agora chamamos globalização é, mais uma vez, a busca, a
tentativa que a História tem feito no seu caminho para o universalismo. Na ver-
dade, não existe, por si só, bom ou mau universalismo, nem face a ele, uma boa
ou má resistência. Existem, certamente, aspectos loucos na precipitação para
uma unidade fusionista, bem como, também, com toda a certeza, lados nocivos
no bloqueio às identidades separadoras e agressivas. Na busca da globalização o
mais difícil é caminhar entre estes dois escolhos, frequentemente associados. O
medo de aniquilamento da nossa própria identidade e, de modo oposto, a exalta-
ção das identidades assassinas, como lhe chamou Amin Malouf.
A globalização é o aspecto que marca a presente época porque tem primazia
sobre todos os outros aspectos do presente, tal como os homens do presente os
vêem. Assim como a Guerra Fria se constituiu durante décadas como a referência
à acção dos homens no mundo, hoje esse lugar está ocupado pela globalização.
A globalização tal como a Guerra Fria não se refere apenas aos termos em que as
relações de poder planetário se desenvolvem, mas antes constitui­‑se num con-
texto que gera o sentido e sugere as possibilidades de acção e reflexão do nosso
viver histórico.
A globalização fornece a perspectiva de fundo para o entendimento corrente.
A globalização não é um fenómeno de mercados, nem de política, nem dos gran-
des e poderosos. A globalização, em si mesma, não concentra nem desconcentra
poderes. O que a globalização faz é sobretudo reequacionar as actividades do
Homem no mundo, alterando a perspectiva de base sobre a qual se erguem todas
essas actividades. A perspectiva de hoje é o globo suspenso no espaço, no centro
da nossa atenção.
Um globo é algo captado, apropriado externamente, só visto de longe, pode
um globo ser um globo. Hoje o mundo foi feito globo. O mundo como mundo era
o todo onde nos encontrávamos. Era então o planisfério percorrido como uma
superfície. O mundo, como globo, é um objecto na nossa mão.
De um mundo estranho e por descobrir, prioritário ao ser humano, o Homem
quis criar e está a criar um mundo inventado, construído por uma tecnologia que
está a tomar o papel de realidade. O mundo virtual. O Homem saiu do mundo,
colocou­‑se no espaço e voltou a olhá­‑lo: agora na sua mão, muito mais pequeno
do que há quinhentos anos atrás. Um globo – “a aldeia global” – há quarenta
anos anunciada por McLuhan.

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PARTE II

O mundo feito globo é uma forma de pensamento, um modo de nos situar-


mos na História e no espaço.

FACTORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA A GLOBALIZAÇÃO

Ao longo das últimas décadas do século XX deu­‑se a interpenetração em mui-


tas áreas da vida do mundo. Na indústria apareceu o processo de aglomeração
de peças das mais variadas origens para o fabrico de um produto final. Deu­‑se a
universalização dos meios de comunicação social, rádio e televisão.
Deu­‑se início ao processo muito alargado da fusão das empresas e aglome-
ração dos Estados por regiões do globo e, consequentemente, em vastas regiões
do mundo operou­‑se à unificação dos mercados financeiros com uma circulação
de moedas nunca vista até então. Ao mesmo tempo aumentou a circulação das
pessoas – turismo, negócios, refugiados e deslocados, donde um choque, mas
também o diálogo das culturas.
Seguidamente dá­‑se uma certa unificação do Direito Internacional. E uma
maior atenção à implementação dos Direitos Humanos em todos ou quase todos
os países.
Observa­‑se um grande desenvolvimento na coordenação e organização
internacional das Igrejas Cristãs, e toma relevo o diálogo das grandes religiões
mundiais. Simultaneamente opera­‑se à internacionalização das ONG e das organi-
zações da sociedade civil.
Na última década do século XX, e com a aproximação do mítico ano 2000, a
Organização das Nações Unidas promoveu uma série de Cimeiras que ajudaram
uma parte da Humanidade a tomar consciência dos seus problemas mundiais.
Este é também um factor que contribui para uma maior consciência mundial dos
problemas do Homem no planeta. As Cimeiras foram as seguintes:

Tabela 4

A Cimeira sobre os Direitos das Crianças Nova Iorque 1990


A Cimeira do Ambiente e do Desenvolvimento Rio de Janeiro 1992
A Cimeira dos Direitos Humanos Viena 1993
A Cimeira das Populações Cairo 1994
A Cimeira do Desenvolvimento Social Copenhaga 1995
A Cimeira das Mulheres Beiging 1995
A Cimeira do Milénio Nova Iorque 2000

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Por outro lado, os Relatórios do Desenvolvimento Humano, cuja publicação se


iniciou no início desta década também contribuíram para fazer leituras diferentes
das grandes questões mundiais.
Até então falava­‑se de relações Norte­‑Sul, de cooperação e de desenvolvimento.
Com a aproximação do ano 2000, as reflexões começaram a ser globais.

A INVENÇÃO DA “COMUNICAÇÃO EM REDE” – WWW

Mas de todos os acontecimentos referidos, o mais determinante, aquele que


veio despoletar a globalização, foi a invenção em 1989 da WWW (World Wide
Web) – rede ou teia mundial de comunicação sem fios – ou seja, da comunicação
em rede.
Foi o cientista inglês, Tim Berners­‑Lee, trabalhando no Ciclotrão – laboratório
para estudos da física das partículas – que inventou aquilo a que chamamos hoje
Web. Em 1992, começaram as primeiras aplicações da rede internet, a que se
segue o correio electrónico (e­‑mail), depois o comércio electrónico (e­‑trade) e,
por último, a aprendizagem por internet (e­‑learning).
Dá­‑se então a explosão das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC)
com o aparecimento dos telemóveis que, iniciados timidamente por volta de
1994, conhecem um desenvolvimento espectacular na volta do milénio.
Sobre a globalização, e até aos acontecimentos inauditos do 11 de Setembro
de 2001, faziam­‑se interrogações metafísicas, eclesiais, éticas, culturais, etc. Será
bom ou será mau?
No fundo ainda se admitia a hipótese de ser a favor ou contra a globalização.
Reconhecia­‑se uma problemática. Forjaram­‑se tentativas de escrever ou dese-
nhar éticas para a globalização.
Depois do 11 de Setembro de 2001, temos de reconhecer que a globalização
se fez, e da pior maneira – pelo medo, pela criação de uma situação de insegu-
rança generalizada em todo o mundo e particularmente no mundo mais desen-
volvido.
Globalização será portanto o conjunto destes fenómenos. Que, muito ou
pouco, dizem respeito a todos os homens e a todos os lugares do planeta. Con-
duzem a uma sociedade que pela primeira vez se sente unificada, que toma
consciência dos problemas comuns a toda a Humanidade, sem no entanto se
tornar uniforme.

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PARTE II

A GLOBALIZAÇÃO E AS SUAS ALTERNATIVAS

A globalização é inevitável. Ela é também ambivalente, isto é, tem ganhadores


e perdedores. Ela pode levar ao milagre económico e ao descalabro. O facto de
poder ser orientada significa que a globalização económica exige uma globali-
zação no domínio ético: impõe­‑se um consenso ético mínimo quanto a valores,
atitudes, critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mun-
diais. É o próprio mercado mundial que exige um ethos global.
No início do milénio o que se pode concluir é que nem o socialismo nem a
mão invisível do mercado abriram as portas do paraíso à Humanidade. Assim, à
economia de mercado sem regras é preciso contrapor a economia de mercado
com sentido social e ecológico à escala global. O Homem não se identifica pura e
simplesmente com o homo oeconomicus.
Nem todas as necessidades dos seres humanos podem ser satisfeitas com o
que a economia produz. Em ordem ao bem­‑estar, a uma sociedade boa, a uma
vida feliz, para os seres humanos, incluindo os capitalistas, não basta a economia.
Por outro lado, concretamente neste tempo de globalização, ela tem de estar ao
serviço das necessidades de todos os seres humanos, não os subordinando impla-
cavelmente à lógica do mercado. Face à economia, é preciso defender o primado
da política, mas, face à economia e à politica, saber que o primado tem de ser o
da Humanidade, de todos os homens.
Em última análise é o modelo moderno de desenvolvimento, com a sua ideo-
logia do progresso ilimitado, que está na base da crise ecológica e também da
injustiça entre o Norte e o Sul. Assim, a construção da casa comum da Humanidade
exige uma nova consciência ética, aliada a uma nova proposta político­‑cultural
global para uma nova ordem económico­‑ecológica global.
Hoje, atendendo às relações existentes entre os países ricos e os países
pobres, à limitação dos recursos e à ameaça ecológica, damo­‑nos pela primeira
vez conta de que, face ao perigo em que todos nos encontramos, se impõe que
a Humanidade, se quiser ter futuro, tem de se tornar sujeito activo comum da
responsabilidade pela vida. Ou, a Humanidade, como um todo, se torna sujeito
do seu futuro e da responsabilidade pela vida em geral ou não haverá futuro para
ninguém, dizem alguns.
Desde o início do milénio defrontam­‑se duas grandes correntes na implemen-
tação da globalização:
• O World Economic Forum (Fórum Económico Mundial) que se reúne em
Davos no fim de Janeiro de cada ano e onde estão os senhores do mundo. Os
detentores do poder político e financeiro mundial.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• O Fórum Social Mundial que se iniciou em 2001 na cidade de Porto Alegre,


no Brasil, e que reúne os militantes e activistas de todas as cores e tendên-
cias, apelando a uma globalização alternativa sob o lema “Um outro mundo
é possível”.

A GLOBALIZAÇÃO NO PENSAMENTO DO PAPA BENTO XVI,


SEGUNDO A ENCÍCLICA CARIDADE NA VERDADE

A Encíclica Caridade na Verdade, já largamente citada neste compêndio,


também se refere à globalização. Numa das passagens, o seu autor escreveu o
seguinte: “A sociedade cada vez mais globalizada torna­‑nos vizinhos mas não nos
faz irmãos”. (§19)
Bento XVI queria com esta afirmação dizer que a globalização em curso não
nos faz necessariamente solidários. Mas depois o Papa dedicou todo um parágrafo
à globalização mostrando as várias vertentes em que este assunto pode e deve
ser abordado. Merece portanto ser lido na íntegra:

“Notam­‑se às vezes atitudes fatalistas a respeito da globalização, como


se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forças impessoais anónimas
e por estruturas independentes da vontade humana. A tal propósito é bom
recordar que a globalização há­‑de ser entendida, sem dúvida, como um pro-
cesso socioeconómico, mas esta sua dimensão não é a única. Sob o processo
mais visível, há a realidade duma Humanidade que se torna cada vez mais
interligada, tal realidade é constituída por pessoas e povos, para quem o refe-
rido processo deve ser de utilidade e desenvolvimento, graças à assunção das
respectivas responsabilidades por parte tanto dos indivíduos como da colecti-
vidade. A superação das fronteiras é um dado não apenas material mas tam-
bém cultural nas suas causas e efeitos. Se a globalização for lida de maneira
determinista, perdem­‑se os critérios para a avaliar e orientar.
Trata­‑se de uma realidade humana que pode ter, na sua fonte, várias orien-
tações culturais, sobre as quais é preciso fazer discernimento. A verdade da
globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da
unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso, é preciso
empenhar­‑se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista
e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial.
Não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão­‑de negar nem

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PARTE II

absolutizar, ‘a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pes-
soas fizerem dela’. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando
com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade.
Opor­‑se­‑lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que
acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos,
com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportu-
nidades de desenvolvimento por ele oferecidas. Adequadamente concebidos e
geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande
redistribuição da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido;
se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade,
bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro.
É preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem
novas divisões entre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que a
redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da
pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação
actual poderia fazer­‑nos temer.
Durante muito tempo, pensou­‑se que os povos pobres deveriam permanecer
ancorados a um estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando­‑se
com a filantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou
posição Paulo VI na Populorum Progressio.
Hoje, as forças materiais de que se pode dispor para fazer aqueles povos
sair da miséria são potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram
por se aproveitar delas prevalentemente os povos dos países desenvolvidos,
que conseguiram desfrutar melhor o processo de liberalização dos movimen-
tos de capitais e do trabalho. Por isso, a difusão dos ambientes de bem­‑estar a
nível mundial não deve ser refreada por projectos egoístas, proteccionistas ou
ditados por interesses particulares.
De facto, hoje, o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desen-
volvimento permite gerir melhor a crise. A transição inerente ao processo de
globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão ser supe-
rados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e
ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humani-
zação solidária. Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e condicionada
por perspectivas ético­‑culturais de cariz individualista e utilitarista.
A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser
compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo
a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da Humanidade em
termos de relacionamento, comunhão e partilha.” (§42)

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

CAPÍTULO X
FINANÇA ÉTICA. UMA VISÃO E UM CONCEITO NOVO

“O mundo financeiro que hoje também já se pode encarar como uma enge-
nharia – a Engenharia Financeira, não espera lições de ética para o seu agir
próprio. Os mecanismos financeiros tem dinâmicas e regras bem precisas de fun-
cionamento. Mas esses mecanismos são em grande parte accionados pela von-
tade dos homens. E esses podem accionar mais para um lado do que para outro.
Alguns pensadores, alguns economistas, e também activistas dos Direitos
Humanos conceberam nas últimas décadas instrumentos financeiros que procu-
ram que uma parte da Finança Mundial trabalhe na base de critérios éticos.
Na base da confiança, da transparência, da co­‑responsabilidade nos investi-
mentos, esses instrumentos financeiros, Bancos e fundos de investimento são segu-
ramente uma minoria no panorama mundial, mas como tantas vezes aconteceu na
História podem ser catalisadores de grandes transformações a longo prazo.”

A CRISE FINANCEIRA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

“Os operadores de finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio


da sua actividade para não abusarem de instrumentos sofisticados que pos-
sam atraiçoar os aforradores (§65); o progresso económico revela­‑se fictício e
danoso quando se abandona aos prodígios das finanças para apoiar incremen-
tos artificiais e consumistas.” (§68)

Bento XVI referia­‑se a situações como aquela que está na origem da actual crise
financeira mundial. Essa crise provocada pelos movimentos especulativos nos
Estados Unidos da subprime mortgage (empréstimos para aquisição de habitação
a quem não garantia condições de os poder honrar, mas que os bancos consi-
deravam “bom negócio” porque desde 1945 os preços das casas nos EUA foram
sempre aumentando – até 2006, ao longo de quase 60 anos – de tal modo que se

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PARTE II

o empréstimo não fosse pago, a venda da respectiva habitação não só anulava os


prejuízos como proporcionava lucros adicionais), especulação decorrente de um
capitalismo selvagem, não regulado, e que teve como resultado, entre outros, a
falência em Agosto de 2008 do Lehman Brothers, Banco fundado em 1850, um
dos maiores dos Estados Unidos da América. Essa falência provocou, em cascata,
outras subsequentes falências e, no mínimo dos mínimos, perdas enormes na
Banca dos EUA e da Europa, e a consequente falta de dinheiro nos mercados para
o financiamento dos países mais desenvolvidos.
Em Maio de 2009, um estudo publicado pelo Financial Times revelava que as
25 maiores Instituições Financeiras dos Estados Unidos, que geriam produtos de
crédito de alto risco (subprime), gastaram 370 milhões de dólares fazendo lobbie
junto de políticos e autoridades do Governo, afim de evitarem que esses apro-
vassem regras financeiras restritivas contra os seus interesses. A maioria destas
instituições era controlada por grandes Bancos norte­‑americanos, que hoje vivem
grandes dificuldades – Citigroup, Goldman Sachs, Wells Fargo, JP Morgan e Bank
of America.
Estas instituições fomentavam a concessão de créditos sem critérios e a maior
parte das vezes sem qualquer relação com a economia real.
O Presidente Obama, em Junho de 2009, anunciou a maior Reforma Financeira
desde 1930. “Assistimos à falha de todo o sistema, devido à ausência de regu-
lação e abusos cometidos.” Assim é necessário uma reforma para regulação do
sistema financeiro que pretende prevenir colapsos, mantendo o equilíbrio entre a
regulação e a liberdade dos mercados financeiros.
• Promover supervisão e regulação robusta da Banca – a criação de um comité
de reguladores, um maior poder de supervisão da FED e o registo obrigató-
rio dos hedge funds na SEC (Security Executive Committee) fazem parte desta
medida.
• Estabelecer uma regulação compreensiva dos mercados.
• Proteger os consumidores e investidores de abusos – criação de uma Agência
de Protecção Financeira dos Consumidores. O objectivo é restaurar a con-
fiança e promover uma maior transparência, eliminando a especulação.
• Dotar o Governo de ferramentas para gerir as crises – um novo regime para
resolver casos de Instituições Financeiras, cuja falência possa ter sérios efei-
tos sistémicos no sector e a limitação do FED para conceder créditos de
emergência são duas propostas desta medida.
• Melhorar a regulação e a cooperação internacionais.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

OS BANCOS DEMASIADO GRANDES PARA FALIREM, “TOO BIG


TO FAIL”

No início deste livro a intervenção de Ben Bernanke já foi citada. Voltamos


agora ao assunto para sublinhar quanto a regulação financeira ao mais alto nível
é a condição sine qua non para se resolver a actual crise mundial.
O Presidente da Reserva Federal norte­‑americana, Ben Bernanke, afirmou
recentemente que a grande lição do “caos” registado nos mercados financeiros,
em 2008, exige que se resolva urgentemente o problema das Instituições Finan-
ceiras demasiado grandes para falirem.
“Simples declarações de que o Governo não vai apoiar estas empresas no
futuro, ou restrições que tornem mais difícil disponibilizar ajuda, não serão credí-
veis só por si”, disse Bernanke.
Bernanke defendeu que a Reforma da Legislação Financeira nos Estados
Unidos (Dodd­‑Frank), juntamente com as renegociações do Acordo de Basileia
sobre requisitos de capital e liquidez das Instituições Financeiras constituem uma
estratégia para lidar com o problema dos chamados Bancos demasiado grandes
para poderem falir, já que nesses casos põem em causa a própria viabilidade da
economia do país.
A legislação deveria dar ao Governo a autoridade para lidar com Bancos “afli-
tos” e com grandes empresas financeiras, cujo colapso poderia colocar em perigo
a economia norte­‑americana.
“Em primeiro lugar, a propensão para tomada de riscos excessivos por empresas
grandes, complexas e interligadas tem de ser grandemente reduzido”, sublinhou.
Entre as ferramentas para este fim estão requisitos de capital e liquidez,
nomeadamente para empresas consideradas “sistemicamente críticas”, e ainda
regulação e supervisão mais apertada das maiores, incluindo restrições sobre
actividades e na estrutura de pacotes de remuneração, que frequentemente
encorajam a tomada de riscos excessivos, além de medidas para aumentar a
transparência e a disciplina do mercado.
“A supervisão das maiores empresas tem de levar em conta não só a sua
segurança e robustez mas também os riscos sistémicos que colocam”, afirmou.
Para Bernanke, o custo da queda de uma grande firma depende também da
resistência do próprio sistema financeiro à sua volta, e a recente Reforma da
Legislação Financeira norte­‑americana contém medidas positivas no sentido do
aumento da transparência e supervisão dos acordos com derivados.
Todos os acontecimentos e as decisões referidas acima no mundo da Gestão
Financeira Mundial, e após a crise iniciada em 2008, vieram trazer para a ribalta
as instituições que há já vários anos se dedicavam a promover este tipo de regula-
mentações financeiras.

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PARTE II

OBAMA E BENTO XVI, UMA MESMA LUTA PELA REGULAÇÃO


FINANCEIRA MUNDIAL

Na Encíclica – Caridade na Verdade ­‑ publicada pelo Papa Bento XVI, em Junho


de 2009, fala­‑se pela primeira vez, de forma inovadora, e na área da Doutrina
Social da Igreja, da Finança Ética. Pela sua oportunidade repetem­‑se aqui algumas
passagens já transcritas neste livro.
Se a actual crise financeira começou pelo desregulamento dos mercados
financeiros, não será que a ética tem de começar por intervir a esse nível já que
a maioria concorda que é necessário introduzir a ética no mundo da economia.
Vejamos então o que é que Bento XVI propõe no parágrafo 45 desse texto:

“Dar resposta às exigências morais mais profundas da pessoa tem também


importantes e benéficas consequências no plano económico. De facto, a eco-
nomia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento, não de
uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa. Hoje fala­‑se muito de
ética em campo económico, financeiro, empresarial. Nascem centros de estudo
e percursos formativos de negócios éticos, difunde­‑se no mundo desenvolvido
o sistema das certificações éticas, na esteira do movimento de ideias nascido
à volta da responsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e
fundos de investimento chamados ‘éticos’.
Desenvolvem­‑se as ‘finanças éticas’, sobretudo através do microcrédito
e, mais em geral, de micro­‑financiamentos. Tais processos suscitam apreço e
merecem amplo apoio. Os seus efeitos positivos fazem­‑se sentir também nas
áreas menos desenvolvidas da Terra. Todavia, é bom formar também um válido
critério de discernimento, porque se nota um certo abuso do adjectivo ‘ético’,
o qual, se usado vagamente, presta­‑se a designar conteúdos muito diversos,
chegando­‑se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça
e ao verdadeiro bem do Homem.
Por outro lado, não se deve recorrer ao termo ‘ético’ de modo ideologica-
mente discriminatório, dando a perceber que não seriam éticas as iniciativas
não dotadas formalmente de tal qualificação. Um dado é essencial: a neces-
sidade de trabalhar não só para que nasçam sectores ou segmentos ‘éticos’
da Economia ou das Finanças, mas também para que toda a Economia e as
Finanças sejam éticas: e não por uma rotulação exterior, mas pelo respeito de
exigências intrínsecas à sua própria natureza. A tal respeito se pronuncia com
clareza a Doutrina Social da Igreja que recorda como a Economia, em todas as
suas extensões, seja um sector da actividade humana.” (§45)

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

FINANÇA ÉTICA, UMA VISÃO E UM CONCEITO NOVO

Finança Ética é a designação que engloba as operações e as instituições que


adoptam no seu modo de operar princípios éticos adequados à sua gestão.
Esses princípios são os seguintes: critérios de regulação financeira, assim
como princípios selectivos para os investimentos e modos de escrutinação desses
investimentos e demais operações financeiras.
A Finança Ética criou nos últimos anos ferramentas adequadas para imple-
mentar aqueles princípios na gestão corrente bancária.
Assim, nasceram os Bancos Éticos e os Fundos de Investimento Ético.

Bancos Éticos

“Os bancos propõem contas e fundos de investimento chamados ‘éticos’.”


(Caridade na Verdade).
Banco Ético é uma instituição bancária normal, isto é, que presta aos seus
clientes os serviços correntes de um Banco. Depósitos, transferências, gestão de
activos, etc., mas que se compromete a fornecer aos seus clientes a possibilidade
de controlar ou escrutinar o modo como o Banco aplica o seu dinheiro. Supõe­‑se,
portanto, que tais Bancos não investem em áreas tais como indústrias de arma-
mento, tabaco, álcool, empresas de jogos, etc. Do mesmo modo esses Bancos
não aceitam negócios que passem pelas offshores financeiras.
Eis alguns exemplos de Bancos Éticos que já funcionam e deram provas efica-
zes desde há vários anos:
• O Tríodos Bank, fundado na Holanda em 1980, pertence ao grupo dos dez
maiores Bancos Éticos também conhecidos como Bancos sustentáveis ou Ban-
cos solidários (sustainable banking) que existem nos países desenvolvidos. O
conjunto destes Bancos tem activos que somam 30 biliões de dólares, sem
contar com os Bancos cooperativos e com as organizações de microcrédito.
O Tríodos Bank cresceu nos últimos anos à taxa de 25% ao ano. Apoia dez mil
projectos de desenvolvimento sustentável para 200.000 clientes.
Como o Tríodos Bank não aceitou entrar no mundo dos fundos de alto
risco, após o início da crise financeira mundial em Agosto de 2008, os seus
depositantes aumentaram só, em dois meses, 15%. Estes Bancos financiam
Projectos Ambientais, Projectos de Empreendedorismo.
• O GT Bank Guaranty Trust Bank, com sede em Londres, é outro exemplo de
Banco Ético. Foi criado em 1990, especialmente vocacionado para os países
africanos de Língua Inglesa. Está estabelecido nos seguintes países: Nigéria,

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PARTE II

Gana, Gâmbia, Serra Leoa e Libéria. Reconhecido como “empresa cidadã”


actua nas seguintes áreas – educação, cuidados de saúde infantil, ambiente,
desporto e artes.

Fundos de Investimento Ético

Fundo de Investimento Ético é uma carteira de activos financeiros cujos ges-


tores se comprometem a não fazer investimentos em áreas consideradas não
éticas e mais recentemente em não aceitar “activos tóxicos”.
Há cerca de 30 anos, ou seja, em 1984, foi lançado o primeiro Fundo de
Investimento Ético/Sustentável Europeu – o Fundo Stewardship – que continua a
integrar a gama de produtos de fundos éticos da sociedade gestora F&C, uma das
maiores e mais antigas gestoras de Fundos da Europa. Este Fundo desencadeou o
crescimento de um segmento da indústria de investimento que, só no Reino Unido,
se estima ter atingido, em 2008, cerca de 9,8 biliões de dólares.
A equipa de Gestão dos Activos do Stewardship tem o objectivo de constituir
uma carteira de activos diversificados, seleccionando empresas que apresentem
critérios éticos rígidos, excluindo das suas opções empresas que não cumprem
os Direitos Humanos, princípios de ordem ambiental e que operem em sectores
como o tabaco e o jogo.
Certos investidores, particulares e movimentos religiosos, como os Quakers e
os Metodistas, desde sempre evitaram títulos “pecaminosos” nos seus portfólios.
Foi o caso do Pax World Fund, um fundo lançado nos Estados Unidos em 1971,
que tinha como trave mestra evitar investimentos relacionados com a Guerra do
Vietnam.
Este conjunto de instituições designa­‑se na Europa como ISR – Investimento
Socialmente Responsável. Em 2005, no conjunto de 15 países europeus já se con-
tavam cerca de 290 instituições deste tipo.

Microcrédito e microfinanciamento

“Desenvolvem­‑se as ‘Finanças Éticas’, sobretudo através do microcrédito e,


mais em geral, de microfinanciamentos.” (Bento XVI).
Oikocredit, no Reino Unido, é um exemplo de um Fundo de Investimento para
o microcrédito, apoiado por 500 investidores que colocaram as suas poupanças
neste Fundo que serve 17 milhões de clientes. A ideia base é a de conseguir que
com pequenas somas de dinheiro se possam apoiar projectos de desenvolvimen-
to. “Make small sum of money go a long way in sustaining global development”

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

(Faça com que pouco dinheiro sustente um longo caminho num desenvolvimento
sustentável).
A micro finança conheceu um grande crescimento nos últimos anos, quer em
volume de empréstimos, quer nos lucros. Hoje o conjunto de todos os activos
dos Bancos e Fundos que fornecem microcréditos está estimado em 50 biliões de
dólares, tendo como clientes 150 milhões de pessoas no mundo em desenvolvi-
mento.

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PARTE II

CAPÍTULO XI
MUHAMMAD YUNUS, O CRIADOR DO MICROCRÉDITO

“Já se falou anteriormente no microcrédito e no microfinanciamento que a


Encíclica Papal considera pertencer ao domínio da Finança Ética como vimos. Não
é esse o meu entendimento, já que o microcrédito é uma operação bancária que
pode ser conduzida por qualquer Instituição Bancária como se verifica aliás com
os Bancos da praça angolana. Independentemente de existirem organizações, tais
como ONG e cooperativas especializadas nesse tipo de financiamentos.
A História da Economia diz­‑nos que o microcrédito aparece com Muhammad
Yunus e antes de se começar a falar da Finança Ética. Como é que este economista
foi levado a criar essa inovação na economia contemporânea é o que veremos
neste capítulo, e do mesmo modo se descrevem as características próprias do
microcrédito segundo o pensamento do seu fundador.
Muitas das Instituições Bancárias que suportam operações de microcrédito,
nomeadamente em Angola, estão longe dos princípios que foram criados e postos
em prática pelo fundador do maior Banco de microcrédito do mundo – Grameen
Bank.”

MUHAMMAD YUNUS, CRIADOR DO CONCEITO


DE MICROCRÉDITO

“O Banco Grameen tornou­‑se a meca dos economistas do desenvolvimento e o


seu modelo está a ser copiado em todo o mundo.” (The Economist).
Muhammad Yunus, cidadão do Bangladesh, é economista e banqueiro. Em
2006 foi laureado com o Nobel da Paz. É autor do livro, O Banqueiro dos Pobres.
Pretende acabar com a pobreza através do Banco que fundou, do qual é Presi-
dente, sendo o Governo de Bangladesh o principal accionista. O Grameen Bank
oferece activamente microcrédito para milhões de famílias. Yunus costuma afir-
mar: “Que é impossível ter paz enquanto houver pobreza”.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Muhammad Yunus formou­‑se em Economia no Bangladesh, Doutorou­‑se nos


Estados Unidos da América e foi Professor na Universidade de Dhaka. Em 1976,
constatou as dificuldades de pessoas carentes em obter empréstimos na aldeia
de Jobra, num Bangladesh empobrecido e recém­‑separado do Paquistão. Por
não poderem dar garantias, os Bancos recusavam­‑lhes as pequenas quantias que
permitiriam comprar materiais para trabalhar e vender, e os usurários ou agiotas
taxavam os empréstimos com juros altos.
Yunus acreditava que todo o ser humano possui instintos de sobrevivência
e auto­‑preservação, uma prova disto são os milhões de pobres que existem no
mundo, onde mesmo miseráveis conseguem contornar ao máximo a sua situa-
ção. Sendo assim, a forma mais efectiva de ajudar estas pessoas é incentivar o
que elas já têm, o seu instinto. Quando se conferem recursos a essas pessoas, por
pouco que seja, consegue­‑se melhorar a sua condição de vida utilizando o seu
senso de sobrevivência.
Muhammad Yunus criou então o Banco Grameen, que empresta sem garan-
tias nem papéis, sendo, sobretudo, procurado por mulheres: eram, em 2010, 97%
dos 6,6 milhões de beneficiários. A taxa de recuperação era de 98,85%.
A palavra microcrédito não existia até a década de 1970. Yunus cunhou­‑a para
designar um tipo muito específico de crédito que ele concebera e cujo objecto
principal não são os pequenos produtores, mas sim as populações pobres, que
não têm, absolutamente, acesso a qualquer outro tipo de crédito.
Yunnus concebeu e conseguiu implantar a mais conhecida e bem­‑sucedida
experiência de microcrédito do mundo. Yunus iniciou­‑a em 1976, concedendo
empréstimos de pequena monta com os seus próprios recursos para famílias
muito pobres de produtores rurais, focalizando principalmente nas mulheres. Os
bons resultados obtidos nessa primeira fase do projeto levaram­‑no a expandir as
suas operações com recursos de terceiros.
O Grameencredit (crédito do Banco Grameen) baseia­‑se na premissa de que
os pobres têm habilidades profissionais não utilizadas ou subutilizadas. Definiti-
vamente não é a falta de habilidades que torna pobres as pessoas pobres. O Gra-
meen Bank acredita que a pobreza não é criada pelos pobres, ela é criada pelas
instituições e políticas que o cercam. Para eliminar a pobreza, tudo o que temos
de fazer é implementar as mudanças apropriadas nas instituições e políticas, e/
ou criar novas instituições e políticas. O Grameen Bank criou uma metodologia
e uma instituição para atender às necessidades financeiras dos pobres e criou
condições razoáveis de acesso a crédito, capacitando os pobres a desenvolverem
as suas habilidades profissionais para obter uma renda maior a cada ciclo de
empréstimos.

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PARTE II

Características gerais do microcrédito, segundo Yunus

• Promover o crédito como um dos Direitos Humanos.


• A sua missão principal é auxiliar as famílias pobres a ajudarem­‑se a superar
a pobreza. É dirigido aos mais pobres, especialmente às mulheres pobres.
• Uma das características que mais destaca o Grameencredit é que não é
baseado em qualquer garantia real, nem em contratos que tenham valor
jurídico. É baseado, exclusivamente, na confiança, e não no Direito ou em
algum outro sistema coercivo.
• É oferecido no intuito de gerar auto­‑empregos, fomentando actividades que
criem rendas para os pobres ou ainda para a construção da sua habitação, ao
contrário dos empréstimos destinados ao consumo.
• Foi criado para enfrentar os Bancos tradicionais, que rejeitam os pobres
– para eles considerados “indignos de crédito”. Em consequência disso, o
Grameencredit rejeita a metodologia bancária tradicional e criou a sua meto-
dologia própria.
• Oferece os seus serviços na porta da casa dos pobres, adoptando o princí-
pio de que as pessoas não devem ir ao Banco mas sim o Banco às pessoas.
• Para obter um empréstimo um tomador tem que se reunir a um grupo de
tomadores, que ficam moralmente responsáveis pelo seu pagamento.
• Os empréstimos podem ser obtidos numa sequência sem fim. Novos emprés-
timos tornam­‑se disponíveis se os anteriores estiverem a ser pagos.
• Todos os empréstimos devem ser pagos em pequenas prestações semanais
ou bissemanais.
• Mais de um empréstimo pode ser concedido, simultaneamente, ao mesmo
tomador.
• Os empréstimos são sempre vinculados a planos de poupança para os toma-
dores obrigatórios e voluntários.
• Geralmente esses empréstimos são concedidos por instituições sem fins
lucrativos ou por instituições cuja propriedade é controlada, maioritaria-
mente, pelos próprios tomadores. O Grameencredit procura operar a uma
taxa de juros o mais próximo possível dos juros do mercado local, cobrando
a taxa básica, não a taxa cobrada pelos emprestadores tradicionais. As ope-
rações do Grameencredit devem ser auto­‑sustentáveis.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• A prioridade do Grameencredit é construir o capital social. Isso é obtido pela


criação de grupos e centros destinados a desenvolver lideranças. O Gra-
meencredit dá uma ênfase muito especial à formação do capital humano e à
protecção do meio ambiente.

Do microcrédito ao negócio social

Foi praticamente da mesma maneira que eu e os meus colegas do Banco Gra-


meen nos tornámos “empreendedores acidentais”. Nunca planeámos lançar uma
série de empresas. Desempenhando o nosso papel de banqueiros, trabalháva-
mos, simplesmente, de muito perto com os pobres, procurando perceber as con-
dições sociais e económicas que os tinham condenado à pobreza e desenvolver
ferramentas que os ajudassem a livrar­‑se daquele destino. No meio de todo este
processo, começámos a tropeçar em oportunidades para lançar novos programas
que pensávamos podiam ser úteis aos pobres. Noutros casos, as oportunidades
caíram­‑nos no colo, trazidas por pessoas que acreditavam que podíamos fazer
bom uso delas. Levados pelas circunstâncias e aliciados pela possibilidade de
transformar oportunidades em benefícios tangíveis para os pobres, começámos
a experimentar novas ideias de negócio – primeiro uma, depois outra, a seguir
outra. Algumas ideias ganharam raízes e floresceram, outras fracassaram, pelo
menos, para já.
Hoje – 2010 ­‑ quase vinte anos depois de termos começado a experimentar,
operamos vinte e cinco organizações, muitas vezes designadas colectivamente
como “família das empresas Grameen”, de que se indicam aqui alguns exemplos:

Tabela 5 – “Família das empresas Grameen”.

Banco Grameen 1983 Serviços financeiros para os pobres

Formação, assistência técnica e apoio financeiro às IMF


Grameen Trust 1989
em todo o mundo

Grameen Krishi 1991 Melhorar práticas da produção agrícola

Grameen Uddog 1994 Exportação de têxteis

Grameen Motsho 1994 Criação de peixe em viveiros e gado

Grameen Telecom 1995 Serviço de telecomunicações para os pobres

Grameen Shamogree 1996 Comercialização de têxteis e artesanato

Grameen Shakti 1996 Fontes de energia renovável para o mundo rural

Serviços de saúde e segurança social para estudantes de


Grameen Kalyan 1996
famílias pobres

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PARTE II

Grameen Capital
1998 Gestão de investimentos
Management

Grameen Solutions 1999 Desenvolvimento de soluções para IT para empresas

Grameen IT Park 2001 Desenvolvimento de escritórios de alta tecnologia em Dacca

Grameen Health Care 2006 Serviços de saúde para os pobres

Grameen Danone 2006 Bens alimentares nutritivos e a baixo preço para os pobres

Grameen Bitek 2008 Fabrico de produtos electrónicos

Mais de trinta centros da Grameen Energy estão a promover a utilização de


sistemas de energia solar para habitações e de biocombustíveis, recrutando e for-
mando mulheres locais para a produção de acessórios electrónicos relacionados
com a energia.
As empresas Grameen dividem­‑se em duas categorias por questões legais. A
maioria está registada no âmbito da Lei das Sociedades como empresas sem fins
lucrativos, o que significa que não emitem acções e não têm “proprietários”, mas
estão sujeitas a tributação. E algumas estão registadas como empresas com fins
lucrativos, pertencentes a accionistas e, claro, sujeitas a pagar impostos.
Em finais de 1980, o Banco Grameen tinha demonstrado com sucesso a via-
bilidade do microcrédito como proposta de negócio e, mais importante ainda,
como um meio para melhorar a vida dos pobres. Daqui resultou que muitas pes-
soas ligadas à comunidade das questões de desenvolvimento quisessem igualar
o Banco Grameen, começando a lançar os seus próprios programas de microcré-
dito. Uma fila de visitantes começou a bater à nossa porta, no Bangladesh, para
pedir conselhos, orientações e ajuda.
Assim, em 1989, fundámos o Grameen Trust, uma organização sem fins lucra-
tivos, cuja missão é promover o microcrédito em todo o mundo.
O Grameen Trust dá assistência a muitas Instituições de Microfinança – IMF
– que procuram a nossa ajuda. Desenvolvemos programas de formação para
funcionários e gestores de IMF, e permutamos muitos conhecimentos com outras
instituições no mundo interessadas no microcrédito e na microfinança.
Em 1990, um conjunto de doadores tais como a Mac Arthur Foundation, o
Banco Mundial, a Rockefeller Foundation alavancaram financeiramente ao Banco
Grameen permitindo que este encontrasse meios para apoiar as iniciativas deste
tipo noutros países.
Em 2008, o Trust trabalha com cento e trinta e oito projectos de IMF, em trinta
e sete países. O Grameen Trust já implementou e está a implementar projectos
no Myanmar, Turquia, Zâmbia, Kosovo, Costa Rica, Guatemala e Indonésia (Cfr.
Yunus, Muhammad, Criar um Mundo sem Pobreza, páginas 117 a 125).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Tudo aquilo que foi descrito até aqui e a partir das próprias palavras de
Muhammad Yunus não corresponde ao que se estudou anteriormente sobre as
empresas éticas e sobre a Responsabilidade Social das Empresas. Esse tipo de
empresas já definidas anteriormente inscrevem­‑se na dinâmica actual do mer-
cado capitalista e todas têm de se organizar à volta do princípio da maximização
dos lucros. Todas têm de obter lucros e procurar dividendos aos accionistas que
criaram essas empresas.
A Ética Empresarial aparece como um correctivo a práticas abusivas, por um
lado, e também como a uma melhoria qualitativa da vida interna e da imagem
das empresas que actualmente existem. Aliás, Muhammad Yunus num dos seus
livros tem palavras elogiosas para o lugar que a Responsabilidade Social das
Empresas ocupa no universo dos negócios de hoje, mas ao mesmo tempo ele
marca os limites dessas iniciativas, sobretudo quando confrontadas com a sua
perspectiva global – criar um mundo sem pobreza.
Toda a procura e a experimentação de caminhos para novas tipologias empre-
sariais levaram, ao fim de vinte anos, o criador do microcrédito a propor um pro-
jecto empresarial inédito – o negócio social. Ao fazê­‑lo ele começou a questionar
o modelo capitalista actual e lançou a hipótese de que baseando­‑se noutra antro-
pologia, o capitalismo pode continuar a produzir prosperidade sem necessaria-
mente produzir pobres como actualmente acontece.
É essa proposta inovadora que iremos estudar no capítulo seguinte.
“Muhammad Yunus é um visionário com sentido prático que fez prosperar
milhões de pessoas no Bangladesh e noutras partes do mundo.” (Los Angeles
Times).

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PARTE II

CAPÍTULO XII
“O CAPITALISMO É UMA ESTRUTURA MEIO DESENVOLVIDA”,
MUHAMMAD YUNUS

“A 42.a Edição (2012) do Fórum Económico Mundial de Davos decorreu na


Suíça, sob o tema ‘A Grande Transformação’. Mais de 40 Chefes de Estado e de
Governo debateram o crescimento e modelos de trabalho, a liderança e modelos
de inovação, a sustentabilidade e modelos de recursos e os modelos sociais e tec-
nológicos. No encontro, o fundador do Fórum de Davos – Klaus Schwab – afirmou:
‘O capitalismo na sua forma actual já não se encaixa no mundo. É urgente uma
transformação global que deve começar aplicando um novo sentido de responsa-
bilidade social’.
Este desabafo… do fundador daquele que é considerado o maior clube dos
ricos e poderosos deste mundo vai encontrando eco em algumas alternativas que
em diferentes partes do mundo procuram responder à crise do modelo capitalista.
Muhammad Yunus que já tinha inovado com a criação do microcrédito, a partir do
início do século XXI, começou a introduzir e a aplicar a noção da empresa social.
Elas já existem, funcionam e procuram dar uma resposta à questão inicial-
mente levantada por este Prémio Nobel da Paz. O capitalismo tem de descobrir e
implementar outras formas de organização económica que completem o que até
agora o capitalismo já fez de bom pelo progresso da Humanidade. Daí ter lançado
e criado as empresas sociais.”

UMA VISÃO LIMITADA DO CAPITALISMO

Muhammad Yunus nos seus escritos reconhece a contribuição única que o


sistema capitalista teve nos últimos séculos para o progresso e a prosperidade da
Humanidade. Mas como visionário que é, propõe uma alteração a esse mesmo
sistema económico que possa corrigir os erros que estão na origem das desigual-
dades que o mesmo sistema tem provocado e de forma crescente nas últimas
décadas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Eis como ele inicia o seu segundo livro intitulado, Criar um Mundo sem Pobreza,

“Os mercados livres invadiram o planeta desde a queda da União Soviética


em 1991. A economia de mercado livre criou raízes na China, no Sudeste Asiáti-
co, em grande parte da América Latina, na Europa de Leste e até na antiga União
Soviética. Há muitas coisas que os mercados livres desempenham extraordina-
riamente bem. Quando olhamos para os países com uma longa história sob a
influência de regimes capitalistas – na Europa Ocidental e na América do Norte
– encontramos provas de grande riqueza. Vemos também inovação tecnológi-
ca, descobertas científicas, progressos notáveis nos campos social e educativo.
A emergência do capitalismo moderno, há trezentos anos, abriu as portas a um
progresso material nunca antes visto. Hoje, contudo – passada uma geração
depois da queda da União Soviética –, há um sentimento de desilusão que tem
vindo a consolidar.”
Op. cit., página 23

Tal como muitos outros autores este economista não se satisfaz com o reco-
nhecimento de que o capitalismo está florescente, pois acrescenta de imediato
que nem todos beneficiam deste desenvolvimento. A distribuição do rendimento
global conta outra história: 94% do rendimento mundial está distribuído por 40%
da população, enquanto os outros 60% são obrigados a viver com apenas seis por
cento do bolo global. Metade da população do mundo vive com dois dólares por
dia ou menos e quase mil milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por
dia.
Ao constatar esta situação o autor asiático interroga­‑se – o que está errado? E
avança com a sua resposta ao dizer: “Num mundo onde a livre iniciativa não tem
um verdadeiro concorrente, por que é que os mercados livres foram incapazes de
satisfazer tantas pessoas? À medida que algumas Nações marcham para uma
cada vez maior prosperidade, por que é que uma tão grande parte do mundo foi
deixada para trás? A razão é simples. A actual forma dos mercados ‘sem gordura’
não foi pensada para resolver problemas sociais, em vez disso pode mesmo gerar
um aumento exponencial da pobreza, das doenças, da poluição, da corrupção, do
crime e da desigualdade”.
Muhammad Yunus vai seguidamente propor uma nova antropologia, ou seja,
uma outra maneira de conceber o Homem. Adam Smith também construiu a sua
teoria económica sobre uma certa forma de compreender os interesses do ser
humano. Então Yunus vai mostrar por que é que ele acha que o capitalismo tem
uma visão limitada do ser humano.

