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Índice

DECLARAÇÃO DE AUTENTICIDADE ...................................................................................... i

DEDICATÓRIA ............................................................................................................................. ii

AGRADECIMENTOS .................................................................................................................. iii

EPÍGRAFE .................................................................................................................................... iv

RESUMO........................................................................................................................................ v

ABSTRACT................................................................................................................................... vi

LISTA DE ABREVIATURAS ..................................................................................................... vii

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 9

CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...................................................................... 11

1.1. Modelos estruturais do processo penal........................................................................... 11

1.1.1. Modelo estrutural inquisitório................................................................................. 11

1.1.2. Modelo estrutural acusatório................................................................................... 12

1.1.3. Modelo estrutural misto .......................................................................................... 14

1.1.4. Modelo estrutural do processo penal moçambicano ............................................... 15

1.2. Os sujeitos processuais................................................................................................... 17

1.2.1. O tribunal/juiz ......................................................................................................... 18

1.2.2. O juiz da instrução criminal .................................................................................... 20

1.2.3. O Ministério Público............................................................................................... 21

1.2.4. Órgãos do Ministério Público ................................................................................. 22

1.2.5. Competências do Ministério Público ...................................................................... 22

1.2.6. Actuação do Ministério Público no processo penal ................................................ 23

1.2.7. O arguido e seu defensor......................................................................................... 24

1.2.8. O defensor............................................................................................................... 25

1.2.9. Estatuto jurídico-processual do defensor ................................................................ 26


1.2.10. Ofendido, assistente e o lesado ............................................................................... 26

1.3. Fases do processo penal ................................................................................................. 28

1.3.1. Fase instrutória........................................................................................................ 28

1.3.2. Instrução preparatória e sua finalidade ................................................................... 29

1.3.3. Prazos da instrução preparatória ............................................................................. 30

1.3.4. Características da instrução preparatória ................................................................ 31

1.3.5. Término da instrução preparatória .......................................................................... 32

1.3.6. Instrução contraditória: fins, legitimidade e conteúdo............................................ 32

1.3.7. O princípio da contraditoriedade na instrução contraditória................................... 33

1.3.8. Legitimidade e formas de processo em que tem lugar............................................ 34

1.3.9. Fundamentos da rejeição e actos da instrução contraditória................................... 35

1.3.10. Prazos da instrução contraditória ............................................................................ 36

1.3.11. Enceramento da I.C. e atitudes dos sujeitos processuais ........................................ 36

1.3.12. Acusação e defesa ................................................................................................... 37

1.3.13. Despacho de pronúncia e de não pronúncia............................................................ 37

1.3.14. Julgamento .............................................................................................................. 39

1.3.15. Produção de prova – instrução ................................................................................ 41

1.3.16. Julgamento e decisão .............................................................................................. 42

1.4. Princípio da imparcialidade............................................................................................ 43

CAPÍTULO II – METODOLOGIA.............................................................................................. 45

2.1. Tipo de pesquisa............................................................................................................. 45

2.2. Universo ......................................................................................................................... 46

2.2.1. Amostra/participantes ............................................................................................. 46

2.3. Técnicas e instrumentos de recolha de dados .................................................................... 47

2.3.1. Técnicas de recolha de dados...................................................................................... 47


2.3.2. Instrumentos de recolha de dados ............................................................................... 48

CAPÍTULO III – APRESENTAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E DISCUSSÃO DE DADOS........ 49

3.1. Apresentação de dados....................................................................................................... 49

3.1.1. Dados colhidos das entrevistas ................................................................................... 49

3.1.2. Dados extraídos dos diplomas legais .......................................................................... 60

3.2. Interpretação e discussão de dados .................................................................................... 64

3.2.1. Da eficácia e adequação do modelo estrutural do processo penal moçambicano....... 64

3.2.2. Da garantia de imparcialidade do juiz da causa versus os poderes de direcção da


instrução contraditória e, de julgar........................................................................................ 69

3.2.3. Âmbito de actuação dos juízes (da instrução criminal e o da causa) no processo penal
............................................................................................................................................... 76

CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 80

Sugestões................................................................................................................................... 80

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 82
DECLARAÇÃO DE AUTENTICIDADE

Declaro por minha honra que, a presente monografia, subordinada ao tema “A (im)parcialidade do
juiz da causa face ao seu poder de direcção da instrução contraditória”, visando a atribuição do
grau académico de licenciado em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade Católica de Moçambique foi feita por mim, Olvanio de Fátima Carlos Mutiniua, com
a supervisão de dr. Mauro da Conceição Chitsondzo, através das fontes citadas ao longo da mesma
e nunca foi apresentada antes em algum fórum académico ou outro. E por ser verdade, passo a
assinar.

O declarante

______________________________________________

Olvanio de Fátima Carlos Mutiniua

i
DEDICATÓRIA

À minha mãe, Fátima Gonçalves


Matere Macuta dos Santos
(pelo apoio e amor incondicional)

ii
AGRADECIMENTOS

A minha gratidão por excelência vai a DEUS, pelo dom da vida, saúde, inteligência, e demais
dádivas que a mim concedeu pela sua graça.

Ao prof. Dr. Pe. Alberto Ferreira, pelas razoes óbvias…

Aos meus pais Emídio Jaime dos Santos e Fátima Gonçalves Matere Macuta dos Santos; meus
irmãos Ivete de Fátima Carlos Mutiniua, Santos Emídio Gonçalves dos Santos, Anderson Emídio
Gonçalves dos Santos e Julieta de Fátima Emídio dos Santos; meus avós Mariamo Matere e
Gonçalves Macuta; minhas tias Rábia, Lasmim, Augusta e Flora. (serão insuficientes as palavras
se eu tentar explicar os motivos pelo qual vos agradeço).

Ao dr. Mauro da Conceição Chitsondzo, pela supervisão prestada através das orientações
conducentes à correcta elaboração deste trabalho – serei sempre grato…

A todos os meus docentes, em especial, Aldo Roberto Covane (docente e amigo), Muhamad
Jorge Inguane (docente e motivador) e Hélio Pedro Nuvunga (docente e espelho), pela diversa
ajuda e colaboração que deram neste meu percurso académico que culmina com este trabalho.

Aos meus colegas, Ésia da Henriqueta dos Santos Chilundo (colega e amiga), Elma da
Conceição Celestino, Lina Luís Uqueio (colega e amiga) e Micaela Ernesto Muscór, pelos
incansáveis estudos que sempre privilegiaram o método expositivo, fazendo com que eu
aprimorasse mais os conteúdos objecto dos estudos.

A todos os meus amigos…

iii
EPÍGRAFE

“Os juízos de valor dos Homens são


inevitavelmente governados por seus
desejos de felicidade, daí que, o
imparcial exercício da autoridade
judiciária é um aspecto essencial de
uma sociedade livre e justa”.

Sigmund Freud

iv
RESUMO
O presente trabalho tem como tema “A (im)parcialidade do juiz da causa face ao seu poder de
direcção da instrução contraditória”. Nele pretende-se averiguar o nível de compatibilidade entre
as funções de direcção da instrução contraditória e julgadora do juiz, em face do princípio da
imparcialidade que o mesmo está adstrito. Assim, teve-se como objectivos para a elaboração desta
pesquisa: o estudo da probabilidade de o princípio da imparcialidade ser afectado ou não pela
acumulação dos poderes de direcção da instrução contraditória e de julgar, no juiz da causa; a
demostração dos modelos estruturais do processo penal e consequente identificação do modelo
moçambicano; o estabelecimento de bases do princípio da imparcialidade e sua relação com os
poderes de direcção e de julgar do juiz da causa; e a discussão dos poderes que ao juiz da causa
são conferidos na fase da instrução contraditória e do julgamento, atentos a existência da figura do
juiz da instrução criminal. Da relevância do estudo no âmbito social destaca-se a componente
prática na realização de uma justiça imparcial, podendo trazer um contributo no ordenamento
jurídico moçambicano, mormente na revisão legislativa visando a introdução de características
típicas do modelo estrutural do processo penal adoptado entre nós. Dos critérios usados para a
determinação do tipo de pesquisa usada, resultou que tal é uma pesquisa aplicada, explicativa e
qualitativa, usando-se o método indutivo e procedimento basicamente bibliográfico com nuances
da hermenêutica. O tema encontra enquadramento disciplinar no Direito Processual penal, onde
sem prejuízo de outros ramos e princípios do Direito, destaca-se mais o princípio da imparcialidade
que figura também como uma garantia dos próprios cidadãos contra a actuação discricionária
negativa dos magistrados judiciais. Em termos de constatações finais, da conjugação e
interpretação dos dados resultou que a reunião dos poderes de direcção da instrução contraditória
e julgadora num mesmo sujeito processual, afecta de forma inequívoca o princípio da
imparcialidade que é critério e até certo ponto fundamento da actuação processual do julgador.
Ademais, pode-se afirmar que, contextualmente as normas que regem o processo penal
moçambicano estão desajustadas à realidade social do país, facto que contraria uma das
características do Direito, que é o dinamismo. Diante destas ilações, sugere-se uma pontual revisão
das normas do processo penal, com vista a adequa-las à realidade social do país, sobretudo visando
a retirada e transferência da competência de direcção da instrução contraditória da esfera do juiz
da causa para a do juiz da instrução criminal, por forma a alargar o âmbito de actuação deste.

PALAVRAS-CHAVE: JUIZ DA CAUSA, JUIZ DA INSTRUÇÃO CRIMINAL, INSTRUÇÃO


CONTRADITÓRIA, PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE.

v
ABSTRACT

The present work has as its theme "The (im) partiality of the judge of the case in relation to his
power of direction of contradictory instruction". It seeks to ascertain the level of compatibility
between the functions of management of the contradictory and judgmental instruction of the judge,
in view of the principle of impartiality that is attached. Thus, the objectives of this research were:
the study of the probability that the principle of impartiality would be affected by the accumulation
of the powers of direction of the contradictory instruction and of judging, in the judge of the case;
the demonstration of the structural models of the criminal process and consequent identification
of the Mozambican model; the establishment of bases of the principle of impartiality and its
relation with the powers of direction and of judging of the judge of the cause; and the discussion
of the powers that are conferred to the judge of the case at the stage of the contradictory
investigation and the trial, paying attention to the existence of the figure of the judge of the criminal
investigation. The relevance of the study in the social field highlights the practical component in
the realization of an impartial justice, and can bring a contribution in the Mozambican legal system,
mainly in the legislative revision aiming at introducing characteristics typical of the structural
model of the criminal procedure adopted between us. From the criteria used to determine the type
of research used, it turned out that this is an applied, explanatory and qualitative research, using
the inductive method and basically bibliographic procedure with nuances of hermeneutics. The
subject has a disciplinary framework in Criminal Procedural Law, where, without prejudice to
other branches and principles of Law, the principle of impartiality is also highlighted as a guarantee
of citizens themselves against the negative discretion of judicial magistrates. In terms of final
findings, the combination and interpretation of the data resulted in the fact that the meeting of the
powers of direction of contradictory and judgmental instruction in the same procedural subject
unequivocally affects the principle of impartiality that is a criterion and to some extent a ground
for the procedural judgmental In addition, it can be said that, in a contextual way, the norms that
govern the Mozambican criminal process are out of step with the social reality of the country,
which contradicts one of the characteristics of Law, which is dynamism. In light of these findings,
it is suggested that the rules of criminal procedure should be reviewed in order to bring them into
line with the social reality of the country, especially with a view to withdrawing and transferring
the power of direction of contradictory instruction from the sphere of the judge of the case to that
of judge of the criminal investigation, in order to extend the scope of its action.

KEY-WORDS: JUDGE OF THE CAUSE, CRIMINAL INVESTIGATION JUDGE,


CONTRADICTORY INSTRUCTION, PRINCIPLE OF IMPARCIALITY

vi
LISTA DE ABREVIATURAS

§ - Parágrafo;

§ ún. – Parágrafo único;

Ab initio – No início/parte inicial;

Al. – Alínea;

Art. – Artigo;

CPP – Código de Processo Penal;

CRM – Constituição da República de Moçambique;

CADHP – Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos;

Cfr. – Conferir/confira;

CIDCP – Convenção Internacional dos Direito Civis e Políticos;

DL. – Decreto-Lei;

EIPAJ – Estatuto do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica;

EMJ – Estatuto dos Magistrados Judiciais;

EOAM – Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique;

Ibidem – Da mesma obra;

IC – Instrução Contraditória;

In fine – No fim/parte final;

IP – Instrução Preparatória;

IPAJ – Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica;

JC – Juiz da Causa;

JIC – Juiz da Instrução Criminal;

vii
LOJ – Lei da Organização Judiciária;

LOMP – Lei Orgânica do Ministério Público;

MP – Ministério Público;

N.º - Número;

OAM – Ordem dos Advogados de Moçambique;

Op. cit. – Obra citada;

P – Página;

PIDCP – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos;

PP – Páginas;

Prof. – Professor;

SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal;

SS – Seguintes;

Vide – Veja/ver;

viii
INTRODUÇÃO

A imparcialidade é uma garantia e um princípio que em sede do processo penal é concebida sob
várias perspectivas. No presente trabalho subordinado ao tema, A (im)parcialidade do juiz da
causa face ao seu poder de direcção da instrução contraditória, pretende-se trazer uma
abordagem mais restrita e direcionada à instrução contraditória, subfase esta dirigida pelo juiz da
causa. A questão de fundo que se coloca em sede do nosso tema, respeita ao facto de no mesmo
sujeito processual (juiz da causa) estarem reunidas funções ou competências (de direcção da
instrução contraditória e de julgar) cuja efectiva materialização consubstancia-se numa afronta ao
princípio da imparcialidade a que o mesmo está adstrito. Isto é, sendo o juiz da causa o único
competente para proceder a direcção da instrução contraditória e julgamento do próprio processo,
levanta-se a questão de saber se intervindo ele numa fase investigativa do processo (IC) poderá ou
não estar assegurada a sua imparcialidade na tomada da decisão final, visto que é na fase
investigativa do processo onde as primeiras e fortes convicções sobre a culpabilidade ou inocência
são criadas.

No entanto, o principal objectivo visado pelo trabalho para solucionar o problema que se nos
afigura presente e imediato, é, de estudar se a reunião dos poderes de direcção da instrução
contraditória e de julgar, no mesmo sujeito (juiz da causa), afecta ou não o princípio da
imparcialidade que é uma garantia constitucional e legal da actuação processual dos magistrados
judiciais. Deste modo, com vista a lograr o objectivo acima aludido, foram traçados objectivos
específicos cuja prossecução é feita através da fundamentação teórica constante do presente
trabalho, sendo de destacar: a demostração dos modelos estruturais do processo penal e
consequente identificação do modelo moçambicano; o estabelecimento de bases do princípio da
imparcialidade e sua relação com os poderes de direcção da instrução contraditória e de julgar do
juiz da causa; e a discussão dos poderes retro mencionados atentos a existência da figura do juiz
da instrução criminal. Como ponto de partida, na tentativa de visualizar previamente os resultados,
foram levantadas três hipóteses com vista a solucionar o problema em causa, tais que ao final deste
trabalho e de acordo com os resultados da interpretação dos dados, saber-se-á qual é a válida e a
inválida para o problema aqui levantado. A primeira hipótese é positiva, assegurando que a reunião
dos poderes aqui em discussão, no mesmo sujeito processual garante a imparcialidade deste na
tomada da decisão final; a segunda é negativa perante a primeira; sendo que a terceira é

9
basicamente neutra, com a alegação de que o problema não está na distribuição das funções ou
poderes aos sujeitos processuais, mas sim no próprio modelo estrutural do processo penal
moçambicano. Em termos de enquadramento jurídico-disciplinar, o tema em análise encontra
acolhimento no Direito Processual Penal, sendo para nós um enorme desafio mergulhar nesta área
do Direito, devido a sua natureza adjectiva e consequente complexidade que lhe é inerente.

Socialmente, o tema apresenta-se oportuno por causa da dimensão que abarca na vida corrente dos
indivíduos que em conflitos com a lei têm estado, na medida em que o foco deste trabalho é a
efectiva realização de uma justiça imparcial para todos e por todos. Outrossim, para a ordem
jurídico-processual penal, o tema poderá contribuir para uma reforma legal e paradigmática,
mormente na introdução de uma característica típica do modelo estrutural do processo penal
moçambicano. Quanto a abordagem a pesquisa é qualitativa, tendo como método indutivo e
procedimento basicamente bibliográfico associado ao hermenêutico.

No tocante a estrutura do trabalho, serviram de base as normas de citação clássicas, que permitiram
a organização deste trabalho em três capítulos, sem prejuízo dos elementos pré-textuais e pós-
textuais, onde depois da introdução segue-se o primeiro capítulo, dedicado à fundamentação
teórica; depois o segundo capítulo que é reservado aos aspectos metodológicos, e por último, o
terceiro capítulo sujeito a apresentação, interpretação e discussão de dados. Finalmente a
conclusão e sugestões.

10
CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1.Modelos estruturais do processo penal

O estudo do Direito exige, sempre, para a sua melhor compreensão, uma análise sistematizada dos
fenómenos históricos que serviram para influenciar a evolução do tema em análise. A história tem
grande influência na legislação de um povo, porque seus conceitos básicos evoluem com ela1.
Ademais, o conhecimento do Direito seria impossível sem o conhecimento do lugar que ocupa no
estudo da evolução jurídica.

É possível que a meditação da história nos torne mais conscientes das razões concretas da
actividade jurídica, de maneira que as necessárias estruturas e processos formais,
garantidores da justiça, não se convertam em rígidos entraves à actualização espontânea
dos fins que compõem a constante ética do Direito2.

1.1.1. Modelo estrutural inquisitório


Adoptado pelo Direito canónico a partir do século XIII, o modelo inquisitório posteriormente se
propagou por toda a Europa, sendo aplicado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII.
Tem como característica principal o facto de as funções de investigar, acusar, e julgar encontrarem-
se concentradas em uma única entidade, que assume desta forma as vestes de um juiz acusador, ou
como era chamado na época da inquisição em Roma, juiz inquisidor3.

Essa concentração nas mãos do juiz, compromete, invariavelmente, sua imparcialidade


pelo facto de haver uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal,
o juiz que actua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda,
perdendo a objectividade e a imparcialidade no julgamento 4.

Por causa daquela concentração de funções numa única entidade, torna-se inconcebível falar do
contraditório pelo facto de inexistir uma contraposição entre a acusação e a defesa. Além do mais,
geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, estando incomunicável.

No processo inquisitório, o juiz tem uma ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para
determinar ex-officio5 a colheita de provas, seja no curso das investigações ou do processo penal,
independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. Como a gestão das provas

1
LAGO, Cristiano Álvares Valladares, sistemas processuais penais, Rio de Janeiro, 2009.
2
REALE, Miguel, citado em LAGO, Cristiano Álvares Valladares, op. cit., p. 3.
3
LIMA, Renato Brasileiro, manual de processo penal, 5ª edição, editora juspodivm, Brasil, 2017, p. 2.
4
Ibidem.
5
Oficiosamente.

11
encontrava-se nas mãos do julgador, a partir da prova do facto e concebendo como parâmetro a
lei, poderia chegar à conclusão que bem entendesse ser conveniente 6.

Aqui, acredita-se que a actividade probatória tem como objectivo a reconstrução dos factos com
vista a descoberta da verdade absoluta, ou seja, verdade material. Tal é que se admite uma ampla
actividade probatória, quer em relação ao objecto do processo, quer em relação aos meios e
métodos para a descoberta dela, incluindo a tortura se outros métodos se mostrarem ineficazes para
a obtenção de uma confissão. O acusado é um simples objecto do processo e não um sujeito do
mesmo, por isso a ele nenhum direito o assiste7.

Neste modelo estrutural do processo penal, as provas eram apreciadas de acordo com regras, mais
de índole aritmética que processuais8, sendo a confissão considerada bastante para a condenação
do acusado, ou seja, a confissão era considerada a rainha de todas as provas. Este modelo, além de
incompatível com as garantias individuais, apresenta inúmeras imperfeições, pois, embora
integrado por preceitos que visam a descoberta da verdade material dos factos, oferece poucas
garantias de imparcialidade e objectividade, por serem psicologicamente incompatíveis com a
função do julgamento objectivo com a função da perseguição criminal 9 (investigação).

Em jeito de síntese, pode-se dizer que o modelo estrutural do processo penal é extremamente
rigoroso, secreto, que adopta a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos factos e de
concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não existe o princípio do contraditório, visto que
as funções de investigar, acusar e julgar estão reunidas nas mãos da figura do juiz inquisidor.
Tendo o juiz amplos poderes de investigação e de produção de prova, reduz-se a figura do acusado
a mero objecto do processo e não a um sujeito de direitos como o próprio juiz o é.

1.1.2. Modelo estrutural acusatório

Este modelo tem suas raízes na Grécia e em Roma, instalado a princípio com base na acusação
privada, evoluindo para a acusação oficial, tornando-se um verdadeiro processo de partes, que não
pode existir sem acusação e o julgador estando sempre numa posição passiva, imparcial, sem

6
LIMA, Renato Brasileiro, op. cit.
7
Ibidem.
8
VELASCO, Garcia, citado em LAGO, op. cit
9
MARQUUES, Frederico, citado em LAGO, op. cit.

12
iniciativa da acção penal ou dos meios probatórios10. Vigorou durante quase toda a antiguidade
grega e romana, assim como na Idade Média, nos domínios do Direito Germano. O seu declínio
verifica-se a partir do século XIII, onde em substituição aparece o modelo inquisitório11.

Caracteriza-se pela existência de partes distintas, contrapondo-se a acusação e a defesa em


igualdade de condições12, e a ambas se sobrepondo um juiz de forma equidistante e imparcial.
Neste modelo, as funções de acusar, defender e julgar estão separadas em entidades diferentes,
atribuindo ao processo a característica de actum trium personarum13.

O processo acusatório apresenta-se ao nível da história com as características da oralidade,


publicidade e observância do princípio da presunção de inocência. Deste modo, a regra era que o
acusado devesse ficar solto durante o processo até que os elementos probatórios ditassem o
contrario acerca da culpabilidade do acusado14. No que diz respeito à iniciativa probatória, o juiz
carece do poder de determinar oficiosamente a produção de provas, pois estas devem ser fornecidas
pelas partes, que têm interesse directo no processo, podendo apenas fazer um exame directo das
testemunhas e do acusado. Ainda neste aspecto, aspira-se uma posição de passividade do juiz
quanto à reconstrução dos factos, devido ao interesse de preservar sua imparcialidade. E por mais
que se admita que o juiz tenha poderes instrutórios, essa iniciativa deve ser possível apenas no
decurso do processo, em caracter excepcional, como actividade subsidiaria da actuação das
partes15.

No modelo acusatório, a gestão das provas é função das partes, ao juiz cabendo um papel de
garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Por ser um processo
de partes, o autor e o arguido constroem através do confronto, a solução justa do caso criminal. A
separação das funções processuais entre os sujeitos processuais, o reconhecimento dos direitos
fundamentais do acusado, que passa a ser sujeito de direitos e não objecto do processo, e a

10
LAGO, op. cit.
11
LIMA, Renato Brasileiro, op. cit.
12
É a expressão do princípio da igualdade, que pressupõe o uso dos mesmos recursos processuais em circunstancias
idênticas.
13
Que na língua portuguesa significa, acto de três pessoas (o juiz, o acusador e o arguido e seu defensor).
14
LIMA, Renato Brasileiro, op. cit.
15
CINTRA, António Carlos de Araújo, et al., teoria geral do processo, 14ª edição, Malheiros Editores, 1998.