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PARTE II

“O capitalismo tem uma visão estreita da natureza humana, partindo do


princípio de que as pessoas são seres unidimensionais, preocupadas, unica-
mente, em alcançar o maior lucro possível. O conceito de mercado livre, como
geralmente é interpretado, baseia­‑se neste ser humano a uma dimensão.
A teoria mais generalizada do mercado livre considera que nós estamos a
contribuir da melhor forma possível para a sociedade e para o mundo se nos
concentrarmos apenas em conseguir atingir o máximo para nós próprios.
Quando os que acreditam nesta teoria vêem notícias desanimadoras na
televisão deviam interrogar­‑se se a procura do lucro será mesmo uma cura
milagrosa. Estes crentes do mercado livre, no entanto, depressa sacodem
todas as dúvidas, deitando culpas de tudo o que de mau acontece no mundo
às ‘falhas do mercado’.
Treinaram as suas mentes para acreditarem que os mercados que funcio-
nam bem são, simplesmente, incapazes de produzir resultados desagradáveis.
Na minha opinião, as coisas correm mal e a culpa não é das ‘falhas do
mercado’. O problema é muito mais profundo do que isso. A teoria do mercado
livre mais generalizada sofre de uma ‘falha de conceito’ e não percebe a essên-
cia do que é ser humano.
Na teoria empresarial convencional criámos um ser humano unidimensio-
nal para desempenhar o papel do líder empresarial – o chamado empreen-
dedor. Isolámo­‑lo do resto da vida, da religião, do lado emocional, político e
social. Ele dedica­‑se a uma missão apenas – maximizar o lucro.
E ele tem o apoio de outros seres humanos unidimensionais que lhe entre-
gam os investimentos para o desempenho dessa missão – citando Oscar Wilde
– ‘eles conhecem o preço de tudo e o valor de coisa nenhuma’.
A nossa teoria económica criou um mundo a uma dimensão, povoado por
pessoas que se dedicam ao jogo do mercado livre e onde a vitória é medida
apenas pela dimensão do lucro. E, uma vez convencidos da verdade dessa teo-
ria, que nos diz que a busca do lucro é a melhor maneira de levar a felicidade
a toda a Humanidade, implementamo­‑la com entusiasmo e lutamos para nos
transformarmos em seres humanos unidimensionais. Em vez de a teoria imitar
a realidade, obrigamos a realidade a imitar a teoria.
O mundo hoje está tão encantado pelo sucesso do capitalismo que não se
atreve a pôr em dúvida a teoria económica que sustenta o sistema.
E, contudo, a realidade é muito diferente da teoria. As pessoas não são
entidades unidimensionais, elas são emocionalmente multidimensionais.
As suas emoções, crenças, prioridades e modelos comportamentais só
podem ser comparados aos milhões de tons que conseguimos produzir a partir
das três cores primárias.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

A presença das nossas personalidades multidimensionais significa que nem


todos os negócios deviam estar obrigados a seguir o objectivo único da maxi-
mização dos lucros. E é aqui que entra o novo conceito do negócio social.”
Op. cit., páginas 42 e 43

O NOVO CONCEITO DE NEGÓCIO SOCIAL – EMPRESA SOCIAL

Na sua estrutura de organização, este novo tipo de empresa – o negócio social


– segue basicamente a mesma estrutura das empresas de maximização do lucro.
Mas com outros fins. Como as outras empresas tem funcionários, cria bens ou
serviços e fornece­‑os aos consumidores por um preço consistente com os objec-
tivos que quer alcançar. A meta subjacente – e os critérios pelos quais deverá ser
avaliada – é a criação de benefícios sociais para aqueles cujas vidas ela toca.
A empresa até pode dar lucro, mas os investidores não tiram qualquer pro-
veito dela – recuperam apenas o capital inicialmente investido, recuperação que
é feita ao longo de um determinado período de tempo. Um negócio social é uma
empresa que é movida por uma causa, e não pelo lucro, e que tem potencial para
actuar como um dos agentes de mudança no mundo.
Um negócio social não é uma instituição de caridade. É um negócio em todos
os sentidos. Tem de recuperar todos os custos inerentes à sua actividade e, ao
mesmo tempo, atingir os objectivos sociais a que se propõe.
Quando gerimos um negócio não pensamos e agimos da mesma forma como
quando gerimos uma instituição de caridade. O que faz toda a diferença na defi-
nição de um negócio social e do seu impacto na sociedade.
Um negócio social é, deste modo, projectado e gerido como outro negócio
qualquer, com produtos, serviços, clientes, mercados, despesas e receitas, onde o
princípio da maximização dos lucros foi substituído pelo princípio dos benefícios
sociais. Em vez de procurar amealhar o máximo de lucros para proveito dos inves-
tidores, o negócio social procura atingir um objectivo social.
Na sua obra mais recente intitulada – A Empresa Social (2010) – o criador do
microcrédito descreve as caracteríticas da sua nova iniciativa – o negócio social
ao dizer nomeadamente o seguinte:

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PARTE II

“A empresa social é um novo tipo de conceito. É bastante distinto, quer do


de uma empresa com fins lucrativos, quer de uma organização sem fins lucra-
tivos. É também bastante distinto de outros termos frequentemente usados,
tais como ‘empreendimento social’ ou ‘empresa socialmente responsável’, que
geralmente descrevem algumas variantes de empresas com fins lucrativos.
Uma empresa social não se integra no mundo dos negócios com fins lucra-
tivos. O seu objectivo é a resolução de um problema social usando métodos
próprios das empresas, incluindo a produção e a venda de produtos ou serviços.
Há dois tipos de empresa social. Um deles é uma empresa sem prejuízos
(auto­‑sustentada), sem dividendos, dedicada à resolução de um problema
social, cujos proprietários são investidores que reinvestem todos os lucros para
expandir e para melhorar a empresa.
Chamamos a este tipo de empresa social – tipo 1.
São exemplos de empresas do tipo 1 a Grameen Danone, que está a contri-
buir para resolver o problema da subnutrição, vendendo iogurtes fortificados
com micronutrientes a um preço acessível. A Grammeen Veolia Water contri-
bui para resolver o problema da água contaminada com arsénico, vendendo
água pura a um preço acessível aos pobres.
A BASF Grameen reduzirá a incidência de doenças transmitidas por mos-
quitos através da produção e comercilaização de mosquiteiros com um trata-
mento químico.
O segundo tipo é uma empresa com fins lucrativos cujos proprietários são
pessoas pobres, quer directamente, quer através de um fundo dedicado a uma
causa social predefinida.
Chamamos a este tipo de negócio empresa social – tipo 2.
Como os lucos recebidos pelas pessoas pobres estão a aliviar a pobreza,
um negócio destes, por definição, estará a contribuir para a resolução de um
problema social. O Banco Grameen, cujos proprietários são as pessoas pobres
que depositam o seu dinheiro e contraem empréstimos é um exemplo deste
tipo de empresa social.
A fábrica têxtil Otto Grameen actualmente em fase de instalação será
outro exemplo deste tipo de empresa. O seu proprietário será o Fundo Otto
Grameen, que usará os lucros em benefício das pessoas da comunidade onde
a fábrica se localiza.
Ao contrário de uma organização sem fins lucrativos, uma empresa social
tem investidores e proprietários. No entanto, numa empresa social de tipo 1,
os investidores e os proprietários não recebem lucros, dividendos ou qualquer
outra forma de benefício financeiro.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Os investidores de uma empresa social podem reaver a quantia que inves-


tiram inicialmente ao longo de um período de tempo definido por eles. Pode
ser um período muito curto, de um ou dois anos, ou um período muito longo,
de cinquenta anos ou mais. Mas se os investidores receberem uma quantia que
ultrapasse o investimento original, essa empresa deixará de ser considerada
uma empresa social.
Esta regra aplica­‑se até a ajustamentos para ter em conta a inflação. Numa
empresa social, um dólar é um dólar. Quem investir mil dólares numa empresa
social poderá reaver mil dólares – nem mais um cêntimo. Somos bastante cla-
ros nesta regra porque queremos deixar bem claro que a ideia de benefício
financeiro pessoal não tem qualquer cabimento na empresa social.”

Assim foram formulados os sete principios que devem nortear uma empresa
social de tipo 1:

1. O objectivo do negócio é ultrapassar a pobreza ou um ou mais problemas


(nas áreas da educação, saúde, acesso às tecnologias e ambiente) que afli-
gem os individuos e as sociedades – não maximizar o potencial do lucro.
2. A empresa atingirá a sua própria sustentabilidade financeira e económica.
3. Os investidores só poderão reaver a quantia que investiram. Nenhum divi-
dendo é atribuído para além do reembolso da quantia investida original-
mente.
4. Quando a quantia investida for reembolsada, o lucro fica na empresa para
sua expansão e melhoramento.
5. A empresa é responsável do ponto de vista ambiental.
6. Os seus trabalhadores recebem um salário de mercado, com condições de
trabalho acima da média.
7. Faça­‑o com alegria!

“O último destes princípios foi uma sugestão do alemão Reitz que trabalha
comigo no Grameen Creative Lab em Wiesbaden, na Alemanha. No ambiente
agressivo do mundo dos negócios convencionais, esquecemos que os negócios
podem ter algo a ver com a alegria. A empresa social tem tudo a ver com a
alegria. Quando as pessoas se envolvem nela, continuam a descobrir a alegria
ilimitada que se obtém.”
Cfr. Muhammad Yunus, op. cit., páginas 29 a 31

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PARTE II

A EMPRESA SOCIAL É UMA EMPRESA ÉTICA?

No termo desta parte sobre Ética Empresarial, e depois de se terem acolhido


e apresentado as ideias e os novos conceitos empresariais do Prémio Nobel da
Paz de 2006, convém deixar aqui algumas precisões. E vamos fazê­‑lo usando mui-
tas vezes as próprias palavas do autor.
“A empresa social é melhor do que uma empresa normal? Depende do que se
considera melhor ou pior. Se a intenção é fazer dinheiro, então com uma empresa
com fins lucrativos é melhor, evidentemente. Se pretendemos resolver os proble-
mas das pessoas, a empresa social é a via indicada. As empresas com fins lucrati-
vos não conseguem fazê­‑lo – ou não tão bem.” (Op. cit., página 40).
A “empresa social” é uma “empresa ética” no sentido definido ao longo deste
livro?
Na opinião do autor destas notas, a primeira resposta é não, já que a empresa
ética é uma qualificação dada ou procurada por empresas com fins lucrativos
operando dentro do sistema de mercado capitalista actual.
Contudo, se tivermos em conta o significado primeiro do termo ético – o bem
agir – temos de reconhecer que a empresa social será a empresa ética por exce-
lência!
Ao longo deste livro de Ética Empresarial citei vários autores, tais como Aris-
tóteles, Adam Smith, Jeremy Betham, Stuart Mill, Immanuel Kant e John Rawls,
entre outros, e chamei a atenção para o facto de que estes pensadores eram
homens que tinham uma visão generosa do ser humano. Todos pensavam que os
homens procuram o bem ainda que, cada um, à sua maneira.
É esta também a visão do autor apresentado neste último capítulo, como se
pode ver na citação que transcrevo a seguir:

“Toda a gente tem um forte impulso de abnegação – um desejo de ajudar


os outros que é tão forte como o desejo de obter lucros pessoais. Mas o capi-
talismo tradicional nunca se deu ao trabalho de fazer uso deste forte impulso
dos seres humanos. O resultado é que a economia mundial tem continuado a
crescer de forma desigual e esse desequilíbrio torna­‑se pior à medida que vai
aumentando.”
Cfr. Muhammad Yunus, op. cit., página 230

Entre os nossos contemporâneos nem todos pensam assim. Neste livro iniciá-
mos a reflexão sobre a ética aludindo à falência, em 2008, de um dos mais antigos

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Bancos americanos – o Lehman Brothers – com 150 anos de existência. Neste,


como em tantos outros casos, a “mão invisível” tornou­‑se descaradamente visível
e pesada, e exactamente ao contrário do que afirma Muhammad Yunus.

“O episódio mais revelador do poder do Goldman Sachs é a forma como


escapou incólume à crise financeira de 2008­‑2009. Isso aconteceu à custa da
eliminação dos seus concorrentes, neste caso, os dois gigantes que eram a
seguradora AIG e o Banco Lehman Brothers.
Apesar de ser o Banco consultor da seguradora, o Goldman Sachs apostou
contra ela logo a partir de 2007. Em 2008 dá um último abalo à confiança dos
mercados na AIG, pondo em dúvida a sua solvabilidade. Mas foi apanhado na
própria armadilha quando apareceu a crise.
Com os investidores receosos do impacto que uma falência da AIG teria no
próprio Banco, Lloyd Blankfein recorre a um antigo alto funcionário do mesmo
– o secretário do Tesouro americano Henry Paulson.
O resultado é conhecido: o Governo Americano acaba por salvar a AIG e
assegurar que esta pagará aos seus credores, entre os quais o Goldman Sachs.
O mesmo não acontecerá com o Lehman Brothers.
O Presidente do GS fez parte do grupo de banqueiros que se reuniram para
decidir o destino daquele banco. L. Blankfein é da opinião que se deve deixar cair.
Sem Bancos interessados em ficar com o Lehman, Paulson decreta a falência do
secular Banco Americano. Menos um concorrente para o Goldman Sachs…
‘Eu faço o trabalho de Deus’, ironizou um dia Lloyd Blankfein, Presidente
Executivo do Goldman Sachs.”

Infelizmente, a minha visão de Homem que já leva várias décadas de vida é


a de que os autores citados acima são de facto pessoas de bem, e que querem
o bem como fim supremo, como diria o grande Aristóteles: “A ética é a ciência
prática do bem e bem é ‘o que todos desejam’, já que ninguém actua pretendendo
fazer o mal, se escolhe algo que é – para os outros ou objectivamente – mal, fá­‑lo
porque o julga um bem” (Aristóteles in Ética a Nicômaco).
Todavia, a nossa experiência diz­‑nos que existem efectivamente no mundo
mulheres e homens, particularmente nos lugares de liderança, e a vários níveis,
que não têm o mínimo respeito pelo seu semelhante, não conhecem a abnega-
ção, não sentem a mínima compaixão pelos que estão ao seu lado, nunca procu-
ram o bem dos outros, inebriados que se encontram, como diria Camões, pela
“vã glória de mandar!”.
Por isso, termino como comecei – Ética precisa­‑se!

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PARTE II

BIBLIOGRAFIA

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PARTE III
ÉTICA NOS NEGÓCIOS

Ivar Kolstad e Arne Wiig, CMI e Vicente Pinto


de Andrade, UCAN

INTRODUÇÃO

A área da ética dos negócios progrediu rapidamente na última década. Para


que os estudantes estejam informados sobre os seus novos desenvolvimentos
é necessário uma actualização contínua dos materiais de leitura e ensino. As
empresas enfrentam alguns desafios e dilemas éticos quando operam em países
onde o ambiente institucional é fraco e a pobreza está muito generalizada. A falta
de contenção institucional e de cumprimento da Lei coloca desafios em relação
aos princípios e normas que as empresas devem obedecer, para além de respei-
tarem as leis. E, em países onde há ausência de instituições e de políticas eficazes
com vista a melhorar a situação socioeconómica da população, coloca­‑se também
a questão de saber até que ponto se pode esperar que as empresas se dispo-
nham a tratar destes problemas e contribuam para os mitigar.
Estes desafios são particularmente pertinentes para todas as empresas e, par-
ticularmente, para as companhias que operam em países onde não há convergên-
cia entre o crescimento económico e o bem­‑estar da população, em países onde
a pobreza é generalizada e os Governos faltam às suas responsabilidades perante
os seus cidadãos, em países onde não há transparência, nem prestação de contas
públicas, quer em relação à política, quer em relação aos negócios.
A transparência é importante para reduzir a corrupção e para evitar os pro-
blemas da maldição dos recursos naturais56. Em países com falta de instituições
chaves para lidarem com Finanças Públicas, distribuição e pobreza, o papel das
empresas pode ser diferente do que nos países onde essas instituições existam.
Por isso, o grau de transparência dos Governos coloca um grande desafio para
a empresa. A falta de transparência e boa governação abre espaço ao jogo de
influência política e à apropriação do sector privado que, por sua vez, pode des-
truir as instituições públicas e cimentar uma cultura de secretismo e opacidade.

56Angola ainda não assinou a Iniciativa de Transparência das Indústrias Extractivas (EITI) e
existe uma cultura de secretismo.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Em situações em que a governação é difícil de mudar, é cada vez mais importante


que as decisões do sector privado sejam transparentes.
Esta parte do compêndio sobre Ética nos Negócios é composta por seis textos.
O primeiro texto discute as responsabilidades éticas das empresas nos negó-
cios, numa perspectiva normativa. A questão básica que se coloca neste texto é
a de saber o que devem fazer as empresas ou que responsabilidades lhes podem
ser razoavelmente pedidas que assumam. Para responder a esta questão é neces-
sário usar a teoria ética, que fornece argumentos fundamentados sobre o certo e
o errado. Estabelecidas algumas ideias sobre as responsabilidades das empresas,
o passo seguinte é o de discutir, numa perspectiva instrumental, os modos de
induzir os agentes económicos, em particular, as empresas, a assumirem as suas
responsabilidades éticas.
O segundo texto é um artigo famoso (ou talvez infame) de Milton Friedman
(Prémio Nobel da Economia de 1976), no qual defende que as empresas não
devem ter quaisquer responsabilidades para além de maximizarem os lucros ou
de assegurar o retorno para os seus proprietários. Friedman não só sustenta que
as empresas não têm responsabilidades adicionais, como também considera que
é directamente pouco ético para elas perseguir outros fins que não seja a renta-
bilidade. Este artigo gerou uma considerável controvérsia e é uma boa base para
discussão e interacção num curso sobre ética dos negócios.
O terceiro texto procura demonstrar que Milton Friedman estava errado. Este
artigo defende que a posição de que as empresas devem sempre e apenas maxi-
mizar os lucros é insustentável numa perspectiva ética. A ideia de que as empre-
sas devem maximizar os lucros implica elevar os accionistas a uma posição que é
inconsistente com qualquer teoria ética razoável. Assim, as empresas têm outros
deveres para além de maximizarem o retorno para os seus proprietários.
O quarto texto questiona a possibilidade das empresas éticas serem lucrati-
vas e discute várias formas sob as quais se pode esperar que o comportamento
ético de uma empresa aumente os seus lucros. Por exemplo, se os clientes pre-
ferem comprar os produtos nas empresas que eles consideram como éticas, uma
empresa ética pode obter mais clientes e, consequentemente, ter lucros mais
elevados por ser ética. Similarmente, se os trabalhadores preferem trabalhar em
empresas com um bom historial ambiental, as empresas ambientalmente orien-
tadas podem lucrar por atraírem mais trabalhadores por um salário mais baixo.
Assim, há diversas razões teóricas para uma empresa, por vezes, ter vantagens ao
agir responsavelmente.
O quinto texto trata da questão das estruturas e incentivos internos e, em
particular, foca porquê e como se pode introduzir o modelo de parceria na estru-
tura de governação empresarial de uma firma. Como argumenta o texto, basear
a gestão de uma empresa nos interesses de vários parceiros traz novos desafios

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PARTE III

e dificuldades de gestão empresarial. Em princípio, há duas formas de introduzir


a abordagem da parceria na governação das empresas: uma é através de uma
alteração da regulamentação pública da governação das empresas, a outra é pela
introdução voluntária nas empresas desse modelo. Aqui, contudo, incorremos
na dificuldade de a alteração dos princípios de governação das empresas não ser
necessariamente lucrativa para os proprietários e, portanto, improvável de ser
implementada numa escala significativa.
O sexto texto, último desta parte, é um artigo sobre o ensino da ética dos
negócios para os estudantes. Este artigo é incluído para realçar e actualizar as
capacidades de ensino dos interessados, nomeadamente os estudantes das Uni-
versidades Angolanas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

TEXTO 1
AVALIANDO A ÉTICA DE NEGÓCIO: TEORIAS ÉTICAS NORMATIVAS

in Crane, A. and Matten, D. (2007), Business: Managing


Corporate Citizenship and Sustainability in the Age of
Globalization, 2nd Edition, Oxford: Oxford University Press

RESUMO

Determina o papel da teoria ética normativa para tomadas éticas de decisão


no negócio e realça a perspectiva europeia sobre teoria ética normativa.
Fornece uma visão crítica das teorias éticas tradicionais como o utilitarismo,
ética do dever, direitos e justiça, e explora o potencial de visões contemporâneas
sobre teorias éticas para o negócio, tais como ética da virtude, ética feminista,
ética do discurso e pós­‑modernismo.
Sugere que o uso mais apropriado da teoria ética normativa seja feito num
estilo pragmático e pluralista que contribua, mais do que imponha, para tomadas
de decisão éticas.

INTRODUÇÃO

No dia­‑a­‑dia das nossas vidas deparamo­‑nos constantemente com situações


em que os valores estão em conflito e em que temos de escolher entre o que está
certo ou errado. Seja uma questão que implica mentir a alguém para proteger a
sensibilidade de um amigo, conduzir a uma velocidade acima do limite quando
nos apressamos para evitar chegar tarde a um encontro ou pensar se se deve
falar sobre um condiscípulo que se viu a copiar, todos nós sabemos antecipada-
mente o que está certo ou errado, que nos possa ajudar a decidir sobre o que
fazer. Muitas das situações como estas, que enfrentamos na nossa vida pessoal,
têm muito a ver com o âmbito que uma pessoa comum seria capaz de decidir.
Num contexto de negócio, contudo, as situações podem tornar­‑se consideravel-
mente mais complexas.
Podemos pensar, por exemplo, na situação de uma Companhia Multinacional
que pretenda estabelecer uma subsidiária num país em desenvolvimento: não

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PARTE III

só temos de enfrentar simultaneamente alguns problemas éticos – talvez pagar


subornos para autorização do projecto, decidir sobre o nível salarial dos trabalha-
dores ou estabelecer uma idade mínima para os mesmos, etc. – como também
enfrentamos o problema de que diversas pessoas estarão envolvidas, tendo todas
pontos de vista e atitudes diferentes relativamente a estas questões morais.
Consequentemente, chegar a uma conclusão ética em situações de negócio é
bastante mais complexo que a maioria das situações em que nós, como pessoas
privadas, temos de tomar decisões éticas.
Talvez mais importante, num contexto de negócio, seja haver frequentemente
a necessidade de que estas decisões sejam baseadas num argumento sistemático,
racional e amplamente compreensível, de forma a que possam ser adequada-
mente defendidas, justificadas e explicadas às partes interessadas relevantes.
Similarmente, se admitirmos que o que uma organização fez está errado, precisa-
mos de uma base concreta a partir da qual argumentemos o nosso caso. Além do
mais, até que ponto podemos afirmar que um comportamento específico é mais
do que apenas diferente daquilo que teríamos feito e, na verdade, de certo modo
errado? Este é o ponto em que as teorias éticas normativas entram em cena. Por
normativas entendemos teorias éticas que propõem prescrever a forma moral-
mente correcta de actuação. Tais teorias éticas, conforme estabelecemos na par-
te I, podem ser definidas como se segue: teorias éticas são as regras e princípios
que determinam o certo e o errado numa determinada situação.
Nesta parte, daremos um olhar às principais teorias éticas e analisaremos o
seu valor e potencial para a ética de negócio. Para começar, entretanto, precisa-
mos primeiro de ser claros acerca de como devemos exactamente usar a teoria
ética no contexto deste texto e no resto do livro que se segue.

O PAPEL DA TEORIA ÉTICA

Ao localizar um lugar para a teoria ética, Richard DeGeorge (1999) sugere que
podem ser imaginadas duas posições extremas:
• Absolutismo ético. De um lado do espectro estaria uma posição de absolu-
tismo ético, o qual reivindica que há princípios morais eternos e universais.
• Relativismo ético. No outro extremo estaria uma posição de relativismo, a
qual reivindica que a moralidade depende do contexto e é subjectiva. Os
relativistas tendem a acreditar que não há certos e errados universais que
possam ser determinados racionalmente – depende apenas da pessoa que
toma a decisão e da cultura em que se localizam. Na sua forma melhor

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

conhecida, a noção de relativismo ocorre em questões de negócio internacio-


nal, onde se argumenta que um julgamento moral acerca do comportamento
numa outra cultura não pode ser feito a partir de fora, dado que a mora-
lidade é determinada culturalmente. O relativismo ético é diferente do
relativismo descritivo: enquanto este último sugere meramente que cultu-
ras diferentes têm éticas diferentes, o anterior propõe que ambas as formas
de convicção podem estar igualmente certas. Então, o relativismo ético ainda
é uma teoria normativa (DeGeorge, 1999).

? PENSAR TEORIA

Pense acerca de conceitos de absolutismo e relativismo no contexto de subor-


no. Como é que cada teoria conceptualiza o problema do suborno e que tipo
de acção sugeriria a alguém confrontado com um funcionário corrupto?

Muitas teorias éticas tradicionais tendem, por natureza, a ser absolutistas.


Procuram estabelecer regras ou princípios universais que possam ser aplicados
em qualquer situação para fornecer a resposta sobre o que está certo ou errado.
Teorias éticas contemporâneas tendem muitas vezes para uma posição mais rela-
tiva. Todavia, no decurso deste texto queremos mostrar que para as propostas
práticas de tomada de decisões eficazes em negócio, qualquer destas posições
não é particularmente útil.
Consequentemente, a nossa posição é de pluralismo. O pluralismo ocupa
qualquer coisa como um espaço médio entre absolutismo e relativismo. O plu-
ralismo aceita diferentes convicções e antecedentes morais embora sugerindo
ao mesmo tempo que um consenso sobre princípios e regras básicas num certo
contexto social pode, e deve, ser obtido. As teorias éticas, conforme mostrare-
mos, podem ajudar a clarificar diferentes pressupostos morais das diversas partes
envolvidas numa decisão – como uma pessoa pode tender a pensar em termos
de uma teoria, enquanto uma outra podia pensar em termos de uma teoria dife-
rente. Ao tomarmos boas decisões de negócio, precisamos de compreender esta
gama de perspectivas a fim de estabelecermos um consenso sobre a solução dos
problemas éticos (Kaler, 1999). Mais do que estabelecer uma única teoria univer-
sal, apresentaremos neste texto os diferentes enquadramentos teóricos como
recursos complementares ou ferramentas conceptuais que nos ajudam a fazer
uma avaliação prática, estruturada e sistemática do certo e errado em decisões
de negócio específicas. A teoria pode ajudar a clarificar estas situações e cada
teoria realça diferentes aspectos que devem ser considerados.
Este ponto de vista apoia­‑se em duas coisas básicas que Kaler (1999) sugere
que já sabemos acerca de moral, antes mesmo de tentarmos introduzir a teoria

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PARTE III

ética. Primeiro, a moral é antes de mais um fenómeno social. Precisamos de uma


moral porque temos constantemente de estabelecer regras e convenções para a
nossa vivência em comum como seres humanos. Parece razoável aceitar o argu-
mento do relativismo descritivo – que há uma diversidade de convicções morais,
sejam elas fundamentadas em carácter religioso, filosófico ou qualquer outra
forma ideológica. Por isso, mesmo que só houvesse uma única convicção moral
“objectivamente” certa, é um facto que não há acordo absoluto sobre isto. Basta
que façamos uma rápida visita a um bar ou um café para ouvirmos as conversas
à nossa volta e descobrirmos que pessoas da mesma rua, ou que trabalham no
mesmo local, divergem consideravelmente nos seus pontos de vista e convicções
morais. De um ângulo de negócio, isto torna­‑se até mais importante devido à glo-
balização, dado que multiplica o “fornecimento” relevante de moralidades pelo
simples número de diferentes contextos culturais que desempenham um papel
nas decisões de negócio. Como a moralidade parece resolver questões de certo
e errado ao organizar a vida social, não podemos realisticamente confiar numa
posição absolutista, já que empiricamente vemos uma variedade de convicções
morais. Se queremos tomar boas decisões que sejam aceitáveis por outros, preci-
samos obviamente de desenvolver algum conhecimento das diferentes moralida-
des com que provavelmente nos temos de confrontar.
A segunda das assunções de Kaler (1999) é que a moralidade tem a ver princi-
palmente com prejuízos e benefícios. Certo e errado tem muito a ver com evitar
prejuízos e providenciar benefícios. Antes de mais, se não tivéssemos aversão a
prejuízos ou não valorizássemos os benefícios, não haveria necessidade de mora-
lidade. Como veremos à frente, “benefício” e “prejuízo” são aspectos conceptua-
lizados diferentemente pelas várias teorias éticas. Não obstante, argumentamos
que há um certo consenso acerca do facto de a moralidade, no final de contas,
ajudar a sociedade a evitar prejuízos e a providenciar benefícios para os seus
membros. Com este enfoque é possível refutar parcialmente a posição dos rela-
tivistas e reivindicar que a moralidade é mais do que um sentimento ou opinião
subjectiva, dado que é acerca de autênticos prejuízos e benefícios que precisa-
mos de tratar. Ao fim e ao cabo, a lógica do relativismo é que qualquer coisa é
apenas diferente e nada é errado (Donaldson, 1996). Esta abordagem de “vale
tudo” em relação à moralidade não ajuda muito quando vemos prejuízos genuí-
nos serem infligidos às pessoas.
Todavia, como sugerem os relativistas, esta segunda assunção também coloca
necessariamente as teorias éticas num contexto pragmático: até a teoria mais
subtil é usada por indivíduos numa situação de negócio concreta onde a maioria
das pessoas têm um sentimento básico entranhado acerca do certo e do errado
da situação, com base na sua percepção dos prejuízos e benefícios (Treviño e Nel-
son, 2004). Por conseguinte, aplicar estreita e rigidamente uma teoria e tratá­‑la

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

como a única autoridade em questões de certo e errado, concederia à teoria ética


um estatuto que nunca verdadeiramente terá em decisões práticas de negócios.
Ainda que o grande valor das teorias éticas esteja no facto de que elas ajudam a
racionalizar – e através disso perceber – este sentimento entranhado. Ademais,
elas tornam possível empenharmo­‑nos num discurso racional entre indivíduos,
cujos valores morais diferem entre si.

TEORIAS ÉTICAS NORMATIVAS: UMA PERSPECTIVA EUROPEIA

Na parte intitulada Europa, uma Perspectiva Chave para Ética de Negócio,


argumentámos que o pensamento europeu sobre ética de negócio diverge do de
outras regiões. Este é particularmente o caso no uso das teorias éticas. Muita da
literatura disponível em inglês é mais ou menos dominada por um ponto de vista
anglo­‑americano, enquanto muitas das abordagens do continente europeu são
menos extensamente reconhecidas, já que muita da literatura é publicada em
outras Línguas que não o Inglês. E embora encontremos também diversas abor-
dagens do continente europeu em livros de ensino americanos e britânicos, o
uso geral e a necessidade da teoria em ética de negócio é bastante diferente em
ambos os lados do Atlântico.
Acreditamos, pois, que é proveitoso realçar algumas diferenças relevantes
entre abordagens europeias e as mais vulgarmente encontradas na literatura
publicada (Palazzo, 2002) – embora com uma nota de precaução acerca dos peri-
gos de generalizar um corpo de trabalho tão rico e diverso.
• Indivíduo versus moralidade institucional. Como vimos, algumas abor-
dagens ao estudo da ética de negócio tendem a ter uma perspectiva mais
individualista sobre a moralidade (exemplo, os Estados Unidos), enquanto
outras (como na Europa) tendem a centrar­‑se mais no sistema económico e
nas instituições governamentais mais alargadas. Portanto, as teorias éticas
normativas nos Estados Unidos tendem a ser mais aplicáveis ao compor-
tamento individual, ao passo que na Europa o desenho das instituições no
sistema económico parece ser a maior influência no desenvolvimento e apli-
cação da teoria.
• Questionamento versus aceitação do capitalismo. Muita da literatura
dominante nos Estados Unidos sobre ética de negócio não questiona particu-
larmente o enquadramento da gestão existente, antes vendo a ocorrência de
problemas éticos dentro do sistema capitalista, ocorrência essa que é tratada
como um dado. Na Europa, partes relevantes da ética de negócio centram­‑se

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PARTE III

em questionar a justificação ética do capitalismo. Consequentemente, um


esforço considerável na teoria ética de negócio tem sido dedicado a defen-
der ou refinar a legitimidade ética do pensamento económico capitalista.
Embora se possa dizer que nem todo este trabalho tem servido imediata-
mente para resolver questões do dia­‑a­‑dia na vida de negócio, ele ainda
assim ajuda a desenvolver uma abordagem mais crítica e distanciada às ins-
tituições que governam e determinam as decisões de negócio, e com isto
presta uma ajuda substancial à compreensão e teorização de alguns dilemas
éticos na vida de negócio, incluindo a governação empresarial, os direitos do
trabalhador e o envolvimento de parceiros.
• Justificação versus aplicação de normas morais. Embora em ambos os conti-
nentes algumas das raízes religiosas exerçam ainda uma notável influência no
tecido institucional da vida económica, têm tido lugar processos substanciais
de secularização – que é um movimento a favor de uma forma de organiza-
ção não­‑religiosa. Na Europa, mais notoriamente nos países do Norte, este
processo de secularização abriu a porta a uma variedade de outras aborda-
gens ideológicas e filosóficas. Em geral, a Suécia, a Alemanha e a Holanda, por
exemplo, são caracterizadas por um forte pluralismo de convicções e valores
morais. Por essa razão, o desafio da ética de negócio a nível teórico consiste
em forte grau na justificação e legitimidade ética das normas para tratar dile-
mas éticos em situações de negócio. Nos Estados Unidos, contudo, a julgar
pelos muitos livros de ensino americanos sobre ética de negócio, estas ques-
tões não parecem ocupar essa posição dominante: aparte uma secção sobre
teorias normativas de negócio, muitos livros de ensino parecem tratar a ques-
tão dos valores morais como um dado e focam principalmente a aplicação de
moralidade às situações de negócio. A sociedade americana – pelo menos no
que toca às preocupações da maioria branca dominante – parece apoiar­‑se
num conjunto bastante rígido de valores baseados principalmente no Cristia-
nismo que é aceite como um dado código de valores morais e, por isso, não
é objecto de escrutínio adicional. Isto parece ter sido reforçado pela recente
ascensão dos movimentos evangélicos de direita e neoconservadores.

Apesar destas diferenças, é importante reconhecer que nenhuma teoria nor-


mativa pode ser “reivindicada” ou atribuída a um país ou região em especial.
Como veremos agora, muitas das teorias tradicionais rotineiramente abraçadas
por autores americanos são na verdade de origem europeia. E, como mencio-
nado, há certamente uma riqueza de pensamento ético de negócio para além
do contexto norte­‑americano e europeu. Todavia, em termos de abordagens
teóricas ao assunto, o debate por trás deste contexto é bastante recente, embora
com alguns acréscimos importantes ao debate ligados com abordagens à ética

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de negócio da Ásia e outras. Uma diferença chave para as abordagens discutidas


mais à frente é que muito do pensamento sobre ética de negócio na Ásia é, no
principal, transmitido pela religião, como o Islão (Wienen, 1999) ou Budismo
(Gould, 1995), ou por valores comunitários tradicionais como a abordagem chi-
nesa “Guanxi” (Chenting, 2003). Em contraste, as abordagens europeias e norte­
‑americanas são principalmente baseadas em argumentos filosóficos, conforme
descobriremos nas partes seguintes.

TEORIAS ÉTICAS TRADICIONAIS

As teorias éticas tradicionais oferecem geralmente uma certa regra ou prin-


cípio que se pode aplicar a qualquer situação – por isso elas são absolutistas
na intenção. Estas teorias são normativas porque começam com uma assunção
acerca da natureza do mundo e assunções mais específicas acerca da natureza
dos seres humanos. Consequentemente, o ponto até ao qual podemos aceitar a
teoria e o resultado da sua aplicação a situações específicas de negócio depende
principalmente do ponto até ao qual partilhamos as suas assunções fundamen-
tais. Como têm uma norma de decisão consideravelmente bem definida, a vanta-
gem principal destas teorias é na verdade fornecerem­‑nos uma razoável solução
inequívoca para os problemas éticos.
Estas teorias podem geralmente ser diferenciadas em dois grupos (ver Figura
1). No lado direito da Figura 1 temos teorias que baseiam o julgamento moral nos
resultados de uma certa acção. Se estes resultados são desejáveis, então a acção
em questão é moralmente certa; se os resultados da acção não são desejáveis, a
acção é moralmente errada.

Figura 1 – Teorias consequencialista e não­‑consequencialista


na ética de negócio.

Motivação/Princípios Acção Resultados































Ética não­‑consequencialista Ética consequencialista

O julgamento moral nestas teorias consequencialistas é assim baseado nos


resultados planeados, nos objectivos ou nas metas de uma certa acção. Portanto, a
ética consequencialista é frequentemente referida pelo termo teleológico, baseado
na palavra grega para “meta”.

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PARTE III

No outro lado, temos aquelas teorias que baseiam o julgamento moral nos
princípios subjacentes da motivação de quem toma uma decisão. Esta teoria
sugere que uma acção é certa ou errada, não porque gostemos das consequên-
cias que produzem, mas porque os princípios subjacentes estão moralmente
certos. Estas abordagens não­‑consequencialistas estão bastante ligadas ao pen-
samento Judaico­‑Cristão e começam por raciocinar acerca dos direitos e deveres
individuais. Estas teorias filosóficas, também chamadas deontológicas (com base
na palavra grega para “dever”), olham para a desejabilidade dos princípios e com
base nestes princípios deduzem um “dever” para agir de acordo com uma deter-
minada situação, independentemente da apetecibilidade das consequências.
A seguir, olharemos de perto as famílias de teorias filosóficas e analisaremos
o seu potencial para resolver várias decisões de negócio. A Tabela 6 dá uma breve
visão geral das escolas filosóficas relevantes e dos elementos básicos do seu pen-
samento. Ao explicar estas teorias, usá­‑las­‑emos para reflectir sobre um problema
de negócio específico, conforme apresentado no “Dilema Ético”. Sugerimos que o
leia antes de continuar este texto.

Tabela 6 – Principais teorias normativas na ética de negócio.

Egoísmo Utilitarismo Ética do dever Direitos e Justiça

Jeremy Bentham, John Locke,


Contribuíram Adam Smith Immanuel Kant
John Stuart Mill John Rawls

Desejos ou
Bem­‑estar
Foco interesses Deveres Direitos
colectivo
individuais

Maximização
de desejos/ Acto/regra Imperativo Respeito pelos
Regras
interesses utilitarismo categórico seres humanos
próprios

O Homem é
O Homem
controlado pela O Homem é
Conceito como actor com O Homem é um
fuga da dor um ser que se
de seres conhecimento actor moral
e aquisição distingue pela
humanos e objectivos racional
de prazer dignidade
limitados
(“hedonista”)

Não­ Não­
Tipo Consequencialista Consequencialista
‑consequencialista ‑consequencialista

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

DILEMA ÉTICO

Produzir brinquedos – brincadeira de crianças?


Você é o Director de Produção de uma empresa que inclui pequenos brin-
quedos de plástico nos seus doces de chocolate. Tendo descoberto um poten-
cial fabricante tailandês destes brinquedos numa feira comercial na Europa,
você visita agora a empresa no Nordeste da Tailândia para finalizar um contrato
de fornecimento para dois anos. Chegado lá e depois de falar com o Director
de Vendas, você é capaz de fazer um acordo em que a fábrica lhe fornece os
brinquedos a um terço do custo normalmente aplicado pelo seu fornecedor
português, mas com qualidade e acordos de fornecimento equivalentes.
A fim de verificar a fiabilidade do processo de fabricação você pede ao
Director que o leve até ao local e fica surpreendido quando repara que não
existe uma verdadeira oficina no edifício. Mais ainda, o processo de produção
está organizado de tal forma que às 6 horas da manhã cerca de 30 homens
fazem fila à porta da companhia, carregam grandes caixas com componentes
de brinquedos nos seus pequenos carrinhos ou scooters motorizadas e trans-
portam o material para suas casas.
O seu fornecedor em perspectiva leva-o então até um destes lugares onde
você vê uma grande família, sentada num celeiro parecido com uma garagem,
a montar os brinquedos. Não são apenas a mãe e o pai que executam o tra-
balho, mas também as suas seis crianças com idades entre os 5 e os 14 anos
que trabalham activamente – e conforme pode ver, muito satisfeitas – em
conjunto com os pais, enquanto a avó cuida da comida num quarto adjacente.
À noite, por volta das 20 horas, findo o trabalho do dia, os brinquedos mon-
tados são arrumados nas caixas e levados para a oficina da empresa, onde os
homens recebem o seu pagamento pelo produto acabado. No final da semana,
os brinquedos são embarcados para os clientes da Europa.
Como você nunca se tinha deparado com um padrão de fabricação como
este, o seu parceiro tailandês explica-lhe que esta é uma prática muito
comum e bastante difundida nesta parte do país, e a única que garante um
bom nível de qualidade. Satisfeito, você diz ao Director tailandês que formali-
zará a encomenda logo que chegue a casa, e deixa as instalações da empresa
feliz com a perspectiva da redução que vai ter nos seus custos e calmamente
seguro que ela resultará num saudável bónus para si no final do ano.
No seu regresso, enquanto no aeroporto compra algumas lembran-
ças para as suas sobrinhas de cinco e sete anos, você começa de repente a
perguntar a si próprio se gostaria de vê-las crescer da mesma forma que os
trabalhadores infantis que você acabou de empregar para fazerem os brin-
quedos para a sua empresa.

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PARTE III

Perguntas
1. Lendo o caso e colocando-se a si próprio no papel do Director de Produção,
qual seria a sua reacção visceral imediata?
2. Com base na sua decisão espontânea imediata, pode explicar as razões da
sua escolha? Pode também relacionar essas razões com valores ou princí-
pios subjacentes que são obviamente importantes para si?

Teorias consequencialistas

Vamos olhar a seguir para duas teorias consequencialistas principais:


• Egoísmo
• Utilitarismo

Embora estas teorias tratem do certo e do errado de acordo com os resulta-


dos de uma decisão, veremos que elas tratam esses resultados de formas diferen-
tes – o egoísmo enfoca os resultados para o tomador de decisões, o utilitarismo
centra­‑se em mais amplos resultados sociais dentro de uma comunidade.

Egoísmo

O egoísmo é uma das mais velhas ideias filosóficas, e já foi bem conhecida e
discutida por antigos filósofos gregos. Nos últimos três séculos, o egoísmo teve
bastante influência na economia moderna, particularmente em relação com
as ideias de Adam Smith (1723­‑1790) acerca do desenho da economia liberal.
O egoísmo pode ser definido: “Seguindo a teoria do egoísmo, uma acção está
moralmente certa se o tomador da decisão decide livremente com o fim de per-
seguir ou os seus desejos (de curto prazo) ou os seus interesses (de longo prazo)”.
A justificação para o egoísmo reside no conceito subjacente do Homem:
como o Homem tem apenas uma visão limitada sobre as consequências das suas
acções, a única estratégia satisfatória para ter uma boa vida é perseguir os seus
próprios desejos ou interesses. Adam Smith (1793) argumentava que, no sistema
económico, esta perseguição dos próprios interesses individuais era aceitável
porque produzia um resultado moralmente desejável para a sociedade através da
“mão invisível” do mercado. Os argumentos de Smith podem portanto ser resu-
midos como afirmando que é provável que se encontre um resultado moral no

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

produto final de um sistema que se baseie na livre competição e boa informação.


Por exemplo, se um produtor produz e vende produtos inferiores ou defeituosos,
os consumidores podem sofrer a curto prazo em resultado da falta de capacidade
do produto que adquiriram. Todavia, e a longo prazo, supondo que os consumido-
res conhecem escolhas alternativas, o comércio do produtor será afectado dado
que os consumidores virar­‑se­‑ão para outros produtores. Consequentemente, o
produtor evitará no seu próprio interesse produzir produtos inferiores, originando
deste modo uma situação que é benéfica para todos. Dado o seu objectivo de
produzir amplos benefícios sociais, alguns ligaram a Teoria de Smith às “práticas
egoístas para resultados utilitários” (Beauchamp e Bowie, 1997:18).
É importante distinguir dois tipos de egoísmo. Enquanto um egoísta pode ser
movido por pena dos outros, procurando afastar a sua angústia causada pelas
situações difíceis em que se encontram, o outro é insensível aos outros. Assim,
por exemplo, um bom acordo sobre o que discutimos como elementos voluntá-
rios no conceito de Responsabilidade Social das Empresas ou cidadania empre-
sarial pode estar perfeitamente em linha com uma filosofia egoísta desde que a
empresa, ou o filantropo rico, escolha doar a uma boa causa (porque isso fá­‑los
sentirem­‑se melhor ou porque isso vem em benefício da empresa) em vez de
votarem o aumento do seu salário.
Dentro da filosofia moral, uma crítica importante ao egoísmo com base no
desejo é que ele faz abordagens evidentemente diferentes à vida como se fossem
equivalentes; assim, por este ponto de vista, a vida do estudante que fica bêbado
todas as noites na União dos Estudantes é tão admirável como a do estudante
que trabalha arduamente por um grau de primeira classe, desde que ambos per-
seguissem o mesmo desejo. Portanto, dentro desta escola de filosofia, um egoís-
mo baseado na perseguição de interesses é a versão suprema deste conceito
(Graham, 1990). A ideia de interesses baseados na perseguição de um bem­‑estar
de longo prazo permite distinguir a vida do estudante que é um bebedor pesado
do estudante que trabalha arduamente. Nesta formulação, abre­‑se uma brecha
entre o desejo (ou anseio) e o que constitui o último interesse de alguém, tal
como dizer que não é do interesse do estudante bebedor entregar­‑se aos desejos
imediatos. Um egoísmo baseado em interesses aborda portanto a ideia de valor
objectivo – como, por exemplo, uma forma de agir é objectivamente melhor ou
“mais ética” do que outra.
Isto conduz à noção de egoísmo iluminado, que é frequentemente discutida
no contexto da ética de negócio. Já deparámos com ele na parte II, quando discu-
timos o “interesse próprio iluminado”. Por exemplo, as empresas podem investir
no ambiente social, como apoiar escolas ou patrocinando uma nova ambulância
para o serviço de saúde local, dado que um nível melhorado de serviços sociais é
do interesse da retenção e satisfação da força de trabalho.

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PARTE III

Se aplicarmos esta teoria ao caso do “Dilema Ético”, teríamos de olhar para


os actores envolvidos e analisar se eles perseguem livremente os seus próprios
desejos ou interesses ao empenharem­‑se no acordo. Isto aplica­‑se com certeza
ao gestor e ao seu parceiro tailandês e, pelo aspecto do caso, podia aplicar­‑se
também aos pais do negócio familiar. No que respeita às crianças, pode ser que
elas estejam bastante felizes por ajudarem os pais e que estes tomem como certo
que as coisas funcionam assim no seu mundo. Desta perspectiva, um olhar egoísta
sobre a situação pode considerar o acordo como moralmente certo. Pode­‑se
contudo pôr em causa se é no interesse a longo prazo das crianças empenhá­‑las
neste tipo de trabalho: embora se possa argumentar que previne serem forçadas
a incorrer em formas menos desejáveis de trabalho, as preocupações morais sur-
gem quando se considera que este tipo de trabalho as impede de ir à escola e as
expõe a um horário de trabalho bastante duro, lançando algumas dúvidas sobre
se elas estão de verdade a seguir livremente os seus interesses. As últimas con-
siderações sugeririam então que, de um ponto de vista egoísta, esta acção pode
ser imoral.
Não é preciso muito tempo de reflexão para descobrir certas fraquezas da
ética egoísta. Para começar, esta teoria funciona bem se houver um mecanismo
na sociedade que assegure que nenhum egoísta individual persegue os seus pró-
prios interesses a expensas de outro egoísta. No pensamento de Adam Smith este
mecanismo seria o mercado. Embora num grande número de casos possamos ver
que o mercado trabalha perfeitamente bem, há inúmeras situações em que isso
parece não ser o caso e onde o egoísmo de actores singulares conduz a resulta-
dos desfavoráveis. O actual movimento antiglobalização é grandemente alimen-
tado pelo facto de que a nível global os mercados não funcionam perfeitamente
e, assim, nós testemunhamos uma distribuição ruidosamente desigual da riqueza
através do globo. Um outro exemplo seria o debate sobre a sustentabilidade: as
vítimas da actual sangria de recursos ou das alterações climáticas são as futu-
ras gerações, que ainda não estão presentes para tomarem parte em qualquer
espécie de mercado. Isto mostra claramente algumas limitações iniciais da teoria
egoísta.

Utilitarismo

A filosofia do utilitarismo tem sido uma das teorias éticas mais usualmente
aceites no mundo anglo­‑saxónico. Está ligada aos nomes dos filósofos e econo-
mistas britânicos Jeremy Bentham (1748­‑1832) e John Stuart Mill (1806­‑1873) e
teve influência na economia moderna em geral. O princípio básico do utilitarismo
pode ser definido como se segue.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

De acordo com o utilitarismo, uma acção está moralmente certa se resultar


na maior quantidade de benefício para a maior quantidade de pessoas afectadas
pela acção.
Este princípio, também chamado princípio da maior felicidade é o princípio
consequencialista supremo, já que foca somente as consequências de uma acção
e pesa os bons resultados em contraste com os maus resultados e finalmente
encoraja a acção que resulta na maior quantidade de benefício para todas as pes-
soas envolvidas. Ao contrário do egoísmo, não olha somente para cada indivíduo
envolvido e pergunta se os seus desejos e interesses individuais estão satisfeitos,
mas centra­‑se no bem­‑estar colectivo que é produzido por uma determinada
decisão.
A ideia subjacente é a noção de utilidade que Bentham vê como objectivo
supremo na vida. O Homem é visto como um hedonista, cuja finalidade na vida
é maximizar o prazer e minimizar a dor. Nesta versão hedonística do utilitarismo,
a utilidade é medida em termos de prazer e dor (o ponto de vista “hedonístico”).
Outras interpretações de utilidade olham para a felicidade e infelicidade (o ponto
de vista “eudemonístico”), enquanto outras assumem um forte ponto de vista
alargado que inclui na equação não apenas prazer ou felicidade mas todos os
valores humanos intrinsecamente valiosos (o ponto de vista “ideal”). Estes valo-
res incluiriam tipicamente aspectos como amizade, amor, confiança, etc. O último
ponto de vista faz, em particular, com que o utilitarismo se abra a um grande
número de situações de decisões práticas e evite que foque estreita e unicamente o
prazer e a dor.
O utilitarismo foi muito poderoso, dado que colocou no centro da decisão
moral uma variável que é geralmente muito usada em economia como um parâ-
metro que mede o valor (económico) das acções: “utilidade”. Independentemente
de se aceitar que a utilidade é verdadeiramente quantificável, não surpreende
concluir que a análise utilitária é altamente compatível com a metodologia quan-
titativa e matemática da economia. Assim, ao analisar duas possíveis acções para
uma única decisão de negócio, podemos atribuir uma certa utilidade a cada con-
sequência e a cada pessoa envolvida, e a acção com a maior utilidade agregada
pode ser determinada como a moralmente correcta. Afinal de contas, o utilitarismo
vem ao encontro do que conhecemos como análise custo­‑benefício.
Situações típicas em que a análise utilitária pode ser de bastante ajuda são
situações como usar animais para pesquisa médica: embora isto inflija dor con-
siderável aos animais, o utilitarismo argumenta que é moralmente certo já que a
dor destes animais tem de ser pesada contra o facto de ela evitar dores maiores
a todos os humanos que beneficiam dos medicamentos testados. Finalmente, o
pensamento utilitário foi usado em situações muito extremas: assim, por exem-
plo, o grupo de Generais e intelectuais alemães que conspiraram para assassinar

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PARTE III

Hitler, em 1944, justificaram a sua tentativa com razões utilitárias, dado que o
assassínio (dor) de uma pessoa abriria caminho à redução da dor de milhões de
outras pessoas.
Se aplicarmos esta teoria à situação descrita no “Dilema Ético”, antes de mais
devemos olhar para todos os actores envolvidos e analisar a sua potencial utilidade
em termos de prazer e dor envolvidos em diferentes modos de acção, ou seja,
seguir em frente com o acordo (acção um) ou não fazer o acordo (acção dois).
Podíamos estabelecer um simples balanço como o descrito na Tabela 7.
Depois de analisar todos os bons e maus efeitos para as pessoas envolvidas,
pode­‑se adicionar “prazer” e “dor” à acção um, e o resultado será a utilidade
desta acção. Depois de feito o mesmo com a acção dois, a decisão moral é rela-
tivamente fácil de identificar: a maior utilidade das respectivas acções é a moral-
mente certa. No nosso caso hipotético a decisão orientar­‑se­‑ia provavelmente
para a acção um (fazer o acordo), dado que contempla o maior prazer para todas
as pessoas envolvidas, enquanto que na acção dois (não fazer o acordo) a dor
parece dominar a análise.

Tabela 7 – Exemplo de uma análise utilitária (baseada no “Dilema Ético”).

Acção 1: fazer o acordo Acção 2: não fazer o acordo

Prazer Dor Prazer Dor

Má consciência,
Bom acordo para o
Director de possível risco Boa consciência, Perda de um bom
negócio, potencial
Produção para a reputação menos risco acordo
bónus pessoal
da companhia

Perda de um bom
Comerciante acordo, procura
Bom acordo
tailandês de um novo cliente
na Europa

Assegurar o Perspectivas Procura de outras


Pais rendimento limitadas para fontes de
familiar as crianças rendimentos

Sensação de serem Não há trabalho Potencialmente


Trabalho duro,
precisas, de duro, tempo para forçadas a fazer
Crianças sem hipóteses de
serem “crescidas”, brincar e ir outro trabalho
educação escolar
aprovação dos pais à escola mais doloroso

A família é capaz Perda de apoio


Avó
de sustentá­‑la económico

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Este exemplo mostra já algumas das questões mais complicadas da filosofia


utilitária. Os maiores problemas com o utilitarismo são:
• Subjectividade. Ao usar esta teoria tem­‑se claramente de pensar cria-
tivamente e avaliar consequências como prazer ou dor pode depender
severamente da perspectiva subjectiva da pessoa que realiza a análise.
• Problemas de quantificação. Similarmente, é muito difícil atribuir custos
e benefícios a cada situação. Pode ser bastante fácil, neste exemplo, para
as pessoas directamente envolvidas na transacção, mas é certamente difí-
cil fazê­‑lo para as crianças envolvidas, já que os seus prazeres e dores não
são quantificáveis. Especialmente nestes casos pode ser bastante difícil pesar
prazer contra dor: perder um bom contrato é realmente comparável a forçar
crianças a trabalhar? Da mesma forma, dentro do utilitarismo as questões de
saúde e segurança na empresa requerem que “valores” como vida e saúde
sejam quantificados e calculados, sem a possibilidade de reconhecer que
podem ter um valor intrínseco para além do cálculo.
• Distribuição de utilidade. Finalmente, parece que avaliando o maior bene-
fício para o maior número, os interesses das minorias são negligenciados.
No nosso exemplo, uma minoria de crianças pode sofrer para que a maioria
possa beneficiar de uma maior utilidade.

É claro que os utilitaristas estiveram sempre atentos aos limites da sua teoria.
O problema da subjectividade, por exemplo, conduziu a um refinamento da teo-
ria, diferenciando entre o que tem sido definido como “acção utilitarista” versus
“regra utilitarista”.
A acção utilitarista olha para acções únicas e baseia o julgamento moral na
quantidade de prazer e quantidade de dor que estas acções únicas causam.
A regra utilitarista olha para classes de acção e pergunta se os princípios sub-
jacentes de uma acção produzem a longo prazo mais prazer do que dor para a
sociedade.
A nossa análise utilitária do “Dilema Ético” usou o princípio da acção utilitaris-
ta, perguntando se nessa situação única, em particular, o prazer colectivo excedia
a dor infligida. Dadas as circunstâncias específicas do caso, isto pode resultar na
conclusão de que está moralmente certo, porque a dor das crianças é considera-
velmente pequena, dado o facto, por exemplo, de que elas podem ter de trabalhar
de qualquer forma ou de que a educação escolar pode não estar disponível para
elas. Da perspectiva da regra utilitarista, contudo, poder­‑se­‑ia perguntar se o tra-
balho infantil em princípio produz mais prazer do que dor. Aqui, o julgamento pode
ser consideravelmente diferente, dado não ser difícil argumentar que as dores
do trabalho infantil excedem os seus benefícios (principalmente) económicos.

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PARTE III

A regra utilitarista alivia­‑nos assim de investigar o certo e o errado de cada situa-


ção única e oferece­‑nos a possibilidade de estabelecer certos princípios que
podemos aplicar a todas as situações.

Teorias não­‑consequencialistas

Olharemos aqui para os dois tipos principais de teorias éticas não‑consequen-


cialistas, tradicionalmente aplicadas à ética de negócio:
• Ética do dever.
• Ética dos direitos e justiça.

Estas duas abordagens são muito similares, com origem em assunções acerca
dos princípios básicos universais de certo e errado. Todavia, enquanto as teorias
baseadas em direitos tendem a começar pela atribuição de um direito a uma
parte e depois advogar um dever correspondente da outra parte para proteger
aquele direito, a ética dos deveres começa com a atribuição do dever de agir de
uma determinada forma.

Ética do dever

A mudança de acção para regra no utilitarismo é um bom ponto inicial para


discutir a ética dos deveres. O seu maior contribuinte, o filósofo alemão Imma-
nuel Kant (1724­‑1804), pensava que a moralidade e a decisão sobre acção certa
e errada não dependia de uma situação específica, para não mencionar as con-
sequências da acção. Para Kant, a moralidade era uma questão de determinados
princípios eternos, abstractos e inalteráveis – um conjunto de leis morais a priori
– que os humanos deviam aplicar a todos os problemas éticos. Como pensador­
‑chave do Iluminismo, Kant estava convencido que os seres humanos não preci-
sam de Deus, da Igreja, ou de qualquer outra autoridade superior para identificar
os princípios do comportamento ético. Ele via os humanos como actores racio-
nais que podiam decidir estes princípios por si próprios. Consequentemente,
os humanos podiam portanto ser também considerados como actores morais
independentes que tomam as suas próprias decisões racionais sobre o certo e o
errado.
Kant desenvolveu subsequentemente uma estrutura teórica por meio da
qual estes princípios podiam ser deduzidos, chamada o “imperativo categóri-
co”. Com isto ele queria dizer que esta estrutura teórica devia ser aplicada a

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todas as questões morais, independentemente de quem esteja envolvido, quem


beneficia e quem é prejudicado pelos princípios, uma vez aplicados em situações
específicas.
O imperativo categórico consiste em três partes, que Kant apresenta como se
segue (DeGeorge, 1999):
• Máxima 1: Agir somente de acordo com aquela máxima que se pode desejar
se torne uma Lei Universal.
• Máxima 2: Agir de forma a tratar a Humanidade, seja a sua própria pessoa ou
a pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como apenas um meio.
• Máxima 3: Agir somente de forma que a decisão resultante das suas máxi-
mas possa ser vista ao mesmo tempo como uma Lei Universal.

De acordo com Kant, estas três máximas podem ser usadas como testes para
todas as acções possíveis, e uma acção deve ser considerada moralmente certa se
“sobreviver” aos três testes. Isto sugere que a moralidade é caracterizada por três
elementos importantes, cada um dos quais é testado por uma destas máximas.
A Máxima 1 verifica se a acção pode ser realizada por todos e reflecte o
aspecto da consistência, dado que uma acção só pode estar certa se todos pude-
rem seguir o mesmo princípio subjacente. Assim, por exemplo, o assassínio é
uma acção imoral porque se permitíssemos que toda a gente assassinasse não
haveria possibilidade de vida humana na Terra; mentir é imoral, porque se a toda
a gente fosse permitido mentir, toda a noção de “verdade” seria impossível e não
seria imaginável uma civilização humana organizada e estável.
A Máxima 2 foca o ponto de vista de Kant de que os humanos merecem
respeito como actores autónomos e racionais, e que esta dignidade humana
nunca deve ser ignorada. Todos usamos pessoas como meios, ao empregá­‑las
ou pagar­‑lhes para nos fornecerem bens ou serviços. Todavia, isto não significa
que as devamos tratar somente como meio de realização do que pretendemos,
esquecendo­‑nos das suas próprias necessidades e objectivos na vida e das suas
expectativas de fazerem as suas próprias escolhas.
A Máxima 3 examina cuidadosamente o elemento de Universalidade. Posso
chegar à conclusão que um certo princípio pode ser seguido consistentemente
por todos os seres humanos, podia também chegar à conclusão que seguir aquele
princípio respeita a dignidade humana e não “usa” as pessoas como um meio.
Mas depois Kant quis que nós verifiquemos se os princípios das nossas acções
seriam aceitáveis para todos os seres humanos. Este teste tenta, portanto, supe-
rar especificamente o risco de subjectividade inerente à análise utilitarista, dado
que ela nos pede para verificar se outros actores racionais também aprovariam
o nosso julgamento sobre uma certa situação. Em outros contextos este ponto

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PARTE III

tem sido referido como o Teste do New York Times (Treviño e Nelson, 2004:99) –
nomeadamente, se ficasse desconfortável caso as suas acções fossem reportadas
na imprensa, pode estar razoavelmente seguro que elas são de estatuto moral
duvidoso.
Se aplicarmos o “teste” moral de Kant ao “Dilema Ético”, obtemos as seguin-
tes percepções:
• De acordo com a Máxima 1, a primeira questão será perguntar se que-
remos que toda a gente aja de acordo com os princípios da nossa acção.
Obviamente, como Director de Produção já se sente desconfortável acerca
de aplicar o princípio da exploração do trabalho infantil num contexto do
terceiro mundo à sua própria família na Europa. Provavelmente, você não
gostaria que isto se tornasse uma Lei Universal, o que sugere que esta activi-
dade pode ser julgada imoral na base da inconsistência.
• Relativamente à Máxima 2, é questionável se as crianças decidiram trabalhar
livremente e com autonomia. Ao fazer uso do seu trabalho pode dizer­‑se que
você as trata em grande parte como mão­‑de­‑obra barata para os seus pró-
prios fins, em vez de as tratar como “fins em si próprios”, sugerindo que a
sua dignidade humana básica não está a ser totalmente reconhecida e res-
peitada.
• Olhando para a Máxima 3, questiona­‑se também se você gostaria que os seus
amigos e família soubessem da sua decisão. Por outras palavras, pareceria
bastante duvidoso que todos os seres humanos racionais chegassem univer-
salmente à mesma conclusão de que o trabalho infantil é um princípio que
devia ser seguido como um Princípio Geral.

A Teoria de Kant é bastante extensa e para o propósito deste livro não quere-
mos aprofundá­‑la para além destes três princípios básicos. Mas estes já podem
ser bastante proveitosos em situações práticas e têm tido uma considerável
influência no pensamento sobre ética de negócio. Por exemplo, na parte II dis-
cutimos o conceito de parceiro da empresa. Evan e Freeman (1993) argumentam
que a base ética deste conceito derivou substancialmente do pensamento Kan-
tiano. Consequentemente, a fim de tratar os empregados, comunidades locais ou
fornecedores não somente como um meio, mas também como elementos com
os seus objectivos e prioridades, Evan e Freeman sugerem que as empresas têm
um dever fundamental de conceder a estes parceiros algum grau de influência
na empresa. Com isto, eles estariam capacitados para agir como seres humanos
livres e autónomos, em vez de serem meramente factores de produção (empre-
gados) ou fontes de rendimento (consumidores), etc.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

? PENSAR TEORIA

A teoria da parceria tem sido também considerada a partir de outras perspec-


tivas teóricas. Como aplicar o utilitarismo, por exemplo, à teoria da parceria?
Pensa que as duas diferentes perspectivas sugerem diferentes obrigações em
relação aos parceiros?

Todavia, há também problemas com a ética do dever:


• Resultados sub­avaliados. Obviamente que um destes problemas é que há
muito pouca consideração pelos resultados das acções de cada um na ética
do dever. Embora Kant argumentasse que se pode considerar as consequên-
cias desde que se concorde que cada um deve, quando confrontado com
situações similares, isso não proporciona uma verdadeira forma de avaliar
estes resultados, e eles não constituem uma parte fundamental da teoria
em si. Os resultados podem ser incorporados, mas, uma vez mais, podem
não o ser.
• Complexidade. Segundo, enquanto que a ideia básica da ética do dever é bas-
tante simples – basicamente, esta acção está certa e é meu dever fazê­‑la –,
formulações específicas como o imperativo categórico de Kant podem ser bas-
tante complicadas de aplicar. A sua forma de avaliar uma decisão baseada em
princípios requer uma certa quantidade de abstracção e este nível de escrutí-
nio intelectual não se pode tomar por certo em cada um e em todos os casos.
• Optimismo. Além disso, a Teoria de Kant é bastante optimista, o seu ponto
de vista do Homem como um actor racional, que age, consequentemente, de
acordo com os deveres impostos a si próprio, parece mais um ideal do que
uma realidade no que respeita aos actores de negócio. Em contraste, a força
do egoísmo está em ser um conceito dos seres humanos, geralmente muito
bem confirmado pelo padrão convencional do comportamento de negócio.

Ética dos direitos e justiça

Na parte II, discutimos resumidamente a noção de cidadania, definida em ter-


mos de um conjunto de direitos individuais. Actualmente, esta noção de direitos
retorna a toda uma escola filosófica inicialmente ligada ao filósofo britânico John
Locke (1632­‑1714). Ele conceptualizou a noção de “direitos naturais”, ou reivindi-
cações morais, a que os humanos tinham direito e que deviam ser respeitados e

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PARTE III

protegidos (na altura, principalmente pelo Estado). Entre os direitos mais impor-
tantes concebidos por Locke, e os subsequentes teóricos dos direitos, estavam
direitos à vida, liberdade e propriedade. Estes foram alargados desde então para
incluir os direitos à liberdade de expressão, consciência, consentimento, privaci-
dade e o direito a um justo processo jurídico, entre outros.
Em termos de uma teoria ética, podemos definir direitos segundo as seguin-
tes linhas: Direitos Naturais são certos direitos básicos, importantes e inaliená‑
veis que devem ser respeitados e protegidos em todas as acções.
O significado geral da noção de direitos, em termos de uma teoria ética, está
no facto de que estes direitos tipicamente resultam no dever de outros actores os
respeitarem. Neste aspecto, os direitos são por vezes vistos como relacionados
com deveres, dado que os direitos de uma pessoa podem resultar num corres-
pondente dever de outras pessoas respeitarem, protegerem ou facilitarem esses
direitos. O meu direito à propriedade impõe um dever a outros de não interfe-
rirem com a minha propriedade ou me a tirarem. O meu direito à privacidade
impõe um dever a outros de se retraírem de recolher informação pessoal acerca
da minha vida privada sem o meu consentimento. Direitos e deveres são, por
isso, vistos frequentemente como dois lados da mesma moeda.
Esta ligação aos deveres correspondentes torna a teoria dos direitos similar à
abordagem de Kant. A diferença principal é que ela não confia num complexo pro-
cesso de determinar os direitos, aplicando o imperativo categórico. Em vez disso,
a noção de direitos é baseada numa certa reivindicação axiomática acerca da
natureza humana, que se apoia principalmente nas várias abordagens filosóficas
do Iluminismo, muitas vezes suportadas por determinados pontos de vista religio-
sos, como a abordagem do pensamento social católico. Os Direitos Naturais, ou
Direitos Humanos, como são principalmente referidos hoje em dia, baseiam­‑se
num certo consenso de todos os seres humanos acerca da natureza da dignidade
humana.
Apesar da ausência de uma dedução teórica complicada – ou possivelmente
por causa do seu ponto de vista simples e plausível – a abordagem dos direitos
tem sido muito poderosa ao longo da História e moldou substancialmente as
constituições de muitos Estados modernos. Isto inclui a Declaração dos Direitos
do Homem que teve influência no período da Revolução Francesa (1789), e da
Constituição Americana, que se baseia grandemente em noções de direitos. Estas
ideias conduziram também à Declaração dos Direitos Humanos das Nações Uni-
das, emitida em 1948, que tem sido um padrão poderoso para fazer cumprir os
vários direitos em todo o mundo. A mais recente manifestação deste pensamento
é a Carta dos Direitos Humanos Fundamentais para a União Europeia, acordada
como parte do Tratado de Nice em 2000. Com base na ideia original dos Direitos
Naturais, estes direitos foram decompostos por muitas áreas diferentes da vida

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

social, política e económica, conduzindo aos vários direitos civis, sociais e políti-
cos que definem a noção de cidadania moderna (liberal).
Actualmente, os Direitos Humanos básicos incluem o Direito à Vida, Liber-
dade, Justiça, Educação, Julgamento Justo, Salário Justo, Liberdade Religiosa,
Associação e Expressão, para nomear apenas alguns. São estes antecedentes que
fazem da noção de Direitos Humanos uma das mais comuns e importantes abor-
dagens teóricas à ética de negócio a nível prático. As empresas, especialmente as
multinacionais, são julgadas cada vez mais pelas suas atitudes face aos Direitos
Humanos e pela forma como os respeitam e protegem.
O Centro de Pesquisa de Direitos Humanos e de Negócio, por exemplo, esta-
beleceu que em 200657 cerca de 100 companhias tinham políticas publicadas
sobre Direitos Humanos – das quais alguns exemplos são dados na Tabela 8.

Tabela 8 – Declarações dos Direitos Humanos de Multinacionais.

Empresa Declaração dos Direitos Humanos Fonte

Visamos assegurar que os Direitos Humanos e Civis, como


estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, sejam respeitados durante as nossas actividades
de negócio. Estabeleceremos uma estrutura baseada “Carta de negócio”:
Body Shop nesta Declaração, que inclui critérios dos direitos dos www.thebodyshop.
trabalhadores compreendendo um ambiente de trabalho com
saudável e seguro, salários justos, não discriminação
com base em raça, credo, género ou orientação sexual,
ou coerção física de qualquer tipo.

Procuramos promover e proteger os direitos definidos na


“Política sobre
Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações
Cidadania
Novartis Unidas, dentro da nossa esfera de influência. Não
Empresarial 2003”:
toleramos abusos dos Direitos do Homem nas nossas
www.novartis.com
operações de negócio.

A Philips apoia e respeita os Direitos Humanos e esforça­‑se “Princípios Gerais


Philips por assegurar que as suas actividades não encubram de Negócio”:
infracções dos Direitos Humanos. www.philips.com

Respeitamos a Declaração Universal dos Direitos do Homem


das Nações Unidas e reconhecemos a nossa responsabilidade “Código de Conduta
Skanska pela observação dos direitos que se aplicam à nossa da Skanska”:
performance relativamente aos nossos empregados e às www.skanska.com
comunidades onde trabalhamos e vivemos.

As empresas do Grupo Toshiba aceitarão os diferentes “Padrões de


valores dos indivíduos e respeitarão as diferenças de Conduta do Grupo
Toshiba
carácter e personalidade, com base num respeito Toshiba”:
fundamental pelos Direitos Humanos. www.toshiba.com

57 www.business­‑humanrights.org

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PARTE III

A Ética em Acção – 1
Rio Tinto e as reclamações aborígenes sobre terras de mineração na Austrália

A Multinacional Britânica Rio Tinto não é provavelmente a mais bem conhe-


cida pelos seus produtos. No entanto, são provavelmente poucas as pessoas que
no mundo industrializado não usam, indirectamente, um dos seus produtos, quase
todos os dias. Isto deve­‑se a ser a Rio Tinto a maior companhia mineira mundial,
extraindo uma vasta gama de recursos naturais, incluindo alumínio, bauxite,
cobre, diamantes e urânio. Qualquer pessoa que tenha usado um carro ou uma
casa de banho, usou provavelmente uma matéria­‑prima extraída pela Rio Tinto.
Não obstante, entre os veteranos, o grupo é provavelmente uma das multina-
cionais mais conhecida, dado que se pode argumentar que se encontra entre as
companhias com o maior registo de protestos sobre as questões ambientais e de
Direitos Humanos.
Embora a empresa tenha aparecido nos títulos dos media em várias partes
do mundo, os conflitos recentes focaram os seus trabalhos na Austrália do Norte
e Ocidental. Estas regiões são extremamente ricas em recursos e a Rio Tinto (e
as suas subsidiárias) é uma das principais companhias de extracção de minério
na área. A seguir à questão ambiental – algumas minas estão até localizadas em
parques nacionais – a questão-chave tem sido o papel dos habitantes originais da
Austrália, os aborígenes.
Há 250 anos, antes de os colonos Europeus terem chegado à Austrália, os
aborígenes viviam nestes territórios, a maioria das vezes com um estilo de vida
nómada. A sua relação com estas terras não era então muito caracterizada por
aquilo a que podemos chamar “direitos de propriedade”, que atribuem determi-
nados territórios a certas tribos ou famílias. Os aborígenes não se vêem a si pró-
prios e às terras como entidades separadas (como na tradição ocidental), antes
vêem o Homem e a Natureza como intimamente ligados. A relação principal des-
tas comunidades com a “sua” terra é pela via do “sonho” dos lugares sagrados,
que são elementos fundamentais das crenças e rituais aborígenes. Alguns deles
abandonam as casas onde morreram as pessoas, voltando a elas apenas quando
os espíritos desapareceram.
Muitos dos locais onde a Rio Tinto tem extraído minerais, ou tem intenção
disso, durante as duas últimas décadas, “pertenceram” aos aborígenes. A Lei
Australiana, baseada na ficção jurídica do “Princípio de terra nullus” torna esta
abordagem relativamente fácil para a companhia. Este princípio assume basica-
mente que a Austrália era “terra de ninguém” quando os colonos brancos chega-
ram e, por conseguinte, privou grandemente o povo aborígene de Direitos Civis.
Embora os primeiros invasores brancos da Austrália estivessem convencidos que
o continente não era habitado, o seu ponto de vista foi que os aborígenes não

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

podiam reclamar a terra dado que não viviam em habitações fixas – conotadas
com propriedade – e um relacionamento de posse que era familiar à perspectiva
ocidental.
Embora este princípio fosse derrubado em 1992 por decisão do Supremo Tri-
bunal, isso não resolveu o problema. Mesmo quando oferecidas compensações
generosas, os conselhos aborígenes recusaram muitos dos acordos apresentados.
A questão central para eles era que “nós não temos nada contra a extracção
mineira, mas temos de proteger os nossos lugares sagrados”, conforme afirmou o
membro de uma tribo. “A nossa Lei aborígene diz­‑nos isso, é uma Lei com milha-
res de anos. A Lei do homem branco na Austrália tem apenas 250 anos.”
Ao longo do tempo, a Rio Tinto tem feito esforços consideráveis para lidar
com o problema dos direitos sobre a terra na Austrália. Relativamente a um
novo projecto no Norte da Austrália, o Presidente da Companhia apresentou na
Cimeira de 2002, em Joanesburgo, a orientação clara da companhia sobre a
questão: “Nós não queremos desenvolver o assunto sem o seu (aborígene) consen-
timento. Ponto Final”. Todavia, não obstante estas vitórias para o povo aborígene,
mantêm­‑se os problemas de direitos de propriedade. Por exemplo, alguns dias
antes de ter feito a declaração acima, a Rio Tinto ganhou uma causa no Supremo
Tribunal Australiano que deitou completamente por terra as queixas do povo
de Miriuwung­‑Gajoerrong sobre as operações mineiras de outra companhia no
remoto Noroeste. Embora concedendo direitos sobre a terra, o Tribunal declarou
que “não há título de direito nativo sobre minérios ou petróleo” extraídos daquela
terra. Como resultado, a Rio Tinto não teve de partilhar um único cêntimo do seu
lucro anual de 1,7 biliões de libras (€ 2.5 biliões) com a tribo de cuja terra extrai
os seus valiosos recursos.

? PENSAR TEORIA

Que direitos estão em conflito neste caso? Quais são as implicações para
uma teoria ética baseada nos Direitos e na Justiça? Sugeriria outras aborda-
gens para resolver este conflito satisfatoriamente?

As teorias éticas baseadas em direitos são muito fortes, dada a sua ampla-
mente reconhecida base de Direitos Humanos Fundamentais. Contudo, a base
teórica tem mais a ver com plausibilidade do que com uma profunda metodolo-
gia teórica. Além disso, talvez que a mais substancial limitação desta abordagem
seja que as noções de direitos estão fortemente ancoradas num ponto de vista
ocidental de moralidade. Pode ocorrer muita fricção se estas ideias forem directa-
mente transferidas, se não impostas, em comunidades com um diferente legado

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PARTE III

cultural e religioso. A “Ética em Acção” ilustra isto, com referência ao problema


dos “direitos sobre a terra” dos aborígenes no contexto da companhia mineira
multinacional Rio Tinto.

O problema da justiça

A abordagem dos Direitos Humanos em relação à ética tem uma relação parti-
cular com as decisões económicas e de negócio. Sempre que duas partes entram
numa transacção económica tem de haver acordo entre as partes sobre uma
distribuição equitativa de custos e benefícios. É para isto que servem os contra-
tos ou, mais comummente, isto é realizado por meio do mercado. Problemas de
distribuição, todavia, não ocorrem apenas nas transacções, mas também em mais
larga escala:
• Como deve uma empresa pagar aos seus accionistas, executivos, pessoal
administrativo e operários de forma que todos obtenham uma compensa-
ção satisfatória pela sua contribuição para a empresa?
• Como deve uma empresa tomar em consideração as necessidades das comu-
nidades locais, empregados e accionistas ao planear um investimento com
grande impacto sobre o ambiente?
• Como deve um Governo alocar dinheiro para educação, de forma que cada
sector da sociedade tenha uma possibilidade equitativa de uma boa edu-
cação?

Podíamos facilmente multiplicar estes exemplos, mas o que se torna claro


é que os direitos individuais têm de ser realizados num determinado contexto
social, de tal modo que sejam tratados e respeitados de forma igual e equitativa.
É aqui que aparece a questão da justiça.
A justiça pode ser definida como o tratamento justo e em simultâneo dos
indivíduos numa determinada situação, com o resultado de que todos obtêm o
que merecem.
O aspecto moral crucial aqui, porém, é a questão do que significa exactamente
“equidade” numa dada situação e por que padrões podemos decidir o que mere-
ce uma pessoa. De acordo com Beauchamp e Bowie (1997), as Teorias da Justiça
tipicamente vêem a equidade em dois modos principais:
• Procedimentos equitativos. A equidade determina­‑se consoante cada um
for livre de adquirir recompensa pelo seu esforço. Isto é geralmente referido
como Justiça Processual.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• Resultados equitativos. A equidade determina­‑se consoante as consequên-


cias (positivas e negativas) são distribuídas de uma forma justa, de acordo
com alguns princípios subjacentes como necessidade ou mérito. Isto é geral-
mente referido como Justiça Distributiva.

Muitos pontos de vista sobre justiça procuram idealmente realizar ambos


os tipos de equidade, mas nem sempre isto é possível. Considere­‑se o caso do
acesso ao Ensino Superior. Digamos que foi descoberto que certos grupos étnicos
estavam pouco representados nos programas de grau universitário. Dado que
esta etnicidade não está co­‑relacionada com inteligência nata, podemos procurar
resolver este problema reservando um certo número de lugares para os grupos
pouco representados, para assegurar que as recompensas educacionais foram
distribuídas satisfatoriamente pelos diferentes sectores da sociedade. Todavia,
isto imporia um procedimento potencialmente injusto nas admissões à Univer-
sidade, visto que os grupos “muito representados” seriam excluídos de concor-
rerem aos lugares reservados. Este debate acendeu­‑se recentemente na Índia,
face a planos para alargar o sistema de quotas do país, reservando lugares para
as castas inferiores Hindus nas instituições académicas financiadas pelo Governo.
O anúncio dos planos conduziu a enormes manifestações de rua por estudantes
zangados em algumas das instituições mais elitistas do país, e até médicos dos
principais hospitais fizeram greve numa demonstração de solidariedade (Majum-
der, 2006).
As noções de justiça têm sido largamente aplicadas em problemas de ética de
negócio, notavelmente em relação às práticas de emprego e à questão da discri-
minação. A justiça tem também sido uma característica chave dos debates sobre
globalização e sustentabilidade. Aqui, a maior preocupação tem a ver com ques-
tões de justiça social e económica – temas que desde há muito têm impregnado o
raciocínio sobre ética dos sistemas económicos.
Este problema de uma justa distribuição de riqueza nas e entre as socieda-
des tem sido tratado de inúmeras formas, embora historicamente as respostas
tenham tendido a cair algures entre duas posições extremas: igualitarismo e não­
‑igualitarismo.
A abordagem igualitária alega que justiça é o mesmo que igualdade – respon-
sabilidades e compensações devem ser distribuídas igualmente e os desvios da
igualdade são injustos (Beauchamp e Bowie, 1997). A revelação de que 358 bilio-
nários têm tanta riqueza como 45% da população mais pobre de todo o mundo
(McIntosh et al., 1998:15) seria claramente vista como injusta por um igualitaris-
ta. O exemplo mais comum de uma posição igualitarista, ao desenhar um sistema
económico justo, pode ser visto na obra de Karl Marx (Wray­‑Bliss e Parker, 1998).
Vivendo durante a Revolução Industrial do século XIX na Grã­‑Bretanha e Alemanha,

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PARTE III

Marx identificou a exploração da “classe trabalhadora” num processo de produ-


ção que dá excesso de riqueza aos proprietários dos meios de produção (“os capi-
talistas”). Como derradeira solução para este problema, o pensamento Marxista
sugere que uma sociedade justa seria aquela em que as classes trabalhadoras
fossem elas próprias colectivamente proprietárias dos meios de produção, sendo
assim os beneficiários imediatos dos resultados económicos do seu trabalho no
processo de produção. Contudo, com o colapso do Bloco de Leste e a abertura
da China às reformas do mercado no fim do século XX, o pensamento Marxista,
pelo menos nas suas manifestações no mundo real, perdeu algo da sua força.
Entretanto, recentemente as ideias de Marx foram revigoradas no contexto da
globalização, em que as relações entre, por exemplo, consumidores e trabalha-
dores em todo o Sul e a aliança de países do Ocidente reflectem de perto a sua
análise inicial da opressão das classes trabalhadoras pelo capitalismo (Jones et
al., 2005:96­‑111).
Porém, as abordagens igualitárias têm problemas pelo facto de haver dife-
renças entre as pessoas. Por exemplo, deve alguém que trabalha arduamente
ganhar o mesmo que uma pessoa preguiçosa? Todas as capacidades merecem
verdadeiramente o mesmo? As abordagens igualitárias tendem também a
ser ineficientes, visto que não há incentivos para inovação e maior eficiência,
dado que, de qualquer forma, todos são compensados igualmente. Além disso,
podem conduzir a restrições da liberdade individual, visto que a liberdade de
se dedicar a transacções económicas, por exemplo, pode conduzir novamente à
desigualdade entre os actores envolvidos, como claramente o demonstra o siste-
ma de mercado livre.
A abordagem não­‑igualitária, na outra ponta do espectro, afirma que a justiça
nos sistemas económicos é em última análise um produto do processo equitativo
de mercado livre. Actores com determinadas necessidades encontrarão actores
que possam satisfazer as mesmas e, se concordarem com uma transacção, a
justiça é determinada pelas forças da oferta e procura do mercado. Nesta linha,
um dos pensadores mais influentes em ética de negócio é Robert Nozick (1974),
que argumenta que uma distribuição da riqueza pela sociedade é justa desde que
tenha sido realizada por transferências justas e aquisições originais justas. Por
exemplo, a riqueza pessoal de Bill Gates, que é o indivíduo mais rico do planeta,
seria perfeitamente justificável se a forma como ele inicialmente constituiu a
Microsoft fosse sem fraude ou coerção e todas as outras transacções de negócios
subsequentes tivessem obedecido aos mesmos padrões. A Teoria de Nozick é
muitas vezes alcunhada de “Teoria do Direito”, dado considerar a distribuição da
riqueza moralmente aceitável na medida em que “cada um tem direito aos bens
que possui” (Nozick, citado em Boatright, 2003:93).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Conforme discutido, esta abordagem do mercado livre foi popular nas últimas
duas décadas. Contudo, tem também sido argumentado que conduziu a uma
considerável desigualdade. A noção de mercado pressupõe participantes em pé
de igualdade no mercado, a fim de produzir um sistema justo. Mas na medida
em que as pessoas diferem em rendimento, capacidade, saúde, estatuto social
e económico, etc., os mercados podem conduzir a resultados que algumas delas
deixariam de considerar como equitativos. Num nível global, isto tornou­‑se visível
quando os países pobres subdesenvolvidos tentaram competir com países alta-
mente industrializados: é como se na Fórmula Um, uma bicicleta arrancasse ao
lado de um Ferrari, mesmo com as regras mais equitativas, o condutor da bicicleta
estaria condenado a perder.
Obviamente, as duas respostas extremas à questão sobre o que significa exac-
tamente justiça num contexto económico são insatisfatórias. A resposta pode
bem estar no meio. Uma abordagem muito popular a este problema foi proposta
pelo americano John Rawls (1971). Na sua Teoria da Justiça ele sugere dois crité-
rios, dois “testes”, para decidir se uma acção pode ser chamada justa. De acordo
com Rawls, a justiça é alcançada quando:
1. Cada pessoa tem um direito igual ao mais amplo sistema total de liberda-
des básicas, compatível com um sistema parecido de liberdade para todos.
2. As desigualdades sociais e económicas devem ser acordadas de forma que
sejam:
a) para o maior benefício dos menos favorecidos;
b) ligadas a ofícios e posições abertas a todos, em condições equitativas de
igualdade de oportunidades.

O Primeiro Princípio é o mais importante: antes de permitir quaisquer desi-


gualdades devemos assegurar que as liberdades básicas são realizadas no mesmo
grau para todos os afectados pela decisão. A primeira condição olha assim para
os Direitos Humanos Gerais e exige o seu cumprimento antes de prosseguirmos
para o passo seguinte.
O Segundo Princípio é baseado na assunção de que as desigualdades são ine-
vitáveis numa sociedade livre e competitiva. Todavia, devem ser satisfeitas duas
condições. Primeiro, um acordo é justo quando até aquele que menos beneficia
ainda fica em melhor situação do que estaria sem ele. Isto, por exemplo, sugere
que os altos salários dos dirigentes da empresa possam ser aceitáveis desde que
os empregados na base da hierarquia da empresa fiquem também em melhor
situação – digamos, porque o elevado salário do dirigente conduziu a uma melhor
performance da empresa, que por sua vez pôde ser convertida em maiores
salários para os que ganham menos. A segunda condição, seguindo novamente

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PARTE III

este exemplo, será satisfeita se a ascensão na hierarquia da empresa não estiver


apenas ao alcance de alguns privilegiados, mas cada um tiver uma oportunidade
equitativa, independentemente do género, raça, aparência, etc.
Há com certeza mais considerações, condições e elementos em relação à Teo-
ria de Rawls, que não abordaremos aqui. Contudo, até nesta forma simplificada,
podemos aplicar com vantagem algumas das suas conclusões básicas a diversas
situações de negócio, a fim de determinar o “justo” tratamento dos parceiros.
Se olharmos para o nosso exemplo no “Dilema Ético”, o Primeiro Princípio
seria perguntar se todas as pessoas envolvidas (incluindo o Director de Produção)
possuíam a mesma liberdade básica. Aparte as diferenças culturais entre a Euro-
pa e a Tailândia, este não é certamente o caso em relação às crianças, já que não
lhes é permitida sequer uma educação básica. O Segundo Princípio pode concebi-
velmente permitir uma abordagem mais tolerante ao trabalho infantil: o primeiro
critério de desigualdade seria perguntar se as crianças, com o acordo, ficariam
em pior ou melhor situação. Aqui, pode­‑se argumentar razoavelmente que as
crianças são muitas vezes forçadas nos países em desenvolvimento a coisas pio-
res que montar brinquedos de plástico. Prostituição, mendicidade e roubo podem
ser outras alternativas, sugerindo que as crianças estariam em melhor situação
se se concluísse o acordo. Porém, se concluir o acordo significava que as crianças
faltariam à escola, e que de outro modo isso não aconteceria, definitivamente o
acordo não beneficiaria os que estão em menos boa situação. O Segundo Princí-
pio, contudo, coloca ainda mais um problema, dado que sem acesso à educação
as crianças não têm uma possibilidade realista de conseguirem posição, que as
partes melhor posicionadas têm. Portanto, elas não estão definitivamente “em
condições equitativas de igualdade de oportunidade”.
Se levarmos o nosso ponto de vista um pouco mais além, a concepção de
Rawls sobre justiça pode actualmente ser usada para justificar a exploração pelas
multinacionais dos baixos salários e más condições nos países menos desenvolvi-
dos – pelo menos em certas condições. Por exemplo, alguns países aliados toma-
ram ao seu cuidado suprir a falta de educação escolar e de cuidados de saúde em
localidades fabris menos desenvolvidas. Com isto, os países aliados têm ainda a
vantagem dos salários mais baixos nestes países, mas providenciando um “sis-
tema de liberdades básico compatível com um sistema equivalente de liberdade
para todos” e criando “condições de igualdade e oportunidades equitativas (pelo
menos a um nível local), pode­‑se argumentar que as desigualdades resultantes
são ainda ‘para o maior benefício dos menos favorecidos’”. Além do mais, sem
a fábrica a população local enfrentaria, provavelmente, maior pobreza e menos
oportunidades de desenvolvimento do que com ela.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

? PENSAR TEORIA

No contexto da conceptualização alargada da cidadania empresarial, discuti-


mos o papel das companhias no fornecimento de água em muitos países do
mundo inteiro (ver novamente “Ética em Acção”). Na perspectiva da Teoria
da Justiça de John Rawls, pode imaginar uma situação na qual o envolvimen-
to das empresas privadas na provisão de serviços públicos (como o forneci-
mento de água) poderia ser considerado como moralmente justo?

Limites das teorias tradicionais

Se olharmos para trás, para estas principais teorias éticas tradicionais, pode-
mos argumentar que apresentam um ponto de vista bastante abrangente dos
seres humanos e da sociedade e, com base em várias assunções, usam princípios
contestáveis para responder a questões éticas. Ao apresentar esse “modelo”
fechado do mundo, estas teorias têm a vantagem substancial de trazerem uma
solução para cada situação possível. Elas têm, porém, a grande desvantagem de
os seus pontos de vista acerca do mundo apresentarem apenas um aspecto da
vida humana, enquanto a realidade tende normalmente a ser mais complexa do
que o ponto de vista simplificado destas teorias éticas.
Em discussões anteriores, resumimos alguns dos principais benefícios e des-
vantagens de cada uma destas principais teorias éticas. Todavia, a abordagem de
todas as teorias tradicionais está aberta a críticas.

A Ética no Ecrã
Pão e Rosas (Bread and Roses)

“Um filme atractivo, agradável e provocativo acerca das injustiças humanas


de raça, sexo e classe acumuladas no novo século XXI. É um filme com sangue
rubro nas suas veias.” (Peter Bradshaw, The Guardian).
Pão e Rosas, nomeado para a Palma d’Ouro depois da sua apresentação no
Festival Cinematográfico de Cannes em 2000, é uma obra dramática do realizador
inglês, Ken Loach, passada entre a crescente classe desfavorecida de imigrantes
ilegais de origem Hispânica, em Los Angeles. Foi a primeira vez que Loach, que
tem realizado alguns filmes igualmente críticos como The Navigators ou Ae Fond
Kiss trabalhou em Hollywood – mas o filme não retrata a usual parafernália de

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PARTE III

um cenário de Los Angeles. Em vez de elegantes mansões no frondoso Beverly


Hills, belezas bronzeadas e melhoradas pelo silicone, ou selvagens perseguições
de carros da polícia nas oito pistas das auto­‑estradas, o filme expõe­‑nos à fria e
brutal realidade daqueles cujo trabalho e exploração o glamoroso mundo empre-
sarial da baixa de Los Angeles dificilmente seria imaginável.
O filme começa com a personagem principal, Maya (Pilar Padilla), uma jovem
mulher de rápida compreensão e apaixonada, a ser ilegalmente traficada pela fron-
teira do México para os Estados Unidos e a chegar a casa da sua irmã em Los Ange-
les. A sua irmã consegue um emprego para Maya como porteira numa empresa de
limpezas na baixa de Los Angeles. Pouco depois ela encontra Sam Shapiro (Adrien
Brody), um americano branco, activista, sindicalista e militante do movimento
“justiça para os porteiros”. Baseado na vida real, na campanha Justiça para os Por-
teiros da União Internacional dos Empregados de Serviços (UIES), em 1990, a qual
foi brutalmente interrompida pela polícia armada, o filme segue os militantes e os
trabalhadores na sua luta por melhor salário e condições de trabalho.
O que torna Pão e Rosas atractivo é que, não obstante o seu pano de fundo
bastante seco e, em algumas partes, sombrio, o filme inclui muitas cenas engra-
çadas, integra de forma credível o caso amoroso entre Maya e Sam, e oferece­‑nos
um intrigante cortejo de diferentes personagens, histórias reais e experiências. O
filme revela o quanto a economia americana (e muitas economias ocidentais em
relação àquele aspecto) depende do influxo de imigrantes ilegais que, procurando
sobreviver, aceitam qualquer emprego por qualquer salário, incluindo a explora-
ção económica, sexual e emocional que ele impõe.
O título do filme alude à famosa greve de 1912, em Massachusetts, dos ope-
rários da indústria têxtil que brandia o slogan “Pão e Rosas”, baseado no Poema
de James Oppenheim com o mesmo título. A campanha dos trabalhadores no
filme não é exactamente por “pão”, mas por um salário justo numa indústria
que em 1999 pagava apenas $5,75 por hora a um porteiro, em comparação com
$8,50, apenas alguns anos antes. A campanha luta também pelas “rosas”: seguro
de saúde, pagamento por doença, horas extraordinárias e outros benefícios há
muito não pagos a trabalhadores que, no terror de serem detectados como imi-
grantes ilegais e reenviados para o México, estavam dispostos a aquiescer em
quaisquer circunstâncias.
As questões éticas predominantes que o filme aborda desenvolvem­‑se à volta
das noções de dignidade humana e justiça económica. Mostra quanto as diferen-
tes personagens reagem diferentemente às realidades económicas enfrentadas
pela comunidade dos imigrantes ilegais – desde embarcar no sonho americano
até à aquiescência e sofrimento em silêncio, e até enfrentar corajosamente a
injustiça e opressão. A justiça para os trabalhadores, recorda­‑nos o filme, é tão
relevante hoje como era há cem anos – e é exactamente tão importante em Los

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Angeles como no longínquo Leste, onde a situação difícil das fábricas de trabalho
suado tem sido tão notavelmente realçada em anos recentes.

Sendo em grande parte teorias absolutistas baseadas na razão objectiva,


podem ser identificadas algumas desvantagens na abordagem de problemas de
ética de negócio através de teorias deste tipo.
As principais críticas às teorias éticas tradicionais são:
• Demasiado abstractas. Stark (1994) sugere que as teorias éticas tradicionais
são demasiado teóricas e impraticáveis para as preocupações pragmáticas
dos gestores no dia­‑a­‑dia. Na vida real é improvável que os gestores apli-
quem princípios abstractos provenientes de filósofos há muito mortos, ao
lidar com problemas concretos de negócio. O contexto de negócio tem os
seus próprios valores, estruturas e práticas, que têm de ser levados em conta
(Furman, 1990).
• Demasiado reducionistas. Kaler (1999) argumenta que cada teoria tende a
centrar­‑se num aspecto de moralidade, à custa de todo o resto da morali-
dade. Porquê escolher consequências, deveres ou direitos quando todos são
importantes?
• Demasiado objectivas e elitistas. Parker (1998) sugere que as teorias éticas
tentam ocupar terreno rarefeito, de forma que os eticistas e filósofos espe-
cialistas, que sabem e entendem as teorias, se possam pronunciar sobre o
certo e o errado de outras pessoas, sem qualquer experiência subjectiva da
situação com que são confrontados. Só porque Crane e Matten conhecem a
diferença entre utilitarismo e justiça, deve isso significar que podemos deci-
dir por si se um Director de Produção na Tailândia está a fazer a coisa exacta?
• Demasiado impessoais. Ao focarem princípios abstractos, as teorias éticas
tradicionais não tomam em conta os vínculos e relacionamentos pessoais
que moldam os nossos pensamentos e sentimentos acerca do certo e errado
(Gilligan, 1982).
• Demasiado racionais e codificadas. As teorias éticas tentam e destilam o
certo e o errado para regras racionais codificadas de comportamento. Bau-
man (1993) argumenta que isto suprime a nossa autonomia moral e denigre
a importância dos nossos sentimentos e emoções morais, os quais ele reivin-
dica serem cruciais para actuar de forma moral perante os outros.