13
construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são as principais
características do modelo acusatório16.

O processo acusatório tinha nas suas origens, uma estrutura próxima da do processo civil,
no qual não havia necessidade de procedimento criminal público, valendo aí os princípios
do dispositivo, do juiz passivo, da verdade formal, da autorresponsabilidade probatória das
partes e da presunção de inocência17.

Aqui, as funções processuais de investigar, acusar e julgar, são atribuídas á figuras distintas, como
forma de conduzir o processo de forma objectiva e imparcial, tanto é que o julgador não tem
poderes sequer de investigar os factos que lhe são apresentados, para alcançar a verdade material,
tendo uma actuação passiva no processo e por via disso, procurando apenas alcançar a verdade
formal18. Ora, um dos princípios base deste modelo, e que por sinal origina o nome do mesmo
(Acusatório), é o nemo in iudicium tradetur sine acusatione19.

1.1.3. Modelo estrutural misto

Após a propagação por toda a Europa a partir do século XIII, o modelo inquisitorial começa a
sofrer alterações com a modificação napoleónica, instituindo-se deste modo o denominado modelo
estrutural do processo penal misto20. É um modelo novo, funcionando como a fusão dos dois
modelos retro descritos, que surge com o code d’instruction criminelle francês de 1808, por isso
justifica-se que alguns autores o chamem de modelo francês21.

Ele é designado por modelo misto porque o processo desdobra-se em duas fases distintas, sendo a
primeira fase tipicamente inquisitorial, tendo uma instrução totalmente escrita, secreta, sem
acusação e nem contraditório. Esta tem como finalidade averiguar a materialidade e a autoria do
ilícito criminal. Já a segunda fase, com uma índole tipicamente acusatória, o órgão acusador
apresenta a acusação, o reu tem a oportunidade de defender-se e o juiz apenas julga em uma
audiência pública e basicamente oral22.

16
CINTRA, António Carlos de Araújo, et al., op. cit.
17
JACINTO, F. Teodósio, o modelo de processo penal entre o inquisitório e o acusatório: repensar a intervenção
judicial na comprovação da decisão de arquivamento do inquérito, 2009, p. 3.
18
CINTRA, António Carlos de Araújo, et al., op. cit.
19
Querendo significar que ninguém deve ser levado a juízo sem nenhuma acusação.
20
LIMA, Renato Brasileiro, op. cit.
21
LAGO, op. cit.
22
Ibidem.

14
Estruturalmente, o processo penal do modelo misto desenvolvia-se em três fases a destacar: a
investigação preliminar (de la policie judiciaire), a instrução preparatória (instruction
preparatoire) e a fase do julgamento (jugement). Ora, enquanto no modelo inquisitório estas três
fases eram totalmente secretas, escritas, sem contraditório e as três funções processuais
(investigar/acusar, defender e julgar) encontravam-se reunidas nas mãos do juiz inquisidor, no
modelo misto apenas as duas primeiras fases é que são secretas e sem contraditório. Pois na terceira
fase, além de haver o contraditório, o processo é conduzido de forma oral e com uma ampla
publicidade dos actos processuais, ficando as três funções processuais incumbidas a figuras
distintas23.

O modelo misto é a encruzilhada entre as necessidades de repressão e as garantias


individuais, pois o processo tem que ser suficientemente energético para evitar a
impunidade dos criminosos e bastante dúctil para impedir a perseguição e condenação dos
inocentes, sendo certo que, nessa toada de pensamento, o procedimento inquisitório é mais
eficiente para a apuração dos factos, enquanto que o acusatório oferece maiores garantias
ao acusado, por isso que alguns países acreditam que o modelo misto é o ideal por reunir
as vantagens de um e eliminar os inconvenientes do outro24.

1.1.4. Modelo estrutural do processo penal moçambicano

O nosso C.P.P., teve como um dos princípios orientadores o reforço do papel do juiz, ao qual
competia não apenas julgar, mas também proceder a investigação que fundamentava a acusação,
o que de certa forma representava, de acordo com o relatório do DL nº 35.007, de 13 de outubro
de 1945, um regresso do tipo de processo inquisitório, colocando em causa a imparcialidade do
juiz e reduzindo a quase nada, a actividade do M.P., porque tinha-se deste modo, dois órgãos a
procederem a mesma função de investigação25.

Assim, com a entrada em vigor do DL nº 35.007, de 13 de outubro de 1945, restaurou-se o princípio


da acusação, com o pressuposto de que se o juiz exercer plenamente a sua função policial e de
acusação pública, não manteria facilmente a sua imparcialidade. E do outro lado, se desprezasse
as funções de investigação e acusação que lhe foram atribuídas, para se ater exclusivamente às
funções jurisdicionais, tornar-se-ia frágil, por falta de suporte daquelas, a garantia de ordem
jurídica26. Ora, lançadas as bases da autonomia do M.P, o decreto lei ora citado veio retirar a

23
LAGO, op. cit.
24
TORNAGHI e MARQUES, citados em LAGO, op. cit., p. 31.
25
JACINTO, F. Teodósio, op. cit.
26
Cfr. O preambulo do DL nº 35.007, de 13 de outubro de 1945.

15
acusação pública do poder judicial para atribuir a aquela magistratura que é hierarquicamente
organizada e autónoma.

O exercício da acção penal pertence ao M.P. como órgão do Estado. O direito de punir é um direito
exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no
exercício da acção penal do M.P., mas não exercê-la como direito próprio27. Feitas as
considerações tidas como básicas para identificar o modelo estrutural do processo penal
moçambicano, iremos então embarcar nas características e princípios do nosso processo penal,
para posteriormente indicar através delas, o modelo vigente entre nós.

No processo penal moçambicano as três funções processuais estão a cargo de três figuras distintas,
o M.P. investiga e acusa28, defensor exerce a sua função para com o acusado/arguido 29 e o juiz
julga30. Existindo a figura do defensor, é também sinal da existência do princípio do contraditório
e da ampla defesa31. O processo só é secreto na fase da instrução preparatória32 (como uma forma
de salvaguardar a integridade do corpo delito, para que este não seja prejudicado em função da
publicidade dos actos de recolhe de provas que decorrem) e nas demais fases observa-se o princípio
da publicidade, com ressalva das limitações ou restrições impostas por lei33. O arguido é
considerado um sujeito de direitos34 e não objecto do processo, por isso a tortura é expressamente
proibida em respeito aos direitos humanos e à C.R.M35. que neles se inspirou. Ao juiz assiste o
princípio da investigação36, que é pressuposto para o alcance da verdade material, uma vez que a
confissão do arguido não mais é considerada como a rainha de todas as provas, tal é que havendo-
a, deve-se pautar pela investigação com vista a comprovação material dos factos alegados pelo
arguido37. E, por último, no que tange à intervenção do M.P. e da acusação, não implica uma total

27
Cfr. O preambulo do DL nº 35.007, de 13 de outubro de 1945.
28
Cfr. art. 14º do DL nº 35.007, de 13 de outubro de 1945.
29
Cfr. o nº 1 do art. 352º do C.P.P.
30
Cfr. art. 400º, corpo, do C.P.P.
31
Cfr. art. 65º da C.R.M.; art. 326º, 327º, corpo, e art. 328º, todos do C.P.P.
32
Cfr. art. 13º do DL nº 35.007, de 13 de outubro de 1945.
33
Cfr. art. 407º, corpo, do C.P.P.
34
Cfr. art. 253º e 407º do C.P.P. (em relação ao direito de audiência); art. 22º e 418º do C.P.P. (em relação ao direito
de presença); n.ºs 1 e 2 do art. 62º conjugado com o n.º 4 do art. 63, ambos da C.R.M., atentos ao acórdão n.º 2/CC/2011
do processo n.º 03/CC/2010, art. n.º 22º do C.P.P. (em relação ao direito de assistência do defensor); n.º 3 do art. 254º
do C.P.P. (em relação ao direito de nada declarar); n.º 2 do art. 254º do C.P.P. (em relação ao direito de ser informado);
e art. 645º do C.P.P. (em relação ao direito à interposição de recursos).
35
Cfr. art. 40º, in fine, da C.R.M.
36
Cfr. o nº 3 do art. 425º do C.P.P.
37
Cfr. art. 256º do C.P.P.

16
dissociação de interesses, o que significa que, o M.P. não busca a todo custo a obtenção da
condenação do arguido, sendo que inexistindo provas que o incriminem, ele abstém-se de acusar38.

Apresentadas as características do processo penal moçambicano, resulta claro que este congrega
características dos dois modelos estruturais de processo penal (o inquisitório e o acusatório), mas
abundando sobre ele as características do modelo acusatório. Tal aspecto, é que afasta a
probabilidade de estarmos perante um modelo estrutural do tipo misto. Assim, pelo facto de nosso
processo penal agregar mais características do modelo acusatório e algumas do inquisitório, o
modelo estrutural do processo penal moçambicano é denominado por basicamente acusatório e
integrado por um princípio de investigação39.

1.2.Os sujeitos processuais

No processo penal intervêm várias entidades, órgãos de administração da justiça, órgãos de polícia,
agentes da policia ou simplesmente particulares, aos quais cabe a prática de actos processuais os
mais diversos, e a todos se pode denominar, numa designação abrangente em função da sua
participação no processo, de participantes processuais40. Dentro daqueles participantes
processuais, é importante distinguir aqueles que praticam actos singulares, cujo conteúdo
processual se esgota na própria actividade41, daqueles que são titulares de direitos autónomos de
conformação concreta do processo no seu todo, com vista à decisão final 42, querendo com isto
dizer, que a distinção que se deve fazer, é entre aqueles que conduzem activamente o processo,
cuja actividade tem função determinante na decisão final, daqueles que apenas colaboram no
processo, mas não tem direitos de iniciativa ou de decisão com respeito ao processo. Os primeiros
denominam-se por sujeitos processuais e os segundos de meros participantes43.

Sujeitos processuais são os intervenientes no processo que, através da sua actividade


processual ou actos processuais, de certo modo condicionam ou conformam a tramitação
do processo penal, fazendo-o por se lhes assistir ou competir direitos e deveres processuais,

38
Cfr. art. 343º e 345º, ambos do C.P.P.
39
CUNA, Ribeiro José, Licoes de Direito Processual Penal, Escolar Editora, Maputo, 2014.
40
Jorge de Figueiredo Dias, citado em SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. I, editorial VERBO,
Lisboa/São Paulo, 1999.
41
Ibidem.
42
Jorge de Figueiredo Dias, citado em SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. I, editorial VERBO,
Lisboa/São Paulo, 1999.
43
SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. I, editorial VERBO, Lisboa/São Paulo, 1999.

17
pois, estes lhes permitem co-determinar, dentro de certos limites, a concreta tramitação do
processo44.

São meros participantes processuais, os funcionários judiciais, os agentes policiais, as


testemunhas, os peritos, os intérpretes e outros ocasionais intervenientes. São sujeitos processuais,
o tribunal/juiz, o Ministério Público, o arguido e seu defensor e o assistente 45. São estes últimos,
os sujeitos processuais, que relevam para o nosso estudo e é sobre eles que minuciosamente nos
debruçaremos a seguir.

1.2.1. O tribunal/juiz

Ao referirmo-nos de tribunal, é daqueles com jurisdição penal que trataremos, por isso releva para
este efeito, desmistificar o termo jurisdição, para que dúvidas não pairem relativamente a
actividade desses tribunais que nos ocuparemos a tratar. Jurisdição é a declaração do direito,
realizada pelos tribunais nos casos que lhe são submetidos, assim como a execução das suas
decisões naqueles casos46, ou seja, é a definição do direito em concreto47. Este termo, actualmente
tem sido usado em vários sentidos, tais sejam: como poder-dever do Estado, manifestação imediata
da soberania, de administração da justiça; e como o conjunto de órgãos do Estado aos compete o
exercício da função jurisdicional48. Portanto, é como a actividade de administração da justiça penal
(tribunais com jurisdição penal), que trataremos do termo jurisdição neste estudo.

A jurisdição penal integra um conjunto de poderes e deveres em ordem à declaração do facto como
crime e do arguido como por ele penalmente responsável ou não, à aplicação da pena ao agente e
à execução dela e bem assim à verificação dos pressupostos das medidas de segurança criminais,
sua aplicação e execução49. É função do juiz penal, conhecer e decidir os casos de natureza criminal
que lhe tenham sido presentes através de um processo adequado, fazendo-o por meio da aplicação
do direito penal substantivo.

Os tribunais, para o pleno e bom exercício da sua função jurisdicional, gozam da garantia da
independência50. Esta independência não se alude a uma qualidade pessoal, mas essencialmente

44
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 123
45
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, Direito Processo Penal, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2006.
46
SILVA, Geramano Marques, op. cit.
47
TIMBANE, Tomás, Lições de Processo Civil I, Escolar Editora, Maputo, 2010.
48
SILVA, Germano Marques, op. cit.
49
Ibidem.
50
Cfr. o nº 1 do art. 217º da C.R.M.

18
às condições objectivas criadas pelo sistema para assegurar que os juízes possam exercera sua
função apenas em obediência à lei51. Tal independência observa-se em quatro perspectivas,
nomeadamente: 1ª. independência perante os restantes poderes do Estado; 2ª. independência
perante quaisquer grupos da vida pública; 3ª. independência perante a organização hierárquica
da burocracia judicial; e 4ª. independência perante outros tribunais52.

Na primeira perspectiva, pretende-se uma independência perante os outros poderes representados


pelos órgãos de soberania como, o Presidente da República, a Assembleia da República e o
Governo. Esta independência resulta do comando constitucional relativo ao princípio da separação
de poderes53 que é próprio de um Estado caracterizado como de Direito54, sendo o nosso caso. Isto
traduz-se na não interferência, sob forma alguma, daqueles órgãos, no exercício da função
jurisdicional dos juízes55.

Na segunda perspectiva, diz respeito à independência em relação a aqueles grupos da vida pública
que têm capacidade e podem de certa forma, influenciar a função jurisdicional exercida pelos
juízes. Tais grupos podem ser, partidos políticos, grupos empresariais, os órgãos de comunicação
social e outros. Portanto, pela capacidade que estes grupos dispõem, há-de ser necessário a criação
de condições que proporcionem uma independência subjectiva aos juízes no domínio
socioeconómico56.

Na terceira perspectiva, a independência é vista em relação as ordens e instruções que


eventualmente possam ser dirigidas a um juiz por outros juízes hierarquicamente superiores, ou
pelos titulares dos órgãos do aparelho de direcção judiciário, às quais por forca da referida
independência, não deve obediência ou cumprimento57 aquando do exercício da sua função
jurisdicional, ou seja, os juízes são independentes nesta vertente, apenas o exercício da sua
judicatura.

Na quarta e última perspectiva, resulta que os tribunais são independentes perante outros tribunais
do mesmo escalão assim como de escalões superiores, nos moldes idênticos aos da terceira

51
SILVA, Germano Marques, op. cit.
52
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
53
Cfr. art. 134º da C.R.M.
54
Cfr. art. 3º da C.R.M.
55
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
56
Ibidem.
57
CUNA, Ribeiro José, op. cit.

19
perspectiva acima descrita, com ressalva do dever de acatamento das decisões proferidas em via
de recurso pelos tribunais superiores, facto este que não afecta a independência de que estes
gozam58.

A garantia da justiça não está, ou não está somente, na independência dos juízes, embora,
no seu sentido técnico, seja dela um pressuposto essencial. A verdadeira garantia da
realização da justiça passa pelo escrupuloso respeito pela lei, pelo rito processual e pelos
princípios éticos da função. Juízes bons e maus sempre os houve, e hão-de continuar e não
será tanto pela garantia da sua independência que os maus se tornarão mais responsáveis
no exercício dessa função quase divina, que, porque exercida simplesmente por homens,
está naturalmente sujeita às contingências da fragilidade humana 59.

Vistas as perspectivas da independência dos tribunais, importa referir que, não obstante reconheça-
se a existência dela, não quer dizer que os juízes devem actuar com arbitrariedade, pois sobre eles
recai o dever de obediência à lei60. Ora, com vista a realizar uma justiça justa, foram criadas e
conferidas aos juízes outras garantias não menos importantes, é o caso das garantias de
imparcialidade61, inamovibilidade62, e irresponsabilidade63. Na garantia de imparcialidade foram
instituídos mecanismos legais para a eficácia da mesma, tais como os impedimentos64, as
suspeições65 e o princípio do juiz natural66. Sobre a garantia da imparcialidade e seus contornos,
trataremos em tempo oportuno mais adiante.

1.2.2. O juiz da instrução criminal

O JIC é uma figura relativamente nova no ordenamento jurídico moçambicano, tendo sido
instituída pela Lei nº 2/93, de 24 de Junho. É, como os demais juízes (com excepção dos juízes
eleitos), um magistrado judicial67, diferenciando-se daqueles, no âmbito das funções exercidas em
sede do processo penal, sendo que as funções ou competências do JIC, são mais específicas e
limitadas ou determinadas em relação às daqueles outros.

58
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
59
SILVA, Germano Marques, op. cit. pp. 227 – 228.
60
Cfr. o n.º 1, in fine, do art. 217º da C.R.M.
61
Cfr. o n.º 2, ab initio, do art. 217º da C.R.M.
62
Cfr. o n.º 3 do art. 217º da C.R.M.
63
Cfr. o n.º 2, in fine, do art. 217º da C.R.M.
64
Cfr. art. 104º do C.P.P.
65
Cfr. art. 112º do C.P.P.
66
Cfr. o n.º 1 do art. 14º da CIDCP conjugado com a al. d) do n.º 1 do art. 7º da CADHP.
67
Cfr. art. 4º da Lei 2/93, de 24 de Junho.

20
A génese desta figura tem como precedente a própria Constituição, na medida em que estabelece
que os direitos e liberdades fundamentais só podem ser limitados/as, em tempos normais68, por
uma autoridade judicial, mormente no que tange à validação e manutenção da prisão sem culpa
formada69. O exercício das funções retro-mencionadas, corresponde ao exercício da função
jurisdicional, e esta, tendo lugar no decurso da instrução preparatória, é exercida por um
magistrado judicial, denominado por juiz da instrução criminal 70.

As funções jurisdicionais que têm lugar no decurso da instrução preparatória e que competem ao
JIC exercê-las são: a validação e manutenção das capturas71; as decisões sobre liberdade
provisória72; as decisões sobre buscas e apreensões de objectos e instrumentos do crime 73; a
aplicação provisória de medidas de segurança 74; a admissão de assistente75; a condenação em
multa e imposto de justiça76; as decisões nos incidentes relativos a impedimentos, suspeições,
falsidade e alienação mental do arguido77; outras constantes da lei78; e realizar o primeiro
interrogatório do arguido detido79.

As competências atrás mencionadas, são típicas do JIC mas, onde ainda não exista um, tais
competências são exercidas pelo juiz da causa ou do lugar onde for efectivada a prisão do arguido
sem culpa formada80.

1.2.3. O Ministério Público

Constitucional e legalmente, o Ministério Público é definido como sendo uma magistratura


hierarquicamente organizada e subordinada ao Procurador-Geral da República81. É um órgão da

68
A utilização da expressão “tempos normais”, quer significar que existem outras circunstancias (tempos
extraordinários) em que a limitação do exercício de direitos e liberdades fundamentais (vide art. 287º CRM) é
autorizada ou decidida por outras entidades diferente da que nós indicamos. É o caso do estado de sítio ou de
emergência, nos termos do art. 282º e ss. da CRM, onde a limitação é decidida pelo Presidente da República mediante
submissão da declaração Assembleia da República, nos termos do art. 285º da CRM.
69
Cfr. 1ª parte do preâmbulo da Lei 2/93, de 24 de Junho.
70
Cfr, nº 1 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
71
Vide. al. a) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
72
Vide. al. b) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
73
Vide. al. c) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
74
Vide. al. d) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
75
Vide. al. e) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
76
Vide. al. f) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
77
Vide. al. g) do n.º 2 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
78
Cfr. n.º 2, corpo, do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
79
Cfr. art. 253º do CPP conjugado com o art. 1º da Lei n.º 2/93, de 24 de junho.
80
Cfr. n.º 2 do art. 2º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
81
Cfr. o n.º 1 do art. 234º da C.R.M. conjugado com o n.º 2 do art. 1º da LOMP.

21
administração da justiça, autónomo, ao qual compete representar o Estado e defender os interesses
que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania,
exercer a acção penal e defender a legalidade82.

A criação do M.P. tem a sua génese nos ideais iluministas apresentados na revolução francesa,
tendo como objectivo erradicar o processo de estrutura inquisitória83. É através desta magistratura
que se pretende obter quatro fins visados pelo processo do tipo acusatório, tais sejam: a separação
entre a entidade que preside a instrução criminal e à acusação, daquela a quem cabe a decisão final,
e com a qual se pretende conseguir a necessária objectividade e imparcialidade do julgamento; a
possibilidade de uma instrução liberta de quaisquer prejuízos; que os tribunais não estejam
congestionados com um rol de processos penais fundados em suspeitas frágeis para fazer esperar
que o arguido venha a ser condenado; e que a acusação, determinando a vinculação temática do
juiz pela exacta delimitação dos seus poderes cognitivos, represente uma importante garantia do
arguido e dos seus direitos fundamentais 84, 85. Na qualidade de órgão de administração da justiça
do Estado, o M.P. não é uma instituição consubstancial à clássica divisão de poderes soberanos do
Estado e nem participa do poder judicial na função jurisdicional 86.

1.2.4. Órgãos do Ministério Público

Enquanto magistratura hierarquicamente organizada, o M.P. é integrado de certos órgãos através


dos quais leva a cabo as suas actividades, são eles, a Procuradoria-Geral da República (órgão
superior)87, o Gabinete Central de Combate à Corrupção88, as Sub Procuradorias-Gerais da
República89, as Procuradorias Provinciais da República90 e as Procuradorias Provinciais da
República91.

1.2.5. Competências do Ministério Público

82
SILVA, Germano Marques, op. cit.
83
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, Vol. I, 1ª Edição – 1974, Coimbra Editora, 2004.
84
DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit.
85
RIBEIRO, Diaulas Costa, Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal, Lisboa,
2000.
86
BARREIROS, José António, Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1981. Pp. 67 – 68.
87
Cfr. o nº 1, corpo, do art. 9º da LOMP.
88
Cfr. al. a) do n.º 1 do art. 9º da LOMP.
89
Cfr. al. b) do n.º 1 do art. 9º da LOMP.
90
Cfr. al. c) do n.º 1 do art. 9º da LOMP.
91
Cfr. al. d) do n.º 1 do art. 9º da LOMP.

22
No que tange às competências do M.P., estas encontram-se taxativamente arroladas na LOMP,
onde de todas elas é possível dividi-las em dois grupos e nomina-las em competências de actuação
judicial e as de actuação extrajudicial92. As primeiras, são aquelas cujo exercício implica
necessariamente a intervenção nos processos que tramitam no judiciário. Enquanto as segundas,
respeitam à acções ou actividades do M.P. fora do âmbito dos processos judiciais 93. Portanto,
atendendo a natureza prática da nossa pesquisa, cingir-nos-emos apenas em abordar às
competências da actuação judicial que tenham relevância em processo penal.

Assim, são competências de actuação judicial, do M.P.: representar o Estado junto dos tribunais94;
exercer a acção penal e dirigir a instrução preparatória nos processos-crime95; dirigir a instrução
de processos por infrações tributárias, financeiras e outras previstas na lei96; zelar pela observância
da legalidade e fiscalizar o cumprimento da Constituição da República, das leis e demais normas
legais97; participar nas audiências de discussão e julgamento, colaborando no esclarecimento da
verdade e enquadramento legal dos factos, podendo, para o efeito, fazer directamente perguntas e
promover diligencias que visem a descoberta da verdade material 98; controlar a legalidade das
detenções e a observância dos prazos99; fiscalizar os actos processuais de polícia e dos agentes de
investigação criminal, nos termos da lei100; e zelar para que a pena determinada na sentença e o
respectivo regime sejam estritamente cumpridos101.

1.2.6. Actuação do Ministério Público no processo penal

Paralelamente ao exercício das funções judiciais, o M.P. exerce uma função de colaboração com
o juiz na descoberta da verdade e na realização do direito, configurando-se esta, a razão da sua
intervenção no processo penal102. Esta sua actividade em processo penal não é exactamente uma
função judicial, mas sim um mecanismo para a materialização da função judicial103.

92
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
93
Ibidem.
94
Cfr. al. a) do art. 4º da LOMP.
95
Cfr. al. e) do art. 4º da LOMP.
96
Cfr. al. f) do art. 4º da LOMP.
97
Cfr. al. g) do art. 4º da LOMP.
98
Cfr. al. h) do art. 4º da LOMP.
99
Cfr. al. i) do art. 4º da LOMP.
100
Cfr. al. m) do art. 4º da LOMP.
101
Cfr. al. o) do art. 4º da LOMP.
102
BELEZA, Teresa Pizarro & ISASCA, Frederico, Direito Processual Penal, Textos AAFDL, Lisboa, 1991. P. 45.
103
CUNA, Ribeiro José, op. cit.

23
Exercendo uma tarefa delicada e frágil, acresce-se ao M.P. uma grande responsabilidade e senso
de profissionalismo com vista a acautelar interesses do Estado de forma segura, justa e
transparente. Para tal, a Constituição da República assim como a LOMP, preveem critérios que
possam orientar este órgão na prossecução das suas atribuições ou competências, sendo tais
critérios, da legalidade, da objectividade e da isenção104. Em linhas gerais, estes critérios orientam
o M.P. a actuar com absoluta imparcialidade, evitando a discriminação, protegendo o interesse
público, agindo com profissionalismo, tomando em consideração a posição do suspeito e da vítima
e tendo em conta todas as circunstancias pertinentes, favoráveis ou não ao suspeito, evitando a
promoção dolosa e acusações infundadas105.

1.2.7. O arguido e seu defensor

Resulta do da lei processual penal que arguido é aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter
perpetrado uma infracção, cuja existência esteja suficientemente comprovada106. Já suspeito, é
aquele a respeito de quem se procure na instrução averiguar dos fundamentos da suspeita de ter
cometido uma infracção107, mas não sendo esta suspeita ainda forte, nos moldes exigidos para que
seja arguido108. Réu, é aquele que foi já chamado a responsabilidade perante à comunidade
jurídica perante uma acusação aceite ou recebida por um juiz109,110. A noção de arguido releva
em processo penal devido aos efeitos de constituição de determinada pessoa como arguido e o
regime jurídico que lhe assiste111,.

Para o professor SILVA, é suspeito toda a pessoa relativamente a qual exista indício de que
cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para
participar112. Como o suspeito não é sujeito processual, não tem direitos e nem está sujeito a
deveres processuais especiais113. Para que seja sujeito processual, e por via disse seja titular de
direitos e deveres processuais especiais, é necessário que lhe seja feita uma comunicação por um

104
Cfr. o n.º 2 do art. 234º da C.R.M. conjugado com o n.º 2 do art. 2º da LOMP.
105
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
106
Cfr. art. 251º do C.P.P.
107
Cfr. art. 252º do C.P.P.
108
DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 426
109
Ibidem, pp. 426 – 427.
110
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 152.
111
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 151.
112
SILVA, Germano Marques, op. cit. p. 286.
113
DIAS, Jorge Figueiredo & ANDRADE, Manuel da Costa, Criminologia: O homem delinquente e a sociedade
criminógenea, Coimbra Editora, Lisboa, 2011.

24
órgão da administração da justiça, de que ele foi constituído arguido num processo. Formulada a
acusação ou requerida a instrução contra pessoa determinada, é obrigatória a constituição de
arguido, facto este que faz com que aquele autor descorde da noção legal de arguido retro
mencionada, sendo para ele, arguido, a pessoa que é formalmente constituída sujeito processual
e relativamente a quem corre processo como eventual responsável pelo crime que constitui objecto
do processo114. Quanto a este aspecto, nós inclinamo-nos a concordar com esta última noção, pelo
facto de que a posição de arguido adquire-se não mediante as fortes suspeitas, mas sim através de
um acto formal de constituição, em que abre-se a instrução contra pessoa determinada e por via
disso há uma imperatividade legal de que tal pessoa seja comunicada da posição que ostenta
naquele processo que foi aberto.

1.2.8. O defensor

Defensor é o sujeito processual através do qual pode, e nalguns casos deve, ser exercida a função
defensiva do arguido através da defesa técnico-jurídica115. Não obstante o juiz assim como o M.P.
tenha o dever de actuar no processo com absoluta imparcialidade e objectividade, tal dever não
afasta a possibilidade da existência de um defensor a favor do arguido no processo. Como o M.P.,
o defensor é um órgão autónomo de administração da justiça, tendo como objectivo colaborar com
o tribunal para a descoberta da verdade e realização do direito, ainda que aquele faça à sua própria
maneira, com a parcialidade favorável ao arguido116.

Pois verdade é que, pese embora exista àquele dever de imparcialidade e objectividade,
juiz e MP correriam muito maior risco de – apesar de toda a sua boa vontade e tensão de
consciência – emitirem juízos precipitados sobre a responsabilidade do arguido (que o
próprio comportamento deste poderia potenciar, por incompreensão do formalismo
processual, receio das consequências, inconsideração, equivocidade, ignorância, etc.), se a
defesa não fosse confiada a alguém que, possuindo os conhecimentos jurídicos necessários,
tenha por missão exclusiva fazer avultar no processo tudo quanto seja favorável posição
jurídica do arguido117.

114
Ibidem, p. 286.
115115
Ibidem, p. 310.
116
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
117
DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 469.

25
A defesa consiste na actividade destinada a fazer valer no processo os direitos subjectivos e outros
interesses jurídicos do arguido118. Por ser uma actividade complexa, abrange a autodefesa pelo
próprio arguido e a defesa técnico-jurídica pelo defensor119.

1.2.9. Estatuto jurídico-processual do defensor

O defensor é um elemento essencial à administração da justiça, um verdadeiro órgão de


administração da justiça, independentemente da sua qualidade de advogado constituído ou
defensor nomeado120. Com tais atributos, é certo que o seu estatuto no processo é integrado por
certos deveres que deverá observar no âmbito da sua actividade defensiva. Tais deveres, são não
só, uma forma de dignificar a profissão e garantir a prossecução da sua função social, mas também
servir ao direito e colaborar na boa administração da justiça121.

O defensor está vinculado ao segredo profissional, o que significa que quaisquer informações
relativas ao arguido que aquele tenha conhecimento no exercício da sua função defensiva não
devem ser por ele reveladas, ainda mais quando prejudiquem o arguido 122. É vedada ao defensor
de discutir publicamente questões profissionais, aqui refere-se à questões pendentes ou a instaurar
perante os tribunais ou outros órgãos do Estado, a menos que tal discussão seja para prevenir ou
remediar a ofensa à dignidade, direitos e interesses legítimos do cliente ou do próprio advogado,
devendo ser autorizada pela OAM123. Relativamente aos demais deveres, apenas faremos à sua
remessa para os respectivos artigos e diplomas legais, por não ser esse o pano de fundo da
discussão desta pesquisa, assim, os demais deveres a que o defensor/advogado esta sujeito constam
do artigo 81º do Esta tudo da Ordem dos Advogados de Moçambique. Caso o defensor seja um
técnico do IPAJ, os seus deveres constam do art. 5º do Estatuto Orgânico do Instituto de Patrocínio
e Assistência Jurídica.

1.2.10. Ofendido, assistente e o lesado

118
SILVA, Germano Marques, op. cit., p. 310.
119
Ibidem.
120
Ibidem, p. 314.
121
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 175.
122
Cfr. art. 79º do EOAM.
123
Cfr. n.º 1 e 2 do art. 80º do EOAM.

26
Nos crimes particulares, a actividade do MP é desde logo condicionada pela constituição de
assistente, sem a qual o procedimento não pode prosseguir além da queixa, e sua prossecução para
além do inquérito depende da acusação particular do assistente124.

Como forma de distinguir os conceitos em volta destas figuras, refere-se que o ofendido não é
sujeito processual, salvo se se constituir assistente no processo; o lesado enquanto tal, nunca pode
constituir-se assistente, mas parte civil para efeitos de indemnização civil, porém, sendo aquele
que sofreu danos com o crime, pode coincidir, e isso ocorre não raras vezes, com o ofendido e,
pode também constituir-se assistente, não por ser lesado, mas por ser ofendido125.

O jurisconsulto Jorge de Figueiredo DIAS define ofendido, em processo penal, como sendo,
unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta
criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em
perigo126. Para o prof. SILVA, “ofendido é o titular do interesse que constitui objecto jurídico
imediato do crime e que, por isso, nem todos os crimes tem ofendido particular, só o tendo aqueles
em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular uma
pessoa127”.

Para nós, este último conceito parece-nos mais completo pelo facto de incluir o elemento imediato,
que na nossa opinião é determinante para a caracterização desta figura para efeitos da legitimidade
para ser assistente, visto que em certos crimes públicos o interesse lesado pela conduta criminosa
é objecto mediato e, por via disso, teriam legitimidade para constituir-se assistentes no processo
todos os cidadãos, daí que importa fazer essa distinção conceptual.

De acordo com o prof. Germano Marques da SILVA, assistente é o sujeito processual que intervém
no processo como colaborador do MP na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em
virtude da sua qualidade de ofendido, de especiais relações com o ofendido pelo crime ou pela
natureza do próprio crime128. Para Fernando Henrique UACHE, assistente é um dos sujeitos do
processo penal a quem cabe fazer a queixa dos factos criminosos e coadjuvar o MP na busca da

124
SILVA, Germano Marques, op. cit.
125
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
126
DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit., p. 505.
127
SILVA, Germano Marques, op. cit., p.339.
128
SILVA, Germano Marques, op. cit., p. 337.

27
verdade com vista à responsabilização de quem sobre ele se imputa a prática dum facto
criminoso129.

Ambos conceitos mostram-se aprimorados e coincidem com a realidade jurídica da figura do


assistente, porém a nossa inclinação vai mais para o primeiro conceito, pelo facto de conectar
directamente a figura do assistente ao ofendido, visto que não se pode ser assistente em processo
penal sem que antes se ostente a posição de ofendido, ou seja, do titular do interesse a que a lei
penal substantiva quis especialmente proteger.

1.3.Fases do processo penal

O processo penal como a sequencia lógica e cronológica de actos conducentes a identificação da


infração criminal, seus agentes, grau de responsabilidade e aplicação da respectiva reação criminal,
é integrado ou dividido em fases, que têm como objectivo a prática de actos de forma organizada
e sistematizada, para que o resultado que se almeja alcançar, com êxito se alcance. Deste modo,
correspondem às fases do processo penal a fase instrutória, a fase da acusação e defesa, a fase do
julgamento, a fase da execução, e a fase do recurso130.

Pela limitação da extensão do tema da presente pesquisa, adiante ocupar-nos-emos apenas das três
primeiras fases do processo penal, sem prejuízo de eventualmente abordarmos superficialmente
das duas últimas fases em razão da complementaridade que existe nestas fases processuais.

1.3.1. Fase instrutória

A fase instrutória do processo subdivide-se em duas partes, nomeadamente: instrução preparatória


e instrução contraditória131. A instrução contraditória nem sempre tem lugar, pelo facto de ser
facultativa nos termos da lei penal adjectiva132, como adiante veremos. A instrução preparatória
abrange todo o conjunto de provas que formam o corpo de delito e tem por fim reunir os elementos
de indiciação necessários para fundamentar a acusação 133. Ali, não só devem ser efectuadas
diligências conducentes a provar a culpabilidade do arguido, mas também aquelas que possam

129
UACHE, Fernando Henrique, manual prático de processo penal, 2ª edição, Alcance Editores, Maputo, 2011. P.
35.
130
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
131
FERREIRA, Manuel Cavaleiro, Curso de Processo Penal, 3 Tomos, Lisboa, 1981.
132
CUNA, Ribeiro José, op. cit. p. 309.
133
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., 43.

28
concorrer para demostrar a sua inocência134. A instrução preparatória difere da contraditória pelo
facto de aquela ser dirigida pelo MP e ter uma forma inquisitória, enquanto a esta é dirigida pelo
juiz da causa e reveste uma forma contraditória135. Além do que as distingue, há um ponto de
convergência entre ambas, sua natureza, as duas têm como missão averiguar os pressupostos para
a prossecução do processo.

1.3.2. Instrução preparatória e sua finalidade

Como já foi dito, tanto a instrução preparatória quanto a instrução contraditória, ambas fazem parte
da instrução como fase processual, e com base nisso, extrai-se do art. 10º, corpo, do DL 35.007,
de 13 de outubro de 1945, que a Instrução do processo penal tem por fim verificar a existência das
infracções, determinar os seus agentes e averiguar a sua responsabilidade. Logo, conclui-se que
o fim da instrução preparatória e da contraditória é o mesmo. Esta subfase é dirigida pelo MP136,
e excepcionalmente por outras entidades legalmente previstas 137.

Esta fase processual é norteada pelo princípio da verdade material, o que significa que a verificação
da existência de infracções deve compreender a verificação da existência ou inexistência da
mesma, e de forma igual, a verificação da responsabilidade dos seus agentes deve pautar pela
verificação da responsabilidade ou irresponsabilidade dos mesmos, e havendo responsabilidade,
deve-se aferir a medida desta138. Faz prova desta interpretação o § ún. do art. 10º DL 35.007, de
13 de outubro de 1945, ao estabelecer que “na instrução devem, quanto possível, investigar-se os
motivos e circunstancias da infracção, os antecedentes e estado psíquico dos seus agentes…”.

Perante uma noticia da eventual prática de um crime, cumpre averiguar se se confirmará e em que
termos, quem foi o seu agente e a sua responsabilidade e de tudo recolher as provas que hão-de
permitir reconstruir os factos e fundamentar a decisão sobre a acusação ou não acusação139. No
processo penal, o interesse do Estado não à condenação do arguido, mas sim a realização da
justiça140, daí que na instrução preparatória devem ser realizadas diligencias e recolhidas provas

134
Ibidem.
135
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
136
Cfr. art. 14º do DL 35.007, de 13 de outubro de 1945, conjugado com a al. e) do art. 4º da LOMP e art. 236º da
CRM.
137
Cfr. art. 17º e 18º do DL 35.007, de 13 de outubro de 1945.
138
NEVES, Castanheira, Sumários do Processo Criminal, Edição Policopiada, Coimbra, 1968. P. 109.
139
SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. III, 3ª edição, Editorial Verbo, Lisboa, 2009, p. 79.
140
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 311.

29
não apenas que incriminem o indiciado, mas também que provem a sua inocência e
irresponsabilidade141.

Não se basta o processo penal com a mera invocação de que alguém praticou um crime
para o submeter a julgamento, como sucede, em regra, no processo civil, em que é
suficiente a mera alegação de factos geradores de responsabilidade do réu. O processo
penal tem custos morais muito elevados para o arguido, mais não seja os decorrentes da
publicidade que lhe é inerente. Importa por isso, acautelar, que só seja submetido a
julgamento aquele sobre quem recaia fundada suspeita de responsabilidade criminal.
Acresce também ser do interesse público o evitar os custos sociais de processos
desnecessários142.

1.3.3. Prazos da instrução preparatória

Os prazos da instrução preparatória em processo penal, variam consoante haja ou não arguidos
presos e em função da forma de processo ou pena aplicável143. Deste modo, havendo arguidos
presos e tratando-se de crimes dolosos puníveis com pena correcional de prisão superior a 1 ano
ou nos processos de polícia correcional, é de 20 dias144; tratando-se de crimes puníveis com pena
de prisão maior ou para cujo julgamento deva seguir-se processo de querela, o prazo é de 40 dias145
e; quando se trate de crimes cuja instrução preparatória é deferida à SERNIC ou da sua exclusiva
competência146, o prazo é de 90 dias147.

Não havendo arguidos presos, o prazo de instrução preparatória é de 3 meses em processo de


querela e de 2 meses nos restantes processos, e os mesmos começam a contar a partir do momento
e que instrução preparatória é dirigida contra pessoa determinada148.

Não obstante a direcção da instrução preparatória seja da exclusiva competência do MP, situações
surgem no decurso daquela, que implicam a restrição ou limitação de direitos e liberdades
fundamentais – medidas de coação e de garantia patrimonial149 – do arguido, que necessariamente
devem ser decididas com a máxima urgência para acautelar certos interesses públicos. Tais

141
Cfr. § 1 do art. 12º do DL 35.007,de 13 de outubro de 1945.
142
SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. III, 3ª edição, Editorial Verbo, Lisboa, 2009, p. 79.
143
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
144
Cfr. n.º 1 do § 1 do art. 308º do CPP.
145
Cfr. n.º 2 do § 1 do art. 308º do CPP.
146
Nem sempre a instrução preparatória é dirigida pelo MP, vezes há, que em razão do tipo de processo e crimes
praticados, a direcção da instrução preparatória é acometida aos órgãos de polícia. São os casos dos artigos 17º e 18º
do DL 35.007, de 13 de outubro 1945.
147
Cfr. n.º 3 do § 1 do art. 308º do CPP.
148
Cfr. art. 337º, corpo, do CPP.
149
São meios processuais de limitação de liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais
responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu
desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias (SILVA, p. 254).

30
decisões implicam o exercício da função jurisdicional que é exclusiva dos magistrados judiciais, e
não o sendo o MP, aquelas decisões são tomadas por um magistrado judicial designado por juiz da
instrução criminal150. É o caso da validação e manutenção das capturas, decisões sobre a liberdade
provisória, buscas e apreensões, etc.

1.3.4. Características da instrução preparatória

A instrução preparatória reveste-se de certas características, nomeadamente o carácter


inquisitório, o carácter secreto e o carácter escrito151. Como oportunamente nos debruçamos no
âmbito dos modelos estruturais do processo penal, classificamos o modelo moçambicano como
sendo basicamente acusatório e integrado por um princípio de investigação. Essas características
de que adiante nos ocuparemos, são típicas do modelo estrutural do tipo inquisitório, que o nosso
modelo adoptou para salvaguardar certos interesses públicos e privados.

Carácter inquisitório: na instrução preparatória, o MP como órgão autónomo de administração da


justiça, procede oficiosamente as diligências de prova com vista a descoberta da verdade material.
Quer isto significar que aquele órgão não só deve recolher elementos probatórios para fundamentar
a acusação, mas também para fundamentar a abstenção de acusação 152 conforme estabelece o § 1
do art. 12º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.

Carácter secreto: a instrução preparatória é secreta153, o que significa que está sob segredo de
justiça, isto implica o não conhecimento dos autos do processo por terceiros e até mesmo pelo
próprio arguido. O segredo de justiça abrange aos magistrados do MP que dirijam a instrução
preparatória a aos funcionários que nela participem de algum modo 154. A excepção deste carácter
nesta fase, reside na possibilidade de ser facultado o processo ao assistente, arguido e seus
advogados, somente quando não coloque em causa a descoberta da verdade155. Igualmente,
poderão ser dados a conhecer dos autos do processo, os peritos, intérpretes ou testemunhas, nas
mesmas condições descritas retro, incluindo o que vai disposto no art. 73º do C.P.P. Para o prof.
Germano Marques da SILVA, o segredo na fase da investigação pré-acusatória (instrução

150
Cfr. n.º 1 do art. 1º da Lei 2/93, de 24 de Junho.
151
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 317
152
Ibidem.
153
Cfr. art. 13º, corpo, do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.
154
Cfr. art. 70º, corpo, do CPP.
155
Cfr. § 1 do art. 70º do CPP.

31
preparatória) justifica-se por duas ordens de razoes: a eficácia da investigação e a defesa da honra
do suspeito/arguido (o sublinhado é nosso)156.

Carácter escrito: na instrução preparatória as diligências ou actos realizados no decurso dela


devem ser reduzidos a escrito. Pois só dessa forma os actos de instrução preparatória podem ser
apreciados, uma vez registados para o efeito de introdução do feito em juízo 157.

1.3.5. Término da instrução preparatória

Como ficou referido, a propósito da finalidade da instrução preparatória, esta não tem por
finalidade somente a averiguação dos pressupostos de facto ou elementos de indiciação que
condicionam o exercício da acção penal, mas também realizar diligencias que permitam a obtenção
de elementos que possam fundamentar o não exercício da acção penal. Este é o cerne do princípio
da verdade material vigente no processo penal 158.

Tendo sido realizada a instrução preparatória, assim que o MP entender ter concluído todas as
diligências de prova, declara encerada a instrução preparatória e proferi o respectivo despacho de
acordo com os elementos de prova recolhidos159. A instrução preparatória considera-se finda
quando tenha sido obtida prova bastante para fundamentar a acusação ou abstenção, ou quando o
prazo legal tenha decorrido160. Portanto, o despacho proferido pelo MP poderá ser ou de
acusação161, ou de abstenção de acusação162, ou de que os autos aguardem a produção de melhor
prova163. Achando não ter logrado elementos de indiciação bastantes para acusar, deduzirá uma
acusação provisória e ao mesmo tempo requererá a abertura da instrução contraditória164.

1.3.6. Instrução contraditória: fins, legitimidade e conteúdo

A instrução contraditória, tendo por fim a averiguação à averiguação da verdade material em


processo penal, pode ser precedida de uma acusação provisória, ainda que o MP tenha deduzido a

156
SILVA, Germano Marques, curso de processo penal, vol. III, 3ª edição, Editorial Verbo, Lisboa, 2009, p. 104.
157
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
158
Ibidem, p. 324.
159
UACHE, Fernando Henrique, op. cit.
160
Cfr. art. 326º do CPP.
161
Cfr. art. 341º e § ún. Do art. 326º, ambos do CPP, conjugados com o art. 24º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro
de 1945.
162
Cfr. art. 343º do CPP conjugado com o art. 25º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.
163
Cfr. art. 345º do CPP conjugado com o art. 29º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.
164
Cfr. § ún. Do art. 326º do CPP, conjugado com o art. 24º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.