Há então, claramente, certos problemas associados às teorias tradicionais


(Jones et al., 2005). A ênfase de muitos destes tem origem na abordagem mais
absolutista à teoria ética. Como resultado, têm­‑se verificado algumas tentativas

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PARTE III

mais recentes para desenvolver ou ressuscitar teorias éticas que enfatizem uma
maior flexibilidade, bem como incluir os que tomam decisões, o seu contexto e
as suas relações com os outros, em oposição a princípios universais meramente
abstractos. Embora estas estejam também abertas a críticas, ajudam a enriquecer
a escolha de perspectivas que podemos tomar em questões de ética de negócio.
A “Ética no Ecrã” exemplifica algumas das questões discutidas até agora,
contrapondo em particular noções de utilitarismo com questões de dignidade
humana e justiça económica. Todavia, ao avaliar o filme Pão e Rosas a partir da
perspectiva destas teorias éticas tradicionais, pode­‑se constatar que esta aborda-
gem excessivamente racional apenas capta e conceptualiza parcialmente a nossa
percepção moral e juízos éticos da situação dos imigrantes ilegais explorados
pelas indústrias de serviços do Ocidente.

TEORIAS ÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

As teorias éticas contemporâneas são aquelas que ou foram desenvolvidas ou


às quais foi dada proeminência na área da ética de negócio ao longo da década
passada. Como tal, aparecem geralmente muito pouco nos textos sobre ética de
negócio, mesmo assim sugerimos que elas oferecem uma perspectiva de alterna-
tiva importante que não deve ser ignorada e a qual, suspeitamos, pode tornar­‑se
de forma crescente mais influente na literatura sobre ética de negócio. Vamos
olhar para as quatro principais teorias éticas contemporâneas:
• Ética da virtude.
• Ética feminista.
• Ética do discurso.
• Ética pós­‑moderna.

Ética da virtude

Até agora debruçámo­‑nos principalmente sobre o certo e o errado de acordo


com a ética de acções específicas. Contudo, tem sido prestada muita atenção em
anos recentes a abordagens que partem de uma perspectiva diferente: mais do
que verificar cada acção única de acordo com os seus resultados, ou princípios
subjacentes, estas abordagens olham para o carácter do tomador de decisão
(Nielsen, 2006). Essas abordagens têm sido actualmente desenhadas a partir de

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

uma das primeiras teorias éticas, a ética da virtude, para desenvolver uma pers-
pectiva alternativa sobre ética de negócio que marque o abandono das teorias
tradicionais baseadas em regras que olhámos até agora. Na ética da virtude a
mensagem principal é: “As boas acções vêm das boas pessoas”. Podemos, por
isso, defini­‑la nas linhas seguintes: a ética da virtude sustenta que acções moral‑
mente correctas são as tomadas por actores com carácter virtuoso. Conse‑
quentemente, a formação de um carácter virtuoso é o primeiro passo para um
comportamento moralmente correcto.
Virtudes são um conjunto de traços de carácter adquiridos que permitem a
uma pessoa levar uma vida boa. As virtudes podem ser diferenciadas em virtu‑
des intelectuais – sendo a “sabedoria” a mais proeminente – e virtudes morais,
que compreendem uma longa lista de características possíveis, como honesti-
dade, coragem, amizade, compaixão, lealdade, modéstia, paciência, etc. Todas
estas virtudes manifestam­‑se em acções que constituem um padrão habitual de
comportamento da pessoa virtuosa, em vez de ocorrerem uma única vez ou em
decisões que não se repetem. Como estas características não nos pertencem por
nascimento, adquirimo­‑las pela aprendizagem e, mais notavelmente no negócio,
pelo nosso relacionamento com os outros numa comunidade de boas práticas
(MacIntyre, 1984).
No centro da ética da virtude está a noção de uma “vida boa”. Para Aristóte-
les, um dos proponentes originais da ética da virtude, isto consiste na felicidade,
não num sentido hedonista, orientado para o prazer, mas num sentido mais
alargado. Isto inclui, notavelmente, o comportamento virtuoso como uma parte
integral da vida boa: uma pessoa de negócios feliz não será apenas aquela que
finalmente ganha mais dinheiro, mas aquela que o ganha saboreando ao mesmo
tempo os prazeres de uma maneira virtuosa de realizar o seu sucesso. Num con-
texto de negócio, a “vida boa” significa bastante mais do que ser uma empresa
lucrativa. A ética da virtude tem uma visão muito mais holística, olhando também
para a forma como este lucro é realizado e, mais notavelmente, reivindicando
que o sucesso económico é apenas uma parte de uma boa vida de negócio – sendo
igualmente importantes a satisfação dos empregados, bom relacionamento entre
todos os membros da empresa e relações harmoniosas com todas as partes inte-
ressadas (Collier, 1995).
A partir deste ponto de vista, o Director de Produção virtuoso do “Dilema
Ético” pode ser visto de perspectivas diferentes, dependendo da comunidade de
onde proveio a noção de Director virtuoso. Por um lado, pode ser compassivo e
atencioso com a situação dos fornecedores. Tendo em conta as suas necessidades
de trabalho e dinheiro, bem como a necessidade de educação das crianças, talvez
tente fazer negócio com eles ao mesmo tempo que assume a responsabilidade
pela educação das crianças. Por exemplo, pode suportar uma escola local ou

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PARTE III

pagar salários suficientemente altos para permitir que a família mande os seus
filhos à escola, em vez de usá­‑los como trabalho barato. Por outro lado, pode
também pensar que a “vida boa” na Tailândia rural pode de facto consistir numa
família inteira a trabalhar junta e que os conceitos ocidentais de educação, profis-
sionalização e eficiência são um conceito diferente de uma “vida boa” que pode
não ser apropriada para a abordagem tailandesa da vida. Tipicamente, a ética da
virtude num contexto de negócio como este sugere que a solução para muitos
dos problemas enfrentados pelos gestores está localizada na cultura e tradição
da comunidade de boas práticas relevantes. O Director de Produção deve deter-
minar o que fará um Director de Produção “virtuoso”, segundo o seu Código de
Conduta profissional, os modelos de papéis virtuosos ou o treino profissional.
Não leva muito tempo a ver qual é a principal desvantagem da ética da virtude
(Jones et al., 2005:56­‑68): como determinamos qual a comunidade ideal de boas
práticas a consultar? E, na falta de um claro Código de Conduta das nossas comu-
nidades relevantes, como traduzimos as ideias de características virtuosas em
acção ética? Mais ainda, a relevância da ética da virtude para a ética de negócio é
que nos recorda que o certo e o errado não podem ser resolvidos simplesmente
pela aplicação de uma regra ou princípio específico, mas que precisamos de cul-
tivar ao longo do tempo o nosso conhecimento e julgamento sobre aspectos de
ética, através de experiência e participação (Nielsen, 2006).

Ética feminista

Esta abstenção de uma abordagem aos problemas éticos com base em princí-
pios foi também trazida à cena por uma outra escola de pensamento sobre ética
de negócio mais recente. As abordagens feministas à ética de negócio partem
da assunção de que homens e mulheres têm atitudes bastante diferentes relati-
vamente à organização da vida social, com impacto significativo na forma como
são tratados os conflitos éticos (Gilligan, 1982). Ao tratar de problemas éticos, a
teoria ética tradicional tem procurado regras e princípios para serem aplicados
de uma forma equitativa, objectiva e consistente. Esta abordagem foi quase
exclusivamente estabelecida e promulgada por filósofos masculinos e pensadores
como Kant, Locke, Bentham, Smith e Mill. A “ética dos direitos”, como por vezes
é chamado este ponto de vista masculino (Maier, 1997), tenta estabelecer bases
legítimas para reivindicações e interesses de indivíduos em situações de conflitos
sociais.
A ética feminista, por outro lado, tem uma abordagem diferente que vê o
indivíduo profundamente inserido numa rede de relações interpessoais. Conse-
quentemente, a responsabilidade pelos membros desta rede e a manutenção da

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

prontidão de contacto, mais do que a submissão a princípios morais abstractos, é


a preocupação predominante da ética feminista. Esta abordagem, chamada mui-
tas vezes de “ética dos cuidados”, resulta consequentemente em diferenças sig-
nificativas do ponto de vista de questões éticas (Maier, 1997; Rabouin, 1997). Os
problemas morais são conflitos de responsabilidade nos relacionamentos, mais
do que conflitos de direitos entre indivíduos e, por isso, apenas podem ser resol-
vidos por avaliação pessoal e subjectiva, que enfatiza em particular a importância
da emoção, intuição e sensibilidade. Enquanto as abordagens masculinas se cen-
tram nos resultados “equitativos”, as perspectivas feministas realçam os proces-
sos sociais e visam em particular a realização de harmonia, empatia e integração
relativamente às questões éticas. O principal objectivo é evitar danos e manter
relacionamentos saudáveis. Depois desta descrição, podemos sugerir a seguinte
definição: a ética feminista é uma abordagem que prioriza empatia, relaciona‑
mentos sociais harmoniosos e saudáveis, cuidados de uns com os outros e abs‑
tenção de danos, para além dos princípios abstractos.
A Tabela 9 mostra as características relevantes da ética feminista e compara­
‑as com a abordagem “masculina” predominante.

Tabela 9 – Pontos de vista contrastantes sobre ética de negócio com base


no género, com base em Maier (1997:949).

“Ética do cuidado e
“Ética dos direitos”
relacionamentos”
(abordagem masculina)
(ética feminista)

Autónomos, separados,
Ponto de vista dos Actores inter­‑dependentes
independentes. Condutor de
seres humanos dentro de uma teia social
uma função no grupo

Justiça e imparcialidade. Evitar danos. Manutenção


Objectivo moral
Manutenção das regras de relações

Conflito de direitos entre Conflito de responsabilidades


Problema moral
indivíduos nos relacionamentos em rede

Direitos, deveres, justiça, Harmonia, empatia, comunidade,


Valores procedimento devido, cuidados, capacidade de reagir,
protecção igual integração

Foco Resultados Processos

Força social motriz Competição, vencer Cooperação, fazer concessões

Não obstante, é importante lembrar que, enquanto teoria ética, o feminismo


não argumenta que as mulheres são os melhores actores éticos. O feminismo
propõe antes uma atitude específica perante os conflitos éticos que está mais

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PARTE III

enquadrada naquilo que, de qualquer forma, as mulheres supostamente fariam


por intuição. Consequentemente, uma organização com valores e abordagens
feministas é um negócio onde homens e mulheres seguem igualmente estes
princípios e onde todos os empregados, independentemente do seu género, são
encorajados a abraçar uma abordagem “feminista” às questões éticas. No final de
contas, a ética feminista não realça tanto a ênfase numa determinada orientação
com base no género, como realça a importância do estabelecimento e manuten-
ção responsável de relações.
A aplicação da teoria feminista ao caso do “Dilema Ético” requereria, num cer-
to sentido, bastante mais conhecimento acerca do caso do que podemos adquirir
somente pela sua leitura. Uma perspectiva feminista levaria a que o Director de
Produção tentasse obter uma visão mais chegada da família envolvida e ver se
as crianças são verdadeiramente felizes nesta situação. Envolveria também uma
melhor compreensão dos constrangimentos sociais e económicos que fizeram a
família embarcar neste padrão de produção específico. Ironicamente, uma pers-
pectiva feminista não argumentaria necessariamente, de forma categórica, contra
qualquer envolvimento de crianças no processo, desde que as relações intrafami-
liares estejam a funcionar bem e as crianças não sejam forçadas, exploradas ou
compelidas a trabalhar para além das suas capacidades físicas. Como as últimas
condições podem, provavelmente, não ser preenchidas, as perspectivas feminis-
tas tenderiam possivelmente a objectar também contra o trabalho infantil – não
tanto porque isso viole certos princípios (ocidentais), mas por causa da provável
angústia e sofrimento das crianças. Além do mais, as teorias feministas olhariam
também para a situação dos outros actores envolvidos e examinariam, por exem-
plo, a questão sobre se o dinheiro ganho pelos montadores de brinquedos é gasto e
como é distribuído o rendimento na família, etc.

? PENSAR TEORIA

Pense nos argumentos éticos usados pelos membros da família, amigos ou


colegas. Pode ver quaisquer diferenças entre os argumentos usados por
homens e mulheres? O que quer isto dizer acerca da potencial contribuição
da ética feminista?

Ética do discurso

Todas as abordagens teóricas que temos discutido até agora começam por
uma certa perspectiva sobre os seres humanos, os valores ou objectivos que

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

governam as suas decisões, e algumas outras assunções que na essência são


todas normativas por natureza. Por normativas, lembre­‑se que queremos dizer
prescrições de acção certa ou errada. Contudo, tendo dito “normativas” pode-
mos voltar atrás por um minuto e perguntar se este ponto de partida é de facto
uma forma muito útil para resolver conflitos éticos de negócio. Antes de mais
não podemos tomar como garantido, numa dada situação que toda a gente par-
tilha, por exemplo a noção de os humanos serem hedonistas ou de os direitos ou
valores feministas serem os mais apropriados para tratar de problemas éticos de
negócio. Isto já é problemático num grupo de pessoas relativamente homogéneo,
digamos o departamento comercial de uma empresa sueca de automóveis. Mas
ainda se torna mais complicado se houver uma reunião de todos os directores
comerciais da empresa em todo o mundo, dado que esta podia concebivelmente
incluir participantes tão diversos como os fundamentalistas evangélicos dos Esta-
dos Unidos, ateus da Rússia, muçulmanos do Egipto e budistas do Japão. Nestas
situações, os problemas mais significativos surgem das perspectivas normativas
divergentes que as diferentes pessoas podem colocar na mesa.
É neste ponto que a ética do discurso pode entrar no filme. O suporte filo-
sófico desta abordagem teórica é o argumento de que as normas não podem
enfim ser justificadas com argumentos racionais, mas que têm de ser geradas e
aplicadas à resolução de conflitos éticos numa base de dia­‑a­‑dia (Preuss, 1999).
Steinmann e Löhr (1994), enquanto principais proponentes de uma abordagem
de discurso à ética de negócio, argumentam que a reflexão ética tem de partir de
experiências da vida real (mais do que de sistemas de crença que podem ser bas-
tante diversos). Eles afirmam que o objectivo final das questões éticas de negócio
deve ser a resolução pacífica de conflitos.
Com este objectivo em mente, as diferentes partes num conflito devem sentar­
‑se juntas, discutir o conflito e, por fim, encontrar uma solução que seja aceitável
para todos. Este “discurso ideal”, como é geralmente chamado, é mais do que uma
conversa ocasional ou uma reunião de negócio, tendo especificamente de respon-
der a certos critérios filosóficos como imparcialidade, não­‑persuasão, não­‑coerção
e habilidade dos participantes (Habermas, 1983). Isto inclui, particularmente,
como regra de procedimento, que aqueles com mais poder numa certa situação
se abstenham de impor os seus valores a outros, e usem o seu poder para resolver
o conflito ético de acordo com os seus próprios sistemas de convicção. Um tal dis-
curso conduzirá então a normas para uma situação específica que são uma expres-
são do consenso racional de todas as pessoas afectadas ou partes representadas.
Ao estabelecer um “discurso ideal” racional acerca de problemas específicos, esta
abordagem é suposta ser geradora de normas.
Dado este curto esboço, podemos avançar utilmente com a seguinte defini-
ção básica: a ética do discurso visa resolver conflitos éticos providenciando um

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PARTE III

processo de geração de normas através de reflexão racional sobre a experiência


na vida real de todos os participantes relevantes.
A ética do discurso é, então, mais uma receita para a solução prática de con-
flitos do que uma teoria ética comparável às discutidas atrás. Em termos sim-
ples, a única condição para que ela funcione é a assunção de que todos os seres
humanos racionais partilham a experiência, e que a norma de resolução pacífica
do conflito é a melhor forma de organizar interacção social. A ética do discurso
baseia­‑se na racionalidade e requer um diálogo no qual as pessoas sejam capa-
zes e estejam dispostas a trocar argumentos e seguir a “coerção não­‑coerciva
da melhor argumentação” (Habermas, 1983). Há, compreensivelmente, certos
limites práticos a esta abordagem, especialmente a considerável quantidade de
tempo que ela envolve, e as assunções razoavelmente optimistas acerca do com-
portamento humano racional nos discursos. Não obstante, a ética do discurso
tem sido o conceito subjacente para a resolução de numerosas disputas sobre
impactos ambientais das decisões das empresas, na qual diversos accionistas com
sistemas de valores completamente divergentes tiveram de chegar a uma decisão
comum sobre determinados projectos controversos (Renn et al., 1995). Ver “Ética
em Acção” para uma ilustração de como a ética do discurso pode ter fornecido
uma solução efectiva para uma disputa ética.
Se aplicarmos a ética do discurso ao “Dilema Ético”, é da natureza do con­
ceito que não somos capazes de dizer se influenciará de alguma forma a decisão
resultante das partes envolvidas. Sugere, todavia, que todas as partes envolvi-
das, começando pela empresa comercial tailandesa, o fabricante de confeitaria,
os pais, as crianças, mas potencialmente também os consumidores na Europa,
devem reunir­‑se para empreenderem um discurso “gerador de normas” sobre o
tema. Aparte o facto de isto mostrar algumas dificuldades práticas do conceito, a
ideia abre caminho para uma solução que pode estar mais próxima dos interesses
de todas as partes envolvidas.

Ética pós­‑moderna

As perspectivas pós­‑modernas sobre ética de negócio pegam num ponto


que tínhamos já tocado aquando da discussão da ética do discurso. A escola de
pensamento pós­‑moderna questiona fundamentalmente a ligação entre raciona-
lidade e moralidade, que é inerente em todas as teorias éticas tradicionais. Estas
teorias tradicionais têm a sua origem no modernismo, que emergiu bruscamente
durante o Iluminismo do século XVIII. Os pensadores “modernos” esforçavam­‑se
por obter uma explicação racional e científica do mundo e almejavam, através
de teorias abrangentes, inclusivas e teoricamente coerentes, explicar a Natureza,

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

o Homem e a sociedade. Na área das ciências sociais, um dos resultados disto


foi o desenvolvimento de várias teorias, geralmente na forma de certos “ismos”
como liberalismo, comunismo, socialismo, racionalismo, capitalismo, etc. Os pen-
sadores pós­‑modernos sustentam que estas teorias abrangentes, estas “grandes
narrativas” da sociedade (Lyotard, 1984) são demasiado ambiciosas, optimistas e
reducionistas, falhando em última análise a explicação da complexa realidade da
existência humana.
Enquanto o pós­‑modernismo tende a abraçar uma gama completa de pro-
postas e argumentos teóricos, os pensadores pós­‑modernos têm sido particular-
mente influentes em ética, dado identificarem o perigo específico de abordagens
racionais à moralidade. Zygmunt Bauman (1993), um dos mais conhecidos propo-
nentes da ética pós­‑moderna, argumenta que codificando a moralidade dentro
de regras e códigos específicos de comportamento (como, por exemplo, nas orga-
nizações burocráticas), as abordagens racionais desmentem a verdadeira origem
da moralidade, a qual está enraizada num “impulso moral” para com os outros.
Este “impulso moral” é uma convicção subjectiva e emocional que os humanos
têm acerca do certo e do errado, com base nas suas experiências, sentimentos
e instintos. O julgamento moral é então mais um sentimento instintivo do que
qualquer outra coisa, mas é inevitavelmente anulado quando as pessoas entram
em organizações e se tornam distanciadas das pessoas que vão efectivamente
experimentar as consequências das suas decisões, como os consumidores, inves-
tidores, fornecedores, e outros. Estas ideias conduzem­‑nos à seguinte definição: a
ética pós­‑moderna é uma abordagem que coloca a moralidade para lá da esfera
da racionalidade, num “impulso moral” emocional para com os outros. Ela
encoraja os actores individuais a questionarem diariamente práticas e regras, e
a ouvirem e seguirem as suas emoções, convicções íntimas e “sentimentos ins‑
tintivos” acerca do que pensam que é certo e errado numa situação específica.
Finalmente, os pós­‑modernistas são bastante cépticos acerca do risco total
da ética de negócio (Ten Bos e Willmott, 2001), dado que as teorias éticas pre-
tendem encontrar “regras e princípios que determinem o certo e o errado” (a
nossa definição na parte I). Os pós­‑modernistas tendem, de outro modo, a suge-
rir que “o código ético perfeito – universal e inabalavelmente instituído – nunca
será encontrado”. Uma perspectiva pós­‑moderna sobre ética de negócio não nos
deve então prover de nenhuma regra ou princípio, nem mesmo uma “receita”
para tomada de decisões éticas como a ética do discurso. Contudo, a ética pós­
‑moderna tem bastantes implicações significativas para as decisões éticas de
negócio. Gustafson (2000:21), por exemplo, sugere que a ética de negócio pós­
‑moderna realça o seguinte:
• Abordagem holística. Dado que a moralidade é uma convicção interior de
actores individuais, não há separação entre o domínio privado e o profissional.

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PARTE III

A Ética em Acção – 2
British Airways, Gate Gourmet, e trabalho de baixo salário: um acordo desagradável?

Alguma vez pensou em celebrar a manhã do seu 40.o aniversário olhando o


nascer do Sol no Monte Kilimanjaro? Então não deve reservar o seu voo para África
na British Airways! Este foi pelo menos o conselho de um passageiro retido no
Aeroporto de Heathrow, em Londres, que foi entrevistado pelos media na manhã
de 11 de Agosto de 2005.
Durante os últimos cinco anos a indústria aérea global sofreu imensa pressão,
com o declínio da procura depois do incidente de 11/9 e a epidemia de SARS,
bem como os substanciais aumentos do combustível a seguir à guerra no Iraque.
Um dos poucos transportadores que sobreviveram com sucesso a esta crise é a
British Airways (BA), que aplicou cortes de custos rigorosos durante os últimos
anos para melhorar a rentabilidade. Entre os meios mais populares para aumen-
tar a rentabilidade está a subcontratação de serviços e a redução de custos com o
pessoal redundante e várias outras medidas. Entre outras coisas, porém, a última
expôs a BA a uma actividade industrial subsequente, em 2003 e 2004, com per-
turbações significativas para o negócio.
Perante este cenário de manifestas relações industriais, a surpresa não foi
total quando, em Agosto de 2005, o pessoal afecto ao manuseamento de baga-
gens no seu centro principal de Londres, Heathrow, fez um dia de greve, retendo
700 voos e mais de 100.000 passageiros na rede global da BA. Aparentemente, a
razão para a greve não teve nada a ver com a BA: foi uma acção de solidariedade
para com os trabalhadores do fornecedor de refeições a bordo da BA, Gate Gour-
met, onde um dia antes tinham sido despedidos 600 trabalhadores.
A BA tinha vendido há alguns anos as suas operações de catering à Gate
Gourmet e acabava de negociar um novo contrato com eles, em termos tais que
a Gate Gourmet queixava­‑se de estar a perder € 1,5 milhões por dia. A maioria
dos seus empregados, predominantemente mulheres, muitos dos quais perten-
ciam à primeira ou segunda geração de imigrantes asiáticos, já recebia salários
muito baixos – os relatórios sugerem qualquer coisa entre € 9.000 e € 18.000,
anualmente. Muitos comentadores argumentaram que com o recente influxo de
mão­‑de­‑obra cada vez mais barata, proveniente dos países do Leste da Europa
integrados na UE, a empresa procurou cortar mais custos empregando novo pes-
soal com salários ainda mais baixos.
Como consequência, quando 120 trabalhadores recentemente admitidos che-
garam à empresa, a 10 de Agosto de 2005, os trabalhadores em função entraram
em greve enquanto os representantes dos sindicatos procuravam falar com a
gestão da Gate Gourmet. Com apenas – de acordo com o sindicato – três minu-
tos de aviso, a empresa despediu 700 trabalhadores, anunciando a decisão, via

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

megafone, aos seus empregados que se encontravam fora das suas instalações
em Londres. Como muitas trabalhadoras tinham os maridos ou outros familiares
a trabalhar para a BA na área de manuseamento de bagagens, poucos metros
abaixo em Heathrow, não foi surpresa que muitos trabalhadores da BA entrassem
em greve em solidariedade para com os seus colegas da Gate Gourmet.
Como a greve na BA era tecnicamente ilegal, a BA recusou pagar os salários
dos grevistas e os trabalhadores voltaram ao trabalho um dia depois. Todavia, a
perturbação e o caos causados às operações globais da linha aérea resultaram
não apenas em má publicidade e no aborrecimento dos clientes, mas também
em custos extras estimados em mais de € 60 milhões!
Durante os meses que se seguiram, a BA, a Gate Gourmet e os trabalhadores
envolvidos embarcaram numa prolongada e controversa jornada de conversações
e negociações. A BA concordou por fim rever o seu contrato de fornecimento
com a Gate Gourmet em melhores condições, admitindo implicitamente a sua
responsabilidade pela disputa laboral na sua subsidiária que passara a fornece-
dora. Contudo, durante os quatro meses seguintes, os voos da BA para e de Hea-
throw não incluíam comida, já que a Gate Gourmet precisava de renegociar um
acordo com os seus trabalhadores, que resultou no reemprego de trabalhadores
despedidos ou no pagamento de compensação por redundância àqueles que saí-
ram definitivamente. As condições, todavia, eram ainda inaceitáveis para alguns
trabalhadores, considerados pela administração “um núcleo duro de militantes”,
os quais subsequentemente ameaçaram levar a empresa a Tribunal. A administra-
ção da Gate Gourmet pareceu ver ainda o diálogo como a segunda melhor opção:
“Espero vê­‑los no Tribunal”, teria dito o Director Eric Born, conforme foi referido
pelos media.

? PENSAR TEORIA

Pense neste caso na perspectiva da ética feminista. Que implicações teria


esta abordagem para a British Airways, em particular, e para a sua condução
das relações com fornecedores? Aplique também a abordagem do discurso
ético às relações entre a BA e a Gate Gourmet, e entre a Gate Gourmet e os
seus empregados. Que acção alternativa sugeriria esta abordagem para as
diferentes partes envolvidas?

Os pós­‑modernistas argumentam que as teorias modernistas de comporta-


mento ético conduzem a um ponto de vista abstracto e distante das questões éti-
cas que, ao fim e ao cabo, obriga os actores a seguirem standards diferentes nas
suas vidas profissionais e privadas. Para as organizações de negócio, tal ponto de

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PARTE III

vista sobre a tomada de decisões éticas pode desencadear um potencial bastante


subversivo para a ética de negócio, dado que pode questionar as crenças e práti-
cas defendidas pela organização (Bauman, 1993).
• Exemplos em vez de princípios. Como a moralidade não é baseada em teorias
racionais, o raciocínio ético não se expressa em princípios e regras. Baseia­‑se
antes em narrativas de experiência, confia em metáforas para explicar convic-
ções íntimas e sugere pessoas e modelos de certas virtudes que o indivíduo
pode apontar como uma personificação do seu “instinto moral”. De todas as
teorias discutidas, até agora, a ética da virtude é consequentemente a que
está mais fortemente ligada à ética pós­‑moderna (Shaw, 1995).
• “Pensar localmente, agir localmente”. As teorias modernistas e em “ismos”
visam princípios gerais que sejam aplicáveis a cada uma e a todas as situa-
ções. Os pós­‑modernistas pensam que o raciocínio ético tem de ser bastante
mais modesto: uma expectativa realista em relação à ética seria vir com
regras locais aplicáveis a questões e situações únicas. Mais do que encontrar
um princípio para múltiplas situações, a ética de negócio centra­‑se em deci-
dir uma questão depois da outra. Isto não significa que os pós­‑modernistas
não tomem seriamente as suas decisões e que possam decidir sobre uma
questão de determinada maneira hoje e de outra maneira amanhã. Pelo con-
trário, realçam bastante o facto de que nenhuma situação se repete e que os
diferentes actores, as relações de poder, os antecedentes culturais e os con-
textos emocionais podem levar a diferentes juízos em situações que podem,
em abstracto, ser vistas como sendo da mesma “classe” e sujeitas aos mes-
mos “princípios”.
• Característica preliminar. Os eticistas pós­‑modernos são muitas vezes vistos
como mais pessimistas do que as suas contrapartes modernas. Eles sabem
que as decisões éticas estão sujeitas a processos não­‑racionais e, assim,
menos controláveis e previsíveis. O raciocínio ético é, portanto, um processo
constante de aprendizagem, um esforço permanente pelas soluções que
melhor se ajustam ou pelo raciocínio que faz mais sentido e funciona melhor
que as abordagens testadas.

Pela natureza de um ponto de vista pós­‑moderno sobre ética de negócio,


pode já ficar claro que a ideia de discutir o caso abstracto do “Dilema Ético” é
uma aventura quase impossível. De facto, os pensadores pós­‑modernistas são
cépticos acerca do método da vinheta do caso hipotético na aprendizagem sobre
ética de negócio, preferindo em vez disso gerar comprometimento moral para
com outras pessoas através de encontros na vida real (McPhail, 2001). Na melhor
das hipóteses, seríamos capazes de produzir alguma forma de julgamento se

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

viajássemos para a Tailândia, visitássemos o sítio, falássemos com as pessoas e


mergulhássemos energicamente na situação da vida real. Teríamos então um
“impulso moral” sobre o que sentir acerca da situação e produziríamos o que nós
pensamos ser a via moral para decidir nesta situação.
Todavia, o exemplo dá­‑nos algumas indicações e, como bons pós­‑modernistas,
estaríamos conscientes das limitações do nosso actual ponto de vista sobre a
questão e tentaríamos sugerir um ponto de vista preliminar sobre o que faríamos
na situação do Director de Produção. Podíamos pelo menos sugerir que, como
o Director de Produção, dêmos um primeiro passo positivo ao ir até ao local de
produção e enfrentar aqueles que serão afectados pelas nossas decisões, em
vez de ficar em casa e simplesmente despedi­‑los como “fornecedores” sem um
rosto. Podíamos também apontar a nossa tentativa de tomarmos a nossa própria
decisão autónoma, com base na situação face à cultura específica da Tailândia,
em vez de confiarmos num Código de Ética Empresarial, e em particular num que
pretende ter aplicação universal. Contudo, os pós­‑modernistas também questio-
nariam até que ponto você, como Director de Produção, está tão embrenhado
numa mentalidade empresarial que pensa imediatamente mais em termos de
custos e de bónus do que nas pessoas e nas suas vidas.
Por último, está na natureza do pós­‑modernismo que não somos capazes de
finalmente decidir sobre a situação do Director, dado que nos faltam as nuances
contextuais da situação e não temos conhecimento do ponto até ao qual um
genuíno “impulso moral” seria possível neste contexto.

SUMÁRIO: RUMO A UM USO PRAGMÁTICO DA TEORIA ÉTICA

A série de teorias éticas discutidas nesta parte fornece­‑nos uma rica fonte de
assistência à tomada de decisões moralmente informadas. Todavia, a discussão
do nosso caso, o “Dilema Ético”, fez surgir uma variedade de diferentes pontos
de vista e implicações normativas, dependendo da abordagem teórica que fosse
escolhida. Por vezes, estes pontos de vista fornecem­‑nos resultados bastante con-
traditórios.
Como já indicámos antes, não sugeriremos uma teoria ou uma abordagem
como sendo o melhor ou o verdadeiro ponto de vista de um dilema moral. A
Figura 2 mostra esta abordagem, onde a teoria ética é vista como uma espécie de
“lente” através da qual focar a tomada de decisão ética sobre uma consideração
específica, como direitos, deveres, discurso, ou seja o que for.

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PARTE III

Figura 2 – Uma perspectiva típica sobre o valor da teoria ética para


resolver dilemas éticos de negócios.

Dilema ético

Consideração normativa única


para resolver o dilema ético

“Lente” da teoria ética

Sugeriríamos antes que todas as abordagens teóricas que discutimos fazem


luz sobre diferentes ângulos de um único problema e deste modo trabalham de
uma forma complementar mais do que mutualmente exclusiva. A Figura 3 elucida
este papel das teorias éticas: ao vermos um problema ético pelo “prisma” das
teorias éticas, temos uma variedade de considerações pertinentes para a avalia-
ção moral do assunto em mãos.

Figura 3 – Uma perspectiva pluralista sobre o valor das teorias éticas


para resolver dilemas éticos de negócios.

Dilema ético

“Prisma” das teorias éticas

Variedade de considerações normativas


para resolver o dilema ético

Com base neste “espectro” de pontos de vista, o protagonista do negócio é


então capaz de compreender totalmente o problema, as suas questões e dilemas,
e as suas possíveis soluções e justificações.
Ao usarmos teoria desta forma não­‑dogmática, não ficamos somente com a
noção de pluralismo, anteriormente discutida, mas confrontamos genuinamente
a questão de que as verdadeiras decisões de negócio envolvem geralmente múl-
tiplos actores com uma variedade de pontos de vista e convicções éticas que
contribuem para a decisão. As teorias éticas ajudam a articular estes pontos de
vista e pavimentam o caminho para uma resposta inteligente e considerada ao
problema. Além do mais, conforme já discutimos no contexto das teorias con-
temporâneas, a tomada de decisão ética não confia apenas em considerações

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

racionais. Os aspectos morais envolvem os seres humanos na totalidade da sua


razão, emoção, existência corporal, integração social e experiências anteriores,
para só nomear algumas. Mais do que procurar apenas princípios universais para
dogmaticamente aplicá­‑los em todas as situações, sugerimos uma abordagem
pragmática que permita a todos estes aspectos desempenharem um papel na
ética de negócio.
A Tabela 10 mostra um resumo das principais considerações levantadas por
cada teoria discutida. Embora devêssemos ser breves ao defender qualquer coisa
parecida com um “plano em 10 pontos” para tomada de decisões éticas, pode­‑se
usar esta tabela como uma lista de potenciais formas de tratar problemas e dile-
mas éticos de negócio.

Tabela 10 – Considerações sobre tomada de decisões éticas:


resumo do conteúdo­‑chave das teorias éticas.

Consideração Questão típica que deve colocar a si próprio Teoria

Isto tem realmente a ver com os meus melhores interes-


Interesses ses a longo prazo ou com os da minha organização? Seria
Egoísmo
próprios aceitável e esperado que nesta situação eu pensasse
apenas nas consequências para mim?

Se eu considerar todas as possíveis consequências das


Consequências minhas acções, em relação a todos os que são afectados,
Utilitarismo
sociais ficaremos no geral em melhor ou pior situação? Quão
prováveis e significativas são estas consequências?

Para com quem tenho obrigações nesta situação? O que


aconteceria se todos agissem da mesma forma que eu?
Deveres para
Trato as pessoas apenas para obter o que quero para Ética do dever
com outros mim (ou para a minha organização) ou penso também
no que elas possam querer?

Que direitos preciso de considerar aqui? Respeito os


Direitos
Direitos Humanos fundamentais e a necessidade Ética dos direitos
dos outros de dignidade das pessoas?

Trato equitativamente toda a gente neste momento?


Foram abertos processos para permitir que todos tenham
Justiça Teorias da justiça
igual oportunidade? Há grandes disparidades entre os
“vencedores” e os “vencidos” que podiam ser evitadas?

Estou a agir com integridade neste momento? O que


Carácter moral Ética da virtude
faria uma pessoa decente e honesta na mesma situação?

Como se sentem (ou sentiriam) as outras partes afectadas,


Cuidados com
nesta situação? Posso evitar prejudicar os outros? Que
os outros e Ética feminista
soluções são mais prováveis de preservar relações
relacionamentos saudáveis e harmoniosas entre as pessoas envolvidas?

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PARTE III

Que normas podemos trabalhar em conjunto para obter


Processo uma solução mutuamente aceitável para este problema?
de resolução Como podemos conseguir uma resolução pacífica deste Ética do discurso
de conflitos conflito que evite a “pressão” do actor com mais poder
para uma decisão apressada?

Estou simplesmente a acompanhar a prática usual neste


momento, ou a seguir servilmente o código da
organização, sem questionar se ele realmente me parece
Impulso moral Ética
certo? Como posso chegar mais perto daqueles que
e emoções pós­‑moderna
provavelmente são afectados pela minha decisão? O que
me dizem as minhas emoções ou sentimentos instintivos
quando estou fora do escritório?

De facto, há presentemente uma escola de pragmatismo ético que se está a


tornar mais e mais influente no pensamento da ética de negócio, e há na litera-
tura um debate em curso acerca da necessidade de abrir a tomada de decisão
ética para abranger não somente o raciocínio teórico racional, mas também uma
variedade de aspectos individuais e situacionais da existência humana (Rosenthal
e Buchholz, 2000). Sem chegar ao extremo pós­‑moderno de negar a relevância
da racionalidade no raciocínio moral e de situar estas decisões principalmente na
esfera emocional, há uma crescente percepção da necessidade de, por exemplo,
combinar razão e emoção na ética de negócio (Ten Bos e Willmott, 2001). A abor-
dagem pragmática que gostaríamos de defender saúda as abordagens teóricas à
ética normativa de negócio na sua diversidade enquanto ao mesmo tempo aceita
que desempenham um papel lado a lado com factores pessoais, culturais, psico-
lógicos, cognitivos e relacionados com o contexto, todos eles alimentando final-
mente uma decisão moral de negócio. Por conseguinte, centrar­‑nos­‑emos mais
nestes factores que exprimem como verdadeiramente tomamos decisões éticas
nas organizações.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

QUESTÕES A ESTUDAR
1. O que são teorias éticas?
2. A teoria ética é de alguma utilidade prática para os gestores? Discuta,
usando exemplos da prática corrente de negócio.
3. Definir absolutismo ético, relativismo ético e pluralismo ético. Até que
ponto cada perspectiva é útil para o estudo e prática da ética de negócio?
4. Quais são as duas principais famílias de teorias éticas tradicionais? Expli-
que a diferença entre estas duas abordagens à teoria ética.
5. Qual a teoria ética que pensa ser mais usada no negócio? Porque pensa
que é assim?
6. Leia o caso seguinte:

Você é o gerente do FoodFile, um movimentado restaurante no centro da


cidade que fornece comida principalmente para os funcionários dos escri-
tórios locais na hora de almoço e, à noite, para uma multidão de eclécticos
e elegantes profissionais. Você orgulha­‑se da sua reputada ementa e do
seu excelente serviço. A maior parte do seu pessoal está consigo desde
que abriu o restaurante três anos atrás – invulgar numa indústria carac-
terizada por trabalho ocasional e elevada rotação. Você considera que
este é um dos factores­‑chave da sua consistência e sucesso. Agora a sua
cozinheira­‑chefe veio ter consigo e contou­‑lhe, confidencialmente, que
é portadora de VIH. Ela está muito aflita e você quer acalmá­‑la. Todavia,
você fica perturbado por ela continuar a trabalhar nas cozinhas e fica preo-
cupado com o efeito que esta notícia pode ter no restante pessoal ou até
nos seus clientes caso venham a saber da situação.

a) Exponha as principais considerações éticas sugeridas por cada uma das


teorias abrangidas nesta parte.
b) Quais as teorias mais persuasivas para lidar com este dilema?
c) O que faria nesta situação e porquê?

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PARTE III

EXERCÍCIO DE PESQUISA
Seleccione um problema ou dilema ético de negócio ou dilema que tenha
enfrentado ou que tenha surgido numa organização da qual fez parte como
empregado, estudante ou gestor.
1. D
 escreva, resumidamente, os detalhes básicos do caso, identifique e dis-
cuta as questões principais de ética de negócio envolvidas.
2. E xponha as principais respostas, soluções ou tomadas de acção que
podiam ser consideradas em relação a este problema.
3. A
 valie essas opções usando as teorias discutidas nesta parte.
4. Q
 ue decisão foi finalmente tomada? Até que ponto acredita que esta foi a
melhor opção e porquê?

A Ética em Acção – 3
A British Petroleum e o oleoduto BTC: delícia Turca ou roleta Russa?

Este caso analisa as iniciativas de responsabilidade social da BP no contexto


de um dos maiores projectos de construção da história recente, o oleoduto Baku­
‑Tblisi­‑Ceyhan. Expõe os problemas e dilemas éticos enfrentados por uma grande
multinacional ocidental a operar num ambiente de um país anfitrião caracteri­
zado pela corrupção, fraca governação e abusos potenciais dos Direitos Humanos.
Permite­‑nos examinar a base ética dos pedidos de responsabilidade empresarial
e realça questões acerca das fronteiras da responsabilidade ética das empresas.
Não acontece frequentemente que um grande projecto industrial esteja no
centro de um filme de grande sucesso. Mas isto foi exactamente o que aconteceu
ao projecto do oleoduto Baku­‑Tblisi­‑Ceyhan (BTC) quando, em 1999, o filme de
James Bond, The World is not Enough, com Pierce Brosnan e Sophie Marceau,
andava à volta de um golpe terrorista no grande projecto do oleoduto no Cáucaso
com importância estratégica para o Ocidente (e portanto para o serviço secreto
Britânico M16!).
Quando da sua conclusão em 2006, o oleoduto BTC no valor de € 2,61 biliões,
ligando a terceira maior reserva de petróleo do mundo, no Mar Cáspio próximo
de Baku no Azerbaijão, ao porto Turco de Ceyhan na Costa Mediterrânea (ver
Figura 4), foi considerado o maior projecto privado de construção do mundo,
desenhado para transportar 1 milhão de barris por dia a uma distância de cerca
de 1.100 milhas. A importância estratégica do projecto está na redução da depen-
dência Ocidental em relação ao petróleo do Médio Oriente, ao mesmo tempo
que proporciona um acesso seguro à energia através de um membro da NATO, a
Turquia, e evita a exposição à instabilidade política da Rússia pós­‑Soviética.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Figura 4 – Oleoduto BTC.

B - T - C pipelin
ed e
os

op
pr
Ceyhan Baku

FONTE: www.baku.org.uk

O projecto BTC é operado privadamente por um consórcio de onze grandes


Compêndio de ética
coligações multinacionais de petróleo,dt1 de países incluindo os Estados Unidos,
Japão, França, Noruega e Itália, com1.ª
a British
prova Petroleum (BP) como parceiro líder
detendo 30,1%. A BP é o principal03·03·2016
actor nos campos petrolíferos de Azeri e vê
RCoelho
esta área como uma das suas principais unidades estratégicas de negócio. O
projecto constitui também uma fonte crucial de receita – as estimativas falam de
$150 biliões ao longo dos próximos 20 anos – para os Governos do Azerbaijão,
Geórgia e Turquia, através de cujos territórios corre o oleoduto. Dado os espera-
dos efeitos económicos atordoantes, o projecto foi apelidado pelo Governo Turco
de “estrada da seda do século XXI”.
Talvez não seja surpresa que um projecto de tal magnitude tenha levantado
toda a espécie de preocupações por parte dos grupos de militantes e da sociedade
civil. Primeiro, porque um tal projecto tem impactos ambientais significativos
devido à perturbação durante a fase de construção. Depois, havia a preocupa-
ção acerca da cobertura do oleoduto e dos riscos de rupturas, particularmente
na Geórgia onde derramamentos de petróleo podiam ter impacto significativo
nos recursos hídricos estratégicos do país no Parque Nacional de Bojorni. Foram
também levantadas preocupações pelo facto de o oleoduto passar por zonas sís-
micas, com os militantes a queixarem­‑se de que isso tornaria os derramamentos
quase inevitáveis. Segundo, porque ao longo do projecto os militantes realçaram
a perspectiva de até 30.000 civis ao longo do oleoduto terem de ser (pelo menos
temporariamente) realojados. Além disso, a elevada classificação do Azerbaijão
(125, na altura) e da Turquia (77) no Índice de Percepção de Corrupção da Trans-
parência Internacional dava pouca esperança de distribuição da riqueza de forma
a beneficiar uma população rural bastante pobre. Finalmente, a nível político,
com o mal­‑estar civil e as guerras na região – o oleoduto passa durante algumas
milhas apenas pela zona de guerra de Nagorno­‑Karabakh – o projecto tem sido
sempre acompanhado por consideráveis medos de ataques terroristas.
Embora tenha claramente os seus detractores, a BP é considerada por
alguns comentadores como sendo uma das companhias líderes na aceitação de

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PARTE III

sustentabilidade e Responsabilidade Social da Empresa (RSE). Em anos recentes,


foi uma das mais proeminentes companhias envolvidas em iniciativas de ener-
gia renovável, alteração climática, Direitos Humanos, prevenção da corrupção e
saúde, e segurança, entre outras. De acordo com estas políticas, mas também
em resposta às expectativas dos investidores no projecto (como o Banco Europeu
para Reconstrução e Desenvolvimento), a BP estabeleceu desde as primeiras
fases do projecto um Programa Regional de Desenvolvimento de Sustentabili-
dade (PRDS), a fim de tratar proactivamente os aspectos críticos sociais, éticos
e ambientais. O PRDS consiste em três partes. A primeira é um Programa de
Investimento Ambiental para lidar com questões ecológicas. A segunda é um Pro-
grama de Investimento Comunitário (PIC), que tem um orçamento à volta de $20
milhões e trata principalmente de questões sociais durante a fase de construção.
A terceira é a Iniciativa de Desenvolvimento Regional (IDR), a mais longo prazo,
que tem um orçamento similar de cerca de $25 milhões e está desenhada para
acompanhar o projecto durante um período de dez anos depois da abertura.
Curiosamente, das onze companhias inseridas no projecto, apenas duas se junta-
ram à BP nestes esforços.
O PIC foi estabelecido de uma forma em que a execução do projecto é leva-
da a cabo em associação com ONG e outras organizações como Universidades
e empresas privadas de consultoria nos respectivos países. No Azerbaijão e na
Geórgia, isto incluía apenas grupos internacionais como o Comité Internacional
de Salvamento (CIS), Save The Children e Care International, enquanto na Turquia
o PIC foi principalmente implementado com organizações turcas locais. A BP esta-
beleceu também um grupo de coordenadores locais nas cidades e vilas afectadas
pelo oleoduto e, em consulta com os representantes comunitários locais, imple-
mentou uma gama completa de projectos. Muitos deles centravam­‑se na melho-
ria das infra­‑estruturas locais, construindo e reparando estradas, escolas, serviços
públicos ou mesmo cemitérios, enquanto outros projectos visavam o desenvolvi-
mento económico local com incidência na agricultura e no desenvolvimento de
capacidades. Na Turquia, por exemplo, do programa resultou a primeira explora-
ção agrícola de morangos para exportação. Numa tentativa de assegurar trans-
parência e responsabilização, a BP estabeleceu também um procedimento de
monitoria e reclamações, administrado pela Open Society Institution do bilionário
americano George Soros, em cooperação com mais de 30 ONG locais.
Enquanto muitos destes projectos e iniciativas conduziram a impactos bas-
tante imediatos, o PIC tinha dificuldades em algumas questões. A colaboração
entre todos estes diferentes actores provou ser difícil, com muitos actores locais
competindo entre si e a comunicação com os proprietários locais de terras, muitas
vezes analfabetos, sobre a questão da compensação não foi também isenta de difi-
culdades. Ao confiar nos actores locais para a execução do PIC, a BP ficou também

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

exposta a um ambiente ameaçado pela corrupção, o qual por sua vez levou a
queixas dos locais, particularmente no Azerbaijão e Geórgia. Na Turquia, onde
as companhias petrolíferas nacionais conduziram o esquema, a má comunicação
entre os contratantes e as autoridades locais levou a reclamações acerca da abor-
dagem dos doadores à implementação dos projectos. Em muitas comunidades,
os esforços eram também dificultados por divisões políticas locais e, num caso,
até mesmo por uma disputa sangrenta entre as famílias dominantes.
Para os militantes como os Amigos da Terra, Amnistia Internacional e Bankwa-
tch, o projecto BTC é até certo ponto a evidência de que muita da conversa da BP
acerca de RSE e sustentabilidade pouco mais é que “informação enganadora” e
Relações Públicas (RP). Eles, por exemplo, culparam a companhia por ter assinado
um Acordo do País Anfitrião (APA) com a Turquia que “desconsidera descarada-
mente a Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, conforme disse o Professor
Sheldon Leader na sua qualidade de Conselheiro Jurídico da Amnistia Interna-
cional. Criticaram também a companhia pela alegada tortura dos activistas dos
Direitos Humanos e pelas críticas ao projecto BTC pela polícia local na Turquia.
Reportaram também casos em que os proprietários de terras tinham sido aparen-
temente ameaçados para aceitarem acordos de compensação inapropriadamente
baixos.
O último golpe dado à BP veio na forma do filme documentário Zdroj (Fonte)
dos realizadores Checos Martin Marecek e Martin Skalský, exibido em Londres
no princípio de 2006 no Festival de Cinema da Human Rights Watch. O filme
documenta não apenas as devastadoras consequências da produção de petróleo
Cáspio (onde a BP é o actor principal) para o ambiente e condições de vida dos
residentes locais, mas também sérios abusos dos Direitos Humanos ao longo do
projecto BTC. O filme apresenta um grande número de residentes locais que se
queixam de nunca terem sido compensados pelo valor das suas terras, tendo­‑lhes
apenas sido pedida permissão para usarem as suas propriedades. Alega também
a corrupção entre a elite governamental do Azerbaijão que, em troca, impede
uma ampla distribuição da riqueza gerada pelo petróleo e suprime a oposição feita
por grupos da sociedade civil.
No momento em que escrevemos, a BP tem ainda de responder às recentes
alegações. No seu website queixa­‑se que “a BP apoia instituições e ONG que pre-
tendem eliminar o suborno e a corrupção nas suas diversas formas. Nós somos
uma empresa que apoia a Transparência Internacional e participamos no desen-
volvimento dos seus ‘Princípios Empresariais Contra o Suborno’. Estes princípios
foram testados no terreno na nossa unidade no Azerbaijão”. O projecto expõe os
dilemas contemporâneos da ética do negócio e da RSE para os Países da Coliga-
ção, mesmo para aqueles com políticas ostensivamente “progressistas”. Embora
a BP tenha indubitavelmente feito esforços consideráveis no tratamento das

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PARTE III

críticas que lhe eram dirigidas, o facto de operar em países propensos à corrupção,
e com padrões de Direitos Humanos que são aparentemente diferentes dos da
sua base britânica, põe em causa o esforço da companhia para ser vista como um
actor responsável. Pode­‑se argumentar que o facto de a BP ter procurado agir
responsavelmente, estabelecendo o PRDS e confiando nos actores locais para a
execução, expôs ainda mais a companhia às críticas que tentou tratar em primeiro
lugar.