32
acusação como definitiva depois da instrução preparatória, o juiz oficiosamente decretá-la,
entendendo que deve haver lugar à ela para efeitos de melhor se decidir em face do seu despacho,
ou decida pela sua realização a requerimento do arguido 165. Assim, a finalidade da instrução
contraditória divide-se em duas perspectivas: por um lado (na óptica da acusação), pretende-se
esclarecer e completar a prova indiciária da acusação166; e por outro lado (na óptica da defesa),
ilidir ou enfraquecer aquela prova e preparar ou corroborar a defesa 167,168. O prof. Germano
Marques da SILVA, assevera que a instrução contraditória, é uma actividade de comprovação da
acusação em ordem à decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento 169. Já o
prof. Gil Morreira dos SANTOS, refere que a instrução contraditória é, tal como a instrução
preparatória, uma fase processual atinente à formulação de um juízo de probabilidade para
legitimar a sujeição a julgamento170.

A instrução contraditória tem um carácter jurisdicional pelo facto de ser dirigida pelo juiz da
causa171 e ocorre entre a fase da instrução preparatória e o julgamento172. Ela tem um carácter
jurisdicional não apenas por ser dirigida por um juiz (juiz da causa), mas também porque nela se
exerce uma actividade materialmente jurisdicional: apreciação pela jurisdição duma situação
factual concreta seguida duma decisão proferida de um ponto de vista exclusivamente jurídico 173.
A actividade processual desenvolvida na instrução contraditória é materialmente judicial e não
materialmente policial ou de averiguações, como ocorre na instrução preparatória174.

1.3.7. O princípio da contraditoriedade na instrução contraditória

A instrução contraditória, surge, também, como um meio de defesa do arguido, permitindo-lhe o


exercício pleno do direito a defesa que lhe assiste, através do princípio da contraditoriedade, visto
que nesta fase já não mais existe o secretismo processual contra o arguido 175. Participando dos
actos da instrução contraditória, o arguido poderá apresenta a sua defesa antes da audiência de

165
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 489.
166
Cfr. art. 327º, corpo, ab initio, do CPP.
167
Cfr. art. 327º, corpo, in fine, do CPP.
168
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
169
SILVA, Germano Marques, vol. III.
170
SANTOS, Gil Morreira, princípios e prática processual penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 332.
171
Cfr. art. 330º, corpo, do CPP, conjugado com o art. 37º do DL n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945.
172
SILVA, Germano Marques, vol. III, p. 133.
173
Ibidem, pp. 135 – 136.
174 174
SILVA, Germano Marques, vol. III. p. 136.
175
NEVES, Castanheira, Sumários do Processo Criminal, Edição Policopiada, Coimbra, 1968.

33
julgamento, contrapondo provas ou argumentos relacionados com o facto objecto do processo 176.
Nesta vertente, a instrução contraditória surge como um meio de defesa do arguido, de que pode
resultar a sua não pronúncia pelo juiz, tendo ou não mantido a sua acusação o MP, desde que as
diligências requeridas pelo arguido tenham conseguido ilidir ou enfraquecer a prova indiciária
careada nos autos177.

1.3.8. Legitimidade e formas de processo em que tem lugar

A instrução contraditória é facultativa e não tem lugar em todas as formas de processo em função
da legitimidade para requere-la, ou seja, é uma fase eventual, só há lugar a ela se requerida por
quem tenha legitimidade ou quando aberta oficiosamente pelo juiz, no uso do seu poder de
investigação178. A instrução contraditória somente terá lugar quando for requerida pelo MP, para
esclarecer e completar a prova judiciária da acusação, ou pelo arguido, para sugerir diligências
destinadas a ilidir ou enfraquecer aquela prova e preparar a sua defesa179, ou ainda, quando
ordenada oficiosamente pelo juiz, como forma de melhor elucidar-se acerca da decisão de
pronunciar ou não o arguido180.

No processo de polícia correcional, a instrução contraditória está condicionada à complexidade da


causa, exigência de investigação mais completa, para que o MP a requeira, indicando no mesmo
acto as circunstancias a esclarecer e diligências que julgar convenientes 181. Ao arguido, é-lhe
atribuída a faculdade de requerer a abertura da instrução contraditória em todas as formas de
processo com excepção dos de transgressões e sumários182. E, por decisão do juiz, a instrução
contraditória pode ser aberta oficiosamente em todas as formas de processo, para a realização de
diligências complementares de prova que julgue convenientes para receber ou rejeitar a
acusação183. Esta posição do legislador, em permitir que o juiz possa abrir oficiosamente a
instrução contraditória em todas as formas de processo, justifica-se pelo princípio da investigação
vigente no nosso processo penal e que é característica do modelo estrutural do processo penal

176
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
177
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 495.
178 178
SILVA, Germano Marques, vol. III. p. 137.
179
Cfr. n.º 2 do art. 1º da Lei 9/92, de 6 de Maio.
180
Cfr. n.º 3 do art. 1º da Lei 9/92, de 6 de Maio.
181
Cfr. n.º 1 do art. 327º do CPP, conjugado com o art. 35º do DL 35.007, de 13 de outubro de 1945.
182
Cfr. n.º 2 do art. 327º do CPP, conjugado com o art. 36º do DL 35.007, de 13 de outubro de 1945.
183
Cfr. n.º 3 do art. 327º do CPP, conjugado com o n.º 3 do art. 1º da Lei n.º 9/92, de 6 de Maio.

34
adoptado no ordenamento jurídico moçambicano, que como já referimos oportunamente, é o
modelo basicamente acusatório e integrado por um princípio de investigação.

1.3.9. Fundamentos da rejeição e actos da instrução contraditória

O MP, no seu requerimento para abertura da instrução contraditória, deverá articular e indicar a
identificação do arguido e factos a ele imputados, com a discriminação dos factos que entenda
haver indícios suficientes e aqueles que queira ver esclarecidos, mencionando as respectivas
diligências convenientes de prova. Para o arguido aplica-se-lhe a segunda parte do que ficou
exposto, devendo articular os factos que pretenda provar, juntar todos documentos que devam ser
apreciados, indicando outros meios de prova que queira produzir e oferecendo o rol de testemunhas
com a menção dos factos que irão depor184,185.

Deste modo, o requerimento de instrução contraditória pelo MP só pode ser rejeitado quando seja
inadmissível; quando o juiz seja incompetente; quando se verifique não ter havido crime ou estar
extinta a acção penal; ou quando hajam elementos de facto que comprovem a irresponsabilidade
do arguido186,187.

Tendo sido aberta a instrução contraditória, o juiz, julgando haver diligências inúteis para a
descoberta da verdade, que tenham por finalidade protelar o andamento do processo, poderá
indeferir tais diligências com um despacho fundamentado188,189.

Na realização das diligências de recolha de prova em sede da instrução contraditória,


somente o juiz é que procede a inquirição de testemunhas, podendo o MP, o arguido ou seu
defensor, o assistente e seu advogado, requerer que sejam feitas quaisquer perguntas para
completar ou esclarecer os depoimentos. Julgando necessárias à descoberta da verdade, o
juiz as fará, caso contrario, indeferirá190.

Quanto à ordem de produção de prova e seu limite, não há hoje critérios estritos. O legislador
atribui ao juiz poderes ordenadores, sendo critério orientador o da idoneidade dos actos, tendo
presente que aqui não se busca ainda a certeza, bastando a probabilidade191,192.

184
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 499.
185
Cfr. art. 328º do CPP, conjugado com o art. 36º do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
186
UACHE, Fernando Henrique, op. cit.
187
Vide o art. 329º do CPP.
188
UACHE, Fernando Henrique, op. cit.
189
Cfr. n.º 2 do art. 330º do CPP, conjugado com o art. 40º, in fine, do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
190
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., p. 139.
191
SANTOS, Gil Morreira, op. cit., p. 337.
192
Cfr. § 2, ab initio, do art. 330º do CPP.

35
1.3.10. Prazos da instrução contraditória

Assim como a instrução preparatória, a instrução contraditória está sujeita a prazos legais, que
variam conforme a forma de processo e existência ou não de arguidos presos 193. Nestes termos,
havendo arguidos presos os prazos para a realização das diligências da instrução contraditória são
de: três meses, se à infracção couber pena a que corresponda processo de querela; e dois meses,
se ao crime for aplicável pena a que corresponda processo de polícia correcional 194,195. Em
situação adversa, em que não hajam arguidos presos, o prazo é de seis meses no processo de
querela e de quatro meses no processo de polícia correcional 196.

Os prazos dos processos em hajam réus presos podem ser acrescidos do tempo absolutamente
indispensável, não excedente a trinta dias, para decidir incidentes ou excepções deduzidos pela
defesa e para proceder as diligências da defesa que não tiveram lugar antes 197,198.

A questão da existência de prazos para a realização de diligencias ou conclusão das fases


processuais, encontra fundamento no direito que à todos assiste, de obter dos órgãos competentes,
uma decisão em prazo razoável para que os efeitos das suas pretensões sejam uteis e
salvaguardados199.

1.3.11. Enceramento da I.C. e atitudes dos sujeitos processuais

Esgotada a realização de todas as diligências requeridas ou que se tiverem mostrado relevantes, ou


tendo o prazo legal decorrido, o juiz declara encerada a instrução contraditória 200. Tendo a
instrução contraditória sido precedida de acusação (provisória), deverá ser notificado o arguido,
para no prazo de dois (2) dias dizer o que se lhe oferecer, em função dos resultados obtidos na
instrução contraditória201. Como é de se esperar, o defensor do arguido procurará mostrar que não
foram encontrados indícios de probabilidade para submeter o arguido a julgamento202. De seguida,

193
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 502.
194
Houve aqui uma interpretação correctiva, porque o dispositivo legal referente a este aspecto faz menção ao processo
correcional, que como se sabe, não existe no ordenamento jurídico moçambicano.
195
Cfr. art. 334º, corpo, do CPP.
196
Cfr. § 1 do art. 334º do CPP.
197
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., p. 140.
198
Cfr. art. 334º, corpo, in fine, do CPP.
199
NEVES, Castanheira, Sumários do Processo Criminal, Edição Policopiada, Coimbra, 1968. P. 87.
200
UACHE, Fernando Henrique, op. cit.
201
Cfr. art. 335º, corpo, do CPP.
202
Sobre a parcialidade do defensor, cfr. CARNELUTTI, Francesco, as misérias do processo penal, Escolar Editora,
Lisboa, 2012.

36
será continuado o processo com vista ao MP e notificado o assistente (havendo-o) para, manterem
ou não a acusação (no prazo de 2 dias), seguindo o processo a apreciação do juiz que culminará
com o despacho de pronúncia ou de não pronúncia 203.

1.3.12. Acusação e defesa

Tendo sido continuado o processo com vista ao MP, este, entendendo terem sido recolhidos
elementos bastantes da infracção, dos seus agentes e sua responsabilidade, mantém a acusação, e
esta considera-se definitiva204,205. Deste modo, ao deduzir a acusação o MP está a formular um
juízo se probabilidade sobre o objecto do processo e formalmente o manifesta206. Segundo o prof.
Germano Marques da SILVA, “a acusação definitiva representa a pretensão de que o arguido
seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena
prevista na lei207”.

1.3.13. Despacho de pronúncia e de não pronúncia

Após a dedução da acusação definitiva pelo MP e pelo assistente (havendo-o), o processo será
remetido ao tribunal para que o juiz profira o seu despacho, podendo ser de pronúncia ou de não
pronúncia208. A base deste despacho, será a matéria probatória recolhida nos autos209.

Quando o juiz entenda estar reunida a matéria probatória que indicia suficientemente que o arguido
cometeu a infracção de que vem acusado, proferirá o despacho de pronúncia contra o arguido 210,
sendo este um acto de recepção da acusação e consequente convicção de que o arguido deva ser
julgado.

203
Cfr. art. 335º, in fine, do CPP.
204
Como oportunamente fez-se saber, quando o MP, finda a instrução preparatória, tenha deduzido a acusação como
definitiva e de seguida for aberta a instrução contraditória, aquela transforma-se em provisória, podendo no culminar
da instrução contraditória, ser transformada como definitiva pela atitude do MP ao mantê-la. De igual modo, finda a
instrução preparatória pode o MP deduzir a acusação como provisória, e requerer a abertura da instrução contraditória
com a pretensão de completar os indícios de probabilidade e formular a acusação definitiva no final daquela. Vide o
art. 26º do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
205
Cfr. art. 341º, corpo, e 349º, corpo, ab initio, ambos do CPP, conjugado com o art. 43º do DL. 35.007, de 13 de
outubro de 1945.
206
RIBEIRO, Diaulas Costa, Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal, Lisboa,
2000;
207
SILVA, Germano Marques, op. cit. v. III.
208
Cfr. art. 365º do CPP.
209
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., p. 141.
210
Ibidem.

37
No entanto, tendo conteúdo meramente processual, o despacho de pronúncia significa
simplesmente que estão verificados os pressupostos indispensáveis para a submissão do
arguido a julgamento pelos factos que lhe são imputados através da acusação, abrindo
espaço para uma discussão judicial, sem, contudo, resolver a questão de saber se o arguido
deve ou não ser punido211.

Mais do que os requisitos legais, no despacho de pronúncia o juiz deve apreciar todos os factos
constantes dos autos, ainda que não tenham sido participados pelo MP ou pelo assistente212.

Sem prejuízo de outros requisitos constantes da do art. 354º do CPP, o juiz, deve, antes de apreciar
a acusação, no despacho, conhecer sempre das nulidades da instrução ou de actos praticados
durante a instrução, bem como verificar se foram ordenadas prisões arbitrárias e se foram
cumpridos os prazos legais da instrução 213,214. Esta atitude do juiz constitui acto preliminar de
saneamento do processo mediante decisões de questões prévias que possam obstar ao
conhecimento do mérito da causa, ou pelo menos podem afectar a justa decisão da causa 215,216.

Não tendo o arguido constituído defensor, neste acto, ser-lhe-á nomeado um defensor oficioso para
que o represente nas fases subsequentes do processo, mormente na fase do julgamento 217,218. No
âmbito dos requisitos típicos e legais do despacho de pronúncia 219, importa sublinhar a relevância
que assume a indicação precisa dos factos por que são responsáveis e em que qualidade ou
medida220.

Quanto a este aspecto importa sublinhar que a indicação precisa dos factos por que o
arguido é pronunciado afigura-se de grande importância, pois, nos termos do art. 447º do
CPP porque a pronúncia, fixa os limites de cognição do tribunal quanto aos factos gravosos
para o réu na fase de julgamento, salvo dando-se o caso excepcional do art. 448º do mesmo
diploma legal221.

Diferentemente do que acabamos de explanar, quando após a apreciação dos autos, o juiz entender
não existir matéria indiciaria suficiente para submeter o arguido ao julgamento, ou constatar que
extinguiu-se a acção penal, recusará através do despacho de não pronúncia, a recepção da
acusação, determinando que os autos aguardem a produção de melhor prova ou que sejam

211
SILVA, Germano Marques, op. cit., v. III, p. 189
212
UACHE, Fernando Henrique, op. cit.
213
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 510.
214
Cfr. art. 354º, corpo, do CPP.
215
SILVA, Germano Marques, op. cit., v. III, p. 202.
216
Cfr. § 1 do art. 400º do CPP, conjugado com o art. 45º do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
217
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., p. 142.
218
Cfr. art. 49º do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
219
Vide o art. 366º do CPP.
220
Vide o n.º 2 do art. 366º do CPP.
221
UACHE, Fernando Henrique, op. cit., p. 142.

38
arquivados222,223. Neste despacho, o juiz fundamentará a sua posição com elementos de facto e de
direito, sendo que havendo réus presos, ordenará que sejam imediatamente postos em liberdade224.

Tanto o despacho de pronúncia quanto o de não pronúncia, será notificado o MP, o assistente e os
indiciados/arguidos, podendo ser efectuadas mesmo em férias 225. Essas decisões (despachos),
como muitas outras, são passiveis de impugnação por meio de recursos 226, e tal segue os termos
prescritos no art. 371º a 378º do CPP.

Tendo o despacho de pronúncia transitado em julgado, o juiz deverá ordenar a entrega, ao acusado,
de uma cópia do despacho de pronúncia e do rol de testemunhas com indicação dos documentos
produzidos227. O acusado deve apresentar a sua contestação e rol de testemunhas, ou apenas o rol
de testemunhas, no prazo de 8 dias após a notificação do despacho de pronúncia, para que de
seguida o processo vá concluso ao juiz, para designar dia para julgamento 228.

1.3.14. Julgamento

O julgamento é a fase em que, perante o tribunal, deve ser produzida a prova com vista a tomada
da decisão pelo mesmo tribunal, prova que, qualquer que seja permitida em direito, sendo oferecida
pela acusação e pela defesa e sujeita à apreciação pelo tribunal de acordo com o princípio da livre
apreciação da prova, sem prejuízo de o juiz ordenar diligências que se reputem necessárias ao
esclarecimento do caso, como recomenda o princípio da investigação229.

Nesta fase, além de ocorrer a produção de prova, são feitas alegações de facto e de direito pela
acusação e defesa. No primeiro caso faz-se uma análise crítica da prova produzida e no segundo,
interpretação dos preceitos legais e consequente conexão com os factos por eles julgados
provados230. No julgamento, ensina o jurisconsulto Ribeiro José CUNA, o tribunal toma
igualmente decisão sobre os factos que julga provados e procede à aplicação do direito aos

222
Ibidem, p. 143.
223
Cfr. art. 367º, conjugado com os artigos 343º e 345º, todos do CPP.
224
Cfr, art. 368º do CPP.
225
Cfr. o art. 370º do CPP.
226
RIBEIRO, Diaulos Costa, Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal, Lisboa,
2000;
227
Vide o art. 379º, corpo, do CPP.
228
Cfr. art. 46º do DL. 35.007, de 13 de outubro de 1945.
229
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
230
Ibidem, p. 539.

39
mesmos, proferindo sentença ou acórdão, de acordo com o modo de funcionamento do tribunal
(singular ou colegial).

Na essência, o julgamento é integrado por três fases, nomeadamente 231:

1ª A instrução, que se traduz na produção da prova com vista a descoberta da verdade material, e
em especial para efeitos de possível comprovação dos factos alegados e que sejam relevantes para
a causa;

2ª A discussão da causa, que consiste fundamentalmente, na apreciação crítica da prova produzida


durante a instrução sobre a matéria de facto que interessa à decisão da causa, o que se materializa
através das alegações quer de facto quer de direito;

3ª O julgamento como tal, mediante decisão pelo tribunal sobre os factos que considera provados
e não provados, e decisão final da causa através da produção de sentença final aplicando o direito
aos factos.

Com vista a realização do julgamento da causa de forma eficaz e eficiente, a audiência de


julgamento obedece certos princípios, a destacar: princípio da publicidade232,233, princípio da
concentração234, princípio da oralidade235 e da imediação236, e o princípio do contraditório237 ou
da contraditoriedade238. Estes princípios, não serão objecto da nossa especial atenção neste estudo
(sem prejuízo de aborda-los de forma superficial e repentina, oportunamente), não por serem de
menor importância, mas pelo carácter pragmático que se impõe à presente pesquisa.

O juiz (da causa) a quem for distribuído o processo, no tribunal competente, é que presidirá a
audiência de julgamento, mantendo a ordem e disciplina necessárias ao bom funcionamento da
mesma239. Considerando-se reunidas todas as condições legais para a realização da audiência, o
juiz declara aberta a audiência, seguindo-se os trâmites que iremos a seguir abordar.

231
CARVALHO, 2010, p. 343, citado em CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 543.
232
Vide art.407º do CPP.
233
Vide art. 13º da Lei n.º 24/2007, de 20 de agosto (Lei da Organização Judiciária).
234
Cfr, art. 414º do CPP.
235
Cfr. art. 466º do CPP.
236
Vide art. 426º do CPP.
237
Cfr. art. 415º e 423º, ambos do CPP.
238
SILVA, Germano Marques, op. cit., v. III, p. 219.
239
Cfr. art, 409º, corpo do CPP.

40
Procede-se a leitura do processo, concretamente as seguintes peças processuais: a querela/acusação
do MP, da parte acusadora (havendo-a), o despacho de pronúncia, a contestação do réu, as
conclusões dos exames dos peritos e outros documentos juntos ao processo que se reputarem de
grande valia para o esclarecimento do processo, estes últimos quando requeridos pela acusação ou
pela defesa240.

Antes de iniciar a produção de prova, o tribunal conhece e decide das nulidades e quaisquer
questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, acerca das
quais não tenha ainda havido decisão e fases anteriores, e que possa desde logo apreciar 241,242.

1.3.15. Produção de prova – instrução

A instrução em julgamento implica a aquisição da prova no contraditório das “partes” e


audiência. Acusação e defesa devem estar presentes na audiência e participar na produção
da prova. Participar quer dizer influir, contribuir directamente no processo formativo da
prova, na determinação do seu objecto e com o emprego dos meios necessários para a sua
assunpção. A prova para a decisão há-se ser formada na audiência de julgamento. Os
representantes da acusação e da defesa não só requerem, discutem e concluem, mas
sobretudo provam243.

No que diz respeito à ordem de produção das provas, a nossa lei penal adjectiva é deveras liberal,
sugerindo apenas (não impondo) que as testemunhas do réu sejam ouvidas em último lugar 244.
Deste modo, procede-se ao interrogatório do réu245,246, que é feito pelo juiz247 (da causa), cabendo
à acusação e à defesa apenas pedir que o interrogado esclareça as suas respostas, e quando
necessário, que lhe sejam feitas outras perguntas, podendo o juiz deferir ou indeferir se julgar
desnecessárias ou serem legalmente proibidas248.

De seguida, procede-se ao interrogatório das testemunhas que, diferentemente do regime do


arguido, aqui, os representantes da acusação e da defesa poderão fazer perguntas directamente à
eles, sem prejuízo de o juiz intervir quando necessário para que as testemunhas não seja
intimidadas249. Posto isto, serão colhidas pelo tribunal, as declarações dos peritos e demais pessoas

240
Vide o art. 464º do CPP.
241
SILVA, Germano Marques, op. cit., v. III, p. 230.
242
Cfr. art. 424º, corpo, do CPP.
243
SILVA, Germano Marques, op. cit., v. III, p. 234.
244
Cfr. art. 433º do CPP.
245
Cfr. art. 425 do CPP.º
246
Cfr. art, 465º do CPP.
247
Cfr. art. 429º, ab initio, do CPP.
248
Cfr. art. 429º, in fine, do CPP.
249
Vide art. 435º do CPP.

41
que se mostrarem necessárias para o esclarecimento da causa250. Durante a discussão da causa,
mormente na produção de prova, pode sobrevier o conhecimento de novos elementos de prova que
podem, de forma manifesta, influir na decisão, caso em que o tribunal pode ordenar que elas se
produzam, adiando-se, quando necessário, a audiência251.

Feito isso, seguem-se as alegações dos representantes da acusação e da defesa, sendo que poderão
replicar apenas uma vez252,253. É nessa fase onde aqueles sujeitos processuais procurar a todo custo
convencer ao tribunal, através das suas posições e factos que julgam estarem provados, que o
tribunal deve condenar ou absolver o réu.