QUESTÕES A ESTUDAR

1. Quais são as questões e dilemas éticos principais que a BP enfrenta neste


caso?
2. Como avaliaria a abordagem da BP aos impactos sociais, ambientais e
económicos do projecto nas comunidades locais? Avalie primeiro a abor-
dagem a partir da perspectiva do utilitarismo e deontologia (ética de deve-
res). Diferirá a avaliação de uma perspectiva baseada em Direitos e Justiça?
3. Este caso levanta questões acerca do âmbito de responsabilidade de um
país da coligação operando em ambientes corruptos e com fraca governa-
ção. Qual é a sua opinião sobre até onde devia ir, neste caso, uma compa-
nhia como a BP? Pode ela ser realmente responsabilizada pelas acções dos
funcionários e Governos locais? Tente basear a sua resposta em argumen-
tos procedentes de uma ou mais teorias éticas.
4. Qual é a forma apropriada de a BP responder às críticas em curso? Baseie
a sua resposta nas teorias éticas contemporâneas, principalmente a ética
da virtude, a ética do discurso e a ética pós­‑moderna.

Reconhecemos também o apoio dado pela Sra. Deniz Tura através da sua
dissertação de MBA no Royal Holloway da Universidade de Londres, com base
no trabalho de campo no Azerbaijão e Turquia, no Verão de 2005, incluindo 61
entrevistas com gestores do projecto do ISDR e activistas de ONG baseadas local-
mente.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

TEXTO 2
A RESPONSABILIDADE SOCIAL DO NEGÓCIO
É AUMENTAR OS SEUS LUCROS

in Friedman, M. (1970), The Social Responsibility of Business


is to Increase its Profits, New York Times Magazine

Quando oiço homens de negócios a falar eloquentemente sobre as “respon-


sabilidades sociais do negócio num sistema de liberdade empresarial”, vem­‑me à
mente a história extraordinária sobre o francês que, aos 70 anos, descobriu que
tinha estado a falar prosa durante toda a sua vida. Os homens de negócios acredi-
tam estar a defender a liberdade empresarial quando proclamam que o negócio
não se circunscreve “apenas” ao lucro mas também à promoção de fins sociais
desejáveis, que o negócio tem “consciência social” e leva a sério as suas respon-
sabilidades em relação à promoção de emprego, eliminação da discriminação e
prevenção da poluição, e tantas outras palavras atractivas do acervo contemporâ-
neo de promotores de reformas. Na verdade, eles estão – ou estariam se eles ou
qualquer outra pessoa tomasse essas palavras a sério – a pregar um socialismo
puro e não adulterado. Os homens de negócios que falam nestes termos estão,
sem se aperceberem disso, a fazer eco de forças intelectuais que, nestas últimas
décadas, têm estado a minar as bases de uma sociedade livre.
As discussões acerca das “responsabilidades sociais do negócio” destacam­
‑se pela sua inconsistência analítica e falta de rigor. O que significa dizer que o
“negócio” tem responsabilidades? Só pessoas é que podem ter responsabilida-
des. Uma corporação é uma pessoa artificial e, neste sentido, também só pode
ter responsabilidades artificiais. Mas não se pode dizer que o “negócio” como um
todo possa ter responsabilidades, mesmo neste sentido lato. O primeiro passo a
dar em direcção à clarificação da análise da doutrina da responsabilidade social
do negócio seria colocar de forma precisa a questão sobre o que esta doutrina
implica e para quem.
Se calhar os indivíduos que devem ser responsáveis são os homens de negó-
cios, ou seja, os proprietários ou os administradores de empresas. Muita da
discussão em torno da responsabilidade social do negócio está orientada para

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PARTE III

empresas, deste modo, no que se segue irei negligenciar os proprietários indivi-


duais e falar sobre Administradores Executivos de empresas.
Num sistema de liberdade empresarial e propriedade privada, um Adminis-
trador Executivo de empresa é um empregado que trabalha para os donos do
negócio. Ele tem responsabilidade directa para com os seus empregadores. Essa
responsabilidade consiste na condução do negócio de acordo com os desejos dos
empregadores, que geralmente tem a ver com amealhar tanto dinheiro quanto
possível, ao mesmo tempo que se respeitam as regras básicas da sociedade, quer
as regras incorporadas na Lei, quer as incorporadas nos costumes éticos. Claro
que em alguns casos os empregadores podem ter um objectivo diferente. Um
grupo de pessoas pode estabelecer uma empresa tendo um propósito de bene-
ficência – por exemplo, um hospital ou uma escola. O gestor duma tal empresa
não terá como seu objectivo o lucro, mas a prestação de determinados serviços
sociais.
Em qualquer um dos casos, o ponto­‑chave é que, na sua função de Admi-
nistrador Executivo da empresa, o gestor é o agente de indivíduos que detêm a
empresa ou estabelecem a instituição de beneficência e a sua primeira responsa-
bilidade é para com estes indivíduos.
Escusado será dizer que isto não significa afirmar que seja fácil julgar até que
ponto o Administrador está a desempenhar bem a sua tarefa. Mas pelo menos o
critério de desempenho é claro e linear e as pessoas com as quais está a firmar
um contrato voluntário de trabalho estão claramente definidas.
Claro que o Administrador Executivo de uma empresa é também uma pessoa
com plenos direitos. Como pessoa, pode haver muitas outras responsabilidades
que ele reconhece ou assume de forma voluntária – responsabilidades para com
a sua família, a sua consciência, os seus sentimentos de caridade, a sua Igreja,
os seus clubes, a sua cidade, o seu país. Ele pode sentir­‑se movido por estas res-
ponsabilidades, a dedicar parte dos seus rendimentos a causas que considere
que vale a pena contemplar, a recusar trabalhar para determinadas empresas, ou
mesmo deixar o seu emprego para, por exemplo, se juntar às forças armadas do
seu país. Se assim o desejarmos, podemo­‑nos referir a algumas destas respon-
sabilidades como “responsabilidades sociais”. Mas, nestes casos, ele está a agir
como chefe e não como agente, ele está a gastar o seu próprio dinheiro ou tempo
ou energia, e não o dinheiro dos seus empregadores ou o tempo ou a energia
que, por força do seu contrato, deveria dedicar aos propósitos definidos pelos
seus empregadores. Se estas forem “responsabilidades sociais”, então são res-
ponsabilidades sociais de indivíduos e não de negócios.
O que significa dizer que, como homem de negócios, o Administrador de uma
empresa tem “responsabilidades sociais”? Se esta afirmação não constitui pura
retórica, então deverá significar que ele deverá agir de certa forma que não seja

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

do interesse dos seus empregadores. Por exemplo, que ele deverá abdicar de
aumentar o preço do produto de modo a contribuir para o objectivo social de
prevenção da inflação, ainda que o aumento do preço pudesse ser em benefício
da empresa. Ou que ele tenha que fazer despesas visando a redução da poluição
para além do volume que seria de devido interesse para a empresa ou que seja
exigido por Lei, tendo em vista contribuir para o objectivo social de melhorar as
condições ambientais. Ou que, em prejuízo dos lucros da empresa, ele contratasse
os menos dotados desempregados ao invés de trabalhadores melhor qualifica-
dos, tendo em vista contribuir para o objectivo social de redução da pobreza.
Em qualquer um destes casos, o Administrador da empresa estaria a gastar
dinheiro de outrem por uma causa social geral. Ao realizar acções que, de acordo
com a sua “responsabilidade social”, reduzem os retornos para os accionistas, ele
está a gastar o dinheiro deles. Ao realizar acções que provocam a subida de pre-
ços para clientes, ele está a gastar o dinheiro dos clientes. Ao realizar acções que
baixam os salários de alguns trabalhadores da empresa, ele está a gastar o dinheiro
destes trabalhadores.
Os accionistas, os clientes ou os trabalhadores poderiam até separadamente
gastar o seu próprio dinheiro numa dada acção particular se assim o desejassem.
O Administrador Executivo está a exercer uma “responsabilidade social” distinta
se, ao invés de servir como agente dos accionistas, dos clientes ou dos trabalha-
dores, apenas gasta o dinheiro de forma diferente daquela em que estes o pode-
riam ter gasto.
Mas se ele faz isto, na verdade, está, por um lado, a impor impostos e, por
outro, a decidir sobre como as receitas desses impostos devem ser usadas.
Este processo levanta questões políticas a dois níveis: princípio e consequên-
cias. Ao nível de princípio político, a imposição de impostos e a utilização de
receitas de impostos são funções do Governo. Nós temos instrumentos e cláusu-
las constitucionais, parlamentares e judiciárias bem estabelecidas e elaboradas
para controlar estas funções, de modo a assegurar que os impostos sejam aplica-
dos tanto quanto possível de acordo com as preferências e desejos do público –
acima de tudo, a “tributação sem representação” foi um dos gritos de Guerra da
Revolução Americana.
Temos um sistema de verificações e balanços para permitir que a função legis-
lativa de imposição de impostos e despesas esteja separada da função executiva
de colecta de impostos e administração de programas de despesas e da função
judicial de mediação de disputas e interpretação da Lei.
Aqui, o homem de negócios – auto seleccionado ou indicado, directa ou indi-
rectamente, pelos accionistas – deve ser ao mesmo tempo Legislador, Executivo e
Jurista. Ele deverá decidir a quem cobrar impostos, por quem e para que propósito
e deverá também saber como gastar os impostos cobrados – tudo isto orientado

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PARTE III

através de exortações gerais que vêm de cima, visando controlar a inflação, melho-
rar as condições ambientais, combater a pobreza, e por aí em diante.
Toda a justificação que leva a que o Administrador Executivo seja seleccionado
pelos accionistas é que o executivo seja um agente ao serviço dos interesses do
seu chefe. Esta justificação desaparece quando o Administrador Executivo impõe
impostos e gasta as receitas por causas “sociais”. Ele torna­‑se, na verdade, num
funcionário público, ainda que nominalmente continue a ser um empregado de
uma empresa privada. Tendo como base o princípio político, é intolerável que
tais funcionários públicos – considerando que as acções que realizam em nome
da responsabilidade social são efectivamente reais e não apenas para inglês ver
– sejam seleccionados como o são agora. Se estão para agir como funcionários
públicos, então devem ser eleitos através de um processo político. Se estão para
impor impostos e fazer despesas de modo a promover objectivos “sociais”, então
devem ser estabelecidos mecanismos políticos para se fazer a avaliação dos
impostos e determinar, através de um processo político, os objectivos a perseguir.
Esta é a razão básica por que a doutrina da “responsabilidade social” envolve
a aceitação da visão socialista, segundo a qual mecanismos políticos, e não meca-
nismos de mercado, são a forma apropriada para a determinação da alocação de
recursos escassos a usos alternativos.
Tendo como base as consequências, será que o Administrador Executivo
poderá, de facto, desvincular­‑se da sua alegada “responsabilidade social”? Por
outro lado, suponha que ele não fosse condenado por despender o dinheiro dos
accionistas, dos clientes ou dos trabalhadores. Como poderá ele saber como
usar esse dinheiro? Dizem­‑lhe que ele deve contribuir para o combate à inflação.
Como poderá ele saber qual é a acção a levar a cabo para se atingir esse fim? Ele
pode ser perito na administração da sua companhia – na produção de um certo
produto ou na venda deste produto ou no financiamento do mesmo. Mas pode
não haver nada que tenha concorrido para a sua selecção que faça dele um perito
em inflação. Será que a sua acção de estancar a subida do preço do seu produto
reduz a pressão inflacionária? Ou, ao deixar o poder de compra nas mãos dos
seus clientes, estará simplesmente a desviá­‑lo para outro sítio. Ou, ao forçá­‑lo a
produzir menos por causa do baixo preço, isto irá simplesmente contribuir para
a escassez do produto? Mesmo que possa responder a estas perguntas, quanto
custo será justificadamente imposto aos seus accionistas, clientes e trabalhadores
por este propósito social? Qual é a sua comparticipação apropriada e qual é a
comparticipação apropriada dos outros?
E, quer ele queira, quer não, poderá ele não ser condenado por despender o
dinheiro dos accionistas, dos clientes ou dos trabalhadores? Será que os accionis-
tas não o irão despedir? (Os actuais ou aqueles que tomarem a empresa quando
as suas acções em nome da responsabilidade social tiverem reduzido os lucros

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

desta mesma empresa e o preço das suas obrigações de tesouro/acções). Os seus


clientes e seus trabalhadores podem abandoná­‑lo e juntarem­‑se a outros produ-
tores e empregadores menos escrupulosos no exercício das suas responsabilida-
des sociais.
Esta faceta da doutrina da “responsabilidade social” é substancialmente ali-
viada quando a doutrina é usada para justificar o controlo de salários por parte
de sindicalistas. O conflito de interesses aparece claro e nu quando se pede aos
representantes de sindicatos para subordinar os interesses dos seus membros a
algum propósito mais geral. Se os representantes de sindicatos tentam forçar o
controlo de salários, a consequência provável são greves espontâneas e ilegais,
revoltas de trabalhadores menores e o surgimento de concorrentes fortes aos
seus empregos. Temos então o fenómeno irónico em que os líderes sindicalistas
– pelo menos nos Estados Unidos – têm recusado a interferência governamental
no mercado, de forma mais consistente e corajosa do que os líderes de negócios.
A dificuldade que surge no exercício da “responsabilidade social” ilustra, claro,
a grande virtude do sistema empresarial privado e competitivo – força as pessoas
a serem responsáveis pelas suas próprias acções e torna difícil para elas a “explo-
ração” de outras pessoas, quer por propósitos individualistas, quer não individua-
listas. Elas podem ter boas acções, mas estas devem ser às suas próprias custas.
Muitos leitores que tenham seguido o argumento apresentado até aqui
podem ser tentados a contra­‑argumentar que é de todo correcto e bom falar da
necessidade de o Governo impor impostos e determinar as despesas com propó-
sitos “sociais”, tais como o controlo da poluição ou a formação de desempregados
menos qualificados, mas que os problemas são demasiado urgentes para esperar
pelo curso lento de processos políticos, que o exercício da responsabilidade social
pelos homens de negócios é mais rápido e a forma mais segura para resolver pro-
blemas actuais prementes.
Pondo de lado a questão de facto – partilho o cepticismo de Adam Smith
sobre os benefícios que se podem esperar daqueles “artificialmente ligados ao
comércio pelo bem público” – este argumento deve ser rejeitado com base em
princípios. Este argumento leva à afirmação de que aqueles que estão a favor dos
impostos e despesas em causa não conseguiram persuadir a maioria dos seus
concidadãos a serem parte deste pensamento e que estão à procura de alcançar,
através de procedimentos não democráticos, o que não podem obter através de
procedimentos democráticos. Numa sociedade livre, é difícil para pessoas “mal-
dosas” fazer “maldades”, especialmente porque uma boa acção de um Homem é
uma acção maldosa de outro Homem.
Por uma questão de simplicidade, concentrei­‑me sobre o caso especial de
Administrador Executivo de empresa, com a excepção da breve digressão que
fiz sobre os sindicatos. Mas, exactamente o mesmo argumento se aplica ao novo

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PARTE III

fenómeno de apelo aos accionistas para pedir às empresas para que exerçam
a responsabilidade social (por exemplo, a recente cruzada G.M.). Em muitos
destes casos, o que está na verdade em causa é a tentativa, por parte de alguns
accionistas, de fazer com que outros accionistas (ou clientes ou trabalhadores)
contribuam, contra a sua vontade, para causas “sociais” preferidas pelos activis-
tas. Uma vez bem­‑sucedidos, estão mais uma vez a impor impostos e a gastar as
receitas.
A situação do proprietário individual é de certa forma diferente. Se ele realiza
alguma acção destinada a reduzir os retornos da sua empresa para assim exercer
a sua “responsabilidade social”, está a usar o seu próprio dinheiro, não o dinheiro
de outrem. Se ele quiser usar o seu dinheiro para esses propósitos, esse é um
seu direito e eu não vejo qualquer objecção a que ele faça isso. No processo, ele
também pode impor custos aos trabalhadores e clientes. Contudo, como compa-
rativamente a uma grande empresa ou sindicato é muito menos provável que ele
tenha um poder monopolista, um tal efeito colateral tenderá a ser menor.
Claro que, na prática, a doutrina de responsabilidade social é frequentemente
um capote usado em nome de acções que são justificadas sob bases diferentes
da razão efectiva dessas acções.
Para ilustrar isto, pode muito bem ser no interesse a longo prazo de uma
empresa que seja a maior empregadora numa pequena comunidade dedicar
recursos para oferecer facilidades ou infra­‑estruturas sociais a essa comunidade
ou para melhorar o seu Governo. Isto pode tornar fácil a atracção de trabalha-
dores desejados, pode reduzir a despesa com os salários ou aliviar as perdas
resultantes de roubos e sabotagem ou ter outros efeitos que valham a pena. Ou
pode ser que, dadas as leis sobre a dedução das contribuições das empresas para
acções de caridade, os accionistas podem contribuir mais para as organizações
de caridade que eles preferem, tendo as empresas a fazer as ofertas ao invés de
serem eles próprios a fazê­‑las, uma vez que podem dessa forma contribuir com
um montante que doutra forma poderia ter sido pago sob forma de impostos
empresariais.
Em cada um destes casos – e em muitos outros similares – há uma forte ten-
tação para ajuizar ou justificar estas acções como exercício de “responsabilidade
social”. No ambiente actual de exercício de opinião, com a sua generalizada aver-
são ao “capitalismo”, “lucros”, “empresas sem escrúpulos”, e por aí em diante,
esta é uma forma de as empresas desenvolverem a boa vontade como resultado
que decorre de despesas que são inteiramente justificadas no seu próprio inte-
resse.
Seria inconsistente da minha parte convidar os Administradores Executivos de
empresas a coibirem­‑se deste fingimento hipócrita porque isto estaria a ferir os
alicerces de uma sociedade livre. Isso seria equivalente a apelar aos Executivos

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

para exercerem a “responsabilidade social”. Se as nossas instituições e as atitudes


do público fazem isso no seu próprio interesse de mascarar as suas acções, eu
não posso reunir tanta indignação para os denunciar. Ao mesmo tempo, posso
expressar admiração por aqueles proprietários individuais, donos de empresas
ou accionistas de grandes sociedades empresariais que desdenham tais tácticas,
assumindo­‑as como próximas da fraude.
Quer seja culpável ou não, o uso da capa da responsabilidade social e o dis-
curso sem sentido proferido em seu nome por homens de negócios influentes
e prestigiados fere claramente as bases de uma sociedade livre. Tenho estado
cada vez mais impressionado com o carácter esquizofrénico de muitos homens
de negócios. Eles são capazes de ter uma visão de longo alcance e uma ideia clara
sobre questões internas aos seus negócios. Eles têm incrivelmente uma visão
curta e uma ideia confusa sobre questões que estejam fora dos seus negócios,
mas que afectam a possível sobrevivência do negócio no geral. Esta visão curta
é interessantemente exemplificada pelos apelos feitos por homens de negócios
para o estabelecimento de guiões ou sistemas de controlo de salários e preços ou
políticas sobre rendimentos. Não há nada que, num espaço de tempo curto, possa
concorrer para destruir um sistema de mercado e substitui­‑lo por um sistema
centralmente controlado do que o controlo governamental efectivo de preços e
salários.
A visão curta é também exemplificada pelos discursos proferidos por homens
de negócios sobre responsabilidade social. A curto prazo, isto pode render­‑lhes
honra e apreço. Mas ajuda a reforçar a visão já prevalecente de que a procura do
lucro é maliciosa e imoral e que deve ser vigiada e controlada por forças externas.
Uma vez adoptado este ponto de vista, as forças externas que controlam o mer-
cado não serão as consciências sociais, mesmo que altamente desenvolvidas, dos
Administradores que pontificam, será o braço de ferro dos burocratas governa-
mentais. Aqui, tal como acontece com o controlo de preços e salários, para mim
os homens de negócios parecem revelar um impulso suicida.
O princípio político subjacente no mecanismo de mercado é a unanimidade.
Num ambiente ideal de mercado livre assente em propriedade privada, nenhum
indivíduo pode coagir quem quer que seja, toda a cooperação é voluntária,
todas as partes envolvidas nessa cooperação colhem benefícios, caso contrário
não teriam necessidade de participar. Não há valores, não há responsabilidades
“sociais” de qualquer outra espécie a não ser os valores partilhados e responsa-
bilidades de indivíduos. Uma sociedade é um conjunto de indivíduos e de vários
grupos que estes constituem de forma voluntária.
O princípio político subjacente no mecanismo político é a conformação. Os
indivíduos deverão servir um interesse social mais geral – seja ele um interesse
definido por uma Igreja ou um ditador ou uma maioria. O indivíduo pode ter um

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PARTE III

direito a voto e a palavra em relação ao que vai ser feito, mas se a sua ideia for
rejeitada pelo seu superior ou pela maioria, terá então que se conformar. Para
alguns é apropriado exigir que outros dêem a sua contribuição para um propósito
social geral, quer estas pessoas queiram ou desejem dar essa contribuição ou não.
Infelizmente, a unanimidade não é sempre possível de conseguir. Há alguns
casos em que a conformação parece inevitável, por isso eu não vejo como alguém
pode evitar de todo o uso do mecanismo político.
Mas, quando tomada seriamente, a doutrina da “responsabilidade social”
alarga o âmbito do mecanismo político de modo a abranger toda a actividade
humana. Em termos filosóficos, a doutrina da “responsabilidade social” não difere
da mais explícita doutrina colectivista. Ela distingue­‑se apenas por professar a
crença de que os fins colectivos podem ser atingidos sem meios colectivos. É por
isso que, no meu livro Capitalismo e Liberdade, considerei­‑a uma “doutrina funda-
mentalmente subversiva” numa sociedade livre, e disse que, numa tal sociedade,
“há uma e apenas uma responsabilidade social de negócio – usar os seus recursos
e envolver­‑se em actividades concebidas para aumentar os seus lucros, desde que
se mantenha dentro das regras do jogo, o que equivale a dizer envolver­‑se em
concorrência aberta e livre sem engano ou fraude”.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

TEXTO 3
POR QUE AS EMPRESAS NÃO DEVIAM SEMPRE
MAXIMIZAR OS LUCROS

in Kolstad, I. (forthcoming), Why Firms Should Not Always


Maximize Profits, Journal of Business Ethics

RESUMO

Apesar de a Responsabilidade Social Empresarial (RSE) estar na agenda de


muitas das grandes empresas, os Administradores Executivos ainda defendem
largamente o ponto de vista de que as empresas deviam maximizar os retornos
para os seus donos. Há duas linhas de argumentação a favor desta posição. Uma
tem a ver com a visão Friedmaniana, segundo a qual a maximização dos retornos
dos proprietários é a responsabilidade social das empresas. A outra é a posição
defendida por muitos Executivos de acordo com a qual a RSE e os lucros andam
de braços dados. Este artigo defende que a primeira posição é eticamente inacei-
tável, enquanto a última não encontra sustentação em evidências empíricas. A
implicação é que pode haver boas razões para que as firmas se desviem da máxima
sobre a maximização de lucros.

Palavras­‑chave: ética de negócios, Responsabilidade Social Empresarial (RSE),


maximização de lucros, tarefas/obrigações especiais.

INTRODUÇÃO

“A responsabilidade social do negócio é aumentar os seus lucros” (Friedman,


1970). No passado, muitos Administradores Executivos de negócios expressaram o
seu apoio à ideia de que um negócio deveria ser exclusivamente gerido tendo em
vista a obtenção de lucros ou retornos para os accionistas. Contudo, actualmente
muitos Executivos não estão inclinados a exprimir­‑se nestes termos de forma tão
directa. O crescente enfoque sobre a Responsabilidade Social Empresarial (RSE),
ou cidadania empresarial, poderá até dar a impressão de que as empresas podem
ter abandonado a plataforma estreita da maximização de lucros, ao invés disso
passando a colocar ênfase sobre um conjunto de metas mais amplas ou diferentes.

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PARTE III

Contudo, as aparências podem iludir. A partir de uma análise mais pormeno-


rizada, fica claro que a RSE é, em muitos casos, simplesmente vista como um ins-
trumento para aumentar a obtenção de lucros, do que um objectivo fundamental
em si mesmo. A citação que se segue, de um Executivo de topo de uma das maio-
res companhias petrolíferas do mundo, ilustra este ponto: “A responsabilidade
social empresarial não é em si nosso assunto, mas ela é uma forma de conduzir
o nosso negócio, que, acreditamos, nos ajuda a ser mais bem­‑sucedidos a longo
prazo. Comprometer­‑se com uma forma de trabalho socialmente responsável não
é, como alguns críticos defendem, uma distracção em relação ao negócio princi-
pal. Também não entra de alguma forma em choque com a nossa promessa e a
nossa tarefa de produzir valor para os nossos accionistas. Na verdade, o contrário
é que é verdadeiro. Esta agenda é uma tarefa paralela para os nossos accionistas,
que fazem investimentos a longo prazo e que precisam de ter a confiança de que
hão­‑de ver o retorno desses investimentos a longo prazo” (Adrian Loader, Director
de Planificação Estratégica, Desenvolvimento Sustentável e Relações Externas,
Grupo Shell)58.
Por outras palavras, a RSE não é o objectivo final da acção empresarial, é um
meio em direcção ao objectivo final de aumentar os retornos dos accionistas. A
afirmação expressa acima não é de forma alguma única o que indica que a maxi-
mização de lucros ou maximização de retornos dos accionistas continua a ser o
princípio fundamental por que se orientam os Administradores Executivos de
empresas59. Isto tem levado alguns observadores a argumentar que, basicamente,
as políticas de RSE não são sinceras (Bakan, 2004).
Alguns Administradores Executivos de empresas seguem, contudo, uma abor-
dagem menos directa, pondo de lado a questão sobre se a RSE ou a obtenção do
lucro é o objectivo final. Um argumento comummente avançado é que a RSE e
os lucros andam juntos. Esta posição é expressa, por exemplo, no excerto que
se segue abaixo, extraído de um discurso proferido por um Presidente de Conse-
lho de Administração (PCA) da maior Companhia Mundial (em termos de valor
de mercado): “Aquilo de que quero realmente falar é como um PCA ou o que os
líderes de negócios podem fazer para criar uma grande e boa companhia. Grande
no sentido de tremendos resultados para os nossos investidores e para os clien-
tes, crescimento e geração de lucro; e boa no sentido de ligação com o mundo,
acrescentando valia à qualidade da nossa força de trabalho e nossos clientes e
às comunidades de que somos parte integrante. Porque os lucros sozinhos não

58http://www.shell.com/static/media­‑en/downloads/speeches/adrianloader_sg_csr_230220
04.pdf
59 Os executivos geralmente perseguem os seus próprios interesses, em prejuízo dos interes‑

ses dos accionistas, mas a base normativa publicamente expressa é que as suas acções devem
maximizar os lucros dos accionistas.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

podem constituir a reputação. E eu também acredito que fazer coisas correctas


vai em última instância levar a mais lucros” (Jeff Immelt, PCA, General Electric)60.
Se este argumento for convincente, e a RSE e os lucros andarem lado a lado
de forma sistemática, não importa se a empresa avança um ou o outro como o
seu objectivo final. Se todas as boas coisas andam juntas, os Administradores
Executivos nunca terão que enfrentar dilemas ou procurar conseguir o equilíbrio
entre objectivos sociais e a obtenção do lucro.
O que podemos denominar posição neo­‑Friedmaniana sobre RSE defende
que, de todas as possíveis políticas de RSE, os Administradores Executivos deve-
rão adoptar aquelas, e apenas aquelas, que concorram para o aumento dos
retornos dos proprietários. Em contraste, a posição de ausência de dilemas
na RSE postula que quaisquer que sejam as políticas de RSE que uma empresa
adopte, estas irão promover retornos para os proprietários. Este artigo defende
que nenhuma das duas posições expressas acima resiste a um escrutínio minu-
cioso. No ponto 2 são refutados os argumentos a favor da visão Friedmaniana de
maximização de lucros. Mais ainda, argumenta­‑se que a maximização de lucros
implica obrigações especiais de firmas para com os seus accionistas, as quais não
podem ser derivadas de qualquer teoria ética razoável. Usar a RSE apenas como
meio para se atingir um fim de maximização de lucros não é, portanto, eticamente
defensável. No ponto 3 mostra­‑se que a noção de que RSE e lucros andam sem-
pre juntos de forma positiva não é teoricamente consistente, nem suportada por
evidência empírica.

POR QUE A MAXIMIZAÇÃO ILIMITADA DE LUCROS NÃO PODE


SER SUPORTADA POR NENHUMA TEORIA ÉTICA RAZOÁVEL

A ideia de que as empresas deveriam procurar atingir os objectivos dos seus


accionistas toma a sua forma mais evidente no sentimento expresso por Mil-
ton Friedman de que “a responsabilidade social do negócio é aumentar os seus
lucros” (Friedman, 1970). Friedman é muito claro ao afirmar que é ilegítimo que
uma empresa aja de tal forma que seja prejudicial para os retornos dos accionis-
tas61. A maximização de lucros é pois um imperativo moral para os Administradores

60 http://www.ge.com/files/usa/en/company/news/jeff_lmmelt_BC_Speech.pdf
61 Mais precisamente, Friedman defende que os Administradores Executivos de empresas de‑

veriam perseguir os interesses dos accionistas. Em muitos casos, os accionistas poderão que‑
rer dispensar os lucros em nome de outros fins. Mesmo se os accionistas tiverem outros inte‑
resses diferentes da maximização de lucros, isto não reduz a validade dos argumentos que se
seguem, desde que haja um certo desvio entre os interesses dos accionistas e uma visão eti‑
camente motivada de interesses sociais, o que é uma assunção razoável.

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PARTE III

Executivos das empresas. Os interesses de grupos diferentes de accionistas ape-


nas deverão receber alguma importância se a sua persecução de alguma forma
também beneficia estes accionistas. A implicação disto é que a Responsabilidade
Social Empresarial é permitida apenas se esta não for sincera, isto é, usada como
um instrumento para promover os interesses dos accionistas (Bakan, 2004).
Para avaliar se a posição de Friedman pode ser sustentada, vamos considerar
primeiro os argumentos usados em seu apoio. São comummente usados quatro
argumentos básicos para sustentar esta posição. Primeiro, argumenta­‑se que o
contrato entre os accionistas e o gestor de uma empresa obriga este a perseguir
os interesses dos accionistas e, portanto, torna ilegítimo perseguir outros objec-
tivos. Segundo, perseguir outros objectivos em prejuízo dos retornos dos accio-
nistas é equivalente a cobrar impostos aos accionistas e a cobrança de impostos
é tarefa de Governos democraticamente eleitos, o que é ilegítimo ser assumido
por gestores. Terceiro, se os negócios colocam enfoque sobre demasiadas tare-
fas, tarefas que estejam para além das suas operações nucleares, esses negócios
tornam­‑se ineficientes. Uma divisão eficiente de trabalho entre negócios e Gover-
no é que os negócios criem valor e o Governo faça a redistribuição desse valor.
Quarto, um negócio que assuma outras responsabilidades para além da maxi-
mização de lucros irá incorrer em custos adicionais sendo, consequentemente,
varrida na competição por firmas que não assumem tais responsabilidades. Por
outras palavras, assumir responsabilidades caras será autodestrutivo e, em última
análise, fútil.
Vamos a seguir passar em revista cada um destes argumentos.
O primeiro argumento, segundo o qual os gestores têm a obrigação contra-
tual de agir apenas a favor dos interesses dos accionistas, em termos intuitivos
parece demasiado simplista para ser aceite. Duas partes que entram em acordo
de qualquer que seja a natureza não podem defender de forma racional que
isto os livra de responsabilidades para com terceiras partes. Por exemplo, duas
pessoas que contraem matrimónio não podem proclamar que este elo declina
responsabilidades por outros seres humanos. Se este fosse o caso, havíamos de
assistir à proliferação de acordos expressamente concebidos para limitar as res-
ponsabilidades das partes envolvidas. Para além desta refutação intuitiva, é uma
implicação chave da maximização de lucros que as firmas tenham obrigações
especiais para com os proprietários, uma implicação cujo mérito será discutido
com maior detalhe muito em breve.
O segundo argumento, de acordo com o qual é ilegítimo que os gestores impo-
nham impostos aos proprietários, trata a questão da responsabilidade empresarial
de uma forma desnecessariamente complexa. A questão-chave aqui não é se os
gestores deveriam redistribuir a riqueza dos proprietários por outros indivíduos,
mas se os accionistas deveriam abdicar de alguns dos seus retornos para promover

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

outros fins. Se alguém pode exigir que os accionistas sacrifiquem alguns dos seus
retornos para outros fins importantes, então o facto de que um gestor é aquele
que deve pôr isto em prática não invalida a exigência aos accionistas.
O terceiro argumento parte da ideia de uma divisão de trabalho ideal entre
o Governo e o negócio. Ambos são, supostos, ser mais eficientes se colocarem
ênfase sobre as suas obrigações específicas, o que é desvantajoso para a sociedade
como um todo. O problema decorrente deste argumento é que, geralmente, a
situação não permite a divisão de trabalho visada. Em muitos países, em especial
no Terceiro Mundo, Governos e Instituições Públicas são incapazes ou não têm
vontade de assumir muitas das tarefas implícitas na divisão ideal de trabalho.
Dadas as imperfeições ou restrições deste tipo, não é inconcebível que a mais
eficiente divisão de trabalho acarrete maior responsabilidade às empresas, para
além de se concentrarem apenas nas suas operações nucleares de negócio.
O quarto, e último, argumento em defesa da visão de Friedman estabelece
que tomar uma responsabilidade extra colocaria a firma fora do negócio. Uma
forma comum de substanciar este argumento é dizer que algumas formas agem
de forma responsável, e então não são eliminadas pela concorrência. Se os con-
sumidores, trabalhadores ou accionistas valorizarem a responsabilidade empre-
sarial, uma firma responsável poderá sobreviver e até crescer. Num contexto de
competição menos que perfeita, a responsabilidade empresarial poderia até con-
ferir uma vantagem estratégica à firma. E, de facto, a população de firmas num
dado mercado é geralmente muito heterogénea.
Porém, toda esta contra­‑argumentação não mostra que o argumento de
sobrevivência de Friedman esteja exagerado, não refuta totalmente o argumento.
Um contra­‑argumento mais efectivo seria dizer que, se agir de forma respon-
sável coloca a firma em desvantagem no mercado, outros agentes podem ser
responsáveis pelo alívio ou minimização dessa desvantagem. Por exemplo, pode
ser da responsabilidade dos consumidores pagar um preço alto por produtos
provenientes de firmas responsáveis, ou para os accionistas acrescentarem um
retorno de responsabilidade ao retorno financeiro normal das firmas quando alo-
cam fundos de investimento. O que o argumento de sobrevivência faz é tomar a
visão de responsabilidade de forma demasiadamente estreita; quando se discute
a responsabilidade do negócio, não nos devemos apenas confinar na discussão
sobre responsabilidade do negócio, podemos também tomar em conta as tarefas
e obrigações de outros agentes.
Os argumentos comummente avançados para justificar o postulado de que
as empresas deveriam agir de acordo com os interesses dos seus accionistas
desmoronam­‑se ante uma análise minuciosa. Que estes argumentos não são
sustentáveis não implica imediatamente assumir que uma perspectiva ética que
inclua a maximização de lucros pelas empresas seja impossível de conceber. Para

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PARTE III

organizar uma argumentação contra a maximização de lucros, precisamos de


fazer uma análise mais aprofundada, assente na teoria ética. A abordagem adop-
tada por muitos estudos sobre a responsabilidade empresarial consiste em tomar
uma teoria ética particular e a partir dela derivar responsabilidades empresariais.
Por exemplo, Bowie (1999) deduz implicações para empresas a partir da ética de
Kant, e Donaldson e Dufee (1999) fazem o mesmo a partir de um ponto de vista
de contrato social. Tomados como um todo, estes tipos de estudos oferecem
as bases para a discussão da sobreposição de consensos de perspectivas éticas
sobre a maximização de lucros. Contudo, essa base é de necessidade parcial, uma
vez poderem existir outras posições que possam seguir uma visão diferente sobre
maximização de lucros.
Uma abordagem alternativa seria concentrar­‑se sobre o que a máxima de
maximização de lucros implica em termos éticos e discutir se estas implicações
são consistentes com as exigências que colocaríamos sobre uma teoria ética
razoável. Para este propósito, as implicações da maximização de lucros podem
ser formuladas a partir da linguagem de obrigações especiais. Uma obrigação
especial é uma obrigação que temos para com alguns, mas não para com outros
(Goodin, 1988). A visão de que a firma deveria maximizar os lucros ou os retor-
nos dos proprietários acarreta imediatamente uma obrigação da empresa para
com os proprietários, uma obrigação que esta empresa não tem para com outros
agentes. Assim, maximização de lucros implica que:
a) Uma firma tem uma obrigação especial para com os seus donos. Em geral,
ter obrigações especiais para com um agente não implica necessariamente
declinar obrigações para com outros agentes. Contudo, a maximização ili-
mitada de lucros ou a ideia Friedmaniana de que é ilegítimo desviar­‑se da
maximização de retornos dos proprietários, implica que a obrigação espe-
cial para com os proprietários sobrepõe­‑se a quaisquer obrigações que a
firma possa ter para com outros agentes.
b) A obrigação especial das firmas para com os seus proprietários assume pre-
ferência em relação a obrigações para com outros parceiros.

Assim, a maximização de lucros não implica apenas que a firma tem obriga-
ções especiais para com os seus proprietários, que a obrigação é também precisa
ou obrigação preferencial no sentido de que esta não pode ser renegada para se
satisfazerem outras obrigações.
A questão, então, é se este tipo particular de obrigação especial pode ser
defendido do ponto de vista ético. Na teoria ética, obrigações especiais são deri-
vadas de duas formas. Uma abordagem consiste em dizer que um agente tem
uma obrigação especial para com outra pessoa porque entre eles se estabelece

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

um certo tipo de relação. Nestes termos, esta pode ser a denominada abordagem
de relações sobre as obrigações especiais. Outra abordagem consiste em tomar
um ponto de vista universalista e afirmar que qualquer um tem as mesmas obri-
gações gerais para com qualquer outra pessoa, mas que estas obrigações gerais
podem ser desvinculadas de forma mais efectiva se a cada agente se atribuem
obrigações especiais para com um conjunto limitado de outros agentes62. Esta é
basicamente a abordagem de atribuição de tarefas de Goodin (1985, 1988).
No artigo sobre a identificação de accionistas, Cappelen (2004) distingue três
tradições na abordagem de relações: a tradição voluntarista, a tradição de bene-
fícios mútuos e a tradição comunitária. Tendo em vista um ponto mais geral, é
instrutivo analisar como as obrigações especiais decorrentes da maximização de
lucros se inserem no quadro destas três tradições.
De acordo com a tradição voluntarista, as obrigações especiais surgem apenas
a partir de um acordo voluntário e esclarecido. O liberalismo, tal como avançado
por Nozick (1974), é talvez a forma melhor conhecida destes tipos de teoria.
De acordo com esta teoria impor acções não­‑voluntárias aos indivíduos viola os
direitos individuais, ou os seus direitos básicos à vida, saúde, propriedade ou
liberdade. A ideia de que os direitos individuais são violados se uma acção não
for voluntária implica certamente que as obrigações especiais apenas surgem da
associação voluntária, tal como entre os donos de uma firma ou entre a gerência
e os donos da firma. Portanto, a implicação a) acima pode ser reivindicada num
contexto liberal.
Contudo, é errado dizer que isto implica que a maximização de lucros pode
ser almejada em todos os casos, que as partes constituintes de um acordo volun-
tário podem perseguir os seus fins de forma ilimitada. De acordo com o liberalis-
mo, usar o trabalho escravo seria incorrecto, ainda que isso possa aumentar os
lucros. E apropriar­‑se de recursos pertencentes a outros seria também incorrecto,
ainda que isso pudesse aumentar os lucros. A apropriação de recursos poderá
ser incorrecta mesmo em certos casos em que esses recursos não têm dono, de
acordo com a cláusula de Locken de deixar “o suficiente e tão bom para os
outros”, expressa por Nozick. Alguém pode até formular uma argumentação
contra acções que infrinjam a possibilidade de outras pessoas entrarem para a
associação voluntária, através de acções como a quebra de união. O ponto é que,
ainda que as obrigações especiais possam apenas surgir através da associação
voluntária, isto não invalida a obrigação das partes do pacto de respeitarem os
direitos individuais dos agentes que não sejam parte do pacto. Por outras pala-
vras, a implicação b) acima não pode ser justificada no âmbito do contexto liberal.
Em síntese, Friedman não é um liberal.

62Uso aqui o termo universalista no seu sentido restrito, uma vez que muitas abordagens de
relações discutidas abaixo são comummente assumidas como universalistas.