Importa referir que as alegações orais não são meio de prova, pois têm em vista convencer o
tribunal sobre os factos a considerar provados e não provados quanto as alegações de facto 254.
“produzida a prova perante os juízes e em contraditório, as alegações têm uma função de
recapitulação e de síntese, ganhando geralmente em clareza e persuasão quando sintéticas e
incisivas255”

Terminadas as alegações, o juiz perguntará ao réu se tem mais algo a dizer em sua defesa, sendo a
resposta positiva, o ouvirá em tudo, sendo negativa, encerará a fase da produção de prova256.

1.3.16. Julgamento e decisão

Ouvido o réu pelo tribunal, sobre o que disser a bem da causa, o juiz declara encerada a discussão
da causa e organiza quesitos que serão apreciados e deliberados pelos juízes em conferencia 257,. O
MP assim como os advogados podem propor o aditamento dos quesitos naquilo que julgarem
pertinente ou mesmo formularem os seus próprios diferentes daqueles já criados 258.

Antes de o tribunal retirar-se da sala para discutir e deliberar sobre a matéria de facto (acto este
que necessariamente deve ocorrer a discussão da causa, para que as memórias frescas dos juízes
ainda possam ajudar-lhes a lembrar do que foi a produção de prova), marca a data para a leitura da

250
Cfr. art. 440º do CPP.
251
Vide art. 443º, corpo, do CPP.
252
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 575.
253
Cfr. art. 467º do CPP.
254
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
255
SILVA e CARVALHO, citados em CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 575.
256
Cfr. art. 468º e 534º do CPP, nas respectivas formas de processo.
257
CUNA, Ribeiro José, op. cit., p. 576.
258
Cfr. art. 446º, corpo, do CPP.

42
sentença e de seguida recolhe-se ao gabinete para deliberar (junto com os juízes eleitos) sobre a
matéria de facto, sendo que ao juiz de direito cabe exclusivamente aplicar a lei aos factos, ou seja,
procede o julgamento de direito259.

Elaborada a sentença, é lida na data previamente marcada, cabendo dela recurso para o tribunal
superior260.

1.4.Princípio da imparcialidade

Imparcialidade é a qualidade daquele ou daquilo que é imparcial 261, 262. O dicionário de língua
portuguesa apresenta cinco sentidos da expressão imparcial, nomeadamente:

1°: imparcial é o que não favorece um em detrimento de terceiro;


2°: que revela imparcialidade;

3°: que não tem partido;

4°: recto, justo; e

5°: que julga como deve julgar entre interesses que se opõem 263.
A nossa pesquisa terá em conta o primeiro, o quarto e o quinto sentidos do termo imparcialidade
acima apresentados

Em um Estado de Direito Democrático, o cerne de qualquer processo idôneo e justo, reside no


princípio da imparcialidade do juiz. Consiste em um posicionamento indiferente e distante do
julgador – enquanto investido no poder de jurisdição - em relação ao que está sendo discutido
pelas partes ou sujeitos processuais. No entanto, como um ser humano, o juiz tem seus ideais, sua
ética pessoal, seus próprios princípios, como qualquer outra pessoa 264.

No sistema das legislações modernas há, unido ao princípio da imparcialidade do juiz, o princípio
do livre convencimento do juiz – onde há limitação legislativa que impõe o julgamento segundo
a instrução probatória dos autos. Isto porque, o juiz é uma pessoa alheia aos acontecimentos que
provocaram a discussão das partes, seu conhecimento, portanto é baseado no que lhe é

259
CUNA, Ribeiro José, op. cit.
260
Vide art. 449º e 473º, ambos do CPP.
261
Dicionário Moderno da Língua Portuguesa, Escolar Editora.
262
PRATA, Ana, VEIGA, Catarina & VILALONGA, José Manuel, Dicionário: Direito Penal e Direito Processual
Penal, 2ª Edição, Almedina, 2008.
263
Dicionário Moderno da Língua Portuguesa, Escolar Editora
264
SCHIMITT, Patrícia Guimarães, (im)parcialidade do juiz, 2009, p. 2

43
demonstrado por elas durante todo o processo de conhecimento. Desta forma:

“o juiz, de conformidade com seus critérios pessoais de entendimento, calcado no


raciocínio e na lógica, tendo como espeque a legislação vigente, com apoio nos elementos
e subsídios existente nos próprios autos, tendo que, na sentença, explanar o porquê de sua
motivação, decide, com racional liberdade, a demanda proposta”265.

Neste sentido pode-se fazer uma diferenciação entre os atos de julgar e decidir. Julgar é opinar;
expressa-se uma opinião a respeito de alguma coisa. Há um encontro entre o lado subjetivo e o
lado objetivo do julgamento; lado objectivo: alguém considera uma proposição verdadeira, boa,
justa, legal; lado subjectivo: adere a ela. Assim, durante o processo de conhecimento o juiz vai
convencendo a si mesmo, intimamente, a respeito do que está sendo demonstrado a ele nos
autos266.

O juiz é, por conseguinte, parcial no que se refere ao fato de ter que convencer-se de algo, ou seja,
ele deverá aderir ao que as provas contidas no processo demonstrarem, podendo decidir procedente
o pedido de uma das partes ou parcialmente procedente para ambas. Em contrapartida, ele tem o
dever de ser imparcial no momento da tomada da decisão, devendo-se abstrair de qualquer
elemento que durante o processo teve contacto e eventualmente possa prejudicar ou favorecer um
e outro por critérios subjectivos por ele adoptados267.

A função de julgar rege-se por determinados princípios, sendo um deles, o da imparcialidade,


pressupondo este que os juízes devem obediência à lei, devendo tratar as partes de igual modo 268.

Deste modo, resulta que o princípio da imparcialidade fundamenta-se sob três pilares que devem
ser afixados no juiz:

1º. olhar as partes processuais como sendo iguais (sem discriminação de que índole for);

2º. abstrair-se de convicções pessoais, culturais, morais e religiosas; e

3º. a sua actuação (do juiz) deve ser neutra com vista a não favorecer um em detrimento do outro
sem causa justificativa (provas).

265
ARONNE, Ricardo, O princípio do livre convencimento do juiz, 1996, p. 16
266
SCHIMITT, Patrícia Guimarães, op cit.
267
Ibidem.
268
TIMBANE, Tomás, Lições de Processo Civil I, 2010, p. 191

44
CAPÍTULO II – METODOLOGIA
2.1.Tipo de pesquisa

Relativamente a metodologia de pesquisa que serve de base para este trabalho, foram levados em
consideração cinco (5) critérios de qualificação metodológica fornecidos pela doutrina de
investigação cientifica nas mais variadas autorias, que são: quanto a finalidade, quanto aos
objectivos, quanto a abordagem, quanto ao método e quanto ao procedimento269.

Quanto a finalidade, esta pesquisa classifica-se como aplicada, porque o investigador procura
solucionar um problema específico conhecido e demostrado ou ilustrado no trabalho 270.

Quanto aos objectivos, a presente pesquisa é qualificada como explicativa, mas com algumas
nuances da descritiva. Isto porque o autor mais do que relatar as características do fenómeno-
problema que se apresenta neste estudo, objectiva encontrar os fundamentos que dão ensejo a
àquele fenómeno271, isto é, busca a razão, o motivo, a causa e o efeito da ocorrência daquele
fenómeno problema.

Quanto a abordagem, a pesquisa é de índole qualitativa, muito em função do tipo de informações


que se pretende colher, não tendo como pretensão elementos do tipo estatísticos272. Ademais, é a
subjectividade dos agentes intervenientes nesta pesquisa e a atenção que se terá aos aspectos não
observáveis e insusceptíveis de qualificação, que predomina neste estudo273.

A metodologia qualitativa é comummente definida como o conjunto de procedimentos


metodológicos aplicados quando se pretende a descrição dos fenómenos e a sua explicação,
ou o fornecimento de elementos para a sua compreensão. É também vista como o processo
de inquirição para a compreensão de um problema humano e social baseado na construção
de uma imagem holística e complexa, relatando perspectivas detalhadas de informantes e
conduzido num ambiente natural274.

269
TRIVINOS, Augusto Nibaldo Silva, Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em
educação, 14ª reimpressão, Editora Atlas S.A., São Paulo, 2006.
270
TRIVINOS, Augusto Nibaldo Silva, Op. Cit.
271
MARCONI, Marina de Andrade & LAKATOS, Eva Maria, Metodologia do Trabalho Científico, 7ª Edição e
ampliada, Editora Atlas S.A., São Paulo, 2010.
272
MARCONI, Marina de Andrade & LAKATOS, Eva Maria, Fundamentos de Metodologia Científica, 7ª Edição,
Editora Atlas S.A., São Paulo, 2010.
273
TRIVINOS, Augusto Nibaldo Silva, Op. Cit.
274
POCINHO, Margarida, Metodologia de Investigação e Comunicação do Conhecimento, Edições Técnica,
Lisboa, 2012, p. 58.

45
Quanto ao método, usou-se o método indutivo, devido ao facto de que o autor, para obter
conclusões com premissas gerais, partiu de observações específicas, ou seja, observou casos
específicos e isolados para tirar conclusões gerais e abrangentes 275.

E quanto ao procedimento, a pesquisa é basicamente bibliográfica, sem prejuízo de interpretações


e observações indirectas dos factos, fenómenos e aspectos ligados ao objecto do estudo.

2.2.Universo
O universo desta pesquisa compreende os magistrados judiciais da jurisdição criminal, os
magistrados do Ministério Público ligados a área criminal, os advogados e académicos (juristas)
da cidade de Quelimane. Tal universo é justificado pela natureza jurisdicional do tema, podendo
ser apenas esclarecidas as questões sobre o mesmo, por entidades que participam activamente na
administração da justiça, excepcionalmente também pelas entidades que de forma incansável
lecionam e realizam pesquisas científicas no âmbito do Direito.

2.2.1. Amostra/participantes
A nossa amostra obedece o critério da amostragem probabilística (representativa), do tipo aleatório
simples, com o procedimento de determinação, de tabela dos números aleatórios. Probabilística
porque baseia-se na teoria das probabilidades, projectada de forma que as unidades de observação
da amostra fosse uma representação efectiva da população; o tipo é aleatório simples devido a
seleção da amostra ao acaso (aleatoriamente), mas não por casualidade, isto é, oferecemos a mesma
probabilidade a todos os elementos, o que condicionou uma alta representatividade; e por último,
o procedimento usado foi o da tabela dos números aleatórios, por causa da simplicidade do mesmo
e a adequação que encontra no nosso tipo de amostragem 276.

Ora, a amostra desta pesquisa é integrada por dois (2) magistrados judiciais da área criminal, dois
(2) magistrados do Ministério Público ligados a área criminal, dois (2) advogados e dois (2)
académicos.

275
MARCONI, Marina de Andrade & LAKATOS, Eva Maria, Op. Cit.
276
MARCONI, Marina de Andrade & LAKATOS, Eva Maria, Fundamentos de Metodologia Científica, 7ª Edição,
Editora Atlas S.A., São Paulo, 2010.

46
2.3. Técnicas e instrumentos de recolha de dados
2.3.1. Técnicas de recolha de dados
São consideradas um conjunto de preceitos ou processos de que se serve uma ciência; são,
também, a habilidade para usar esses preceitos ou normas, na obtenção de seus propósitos.
Correspondem, portanto, à parte prática de colecta de dados. Apresentam duas grandes
divisões: documentação indirecta, abrangendo a pesquisa documental e a bibliográfica e
documentação directa277.

A documentação direta subdivide-se em observação directa intensiva e observação directa


extensiva278. Este estudo guia-se pela documentação directa na vertente da observação directa
intensiva, com as técnicas de observação e entrevista.

É usada a técnica de observação, porque foram utilizados os sentidos humanos na obtenção ou


captação de determinados aspectos da realidade. Não apensas a audição e visão foram necessárias,
mas também uma capacidade analítica dos factos e fenómenos que se desejou estudar.

Entrevista, porque é através da conversação verbal efectuada face a face entre o entrevistador/autor
e o entrevistado/participante, que aquele obteve a informação necessária para chegar às conclusões
em relação ao tema em estudo. Esta entrevista foi do tipo semi-estruturada279, na modalidade de,
não dirigida. Semi-estruturada porque o entrevistador/autor teve a liberdade para desenvolver cada
situação em qualquer direcção que considerou adequada, de acordo com o rumo da entrevista; não
dirigida, porque da mesma liberdade do entrevistador, deu-se ao entrevistado/participante, para
que pudesse manifestar livremente suas opiniões e sentimentos em relação ás perguntas que lhe
foram colocadas280.

Neste estudo, a entrevista mostrou-se necessária devido ao facto de ser o tema em causa, muito
sensível. Sensível no sentido em que para se obter conclusões acertadas, era preciso não só a
revisão da literatura e da legislação, mas também colher sensibilidades dos profissionais do Direito
que dia após dia lidam com a matéria jurídica objecto desta pesquisa. Ademais, é também pelo
facto de se reconhecer a existência de uma linha ténue entre o conhecimento teórico e o prático,
ainda que inseparáveis.

277
POCINHO, Margarida, Op. Cit. P. 111.
278
POCINHO, Margarida, Op. Cit.
279
POCINHO, Margarida, Op. Cit.
280
TRIVINOS, Augusto Nibaldo Silva, Op. Cit.

47
2.3.2. Instrumentos de recolha de dados
Chama-se de instrumentos de pesquisa ou de recolha de dados o que é utilizado para a colecta de
dados281. Relativamente aos instrumentos de recolha de dados que foram usados nesta pesquisa
aliados a técnica da entrevista são dois: guião de entrevistas e gravador. Quanto a técnica de
observação, a literatura de metodologia científica defende não ser necessário elencá-los pelo facto
de estarem ligados ou incorporados no individuo, por exemplo, olhos, intelecto, etc.

281
RUDIO, Franz Victor, Introdução ao Projecto de Pesquisa Científica, 43ª edição, Editora Vozes, Rio de Janeiro,
2015, p. 114.

48
CAPÍTULO III – APRESENTAÇÃO, INTERPRETAÇÃO E DISCUSSÃO DE DADOS

3.1. Apresentação de dados


3.1.1. Dados colhidos das entrevistas
Seguem-se as perguntas feitas e respostas dadas pelos entrevistados nas entrevistas realizadas no
âmbito das técnicas de recolha de dados. Da categorização e codificação resultou que a designação
dos entrevistados será simbolizada pelas letras A282, P283, D284 e J285.

1ª. Olhando para os modelos estruturais do processo penal existentes (inquisitório,


acusatório e misto/hibrido), é sabido que o modelo adoptado em Moçambique, é o
basicamente acusatório e integrado por um principio de inquisição/investigação. Atentos ao
modelo estrutural adoptado no nosso ordenamento jurídico, considera que, a organização e
as normas do processo penal moçambicano são funcionais?

R.: A1 – Eu acredito que são funcionais, porque qualquer pessoa, qualquer servidor do Direito que
vá recorrer-se daquilo que são as directrizes do Direito, os princípios a serem seguidos,
necessariamente teremos um processualismo penal a correr conforme o que se é esperado.

R.: A2 – Até certo ponto são funcionais sim. Digo isto porque o cenário actual faz com que algumas
normas do actual processo penal não sejam funcionais. Alias, como sabe, existem normas no nosso
CPP que já estão em desuso faz tempo, devido ao facto de que na altura em que o mesmo foi
elaborado, Moçambique não era ainda um Estado independente e como tal, a realidade era outra e
depois da independência e com as constituições vindouras causaram esse desuso dalgumas normas
processuais. Actualmente, o que deve acontecer para que o processo penal funcione como deve
ser, é necessário que haja uma pontual revisão do CPP (que é o que já está a ocorrer), para que o
actual Código Penal seja efectivamente materializado, aplicado como ele é, e não fazendo arranjos
como se tem feito nos tribunais actualmente.

R.: P1 – Funcionais são, agora na minha maneira de analisar as coisas, algumas normas, como
sabe, o nosso Código de Processo Penal foi elaborado com uma vertente mais inquisitória, tanto
que só através do DL. 35.007 é que houve alguma melhoria, melhoria esta que também partiu da

282
Esta letra simboliza a categoria dos advogados.
283
Esta letra simboliza a categoria dos procuradores da república (magistrados do Ministério Público).
284
Esta letra simboliza a categoria dos docentes (juristas que lecionam o Direito).
285
Esta letra simboliza a categoria dos juízes (magistrados judiciais).

49
própria Constituição através do art. 236º, que comete algumas competências ao Ministério Público
durante a instrução do processo, a própria direcção da instrução do processo. Então, funcionais
são, mas ainda continuam com algumas normas do sistema inquisitório. Uma delas é exactamente
a situação de ser o próprio juiz da causa que vai fazer a IC, este no meu entender é um modelo
inquisitório que foi integrado no nosso processo penal, pese embora seja misto, mas ainda
continuamos tendo muita vertente inquisitória razão pela qual algumas normas não são funcionais.

R.: P2 – Não funcionam de acordo com o modelo estrutural adoptado no nosso ordenamento
jurídico, no meu ponto de vista. Porque a intervenção do juiz da causa no processo acaba diluindo
os princípios do modelo basicamente acusatório e integrado por um princípio de investigação, isto
de acordo com as directrizes estabelecidas pelo DL. n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945, que é o
diploma que introduz as bases do modelo acusatório. Algumas normas do modelo inquisitório, que
já deviam ser revogadas, ainda prevalecem no nosso CPP e estão em vigor. Há um momento em
que a intervenção do poder judicial se aplica em função do CPP, então acaba violando os princípios
estabelecidos naquele Decreto-Lei.

R.: D1 – Funcionais são, mas muitas vezes os aplicadores do Direito fazem com que não sejam
funcionais. O que acontece é o seguinte, o legislador criou as normas processuais para servirem de
guia na materialização do direito substantivo, mas não raras vezes os órgãos da administração da
justiça atrofiam, pisam e usam a lei a seu favor e não em beneficio do cidadão. É só reparar para a
questão dos prazos em processo penal, a lei prevê certos prazos, por exemplo para a prisão
preventiva, e quando nós vamos aos estabelecimentos penitenciários constatamos uma situação
diferente, pessoas presas preventivamente e que os prazos já foram absurdamente esgotados. Logo,
aquela norma que estabelece os prazos da prisão preventiva é funcional? Eu creio que não. O
sujeito como tal, os administradores da justiça se tivessem o cuidado de seguir a lei à risca, tais
absurdos não existiriam, por isso disse no inicio que são funcionais, mas alguns fazem com que
não sejam.

R.: D2 – Algo está a faltar, não sei exactamente o que é, mas não ariscaria em dizer que são ou não
são funcionais. É que, o cidadão hoje em dia pensa duas senão três vezes antes de ir apresentar seu
problema às instituições da justiça, principalmente nos tribunais, porque tem medo de o processo
demorar, ser-lhe cobrado algum valor, etc. Então, se o cidadão tem receio, medo de ir apresentar
suas preocupações nos tribunais, certamente que alguma coisa não está boa. A tramitação

50
processual penal rege-se pelas normas do CPP (das quais me pergunta se são ou não funcionais),
e se os processos demoram ou são onerosos a quem deve atribuir-se a culpa? Aos que interpretam
e aplicam a lei ou à própria lei? São questões que há muito me faço e para ser sincero não encontro
explicações. Mas de uma coisa estou certo, quem faz as leis é o Homem e essas mesmas leis são
passiveis de alteração ou retificação pelo próprio Homem.

R.: J1 – São funcionais, porque estão a surtir os efeitos desejados. Se os processos entram e saem
dos tribunais é porque alguma coisa foi feita nem, e essa coisa para ser feita observaram-se as
normas processuais.

R.: J2 – Olha, funcionalidade existe nelas. Mas como sabe, nosso CPP é uma herança dos
portugueses, tal é que precisa de ser actualizado por uma simples razão, a dinâmica social é outra,
a maneira de tratar os assuntos é outra. O regime constante do nosso CPP mistura quase tudo e é
predominado pelo modelo inquisitório. Por isso que entra essa ideia de que a instrução
contraditória deve ser dirigida pelo juiz da causa. É preciso frisar que o juiz da causa deve receber
o processo com toda a prova recolhida, não é dever do juiz recolher prova, mas por herança deste
sistema, acabou desenquadrando-se da realidade actual. Então, é suposto o juiz da causa encontrar
o processo pronto para julgar e não propriamente investigar, porque a instrução contraditória é um
acréscimo à investigação, ou seja, é instrução mesmo. E digo mais, atentos à celeridade processual
que se espera dos processos, deixar que o juiz da causa dirija ainda a instrução contraditória é um
tempo a mais que se perde com tal atitude, uma vez que o juiz poderia estar a tratar outros aspectos
processuais e essa fase ser atribuída outra entidade para a direcção.

2ª. Atentos a nossa realidade julga que o modelo estrutural do processo penal adoptado no
nosso ordenamento jurídico é o mais adequado? Sendo a resposta positiva, por quê? Sendo
negativa, quais alterações julga que poderiam ser levadas a cabo?

R.: A1 – Eu acredito que sim, porque aparentemente é, no meu ponto de vista o mais justo, porque
a nível constitucional nós temos o princípio da presunção da inocência. Como a lei está prevista e
acautelada, eu acredito que é extremamente justo. Muita das vezes o que vem interferir é a
interpretação que o servidor do Direito faz em torno daquela norma em específico, se por exemplo
nós temos uma situação onde a pessoa não tem a culpa formada mas é vista privada da sua
liberdade, a lei diz uma coisa mas por algum motivo em específico, por causa da eventual

51
concepção que o servidor do Direito vá ter, a pessoa possa ver-se privado da sua liberdade, mas eu
acredito que em termos de normas jurídicas positivas, acredito que é sim o mais adequado.

2ª/2. Dizia que um dos requisitos que lhe faz crer que este modelo é o mais adequado é o facto
da nossa Constituição prever a questão da presunção da inocência. Mas assim como aquele
dispositivo legal consta, também pode ser retirado atendendo aos interesses que se julgarem
convenientes e oportunos a dado momento. Entre nós (no ordenamento jurídico
moçambicano) não poderia acontecer uma situação inversa, termos um modelo basicamente
inquisitório e integrado por um princípio de acusação? Tendo em conta a nossa realidade
moçambicana286.