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PARTE III

Embora os argumentos acima estejam relacionados em particular com o


liberalismo, há uma tese geral a ser aqui sustentada. Na tradição voluntarista,
qualquer teoria aceitaria obrigações especiais apenas se imputadas por meio de
um certo consentimento voluntário. Inversamente, qualquer teoria nesta tradição
consideraria imorais acções que de alguma forma violassem a ideia de volunta-
riedade. Qualquer acção, realizada por partes voluntariamente ligadas umas às
outras, tal como os donos de uma empresa, que imponham qualquer tarefa invo-
luntária a outros agentes, seria então ilícita. Assim, na tradição voluntarista há
limites quanto à maximização de lucros, limites que se aplicam a qualquer uma
das linhas desta tradição.
Na tradição comunitária, um agente é “em parte, definido através das suas
relações e vários direitos, obrigações e outros aspectos que os acompanham, de
tal forma que estes compromissos em si constituem um elemento básico da per-
sonalidade” (Miller, 1988:650). Um agente está inserido num contexto social e
cultural, de tal forma que reduzir o nível de compromisso para com a sua comu-
nidade seria equivalente a mudar a identidade individual. A implicação de uma tal
posição é que as obrigações especiais surgem das relações que são os constituin-
tes chave da identidade de um agente. Há várias formas através das quais se pode
delimitar o tipo de relações que, neste sentido, são moralmente relevantes. Miller
defende que a comunidade em questão seja “constituída por crenças comuns de
um conjunto de pessoas” que: (i) elas partilhem o sentimento de pertença; (ii) a
sua associação não seja nem transitória nem instrumental; (iii) a sua comunidade
tenha características distintivas e que (iv) haja lealdade no sentido de vontade de
sacrificar os ganhos pessoais para priorizar os interesses da comunidade.
Parece uma proposição estranha sugerir que o relacionamento entre firmas
e proprietários, ou entre os donos da firma, tome a forma exigida pela tradição
comunitária. De acordo com os critérios de Miller, a relação firma­‑proprietário falha
em vários aspectos. Muitas vezes, e quiçá de forma predominante, os investimen-
tos dos donos numa firma são feitos tendo em vista um ganho pessoal a curto prazo
e ninguém pode, em geral, argumentar que a relação entre um proprietário e a sua
firma não seja “nem transitória nem instrumental”. A noção de lealdade usada por
Miller também apenas parcialmente se ajusta à relação firma­‑proprietário, pois os
donos das firmas raramente estão preparados para incorrer em perdas pessoais,
em nome da promoção de interesses da firma ou de outros donos.
De um modo geral, ninguém pode, de forma convincente, argumentar que os
tipos de relações que surgem entre firmas e donos tenham que estar suficiente-
mente ligadas à identidade dos donos para se ter uma posição moral de acordo
com a tradição comunitária. Os laços económicos que surgem entre os proprie-
tários e a firma são inteiramente diferentes dos factores sociais e culturais que
definem o que é um agente.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Portanto, a comunidade accionista não é o tipo de comunidade a que se dá


uma posição moral especial na tradição comunitária. Mais ainda, no mundo
global, muitas firmas têm proprietários provenientes de partes do mundo extre-
mamente diferentes, proprietários que têm uma lealdade para com comunidades
social e culturalmente constituídas de formas diferentes, o que é difícil de conci-
liar com uma lealdade rígida da comunidade de accionistas. Em resumo, dentro
da tradição comunitária, as relações constituídas entre um proprietário e uma
firma não são moralmente relevantes no sentido de que elas levantam as obriga-
ções especiais implícitas na maximização de lucros.
No que se pode designar de tradição de benefícios mútuos, a cooperação
social é vista como parte das circunstâncias de justiça. Esta ideia é central nas
Teorias de Rawls (1971) e Gauthier (1985), mas também pode ser associada a
David Hume (1986). No âmbito desta tradição, a cooperação entre indivíduos é
considerada essencial porque ela aumenta as possibilidades de produção, criando
assim uma produtividade social. Contudo, com a cooperação também surge a
obrigação de distribuir de forma justa os benefícios da cooperação pelos indiví-
duos que fazem parte dessa cooperativa. Nesta tradição, a relação moralmente
relevante reflecte, pois, uma iniciativa de cooperação visando aumentar o tama-
nho do bolo. Em contraste com a teoria voluntarista, a relação não tem que ser
necessariamente voluntária para produzir obrigações distributivas.
Agora, a firma pode ser vista como um tipo de cooperativa através da qual
os proprietários colaboram de modo a aumentar as possibilidades de produção.
Isto poderia parecer acarretar uma obrigação especial da firma para com os seus
donos. No entanto, os proprietários não são os únicos parceiros de cooperação
envolvidos na criação da produtividade social da firma. A criação da produtividade
necessita também da cooperação de outros grupos, tais como trabalhadores,
clientes, fornecedores e, muitas vezes, os Governos. Portanto, na tradição de
benefícios mútuos, as obrigações especiais da firma abrangem não só os pro-
prietários, como também um conjunto de outros grupos. Por outras palavras, a
tradição de benefícios mútuos pressupõe mais do que um interveniente, con-
trariamente à perspectiva de accionista sobre as obrigações empresariais. Daqui
decorre então que as obrigações especiais restritas para com os proprietários,
implícitas na maximização dos lucros, não encontram justificação no âmbito da
tradição de benefícios mútuos.
Assim, nas abordagens de relações sobre obrigações especiais, não parece
haver espaço para a maximização de lucros e as suas correspondentes obrigações
especiais. Se as abordagens de relações não conseguem oferecer uma base moral
para a maximização de lucros, a alternativa é tentar encontrar tal base nas teorias
universalistas, tais como o Utilitarismo ou Kantianismo. Nestes tipos de teorias,
o ponto de partida é que cada pessoa tem as mesmas obrigações gerais para

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PARTE III

com qualquer outra pessoa. Contudo, estas obrigações gerais podem ser desvin-
culadas de forma mais efectiva se se atribuem aos agentes tarefas especiais em
relação a um subconjunto da população total ou a um conjunto de obrigações. A
atribuição de tarefas especiais produz a divisão de trabalho moral que, de forma
mais efectiva, permite que as obrigações gerais sejam satisfeitas. Esta é a aborda-
gem de atribuição de tarefas de Goodin (1985, 1988), que assenta na perspectiva
“consequencialista”, mas é também consistente com outras teorias universalis-
tas63.
A implicação da abordagem de atribuição de tarefas é que a responsabilidade
principal por uma tarefa deverá ser alocada ao agente ou grupo de agentes que
possam realizar tal tarefa de forma mais efectiva. Actualmente há uma vasta
gama de literatura em Economia que discute a eficiência do mercado económico,
incluindo a maximização de lucros pelas firmas. Tendo como base o primeiro e o
segundo Teoremas de Bem­‑Estar da Economia, pode constituir­‑se um argumento
sobre o uso eficiente dos recursos produtivos da sociedade64. Por outras palavras,
para preservar a eficiência que alimenta as propriedades do mercado económico,
pode defender­‑se a divisão de trabalho moral, na qual se atribui às firmas a tarefa
de maximizar os lucros, enquanto se atribui ao Estado a tarefa de redistribuir os
rendimentos e corrigir as falhas que surjam no mercado. Tendo como base esta
linha de pensamento, consegue­‑se um argumento de primeira água a favor da
maximização de lucros pelas firmas.
Porém, esta divisão particular de trabalho moral assenta crucialmente na
assunção de que o Estado é capaz e tem vontade de realizar as tarefas a si aloca-
das. No caso em que o Estado não consegue realizar estas tarefas, elas tornam­‑se
uma “responsabilidade residual de todos” (Goodin, 1985:684). Se o Estado não
cumpre com as suas responsabilidades, outros agentes, incluindo firmas, têm
responsabilidades secundárias, ou de apoio, para assegurar que estas tarefas
sejam realizadas (Goodin, 1985). Por outras palavras, no âmbito da abordagem
de atribuição de tarefas, há casos em que as firmas devem desviar­‑se da maximi-
zação de lucros. Nas palavras de Goodin (1988:679): “Se se puder mostrar que as
obrigações especiais derivam toda a sua força moral das suas ligações com obri-
gações gerais, então elas são susceptíveis de serem suplantadas (pelo menos em
parte ou em circunstâncias excepcionais) por aquelas considerações mais gerais”.
A última observação ilustra muito bem o ponto geral demonstrado pela dis-
cussão acima sobre as abordagens de relações e de atribuição de tarefas. Nas
teorias universalistas, as tarefas especiais são meros dispositivos administrativos

63Veja­‑se Shue (1988), que discute a divisão de trabalho moral na atribuição de tarefas cor‑
relacionadas com os Direitos Humanos.
64 Para uma elaboração mais detalhada das implicações da abordagem de atribuição de tare‑
fas, veja­‑se Cappelen e Kolstad (2006).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

que nos permitem realizar as tarefas gerais de forma mais efectiva. No caso
de ruptura registada numa divisão de trabalho moral, incumbe­‑se aos agentes
desviarem­‑se das tarefas especiais que lhes tiverem sido atribuídas para se asse-
gurar que as tarefas gerais sejam devidamente realizadas. Dito de outro modo,
é possível que não haja nenhumas obrigações especiais das firmas para com os
seus proprietários que assumam prioridade em todos os contextos e situações.
Em abordagens universalistas, o espaço para as tarefas especiais, tal como implí-
cito na maximização de lucros, é restringido.
A abordagem de relações sobre obrigações especiais e, em particular o comu-
nitarismo, pode ser visto como uma reacção à ideia universalista segundo a qual
toda a gente deveria contar de forma igual nas nossas deliberações morais. Algu-
mas relações podem ser mais importantes para nós do que outras, por exemplo,
aquelas intimamente relacionadas com o nosso sentido de identidade, o que
implica que pode haver razão para aceitar tarefas especiais de agentes com os
quais temos este tipo de relações. Numa tentativa de aligeirar os requisitos muito
rígidos de imparcialidade, emanados nas teorias universalistas, as abordagens de
relações de certa forma delimitam até que ponto tarefas podem ser parciais rela-
tivamente a certos grupos ou indivíduos através da definição do que conta como
relações moralmente relevantes. Em todas as tradições relacionais, discutidas
acima, as obrigações especiais de firmas para com os seus donos, implícitas na
maximização de lucros, ou não conseguem ter suporte em relações com impor-
tância moral ou são baseadas em relações que não são as únicas moralmente
relevantes.
Este ponto também se estende a todas as abordagens de relações razoáveis
para além das três aqui discutidas. Proprietários não detêm monopólio sobre a
identidade, direitos individuais, associação voluntária, cooperação mutuamente
vantajosa ou qualquer outra coisa que possa estar subjacente nas obrigações
especiais rígidas de firmas para com os seus donos. Defender que proprietários
são de alguma forma especiais porque estabelecem relações que outros não
estabelecem é argumentar implicitamente que eles são especiais porque são
proprietários. E, para além de violar os requisitos de imparcialidade das teorias
universalistas, isto poderia enfraquecer os requisitos de imparcialidade muito
para além do que seria permitido por qualquer abordagem de relações razoável.
Portanto, as tarefas especiais implícitas na maximização de lucros não podem ser
defendidas sob o ponto de vista de qualquer posição ética, posição universalista
ou qualquer outra posição razoável.
Uma forma similar de pôr esta questão seria dizer que uma teoria ética cons-
tituída em torno da ideia ou consistente com a ideia de que as empreses deviam
apenas perseguir os interesses dos proprietários incluiria um forte elemento de
egoísmo por parte dos proprietários. Como Williams (1993:12) defende, “temos

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PARTE III

a concepção de ética que, compreensivelmente, relaciona connosco e com as


nossas acções as exigências, necessidades, pontos de vista, desejos e, de um
modo geral, as vidas de outras pessoas, e é útil preservar esta concepção no que
estamos preparados para denominar uma consideração ética”. Uma teoria ética
inteiramente baseada no interesse próprio deixa assim de lado uma componente
essencial de qualquer teoria ética razoável.
Ainda que não se possa encontrar uma base ética razoável para justificar as
tarefas especiais rígidas, implícitas no princípio de que as firmas deveriam sem-
pre e apenas maximizar os lucros ou os retornos dos accionistas, isto não significa
que na ética não haja espaço para a maximização de lucros. As firmas podem
ter obrigações especiais para com os seus donos, mas estas serão derivativas e
condicionais, e podem ter que ser desviadas de modo a satisfazerem­‑se outras
obrigações. Por exemplo, no quadro universalista, discutido acima, pode ser
eficiente que as empresas maximizem os lucros e os Governos tomem conta da
redistribuição. Este argumento pressupõe, contudo, a existência de alguma forma
de Governo que possa redistribuir efectivamente os proventos, caso contrário o
argumento desmorona­‑se e a melhor situação não é necessariamente alcançada
por deixar que as empresas maximizem os lucros. Uma vez que a maximização de
lucros é um conceito derivativo da acção empresarial, será assim sujeita a excep-
ção, algumas vezes será necessário que se faça um desvio dessa obrigação para se
honrarem outras obrigações.
A implicação dos argumentos expressos nesta secção é que a posição neo­
‑Friedmaniana de que as políticas de RSE deveriam ser apenas usadas para
aumentar os retornos dos accionistas é eticamente indefensável.
Os argumentos comuns usados para sustentar a posição Friedmaniana não
encaixam. Nenhuma teoria ética razoável pode defender a posição das obrigações
especiais rígidas para com os proprietários, implícita na maximização de lucros.
Uma vez que obrigações especiais para com os proprietários são derivadas de
uma teoria ética, elas serão sujeitas a excepções, o que implica que as políticas de
SER, às vezes, podem ser usadas para alimentar outros fins diferentes da maximi-
zação de lucros.

RSE E LUCROS NÃO ESTÃO SEMPRE JUNTOS

Se todas as boas coisas andam juntas, então não há razão para uma teoria ética,
para além de definir o que se pode considerar bom. Não haveria necessidade de
um raciocínio ético em termos de procurar encontrar equilíbrios e resolver dile-
mas, para fazer julgamentos em casos difíceis em que um conjunto de interesses

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

ou objectivos é jogado contra outro. Muito do que foi desenvolvido na área


da ética estaria fora de questão, uma pessoa utilitarista poderia simplesmente
maximizar utilidades individuais ao invés da soma das utilidades de todos os indi-
víduos, o que, entre outras coisas, implica que o Teorema de Arrow não assume
tanta importância (Arrow, 1951).
A ideia de que a responsabilidade social empresarial e lucros andam juntos
é uma versão afunilada desta noção mais geral. Contudo, esta ideia não resiste
a um escrutínio minucioso, quer sob o ponto de vista teórico, quer empírico. Do
ponto de vista teórico, a posição de que a RSE sempre aumenta os lucros é de
certa forma facilmente refutável. Certamente que uma companhia pode gran-
jear reputação por fazer um certo tipo de trabalho de beneficência que vá para
além das suas operações normais. Mas depois do impacto inicial, a companhia
não conseguirá tanto efeito por expandir mais as suas actividades de RSE. A dado
ponto, os custos da expansão das actividades de RSE vão superar os benefícios
para a companhia. Posto de forma simples, os lucros de uma companhia não
aumentam indefinidamente em função do número de escolas ou hospitais que
ela financia. Se este fosse o caso, deveríamos deixar todo o financiamento dos
sectores sociais nas mãos do sector privado, uma vez que eles podem construir e
gerir hospitais de graça.
Se olharmos para estudos empíricos sobre como o Desempenho Social
Empresarial (DSE) afecta a obtenção de lucros, não seremos levados a concluir
a partir daí que a relação seja no geral positiva. Numa revisão levada a cabo por
Griffin e Mahon (1997), foram identificados 51 estudos que exploraram esta
relação. Embora muitos destes estudos tenham constatado que o DSE influen-
cia positivamente o desempenho financeiro, um número substancial de estudos
constatou não haver efeitos ou mesmo a existência de efeitos negativos. Hillman
e Keim (2001) também sugerem que certos tipos de RSE afectam positivamente a
procura do lucro, ao passo que outros não. Isto sugere que agregar dimensões de
DSE numa só ofereceria diferentes respostas à relação entre DSE e lucros, depen-
dendo da forma como as dimensões do DSE forem medidas.
Numa tentativa de chegar a uma resposta conclusiva baseada em estudos
anteriores, Orlitzky et al. (2003) realizou uma meta­‑análise que usou uma técnica
de medição particular. A sua conclusão foi que há uma correlação positiva entre
o DSE e o desempenho financeiro ou que “a responsabilidade social... é passível
de trazer retornos”. Contudo, dadas as limitações metodológicas de estudos pas-
sados, não se pode confiar que a meta­‑análise de Orlitzky et al. ofereça uma res-
posta definitiva. Muitos dos estudos passados têm como base dados limitados e/
ou omitem variáveis de controlo importantes, e/ou têm outras limitações meto-
dológicas e, portanto, qualquer tentativa de agregar os seus resultados torna­‑se
insignificante.

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PARTE III

Abordando a questão de omissão de variáveis, McWilliams e Siegel (2000)


mostram que acrescentar a intensidade R&D como uma variável de controlo muda
os efeitos de DRS sobre os lucros de positivo para insignificante. Eles tomam isto
como evidência a favor da linha de argumentação segundo a qual as companhias
expandem as suas actividades até ao ponto em que as receitas marginais são
iguais aos custos marginais, o que significa que não há lucros a serem obtidos da
expansão deste tipo de actividades.
Uma dúvida adicional advém do facto de estudos passados sobre o DSE e
lucros assentarem em técnicas trans­‑sectoriais, não fazendo controlo da hete-
rogeneidade das empresas. Uma vez que estudos passados usam tipicamente
dados sobre firmas de diferentes indústrias, a heterogeneidade empresarial pode
ser substancial, o que implica que estes estudos não identificam adequadamente
o efeito do DRS sobre os lucros. Numa importante contribuição, Elsayed e Paton
(2005) mostram que enquanto a estimativa trans­‑sectorial providencia um efeito
positivo do desempenho ambiental empresarial sobre os lucros, a estimativa de
painel de dados não revela qualquer efeito significativo. Uma maior estimativa de
painel de dados pode assim mudar substancialmente os resultados e é importante
que isto seja explorado para dimensões de DRS, que não apenas o desempenho
ambiental.
Por último, um estudo levado a cabo por Darnall et al. (2004) sobre desem-
penho ambiental e obtenção de lucros sugere que “muitos modelos de estima-
tiva usados em estudos anteriores não tiveram em conta que o desempenho
ambiental de uma empresa é endógeno”, isto é, influenciado pelo desempenho
financeiro. O estudo conclui, pois, que “resultados de estudos anteriores devem
ser interpretados com cuidado e que são necessários estudos adicionais para se
avaliarem ainda mais estas relações”, uma questão que se estende, obviamente,
aos estudos de DSE em geral e procura do lucro.
Tanto quanto se pode dizer a partir de estudos empíricos é que a relação
entre a Responsabilidade Social Empresarial e lucros ainda não foi adequada-
mente determinada. Contudo, tendo como base argumentos teóricos razoáveis,
não há razão para esperar que dados empíricos mostrem que essa relação seja
no geral positiva. A visão não dilemática da Responsabilidade Social Empresarial,
segundo a qual a RSE aumenta os lucros e que a questão sobre que fim deve ser
perseguido, é portanto trivial e sem suporte.

CONCLUSÃO

Conta­‑se que o comediante e produtor de cinema Woody Allen disse uma


vez o seguinte: “Não tenho medo de morrer, o que eu não quero é apenas estar

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

lá presente quando isso acontecer”. Os Administradores Executivos de empresas


tratam hoje os dilemas da mesma forma, eles preferiam não encarar qualquer
um desses dilemas, mas apenas definirem­‑nos. Contudo, como a análise anterior
mostra, há dilemas reais que precisam de ser enfrentados. A Responsabilidade
Social Empresarial, no geral, não aumenta a obtenção do lucro. E quando Admi-
nistradores Executivos de empresas apenas implementam acções de responsa-
bilidade empresarial que promovam lucros, e apenas até ao ponto em que estas
actividades promovem efectivamente o lucro, estão a ter apenas uma orientação
para o lucro, não estão a ser responsáveis. Esta é de facto a procura do lucro sob
capa da RSE. A forma correcta de abordar a questão da Responsabilidade Social
Empresarial consiste primeiro em perguntar por que aspecto(s) é que a Compa-
nhia é responsável e daí implementar essas responsabilidades, quer elas aumen-
tem os lucros ou não.
Aqui o Executivo relutante poderá recorrer a Friedman e argumentar que a
responsabilidade do negócio aumenta os lucros e apenas isso. Contudo, como foi
defendido neste artigo, do ponto de vista ético, esta é uma posição inaceitável.
Há, pois, uma possibilidade muito real de, em certos casos, as empresas se des-
viarem da maximização de lucros, da maximização de retornos, e perseguirem
fins que sejam mais importantes do ponto de vista social. Isto não significa que
as empresas devam abandonar de todo a maximização de lucros. Por exemplo,
os efeitos de aumento da eficiência desta procura pode, em certos casos, tornar
legítima a maximização de lucros, mas, noutros casos, outros interesses assumi-
rão primazia.
Definir exactamente em que consiste a Responsabilidade Social Empresarial
é uma questão que sairia a ganhar com a realização de mais estudos. Um tipo de
abordagem que pode ser adoptada é aquela de Cappelen e Kolstad (2006), que
procura derivar uma divisão ideal de trabalho moral entre o negócio e outras
instituições. Uma das implicações da sua análise é que se as empresas devem ou
não maximizar os lucros depende da habilidade das outras instituições de desem-
penhar outras funções importantes. Isto implica que em países em que as insti-
tuições públicas não são incapazes de desempenhar funções normalmente a elas
atribuídas, a responsabilidade das empresas aumenta e então deverão desviar­‑se
da maximização de lucros. Por outras palavras, este tipo de análise implica que
em países pobres as empresas têm maior responsabilidade social do que em paí-
ses ricos.

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PARTE III

TEXTO 4
QUANTO CUSTA UMA POSIÇÃO DE SUPERIORIDADE ÉTICA?
(DILEMAS ÉTICOS EM AMBIENTES COMPETITIVOS)

in Frank, R. H. (2003), What Price the Moral High Ground?:


Ethical Dilemmas in Competitive Environments, Priceton:
Princeton University Press

No seu célebre artigo de 1970, Milton Friedman escreveu que “há uma e ape-
nas uma responsabilidade social no negócio – usar os seus recursos e empenhar­‑se
em actividades que aumentem os seus lucros desde que se mantenham dentro das
regras do jogo, que o mesmo é dizer, empenhar­‑se numa competição aberta e livre
sem decepção ou fraude”. Do ponto de vista de Friedman, os gestores que per-
seguem metas sociais mais amplas – digamos, adoptando emissões padrão mais
estritas do que as exigidas por Lei ou através da doação de fundos das empresas a
organizações de caridade – estão simplesmente a gastar o dinheiro dos outros. As
empresas geridas por estes gestores terão custos mais elevados do que aquelas
geridas por gestores cujo objectivo é maximizar a riqueza dos accionistas. De acordo
com a teoria padrão dos mercados competitivos, estas últimas atrairão mais capi-
tal e eventualmente atirarão com as primeiras para fora do negócio.
Certamente que, como o próprio Friedman claramente reconhece, há muitas
circunstâncias nas quais os limitados interesses da empresa coincidem com os
da comunidade em geral. Ele escreve, por exemplo, que “pode muito bem ser do
interesse a longo prazo de uma empresa, que é um empregador importante numa
pequena comunidade, dedicar recursos para providenciarem bens que facilitem a
vida dessa comunidade ou para melhorar o seu Governo. Isso pode tornar mais fácil
atrair empregados desejáveis, pode reduzir a conta dos salários ou minorar prejuí-
zos resultantes de roubos e sabotagem ou ter outros efeitos lucrativos” (1970, 24).
Friedman argumenta contra o uso do termo “responsabilidade social” para
caracterizar as actividades de uma empresa que, embora servindo a comunidade
em geral, aumenta também os seus lucros. Ele acredita que esta linguagem pos-
sui um grande potencial para enganar políticos e eleitores acerca do papel ade-
quado da empresa na sociedade e promoverá o excesso de regulamentação.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Nos anos seguintes à escrita de Friedman, o desenvolvimento da teoria dos


jogos repetidos deu­‑nos contas sempre mais sofisticadas dos poderes que fre-
quentemente alinham os interesses próprios pelos interesses dos outros. Por
exemplo, Robert Axelrod sugere que as empresas pagam aos seus fornecedores
não porque sintam uma obrigação moral de o fazer, mas sim porque vão precisar
de fornecimentos da parte deles no futuro (1984, 59).
Com frequência, interacções repetidas dão claramente lugar aos comporta-
mentos imbuídos de responsabilidade social. Conforme Friedman ainda sugere,
é errado – ou pelo menos enganoso – chamar a estes comportamentos moral-
mente louváveis. Afinal de contas, mesmo uma empresa cujos proprietários não
estejam preocupados acerca do bem­‑estar da comunidade em geral, terá amplos
motivos para neles se empenhar. Quando os incentivos materiais favorecem a
cooperação, é mais descritivo chamar “prudentes” às partes cooperantes do que
“socialmente responsáveis”.
É também um erro assumir que interacções repetidas forneçam sempre solu-
ções já prontas para dilemas sociais e outros problemas de acção colectiva. Mesmo
entre as partes que lidam repetidamente uma com a outra, frequentemente
surgem dilemas que se colocam uma única vez – oportunidades para enganar e
outros comportamentos oportuníssimos. Mesmo um cliente de longa data de um
escritório de advogados, por exemplo, não tem forma de verificar que é facturado
somente pelo número de horas de trabalho realmente despendidas.
Em muitos casos, o conhecimento de que surgirão oportunidades para
defraudar pode, por outro lado, impedir oportunidades de negócios lucrativas.
Considere­‑se uma pessoa cujo fundo de investimento passou a estar sob nova
gestão. Ela precisa de conselho sobre se o fundo deve permanecer com a nova
gestão ou se deve mudar para um fundo diferente. Dado que existem muitos cor-
retores que estão bem familiarizados com as alternativas disponíveis, existe clara-
mente a possibilidade de uma venda de aconselhamento mutualmente benéfica,
ainda que o investidor saiba também que os interesses de um corretor podem
diferir dos seus. Pode ser que, por exemplo, o corretor venha a receber uma
grande comissão ou taxa de aplicação se o cliente mudar para um novo fundo, ou
talvez, como foi aparentemente lugar­‑comum durante o crescimento repentino
do mercado de valores nos anos 90, o corretor pode ter recomendado títulos
específicos que favorecessem a divisão de investimento bancário da sua empresa.
Temendo as consequências de um comportamento oportunista, o investidor
pode abster­‑se de procurar conselho, privando­‑se a ele próprio e a um corretor
informado dos ganhos resultantes da operação.
Quando as partes de uma transacção comercial se confrontam com um dilema
único, os seus proveitos serão mais elevados se abandonarem do que se coope-
rarem. Mesmo assim, quando cada parte abandona, os lucros para cada um são

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PARTE III

mais baixos do que se tivessem cooperado. Neste texto referir­‑me­‑ei a empresas


que cooperam em dilemas que se colocam uma única vez como empresas “social-
mente responsáveis”.
A questão que coloco é se tais empresas podem sobreviver em ambientes
competitivos. Ao primeiro olhar, parecerá que a resposta deve ser não, pois caso
o abandono tenha sido na verdade a estratégia dominante, as empresas social-
mente responsáveis terão sempre lucros mais baixos em vez da pura maximização
do lucro. Mas, conforme dizemos no texto 1, a cooperação em dilemas únicos é
sustentável para indivíduos em ambientes competitivos se se verificarem certas
condições. Neste texto sugerirei que conclusões similares parecem aplicar­‑se no
caso das empresas competitivas.

CINCO FORMAS DE UMA EMPRESA SOCIALMENTE


RESPONSÁVEL PODER PROSPERAR

O modelo de compromisso descrito no texto 1 mostra como é possível indi-


víduos cooperantes sobreviverem em ambientes competitivos. O que tem este
modelo a dizer sobre as possibilidades de sobrevivência das empresas socialmente
responsáveis? O problema que estas empresas enfrentam é que, cooperando
em dilemas que se colocam uma única vez, recebem lucros menores do que as
empresas que abandonam. De seguida, descreverei cinco possíveis vias para a
empresa socialmente responsável poder compensar essa desvantagem. As pri-
meiras três envolvem a capacidade de resolver problemas de compromisso que
surgem dentro e entre as empresas. As últimas duas focam o facto de as pessoas
valorizarem a acção socialmente responsável e estarem dispostas a pagar por isso
no mercado, mesmo quando disso não beneficiam num sentido material.

Resolução de problemas de compromisso que surgem entre proprietários,


gestores e empregados

Do mesmo modo que problemas de compromisso surgem entre indivíduos


independentes, também surgem entre proprietários, gestores e empregados.
Muitos destes problemas podem ser resolvidos por meio de mecanismos simi-
lares aos que funcionam para indivíduos independentes. Seguem­‑se alguns
exemplos.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• Preguiça e oportunismo. O proprietário de um negócio vê uma oportunidade


de abrir uma filial numa cidade afastada. Sabe que se puder contratar um
gerente honesto, a filial será altamente lucrativa. Mas ele não pode monito-
rar o gerente e se este o enganar a filial tornar­‑se­‑á não rentável. Enganando
o gerente pode ganhar três vezes mais do que se fosse honesto. Esta situação
define um problema de compromisso. Se ao proprietário faltar a capacidade
de identificar um gerente honesto, o negócio não pode prosseguir. Mas se
ele tiver essa capacidade, pode pagar bem ao gerente e obter ainda um
retorno atractivo.
• Preço por peça. Nos casos em que a produtividade individual pode ser
medida com razoável exactidão, a teoria económica identifica esquemas de
pagamento por peça como uma forma simples e atractiva de extrair esforço
dos trabalhadores. Estes, contudo, desconfiam notoriamente dos preços por
peça. Receiam que se trabalharem tão esforçadamente quanto são capazes
pelo preço por peça determinado, a gestão intervirá e reduzirá o preço. Há
na realidade uma vasta literatura que descreve os elaborados subterfúgios
empregues pelos trabalhadores para que isto não aconteça. Esta literatura
descreve numerosos casos nos quais o preço por peça foi abandonado, não
obstante ter conduzido a aumentos significativos de produtividade. Se as
decisões sobre preço por peça fossem colocadas nas mãos de alguém que
tivesse obtido a confiança dos trabalhadores, ganhariam proprietários e tra-
balhadores.
• Possibilidade de continuar a carreira. Muitos dos conhecimentos que se
adquirem no emprego são específicos da empresa. Ao aceitar um emprego a
longo prazo numa única empresa, um trabalhador pode prever que chegará
o dia em que o seu conjunto específico de conhecimentos, embora ainda de
valor para o seu empregador, será de valor relativamente baixo no mercado,
em geral. E com as suas oportunidades lá fora diminuídas, encontrar­‑se­‑á
crescentemente à mercê do seu empregador. Claro que as empresas têm
certo interesse em estabelecerem uma reputação de tratarem de forma justa
os seus trabalhadores nestas circunstâncias, pois isso ajudá­‑las­‑á nos seus
esforços de recrutamento.
Muitos trabalhadores, porém, acharão que o interesse da empresa por si só
pode não proporcionar segurança adequada. Uma empresa pode descobrir,
por exemplo, que a sua base de emprego mudará para o estrangeiro nos pró-
ximos anos e, deste modo, tem pouco a perder se diminuir a capacidade de
recrutamento no mercado doméstico. Qualquer empresa que se acredite ser
motivada apenas pelo seu próprio interesse económico estaria assim desde
o princípio em desvantagem no recrutamento. Em contraste, uma empresa

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PARTE III

cuja gerência pode persuadir os trabalhadores que o tratamento justo dos


mesmos é um objectivo valioso para sua própria segurança, poderá escolher
os trabalhadores mais capazes e atractivos.
• Aumento dos perfis salariais. É um padrão comum nos esquemas de
pagamento industriais que em cada ano novo os salários aumentem mais
rapidamente do que a produtividade. Para que isto aconteça, o pagamento
deve ser menor do que o valor da produtividade no início da carreira do tra-
balhador, e maior do que o valor da produtividade numa fase mais avançada
da sua carreira. Há várias razões que explicam este padrão. Uma é que ele
desencoraja a fuga ao trabalho por preguiça porque o trabalhador sabe que
se for apanhado em falta não sobreviverá até à altura de receber o paga-
mento com prémio dos anos na fase final da carreira. A segunda razão é
que os trabalhadores simplesmente gostam de perfis salariais crescentes.
Podendo escolher entre dois empregos com o mesmo valor actual de ren-
dimento de toda a vida, um com um perfil salarial constante e o outro com
um perfil ascendente, muitas pessoas optam pelo segundo. Qualquer que
seja a razão dos perfis salariais crescentes, criam um incentivo para com-
portamento oportunista por parte dos patrões que ficam a ganhar com o
despedimento dos trabalhadores quando os seus salários começam a exce-
der a sua produtividade. Dadas as vantagens dos perfis salariais crescentes,
fica em clara vantagem uma empresa em cuja gerência se confie que não
renega o seu contrato implícito.
• Outros contratos implícitos. Uma empresa com um Departamento Jurí-
dico capacitado deve ser capaz de idealizar um acordo contratual formal no
qual se compromete a não despedir trabalhadores antigos. Mas um tal con-
trato acarretará uma perda de flexibilidade potencialmente dispendiosa.
Nenhuma empresa pode estar certa quanto à procura futura dos seus pro-
dutos, e pode chegar a altura em que a sua sobrevivência possa depender da
sua capacidade de redução da sua força de trabalho. Tanto a empresa como
os seus trabalhadores pagarão um preço se esta flexibilidade for sacrificada.

Há inúmeras outras contingências que podem afectar seriamente os termos


da negociação entre patrões e trabalhadores. Muitas destas contingências são
impossíveis de prever e, por isso, impossíveis de resolver antecipadamente atra-
vés de acordos contratuais formais. Qualquer empresa cuja gerência possa per-
suadir os trabalhadores de que estas contingências serão tratadas de uma forma
equitativa usufruirá de uma clara vantagem para atrair os trabalhadores mais
capazes.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Resolução de problemas de compromisso com os clientes

Entre as empresas e os seus clientes surgem diversos problemas de compro-


misso e pelo menos alguns destes são passíveis de soluções em termos similares
às que foram discutidas. Segue­‑se um exemplo.
• Garantia de qualidade. O célebre escrito sobre limões de George Akerlof
(1970) descreve um problema de compromisso no qual vendedores e com-
pradores podiam igualmente beneficiar se o vendedor pudesse de algum
modo comprometer­‑se a fornecer um produto ou serviço de alta qualidade.
Foi sugerida uma variedade de meios para a resolução deste problema atra-
vés da confiança nos incentivos materiais. As empresas podem garantir os
seus produtos, por exemplo, ou podem desenvolver reputação pública de
fornecerem alta qualidade (ver, por exemplo, Klein e Leffler [1981]).
Contudo, muitas formas de problema de garantia de qualidade não podem
ser resolvidas através de manipulação de incentivos materiais. Considere­‑se
uma firma de advogados que possa fornecer os serviços jurídicos pretendidos
por um cliente a um preço que este estaria disposto a pagar. Mas suponha-
mos que o cliente não tem forma de avaliar a qualidade dos serviços do seu
advogado. Há muito alarido no sistema legal, pelo que o resultado deste caso
em si próprio não representa um diagnóstico. Ele pode ganhar embora tenha
recebido ajuda legal de qualidade inferior ou pode perder não obstante ter
recebido a melhor ajuda possível. Em tais situações, os clientes estão dispos-
tos a pagar prémios a uma empresa dirigida por alguém em quem sentem
que podem confiar.

Resolução de problemas de compromisso com outras empresas

Problemas de compromisso surgem também, finalmente, no contexto de


transacções comerciais entre empresas, e aqui também as soluções que se
baseiam na avaliação de carácter desempenham frequentemente um papel.
Seguem­‑se exemplos.
• O problema de assalto ao subcontratante. Considere­‑se o exemplo familiar
do subcontratante cujo negócio depende quase todo de um único com-
prador. De modo a servir este comprador pelo mais baixo preço possível,
muito do capital humano e físico do subcontratante tem de ser adaptado
às necessidades específicas do comprador. Tendo feito estes investimen-
tos direccionados, o subcontratante ficará então vulnerável ao problema do
“assalto”: dado que o comprador sabe que os bens do subcontratante custam

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PARTE III

mais do que o seu valor no mercado aberto, pode pagar­‑lhe um preço supe-
rior ao custo marginal do subcontratante, mas abaixo do seu custo médio.
Antecipando este problema, os subcontratantes estarão dispostos a inves-
tir no capital que melhor sirva as necessidades dos seus clientes somente se
acreditarem que os seus parceiros são de confiança e não os exploram.
Num estudo importante, Edward Lorenz detalha por que é que os incentivos
materiais estão mal equipados para resolver os problemas de compromisso
que surgem entre pequenas fábricas francesas e seus subcontratantes, des-
crevendo a seguir detalhadamente como as partes procuram parceiros de
confiança. Por exemplo, todos os respondentes da sua amostra enfatiza-
ram o alto valor que atribuem aos relacionamentos pessoais neste processo
(Lorenz, 1988).
• Garantia de qualidade. O problema da garantia de qualidade surge não ape-
nas entre empresas e consumidores, mas também nas transacções entre
empresas. Considere­‑se, por exemplo, o relacionamento entre a empresa­
‑mãe e os seus concessionários (franchises). Quando o proprietário de uma
concessão (franchise) fornece ao público serviço de alta qualidade, ele realça
não apenas a sua própria reputação junto dos compradores locais mas tam-
bém a reputação de outros concessionários. A empresa­‑mãe gostaria que ele
tomasse em conta ambos os benefícios ao estabelecer os seus níveis de ser-
viço, mas os seus incentivos privados centram­‑se somente em como o bom
serviço afecta os seus próprios compradores. Consequentemente, é comum
nos acordos de concessão chamar a atenção do concessionário para forne-
cer um serviço de mais alta qualidade do que, de outro modo, seria do seu
próprio interesse providenciar. Os licenciadores (franchisers) incorrem em
custos na tentativa de pôr em vigor estes acordos, mas a sua capacidade
para monitorar o serviço local é muito imperfeita. O licenciador tem, assim,
um forte incentivo para recrutar concessionários que atribuam um valor
intrínseco ao cumprimento dos seus acordos de serviço. E os concessioná-
rios assim identificados estão em vantagem competitiva em relação aos que
apenas são motivados por interesses próprios.
• Manutenção da confidencialidade. Muitas empresas de consultoria pres-
tam serviços que requerem acesso a informação sensível em termos de
concorrência. É claro que nenhuma empresa será bem­‑sucedida neste tipo
de trabalho se adquiriu a reputação de disponibilizar essa informação aos
rivais dos seus clientes. Ainda assim, os empregados muitas vezes deixam
estas empresas e quando isso acontece os incentivos materiais para mante-
rem a confidencialidade reduzem­‑se consideravelmente. Em alguns casos, os
incentivos materiais para manutenção da confidencialidade enfraquecerão

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

pelo facto de muitas entidades terem tido acesso à informação sensível, tor-
nando muito mais difícil localizar a fonte de quaisquer fugas que possam
ocorrer. Tendo em mente estas contingências, um cliente estará muito mais
disposto a lidar com uma empresa de consultoria dirigida por alguém capaz
de identificar e atrair empregados que saibam dar o devido valor, a honrar os
acordos de confidencialidade.

Nos exemplos já apresentados, as empresas compensam os elevados custos


da conduta socialmente responsável com a sua capacidade de resolverem proble-
mas de compromisso. Os dois mecanismos que a seguir se apresentam fazem uso
da observação de que as motivações sociais também afectam tanto a procura do
produto como o fornecimento de mão­‑de­‑obra.

A vontade dos consumidores suportarem empresas socialmente responsáveis

O modelo padrão free­‑rider65 sugere que os compradores não estarão dispos-


tos a pagar um prémio por produtos produzidos por empresas socialmente res-
ponsáveis. Por exemplo, os consumidores podem não gostar do facto de a Acme
Tire Corporation poluir o ar, mas pensam que as suas próprias compras de pneus
Acme terão um efeito virtualmente não­‑mensurável na qualidade do ar. Assim, a
teoria prevê que se a Acme vender os pneus por apenas um pouco menos do que
os produzidos por uma empresa rival com uma tecnologia mais limpa, os consu-
midores comprarão os pneus da Acme.
A nossa discussão no texto 1 desafiou esta consideração através da explicação
de como muitas pessoas podem chegar a desenvolver um gosto pela conduta
socialmente responsável. As pessoas com esse gosto preferirão lidar com empre-
sas socialmente responsáveis mesmo quando verificam que as suas próprias
compras são demasiado pequenas para afectar os resultados que os preocupam.
A teoria free­‑rider convencional prevê que as vendas e os lucros da Star Kist Tuna
cairão quando ela ajustar os seus preços de modo a cobrir os custos adicionais
resultantes do facto de apenas comprar aos fornecedores atum que não põe em
perigo os golfinhos. Neste caso, todavia, as vendas e os lucros da Star Kist subi-
ram em vez de descer. Qualquer consumidor que tivesse parado para ponderar
sobre o assunto saberia que uma única decisão de comprar atum para a família
não terá impacto visível na sorte dos golfinhos. Mesmo assim, parece que muitos
consumidores estavam dispostos a pagar preços mais elevados em nome de uma
causa que os preocupava.

65 Modelo em que se suporta menos do que a justa quota do custo da produção de um recurso

ou se consome mais do que a justa parte de um recurso.

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PARTE III

Há também evidência que a Ben & Jerry’s vende mais sorvete graças aos
esforços a favor da preservação da floresta tropical amazónica; que a Body Shop
vende mais cosméticos por causa das suas embalagens amigas do ambiente; que
a McDonald´s vende mais hambúrgueres devido ao seu apoio aos pais de crianças
seriamente doentes; etc.
Evidência experimental a partir do “jogo do ditador” proporciona evidência
adicional da disposição dos consumidores em suportarem custos por causa de
preocupações de ordem moral. O jogo do ditador envolve dois jogadores; ao
primeiro é dada uma quantia em dinheiro, digamos 20 dólares, sendo­‑lhe depois
pedido para escolher uma de duas formas de dividir o montante entre si e o
segundo jogador: 10 dólares para cada um ou 18 dólares para o primeiro jogador
e 2 dólares para o segundo. Kahneman, Knetsch e Thaler (1986) concluíram que
mais de três quartos dos jogadores escolheram a divisão 10­‑10. Eles descreveram
depois esta experiência a um grupo separado de pessoas, a quem deram a esco-
lher entre repartirem 10 dólares com uma das pessoas que tinha escolhido a divi-
são 10­‑10 ou repartirem 12 dólares com uma das pessoas que tivesse escolhido a
divisão 18­‑2. Mais de 80% das pessoas em causa escolheu a primeira opção, o que
os autores interpretaram como uma disposição de gastarem 1 dólar para punirem
um estranho anónimo que se comportara de forma injusta na experiência anterior.
Tomados como um todo, os dados do mercado e a evidência experimental
parecem deslocar o ónus da prova para os proponentes da hipótese free­‑rider.

Capacidade de recrutar empregados em condições mais favoráveis

O quinto e último benefício que advém para as empresas socialmente respon-


sáveis é a vantagem relativa de que desfrutam no recrutamento. Os empregos
diferem em inumeráveis dimensões, uma das quais é o grau em que o trabalhador
contribui para o bem­‑estar dos outros. Se as pessoas retiram satisfação do seu
empenhamento num comportamento altruísta, os salários de ocupações que pro-
porcionam altos níveis de satisfação moral serão significativamente mais baixos
do que os salários pagos em tarefas de outro modo similares. Um candidato a um
emprego pode ocupar uma posição de superioridade moral se o quiser, mas ape-
nas aceitando salários mais baixos. E estes salários mais baixos, por sua vez, aju-
dam a compensar os custos mais altos das operações socialmente responsáveis.
Como veremos no texto 5, esta fonte de vantagem competitiva é frequente-
mente grande. Numa grande amostra de estudantes recentemente graduados,
por exemplo, os que ocupavam os empregos mais desejáveis, nesta dimensão,
ganhavam menos de metade do que os que ocupavam os empregos menos dese-
jáveis.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

OBSERVAÇÕES FINAIS

Quando um negócio se confronta com um dilema ético deve suportar custos


mais altos se seguir o caminho mais ético. Por exemplo, ao recusar fornecer cha-
ves mestras de automóveis a clientes que as encomendaram via correio e que ele
acredita serem ladrões de carros, um serralheiro suporta uma perda. Na verdade,
se a acção moralmente preferida não envolvesse essa penalização, não haveria
dilemas morais.
Neste texto, descrevi cinco mecanismos através dos quais uma empresa
socialmente responsável pode compensar os custos directos mais elevados das
suas acções. Três destes envolvem a capacidade de resolver problemas de com-
promisso e outros dilemas que se colocam uma só vez. A empresa socialmente
responsável está melhor capacitada do que os seus rivais oportunistas para
resolver problemas de compromisso que surgem entre proprietários, gerentes e
empregados; está melhor capacitada para resolver problemas de compromisso
que surgem com os clientes; e tem melhor capacidade de resolver problemas de
compromisso que ocorrem com outras empresas. Uma quarta vantagem é que
os compradores estão com frequência dispostos a pagar mais pelos produtos
das empresas socialmente responsáveis. E, finalmente, a empresa socialmente
responsável desfruta frequentemente de vantagem no recrutamento, em relação
aos seus rivais menos responsáveis. Tomadas em conjunto, estas vantagens pare-
cem frequentemente ser suficientes para compensar os custos mais elevados da
acção socialmente responsável.
Esta reivindicação pode levar à queixa de que o que eu chamo de comporta-
mento socialmente responsável é realmente apenas egoísmo com outro nome.
Consideremos, por exemplo, este severo comentário de Albert Carr, um conse-
lheiro económico de Harry Truman: “A ilusão de que o negócio pode dar­‑se ao
luxo de ser orientado pela ética tal como é concebida na vida privada é muitas
vezes encorajada por discursos e artigos contendo frases como ‘vale a pena ser
ético’ ou ‘boa ética é bom negócio’. Actualmente esta não é de todo uma questão
ética, é antes o disfarce de um cálculo orientado para os seus próprios interesses.
O orador está realmente a dizer que a longo prazo uma companhia pode fazer
mais dinheiro se não antagonizar os competidores, fornecedores, empregados e
clientes, extorquindo­‑os exageradamente. Ele está a dizer que políticas demasiado
vorazes reduzem os ganhos finais. Isso é verdade, mas não tem nada a ver com
ética” (Carr, 1968; reimprimido na Donaldson e Werhane, 1993, 1995).
Esta linha de raciocínio implica que qualquer comportamento comercial con-
sistente com a sobrevivência é por definição egoísta. Esta definição, porém, está
em completo desacordo com o nosso entendimento usual do conceito. A coope-
ração em dilemas pontuais é dispendiosa, quer a curto, quer a longo prazo, e por

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PARTE III

essa razão é apropriadamente chamada altruísta. Eu argumentei que, dados os


traços de carácter serem discerníveis pelos outros, os tipos de pessoas que coo-
peram em dilemas pontuais desfrutam de vantagens em outras esferas, e estas
vantagens podem ajudá­‑los a sobreviver em competição com rivais menos escru-
pulosos. Dizer que os comportamentos cooperativos se orientam pelos interesses
de quem os desenvolve só traz confusão.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

TEXTO 5
TEORIA DAS FINANÇAS EMPRESARIAIS

in Tirole, Jean (2006), The Theory of Corporate Finance,


Priceton, Princeton University Press, Ch. 1.8 – 1.9

Os debates sobre governação empresarial revistos neste texto estão enqua-


drados em termos de valor para o accionista; como dissemos na introdução
a esta parte, os economistas, e naquele caso muita da estrutura jurídica, têm
sempre afirmado, com base em que os preços reflectem a escassez de recursos,
que a gestão deve visar maximizar a riqueza do accionista. Para muitos não­
‑economistas, os economistas parecem a este respeito “esquecidos das questões
de redistribuição”, “tacanhos” ou “fora das realidades sociais”. Um ponto de vista
divulgado na política e na opinião pública é que as empresas devem servir um
objectivo social maior e serem “responsáveis”, ou seja, devem chegar a outros
parceiros e não apenas aos accionistas.

PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA

Um economista reformularia a posição dos proponentes da sociedade de


parceiros recomendando que a gestão e os directores interiorizassem as exte-
rioridades que as suas decisões impõem aos vários grupos. Exemplos de tais
exterioridades e concomitantes deveres para com os parceiros, de acordo com os
proponentes da sociedade de parceiros, podem ser encontrados na lista seguinte.
• Deveres para com os empregados. As empresas deviam retrair­‑se de des-
pedir trabalhadores quando fazem lucros consideráveis (o movimento de
“redução (downsizing)” dos anos 90 e eventos como o despedimento em
Janeiro de 1996 de 40.000 empregados pela AT & T quando atingia um lucro
recorde e os $14 milhões de compensação anual do seu Presidente, criaram
alvoroço à esquerda e à direita do espectro político americano); as empresas

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PARTE III

devem também proteger as minorias, providenciar formação a preceito e ins-


talações de recreio, e monitorar cuidadosamente a segurança no trabalho.
• Deveres para com as comunidades. As empresas devem retrair­‑se de encer-
rar fábricas em áreas económicas necessitadas, excepto quando estritamente
necessário; em tempos normais elas devem contribuir para a vida pública das
suas comunidades.
• Deveres para com os credores. As empresas não devem maximizar o valor
para o accionista à custa do valor para o credor.
• Considerações éticas. As empresas devem proteger o ambiente mesmo que
isso reduza os lucros. Devem retrair­‑se de investir em países com Governos
opressivos ou com fraca protecção das ou respeito pelas minorias (traba-
lho infantil, Apartheid, etc.). As empresas não devem fugir aos impostos ou
subornar funcionários em países menos desenvolvidos, mesmo se esse com-
portamento resultar em lucro.

Muitos gestores vêem o seu papel na sociedade num sentido ainda mais alar-
gado (satisfação dos desejos do consumidor, apoio às artes, contribuições políti-
cas, etc.) do que sugerido por esta lista.
De acordo com Blair (1995, página 214), mesmo nos Estados Unidos, que tra-
dicionalmente têm sido muito menos receptivos à ideia da sociedade de parceiros
do que muitos outros países desenvolvidos (especialmente fora do mundo anglo­
‑saxónico), “no fim dos anos 60 e princípio dos anos 70 a capacidade empresarial
de responder a um largo grupo de parceiros tornou­‑se aceitável como prática
de negócio”. Contribuições para fins caritativos, desapropriação (da prática do
Apartheid) na África do Sul, e pagamento pela saída de empregados afectos às
actividades de serviços públicos, por exemplo, tornaram­‑se lugar­‑comum e foram
confirmados pelos Tribunais. O consenso por alguma internalização do bem­‑estar
do parceiro colapsou parcialmente nos anos 1980. Os proponentes do valor para o
accionista ganharam influência. Mais ainda, a onda de tomadas de controlo (take­
‑over) hostil naquela década estimulou um intenso debate sobre se o aumento da
riqueza do accionista associado às tomadas de poder não veio parcialmente em
detrimento dos trabalhadores e comunidades (Shleifer e Summers, 1988).
A popularidade do ponto de vista da sociedade de parceiros junto do público
contrasta com o forte consenso entre economistas financeiros de que maximizar
o valor para o accionista tem maiores vantagens sobre a busca de objectivos
alternativos. Um defensor particularmente influente da abordagem do valor para
o accionista foi Milton Friedman (1970)66.

66“Num sistema de empresa livre e propriedade privada, um executivo de empresa é um em‑


pregado dos donos do negócio com responsabilidade directa perante os seus patrões. Essa res‑

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Os economistas argumentam desde há muito a favor de uma apropriada


internacionalização das exterioridades. E certamente a grande maioria deles não
tem objecções aos objectivos avançados pelos proponentes da sociedade de par-
ceiros. Consequentemente, um debate científico centra­‑se na forma de realizar
estes objectivos, mais do que nos objectivos em si.

O QUE É E O QUE NÃO É A SOCIEDADE DE PARCEIROS

Alguns gurus da gestão têm navegado na onda da sociedade de parceiros,


argumentando que “parceria” faz sentido comercial. Em poucas palavras, a reco-
mendação é tratar os empregados satisfatoriamente através da segurança do
emprego, facilidades de formação, etc. A razão é que, ao construir uma reputação
de justiça, a empresa será capaz de atrair os empregados mais talentosos e de os
induzir a investir na empresa, dado que os empregados saberão que estão empe-
nhados num relacionamento a longo prazo na empresa e que os seus investimen-
tos específicos nesta serão recompensados. Este argumento pode com certeza

ponsabilidade é a de conduzir o negócio de acordo com os seus desejos, os quais geralmente são
fazer tanto dinheiro quanto possível, embora em conformidade com as regras básicas da so‑
ciedade, ambos enquadrados na Lei e na Ética dos costumes. Em alguns casos os seus patrões
podem, evidentemente, ter um objectivo diferente. Um grupo de pessoas pode formar uma em‑
presa para um fim caritativo – por exemplo, um hospital ou uma escola. O gestor de uma tal
empresa não terá o lucro como seu objectivo, mas sim a prestação de determinados serviços.
O executivo da empresa é também, evidentemente, uma pessoa com as suas razões. Como pes‑
soa, ele pode ter muitas outras responsabilidades que ele reconhece ou assume voluntariamen‑
te – para com a sua família, a sua consciência, os seus sentimentos de caridade, a sua Igreja,
os seus clubes, a sua cidade, o seu país. Pode ser impelido por estas responsabilidades a devo‑
tar parte dos seus rendimentos a causas que entenda merecedoras, recusar trabalhar para cer‑
tas empresas, deixar até o seu emprego, por exemplo, para ingressar nas forças armadas do seu
país. Se quisermos, podemos referir­‑nos a algumas destas responsabilidades como ‘responsabi‑
lidades sociais’. Mas a este respeito ele age como um mandante e não como um agente; gasta o
seu próprio dinheiro, ou tempo, ou energia, não o dinheiro dos seus patrões, ou o tempo ou ener‑
gia que tenha acordado devotar aos objectivos deles. Se isto são ‘responsabilidades sociais’, são­
‑no de indivíduos, não do negócio.
Os accionistas ou os clientes ou os empregados podem, separadamente, gastar o seu próprio di‑
nheiro numa acção particular se assim o desejarem. O executivo exerce uma ‘responsabilidade
social’ distinta, mais do que servir como um agente dos accionistas, dos clientes ou dos empre‑
gados, desde que gaste o dinheiro de forma diferente do que eles o teriam gasto.
Mas se ele proceder assim, ele está de facto, por um lado, a impor taxas e, por outro lado, a de‑
cidir como o produto das taxas deve ser gasto.
Aqui, o homem de negócios – que se seleccionou a si próprio ou foi apontado directa ou indirec‑
tamente pelos accionistas – é simultaneamente Legislador, Executivo e Jurista. Ele é que deci‑
de a quem taxar, por quanto, para que fim e como gastar o produto – tudo isto guiado apenas
por exortações gerais vindas de cima para refrear a inflação, melhorar o ambiente, combater
a pobreza, etc., etc.”

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PARTE III

ser alargado a, digamos, fornecedores e comunidades, que estão inclinados a ofe-


recer, respectivamente, preços mais baixos ou maiores subsídios a uma empresa
mais digna de confiança.
Estas recomendações indagam a responsabilização social, mas de facto têm
a ver com o valor para o accionista: a maximização do valor intemporal muitas
vezes equilibra sacrifícios de breve curso (investimentos) com a perspectiva de
lucros a longo prazo mais elevados67. Tratar os parceiros satisfatoriamente, a fim
de alcançar lucros intemporais, não é aquilo em que a sociedade de parceiros
está interessada. Ao invés, a “empresa socialmente responsável é aquela que em
consciência toma decisões que reduzem os lucros globais”68.
Similarmente, não classificamos as acções cujo interesse principal é restabe-
lecer a imagem pública da empresa sob o título de responsabilidade social da
empresa. Talvez não seja coincidência que as multinacionais, e algumas em parti-
cular que por boas ou más razões têm uma fraca imagem pública (tabaco, petró-
leo, companhias farmacêuticas), tenham avidamente abraçado os conceitos de
Responsabilidade Social da Empresa e desenvolvimento sustentável e criado posi-
ções de executivo sénior responsável pela Responsabilidade Social da Empresa.

67 Citamos novamente Friedman (1970), que é altamente crítico acerca do conceito de socie‑

dade de parceiros: “Evidentemente que, na prática, a doutrina de responsabilidade social é fre‑


quentemente mais um pretexto para encobrir acções que são justificadas por outras causas do
que uma razão para essas acções.
Para ilustrar, pode bem ser do interesse a longo prazo de uma empresa que é um grande empre‑
gador numa pequena comunidade dedicar recursos para providenciar amenidades para aque‑
la comunidade ou melhorar o seu Governo. Isso pode tornar mais fácil atrair empregados de‑
sejáveis, pode reduzir a factura salarial ou diminuir prejuízos com roubos e sabotagem ou ter
outros efeitos vantajosos. Ou pode ser que, dadas as leis sobre dedução das contribuições para
fins caritativos das empresas, os accionistas possam contribuir mais para acções caritativas da
sua escolha através de doações da própria empresa do que fazendo­‑as eles próprios, dado que
podem dessa forma contribuir com um montante que, de outra forma, teria sido pago como im‑
posto. Em cada um destes e de muitos casos similares, há uma forte tentação de racionalizar
estas acções como um exercício de ‘responsabilidade social’. No presente clima de opinião, com
a sua espalhada aversão a ‘capitalismo’, ‘lucros’, ‘empresa desumana’, etc., isto é um meio para
uma empresa gerar reputação como um subproduto de despesas que são totalmente justifica‑
das pelo seu próprio interesse.
Seria inconsistente da minha parte dizer aos executivos das empresas para se retraírem desta
hipócrita encenação porque ela prejudica as bases de uma sociedade livre. Isto seria chamá­‑los
a exercerem uma ‘responsabilidade social’. Se as nossas instituições e as atitudes do público tor‑
nando seu próprio interesse, disfarçar as suas acções desta forma, não posso usar de muita in‑
dignação para os denunciar. Ao mesmo tempo, posso exprimir admiração pelos proprietários
individuais ou donos de empresas seguidas de perto ou accionistas de empresas seguidas mais
de longe, que desdenham tais práticas como próximas da fraude.”
68 Interessantemente, nos anos 60 e 70 os Tribunais dos Estados Unidos favoreceram as ac‑
tividades socialmente responsáveis como donativos a obras de caridade, argumentando que
o desvio imediato da riqueza do accionista pode ser bom para os accionistas “a longo prazo”.
Assim, os Tribunais evitaram reconhecer que os Directores não tinham o dever primário de
maximizar a riqueza do accionista (Blair, 1996, página 215).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Antes de discutir a implementação da sociedade de parceiros, deixem­‑me


tratar da questão sobre a que se refere exactamente o conceito. Por um lado, a
sociedade de parceiros pode referir­‑se a uma ampla missão de gestão. De acordo
com este ponto de vista, a gestão deve ter como objectivo maximizar a soma
das mais­‑valias dos vários parceiros (adoptando uma abordagem utilitária); e, se
a gestão não está naturalmente inclinada a agir assim, devem ser desenhados
incentivos que induzam a gestão a considerar as exterioridades impostas a todos
os parceiros, Por outro lado, a sociedade de parceiros pode referir­‑se à partilha
de controlo pelos parceiros, como é, por exemplo, o caso da co­‑determinação na
Alemanha69.
Presumivelmente, as duas noções estão relacionadas, por exemplo, seria duro
para um gestor sacrificar lucros em benefício de algum parceiro, se um investidor
defensor da maximização de lucros puder adquirir a empresa e substituí­‑la, a
menos que esse mesmo parceiro possa ajudar o gestor a evitar a aquisição (Pagano
e Volpin, 2005a)70. Nas linhas seguintes, tomaremos o ponto de vista de que a
sociedade de parceiros significa ao mesmo tempo uma missão de gestão ampla e
controlo dividido.
Centramo­‑nos na contratação óptima entre parceiros (incluindo investidores)
e admiramo­‑nos se incentivos à gestão e uma estrutura de controlo puderem ser
estabelecidos por forma a implementar eficientemente o conceito de sociedade
de parceiros. Outro nível de dificuldades é adicionado pela existência de um
ambiente regulador que restringe o conjunto de contratos que podem ser assina-
dos entre parceiros. Interessantemente, países como França, Alemanha e Japão,
que tradicionalmente são mais concordantes com a sociedade de parceiros do
que os Estados Unidos e a Grã­‑Bretanha, têm também ambientes jurídico, regu-
lador e fiscal que são avaliados por muitos economistas como criando sistemas
mais fracos de governação.
Como em outras áreas da Lei Contratual, uma questão difícil é: por que é
precisa uma Lei em primeiro lugar? Não podem as partes, por si próprias, realizar
acordos eficientes, caso em que o papel dos Tribunais e do Governo é dar força
aos contratos privados e não reduzir o bem­‑estar ao constranger acordos viáveis?
Por exemplo, porque não pode um contrato acordável mutuamente entre inves-
tidores e empregados permitir uma representação dos empregados no Conselho
Administrativo, estipular uma razoável indemnização por despedimento de traba-
lhadores, e criar incentivos que induzam a gestão a interiorizar o bem­‑estar dos

69 Porter (1992) argumenta a favor da representação na administração de clientes, fornece‑

dores, conselheiros financeiros, empregados e representantes da comunidade.


70 Neste sentido, pode haver alguma consistência no sistema alemão de governação de em‑

presas entre a partilha de controlo, a falta ou o baixo nível da gestão de opções de títulos e a
inactividade do mercado de aquisições (take­‑over).

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PARTE III

empregados, substituindo deste modo um alargado dever fiduciário pela gestão


favorável aos empregados, restrições legais aos despedimentos ou negociação
colectiva delegada?
Além dos fundamentos padrão para a existência de leis (custos das transac-
ções que beneficiam de contratos tipo, bem compreendidos por todas as partes,
conclusão ex-post de um contrato incompleto (talvez racionalmente) por Juízes no
espírito do contrato original, contrato escrito na base de informação assimétrica
ou debaixo de coacção, etc.), um argumento-chave para intervenção reguladora
aos olhos dos proponentes da sociedade de parceiros tem a ver com o inclinar da
balança do poder de negociação para longe dos investidores e a favor dos parcei-
ros. Esta posição coloca as questões sobre se a redistribuição é mais bem realizada
através de acordos contratuais limitativos e realizáveis (em oposição ao uso de
impostos, digamos), e o regulamento serve mesmo os seus objectivos de redistri-
buição a longo prazo, até ao ponto de poder desencorajar o investimento e a cria-
ção de emprego e desse modo acabar por lesar os interesses dos empregados.
Qualquer que seja a sua base lógica, a intervenção reguladora a favor dos
direitos do parceiro desempenha um papel importante em muitos países. Assim,
para além da questão normativa sobre se as leis que protegem os parceiros
podem ser justificadas no campo da eficiência, a questão positiva sobre como
essas leis realmente surgem é também digna de estudo. Claramente, as conside-
rações da economia política surgem bastante na promulgação de regulamentos
pró­‑parceiro. A este respeito pode­‑se também suspeitar dos motivos que estão
por trás do endosso do conceito de sociedade de parceiros, por alguns gestores,
até ao ponto de não proporem substituir o controlo dos accionistas por uma
estrutura de governação diferente, mas forte. Isto é, a sociedade de parceiros é,
por vezes, vista como sinónimo de ausência de controlo efectivo sobre a gestão.
(Que o debate accionista­‑parceiro negligencia o papel da gestão como uma parte
com interesses específicos foi fortemente enfatizado por Hellwig (2000), que dis-
cutiu extensamente a “economia política” da governação empresarial.)

OBJECÇÕES À SOCIEDADE DE PARCEIROS

Quatro argumentos diferentes podem ser apontados contra uma estrutura


de governação de uma sociedade de parceiros. O primeiro é que dando direitos
de controlo a não­‑investidores pode, em primeiro lugar, desencorajar o investi-
mento. Por exemplo, suponha­‑se que a comunidade de “parceiros naturais” é
composta pela gestão e empregados que, por eles próprios, não têm fundos para
pagar o investimento e que os investidores estão preocupados de não serem

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

capazes de recuperar o seu investimento na empresa se partilharem o controlo


com os parceiros, isto é, pode não haver “receita garantida” suficiente que os
parceiros possam credivelmente prometer restituir quando mandam na estrutura
de governação. Os parceiros provavelmente quererão ceder então o controlo aos
investidores, mesmo em situações em que o controlo pelos investidores reduza
o excedente total. O “valor para o accionista” pode ser a única forma de obter o
dinheiro necessário.
A segunda objecção é também relativa à estrutura de governação. A questão
com a partilha de controlo entre investidores e parceiros naturais não está ape-
nas no facto de ela gerar menos receita garantida e portanto menos financiamento
do que o controlo pelo investidor, mas também que pode criar ineficiências na
tomada de decisões. Em muitas decisões, os investidores e parceiros naturais têm
objectivos contraditórios que podem não convergir para políticas mutuamente
favoráveis. Em particular, da partilha de controlo podem resultar paralisações
completas.
A terceira questão com o conceito de sociedade de parceiros é a responsabili-
dade da gestão. Um gestor que seja instruído para maximizar o valor para o accio-
nista tem uma missão relativamente bem definida; a sua performance nesta missão
– valor da acção ou lucro – é relativamente objectiva e bem definida (embora
este livro enfatize repetidamente as substanciais imperfeições na medição da
performance). Em contraste, o gestor socialmente responsável enfrenta uma
ampla variedade de missões, muitas das quais são por natureza não mensuráveis.
A performance da gestão na provisão aos parceiros de exterioridades positivas é
notoriamente mal definida e inverificável. Em tais situações, os incentivos da ges-
tão são conhecidos por serem fracos (Dewatripont et al., 1999b).
Concretamente, a preocupação é que a invocação pela gestão de múltiplas
missões difíceis de medir pode tornar­‑se uma desculpa para um comportamento
em seu próprio favor, tornando os gestores menos responsáveis. Por exemplo,
um construtor de um império pode justificar a aquisição dispendiosa de outra
empresa com base em que esta aquisição salvará alguns empregos. Ou um gestor
pode seleccionar oficialmente um fornecedor mais caro argumentando que este
tem uma melhor política ambiental.
Como último exemplo, um gestor ineficiente pode instalar defesas anti-aqui-
sição, argumentando que os empregados devem ser protegidos contra potenciais
demissões implementadas por um investidor defensor da maximização de lucros.
O quarto argumento é que um impulso popular bem­‑sucedido a favor da
Responsabilidade Social da Empresa impõe de facto um tributo sobre o negócio,
cujo lucro escapa ao controlo pelo processo político. Embora haja por vezes boas
razões para subtrair a política pública das pressões políticas, passando­‑a para
corpos com responsabilidades menos políticas como agências independentes e

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PARTE III

Organizações Não­‑Governamentais, não é óbvio que os objectivos sociais sejam


melhor conseguidos por directores e funcionários ansiosos por satisfazerem a sua
própria clientela (em particular os seus clientes e fazedores de política que afec-
tam os interesses da sua empresa).

A POSIÇÃO DO VALOR PARA O ACCIONISTA

Os proponentes da maximização do valor para o accionista (esperançosamente)


não põem objecções aos objectivos da sociedade de parceiros. Em vez disso, dis-
cordam sobre como estes objectivos irão ser alcançados. Implícito na sua posição
está o ponto de vista de que as exterioridades são melhor conduzidas através do
sistema contratual e jurídico do que através de algumas acções discricionárias
pelos funcionários e directores da empresa. Os accionistas podem expropriar
substancialmente os credores seleccionando movimentos de risco ou restituindo
relutantemente dinheiro e bens, deixando os credores com uma concha vazia?
Então, os credores devem insistir (e de facto já o fazem rotineiramente) num con-
junto de acordos que os protejam contra a expropriação. A maximização do valor
pode vir a expensas da força de trabalho da empresa? Então, os empregados e
os sindicatos devem entrar em acordos colectivos com a empresa, especificando
as regras de segurança no trabalho e benefícios de desemprego71. E assim por
diante.
Acabámos de ver que é importante usar o sistema contratual a fim de reduzir
as exterioridades impostas pelas escolhas dos accionistas que detêm o controlo.
Há duas formas de criar protecções contratuais para os parceiros que não detêm
o controlo. A primeira é circunscrever o conjunto de acções disponível para os
parceiros que detêm o controlo regulamentando acções que, mais provavel-
mente, envolvem fortes exterioridades negativas para os outros parceiros; esta
redução da dimensão do conjunto de acções envolve custos de transacção e de
flexibilidade, mas pode ainda criar valor. A segunda é tornar as reclamações dos
parceiros que não detêm o controlo tão insensíveis quanto possível às tomadas
de decisão com base em preconceitos. Esta ideia é ilustrada na Tabela 11 para o
caso dos credores e empregados.

71 Esta posição constitui a base para uso de taxas de dispensa temporária de empregados e

avaliação de experiência (Blanchard e Tirole (2004, 2005) para uma discussão de política e
uma abordagem do mecanismo óptimo, respectivamente).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Tabela 11 – Protecção dos parceiros que não têm controlo.

0 1 2 (dados 3
(contrato) (decisão) intermédios) (resultados)

Contratação Reclamação não


Saída
detalhada relevante
•M
 aturidade
• Reclamação fixa
• Cláusulas de curta
Credores •C olateral
contrato •D
 ébito
(garantia)
convertível

• Acordo colectivo • Formação geral • Prioridade


Empregados com empregados/ •M ercado de • Indemnização por
sindicato trabalho flexível despedimento

Como discutimos, os contratos de débito impõem um grande número de


cláusulas positivas e negativas, que podem ser resumidas como definindo o con-
junto de acções para os accionistas. Fazer a reclamação dos credores menos sen-
síveis às acções dos accionistas tem dois aspectos: reclamações não relevantes e
opções de saída. Primeiro, a reclamação final dos credores é muitas vezes uma
reclamação nominal fixa e garantias ajudam a limitar os prejuízos potenciais dos
credores no caso de não reembolso do débito. Segundo, os contratos de débito
dão muitas vezes aos credores opções de saída que podem ser exercidas antes de
realizado o pagamento do valor da reclamação. Isto é mais evidente no caso de
dívidas a curto prazo que dão a escolher aos detentores da dívida entre prorrogar
a dívida e sair se aparecerem más notícias; a dívida que é convertível em acções
protege os detentores dos débitos contra riscos excessivos assumidos pelos accio-
nistas. Os contratos de dívida limitam assim muitas vezes a exposição dos credo-
res a tomadas de decisão pelos accionistas baseadas em preconceitos.
A mesma lógica pode ser aplicada à protecção dos empregados. Centremo­
‑nos aqui nas opções de saída. As opções de saída são, certamente, facilitadas
pelas políticas das empresas no que respeita a formação geral, investimento
em planos de reforma e assim por diante. Bastante importantes também são as
opções de saída para os empregados, assim como o seu bem­‑estar quando são
temporariamente dispensados depende fortemente de uma variável sobre a qual
o contrato de emprego entre a empresa e os seus empregados não tem controlo,
nomeadamente o ambiente económico da empresa e a flexibilidade do mercado
de trabalho. Embora a dispensa temporária seja sempre bastante custosa para
um trabalhador, este custo é geralmente muito mais elevado num país como a
França, que tem uma alta taxa de desemprego (em particular, desemprego a lon-
go prazo) e baixa mobilidade por uma variedade de razões (como laços familiares

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PARTE III

estreitos e o ambiente fiscal72), do que nas economias anglo­‑saxónicas, onde é


geralmente mais fácil os trabalhadores dispensados temporariamente encontra-
rem um trabalho de qualidade comparável. Pode­‑se assim conjecturar que uma
das razões porque o valor para o accionista é normalmente menos controverso
nos países anglo­‑saxónicos do que na Europa continental é porque as exteriorida-
des exercidas pelo controlo dos accionistas sobre os empregados são menores no
anterior.
Certamente que os proponentes do valor para os accionistas reconhecem
que os contratos são imperfeitos e apontam para o papel do ambiente legal. Os
Tribunais podem preencher os detalhes de contratos imprecisos ou incompletos,
contanto que sejam fiéis ao espírito dos contratos originais. No caso de exteriori-
dades não cobertas por qualquer contrato privado (como é o caso, por exemplo,
com exterioridades da poluição difusas), os Tribunais (em reacção aos processos
legais), ou os reguladores (digamos, através de impostos sobre o ambiente),
podem substituir a falta de contratos.
O contra­‑argumento a este último ponto é que o enquadramento jurídico e
regulador é em si próprio imperfeito. Por vezes, atrasa a vontade colectiva (se
uma tal coisa existe) e é muitas vezes influenciado por intensos interesses de
grupos de pressão (Pagano e Volpin, 2005b). Assim, quando as leis são “sub­
‑óptimas”, os gestores podem necessitar de as substituir pelas reformas requeri-
das (mas, conforme assinalado acima, nada garante que representarão melhor a
“vontade colectiva” do que os Tribunais ou os legisladores).
Embora as considerações sobre incentivos e controlo advoguem a favor do
valor para o accionista e contra a responsabilidade social73, a maximização do
valor para o accionista é, com certeza, em grande parte um mandato de segunda
escolha. Considerando algumas imperfeições nos contratos e nas leis, os pontos
de vista extremistas sobre o valor para o accionista são desagradáveis. Implica,
por exemplo, que a gestão deve subornar ditadores ou funcionários governamen-
tais nos países menos desenvolvidos, quando esta prática não é sancionada no
país de origem da empresa ou que as empresas devam ter pouca preocupação
pelo ambiente quando os impostos ambientais forem contrariados por intensos
lobbies e problemas de medição. Novas formas de intervenção devem então ser
desenhadas a fim de reconciliar o valor para o accionista e a responsabilidade

72Por exemplo, os altos impostos sobre transacções de imobiliário têm tradicionalmente re‑
duzido a mobilidade dos proprietários. Similarmente, para os não proprietários, as leis rela‑
cionadas com as rendas têm tornado o mercado de arrendamento muito confuso.
73 Um anterior exponente deste ponto de vista foi o próprio Berle. Ele argumentava que “você

não pode deixar de enfatizar o ponto de vista de que as empresas de negócios existem com o único
propósito de fazerem lucros para os seus accionistas até chegar a altura em que esteja prepa‑
rado para oferecer a qualquer pessoa um esquema claro, razoável e exequível de responsabili‑
dades” (1932, citado por Blair, 1995).

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

social nos casos de falha de contrato, embora seja reconhecido que incentivos
apropriados são então difíceis de desenhar.
Os fundos verdes (investimento em negócios que se esforçam por proteger o
ambiente) ou, em termos mais gerais, fundos éticos e boicotes ao consumo têm
tentado fazer exactamente isso. São tentativas interessantes e bem significativas
de substituição por uma regulação imperfeita das exterioridades, mas têm as
suas próprias limitações: (a) uma limitação reside no facto de investidores e con-
sumidores terem fraca informação: os incentivos dados por investidores e consu-
midores individuais requerem que estes actores estejam bem informados acerca
dos verdadeiros factos, bem como sejam capazes de interpretar estes factos (por
exemplo, os impactos social e económico de uma política são frequentemente
mal entendidos). Presumivelmente são necessários intermediários da informa-
ção dignos de confiança para orientar a sua escolha; (b) uma outra limitação é a
rédea livre da dispendiosa produção de sanções contra as empresas socialmente
irresponsáveis: como mostra a evidência, uma fracção não desprezível de inves-
tidores está disposta a aceitar uma taxa de retorno ligeiramente mais baixa para
evitar financiar empresas que se comportam de uma forma não ética. Todavia,
muitos não estão provavelmente dispostos a aceitar uma taxa baixa de retorno,
da mesma forma que as famílias se indignam quando um parque ou um velho
bairro é convertido num condomínio de construções luxuosas, mas se apressam a
adquirir as unidades daí resultantes.

SECÇÃO SUPLEMENTAR

A sociedade de parceiros: questões sobre incentivos e controlo

Esta secção suplementar, extraída em parte de Tirole (2001), desenvolve a


análise sobre a implementação da sociedade de parceiros de forma um pouco
mais detalhada.

Incentivos monetários

Para implementar a sociedade de parceiros, os incentivos à gestão devem


ser desenhados de modo a alinhar os incentivos aos gestores com a soma dos
excedentes dos parceiros e não apenas dos excedentes dos detentores de acções.
Desta maneira, consideramos sequencialmente a provisão de incentivos explícitos
e implícitos.

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PARTE III

Conforme discutido, os incentivos à gestão que explicitamente enfatizam


o valor para os accionistas são providenciados através de bónus e opções de
acções, que encorajam a gestão a dedicar grande parte dos seus esforços ao
aumento da rentabilidade e a favorecer este objectivo ao comparar os custos
e benefícios de decisões alternativas. Similarmente, os incentivos à gestão que
explicitamente enfatizam o valor para os parceiros serão providenciados através
da recompensa da gestão baseada em alguma medida de bem­‑estar agregado
dos parceiros (incluindo investidores). Aqui a questão-chave é se uma tal medida
de bem­‑estar agregado está imediatamente disponível. Eu argumentaria que é
mais difícil avaliar a contribuição da empresa para o bem­‑estar dos empregados,
dos fornecedores ou dos clientes do que avaliar a sua rentabilidade. Por um lado,
não há medida contabilística deste bem­‑estar, embora em alguns exemplos se
possam encontrar substitutos imperfeitos, como o número de despedimentos74.
Por outro lado, não há valor de mercado do impacto de decisões de gestão pas-
sadas e actuais sobre o futuro bem­‑estar dos parceiros, isto é, não há contraparte
para a avaliação pelo mercado de acções do valor dos bens em causa, dado que
o emprego, fornecimento ou outros relacionamentos com a empresa não são
negociados em mercados com muita liquidez, ao contrário do relacionamento do
accionista. (Além disso, se uma medida do impacto das decisões de gestão sobre
o bem­‑estar dos parceiros estivesse disponível (o que não acredito ser o caso),
então não haveria objecção ao valor para o accionista dado que a empresa podia
ser forçada a interiorizar as exterioridades através de contratos especificando que
a empresa compensará os parceiros pelas exterioridades!).
Relacionadamente, para evitar passar à gestão um cheque em branco para
seguir a política que lhe agrade, a gestão podia ser o sujeito para um dever fidu-
ciário alargado: os parceiros podiam levar a gestão a Tribunal e tentar demonstrar
que as acções da gestão não seguem o mandato da sociedade de parceiros. Um
dever fiduciário alargado seria portanto uma tentativa de tornar a gestão respon-
sável pelo bem­‑estar dos parceiros.
Os familiarizados com a dificuldade de implementar o conceito restrito de
dever fiduciário para com os accionistas facilmente imaginarão as limitações de
um dever fiduciário alargado. Em poucas palavras, a gestão pode quase sempre
racionalizar qualquer acção invocando o seu impacto no bem­‑estar de algum par-
ceiro. Um construtor de impérios pode justificar uma aquisição dispendiosa recla-
mando que a compra salvará alguns postos de trabalho na empresa adquirida;

74E a sua duração. Um aspecto inteligente da experiência do sistema de avaliação da taxa de


dispensas temporárias é que o montante pago pela empresa depende do nível de benefícios
recebidos pelo empregado que a companhia despediu temporariamente, e assim dispensar
alguém que fica desempregado durante dois anos é muito mais dispendioso do que despedir
alguém que encontrará emprego logo no dia seguinte.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

um gestor pode escolher o seu cunhado para fornecedor, com o fundamento de


que o processo de produção deste último é ambientalmente amigável.
Na ausência de uma medida segura do bem­‑estar dos parceiros que possa
ser incorporada num contrato formal de compensação, os gestores podem ainda
receber uma compensação com base nos lucros, como no paradigma de valor
para o accionista. Infelizmente, a teoria dos incentivos explícitos para multitarefas
(Holmström e Milgrom, 1991) ensinou­‑nos que pagamentos sensíveis à perfor-
mance de uma única tarefa levam a negligenciar as outras tarefas75. Daqui infe-
rimos que a sociedade de parceiros é provavelmente melhor promovida através
de uma compensação à gestão, nivelada, isto é, através de um salário fixo em vez
de incentivos baseados na performance. A este respeito, há alguma consistência
entre os brandos pontos de vista das populações francesa, alemã e japonesa em
relação à sociedade de parceiros e o historicamente fraco poder dos esquemas
de incentivos à gestão nestes países76.

Incentivos implícitos e missões de gestão

A discussão anterior coloca a questão do que a gestão maximizará face a


esquemas de incentivos explícitos nivelados. O ponto de vista optimista é que
a gestão escolherá o que for melhor para a sociedade, isto é, maximizará a
soma dos excedentes dos parceiros. Este ponto de vista é por vezes justificado:
considerem­‑se as organizações caritativas. Tais organizações, por definição, pre-
tendem aumentar o bem­‑estar dos pobres, dos esfomeados, ou providenciar
acesso a serviços culturais para uma vasta audiência, para dar alguns exemplos.
Os comportamentos de maximização de lucros derrotam obviamente o objectivo
dessas organizações. A chave para o sucesso das organizações caritativas é dar
poder a empregados idealistas que obterão benefícios privados da promoção do
bem­‑estar social.
Embora este paradigma funcione relativamente bem em alguns contextos,
será no entanto ingénuo acreditar que possa ser transposto para ambientes
gerais. Muitos agentes económicos colocam mesmo o seu próprio bem­‑estar
acima do da sociedade. Assim, não podemos assumir que os gestores com esque-
mas de compensação nivelados maximizem o excedente total. Os seus incentivos

75 Ao contrário de Sinclair­‑Desgagne (1999), assumimos que a dimensão não monetária não


pode ser sujeita a uma auditoria. De outro modo, em algumas circunstâncias, pode ser pos‑
sível providenciar incentivos multitarefas bastante fortes (como mostra Sinclair­‑Desgagne)
através de uma combinação de compensação baseada na dimensão monetária juntamente
com uma auditoria às outras tarefas quando a performance monetária for elevada.
76Conforme discutido no texto, os esquemas de incentivos empresariais tornaram­‑se tam‑
bém mais fortes na última década em países não anglo­‑saxónicos.

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PARTE III

são portanto geralmente orientados pelas suas preocupações de carreira. A


existência de múltiplas missões associadas com o bem­‑estar de cada grupo de
parceiros sugere uma investigação das preocupações das economias de carreiras
multitarefas (quais são verdadeiramente os incentivos enfrentados por políticos,
burocratas e muitos empregados que têm pouco pagamento relacionado com a
performance).
Incentivos implícitos provêm do desejo de um agente económico de assina-
lar características, como a capacidade para aquilo que é geralmente chamado
“mercado de trabalho” do agente, nomeadamente quem quer que no futuro
tome acções que reflictam convicções acerca destas características e que tenham
impacto no bem­‑estar do agente: Conselho Directivo, empregadores potenciais,
votantes e assim por diante (Holmström, 1999). Os incentivos implícitos subs-
tituem (imperfeitamente) os explícitos em ambientes nos quais a performance
não pode ser bem descrita ex ante, mas pode ser melhor avaliada depois do facto
devido ao acréscimo de nova informação77.
Os incentivos implícitos são menos proficientes do que os explícitos simples-
mente porque a ligação da performance à recompensa não pode ser completa-
mente controlada por um contrato. Este é particularmente o caso num ambiente
multitarefas. De facto, as multitarefas prejudicam os incentivos informais da
mesma forma que os formais (Dewatripont et al., 1999a,b). Uma razão é que
a performance da gestão torna­‑se mais ruidosa quando o gestor desempenha
múltiplas missões, a falta de “enfoque” numa tarefa específica é portanto dispen-
diosa. Outra razão é que as multitarefas podem dar origem a “missões vagas”, isto
é, a situações nas quais o mercado de trabalho do agente deixa de saber quais
as missões que o agente está a tentar desempenhar (embora tente deduzi­‑las
olhando para o que de melhor o agente fez). O gestor não sabe assim através de
que linhas será avaliado. Esta incerteza pode reduzir mais tarde os incentivos do
agente.
Somos assim conduzidos até à ideia de que o desenho dos incentivos à gestão
(explícitos e implícitos) são para a sociedade de parceiros uma questão particular-
mente complexa. Esta conclusão não deve representar uma surpresa. Afinal, os
Governos podem ser a forma máxima de organizações de sociedade de parceiros,
dado que são instruídos para equilibrarem o bem­‑estar dos muitos grupos de
interesse diferentes. É bem conhecido que os incentivos apropriados para buro-
cratas e políticos são difíceis de desenhar.

77 Mais tecnicamente, a falta de uma “chave decifradora” não permite às partes contratan‑

tes descrever na fase de contratação o significado de uma “boa performance”, só mais tarde,
quando a incerteza se esclarece, se torna mais claro o que significa uma boa performance.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

Custos e benefícios do controlo partilhado: lições das associações de inputs para a


sociedade de parceiros

Chegamos agora ao segundo aspecto da sociedade de parceiros: a estrutura


de controlo. É improvável que a sociedade de parceiros seja promovida pela
estrutura de controlo indiviso que prevalece sob o paradigma do valor para o
accionista. Nem é provável que seja sustentável se o controlo for inteiramente
para os não financiadores; considere­‑se o controlo indiviso por parte de outros
parceiros como empregados ou clientes. Tais estruturas de controlo não são ima-
gens espelhadas do controlo pelos accionistas. O controlo pelos empregados ou
clientes torna difícil proteger os investidores por meios contratuais. Enquanto os
acordos podem restringir o pagamento de dividendos aos accionistas (para pre-
venir que os accionistas deixem os credores e outros parceiros de mãos vazias),
é muito mais difícil impedir os empregados ou clientes de pagarem a si próprios
grandes “dividendos” quando exercem o controlo. Neste ponto é crucial a distin-
ção entre “parceiro natural” (gestão, empregados, clientes, etc.) e “parceiro por
desígnio” (os investidores). Os dividendos pagos aos accionistas são altamente
visíveis e verificáveis, os dividendos pagos aos parceiros naturais podem não o
ser: os empregados podem desfrutar de grandes regalias e os clientes podem
seleccionar belos esquemas. A ausência parcial de controlo sobre os dividendos
em espécie prejudica seriamente a eficácia das estruturas de governação nas
quais os investidores não estão representados.
Vamos, por isso, discutir a divisão do controlo entre parceiros na forma
de uma co­‑determinação generalizada78. Para nos ajudar a pensar através de
estruturas de controlo alternativas, vamos usar a analogia da organização de um
processo de produção com múltiplos utilizadores a necessitarem de um input
comum. Este input pode ser fabricado por uma terceira parte, uma empresa sem
fins lucrativos ou com fins lucrativos, controlada por actores que são independen-
tes dos utilizadores (separação estrutural) ou por um dos utilizadores, que então

78 Focamos aqui a partilha de todos os principais direitos de controlo entre os parceiros.


Alternativamente, múltiplos direitos de controlo podem ser partilhados entre os parceiros,
mas alguns podem ser totalmente alocados a accionistas específicos. Em algumas circunstân‑
cias, as duas alternativas podem estar estreitamente relacionadas: parceiros diferentes po‑
dem ameaçar lesar­‑se uns aos outros substancialmente através do exercício dos seus direitos
de controlo de proprietários; as partes devem então cooperar num acordo global, como se
partilhassem todos os direitos de controlo. Um caso a apontar é a tentativa falhada no meio
dos anos 1990 por Mr. Schrempp, o Presidente da Daimler­‑Benz, de tirar vantagem de uma
Lei recentemente aprovada na Alemanha que dava às empresas a possibilidade de limitarem
os pagamentos a empregados doentes. O Conselho de Direcção voltou atrás na decisão alguns
dias mais tarde, porque a reestruturação prevista para a Daimler­‑Benz requeria a cooperação
dos empregados. O Presidente, até então um forte proponente do valor para o accionista, de‑
clarou que nunca mais voltaria a mencionar a frase valor para o accionista.

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PARTE III

o vende aos outros utilizadores (integração vertical) ou por uma entidade com
um fim específico controlada em conjunto pelos utilizadores (empreendimento
conjunto ou associação).
Por exemplo, uma rede de transmissão de electricidade pode ser controlada
por uma companhia de distribuição ou por um gerador (integração vertical), por
um grupo de utilizadores (empreendimento conjunto), ou por uma organização
independente (sem fins lucrativos como no caso de um operador de sistema
independente ou com fins lucrativos como no caso de uma companhia de trans-
missão).
Podemos formar alguns critérios acerca dos custos e benefícios do controlo
partilhado olhando para o caso familiar de uma produção de um input conjunto
e aplicá­‑los no debate sobre governação empresarial. De facto, as associações
de inputs são bastante comuns: associações de cartões de crédito como o Visa
e o Mastercard79, algumas bolsas de valores, Airbus, cooperativas agrícolas e
de investigação, telecomunicações, biotecnologia, alianças de marcas de auto-
móveis, são tudo exemplos de empreendimentos conjuntos. Empreendimentos
conjuntos, parcerias e associações podem ser vistos como exemplos de socie-
dades de parceiros até ao limite em que os actores com conflitos de interesses
partilham o controlo. Mas deve também ser notado que o primeiro argumento
a favor do valor para o accionista, a carência de receita garantida, pode não se
lhes aplicar: os parceiros em empreendimentos conjuntos podem trazer capital
mais facilmente do que os empregados numa empresa, a necessidade de recorrer
a empréstimos de partes independentes é por isso muito reduzida. Por outras
palavras, o autofinanciamento dos utilizadores do input de um empreendimento
conjunto implica que a carência de receita garantida não é aqui um factor-chave.
Uma lição interessante retirada do trabalho de Hausman (1996), e de mui-
tos testemunhos relacionados, é que a heterogeneidade de interesses entre os
parceiros de um empreendimento conjunto impede seriamente a eficácia deste.
Como é de esperar, os conflitos de interesses entre os parceiros criam desconfian-
ças e conduzem a paralisações na tomada de decisões80.

79 A Mastercard passou a ter fins lucrativos em 2003.


80 Estas paralisações podem ser atribuídas principalmente às assimetrias de informação, mas

por vezes podem ter origem nas capacidades limitadas de compensação de alguma das par‑
tes. É aqui que falha o Teorema de Coase.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

TEXTO 6
TRANSFORMANDO OS NOSSOS ESTUDANTES:
O ENSINO DA ÉTICA COMERCIAL PÓS­‑ENRON

in Koehn, D. (2005), Transforming our Students: Teaching Business


Ethics Post­‑Enron, Business Ethics Quarterly, 15, 1, 137­‑151

Professores e gestores esforçam­‑se por serem causas determinantes, con-


duzindo aqueles que instruímos ou supervisamos para que procedam de certas
formas em vez de outras. Se procuramos motivar, devemos então admitir a nossa
missão e monitorar quão correctamente a estamos a levar a cabo. Não obstante,
em vez de assumirmos os nossos fracassos, escondemo­‑nos atrás de queixas
como “alguns estudantes não aprendem porque os seus hábitos são maus” ou
“temos pouco tempo para influenciar os nossos estudantes, que são endoutrina-
dos por outros professores da escola de gestão para acreditarem que o estrito
interesse próprio domina e deve dominar o mundo”. Talvez tenhamos sido nós
que falhámos com os nossos estudantes e não o contrário. Examinando a nossa
ética de negócio, a pedagogia é crucial dado que a regulamentação por si própria
não irá prevenir futuros escândalos. Este documento apresenta três estruturas
de ensino de ética de negócio numa cultura liberal, de forma transformadora.
Embora nenhuma pedagogia possa servir como garantia, estas abordagens têm
pelo menos potencial para transformar os estudantes, já que forçam os mesmos
a investirem algum do seu dinheiro na empresa onde trabalham.
No ano passado a nossa anterior Presidente do SBE, Laura Hartman, fez um
fervoroso apelo aos defensores da ética de negócio para que assumissem maior
responsabilidade pelo que os seus estudantes fazem. Ela inverteu a famosa cita-
ção de Immanuel Kant de que “dever implica poder”, argumentando pelo contrá-
rio que “poder implica dever”. Desde que possamos ter influência sobre o que
os outros fazem, devemo­‑nos tornar responsáveis pela nossa performance. Pre-
sentemente não acredito que “poder implica dever”. Eu podia falar durante duas
horas, mas tenho a certeza que vocês não pensam que eu o deva fazer. Mesmo
assim, agarro o principal ponto de Laura. Os professores esforçam­‑se por serem
uma causa determinante, conduzindo aqueles que instruem para que procedam

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PARTE III

de certas formas em vez de outras. Todo aquele que não assuma este objectivo
não é muito reflexivo ou devia estar numa profissão diferente. Se procuramos ser
a causa, então devemos admitir a nossa missão e monitorar quão correctamente
a estamos a executar. Não obstante, em vez de assumirmos os nossos fracassos,
escondemo­‑nos atrás de queixas como “alguns estudantes não aprendem porque
os seus hábitos são maus” ou “temos pouco tempo para influenciar os nossos
estudantes, que são endoutrinados por outros professores da escola de gestão
para acreditarem que o estrito interesse próprio domina e deve dominar o mun-
do”. Eu tenho duas réplicas a estes raciocínios.
Primeiro, embora seja verdade que não é mais possível ensinar ética a estu-
dantes desmotivados, do que é ensinar­‑lhes cálculo, acredito que é melhor assu-
mir que cada estudante é passível de ser ensinado do que dar por perdida uma
parte do corpo estudantil. Não podemos saber quem pode aprender a menos
que e até que tenhamos feito um esforço concertado para instruir todos os que
potencialmente podemos influenciar. Quando um colega de Kant se queixou acerca
da preguiça dos estudantes alemães, Kant respondeu “Habe Geist” (“Tenha Ima-
ginação”). Também nós precisamos de ter imaginação e procurar melhorar conti-
nuamente o nosso ensino.
Segundo, mesmo se as mensagens que os nossos estudantes e empregados
ouvem no mercado e em outras aulas do MBA encorajam o egoísmo ou a ganân-
cia, não devemos desistir dos nossos estudantes. Se nós, defensores da ética de
negócio, fôssemos tão severos connosco como somos com os Executivos Empre-
sariais, certamente que seríamos repreendidos pela nossa prática, de culpar os
nossos estudantes ou os colegas da escola de gestão pela sua falta de ética. Tal-
vez tenhamos sido nós que falhámos junto dos nossos estudantes e não o contrá-
rio. Desconfio do tom virtuoso que por vezes ouço nos nossos ataques a colegas
da Faculdade de Gestão. Nós, defensores da ética, falamos como se soubéssemos
exactamente o que de gestão significa ensinar de forma eficaz. Bastaria os nossos
colegas deixarem de se meter à nossa frente para podermos sacudir os nossos
gestores de ética. Pergunto­‑me se nós realmente sabemos o que significa sermos
professores eficazes de ética e se estamos a satisfazer o nosso próprio padrão.
Embora a pedagogia da ética comercial seja vista como um tópico pouco
atraente, é crucial que comecemos a pensar seriamente sobre qual a melhor
maneira de ensinar o assunto. Para isso, é bastante claro que não nos vamos
colocar a nós próprios fora da actual situação ética difícil. Vocês recordar­‑se­
‑ão que a Legislação Sarbanes­‑Oxley deveria melhorar os controlos internos das
empresas e a qualidade dos relatórios financeiros e prevenir que os Executivos
tirassem benefício dos seus crimes. A Lei era também suposta servir de arranque
à reforma do mercado com o objectivo de melhorar a transparência e eliminar
conflitos de interesses nas empresas da Wall Street. No ano passado, sugeri que

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

a Lei Sarbanes­‑Oxley de 2002 criaria muito trabalho para os advogados, mas


produziria poucas alterações verdadeiramente significativas81. Decorreu um ano.
Pararam as empresas e os Executivos com as suas manipulações dos números?
Melhoraram as práticas de governação das empresas? Estão as empresas da Wall
Street a agir por forma a salvaguardar a integridade das recomendações dos ana-
listas? Eu continuo a duvidar.
Alguns dos mais notórios transgressores continuam empenhados em negócios
escuros. Depois da Sarbane, a Tyco (com novo Administrador) teve que voltar a
declarar os lucros. Em trimestres recentes, a companhia classificou erradamente
696,1 milhões de dólares como encargos antes dos impostos. Corrigiram a decla-
ração apenas depois de pressionados para tal pela SEC – Security and Exchange
Commission82. Todos disseram que a Tyco corrigiu os lucros cinco vezes desde
que Edward Breen tomou o controlo depois de Dennis Koslowski. As declarações
corrigidas eliminaram mais de 2 biliões de dólares de lucros antes de impostos83.
Alguns analistas pensam que a companhia continua a enganar os investidores. O
Wall Street Journal reporta: o analista de contabilidade Albert J. Meyer diz que a
Tyco International, Ltd. – que tem tentado convencer os investidores que limpou
a sua contabilidade – exagerou o “cash­‑flow disponível” do último trimestre em
152 milhões de dólares... A Tyco tem desde há muito vindo a dizer aos investi-
dores para olharem para aquilo a que chamam cash­‑flow disponível como uma
medida-chave da capacidade financeira. A companhia, registada nas Bermudas,
define cash­‑flow disponível como o dinheiro gerado pelas operações menos as
despesas de capital, dividendos e diversos outros itens. Mas o Sr. Meyer, um
antigo Professor de Contabilidade, que vende a sua investigação para restringir
fundos e outros, acredita que a Tyco enganou os investidores na ordem dos 152
milhões de dólares. O Sr. Meyer diz que a Tyco elevou o valor do cash­‑flow dispo-
nível não incluindo algum do dinheiro gasto para voltar a comprar um instrumento
de débito84.
Também a Wall Street continua a percorrer a sua alegre e suspeita via. Logo
após ter acordado, em Maio de 2003, não usar analistas de pesquisa de títulos

81Para uma mais ampla discussão dos problemas resultantes de confiar na Lei Sarbanes­
‑Oxley para resolver ou mesmo abreviar a prática empresarial negativa, ver Daryl Koehn, Ei‑
ght Reasons Why We Should Not Expect Too Much From Sarbanes­‑Oxley, a ser publicado no
Jornal Académico Chinês Wenti.
82David Armstrong, Tyco to Restate Financial Results, Wall Street Journal, 17 de Junho de
2003, A2, A8.
83 Joann S. Lublin and Mark Maremont, Taking Tyco by the Tail, Wall Street Journal, 6 de Agosto

de 2003, B1, B2.