R.: A1 – Sinceramente eu acredito que a justiça funciona, e é verdade que paralelamente a isso nós
temos situações isoladas que de facto muita das vezes determinada situação e manipulada em
função do interesse de cada pessoa. Mas o que a lei vem nos trazer é o que deve ser, muita das
vezes o que deve ser não é o que acontece na realidade. No meu ponto de vista o modelo existente,
acredito que, não obstante, talvez possamos considerar imperfeito, mas há vários princípios que
podem eventualmente defender, neste caso específico, o arguido. Por que independentemente do
modelo a ser adoptado, existe primeiro esse preceito constitucional, que por mais que qualquer
pessoa afaste, se a pessoa tem direito a contraditório e à defesa, necessariamente vai conseguir
obter os resultados. E paralelamente a isso temos o princípio do ónus da prova, só vem reforçar o
princípio da presunção da inocência que, em condições normais, se alguém não foi considerado
culpado por sentença transitada em julgado, então presume-se que tal pessoa seja inocente até que
exista prova em contrário. Mas eu acredito que em qualquer parte do mundo as normas jurídicas,
sempre que é possível admitir-se a interpretação extensiva, cada um interpreta a seu belo prazer,
não é o que deveria acontecer, mas algumas vezes pode ser o caso de vir a acontecer. E eu acredito
que nas situações em que aconteça, tem cenários que possa ser de forma premeditada, mas acredito
que na maioria das vezes, principalmente no caso da nossa província (Zambézia), as pessoas que
eventualmente decidem por uma decisão, aparentemente (porque é uma apreciação subjectiva), é
justamente a convicção que se é criada em torno de um determinado processo. Sabemos que a
opinião pública de certa forma afecta aquilo que é (não deveria, mas de certa forma afecta) a

286
Pergunta feita exclusivamente ao entrevistado A1, que surgiu em função da resposta dada por ele em virtude da 2ª
pergunta.

52
decisão. Nos como seres humanos, como aplicadores de Direito, nem todos têm a capacidade de
separar as coisas, mas se tivermos um profissional capaz de separar e seguir aquilo que consta na
lei, sem se importar com orgulho, sem se importar se esta erado, sem se importa se vai conseguir
executar o seu trabalho no sentido de condenar uma determinada pessoa, mas sim trabalhar no
sentido de buscar a verdade material, acredito que não vamos ter um sistema deficiente.

2ª/3. Vê algum espaço para eventuais alterações ao nosso modelo ou deve continuar assim
como está?287

R.: A1 – Alterações são sempre bem-vindas, porque a ideia do Direito é ser dinâmico e acompanhar
a sociedade. Eventualmente, fazendo um estudo aprofundado pode se constatar uma e outra lacuna.
Então desde que seja para o beneficio da regulação da sociedade, eu acredito que são sempre bem-
vindas.

R.: A2 – Para um Estado civilizado e de Direito como Moçambique, sim é o mais adequado. Pese
embora situações isoladas de ordem social façam-me pensar num modelo inquisitório, por causa
deste ser muito prático e severo. Tais situações isoladas são aqueles casos de crimes hediondos,
crimes repugnantes, aí sim, o modelo inquisitório seria o mais adequado para punir os agentes
deste tipo de crime, mas como disse, agora é o mais adequado.

R.: P1 – Geralmente as coisas puras não são as melhores. No meu ponto de vista devia ser um
modelo misto, mas o que devia se trocar é essa grande novidade que traz o anteprojecto do CPP,
que tem algo chamado de audiência preliminar, que na verdade corresponde ao que hoje em dia é
designado por instrução contraditória. Se a IC ser dirigida pelo juiz da instrução criminal, aí sim,
já será uma alteração significativa e positiva. Porque imagine, o MP dirige a IP, forma uma
convicção e faz uma acusação, depois esta vai para o tribunal e o juiz da causa é que vai receber a
acusação e faz a pronúncia, e esse mesmo juiz é que vai fazer o julgamento. A partir do momento
em que ele faz o despacho de pronúncia vai formar uma convicção e dificilmente vai se desassociar
dessa convicção na hora de julgamento, então ele já vai no julgamento inclinado, a imparcialidade
que nós queremos já está lá inquinada. Agora se for outra pessoa a fazer a IC e o despacho de
pronúncia, provavelmente aquele juiz estará mais imparcial.

287
Pergunta feita exclusivamente ao entrevistado A1, que derivou da resposta por ele dada em função da 2ª pergunta.

53
R.: P2 – Eu não diria que seja o mais adequado. Na minha forma de ver, o modelo que melhor se
encaixaria no nosso ordenamento jurídico, atentos a esta realidade particular de que refere, seria
um modelo estrutural misto. Vigorando na primeira parte do processo (Instrução) o modelo
acusatório e, na segunda (julgamento) o modelo inquisitório. É que do jeito que a instrução
contraditória é concebida ou efectuada actualmente, consubstancia-se num regresso ao modelo
inquisitório, porque há uma intervenção de investigação judicial, onde é produzida a prova na fase
posterior à instrução preparatória.

R.: D1 – É o mais adequado, mas na prática é preciso reduzir a predominância das várias
características do modelo inquisitório. Isso obviamente deve-se a própria conjuntura em que se
vivia na altura em que foi elaborado o nosso CPP, mas já é mais do que na hora de serem retirados
esses traços.

R.: D2 – Não é o mais adequado na minha opinião, já está ultrapassado. A realidade social
moçambicana evoluiu e é hora de o modelo assim como o processo penal acompanharem essa
dinâmica social moçambicana. No meu ponto de vista deve-se passar para um modelo misto, em
que levamos as vantagens de um e outro e descartamos as desvantagens dos mesmos.

R.: J1 – Não é tao o mais adequado, porque adequa-se mais à realidade portuguesa que a nossa
moçambicana, até mesmo os portugueses já alteraram alguma coisa no seu modelo com vista a
acompanhar a conjuntura social deles. Por exemplo, geralmente a instrução dos processos tem sido
mal feita ou deficitária por causa de falta de meios humanos e materiais, mas o nosso modelo
recomenda a admissão de um certo tipo de prova, que na realidade económica do nosso país é
difícil acolher aquele tipo de prova, mas são feitos arranjos só para mantermo-nos dentro dos
limites do modelo que adaptámos.

R.: J2 – Sim, acho-o mais adequado. Porque num Estado de Direito o que se espera é que os direitos
fundamentais dos cidadãos sejam extremamente respeitados ou acautelados, sobretudo no
processo penal. Então, o melhor modelo para proteger ou respeitar tais direitos é o acusatório,
como se sabe, ele tem também suas inconveniências, daí que devemos retirar-lhes e levar as
conveniências ou vantagens do inquisitório e acrescer ao nosso modelo. Já o modelo inquisitório
como tal não pode ser, porque nele ocorre aquilo que se chama de pré-sentença, no sentido de
fizeste não fizeste e acaba no fizeste. Se o mesmo juiz investiga, faz o inquérito, e em quase todo
processo ele está lá por frente, ele já tem sentença, já tem uma convicção. Então, o nosso modelo
54
é bom, mas temos que repartir bem os papeis dos recursos humanos ao nosso alcance para melhor
execução deste modelo.

3ª. Sobre o principio da imparcialidade a que os juízes estão adstritos, haverá, no seu ponto
de vista, alguma relação entre aquele princípio e os poderes de direcção da instrução
contraditória e de julgar, do juiz da causa?

R.: A1 – Eu posso dizer que sim e não, depende da perspectiva. Mostram-se ligados porque existe
um processo que começou lá e termina no juiz da causa, aí estão interligados. Mas falando em
termos da apreciação, em termos de decisão, cada juiz é independente, então se eventualmente lá
tomou uma decisão de pronunciar ou de privar de liberdade ou de conceder a liberdade provisória,
o juiz da causa na fase final do processo pode eventualmente alterar ou revogar em função do que
possa a vir a ser encontrado. Então é por aí, sim e não. Uma coisa é no âmbito da instrução o
processo ser bem trabalhado e em função do trabalho que está no processo, o juiz eventualmente
subscrever a acusação do MP, não porque o MP decidiu aquilo, mas por causa dos elementos que
constam do processo. E outra, bem diferente é o juiz tomar decisões em função das suas convicções
pessoais. Se acontece? Acontece sim, mas não deveria. Porque pode se dar o caso de o processo
estar tendente a acusar e o réu querendo afastar aquela tendência, vai requerer a IC para ilidir a
presunção/tendência existente. É certo que alguns juízes podem encarar a IC como uma manobra
dilatória, mas se for um profissional deve observar e aplicar a lei. Como pessoa ele pode pensar o
que quiser, mas como juiz tem que saber separar.

R.: A2 – Sim há uma relação, ao meu ver é uma relação de tendência. Porque quando o juiz da
causa vai dirigir a IC, poderá criar tendências ou tirar ilações sobre a própria culpabilidade ou não
do arguido e servir-se delas na fase do julgamento. Ou seja, há casos em que ele pode receber a
acusação através do despacho de pronúncia e não querer contradizer-se na fase do julgamento e da
tomada de decisão. Nada impede que ele mude de ideia, mas é uma questão de tendência, é um
risco grande.

R.: P1 – Essa aglomeração de poderes afecta bastante a imparcialidade, porque o juiz é ser humano
acima de tudo. Deve-se perceber o que é pronúncia: ele (o juiz da causa) está lá com uma acusação
e aceita-a pronunciando o arguido, dificilmente vai tomar uma decisão diferente daquela na fase
do julgamento. É que se alguém tem uma convicção, dificilmente vai “pontapear” essa convicção.
Por isso tem que se criar mecanismos para tentar garantir essa imparcialidade.
55
R.: P2 – No meu ponto de vista há sim uma relação. Porque o poder de direcção da instrução
contraditória leva-nos a uma situação em que o juiz da causa torna-se também investigador na fase
preliminar do processo, porque ele questiona, ordena diligências de prova, etc., tomando de alguma
forma o lugar do MP. Eu não sou a favor de que o JC seja quem dirija a IC pelo facto de colocar
em causa de forma flagrante o princípio da imparcialidade. O que está a faltar no nosso modelo é
a estruturação das competências, ou seja, uma reformulação das competências do JC e do JIC.

R.: D1 – Há uma relação sim senhor, não se verifica a imparcialidade desejada. Repare, se você
tem o contacto com o processo, com os implicados no processo, etc., você certamente vai criar
inclinações tendentes ou sobre a culpa ou sobre a inocência do arguido. E, sendo a mesma pessoa
que vai decidir sobre aquele caso, é claro que vai se basear naquela inclinação que teve no primeiro
contacto que teve com o processo e com os implicados nem. Pode até não ser linear, mas digo-lhe
com certeza, que são raras as vezes que se pode mudar de ideia pela eventual produção de provas
em julgamento. Porque não ocorre nada de diferente ou de novo que não se saiba ou não se possa
imaginar, salvo um e outro caso.

R.: D2 – Sim há uma relação de risco. Digo de risco porque, pela mesma razão que o órgão
investigador (MP) não pode ser quem vai julgar, também quem vai julgar não deve intervir de que
modo for, na instrução do processo. Isto porque intervindo nesta fase que é tida como crucial em
processo penal, refiro-me à fase da instrução no seu todo, é impossível não tirar conclusões em
volta do processo. E se tira conclusões nesta fase preliminar, este órgão é por natureza processual,
inapto para julgar e decidir sobre aquele processo. Este é meu modo de analisar a situação,
eventualmente poderá existir quem diga diferente, mas é isso que eu penso, há um risco sério.

R.: J1 – Por regra, todos juízes devem ser imparciais, mas na prática, por causa da natureza humana
do juiz, pode não ser imparcial, se calhar não intencionalmente, mas acabar sendo. Isso acontece
com qualquer ser humano nas mais variadas situações da vida, mas o importante é saber tomar
decisões como qualquer pessoa de normal diligência.

R.: J2 – Existe sim uma relação entre eles. Todavia, para que essa relação não seja prejudicial, é
necessário que o juiz saiba separar o joio do trigo.

4ª. O juiz, antes de sê-lo, é um ser humano, e por via disso susceptível de formar convicções
de vária ordem por estímulos exteriores até mesmo interiores. Acha impossível que o juiz

56
crie convicções acerca da culpabilidade ou inocência do arguido, aquando da direcção da
instrução contraditória e leve-as para a fase do julgamento?

R.: A1 – Não acho impossível. Comigo também acontece isso, ir para as audiências como uma
ideia/convicção formada, mas o que temos que ter em mente é que, independentemente da nossa
convicção como pessoa, nós estamos lá para usar e servir normas específicas. Se o juiz tem uma
convicção de que fulano é culpado, havendo uma defesa bem-feita e provada, aquele fulano não
pode ser condenado. Se for condenado pode recorrer. Mas independentemente da convicção que
exista, durante o julgamento tudo é possível podendo contornar-se aquela convicção, seja ela certa
ou erada. Porque as vezes, na maior parte delas, a convicção que o juiz tem é certa.

4ª/2. Apesar de reconhecer-se que o juiz deve saber discernir a convicção da


objectividade/profissionalismo que deve ao Direito, descarta-se a possibilidade de criação de
mecanismos legais tendentes a garantir essa imparcialidade?288

R.: A1 – Acredito que mecanismos legais para garantir a imparcialidade já existem, através dos
princípios deontológicos, constitucionais e das normas processuais, mas na minha opinião, tudo
que for a ajudar o sistema a melhorar, é bem-vindo. Tudo que for ajudar a garantir mais ainda e
efectivamente os direitos do arguido, é melhor. Até porque seria caricato termos um sistema
estagnado durante anos enquanto o Direito foi projectado para ser dinâmico.

R.: A2 – Não é impossível, por isso mesmo eu disse haver uma relação tendencial entre esses
poderes que faz menção e o princípio da imparcialidade. Isso é da natureza do homem, sendo meio
religioso diria que, é uma das fragilidades que Deus nos colocou expostos, não conseguir separar
no seu todo as coisas que de algum modo foram criadas e robustecidas ao longo do tempo por
nossas mentes. Vezes há em que isso acontece, o juiz criar certas convicções, tendências, mas na
fase do julgamento e de decisão abstrair-se delas, se calhar pelo curso surpreendente do processo,
ou se calhar, porque ele próprio criou outra convicção diferente da primeira. São coisas que podem
acontecer, mas de pouca probabilidade.

R.: P1 – Nada é impossível neste mundo, mais ainda neste caso em apreço. As fases do processo
penal estão interligadas, complementam-se, daí que se todas elas formam o processo penal em

288
Pergunta feita exclusivamente ao entrevistado A1, que surgiu em função da resposta por ele dada em virtude da 4ª
pergunta.

57
sentido restrito, obviamente que a conexão é forte e necessária. A fase da instrução processual é,
na verdade, onde tudo ocorre. Já na fase de julgamento apenas vão ser mostrados os elementos
colhidos naquela primeira fase. O que estou a querer dizer é que não deve ser o mesmo juiz a
intervir nestas duas fases, exactamente por causa daquela grande possibilidade da impossibilidade
de o juiz da causa desconstruir a sua convicção na fase do julgamento. É por ai…

R.: P2 – Obviamente que na IC o juiz da causa formará um juízo, uma ideia, uma convicção, usando
os termos da pergunta que me fez, porque sendo ele uma pessoa, isto é inevitável. Ainda que se
diga que existem normas que o obrigam a não criar tais juízos e deixar-se influenciar por eles, a
natureza humana dele vai contra essas normas. Tal é que, formado aquele juízo prévio pelo juiz da
causa, pode se dar o caso de tudo quanto for produzido em sede do julgamento seja afastado pelo
juiz, por forca daquele juízo formado que, involuntariamente vai conduzir o juiz a tomar uma
determinada decisão. Isto é humano, todos nós temos tendências, preferências e tudo mais…

R.: D1 – Esta pergunta de algum modo já respondi na questão anterior, mas como quer a resposta
de forma isolada, esta bem. Impossível não é, assim como pode ser possível ele mudar de posição.
Há casos isolados em que isso é verificável, mas de modo geral, acredito que o juiz leva sim as
convicções dele para o julgamento, e as vezes independentemente das provas apresentadas ele
mostra-se indiferente. Eu penso que essa questão tem mais haver com chances do que com a
possibilidade, o que para mim tem mais chances de o juiz não mudar de posição com vista a
contradizer-se de algum modo, do que de muda-la em sede da sentença.

R.: D2 – Não, não é impossível. É que isto é uma coisa que está acima da capacidade dele de
interferir, ou seja, geralmente ocorre espontaneamente sem premeditação do juiz, e isso deve-se,
como bem disseste na afirmação desta pergunta, à própria humanidade do juiz. Ele é Homem e
não um Deus, que eventualmente tem controlo de tudo na sua mente. Isto o juiz não tem como não
levar a julgamento e até certo ponto deixar-se influenciar por ela na tomada da decisão, da
sentença. São questões que parecem mesquinhas, mas que o legislador se calhar não se apercebeu,
ou apercebendo-se, ignorou esse aspecto. Devia salvaguardar essa situação de modo a minimizar
ou mitigar este risco.

R.: J1 – não é impossível, mas também nada garante que sejam definitivas essas convicções, certo?
O juiz pode muito bem mudar, deixar suas convicções e na fase do julgamento devido ao
aparecimento de novos elementos de prova que contrariem a sua convicção previamente criada.
58
Então, no julgamento tudo pode acontecer, é uma questão de o juiz ter a capacidade de analisar de
forma objectiva o processo atento às provas produzidas e não levar coisas que eventualmente
tomou conhecimento fora do processo e em ambientes pouco credíveis para apoiar-se delas na sua
decisão. A possibilidade tende para os dois lados, de mudar e de não mudar, dependerá da
objectividade, profissionalismo e metodologia de cada juiz.

R.: J2 – Não acho impossível. Mas um juiz que segue a lei não se deve deixar influenciar por
convicções de que ordem sejam. Além do mais, ele deve ter sempre presente a prova produzida
em julgamento para tomar a sua decisão, é nisto que assenta a imparcialidade. Ora, o juiz como
pessoa, pode estar tentado a deixar-se influenciar por tais convicções, mas como analista e
profissional, deve ater-se aos elementos objectivos do processo.

5ª. No processo penal moçambicano, além de outras figuras ou sujeitos processuais, intervêm
nele dois juízes: o juiz da instrução criminal e o juiz da causa. A actuação do primeiro
circunscreve-se apenas na fase da instrução e a do segundo, a partir da instrução
contraditória até a fase da execução das penas. Acha lógico que, existindo a figura do juiz da
instrução criminal, a instrução contraditória continue sendo dirigida pelo juiz da causa, visto
que tanto a instrução preparatória quanto a contraditória fazem parte da Instrução como
uma fase processual?

R.: A1 – Na minha opinião não vejo nenhum problema, logico eu acho. Mas eventualmente eu
possa não conseguir alcançar algo mais além disso, porque não sentei e não analisei. Então quanto
a isso eu tenho a mente fechada e não consigo pensar além.

R.: A2 – No momento em que estamos, sim acho lógico. Porque seriam custos a mais ter que ser
outro juiz a dirigir esta fase e no momento o país não tem disponibilidade financeira para o efeito.
Então melhor continuar assim, e quem sabe num futuro o cenário mude.

R.: P1 – Para mim deveria se criar uma terceira figura para dirigir esta fase processual, um juiz da
instrução contraditória. Mas, para não ter que criar tantos juízes e implicar custos adicionais ao
Estado, além do facto de que a instrução contraditória é instrução, então deve ser o juiz da instrução
criminal a dirigir a IC, continuando com suas funções na fase da IP.

59
R.: P2 – No meu ponto de vista a IC devia ser dirigida por um juiz de instrução. Sendo que ao juiz
da causa caberia apenas receber o processo simplesmente para verificar a culpa do agente ou não.
Aí ele estaria em condições de olhar as coisas com a necessária imparcialidade.

R.: D1 – Claro que não é lógico. Não e lógico e é incoerente. A instrução preparatória assim como
a instrução contraditória são ambas instruções. Ora, se no nosso ordenamento jurídico existe uma
figura denominada juiz da instrução criminal, por quê não deixar essa figura intervir onde a sua
designação impõe. Então na minha opinião isso não faz sentido algum.

R.: D2 – Não acho lógico nem pouco. Até porque na minha opinião, deve-se criar um juiz da
instrução contraditória, que seja diferente desses dois já existentes. Aí sim, haverá mais garantias
de imparcialidade porque cada um terá uma actuação restrita no processo, apenas em uma fase do
processo. É sim uma mudança drástica, mas nós precisamos desse tipo de mudanças se quisermos
progredir e não ficar estagnados no tempo a espera de que outros possam nos alavancar, como tem
sido costume a nível das nossas legislações.

R.: J1 – Sim, é lógico. Talvez eu pense assim por estar dentro do sistema, mas acredito que assim
como esta, esta bem. O importante é a maquina funcionar e trazer resultados.

R.: J2 – Como já disse anteriormente, esta característica processual de o juiz da causa ter que
dirigira instrução contraditória é devido ao modelo inquisitório que inspirou o nosso CPP. Então,
como já nos desligamos daquele modelo, é necessário que se abandone também a esta
característica. Quero dizer que não acho lógico que assim seja no nosso modelo actual. No meu
ponto de vista, devia ser uma outra figura a dirigir essa fase, por exemplo o juiz da instrução
criminal, é uma entidade que no meu ponto de vista seria mais adequada para esta tarefa. Assim
sendo acautelava-se aquela questão de colocar em causa essa imparcialidade de que tanto se fala e
pouco se tem sabido, esta é minha opinião.

3.1.2. Dados extraídos dos diplomas legais


Regime jurídico das atribuições e aspectos processuais de realce para a discussão no presente
estudo, em sede do processo penal

Artigo 327º do Código De Processo Penal e artigo 35º do Decreto-Lei n.º 35.007, de 13 de
Outubro de 1945 (casos de instrução contraditória)

60
“Nos processos de policia correcional por crimes a que correspondam penas referidas no artigo
64º do Código de Processo Penal que, em razão da complexidade da causa, exijam investigação
mais completa ou mais amplo esclarecimento poderá o Ministério Público requerer, no acto da
acusação, a instrução contraditória, indicando logo as circunstancias que importa esclarecer e as
diligências que considera convenientes”.

“Em todas as formas de processo, com excepção dos processos sumários e de transgressão, a
requerimento do arguido”.

“Em todas as formas de processo, por decisão do juiz, para realização de diligências
complementares de prova que julgue convenientes para receber ou rejeitar a acusação”.

Artigo 330º, corpo, ab initio, do Código de Processo Penal e artigo 37º do Decreto-Lei n.º
35.007, de 13 de Outubro de 1945 (direcção da instrução contraditória)

“A instrução contraditória é sempre presidida pelo juiz”.

Artigo 329º do Código de Processo Penal (casos de rejeição da instrução contraditória)

“A instrução contraditória requerida pelo Ministério Público só pode ser denegada quando seja
inadmissível, quando o juiz seja incompetente, ou quando este verifique não ter havido crime, estar
extinta a acção penal ou haver elementos de facto que comprovem a irresponsabilidade do
arguido”.

Artigo 40º do Decreto-Lei n.º 35.007, de 13 de outubro de 1945 (rejeição das diligências que
não interessam a instrução do processo)

“…o juiz deverá indeferir, por despacho fundamentado, as diligências requeridas que não
interessem à instrução do processo, ou sirvam apenas para protelar o seu andamento, e ordenará
aquelas que considerar úteis ou se tenham mostrado indispensáveis”.

Artigo 365º do Código de Processo Penal (despacho de pronúncia e de não pronúncia)

“Deduzida querela/acusação definitiva pelo Ministério Público e pelo assistente, havendo-o, irá o
processo imediatamente concluso ao juiz para, no prazo de 8 dias, lançar o seu despacho de
pronúncia ou de não pronúncia”.

61
Artigo 371º, corpo, do Código de Processo Penal (recursos dos despachos de pronúncia e de
não pronúncia)

“Do despacho de pronúncia podem recorrer o Ministério Público, a parte acusadora e os indiciados,
depois de presos ou de haverem prestado caução, e do despacho de não pronúncia podem recorrer,
o Ministério Público e a parte acusadora”.

Artigo 409º do Código de Processo Penal (presidência da audiência de discussão e


julgamento)

“A audiência será presidida pelo juiz da comarca ou juízo onde o processo for julgado, o qual
dirigirá os trabalhos e manterá a ordem e disciplina necessárias ao seu funcionamento”.

Artigo 14º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto – Lei da Organização Judiciária (direcção
das audiências)

“Os presidentes dos tribunais e das secções dirigem as sessões e audiências de discussão e
julgamento”.

Artigo 446º, corpo, do Código de Processo Penal (elaboração de quesitos e da sentença)

“O presidente (juiz) formulará quesitos sobre os factos e suas circunstancias alegados pela
acusação e defesa ou que resultarem da discussão da causa, sendo lidos seguidamente e podendo
os advogados apresentar quaisquer reclamações ou requerer a inserção de novos quesitos.
Resolvido este incidente, o tribunal colectivo responderá especificadamente a cada um dos
quesitos, assinando todos os vogais, e em seguida o presidente lavrará a sentença de harmonia com
os factos provados e direito aplicável”.

N.º 2 do artigo 17º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto – Lei da Organização Judiciária
(participação dos juízes eleitos)

“A participação dos juízes eleitos é restrita á discussão e decisão em matéria de facto”.

N.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 2/93, de 24 de Junho (competência para a prática de funções
jurisdicionais na instrução preparatória)

62
“As funções jurisdicionais que devam ter lugar no decurso da instrução preparatória dos processos-
crime passarão a ser exercidas por magistrados judiciais, designados por juízes da instrução
criminal”.

Artigo 2º da Lei n.º 2/93, de 24 de Junho (criação das secções de competência especializada
dos juízes da instrução criminal)

“Nos tribunais judiciais de província e de distrito em que o movimento de processos-crime o


justificar, serão criadas secções de competência especializada em que funcionarão os juízes da
instrução criminal”.

Artigo 4º da Lei n.º 2/93, de 24 de Junho (provimento dos lugares de juízes da instrução
criminal)

“O provimento dos lugares de juiz da instrução criminal será feito entre magistrados judiciais de
qualquer categoria ou classe”.

Regime jurídico do princípio/garantia da imparcialidade a nível interno e internacional


N.º 2 do artigo 217º da Constituição da República de Moçambique (garantia da
imparcialidade)
“No exercício das suas funções, os juízes têm igualmente a garantia da imparcialidade (…)”.
N.º 1 do artigo 10º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto – Lei da Organização Judiciária
(garantia da independência e da imparcialidade)

“No exercício das suas funções os juízes são independentes e imparciais e apenas devem
obediência à Constituição e à Lei.”.

Alínea a) do n.º 2 do artigo 39º da Lei n.º 7/2009, de 11 de Março – Estatuto dos
Magistrados Judiciais (sobre o dever de agir com imparcialidade)

“Os magistrados judiciais devem desempenhar a sua função com (…), imparcialidade, (…)”.

Artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (direito a um tribunal


independente e imparcial)

63
“Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de
um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de
qualquer acusação criminal contra ele”.

Alínea d) do n.º 1 do artigo 7º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos
(direito a um tribunal imparcial)

“Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada por um tribunal imparcial”.

3.2. Interpretação e discussão de dados

3.2.1. Da eficácia e adequação do modelo estrutural do processo penal moçambicano


No âmbito da apresentação dos modelos e identificação do modelo estrutural do processo penal
moçambicano feita neste trabalho, resultou que o modelo adoptado entre nós é o basicamente
acusatório e integrado por um princípio de investigação. Nestes termos, usando a entrevista como
uma das técnicas de recolha de dados, procurou-se saber dos integrantes da nossa amostra, se as
normas que regem o processo penal moçambicano funcionam ou não de acordo com o modelo
adoptado entre nós, e mais do que isso, se esse modelo por nós adoptado adequa-se à realidade
moçambicana, visto que a realidade social não é estática e o Direito tem a missão de acompanhar
essas transformações sociais com vista a fazer face dos conflitos emergentes das relações sociais
de forma pronta.
No primeiro quesito relacionado com a funcionalidade das normas processuais penais de acordo
com o modelo adoptado, seis (6) dos nos entrevistados (A1, A2, P1, D1, J1 e J2) deram uma resposta
positiva e dois (2), deram uma negativa (P2 e D2). Aqueles, não obstante, tenham apreciado
positivamente o quesito, não deixaram de tecer considerações em volta do mesmo que, de alguma
forma são de extremo relevo para o presente estudo.

Dentre as considerações por eles apresentadas, destacam-se duas, pela predominância delas,
nomeadamente: o desajustamento do CPP face a nova realidade moçambicana que se reflecte no
desuso de algumas normas processuais; e a vertente inquisitória presente no CPP devido ao tempo
da sua elaboração. Na primeira, fundamenta-se que o contexto actual e o do momento da entrada
em vigor do CPP são totalmente diferentes, isto porque quando o CPP entrou em vigor,
Moçambique não era independente e por isso era regido por normas importadas que não atendiam

64
as peculiaridades do país. Ora, com a independência vieram as Constituições que, paulatinamente
foram mudando do paradigma jurídico anterior, introduzindo novos princípios e revogando os
anteriores, causa esta que teve como consequência o desuso de algumas normas do CPP, aliada a
própria dinâmica social moçambicana. Na segunda, o argumento presente é de que o modelo que
vigorava no momento da elaboração do CPP, era quase que totalmente inquisitório, daí que, ao se
adoptar o modelo actual, basicamente acusatório e integrado por um princípio de investigação,
houve um descuido por parte do legislador ao não proceder a revisão do CPP para acautelar
situações próprias do modelo adoptado. Em função disso, algumas normas com a cobertura do
modelo inquisitório puro ainda estão presentes no CPP e em vigor, facto este que coloca em causa
a funcionalidade ou eficácia do modelo actual.

Relativamente aos fundamentos que acompanham as respostas negativas do quesito acima, além
dos já apresentados no âmbito dos, poréns das respostas positivas, destaca-se a intervenção do juiz
da causa no processo penal. Intervenção esta, que na óptica deles, é demasiada e acaba diluindo a
função ou os poderes do MP, facto que contradiz de forma flagrante os princípios que norteiam o
modelo acusatório, porque de algum modo o juiz da causa tem uma actuação policial ou de
investigação no âmbito da recolha de provas, e tal função, é cometida a outras entidades no modelo
acusatório.

Já no segundo quesito, ligado a adequação do modelo adoptado com a realidade do Estado


moçambicano, quatro (4) dos entrevistados (A1, A2, D1 e J2) disseram que é sim, o mais adequado,
e outros quatro (4), deram uma resposta contrária (P1, P2, D2 e J1). A primeira corrente de respostas
tem como fundamentos base: o Estado de Direito que Moçambique é, e a justiça que o modelo
oferece.

Estabelece o art. 3º da CRM que “a República de Moçambique é um Estado de direito, baseado


no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos
direitos e liberdades fundamentais do Homem”. Este dispositivo constitucional ao instituir o
Estado de direito, impõe de forma clara que o Estado moçambicano prima pelo respeito e a
salvaguarda dos direitos e liberdades dos cidadãos, cuja materialização desse respeito verifica-se,
não só, mas também no processo penal de forma como o arguido é tratado. No entanto, o modelo
estrutural de processo penal que mais oferece garantias, direitos e liberdades aos arguidos é, sem
dúvidas, o modelo acusatório, daí a razão da adequação dele ao Estado moçambicano. Outro

65
fundamento é o da justiça enquanto fim último do Direito. No modelo acusatório, a acusação e a
defesa gozam de posição igual no que tange a oportunidade de usar os meios probatórios, ou seja,
há uma igualdade de armas. Se o acusador (MP) exerce o seu papel de acusar, a defesa (arguido)
também tem direito de exercer o seu papel contradizendo, através do princípio do contraditório,
tudo quanto julgue necessário para o seu benefício. A luz dessa paridade entre aqueles sujeitos
processuais, encontra-se o juiz que de forma passiva e imparcial procura aplicar a lei aos factos.
Deste modo, através das características do modelo acusatório, a justiça alcançada nos processos
será justa.

Relativamente à segunda corrente de respostas (as negativas), a fundamentação gira em torno da


falta de recursos materiais e humanos, e pela necessidade de acompanhar a evolução legislativa de
Estados com sistemas jurídicos robustos.

O modelo acusatório por integrar o princípio da ampla defesa, permite e, em certos casos impõe,
que certos factos sejam comprovados por um determinado meio de provas, e que por falta de
recursos materiais e humanos para a efectivação daquele meio probatório, a recolha e produção de
provas tem sido defeituosa e trazendo como consequência a instrução defeituosa e injustiças nas
decisões tomadas com base naquela instrução, e também por falta daqueles recursos, não tem sido
possível esclarecer de forma eficaz e efectiva alguns factos cuja probabilidade é restrita à aqueles
meios. Ademais, outro aspecto levantado é o da evolução jurídica e legislativa de que o nosso
ordenamento jurídico carece no âmbito do processo penal. Sustentam que os sistemas jurídicos
mais fortificados que o nosso já ultrapassaram este modelo, basicamente acusatório e integrado
por um princípio de investigação, pelas inconveniências que ele oferece, por isso mesmo que
sugerem a adoção de um modelo estrutural de processo penal misto, em que reunir-se-ia metade
de um e de outro modelo (sendo a primeira parte do processo regida pelo modelo acusatório e a
segunda, pelo modelo inquisitório), mas levando apenas aspectos positivos de cada um deles. Com
esta posição, eles associam-se ao TORNAGHI e MARQUES quando dizem que “o modelo
estrutural de processo penal misto é o mais ideal por reunir as vantagens de um e eliminar os
inconvenientes do outro”289.

289
TORNAGHI e MARQUES, citados em LAGO, op. cit., p. 31.

66
O actual CPP moçambicano foi aprovado pelo Decreto n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, e
entrou em vigor em Moçambique, então província ultramarina – colónia portuguesa, através do
Decreto n.º 19271, de 24 de Janeiro de 1931, quase dois anos após a sua aprovação. Naquela altura,
o modelo presente nas legislações processuais penais dos Estados, era o modelo inquisitório, e por
influência, este CPP carregou consigo a vertente inquisitória que aos poucos foi sendo afastada
através da aprovação de diplomas legais como o DL n.º 35.007, de 13 de Outubro de 1945. Mais
do que esses diplomas legais, Moçambique torna-se independente e, por via disso, verifica-se o
advento de Constituições que, de forma inequívoca trouxeram consigo princípios que
contrariavam/contrariam os princípios do modelo inquisitório que se reflectem no CPP. Como
consequência, foram caindo em desuso algumas normas do CPP que tinham o imediato reflexo do
modelo inquisitório de que se procurava distanciar, mas nem todas as normas com este reflexo
foram abandonadas, facto este que desajusta o CPP ao modelo estrutural de processo penal
adoptado no ordenamento jurídico moçambicano. Como as normas do processo penal não se
esgotam no CPP, os diplomas legais extravagantes na área do processo penal, em sintonia com
algumas normas do CPP, fazem com que o processo penal moçambicano funcione de acordo com
o modelo adoptado. Tal que é nossa posição de que as normas que regem o processo penal
moçambicano são funcionais em relação ao modelo adoptado, porém nalgumas vezes essa
funcionalidade é comprometida por causa do desajustamento dalgumas normas constantes do CPP.

A nível internacional, vários têm sido os esforços levados a cabo para o reconhecimento e respeito
dos direitos humanos devido à própria indisponibilidade e indispensabilidade deles para a
subsistência do Homem. Tais esforços materializam-se nos documentos internacionais como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos,
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, etc., todos eles tendo como objectivo único
mobilizar, apelar, consciencializar as sociedades e/ou Estados da necessidade e importância que
os direitos humanos assumem e que a garantia deles pelos Estados é fundamental para a construção
de um Estado contemporâneo.

Na ordem jurídica moçambicana, aqueles documentos internacionais têm o seu reflexo na


Constituição da República, onde tais direitos humanos já assumem uma outra posição que é a dos
direitos fundamentais. O terceiro (III) título da Constituição da República que vai do artigo 35º à
95º, é exclusivamente reservado aos direitos, deveres e liberdades fundamentais, onde de forma

67
expressa estabelece o art. 43º, que “os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais
são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos”. Querendo com tal consagração
constitucional dizer que os direitos tidos como fundamentais na República de Moçambique são ou
foram extraídos daqueles documentos internacionais. A partir dos direitos fundamentais é possível
extrair aqueles direitos e princípios que têm um papel importante no processo penal, como é o caso
do direito à liberdade e à segurança constante do art. 59º; princípio da retroactividade mais
favorável ao arguido (n.º 2 do art. 60º); o direito à defesa e assistência jurídica e patrocínio
judiciário (art. 62º); direito a um julgamento em processo criminal (n.º 1 do art. 65º); princípio da
publicidade das audiências (n.º 2 do art. 65º); princípio da obtenção lícita das provas e proibição
à tortura (n.º 3 do art. 65º); princípio do juiz natural (n.º 4 do art. 65º); e direito à providência do
habeas corpus (art. 66º).

Olhando para a proteção constitucional que ao arguido é assegurada através da atribuição dos
direitos acima arrolados e princípios que devem reger o processo penal, leva-nos a fazer uma
análise genérica dos modelos estruturais de processo penal com vista a identificação do modelo
adequado para o Estado moçambicano atentos às particularidades que são apresentadas por ele.
Nesta incursão analítica, verificou-se que o modelo que mais aproxima-se à realidade jurídica e
social moçambicana, é o modelo acusatório. Porém, não podendo ser adoptado na forma pura
devido às inconveniências que o mesmo apresenta.

A escolha do modelo acusatório justifica-se pelas características que o integram, sendo de


destaque: separação das funções processuais de investigar e acusar, defender e de julgar, em
entidades diferentes (o que faz com que haja uma certa imparcialidade do julgador e o arguido
tenha direito e meio para defender-se por através do contraditório, direito este constitucionalmente
consagrado); igualdade de condições entre a acusação e a defesa (facto que robustece a posição
do arguido e confere-lhe vantagens ou mecanismos para o exercício da dos seus direitos); a posição
do arguido como sujeito processual e não objecto processual (consubstanciando-se na
susceptibilidade de ser titular de direitos processuais e deveres); a liberdade como regra e privação
dela como excepção (o que traduz-se no princípio da presunção de inocência previsto na
Constituição); e a publicidade das audiências (princípio que acima ficou elucidado como
constante da CRM). O que faz com que não possa ser adoptado no seu estado puro, é o facto de

68
nesse modelo, o juiz ter uma actuação totalmente passiva no processo, fazendo com que não tenha
poderes para a instrução do processo (enquanto fase de produção de prova e não de recolha de
prova), estando a mercê das provas recolhidas e produzidas pelas partes. Ademais, a acusação e a
defesa têm interesses totalmente dissociados, sendo que a acusação tem a missão de a todo custo
procurar obter a condenação do arguido. Então, erradica-se a passividade do juiz buscando um
princípio do modelo inquisitório, que é o princípio de investigação, dando poderes ao juiz para de
forma autónoma e oficiosa ordenar a realização de diligências de prova (na fase do julgamento)
que julgar convenientes para o esclarecimento da causa. Daí que para nós, o modelo adoptado
entre nós é o mais adequado, porém carecendo de algumas alterações substanciais que de alguma
forma farão com que este modelo seja mais robusto e modernizado tendo em conta a realidade
jurídico-social de Moçambique.

3.2.2. Da garantia de imparcialidade do juiz da causa versus os poderes de direcção da


instrução contraditória e, de julgar
Na indagação da imparcialidade como critério a que se deve submeter o juiz da causa para a tomada
de uma decisão justa e imparcial, foi de forma conjunta e cumulativa estudado o nível de interação
e impacto que os poderes do juiz da causa têm nesse processo, para o que, teve-se como base as
respostas dos entrevistados dadas a este respeito. As perguntas colocadas visavam essencialmente
apurar se de facto existe uma ligação entre tais poderes do juiz da causa e o princípio da
imparcialidade, e qual a medida de influencia daqueles na tomada de uma decisão justa e imparcial
por parte do juiz da causa.

Feita a pergunta com o sentido de apurar a existência ou não de uma relação entre os poderes do
juiz da causa (de direcção da instrução contraditória e de julgar) e o princípio da imparcialidade,
obtivemos sete (7) respostas positivas (A2, D1, D2, P1, P2, J1 e J2) e uma (1) negativa (A1).

Os defensores das respostas positivas fundamentam que existe uma relação de tendência, de risco,
de se colocar em causa o princípio da imparcialidade. Isto porque na sua opinião, quando o juiz da
causa dirige a instrução contraditória ou tem contacto directo com o processo e seus envolvidos
ainda na fase da recolha de provas, forma inevitavelmente uma convicção pessoal acerca do que é
ou não verdade e a quem é imputável a culpa. Facto que de forma não premeditada, vai influir
tendencialmente na capacidade do mesmo juiz, numa fase posterior (a de julgamento), tomar uma
decisão que seja imparcial das suas próprias convicções formadas precocemente e por influência

69
de vários elementos objectivamente desconhecidos. Uma relação de risco, pelo facto de se colocar
o processo a mercê da incerteza que paira sobre a capacidade do juiz abster-se das suas ideologias
e convicções previamente criadas, o que de certa forma desincentiva a confiança ou credibilidade
da justiça aparente constante da sentença proferida por aquele juiz. É por essas razões que dizem
estar a colocar-se em causa a imparcialidade como princípio orientador da actuação processual do
juiz da causa.

Por outro lado, na fundamentação da resposta negativa, verificou-se uma certa dualidade de
sentidos da resposta, uma tendente a negativar e outra a positivar. O primeiro sentido da
argumentação é que inexiste uma relação entre aqueles poderes e o princípio da imparcialidade em
termos de tomada de decisões por parte do juiz, visto que são poderes exercidos em diferentes
fases do processo, o que retira a ideia de uma decisão tomada na primeira fase do processo poder
influenciar a decisão da outra fase do processo. Já o segundo sentido, leva-nos a uma situação de
separação entre o que deve acontecer e o que acontece na realidade. Isto porque, pese embora o
defensor desta resposta negue de forma expressa sobre a existência de uma relação entre aqueles
poderes e o princípio da imparcialidade, admite também, de forma expressa, que tem acontecido
cenários em que a convicção formada em sede da primeira fase, influencia a decisão tomada ou a
tomar na segunda fase do processo, o que de certa forma robustece ainda mais a ideia da existência
de uma relação de risco, trazida no âmbito da fundamentação das respostas positivas.

Quando a questão colocada tencionou aferir a possibilidade de as convicções formuladas pelo juiz
da causa no decurso da IC serem levadas à fase do julgamento e, por influência delas ser tomada
a decisão final, houve unanimidade por parte dos entrevistados (A1, A2, D1, D2, P1, P2, J1 e J2), com
a afirmação de que não é impossível que tal fenómeno ocorra. Dentre os vários aspectos trazidos
à fundamentação desta resposta unânime, destacam-se dois pela sua predominância: o dever de
pautar pelo profissionalismo e objectividade, e a fragilidade ou natureza humana aliada à
involuntariedade da manifestação dessa influência.

No primeiro aspecto, justifica-se que apesar de haver essa possibilidade de aquelas convicções
influenciarem a decisão final do processo, existe também a possibilidade oposta daquela, quando
o juiz da causa paute pelo profissionalismo e objectividade, isto é, se o juiz ater-se exclusivamente
aos elementos objectivos do processo (os elementos de prova) e aplicar a lei aos respectivos factos,

70
aí não terá como deixar-se influenciar pelas convicções que eventualmente criou no âmbito da
direcção da instrução contraditória.

No segundo aspecto, levanta-se a questão da própria natureza humana, no sentido de que nas
condições em que o juiz da causa se encontra no processo, é inevitável que ele crie convicções e
deixe-se influenciar por elas na tomada da decisão final. A inevitabilidade a que se refere, tem
muito haver com a forma como ocorre essa influência na mente do próprio juiz, de forma
involuntária. Involuntária porque muitas vezes, as convicções ou juízos (acerca da culpabilidade
ou inocência do arguido) criados pelo juiz da causa aquando da direcção da instrução contraditória,
são também por influência de convicções pessoais do juiz enquanto pessoa, que podem ser
convicções morais, religiosas, culturais, etc., razão pela qual convence, involuntariamente, ao
próprio juiz de que a convicção por ele criada é certa e verdadeira, tornando difícil o
distanciamento dela na fase da tomada da decisão final.

A imparcialidade dos tribunais tem sido matéria recorrente nos instrumentos legais internacionais,
quando se fala de justiça e direitos/garantias dos arguidos em processo penal. Como se pode
depreender do art. 10º da DUDH ao estabelecer que, “todo ser humano tem direito, em plena
igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial,
para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra
ele”. No mesmo sentido, vai a al. d) do n.º 1 do art. 7º da CADHP ao preconizar que, “toda a
pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada por um tribunal imparcial”. Ao nível interno,
é também possível encontrar dispositivos legais em vários diplomas, que tendem a garantir que
haja imparcialidade por parte dos tribunais na apreciação das causas que lhes são submetidas.
Começando pela Constituição da República, resulta do n.º 2 do art. 217º que, “no exercício das
suas funções, os juízes têm igualmente a garantia da imparcialidade (…)”. Degrau abaixo da
Constituição, em termos hierárquicos, prevê o n.º 1 do art. 10º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto
(LOJ) que, “no exercício das suas funções os juízes são independentes e imparciais e apenas
devem obediência à Constituição e à Lei”. E por último, ainda no mesmo degrau, prescreve a al.
a) do n.º 2 do art. 39º da Lei n.º 7/2009, de 11 de Março (EMJ) que, “os magistrados judiciais
devem desempenhar a sua função com (…), imparcialidade, (…)”.

Portanto, analisando as competências ou poderes do juiz da causa em sede do processo penal,


procuramos aferir até que ponto e em que medida, a acumulação dos poderes de direcção da

71
instrução contraditória e, de julgar, no mesmo juiz da causa, garante a sua actuação processual de
forma imparcial, de acordo com a imposição dos instrumentos legais acima mencionados. Ora, da
conjugação do art. 330º do CPP com o art. 37º do DL 35.007, resulta que a competência de direcção
da IC é cometida ao juiz (da causa), sendo que essa direcção consiste em ordenar a abertura da IC
ou rejeita-la nos termos do art. 329º do CPP290, assim como pode (no âmbito desse poder de
direcção) recusar a realização de determinadas diligências requeridas no acto da abertura da IC e
ordenar as diligências que ele próprio julgar oportunas e úteis para a causa, nos termos do art. 40º
do DL 35.007.