84 Mark Maremont, Tyco’s Accounting Draws New Criticism by Analyst, Wall Street Jour‑

nal, 8 de Agosto de 2003, Edição online. Disponível em: http://online.wsj.com/arti‑


cle/0,SB106029433125377700,00.html?email=yes.

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PARTE III

para identificarem acções e acordos de fusão, tanto a Citigroup Inc. como a UBS
Warburg trouxeram analistas para a Grã­‑Bretanha para as ajudar a ganhar uma
grande IPO (venda ao público de títulos de uma companhia). Como o sistema
financeiro da Wall Street apenas cobre as actividades domésticas das empresas
dos EUA, as acções da Citigroup e da UBS foram tecnicamente legais. Mais ainda,
o acordo não se tornou legalmente obrigatório até sessenta dias depois de ser
aprovado pelo Tribunal Distrital dos EUA. Assim, é justo dizer que as empresas
continuam a pressionar o envelope jurídico em relação às próprias práticas que
supostamente tinham renegado85. Não admira que os reguladores se queixem da
recusa das empresas corretoras em aderirem ao espírito do acordo86. As peque-
nas empresas corretoras não estão ligadas ao acordo da Wall Street, também elas
continuam a empenhar­‑se em práticas proibidas pelo acordo. Pouco mudou na
frente analista.
Nos termos da Legislação Sarbanes­‑Oxley, os Administradores (CEO) têm
de certificar que os seus resultados financeiros são correctos. A exigência pouco
contribuirá para promover a honestidade. As empresas dignas de confiança não
precisam de alterar as suas práticas, enquanto as empresas desonestas não
vão recusar­‑se a certificar. Tal recusa constituiria um convite aberto para que os
reguladores viessem atrás da empresa. De facto, a SEC está a investigar algumas
companhias que alegadamente falsearam os lucros de 2001, que certificaram
em 2002. Quando os Executivos são processados, quem paga a factura são os
accionistas. Os accionistas da Xerox estão a pagar mais de 22 milhões de dólares
em multas que a SEC aplicou à empresa por contabilidade inexacta. Adicionando
o insulto à injustiça, os pobres accionistas têm de pagar as facturas jurídicas dos
anteriores executivos da Xerox acusados de instigarem a manipulação87.
O Executivo paga as sobras a níveis estratosféricos dado que as administrações
continuam a achar difícil dizer “não” aos Executivos. Gestores de topo usufruem
de elevados pacotes salariais que não estão ligados à performance. Por exem-
plo, ao anterior CEO da Honeywell, Lawrence Bossidy, haviam sido prometidos 4
milhões de dólares anuais e muitas outras mordomias (avião da empresa, consul-
toria fiscal, espaço de escritório, etc.)88. As companhias que pagam de acordo com
as exigências de performance estão a ajustar, para baixo, as suas metas financeiras

85Erik Portanger, Banned on Wall Street, But All Right Abroad?, Wall Street Journal, 6 de Junho
de 2003, C1, C10.
86 Idem.
87Gretchen Morgenson, Shareholders Will Pick Up the Bill This Time, Too, New York Times, 8
de Junho de 2003, Edição online. Disponível em: http://query.nytimes.com/gst/abstract.ht‑
ml?res = F208FF83D5D0CTB8CDDAFO894DB404482.
88 Monica Langley, Big Companies Get Low Marks for Lavish Executive Pay, Wall Street Journal,

9 de Junho de 2003, C1, C11.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

de modo a assegurar que o pagamento do Executivo não seja afectado89. Os Exe-


cutivos têm planos de reforma generosos e há alguma evidência de que estão a
manipular os planos de reforma da empresa para melhorar os números actuais,
embora colocando em perigo os benefícios futuros dos empregados.
A informação sobre estes assuntos não é mais facilmente obtida depois da
ligação Sarbanes­‑Oxley. Era suposto que a Lei tivesse melhorado a transparência
das empresas, mas parece que sucedeu exactamente o efeito oposto. As empre-
sas escondem­‑se atrás da Lei, recusando­‑se a dar acesso a quaisquer dados ou
projecções financeiras, argumentando que isso pode ser ilegal. Neil Westergaard,
Editor do Denver Business Journal, explica porque odeia a Lei: “Tive, de facto, um
Director Financeiro que me disse recentemente não poder responder a nenhuma
questão colocada por um jornalista acerca da sua empresa porque isso seria o
equivalente a revelar informação a um estranho – eu”. Num outro caso, ele e os
seus jornalistas pediram alguma informação básica a agentes de publicidade. Os
advogados destas agências “avisaram a delegação local que não poderia dizer
quantas pessoas empregava – ou qualquer outra informação – por causa da
Sarbanes­‑Oxley”90.
Tem havido alguma mexida nas administrações. Muitas empresas têm reduzido
as suas administrações, tornando mais fácil (em teoria) aos Directores manter
discussões contínuas e aprofundadas. Mas esta tendência estava em curso antes
do colapso da Enron e da Sarbanes­‑Oxley. As empresas, sob pressão de grandes
investidores institucionais para o melhoramento da eficácia das administrações,
descobriram a redução da administração como uma resposta relativamente
indolor. A questão mais interessante é se a composição da administração foi
alterada significativamente e para melhor. As histórias não são encorajadoras. Em
dezanove empresas de Chicago, onde o CEO não tinha mudado desde 1998, ape-
nas três Executivos tinham reduzido o número das administrações para as quais
trabalham. Cinco tinham aumentado a sua participação em ainda mais adminis-
trações. Este tipo de evidência sugere que o problema de interligação de admi-
nistrações piorou desde a Sarbanes­‑Oxley91. Muitas administrações continuam a
ter Directores provenientes de Universidades, Museus e outras organizações sem
fins lucrativos. As empresas com estes Directores concedem grandes donativos a
organizações não­‑lucrativas, criando conflitos de interesse. Muito pouco tem sido
feito para eliminar estas posições. A NYSE fez algumas propostas relativamente à

89Gretchen Morgenson, The Rules on Bosses’Pay Seem to Be Written with Pencil, New York
Times, 25 de Maio de 2003.
90Ambas as citações são de Neil Westergaard, The Good, the Bad, and the Sarbanes­‑Oxley,
Houston Business Journal, Semana 1­‑7 de Agosto de 2003, 57.
91 Chicago Tribune, 25 de Maio de 2003.

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PARTE III

independência do Director, mas nada fez que visasse estes conflitos muito difun-
didos92.
Debaixo de um ataque implacável à fraca governação das empresas, a New
York Stock Exchange (NYSE) concordou finalmente em revelar o vencimento de
Dick Grasso, Presidente da NYSE, e em proibir os funcionários da NYSE de acei-
tarem lugares nas administrações das empresas listadas. Com efeito, a partir de
2004, os Executivos das empresas de corretagem não trabalharão para o comité
de compensação da NYSE que fixa o salário do Presidente. Estas modestas alte-
rações apareceram apenas depois de Elliot Spitzer, Procurador­‑Geral de Nova
Iorque, ter contestado o plano de Grasso para apontar o Presidente e CEO da Citi-
group Inc., Sandy Weill, como Director Público da NYSE. Pedir a um homem cuja
empresa tinha sido multada em centenas de milhões de dólares por acções que
lesaram os investidores para proteger pequenos investidores é má ideia, para não
dizer pior. Todavia, o facto de esta nomeação poder parecer uma boa ideia para
os jogadores da Wall Street mostra quão pouco mudaram as atitudes e acções no
pós­‑Enron93. De facto, o Presidente da SEC, Donaldson, tomou a atitude invulgar
de punir publicamente a chefia da Morgan Stanley, depois de alguns CEO da Wall
Street começarem a vangloriar­‑se do pequeno valor das multas aplicadas às suas
empresas94.
Contudo, aqui há pouco mais do que uma pequena ironia, dado ter­‑se verifi-
cado que a própria SEC tem uma contabilidade negligente95.
Embora as empresas dos EUA falem certamente mais acerca da governação
empresarial, elas parecem estar mais envolvidas em acções de fachada do que na
alteração da conduta do negócio. As empresas pagam para terem uma avaliação
quantificada da governação da empresa. Agências de avaliação, como o Institu-
tional Shareholders Services (ISS), examinam as características de uma empresa
– exemplos, independência do auditor, composição da Administração, responsa-
bilidades do Conselho de Administração e possíveis conflitos de interesses entre
Directores. A agência de avaliação atribui à empresa um determinado grau e
depois vende o acesso das empresas a esses graus. Por um preço substancial, o
ISS sugerirá às empresas como melhorar a avaliação da sua governação. Dado
que o ISS tem grande influência junto dos fundos de investimento e fundos de
reforma, nenhuma empresa quer ficar mal classificada pelo ISS.

92David Bank and Joann S. Lublin, On Corporate Boards, Officials from Nonprofits Spark Con‑
cern, Wall Street Journal, 20 de Junho de 2003, A1, A10.
93 Kate Kelly and Susanne Craig, NYSE to Disclose Grasso Pay Among Changes, Wall Street Jour‑

nal, 6 de Junho de 2003, C1, C5.


94 Daniel Gross, Contrite Executive Watch, Part 1, Slate, 28 de Maio de 2003.
95 Deborah Solomon, SEC’s Own Accounting Requires Tightening, Internal Audit Says, Wall
Street Journal, 3 de Julho de 2003, A2.

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

O problema é que o ISS faz recomendações por procuração, para além de


fazer avaliação de empresas. Assim, o sistema de avaliação do ISS pode pare-
cer uma extorsão. Além disso, o ISS reavalia as empresas depois de elas terem
adoptado as suas recomendações. Não surpreendentemente, estas empresas
renovadas obtêm marcas elevadas. Todavia, quando estas companhias renova-
das são avaliadas por agências de avaliação que não fazem consultoria (exemplo,
Corporate Library) são classificadas com Ds ou Fs. As empresas parecem estar a
comprar boas classificações e a das avaliações é excessiva96. Adicionalmente, as
empresas são avaliadas em relação a outras da mesma indústria. Deste modo,
a uma empresa com uma administração fraca num sector que possua fraca
governação pode facilmente ser atribuído um A97. Por exemplo, o ISS atribuiu à
Aetna uma marca de 99%, o máximo na indústria de seguros. Porém, a Corporate
Library concedeu­‑lhes um D dadas as muitas directorias interligadas na Adminis-
tração da Aetna. Diz­‑se que o ISS avaliou a General Electric como a melhor na sua
classe, não obstante a propensão bem publicitada da GE em compensar genero-
samente os seus Executivos98. A popular combinação de avaliação e consultoria
do ISS encoraja as empresas a jogarem com o sistema, de preferência a fazer alte-
rações aos seus próprios méritos.
Por estas razões, não penso que sejamos capazes de orientar o nosso caminho
para uma ética melhor. O verdadeiro problema está na nossa tendência humana
de jogar com o sistema a fim de ganharmos aquilo que pensamos ser do nosso
próprio interesse. Repetindo a frase de Danny De Vito, que citei no ano passado:
“Eles podem mudar as regras mas o jogo permanece o mesmo”. O que se torna
necessário são mudanças radicais nas próprias concepções das pessoas. É nosso
dever como professores tentar realizar uma alteração positiva nos nossos estu-
dantes. Durante o resto desta conversa, quero discutir resumidamente o padrão
de ensino que mantenho e explorar algumas das técnicas e exercícios que achei
serem moderadamente úteis para satisfazer este padrão. Talvez alguns de vocês
considerem estes exercícios suficientemente valiosos para os incorporarem no
vosso ensino. Para aqueles de vocês que não estão persuadidos, espero pelo
menos desafiá­‑los a considerarem se o vosso actual estilo de ensino segue a tra-
dição de uma educação liberal.
Como o seu nome sugere, a educação liberal tem como objectivo libertar ou
libertar­‑nos de preconceitos e falsas ideias. A antiga palavra chinesa “hua”, que
significa “mudança através do ensino”, capta lindamente a essência da educação

96Monica Langley, Want to Lift Your Firm’s Rating on Governance? Buy the Test, Wall Street
Journal, 6 de Junho de 2003, A1, A6.
97 Idem.
98 Idem.

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PARTE III

liberal. Hua consiste em dois caracteres – à esquerda o carácter do ser humano,


à direita um carácter representando um ser humano invertido. Uma verdadeira
educação vira­‑nos e, por implicação, ao nosso mundo, de cabeça para baixo. Nisso
está a diferença entre a educação liberal e a chamada educação vocacional. O
ensino vocacional assume que os estudantes já sabem o que querem. Toma o
objectivo do estudante – exemplo, tornar­‑se electricista ou programador infor-
mático – como um dado e depois ensina o estudante a realizar tarefas associadas
àquele objectivo – exemplo, como electrificar uma casa ou programar em Java.
O ensino vocacional é muitas vezes chamado “treino” e isso está correcto. Nós
treinamos realizando uma tarefa repetidamente até a termos dominado. O atleta
continua a correr até poder mover­‑se tão suave e rapidamente quanto é o seu
desejo. O treinador de cães faz repetidamente com que o cão caminhe do lado de
fora do passeio, recompensando o cão que obedece com uma festa. Em ambos
os casos, aquele que treina usa um desejo pré­‑existente – o desejo do atleta de
correr mais depressa ou o desejo do cão de receber afeição ou um biscoito – para
realizar o objectivo pré­‑determinado. A esse respeito, o treino vocacional é ins-
trumental. Ao invés da educação liberal, ele confirma o ponto de vista do estu-
dante sobre si próprio e o seu lugar no mundo.
Como um proponente da educação liberal, eu mantenho um padrão: a expe-
riência da sala de aulas deve ser transformadora. A aula deve tornar os estudan-
tes cientes das suas assunções e hábitos e deve conduzi­‑los a examinar ambos.
Em vez de atender ao que eles tomam como sendo do seu próprio interesse, a
aula deve empurrá­‑los no sentido de adquirirem novos e mais bem fundamen-
tados interesses. Mas como podem ser criadas as condições sob as quais possa
ocorrer esta transformação? Notem que eu não disse que ocorrerá. Os mecanis-
mos do desenvolvimento humano são sempre um pouco misteriosos. Todos tive-
mos a experiência de ler um livro e depois pô­‑lo de lado durante anos porque não
nos interessou. Mais tarde tiramo­‑lo da estante e concluímos que este mesmo
livro é um trabalho genial, sentindo que ele foi escrito especialmente para nós.
Este tipo de experiência sugere que vemos e ouvimos apenas aquilo que já esta-
mos prontos a distinguir e compreender. Assim acontece com a aprendizagem na
sala de aulas. Como professores, devemos tentar estruturar uma aula ou discus-
são de forma que o estudante mude para melhor. Mas esta estrutura é sempre
interpretada pelos nossos estudantes de formas que fogem ao nosso controlo.
Por isso, admito de imediato aquela limitação. Não obstante, há certas estrutu-
ras com o potencial intrínseco de efectuar uma alteração radical positiva. Todas
estas estruturas funcionam convidando, e mesmo pressionando, os estudantes a
conhecerem­‑se melhor a si próprios. Há três estruturas para encontrar o eu que
desejo discutir:

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

• uma investigação sobre o significado do dinheiro;


• um conflito alegórico;
• um grande choque ao sistema.

Estrutura 1: Investigando o significado do dinheiro

O livro de Jacob Needleman, Dinheiro e o Significado da Vida, oferece a


melhor definição do dinheiro que descobri. Por “melhor”, eu quero dizer “a mais
consistente com uma educação liberal”. Needleman argumenta que o dinheiro
não é principalmente um meio de troca ou um marcador de estatuto. Ao invés,
o dinheiro é um veículo para os desejos individuais. Eu peço a cada um dos
meus estudantes para listar cinco coisas que o dinheiro signifique para eles. A
lista inclui tipicamente segurança, poder, liberdade, controlo, auto­‑estima, auto-
nomia, prazer e oportunidade. Cada um destes termos pode ser desenvolvido
mais tarde. Para alguns, liberdade significa fugir de trabalho enfadonho ou de
pais dominadores; para outros, significa a capacidade de alcançar uma satisfação
duradoura. O meu interesse neste exercício não está em expor o significado do
dinheiro. Pelo contrário, o ponto de vista de Needleman é que o dinheiro significa
tantas coisas quantos indivíduos há no mundo investindo o dinheiro com os seus
desejos. Eu quero que os estudantes vejam que se o dinheiro personifica o nosso
desejo, podemos aprender quem somos e porque estamos felizes ou infelizes
considerando o que o dinheiro significa para nós. Por outras palavras, compreen-
der a forma como vemos o dinheiro é um caminho para o autoconhecimento que
é necessário se queremos alterar os nossos interesses para melhor. No melhor
dos casos, os estudantes acabarão por ver que a sua reivindicação de quererem
um MBA a fim de obterem mais dinheiro faz pouco sentido. A questão mais pro-
funda é o que eles querem do dinheiro.
Muitos de nós não somos mais que uma rápida sucessão de desejos. Pode-
mos não ter a percepção de quem somos e o que nos satisfará, a menos que
e até que adquiramos a capacidade de observar os nossos desejos. Por conse-
guinte, peço aos meus estudantes para recordarem a sua primeira memória do
dinheiro. Um estudante lembrar­‑se­‑á do seu pai a dar­‑lhe dinheiro para o bilhete
de autocarro até ao mercado local, um outro recordará quão preocupada a sua
mãe ficou quando perdeu vinte dólares. Estes vinte dólares representavam o
orçamento familiar para a comida de uma semana inteira. Não admira que este
estudante, até hoje, associe dinheiro com segurança! Fazer a ligação entre os nos-
sos anseios e a nossa experiência é o primeiro passo em direcção a uma vida mais
pacífica e satisfatória. Enquanto esta ligação não seja esclarecida, somos escravos

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PARTE III

do dinheiro – isto é, estamos à mercê dos nossos desejos desconhecidos. Ao veri-


ficar que a sua mãe tinha sempre relacionado o dinheiro com auto­‑estima, uma
das minhas estudantes confessou excitadamente e em pranto que finalmente
compreendia porque tinha acumulado uma grande dívida no cartão de crédito
durante o seu primeiro ano no colégio e teve de desistir de estudar para ganhar
dinheiro. Através da sua primeira memória acerca de dinheiro, ela compreendeu
que tinha gasto anos a tentar comprar auto­‑estima e o amor da sua mãe.
Igualmente interessante são aqueles estudantes que recusam esta oportuni-
dade de conhecimento. Um estudante disse que a sua primeira memória sobre
dinheiro foi um porquinho mealheiro que recebeu quando fez quatro anos. Quando
lhe perguntei porque se lembrava mais deste porquinho mealheiro do que, diga-
mos, da sua primeira mesada, ele disse: “Não há razão”. Então perguntei­‑lhe se
ele ainda tinha o porquinho. Sim, disse, mas “não tinha significado” para ele.
Tinha­‑se mudado muitas vezes entre os quatro anos e os trinta e cinco anos?
Sim, tinha. Tinha­‑se desfeito de algumas coisas em cada mudança? Sim, tinha­‑se
libertado de muitas coisas, mas não daquele porquinho. Assim, ele tinha muda-
do o mealheiro quinze vezes, mas mesmo assim não tinha significado para ele?
Sim, é isso. Agora não pretendo saber o que o mealheiro significava para este
jovem. Mas sei que seria extremamente relutante em contratá­‑lo como colega ou
empregado. Aqui está alguém que está adormecido e que não quer acordar.
Depois de pôr os estudantes a pensar no que o dinheiro significava para eles,
dividi­‑os em grupos. Cada estudante devia apresentar ao seu grupo qualquer
problema pessoal que pudesse, segundo a sua opinião, ser resolvido se tivesse
dinheiro suficiente. Depois de ouvir o problema de cada membro do grupo, o
grupo deve escolher um problema para trabalhar. A tarefa do grupo é calcular tão
correctamente quanto possível quanto dinheiro seria necessário para resolver
esse problema específico. Depois de feito o cálculo, o grupo deve vir antes da
aula e resumidamente esboçar o problema, explicando quanto custaria resolver
o problema. Convido então a classe a colocar questões, antes de votarmos sobre
se o grupo deveria receber o dinheiro. Os membros da classe interrogam os seus
colegas bastante mais a fundo do que eu faria. Exploram qual é verdadeiramente
o problema. Quando um estudante queria dinheiro para pagar algumas dívidas,
os estudantes recusaram com base em que o problema real era o consumismo
do estudante. Um outro estudante precisava de dinheiro para assumir as despe-
sas de educação do seu filho numa escola privada. Porque era necessária uma
escola privada, perguntou a classe. Porque a criança precisava de disciplina que
uma escola pública não lhe podia dar. Porquê, então, o homem e a sua mulher
não davam disciplina em casa? E se os pais não podiam disciplinar os dois filhos,
o que fazia o apresentador pensar que os professores da escola iriam ser mais efi-
cazes? Boas perguntas às quais o estudante não podia responder. Pode continuar

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

a ignorar a questão, mas pelo menos os seus colegas podem ter plantado nele
uma semente de dúvida sobre a verdade da sua pretensão de que as escolas pri-
vadas seriam a resposta para os problemas de comportamento dos seus filhos.
Estes exercícios cativam o estudante. Em vez de gastarem energia a com-
preender em que erraram os gestores da Enron ou Exxon, os estudantes lançam o
seu olhar para dentro, escrutinando os seus comportamentos e desejos. Este exame
é o princípio da sabedoria. Se não nos conhecemos a nós próprios – e incluo
os professores neste “nós” – possivelmente não podemos distinguir as acções
do nosso verdadeiro interesse próprio daquelas que resultam de paixões ou de
medos deslocados. Assim, embora este exercício de modo algum esgote a área
da ética de negócio, é um terreno útil para começar se pensarmos seriamente em
provocar uma mudança no comportamento dos estudantes.

Estrutura 2: Um conflito alegórico

As parábolas podem ser muito eficazes como ferramenta de ensino. Desde


que sejam curtas, os atarefados estudantes ocupados do MBA podem relê­‑las
diversas vezes. São incisivas e parecem chegar rapidamente ao ponto principal.
Eu acentuo a palavra “parecem” porque o verdadeiro valor das parábolas reside
no facto de elas não serem o que parecem ser. Em vez de darem uma resposta
curta a uma questão importante, as parábolas exploram a questão. Como sugere
a raiz grega da palavra, as parábolas “atiram (bole) ao longo de (para­‑)” ou justa-
põem os assuntos, muitas vezes, por formas opostas e surpreendentes. A palavra
grega parabole (parábola) deriva da mesma palavra que parabolos, que significa
“enganoso” ou “perigoso”. A parábola esconde ao mesmo tempo que revela.
Adicionalmente, uma parábola tem o poder de uma parabola, de nos tirar de
um lugar e colocar­‑nos noutro que é o oposto de onde começámos. As parábolas
têm, por isso, o potencial de desafiar as certezas dos estudantes e as suas respos-
tas convencionais e descuidadas aos aspectos da vida diária.
Deixem­‑me ilustrar com a famosa parábola dos trabalhadores na vinha
(Mateus 20:1­‑16). Dado que Jesus tipicamente responde com uma parábola a
uma afirmação de um discípulo, uma questão colocada por um interlocutor hos-
til, ou um pedido de alguém à procura de um favor, é importante prestar atenção
ao contexto no qual a parábola aparece. A parábola justapõe frequentemente as
assunções do questionador com as do protagonista. Neste caso, um jovem rico
aborda Jesus e pergunta­‑lhe qual a coisa boa que tem de fazer para adquirir a
vida eterna. Jesus respondeu, “Porque me perguntas o que é bom? Há apenas
uma resposta. Se queres entrar na vida, acata os mandamentos”. Quando o
jovem responde que observa todos os mandamentos, incluindo “ama o teu vizinho

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PARTE III

como a ti próprio”, Jesus responde que “Se o homem deseja ser completo ou per-
feito, deve dar a sua riqueza aos pobres. Terá então um tesouro no céu e só depois
deverá seguir Jesus”. Nesta altura o jovem retira­‑se, o que leva Jesus a observar
que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico
entrar no reino de Deus”. Ouvindo isso, os discípulos ficam confundidos e pressio-
nam Jesus, “Quem pode então ser salvo?”. Pedro até se lamenta, “Deixámos tudo
para te seguir. O que será de nós?”.
Perguntei aos meus estudantes se notaram qualquer coisa estranha neste
encontro. Um dos estudantes mais inteligentes objectará: “Um momento. Pedro e
os outros discípulos são pescadores, não pessoas ricas conforme os padrões con-
vencionais. Então porque ficaram eles tão surpreendidos pelos comentários que
Jesus fez ao homem rico? Porque tomaram eles a afirmação de uma forma tão
pessoal e começaram a preocupar­‑se por nada vir a sobrar para eles? Se, como
eles próprios admitiram, já tinham dado tudo para obter este tesouro no céu, não
é um pouco tarde para começarem a perguntar a si mesmos o que o futuro lhes
reservaria?”.
Eu sugeriria que eles estão preocupados pela forma como interpretaram a
conversa de Jesus com o homem rico. Como muitos de nós, o homem rico quer
uma garantia de que terá vida eterna desde que faça a coisa certa, conformando­
‑se com as tradições sociais e evitando o roubo, o adultério e o assassínio. Dado
que o homem não pretende uma vida permanentemente miserável, a “vida eter-
na” significa aqui qualquer coisa como “uma vida duradouramente satisfatória”.
Ele apega­‑se aos seus bens materiais como um indicador de que tem feito todas
as coisas certas, ele pensa que teve sucesso junto da sociedade porque é virtuoso.
Todavia e claramente, o homem não é feliz. Esta é a razão por que ele segue Jesus
esperando compreender a sua desdita. Jesus indica que o seu questionador está
morto e devia preocupar­‑se menos com a vida eterna e mais com a qualidade
da sua vida neste momento. Jesus diz que o homem rico pode “começar a viver”
(Mateus 19:17) se e apenas se cumprir os mandamentos, incluindo o manda-
mento crucial de amar o seu vizinho como a si próprio. Dado que o homem rico é
obcecado com uma garantia da primazia – ele acredita que merece a vida eterna
mais do que qualquer outro porque tem sido especialmente virtuoso – é difícil
ver como pode ele amar o seu vizinho como a si próprio. A sua vida tem sido
devotada a ultrapassar os outros, batendo­‑os na corrida para a aquisição de mar-
cas sociais de virtude e para ser feliz.
Não admira, pois, que os discípulos estejam agitados: desistiram de tudo para
serem preferidos, aos olhos do céu, por causa da sua especial virtude! Eles com-
partilharam a sua sorte com Jesus precisamente porque esperam que ele lhes
garanta toda a espécie de coisas boas. Não é por acidente que, imediatamente
após este encontro, vemos a mãe dos discípulos Jaime e João pedir a Jesus que

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

sente os seus filhos à sua direita e à sua esquerda no Reino dos Céus. Ainda aqui,
nós vemos Jesus dizer ao homem rico para não o apelidar de “bom” e para não
olhar para ele como quem concede vida eterna. Nem mesmo Jesus pode tornar
fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha ou que um rico entre no
Reino dos Céus. Apenas depois de nos termos aperfeiçoado, desistindo de acredi-
tar na primazia social, podemos experimentar uma satisfação duradoura. Os dis-
cípulos mentiram a si próprios. Eles não desistiram de tudo, estão tão agarrados
como o homem rico ao sistema social de primazia e à crença de que a conformi-
dade com a Lei Moral garante felicidade. Apenas querem inverter esse sistema,
de forma que humildes pescadores como eles próprios apareçam no topo. Neste
aspecto, estão ainda mais decepcionados que o homem rico. O homem rico pelo
menos reconhece a força da sua prisão, partindo “triste” porque, embora não
esteja disposto a desistir da sua grande riqueza, sente que há mais na vida que a
sua existência passada e presente. Os discípulos, em contraste, partilham do vín-
culo do homem rico mas não o admitem. Estão autoconvencidos de que seguem
um caminho diferente e mais virtuoso rumo à felicidade.
Qual é, então, o caminho para começar a viver e obter satisfação duradoura? É
nesta conjuntura – neste ponto perigoso em que estamos divididos entre a nossa
simpatia pelo que nos dizem ser uma ilusão e uma submissão a outro caminho
que está longe de ser claro – que Jesus conta a parábola dos trabalhadores da
vinha. Quero analisar exactamente como actua a parábola, focando o modo como
ela interpreta as nossas ligações e depois trabalhar à base das mesmas.
Jesus começa por comparar o Reino dos Céus a um proprietário de terras que
sai cedo pela manhã para contratar trabalhadores para a sua vinha. Ele concorda
em pagar­‑lhes um denário (cerca de 4 centavos) por dia e manda­‑os para a vinha.
Mais tarde, às 9 da manhã, volta e vê homens no mercado sem nada para fazer.
Contrata­‑os também prometendo pagar­‑lhes um salário justo (dikaios). Ao meio­
‑dia e às 3 da tarde faz a mesma coisa. Às 5 vê ainda alguns homens permanece-
rem por ali e pergunta­‑lhes, “Porque permaneceram aqui todo o dia sem fazerem
nada?”. Eles respondem “Porque ninguém nos contratou”. Assim, o proprietário
contratou­‑os também.
Quando cai a noite, o dono da vinha (kurios) instrui o seu capataz para pagar
os salários, começando pelos últimos contratados. Os contratados às 5 vieram
e receberam um denário, equivalente a um dia de salário. Os contratados de
manhã cedo esperam receber uma quantia maior, mas também eles recebem um
denário. Resmungam contra o dono da vinha, queixando­‑se: “Estes homens que
foram os últimos a ser contratados trabalharam apenas uma hora e você igualou­
‑os a nós que suportámos toda a carga de trabalho e o calor do dia”.
Quase todos os estudantes identificar­‑se­‑ão com os resmungões, argumen-
tando que é injusto que aqueles que trabalharam apenas uma hora tenham

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PARTE III

recebido um dia inteiro de salário. A parábola pressupõe precisamente esta iden-


tificação. Ela tem o potencial de nos transformar porque começa por nos enredar
completamente nos nossos preconceitos familiares – neste caso, na nossa total
identificação com o sistema social de preferências e distribuições que nos mol-
dou desde a juventude. A parábola é potencialmente muito perturbante por uma
segunda razão. Muitos estudantes afirmam ser Cristãos, todavia aqui Jesus diz­
‑lhes que a posição moral que eles assumiram é errada (isto é, não­‑Cristã). Se o
dono da vinha for como o Reino do Céu, então aqueles estudantes que apoiaram
os resmungões estão a colocar­‑se eles próprios contra Deus. Na medida em que
os estudantes implicitamente acreditam que merecem mais do que outros, por-
que trabalharam mais duramente ou durante mais tempo, esta parábola acerta­
‑lhes em cheio e obtém a sua atenção.
Porque estão então errados os trabalhadores que começaram pela manhã,
quando resmungam? O dono da vinha contra­‑ataca as suas queixas invocando um
contrato: “Eu não estou a ser injusto para convosco. Vocês não concordaram em
trabalhar por um denário?”. A seguir invoca o seu direito de propriedade: “Quero
dar ao homem que eu contratei por último o mesmo que vos dei a vocês. Não tenho
eu o direito de fazer o que quero com o meu próprio dinheiro?”. Finalmente enfatiza
a sua virtude e o erro dos seus críticos: “Estão invejosos por eu ser generoso?”.
A resposta utiliza argumentos morais familiares. Quanto mais a consideramos,
mais estranha ela se torna. Oferecer três argumentos parece excessivo e falha em
clarificar em que sentido o esquema salarial do proprietário é justo. Um salário
não se torna justo ou honesto meramente porque o fazendeiro escolheu pagar
aquele salário específico. Nem é um salário justo simplesmente porque alguém
trabalhará por aquele preço. Muitos Estados proíbem preços enganosos com base
em serem injustos, não obstante o facto de os consumidores poderem ter aceite o
preço em questão. Nem é imediatamente aparente como é que a parábola encaixa
na discussão entre Jesus e o homem rico. O que diz a segunda parábola acerca do
que significa “começar” a viver ou fazer parte do “Reino dos Céus”?
Os estudantes farão diversas interpretações possíveis da parábola. Podem
argumentar que Jesus defende um salário igual para todos os trabalhadores.
Esta resposta tem uma plausibilidade superficial. Um denário era o pagamento
padrão a um soldado Romano. Todavia, o soldado recebia comida para além do
salário diário de um denário. Como assinalou um comentador, o trabalhador ao
dia que tivesse de alimentar a sua família e pagar a renda teria achado o salário
do proprietário pouco adequado às necessidades materiais. De facto, a necessi-
dade nunca é mencionada e assim o fundamento da parábola não é “a cada um
de acordo com a sua necessidade”. Para além disso, se a justiça consiste em cada
um receber um salário totalmente adequado, confrontamo­‑nos com o quebra­
‑cabeças de saber porquê o rico proprietário, que afirma poder fazer o que quiser

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COMPÊNDIO DE ÉTICA

com o seu dinheiro, não pagou aos trabalhadores mais do que um denário por
dia. A “generosidade” do proprietário parece uma coisa bastante mesquinha.
O princípio dominante é então “a cada um de acordo com o seu mérito”?
Dificilmente. O dono da vinha rejeita explicitamente a asserção de que aqueles
que trabalharam um dia inteiro têm direito a maior salário meramente porque
trabalharam mais horas ou mais arduamente. Talvez o princípio operativo de jus-
tiça seja “a cada um de acordo com os seus direitos”? Esta noção também é rejei-
tada. Se os trabalhadores afirmam o seu direito a mais dinheiro, o proprietário
reivindicará o seu direito a dispor da sua propriedade como achar conveniente. A
parábola dá a entender que ambos se envolverão numa batalha de direitos anta-
gónicos e nunca alcançarão um sistema justo.
Com essa percepção, começamos a fazer algum progresso na compreensão
da parábola e a abrir algumas novas possibilidades para nós próprios. A parábola
diz que os que foram contratados primeiro “esperam” (nomizo) ser considera-
dos acima dos outros. “Nomizo” significa esperar de acordo com alguma Lei ou
Princípio (nomos). Sempre que supomos que deveríamos ser mais bem pagos do
que outro, estamos implicitamente a afirmar alguma Lei, Princípio de Mérito ou
Direito. Mas uma Lei ou Princípio não nos pode fazer feliz. A parábola implica que
o verdadeiro problema é que nos tornamos infelizes a nós próprios. Nós éramos
suficientemente felizes, como observa o dono da vinha, até termos começado
a fazer comparações invejosas com os seres humanos nossos irmãos. O modo
legalista de pensamento nunca resolverá o problema da percepção de injustiça,
porque o problema reside na nossa maneira de pensar. Podemos sempre encon-
trar alguém que achemos menos merecedor que nós, podemos sempre insistir
nos nossos direitos à custa de outros. A Lei torna­‑se rapidamente, como assinalou
Amitai Etzione, um sistema de direitos proliferantes e conflituosos. Ao invocar
direitos contratuais e de propriedade, o proprietário vira o argumento legalista
dos trabalhadores contra eles próprios. Com esta justaposição – com esta mano-
bra alegórica – o dono da vinha de Jesus descobre o problema: a Lei não pode
resolver nem resolverá satisfatoriamente estas disputas sobre mérito. Nós “come-
çamos a viver” apenas quando compreendemos isso e quando paramos de nos
concentrar naquilo que os outros têm (ou não têm) feito e, em vez disso, olhar-
mos para o nosso próprio modo de agir e pensar.
Entrar no Reino dos Céus – adoptando uma perspectiva divina – é idêntico a
compreender que todos nós somos chamados a fazer o nosso trabalho espiritual
individual. O dono da vinha não deixa que ninguém fique inactivo. A palavra para
“trabalho” usada nesta parábola é a palavra grega erga. O nosso trabalho, ou
erga, consiste em fazer aquilo que tem sido mandado – nomeadamente, aman-
do os outros como a nós mesmos. De facto, a palavra grega para “trabalho por
aluguer” – energadzomai – é uma variante da palavra grega para mandamentos

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PARTE III

– “energema”. O nosso verdadeiro trabalho, então, é o trabalho espiritual de


compreender o que o mundo requer de nós se quisermos conhecer a paz interior.
Este trabalho espiritual torna­‑se impossível se nos enredarmos a nós próprios em
jogos sociais e políticos de passar à frente dos rivais ou se nos dedicarmos a acu-
mular riqueza como um indicador da nossa virtude supostamente superior.
Cada um de nós é chamado a trabalhar. Além disso, independentemente de
quando começamos o nosso trabalho espiritual, o salário é sempre o mesmo:
ganhamos em paz de alma na medida em que aprofundamos a compreensão das
obras do Universo e de como nos encaixamos neste sistema. É significativo que o
dono da vinha não diga ao capataz para pagar um denário a cada trabalhador. Eu
sugeriria que o capataz adopte este esquema porque não tem alternativa neste
caso. O Universo pede que trabalhemos e estabelece a recompensa espiritual
em satisfação e paz de alma. Este contentamento espiritual é, em análise final,
o único salário justo que importa: é o salário que mais nos é devido como seres
humanos.
Contrariamente ao que os nossos estudantes e os trabalhadores da vinha pen-
sam, o verdadeiro contentamento não é um jogo de resultado nulo. O acréscimo
de auto compreensão de uma pessoa não diminui de nenhuma forma a possível
paz de alma de outra. É por isso que os discípulos não deviam estar preocupados
em saber se o homem rico entra no Reino dos Céus: o seu destino não afecta nem
um pouco a sua perspectiva de felicidade. O contrário é verdadeiro. Preocuparmo­
‑nos sobre se temos mais ou menos virtude que a pessoa ao lado e se a sociedade
nos deu o que merecemos, impede a nossa capacidade de prosperar. Em vez de
gastar o seu dia preocupando­‑se sobre se é moralmente superior e merecedor da
sua riqueza, melhor teria sido que o jovem rico tivesse pensado porque é que os
seus esforços de obediência moral o foram deixando estranhamente vazio.
Assim, também os nossos estudantes deviam reconsiderar se justiça seria
feita se eles fossem mais bem pagos do que aqueles que eles julgam ser pregui-
çosos. Estudos têm demonstrado que a questão ética número um nas empresas
americanas é a injustiça observada nos diferenciais de salários. Porém, se a justiça
é uma virtude, é porque nos permite prosperar melhor. A parábola abre a sur-
preendente possibilidade de que é a obsessão acerca dos diferenciais de salários,
não as diferenças em si, que constitui a verdadeira ou maior injustiça.

Estrutura 3: Choque ao sistema do estudante

Os estudantes que fizeram o seu trabalho espiritual e que têm trabalhado


sem interrupção alguns dos seus desejos têm provavelmente mais coragem de
confrontar os abusos das empresas do que aqueles que vivem com medo ou

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escravos dos seus desejos não investigados. Tendo ajudado os nossos estudan-
tes a conhecerem­‑se a si próprios e a descobrirem a sua coragem, tê­‑los­‑íamos
capacitado a pensar segundo o processo de denúncia de uma actividade desleal.
Eu começo por pôr os meus estudantes a ler um capítulo de Ética de Negócio,
de Richard DeGeorge, que simpaticamente explica alguns procedimentos que os
empregados devem seguir a fim de que as suas denúncias de actividades desleais
sejam moralmente justificadas99. Os meus estudantes concordam geralmente
com esta abordagem e inicialmente não viram nela quaisquer problemas. Sim,
argumentam eles, um empregado devia reunir evidência das formas seriamente
erradas de actuação das empresas que seriam convincentes para um “observador
razoavelmente imparcial” e depois apresentar essa evidência internamente, antes
de falar para a imprensa ou para regulamentadores externos. Todavia, nem tudo
é tão claro como DeGeorge nos quer fazer acreditar. Depende muito daquela
pequena frase “observador razoavelmente imparcial”. O problema é que cada
um de nós acredita que está a agir razoável e prudentemente. Assim, como sabe-
mos nós quando a nossa denúncia de uma actividade desleal é verdadeiramente
ética? Esta questão leva­‑me até à minha terceira técnica de artes liberais, a que
chamo “pregar um choque severo ao sistema estudantil”.
Depois de a classe ter lido o capítulo da obra de DeGeorge, peço aos estudan-
tes para estudar e avaliar o texto de Henrik Ibsen, Um Inimigo do Povo100. Ibsen
é o primeiro dramaturgo a retratar um denunciante de uma actividade desleal. O
Dr. Tomas Stockman, médico residente numa pequena cidade com águas medici-
nais, reivindica ter descoberto que a água está a ser contaminada por uma bacté-
ria vinda de uma fábrica de curtumes a montante do rio. Quando o Dr. Stockman
informa a imprensa local acerca do problema, a maioria da população da cidade
revoltou­‑se e juntou­‑se à volta do médico. Contudo, quando o Presidente da
Câmara, Peter, irmão do médico, pôs em causa os custos elevados para resolver
o problema e a probabilidade de a atracção turística da cidade – as águas medici-
nais – perder a sua clientela, a cidade virou­‑se contra o Dr. Tomas e a sua família.
Pode­‑se certamente usar esta peça para ilustrar o perigo de denunciar uma
prática errada ou para explorar os problemas causados pela ida do Dr. Tomas à
imprensa antes de informar a sua descoberta ao Conselho de Direcção da estân-
cia termal. Eu uso o capítulo de DeGeorge para iniciar a discussão da peça por
estas vias óbvias e bem batidas. Mas então pergunto: como sabemos que real-
mente as águas estão contaminadas? Os estudantes falam excitadamente por
algum tempo e depois apontam a evidência: as pessoas que visitam a estância

99Ver a discussão sobre denúncia de actividades desleais em Richard DeGeorge, Business


Ethics, 5.a Edição (Upper Saddle River, N. J. Prentice Hall, 1999).
100 Henrik Ibsen, An Enemy of the People, New York: Dover Publications, 1999.

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PARTE III

termal ficam doentes, o médico especialista Tomas Stockman atribuiu a doença


a bactérias da estância termal, enviou amostras da água para um laboratório
e recebeu um relatório a confirmar as suas suspeitas. Verdade suficiente, mas
quando relemos a peça, concluímos que o médico escreveu a sua opinião sobre a
contaminação antes de ter recebido os resultados laboratoriais. Por outras pala-
vras, o Dr. Stockman convenceu­‑se sobre a contaminação antes de ter recebido
a confirmação da evidência. Não temos maneira de saber como o médico obteve
as amostras e quão contaminadas estas amostras estão. Dado que toda a água
contém milhões de microorganismos, a presença destes não é necessariamente
causa para alarme. É igualmente notável que ninguém, excepto o médico, tenha
podido ver estes resultados laboratoriais. Ele agita­‑os à sua volta, mas nunca per-
mite que alguém os examine. Outro ponto: as pessoas que visitam uma estância
de águas termais tipicamente já estão doentes, pelo que talvez os visitantes, e
não a fábrica de curtumes a montante do rio, estejam na origem da bactéria. Se a
fábrica de curtumes é responsável, por que é que ninguém a jusante do rio (isto
é, todo o povo da cidade) ficou doente? E por que é que esta doença não ocorreu
antes da abertura dos banhos termais, já que a fábrica de curtumes há anos que
estava em funcionamento? O desejo do Dr. Stockman de ofuscar a popularidade
do seu irmão e a sua antipatia pelo seu padrasto, que é dono da fábrica de curtu-
mes, tê­‑lo­‑iam levado a exagerar os resultados? Ou está o Dr. Stockman certo e é
ele a vítima de um irmão e um padrasto que o vêem como um falhado?
Eu ajudo os meus estudantes a explorar estas questões cruciais para eles pró-
prios. Divido a classe em dois grupos. O primeiro grupo deve argumentar que os
banhos estão realmente contaminados, o segundo deve encontrar vinte a trinta
razões para pensar que os banhos não estão contaminados. Com alguns palpites
da minha parte, os dois grupos disparam e não têm dificuldade em desenvolver
casos fortes para defenderem a sua posição. Depois, junto novamente os grupos
para um debate e arbitro, atribuindo um ponto a cada nova evidência e um ponto
a cada refutação relevante. No final do exercício, todos os estudantes admitem
que os banhos podem não estar contaminados. Geralmente, uma maioria de
estudantes está convencida que não há contaminação, o que é uma possibilidade
que nunca tinha ocorrido à classe quando leu o texto pela primeira vez.
O exercício não pretende converter estudantes de MBA em pessoas cépticas.
Espero antes que eles vejam quão rapidamente nós, seres humanos, tendemos a
investir­‑nos da nossa “evidência” e das nossas “posições racionais” e quão enfu-
recidos nos tornamos se alguém questiona as nossas convicções. Um dos meus
estudantes disse­‑me mais tarde que este exercício foi o mais valioso do seu MBA.
Enquanto concluía o seu MBA, ele começara a suspeitar que a sua empresa estava
envolvida em trafulhices financeiras. Ele disse que manteve Ibsen em mente,
tentando estabelecer o que pensava que sabia, o que meramente suspeitava, e o

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que contava como evidência a favor ou contra cada alegação. Ele estava absoluta-
mente disposto a confrontar os gestores, mas, depois de ter estudado Ibsen, estava
igualmente ciente que a evidência pode e deve ser vista de diferentes formas,
que ela será inevitavelmente politizada, e que há tentações perigosas que acom-
panham o desejo de ser um herói moral. Esta lição é exactamente tão importante
quanto a determinação moral de notificar a gestão acerca do problema antes de
ir para a imprensa, de recolher evidência, etc. Ibsen, astutamente, preferiu orien-
tar a peça para a suposta presença da invisível bactéria. Muitas vezes, o problema
está em discernir se realmente há um problema. Talvez o verdadeiro “inimigo do
povo” seja a certeza da nossa própria rectidão.

CONCLUSÃO

Certeza da própria rectidão, comparações individuais com outras pessoas,


ligações a desejos não realizados – todas as três são fontes de grande mágoa.
Pode­‑se dizer que a ética de negócio na tradição da educação liberal tem um único
objectivo: ajudar­‑nos a domar a nossa mágoa. Como diz William Shakespeare:
“A doença é o cárcere do corpo, a prisão da mente é a aflição. Podeis­‑vos escapar
da opressiva aflição e encontrareis a verdadeira liberdade”.

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