Como se pode ver, o juiz da causa tem uma actuação deveras activa na fase da instrução do
processo, que é uma fase investigativa destinada à recolha dos elementos de prova com vista a
submissão ou não do arguido ao julgamento. Esta actuação do juiz da causa nessa fase
investigativa, vai culminar com a emissão da própria posição no que se refere à decisão de
submeter ou não o arguido ao julgamento, através do despacho de pronúncia ou de não pronúncia,
respectivamente (art. 365º do CPP). Nesta fase investigativa, é onde as convicções são criadas
acerca da culpabilidade ou inocência do arguido, devido a sensibilidade que reveste a investigação
preliminar, razão pela qual os defensores do modelo acusatório, procuram separar o órgão
investigador do julgador, exactamente por causa dessa grande possibilidade e probabilidade de não
haver imparcialidade daquele órgão (que investiga e julga o mesmo caso). Actuando, o juiz da
causa como investigador naquela fase de investigação preliminar do processo, é inevitável que a
sua decisão (despacho de pronúncia ou de não pronúncia) que põe termo a esta fase, seja tomada
em função das convicções ou juízos por ele criados acerca de maior ou menor probabilidade de o
arguido ser ou não culpado do ilícito criminal de que vem indiciado. E de uma forma significativa,
isto afecta ou reduz a confiança da consciência do juiz que decidirá não de acordo com ela (a

290
Este artigo suscita alguma margem de dúvidas, pelo facto de individualizar as circunstâncias de rejeição do
requerimento de abertura da instrução contraditória feito ou promovido, apenas pelo Ministério Público, visto que não
é a única entidade que tem a legitimidade para requerer a abertura da instrução contraditória, tendo também o arguido.
A questão que se coloca é de saber se o requerimento, naquele sentido, feito pela parte do arguido pode ou não ser
rejeitado, visto que aquele artigo só se refere aos casos em que o Ministério Público é o requerente. Ou, se o
requerimento para a abertura da instrução contraditória, feito pelo arguido, pode ser rejeitado por qualquer
fundamento.

72
consciência) no seu estado puro, mas de acordo com àquela já viciada pelas convicções e
preconceitos pré-criados291.

Conforme o previsto no n.º 2 do §ún. do art. 327º do CPP, o arguido tem legitimidade para requerer
a abertura da instrução contraditória. Imagine-se que ele usando dessa legitimidade, solicite a
abertura daquela fase processual e é declarada aberta pelo juiz da causa. Na convicção de que o
arguido é o provável culpado do crime que vem indiciado, legalmente, o juiz da causa tem muito
espaço de manobra para inviabilizar ou frustrar as tentativas de o arguido provar a sua
irresponsabilidade daquele crime. O amplo espaço de manobra que nos referimos, é sobejamente
criado pelo § 1 e 2 do art. 330º do CPP. Ora, se o § 2 do art. 330º atribui ao juiz da causa a faculdade
de indeferir as diligências requeridas pelo arguido, é quase certo que tendo como juízo formado o
da provável culpa do arguido, ele (o juiz da causa) pode indeferir aquelas diligências que tiverem
vindo do arguido, com o fundamento de que sejam manobras dilatórias ou à causa nada interessam.
Isto porque não há, a nível da doutrina e legislação, critérios objectivos de determinação das
diligências tendentes a protelar o andamento do processo ou das que não interessam à instrução do
processo. A este respeito, Paula Marques CARVALHO refere que

na recolha dos elementos de prova e na sua instrução, é importante e imperioso que se


levem em conta todos os elementos de facto que tenham de algum modo relação com o
caso em investigação, além dos elementos que tenham sido levantados ou sugeridos pelas
partes, ainda que pareçam banais, são relevantes para o apuramento e alcance da verdade
material292.

Não havendo critérios objectivos para a distinção daquelas diligências, o arguido fica a mercê da
subjectividade do juiz da causa, o mesmo que já formou uma prévia convicção sobre a
culpabilidade dele (do arguido). Obviamente que daqui, por maioria de razão lógica, não é de se
esperar uma reação diferente por parte do juiz, senão o indeferimento de algumas diligências
requeridas pelo arguido, que na óptica deste, visavam provar a sua irresponsabilidade do crime de
que vem indiciado, enquanto que na óptica daquele, não interessam a instrução do processo ou têm
por fim protelar o andamento do processo.

Do mesmo modo, pode o juiz actuar naquelas condições acima descritas, em relação às diligências
solicitadas pelo Ministério Público no requerimento de abertura da instrução contraditória feito a

291
ARONNE, Ricardo, O Princípio do Livre Convencimento do Juiz, Sérgio António Fabris Editor, Porto Alegre,
1996. P. 345.
292
CARVALHO, Paula Marques, manual prático de processo penal, 8ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 232.

73
luz do art. 35º do DL n.º 35.007, de 13 de Outubro de 1945. Isto nos casos em que a convicção do
juiz seja da improbabilidade da culpa do arguido pelo crime de que vem indiciado.

Por outro lado, está o § 1 do art. 330º do CPP que, atribui ao juiz a faculdade de denegar ao
Ministério Público, arguido e seu defensor e o advogado dos assistentes (havendo-os), a assistência
dos actos da instrução contraditória, com fundamento na incompatibilidade com o êxito ou
finalidade das diligências. Ora, não obstante, resulte do art. 327º, corpo, do CPP que, na instrução
contraditória devem ser realizadas diligências para esclarecer e completar a prova indiciária da
acusação, assim como às destinadas a ilidir ou enfraquecer àquela prova, estando convicto de que
o arguido seja o provável culpado, o juiz pode impedir que o arguido e seu defensor assistam
alguns actos da instrução contraditória, com fundamento na incompatibilidade da presença
daqueles com o êxito dos actos que se pretendem realizar. Feito isto, aquela diligência poderá ser
realizada apenas inclinada a esclarecer e completar a prova indiciária da acusação, sem levar-se
em conta a outra face da diligência, que é de ilidir ou enfraquecer a prova careada para a acusação.

De igual modo, quando o juiz tenha a convicção da improbabilidade da culpa do arguido, pode
impedir o Ministério Público e o advogado do assistente (havendo-o) de assistirem à realização de
algumas diligências, com aquele fundamento legal, e àquelas diligências serem realizadas somente
na perspectiva de ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação, deixando-se de lado a outra
perspectiva que é de esclarecer e completar a prova da acusação.

Todas essas situações, que em sede de uma análise superficial parecem mesquinhas e de pouca
relevância, têm um grande impacto para a produção do despacho de pronúncia ou de não
pronúncia, com vista a recepção ou rejeição da acusação, respectivamente. E é através desse
despacho de pronúncia (se for o caso) que o arguido é levado a barra do tribunal e julgado de
acordo com a convicção ou juízo pré-criado pelo juiz da causa em sede da direcção da instrução
contraditória, conforme atestam as respostas dos nossos entrevistados a este respeito.

Já na fase do julgamento, a actuação do juiz da causa é também activa, sendo-lhe atribuída a


competência de presidir (dirigir) as audiências de discussão e julgamento daquele processo, com
base no art. 409º do CPP, conjugado com o art, 14º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto (LOJ).
Como presidente ou dirigente desta fase, o juiz tem um papel decisivo no que concerne ao sentido
ou rumo do julgamento, porque somente ele pode inquirir as testemunhas e o arguido (cabendo a
acusação e a defesa apenas sugerir que o juiz faça determinadas questões, sugestões que podem
74
ser rejeitadas pelo juiz se as julgar inconvenientes), podendo excepcionalmente permitir que a
acusação e a defesa façam directamente perguntas ao arguido ou testemunhas. De igual modo, na
instrução feita em julgamento (onde ocorre a produção de prova), quando sobrevenha o
conhecimento de novos elementos de prova (com fortes probabilidades de influir na decisão) que
não foram recolhidos na respectiva fase, a fase instrutória, o juiz tem o poder de ordenar ou não
que eles sejam produzidos (art. 443º do CPP). Portanto, é mais uma situação em que o juiz tem o
poder de controle do rumo do julgamento, facto que pode de certa forma cegar o juiz, dos
elementos de prova tendentes a direcionar no sentido oposto ao da decisão de confirmação de
submissão do arguido ao julgamento, pela grande probabilidade da sua culpa, que fora tomada
pelo próprio juiz em fase anterior.

Concluídos todos os actos a praticar nesta fase, é o juiz que elabora os quesitos que deverão ser
discutidos, respondidos e deliberados por votação pelo tribunal, posto que a acusação e a defesa
apenas podem reclamar ou requerer a inserção de novos quesitos, que serão deferidos se o juiz
entender oportunos (art. 446º do CPP). Na discussão e deliberação dos quesitos, intervêm os juízes
eleitos (no tribunal singular) que apenas participam na discussão e decisão da matéria de facto, de
acordo com o n.º 2 do art. 17º da Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto (LOJ). Após a decisão da
matéria factual, caberá exclusivamente ao juiz proceder o julgamento de direito, que consiste em
aplicar a lei aos factos tidos ou considerados como provados, sucedendo a elaboração da sentença,
que é a decisão final da causa.

As fases do processo penal, não devem ser encaradas de forma isolada, elas estão interligadas e
por isso complementam-se para atingir um fim único. Por isso mesmo, que as
competências/poderes atribuídos ao juiz da causa nas fases em análise desta pesquisa, de forma
directa ou indirecta, mantêm uma relação com a imparcialidade enquanto critério e princípio da
actuação processual do juiz. Porque, quando lhe são atribuídos poderes bastantes em fases
indevidas, ocorre uma aglomeração de poderes numa só entidade, que acaba diluindo a actuação
dos demais sujeitos processuais, e como consequência, aquele (o juiz) passa a figurar como
processus dominus293 e a imparcialidade é afectada.

293
Numa tradução para a língua portuguesa, significa o dono do processo. Tal situação só ocorre no modelo
inquisitório e, como ficou aludido neste trabalho, aquele não é o modelo adoptado entre nós, por isso há toda uma
necessidade de contornar essa situação para ajustar e adequar ao modelo adoptado no nosso ordenamento jurídico.

75
Feita a análise do xadrez dos poderes do juiz da causa em face da imparcialidade que é devida,
resultou que ele encontra-se numa posição por demais melindrosa. Isto porque, a qualidade dos
poderes (de direcção da IC e de, julgar) que lhe são cometidos em fases estratégicas e cruciais do
processo (instrutória e de julgamento), levando-se em conta a natureza humana do juiz enquanto
pessoa, ainda que existam regras que imponham certos deveres de profissionalismo e
objectividade, as probabilidades daquele juiz tomar decisões finais por influência das convicções
que terá criado precocemente na fase da investigação do processo, são maiores em relação as de,
ele mudar de convicção no decurso do processo, eventualmente pela produção de prova em
julgamento. Com tais probabilidades, é óbvio que a imparcialidade que muito se espera do
juiz/tribunal, será de certa maneira comprometida, ainda que de forma involuntária por parte do
juiz. A este respeito, ensina o prof. Germano Marques da SILVA que,

A melhor garantia da imparcialidade reside no carácter de cada um, mas a existência de


meios legais que impõem a objectividade e imparcialidade no julgamento, por uma parte,
e adequados a assegurar que ninguém será coagido, nem, por necessidade ou por medo,
poderá impunemente desvirtuar a função de que está investido e que exerce em nome do
povo, por outra parte, são instrumentos imprescindíveis à realização da justiça 294.

O que, no entanto, se verifica a luz das atribuições do juiz da causa no processo penal, é a
insuficiência, senão inexistência de meios legais, que visem assegurar por parte do juiz o exercício
da judicatura de forma a que não sofra influências negativas das suas próprias convicções, criadas
involuntariamente através da fragilidade humana que todo ser humano ostenta. Tal é que
corroborando com essa ideia, o prof. Germano Marques da SILVA, refere que, “se a lei não pode
transformar os Homens, pode e deve, pelo menos, criar as condições mínimas para que possam
exercer em plenitude as funções que lhes são cometidas”295.

3.2.3. Âmbito de actuação dos juízes (da instrução criminal e o da causa) no processo penal
No que concerne ao âmbito de actuação do juiz da instrução criminal e o juiz da causa em processo
penal, aos entrevistados foi feita uma questão com o desígnio de saber se achavam alguma logica
na distribuição de funções daqueles sujeitos em sede da fase instrutória do processo, pelo que,
obteve-se três (3) respostas positivas (A1, A2 e J1) e cinco (5) negativas (D1, D2, P1, P2, e J2).

Os titulares das respostas positivas, alegam fundamentalmente razões de índole financeiras, a


obtenção de resultados pelo actual funcionamento do sistema e, falta de análise profunda em

294
SILVA, Germano Marques, op. cit., Vol. I, p. 228.
295
Ibidem.

76
relação a questão. No primeiro caso, a fundamentação é de que no actual momento de crise
económico-financeira que o país está mergulhado, é conveniente que assim continue, pelo facto
de não ter que acrescer mais custos ao Estado. Porque segundo o entrevistado, permitir que outra
figura dirija a IC são custos de que o Estado não está em condições de arcar no momento. No
segundo caso, ao se alegar que o importante é que o sistema funcione e traga resultados, traz de
certa forma a ideia maquiavélica de que independentemente dos meios, o importante é o fim
almejado. E no terceiro caso, o entrevistado assume que dá a resposta, mas que ela foi dada sem
um prévio estudo profundo da situação, motivo pelo qual, descredibiliza ate certo ponto a resposta
dada nesse sentido.

Quanto aos titulares das respostas negativas, os fundamentos recorrentes são o da incoerência e o
do reflexo do modelo inquisitório. No primeiro caso argumenta-se que, a incoerência reside no
facto de que, a instrução preparatória assim como a contraditória, ambas integram a fase instrutória
do processo, razão pela qual não vêm os motivos de não ser, a instrução contraditória, dirigida pela
figura já criada, do juiz da instrução criminal. No segundo caso, ressalta-se que tal configuração
na atribuição do poder de direcção da instrução contraditória ao juiz da causa, faz renascer a
característica do modelo inquisitório, em que o julgador é também investigador. Daí que o lógico
para um modelo como o nosso, seria que a instrução contraditória fosse dirigida pelo juiz da
instrução criminal, uma figura já instituída no nosso ordenamento jurídico.

Em momento oportuno neste trabalho, aquando da abordagem teórica das fases do processo penal,
mormente da fase instrutória, fez-se saber que esta fase subdivide-se em duas: a instrução
preparatória e a instrução contraditória. Ambas com a mesma finalidade, distinguindo-se pela
primeira ser dirigida pelo Ministério Público (art. 14º do DL 35.007), e a segunda pelo juiz da
causa (art. 37º do DL 35,007). Pese embora não resulte expressamente deste artigo a designação
juiz da causa, tal designação é fruto da interpretação feita por exclusão, do art. 1º da Lei n.º 2/93,
de 24 de Junho, que restringe a actuação do juiz da instrução criminal à fase da instrução
preparatória, e elenca o rol de competências que a ele cabem naquela fase. Ora, pelo facto de haver
essa subdivisão da fase instrutória, não significa de modo algum que ambas não a integrem como
a fase mãe de investigação do processo.

A par daquela semelhança entre as duas instruções, ocorre que em ambas, são praticadas tanto
funções policiais assim como funções jurisdicionais. Por isso mesmo que, para impedir que as

77
funções jurisdicionais que nelas ocorrem (sobretudo na IP) fossem levadas a cabo por entidades
incompetentes (MP e órgãos de polícia criminal), o legislador entendeu ser oportuna a intervenção
de um magistrado judicial diferente do que proceda o julgamento da causa, para praticar aquelas
funções que lhes são próprias. Assim, através da Lei n.º 2/93, de 24 de Junho, foi criada a figura
designada por juiz da instrução criminal, que tem como âmbito da sua actuação, a fase da
instrução preparatória.

O juiz ora criado, é conhecido como juiz das garantias, devido ao facto de que no âmbito da sua
actuação na instrução preparatória, as suas competências definidas pelo n.º 2 do art. 1º da lei que
o institui, circunscrevem-se maioritariamente na preservação ou restrição dos direitos
fundamentais dos cidadãos (suspeitos ou arguidos no processo criminal). Portanto, tal
circunscrição de competências, faz com que ele tenha uma actuação mínima no processo, sendo
que podia ser diferente se a sua função fosse mais abrangente atendendo a relevância e posição
que aquela figura (juiz da instrução criminal) ostenta no modelo acusatório contemporâneo. Como
a sua designação é auto-explicativa296 e esta pesquisa tem como premissa a busca de uma
imparcialidade que seja de facto, é mais do que lógico que seja esta figura a dirigir a instrução
contraditória, permanecendo com as suas funções de garante dos direitos fundamentais dos
cidadãos, na fase da instrução preparatória. Deste modo, evita-se acrescer demasiados custos
financeiros ao Estado (receio de alguns dos nossos entrevistados), porque não haverá necessidade
de se criar uma terceira figura de juiz (eventualmente um juiz da instrução contraditória), como
alguns sugerem, mas sim uma reformulação de competências do juiz da instrução criminal (figura
já criada) e do juiz da causa.

Ao juiz da causa, para que não tenha no processo uma actuação deveras passiva, sendo um mero
julgador, o princípio da investigação presente no nosso processo penal, é razão mais do que
suficiente para que o juiz da causa tenha poderes de investigação dos factos que lhe são
apresentados, conforme prescreve o art. 327º corpo, in fine, do CPP. Porém, esse poder deverá
manifestar-se nas fases ulteriores à instrutória do processo, que é por excelência de investigação.
Assim, alarga-se o âmbito da actuação do juiz da instrução criminal e restringe-se (por motivos
positivos) o do juiz da causa, assegurando ou garantindo que cada sujeito processual tenha uma

296
No sentido de a sua actuação ser apenas na instrução do processo, quer seja preparatória quer seja contraditória,
desde que não extravase a fase instrutória do processo.

78
actuação considerável e devida (em obediência ao modelo estrutural que serve de base do nosso
processo penal), para que o processo seja julgado com a maior imparcialidade possível.

79
CONCLUSÃO

Chegados a esta fase do trabalho, é com grande regozijo que ousamos afirmar ter alcançado o
nosso principal objectivo, na medida em que da análise e interpretação dos dados resultou que o
princípio da imparcialidade é notoriamente afectado, quando ao mesmo sujeito processual é-lhe
conferido a competência de direcção da instrução contraditória e de julgar o mesmo processo que
numa fase à priori (da investigação) interveio como investigador preliminar. Desta constatação
conclusiva, resulta claro que por maioria de razão jurídico-lógica, a hipótese tida como válida é a
segunda, segundo a qual a reunião das funções de direcção da instrução contraditória e julgadora
no juiz da causa, não garante a imparcialidade deste na tomada da decisão final. Isto porque, será
por tendência que ele tomará a sua decisão final, ou seja, tendo ele procedido a direcção da
instrução contraditória, terá criado inevitavelmente uma convicção, um juízo de valor sobre o
arguido, que com base nela irá tomar a sua decisão final. Ainda que se pense na ideia segundo a
qual o juiz tem o dever de julgar de acordo com a sua consciência, o entrave surge exactamente
pelo facto de aquela consciência pura do juiz a que o legislador tentou acautelar, já estar viciada
pelas vicissitudes da instrução contraditória da qual ele é dirigente.

Ora, alcançado o objectivo primordial e validada a hipótese com melhor adequação nas ilações
extraídas da interpretação dos dados, fica respondida à partida, a pergunta levantada aquando da
contextualização problemática que deu azo a elaboração deste trabalho, nos moldes em que,
efectivamente, a acumulação das funções de direcção da instrução contraditória e julgadora, no
mesmo sujeito processual, não garante de modo algum a imparcialidade deste na tomada da
decisão final. Não se verifica a imparcialidade, não pela voluntariedade do próprio juiz em deixar-
se influenciar pela convicção pré-concebida, mas pela armadilha que inconscientemente o
legislador colocou na frente escura do magistrado judicial ao lhe atribuir aquelas duas funções
processuais. Tal é que por via delas o juiz, involuntariamente tem a sua consciência avassalada a
emitir juízos de valor com pouca, senão mesmo nenhuma precisão jurídica, culminando com
sentenças formalmente legais e materialmente ilegais por terem sido tomadas com a preterição
involuntária de observância ao princípio da imparcialidade.

Sugestões
A sugestão que temos é para o órgão legislativo por excelência (Assembleia da República), no
sentido de se proceder uma revisão às leis (em sentido formal e material) que regem o processo
80
penal, de modo a harmoniza-las num mesmo instrumento de codificação (CPP) e adequa-las à
realidade social moçambicana. Nesta revisão, o cerne deverá ser a reestruturação das competências
do juiz da causa e do juiz da instrução criminal, retirando daquele a direcção da instrução
contraditória para conferir a este último. Assim, a nossa proposta é que o art. 330º, corpo, do CPP
e o art. 37º do DL. 35.007, de 13 de Outubro de 1945, passem a ter a seguinte redação:

ARTIGO 330/37

Direcção da instrução contraditória

“A instrução contraditória é sempre presidida pelo juiz da instrução criminal297”.

No mesmo sentido, com vista a uma melhor conjugação e adequação dos dispositivos legais,
deverá ser incorporada esta competência no leque das competências do juiz da instrução criminal
nos termos do n.º 2 do art. 1º da Lei n.º 2/93, de 24 de Junho. Assim, ampliar-se-á o âmbito de
actuação do juiz da instrução criminal, passando a intervir não só na instrução preparatória, mas
também na contraditória. Como consequência, o preâmbulo e o n.º 1 do art. 1º da Lei n.º 2/93, de
24 de Junho, deverão sofrer alteração, passando aquele dispositivo legal a ter a seguinte redação:

ARTIGO 1

1. As funções jurisdicionais que devam ter lugar no decurso da fase instrutória298 dos
processos-crime passarão a ser exercidas por magistrados judiciais, designados por juízes
da instrução criminal.

Nestes termos, a operacionalização prática destas competências seria através do seguinte esquema:

MP (onde inicia o processo) →→ JIC (para validar a prisão e realizar o primeiro interrogatório)
→→ MP (para realizar a IP e acusar) →→ JC (notificar os visados e decidir sobre a realização
da IC, havendo requerimentos neste sentido ou oficiosamente) → → JIC (para dirigir a IC) → →
MP (para manter ou modificar a sua acusação) → → JC (para a produção do despacho de
pronúncia ou de não pronúncia, e ulteriores termos do processo – julgamento ou arquivamento do
processo, respectivamente).

297
O sublinhado é para realçar a novidade introduzida na redação, que é da nossa autoria.
298
Aplicável ao que ficou descrito no número anterior.

81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes da pesquisa teórica299

Fontes primárias:
Legislação:
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REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto n° 35.007, de 13 de outubro de 1945, in Diário do
Governo I série n° 228 de 13 de outubro;
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n° 24/2007, de 20 de agosto, Lei da Organização
Judiciária in Boletim da República I série
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n° 24/2007, de 20 de agosto, Lei de revisão pontual da
lei 24/2007, de 20 de agosto – Lei Organização Judiciária, in Boletim da República;

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n° 9/92, de 6 de maio in Boletim da República, I série;


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criminal, in Boletim da República, I série;
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Judiciais, in Boletim da República I série n° 10 de 11 de março;
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n° 9/92, de 6 de Maio, Lei de alterações do Código de
Processo Penal;
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto 15/2013, de 26 de Abril, Estatuto do Instituto de
Patrocínio e Assistência Jurídica;
Declaração Universal dos Direitos Humanos;
Carta Africana dos Direitos dos Homem e dos Povos;

Doutrina:
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, Direito Processo Penal, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2006.

299
Cfr. os números 1 e 2 do art. 10º do Dossier 2015, anexo I, manual de elaboração de trabalhos académicos,
faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique.

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84

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